Os elefantes - Leconte de Lisle

September 11, 2017 | Autor: Emerson Tin | Categoría: Poésie, Littérature Française, Tradução, Charles Leconte De Lisle, Les éléphants
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Descripción

ISSN 1676-031X

Revista de tradução

Modelo 19

Documento de Identificação do Estrangeiro Ano 10 - Número 15 - Verão de 2005

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Revista de tradução Modelo 19 nº 15

ISSN 1676-031X Endereço para correspondência: Rua Alfredo Mendes da Silva, 395 – apto. 191 B1 Jardim Jussara - São Paulo – SP - Brasil cep 05525 000 e-mail: [email protected] Fundadores: David J. Pereira Fábio Mella José Pedro Antunes Maximiliano Brandão Ricardo Meirelles Sofia Bau Corpo Editorial: Brunno V. G. Vieira Natália Simões de Vicente Patrícia Prata Ricardo Meirelles (editor) Revisão Patrícia Prata Editoração eletrônica: Torre de Pedra - Editoração Eletrônica [email protected] Capa: Luther und seine Mitarbeiter übersetzen die Bibel (Lutero e seus colaboradores traduzindo a Bíblia) em http://www.cele-df.org.br/velho/ALutero.htm 24/10/2004. Si richiede lo scambio Solicita-se permuta We ask for exchange On demandé l’échange Man bittet um Austausch Pidese canje

Normas para apresentação de originais A Revista de Tradução Modelo 19 tem por finalidade publicar traduções literárias - poesias, contos, trechos de novelas ou romances, etc. - inéditos ou não, de alunos, professores e outros tradutores, a critério do Corpo Editorial, que poderá sugerir ao autor modificações de estrutura ou conteúdo. O envio dos trabalhos implica a cessão imediata e sem ônus dos direitos de publicação para a revista. O tradutor continua a deter todos os direitos autorais para publicações posteriores do artigo, devendo, se possível, fazer constar a referência à publicação na revista. Também podem ser apresentadas resenhas de livros de literatura estrageira traduzida lançados no Brasil a 3 (três) anos no máximo e seu tamanho não deve exceder a 1 (uma) lauda. O tradutor receberá três exemplares da revista em que publicou o seu artigo. Os trabalhos deverão ser entregues em disquete - de preferência em Word 6.0 ou maior - sem qualquer tipo de formatação, acompanhados de uma cópia impressa em lauda padrão; ou enviados por e-mail: [email protected]. Os dados e conceitos emitidos nos trabalhos bem como a exatidão das referências bibliográficas e a revisão ortográfica são de responsabilidade exclusiva do tradutor. Todo artigo deve ser composto de: a. introdução (não devendo ultrapassar 4 (quatro) laudas e contendo, além do texto, título do texto original, nome do autor original, nome do tradutor, titulação e filiação acadêmica); b. texto original (originais com alfabetos diferentes do romano devem ser acompanhados pelas respectivas fontes); c. texto traduzido. As referências bibliográficas devem estar de acordo com as normas da ABNT (NBR 6023). Ilustrações devem vir prontas para serem impressas, dentro do padrão geral do texto e no espaço a elas destinado e deverão ser identificadas com título ou legenda. O Corpo Editorial não se obriga a publicar toda e qualquer colaboração que lhe for remetida. Os trabalhos recusados serão devolvidos aos autores desde que requeridos.

Permitida a reprodução desde que citada a fonte

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Muito mais do mesmo Antes de escrever mais uma vez este editorial, lembreime do que dizia Wilcon Pereira, escritor, filósofo, tradutor e professor no campus de Araraquara da Unesp, “se você não quer ser lido nunca, publique numa revista acadêmica, é garantia de anonimato”. De fato, a perenidade de uma revista acadêmica é geralmente igual a de um mandato de chefia de departamento e o seu alcance é aquele permitido pelo tráfego de mão em mão, quase que uma literatura “marginal”. Ao longo dos dez anos de publicação da Revista de Tradução Modelo 19, vi surgirem e desaparecerem muitas revistas acadêmicas, literárias, culturais, científicas, de “vanguarda”, etc. É claro que também sempre existiram aqueles periódicos acadêmicos “oficiais”, amparados por dotação orçamentária específica e regulares na distribuição, apenas a preço de mercado. O meio impresso se tornou ou um privilégio da elite e do mercado, ou um mecanismo de poder e coerção intelectual (ou talvez sempre tenha sido e sou eu que tenho me enganado). Hoje em dia, mais do que nunca, publicar numa revista acadêmica serve para conseguir alguns pontos a mais no seu currículo, seja ele o lattes ou não, e com isso meramente cumprir mais uma exigência burocrática, mas nunca visando uma empatia com o leitor, seja do ponto de vista do conteúdo, seja do ponto de vista editorial. A Revista de Tradução Modelo 19 sempre procurou quebrar com este preconceito, não abrindo mão da sua política editorial em apresentar regularmente obras de ficção, textos literários estrangeiros, seguidos de seus originais. Neste sentido, além de ampliar infinitamente suas possibilidades de leitura, também promoveu a troca de impressões sobre esses textos nos artigos anexos e, apesar de ter se desenvolvido dentro de uma universidade pública, procurou ser mais leve na sua parte acadêmica. A falta de comprometimento institucional e essa resistência à “aceitabilidade do produto no mercado” podem continuar sendo obstáculos intransponíveis, mas não acredito na perenidade de qualquer manifestação inte-

lectual que não esteja amparada no comprometimento dos seus colaboradores e leitores. Depois de um silêncio abismal, surge então mais uma oportunidade de publicar mais um número da Revista de Tradução Modelo 19. Se escrevo hoje este editorial é mais uma vez pela complacência do Departamento de Lingüística da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp, campus de Araraquara, que sempre apoiou a iniciativa da publicação desta revista. Aquilo que, como dissemos no editorial no número anterior, para nós parecia ser um sopro de vida nova quase se fez ouvir como estertor seguido de expiração. Contudo, procuro ser otimista e o que posso ver são quinze números, a melhor literatura de todos os tempos e todos os lugares, cerca de vinte línguas diferentes – incluindo modernas, clássicas, orientais e indígenas - e quase duzentos artigos publicados ao longo de dez anos. Sei que o meio impresso é apenas mais uma possibilidade e não a única, e deixaria de se tornar um impedimento para a publicação da revista lançá-la na Internet. Acredito que todos os projetos anteriores poderiam se desenvolver muito mais na vastidão da rede e assim alcançar o reconhecimento merecido, mas a revista ainda não conseguiu estabelecer nenhum compromisso com alguém capaz de lidar com web pages. Nesse último número, o 15, voltamos a nossa pluralidade tão peculiar e contamos com diversos escritores, de diversas línguas, e diversos tradutores, que aumentam a nossa diversidade, apresentando idiomas tão pouco freqüentes em nossa revista, como o espanhol e o inglês, quanto inusitados, como o guarani. Contamos ainda com os colaboradores assíduos e as línguas que sempre nos acompanharam, como o francês, o latim e o grego. De qualquer forma, a iniciativa é mais uma ação a favor da continuidade da publicação da Revista de Tradução Modelo 19, que ao longo de dez anos sempre procurou trazer ao leitor o melhor da literatura universal traduzido para a língua portuguesa e que pretende continuar fazendo isso por muito tempo.

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Inhoud

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Gwyraypotý 5 Consuelo de Paiva Godinho Costa Amores, I, 1, Ovídio 8 Brunno V. G. Vieira Sete poemas, Robert Lee Frost 10 Carlos Alberto da Fonseca Sete contra Tebas, Ésquilo 18 Evandro Luis Salvador O bolo, Charles Baudelaire 24 Ricardo Meirelles Notícias da Babilônia 28 Batracomiomaquia, Homero As Mulheres que celebram as Tesmofórias, Aristófanes 29 Cláudia Manoel Rached Féral De pura distração, A expressão, Mario Benedetti 35 Fernando Argollo Édipo, Sêneca 42 Giovani Roberto Klein Os elefantes, Leconte de Lisle 51 Emerson Tin Três fragmentos, Anacreonte 56 Pedro Marques 61 Seis poemas, Leonor Silvestri Sátira I, 9, Horácio 68 Sidney Calheiros de Lima Oitava “Ode Pítica”, Píndaro 74 Humberto Zanardo Petrelli Ode XI (livro I), Horácio 80 Márcio Thamos Tristes, Ovídio 83 Patrícia Prata Les Belles Infidèles 91 Robson Tadeu Cesila * em norueguês

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Gwyraypotý Consuelo de Paiva Godinho Costa1 Guyraypotý é um mito Nhandewa-Guarani registrado, por volta de 1912, por Curt Nimuendaju, um etnólogo alemão que viveu vários anos entre os Nhandewa-Guarani do Araribá1 . Esse mito é o relato de uma das migrações mítico-religiosas dos povos Guarani conhecidas como a busca da ‘Terra sem Males’ e conta a história do grande pajé Guarani Gwyraypotý que conduziu seu povo, por ocasião da destruição do mundo, na marcha em direção ao leste, onde o sol nasce no mar. Para nhandé rovái (nossa frente) seguiram e seguem os Guarani em busca da Terra sem Males, que fica depois do mar. Essa, porém, se localiza aqui e agora, ou seja, neste mundo e nesta vida, não post mortem. Ywý marã e’ywa, a Terra sem Males, é uma terra na qual não se precisa trabalhar, pois o alimento brota espontaneamente e é enorme a fertilidade do solo. Nessa terra não se morre e não existem laços de parentesco. Para chegar a esse lugar os Guarani vêm caminhando, rumo à costa do sol nascente, já há muitos anos. O cacique da aldeia de Piaçaguera, Pitotó, que encontrei recentemente, lembrou-me que o único que – dizem - conseguiu encontrar a Terra sem Males, com seus seguidores, foi o pajé Gwyraypotý. Diz o mito que o grande xamã Gwyraypotý, ao ficar sabendo da destruição do mundo, através de Nhanderuvusú (nosso pai grande), conduziu seu povo rumo ao leste, terminando por subir a Serra do Mar - Cóvae yvytý Paráry jocoá (esta serra que retém o mar) - para salvarem-se, assim, da destruição, caracterizada pela terra que desaba, seguida do fogo e, finalmente, da inundação universal. A Serra do Mar seria a única terra que restaria. Dali, no entanto, partiram diretamente para o céu, por força do canto do Nheengaraí2 executado por Gwyraypotý. 1 Consuelo de Paiva Godinho Costa é doutoranda em Lingüística no IEL/UNICAMP. 1 Hoje, Posto Indígena Nimuendaju, no município de Avaí, SP. Estudo a língua dos Nhandewa-Guarani de SP e norte do PR e presto assessoria lingüística às comunidades desde 1998. 2 O Nheengaraí é o canto de pajelança através do qual o pajé conduz a “alma recém-partida para o além”, Nimuendaju (1987:36).

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Guyraypotý

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I Ñhanderuvuçú oú yvyré, eí Guyraypotý upé: “Pejiroquý que, ivaíta ma yvý!” Ojiroquý ma mboapý roý rupi maápy oendú mbaem?guá ryapú: yvý oá ma oúvy, caarú águi yvý oá. Aépy Guyraypotý guayretá upé: “Jaguatá! Ñanemõpirí mbaem?guá ryapú!” II Aégui oguatá, ojiói ñandé rovái, Paráry rembépy. Ojiói árupi. Oporandú ma Guyraypotý upé guayretá: “ Cóvae pã oupí ty voí ey~´vae mbaem?guá?” – “ Anýine, cóvae je petei~´ roý rupi mbaem?guá oupi vaéna.” Aépy ombaeapó tayretá. III Roý oaça, oñendú jevý ma mbaem?guá ryapú. Oguatá jevý. Arépy yvý ojaparó pyivé ma. Aépy oporandú Guyraypotý rayretá: “ Cóvae pã oupí ty voí vaéna pã mbaem?guá?” – “Coã´y je ivaí pojavavetá ma, coãy pembaeapó meemé je,“ eí Ñhanderuvuçú Guyraypotý upé, vaé catú je Guyraypotý omombeú jevý guayretá upe. IV Aépy nombaeapóvéi ma Guyraypotý rayretá, aéno pã: “Manãe pã jaicoí vaéna?” – “ Che itý ambojecocuaá vaéna ñandévy ñanderembiúna!” Aépy ojiói jevy, mamória ojirói ápy. V “Pe nimbyaí ma pã?” – “Mitã´ nimangá nimbyaií ma.” Aéno: “peipypirá aó chévy” Oó aépy, ojeté mbovavá, ojoú, oitý ma avatí, jetý aveí, mbejú. Aévae omeé ma guayretá upé. Aégui oguatá jevý, mamóra ojiói ápy. “Peúvae pã vapuru´?” – “Oroúvae.” Opyru´ ma yvyráre, ombojicuaá ma vapuru´guayretá upé oú. “Peejá que petei~´ acã ñandé raquycué moñãá oú jevý vaéna.” VI Aépy yvy ocái puiveivé ma. Ojiói jevý, oporandú jevý Guyraypotý rayretá ichupé: “Cóvae yvý opytá pã raé?” Aépy aipó eí guayretá upé: “Cóvae yvytý Paráry jocoá je opytá raé vaéna je,” Aépy opytá. VII “Coã´y catú óy pejavyquy ñandévy, yvyrapégui óy pejavy~´quý ñandévy, aé rami eny~´o je y oúne ñandé róyomboaivae, eí Ñanderuvuçú chévy.” VIII Aépy Guyraypotý eí Juyperurã upé: “Peipytymõi~´ chirayretá!” – “Aipytymõ ey~´vae, ajapoté canoá.” Ypéy upé: “Eipytymoi~´ chirayretá óyre!” – “Che aipytymõ ey~´vae aveí, avevé ri vaéna che.” – “Enei~´ aéno, Çuruvá upé eí, nde pã eripytymõ´ ey~´vae aveí chirayretá óyre?” – “Che anýne aveí.” - “Aéno epyta, jaechá y oú ramo manã´e pã ereicóne!” IX Aégui óy ojapó ma yvyrapégui, omombá óy, aégui ojiroquý jevý. “Pe nepirí teine que y ojaparó mánamo, yvýytá omoroyçã arã´ je y oúta.” Aégui: “Ejiroquý mboapý roý rupi”, aipó eí aguépy omaévy y ojaparó. “Pe nepirí teíne que!” X Y oú ma, ojaparó ma. Aépy Jyperú: “Itajý chévy perú, canoá ajapotá, aguejý ãguá!” Aégui oçapucái nimbojeré ma yryjúi ijapytépy. Ypéy ovevéta tei~´, ypóry oú. Çuruvá oçapucái ma aveí “Y racó oú ma!” Eí javé ijurú rupi y oñiñoñá ma javé ijayvucuei oó ma guyráno. XI Guyraypotý rajý oguerecó petei~´, taturaý ogueraá agué. Aépy ojaoí ma óy y. Aépy Guyraypotý rembirecó omé upé: “Ejupí óy apyté áno!” Aépy Guyraypotý ojaeó, aépy embirecó: “Nepirí teíne que, Cherú, ejipepoyupí catú guyraretá upé. Guyrá porã´ aguapý ndereé roqué eupi ñandé áno coty.” Aépy oquytáre aveavé tacuá ombopú. XII Aépy Guyraypotý oñe?ngaraí. Aépy ocûé ma óy, onimbojeré ma óy, oc?´ ma y áno, ojupí ma, ojiói. Omaé ma yváy roquépy, y jepé enguívae raquycuére omaé ma aveí.

1 Nimuendaju grafa Guyraypotý. A grafia atual é com w: Gwyraypotý.

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Gwyraypotý

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1 A tradução foi feita a partir do original em Guarani, anotado por Nimuendaju. Existem três outras traduções do mesmo mito: para o espanhol da CAAP (1978), para o português de Charlotte Emmerich & Eduardo B.Viveiros de Castro (1987) e para o português de Wilmar R.D’Angelis (1999). 1 Nhande “nosso” + -r‘prefixo relacional’ + tu “pai” + usu “grande” = “nosso pai grande”. 2 No original caarú águi. O cair da tarde, o sol entrante [caarú (tarde, de tarde) + águi (cair, tombar)]. As traduções substituem a expressão por Oeste, o que não se justifica, já que há uma divergência quanto à convenção de orientação geográfica: para os povos Guarani, a frente é o leste e não o norte como para os ocidentais. O Oeste seria, para a cultura indígena, atrás e não ao lado. Essa diferença na orientação no espaço pode ser notada em fatos como, por exemplo, a construção de casas, com a porta principal voltada para o nascer do sol, ou ainda, a maneira de se enterrar os mortos, de pé e com a face voltada para o sol entrante, “para que ele siga o caminho do sol”, como me disse o pajé Guarani Sr. Francisco Awapopygwa. 3 Nimuendajú escreveu ñandé rovái , literalmente, o nosso rosto, à nossa frente. A etimologia é a seguinte: nhandé rovái [nhandé (nosso) + t -ová (rosto) + i (em)]. Outras traduções utilizam a palavra Leste, havendo para este caso as mesmas implicações do anterior uso de Oeste. 4 Nimuendajú escreveu: paráry rembepy, literalmente : mar (paráry) + flexão3ª p. s. eles (re) + ir, andar (mbé) + para (py): “Eles caminharam para o mar”. 5 Cóvae yvytý Paráry jocoá: “Essa (Cóvae) + serra (yvytý) + mar ( Paráry) + detém, segura (jocoá). 6 Trata-se de uma taquara com cerca de. 75 cm de cumprimento, usada em danças rituais. Instrumento de uso exclusivamente feminino. 7 [Nota de D’Angelis (1999)] oñeeângaraí, como escreveu Nimuendajú, é (segundo nota do editor peruano, com base em Cadógan): “canto ritual do que se traslada ou se trasladou ao paraíso”.

Nhanderuvusú1 veio à Terra e falou a Gwyraypotý: - “Dancem, porque a terra vai ficar mal”. Dançaram durante três anos, quando escutaram o trovão da destruição: a terra vinha caindo, de onde desce a tarde2 a terra vinha caindo. Então Gwyraypotý falou a seus filhos: - “Andemos! O trovão da destruição causa medo!” Então eles andaram, andaram para a frente3 , em direção ao mar4 . Andaram para lá. E os filhos de Gwyraypotý lhe perguntaram: - “Aqui a destruição não chegará agora?” – “Não, dizem que aqui a destruição chegará dentro de um ano”. Então seus filhos fizeram roça. O ano passou e escutaram novamente o trovão da destruição. Andaram novamente. A terra vinha caindo mais rápido. Então, os filhos de Gwyraypotý disseram: - “A destruição vai recomeçar agora?” – “Agora a destruição será mais rápida, não façam mais roça!” Assim falou Nhanderuvusú para Gwyraypotý e assim Gwyraypotý contou a seus filhos. Então não trabalharam mais e os filhos de Gwyraypotý perguntaram: - “Como será?” – “Eu sozinho farei aparecer o que será nossa comida!” E caminharam novamente, caminharam longe. - “Vocês têm fome?” – “As crianças que estão brincando têm fome.” Gwyraypotý falou: - “Estendam um pano para mim.” Então ele girou e sacudiu o corpo e tirou do pano milho, batata e também biju e deu a seus filhos. Andaram novamente e novamente andaram longe. - “Vocês comem jabuticaba?” – “Comemos.” Pisou contra uma árvore e fez aparecer jabuticaba para que seus filhos comessem. – “Deixem um galho para que possam comer os que vêem atrás de nós.” E a terra se queimava cada vez mais rápido. Novamente começaram a andar e os filhos de Gwyraypotý lhe perguntaram: - “Esta terra vai sobrar?” Então ele falou a seus filhos: - “Dizem que esta serra que segura o mar5 irá sobrar. E ficaram ali. - “Agora façam uma casa para nós, façam uma casa de madeira para nós, senão, quando vier a água, a casa será destruída, me diz Nhanderuvusú.” E Gwyraypotý falou ao Jyperú: - “Ajude um pouco os meus filhos!” - “Eu não ajudo, quero fazer uma canoa.” Falou também ao pato selvagem: - “Ajude um pouco meus filhos a construir a casa!” – “Eu não ajudo também, pois vou voar.” – “E você – disse ao Suruvá – você também não quer ajudar os meus filhos a fazer a casa?” – “Eu também não.” – “Deixe estar. Vamos ver quando vier a água como você vai ficar!” E fizeram uma casa de madeira, terminaram a casa, então dançaram novamente. – “Não tenham medo quando a água chegar. Dizem que a água virá para esfriar a escora da terra.” Disse ainda: - “Dancem durante três anos.” Disse isso e a água chegou. – “Não tenham medo!” A água veio e inundou. Então o Jyperú disse: - “Tragam-me um machado de pedra, quero fazer uma canoa e embarcar!” Ele gritou e logo a espuma da água girou sobre sua cabeça. O pato selvagem tentou voar, os seres da água o devoraram. O Suruvá também gritou: - “A água chegou mesmo!” Falou e a água foi entrando pela sua boca, e assim foi com os outros pássaros. A filha de Gwyraypotý tinha um filhote de tatu que havia levado consigo. E a água cobriu a casa. Então, a esposa de Gwyraypotý disse ao marido: - “Suba na casa!” E Gwyraypotý chorou e sua esposa falou: - “Não tenha medo. Estenda os braços para a revoada de pássaros. Se pássaros bons pousarem em você, então nos elevarão para o céu.” E bateu seu tacuá6 contra o esteio da casa. Então Gwyraypotý cantou o Nheeângaraí7 . E a casa começou a se mover, a casa girou, flutuou sobre a água, subiu e foi embora. Chegaram à entrada do céu e a água chegou também logo atrás deles. Tradução de Consuelo de Paiva Godinho Costa

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Amores Ovídio Brunno V. G. Vieira1 Nos cálidos janeiros de 2002 e 2003, nas minhas férias da poesia épica, ensaiei um primeiro contato com a lira elegíaca ovidiana. Apaixonei-me e quis mesmo traduzir seus Amores todos. Mas, fogo de palha, não passei da quarta elegia do livro primeiro, muito embora um tal projeto até hoje me fascine… O texto que ora apresento é uma amostra dessa minha incursão-relâmpago nos reinos de Amor. Trata-se da primeira elegia dos Amores de Ovídio, livro que recolhe as suas primeiras produções poéticas composto provavelmente entre os anos de 25-15 a. C. Se se pensar nas minhas últimas contribuições para a Revista de Tradução Modelo 19, nas quais venho trabalhando com a temática solene das guerras civis romanas, esta elegia Um dos Amores, é particularmente interessante pois apresenta uma recusatio da épica, ao mesmo tempo em que expressa um poema-piloto ou uma profissão de fé (bilaquianamente falando) sobre a forma e o tema da poesia erótica latina. Em oposição à univocidade métrica da epopéia, vazada em hexâmetros, a elegia adota um dístico, composto de um hexâmetro e um pentâmentro, razões para essa adoção não faltam, dentre elas convém apontar uma busca de um metro mais ligeiro e menos solene, mais apropriado a cantar frivolidades. Esta primeira elegia dos Amores toca justamente na questão métrica do gênero elegíaco e chega a ensaiar uma anedota mitológica para a transformação dos hexâmetros em dísticos elegíacos. Nesta minha versão da elegia Um, resgato o dístico em português servindo-me de um dodecassílabo e um decassílabo, o que me possibilita seguir de perto o discurso metaliterário sobre a métrica elegíaca que Ovídio está propondo. Embora um tal dístico em português não seja uma fórmula cara à tradição literária lusófona latu sensu1 , ele tem sido empregado por tradutores do Latim, a saber, Pércicles Eugênio da Silva Ramos2 e João Angelo Oliva Neto3 , respaldo que para mim é mais que suficiente. Teoremas à parte, fiquemos com a elegia ovidiana, sempre atentos, como Ovídio, ao fato de que o remédio das paixões recai sempre na máxima bucólico-virgiliana: omnia uincit Amor: et nos cedamus Amori. (Virgílio, Buc. X, 69) O Amor vence tudo e nós sejamos presas d´Amor.

1 Brunno V. G. Vieira é professor de Língua e Literatura Latinas da FCL./CAr./Unesp. 1 O equivalente português desse metro parece ser expresso nas quadras em redondilha maior, com o emprego da rima, conforme a tese de José Dejalma Dezzoti In: _________. O epigrama latino e sua expressão vernácula. 1990. 195f. Dissertação (Mestrado em Letras Clássicas) Universidade de São Paulo. 2 SILVA RAMOS, P. E. Poesia grega e latina. Seleção, notas e tradução de ____________. São Paulo: Cultrix, 1964. 3 cf. CATULO.O livro de Catulo. Trad., intr. e notas de J. A. Oliva Neto. São Paulo: Edusp, 1996

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I Arma graui numero uiolentaque bella parabam edere, materia conueniente modis. Par erat inferior uersus; risisse Cupido dicitur atque unum surripuisse pedem. ‘Quis tibi, saeue puer, dedit hoc in carmina iuris? Pieridum uates, non tua turba sumus. Quid, si praeripiat flauae Venus arma Mineruae, uentilet accensas flaua Minerua faces? Quis probet in siluis Cererem regnare iugosis, lege pharetratae Virginis arua coli? Crinibus insignem quis acuta cuspide Phoebum instruat, Aoniam Marte mouente lyram? Sunt tibi magna, puer, nimiumque potentia regna; Cur opus adfectas, ambitiose, nouum? An, quod ubique, tuum est? Tua sunt Heliconia tempe? Vix etiam Phoebo iam lyra tuta sua est? Cum bene surrexit uersu noua pagina primo, attenuat neruos proximus ille meos; nec mihi materia est numeris leuioribus apta, aut puer aut longas compta puella comas.’ Questus eram, pharetra cum protinus ille soluta legit in exitium spicula facta meum, lunauitque genu sinuosum fortiter arcum, ‘Quod’ que ‘canas, uates, accipe’ dixit ‘opus!’ Me miserum! certas habuit puer ille sagittas. uror, et in uacuo pectore regnat Amor. Sex mihi surgat opus numeris, in quinque residat: ferrea cum uestris bella ualete modis! cingere litorea flauentia tempora myrto, Musa, per undenos emodulanda pedes! 1 Ovídio

1 Sigo o texto latino estabelecido em OVIDE. Les amours. Texte établi et traduit par Henri Bornecque. Paris: Les Belles Lettres, 1952. 1 Piérides parece evocar aqui as Musas, deusas das artes. O poeta diz cantar as Musas, não Cupido, o deus-menino. 2 Começa aqui a argumentação ad absurdum em que o poeta expressa o contrasenso de sua ‘filiação’ a Cupido através da inversão de funções e aparatos dos deuses Olímpicos. 3 Virgem de aljava é um epíteto de Diana, deusa da caça. 4 Monte em que habitavam as Musas. 5 Volta a tentar escrever seu poema épico… 6 Sirvo-me do termo ‘arte maior’ para a designar os versos heróicos, em especial o hexâmetro.

As armas e o feroz duelo, com sublime tom e justo metro eu ia compor. Em medida iguais eram meus versos. Cupido, é fama, rindo-se encurtou um deles. “Cruel menino, quem te deu tal cabedal? Canto as Piérides1 e não te sigo. Se Vênus rouba as armas da loura Minerva2 , a loura atiça as flamejantes tochas? Apraz que Ceres reine nas selvas alpestres, e que a Virgem de aljava3 olhe searas? Há quem instrua Febo de lindas madeixas na lança, enquanto Marte a lira empunha? Já tens reinos potentes demais, pequenino! Por que, ávido, um novo ofício buscas? Acaso o mundo é teu? Em Tempe, o Helicon4 ? É já custoso a Febo ter sua lira? Ao surgir noutra página um primeiro verso, que o próximo me abrande o desatino... 5 Acho que ao tema não convêm metros ligeiros nem moço ou moça de aviados cachos.’ Isso eu falava, ao que ele súbito da aljava colheu setas ao meu fim destinadas, curvou com força no joelho o arco e disse: “Cantas, poeta? Aceita então um mote!” Pobre de mim! Certeiras foram as flechas dele. Ardo e em meu peito vazio reina Amor . Versos de doze de dez sílabas me ocorrem: adeus, guerras cruéis de arte maior6 ! Com mirto litorâneo te corôo, ó Musa, tu que amas ser cantada ao som dos dísticos! Tradução de Brunno V. G. Vieira

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Sete poemas Robert Lee Frost Carlos Alberto da Fonseca1 Robert Frost nasceu em San Francisco a 26 de março de 1874 e morreu a 29 janeiro 1963 em Boston. Mudouse para a New England aos onze anos e logo se interessou por ler e escrever poesia, ainda em seus anos escolares em Lawrence, Massachussets. Estudou no Dartmouth College e em Harvard, e publicou seu primeiro poema em 8 de novembro de 1894, “My butterfly: an elegy”, no The Independent, de New York. Em 1895 casou-se com Elinor Miriam White, com quem teve seis filhos; mudaram-se para a Inglaterra em 1912, onde Frost continuou a escrever, apresentando alguma influência de poetas britânicos contemporâneos, como Edward Thomas, Rupert Brooke e Robert Graves. Tornou-se amigo de Ezra Pound, que o ajudou na promoção e na publicação de sua obra. De volta aos Estados Unidos em 1915, terminou por se estabelecer por pouco tempo numa fazenda adquirida perto de Franconia, New Hampshire, de onde se mudou em 1920 para outra fazenda em South Shaftsbury, Vermont, também de sua propriedade. Nos anos 1920’ tornou-se o poeta norte-americano mais celebrado e, a cada livro lançado, sua fama e as honras recebidas aumentavam. Obteve quatro prêmios Pulitzer (1924, 1930, 1936 e 1942). Poeta essencialmente pastoral, sua obra associa-se principalmente à vida e à paisagem rural da New England – mas Frost escreveu poemas cujas dimensões filosóficas transcendem qualquer região. Embora tenha sido um poeta das formas tradicionais do verso e tenha mantido os metros fixos e a rima como ferramentas imprescindíveis – dizia que escrever em versos livres era o mesmo que jogar tênis sem rede... -, foi pioneiro em experiências com metro e ritmo e no uso poético do vocabulário e das expressões da linguagem da vida cotidiana: como disse, definitivamente, “All poetry is a reproduction of the tones of actual speech”. Suas imagens mais freqüentes – florestas, estrelas, casas, fontes – são extraídas da vida diária; sua abordagem revela miudezas plenas de verdades profundas. Ao mesmo tempo tradicional e experimental, ao mesmo tempo regional e universal. Seu conservadorismo político e poético fizeram-no perder as graças de alguns círculos literários, mas sua reputação como grande poeta ficou assegurada. Sua voz foi ouvida na Casa Branca em 1961 na posse de John Kennedy recitando dois de seus poemas. Deu-se bem no que dizia ser sua ambição na vida: “escrever alguns poemas que não possam ser deixados de lado”. É o que acontece com os poemas que seguem, dos quais se apresenta aqui uma primeira tradução. 1

Carlos Alberto da Fonseca é professor de sânscrito - FFLCH/USP

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Fireflies in the garden 1928 Here come real stars to fill the upper skies, And here on earth come emulating flies, That though they never equal stars in size, (And they were never really stars at heart) Achieve at times a very star-like start. Only, of course, they can’t sustain the part. Robert Lee Frost

Pirilampos no jardim Aí vêm preencher o céu as estrelas de verdade, E aqui na terra os insetos que as imitam sem vaidade, Que, embora nunca igualem as estrelas em dimensão (E elas nunca foram estrelas no fundo de seu coração), Ás vezes conseguem de uma vera estrela o cintilo. Só que, claro, não se conseguem manter nesse estilo.

Tradução de Carlos Alberto da Fonseca

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The road not taken 1916 Two roads diverged in a yellow wood, And sorry I could not travel both And be one traveler, long I stood And looked down one as far as I could To where it bent in the undergrowth;

Then took the other, as just as fair, And having perhaps the better claim, Because it was grassy and wanted wear; Though as for that the passing there Had worn them really about the same, And both that morning equally lay In leaves no step had trodden black. Oh, I kept the first for another day! Yet knowing how way leads on to way, I doubted if I should ever come back. I shall be telling this with a sigh Somewhere ages and ages hence: Two roads diverged in a wood, and I I took the one less traveled by, And that has made all the difference.

Robert Lee Frost

A patch of old snow 1916

There’s a patch of old snow in a corner That I should have guessed Was a blow-away paper the rain Had brought to rest. It is speckled with grime as if Small print overspread it, The news of a day I’ve forgotten – If I ever read it. Robert Lee Frost

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A estrada que não peguei Duas estradas saem de uma floresta amarela, Uma pena não pudesse por ambas caminhar E ser um caminhante, e, pensando com cautela, Até onde pudesse enxergar examinei uma delas Para o que havia depois da curva tentar adivinhar; Então peguei a outra, muito bela em sua brandura, Talvez porque exibisse ainda mais seus encantos, Por aquele relvado alto e sua quente espessura; Como se, por essa razão, toda aquela formosura vestisse os passantes pondo fim a seus espantos, E ambas naquela manhã estavam tão enfeitadas De folhas que por nenhum passo haviam sido pisadas. Oh deixei a primeira para em outra ocasião conquistar! Mas, mesmo sabendo que se encontram todas as estradas, Duvidei de que algum dia pudesse ali voltar. Poderia estar contando isso como quem sofreu Em toda parte e lugar dores e indiferença: Duas estradas saíam de uma floresta, e eu – Eu peguei aquela que menos visitas mereceu, E isso fez toda a diferença. Tradução de Carlos Alberto da Fonseca

Um retalho de neve antiga Tem um retalho de neve antiga numa esquina Que eu devia ter adivinhado Que era um pedaço de papel que a chuva Naquele canto tinha jogado. Todo manchado de sujeira como se nele Com palavras tivessem sido Escritos os fatos de um dia que esqueci Se eu o tivesse lido. Tradução de Carlos Alberto da Fonseca

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Stopping by woods on a snowy evening 1923 Whose woods these are I think I know. His house is in the village though; He will not see me stopping here To watch his woods fill up with snow. My little horse must think it queer To stop without a farmhouse near Between the woods and frozen lake The darkest evening of the year. He gives his harness bells a shake To ask if there is some mistake. The only other sound’s the sweep Of easy wind and downy flake. The woods are lovely, dark and deep. But I have promises to keep, And miles to go before I sleep, And miles to go before I sleep.

Robert Lee Frost

Fire and ice 1923

Some say the world will end in fire, Some say in ice. From what I’ve tasted of desire I hold with those who favour fire. But if it had to perish twice, I think I know enough of hate To say that for destruction ice Is also great And would suffice. Robert Lee Frost

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Parando num bosque numa tarde nevoenta De quem é este bosque sei e garanto. Sua casa fica na cidade, entretanto; Ele não vai me notar parado aqui para ver Seu bosque de neve coberto por um manto. Meu cavalo deve pensar que é muita estranheza Parar sem uma casa de fazenda na redondeza Entre o bosque e o lago gelado neste desterro Na tarde mais escura do ano com certeza. Ele chacoalha seus arreios, o cincerro Toca como perguntando se há algum erro. O mais que se ouve é a rajada de vento a fluir E os flocos felpudos se juntando em aterro. O bosque é bonito, escuro e faz sorrir. Mas eu tenho promessas a cumprir, E milhas para andar antes de dormir, E milhas para andar antes de dormir. Tradução de Carlos Alberto da Fonseca

Fogo e gelo Uns dizem que o mundo vai acabar em fogo, Outros dizem que em gelo. Por todo o desejo que provei neste jogo Fico com os que apostam no fogo. E se a morte me desse um segundo selo, Acho que tanto aprendi com o ódio Que posso dizer que o fim pelo gelo Também é um bom negócio E já bastaria tê-lo. Tradução de Carlos Alberto da Fonseca

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Fragmentary blue 1923

Why make so much of fragmentary blue In here and there a bird, or butterfly Or flower, or wearing-stone, or open eye, When heaven presents in sheets the solid hue? Since earth is earth, perhaps, not heaven (as yet) — Though some savants make earth include the sky; And blue so far above us comes so high It only gives our wish for blue a whet. Robert Lee Frost

Acquainted with the night 1928 I have been one acquainted with the night. I have walked out in rain - and back in rain. I have outwalked the furthest city light. I have looked down the saddest city lane. I have passed by the watchman on his beat And dropped my eyes, unwilling to explain. I have stood still and stopped the sound of feet When far away an interrupted cry Came over houses from another street, But not to call me back or say good-bye; And further still at an unearthly height One luminary clock against the sky Proclaimed the time was neither wrong nor right. I have been one acquainted with the night.

Robert Lee Frost

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Azul em pedaços Por que espalhar pelo mundo tantos pedaços da cor azul – Um pouco aqui outro lá, num pássaro ou borboleta uns chumaços, Num olho aberto, numa pedra num anel, numa flor aberta ao espaço, Quando o céu tem um lençol inteiro nessa cor tão... cool? Desde que a terra é a terra, talvez, e não o céu (ainda) – Embora alguns sábios incluam na terra o céu; E sempre paire acima de nós tão alto esse véu Ele só faz aumentar nossa fome de azul infinda. Tradução de Carlos Alberto da Fonseca

Acostumado com a noite escura Faz tempo que estou acostumado com a noite escura. Já saí debaixo de chuva – e voltei numa tempestade. Já cheguei perto da luz mais distante na lonjura. Já perambulei pela viela mais triste da cidade. Já passei pelo vigia noturno em sua ronda noturna E abaixei os olhos, apagando toda loquacidade. Já fiquei parado e calei o som de meus pés soturnos Quando à distância um grito interrompido, ao léu, Vinha por entre as casas, de outra rua taciturna, Mas não para me chamar de volta ou dizer adeus; E mais longe ainda numa altitude sobrenatura Um relógio luminoso em silhueta contra os céus Proclamava que a hora não era boa nem desventura. Faz tempo que estou acostumado com a noite escura. Tradução de Carlos Alberto da Fonseca

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Sete contra Tebas Ésquilo 1

Evandro Luis Salvador1

Escreve Aristóteles em sua Poética que a tragédia grega é a imitação de ações de caráter elevado, em linguagem ornamentada2. Se as fontes de documentação a respeito da origem arcaica da tragédia são extensas, difusas e complexas, constituindo um vasto campo de estudos, não podemos dizer o mesmo a respeito do momento histórico de sua maior expressão: o século V a. C. A tragédia3 nasce quando o mito é deslocado temporalmente de sua esfera arcaica e aristocrática para ser adaptado ao contexto político dos cidadãos, que passam a questioná-lo face aos novos valores da cidade grega. Mas, ao mesmo tempo em que o universo do mito é posto em debate, a cidade se torna objeto de discussão e aparece sendo contestada em seus alicerces e valores mais elementares. A tragédia Antígona, de Sófocles, traz à tona usos conflitantes da noção de lei, norma. O final da trilogia Orestéia, de Ésquilo, com o estabelecimento de um tribunal presidido pela deusa Palas Atena para resolver questões não claramente resolvidas, por isso frágeis, revela uma cidade ainda em construção do ponto de vista de seus alicerces democráticos. À época dos concursos trágicos, era comum entre os dramaturgos a apresentação de uma tetralogia: três tragédias que abarcavam um mito complexo e um drama satírico em homenagem ao deus Dioniso. A tragédia Os Sete contra Tebas é a última peça de uma trilogia, sendo precedida pelas tragédias Laio e Édipo, respectivamente, e arrematadas pelo drama-satírico A Esfinge. Destas três últimas peças conhecemos apenas alguns poucos fragmentos. A própria tragédia Os Sete contra Tebas carrega consigo uma grave suspeita: o final da peça pode não ser genuíno, mas sim a adaptação ou aproximação de seu final ao começo da tragédia Antígona, de Sófocles. O que sabemos, no entanto, é que a trilogia Laio, Édipo e Os Sete contra Tebas venceu o concurso em 467 a C.. Apresentamos a tradução do prólogo da tragédia Os Sete contra Tebas que, por uma questão didática, foi dividido em três momentos: o discurso de Eteocles, compreendendo os versos 1 a 38; o relato do mensageiro-espião, compreendendo os versos 39 a 68; e a prece de Eteocles, compreendendo os versos 69 a 77.

1 Evandro Luis Salvador é mestrando em Lingüística, área de Letras Clássicas (grego) – IEL/Unicamp.

O discurso que inaugura o prólogo seria uma encenação planejada por Eteocles na sua condição de solidão. Nem a platéia, nem os cidadãos são invocados nesse primeiro discurso, embora o vocativo usado na abertura nos conduza pelo caminho oposto. Kavdmou poli’tai abre uma fenda no tempo e desloca a ação do drama para a época mítica da lenda dos Labdácidas, indissociada da fundação de Tebas, cujo primeiro rei foi Cadmo. Eteocles estaria, assim, separado de seu povo para enfatizar a sua posição de filho de Édipo e evidenciar sua conexão especial com as Erínias. O discurso que precede a ação é de particular valor nesta tragédia que explora a profundidade destes dois planos distintos, já que o duelo entre os dois irmãos,que determina o destino da linhagem real dos Labdácidas, é precedido pelo confronto verificado na cena central dos sete discursos paralelos. Entre os versos 1 e 3 aparece o tema da nave da cidade que perpassa toda a tragédia pela amplitude de seu desenvolvimento e pela coerência que confere ao sistema de suas metáforas : rei=piloto; cidadãos=tripulantes; revolta=tempestade; cidade=nau. Particularmente asso-

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ciada ao príncipe dos Cadmeus, a metáfora exige que seu comandante esteja atento para as tormentas e demonstre as mais nobres qualidades de um bom piloto. No entanto, ela revelará, mais adiante, o contraste entre o rei, que se vangloria de cuidar do bem estar da cidade, e o descendente maldito dos Labdácidas, possuído pelas visões que prenunciam o aniquilamento de sua raça. Animado pelo sentido de urgência, Eteocles convoca todas as forças para defender a cidade. kai ton...kai ton denota dois grupos ou classes de idade: os que não estão à altura da idade militar e os que já passaram dela, ou seja, ou muito jovens ou muito velhos. Estranha é a omissão dos adultos aos quais se delega a tarefa da defesa da cidade. No entanto, a ordem natural dos versos 12 e 13 nos obriga a supor que a convocação de Eteocles alcança apenas um dos grupos. Invertendo a ordem (13 e 12), o verso 13 parece acomodar os dois grupos etários aos quais o rei se referiu nos versos 10 e 11, devido à força da linguagem do crescimento físico do corpo e de sua vitalidade. Entre os versos 21 e 23 aparece, pela primeira vez, a menção às fortificações de Tebas que anunciam a oposição entre o espaço interno e o externo. Essa oposição tem um papel central num drama cuja ação se desenvolve nas sete portas da cidade, onde o interior se comunica com e pode ser agredida pelo exterior. Num primeiro momento, essa oposição é bem delineada: os defensores se encontram no interior dos muros e os agressores, do lado de fora; uma mesma linha separa os civilizados dos bárbaros. Mas, gradualmente, os contornos precisos desta oposição se confundem: do lado de dentro as mulheres, ligadas ao espaço interior, formam um corpo estranho; do lado de fora existe o duplo Eteocles – Eteoclo, o argivo – e Polinices, a réplica impiedosa de seu irmão. O relato do espião está organizado da seguinte forma: os três primeiros versos constituem o início padrão de narrativas (h{kwfevrwn); os versos 42-56 descrevem a cena dos preparativos e juramento do exército argivo; os versos 57-65 anunciam a chegada dos inimigos; e, finalmente, os versos 66-68 preparam a saída do mensageiro. No relato do espião aparece a menção ao fatídico número sete em meio à atmosfera do sacrifício noturno e o pacto de morte feito pelos inimigos de Tebas, cuja ênfa-

se está no derramamento de sangue e na destruição. A descrição não é somente heróica, mas sinistra, e acentua o contraste entre o excesso dos propósitos inimigos e a estratégia prudente de Eteocles na defesa de sua nau. Vale notar que o mote do sangue derramado e o nome de Ares, que aparece no verso 45, são muito importantes para esta tragédia. O primeiro porque, no sangue derramado por ocasião do sacrifício do touro ou sobre o campo de batalha, a tragédia aborda a consangüinidade fatal de Eteocles e Polinices e o crime fratricida. O segundo porque, nesta tragédia que cultiva Ares, deus da guerra, e às vezes, deus do duelo em que um deve morrer, Ares é um deus benevolente, pai de Harmonia e ancestral da linhagem real de Tebas. A prece de Eteocles termina o prólogo da tragédia. A tripla proteção invocada no verso 69 (Zeus, Terra e deuses pátrios) contrapõe-se à tripla invocação dos argivos no verso 45 (Ares, Ênio e Fobos). Essa invocação pretende fortalecer a articulação entre o domínio olímpico e o domínio político, não fosse a justaposição dos versos 69 e 70 que irradiam um grande perigo: ao mesmo tempo em que invoca a Zeus, as ambigüidades de uma terra que sugere, às vezes, a autoctonia masculina e assassina e a polução feminina da geração e do incesto, os deuses pátrios que protegem a cidade, mas também podem destruí-la, Eteocles invoca as divindades pessoais de sua raça, as Erínias, divindades vingadoras, e a maldição de Édipo, seu pai. Essas duas invocações, conflitantes em certo sentido, revelam a dualidade do personagem central do drama: ele é o rei-piloto da nau, da cidade, mas, também, o filho maldito de Édipo.

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ARISTÓTELES, Poética, edição bilíngüe, Ars Poética, 1993, p. 37. Sobre os “precedentes” da tragédia grega recomendamos, respectivamente, a leitura dos artigos “Momentos históricos da tragédia na Grécia: algumas condições sociais e psicológicas” e “Tensões e ambigüidades na tragédia grega”, ambos de J.-P. Vernant, contidos no livro Mito e Tragédia na Grécia Antiga, Papirus, 1992; sobre os “primórdios”, recomendamos a leitura do livro A tragédia Grega de A. Lesky, Perspectiva, 1976.

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EPTA EPI QHBAS

j E teoklhv ” Kavdmou poli’tai: crh; levgein ta; kaivria o{sti” fulavssei pra’go” ejn pruvmnh/ povlew” oi[aka nwmw’n, blevfara mh; koimw’n u{pnwi. eij me;n ga;r eu\ pravxaimen, aijtiva qeou’: eij d’’ au\q j- o} mh; gevnoito - sumfora; tuvcoi, jEteoklevh” a]n ei|” polu;” kata; ptovlin uJmnoi’q> juJp jajstw’n froimivoi” polurrovqoi” oijmwvgmasivn q jw|n Zeu;” ajlexhthvrio” ejpwvnumo” gevnoito Kadmeivwn povlei. uJma’” de; crh; nu’n, kai; to;n ejlleivpont je[ti h{bh” ajkmaiva” kai; to;n e[xhbon crovnwi, w{ran t je[conq e{kaston w{ste sumprepev” blasthmo;n ajldaivnonta swvmato” poluvn, povlei t jajrhvgein kai; qew’n ejgcwrivwn bwmoi’si, tima;” mh; jxajleifqh’naiv pote, tevknoi” te, Gh’/ te mhtriv, filtavthi trofwi: hJ ga;r nevou” e{rponta” eujmenei’ pevdwi, a{panta pandokou’sa paideiva” o[tlon, ejqrevyat joijkhth’ra” ajspidhfovrou”, pistoi g jo{pw” gevnoisqe pro;” crevo” tovde. kai; nu’n me;n ej” tovd>j jh\mar eu\ rJevpei qeov”: crovnon ga;r h[dh tovnde purghroumevnoi” kalw’” ta; pleivw povlemo” ejk qew’n kurei’. nu’n d jwJ” oJ mavnti” fhsivn, oijwnw’n bothvr, ejn wjsi; nwmw’n kai; fresivn, puro;” divca, crhsthrivou” o[rniqa” ajyeudei’ tevcnhi: ou|to” toiw’nde despovth” manteumavtwn levgei megivsthn prosbolh;n jAcaiivda nukthgorei’sqai kajpibouleuvsein povlei. ajll je[“ t> jejpavlxei” kai; puvla” purgwmavtwn oJrma’sqe pavnte”, sou’sqe su;n panteucivai, plhrou’te qwrakei’a, kajpi; sevlmasin puvrgwn stavqhte, kai; pulw’n ejp> jejxovdoi” mivmnonte” eu\ qarsei’te, mhd ej p j hluvdwn tarbei’t ja[gan o{milon: eu\ telei’ qeov”. skopou;” de; kajgw; kai; katopth’ra” stratou’ e[pemya, tou;” pevpoiqa mh; mata’n oJdw’/: kai; tw’nd> jajkouvsa” ou[ti mh; lhfqw’ dovlwi.

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Sete contra Tebas Eteocles Cidadãos de Cadmo, é preciso falar sobre a manobra oportuna: Ao observador que acompanha a situação, na popa da cidade, Governando o timão, não é permitido cerrar as pálpebras. Se, pois, a nau bem conduzimos, a responsabilidade é divina; Do contrário - oxalá não aconteça – uma desgraça sucede, Só o nome de Eteocles, de um extremo a outro da cidade, Seria muito celebrado por seus concidadãos com hinos graves E cantos lancinantes...dos quais Zeus, que protege, possa ele, Pela força de seu nome, afastá-los da cidade dos Cadmeus. Agora é necessário a vós, aos que perderam o vigor jovial E aos que adentraram a idade da adolescência, Cada qual dispondo do que lhe é adequado à idade, E muito nutrindo a seiva do corpo, Socorrer a cidade e os templos dos deuses desta terra, Para que jamais sejam manchadas as honras; Socorrer os filhos e a Terra mãe, nossa mais querida nutriz. Pois em seu solo benevolente os jovens engatinharam, Sob seus cuidados, a tarefa de educação das crianças, Tendo formado os habitantes portadores de escudos, Para que se tornem dignos neste momento de necessidade. Até este momento, a divindade nos é favorável: Depois de longos dias em que defendemos as torres tebanas A guerra, outrora, pelos deuses, vencemos honrosamente. Agora, como diz o profeta, que observa o vôo dos pássaros, Analisando os signos proféticos não com a ajuda do fogo, Mas pela orelha e pelo espírito, com uma arte que não engana, Esse profeta, senhor dos augúrios, Diz ele que um imenso ataque dos argivos foi decidido, Em assembléia noturna, para hostilizar a cidade. Então, lançai-vos todos para as ameias e portas dos fortes; Precipitai-vos todos com armadura completa; Ocupai os manteletes e guarnecei as plataformas; E permanecendo nas portas de saídas das torres, Com os pés firmes, tenhais confiança; Não temeis em demasia a tropa invasora: deus nos favorece. Da minha parte mensageiros e espiões, para a hoste inimiga, Enviei e estou convencido que eles caminham seguramente; E ouvindo seus relatos, espero com isso não ser surpreendido.

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[ A ggelo” jEteovklee”, fevriste Kadmeivwn a[nax,

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h{kw safh’ tajkei’qen ejk stratou’ fevrwn: aujto;” katovpth” d jei[m jejgw; tw’n pragmavtwn. a[ndre” ga;r eJptav, qouvrioi locagevtai, taurosfagou’nte” ej” melavndeton savko” kai; qiggavnonte” cersi; taureivou fovnou, +A [ rh t +j E j nuwv, kai; filaivmaton Fovbon wJrkwmovthsan h] povlei kataskafa;” qevnte” lapavxein a[stu Kadmeivwn bivai, h] gh’n qanovnte” thvnde furavsein fovnwi. mnhmei’av q> jauJtw’n toi’” tekou’sin ej” dovmou”

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pro;” a{rm >j A j dravstou cersi;n e[stefon, davkru leivbonte”, oi\kto” d jou[ti” h\n dia; stovma: sidhrovfrwn ga;r qumo;” ajndreiai/ flevgwn e[pnei, leovntwn wJ” [Arh dedorkovtwn. kai; tw’nde pisti” oujk o[knwi/ cronivzetai:

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klhroumevnou” d je[leipon, wJ” pavlwi/ lacw;n e{kasto” aujtw’n pro;” puvla” a[goi lovcon. pro;” tau’t jajrivstou” a[ndra” ejkkrivtou” povlew” pulw’n ejp> jejxovdoisi tavgeusai tavco”. ejggu;” ga;r h[dh pavnoplo” jArgeivwn strato;”

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cwrei’, konivei, pediva d jajrghsth;” ajfro;” craivnei stalagmoi’” iJppikw’n ejk pleumovnwn. su; d> jw{ste nao;” kedno;” oijakostrovfo” fravxai povlisma, pri;n kataigivsai pnoa;” [Arew”: boai/ ga;r ku’ma cersai’on stratou’.

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kai; tw’nde kairo;n o{sti” w[kisto” labev. kajgw; ta; loipa; pisto;n hJmeroskovpon ojfqalmo;n e{xw, kai; safhneivai lovgou eijdw;” ta; tw’n quvraqen ajblabh;” e[shi/.

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j E teoklhv ” w\ Zeu’ te kai; Gh’ kai; polissou’coi qeoiv, j rav t j> jErinu;” patro;” hJ megasqenhv”, A mhv moi povlin ge prumnovqen panwvleqron ejkqamnivshte dhi/avlwton JEllavdo”. [kwlbon jreonta kai; dovmou” ejfestivou”] ejleuqevran de; gh’n te kai; Kavdmou povlin

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zeuglh’si doulivaisi mhvpote sceqei’n, gevnesqe d/ jajlkhv:- xuna; d/> ej lj pivzw levgein: povli” ga;r eu\ pravssousa daivmona” tivei.

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Ésquilo1

1 Usamos a edição elaborada por G. O. Hutchinson, publicada em 1994 pela Oxford University Press.

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Mensageiro-espião Eteocles, o mais bravo rei dos Cadmeus, Venho da hoste inimiga trazendo notícia fidedigna. Pois sou, em pessoa, o observador dos acontecimentos. Sete homens, comandantes impetuosos, Degolando um touro sobre um escudo negro, E banhando as mãos em seu sangue vertido, Juraram por Ares, Enio e pelo sanguinário Fobo isso: Ou transformar Tebas em ruínas, Devastando a cidade dos Cadmeus pelo uso da força; Ou manchar esta terra com o sangue de seus corpos. Sobre a parelha de cavalos de Adrasto acenavam Lembranças aos parentes que ficaram Vertendo lágrimas, mas nenhuma lamentação havia na boca. Pois o ânimo de ferro, sobressaltando pela bravura, Bufava como leões faiscando Ares pelos olhos. E a crença nestes vaticínios não se demora: Partia enquanto sorteavam, contra quais portas, Cada um dos sete comandará a tropa de homens armados. Por isso, rápido, na direção das portas de saídas das torres, Designai os melhores guerreiros escolhidos da cidade. Pois, munidos de todas as armas, levantando poeira, Os argivos se aproximam e toma o campo uma espuma branca Da baba dos cavalos expelida de seus pulmões. Tu, de tal sorte comandante prudente da nau, Protege a cidade antes de chegar o sopro violento de Ares. Pois os gritos dos inimigos caminham sobre solo firme. Que o mais ágil tome estes o momento certo para agir. Quanto a mim, fiel olheiro, no decorrer da jornada, Observarei os agressores das portas e, claramente, Conhecendo o que eles conversam, ficarás tranqüilo. Eteocles Ó Zeus, Terra e deuses protetores de Tebas, Maldição, Erínias poderosas de Édipo, Não extirpais da Hélade, de suas raízes, a mim E uma cidade, completamente tomada pelos inimigos. [ Assaltando as riquezas e os altares domésticos ] A terra livre e a cidade de Cadmo Jamais estejam sob jugos escravos, Tornai-vos a pujança – creio falar reciprocamente: Uma cidade não destruída pelos inimigos honra seus deuses.

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Tradução de Evandro Luis Salvador

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O bolo Charles Baudelaire Ricardo Meirelles1 No seu pequeno livro Gaspard de la nuit, de 1842, Aloysius Bertrand tinha levado a cabo uma poesia sem métrica e sem ritmo na acepção prosódica tradicional, mas também delicada e trabalhada como o mais precioso dos sonetos. No entanto, é bem com Baudelaire, e depois dele Rimbaud e os poetas surrealistas, que o tipo se é imposto completamente e se fixa a nova forma do poema em prosa, mas ao contrário de Bertrand, cuja imaginação se excitava sobretudo pelas lendas antigas, Baudelaire quis que a sua obra se ligasse exclusivamente ao mundo moderno. Mais ainda que nos Tableaux parisiens, ele está interessado na Modernidade, tratando da sociedade tal como se vive numa grande cidade, isto é, ele quis captar aquilo que há de eterno e de essencial nas cenas múltiplas e variadas, mas de forma convenientemente curta e concisa. Baudelaire, ainda à procura da perfeição formal - porque o verbo poético permite transmutar a realidade - compõe, inspirando-se em Bertrand, se bem tenha ampliado em muito suas possibilidades, poemas em prosa consagrados nos encontros insólitos da cidade. O primeiro conjunto desses poemas em prosa publicados vem intitulado “Spleen de Paris”, em 1862. Após o relativo “sucesso” do livro Les Fleurs du mal, o recolhimento em livro de seus Petits poèmes en prose, ou Spleen de Paris, cujo conjunto não vem a conhecer senão uma publicação póstuma em 1869 - organizada por Asselineau e Banville no âmbito de uma edição “definitiva” das obras poéticas e críticas do poeta - representa a última tentativa de Baudelaire para aceder a uma escrita livre e poética, para chegar a seu sonho estético: o encontro mágico do insólito e do cotidiano. Em 1865, Baudelaire havia redigido um projeto de recolhimento no qual a ordem e a escolha dos cinqüenta poemas fora fixada. Com o propósito da publicação desse projeto, escreveu sua dedicatória a Arséne Houssaye, na qual dá conta do espírito em que a redigiu e do qual é necessário para ler o seu livro. O trabalho de edição póstumo é por conseguinte apoiado sobre estes dados. Tanto Les Fleurs du mal como os Petits poèmes en prose introduziram elementos novos na linguagem poética, fundindo o grotesco ao sublime e explorando as secretas analogias do universo. Quase toda a crítica moderna concorda que Baudelaire inventou uma nova estratégia da linguagem. Erich Auerbach observou que sua poesia foi a primeira a incorporar a matéria da realidade grotesca à linguagem sublimada do romantismo e, nesse sentido, criando a poesia moderna, concedendo a toda realidade o direito de ser submetida ao tratamento poético.

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Ricardo Meirelles é mestre em teoria literária - IEL/Unicamp e professor das Faculdades Santa Rita de Cássia.

A inovação essencial da modernidade literária depois de 1848 consiste justamente na distância que ela toma da linguagem de seu século. Assim como o público afastou-se da literatura, ela se afastou do palavrório: a literatura moderna caracteriza-se pelo fato de denunciar toda cumplicidade com o espírito do tempo. As origens dessa estética, chamada de antiburguesa, devem ser buscadas já nas primeiras décadas do século XIX: tratava-se de uma mescla, como bem notou Dolf Oehler, de “uma profunda perplexidade diante da burguesia como fenômeno e uma ingenuidade romântica diante da função histórica da nova classe dominante”. Oehler também lembra que desde a primeira metade do século XIX era comum representar formas não-convencionais de relacionamentos amorosos como antíteses dos relacionamentos burgueses, e encontrar naquelas um conjunto de valores que nestes já não se encontravam presentes: “Somente Lesbos... faz desabrochar os sonhos de profunda delicadeza e paixão que não sobrevivem a uma noite sequer na heterossexualidade, sobretudo no casamento. No amor lésbico, confiança, intimidade, delicadeza, dedicação, paixão e volúpia, na relação sexual burguesa, insensibilidade, egoísmo, brutalidade, violência, terror e barbarismo”. Daí, por exemplo, a exaltação baudelaireana do amor entre as mulheres. Os Petits poèmes en prose, escritos, na maior parte, entre 1860 e 1865, isto é, numa época em que o poeta quase não escrevia mais versos, revelam um Baudelaire

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maduro que vive e recria sua sombria relação com a cidade e o mundo. Mesclam-se nesse livro um lirismo erótico, o cepticismo, a amargura, a atmosfera de sonho e uma ternura que deixa entrever o desencanto. Esses poemas são a tentativa de Baudelaire de descrever as contradições, as fábulas, e as ficções da vida da cidade em uma prosa poética inovadora. Como forte característica de seu poema em prosa, podese notar a extrema variedade formal e a liberdade métrica, e o uso de vários recursos literários, tais como o diálogo onírico, a confiança lírica e artística, a anedota alegórica, o diário íntimo. A poeticidade da sua prosa está na presença freqüente de uma narratividade linear, mas que apaga ou invade, com efeito, o descritivo e o alegórico, e principalmente no tratamento que dá aos temas da Modernidade: a cidade, os encontros diários, a importância da imaginação, do sonho. Há quem diga que Baudelaire já no seu prefácio - na comparação do conjunto de poemas com uma serpente, sem rabo nem cabeça, mas em que tudo é cabeça e rabo, alternativa e reciprocamente - traz certos temas constitutivos que aparecem desde o começo. Logo no primeiro poema, “L’étranger”, enuncia temas importantes: a solidão que é diferente do ódio ou o despeito; o despeito do materialismo da realidade, o vil interesse, o ouro; a procura difícil e vã da beleza, a condição do artista; a ausência de um universo real do qual pertença o poeta; o gosto, a paixão vital pela evasão, pela viagem, pelas nuvens. Outros temas que podem ser encontrados são: a horrível carga do tempo inimigo; a angústia entre o eu e os outros; a vaporização e a centralização do eu; as multidões e a necessidade de um mergulho nos outros; os tipos urbanos: as viúvas, os pobres e os mendigos. Se Baudelaire atingiu o apogeu de sua glória depois de 1920, como afirma Paul Valéry, e com ele “a poesia francesa ultrapassa finalmente as fronteiras da nação [...] é lida no mundo inteiro; impõe-se como a poesia própria da modernidade; dá origem à imitação, fecunda muitos espíritos”, é somente em 1937 que os Pequenos Poemas em Prosa chegam ao Brasil traduzidos em bom português por Paulo Oliveira, no Rio de Janeiro. Certamente essa tradução vem na onda baudelaireana iniciada por Felix Pacheco, no início da década de 30. Esse jornalista piauiense traduziu, comentou e estudou largamente a obra de Baudelaire, do ponto de vista biobibliográfico, crítico e literário, tendo coroado sua atividade literária com um discurso que pronunciou em 24 de novembro de 1932, intitulado “Baudelaire e os milagres do poder da imaginação”, ao mesmo tempo em que se comemoravam 10 anos da Semana de Arte Moderna e de Modernismo. Traduzir e publicar Baudelaire nesse momento parece provocativo e serve, por um lado, como exemplo de resistência a uma estética com poucos rigores formais e mais liberal, que era o Modernismo, e, por outro lado, no caso específico dos poemas em prosa, tem-se a apropriação de um modelo central dentro de uma estética estrangeira e sua reformulação dentro da literatura brasileira. Pode parecer que sua influência teria se abalado com o advento do Modernismo, mas o resgate promovido por Pacheco fez com que ainda se mantivesse um interesse e uma reiterada relevância da obra do poeta francês.

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É certo que o Modernismo ainda faria uma leitura característica e peculiar, levada a cabo por um dos seus mais controversos membros: Guilherme de Almeida. É esse poeta paulista que consolida e cristaliza a recepção da poesia de Baudelaire no Brasil, ao publicar o seu livro Flores das Flores do Mal em 1944, abrindo assim espaço para a publicação de uma segunda edição dos Pequenos Poemas em Prosa, agora traduzidos por Aurélio Buarque de Holanda, em 1950, e subseqüentemente à publicação da primeira edição integral de As Flores do mal, em 1957, por Jamil Almansur Haddad. Quer pelo interesse inerente a sua grande poesia, quer pelos vislumbres que essas confissões propiciam, Baudelaire se destaca entre os poetas franceses mais estudados por ensaístas e críticos. Jean-Paul Sartre situou-o como protótipo de uma escolha existencial que teria repercussões no século XX, enquanto a crítica centrada nas relações históricas, como a de Walter Benjamin, dedicou-se a examinar sua consciência secreta de uma relação impossível com o mundo social. Apesar dos diversos estudos estrangeiros sobre a temática da Modernidade, tão cara a Baudelaire, pouco se desenvolveu o estudo crítico desses pequenos poemas em prosa no Brasil, mesmo tendo em vista que ainda se fizeram publicar mais duas traduções integrais dos Pequenos Poemas em Prosa: a de Dorothée de Bruchard, em Florianópolis, em 1988, e a de Leda Tenório da Mota, no Rio de Janeiro, em 1995. Entendo que para que se construa uma nova crítica, sempre se faz necessária uma nova tradução. A singularidade desta tradução, contudo, residiria em produzir, a partir de um exame minucioso do original, um texto brasileiro preciso, consistente e elegante, mas ao mesmo tempo um texto radical, que dividiria com outros escritores de meu país e meu tempo, idéias, preferências estéticas e padrões estilísticos, permitindo ainda que o leitor aprecie os modos sutis e as ambigüidades de Baudelaire em toda a sua grandeza e singularidade. Esta tradução levaria em conta, primeiro, uma atitude tradutória bem clara, que visasse a atualização, principalmente, da linguagem do poeta, sempre atento às mudanças ocorridas ao longo do tempo no próprio idioma, com o objetivo de apresentar um resultado passível de uma leitura fluente e de clara compreensão para o leitor do presente; e depois, trazer novamente ao cenário cultural brasileiro um livro cuja temática - a vida cotidiana das sociedades modernas, a vida na grande cidade, a Modernidade - se mostra tão atual e controversa. Coexistiriam então dois momentos - ou movimentos tradutórios: um de vinda, que traz, mais uma vez, o poeta e seu texto para um novo ambiente, que ao recebê-lo o transforma; e um de volta, que não perde de vista a identidade e a integridade da obra e a própria concepção estética do autor estrangeiro. Assim apresento esses quatro exemplos, pequena fração dentro da imensidade que são os Pequenos Poemas em Prosa, mas que certamente servirão para despertar a curiosidade dos leitores sobre mais esse livro espetacular do mestre francês Charles Baudelaire.

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Le gâteau Je voyageais. Le paysage au milieu duquel j’étais placé était d’une grandeur et d’une noblesse irrésistibles. Il en passa sans doute en ce moment quelque chose dans mon âme. Mes pensées voltigeaient avec une légèreté égale à celle de l’atmosphère; les passions vulgaires, telles que la haine et l’amour profane, m’apparaissaient maintenant aussi éloignées que les nuées qui dévalaient au fond des abîmes sous mes pieds; mon âme me semblait aussi vaste et aussi pure que la coupole du ciel dont j’étais enveloppé; le souvenir des choses terrestres n’arrivait à mon coeur qu’affaibli et diminué, comme le son de la clochette des bestiaux imperceptibles qui paissaient loin, bien loin, sur le versant d’une autre montagne. Sur le petit lac immobile, noir de son immense profondeur, passait quelquefois l’ombre d’un nuage, comme le reflet du manteau d’un géant aérien volant à travers le ciel. Et je me souviens que cette sensation solennelle et rare, causée par un grand mouvement parfaitement silencieux, me remplissait d’une joie mêlée de peur. Bref, je me sentais, grâce à l’enthousiasmante beauté dont j’étais environné, en parfaite paix avec moi-même et avec l’univers; je crois même que, dans ma parfaite béatitude et dans mon total oubli de tout le mal terrestre, j’en étais venu à ne plus trouver si ridicules les journaux qui prétendent que l’homme est né bon; — quand la matière incurable renouvelant ses exigences, je songeai à réparer la fatigue et à soulager l’appétit causés par une si longue ascension. Je tirai de ma poche un gros morceau de pain, une tasse de cuir et un flacon d’un certain élixir que les pharmaciens vendaient dans ce temps-là aux touristes pour le mêler dans l’occasion avec de l’eau de neige. Je découpais tranquillement mon pain, quand un bruit très-léger me fit lever les yeux. Devant moi se tenait un petit être déguenillé, noir, ébouriffé, dont les yeux creux, farouches et comme suppliants, dévoraient le morceau de pain. Et je l’entendis soupirer, d’une voix basse et rauque, le mot: gâteau! Je ne pus m’empêcher de rire en entendant l’appellation dont il voulait bien honorer mon pain presque blanc, et j’en coupai pour lui une belle tranche que je lui offris. Lentement il se rapprocha, ne quittant pas des yeux l’objet de sa convoitise; puis, happant le morceau avec sa main, se recula vivement, comme s’il eût craint que mon offre ne fût pas sincère ou que je m’en repentisse déjà. Mais au même instant il fut culbuté par un autre petit sauvage, sorti je ne sais d’où, et si parfaitement semblable au premier qu’on aurait pu le prendre pour son frère jumeau. Ensemble ils roulèrent sur le sol, se disputant la précieuse proie, aucun n’en voulant sans doute sacrifier la moitié pour son frère. Le premier, exaspéré, empoigna le second par les cheveux; celui-ci lui saisit l’oreille avec les dents, et en cracha un petit morceau sanglant avec un superbe juron patois. Le légitime propriétaire du gâteau essaya d’enfoncer ses petites griffes dans les yeux de l’usurpateur; à son tour celui-ci appliqua toutes ses forces à étrangler son adversaire d’une main, pendant que de l’autre il tâchait de glisser dans sa poche le prix du combat. Mais, ravivé par le désespoir, le vaincu se redressa et fit rouler le vainqueur par terre d’un coup de tête dans l’estomac. A quoi bon décrire une lutte hideuse qui dura en vérité plus longtemps que leurs forces enfantines ne semblaient le promettre? Le gâteau voyageait de main en main et changeait de poche à chaque instant; mais hélas! il changeait aussi de volume; et lorsque enfin, exténués, haletants, sanglants, ils s’arrêtèrent par impossibilité de continuer, il n’y avait plus, à vrai dire, aucun sujet de bataille; le morceau de pain avait disparu, et il était éparpillé en miettes semblables aux grains de sable auxquels il était mêlé. Ce spectacle m’avait embrumé le paysage, et la joie calme où s’ébaudissait mon âme avant d’avoir vu ces petits hommes avait totalement disparu; j’en restai triste assez longtemps, me répétant sans cesse: «Il y a donc un pays superbe où le pain s’appelle du gâteau, friandise si rare qu’elle suffit pour engendrer une guerre parfaitement fratricide!» Charles Baudelaire

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O bolo Eu viajava. A paisagem no meio da qual eu estava situado era de uma grandeza e de uma nobreza irresistíveis. Passava sem dúvida neste momento alguma coisa na minha alma. Meus pensamentos ondulavam com uma ligeireza igual àquela da atmosfera; as paixões vulgares, como o ódio e o amor profano, pareciam-me agora tão afastadas quanto as nuvens que desciam ao fundo dos abismos sob meus pés; minha alma me parecia tão vasta e tão pura qual a cúpula do céu pelo qual eu estava envolvido; a lembrança das coisas terrestres não chegava a meu coração senão enfraquecida e diminuida, como o som das sinetas de gado imperceptíveis que pastam longe, bem longe, sobre a vertente de uma outra montanha. Sobre o pequeno lago imóvel, preto da sua imensa profundidade, passava às vezes a sombra de uma nuvem, como o reflexo do casaco de um gigante aéreo voando através do céu. E eu me lembro que essa sensação solene e rara, causada por um grande movimento perfeitamente silencioso, preenchia-me com uma alegria misturada ao medo. Resumidamente, eu me sentia, graças à entusiasmante beleza da qual estava cercado, em perfeita paz comigo mesmo e com o universo; creio mesmo que, em minha perfeita beatitude e em meu total esquecimento de todo o mal terrestre, eu viria a não mais achar tão ridículos os jornais que pretendem que o homem nasceu bom, - quando, a matéria incurável renovando suas exigências, pensei em reparar o cansaço e aliviar o apetite causados por uma tão longa ascensão. Tirei do meu bolso um gordo pedaço de pão, uma chávena de couro e um frasco de um certo elixir que os farmacêuticos vendiam nesses tempos aos turistas para o misturar na ocasião com água de neve. Recortava tranqüilamente o meu pão, quando um barulho muito ligeiro me fez levantar os olhos. Diante de mim se realizava um pequeno ser esfarrapado, preto, despenteado, cujos olhos ocos, selvagens e como suplicantes, devoravam o pedaço de pão. E eu o escutei suspirar, com uma voz baixa e roca, a palavra: bolo! Não pude me impedir de rir escutando a apelação de quem queria bem honrar o meu pão quase branco, e eu cortei para ele uma bela fração que lhe ofereci. Lentamente ele se aproximou, não tirando os olhos do objeto de sua cobiça; seguidamente, colando o pedaço com a sua mão, recuou-se com vivacidade, como se temesse que a minha oferta não fosse sincera ou que já me arrependesse. Mas no mesmo momento foi derrubado por um outro pequeno selvagem, saído não sei de onde, e tão perfeitamente parecido ao primeiro que teria se podido o tomar por seu irmão gêmeo. Juntos eles rolaram sobre o solo, disputando a preciosa presa, nenhum querendo sem dúvida sacrificar a metade pelo seu irmão. O primeiro, exasperado, agarra o segundo pelos cabelos; este lhe agarra a orelha com os dentes, e cospe um pequeno pedaço sangrento com uma magnífica praga patoá. O legítimo proprietário do bolo ensaiou em fincar as suas pequenas garras nos olhos do usurpador; este por sua vez aplicou todas suas forças em estrangular o seu adversário com uma mão, enquanto que com a outra tentava que deslizasse paro o seu bolso o prêmio do combate. Mas, reavivado pelo desespero, o vencido se retificou e fez rolar o vencedor por terra com um golpe de cabeça em seu estômago. A quem bem descreve uma luta medonha que durou na verdade muito mais tempo que as suas forças infantis não parecia prometê-lo? O bolo viajava de mão em mão e mudava de bolso à cada momento; mas infelizmente mudava também de volume; e quando enfim, extenuados, ofegantes, sangrentos, eles se detiveram por impossibilidade de continuar, não havia mais, é verdade dizer, nenhum motivo de batalha; o pedaço de pão tinha desaparecido, e estava espalhado em migalhas semelhantes aos grãos de areia aos quais estava misturado. Este espetáculo tinha me embrumado a paisagem, e a alegria calma em que se regozijava a minha alma antes de ter visto esses pequenos homens tinha desaparecido totalmente; eu permaneci triste por muito tempo, repetindo para mim incessantemente: “Há então um país magnífico onde o pão se chama bolo, guloseima tão rara que é suficiente para engendrar uma guerra perfeitamente fratricida!” Tradução de Ricardo Meirelles

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Notícias da Babilônia Ricardo Meirelles

Homero. Batracomiomaquia: a batalha dos ratos e das rãs. Estudo e tradução de Fabrício Possebon. São Paulo: Humanitas FFLCH/USP, 2003. (Coleção Letras Clássicas) Poderíamos dizer que o livro composto pela tradução do livro de Homero, Batracomiomaquia: a batalha dos ratos e das rãs, e uma interessante análise conduzida pelo professor Fabrício Possebon é um exemplo modelar de estudo de um texto de literatura estrangeira: primeiro porque se apóia no texto grego para aferir e considerar os valores estéticos propostos pelo poema; depois, porque através de uma tradução, tenta reproduzir aquilo que elegeu como mais significativo na obra original, após rigoroso processo de crítica e interpretação. Seu livro possibilita ao leitor brasileiro não só um maior entendimento e compreensão da obra do poeta grego, mas também fruir e se deleitar com o poema em seu próprio idioma. Apresentado originalmente como dissertação de mestrado junto ao programa de Pós Graduação em Letras Clássicas da FFLCH/USP, o livro traz um interessante e bem acurado estudo introdutório que se apóia no desenvolvimento de três conceitos: a questão do gênero, o riso na literatura clássica, e a intertextualidade. Mas, como disse a professora Adriane da Silva Duarte na apresentação do livro, “a tradução é o ponto alto do trabalho de Fabrício Possebon”, visto que procura aplicar o conhecimento elaborado ao longo da introdução dentro de um texto que também se mostra digno de um contexto literário, ou seja, a tradução pode e deve ser lida como uma expressão poética independente. Pela primeira vez publicado em versos em língua portuguesa do Brasil, o livro de Homero, Batracomiomaquia: a batalha dos ratos e das rãs, já fora muito lido e imitado ao longo da Idade Média e parte da Moderna. A partir dele, foram escritas várias outras obras de alguma importância, como a Gatomaquia, de Lope de Vega, e Paralipomeni della Batracomiomachia, de Giacomo Leopardi; contudo, nos séculos XIX e XX, foi relegado pela crítica como mera paródia do épico Ilíada do mesmo poeta grego. Este pequeno épico-cômico, composto de 303 versos hexâmetros, pode ser sim uma paródia da Ilíada, mas pode ser exatamente este traço considerado o mais original quando devidamente contextualizado no sentido da apropriação da epopéia homérica. O poema conta a história de um conflito entre os dois animais mencionados no título, certamente remetendo já à gregos e troianos, oponentes na Ilíada. Tudo começa quando um rato, Rouba-resto, encontra o rei das rãs, Bochechudo, que o convida para conhecer seu lar; durante a travessia do lago, na qual a rã levava o rato em suas costas, cruza o caminho uma cobra-d’água, que faz a rã mergulhar de medo, esquecendo-se do rato, que é jogado na água e morre afogado, não antes de proferir uma praga; outro rato, Lambe-prato, assiste à tragédia e anuncia os fatos aos demais ratos; em torno da vingança discursa o pai do rato morto, Roi-pão, e conclama seus camaradas a guerra contra as rãs; então o rato Pé-napanela, “filho do magnânimo Cava-queijo”, faz o discurso

de guerra às rãs e é respondido pelo rei Bochechudo em pessoa; “Ratos e rãs se armam para o combate, seguindo um ritual similar ao preparativo de Agamenom (Ilíada, XI)”; ao mesmo tempo, os deuses se reúnem em assembléia para deliberar sobre a guerra; a batalha se desenvolve ferozmente, ora enaltecendo a bravura das rãs, ora discorrendo sobre a habilidade dos ratos; vários combates singulares são descritos e a evolução da batalha parece equilibrada, mas a intervenção de um rato invencível, Rouba-parte, evidente similar de Aquiles, desequilibra a batalha em favor dos ratos, fazendo com que os deuses intercedam impedindo a total aniquilação das rãs, enviando os caranguejos. Tudo isso entre o nascer e o pôr do sol de um único dia. Apesar da classificação de paródia, este pequeno poema pode muito mais ser lido como um repositório de diversos estilos e fórmulas literárias empregadas no período, visto que sua intertextualidade vai além dos textos de Homero, percorrendo um interessante recorte do pensamento helenístico e, ao mesmo tempo, perfazendo uma aguda crítica ao seu ambiente intelectual comunitário e interpretativo. Como já disse, este estudo é modelar no sentido em que alia tradução e interpretação para melhor compor o ambiente de leitura que almeja reproduzir, ou reinventar, aquele efeito estético proporcionado pela obra original. É oportuno lembrar que a minuciosidade operada pelo professor Possebon, tanto na tradução quanto no aparato crítico, é característica dos estudiosos e tradutores da literatura clássica, haja vista sua constante e repetida manifestação na Revista de Tradução Modelo 19. A tradução de obras de pouca notoriedade, mas de substancial relevância, é fundamental e enriquecedora, sempre no sentido da ampliação da cultura nacional, promovendo a interação e a identificação, seja do outro, seja de si mesmo. É claro, como já se disse em outros editoriais desta revista, que falta um projeto tradutório literário para a língua portuguesa do Brasil; contudo, os esforços isolados tendem a superar os obstáculos e fazem constituir a própria cultura brasileira. Enquanto não conhecemos profundamente o pensamento, a cultura, a civilização que nos orientou até aqui, não poderemos conhecer e identificar o nosso próprio pensamento, a nossa cultura, a nossa civilização; fica, pois, demonstrado que a tradução é sim um instrumento privilegiado de integração e reconhecimento, tanto do outro, quanto de si mesmo. Fica assim a sugestão de leitura. Contatos: Editora Humanitas FFLCH/USP, (11) 3091 2920, www.fflch.usp.br/ humanitas [email protected]. “O sol mergulhou enfim, e realizou-se rito da guerra de um só dia.”

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As Mulheres que celebram as Tesmofórias Aristófanes Cláudia Manoel Rached Féral1 Algumas considerações sobre o agon Em 411 a.C., no festival das Grandes Dionisíacas, em Atenas, Aristófanes concorreu com a comédia As Mulheres que celebram as Tesmofórias (não se tem conhecimento se foi uma peça premiada). A tradução exposta tem por base o texto grego estabelecido por V.Coulon, Paris, Les Belles Lettres, 1967, e compreende algumas passagens que se encontram entre os versos 372 a 573. Os excertos traduzidos correspondem ao agon, que é uma das partes da estrutura da peça e que se define, em breves palavras, como uma relação conflitual entre as personagens que se opõem em uma dialética de discurso resposta (Pavis, 2001: 11). Nesse momento da peça, o coro, composto pelas mulheres que celebram as Tesmofórias1 , demonstra seu descontentamento com a criação das personagens femininas nas tragédias de Eurípides e resolve deliberar uma punição contra esse poeta, personagem na peça. Este, por sua vez, será defendido por um parente, Mnesíloco, que, disfarçado de mulher, vem advogar a favor de Eurípides. Nesse agon existem duas situações parodiadas: uma sátira2 à vida cívico-religiosa em que Aristófanes parodia uma assembléia e uma sátira literária em que o poeta se serve de situações dramáticas emprestadas de tragédias euripidianas.

No que concerne à assembléia, são parodiados o protocolo de abertura, o uso de coroas, o julgamento, o ato de escarrar como os oradores e de avançar diante da assembléia para o pronunciamento. O coro assume não apenas uma das partes, mas também um papel de mediador na contenda, aos moldes dos mediadores das assembléias atenienses. No que diz respeito à sátira literária, o discurso agonístico, visto pelo viés da paródia, assume o stricto sensu de canto paralelo, através de relações intertextuais e de empréstimos de versos euripidianos. Esse agon mostra um equilíbrio verbal bem marcado. O discurso de Mnesíloco refuta os dois discursos femininos precedentes; o que vai lhe render, além do debate, um “com-bate”. A cena de conflito verbal evolui para uma cena de conflito corporal que, por sua vez, é interrompida pelo coro em uma tentativa de reestabelecer a ordem. A agressão física é não somente um recurso cômico muito eficiente, quando o alvo é o riso, mas também está ligada à origem do fenômeno agonístico. O agon, que se consagrou na dramaturgia como um combate dialético, foi outrora herdeiro de combates físicos, testemunhados em passagens da Ilíada de Homero (Duchemin, 1968: 11-14). BIBLIOGRAFIA ARISTÓFANES. As Mulheres que celebram as Tesmofórias.Tradução, introdução e notas de Maria de Fátima Sousa e Silva, Coimbra: Instituto Nacional de Iniciação Científica, 1988. ARISTOPHANE.Les Thesmophories. Les Grenouilles. (Tome IV). Texte établi par Victor Coulon. Paris : Les Belles Lettres, 1967. BAILLY, A. Dictionnaire Grec-Français. Paris : Hachette, 1950. DUCHEMIN, J. L’AGVN dans la tragédie grecque. Paris : Les Belles Lettres, 1968. PAVIS, P. Dicionário de Teatro. Tradução J.Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Perspectiva, 2001.

1 Cláudia Manoel Rached Féral é professora de Língua e Literatura Gregas – FCL/CAr/ UNESP.

1 As Tesmofórias eram uma festa religiosa em honra das deusas Deméter e Perséfone, comemorada no inverno, apenas por mulheres. 2 Segundo Pavis (2001:279), a paródia, quando tem finalidade didática ou moralizante, é aparentada à sátira.

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YESMOFORIAZOUSAI Khrækaina koue ps’. ¦doje t» boul» t9de t» tÇn gunaikÇn: Timñklei’ ¤pest9tei, Læsill’ ¤gramm9teuen, eäpe Zvstr‹th: ¤kklhsÛan poieÝn §vyen t» m¡sú tÇn YesmoforÛvn, à m9lisy’ ²mÝn sxol®, kaÜ xrhmatÛzein prÇta perÜ EéripÛdou, ÷ ti xr¯ payeÝn ¤keÝnon: }dikeÝn gRr dokeÝ ²mÝn p9saiw. tÛw }goreæein boæletai; Gun¯ A ¤gÅ. KH perÛyou nun tñnde prÇton prÜn l¡gein. Xorñw sÛga siÅpa, prñsexe tòn noèn: xr¡mptetai gRr ³dh ÷per poioès’ oß =®torew. makrRn ¦oike l¡jein. GU. A filotimÛ& m¢n oédemiÜ mR tÆ yeÆ }n¡sthn Î gunaÝkew: }llR gRr bar¡vw f¡rv t9laina polçn ³dh xrñnon prophlakizom¡naw õrÇw ²mw êpò EéripÛdou toè t°w laxanopvlhtrÛaw kaÜ pollR kaÜ pantoݒ }kouoæsaw kak9. tÛ gRr oðtow ²mw oék ¤pism» tÇn kakÇn; poè d’ oéxÜ diab¡blhx’, (....) drsai d’ ¦y’ ²mÝn oéd¢n Ësper kaÜ prò toè ¦jesti: toiaèy’ oðtow ¤dÛdajen kakR toçw ndraw ²mÇn: Ëst’ ¤9n tiw pl¡kú gun¯ st¡fanon, ¤rn dokeÝ: k’n ¤kb9lú skeèñw ti katR t¯n oÞkÛan planvm¡nh, n¯r ¤rvtÜ, ’tÒ kat¡agen ² xætra; oék ¦sy’ ÷pvw oé tÒ KorinyÛÄ j¡nÄ. (...) ‘Ëst’ oédeÜw g¡rvn gameÝn ¤y¡lei gunaÝka diR toëpow todÜ ‘d¡spoina gRr g¡ronti numfÛÄ gun®.’ (...) nèn oïn ¤moÜ toætÄ dokeÝ öleyrñn tin’ ²mw kurkann mvsg¡pvw, µ farm9koisin µ miÜ g¡ tÄ t¡xnú, ÷pvw }poleÝtai. taèt’ ¤gÆ fanerÇw l¡gv, tR d’ lla metR t°w grammat¡vw suggr9comai XO. oëpv taæthw ³kousa poluplokvt¡raw gunaikòw oéd¢ deinñteron legoæshw. p9nta gRr l¡gei dÛkaia, p9saw d’ Þd¡aw ¤j®tasen, p9nta d’ ¤b9stasen frenÜ puknÇw te&; poikÛlouw lñgouw }nhèren eï diezhthm¡nouw: (...)

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As mulheres que celebram asTesmofórias Arauto Feminino Ouça cada uma. No conselho de mulheres, em que Timocléia, a ilustre, presidiu, Lisila, a esperta, tomou nota, e Sóstrata, a defensora1 , fez o pronunciamento, decidiu-se o seguinte: fazer uma assembléia ao amanhecer do segundo dia das Tesmofórias, em que estamos mais disponíveis. E, em primeiro lugar, deliberar o que é necessário fazer para que Eurípides sofra. Pois, a nós todas, sem exceção, ele parece ser culpado. Quem quer falar na assembléia? 1ª Mulher Eu! Arauto Feminino Então, antes de falar, coloque esta coroa. Corifeu Silêncio, silêncio, atenção! Pois agora essa aí já começou a escarrar como fazem os oradores. Pelo jeito vai falar bastante. 1ª Mulher Certamente, não foi por ambição, mas por Deméter e Perséfone2 , que me levantei para falar, mulheres. Como sou infeliz! Já há muito tempo que suporto com dificuldade o fato de sermos insultadas por Eurípides, o filho da verdureira. E, mais ainda, de ouvirmos todo tipo de ultrajes. Há algum insulto que esse fulano deixou de nos fazer? Onde ele não nos caluniou?(...) A nós nada mais é permitido como antes, tais são as coisas ruins que esse aí mostrou a nossos maridos. Assim, se alguma mulher entrelaça uma coroa, logo a julgam apaixonada; se deixa cair algum utensílio na casa, no corre-corre dos serviços domésticos, o marido pergunta: “Por causa de quem a marmita se quebrou ?” “Só pode ser por causa do hóspede de Corinto.”3 (...) nenhum velhote quer se casar com uma mulher por causa desse verso: para noivo velho, esposa é patroa4 . (...) Por isso, acho que devemos, de alguma maneira, tramar sua ruína, ou com veneno ou com um artifício qualquer5 , a fim de que morra. É isso que tenho a dizer publicamente. O restante vou redigir em companhia da escrivã. Corifeu Jamais ouvi mulher mais sagaz do que esta, nem mais terrível falando. Afinal todas as coisas que ela diz são justas. Todos os aspectos examinou com cuidado, considerou tudo com sabedoria em sua reflexão, encontrou palavras variadas e bem aprimoradas (...) 2ª Mulher Do mesmo modo que ela, avancei diante da assembléia para dar algumas palavrinhas.(...) Pois, quanto a mim, meu marido morreu em Chipre, deixando cinco filhinhos que eu, com muito custo, alimentava trabalhando com coroas6 no mercado de mirtos. Durante todo esse tempo, portanto, sustentava-os aos trancos e barrancos. Mas agora esse fulano, autor de tragédias, convenceu os homens de que os deuses7 não existem, de forma que não vendemos mais nem a metade (...) Coro (...) Então, está claro que é necessário aplicar uma punição ao autor desse ultraje contra nós. Mnesíloco O fato de vocês, mulheres, irritarem-se pra valer contra Eurípides, após ouvirem tais coisas ruins, não é de se admirar (...) odeio aquele homem, ou senão estaria fraca da cabeça. No entanto, convém darmos uma palavrinha entre nós. Estamos sozinhas, e que nenhuma palavra escape. Por qual razão o acusamos? Ficamos incomodadas só porque ele disse duas ou três das nossas safadezas, sabendo bem que as fazemos aos montes? Serei a primeira a falar de mim mesma - para não falar de nenhuma outra - só eu sei de minhas travessuras (...) E depois nos irritamos com Eurípides quando não sofremos mais do que merecemos8 . Coro Isso é, sem dúvida, extraordinário.Onde foi achada essa coisa? Qual região nutriu essa aí, atrevida assim?

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GU. B

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Aristófanes

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1ª Mulher (...) depilaremos a “perereca” dessa aí para que aprenda, como mulher, a não falar mal das mulheres de agora em diante. Mnesíloco Mulheres, por favor! Minha “perereca”, não!(...) Primeira Mulher Então, não é necessário lhe dar um castigo? Você que, sozinha, teve a coragem de falar a favor desse homem que tanto nos maltratou, procurando, de propósito, temas em que havia uma megera que representasse Melanipas e Fedras? Mas ele nunca compôs uma Penélope10 , porque parecia ser uma mulher sensata. Mnesíloco Eu bem sei a causa. Mas não se pode nomear uma única Penélope entre as mulheres, hoje em dia, são todas Fedras, sem exceção. (...) 1ª Mulher Quanto a você, pelas duas deusas, dizendo essas coisas, você não escapará do castigo. Vou te arrancar essa crina.11 Mnesíloco Por Zeus, você não vai me tocar. 1ª Mulher Então, toma! Mnesíloco Toma você também! (...) Corifeu Parem com os insultos! Pois uma mulher corre rapidamente em direção a nós. Portanto façam silêncio, antes de ela chegar aqui, para que, sem bagunça, saibamos as coisas que vai dizer.

Tradução de Cláudia Manoel Rached Féral

1 O aposto não existe no texto original e foi inserido na tradução para explicar a etimologia dos nomes. É comum as personagens aristofânicas terem seus nomes relacionados ao que fazem. 2 De acordo com o texto grego (twV qewV): pelas duas deusas. Como se trata de Deméter e Perséfone, então, esses nomes foram inseridos à tradução. 3 Pelo hóspede de Corinto foi a resposta de Estenebéia, na peça euripidiana de mesmo nome, a Belerofonte. 4 Segundo Coulon (Les Thesmophories,1967: 35), essa passagem faria alusão à tragédia Fénix de Eurípides, da qua apenas nos chegaram fragmentos. 5 Alusão à trama de Medéia na tragédia euripidiana de mesmo nome. 6 O uso de coroas é bastante freqüente na Antigüidade e poderia estar ligado à vida religiosa, militar ou civil. 7 Essa mesma acusação de ateísmo aparecerá em As Rãs (v.889-894). 8 Essa passagem é uma paródia da peça Télefo de Eurípides (frag. 712). 9 Em grego, o terno é coi~roV, “porco”, cujo nome também designava as partes femininas. Para manter esse sentido, optou-se na tradução por “perereca” animal que, em português, corresponde as partes íntimas da mulher. 10 Melanipa, a mãe que abandona os filhos, e Fedra, madrasta que leva o enteado à morte, são protagonistas da cena euripidiana. Penélope é a esposa fiel que espera a volta do marido Ulisses, na Odisséia. 11 Aristófanes faz, aqui, um jogo de palavras entre o verbo ejkpokivzw, “arrancar pêlo ou lã dos animais”, e o substantivo pokavV, “crina”.

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Apoio cultural:

Direção Faculdade de Ciências e Letras - Unesp/CAr

Departamento de Lingüística Faculdade de Ciências e Letras - Unesp/CAr

Gráfica Faculdade de Ciências e Letras - Unesp/CAr

Torre de Pedra Editoração Eletrônica [email protected]

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De pura distração A expressão Mario Benedetti Fernando Argollo1 MARIO BENEDETTI nasceu em 14 de setembro de 1920, na cidade de Paso de los Toros, Departamento de Taquarembó, República Oriental do Uruguai. Entre 1938 e 1941 residiu quase continuamente em Buenos Aires. Em 1945, de volta a Montevidéu, integrou a redação do semanário “Marcha”. Em 1949 publicou “Esta mañana” seu primeiro livro de contos e, um ano mais tarde, os poemas de “Solo mientras tanto”. Em 1953 apareceu sua primeira novela, “Quien de nosotros”, porém foi com o volume de contos “Montevideanos”, publicado em 1959, que a sua obra narrativa adquiriu uma concepção urbana. Com “La tregua”, que foi publicado em 1960, Benedetti adquiriu transcendência internacional. A novela teve mais de uma centena de edições, foi traduzida para dezenove idiomas e levada ao teatro, ao rádio, à televisão e ao cinema. Em 1973 abandonou seu país por “razões políticas”. As etapas de seus doze anos de exílio foram a Argentina, Peru, Cuba e Espanha. Sua vasta produção literária abarca todos os gêneros, incluindo famosas letras de canções, e soma mais de sessenta obras, entre as quais se destacam a novela “Gracias por el fuego” (1965), o ensaio “El escritor latino-americano e la revolucion possible” (1974), os contos de “Con y sin nostalgias” (1977) e os poemas de “Viento del Exilio” (1981). Em 1987 recebeu o prêmio “Llama de Oro” da Anistia Internacional por sua novela “Primavera con una esquina rota”. Seus livros mais recentes são “Despistes e Franquezas” (1990), “Las soledades de Babel” (1991), “La borra del café” (1992) e “Perplejidades de fin de siglo” (1993). Sua obra poética completa foi recolhida em “Inventario Uno” (1950-1985) e “Inventario Dos” (1986-1991). Também foi publicado seus “Cuentos completos” (1994). E por último, em 1999, “Buzón del tiempo” 1

Fernando Argollo é advogado e mora em Salvador, Bahia. Atualmente, dedica-se à tradução de poesias e contos de Mário Benedetti.

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De puro distraído Nunca se consideró un exilado político. Había abandonado su tierra por un extraño impulso que se fraguó en tres etapas. La primera, cuando lo abordaron sucesivamente cuatro mendigos en la Avenida. La segunda, cuando un ministro usó la palabra Paz en la televisión e inmediatamente comenzó a temblarle el párpado derecho. La tercera, cuando entró a la iglesia de su barrio y vio que un Cristo (no el más rezado y colmado de cirios sino otro alicaído, de una nave lateral) lloraba como un bendito. Quizá pensó que si se quedaba en su país se iba a desesperar a corto plazo y él bien sabía que no estaba hecho para la desesperación sino para el vagabundeo, la independencia, el modestísimo disfrute. Le gustaba la gente pero no se encadenaba. Se entretenía con el paisaje pero al final se empalagaba de tanto verde y añoraba el hollín de las ciudades. Saboreaba las tensiones metropolitanas pero llegaba un día que se sentía cercado por los imponentes bloques de cemento. Así como había vagado por calles y los caminos de su tierra, empezó a vagar por los países, las fronteras y los mares. Era terriblemente distraído. A menudo no sabía en qué ciudad se encontraba, pero no por eso se decidía a preguntar. Simplemente seguía caminando, y, en todo caso, si se equivocaba, no le importaba salir del error. Si precisaba algo, ya fuera para comer o para dormir, disponía de cuatro idiomas para buscarlo y siempre había alguien que lo comprendía. En el peor de los casos, le quedaba el esperanto de los gestos.

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De pura distração Nunca se considerou um exilado político. Tinha abandonado seu país por um inexplicável motivo que se formou de três vezes. A primeira quando foi abordado, sucessivamente, na Avenida, por quatro mendigos. A segunda, quando um ministro usou a palavra paz, na televisão e imediatamente começou a tremer a pálpebra direita. A terceira quando entrou na igreja de seu bairro e viu que um Cristo (não o mais rezado e iluminado por velas, mas um outro, triste, desanimado, de uma nave lateral) chorava como um bemaventurado. Talvez tenha pensado que se ficasse no seu país iria se aborrecer em pouco tempo e ele bem sabia que não fora feito para os aborrecimentos e sim para o vagabundeio, a liberdade, um modesto desfrute. Gostava das pessoas, mas não se prendia. Entretinha-se com as paisagens campestres, entretanto em pouco tempo se entediava de tanto verde e sentia saudade da poluição das cidades. Saboreava as tensões metropolitanas, mas chegava um dia em que se sentia cercado pelos imponentes blocos de cimento. Assim, como tinha vagado pelas ruas e estradas de sua terra, começou a vagar pelos países, por fronteiras, e mares. Era terrivelmente distraído. Normalmente não sabia em que cidade se encontrava, mas nem por isso se preocupava em perguntar. Simplesmente continuava caminhando e, quando se equivocava, não se incomodava com o erro. Ao precisar de algo, fora do comer e dormir, dispunha de quatro idiomas para buscá-lo, e sempre tinha alguém que o compreendia. Na pior das hipóteses, lhe restava o esperanto dos gestos.

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Viajaba en ferrocarril o en autobús, pero normalmente lograba que lo recogieran en algún auto o camión. Inspiraba confianza. La gente le creía las cosas más absurdas, y no se equivocaba, porque todo en él era un poco absurdo. Por lo común andaba solo, y era lógico, ya que ningún hombre ni, menos aún, ninguna mujer, habría sido capaz de soportar tanta incuria y tanto desorden. Cuando pasaba por una frontera, mostraba el pasaporte con un gesto displicente o mecánico, pero inmediatamente se olvidaba de qué frontera se trataba. Permanecía poco tiempo en el centro de las ciudades. Prefería los barrios marginales, donde se llevaba bien con los niños e los perros. A veces surgía algún detalle que le servía de orientación. Pero no siempre. Una mañana se halló junto a un canal y creyó que estaba en Venecia, pero era Brujas. Confundir el Sena con el Rin, y viceversa, le ocurrió por lo menos en tres ocasiones. No llevaba brújula sino que se orientaba por el sol, pero cuando le tocaban días tormentosos, de cielo oscuro, no tenía la menor idea de dónde quedaba el norte. Y eso tampoco lo afectaba, ya que tenía preferencia por ninguno de los puntos cardinales. Cierto mediodía se enteró de que caminaba por Helsinki porque vio una cabina telefónica que decía PUHELIN. Era uno de sus escasos datos sobre Finlandia. Otro día sintió un alarmante tirón de hambre en al estómago y extrajo de su morral un poco de quejo; cuando masticaba con fruición advirtió que se había recostado a una columna que le trajo el recuerdo de las de mármol pentélico que había visto en alguna foto del Partenón, y claro, a partir de esa asociación se dio cuenta de que definitivamente estaba en la Acrópolis. Sí, era terriblemente distraído. En otra ocasión nevaba y para protegerse del frío se metió en las galerías comerciales del moderno subsuelo de Les Halles. Cuando, un semestre después, emergió de otras galerías subterráneas en pleno centro de Estocolmo, se alegró sinceramente de que ya no nevara. De vez en cuando iba a los aeropuertos, pero casi nunca viajaba en avión, entre otras cosas porque, después de presentarse en el mostrador correspondiente y despachar su liviano equipaje, se iba a la terraza a ver cómo despegaban y aterrizaban las grandes aeronaves y no prestaba la menor atención a los altavoces, que repetían su nombre con insistencia. En cierta ocasión, sin embargo, e vaya saber por qué extraño mecanismo, permaneció junto a la puerta de embarque y subió confiadamente al avión con los demás pasajeros. Cuando llegó a destino y mostró su pasaporte, tan displicentemente como de costumbre, un funcionario de emigración lo miró con atención y le dijo: «Venga conmigo.» Él lo siguió mansamente por un corredor desierto. Cuando llegaron a una puerta con un letrero Prohibido el paso, el funcionario la abrió y lo conminó a entrar. Así lo hizo desprevenido. Pensó acercarse a una mesa que había en el centro de la habitación, pero de improviso no vio nada. Alguien, desde atrás, le había colocado una capucha. Solo entonces comprendió que, de puro distraído, se encontraba de nuevo en su patria. Mario Benedetti

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Viajava de trem ou de ônibus, mas normalmente conseguia que lhes dessem carona em algum automóvel ou caminhão. Inspirava confiança. As pessoas acreditavam nas coisas mais absurdas, e não se enganavam, porque tudo nele era sempre absurdo. Na maioria das vezes andava sozinho, e era compreensível, já que nenhum homem nem, menos ainda, nenhuma mulher, seriam capazes de suportar tanta temeridade e desordem. Quando passava por uma fronteira, mostrava o passaporte com um gesto displicente ou mecânico, mas imediatamente se esquecia de que fronteira se tratava. Permanecia pouco tempo no centro das cidades. Preferia os bairros periféricos, onde se dava bem com as crianças e os cachorros. Às vezes surgia algum detalhe que lhe servia de orientação. Mas nem sempre. Uma manhã se achou junto a um canal e acreditou que estava em Veneza, mas era Bruges. Confundir o Sena com o Reno, e vice-versa lhe ocorreu pelo menos em três ocasiões. Não levava bússola, pois se orientava pelo sol, mas quando acontecia os dias chuvosos de céu escuro, não tinha a menor idéia onde ficava o norte. Mas isso tampouco lhe afetava, já que não tinha preferência por nenhum dos pontos cardeais. Num certo meio-dia, concluiu que caminhava por Helsink porque viu uma cabina telefônica em que estava escrito PHUELIN. Era uma de suas raras informações que dispunha sobre a Finlândia. Em outra oportunidade sentiu uma alarmante sensação de fome no estômago e tirou da sua mochila um pedaço de queijo; quando mastigava com prazer percebeu que tinha se recostado em uma coluna que lhe trouxe à memória as de mármore pentélico que viu em alguma foto do Panteão e, claro, a partir dessa associação se deu conta de que efetivamente estava na Acrópole, na Grécia. Sim, era terrivelmente distraído. Em outra ocasião nevava, e para se proteger do frio, abrigou-se nas galerias comerciais do moderno subsolo de Les Halles. Quando, um semestre depois, emergiu de outras galerias subterrâneas, em pleno centro de Estocolmo, se alegrou extremamente de que já não nevasse. De vez em quando ia aos aeroportos, mas quase nunca viajava, entre outras coisas porque, depois de se apresentar no balcão da companhia e despachar sua diminuta bagagem, ia para o terraço e ficava vendo a decolagem e aterrissagem das aeronaves, não prestando a menor atenção aos alto-falantes, que repetiam seu nome insistentemente. Em certa ocasião, entretanto, e vá lá se saber por qual estranho mecanismo, permaneceu junto à porta de embarque e subiu de forma decidida, com os demais passageiros, para o avião. Quando chegou ao destino e mostrou seu passaporte, tão displicentemente como de costume, um funcionário da emigração o olhou com atenção e lhe disse: “Venha comigo.” Ele o seguiu mansamente por um corredor deserto. Quando chegaram a uma porta com o letreiro Entrada Proibida, o funcionário a abriu e lhe ordenou que entrasse. Assim o fez, desprevenido. Pensou em se aproximar de uma mesa que estava no centro da sala, mas de repente não viu mais nada. Alguém por trás colocou-lhe um capuz. Só então compreendeu que, de pura distração, se encontrava novamente em sua pátria. Tradução de Fernando Argollo

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La expresión Milton Estomba había sido un niño prodigio. A los siete años ya tocaba la Sonata N. 3, Op. 5, de Brahms, y a los once, el unánime aplauso de crítica y de público acompañó su serie de conciertos en las principales capitales de América y Europa. Sin embargo, cuando cumplió los veinte años, pudo notarse en el joven pianista una evidente transformación. Había empezado a preocuparse desmesuradamente por el gesto ampuloso, por la afectación del rostro, por el ceño fruncido, por los ojos en éxtasis, y otros tantos afectos afines. Él llamaba a todo ello «su expresión». Poco a poco, Estomba se fue especializando en «expresiones». Tenia una para tocar la Patética, otra para Niñas en el Jardín, otra para la Polonesa. Antes de cada concierto ensayaba frente al espejo, pero el público frenéticamente adicto tomaba esas expresiones por espontáneas y las acogía con ruidosos aplausos, bravos y pataleos. El primer síntoma inquietante apareció en un recital de sábado. El público advirtió que algo raro pasaba, y en su aplauso llegó a filtrarse un incipiente estupor. La verdad era que Estomba había tocado la Catedral Sumergida con la expresión de la Marcha Turca. Pero la catástrofe sobrevino seis meses más tarde y fue calificada por los médicos de amnesia lagunar. La laguna en cuestión correspondía a las partituras. En un lapso de veinticuatro horas, Milton Estomba se olvidó para siempre de todos los nocturnos, preludios y sonatas que habían figurado en su amplio repertorio. Lo asombroso, lo realmente asombroso, fue que no olvidara ninguno de los gestos ampulosos y afectados que acompañaban cada una de sus interpretaciones. Nunca más pudo dar un concierto de piano pero hay algo que sirve de consuelo. Todavía hoy en las noches de los sábados, los amigos más fieles concurren a su casa para asistir a un mudo recital de sus «expresiones». Entre ellos es unánime la opinión de que su capolavoro es la Appasionata. Mario Benedetti

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A expressão Milton Estomba foi um menino prodígio. Aos sete anos já tocava a Sonata N. 3, Op. 5, de Brahms, e aos onze, o unânime aplauso da crítica e do público acompanhou sua série de concertos nas principais capitais da América e Europa. Mas, quando completou vinte anos, pode-se notar no jovem pianista uma evidente transformação. Tinha começado a se preocupar, excessivamente, pelos gestos empolados, pela afetação do rosto, pelo cenho franzido, pelos olhos de êxtase, e outros tantos efeitos deste tipo. Ele chamava a tudo isto “sua expressão”. Pouco a pouco, Estomba foi se especializando em “expressões”. Tinha uma para tocar a Patética, outra para as Meninas no Jardim, outra para a Polonaise. Antes de cada concerto ensaiava frente o espelho, mas o público freneticamente eletrizado considerava essas expressões como espontâneas e as aceitava com ruidosos aplausos, bravos e sapateios. O primeiro sintoma inquietante apareceu em um recital de sábado. O público percebeu que algo estranho se passava, em seu aplauso deixou transparecer um certo pasmo. A verdade era que Estomba tinha tocado a Catedral Submersa com a expressão da Marcha Turca. Mas a catástrofe sobreveio seis meses mais tarde e foi qualificada pelos médicos como uma amnésia de vazio. O vazio em questão correspondia às partituras. Em menos de vinte e quatro horas, Milton Estomba se esqueceu, para sempre, de todos os noturnos, prelúdios e sonatas que figuraram no seu amplo repertório. O assombroso, o realmente assombroso, foi que não se esquecera de nenhum dos gestos empolados e afetados que acompanhavam cada uma de suas interpretações. Nunca mais pode dar um concerto de piano, mas existe algo que serve de consolo. Ainda hoje, nas noites dos sábados, os amigos mais fiéis vão à sua casa para assistir a um mudo recital de suas expressões. Entre eles é unânime a opinião de que seu carro-chefe é a Apasionata. Tradução de Fernando Argollo

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Édipo Sêneca Giovani Roberto Klein1

Sêneca é mais conhecido por suas obras de cunho filosófico, mas entre os seus trabalhos também devem ser enumeradas algumas tragédias, entre as quais nove, todas cothurnatae, isto é, de ambientação grega, devem considerar-se autênticas. Trata-se de tragédias que retomam alguns modelos gregos famosos, mas, distintas desses, não foram compostas para a representação em um teatro (embora alguns estudiosos sustentem que ao menos algumas delas de fato foram compostas para ser encenadas, nem que fosse em pequenas audiências privadas), e sim para a leitura de destinatários cultos, capazes de entender e apreciar a sua densidade conceptual. O Oedipus de Lucius Annaeus Seneca é baseado no (justamente) mais célebre Édipo Rei de Sófocles, do qual preserva algumas características: dentre elas a mais notável é a estrutura do enredo, que em ambos os casos se caracteriza como uma investigação, uma recuperação cognitiva de um evento do passado que na sua objetividade se contrapõe à consciência subjetiva, de acordo com a técnica da ironia trágica. Essa estrutura especial, que pode ser considerada arquétipo da ficção policial, na tragédia senequiana acha resultados bastante diversos por causa da distância entre objetivo e subjetivo, ou entre consciência do protagonista e evento trágico. Apresentarei aqui uma tradução da cena de necromancia do Édipo, na qual o adivinho Tirésias convoca a sombra do rei morto, Laio, para que revele o autor de seu assassinato. Convém, antes de discutir alguns aspectos da cena e de apresentar a tradução, oferecer um resumo da trama da peça até o ponto em questão. A tragédia se abre com um amplo monólogo no qual Édipo descreve a peste com a voz angustiada de quem vê em sua própria sobrevivência uma manutenção através de crimes piores que a própria morte; o tirano se põe a laGiovani Roberto Klein é Mestrando em Lingüística, IEL/Unicamp.

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mentar o período transcorrido como exilado desde a fuga de Corinto, lamentando a condição de reinante. Depois de uma breve troca de falas com Jocasta, irrompe a crua e lúgubre descrição que o coro faz da peste. Ao término desta seqüência, intervém Creonte, que transmite a resposta do oráculo de Delfos: a peste só se aplacará quando o assassino de Laio for exilado. Édipo então, depois de ter amaldiçoado o assassino, cuja identidade ignora, chama Tirésias a fim de que, interpretando os sinais revelados pelas vísceras de um touro e uma novilha sacrificados, lhe dê o nome do culpado; o vaticínio mostra sinistros presságios que aludem ao crime cometido e aos infortúnios futuros, mas não tem sucesso em sugerir a Tirésias a resposta para o rei: decide-se convocar a sombra de Laio, que será interrogada por Creonte. Um dos aspectos mais marcantes do trecho em questão é o que se convencionou chamar de ecphrasis topou, ou descrição de lugar, recurso muito pouco utilizado pelos tragediógrafos gregos (cf. Ésquilo, Persas, 447-449; Sófocles, Traquínias, 752s.; Eurípides, Hipólito, 11981200, Ifigênia em Táurida, 262s., As Bacantes, 1051s.1 ). A descrição segue os elementos do locus horridus: distância da civilização, v. 530 (cf. Odisséia, XI, 13ss.; Ovídio, Metamorfoses, VIII, 788; Valério Flaco, III, 398ss.); presença de árvores antigas, enfatizando a eternidade do mundo inferior, v. 534s. (cf. Vergílio, Eneida, II, 626, VI, 282; Lucano, III, 399; Estácio, Tebaida, IV, 419s., VI, 93; Valério Flaco, I, 774; Sílio Itálico, X, 532); uma das árvores se sobressai às outras, v. 542ss. (cf. Apolônio Ródio, IV, 1682; Vergílio, op. cit., VI, 283; Ovídio, op. cit., VIII, 743s.); a escuridão, v. 530, 542s., 545, 549 (cf. Odisséia, XI, 15ss.; Vergílio, op. cit., VI, 208, 238, 268-272, 283, VIII, 242, 255, 599; Catulo, 63, 3, 32; Ovídio, op. cit., XIV, 122; Lucano, III, 400; Estácio, op. cit., IV, 420s., 424s., 427; Valério Flaco, I, 774s.; Sílio Itálico, XIII, 524); presença de um rio ou de uma fonte cuja água é impura

ou vagarosa, v. 545-547 (cf. Vergílio, op. cit., VI, 295-297; Ovídio, op. cit., XI, 602-604; Lucano, III, 411s.; Sílio Itálico, XIII, 562s.)2 . Note-se que todos os exemplos, com exceção do tirado de Catulo, são tomados de poemas épicos, o que aponta para uma característica das tragédias senequianas: a atenção para o modo descritivo em detrimento do narrativo. A diferença entre esses modos está na sua relação com o tempo: “como uma pintura, a descrição combina um número de detalhes sincrônicos para compor uma cena congelada na perspectiva do tempo, mas a narrativa trata da sucessão de detalhes movendo-se através do tempo”3 . A cena apresentada é apenas um dos exemplos de loci horridi encontrados nas tragédias senequianas (os outros são: Hércules Enlouquecido, 662-706, 709-720; Tiestes, 650-682; Hércules no Eta, 1618-1636) e, mais importante, é apenas uma das inúmeras passagens que demonstram a importância da descrição nessas obras. E, ao contrário das tragédias gregas, onde a descrição serve na maioria das vezes para reforçar a ilusão dramática, principalmente ao descrever cenas que não poderiam ser representadas, o uso que Sêneca faz desse recurso visa a tentar controlar a interpretação da audiência sobre o significado da peça, apresentando a ação à luz de conceitos da filosofia estóica4 . Bibliografia Larson, V.T. The Role of Descrition in Senecan Tragedy. Frankfurt am Main: Peter Lang, 1994. Töchterle, K. Lucius Annaeus Seneca, Oedipus: Kommentar mit Einleitung, Text und Übersetzung . Heidelberg: Winter, 1994. 1 Cf. Larson, V.T. (1994), p. 35. 2 Idem, ibidem, p. 88. 3 Idem, ibidem, p. 14. 4 Idem, ibidem, p. 135.

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Oedipus Est procul ab urbe lucus ilicibus niger Dircaea circa uallis inriguae loca. cupressus altis exerens siluis caput uirente semper alligat trunco nemus, curuosque tendit quercus et putres situ annosa ramos: huius abrupit latus edax uetustas; illa, iam fessa cadens radice, fulta pendet aliena trabe. amara bacas laurus et tiliae leues et Paphia myrtus et per immensum mare motura remos alnus et Phoebo obuia enode Zephyris pinus opponens latus. medio stat ingens arbor atque umbra graui siluas minores urguet et magno ambitu diffusa ramos una defendit nemus. tristis sub illa, lucis et Phoebi inscius, restagnat umor frigore aeterno rigens; limosa pigrum circumit fontem palus. Huc ut sacerdos intulit senior gradum, haut est moratus: praestitit noctem locus. tum effossa tellus, et super rapti rogis iaciuntur ignes. ipse funesto integit uates amictu corpus et frondem quatit; lugubris imos palla perfundit pedes, squalente cultu maestus ingreditur senex, mortifera canam taxus adstringit comam. sacudiu de horror, a terra recuou nigro bidentes uellere atque atrae boues antro trahuntur. flamma praedatur dapes uiuumque trepidat igne ferali pecus. Vocat inde manes teque qui manes regis et obsidentem claustra letalis lacus, carmenque magicum uoluit et rabido minax decantat ore quidquid aut placat leues aut cogit umbras; sanguinem libat focis solidasque pecudes urit et multo specum saturat cruore; libat et niueum insuper lactis liquorem, fundit et Bacchum manu laeua canitque rursus ac terram intuens grauiore manes uoce et attonita citat. latrauit Hecates turba; ter ualles cauae 1

Sigo o texto editado por K. Töchterle, 1994.

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Édipo Há longe1 da cidade um negro bosque de azinheiras, próximo da região do vale regada por Dirce. O cipreste, expondo seu cimo por sobre a alta floresta, enlaça ao redor do sempre verde tronco a folhagem, e o anoso carvalho estende seus ramos curvos e apodrecidos pelo mofo: deste a voraz velhice rompeu o lado; aquele, vacilando já com a raiz desgastada, pende sustido por um tronco alheio. O loureiro de bagas amargas, e as tílias leves, e a murta de Pafos2 , e o álamo, que há de mover os remos pelo imenso mar, e o pinheiro que se interpõe a Febo e que opõe aos zéfiros o tronco sem nós: no meio se ergue ingente árvore e, com sua sombra espessa, preme as árvores menores e, estendendo seus ramos por um vasto espaço, protege sozinha o bosque. Triste debaixo dela e ignorante da luz de Febo se estagna uma água enregelada por frio eterno; um brejo lodoso envolve uma fonte indolente. Quando o idoso sacerdote ali introduziu o passo, não se demorou: o lugar oferecia a noite3 . Então se escavou a terra e, por cima, deitaram-se fogos roubados às piras. O próprio vate cobre o corpo com uma veste fúnebre e agita a fronte. Um lúgubre manto se estende até a extremidade de seus pés; com esse paramento tenebroso, triste o velho avança; o mortífero teixo se prende às suas cãs. Ovelhas bianejas de velo negro e escuras vacas são trazidas para a cova. A chama devora as oferendas, e o gado, vivo, treme no fogo fatal. Ele invoca, então, os manes e a ti que governas os manes e aquele que guarda os claustros do letal lago, profere os versos mágicos e, ameaçador, com furiosa voz, recita tudo o que aplaque ou coaja as leves sombras; liba sangue na fogueira, queima os animais inteiros e satura a cova com muito sangue; liba ainda sobre ela o níveo licor do leite, verte também o dom de Baco com a mão esquerda e novamente entoa seus encantamentos e, voltado para a terra, com voz mais forte e tonitroante4 invoca os manes. Latiu a turba de Hécate5 , três vezes os vales profundos

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sonuere maestum, tota succusso solo pulsata tellus. “audior” uates ait, “rata uerba fudi: rumpitur caecum chaos iterque populis Ditis ad superos datur.” Subsedit omnis silua et erexit comas, duxere rimas robora et totum nemus concussit horror, terra se retro dedit gemuitque penitus: siue temptari abditum Acheron profundum mente non aequa tulit, siue ipsa tellus, ut daret functis uiam, compage rupta sonuit, aut ira furens triceps catenas Cerberus mouit graues. subito dehiscit terra et immenso sinu laxata patuit — ipse pallentes deos uidi inter umbras, ipse torpentes lacus noctemque ueram; gelidus in uenis stetit haesitque sanguis. saeua prosiluit cohors et stetit in armis omne uipereum genus, fratrum cateruae dente Dircaeo satae. tum torua Erinys sonuit et caecus Furor Horrorque et una quidquid aeternae creant celantque tenebrae: Luctus auellens comam aegreque lassum sustinens Morbus caput, grauis Senectus sibimet et pendens Metus auidumque populi Pestis Ogygii malum. nos liquit animus; ipsa quae ritus senis artesque norat stupuit. Intrepidus parens audaxque damno conuocat Ditis feri exsangue uulgus: ilico, ut nebulae leues, uolitant et auras libero caelo trahunt. non tot caducas educat frondes Eryx nec uere flores Hybla tot medio creat, cum examen arto nectitur densum globo, fluctusque non tot frangit Ionium mare, nec tanta gelidi Strymonis fugiens minas permutat hiemes ales et caelum secans quot ille populos uatis eduxit sonus. pauide latebras nemoris umbrosi petunt animae trementes: primus emergit solo, dextra ferocem cornibus taurum premens, Zethus, manuque sustinet laeua chelyn qui saxa dulci traxit Amphion sono, interque natos Tantalis tandem suos tuto superba fert caput fastu graue et numerat umbras. peior hac genetrix adest furibunda Agaue, tota quam sequitur manus partita regem: sequitur et Bacchas lacer Pentheus tenetque saeuus etiamnunc minas. tandem uocatus saepe pudibundum extulit caput atque ab omni dissidet turba procul celatque semet (instat et Stygias preces geminat sacerdos, donec in apertum efferat uultus opertos) Laius — fari horreo: stetit per artus sanguine effuso horridus, paedore foedo squalidam obtentus comam, et ore rabido fatur: “O Cadmi effera, cruore semper laeta cognato domus, uibrate thyrsos, enthea gnatos manu lacerate potius — maximum Thebis scelus maternus amor est. patria, non ira deum, sed scelere raperis: non graui flatu tibi luctificus Auster nec parum pluuio aethere satiata tellus halitu sicco nocet,

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ressoaram de modo lúgubre, com o solo sacudido a terra toda é abalada. “Sou ouvido”, diz o vate, “as palavras eficazes enunciei: abre-se o escuro caos, e ao povo de Dite é oferecido um caminho para a superfície”. Toda a floresta abaixou e novamente alçou a folhagem, os carvalhos fenderam-se e todo o bosque sacudiu de horror, a terra recuou e gemeu profundamente: seja porque o Aqueronte não suportou de bom grado que seu oculto abismo fosse sondado, seja porque a própria terra, para abrir caminho aos mortos, com as juntas rompidas ressoou, ou porque, enlouquecido de ira, o tricéfalo Cérbero remexeu suas pesadas cadeias. Subitamente fendeu-se a terra e abriu imensa vala — eu mesmo vi os pálidos deuses em meio a sombras, eu mesmo vi os estagnados lagos e a noite verdadeira; gélido, nas veias deteve-se e imobilizou-se meu sangue. Seva coorte precipitou-se, ergueu-se, em armas, toda a raça viperina, as tropas de irmãos gerados pelo dente de Dirce6 . Então ressoou a feroz Erínis e o cego Furor e o Horror e tudo o que a um só tempo criam e ocultam as eternas trevas: o Luto que se arranca os cabelos, a Doença que sustém com dificuldade a fatigada cabeça, a Velhice pesada a si mesma, o Medo hesitante, e a Peste, ávido mal do povo Ogígio7 . O ânimo abandonou-nos; ela mesma que conhecia os ritos e os artifícios do velho ficou estupefata. Seu pai, intrépido e audaz por causa da sua deficiência, invoca do fero Dite a turba exangue: logo, como leves nuvens, os manes esvoaçam e tomam ar no céu livre. Não são tantas as folhagens cadentes que produz o Érice8 , nem tantas as flores que no meio da primavera Hibla9 cria, quando denso enxame em nuvem compacta se condensa, não são tantas as ondas que quebra o mar Jônio, nem tantas as aves que, fugindo das ameaças do gélido Estrimão10 , migram durante o inverno e, cortando o céu, trocam as neves Árticas pelo tépido Nilo, quanto a multidão que ele, com sua voz de vate, conduziu para fora. Timidamente, as almas trementes buscam os esconderijos do umbroso bosque: primeiro emerge do solo, com a destra segurando um feroz touro pelos chifres, Zeto11 , e na mão esquerda segura a cítara Anfião12 , que com sua doce música arrastava as rochas; e a filha de Tântalo13 , enfim em meio a seus filhos, sem medo ergue a cabeça pesada de orgulho e conta suas sombras. Mãe pior está junto dela, a furibunda Agave14 , segue-a todo o bando das que despedaçaram o rei: segue as Bacantes o dilacerado Penteu e mantém feroz, ainda agora, as ameaças. Finalmente, invocado repetidas vezes, levantou a pudibunda cabeça e retira-se para longe de toda essa turba e esconde-se (ameaça-o e redobra as imprecações estígias o sacerdote, até ele pôr a descoberto seu semblante oculto) Laio — horrorizo-me ao falar: ergueu-se, horrendo, os membros banhados em sangue, os desgrenhados cabelos cobertos por imundície horrível, e com voz enraivecida fala: “Ó cruel casa de Cadmo, sempre alegre com o sangue dos parentes, vibrai os tirsos, com a mão tomada pelo deus dilacerai antes os filhos — o maior crime em Tebas é o amor materno. Ó Pátria, não pela ira dos deuses,

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sed rex cruentus, pretia qui saeuae necis sceptra et nefandos occupat thalamos patris inuisa proles: sed tamen peior parens quam gnatus, utero rursus infausto grauis egitque in ortus semet et matri impios fetus regessit, quique uix mos est feris, fratres sibi ipse genuit — implicitum malum magisque monstrum Sphinge perplexum sua. te, te cruenta sceptra qui dextra geris, te pater inultus urbe cum tota petam et mecum Erinyn pronubam thalami traham, traham sonantis uerbera, incestam domum uertam et penates impio Marte obteram. proinde pulsum finibus regem ocius agite exulem quodcumque; funesto gradu solum relinquet, uere florifero uirens reparabit herbas; spiritus puros dabit uitalis aura, ueniet et siluis decor; Letum Luesque, Mors Labor Tabes Dolor, comitatus illo dignus, excedent simul; et ipse rapidis gressibus sedes uolet effugere nostras, sed graues pedibus moras addam et tenebo: reptet incertus uiae, baculo senili triste praetemptans iter: eripite terras, auferam caelum pater.”1 Sêneca

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mas por causa dum crime és devastada: não é o funesto Austro, com seu sopro molesto, nem a terra pouco saciada com a chuva celeste, com sua exalação árida, que te causa dano, mas um rei cruento, que como paga pelo cruel assassinato ocupa o trono e o infame tálamo de seu pai. Odiosa é a prole: mas o pai é pior que os filhos, ele que concebeu de novo num útero infausto e retornou ao ventre materno, e reintroduziu na mãe rebentos ímpios, costume que raramente é o das feras, e ele próprio gerou irmãos para si — complicado mal, monstro mais tortuoso do que a sua Esfinge. A ti, a ti, que com a cruenta destra portas o cetro, a ti eu, pai não vingado, perseguirei com toda a cidade, e comigo trarei Erínis, que assistiu ao teu casamento, trarei os sibilantes açoites, essa incestuosa casa destruirei, e os Penates, por meio duma ímpia guerra, espedaçarei. Portanto, prontamente enviai ao exílio deste país o rei banido: todo o solo que ele abandonar com seu funesto passo, verdejando com a florífera primavera, recuperará as ervas; uma respiração pura fornecerá o vivificante ar, retornará também às florestas o seu ornamento. A Destruição15 e a Peste, a Morte, a Fadiga, o Contágio, a Dor, comitiva digna dele, retirar-se-ão ao mesmo tempo; e ele mesmo desejará fugir com passos rápidos de nossas terras, mas aos seus pés duras delongas oporei e retê-lo-ei: arrastar-se-á incerto da direção, tenteando o caminho com seu triste báculo de velho: tomai-lhe as terras, eu, seu pai, arrebatar-lhe-ei o céu”.

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Tradução de Giovani Roberto Klein

1 O advérbio “longe” (procul) é inadequado tanto geograficamente, já que o bosque ficava a cerca de um quilômetro da cidade, quanto tecnicamente, uma vez que uma viagem longa poria em risco a regra da unidade de tempo da tragédia clássica, que preconizava que a ação não poderia se estender por mais de um dia. No entanto, seu uso pode remeter à distância que esse cenário representa da normalidade da natureza; a distância da civilização é um aspecto importante do locus horridus; em Homero, por exemplo, a entrada para o mundo inferior é situada na terra dos Cimérios, às margens do rio Oceano, na extremidade do mundo (cf. Odisséia, XI, 13ss.). 2 Cidade de Chipre, onde se cultuava Vênus; a murta aparece em Vergílio, Eneida, VI, 443, como árvore de Vênus; em V, 72, Enéias faz uma coroa fúnebre com seus ramos. 3 A noite era o horário adequado para os rituais de necromancia, cf. Vergílio, op. cit., VI, 252. Para não quebrar a regra da unidade de tempo, o autor criou aqui uma noite “artificial”. 4 Attonita tem sentido ativo no original. 5 Hécate, identificada com Prosérpina, é o nome, quando está no mundo inferior, da divindade que se manifesta como Diana na terra e como Febe (Lua) no céu; cf. Ovídio, op. cit., VII, 94 e 194. Em Vergílio, op. cit., VI, 257ss. e Ovídio, op. cit., XIV, 410, também são mencionados cães em contexto semelhante. 6 Cadmo, logo que chega ao território da Beócia, onde viria a fundar Tebas, mata uma serpente consagrada a Marte e espalha seus dentes; destes nascem homens já completamente formados e armados, que logo travam combate entre si, sobrevivendo somente alguns poucos, que ajudariam Cadmo a fundar Tebas, onde viriam a ser chamados de sparthoi, “semeados”; cf. Ovídio, op. cit., III, 32ss.; Sêneca, Édipo, 722ss. 7 O mesmo que tebano; Ogygos é o nome de um dos sete portões de Tebas; cf. Eurípides, As Fenícias, 1113. 8 Monte da Sicília. 9 Monte da Sicília. 10 Rio da Trácia; as aves referidas são os grous; cf. Vergílio, op. cit., X, 264-66. 11 Príncipe tebano, filho de Zeus e Antíope, sobrinha de Lico, rei de Tebas; ele e seu irmão gêmeo Anfião foram expostos quando crianças no Citero, mas foram salvos por pastores. Adultos, mataram Lico e Dirce, sua esposa, pela crueldade contra Antíope, e reinaram juntos em Tebas. Dirce foi amarrada pelos cabelos a um touro selvagem e arrastada até a morte no Citero; cf. Sêneca, As Fenícias, 19; Apolodoro, III, 5, 5. 12 Ver nota anterior; teria construído as muralhas de Tebas fazendo as rochas moverem-se ao som de sua lira; cf. Sêneca, op. cit., 566, Hércules Enlouquecido, 262; Ovídio, op. cit., VI, 176ss.; Horácio, Odes, III, 11, 2, Arte Poética, 394s. 13 Níobe, esposa de Anfião; por ter se recusado a prestar culto a Latona, foi punida por Diana com a perda de seus sete filhos e sete filhas; cf. Ovídio, op. cit., VI, 146-312. 14 Filha de Cadmo, mãe de Penteu, rei de Tebas; dominada pelo frenesi báquico, dilacerou seu filho junto com outras bacantes; cf. Eurípides, As Bacantes, 1030ss.; Ovídio, op. cit., III, 725ss. 15 Letum no original; o sentido primeiro é de morte violenta, mas pode também por extensão significar “ruína, destruição”.

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Os elefantes Leconte de Lisle Emerson Tin1

Largamente lida no Brasil até a metade do século XX, a obra de escritores franceses era um campo fértil para os escritores brasileiros, que acompanhavam de perto a produção literária em terras gaulesas. A literatura francesa, assim, era não só modelo para imitação – um dos casos mais célebres talvez seja a proximidade temática entre Lucíola (1862), de José de Alencar, e La Dame aux Camélias (1848), de Alexandre Dumas, filho –, como excelente manancial para tradução. Neste último caso, não somente traduções de obras escritas em francês, mas também traduções para o português a partir de traduções francesas, prática corrente ainda quando já avançado o século XX. Autores ingleses, alemães, russos, eram conhecidos, lidos e traduzidos no Brasil a partir de suas traduções francesas. Um dos autores bastante difundidos no período foi o poeta francês Charles-Marie-René Leconte de Lisle (18181894), consagrado como um dos mais importantes nomes do Parnasianismo francês, a quem outro importante poeta do período, José-Maria de Heredia (1842-1905), dedicará seu único livro, Les Trophées (1893). Leconte de Lisle e Heredia, ao lado de outros grandes nomes como Théophile Gautier, Théodore de Banville e Sully Prud’homme, faziam parte do grupo de poetas reunidos em torno da revista Le Parnasse Contemporain, de onde surgiu o nome que batizaria o grupo como parnasianismo. Os parnasianos franceses foram bastante lidos pelos seus confrades brasileiros. Não só lidos, como traduzidos e parafraseados. Só em Olavo Bilac, o maior nome do Parnasianismo brasileiro, é possível encontrar várias poesias diretamente vinculadas aos poetas franceses, como por exemplo “Um trecho de Th. Gautier”, “Paráfrase de Baudelaire” ou “Medalha antiga” (este último tradução de um poema homônimo de Leconte de Lisle), todos do livro Sarças de Fogo. “Les Éléphants”, o poema que aqui traduzo, pertence ao livro Poèmes barbares (Poemas bárbaros, 1862), de Leconte de Lisle. Os elefantes de Leconte figuram entre os poemas bárbaros em meio a uma fauna das mais variadas: um urso (“Les larmes de l’ours”, “As lágrimas do urso”), cães que uivam (“Les hurleurs”, “Os uivadores”), um condor (“Le sommeil du condor”, “O sono do condor”), uma pantera negra, borboletas, abelhas, uma píton (“La panthère noire”, “A pantera negra”), entre outros animais. Conheço duas traduções de “Les Éléphants”: a de Ricardo Gonçalves (1883-1916) e a de Olegário Mariano (1889-1958). Ricardo Gonçalves, poeta trágica e precocemente falecido em 1916, teve sua tradução reunida e publicada pelo amigo Monteiro Lobato no volume Ipês, do início da década de 1920: 1

Emerson Tin é doutorando em Teoria e História Literária, IEL/UNICAMP

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OS ELEFANTES (Leconte de Lisle)

OS ELEFANTES (Leconte de Lisle)

O areial infinito é como um rubro oceano, Que resplandece, mudo, em seu leito espraiado. Ondula, imoto, o céu cor de cobre, do lado Do horizonte em que habita o formigueiro humano.

Mar sem limite – o areal vermelho abrasa e estua Em seu leito onde o sol raios de ouro espadana... Ondula, em fumos no ar, sobre a planície nua, O amplo horizonte onde fervilha a vida humana.

Nem rumor e nem vida... O leão, farto, descansa No antro afastado, em meio aos matagais infindos. Vai beber a girafa esguia à fonte mansa, Que a pantera conhece, ao pé dos tamarindos.

Nenhum rumor. Somente os leões dormem saciados, Cem léguas em redor, no antro absconso das feras. Bebe a girafa a água dos veios azulados Sob as palmeiras - doce asilo das panteras.

Dorme tudo. Sequer um pássaro no ar quente, No ar em que gira um sol de fogo, um sol em chama... Ás vezes, com volúpia, a dormida serpente Faz ondular, morosa, a rutilante escama.

Nem um pássaro, um só, num vôo de abandono, Corta com o alfanje da asa o infinito que escalda. Por vezes a serpente, acordada em seu sono, Move as escamas lampejantes de esmeralda.

O ar inflamado queima. O calor é mais denso. E, bamboleando a massa – intrépidos viajantes, Rumo do ermo natal, pelo deserto imenso, Vão-se, num bando escuro, os tardos elefantes.

E enquanto o espaço abafa em mormaços violentos E em tudo pesa a lassidão de um sono incerto, Os Elefantes vão, rudes viajeiros lentos, Rumo ao país natal, através do deserto...

Vêm eles do horizonte ensangüentado e quieto, Vêm levantando o pó, que em nuvem grossa ondeia, E, para não sair do caminho mais reto, Desmoronam com a pata os cômoros de areia.

De um ponto do horizonte, entre nuvens de poeira, Mexem-se com vagar, tardos e desconformes... E em linha regular, – soldados em fileira, Dunas levam rolando entre as patas enormes.

Velho chefe, talvez, é o que à frente caminha: Rugosa como um tronco a pele do seu dorso; É um rochedo a cabeça... O arco imenso da espinha Dobra-se, com violência, ao mais pequeno esforço.

À frente marcha o velho chefe. Tem o dorso Áspero. É um tronco exposto ao tempo que o espezinha. A cabeça é uma rocha; e, num mínimo esforço, Dobra, crespo e brutal, o arco mole da espinha.

Os passos não estuga e também não lerdeia Que os passos pelos dele o bando inteiro marca. E, deixando após si fundos sulcos na areia, Seguem todos, atrás do velho patriarca.

Conservando na marcha um ritmado compasso, Ele indica o país que o destino lhes marca... E, abrindo a areia, os peregrinos, passo a passo, Seguem passivamente o velho patriarca...

Seguem, levando a tromba apertada entre os dentes. As orelhas em leque. O ventre bate e fuma... E o suor deles produz uma ligeira bruma No ar cheio de tavões e de insetos ardentes.

A orelha em leque, a tromba a rolar entre dentes, Caminham sempre... Os ventres negros lhe latejam. No ar abrasado o suor sobe, em volutas quentes, Enquanto, em derredor, milhões de insetos voejam...

Mas, que importam a sede e o calor sufocante? Que lhes importa o enxame importuno que esvoaça? Vai o bando a pensar numa selva distante – Primeira habitação da primitiva raça.

Que lhes importa a sede e a inclemência maldita Do sol de brasas? E o moscardo que os ameaça? Se eles sonham com a terra encantada onde habita Entre figueiras, longe, a sua heróica raça?

Vai rever uma selva umbrosa o escuro bando... E a caudal em que nada o hipopótamo enorme, E onde, brancos de luar, iam beber, quebrando Os juncos marginais com a grande pata informe.

Verão, a cascatear de altos montes incultos, O rio em que rolava o hipopótamo a fio... Onde, em noites de luar, vinham mirando os vultos Na água, em torno aos juncais, beber a água do rio.

La vão... E a linha escura e fantástica ondeia... La vão eles, molgando as juntas, lentamente, Mas passam... e depois fica imóvel a areia, Passam... e depois fica o deserto somente.

É por todo esse ideal que os enche de saudade, Que eles cortam o areal longínquo que se explana. E o deserto retoma a ampla imobilidade Quando, ao longe, se perde a lenta caravana...

Pouco posterior, a tradução de Olegário Mariano foi publicada em seu livro Água corrente, de 1918:

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Ambas as traduções mantiveram o mesmo número de estrofes e versos do original, assim como o metro alexandrino. Quanto ao esquema de rimas, interpoladas no original, foi mantido somente na tradução de Gonçalves, já que na de Olegário as rimas são alternadas. O poema de Leconte se abre com a apresentação do cenário, nas três primeiras estrofes. Trata-se de um lugar quente, em que a vida mal se move debaixo do calor. Leconte reforça a idéia do calor com a coloração da areia – vermelha – o que se mantém na tradução de Olegário Mariano, mas desaparece na tradução de Ricardo Gonçalves: neste o elemento pictórico deixa de caracterizar o objeto descrito – a areia – para caracterizar o elemento comparativo – o mar. Ou seja, em Leconte lemos o verso: Le sable rouge est comme une mer sans limite (em tradução literal, “a areia vermelha é como um mar sem limite”); traduzido por Olegário, o verso tornou-se: “Mar sem limite – o areal vermelho abrasa e estua”; já em Gonçalves: “O areial infinito é como um rubro oceano”. Na segunda estrofe, Leconte reafirma a imobilidade do cenário: Nulle vie et nul bruit. Tous les lions repus / Dorment au fond de l’antre éloigné de cent lieues (em tradução literal, “nenhuma vida e nenhum barulho. Todos os leões fartos / Dormem no fundo do antro distante cem léguas”); na tradução de Gonçalves “os leões”, no plural, tornam-se somente um leão: “Nem rumor e nem vida... O leão, farto, descansa / No antro afastado, em meio aos matagais infindos”; já na tradução de Olegário permanecem os leões, mas desaparece a menção à ausência de vida: “Nenhum rumor. Somente os leões dormem saciados, / Cem léguas em redor, no antro absconso das feras”. Os protagonistas do poema, os elefantes, aparecem a partir da quarta estrofe. Na quinta estrofe, Leconte descreve o patriarca dos elefantes através de duas comparações: Son corps / Est gercé comme un tronc que le temps ronge et mine / Sa tête est comme un roc (em tradução literal, “seu corpo / É rugoso como um tronco que o tem-

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po rói e mina / Sua cabeça é como uma rocha”). Na tradução de Gonçalves a comparação se mantém somente em relação ao corpo: “Rugosa como um tronco a pele do seu dorso; / É um rochedo a cabeça...” Já na tradução de Olegário desaparece completamente a comparação: “Tem o dorso / Áspero. É um tronco exposto ao tempo que o espezinha. A cabeça é uma rocha”. Uma das estrofes que oferecem maior dificuldade de tradução é a sétima, ao se pretender manter as rimas. Em francês, “marche” e “patriarche” rimam, mas os seus equivalentes em português, “marcha” e “patriarca”, não. A solução encontrada tanto por Gonçalves como por Olegário é rimar “patriarca” com “marca”, opção que encampei em minha tradução. Os versos Ils rêvent en marchant du pays délaissé, / Des forêts de figuiers où s’abrita leur race (em tradução literal, “eles sonham andando com o país abandonado, / Com as florestas de figueiras onde se abriga sua raça”), da nona estrofe, foram traduzidos por Gonçalves como “vai o bando a pensar numa selva distante / – Primeira habitação da primitiva raça”, em que desaparecem as “florestas de figueiras”, traduzidas pela expressão genérica “selva distante”. Já Olegário traduz os mesmos versos da seguinte maneira: “Se eles sonham com a terra encantada onde habita/ Entre figueiras, longe, a sua heróica raça?” Vemos aqui que, diferentemente de Gonçalves, Olegário mantém as “figueiras” presentes no poema de Leconte, mas introduz um elemento inexistente no poema, a idéia de heroísmo associada à raça dos elefantes (“sua heróica raça”). Como um autêntico exercício de tradução, proponho a versão abaixo do poema de Leconte de Lisle, como mais um dos elefantes que costumam visitar a literatura brasileira, seja em traduções, como é o caso dessas duas traduções do poema de Leconte, seja em produções originalmente escritas em português, como o célebre elefante de Drummond e o recentíssimo de Francisco Alvim.

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Les éléphants Le sable rouge est comme une mer sans limite, Et qui flambe, muette, affaissée en son lit. Une ondulation immobile remplit L’horizon aux vapeurs de cuivre où l’homme habite. Nulle vie et nul bruit. Tous les lions repus Dorment au fond de l’antre éloigné de cent lieues, Et la girafe boit dans les fontaines bleues, Là-bas, sous les dattiers des panthères connus. Pas un oiseau ne passe en fouettant de son aile L’air épais, où circule un immense soleil. Parfois quelque boa, chauffé dans son sommeil, Fait onduler son dos dont l’écaille étincelle. Tel l’espace enflammé brûle sous les cieux clairs. Mais, tandis que tout dort aux mornes solitudes, Lés éléphants rugueux, voyageurs lents et rudes Vont au pays natal à travers les déserts. D’un point de l’horizon, comme des masses brunes, Ils viennent, soulevant la poussière, et l’on voit, Pour ne point dévier du chemin le plus droit, Sous leur pied large et sûr crouler au loin les dunes. Celui qui tient la tête est un vieux chef. Son corps Est gercé comme un tronc que le temps ronge et mine Sa tête est comme un roc, et l’arc de son échine Se voûte puissamment à ses moindres efforts. Sans ralentir jamais et sans hâter sa marche, Il guide au but certain ses compagnons poudreux ; Et, creusant par derrière un sillon sablonneux, Les pèlerins massifs suivent leur patriarche. L’oreille en éventail, la trompe entre les dents, Ils cheminent, l’oeil clos. Leur ventre bat et fume, Et leur sueur dans l’air embrasé monte en brume ; Et bourdonnent autour mille insectes ardents. Mais qu’importent la soif et la mouche vorace, Et le soleil cuisant leur dos noir et plissé ? Ils rêvent en marchant du pays délaissé, Des forêts de figuiers où s’abrita leur race. Ils reverront le fleuve échappé des grands monts, Où nage en mugissant l’hippopotame énorme, Où, blanchis par la Lune et projetant leur forme, Ils descendaient pour boire en écrasant les joncs. Aussi, pleins de courage et de lenteur, ils passent Comme une ligne noire, au sable illimité ; Et le désert reprend son immobilité Quand les lourds voyageurs à l’horizon s’effacent. Leconte de Lisle

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Os elefantes Rubra a areia, qual mar a que nada limita, Arde, muda, toda ela em seu leito desfeita. Ondulação imóvel o horizonte enfeita Com vapores de cobre onde o homem habita. Nem vida, nem ruído. Fartos, os leões Dormem no antro, longe cem léguas, ao fundo, E a girafa lá bebe em fonte azul profundo, Tamareiras ao pé, das panteras rincões. Nenhuma ave passa com a asa açoitando O ar espesso, onde imenso e quente sol circula. Às vezes a serpente o liso dorso ondula Com sono e com calor, escamas cintilando. Tal o espaço inflamado queima sob céu claro. Mas, quando tudo dorme em mornas solitudes, Elefantes rugosos viajam lentos, rudes, Indo ao país natal pelo deserto amaro. Dum ponto do horizonte, como massas brunas, Eles vêm e se vê, poeira a levantar, Para da via mais reta não se desviar, Sob seu pé largo e certo ruir longe as dunas. À frente, um velho chefe. Seu corpo é sulcado Como um tronco que o tempo rói e que definha, Como rocha a cabeça, e o arco da espinha Aos mínimos esforços se dobra, pesado. Sem lentidão nem pressa vai, e o ritmo marca, Guiando-os ao fim certo, os amigos poeirentos; Cavando atrás de si uns sulcos areentos, Os grandes peregrinos seguem seu patriarca. Tendo a orelha em leque e a tromba entre os dentes, Seguem, de olhos fechados. Bate o ventre, e esfuma, E seu suor no ar em brasa sobe em bruma; E zumbem ao redor mil insetos ardentes. Mas que importam a mosca voraz e a sede, E o sol cozendo o dorso seu, negro e enrugado? Sonham, ao caminhar, com o país deixado E as selvas de figueiras, de sua raça a sede. Irão rever o rio, de altos montes nascido, Onde o enorme hipopótamo nada mugindo, Onde, brancos da Lua, sua forma exibindo, Desciam a beber, sobre o juncal partido. Eis, plenos de coragem e lentor, que passam, Como uma linha negra, que a areia sem fim orna; E o deserto imóvel de novo se torna, Quando os grandes viajantes longe se esfumaçam. Tradução de Emerson Tin

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Três fragmentos Anacreonte Pedro Marques1 Cada um encontrou nos antigos o que desejava ou precisava, principalmente a si mesmo1 .

Sobre a vida de Anacreonte: informações escassas, menos históricas que anedóticas, inspiradas, desde a Antigüidade, em seus próprios versos. Nasceu em Teos, cidade da Jônia, por volta de 560 a.C. Viveu na tirania de Polícrates, em Samos; depois na de Hiparco, em Atenas. Finalmente, fixou-se em Tessália onde, em 488 a.C., teria morrido aos 85 anos de idade, segundo as lendas, engasgado por sementes de uva ou, ainda, afogado dentro de um barril de vinho. Num tempo de poesia tradicionalmente oral, acredita-se que Anacreonte tenha concebido uma ampla obra composta de odes, epigramas, hinos, canções, elegias, etc., dos quais restam poucos trechos, em parte versando sobre o vinho (Baco; poesia convivial) e o amor (Eros e Afrodite; poesia erótica). Anacreonte é um dos líricos arcaicos que – radicados numa tradição popular ligada aos cultos religiosos, à dança, ao trabalho e, ao mesmo tempo, imbuídos dos valores épicos conformados na Ilíada e na Odisséia de Homero (séc. IX a.C.) – teria modificado, nas palavras de Bruno Snell, a poesia e o pensamento grego acerca da subjetividade humana. Com Arquíloco (séc. VII a.C.) e Safo (cerca de 600 a.C.), teria forjado, em contraposição à narrativa homérica impessoal e de feitos passados, a primeira noção de individualidade da cultura européia, semelhante como a concebemos sobretudo a partir do romantismo. Pela primeira vez, a poesia lírica composta para festividades, nas versões coral e monódica, trazia “a valorização do presente”, “a tendência do poeta para falar de si mesmo”. Difícil, hoje, acreditar na provável inexistência de uma tradição lírica tão antiga quanto os poemas homéricos, mas Snell, ainda assim, sustenta que a lírica grega tenha nascido por volta da época de Arquíloco, Safo e Anacreonte. “Conscientes da personalidade”, algo então desconhecido na Grécia, romperiam com a concepção de mundo e de homem manifesta em Homero, cantor de uma sociedade extremamente belicosa e coletiva.1 Produto de uma vigorosa tradição muito mais que de um talento individual, a poesia do Anacreonte histórico desata, propriamente, uma linhagem no ocidente. Apenas fragmentos dos versos do poeta original sobreviveram, 1 Pedro Marques é doutorando em Teoria e História Literária – IEL/ Unicamp. 1 SCHLEGEL. Friedrich. Conversa sobre a poesia e outros fragmentos. Tradução, prefácio e notas Victor-Pierre Stirnimann. São Paulo: Iluminuras, 1995, p. 103.

mas, ao longo do tempo, a arte e a figura de Anacreonte transformaram-se em tópicas literárias: sua suposta inclinação para o vinho, banquetes, embriaguez e rapazes; o arranco para se contrapor aos valores épicos de Homero, enfim, toda uma tradição não necessariamente fidedigna à obra primordial, tampouco aos fatos históricos do sexto século anterior à era cristã. Uma memória resguardada e transfigurada, em grego, muito graças a admiradores e imitadores dos períodos clássico (até 323 a.C.), helenístico ou alexandrino (323-146 a.C.), grecoromano (146 a.C.-330 d.C.) e até bizantino (330-1453 d.C.). No renascimento, quando se redescobre a poesia efervescente em vários momentos da Antigüidade, há um novo impulso da tradição anacreôntica desdobrada, desde então, por quase todas as literaturas em línguas modernas até o século XIX e XX. Poemas de épocas diferentes, inseridos na Antologia grega ou palatina, auxiliam a compreender o imaginário que se sedimentou acerca da poesia e do indivíduo Anacreonte. As traduções são de José Paulo Paes2 . O primeiro poema é atribuído a Simonides (556-467 a.C.); o segundo, a Teócrito (310-250 a.C.); o último, a Juliano, prefeito do Egito (por volta de 530-592 d.C.).

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Videira, mãe da uva e do vinho que a tudo apaziguas, possa a teia de tuas gavinhas tortuosas florescer, exuberante, no chão fino e coroar a Estela da tumba do teano Anacreonte. para que ele, festeiro e ébrio do vinho a que é tão dado, tangendo sua lira de amante de rapazes noite afora, sob a terra, tenha acima da cabeça os galhos com o esplêndido racimo maduro, e que possa umedecê-los sempre o sereno da noite que sua boca de ancião tão doce respirava. * Olha para essa estátua, ó forasteiro, atentamente e diz, de regresso à pátria: “Eu vi em Teos a estátua de Anacreonte, que entre os antigos foi excelente aedo”. Ah, e do seu pendor por rapazes não te esqueças, para dizer o homem todo. * A. Morreste de beber muito, Anacreonte. B. Deliciei-me: tu, que não, virás também para o Hades. Do período romano, agora escrito originalmente em latim, o dístico de Catulo (87-54 a.C.) que, segundo P. S. de Vasconcellos, retoma a poesia amorosa de Anacreonte: Odeio e amo. Talvez perguntes porque faço isso. Não sei, mas sinto que acontece e me torturo3 . Em 1554, o editor francês Henri Estienne traz a lume extensa série de odes atribuída a Anacreonte de Teos. A repercussão estende-se até os dias de hoje. Entre os filólogos e estudiosos da cultura grega, nunca houve concordância sobre a autenticidade dos poemas, de maneira que se criou, nas palavras de M. B. Sánchez4 , uma “questão anacreôntica”. Difícil precisar quais das odes são remanescentes da vasta produção do séc. VI a.C. Provável que as Odes Anecreônticas publicadas por Estienne, procedentes do Codex Palatinus 23 da Antologia grega ou palatina, resultem de uma produção coletiva, poetas anônimos de tempos diversos assumiram a máscara de Anacreonte. Um dos principais indícios disso: a língua grega dos fragmentos do Anacreonte histórico é o dialeto jônico, enquanto considerável parte das Anacreônticas manifesta modalidades do koiné, grego do período helenístico e romano. Simultaneamente aos debates sobre autenticidade, a coleção de 1554 suscitou entusiastas em todas as literaturas modernas, do renascimento ao barroco e neoclassicismo, passando pelo romantismo e outras tendências subseqüentes. Foram muitos os que lograram imitar e traduzir o lírico de Teos valendo-se das Anacreônticas, edificando, assim, um novo momento da linhagem. Na Espanha, Quevedo, Esteban Manuel de Villegas e González de Tejada. Na península itálica, Foscolo e Leopardi. França, Ronsard e La Fontaine. Alemanha, Gleim e Goethe. Inglaterra, R. Herrick e T. Moore. Na Grécia moderna, Atanásio Cristópulo.

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Em português, um número razoável de poetas inscreveuse na tradição anacreôntica: Bocage, com o soneto “Os suaves eflúvios, que respira”; Tomás Antonio Gonzaga, na lira 29, da Primeira Parte de Marília de Dirceu; Gonçalves Dias, “A minha musa”; Machado de Assis, “Uma Ode de Anacreonte”; Alberto de Oliveira, “Vaso Grego”; Olavo Bilac, “Medalha Antiga”; Magalhães de Azeredo, “Ode à Grécia” e, finalmente, Olegário Marianno que, com a publicação de Últimas Cigarras (1915)5 , escreveu todo um livro exatamente a partir da ode anacreôntica traduzida a seguir. Apenas exemplos que instigam mapear as aparições anacreônticas na poesia em língua portuguesa. As Odes Anacreônticas ganharam versões para a língua portuguesa. No XIX, há pelo menos duas conhecidas, que hoje passariam tranqüilamente por paráfrases. As traduções dos portugueses Antonio Feliciano de Castilho, em Amor e melancolia (1828), e Almeida Garrett em Flores sem fruto (1845) e Odes Anacreônticas (1905; publicação póstuma). Do século XX, 1948, data a única tradução praticamente completa e sistemática, em edição bilíngüe, efetivada pelo brasileiro Almeida Cousin. A crítica costuma dispor em seqüência os dois primeiros fragmentos de Anacreonte traduzidos, que trazem claramente a atmosfera dos banquetes. Em seguida, um dístico que acaba promovendo uma definição decisiva para a dualidade de Eros. Por fim, uma ode anacreôntica, a 34 Preisendanz, em que a caracterização da cigarra ensejou, muitas vezes, a leitura do inseto como alegoria do sábio estóico. Embora o topos da cigarra, por assim dizer, não figure nos fragmentos que restaram do Anacreonte histórico, devia ele ser tradicional na Grécia arcaica6 :

1 SNELL, Bruno. A Cultura grega e as origens do pensamento europeu. Tradução de Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 2001. Refiro-me principalmente aos capítulos “O Homem na concepção de Homero” e “O Despontar da individualidade na lírica grega arcaica”. 2 Ver Poemas da Antologia grega ou palatina. Edição Bilíngüe. Seleção, tradução, notas e posfácio de José Paulo Paes. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 3 Catulo. O Cancioneiro de Lésbia. Edição Bilíngüe. Tradução e notas de Paulo Sérgio Vasconcellos. São Paulo: Hucitec, 1991, p. 21. O fragmento de Anacreonte, com o qual dialogaria Catulo, é assim citado pelo estudioso: “Amo-te e ao mesmo tempo não te amo, / sou louco e não sou louco...”. 4 Anacreónticas. Edición Bilíngüe. Traducción, notas e introducción de Máximo Brioso Sánches. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1981. O extenso estudo introdutório de Sánches, além de oferecer preciosas informações históricas, comenta o estilo e a “mentalidade” das Anacreônticas. Organiza, ainda, uma farta bibliografia específica, considera as traduções para vários idiomas e menciona o impacto da “odes” para as literaturas modernas. 5 Ver MARIANNO, Olegário. “As Últimas cigarras”. In Toda uma vida de poesia – poesias completas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1957. 6 O poeta Alceu viveu no final do século VII a.C., e, com Safo e Anacreonte, representa a lírica monódica na Grécia antiga. É dele um poema em que o tema da cigarra, associado inclusive ao verão e à fertilidade, revela-se mais enraizado na tradição lírica grega do que fruto do engenho de um único poeta: Humedece o vinho a garganta, que o astro / já voltou. É penosa / a estação e tudo / esmorece com o calor. Entre / a folhagem, docemente / a cigarra canta... Floresce / o cardo. É a hora / em que as mulheres se tornam / mais fogosas e mais fracos / os homens, pois que Sírio / as cabeças abrasa e os joelhos (347 L-P). Ver MARTINS, Albano. O essencial de Alceu e Safo. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1986, p. 20.

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Athen.

10. 427ab (ii 428s. Kaibel)

ge d¯ f¡r’ ²mÜn Î paÝ kel¡bhn, ÷kvw mustin propÛv, tŒ m¢n d¢k’ ¤gx¡aw ìdatow, tŒ p¡nte d’ oànou ku‹youw Éw ŽnubrÛstvw ŽnŒ dhïte bassar®sv.

.................................................... ge dhïte mhk¡t’ aìtv pat‹gÄ te kŽlalhtÒ

Skuyik¯n pñsin par’ oànÄ meletÇmen,

ŽllŒ kaloÝw êpopÛnontew ¤n ìmnoiw.

Heph. Ench. 12. 4 (p. 39 Consbruch) meg‹lÄ dhït¡ m’ …Ervw ¦kocen Ëste xalkeçw pel¡kei, xeimerÛú d’ ¦lousen ¤n xar‹drú.

ΑΛΛΟ.

ΕΙΣ ΤΕΤΤΙΓΑ Ω Ι∆ΑΡΙΟΝ MakarÛzom¡n se, t¡ttij,

÷te dendr¡vn ¤p’ krvn ôlÛghn drñson pepvkÆw Basileçw ÷pvw ŽeÛdeiw, sŒ g‹r ¤sti kainŒ tŒnta, õpñsa bl¡peiw ¤n ŽgroÝw k’ õpñsa f¡rousin ðlai. sç d¢ filÛa gevrgÇn, Œpò mhdenñw ti bl‹ptvn: sç d¢ tÛmiow brotoÝsin, y¡reow glukçw prof®thw. fil¡ousi m¡n se Moèsai, fil¡ei d¢ FoÝbow aétñw, ligur¯n d’ ¦dvken oàmhn, sof¡, ghgen°, fÛlupne, Žpay¡w, Žnaimñsarke, sxedòn eä yeoÝw ÷moiow. Anacreonte

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1 Traz uma cratera, escravo, quero beber grandes tragos. Mistura nela dez partes de água com cinco de vinho, que não quero me entregar com ardor demasiado a Baco. .................................................... Não queremos, como Citas, nos dar ao vinho com gritos, e, sim, compassadamente, ao som de belas canções.

2 De novo, com seu pesado martelo, Eros me golpeava como um ferreiro, depois me lavava na chuva fria1 .

Outra.

Canção à Cigarra.

É tão feliz, ó cigarra, quando na copa das árvores bebendo as gotas do orvalho rompe a cantar como um rei. É seu tudo quanto vê: o campo todo, a floresta. Tem o amor do lavrador a quem jamais causou mal. É honrada pelos mortais ao anunciar o verão. Sempre amada pelas Musas e até pelo próprio Febo que lhe deu a voz sonora. Livre da dor, imortal, sábia, cantora e terrígena. Carne onde não corre sangue – só a um deus é comparável1 . Tradução de Pedro Marques 1 Traduções confrontadas com as versões em espanhol de Agustín de Esclasans (in Bucólicos y líricos griegos. Buenos Aires: Librería “El Ateneo” Editorial, 1954.), em inglês de David A. Campbell (in Greek Lyric II. London-Cambridge (Massachusetts): William Heinemann Ltd., 1988.) e com trechos mencionados na edição brasileira do livro de Bruno Snell citado na nota 3. 1 Versão cotejada com as traduções em português de Almeida Cousin (Odes de Anacreonte. Edição bilíngüe. Introdução, tradução e notas de Almeida Cousin. Rio de Janeiro: Achiamé, 1983.); em espanhol de Máximo Brioso Sánchez, citada na nota 6, e José María Díaz Regañón (Anacreónticas. Bilíngüe. Traducción, notas e introducción de José María Díaz Regañón. Madrid: Ediciones Clásicas, 1990); em inglês de David A. Campbell, ver nota anterior; em francês de Leconte de Lisle (“Odes Anacréontiques”. In Hésiode. Traduction par Leconte de Lisle. Paris: Librairie Alphonse Lemerre, s/d.) que também, na sua coletânea Poèmes antiques, imitou a Ode 34 no poema “La Cigale”.

A Revista de Tradução Modelo 19 orgulhosamente apresenta o

Almanaque Modelo 19 Volume I – Línguas Clássicas Latim, Grego e Sânscrito Um excelente panorama com o melhor da literatura da Antigüidade em 45 artigos e 170 páginas, contendo de poemas a peças de teatro, de inscrições oficiais a textos religiosos, todos com seus originais nas respectivas línguas clássicas – latim, grego e sânscrito – traduzidos por especialistas e estudiosos da cultura original da civilização ocidental e publicados nos dez primeiros números da Revista de Tradução Modelo 19. Para receber o seu volume, entre em contato pelo email: [email protected] A Revista de Tradução Modelo 19 mais uma vez trazendo até o leitor brasileiro o melhor da literatura estrangeira de todos os tempos, traduzida para a língua portuguesa.

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Seis poemas Leonor Silvestri Jorge Pinedo1 Poemario bilingüe, Nugae pone en acto estético el presupuesto de "la intraducibilidad de la forma poética", traduciéndola. Más aún, traduciéndose a sí misma, como pocos los hicieron de su lengua materna a su lengua adoptiva: Conrad del polaco al inglés, así como Nabokov del ruso; Beckett del inglés al francés. Silvestri se traduce a sí misma en un ejercicio que, lejos de agitar las palabras a pura pérdida, puja por "el surgimiento de otro texto, pegado por su costura a la hoja precedente como un hermano siamés, igual pero distinto... un texto otro que a su vez nutrirá y reformulará el texto de partida". Menuda apuesta que deja en suspenso la potencia lírica de cada uno de los dieciocho poemas que nutren este texto experimental, a favor de un confeso relevamiento "de la ambigüedad del Yo". Otro en el que la poeta se define ("soy la trama de todas mis lecturas y relecturas/ [¿chismes?]/ que hacen el texto / mi tejido / mi cuerpo / mi historia") o, como en Sabrina, se confiesa por partida doble, primero en una púdica lengua materna: "En el colegio / Vos eras la vida", en la página lindante, mediante una réplica elegida: "At school / You were my life" (el destacado es nuestro). Sutiles diferencias, prolijas filigranas que trazan ese pasaje no sólo de la lengua de partida a la lengua de llegada, sino también de la erudición académica (la autora es catedrática en Lenguas Clásicas, traductora y especialista en Catulo) a la poesía, y viceversa, en tanto y en cuanto ambas surgen al final del camino como fundante y efecto, respectivamente, una en función de la otra. Recorrido multilingüístico, lingual, que requiere del habla a fin de zanjar el efecto de pérdida y ganancia: "Putito de baño de Constitución/ Polino Guido Süller Gastón Trezeguet /Pezuña de machito cabrita...", logrado en "Faggot from a train station's public bathroom/ Michael Jackson / Buffalo Bill innocent lamb/ The three Bee Gees all in one/ Cleft Hoff from a male she-faun...". Mutatis mutandis, traducir (como besar) acaso sea (también) eso: salvar distancias.

"NUGAE, Teoria de la Traducción" de Leonor Silvestri, Editorial Simurg. Buenos Aires. 2004. Leonor Silvestri2. Largo o corto, el sendero que va de una lengua a otra resulta -indispensable, necesariamente- plagado de esos equívocos capaces tanto de agregar como de hurtar sentidos, destinos, escenas. Si es que existe una verdadera teoría de la traducción debería, si de poesía se trata, subsumirse en una teoría del beso (del chupón) nada más que por el argumento que antecede. Podrá seguir discutiéndose si la poesía es siempre de amor; más aún, cabe que semejante afirmación se ponga en duda; no obstante quien hurgue en las entrañas de sus versos hallará más tarde o más temprano alguna demanda de amor. Que no es lo mismo. Es (parece ser) ese repentino fenómeno de llamada al semejante el que se produce en lo que va de una lengua a otra, dentro de aquel espacio vacío que el silencio se torna infierno y el poeta puebla. Doble acrobacia que traduce fervores, vibraciones, imágenes, significantes, como se llamen, al negro sobre blanco. A ese mullido abismo se zambulle Leonor Silvestri (Buenos Aires, 1976) con Nugae, voz latina que la autora anuncia como "frivolidades, versos ligeros, niñerías, tonterías, bagatelas" (también "impertinente", "infantil", "engañoso", "chistoso") y que, he aquí el desafío del equívoco, quince páginas más adelante versifica como "mis versitos" a los que, a su vez, traduce como "My silly rhymes" (literalmente "mis tontas rimas").

1

Jorge Pinedo é jornalista. Texto publicado originalmente em Radar Libros, Página 12 http://pagina12.feedback.net.ar/suplementos/libros/ vernota. 2 Poemas y traducción Leonor Silvestri, Licenciada en Letras Clásicas por la Universidad de Buenos Aires, Argentina, além de Traductora, Correctora, Escritora e Profesora, Especialista en Inglés, Español, Latín y Griego Clásico.

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Mamá dijo Sacá la basura Tomá el dinero Comprá el pan Traeme el vuelto Barré la alfombra Sacá al perro Lleváme a pasear Besáme la oreja Olvidáte de los chicos Dejáme sola Agarrá mis manos Atáme fuerte para que no me escape Tradução de Leonor Silvestri

Lili, la dentista Interacción morfológica. Factores oclusales. Funciones relativas. El desarrollo parece sepultarse en el hueso. Asociación inferior copulativa. Formando una cripta esférica comunicante. Mordida abierta anterior al esqueleto. Una larga ventana da fácil acceso. El lado medial del plano. Posiciones cuspidales e intercuspidales retraídas. Se deslizan más. Cruzadas linguales. Cinco o más dientes perdidos posteriores Cinco figuras unilaterales. Cambios óseos de ligamentos dentro de la articulación. Temporormandibular. La corriente literatura indica que: durante la adolescencia generalmente no se incre mente no se decae las chances de desarrollo. Particular mecanismo. Extracción de protocolos. Gnathologicamente especifica no resulta en signos o síntomas. Los signos y los síntomas ocurren en individuos sanos. Particularmente durante la adolescencia. Los Desordenes, fenómenos que ocurren naturalmente. Tradução de Leonor Silvestri

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Mamma said Put the rubbish out Here’s the money Buy some bread Bring the change back Sweep the carpet Take the dog for a walk Take me out Kiss me in the ear Forget about the guys Leave me alone Hold my hands Tie me tightly So I won’t run away Leonor Silvestri

Lily, the dentist Morphological Interaction Occlusive Factors. Relative Functions Development seems to bury in the bone. Inferior Copulative Association Shaping a communicative spherical tomb Anterior Open bite before the skull. A long window provides with an easy access The medial side of the map Cuspidal and intercuspidal Positions retracted They slip more. Crossed tongues. Five or more posterior teeth lost Five unilateral figures. Bone changes of the ligaments inside the joint. Temporormandibular. The current literature indicates that: In the adolescence usually do not increase mind do not decay the chances of development. Particular device. Protocol extractions. Gnathologically Specific there are no signs or symptoms. The signs and the symptoms happen in healthy individuals. Particularly In the adolescence Disorders, phenomena that happen naturally. Leonor Silvestri

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Karina Quisiera saber quién quién es esa mujer esa Que usa mi ropa Que usa mi cuerpo Que habla por mi boca ¿Es de verdad? ¿Es para siempre? ¿O sólo aparece cuando Vos estás? ¿Estás? Siento que no soy yo él que habla Tradução de Leonor Silvestri

Sabrina Las medias blancas hasta la rodilla El lazo rojo Los labios húmedos de brillo Las sonrisas metálicas Los dientes fijos de aparatos En el colegio Vos eras la vida Te anoto en mi agenda con un marcador rosa Nadie lo sabe Es nuestro secreto De chica vos me gustabas Un beso mínimo Un roce imperceptible Todos están enfrente de mí Y tus ojos se pegan a los míos Nadie lo sabe Yo ya salí Era tan así Hasta en los recreos Tradução de Leonor Silvestri

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Karina I’d like to know who who’s that woman that one who puts on my clothes who wears my body who speaks through my mouth Is she real? Is she forever? or she just comes up when you are here? Are you there? I feel that I’m not the man who’s speaking Leonor Silvestri

Sabrina White socks up to the knee The red sash Glitter glossy lips Metallic smiles Teeth bracketed with braces At school You were my life I put you down in my diary with a pink marker Nobody knows It’s our secret When I was a girl I liked you A tinny kiss An imperceptible rubbing Everybody is in front of me And your eyes are stuck into mine Nobody knows I’ve already come out That’s the way it was Even during the breaks Leonor Silvestri

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Omar Baa Baa Ovejita negra Pequeño geniecito satánico IQ test fallado Fronterizo Enfermizo Bastardo Baa Baa Pequeña garrita de mono atrofiada Pata de paquidermo manco Putito de baño de constitución Polino Guido Süller Gaston Terzeguet Pezuña de machito cabrita Baa Baa Pequeña geisha japonesita Estúpido invertido oriental Ozito Zezeozo zin pelo Peluche maléfico depilado Cara de Pelela cagado Ancas de rana podrida Baa Baa Buu Buu Bua Bua Bua Tradução de Leonor Silvestri

Alejandra Alejandra. Alejandra Lalela Lalela Tu falta de seso Se suple con exceso De dientes De tetas pero pero pero Tu piel está ajada Tu boca no devora Sin simpatía la vieja sin memoria Tradução de Leonor Silvestri

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Omar Baa Baa Little black sheep Little satanic genie IQ test failed Border line Sickly Bastard Baa Baa Little monkey claw atrophied One leg Pachyderm Faggot from a train station’s public bathroom Michel Jackon Buffalo Bill innocent lamb The three Bee Gees all in one Cleft Hoof from a male she-faun Baa Baa Little Japanese Geisha Stupid Oriental Wicked Pervert Thilly Lithpy Thnake Hairleth Waxed evil teddy bear Potty shitted face Frog’s rotten haunches Baa Baa Boo Boo Boo-hoo Boo-hoo Boo-hoo Leonor Silvestri

Alejandra Alejandra. Alejandra Lilysillylilysillylilysilly Your lack of brain Is made up for With an excess of Teeth Tits but but but your skin is frayed your mouth doesn’t devour without charm the empty-headed old bitch Leonor Silvestri

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Sátira I, 9 Horácio Sidney Calheiros de Lima1

O primeiro livro dos Sermones de Horácio – este é o título que aparece nos manuscritos – veio à luz entre 35 e 33 a. C.. Formam-no um conjunto de dez poemas, compostos em hexâmetros1 , que tratam dos mais variados temas. A variedade, tanto de tema quanto de estilo, aliada a um certo traço de agressividade e a uma presença marcante de elementos da vida cotidiana do poeta (não necessariamente autobiográficos)2 constituem as características que inserem essa obra do poeta de Venosa no gênero de composição literária inaugurado por Lucílio na segunda metade do século II a. C. Na verdade, chegaram-nos notícias de outros autores romanos que escreveram sátira antes de Lucílio. Ênio, por exemplo, célebre por sua epopéia, os Annales, e por algumas tragédias, teria escrito uma obra intitulada Saturae, constituída por poemas escritos em uma grande variedade de metros, sobre temas diversos e, ao que parece, sobre temas tomados da vida cotidiana. Quando se busca, em outras formas de manifestação artística, a origem desse gênero de composição escrita, chega-se a uma antiga manifestação dramática, genuinamente italiana, que remonta à época anterior à introdução do teatro grego na Itália, por parte de Lívio Andronico. Nesse drama arcaico, atores trocariam falas entre si, utilizando-se de ritmos variados, e com espírito voltado para a zombaria e o escarnecimento (cf. Martin & Gaillard, 1990, p. 386). Ao que parece, essa forma de teatro não sobreviveu de maneira autônoma após a importação das formas gregas de arte cênica, mas exerceria forte influência na comédia de autores como Plauto, em que é notável, dentre outros elementos, a variedade rítmica. O modelo de Horácio é, contudo, Lucílio. Isso o próprio poeta declara mais de uma vez em seus Sermones. No poema que abre o segundo livro, por exemplo, em que Horácio faz algumas reflexões sobre as dez sátiras que publicara alguns anos antes, o eu-poético, travando um divertido diálogo com o jurisconsulto Trebácio, diz: 1

Sidney Calheiros de Lima é professor de Língua e Literatura Latina da FFLCH/USP e doutorando em Lingüística, área Letras-Clássicas, pelo IEL/UNICAMP. e-mail: [email protected]

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“(...) A mim agrada encerrar as palavras em pés Ao modo de Lucílio, que vale mais que nós dois Ele, assim como a companheiros fiéis, outrora confiava Aos livros seus segredos, nem se tinha mau êxito, Corria para outro caminho, nem se bom; com o que Franqueia-se, pintada assim como um painel votivo, Toda a vida do velho.”3 Se seguia Lucílio no que diz respeito ao ritmo empregado nos versos e à incorporação de elementos da vida cotidiana, Horácio diz se afastar do estilo pouco esmerado do antigo autor4 . Ademais, parece evitar os ataques a pessoas eminentes da vida pública romana, algo a que Lucílio, representante da aristocracia, podia se permitir, mas que Horácio, um liberto, não. Este, por sua vez, prefere representar personagens caricatas, muitas vezes anônimas e que apresentam os vícios mais comuns do gênero humano. Dessas personagens Horácio faz ressaltar os aspectos cômicos, ridículos e, a partir desses elementos e do riso por eles provocados, constrói a critica ao modo de vida de toda uma sociedade sem a grauitas usual em outros discursos morais. Esse traço das sátiras horacianas, de criticar os costumes das pessoas e de, algumas vezes, discutir sob a forma de um diálogo familiar o melhor caminho a seguir, a melhor maneira de agir, aproxima-as de um gênero literário difundido entre os gregos pelos filósofos simpáticos às idéias cínicas, a diatribe. De fato, o próprio título que aparece nos manuscritos, Sermones, ou “Diálogos”, é um índice desta conexão. A nona sátira do livro primeiro, cuja tradução apresentamos a seguir, é, em nossa opinião, uma das mais joviais peças dessa obra de Horácio. O eu-poético, ao caminhar pelas ruas de Roma, passeando, vê-se a mercê de um sujeito inconveniente, trocando em miúdos, um chato, que se julga um grande poeta e que o cerca por todos os lados, interessado em se aproximar de Mecenas, célebre patrono dos poetas do período augustano. Da simples situação cotidiana, corriqueira, Horácio apresenta ao leitor, de maneira sutil, leve, insinuando-se na narrativa, discussões sobre a arte da poesia (tema freqüente

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nas suas sátiras) e sobre as relações humanas, muitas vezes, como aqui, baseadas no interesse. Contrapõe, enfim, a atitude do sujeito que quer se aproximar do círculo de artistas por meio de troca de favores e coisas assim, à amizade, valor tão caro às convicções do epicurista Horácio, e que devia imperar nesse círculo de poetas ligados a Mecenas, ao menos como é aqui descrito pelo poeta. Bibliografia CONTE, G. B. Latin literature, a history. Translated by Joseph B. Solodow. London: Johns Hopkins University Press, 1994. HORACE. Oevres. Avec une étude biogaphique et littéraire par P. Lessis et P. Lejay. Paris: Hachette, 1911. HORACE. Satires. Texte établi et traduit par François Villeneuve. Paris, Les Belles Lettres, 1989. ORAZIO. Le satire . Commento e note di Remigio Sabbadini. Torino: Loescher, 1981. GRIMAL, P. The dictionary of classical mythology. Translated by A. R. Maxwell-Hyslop. Oxford: Butler and Tanner, 1988. MARTIN, R. & GAILLARD, J. Les genres littéraires à Rome. Paris: Nathan, 1990. 1 Em 30 a. C, mais oito poemas seriam publicados, formando assim o segundo livro que possuímos. 2 Aparecem, muitas vezes, personagens históricas, amigos do poeta, freqüentadores do círculo de Mecenas, mas, é evidente, os acontecimentos não são necessariamente históricos. Ainda que haja ali um ou outro fato da vida de Horácio (o que, de resto, não podemos provar), isso é pouco importante. O que é relevante é a maneira como Horácio através da introdução desses elementos em sua poesia, sobretudo com o propósito de ridicularizar certos tipos humanos, insere-se na tradição da literatura satírica, cujo criador é, em sua concepção, Lucílio, que, como vemos abaixo (Serm. II, 1, 2834) já se valia desse expediente. 3 (...) Me pedibus delectat claudere uerba / Lucili ritu, nostrum melioris utroque. / Ille uelut fidis arcana sodalibus olim / credebat libris, neque se male cesserat, usquam / decurrens alio, neque si bene; quo fit ut omnis / uotiua pateat ueluti descripta tabella / uita senis(...) Serm. II, 1, 28-34. 4 Cf. Serm. I, 10, 56-71.

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Sermonum I IX Ibam forte uia sacra, sicut meus est mos nescio quid meditans nugarum, totus in illis. Accurrit quidam notus mihi nomine tantum, arreptaque manu: “Quid agis, dulcissime rerum?” “Suauiter, ut nunc est,” inquam, “et cupio omnia quae uis.” 5 Cum adsectaretur: “Numquid uis?” occupo. At ille: “Noris nos” inquit, “docti sumus.” Hic ego: “Pluris hoc” inquam “mihi eris.” Misere discedere quaerens ire modo ocius, interdum consistere, in aurem dicere nescio quid puero, cum sudor ad imos 10 manaret talos. “O te, Bolane, cerebri felicem” aiebam tacitus, cum quidlibet ille garriret, uicos, urbem laudaret. Vt illi nil respondebam: “Misere cupis” inquit “abire; iamdudum uideo; sed nil agis; usque tenebo; 15 persequar. Hinc quo nunc iter est tibi?” “Nil opus est te circumagi; quendam uolo uisere non tibi notum; trans Tiberim longe cubat is prope Caesaris hortos.” “Nil habeo quod agam et non sum piger: usque sequar te.” Demitto auriculas, ut iniquae mentis asellus, 20 cum grauius dorso subiit onus. Incipit ille: “Si bene me noui, non Viscum pluris amicum, non Varium facies; nam quis me scribere pluris aut citius possit uersus? quis membra mouere mollius? inuideat quod et Hermogenes, ego canto.” 25 Interpellandi locus hic erat “est tibi mater, cognati, quis te saluo est opus?” “Haud mihi quisquam; omnis conposui.” Felices! nunc ego resto. Confice; namque instat fatum mihi triste, Sabella quod puero cecinit diuina mota anus urna: 30 “Hunc neque dira uenena nec hosticus auferet ensis nec laterum dolor aut tussis nec tarda podagra; garrulus hunc quando consumet cumque; loquaces, si sapiat, uitet, simul atque adoleuerit aetas.” Ventum erat ad Vestae, quarta iam parte diei 35 praeterita, et casu tum respondere uadato debebat; quod ni fecisset, perdere litem. “Si me amas,” inquit, “paulum hic ades.” “inteream si aut ualeo stare aut noui ciuilia iura; et propero quo scis.” “Dubius sum quid faciam”, inquit, 40 “tene relinquam an rem.” “Me, sodes.” “Non faciam” ille, et praecedere coepit; ego, ut contendere durum cum uictore, sequor. “Maecenas quomodo tecum?” 1 A Via Sacra, a mais antiga rua de Roma, costeava o monte Palatino e passava pelo fórum. Chamavase “sagrada”, provavelmente, pela quantidade de templos que a margeavam. 2 O trecho é de difícil tradução, pois nele ocorrem fórmulas idiossincráticas de cortesia (cf. Sabbadini, 1981, p. 62). Perguntado sobre seu estado, a personagem Horácio responde suauiter, literalmente: “docemente, agradavelmente”. Em contrapartida, faz votos de que o outro também passe bem: et cupio omnia quae uis, literalmente: “e desejo (que alcances) tudo que queres”. 3 Sabbadini (1981, p.62) afirma que é uma fórmula gentil de despedida, algo como “se posso te servir, diz apenas”. Se sua interpretação estiver correta, o que é provável, o eu-poético, mesmo mantendo a compostura, já dá sinais de que quer ir-se. 4 Ao que parece, cerebrum faz menção ao caráter inflamado de Bolano que, de resto, é um desconhecido. Alguns comentadores (cf. Sabbadini, 1981, p. 62 e Villeneuve, 1989, p. 96) deduzem o significado do termo, valendo-se da ocorrência de cerebrosus na sátira I, 5, onde o sentido é de “inflamado, cabeça quente”. O eu-poético invejaria o tal Bolano, que, em tal situação, já teria despachado o sujeito. 5 Esses jardins, que se situavam no monte Janículo, haviam sido um presente de Júlio César ao povo (cf. Suet. Caes. 83). De acordo com Villeneuve (1989, p. 97), estariam a uma hora de caminhada, mais ou menos, da posição em que as personagens se encontram aqui.

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Sátira Nona Passeava eu pela Via Sagrada, como é hábito meu,1 Não sei em que nugas refletindo, nelas absorto. Abordou-me, de repente, alguém conhecido só de nome. Arebatou-me a mão: “Como estás, ó querido mais que tudo?” “Muito bem, por ora”, eu disse, “e pra ti desejo o mesmo” 2 . Como me acompanhasse, antecipei-me: “e então, algo mais?”3 Disse ele: “Acho que me conheces, sou letrado.” “Mais ainda Te estimo agora” disse eu, tentando partir a todo custo, Ora a ir mais depressa, a parar às vezes, a dizer não sei o quê Ao ouvido do escravinho, escorrendo de suor Até os pés. “Ah, Bolano, és feliz por tua cabeça!” 4 , dizia em silêncio, Enquanto ele tagarelava qualquer coisa e a cidade e bairros louvava. Já que nada lhe respondia, ele disse: “a todo custo queres ir-te: Já notei faz tempo, mas nada feito, não te largarei, Eu te acompanho. Para onde segues caminho agora?” “Não é necessário dares esta volta, vou visitar alguém que não conheces. Além do Tibre, está de cama ele, longe, junto aos Jardins de César.” 5 “Nada tenho a fazer e não sou preguiçoso, vou contigo.” Abaixo as orelhas como um burrinho que a contragosto toma Sobre o dorso um muito oneroso fardo. E ele começa: “Se bem me conheço, não estimarás mais por amigo nem Visco Nem Vário6 , pois quem pode mais versos escrever do que eu E mais ligeiro?7 Quem pode mover-se na dança com mais graça? Meu canto, até Hermógenes o invejaria!” 8 Era a hora de interrompê-lo: “Tu tens uma mãe, parentes, Que de tua integridade dependam?”9 “Não tenho ninguém, A todos sepultei.” Bem-aventurados! Já eu, resto: Acaba comigo. Pois paira sobre mim um fado sombrio, que Sabela bruxa10 , agitada a urna divina, cantou pra mim quando menino: “A este não levarão venenos terríveis nem de inimigo a espada Nem dor nos flancos ou tosse nem a morosa gota; Um tagarela o arruinará algum dia, os faladores, se for Sensato, evitará logo que alcançar idade adulta.” Chegara-se ao templo de Vesta11 , decorrida já do dia A quarta parte12 , e, por acaso, intimado ele sob caução, Devia responder, se não o fizesse, perderia o processo.13 “Se me tens apreço”, disse ele, “ajuda-me um pouco aqui.” Que eu morra, se posso demorar-me de pé ou se sei de direito civil; 14 Além disso, apresso-me para onde sabes.” “Estou dividido, que fazer?”, Disse, “a ti abandono ou à causa?” “A mim, por favor.” E ele: “Não o farei.” E começou a se adiantar. Quanto a mim, já que é duro pelejar Com um vencedor, vou atrás. Então ele retomou. “E Mecenas? Como está contigo?15 Um homem de poucos amigos e muito bom senso, 6 Visco, segundo filho de Víbio Visco, e Vário eram poetas. Amigos de Horácio e de Virgílio, eram íntimos também de Mecenas (cf. I, 5, 40 e I, 10, 83). 7 Tais qualidades não são, é evidente, admiradas pelo eu-poético (cf. I, 4, 14). A falta de cuidado na composição, que, na maioria das vezes, é conseqüência de uma produção de versos em grande quantidade, é um dos defeitos que a persona satírica de Horácio aponta em seu predecessor Lucílio (cf. I, 10, 56-61). Poetas seguidores do gosto Alexnadrino, como Horácio, dão valor ao labor limae, ao trabalho diligente sobre cada verso composto. Veja-se o exemplo de Catulo que, em seu poema 95, louva o poema de seu amigo Cina, que teria sido composto em nove anos e que, além disso, não devia ter grande extensão. 8 Hermógenes Tigélio, famoso por seu canto, é citado em outras sátiras de Horácio (cf. I, 3, 128; I, 4, 72; I, 10, 18). Seu reconhecimento popular contrasta com o desdém que a personagem Horácio nutre por ele. Depois de o sujeito ter-se ufanado tanto e de ter tecido um elogio a esse poeta medíocre, o eu-poético não pôde mais se conter. 9 Com todas estas qualidades, interpreta Sabbadini (1981, p. 63), ele poderia tornar-se sujeito à inveja dos deuses, que poderiam destruí-lo. 10 De etnia sabela, sabina.

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hinc repetit. “paucorum hominum et mentis bene sanae; nemo dexterius fortuna est usus. Haberes magnum adiutorem, posset qui ferre secundas, hunc hominem uelles si tradere; dispeream, ni summosses omnis.” “Non isto uiuimus illic quo tu rere modo; domus hac nec purior ulla est nec magis his aliena malis; nil mi officit, inquam, ditior hic aut est quia doctior; est locus uni cuique suus.” “Magnum narras, uix credibile.” “Atqui sic habet.” “Accendis, quare cupiam magis illi proxumus esse.” “Velis tantummodo, quae tua uirtus, expugnabis; et est qui uinci possit, eoque difficilis aditus primos habet.” “Haud mihi dero; muneribus seruos corrumpam; non, hodie si exclusus fuero, desistam; tempora quaeram, occurram in triuiis, deducam. Nil sine magno uita labore dedit mortalibus.” Haec dum agit, ecce Fuscus Aristius occurrit, mihi carus et illum qui pulchre nosset. Consistimus. “Vnde uenis et quo tendis?” rogat et respondet. Vellere coepi et pressare manu lentissima bracchia, nutans, distorquens oculos, ut me eriperet. Male salsus ridens dissimulare; meum iecur urere bilis. “Certe nescio quid secreto uelle loqui te aiebas mecum.” “Memini bene, sed meliore tempore dicam; hodie tricensima, sabbata; uin tu curtis Iudaeis oppedere?” “Nulla mihi” inquam “relligio est.” “At mi; sum paulo infirmior, unus multorum; ignosces, alias loquar.” Huncine solem tam nigrum surrexe mihi! fugit inprobus ac me sub cultro linquit. Casu uenit obuius illi aduersarius et: “Quo tu, turpissime?” magna inclamat uoce, et “Licet antestari?” Ego uero oppono auriculam; rapit in ius; clamor utrimque, undique concursus. Sic me seruauit Apollo.

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11 Vesta, filha de Saturno e Opis, era objeto de um importante culto na Roma antiga. Era a responsável pelo fogo nos lares romanos. Seu culto era presidido pelo sumo pontífice, assistido pelas virgens vestais, e em seu templo se guardava o fogo sagrado. De acordo com diversos autores, o culto a Vesta teria sido introduzido em Roma por Rômulo, mas Grimal (1986, p. 465) aponta alguns problemas nessa concepção. O que importa, no entanto, para o contexto desta sátira, é que seu templo situava-se na parte sul do fórum romano, próximo ao lugar em que se davam as disputas jurídicas. 12 Tendo o dia doze horas, decorrida sua quarta parte, concluíra-se, então, a tertia hora, ou seja, em nosso modo de contar as horas, passavam das nove da manhã. 13 O verbo Respondere na linguagem jurídica é usado de maneira absoluta, sem complemento. Significa “responder a uma citação, ou acusação, em tribunal”, “comparecer ao tribunal”. Já uadato é um particípio perfeito passivo (ainda que de um verbo depoente, uador), constituindo um ablativo absoluto, que poderia ser vertido por “tendo sido feita uma intimação sob caução, ou sob fiança”. Era um procedimento comum nas disputas legais na Roma antiga que o pretor exigisse uma caução às partes litigantes, para assegurar que essas comparecessem ao tribunal no dia e horário estabelecido. Aquele que não comparecesse, perderia o montante que havia depositado como fiança. Neste contexto, o termo lis refere-se ao processo como um todo, pois quem não comparecesse à audiência, viria a perder a causa, mas, particularmente, ao valor que fora colocado sob caução: dinheiro, uma propriedade, ou seja o que for. É evidente que o tagarela não fora intimado naquele momento, mas, sim, que se lembrara da intimação ao passar pelo fórum. 14 Para auxiliar um litigante, dando conselhos, na qualidade de aduocatus, o eu-poético teria que ficar de pé durante o processo. A desculpa dada por ele, então, nos parece descabida, uma vez que está disposto a percorrer um longo trecho caminhando. Eis um indício da vontade de se livrar daquela companhia intolerável. Além do mais, concordamos com Villeneuve (1989, p. 98), que afirma que stare não pode significar aqui “ajudar”, pois esse infinitivo está coordenado em disjunção exclusiva, por meio de aut, com [si] noui ciuilia iura. 15 Enfim o inconveniente revela suas intenções. Como pretenso poeta, ele deseja travar relação com Mecenas e os outros de seu círculo.

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Ninguém mais habilmente serviu-se da sorte. Terias Um grande auxiliar, que poderia exercer um papel secundário, Se este homem aqui tu quisesses introduzir. Que eu pereça, Se não tiraste todos do caminho.” “Não vivemos lá do modo Que pensas, casa alguma é mais sincera que aquela, Nem mais alheia a esses males. Em nada me ofende”, disse eu, “que seja mais rico este, ou mais douto aquele: há para todos um lugar seu.” “Que coisa contas! Difícil de acreditar!” “Mas assim é.” “Tu me inflamas, pois assim ainda mais Quero dele me aproximar.” “Basta desejares, com o valor que tens, O tomas de assalto. E é alguém que pode ser vencido, por isso Torna difícil os primeiros acessos.” “A mim não faltarei: Com presentes subornarei os escravos e, se hoje For deixado de fora, não desistirei. Buscarei ocasiões, Toparei com ele nas encruzilhadas, farei cortejo. Nada a vida Sem grande esforço deu aos mortais.” 16 Enquanto fala isso, eis que Aparece Fusco Arístio, amigo meu e que o conhecia Muito bem.17 Nós paramos. “De onde vens e para onde segues?”, pergunta e responde. Comecei a puxá-lo E apertar-lhe com a mão o braço insensível, acenando com a cabeça, Revirando os olhos, para que me arrancasse dali. O engraçadinho Dissimulava a sorrir; e a bile a me arder o fígado. “Sem dúvida tu dizias querer falar-me à parte Não sei o quê.” “Lembro bem, mas te direi Em melhor hora, hoje é o dia trigésimo, o sabá. 18 Tu queres Ultrajar os circuncisos judeus?” “Não tenho”, disse eu, “Devoção nenhuma.” “Eu sim. Tenho cá minhas fraquezas, Um dentre muitos. Hás de desculpar, conversamos depois.” Mas que sol negro se ergueu para mim! Fugiu o pérfido E sob a faca me deixou. Por acaso, surge adiante O adversário daquele: “Aonde vais, pior dos infames?”, alça a voz, Gritando e: “Podes testemunhar?” Quanto a mim, Ofereço a orelha19 ; arrebata-o à justiça. Gritos de toda parte, De todo lado correria. Assim me salvou Apolo.20 Tradução de Sidney Calheiros de Lima

16 Todo este trecho é interessante por revelar a ausência de sensibilidade poética, por assim dizer, do tagarela, ou, ao menos, sua estupidez. O eu-poético refere-se à aproximação de Mecenas, desejada pelo inconveniente, por meio de uma série de imagens do contexto militar, uirtus, expugnabis, uinci, aditus. O tagarela não compreende as metáforas e entende aditus de forma extremamente concreta, como a entrada da casa de Mecenas. 17 Arístio Fusco. A inversão dos nomes no texto, em que o nome pessoal vem após o nome de família, parece ser próprio da linguagem familiar (cf. Plessis & Lejay, 1911, p.74). A este poeta, grande amigo de Horácio (cf. I, 10, 83), são endereçadas a Ode I, 22 e a Epístola I, 10. 18 Tricensima scil. dies entende Sabbadini (1981, p. 66), ou seja, o trigésimo dia do calendário lunar, dia da nova lua, que era celebrado pelos judeus. Nesse dia, eles se abstinham de qualquer ação. Além disso, por coincidência, tal dia caíra em um sábado, dia também sagrado para os judeus. Villeneuve (1989, p. 99) pensa um pouco diferente com relação à morfologia. Para esse autor, tricensima é um neutro plural, termo pelo qual Comodiano, autor cristão, verte neomenia, dia da nova lua. O termo estaria coordenado à sabbata ainda que sem um conectivo. O mesmo Villeneuve traz, no entanto, uma explicação diferente para a expressão trincesima sabbata. Se a entendermos como o “trigésimo sábado”, poderíamos chegar à Festa dos Tabernáculos, se partíssemos do início do ano litúrgico dos judeus (abril), ou à Páscoa, partindo do início de seu ano civil (setembro). 19 Eis que surge, vindo do lado contrário e a caminho do fórum, o adversário do tagarela no processo referido acima (v. 36). Ele pede à personagem Horácio que seja testemunha. Sabbadini (1981, p. 66) explica-nos este curioso costume. Se uma das partes não comparecia à sessão, a questão procedia à revelia. Mas, para isso, era necessário que uma das partes se ausentasse três vezes. Contudo, o autor do processo, o acusador, poderia abreviar isso, encontrando o acusado e levando-o à força ao tribunal. Para agir dessa forma, o autor necessitava de alguém que testemunhasse o acontecido, para garantir que não seria acusado de agir com violência indevida contra um cidadão. O ato de tocar a orelha da testemunha simbolizava que ela se recordaria da palavra empenhada. 20 Curioso deus ex machina: graças à chegada do adversário do tagarela, salvou-se a personagem Horácio. Em sua irônica interpretação, o deus que tem como um dos atributos a lira e, portanto, preside a poesia, o teria livrado daquele pretenso poeta.

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Oitava Ode Pítica Píndaro Humberto Zanardo Petrelli1

Píndaro (P…ndaroj)$ foi o mais brilhante poeta do século V a.C.. Nasceu numa província próxima a Tebas, provavelmente em 522 a.C., na pequena cidade de Cinoscéfalos, na Beócia. Era de família aristocrática e fez seus estudos em Atenas. Escreveu sua primeira Ode, a Sétima Pítica, com menos de vinte (20) anos de idade, para Alcmeônidas de Mégacles, em 486 a.C., segundo os estudiosos P. E. Easterling e B. M. W. Knox (1999, 2267). Em vida, gozou de grande fama, a qual perdurou por toda a Antigüidade. Ficou conhecido pelo epíteto de “príncipe dos poetas”. Porque sua notoriedade se espalhara por toda a Grécia, Píndaro tornou-se um poeta profissional itinerante. Compôs por encomenda para muitos, como Hieron I de Siracusa, em 478/467 a.C., Teron de Acragás, em 488/472 a.C., e Arcesilau IV de Cirene, em 462 a.C.. Morreu em Argos com quase oitenta (80) anos, por volta de 438 a.C.. Uma coletânea organizada por eruditos alexandrinos lista um total de dezessete (17) livros de Píndaro, entre hinos, peãos, ditirambos, prosódions, partenions, hiporquemas, encômios, trenos e epinícios. Chegaram a nós quarenta e cinco (45) epinícios, divididos em quatro livros: Olímpicas, Píticas, Neméias e Ístmicas. A ode mais antiga data de 498 a.C., e a mais recente de 446 a.C.. Píndaro escreveu basicamente no dialeto dórico, porém, também fez uso dos dialetos homérico e eólico. Por isso, sua escrita distancia-se um pouco da linguagem falada. Seu estilo elevado e grandioso descreve os mitos com fantasia e muita originalidade. Embora tenha composto vários tipos de poesia lírica, sua fama advém principalmente dos epinícios, sempre compostos por ele por encomenda. Os epinícios são odes corais em honra aos vencedores de jogos atléticos, como a corrida, luta, arremesso de pesos, corrida de cavalos, etc.. Eram acompanhados em geral pela cítara e pelo aulos e possuíam uma extensão bem maior que as composições da lírica monódica. Segundo a tradição alexandrina, o epinício foi “inventado” por Simônides, de Ceos, mas a modalidade foi cultivada principalmente por Baquílides e Píndaro. A estrutura formal de um epinício obedece a seguinte ordem: (a) invocação dirigida a uma divindade ou à cidade do vencedor; Humberto Zanardo Petrelli é Mestre em Filosofia FFLCH/USP. [email protected]

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(b) elogio do vencedor; (c) relato mítico relacionado com a família ou com a cidade do vencedor, ou, ainda, com a festa em que se comemorava a sua vitória; (d) comentários e conselhos morais, freqüentemente inspirados no mito. Assim como a poesia épica, a poesia lírica não utilizava a rima, e o metro baseava-se em seqüências padronizadas de sílabas longas e breves. A estrutura métrica do poema lírico era muito variável. Os ‘pés’ ou grupos de sílabas, com suas respectivas representações, mais utilizados eram: dáctilo: — ∪∪ (longa-breve-breve) espondeu: — — (longa-longa) iambo: ∪ — (breve-longa) troqueu: — ∪ (longa-breve) ritmo guerreiro: ∪∪ — (breve-breve-longa) epitrito: — ∪ — — (longa-breve-longa-longa) Os versos dos epinícios eram construídos habitualmente com três estrofes de metros complexos e muito variáveis. O mais utilizado por Píndaro era o epitrito combinado com um dáctilo. O livro das Odes Píticas (ÐÕÈÉÏÍÉÊÙÍ) contém doze (12) odes triunfais organizadas em ordem não cronológica. Com exceção da Ode Pítica II, as demais foram dedicadas a vitórias obtidas nos Jogos Píticos. Esses jogos, celebrados em Delfos em honra ao deus Apolo, ocorriam a cada quatro anos. A Pítica VIII apresenta 100 versos e recomenda humildade ao jovem e bem sucedido vencedor, citando os exemplos do gigante Porfírio, vencido por Apolo, e de Tifon, vencido por Zeus. É dedicada a Aristomeno de Egina, lutador (446 a.C.). Píndaro foi muito lido e estudado ao longo da história, da Antigüidade Clássica à era bizantina, do Renascimento aos dias presentes. Para esta revista preparei a tradução da Pítica VIII, que homenageia Aristomeno, jovem lutador egino vitorioso nos Jogos Píticos. Essa Pítica foi composta provavelmente em 446 a.C., quando Píndaro passava dos setenta (70) anos de idade. A ode se inicia com uma invocação à Serenidade (Paz, Concórdia), nos versos 1 a 5. A Serenidade é quem sabe proporcionar o júbilo, mas quando provocada se torna

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uma formidável adversária, como Porfírio e Tifon puderam experimentar (6-20). A ilha de Egina é celebrada pelos heróis e pelos homens (21-28). No entanto, o poeta se recusa a detalhar mais os acontecimentos (29-32). Depois disso, Píndaro louva Aristomeno, que, por imitação do sucesso de seus tios no atletismo, merece que Anfiarao profetize como os Epígonos combateram anteriormente em Tebas (32-34). Os filhos também carregam as determinações paternas que, como no caso do próprio filho Alcmeon, Anfiarao prediz que Adrasto sairia vitorioso, mas perderia seu filho (43-55). Alcmeon é louvado por profetizar ao poeta sobre seu caminho para Delfos (56-60). Píndaro menciona a vitória de Aristomeno nos festivais em Pito e Egina, em honra a Apolo, e suplica aos deuses que continuem em seu favor (61-72). Se os homens adquirem sucesso sem grandes esforços, muitos vão pensar que eles são sábios, mas o que os deuses determinam é o que prevalece (73-77). Depois de listar as vitórias de Aristomeno em Megara, Maratona e Egina, o poeta como que desenha o triste retorno para casa dos quatro oponentes que foram vencidos em Delfos (78-87). Ao contrário deles, o vitorioso é enobrecido e anseia altas aspirações (88-92). Mas o jogo é transitório e a existência humana é efêmera. Contudo, quando os deuses nos reservam os grandes sucessos, a vida é doce (93-97). Finalmente, o poema termina com uma súplica a Zeus e ao rei Eaco para preservar Egina livre (98-100). Para esta tradução foi utilizado o texto estabelecido por Bowra (1935). Bibliografia BOWRA, C.M. Pindari Carmina, cvm fragmentis, recognovit breviqve adnotatione critica instrvxit, Oxonii, Typographeo Clarendoniano, 1935. EASTERLING, P.E. & KNOX, B.M.W. The Cambridge History of Classical Literature, Greek Literature I, Cambridge, Cambridge University Press, 1999. PUECH, A. Pindare: texte établi et traduit, t. 1. Olympiques - t. 2. Pythiques - t. 3. Néméennes. - t. 4. Isthmiques et fragments, Paris, Société d’Edition “Les Belles Lettres”, 1922-1931.

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A RISTOMENEI A IGINHTHI PALAISTHI str. a’

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FilÒfron ‘Hsuc…a, D…kaj ð megistÒpoli qÚgater, boul©n te kaˆ polšmwn œcoisa klaŽdaj Øpert£taj PuqiÒnikon tim¦n ‘Aristomšnei dškeu. tÝ g¦r tÕ malqakÕn œrxai te kaˆ paqe‹n Ðmîj ™p…stasai kairù sÝn ¢treke‹ · tÝ d’, ÐpÒtan tij ¢me…licon kard…v kÒton ™nel£sV, trace‹a dusmenšwn Øpanti£xaisa kr£tei tiqe‹j Ûbrin ™n ¥ntlJ. t¦n oÙd Porfur…wn l£qen par’ asan ™xereq…zwn. kšrdoj d f…ltaton, ˜kÒntoj e‡ tij ™k dÒmwn fšroi. b…a d kaˆ meg£laucon œsfalen ™n crÒnJ. Tufëj K…lix ˜katÒgkranoj oÜ nin ¥luxen, oÙd m¦n basileÝj Gig£ntwn · dm©qen d keraunù tÒxois… t’ ‘ApÒllwnoj · Öj eÙmene‹ nÒJ Xen£rkeion œdekto K…rraqen ™stefanwmšnon uƒÕn po…v Parnas…di Dwrie‹ te kèmJ. œpese d’ oÙ Car…twn ˜k£j ¡ dikaiÒpolij ¢reta‹j kleina‹sin A„akid©n qigo‹sa n©soj · telšan d’ œcei dÒxan ¢p’ ¢rc©j. pollo‹si mn g¦r ¢e…detai nikafÒroij ™n ¢šqloij qršyaisa kaˆ qoa‹j Øpert£touj ¼rwaj ™n m£caij · t¦ d kaˆ ¢ndr£sin ™mpršpei. e„mˆ d’ ¥scoloj ¢naqšmen p©san makragor…an lÚrv te kaˆ fqšgmati malqakù, m¾ kÒroj ™lqën kn…sV. tÕ d’ ™n pos… moi tr£con ‡tw teÕn cršoj, ð pa‹, neètaton kalîn, ™m´ potanÕn ¢mfˆ macan´. palaism£tessi g¦r „cneÚwn matradelfeoÚj OÙlump…v te QeÒgnhton oÙ katelšgceij, oÙd Kleitom£coio n…kan ‘Isqmo‹ qrasÚguion · aÜxwn d p£tran Meidulid©n lÒgon fšreij, tÕn Ónper pot’ ‘Oiklšoj pa‹j ™n ˜ptapÚloij „dën uƒoÝj Q»baij a„n…xato parmšnontaj a„cm´, ÐpÒt’ ¢p’ ”Argeoj ½luqon deutšran ÐdÕn ‘Ep…gonoi. ïd’ epe marnamšnwn · Fu´ tÕ genna‹on ™pipršpei ™k patšrwn paisˆ lÁma. qašomai safšj dr£konta poik…lon a„q©j ‘Alkm©n’ ™p’ ¢sp…doj nwmînta prîton ™n K£dmou pÚlaij.

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Oitava Pítica Para Aristomeno de Egina, vencedor na luta. Serenidade, filha benévola da Justiça, que engrandece a cidade, tu, que tens as chaves supremas dos conselhos e das guerras, acolhe esta honra ao vitorioso Pítico, Aristomeno. Tu sabes o momento exato de proporcionar o contentamento e de, do mesmo modo, recebê-lo. Tu, quando alguém introduz em teu coração o amargo ressentimento, vais rude contra os inimigos, colocando o poder da intemperança no fundo do mar. Nem Porfírio escapou, à margem de seu interesse, ao te provocar. O ganho mais alto é consentido se alguém o traz de casa. A força, com o tempo, abate o arrogante. Tifon, o Cilício de cem cabeças, não a evitou, nem, na verdade, o rei dos Gigantes, domados pelo raio e pelas flechas de Apolo, o qual com a mente bem disposta recebeu, vindo de Cirra, o filho coroado de Xenarques, com louro do Parnaso e coro Dórico. Ela não é indiferente às Graças, esta ilha que tange a cidade justa e conheceu as famosas virtudes dos Eácidas. Desde a origem tem sua reputação perfeita. Aos muitos canta, tendo nutrido heróis em lutas vitoriosas e na rapidez eminentes nos combates. Entre os homens ela também brilha. Estou sem tempo de dispor todo o longo falatório na lira e em linguagem doce, pois o tédio vindo incomoda. Que minha dívida para ti venha correndo, ó rapaz, dentre as mais recentes belezas, devido ao meu engenho alado. Nas lutas triunfantes, no rastro de teus tios maternos, não desonres Teogneto, prêmio em Olímpia, nem a vitória da vigorosa musculatura de Clitômaco, no Istmo. Abrilhantando a família Midílida, levas o discurso, que certa vez a criança de Ecles, na Tebas de sete portas, vendo os filhos, pronunciou enigmas, mantendo-se em pé, ao lado de sua lança, quando os Epígonos partiram de Argos na segunda expedição. O Ecleida pronunciou aos combatentes: “Por natureza a bravura inata dos ancestrais brilha sobre os filhos. Vejo com clareza Alcmeon agitando o dragão listrado sobre seu escudo luzente, primeiro nas portas de Cadmo.

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Ð d kamën protšrv p£qv nàn ¢re…onoj ™nšcetai Ôrnicoj ¢ggel…v ”Adrastoj ¼rwj · tÕ d #o…koqen ¢nt…a pr£xei. mÒnoj g¦r ™k Danaîn stratoà qanÒntoj Ñstša lšxaij uƒoà, tÚcv qeîn ¢f…xetai laù sÝn ¢blabe‹ ”Abantoj eÙrucÒrouj ¢gui£j. toiaàta mn ™fqšgxat’ ‘Amfi£rhoj. ca…rwn d kaˆ aÙtÕj ‘Alkm©na stef£noisi b£llw, ·a…nw d kaˆ ÛmnJ, ge…twn Óti moi kaˆ kte£nwn fÚlax ™mîn Øp£ntasen „Ònti g©j ÑmfalÕn par’ ¢o…dimon, manteum£twn t’ ™f£yato suggÒnoisi tšcnaij. naÕn eÙklša dianšmwn Puqînoj ™n gu£loij, tÕ mn mšgiston tÒqi carm£twn êpasaj : o‡koi d prÒsqen ¡rpalšan dÒsin pentaeql…ou sÝn ˜orta‹j Øma‹j ™p£gagej. ðnax, ˜kÒnti d’ eÜcomai nÒJ kat£ tˆn ¡rmon…an blšpein ¢mf’ ›kaston, Ósa nšomai. kèmJ mn ¡dumele‹ D…ka paršstake · qeîn d’ Ôpin ¥fqiton a„tšw, Xšnarkej, Ømetšraij tÚcaij. e„ g£r tij ™sl¦ pšpatai m¾ sÝn makrù pÒnJ, pollo‹j sofÕj doke‹ ped’ ¢frÒnwn b…on korussšmen ÑrqoboÚloisi macana‹j · t¦ d’ oÙk ™p’ ¢ndr£si ke‹tai · da…mwn d par…scei, ¥llot’ ¥llon Ûperqe b£llwn, ¥llon d’ ØpÕ ceirîn. mštrJ kat£bain’ ™n Meg£roij d’ œceij gšraj, mucù t’ ™n Maraqînoj, “Hraj t’ ¢gîn’ ™picèrion n…kaij trissa‹j, ð ‘AristÒmenej, d£massaj œrgJ. tštrasi d’ œmpetej ØyÒqen swm£tessi kak¦ fronšwn, to‹j oÜte nÒstoj Ðmîj œpalpnoj ™n Puqi£di kr…qh, oÙd molÒntwn p¦r matšr’ ¢mfˆ gšlwj glukÝj ðrsen c£rin · kat¦ laÚraj d’ ™cqrîn ¢p£oroi ptèssonti, sumfor´ dedagmšnoi. Ð d kalÒn ti nšon lacën ¡brÒtatoj ™pˆ meg£laj ™x ™lp…doj pštatai Øpoptšroij ¢noršaij, œcwn kršssona ploÚtou mšrimnan. ™n d’ Ñl…gJ brotîn tÕ terpnÕn aÜxetai · oÛtw d kaˆ pitne‹ cama…, ¢potrÒpJ gnèmv seseismšnon. ™p£meroi · t… dš tij; t… d’ oÜ tij; ski©j Ônar ¥nqrwpoj. ¢ll’ Ótan a‡gla diÒsdotoj œlqV, lamprÕn fšggoj œpestin ¢ndrîn kaˆ me…licoj a„èn. A‡gina f…la m©ter, ™leuqšrJ stÒlJ pÒlin t£nde kÒmize Dˆ kaˆ kršonti sÝn A„akù, Phle‹ te k¢gaqù Telamîni sÚn t’ ‘Acille‹.

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Adrasto, o herói, cansado do sofrimento anterior agora é surpreendido por um anúncio de uma ave de bom agouro. Mas o contrário se fará em seu lar. No exército dos dânaos, só ele recolhe os ossos do filho morto, pela sorte dos deuses ele chegará com a armada intacta entre as ruas largas de Abas”. Tais coisas pronunciou Anfiarao. Com igual encanto eu lanço coroas em Alcmeon, irrigando com meu hino, porque meu vizinho é guarda de meus pertences e veio ao meu encontro quando eu ia ao umbigo da terra muito celebrado, e tocou-me nas artes adivinhatórias, inatas à sua família. E tu, lança-dardos, que a todos acolhe governando na famosa ilha nos vales de Pito, lá concedes em dar as maiores jóias. E, em tua casa, antes, conduziste o almejado prêmio do pentatlo, com as vossas festas. Ó soberano, de bom grado suplico ao pensamento detectar alguma harmonia quando eu discorro sobre cada coisa. A Justiça está ao lado da Dança e da doce melodia. Aos deuses rogo a proteção imortal, ó Xenarques, pelas vossas sortes. Se alguém adquire bens sem grande fadiga, a maioria cogita: parece um sábio quem, entre néscios, prover a vida com retos conselhos para maquinar. Mas essas coisas não cabem aos homens. Um nume decide: ora um lançando para cima, ora outro, sob o peso das mãos, derrubando, na medida”. Tens os prêmios em Megara e no vale em Maratona, na competição nacional de Hera, com três vitórias, ó Aristomeno, tendo vencido com este feito. Caíste por cima de quatro corpos, com maus pensamentos, e para eles nem o retorno igualmente agradável é decidido em Pito, nem impele riso doce de alegria tendo voltado para a mãe. Junto nos becos agachados, alheios aos inimigos, feridos pela desgraça. Aquele que obtém algum sucesso recente, magnânimo voa a partir de sua grande esperança nas asas da satisfação, tendo maior interesse que a riqueza. Em breve instante o prazer dos mortais aumenta. E, assim, cai por terra, pelo conhecimento adverso abalado. Efêmeros! O que é alguém? O que não é alguém? Sonho de uma sombra: o homem. Mas quando o brilho do dote divino vem, a luz radiante sobrepaira nos homens e a vida se torna doce como mel. Egina, mãe querida, conduz o livre curso desta cidade, com Zeus, com o forte Eaco, com Peleu, com o audaz Telamon, e com Aquiles. Tradução de Humberto Zanardo Petrelli

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Ode 11 Horácio Márcio Thamos1 E por Falar em Números, Leucónoe... O astrólogo caldeu talvez já saiba, mas pode ser que não te informe nada dos mistérios das línguas e das falas (nesses assuntos, são os babilônios mestres em confundir e não dizer). Desiste desses cálculos incertos e vem aqui ver outros que talvez te ensinem algo menos improvável: que as línguas não se podem comparar e que a tal primazia do latim, em termos de expressão, de sintetismo, sobre todas as outras pobres línguas bem pode não passar de uma balela, de pura crença mística, inventada, que se repete desde sempre e assim verdade vira e nunca se contesta... Leucónoe, a poética é divina São plenas de mistérios as palavras: somente aos vates ditam seus segredos; e ainda que estes contem tudo ao mundo, nem todos podem mesmo compreendê-los. Dos mais sábios poetas um dirá que a essência da cultura mundial, sendo a versão suprema da linguagem, não é senão, Leucónoe, a poesia1 . Outro não menos douto afirmará que, quando se carrega de sentido, a linguagem se faz literatura e que os bons escritores são aqueles que mantêm a eficácia da linguagem, mantendo-lhe a clareza e a precisão2 . De fato, é próprio da arte da palavra dizer muito sem muito se estender, sintetizar e tudo dar a ver: é como desde sempre os vates fazem se ao encontro do espírito percebem que o sopro divinal da musa vem.

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Um pouco de lingüística, Leucónoe Observando as palavras, notaremos que, em latim, elas têm, Leucónoe, caudas que se articulam e entre si variam, diferindo na cor e no tamanho. Não por acaso a natureza fez que a língua assim formasse seu sistema: ainda que em latim – coisa espantosa! –, o sentido depende da expressão. Atento, um mestre um dia ensinará que sem significante que o conforme não há significado que se possa apreender com os sentidos e com a mente3 (e não por vão costume assim dirá, por decorar os quadros dos gramáticos, mas sim por compreender a própria língua). Os números, Leucónoe, são sinceros Se um poema se pode traduzir, toda a língua haverá de se verter. É um presente dos deuses esse dom que aos mortais as palavras propiciam. E traduzir, Leucónoe, não será imitar nem querer fazer igual, mas encontrar um texto equivalente em que se reconheça um mesmo estilo, quem sabe até um mesmo pensamento4 . Mas tu, a quem os números aprazem, gostarás de notar que em traduções também eles revelam muitas coisas: se o texto original tem oito versos em metro asclepiadeu maior vazados, terá dezesseis sílabas em cada, assim somando cento e vinte e oito; se o texto traduzido em doze versos, sendo estes decassílabos chamados, somar ao todo cento e trinta sílabas, não haverá quem pense que o primeiro de modo mais sintético se diga,

embora tenha sempre o privilégio de se inscrever em mármore – em latim! Mas, Leucónoe, as línguas não são números, e o que os poetas fazem é extrair de cada uma a essência da expressão, incutindo-lhes nosso próprio ser – humano e universal, eterno e forte. Leucónoe, os poetas somos nós, amantes das palavras e da vida, a quem o tempo foge sem cessar: no entanto a nossa língua ainda é latina. Referências: BRODSKY, Joseph. Menos que um. Trad. Sergio Flaksman. São Paulo: Cia. das Letras, 1994. POUND, Ezra. ABC da literatura. 9a. ed. Trad. Augusto de Campos e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 2001. LIMA, Alceu Dias. “A leitura do poético: questões de semiótica e de método”. in: Significação: revista brasileira de semiótica, n. 1. Ribeirão Preto, 1974.

1 Márcio Thamos é professor de Língua e Literatura Latina – FCL/ CAr/Unesp. 1 Joseph Brodsky: “a poesia é a essência da cultura mundial” (1994, p. 101); [a poesia é] “a versão suprema da língua” (Id., p. 102). 2 Ezra Pound: “Literatura é linguagem carregada de significado” (2001, p. 32); “Grande Literatura é simplesmente linguagem carregada de significado até o máximo grau possível” (Id., p. 40); “Os bons escritores são aqueles que mantêm a linguagem eficiente. Quer dizer, que mantêm a sua precisão, a sua clareza” (Id., p. 36). 3 Alceu Dias Lima: “não há significado sem significante que o conforme e torne apreensível aos sentidos e à mente” (1974, p 61). 4 Joseph Brodsky: “a tradução é a procura de um equivalente, e não de um substituto. Requer pelo menos uma afinidade estilística, quando não psicológica” (1994, p. 84).

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Ode 11 Não queiras tu, Leucónoe, descobrir que fim a ti e a mim darão os deuses (nem é bom que se saibam essas coisas), dos babilônios números desiste: melhor deixar que seja lá o que for. Quer Júpiter te dê muitos invernos, quer seja o derradeiro este que agora fatiga o mar Tirreno contra as fragas, tem prudência: dilui o vinho e ajusta a esperança – que é longa – ao breve instante. Foge o tempo invejoso enquanto falo: — Colhe o dia e não contes que haja outro. Tradução de Márcio Thamos

Ode XI Tu ne quaesieris (scire nefas) quem mihi, quem tibi finem di dederint, Leuconoe, nec Babylonios temptaris numeros. Vt melius quicquid erit pati! Seu pluris hiemes seu tribuit Iuppiter ultimam, quae nunc oppositis debilitat pumicibus mare Tyrrhenum, sapias, uina liques et spatio breui spem longam reseces. Dum loquimur, fugerit inuida aetas: carpe diem, quam minimum credula postero.1 Horácio

1 HORACE. Odes et épodes. Texte établi et traduit par François Villeneuve. Paris: Les Belles Lettres, 1970.

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Tristes Ovídio Patricia Prata1

A obra dos Tristes foi escrita por Ovídio na época do exílio do poeta em 8 d.C, na cidade de Tomos (atual Constanza, na Romênia), na costa ocidental do Ponto Euxino (hoje, Mar Negro). Por conter muitas informações acerca da vida do poeta durante o desterro, bem como detalhes sobre sua família, seus casamentos, suas viagens, estudos, entre várias outras coisas, muitos estudiosos a lêem e analisam de um ponto de vista biográfico. O fato de os Tristes ter sido escrito em primeira pessoa também favorece esse interesse dos estudiosos, uma vez que Ovídio, ao se colocar como narrador-personagem de suas elegias, possibilita especulações acerca do caráter autobiográfico de tal obra. Contudo, essa não é a única forma de analisar os Tristes, pois, ainda que apresente características autobiográficas, merece um estudo que leve em consideração sua estrutura poética. Ademais, é difícil discutir a relação que possa haver entre a personagem criada nas elegias e o próprio autor, pois uma questão tão delicada implica conhecimento irrestrito da vida de Ovídio, algo impossível pela grande distância de tempo que nos separa dele. Dessa forma, procuramos analisar, em nossa dissertação de mestrado1 , o caráter alusivo dessa obra, almejando apresentar uma outra forma interpretativa para tal livro que não a puramente autobiográfica. Traduzimos aqui a segunda elegia do primeiro livro dos Tristes que, a princípio, pode ser vista como um simples relato de uma tempestade que acometeu Ovídio durante sua viagem para o exílio. Mas, devido a várias semelhanças temáticas e estruturais que tal elegia estabelece com o canto I da Eneida de Virgílio, traçamos uma comparação entre esses dois textos, procurando verificar os efeitos de sentido produzidos por esse jogo alusivo. A título de demonstração, apresentamos o indício que nos levou a analisar a alusão que Ovídio faz nessa elegia ao referido canto virgiliano. A elegia I, 2 narra a súplica de Ovídio aos deuses para que esses não compartilhem da ira de Augusto e dêem cabo à terrível procela que se abateu sobre sua nau. A descrição da tempestade, que deve ter surpreendido o poeta no mar Adriático2 , introduz, no livro I3 , as peripécias do desterrado, ocorridas depois de sua partida para Tomos. Essa elegia, então, por apresentar o protagonista em alto-mar a caminho do exílio, suplicando aos deuses em meio a uma tempestade avassaladora, sem relatar como se deram seus últimos momentos antes de

deixar Roma, lança o leitor em meio aos fatos já consumados, pressupondo, assim, que esse já conhece suas causas, sua história. Semelhante procedimento narrativo, denominado de início in medias res, graças ao aparecimento dessa locução na Arte Poética de Horácio, é utilizado ou, como sugere o autor da Epístola aos Pisões, deve ser utilizado para se iniciar uma epopéia4 . O fato de a “estória” do exílio de Ovídio começar sem antes terem sido relatados os eventos anteriores à viagem propriamente dita e pela narração desses acontecimentos a posteriori pelo protagonista5 , faz com que o procedimento narrativo do livro I de Ovídio se assemelhe ao da Eneida e da Odisséia. Todavia, é com o canto I da Eneida que essa elegia ovidiana mais se assemelha, pois aquele canto apresenta Enéias navegando da Sicília em busca da Itália após ter deixado Tróia, quando uma tempestade, provocada pela ira de Juno, precipita-se sobre sua frota. Como se observa, existe entre os textos uma semelhança estrutural - ambos se iniciam in medias res - e temática, pelo fato de uma terrível borrasca ter acometido tanto Ovídio quanto Enéias durante a viagem após o desterro. Atentos para uma leitura intertextual dessa elegia, independentemente de sua relação verdadeira ou não com a biografia ovidiana, podemos notar seu incontestável valor estético e é esse tipo de apreciação que intentamos despertar. Assim, passemos então aos versos e nos deleitemos com a narrativa da tempestade ovidiana. 1 Patricia Prata é professora de Língua e Literatura Latina - IEL/ UNICAMP. [email protected]. 1 PRATA, P. O caráter alusivo dos Tristes de Ovídio: uma leitura intertextual do livro I. Dissertação de Mestrado defendida no IEL/ Unicamp em abril de 2002. 2 Conforme observação de Della Corte (OVIDIO. I Tristia. Volume secondo. Commento a cura di Francisco Della Corte. Genova-Sestri, Tilgher-Genova s.a.s., 1973, p. 211) e G. Ferrara (OVIDIO. Tristium. lib. I e II. Illustr. da G. Ferrara. Torino, 1944, p. 14). 3 A primeira elegia caracteriza-se por ser o prólogo do livro. 4 Nec reditum Diomedis ab interitu Meleagri,/ nec gemino bellum Troianum orditur ab ouo;/ semper ad euentum festinat et in medias res/ non secus ac notas auditorem rapit, (...) - “Nem o regresso de Diomedes se inicia pela morte de Meleagro,/ nem a guerra de Tróia pelo fecundar dos gêmeos [Pólux e Helena];/ sempre se apressa para o desenlace e em meio aos fatos,/ como se fossem já conhecidos, lança o ouvinte (...).” (vv.146-149, in: HORACE. Épitres. Texte établi et traduit par François Villeneuve. Paris, Les Belles Lettres, 1955). 5 Esse episódio é narrado em “flash-back” na elegia I, 3 (publicada em 2000, no n. 10 desta mesma revista).

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Tristes, I, 2 Di maris et caeli — quid enim nisi uota supersunt? — Soluere quassatae parcite membra ratis! Neue, precor, magni subscribite Caesaris irae! Saepe premente deo fert deus alter opem. Mulciber in Troiam, pro Troia stabat Apollo; Aequa Venus Teucris, Pallas iniqua fuit; Oderat Aeneam propior Saturnia Turno; Ille tamen Veneris numine tutus erat. Saepe ferox cautum petiit Neptunus Vlixem, Eripuit patruo saepe Minerua suo. Et nobis aliquod, quamuis distamus ab illis, Quis uetat irato numen adesse deo? Verba miser frustra non proficientia perdo; Ipsa graues spargunt ora loquentis aquae, Terribilisque Notus iactat mea dicta precesque Ad quos mittuntur non sinit ire deos. Ergo idem uenti, ne causa laedar in una, Velaque nescio quo uotaque nostra ferunt. Me miserum! Quanti montes uoluuntur aquarum! Iam iam tacturos sidera summa putes. Quantae diducto subsidunt aequore ualles!

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Tristes, I, 2 Deuses do mar e do céu - pois o que, senão súplicas, me restam? Parai de destroçar os membros desta nau abalada! E não vos associeis, suplico, à ira do grande César! Muitas vezes, quando um deus persegue, um outro deus vem em socorro. Vulcano estava contra Tróia, a favor de Tróia, Apolo;1 5 2 Vênus foi favorável aos Teucros, Palas, contrária. Odiava a Enéias Satúrnia propícia a Turno;3 Ele, contudo, era protegido pelo nume de Vênus. Muitas vezes o feroz Netuno perseguiu o cauto Ulisses; Minerva, muitas vezes, arrebatou-o de seu tio paterno.4 10 Também a nós, ainda que inferiores a eles, Quem impede que algum nume proteja deste deus irado?”5 Em vão gasto, infeliz, minhas palavras ineficazes; As enormes ondas lambem os lábios enquanto falo E o terrível Noto6 dispersa minhas palavras e, que as súplicas 15 Cheguem aos deuses aos quais são enviadas, não permite. Assim, os próprios ventos, para que eu não seja ferido de uma única forma, Levam, não sei para onde, as velas e minhas súplicas. Oh, como sou infeliz! Que montanhas de água se alevantam! Já já tocarão os mais altos astros, crerias7 . 20 Quantos abismos se formam ao se separarem as águas! 1 Vulcano, deus do fogo e dos metais, forjou as armas de Aquiles a pedido de Tétis (cf. Hom., Il., XVII, v.395); Apolo combateu os gregos ao lado dos troianos, protegeu Paris no combate e atribui-se à sua intervenção, direta ou indireta, a morte de Aquiles (cf. Hom., Il., I; VII; XXI e GRIMAL, P. Dicionário da Mitologia Grega e Romana. Tradução de Victor Jabouille. 3ª ed. Rio de Janeiro, 1997, p. 34a). 2 Vênus era mãe de Enéias e protetora dos Teucros (troianos) e Palas Atena (Minerva), protetora de Ulisses. 3 Satúrnia é Juno (Hera), filha de Saturno (Cronos) e Réia. Odeia profundamente os troianos e, de acordo com a Eneida (I, vv.12-33), são três os motivos: sua predileção por Cartago que, conforme os fados, seria destruída pelos descendentes de Enéias; seu rancor ao troiano Páris que, como juiz, elegeu Vênus a mais bela do concurso de beleza, do qual participavam também Juno e Minerva, e seu ciúme do troiano Ganimedes que, por causa de sua beleza, foi raptado por Júpiter e levado ao Olimpo para servi-lo. Por isso, desde a guerra de Tróia tenta extinguir todos os troianos da face da terra para que possa se sentir vingada. No canto VII da Eneida, Juno incita, através de Alecto (uma das Fúrias), Turno, rei do rútulos (ver nota a I,5, v.24) e pretendente de Lavínia, que seria desposada por Enéias, a declarar guerra contra os troianos. 4 Minerva era filha de Júpiter, por isso, sobrinha de Netuno (Posídon). 5 Ovídio, neste verso, compara César a deus. 6 Vento quente e tempestuoso, por isso contrário à navegação, que sopra do sul, também chamado de Austro (COMMELIN, P. Nova Mitologia Grega e Romana. Tradução brasileira de Thomaz Lopes. 9ª ed. Rio de Janeiro, F. Briguet & Cia, 1955, p. 115). 7 Utilizo, neste verso e no 24, a segunda pessoa do singular para indeterminar o sujeito, visto ser esse o procedimento do verso latino - Iam iam tacturos sidera summa putes /(...)/ Iam iam tacturas Tartara nigra putes. Normalmente, em língua portuguesa, indetermina-se o sujeito com a terceira pessoa do plural ou do singular mais o índice “se”, mas é possível também indeterminá-lo utilizando a segunda pessoa (você ou tu) sem referência determinada, que poderá, então, ser preenchida por qualquer sujeito.

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Iam iam tacturas Tartara nigra putes. Quocumque aspicio, nihil est nisi pontus et aer, Fluctibus hic tumidus, nubibus ille minax. Inter utrumque fremunt inmani murmure uenti. Nescit cui domino pareat unda maris: Nam modo purpureo uires capit Eurus ab ortu, Nunc Zephyrus sero uespere missus adest, Nunc sicca gelidus Boreas bacchatur ab Arcto, Nunc Notus aduersa proelia fronte gerit. Rector in incerto est nec quid fugiatue petatue Inuenit: ambiguis ars stupet ipsa malis. Scilicet occidimus nec spes est ulla salutis, Dumque loquor, uultus obruit unda meos. Opprimet hanc animam fluctus frustraque precanti Ore necaturas accipiemus aquas. At pia nil aliud quam me dolet exule coniunx; Hoc unum nostri scitque gemitque mali. Nescit in inmenso iactari corpora ponto, Nescit agi uentis, nescit adesse necem. O bene quod non sum mecum conscendere passus, Ne mihi mors misero bis patienda foret! At nunc, ut peream, quoniam caret illa periclo, Dimidia certe parte superstes ero. Ei mihi, quam celeri micuerunt nubila flamma! Quantus ab aetherio personat axe fragor! Nec leuius tabulae laterum feriuntur ab undis Quam graue ballistae moenia pulsat onus. Qui uenit hic fluctus, fluctus supereminet omnes: Posterior nono est undecimoque prior. Nec letum timeo, genus est miserabile leti. Demite naufragium, mors mihi munus erit. Est aliquid, fatoque suo ferroque cadentem In solita moriens ponere corpus humo Et mandare suis aliqua et sperare sepulcrum Et non aequoreis piscibus esse cibum. Fingite me dignum tali nece, non ego solus Hic uehor: inmeritos cur mea poena trahit? Pro superi uiridesque dei quibus aequora curae, Vtraque iam uestras sistite turba minas Quamque dedit uitam mitissima Caesaris ira, Hanc sinite infelix in loca iussa feram! Si quoque quam merui poena me pendere uultis, Culpa mea est ipso iudice morte minor. Mittere me Stygias si iam uoluisset in undas Caesar, in hoc uestra non eguisset ope. Est illi nostri non inuidiosa cruoris Copia, quodque dedit, cum uolet, ipse feret.

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Já já tocarão o negro Tártaro, crerias. Para onde quer que eu olhe, nada há senão céu e mar; Este intumescido pelas ondas, aquele ameaçador pelas nuvens. E entre ambos fremem os ventos com medonhos murmúrios. 25 A onda do mar não sabe a que senhor obedecer: Pois ora Euro9 ganha força do oriente purpúreo, Ora Zéfiro10 sopra, enviado do remoto ocidente, Ora o gélido Bóreas se enfurece, como as Bacantes, da região da seca Ursa,11 Ora Noto combate do lado oposto. 30 O piloto está incerto, não sabe para onde fugir Ou o que buscar: sua própria arte se entorpece ante os ventos contrários. Sem dúvida é nosso fim, não há esperança alguma de salvação, E enquanto falo uma onda encobre meu rosto. A vaga sufocará minha respiração e, pela boca, em vão 35 Suplicante, tomaremos as águas mortais. Mas a pia esposa12 não se lamenta com nada senão comigo, exilado: Somente essa desventura nossa conhece e lamenta. Não sabe que meu corpo é um joguete deste imenso mar, Não sabe que sou impelido pelos ventos, não sabe que a morte está próxima. Ainda bem que não lhe permiti embarcar comigo, Para eu não padecer, infeliz, uma dupla morte! Mas agora, apesar de perecer, porque ela está livre do perigo, Certamente, pela metade sobreviverei. Ai de mim, em que rápido clarão resplandeceram as nuvens! 45 Que estrondo retumba do etéreo eixo! Não são mais levemente batidos os flancos da nau pelas ondas Que o grande peso da balista ao abalar as muralhas. Esta onda que chega excede a todas as outras ondas: À nona é posterior e, à undécima, anterior.13 50 Não temo a morte, infeliz é o aspecto desta morte. Afastai o naufrágio, a morte ser-me-á um benefício. Já é alguma coisa, ao sucumbir-se ou pelo próprio fado ou pelo ferro, Em terra sólita repousar o corpo moribundo E fazer recomendações aos seus e esperar o sepulcro 55 E não ser dos peixes marinhos o alimento. Suponde-me digno de tal morte, mas não sou o único Aqui conduzido: por que meu castigo arrasta os inocentes? Ó deuses olímpicos e marinhos, que tendes o governo das águas, Uns e outros, cessai já vossas ameaças 60 E permiti que eu, infeliz, leve esta vida, concedida pela Brandíssima ira de César, ao local determinado! Se também desejais que eu sofra o merecido castigo, Minha culpa é, para o próprio juiz, menor que a morte. Se me enviar às águas estígias14 já tivesse desejado 65 César, para isto não precisaria de vosso auxílio. Ele tem poder, não odioso, sobre nossa vida E, o que deu, quando desejar, ele mesmo tirará.

8 O Tártaro é a região mais profunda do mundo, situada sob os próprios Infernos: a distância entre o Hades e o Tártaro é a mesma do Céu e da Terra, por isso, constitui as próprias fundações do Universo. Esse era o lugar em que as diferentes gerações divinas encarceravam os seus inimigos (Grimal, 1997, p. 429b). 9 Vento que sopra do oriente, descrito por Horácio como impetuoso (Commelin, 1955, p. 114). 10 Vento que sopra do ocidente, região das trevas. 11 Vento do norte, da região da constelação da Ursa, que é chamada de “seca” porque não se põe no horizonte, logo, não se banha no mar (G. Ferrara, 1944, p. 17). De acordo com as Metamorfoses de Ovídio, foi Juno que, inflamada de ciúme, intercedeu junto a Tétis e a Netuno para que impedissem a Ursa Maior de se banhar nas águas (Met. II, vv.508-530). 12 Fábia. 13 Acreditava-se que a última onda de uma série de dez fosse a mais violenta e perigosa (G. Ferrara, 1944, p. 18, André, in: OVIDE. Tristes. Texte établi et traduit par Jacques André. Paris, Les Belles Lettres, 1987, p. 9, n. 1 e Lechi, in: OVIDIO. Tristezze. Introduzione, traduzione et note di Francesca Lechi. Milano, BUR, 1983, p. 77, n. 4). 14 O Estige é um dos rios dos Infernos.

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Vos modo, quos certe nullo puto crimine laesi, Contenti nostris iam, precor, este malis! Nec tamen, ut cuncti miserum seruare uelitis, Quod periit saluum iam caput esse potest. Vt mare considat uentisque ferentibus utar, Vt mihi parcatis, non minus exul ero. Non ego diuitias auidus sine fine parandi Latum mutandis mercibus aequor aro; Nec peto, quas quondam petii studiosus, Athenas, Oppida non Asiae, non loca uisa prius; Non ut Alexandri claram delatus in urbem Delicias uideam, Nile iocose, tuas. Quod faciles opto uentos - quis credere posset? Sarmatis est tellus quam mea uela petunt; Obligor ut tangam laeui fera litora Ponti Quodque sit a patria tam fuga tarda queror; Nescioquo uideam positos ut in orbe Tomitas, Exilem facio per mea uota uiam. Seu me diligitis, tantos compescite fluctus Pronaque sint nostrae numina uestra rati; Seu magis odistis, iussae me aduertite terrae: Supplicii pars est in regione mei. Ferte — quid hic facio? — rapidi mea corpora, uenti! Ausonios fines cur mea uela uolunt? Noluit hoc Caesar. Quid, quem fugat ille, tenetis? Aspiciat uultus Pontica terra meos. Et iubet et merui; nec quae damnauerit ille Crimina defendi fasque piumque puto. Si tamen acta deos numquam mortalia fallunt, A culpa facinus scitis abesse mea. Immo ita, si scitis, si me meus abstulit error Stultaque mens nobis, non scelerata fuit, Quod licet et minimis, domui si fauimus illi, Si satis Augusti publica iussa mihi, Hoc duce si dixi felicia saecula proque Caesare tura pius Caesaribusque dedi, Si fuit hic animus nobis, ita parcite, diui! Si minus, alta cadens obruat unda caput! Fallor an incipiunt grauidae uanescere nubes, Victaque mutati frangitur ira maris? Non casu, uos sed sub condicione uocati, Fallere quos non est, hanc mihi fertis opem.*

Ovídio

* in: OVIDE. Tristes. Texte étabili et traduit par Jacques Andre. Paris, Les Belles Lettres, 1987.

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Então vós que não ultrajei, julgo, com nenhuma ofensa, Contentai, agora, suplico, com nossos males. Todavia, mesmo que todos desejais salvar um infeliz, Não pode ser salva a vida que já se extinguiu.15 Ainda que o mar se acalme e que goze de ventos favoráveis, Ainda que me poupeis, não menos exilado serei. Não sulco, ávido por adquirir, sem limite, riquezas, O imenso mar para barganhar mercadorias; Nem me dirijo a Atenas, que outrora procurei como estudioso, Nem às cidades da Ásia, nem a locais antes vistos; Nem à famosa cidade de Alexandre sou levado, Para que veja, ó alegre Nilo, tuas delícias.16 Isto desejo, ventos favoráveis - quem poderia acreditar? A Sarmácia17 é a terra que minhas velas buscam. Sou obrigado a atingir os inóspitos litorais do lado sinistro do Ponto18 E me queixo que seja tão lento o desterro da pátria; Para que veja os tomitas,19 situados em não sei que parte do mundo, Torno, por meus votos, o trajeto breve. Se me amais, acalmai as imensas vagas E favoráveis sejam vossos numes à nossa embarcação; Mas se me odiais, volvei-me à terra determinada: Parte de meu suplício está nessa região. Carregai - que faço aqui? -, ó velozes ventos, meu corpo! Por que minhas velas desejam os limites ausônicos?20 Não o queria César. Por que, a quem ele expulsou, retendes? Que a terra pôntica veja minha face. Não só ele ordena, como também mereci; nem julgo Ser justo e pio defender-se de crimes que ele condenou. Se, todavia, os atos dos mortais nunca aos deuses enganam, Sabeis que do meu erro ausenta-se o crime. Ora pois, se sabeis que é assim, se meu erro arrebatou-me E meu espírito foi insensato, não criminoso: Se, o que é permitido até aos mais humildes, dediquei-me àquela casa, Se as ordens de Augusto para mim eram lei, Se eu disse que, sob seu império, eram venturosos os séculos E a César e aos Césares, pio, ofereci incenso, Se foi esta minha intenção, poupai-me, ó deuses! Se não, ao precipitar-se, cubra a imensa onda minha cabeça! Engano-me ou começam a se dissipar as densas nuvens, E a ira aplacada do mar mudado se enfraquece? Não pelo acaso, mas vós, invocados sob esta condição, Aos quais não se pode enganar, a mim trazeis este auxílio.

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Tradução de Patrícia Prata

15 Ovídio, nesse verso, faz referência ao exílio através da metáfora da morte física, visto esse ser considerado pelos romanos como uma morte em vida, pois pressupõe a perda de todos os direitos civis. Além disso, o protagonista estabelece, entre os versos 59 a 72, um paradoxo, pois a súplica que faz aos deuses em prol de sua vida contrapõe-se ao fato dela já ter se extinguido. 16 Alexandria era famosa pelo luxo excessivo, por seu centro cultural e pelos divertimentos. 17 A Sarmácia era uma vasta região ao norte da Europa que se estendia até os limites conhecidos da Ásia. 18 O exilado tem que atingir a margem esquerda (em relação a quem navega do estreito de Bósforo para cima) do Ponto Euxino (atual Mar Negro). Além dessa indicação geográfica, o adjetivo laeuus, aqui traduzido por “sinistro”, significa “de mau agouro”, “funesto”. Então, alude tanto à localização geográfica quanto ao trágico destino de Ovídio. 19 Moradores de Tomos (atual Constanza na Romênia), cidade que ficava na região do Ponto Euxino, próxima à Sarmácia, para onde Ovídio fora exilado. 20 Ausônia é um termo poético para designar a Itália (cf. Oxford Latin Dictionary, 1969).

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Les belles infidèles

Robson Tadeu Cesila1

A morte de Narciso – Haroldo de Campos (tradução das Metamorfoses de Ovídio, III, 407-510) A tradução de Haroldo de Campos do episódio da morte de Narciso1, narrada por Ovídio no livro terceiro de suas Metamorfoses, serve como uma breve demonstração do talento poético e da extrema habilidade que permeiam toda a obra do Haroldo tradutor. Se acompanharmos verso a verso a sua tradução, apreciando e comentando as soluções encontradas por ele em sua tentativa de reproduzir em português a poeticidade do texto ovidiano, perceberemos que a versão portuguesa é tão bela quanto o texto de Ovídio. Os efeitos sonoros, sintático-lexicais e rítmicos, além de outros recursos expressivos utilizados pelo poeta latino, não passaram despercebidos ao tradutor brasileiro, que reproduziu quase sempre tais efeitos em sua tradução. Para verter o hexâmetro ovidiano, Haroldo de Campos opta por uma métrica regular, adotando o verso dodecassílabo ou alexandrino, que, de resto, é talvez o metro mais utilizado, dentre os que se propõem a uma métrica regular, para se verter o hexâmetro, seja ele latino ou grego2 . Passemos então ao poema traduzido e à nossa apreciação dos versos de Haroldo-Ovídio, mas reproduzamos antes os versos do original latino3 referentes ao trecho vertido. Bibliografia CAMPOS, Haroldo de. Crisantempo: no espaço curvo nasce um. São Paulo: Perspectiva, 1998. OVIDE. Les Métamorphoses. Texte établi et traduit par Geoges Lafaye (2a impr. da 8a ed. revista e corrigida por J. Fabre). Paris: Les Belles Lettres, 1999. Tome I. MAROUZEAU, J. Traité de Stylistique Latine. 2a ed. Paris: Les Belles Lettres, 1946. Robson Tadeu Cesila é mestre e doutorando em Lingüística, área Letras Clássicas, IEL/UNICAMP. 1 In: Campos, Haroldo de. Crisantempo: no espaço curvo nasce um. São Paulo: Perspectiva, 1998. 2 O próprio Haroldo, em sua tradução da Ilíada de Homero, utilizou o alexandrino. Odorico Mendes, por outro lado, se propôs a algo mais árduo, utilizando o decassílabo para traduzir o hexâmetro virgiliano. 3 Extraído da edição “Les Belles Lettres”: Ovide. Les Métamorphoses. Texte établi et traduit par Geoges Lafaye (2a impr. da 8a ed. revista e corrigida por J. Fabre). Paris, 1999. Tome I.

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Metamorfoses Fons erat inlimis, nitidis argenteus undis, Quem neque pastores neque pastae monte capellae Contigerant aliudue pecus, quem nulla uolucris Nec fera turbarat nec lapsus ab arbore ramus. Gramen erat circa, quod proximus umor alebat, Siluaque sole locum passura tepescere nullo. Hic puer, et studio uenandi lassus et aestu, Procubuit faciemque loci fontemque secutus. Dumque sitim sedare cupit, sitis altera creuit; Dumque bibit, uisae correptus imagine formae, Spem sine corpore amat; corpus putat esse quod umbra est. Adstupet ipse sibi uultuque inmotus eodem Haeret, ut e Pario formatum marmore signum. Spectat humi positus geminum, sua lumina, sidus Et dignos Baccho, dignos et Apolline crines Impubesque genas et eburnea colla decusque Oris et in niueo mixtum candore ruborem Cunctaque miratur quibus est mirabilis ipse. Se cupit inprudens et qui probat ipse probatur, Dumque petit petitur pariterque accendit et ardet. Inrita fallaci quotiens dedit oscula fonti! In mediis quotiens uisum captantia collum Bracchia mersit aquis nec se deprendit in illis! Quid uideat, nescit; sed quod uidet, uritur illo, Atque oculos idem, qui decipit, incitat error. Credule, quid frustra simulacra fugacia captas? Quod petis, est nusquam; quod amas, auertere, perdes. Ista repercussae, quam cernis, imaginis umbra est. Nil habet ista sui; tecum uenitque manetque; Tecum discedet, si tu discedere possis. Non illum Cereris, non illum cura quietis Abstrahere inde potest; sed opaca fusus in herba Spectat inexpleto mendacem lumine formam Perque oculos perit ipse suos; paulumque leuatus, Ad circumstantes tendens sua bracchia siluas: “Ecquis, io siluae, crudelius” inquit “amauit? Scitis enim et multis latebra opportuna fuistis. Ecquem, cum uestrae tot agantur saecula uitae, Qui sic tabuerit, longo meministis in aeuo? Et placet et uideo; sed quod uideoque placetque Non tamen inuenio; tantus tenet error amantem. Quoque magis doleam, nec nos mare separat ingens Nec uia nec montes nec clausis moenia portis; Exigua prohibemur aqua. Cupit ipse teneri; Nam quotiens liquidis porreximus oscula lymphis, Hic totiens ad me resupino nititur ore. Posse putes tangi; minimum est, quod amantibus obstat. Quisquis es, huc exi; quid me, puer unice, fallis? Quoue petitus abis? certe nec forma nec aetas

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A morte de Narciso Fonte sem limo, pura prata em ondas límpidas, jorrava.1 Nem pastor se achega, nem pastando seu rebanho montês, ou gado avulso, acode.2 Nem pássaro, nem fera, nem, tombando, um ramo perturba a úmida grama que o frescor irriga. O bosque impede o sol de aquentar este sítio.3 Da caça e do calor exausto, aqui vem dar Narciso, seduzido pela fonte amena4 . Se inclina, vai beber, mas outra sede o toma: enquanto bebe o embebe a forma do que vê.5 Ama a sombra sem corpo, a imagem, quase-corpo.6 Se embevece de si, e no êxtase pasmo,7 é um signo marmóreo, uma estátua de Paros.8 De bruços, vê dois sóis, astros gêmeos, seus olhos.9 Contempla seus cabelos dignos de Apolo ou de Baco; suas faces, seu pescoço branco10 , a elegância da boca; a tez, neve e rubor.11 No mirar-se, admira o que nele admiram.12 Deseja-se a si próprio, a si mesmo se louva, súplice e suplicado, ateia o fogo e arde.13 Quantos beijos vazios deu na mentira d’água! Quantas vezes tentou captar o simulacro e mergulhou os braços abraçando nada!14 Não sabe o que está vendo, mas no ver se abrasa: o que ilude seus olhos mais o açula ao erro. Crédulo buscador de um fantasma fugaz!15 O que buscas não há: se te afastas, desfaz-se. Esta imagem que colhes é um reflexo: foge, não subsiste em si mesma. Vem contigo. Fica se estás. Se partes – caso o possas – ela esvai-se.16 Nem Ceres – o alimento, nem o sono – paz, nada o tira de lá. Prostrado em relva opaca contempla as falsas formas sem saciar os olhos.17 Por seu olhar se perde. Meio-erguido, os braços aos bosques circunstantes agitando, indaga:18 “Houve, bosques, como este, outro amor tão cruel? Sabeis. Destes refúgio a muitos que sofriam de amor.19 Houve outro em tantos séculos de vida – vossa memória é longa – que como eu penasse? Vejo o que amo, mas o que amo e vejo20 , nunca posso tomá-lo, e em tanto erro insisto amando. O que mais dói porém: não nos separa um mar, montes, caminho longo, sólidas muralhas.21 Água exígua nos tolhe.22 O outro também aspira a mim: sempre que beijo a amada face líquida,23 seus lábios refletidos tendem para os meus.24 É como se o tocasse: nos impede um mínimo.25 Sai fora dessa fonte! Vem! Por que me iludes, evasivo menino?26 Em formas ou idade,

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Est mea quam fugias et amarunt me quoque nymphae. Spem mihi nescio quam uultu promittis amico; Cumque ego porrexi tibi bracchia, porrigis ultro; Cum risi, adrides. Lacrimas quoque saepe notaui Me lacrimante tuas; nutu quoque signa remittis; Et, quantum motu formosi suspicor oris, Verba refers aures non peruenientia nostras. Iste ego sum; sensi, nec me mea fallit imago; Vror amore mei, flammas moueoque feroque. Quid faciam? roger anne rogem? quid deinde rogabo? Quod cupio mecum est; inopem me copia fecit. O utinam a nostro secedere corpore possem! Votum in amante nouum, uellem quod amamus abesset. Iamque dolor uires adimit, nec tempora uitae Longa meae superant, primoque exstinguor in aeuo. Nec mihi mors grauis est posituro morte dolores; Hic, qui diligitur, uellem diuturnior esset. Nunc duo concordes anima moriemur in una.” Dixit et ad faciem rediit male sanus eandem Et lacrimis turbauit aquas, obscuraque moto Reddita forma lacu est. Quam cum uidisset abire: “Quo refugis? remane nec me, crudelis, amantem Desere;” clamauit “liceat, quod tangere non est Adspicere et misero praebere alimenta furori.” Dumque dolet, summa uestem deduxit ab ora Nudaque marmoreis percussit pectora palmis. Pectora traxerunt roseum percussa ruborem, Non aliter quam poma solent, quae, candida parte, Parte rubent, aut ut uariis solet uua racemis Ducere purpureum nondum matura colorem. Quae simul aspexit liquefacta rursus in unda, Non tulit ulterius; sed, ut intabescere flauae Igne leui cerae matutinaeque pruinae Sole tepente solent, sic attenuatus amore Liquitur et tecto paulatim carpitur igni. Et neque iam color est mixto candore rubori, Nec uigor et uires et quae modo uisa placebant, Nec corpus remanet, quondam quod amauerat Echo. Quae tamen ut uidit, quamuis irata memorque, Indoluit, quotiensque puer miserabilis “eheu!” Dixerat, haec resonis iterabat uocibus “eheu!” Cumque suos manibus percusserat ille lacertos, Haec quoque reddebat sonitum plangoris eundem. Vltima uox solitam fuit haec spectantis in undam: “Heu frustra dilecte puer!” totidemque remisit Verba locus; dictoque uale “uale!” inquit et Echo. Ille caput uiridi fessum submisit in herba; Lumina mors clausit domini mirantia formam. Tum quoque se, postquam est inferna sede receptus, In Stygia spectabat aqua. Planxere sorores Naides et sectos fratri posuere capillos; Planxerunt dryades; plangentibus adsonat Echo. Iamque rogum quassasque faces feretrumque parabant; Nusquam corpus erat; croceum pro corpore florem Inueniunt foliis medium cingentibus albis. Ovídio

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nada em mim pode haver que te repugne. Ninfas me amaram! No teu rosto leio bons prenúncios: quando te estendo os braços, braços me distendes;27 se rio, sorris; lágrimas respondem lágrimas, se choro; a meu aceno, acena tua cabeça.28 Adivinho palavras em tua linda boca, móveis palavras, que ao ouvido não me chegam.29 Sou eu este outro! Não me ilude a imagem fútil.30 Queimo no amor de mim, no incêndio que me ateio.31 Que hei de fazer? Rogando, sou rogado. A quem e como suplicar? A mim cobiço e tenho: pobre e rico de mim.32 Quero evadir meu corpo,33 desejo estranho num amante! Separar-se daquilo mesmo que ama.34 Agora a dor vence. Exaurido de amor, expiro em minha aurora.35 A morte não me pesa, alivia-me as penas. Quisera perdurar naquele a quem adoro: ambos, num só concordes, morreremos juntos.”36 Diz, e volta abismado a contemplar o espelho d’água, e o turva de lágrimas, e a imagem vã em círculos dissipa-se.37 Ao vê-la que foge, exclama: “Fica! Não me destituas, má visão, cruel fantasma em que me nutro e onde, intocado de mim, deliro de paixão!”38 Rasga, doido de dor, as vestes em pedaços e pune o peito nu com seus dedos de mármore.39 Ferido, o peito vai-se tingindo de rubro,40 como um fruto que em parte se oferece branco e em parte enrubesce; ou as uvas num cacho, imaturas, aos poucos se fazendo púrpura.41 Quando – igual – se revê na onda liqüefeita,42 não mais suporta. Como a cera loura funde ao fogo leve e a fria geada matutina desfaz-se ao sol, assim Narciso, pouco a pouco, pela chama de amor se fina e se consome.43 Sua tez não mais figura neve enrubescida,44 nem força, nem vigor, tudo o que à vista agrada, nada resta em seu corpo, outrora amado de Eco,45 a ninfa, que ao fitá-lo se condói, ferida embora pelo seu desprezo.46 A ninfa chora e “Ai!” lhe responde aos “ais”, duplica seus lamentos. Toda vez que ele fere os braços, repercute o som dos golpes Eco. Às águas familiares voltando o olhar, Narciso diz com voz extrema: “Fugaz menino amado! Ai! E o sítio em torno lhe repete as palavras. Diz: “Adeus!” e “Adeus!” retorna a ninfa.47 Então no verde pousa a fronte.48 A noite lhe clausura os olhos, luz que se ama.49 Recebido no Inferno, assim mesmo esses olhos se deleitam, mirando-se no Estígio.50 Choram as Náiades o irmão, em tributo cortando os cabelos.51 As Dríades deploram52 . Eco53 ressoa o pranto. As tochas fúnebres se agitam.54 Mas o corpo não há. Em seu lugar floresce um olho de topázio entre pétalas brancas. 55

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Revista de tradução Modelo 19 nº 15

Notas 1 O verso latino correspondente é riquíssimo em efeitos sonoros, os quais foram reproduzidos pelo tradutor. A repetição final da consoante [ s ] (fonS ... inlimiS, nitidiS argenteuS undiS) , por exemplo, se presta a reproduzir o ruído do fluir das águas da fonte, mesmo efeito do verso de Virgílio (En. I, 165) citado por Marouzeau (p. 28): inque Sinus Scindit SeSe unda reductoS. Ao contrário da passagem virgiliana, porém, a atmosfera do verso de Ovídio é doce, agradável e amena; o local que abriga a fonte é deserto, tranqüilo, silencioso, não freqüentado pelos rebanhos e pastores, como se verá mais abaixo. A aliteração do [ s ], portanto, não reproduz apenas o fluir das águas, mas a tranqüilidade e doçura do local. Contribuem para esse efeito as consoantes líqüidas em eRat, inLimis e aRgenteus , além da fricativa em Fons, todas correspondendo a sons que evocam a fluidez, o correr de um líquido. Vejamos como H. de Campos traduziu o verso: manteve as consoantes [ s ] em “ondaS límpidaS”, além de ter traduzido o adjetivo inlimis por uma expressão também contendo [ s ]: “Sem limo”. Embora tenha perdido duas sibilantes (fonS e argenteuS), compensou o efeito do original com a multiplicação das líqüidas: “Límpidas” traduz nitidis e “puRa pRata” argenteus, além da manutenção da líquida em “Limo”. Quanto às fricativas, note-se que o tradutor mantém o [ f ] de Fons (o que era esperado) e toma a liberdade de introduzir um verbo não presente no original, mas repleto de fricativas: “jorrava”, além de trazer semanticamente a idéia de fluidez, movimento de líquidos, possui três fricativas que auxiliam na produção desse efeito ([ Z ], [ r ] e [ v ]). Atentemos também para a posição do vocábulo argenteus no texto latino: adjetivo que evoca a cor clara e brilhante e a pureza da prata, ele está no meio de um sintagma repleto de vogais [ i ] – nItIdIs ... undIs (sem falar ainda no InlImIs precedente) –, som esse que Marouzeau (p. 31) aponta como capaz de exprimir claridade, luminosidade, brilho (cf. En. I, 178: sIlIcI scIntIllam excudIt), e que – acrescentamos – pode também lembrar o som metálico inerente a um mineral sólido como a prata. Podemos dizer que H. de Campos substitui o som [ i ] por outro elemento sonoro capaz de evocar sensações de luminosidade e brilho, o [ a ], além, evidentemente, de ter mantido três [ i ]’s: lImo, purA prAtA ... ondAs lÍmpIdAs ... jorrAvA. O “pura prata” de Haroldo, como seus sons plosivos iniciais ([ p ]) e internos ([ t ] de “prata”), evoca igualmente a luz e o brilho da prata, além do jorrar da água (cf. exemplos de Marouzeau, p. 29: En., II, 694: faCem duCens multa Cum luCe CuCurrit; Horácio, Ep. I, 10, 21: Quam quae Per Pronum trePidat cum murmure riuum). Enfim, notemos que esse verso 407 de Ovídio é composto por dátilos e espondeus alternados ( Fôns ?rãt/ înlî/mîs n?t?/dîs âr/gçnt??s/ ûndîs ), o que poderia representar o ondular da água da fonte (reencontraremos esse efeito em dois outros versos mais adiante – 486 e 505 –, todos centrados no elemento água). Assim, temos um excelente caso de harmonia imitativa, uma vez que, para se obter o efeito de sugerir, nos próprios significantes que compõem o verso, o ruído e o movimento da água da fonte, contribuem dois elementos expressivos: os jogos aliterativos e a alternância de pés poéticos. 2 Continuando a descrição do locus amoenus a que logo chegará Narciso, Ovídio refere-se à tranqüilidade do local, não freqüentado por pastores e seus rebanhos, e parece ter sido pretendido pelo poeta algum efeito sonoro com a repetição de oclusivas (sobretudo [ k ], [ p ] e [ t ]) nos versos 408-409, talvez imitando o saltitar das cabras e outros animais dos rebanhos que ali não vem pastar: Quem neQue PasTores neQue PasTae monTe CaPellae/ ConTingeranT aliudue PeCus . A intenção do poeta parece não ter passado despercebida pelo tradutor: “Nem PasTor se acheGa, nem PasTanDo/ seu reBanho monTês, ou GaDo avulso, aCoDe”. E qual seria a razão da forte presença das nasais que já vem desde o verso 407? Será que em FoNs erat iNliMis, Nitidis argeNteus uNdis as nasais tentam reproduzir o ondular da água da fonte? Ou o murmurejar dessa mesma água, ruído esse muito fraco e só audível devido ao silêncio do local? Em queM Neque pastores Neque pastae MoNte Capellae/ CoNtiNgeraNt aliudue pecus, queM Nulla..., talvez a explicação seja mais fácil, uma vez que Quintiliano (Inst. Or., XII, 10, 31, apud Marouzeau, p. 29) já chamara a letra M de littera mugiens, conveniente portanto para a expressão do mugido dos rebanhos. De qualquer forma, vemos que H. de Campos procurou manter essa repetição de sons nasais. Assim, temos “FoNte seM liMo, pura prata eM oNdas líMpidas”, por exemplo, em que o tradutor conseguiu o mesmo número de nasais que o original. E, em “NeM pastor se achega, NeM pastaNdo/ seu rebaNho MoNtês”, Haroldo ganhou algumas nasais ao optar pelo gerúndio “pastando” e pelo substantivo “rebanho”, além de ter encontrado uma feliz solução com o adjetivo “montês”.

3 Este verso 412 é de uma sonoridade inquestionável, tanto no original quanto na tradução. Não há como não associar as sibilantes de Siluaque Sole locum paSSura tepeScere nullo com a atmosfera agradável que permeia o local descrito pelo poeta, levando-se em conta que o som [ s ] nos remete a um estado de silêncio, tranqüilidade (o próprio ruído que produzimos quando desejamos que as pessoas fiquem em silêncio é uma longa e prolongada emissão do som [ s ]). Podemos pensar nessa hipótese, muito embora o conteúdo do verso remeta mais a um estado de frescura, umidade, do que propriamente de silêncio. Assim manteve Haroldo as sibilantes: “O boSque impede o Sol de aquentar eSte Sítio”. Notemos o uso de uma tradução ao mesmo tempo poética e agradável para silua, e que tem, além disso, a virtude de possuir uma sibilante: “bosque”. Os [ s ]’s de passura e tepescere foram compensados pelo demonstrativo “este” e pela tradução de locum por “sítio”. 4 Haroldo não reproduziu a aliteração dos objetos diretos coordenados faciemque fontemque (“a beleza e a fonte [do local])”. Porém, multiplica o efeito das fricativas presentes no original (Hic puer, et Studio uenandi laSSuS et aeStu,/ Procubuit Faciemque loci Fontemque SecutuS), dando continuidade à atmosfera de silêncio e tranqüilidade produzida pelas aliterações do verso 412: “Da caÇa e do calor eXauSto, aqui vem dar/ NarCiSo, SeduZido pela Fonte amena”. 5 Tendo perdido, no verso anterior, a aliteração em [ s ] de Sitim Sedare, o tradutor nos brinda aqui com este elegante jogo de palavras – também aliterativo – em “bebe” e “embebe”, esta última traduzindo correptus (“tomado”, “preso”). A imagem criada por Haroldo – criada, já que não está presente no original – é a de um reflexo (pelo qual Narciso se apaixona) que se insinua, se infiltra como água (“embebe”) no seio do jovem. Assim, Haroldo ressalta a idéia das “duas sedes” a que Ovídio se referira no verso anterior: a sede de água e a sede de paixão. 6 “Imagem”, juntamente com o composto, bem ao gosto de H. de Campos, “quase-corpo”, vertem a oração corpus putat esse quod unda est, “pensa ser corpo o que é água”. Note-se, no verso original, como a repetição de palavras pode sugerir a “repetição” – o reflexo – da imagem de Narciso na água. O efeito, reproduzido por H. de Campos, reaparecerá em outros versos do trecho que estamos analisando. 7 Mantém-se na tradução o jogo aliterativo presente em AdStupet ipSe Sibi: “Se embevece de si”, e acrescenta o tradutor mais algumas fricativas em “êXtaSe paSmo”, que traduz uultuque inmotus eodem/ Haeret. Interessante é o achado de Haroldo: o verbo “embevecer” tem a mesma origem que “embeber” e “beber”, sendo, portanto, ligado ao campo semântico da água, do líqüido, que permeia todo o episódio ovidiano, uma vez que a imagem que causa a paixão amorosa e a perda de Narciso é um reflexo na água. 8 Não sendo possível, em português, transpor facilmente a estrutura quiasmática do original (a expressão adjetivante e Pario, que vem em primeiro lugar na frase, qualifica e concorda com o terceiro termo da mesma, marmore, enquanto o particípio formatum, que vem em segundo lugar, qualifica e concorda com o quarto termo da frase, signum), H. de Campos modifica as adjetivações, criando “signo marmóreo” e “estátua de Paros” para um conjunto que se traduziria literalmente “estátua feita de mármore de Paros”. 9 Os “dois sóis” são liberdade do tradutor, pois não estão no original; porém, mantêm algo da metáfora latente em lumina. 10 “Ebúrneo” caberia perfeitamente na métrica e manteria em português uma palavra próxima da do original, mas talvez fosse deselegante e sonoramente desagradável dizer “pescoço ebúrneo”, destoando do tom leve e delicado dessa “autodescrição” de Narciso. Destoaria também da linguagem da tradução de Haroldo, que parece primar pela simplicidade e evita vocábulos excessivamente eruditos. 11 Com “neve e rubor”, o tradutor diz tudo o que é necessário dizer em apenas dois vocábulos, sintetizando a série in niueo mixtum candore ruborem (“[na tez, vê] no níveo candor o rubor misturado”). 12 O verbo “mirar-se” (note-se a substantivação) contribui para a aliteração em [ m ], embora não esteja no original. É sonoramente belo o verso criado por Haroldo, “No mirar-se, admira o que nele admiram” (a versão literal seria: “e ele próprio admira todas as coisas graças às quais ele é admirado/admirável”). 13 Ovídio insere uma série de pares antitéticos que designam o amante e o amado, o que ama e o objeto amado, que, no caso de Narciso, são uma mesma coisa, uma mesma pessoa. É belíssima a passagem e belíssimo é o drama de Narciso: a sua paixão é impossível porque o ser amado não existe, é parte do ser que ama, e, ao mesmo tempo que está próximo e acessível, não o está. Mas deixemos de antecipar as angústias amorosas presentes nos monólogos de

Revista de tradução Modelo 19 nº 15 Narciso, que virão mais adiante. O que me parece problemático na tradução de Haroldo do trecho acima é a supressão do adjetivo inprudens, “sem saber”. Isso porque, até os versos 463-464, Narciso parece não ter percebido ainda que o objeto de seu amor é uma imagem de si próprio, o que bem demonstra o v. 430: quid uideat, nescit , “não sabe o que vê”. Somente nos versos 463-464 o personagem parece se dar conta de que o amado é na verdade seu próprio reflexo no espelho líquido da fonte: Iste ego sum; sensi nec me mea fallit imago;/ Vror amore mei, flammas moueoque feroque, “Este outro sou eu; compreendi e minha imagem não me engana;/ Ardo de amor por mim; produzo e porto as chamas!”. Esta triste constatação vem, porém, tardiamente: Narciso não pode mais refrear a paixão por si próprio. É importante notar também a repetição de estruturas vocabulares presente nos versos 424-426 de Ovídio, repetição essa reproduzida pelo tradutor. Esse fenômeno cria o efeito, já aludido por nós mais acima, de sugerir graficamente o reflexo da imagem do personagem na água (cf. nota ao verso 417). Vejamos: Cunctaque miratur quibus est mirabilis ipse./ Se cupit inprudens et qui probat ipse probatur,/ Dumque petit petitur pariterque accendit et ardet . Haroldo: “No mirar-se, admira o que nele admiram./Deseja-se a si próprio, a si mesmo se louva,/ súplice e suplicado, ateia o fogo e arde”. 14 Temos, no original, uma ordem expressiva das palavras nos versos 428-429, efeito esse que não foi contemplado pelo tradutor em sua versão, o que é compreensível, já que, das peculiaridades da língua latina em relação ao português, talvez a sintaxe mais livre do latim seja a que mais dificuldades oferece ao tradutor que tenta reproduzir efeitos de sintaxe expressivos do original. Note-se que Ovídio insere no meio do sintagma In mediis ... aquis toda a seqüência quotiens uisum captantia collum/ Bracchia mersit, como se quisesse representar concretamente, “graficamente”, a ação de Narciso, que mergulha nas águas da fonte os braços que buscam capturar a imagem fugidia (a tradução literal seria algo como: “Quantas vezes mergulhou em meio às águas os braços buscantes/que buscavam o pescoço visto!”). Se não for para um efeito expressivo, o que explicaria o fato de Ovídio deslocar para tão longe, para o verso seguinte, o núcleo do sintagma anunciado por in mediis? 15 Poderíamos pensar que as fricativas desse verso pretendem sugerir a fugacidade da imagem que Narciso tenta abraçar, imagem essa que é ar, vento, água, nada. Se assim for, Haroldo tentou reproduzir a série ... FruStra Simulacra Fugacia captaS em “buScador de um FantaSma FugaZ”, compensando a perda das fricativas do advérbio frustra com o substantivo “fantasma”, rico nesse tipo de som. 16 Todo esse trecho que vai dos vv. 432 a 436 é como que uma admoestação que a voz narrativa faz a Narciso, chamado-o à realidade, à razão. A presença das fricativas, que apontamos na nota anterior nos referindo ao verso que inicia a “fala” do narrador, pode ser também sentida em todo o trecho, sugerindo a fugacidade, a efemeridade e ligeireza da imagem amada. Vejamos: Quod petiS eSt nuSquam; quod amaS, auertere, perdeS./ ISta repercuSSae, quam cerniS, imaginiS umbra eSt./ Nil Habet iSta Sui; tecum uenitque manetque;/ tecum diScedet, Si tu diScedere poSSiS . Haroldo não só mantém essas aliterações, mas chega quase a duplicar o seu número: “O que buScaS não há: Se te afaStaS, deSFaZSe./ ESta imaGem que colheS é um refleXo: FoGe,/ não SubSiSte em Si meSma. Vem contigo. Fica/ Se eStáS. Se parteS – caSo o poSSaS – ela eSVai-Se”. Note-se ainda, no original, a repetição Tecum discedet, si tu discedere possis, que sugere, mais uma vez, o reflexo da imagem de Narciso (Haroldo não reproduziu a repetição em português). Temse, assim, mais um exemplo de harmonia imitativa, já que se aliam efeitos sonoros e sintático-lexicais para sugerir a imagem fugaz refletida na água. 17 É quase impossível reproduzir o quiasmo do original: inexpleto mendacem lumine formam. 18 A ordem das palavras do original também é, aqui, expressiva. O sintagma ad circumstantes siluas (“aos bosques circundantes”) é fragmentado e entre suas duas principais palavras é inserido a seqüência tendens sua bracchia (“elevando seus braços”), como se a própria ordem das palavras no verso representasse os bosques circundando Narciso, bosques esses aos quais ele se dirige elevando os braços. 19 “Que sofriam de amor” é por conta do tradutor. Ovídio diz simplesmente “fostes refúgio oportuno para muitos”. 20 Mais uma vez Ovídio repete vocábulos para materializar nos versos do poema a imagem de Narciso refletida na água: Et placet et uideo; sed quod uideoque placetque (Haroldo: “vejo o que amo, mas o que amo e vejo”).

97 21 Faltou traduzir ingens, “ingente”, “enorme”, que qualifica mare do verso anterior, e acrescentou-se, por outro lado, um adjetivo intensificador a uia (“caminho”): “longo”. 22 Narciso se lamenta porque, ao contrário de tantos outros amantes, separados pela distância ou por forte barreiras físicas, ele está a poucos centímetros do ser que ama, do qual é privado por uma fina e aparentemente frágil película d’água. Em nosso entender, o personagem ainda não percebeu, aqui, que se trata de sua imagem, e pensa que o que vê “atrás” do espelho d’água é algum ser divino, de fabulosa beleza, que se esconde sob a superfície líquida. 23 A expressão latina LiquidiS LymPHiS – “as líquidas linfas”, isto é, “líquidas águas límpidas” – apresenta a aliteração inicial do [ l ], consoante líquida que sugere exatamente o som ou a consistência da água, o que, pode-se dizer, é reforçado pelas fricativas [ s ] e [ f ] (não nos esquecendo também das outras palavras do verso: quotienS ... porreXimuS oScula). Haroldo tenta manter esses jogos aliterativos – “... Sempre que beiJo a amada FaCe Líquida” –, compensando a perda da líqüida de lympha com as duas fricativas de “face”. 24 Não sei se a melhor opção para traduzir resupino seria “refletidos”, tendo em mente o que dissemos mais acima sobre a ignorância de Narciso quanto ao fato de que o ser que ama é apenas sua imagem refletida. A nosso ver, essa constatação ocorre apenas mais abaixo, no verso 463. Os versos latinos dizem literalmente: “pois todas as vezes que dou beijos nas líqüidas linfas,/ ele [o jovem da água] se esforça com a boca inclinada em minha direção”. 25 No texto latino, os verbos estão agora na segunda pessoa; Narciso agora passa a se dirigir ao jovem que vê na água. Literalmente: “Pensas que eu posso tocá-lo”. 26 Haroldo omitiu o quisquis es (“quem quer que sejas”), talvez pela dificuldade de introduzir na métrica do verso esses relativos de sentido indefinido que tem de ser traduzidos, em português, por expressões um tanto longas. Também não traduziu unice, “amado”, “querido”. Por outro lado, resumiu em “evasivo” a interpelação Quoue petitus abis?, “Ou para onde te retiras, quando te busco?”. 27 O tradutor consegue evitar a repetição do verbo porrigere com um elegante par verbal sinonímico. 28 O trecho 458-460 é, no original e na tradução, repleto de repetições léxico-sintáticas que sugerem o reflexo da imagem do personagem. Assim, temos, em Ovídio, Cumque ego porrexi tibi bracchia, porrigis ultro;/ Cum risi, adrides. Lacrimas quoque saepe notaui/Me lacrimante tuas; nutu quoque signa remittis; e, em Haroldo, “quando te estendo os braços, braços me distendes;/ se rio, sorris; lágrimas respondem lágrimas,/ se choro; a meu aceno, acena tua cabeça”. 29 Note-se a habilidade do tradutor: quando pensamos que omitiu a palavra motu, do verso anterior (literalmente: “E do quanto posso supor do movimento de sua formosa boca...”), Haroldo nos surpreende com o “móveis palavras” deste verso. 30 Finalmente Narciso se dá conta de seu terrível engano, e vê que o que ama é apenas sua própria imagem refletida na água. “Fútil” não está presente no original, mas talvez o tradutor tenha desejado compensar a perda da fricativa do verbo fallit, som esse que evocaria a fugacidade ou falsidade da imagem. 31 Bela tradução para o que seria, literalmente, “Queimo de amor por mim, produzo e porto comigo as chamas!” 32 “Pobre e rico de mim” traduz maravilhosamente inopem me copia fecit, “minha riqueza fez-me miserável”, “minha riqueza causou minha miséria”. O amante é ao mesmo tempo rico e pobre, feliz e infeliz, pois tem em si próprio o que busca, mas o que busca não pode ser alcançado. É, em suma, uma riqueza ou uma felicidade que estará eternamente “em potencial”, porém, da qual jamais se poderá usufruir. 33 Será que a posição do verbo secedere (“apartar-se”, “separarse”) no meio do sintagma nostro ... corpore teria, para Ovídio, um efeito expressivo, como que sugerindo a separação do amante de seu corpo? Se assim for, não foi possível ao tradutor reproduzir o efeito. 34 Agora o personagem se rende ao desespero, vendo como única saída para sua angústia amorosa a fragmentação de seu “eu”, a separação de seu corpo, pois só assim ele poderia concretizar seu amor com aquele que ama. Ao mesmo tempo, esse desejo é estranho, pois amante nenhum deseja separar-se do ser amado. 35 “Expiro em minha aurora”, belíssima tradução para primoque exstinguor in aeuo. O “exaurido de amor”, porém, é liberdade do tradutor, pois não se encontra no original, que traz ... nec tempora uitae/Longa meae superant, literalmente: “... e longos tempos para minha vida não restam”. 36 Ao menos uma coisa é permitida àquele que contém em si próprio o objeto amado, ainda que este objeto seja inatingível: morrer junto dele. A morte, que separa tantas almas que se amam, não é capaz

98 de separar Narciso de seu amado, e, nisso, o drama de Narciso lhe dá uma vantagem que não é dada aos outros amantes. 37 “Em círculos” traduz moto lacu, “com o lago movimentado”, “com o movimento do lago”. As lágrimas de Narciso perturbam a água e desfazem a imagem refletida, tornam-na incerta, deformada (obscura), perdendo-se nos círculos formados pela movimentação da água ao ser tocada pelas lágrimas. Parece-nos que, nesse trecho, o tradutor criou efeitos sonoros aparentemente não pretendidos, ao menos aqui, por Ovídio. Referimo-nos às fricativas presentes nos versos de Haroldo, que traduziriam a fugacidade da imagem refletida, fuga essa que se dá pela movimentação da água: “e a imaGem Vã em CírculoS diSSipa-Se”. 38 Faltou, no v. 477, o Quo refugis (“Para onde foges?”) do original, e, por outro lado, há, na tradução, um “má visão” que não se encontra nos versos de Ovídio. Além disso, Haroldo recria bastante livremente os versos 478-479, para os quais a tradução literal seria: “... sejame permitido contemplar/ o que tocar não me é permitido, e fornecer um alimento à minha triste paixão”. Haroldo: “cruel fantasma em que me nutro e onde,/ intocado de mim, deliro de paixão!”. 39 Notemos, no original, os evidentes jogos aliterativos com as oclusivas, sobretudo [ d ] e [ p ], mas também [ t ] e [ k ], que sugerem o movimento e o ruído dos golpes que Narciso desfere em si próprio, tomado de dor e desespero, bem como o arrebatamento do personagem ao rasgar suas vestes: DumQue DoleT, summa uesTem DeDuXiT ab ora/ NuDaQue marmoreis PerCussiT PeCTora Palmis. H. de Campos reproduz esses efeitos, com “doido de dor” para os [ d ]’s de dumque dolet, e “pune o peito” para os [ p ]’s de percussit pectora. Não conseguindo manter a terceira aliteração em [ p ] de palmis, compensou-a com o som inicial de “pedaços”. Da mesma forma, compensou com os [ d ]’s de “dedos de” a aliteração não reproduzida de deduxit. Vejamos o trecho todo: “RasGa, DoiDo De Dor, as vesTes em PeDaços/ e Pune o PeiTo nu Com seus DeDos De mármore”. 40 O tradutor não reproduziu a aliteração do [ r ] em roseum ruborem. 41 Esse símile, composto por elementos do mundo vegetal, não seria já uma referência à metamorfose que sofrerá Narciso no final do episódio? De qualquer forma, a imagem ovidiana é belíssima: hematomas vão surgindo no peito de Narciso, talvez mesmo o corpo do jovem comece a sangrar sob o efeito de seus próprios golpes, misturando a brancura de sua pele com o rubor produzido, assim como um cacho de uvas que possui uvas maduras e outras imaturas, ou um fruto que aos poucos vai amadurecendo, apresentando superfícies verdes ou brancas junto de partes avermelhadas. 42 Note-se que, no original, o verso é composto por dátilos e espondeus alternados (Quâe s?m?l/ âspç/xît l?qu?/fâctâ/ rûrs?s ?n/ ûndâ), sugerindo o ondular da água da fonte, mesmo efeito por nós observado no verso 407. 43 Novo símile, sugerindo o sofrimento lento de Narciso, que aos poucos vai se consumindo, assim como a cera em fogo brando ou a geada que derrete sob o efeito do fraco sol do início da manhã. A nosso ver, a escolha desses símiles por Ovídio não é casual: a cera tem cor amarelada (o poeta a qualifica com flauae) e a geada é branca, cores essas que são exatamente as da flor narciso, ao menos da variedade à qual o poeta se refere em seus versos. 44 H. de Campos reaproveita a solução utilizada no verso 423 para se referir à brancura da pele de Narciso: “neve enrubescida”. 45 Ovídio parece deixar propositalmente para o fim do verso o nome da ninfa Eco (Echo), talvez sugerindo graficamente o fenômeno acústico que a ninfa representa, o qual faz com que ouçamos, ao final de uma elocução nossa, as últimas palavras por nós pronunciadas. O mesmo efeito parece ter sido pretendido pelo poeta mais adiante, no verso 501. No primeiro caso, manteve Haroldo a palavra no final do verso, o que não fez no segundo caso. 46 O desprezo de Narciso pela ninfa Eco é narrado no mesmo livro III das Metamorfoses, vv. 356-401. 47 Seria demais imaginar que o tradutor reproduz essa espécie de eco que se sente em inQUIT ET ECho em “retorNA A NINfa”? 48 Faltou o qualificativo festum de caput, “a fronte cansada”. 49 “Noite” como metáfora para “morte” (mors) é solução original, embora esta última coubesse também na métrica. “Luz que se ama” sintetiza domini mirantia formam, literalmente: “... (seus olhos), que admiravam a beleza de seu senhor”, isto é, os olhos admiravam a beleza daquele que era dono/senhor dos olhos. 50 Note-se, no original, o que já observamos para os versos 407 e 486: para sugerir talvez a ondulação da água do Estige, o verso é composto por dátilos e espondeus alternados (În Styg?/â spçc/tâbãt ã/quâ Plân/xçr? s?/rôrçs). 51 Note-se, no original, a ordem das palavras desse verso. Sectos (“cortados”) está separado do substantivo a que se refere, capillos (cabelos), sugerindo talvez o corte dos cabelos, a separação dos

Revista de tradução Modelo 19 nº 15 cabelos das Náiades de suas cabeças. Haroldo reproduz – conscientemente ou involuntariamente – essa ordem expressiva ao colocar “cortando” e “os cabelos” em versos diferentes. 52 H. de Campos evita repetir o mesmo verbo (plangere), repetição essa presente no original. Seria para criar uma aliteração (“as DríaDes Deploram”), também não presente nos versos de Ovídio? 53 Pela terceira vez Ovídio posiciona Echo como última palavra do verso (cf. nota ao verso 493), ordem essa que o tradutor mantém. 54 A despeito de ter simplificado a passagem – que, traz, literalmente, “E já se preparavam a pira funerária, as fracas tochas e o féretro” – , o tradutor tenta, aparentemente, reproduzir as séries de fricativas presentes no original, as quais podem sugerir o movimento das chamas das tochas fúnebres: Rogum quaSSaSque FaceS Feretrumque. Em Haroldo: “aS toCHaS FúnebreS Se aGitam”. 55 Interessante a solução do tradutor, que utiliza o nome de uma pedra preciosa – o topázio – que pode ser encontrado, na natureza, com diversas colorações, dentre elas o amarelo. A planta narciso tem diversas variedades e colorações, mas aquela que Ovídio tem em mente no episódio que estamos analisando possui o centro amarelado e as pétalas brancas. O trecho diz, em tradução literal: “em lugar do corpo uma flor cor de açafrão [amarela, portanto]/ encontram, com pétalas brancas cingindo o meio”. Assim, o “olho de topázio entre pétalas brancas” de H. de Campos traduz bem e criativamente os dois últimos versos do trecho. Quanto à expressividade da ordem das palavras, podemos ver, no verso 510, foliis cingentibus albis (“pétalas brancas cingindo”) abraçando, cingindo a palavra medium (“meio”), traduzindo o conteúdo, a mensagem do verso também através da disposição espacial dos vocábulos. Assim como o narciso é formado por um núcleo amarelo circundado por pétalas brancas, também o sintagma que representa estas últimas, foliis albis , circunda, cinge, o substantivo medium. Esse tipo de efeito expressivo dificilmente pode ser reproduzido em português.

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