Um Trabalho Duplamente Inovador [Prefácio]

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Descripción

Prefácio MAESTRI, Mário. Um trabalho Duplamente Inovador. in: CONFORTO, Marília. O escravo de papel: o cotidiano da escravidão na literatura do século XIX. Caxias: EDUCS, 2012. 147 pp.

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Um Trabalho Duplamente Inovador Mário Maestri

O escravo de papel: O cotidiano da escravidão na literatura do século XIX, da historiadora Marília Conforto, constitui trabalho duplamente pioneiro. Ele foi concluído, no já longínquo ano de 1993, como dissertação de mestrado, no PPGH da PUCRS, como parte do primeiro grande movimento historiográfico acadêmico-científico dedicado no nosso estado ao estudo da escravidão colonial sulina e brasileira. Com Marília Conforto, naquela importante campanha de pesquisas sobre a escravidão colonial no Rio Grande do Sul e no Brasil, participaram os historiadores Ester Gutierrez, Solimar Oliveira Lima, Agostinho Mário dalla Vecchia, 
 Valéria Zanetti, Euzébio Assumpção, Rita Gattiboni, Carmen Lúcia Santos Castro, Ana Regina Simão, que também defenderam dissertações de mestrado e teses de doutoramentos. Esses trabalhos foram produzidos sobretudo no Núcleo de História Social da Escravidão do PPGH da PUCRS, que tive o privilégio de dirigir. Muitos deles foram editados e reeditados, conquistando posições de destaque na historiografia sulina.1 Outros, permanecem lamentavelmente inéditos, conhecidos e consultados apenas por especialistas. É nesse último caso que se encontrava o valioso trabalho de Marília Conforto, agora publicado sem modificação de conteúdo em relação à redação final de 1993. Folga dizer que, há trinta anos, o trabalhador escravizado e o escravismo eram temas praticamente ignorados pela historiografia e pelas instituições universitárias do Rio Grande. Como lembra Jacob Gorender, em sua monumental tese O escravismo colonial, era como se o cativo tivesse como destino conhecer, nas representações historiográficas do passado, com destaque para as rio-grandenses, a minoração a que fora submetido na vida social, apesar da centralidade que ocupara como demiurgo social na Colônia e no Império.2 Aqueles historiadores abordaram exaustivamente como objeto de pesquisa a escravidão urbana em Pelotas, em Rio Grande, em Porto Alegre; a produção charqueadora pelotense; a resistência servil sulina; a arquitetura e escravidão das charqueadas e da vila de Pelotas; os filhos de criação, forma de subordinação da pós-Abolição; o triste quotidiano das mulheres escravizadas em Porto Alegre. Por desistência dos investigadores, ficaram inconclusas investigações sobre a escravidão e a economia pastoril e a África Pré-Colonial.  

 

! LIMA, Solimar Oliveira. Triste pampa: resistência e punição de escravos em fontes judiciárias no Rio 1

Grande do Sul - 1818 - 1833. Passo Fundo: EdUPF, 2006. [Malungo, 10]; GUTIERRES, Ester. GUTIERREZ, Ester J. B. Negros, Charqueadas & Olarias: um estudo sobre o espaço pelotense. 3 ed. Passo Fundo: EdiUPF, 2012. [Malungo, 20] ! GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. 5 ed. São Paulo: Perseu Abramo, 2011. P. 50. 2

Para aqueles estudos, entre outras fontes, esses jovens historiadores serviramse da documentação judicial; dos jornais do Império; dos relatórios dos presidentes da Província; da documentação administrativa imperial; dos relatos de viajantes que passaram pelo Rio Grande. Nesse processo, Agostinho Mário dalla Vecchia realizou enorme coleta de depoimentos de descendentes de trabalhadores escravizados sulinos, que teve igualmente o cuidado de publicar. Tratou-se da primeira campanha de coleta de depoimentos de afro-descendentes sobre a escravidão no Rio Grande e uma das primeiras do Brasil. 3 Parte integrante dessa campanha de investigação sobre a escravidão no Rio Grande do Sul, O escravo de papel: O cotidiano da escravidão na literatura do século XIX singularizou-se fortemente no que diz respeito ao espaço geográfico abordado, às fontes utilizadas e à démarche epistemológica. Marília Conforto debruçou-se sobre o Brasil imperial, tendo como principal fonte o romance ficcional em prosa do século 19. Seu trabalho tinha como objetivos obter informações empíricas sobre a escravidão; isolar as representações das classes dominantes sobre o mundo escravizado e sua evolução nos trinta últimos anos que precederam a Abolição. Para a produção de seu estudo, Marília Conforto analisou 25 romances, de onze ficcionistas de grande sucesso da segunda metade do século 19. Ou seja, de autores que, no processo de expressão e fecundação das consciências e das concepções de mundo das classes dominantes da sociedade imperial, deixaram registrados importantes depoimentos sobre a escravidão e sobre a percepção das ditas elites sobre ela. Na época, essa operação historiográfica, fortemente inovadora, motivou reproches e sorrisos irônicos de não poucos historiadores acadêmicos e extraacadêmicos que, embebidos de visões positivistas tacanhas que não raro abraçavam inconscientemente, impugnavam a utilização da literatura como fonte historiográfica, já que a concebiam como produto da imaginação subjetiva errática dos seus autores. 4 Passariam-se longos anos antes que as produções ficcionais em prosa e em verso fossem plenamente reconhecidas no Brasil como fontes historiográficas. Legitimação da aproximação entre a história e a literatura não raro contraditória e perneta, já que comumente associada à impugnação culturalista e solipcista da historiografia e da ficção literária como vias possíveis de aproximação objetiva tendencial dos fenômenos do passado. Em O escravo de papel: O cotidiano da escravidão na literatura do século XIX, Marília Conforto nos conduz pela mão mostrando-nos paisagens e facetas não raro inusitadas das ruas da Corte e das vilas do Brasil escravista, povoadas de cativos ganhadores, de quitandeiras, de negros fujões. Nos ricos sobrados, aponta cenas íntimas das alcovas das sinhazinhas casadoiras, engordadas pela inatividade, e de cativos estropiados pelos múltiplos, pesados e infindáveis serviços.  

 

! Cf. por exemplo: VECCHIA, Agostinho M. Dalla. Os filhos da escravidão: memórias de descendentes 3

de escravos da região meridional do Rio Grande do Sul. Pelotas: UFPEL, 1993. ! MAESTRI, Mário. História e Romance Histórico: Fronteiras. Novos Rumos, ano 17, n. 3, 2002, pp. 4

38-47. www2.marilia.unesp.br/revistas/index.php/novosrumos/article/view/2228

Apesar dos cenários urbanos dominarem nos romances da segunda metade do século 19, Marília Conforto ilumina, através dos olhos e dos sentimentos coevos àqueles tempos, cenários insólitos como a sala do tronco; as sessões de castigos; os negros sob ferros. Paisagens sociais hoje mais e mais edulcoradas por reconstruções piedosas daqueles anos em que dominava a ordem despótica dos escravizadores sobre os escravizados. Recuperação apologética da sociedade escravista já plenamente em curso quando a autora produziu seu trabalho.5 Na última parte de O escravo de papel: O cotidiano da escravidão na literatura do século XIX destaca-se o sensível registro da evolução das representações dos trabalhadores escravizados na produção ficcional. Marília Conforto assinala com perspicácia a evolução do status dos cativos, nos anos 1840-50, da posição de figurantes mudos, sem voz e alma, à situação de protagonistas ativos, negativos ou positivos, nas últimas décadas da escravidão, sob o calor da luta que levaria à revolução abolicionista, em 1888. Produzido há trinta anos, O escravo de papel: O cotidiano da escravidão na literatura do século XIX abriu sendas ainda não plenamente desbravadas pela historiografia da literatura brasileira. Certamente surpreenderá os leitores a sensível valoração positiva de romances como o Escrava Isaura, de Bernardo Guimarães, de 1872. Como em outros casos, esse romance tem sido fortemente impugnado e, não raro acusado de racismo, por ter como heroína cativa com atributos da mulher branca das classes dominantes. Consciente do caráter dominante da escravidão colonial, na qual a contradição entre escravizador e escravizado determinava, em forma explícita e implícita, a sociedade de então, Marília Conforto tem sempre presente a luta incessante, consciente e inconsciente, surda, latente ou aberta, do escravizado contra a escravidão. O que lhe permite compreender que autores como Bernardo Guimarães percebiam a produção literária como parte do combate contra a terrível instituição, despreocupados com os pruridos anacrônicos étnicos e racistas de tantos analistas contemporâneos. Os trabalhos historiográficos acadêmicos envelhecem inevitavelmente, assim como seus autores e, ainda mais, seus eventuais orientadores. A leitura de O escravo de papel: O cotidiano da escravidão na literatura do século XIX, da historiadora Marília Conforto, destaca-se pela sua singular jovialidade, registro indiscutível do caráter inovador das veredas que devassou, há já trinta anos.  

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! Cf. MATTOSO, Kátia de Q. Ser escravo no BrasiL. São Paulo: Brasiliense, 1982. 5

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