TRADUÇÃO da Introdução de Cartesian Logic de Stephen Gaukroger

June 22, 2017 | Autor: Monique Guedes | Categoría: Logic And Foundations Of Mathematics, Philosophy of Science, René Descartes
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INTRODUÇÃO

O período compreendido entre o final do declínio da lógica medieval, por volta do início do século XVI, e a publicação da Análise Matemática da Lógica de Boole, em 1847, é geralmente visto como um intervalo na história da lógica. Três áreas no desenvolvimento da lógica neste período podem ser distinguidas: o desenvolvimento da semântica, o desenvolvimento de sistemas de inferência dedutiva cada vez mais gerais e abstratos e o desenvolvimento de concepções sobre a natureza da inferência. No que diz respeito à semântica, ela é geralmente vista como a mais frutífera das três, embora, em seus aspectos principais, se desenvolva em grande parte com significativa independência em relação ao interesse mais geral por questões lógicas – e, de fato, depois da Lógica Terminista a semântica não será plenamente reintegrada à lógica senão a partir de Frege. Quanto ao segundo conjunto de interesses, o período representa verdadeiramente um intervalo, especialmente quando comparado à grande era da lógica medieval, de meados do século XII a meados do século XV, e aos desenvolvimentos da lógica que se seguiram desde Frege. E isto a despeito dos esforços de Leibniz, Euler, Gergonne, Hamilton e outros – esforços que permaneceram isolados do mainstream de lógica durante o período. O terceiro conjunto de interesses é mais difícil de avaliar. O que está envolvido nele são questões filosóficas sobre em que consiste a natureza da inferência, sobre se ela pode ser justificada, explicada ou esclarecida em termos mais fundamentais, em que sentido a inferência pode ser informativa e assim por diante. Estes temas foram negligenciados em comparação com os dois primeiros conjuntos de interesse, havendo uma suposição geral de que nada, ou ao menos nada de significativo, fora alcançado na durante este intervalo. De fato, o quadro é desolador. Não apenas parece haver uma incompreensão geral dos objetivos da silogística aristotélica, tanto por parte dos defensores quanto por parte dos detratores, por exemplo, como também em lugar das frequentes, plausíveis e atraentes concepções da antiguidade, encontramos os aparentemente mais banais e bizarros pontos de vista: o de que a inferência é simplesmente um processo psicológico (escolástica tardia), que as verdades lógicas são tais porque Deus escolheu fazê-las assim (Descartes) ou que raciocínios formais são inúteis (Locke).
Meu interesse neste livro reside no modo como Descartes lida com as questões filosóficas da inferência. Seu tratamento desta área como um todo foi extremamente influente, uma influência exercida não apenas através de seus escritos, tais como o Discurso do Método, mas também através de versões da concepção cartesiana de lógica oferecida na Lógica de Port-Royal de Arnaud e Nicole e no Ensaio de Locke. Que a concepção cartesiana de inferência tenha sido amplamente ignorada nas histórias da lógica não é, contudo, surpreendente como pode parecer à primeira vista. O problema (na medida em que os historiadores da lógica dele se ocupam) é, creio, que o contexto em que questões de inferência são suscitadas não é explicitamente lógico, mas usualmente dominado pela preocupação com aspectos da descoberta científica, embora possam também ser suscitadas no contexto de preocupações de teologia, teoria do conhecimento, pedagogia e assim por diante. Isto acarreta enormes problemas interpretativos, haja vista que o contexto da argumentação é frequentemente obscuro, e as perspectivas às quais Descartes se opõe dificilmente identificáveis. Na verdade, devo dizer que tem sido esta a causa de sérias incompreensões acerca da perspectiva mantida por Descartes sobre a inferência. Mas mesmo onde se pode identificar precisamente o contexto relevante da argumentação, a confusão persiste em torno do modo como as questões são postas, pois o contexto parece frequentemente inteiramente inapropriado. É muito comum encontrar questões sobre 'se a conclusão de um argumento nos diz algo diferente das premissas a partir das quais foi deduzida', por exemplo, sendo postas no contexto de questões sobre 'quais formas de investigação ou argumento nos capacita a descobrir algo (factualmente) novo'. Isto ocorre não apenas no século XVII, mas também na antiguidade e se estende até o século XIX. É relativamente fácil discernir aqui duas questões distintas, mas bem mais difícil explicar por que foram persistentemente tratadas como uma única questão por um período tão longo.
A concepção cartesiana de inferência interessa não apenas porque suscita questões lógicas e cognitivas como também questões sobre em que consiste a inferência – questões que são constitutivas dos problemas modernos sobre inferência (por exemplo, sobre como a inferência pode ser informativa), mas que estão amplamente ausentes em seus predecessores imediatos e que são formuladas de um modo muito diferente em seus predecessores remotos. Sua perspectiva é, com efeito, mais coerente do que os comentadores têm, em geral, admitido, e é instrumental no desenvolvimento de uma compreensão da inferência que, apesar de suas falhas, é muito superior àquela que prevaleceu no início do século XVII. Este fato foi negligenciado porque os comentadores assumiram que a alternativa à concepção de Descartes era aquela que incorporava a silogística aristotélica. Mas, em primeiro lugar, na medida em que Descartes e seus contemporâneos estão às voltas com a silogística aristotélica, eles lidam com o procedimento de descoberta científica e não com uma discussão acerca de padrões de inferência válidos ou em torno de em que consiste a inferência. Em segundo lugar, no âmbito das questões filosóficas sobre em que consiste a inferência, as preocupações de Descartes se voltam para as concepções ramistas e para aquelas da Escolástica tardia, e não para as de Aristóteles. Um número significativo de desenvolvimentos nos pensamentos medieval e renascentista suscitou novos problemas acerca 'do que e como conhecemos' que alteraram radicalmente o modo como as questões de inferência eram vistas. Esta mudança, do que eu chamo de uma concepção discursiva da inferência para uma concepção facultativa, preludiou efetivamente uma solução aristotélica para os problemas.
A silogística aristotélica é o tema do primeiro capítulo, onde abordo desde as críticas internas da silogística até a época de Descartes. Estas críticas são internas no sentido em que são destinadas a mostrar que a silogística não pode fazer o que reivindica (ou pensava reivindicar) ser capaz de realizar. Elas não constituem, contudo, o escopo da objeção de Descartes à silogística e, de fato, quem quiser detalhes delas deve buscar suas fontes antes em Sextus Empiricus que no século XVII, mas elas são assumidas por Descartes e nos fornecem uma boa ideia disso que Descartes e outros no século XVII esperavam da lógica.
O núcleo de sua posição é discutido no segundo capítulo que contém o cerne de meu próprio argumento. Há duas doutrinas que repercutem na perspectiva de Descartes sobre a inferência: (1) sua teoria de que a inferência deve ser compreendida como um intuitus, e a doutrina de que verdades eternas são livremente criadas por Deus. É de extrema importância aqui ter presente que estas não são parte da mesma doutrina, como geralmente se supôs. A verdade da primeira é que a inferência é simples e primitiva, que é, além disso, não analisável e nem, mais importante, redutível a processos psicológicos ou recursos pedagógicos ou o que quer que seja. Aqui, Descartes é particularmente desafiador em relação a perspectivas contemporâneas consideráveis. (2) A segunda doutrina, afirmo, não tem qualquer influência sobre questões lógicas de inferência, mas tem influência sobre o estatuto cognitivo da inferência, pois, ao contrário do que parece, capacita Descartes a dissociar nosso processo de raciocínio do modelo divino e, desse modo, fornece um fundamento para a primitividade e confiabilidade do processo humano de raciocínio. A interpretação geral da concepção de Descartes da inferência que ofereço é bastante diferente das que outros propuseram, mas creio que nos capacita a assegurar um maior sentido do que, com frequência, se vê em considerações desconcertantes.
No terceiro e quarto capítulos, examino aparentes divergências entre a concepção global de inferência de Descartes e seu trabalho em matemática e filosofia natural respectivamente. Embora Descartes menospreze raciocínios formais, em seu trabalho matemático ele desenvolve e desdobra o que é o paradigma do raciocínio formal, a álgebra. Contudo, ele constrói a álgebra como uma resolução de problema antes que como um processo dedutivo e não faz as conexões entre álgebra, raciocínio formal e dedução que nós poderíamos esperar. Sua peculiar construção da álgebra resulta de considerações matemáticas que mostram que a síntese, que ele associa à dedução, é desnecessária. Eu exploro a base dessas considerações. Isto fornece um quadro a partir do qual pode-se comparar suas perspectivas sobre a dedução com aquelas de Leibniz – a segunda parte do capítulo é dedicada a esta comparação. O problema em filosofia natural, que eu abordo no capítulo IV, é que Descartes parece adotar diretamente uma abordagem dedutiva (por exemplo, nos Princípios) e rejeitar explicitamente uma abordagem resolutiva (por exemplo, em sua crítica a Galileu). Novamente isto poderia ir contra sua concepção geral de inferência e contra sua abordagem especificamente resolutiva e antidedutivista em matemática, uma área que supostamente fornece o modelo para suas outras empresas. Mas, de fato, seu procedimento em filosofia natural é reconciliável com sua rejeição da dedução, desde que estejamos cuidadosamente atentos ao contexto de suas afirmações. A dificuldade repousa antes em como conceber o valor epistêmico da dedução, pois Descartes rejeita a ideia de que a dedução de uma conclusão a partir das premissas possa resultar em um avanço epistêmico, mas isto é muito contrário à evidência e vai além do que é necessário defender em sua abordagem experimental e resolutiva.





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