Tecnologías de desplazamiento de poblaciones en contextos urbanos: el caso de duplicación de una avenida en Porto Alegre-Brasil.

July 17, 2017 | Autor: Juliana Mesomo | Categoría: Urban Regeneration, Antropologia, Desplazamiento y Reasentamiento, Remoções Forçadas
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Descripción

VII Jornadas Santiago Wallace de Investigación en Antropología Social. Sección de Antropología Social. Instituto de Ciencias Antropológicas. Facultad de Filosofía y Letras, UBA, Buenos Aires, 2013.

Tecnologías de desplazamiento de poblaciones en contextos urbanos: el caso de duplicación de una avenida en Porto Alegre-Brasil. FERONATTO MESOMO Juliana. Cita: FERONATTO MESOMO Juliana (2013). Tecnologías de desplazamiento de poblaciones en contextos urbanos: el caso de duplicación de una avenida en Porto Alegre-Brasil. VII Jornadas Santiago Wallace de Investigación en Antropología Social. Sección de Antropología Social. Instituto de Ciencias Antropológicas. Facultad de Filosofía y Letras, UBA, Buenos Aires.

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Tecnologías de desplazamiento de poblaciones en contextos urbanos: el caso de duplicación de una avenida en Porto Alegre-Brasil Juliana Feronatto Mesomo (PPG em Antropologia Social - UFRGS) [email protected]

A cidade de Porto Alegre, depois de ser declarada uma das sedes brasileiras da próxima Copa do Mundo de Futebol em 2014, passou a sofrer uma série de intervenções urbanísticas vinculadas aos preparativos para o megaevento, mas que também buscam reconfigurar os espaços segundo as noções de “desenvolvimento urbano”. Neste trabalho proponho analisar o processo de remoção das populações impactadas por uma das obras tomadas como “prioritárias” neste momento de preparativos. Trata-se da duplicação da Avenida Tronco, uma via de 4,65 Km que conecta duas regiões da cidade (do centro à zona sul, onde há o Rio Guaíba e um Shopping Center). A obra está afetando diretamente 1.580 famílias que perderão suas moradias para dar passagem à avenida. Apresentarei aqui os conceitos com os quais venho trabalhando para analisar a remoção em questão, mostrando porque contribuem para compreender e intervir no processo. O poder público municipal define assim a intervenção urbanística: “Trata-se de um eixo estruturador do sistema viário da cidade, facilitando o trânsito entre os bairros Cristal e Tristeza, e entre a Zona Sul em geral e as vias que a conectam com as zonas Norte, Nordeste e Leste da Cidade, constituindo, ainda, alternativa de ligação da Zona Sul ao centro da cidade.”1

A obra de duplicação desta Avenida, está prevista no Plano Diretor Urbanístico da cidade desde 1959, quando já havia casas construídas em alguns pontos da região. Desde então, a ocupação se adensou cada vez mais, principalmente com os contingentes de famílias que chegavam do interior para trabalhar na capital do estado. Muitas fábricas (pequenas e médias) se localizavam nestes bairros e a prática comum era de que os patrões permitissem que os trabalhadores se instalassem nas proximidades. Nos anos 1980, muitas cidades do Brasil viram emergir movimentos comunitários importantes que se mobilizaram em torno da luta por urbanização (por exemplo, asfaltamento, água encanada, saneamento básico, luz elétrica, transporte público), por regularização fundiária e pela garantia de direitos sociais para os moradores de assentamentos, vilas e 1

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favelas – direitos como acesso à educação, à saúde e ao trabalho. Em Porto Alegre, a emergência de organizações populares foi muito forte. Na região centro-sul (onde se localiza a Avenida) havia uma organização que congregava todas as associações comunitárias da região, chamada União de Vilas da Grande Cruzeiro2. Neste período começa a luta para trazer os equipamentos de urbanização para as vilas, ruas foram asfaltadas e o poder público começou a construir escolas e postos de saúde. Nos anos 1990, esta estrutura de organizações populares foi um dos componentes da experiência de democracia participativa que teve lugar em Porto Alegre, quando o Partido dos Trabalhadores (numa coalizão de partidos de esquerda chamada Frente Popular) esteve a frente da administração municipal (de 1989 a 2002). O Orçamento Participativo porto-alegrense (OPPOA), a partir das organizações já presentes em algumas regiões e fomentando a construção de outras nas demais zonas da cidade, se conformou como um espaço onde os moradores de cada região podiam discutir, deliberar e encaminhar suas demandas prioritárias ao poder municipal. Uma parcela do orçamento público era destinada a realizar as obras que os moradores encaminhassem via OPPOA. Chamava atenção a recorrência, em quase todas as regiões da cidade, dos votos para a temática de moradia, que incluía produção de habitações e regularização fundiária. A região Cristal (uma das atingidas pela obra) no ano de 1993 aprovou no OPPOA a demanda prioritária por regularização fundiária, segundo João, um dos moradores atingidos que naquela época participava do movimento comunitário. Em muitos outros bairros e vilas de Porto Alegre acontecia o mesmo. No entanto, desde então, os recursos para iniciar o processo (que incluiria a desapropriação de terrenos particulares e verbas para urbanização) jamais foram disponibilizados pelo poder municipal nos seus orçamentos anuais. O caso de João é ilustrativo da situação da maioria dos moradores: vivendo na sua residência atual há cerca de 30 anos ele poderia fazer uso do dispositivo legal de usucapião urbano inaugurado pela Constituição Federal (1988) e regulado pelo Estatuto das Cidades (2002). No entanto, sem o auxílio do poder público e tratando-se de um empreendimento individual de regularização, os custos para a elaboração da topografia do lugar e para angariar os documentos requeridos para o pedido judicial ficariam todos à cargo do morador. José, então, acabou protelando a odisseia jurídica.

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Grande Cruzeiro é um complexo de vilas que juntas formam a maior concentração de vilas populares em Porto Alegre. Todas as vilas atingidas pela obra (Vila Cristal e Divisa, Vila Cruzeiro, Vila Tronco, Vila dos Comerciários, Vila Maria, Ocupação Gastão Mazeron e Vila Silva Paes) fazem parte deste complexo.

Antes que João decidisse encaminhar juridicamente seu pedido de regularização fundiária, foi decretada a execução e o projeto de duplicação da Avenida Tronco no ano de 2010. Os recursos para a obra viriam do Governo Federal através dos investimentos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) vinculado à Copa do Mundo – o pacote de investimentos impacta diretamente nas cidades-sede, já que destina recursos a obras em portos, aeroportos e na malha viária das cidades que receberão o megaevento. No discurso dos governantes, estas obras são o “legado de desenvolvimento que a Copa proporcionará ao Brasil”. Os governos locais aproveitaram a ocasião para “destravar” alguns projetos e inventar-se outros tantos, em parceria com o mercado da construção civil e imobiliário de cada região do país. Justificam de forma ambígua suas intervenções: além de “preparar as cidades” para receber o megaevento é preciso, ao mesmo tempo, realizar obras que permaneçam como um bem permanente “para a população” 3 . O prefeito afirma em uma plenária do Orçamento Participativo (OP) no dia 2 de maio de 2012: “nós não estamos fazendo a Av. Tronco por causa da Copa... a Copa abriu a oportunidade de fazer algo que está gravado no plano diretor desde 1959 e até hoje não foi feito. Nós fomos junto ao Governo Federal buscar recursos. Esses recursos só vieram por causa da Copa do Mundo”

A duplicação da avenida não fazia parte das exigências de contrapartidas da FIFA para realização do evento, mas constava na Matriz de Responsabilidade 4 . A obra foi incluída, inicialmente, no PAC da Copa – sendo considerada como prioritária em Porto Alegre por sua “importância” como “rota alternativa na ligação da Zona Sul com Área Central e Zona Norte durante jogos da Copa 2014”. Em junho de 2013, em meio aos protestos que tomaram conta de muitas cidades brasileiras, incluindo Porto Alegre, o Prefeito comanda um tour para apresentar à imprensa a situação das principais obras planejadas para a Copa na cidade. Ao passar pela Avenida Tronco o prefeito anuncia que o trecho “é o mais importante” entre todas as obras desenvolvidas para a Copa: “faremos com que 1450 famílias que vivem de forma

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No sítio elet ô i o do gove o fede al so e as o as pa a a Copa do Mu do o sta ue: Um dos principais legados da Copa do Mundo de 2014 serão as melhorias nos sistemas de mobilidade urbana para as cidadessede do evento. As ações e os investimentos nesta área têm o objetivo de promover a articulação das políticas de transporte, trânsito e acessibilidade, a fim de proporcionar o acesso amplo e democrático ao espaço de forma segura, socialmente inclusiva e sustentável . Fonte: http://www.portaltransparencia.gov.br/ 4 Documento que apresenta os valores a serem investidos na Copa do Mundo de Futebol em 2014. Ela define o papel dos governos federal, estaduais e municipais, bem como de agentes privados, na liberação de recursos e na execução das ações. Fonte:

irregular, e muitas vezes em casebres, possam ser remanejadas para outros locais” 5. Alguns dias depois, no entanto, anuncia a retirada de todas as obras de mobilidade urbana da Matriz de Responsabilidade e do programa de financiamento PAC da Copa, juntamente com o anúncio da diminuição do preço da passagem de ônibus. "Agora não podem dizer que são contra as obras da Copa em Porto Alegre", afirmou o prefeito. E completa: "Não haverá qualquer alteração de cronograma ou execução das obras. Essa decisão acordada com o governo federal demonstra que as intervenções hoje em Porto Alegre não visam apenas a Copa do Mundo, mas fundamentalmente preparar um futuro melhor para a cidade"6. As obras de mobilidade urbana, incluindo a duplicação da Av. Tronco, já não precisam estar prontas obrigatoriamente para o Mundial, em junho de 2014. O objetivo do projeto de duplicação da Av. Trono, segundo a Prefeitura, articula a questão habitacional e a mobilidade urbana num mesmo “plano urbanístico”: “revitalizar a região da Tronco-Grande Cruzeiro com a implantação de um plano urbanístico contemplando programas habitacionais e equipamentos urbanos com melhorias de circulação (transporte coletivo e ciclovia)”. Se, por um lado, a “importância” da obra se justifica em “melhorar o fluxo de veículos para a zona sul” durante os jogos da Copa e “ampliar a permeabilidade intra-bairros da região”, do ponto de vista “social” a “importância” se justifica a partir do “plano habitacional”: “Qualificação Urbana da região, visando melhoria de vida e resgate dos princípios de urbanidade”. No sítio eletrônico do governo federal que demonstra os gastos envolvidos com a Copa do Mundo e o andamento das obras, consta como “legado”: Evitar os transtornos ao trânsito, comércio e moradores, além dos altos custos de uma remodelação nas avenidas Carlos Barbosa, Teresópolis e Nonoai; Revitalizar área degradada e deslocar famílias de baixa renda para locais mais qualificados; Permitir velocidade operacional mais alta através da construção de estações mais distanciadas, já que na via nova não há pólos de atração de viagens já consolidados; Permitir a construção de um só terminal na região, pois a articulação das diversas linhas pode se dar ao longo da nova via, em conceito de “estação de integração” em vez de “terminal”. Permitir uma total integração entre as zonas norte e centro, com a zona sul e extremo-sul, além de conexão de todas as zonas diretamente à região do estádio Beira-Rio, sem passar pelo centro (Av. Beira-rio). Tratar o transporte coletivo com qualidade, onde hoje o deslocamento ocorre com demoras devido a falta de infra-estrutura.

A pergunta que busco responder com os conceitos aqui dispostos é: como se torna possível tal intervenção sobre uma área com uma ocupação consolidada há décadas? De que forma os moradores são interpelados, e de certa forma coagidos a cooperar com os planos de 5

http://www.sul21.com.br/jornal/cidades-2/guiado-por-fortunati-tour-apresenta-obras-da-copa-em-portoalegre/ 6 http://copadomundo.uol.com.br/noticias/redacao/2013/06/18/para-esvaziar-protestos-prefeito-de-portoalegre-anuncia-retirada-de-obras-na-cidade-de-pacote-da-copa-de-2014.htm

remoção? Como eles respondem a isso? É certo que na construção da intervenção e do processo de reassentamento a resistência e a agência destas pessoas vai conformando a ação do poder público municipal. No entanto, me parece importante pensar, num primeiro momento, como a obra é instaurada, quais os discursos que a legitimam e animam a continuidade da intervenção. Já vimos que a justificativa de que a obra seria útil para o bom andamento dos jogos da Copa do Mundo não foi suficiente, dado o cenário de forte contestação ao megaevento no Brasil. Por outro lado, é preciso identificar quê tipo de instrumentos (jurídicos e administrativos) o Estado utiliza para implicar os moradores nos seus planos e quê tipo de categorias são ativadas para interpelá-los neste processo. Chamo de “tecnologias” os mecanismos utilizados na remoção, pois nestas se articulam as categorias de enquadramento concretas (“morador atingido”, “ocupação irregular”, “moradia precária”, “subhabitação”, etc.), as estruturas técnicas (cálculos, fórmulas, regulamentos, protocolos, procedimentos burocráticos), os dispositivos jurídicos e admnistrativos (legislações e planos urbanísticos), os saberes especializados (urbanismo, assistência social, arquitetura), as composições discursivas (desenvolvimento, urbanidade) e as ações de enfrentamento/agenciamento das famílias e outros atores frente à remoção. A conformação das tecnologias inclui, por exemplo, o registro dos sujeitos e das casas impactadas pela obra, as diferentes alternativas de reassentamento oferecidas (estabelecidas nas legislações municipais), a disposição do arcabouço jurídico e administrativo do Estado. Estas vão sendo organizadas e conformadas pelos diversos encontros, conflitos e negociações entre o poder público local, empresários, movimentos sociais engajados e moradores atingidos. Tais tecnologias não são instrumentos neutros da política pública, são sim domínios onde estão presentes e se enfrentam discursos e concepções sobre cidade, pobreza, moralidades, diferença, classe e raça, assim como o discurso sobre desenvolvimento, urbanidade, eficiência e “qualidade de vida”, por exemplo. A etnografia das tecnologias de governo, como propõe Awhia Ong (2003), inclui também as formas de apropriação e resistência dos sujeitos aos quais elas estão destinadas. Logo, interessa visualizar as estratégias de enfrentamento e deslocamento das tecnologias e dos enquadramentos por parte das pessoas e famílias postas no lugar de “impactados” pela obra e pelo desenvolvimento urbano.

O primeiro conceito que irei trabalhar é o de “biopoder” de Michel Foucault (2005)7, o qual é importante para começar a entender as formas em que se intervêm na vida daquelas famílias e com quê justificativas. Em segundo lugar, a ideia de “tecnologias de governo”, também de Foucault, que conformam a noção de “biopoder”. Agregarei a esta noção de “tecnologias de governo”, a ideia desenvolvida por Nikolas Rose (2001) de “tecnologias humanas” e a proposta de “etnografia das tecnologias de governo” de Awhia Ong (2003). Por último, a noção de “categorias de interpelação”, desenvolvida por Stuart Hall (2000) a partir de sua leitura de Louis Althusser, a qual será importante para visualizar como a intervenção estatal busca “interpelar” as pessoas colocando-as em determinadas posições de sujeito. Por exemplo, apresentando suas casas como moradias “irregulares”, “precárias” e o local como “não urbanizado”. Neste ponto, o texto “O urbanismo e seu Outro” de Lira (1999) nos ajudará a pensar as práticas e os saberes do Urbanismo como criadores de exterioridades constitutivas – ou seja, a inscrição de lugares “irregulares” como ação constituidora da cidade “regular”. Tais categorias (regular/irregular) podem ser lidas na sua fonte disciplinar – o Urbanismo e suas extensões –, mas seu uso concreto não pode ser tomado fora da historicidade da intervenção estatal. Nas ações concretas, o que vemos é uma articulação entre discursos com diversas fontes (mídia, mercado, campo do Direito, etc) que constroem o lugar como “irregular”, “precário” e/ou “não urbanizado”.

Biopoder O biopoder se refere a assunção da vida pelo poder. Como define Foucault (2005): se vocês preferirem, uma tomada de poder sobre o homem enquanto ser vivo, uma espécie de estatização do biológico ou, pelo menos, uma certa inclinação que conduz ao que se poderia chamar de estatização do biológico. (p.286 e 287)

Se o poder soberano é definido a partir do direito de “fazer morrer e deixar viver”, o biopoder é o poder de “fazer viver e deixar morrer” - direito novo, que não vai apagar o primeiro, mas vai penetrá-lo, perpassá-lo, modificá-lo, nas palavras de Foucault. A preocupação do autor é compreender e seguir “como o problema da vida começa a problematizar-se no campo do pensamento político, da análise do poder político” (2005, p. 289).

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Usa ei p i ipal e te o texto da Aula de 1 de defesa da sociedade .

a ço de 19

(p.285-315), i luído a pu li ação E

No entanto, seguindo a interpretação de Didier Fassin (2012), isso não quer dizer que Foucault se refira a “vida em si”. Pelo contrário, o autor com estas noções busca abordar a vida desde a perspectiva da conduta, ao biopoder como as disciplinas exercidas sobre os indivíduos e a biopolítica em termos de tecnologias normalizando as populações. O próprio Foucault afirma, se referindo a essa transformação política na qual a vida passa a preocupar o campo do pensamento político: o nível em que eu gostaria de seguir a transformação não é o nível da teoria política, mas, antes, o nível dos mecanismos, das técnicas, das tecnologias de poder.

Para Fassin(2012), a biopolítica para Foucault não é uma política da vida, como sugere a etimologia, mas uma política de população entendida como a comunidade dos seres viventes: ““vida” segue sendo um termo muito esquivo enquanto “população” representa muito mais claramente o verdadeiro objeto da biopolítica” (2012, p. 23). Tecnologias de governo As tecnologias deste poder sobre a vida são a tecnologia disciplinar (exercida sobre os corpos individuais) e a tecnologia da regulação, referente ao domínio da “população”, a qual “tem outra superfície de suporte e é auxiliada por instrumentos totalmente diferentes”. Além disso, à “população” pertencem fenômenos de certo tipo, fenômenos relacionados ao “homem enquanto ser biológico”. Ao governo da população corresponde observar, medir e regular estes fenômenos. A biopolítica lida com a população; e a população como problema político, como problema a um só tempo científico e político, como problema biológico e como problema de poder, acho que aparece nesse momento. (p. 293) (...)Vai ser preciso modificar, baixar a morbidade; vai ser preciso encompridar a vida; vai ser preciso estimular a natalidade. E trata-se sobretudo de estabelecer mecanismos reguladores que, nessa população global com seu campo aleatório, vão poder fixar um equilíbrio, manter uma média, estabelecer uma espécie de homeostase, assegurar compensações; em suma, de instalar mecanismos de previdência em torno desse aleatório que é inerente a uma população de seres vivos, de otimizar, se vocês preferirem, um estado de vida: mecanismos, como vocês vêem, como os mecanismos disciplinares, destinados em suma a maximizar forças e a extraí-las, mas que passam por caminhos inteiramente diferentes. (...) (p. 294)

O biopoder se estabelece, então, sobre o corpo e sobre esse recorte da realidade que é a “população”. Ambas tecnologias se articulam, e um dos exemplos que dá Foucault é o das cidades.8 O urbanismo é uma das formas de implicar a vida nos objetivos do poder, de regulá8

Po out o lado, esses dois o ju tos de e a is os u dis ipli a , o out o egula e tado , ão estão o mesmo nível. Isso lhes permite, precisamente, não se excluírem e poderem articular-se um com o outro. Podese mesmo dizer que, na maioria dos casos, os mecanismos disciplinares de poder e os mecanismos regulamentadores de poder, os mecanismos disciplinares do corpo e os mecanismos regulamentadores da população, são articulados um com o outro. Um ou dois exemplos: examinem, se quiserem, o problema da

la com o fim de maximizar suas forças. E, como chamou atenção Foucault (1999), a população aparecerá como objetivo final do governo, colocando uma nova forma de legitimidade para a soberania e se configurando como o sujeito-objeto do governo. “Pois qual deve ser o objetivo do governo? Não certamente governar, mas melhorar a sorte da população, aumentar sua riqueza, sua duração de vida, sua saúde, etc. (...) A população aparece, portanto, mais como fim e instrumento do governo que como força do soberano; a população aparece como sujeito de necessidades, de aspirações, mas também como objeto nas mãos do governo; como consciente frente ao governo daquilo que ela quer e inconsciente em relação àquilo que se quer que ela faça. O interesse individual – como consciência de cada individuo constituinte da população – e o interesse geral – como interesse da população, quaisquer que sejam os interesses e aspirações individuais daqueles que a compõem – constituem o alvo e o instrumento fundamental do governo da população. Nascimento portanto de uma arte ou, em todo caso, de táticas e técnicas (de governo) absolutamente novas. (1999, p. 289)

Em “State and Urban Space in Brazil: From modernist planning to democratic interventions”, por exemplo, James Holston e Teresa Caldeira (2005) examinam o neoliberalismo, o Estado de bem-estar social e as políticas populares nos assentamentos irregulares de São Paulo. O ponto de partida dos autores é a emergência do urbanismo moderno no projeto de desenvolvimentismo liderado pelo estado brasileiro no período pós II Guerra Mundial. Esta forma de urbanismo, que define a totalidade das relações sociais como um possível objeto de intervenção estatal, constituiu a sociedade como um campo de manipulação técnica e como uma substância ética através da qual certos ideais – igualdade, modernidade – poderiam ser realizados, em nome de toda a nação brasileira. Desta forma, criou-se um espaço político no qual os brasileiros aparecem não só como portadores de

cidade, ou, mais precisamente, essa disposição espacial pensada, concebida, que é a cidade-modelo, a cidade artificial, a cidade de realidade utópica, tal como não só a sonharam, mas a constituíram efetivamente no século XIX. Examinem algo como a cidade operária. A cidade operária, tal como existe no século XIX, o que é? Vê-se muito bem como ela articula, de certo modo perpendicularmente, mecanismos disciplinares, de controle sobre o corpo, sobre os corpos, por sua quadrícula; pelo recorte mesmo da cidade, pela localização das famílias (cada uma numa casa) e dos indivíduos (cada um num cômodo). Recorte, pôr indivíduos em visibilidade, normalização dos comportamentos, espécie de controle policial espontâneo que se exerce assim pela própria disposição espacial da cidade: toda uma série de mecanismos disciplinares que é fácil encontrar na cidade operária. E depois vocês têm, toda uma série de mecanismos que são, ao contrário, mecanismos regulamentadores, que incidem sobre a população enquanto tal e que permitem, que induzem comportamentos de poupança, por exemplo, que são vinculados ao hábitat, à locação do hábitat e, eventualmente, à sua compra. Sistemas de seguro-saúde ou de seguro-velhice; regras de higiene que garantem a longevidade ótima da população; pressões que a própria organização da cidade exerce sobre a sexualidade, portanto sobre a procriação; as pressões que se exercem sobre a higiene das famílias; os cuidados dispensados às crianças; a escolaridade, etc. Logo, vocês têm mecanismos disciplinares e e a is os egula e tado es. (2005, p. 301)

direitos jurídicos mas como membros de uma população com necessidades sociais e biológicas. O planejamento das cidades, então, era feito tendo em conta estas necessidades biológicas e sociais – que iam desde ter uma vida saudável e produtiva até o desejo pelo progresso e pelo consumo de certos bens como os automóveis, por exemplo. Para entender “as aspirações da população”, um leque de saberes especializados – a demografia, a economia política, a estatística – terá de estabelecer o normal e o anormal no conjunto de determinada população. Tanto a normalidade quanto a anormalidade são características “naturais” de uma dada concertação de fenômenos; contudo, se elas forem medidas acuradamente pelas técnicas correspondentes, poderão servir como substrato para a intervenção do dispositivo de segurança, que se encarrega de cumprir um segundo objetivo: otimizar os aspectos desejáveis da população. De posse dos gradientes de normalidade (das “normais”, numa acepção estatística) criadas pelos saberes que se debruçam sobre o estudo da natureza das populações, o dispositivo de segurança estará habilitado para atuar no sentido de promover a assimilação das atribuições desfavoráveis pelas favoráveis – de normalizar a população. A motivação de normalização diferencia o dispositivo de segurança do dispositivo disciplinar. Este último impõe normas a priori (e não “normais”) através das quais se distingue o normal do anormal. Por sua vez e em última instância, “segurança” é um dispositivo de controle das populações que persegue a anulação [do anormal] no elemento da realidade. Por realidade devemos entender “nível de realidade”, ou seja, uma secção perpetrada pelo saber-poder no âmbito do real (Moraes, 2012). Os planos urbanísticos, as legislações e regulamentos técnicos que permitiram a execução da obra, assim como a construção de moradias novas para as famílias removidas – que visam a “melhoria de vida e resgate dos princípios de urbanidade” –, podem ser vistos como tecnologias de governo tanto disciplinares como regulamentares (que pretendem normalizar uma determinada população). Holston e Caldeira (2005) analisaram dois instrumentos de planejamento urbano: o modernista-desenvolvimentista e aqueles criados no período democrático no Brasil (ligados ao Estatuto das Cidades (2002), principalmente). Ambos são instrumentos de produção do espaço e visam transformar, conter e normalizar a população-alvo. No caso do Estatuto das Cidades o consideram uma tecnologia de governo “democrática”, mas também “neoliberal” já que o uso de muitos de seus dispositivos teve como resultados a elitização de algumas regiões e o aumento da segregação espacial na cidade.

Cada uma dos formas de planejamento imagina a população, suas necessidades e tem objetivos morais específicos. Segundo os autores, o foco do planejamento urbano muda do discurso do “desenvolvimento” que combate o “subdesenvolvimento” (modelo modernista), para o discurso dos “direitos cidadãos” que combatem a “desigualdade social” (modelo democrático). Enquanto os antigos planos supunham que a sociedade precisava de modernização, progresso e desenvolvimento, os novos imaginam que suas necessidades são cidadania e mais igualdade (ou pelo menos a diminuição dos piores efeitos da desigualdade social). Eles supõe que a maioria da população alvo necessita de direitos, não de higiene. (2005, p. 401)

Por outro lado, ambas formas de planejamento produzem a cidade regular e a cidade irregular. Desde o começo da industrialização, a produção governamental do espaço nas cidades brasileiras significou a criação de uma cidade legal e regular para as classe mais altas e uma ilegal e irregular para a maioria dos trabalhadores pobres, ou seja, para a vasta maioria de brasileiros. Ilegalidade e improvisação tem sido sempre as condições sob as quais os pobres urbanos criaram seus espaços nas cidades brasileiras (e em outras do terceiro mundo). Os instrumentos de política urbana criados durante o período democrático tentam lidar com o problema da ilegalidade e, portanto, da injustiça social nas cidades brasileiras. Contudo, como corporações poderosas e o mercado imobiliário manipulam estes mesmos instrumentos, eles geraram novas formas de segregação espacial e minaram alguns dos caminhos para a melhoria urbana e a expansão da cidadania que os movimentos sociais dos anos 70 e 80 alcançaram. (2005, p. 410)

Tecnologias A ideia de que tecnologias são agenciamentos que ligam seres humanos a objetos, práticas, saberes, multiplicidades e forças, atribuindo-lhes capacidades e demandas específicas, pode ser usada para analisar o processo de remoção forçada em questão. Para Nikolas Rose (2001), essas “tecnologias humanas” são “agregados híbridos de saberes, instrumentos, pessoas, sistemas de julgamento, construções e espaços, sustentados no nível programático por certos pressupostos e objetivos concernentes aos seres humanos”. Essa forma de definir o conjunto de técnicas e saberes mobilizados para a remoção ajuda a complementar a ideia de “tecnologias de governo” de Foucault, já que detalha e torna mais pontual a análise. Foucault fala de tecnologias mais amplas e transversais, ainda que bastante concretas e localizadas.

Em Global Assemblages (Collier; Ong, 2005) estes agenciamentos ou composições estão definidos como “domínios nos quais formas e valores da existência individual e coletiva são problematizadas ou estão em jogo” – no sentido de que são objetos de reflexão e intervenção tecnológica, política e ética. Proponho analisar as etapas incluídas neste processo de cadastramento das famílias como tecnologias, que implicam as pessoas e os lugares em determinados tipos de organização e gestão dos processos sociais, econômicos e políticos – onde o termo tecnologia se refere a “qualquer conjunto [de saberes, instrumentos, pessoas, ...] estruturado por uma racionalidade prática governada por uma meta mais ou menos consciente” (Rose, 2001). Por exemplo, o levantamento socioeconômico realizado entre os moradores teve como objetivo elaborar o Plano Habitacional para reassentamento das famílias. Neste caso ser identificado, reconhecido e fornecer dados, através dos formulários, sobre sua moradia, família, renda, condições de saúde, etc., implicava o sujeito no planejamento da Prefeitura Municipal de Porto Alegre sobre o seu reassentamento. Aihwa Ong (2003) propõe etnografar as “tecnologias de governo”, buscando as categorias de enquadramento e os processos concretos que estão ocorrendo, procurando olhar para os sujeitos e suas estratégias de enfrentamento, já que a construção das tecnologias não prescindem das pessoas a que se destinam. Dessa forma, tanto os procedimentos de cadastramento dos moradores quanto as alternativas oferecidas às pessoas para aquisição de novas moradias, os cálculos financeiros envolvidos e a gestão de todo o deslocamento podem ser analisadas como tecnologias – ou seja, formas mais apropriadas para chegar a determinados

fins

ou

objetivos,

sejam

eles

tecnocientíficos,

organizacionais

ou

administrativos (Ong; Collier, 2005). Seguindo uma indicação contida em Global Assemblages (Ong; Collier, 2005), a intenção é fazer uma análise crítica das técnicas e dos mecanismos tecnológicos através dos quais se busca racionalizar as práticas de governo do Estado moderno – nelas estão em jogo problemas antropológicos em dois sentidos: como objeto de interesse para a disciplina e porque ensejam questões éticas de “como se deve viver?”. As tecnologias envolvidas no deslocamento podem ser compreendidas no seu aperfeiçoamento e trajetória, como formas de racionalização do governo destes problemas – necessidade de deslocar as pessoas e alojá-las em novas moradias de forma que se permita a execução da obras viárias. O Urbanismo e seu Outro

A autoconstrução da moradia aparece frequentemente negativada em certas análises, uma vez que costuma ser associada com processos de urbanização desenfreada, adensamento populacional e “ausência de intervenção do Estado”. Segundo Weber (2012), ainda que essa forma de produção seja fruto das contradições inerentes ao próprio processo desigual e segregador de urbanização adotado nas cidades brasileiras, o uso de alguns termos (como nãocidade, urbanização não-planejada, ocupações espontâneas, cidade partida, etc.) para abordar estes processos de construção permitiram a elaboração de avaliações exóticas das favelas, alimentando uma aparente naturalidade dos processos de ocupações e culpabilizando seus ocupantes, sem deixar claro que tanto a existência como a consolidação destes espaços são, precisamente, condicionados por um tipo de intervenção pública, que vai desde o consentimento das ocupações até as intervenções de cunho clientelista (pg. 63).

Ou seja, continuam sendo tratadas como excrescência do processo de urbanização, um “lado de fora” ao qual a urbanização ainda não chegou, e não um fenômeno produzido pela própria ação urbanizadora. Weber (2012) demonstra que as representações das favelas nos documentos oficiais e planos urbanísticos foram sendo modificadas ao longo do século XX no Brasil (e em seu caso de estudo, no Rio de Janeiro), enquanto se intensificava o adensamento desses assentamentos e a política urbana ia passando de um rechaço da favela à intenção de incorporá-la à cidade “regular”. O autor mostra que estas representações (nos documentos oficiais) foram informando a intervenção estatal nos espaços de moradia “irregular” – entendido tanto como falta de urbanização como falta de titularidade dos imóveis9. Por exemplo, em um princípio a visão de que a vida nas favelas envolvia vícios e patologias. Atualmente, a representação já consolidada sobre a presença do tráfico, de que são lugares violentos, que a população se encontra em situação de vulnerabilidade social e econômica, a precariedade e irregularidade das condições de habitação. Ainda que a política oficial atual, no Rio de Janeiro, seja de incorporação das favelas à cidade, elas não são tratadas da mesma forma que as outras zonas urbanas, e as representações sobre estes lugares operam nestas intervenções estatais.

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O urbanista Pedro Fiori Arantes (2013) comenta que a propriedade privada do solo urbano por 350 anos da história brasileira foi de livre acesso. A terra tornou-se cativa, isto é, foi privatizada no momento em que a escravidão ruía e que os homens cativos eram alforriados. A Lei de Terras, de 1850, ano em que o tráfico negreiro tornou-se ilegal, antecipava a despossessão dos trabalhadores assalariados em relação à terra para morar. O sistema se modernizava e armava o jogo para a venda da força de trabalho como único meio para alcançar a moradia e qualquer outro bem de subsistência: o trabalhador assalariado deveria pagar pela terra cativa, que até então fora livre . Fonte: Da (Anti)Reforma Urbana brasileira a um novo ciclo de lutas nas cidades , disponível em http://www.ongcidade.org/site.php?%2Fnoticia%2Fid%2F1616

Uma das hipóteses com as quais irei trabalhar é a de que existe um conjunto de categorias discursivas – disseminadas através de documentos legais, protocolos institucionais, retóricas de justificação manejadas por funcionários envolvidos na política urbana – que referenciam a intervenção estatal em determinadas zonas da cidade. Entre estas categorias é lícito mencionar a de “áreas irregulares” ou “áreas de moradia irregular”, cuja enunciação instaura situações de fragilidade jurídica que enfraquecem a capacidade dos sujeitos de reivindicarem suas próprias demandas habitacionais e tendem a deslegitimar suas reivindicações de permanência em determinados lugares. Outras noções que, seguindo a lógica da anterior, também corroboram práticas de intervenção urbana sobre certas localidades costumam ser as de “precariedade” das condições de vida e de “situação de risco”. No texto “O urbanismo e seu outro”, José Tavares de Lira (1999) analisa a formação dos discursos da disciplina urbanística em referência às ideologias sobre raça, cultura e formação da identidade nacional, no início do século XX. O planejamento higiênico e econômico da cidade era apresentado como uma forma de eliminar determinadas práticas indesejadas e ortopedizar certos grupos, notadamente com viés racializado e de classe. Chama atenção, por exemplo, para o caso das políticas de habitação, a “função cívica e moral da casa popular” (1999, p. 63) propalada pelos urbanistas da época que defendiam a construção dos bairros-jardins operários – onde uma série de vícios atribuídos ao ambiente da favela, como o jogo e a bebida, não teriam terreno fértil para se disseminar. O planejamento urbano criou um Outro ao qual se contrapunha e que deveria normalizar. Por outro lado, a existência de áreas urbanas deste tipo, assim como pessoas que não seguem os princípios da urbanidade, é o que anima a própria intervenção. Nas palavras do autor: “Urbes in orto, eis a divisa que animava a guerra às favelas travada em paralelo à discussão do plano de remodelação do Rio de Janeiro”. Para construir a cidade, era preciso eliminar o que por contraste foi definido como não cidade, a favela. Aqui levanta-se uma questão importante para a construção do objeto sobre o qual me detenho nesta pesquisa: quem é o outro produzido pelas intervenções urbanísticas? Entender que estas zonas não são problemáticas a priori, mas sim que tornam-se problemas através da ação dos saberes, dos mecanismos de poder e da própria ação estatal é importante para determinar como uma remoção é instaurada. Poderíamos reelaborar este panorama valendo-nos da distinção entre população e povo, proposta por Foucault (2007): de um lado da linha, a população, que se mantém e subsiste num nível ótimo; do outro lado da linha, o povo, que comporta-se como se não fizesse parte desse sujeito-objeto coletivo que é a população, como se agisse à margem dela (Foucault,

2007, p. 65). O povo é o lugar do desajuste, da exceção, do “problema social”, mas, como em qualquer divisão abissal,é a condição de existência da população, é o elemento contrastivo que ressalta o manejo da população e denuncia as zonas que precisam ser abarcadas pela normalização ou, em caso extremo, abandonadas à própria sorte. A produção do irregular A produção destes espaços como “áreas de ocupação irregular” tem um papel importante na gestão do processo de deslocamento das famílias pelo poder público, ao determinar: 1) a exclusão destas pessoas nas tomadas de decisão sobre a realização da obra e seu traçado (consulta prévia, por exemplo); 2) as alternativas que foram oferecidas a estas famílias em relação a novas moradias, sem o pagamento de indenização pelos imóveis e pela posse dos terrenos. A falta de respostas do poder público às demandas por regularização e a conseqüente produção deste espaço como “irregular” (em contraposição à cidade regular) permitiu que a obra fosse decretada sem consulta prévia aos atingidos, como vem acontecendo também em outras cidades brasileiras. A despeito da legislação que garante direitos sobre a moradia, neste momento específico da história destas ocupações é a titularidade da propriedade que determina as “zonas de exceção e inclusão” em que os direitos cidadãos são distribuídos no contexto neoliberal (Awhia Ong, 2006). Ao retomar o histórico de atuação do poder público municipal na região, que incentivou a ocupação por anos, podemos constatar a sua responsabilidade na produção desta situação de “irregularidade” no momento atual. A pergunta que muitos se colocam é: porque recentemente se fala de irregularidade se por tanto tempo a ocupação e a urbanização das vilas foram incentivadas pelo poder público local? Basta adicionar a este panorama o fato de que estes moradores foram grandes protagonistas no processo de equipar o bairro com uma série de serviços, reivindicando suas demandas junto ao poder público (seja por vias instauradas pelo próprio Estado como o OPPOA, seja por pressão dos movimentos comunitários e sua relação com os governantes), e antevemos aquilo que Michel Foucault, em Vigiar e Punir (1987), cunhou por “gestão dos ilegalismos” por parte do Estado. Foucault (1987) desloca a discussão do binômio legal-ilegal e põe no centro da investigação o modo como as leis operam, não para coibir ou suprimir os “ilegalismos”, mas para diferenciá-los internamente e dispor constantemente sobre suas fronteiras, “riscar os limites da tolerância, dar terreno para alguns, fazer pressão sobre outros, excluir uma parte, tornar útil outra, neutralizar estes, tirar

proveito daqueles”. Ou seja, conforme as necessidades e objetivos colocados ao governo destas populações e destes espaços foi possível a construção de diferentes agenciamentos políticos ao longo do tempo, que alteravam os critérios ora de tolerância e promoção, ora de repressão da “ilegalidade” das ocupações. Neste momento, voltam à tona categorias de acusação tais como “invasor”, “ocupação irregular” para permitir a retirada das famílias.

Categorias de interpelação A questão das categorias de interpelação torna-se importante para pensar esse processo, já que a noção de “irregular” aparece num esforço por apresentar e representar a realidade daquelas pessoas, e é a partir dela que o poder público propõe o diálogo com as famílias “atingidas”. Tal categoria não está servindo apenas para anular juridicamente os direitos das pessoas sobre seus terrenos e casas, ela está atrelada a uma série de características atribuídas a este tipo de moradia, às pessoas e suas condições de vida atuais. Assim, por exemplo, os arquitetos e funcionários da Prefeitura pretendem, ao proporcionar às famílias uma casa ou apartamento, com título de propriedade, com custos de luz e água, construído segundo normas técnicas arquitetônicas que julgam mais adequadas, dar uma “vida mais digna” aquelas pessoas. O conceito de interpelação, o qual Stuart Hall toma de empréstimo, foi utilizado por Louis Althusser em seu ensaio “Os aparelhos ideológicos de Estado”, onde ele tenta reunir “em um único quadro explicativo tanto a função materialista da ideologia na reprodução das relações sociais de produção (marxismo) quanto a função simbólica da ideologia na constituição do sujeito (empréstimo feito a Lacan)” (Hall, 2000, p.112-113). Afirma Althusser: “A ideologia...‘recruta’ sujeitos entre os indivíduos... ou ‘transforma’ os indivíduos em sujeitos (...) por esta operação muito precisa a chamei de interpelação” (Althusser, 1974, p.146).

As formas de interpelar estes moradores a partir das noções de “irregularidade”, e as características atreladas a ela, precariedade, instabilidade, etc, constrõem uma representação daquela realidade que pretende erigir-se como imagem transparente do real. Assim, os sujeitos devem ocupar as posições que lhes designam – o lugar da precariedade, da falta de condições

de

saúde

e

higiene,

da

subhabitação,

do

não-urbano.

Tais

apresentações/representações servem como base para as políticas e como modo de justificação

das ações da Prefeitura – “é preciso dignificar e dar uma vida melhor para as pessoas”. Assim, a irregularidade e a precarização tornam-se reais, no sentido de que agora aparecem como sentido visível no discurso. Muito ilustrativa foi a palestra de um “arquiteto social” do DEMHAB10 na Faculdade de Arquitetura da UFRGS, chamada “A realidade comunitária passa pela prancheta do arquiteto social”. Nesta ocasião, o profissional discorreu sobre o processo de urbanização “desordenado” provocado pelo modelo econômico excludente, que gerava “marginalização” e “ocupações irregulares” – sendo que muitos desses lugares se encontram “em completo abandono”, “sem a mínima estrutura urbana”. Apelou também para a importância do arquiteto social, que deve ser sensível e adaptar as demandas das “comunidades” aos projetos urbanísticos e arquitetônicos e da importância de seu trabalho de “resgate social” dessas populações marginalizadas. Falando de projetos de reassentamento, discorreu sobre as “questões culturais” e adaptação das pessoas quando vão para suas novas casas, sobre o “processo de reeducação” pelo qual devem passar já que trata-se de uma inserção e uma “evolução” em direção a “cidade formal”. Contou, finalmente, algumas anedotas para ilustrar as diferenças nas formas de vida antes e depois de serem reassentados, ilustrando os “saltos” na aquisição de “cidadania” e para mostrar como a “vida dessas pessoas melhorou”. “Agora têm banheiro e pagam as contas, e antes havia ratos e esgotos a céu aberto perto das casas”, conta. Era um arquiteto “de campo”, como se apresentou, portanto tinha uma série de anedotas para atestar a realidade das cenas e situações que viu e teve que lidar. A questão não reside exatamente sobre as condições de vida e de habitação dessas pessoas, que sim apresentam uma série de carências materiais como elas próprias podem testemunhar. O ponto crítico é a maneira como são representadas. “Representar” é “estar em lugar de” e “se apropriar do representado”, segundo Sontag (2005), ou seja, “são tentativas de alcançar ou apropriar-se de outra realidade”. Já não faz falta que as próprias pessoas enunciem suas condições, necessidades e reivindicações porque alguém autorizado está fazendo isso em seu lugar. Representar “significa estabelecer com o mundo uma relação determinada que parece conhecimento, e portanto poder” (Sontag, 2005). Como coloca Sontag (2005), tal como a fotografia, a representação implica que sabemos algo do mundo se o aceitamos tal como a câmera o registra. A representação ocupa o

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Departamento Municipal de Moradia e Habitação; órgão que se encarrega das políticas de habitação popular em Porto Alegre.

lugar do real. No entanto, a representação da realidade sempre deve ocultar mais do que mostra. O que é hipoteticamente compreensível nela, guarda muitos silêncios, o que a torna ainda mais potente. O que essa apresentação da vida das pessoas como “vidas precárias” não mostra é que as tecnologias e ações da Prefeitura, da mídia, dos agentes envolvidos precarizam as vidas e tornam irregulares aquelas moradias, de fato, através de movimentos institucionais e intervenções concretas – ameaças de despejo, demolições, incertezas sobre o futuro, aumento da violência, etc. As moradias não são em si mesmas irregulares, assim como suas vidas não são naturalmente precárias. Algo as produziu como tal, algo as colocou neste lugar a partir do qual pretende-se que devem responder. Considerações Finais Levantei aqui os principais conceitos que estou utilizando para compreender o caso de remoção objeto de minha pesquisa. Se bem não apresentei muitos relatos da situação, imagino que a abordagem proposta pode colocar o caso particular em relação não só com outros casos de remoção, mas também com outras iniciativas estatais e privadas de intervenção no espaço urbano. Outros exemplos são a produção habitacional, a regularização fundiária, a urbanização, as obras de mobilidade urbana e de saneamento básico, os despejos, enfim a série de políticas das quais a “população” das cidades é objeto (de intervenção) e sujeito (destinatário). Quais os discursos, quais as formas de interpelação que justificam e quais as tecnologias que fazem possível a remoção das famílias são as perguntas que tentei colocar aqui. Creio que um tema de extrema importância que deve ser perseguido para compreender como acontece (e como se torna possível) a remoção e/ou expulsão de populações de determinadas áreas urbanas é aquele que foi apresentado como a produção do “irregular”: a interpelação dos moradores como “irregulares”, assim como a produção (por meio de legislações e tecnologias como os planos urbanísticas) de áreas “ilegais” ou “irregulares” nas cidades. Bibliografia ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. Lisboa: Presença-Martins Fontes, 1974. COLLIER, S; ONG, A. Global Assemblages Anthropological Problems. In: COLLIER, S; ONG, A. (eds.) Global Assemblages: Technology, Politics, and Ethics as Anthropological Problems. Malden, MA: Blackwell, 2005.

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