SUS: desigualdade, justiça social e a legitimidade da política

September 11, 2017 | Autor: Camila De Mario | Categoría: Political Theory, Political Science, Políticas Públicas
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SUS: desigualdade, justiça social e a legitimidade da política1.

Camila Gonçalves De Mario Escola de Artes Ciências e Humanidades – USP Núcleo de Estudos de Políticas Públicas – UNESP (Franca) e-mail: [email protected] GT9: Cidadania e Sistemas de Saúde. O desafio da participação cidadã nos Países de Língua Portuguesa.

Resumo:

O objetivo deste artigo é apresentar a discussão teórica de minha pesquisa de pósdoutoramento, cujo propósito é orientar a reflexão sobre as concepções de justiça e noções de saúde sustentadas pelo cidadão brasileiro e sua importância para a análise do SUS (Sistema Único de Saúde) e de sua legitimidade. Considero que tais concepções são orientadoras das relações que se estabelecem entre os diferentes atores envolvidos com a política pública de saúde (e para as políticas públicas de modo geral) e fundamentais para uma análise empírica da política voltada para a justiça de seus resultados e sua legitimidade. As teorias da justiça de Rainer Forst, John Rawls e Jürgen Habermas constituem o parâmetro normativo adotado para a análise. A reflexão desses autores sobre a justiça distributiva e o papel do direito nas sociedades democráticas, somada à compreensão das políticas públicas enquanto um dever do Estado de direito para a garantia dos direitos fundamentais, alinha-se neste artigo a uma análise das políticas públicas focada no papel das ideias e valores sustentados pelos atores sociais, e principalmente, que nos permite reconhecer as concepções de justiça presentes na política pública de saúde, como essas se manifestam, e como são articuladas na esfera pública para a justificação da política. O ponto de partida é a reflexão acerca do ethos neoliberal como balizador das relações na sociedade brasileira, buscando pistas que nos permitam

1 Este artigo é fruto de minha pesquisa de pós-doutoramento realizada no âmbito do programa de pós-graduação de Gestão em Políticas Públicas na EACH – USP (SP), com auxílio pesquisa PNPD – CAPES.

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refletir sobre seu impacto na ação estatal e sobre as concepções de justiça sustentadas pelas pessoas. As concepções de justiça são aqui entendidas como elemento fundamental para a análise da legitimidade das políticas públicas em uma sociedade democrática, plural e cujos princípios constitucionais definem a igualdade e o direito à participação política como parâmetros fundamentais das relações entre Estado e os cidadãos. Palavras-chave: teorias da justiça; políticas públicas; concepções de saúde; políticas saúde.

1 - Introdução

Esta pesquisa tem sua origem na constatação de um problema corriqueiro no cotidiano da administração pública brasileira: a falta de efetividade dos direitos sociais e a maneira como os cidadãos lidam com a questão, no que se refere a percepção da injustiça a qual estão expostos. Muito já foi dito pela sociologia política sobre um ethos do brasileiro que perceberia o Estado como “pai dos pobres”, entendendo os direitos sociais como benesses, assistência àqueles que não podem pagar por tais bens no mercado. Tal postura seria fruto de uma cultura política coronelista, dos favores, de uma perversa confluência entre os mundos público e privado e, resquício de uma cidadania ainda marcada pela lógica da “cidadania regulada”2, gramática essa que pautaria as relações em sociedade3. Trabalho com a hipótese de que mais forte do que esse ethos, que a partir dos

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Refiro-me ao conceito de Wanderley Guilherme Santos.

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Essa colonização do público por interesses privados é denunciada pela sociologia política, que percebe nesse movimento uma perversa confluência de valores colocando o público a serviço dos interesses dos mais poderosos e as políticas públicas sociais como apaziguadoras das classes oprimidas. No âmbito do direito administrativo essa confluência entre público e privado também é tida como negativa, por um viés diferente porém com consequências semelhantes, pois um Estado pautado exclusiva ou essencialmente pela orientação do direito público seria antiliberal e autoritário. São discussões distintas mas que se somam no entendimento dos sentidos do agir estatal.

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códigos orientadores do privado esvazia o espaço público de sentido, seria o ethos neoliberal, fenômeno mais recente para a sociedade brasileira e consonante com a concepção de justiça sustentada pela teoria “libertariana”4. Ethos fortemente marcado pela crença no mérito, tomando o indivíduo como lócus central, e quase exclusivo, do direito positivo e avesso a uma noção comunitária que se fundamenta na ideia de redistribuição de bens, recursos e riquezas, mais do que benesses os direitos seriam serviços aos quais teriam acesso àqueles que se esforçarem para tal. Porém, trata-se de uma visão de mundo que encontra ecos na anterior, que pensa o público colonizado pelos interesses do privado, mas principalmente na noção de cidadania regulada. Essas questões remetem diretamente ao problema ao qual estou aqui me referindo: concepções de justiça social. Mais do que perguntar sobre o que é justo, a proposta deste artigo é trazer elementos da filosofia e da sociologia política que nos auxiliem a pensar a formação das concepções intuitivas de justiça e seu impacto sobre as políticas públicas. Mais do que uma empreitada normativa, o fim da linha é fornecer elementos para pensar nos impactos dessa percepção (intuitiva de justiça) nas políticas públicas, na prática da administração e no direito públicos. Se as políticas públicas encerram valores socialmente sustentados; esses valores são articulados como justificadores não somente da elaboração das leis que a demandam e do desenho da política (o que em uma sociedade democrática requer deliberação e acordo entre as partes), como também para a prática administrativa e legal que confronta dever (do Estado) – direito (de cidadania) – demanda (da sociedade civil) para tomada de decisão, julgamento e justificativas dos atos públicos. Adoto como ponto de partida a seguinte ideia: a justiça de uma política pública não está dada apenas por sua conformidade com as leis, normas e regulamentos institucionais. Uma política pública pode ser legal e ao mesmo tempo profundamente injusta. O SUS é um exemplo de política com a qual normativamente poucos divergem, entretanto ela contém em si sérias incongruências, dadas já em seu desenho e que impactam em sua implementação e nos resultados alcançados. 5 Em um primeiro momento

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Concepção de justiça sustentada por autores como Robert Nozik e Friedrich Hayek.

Apontei tais incongruências e divergências em minha tese de doutorado, “Saúde como questão de Justiça” (2013). 5

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podemos aventar que o SUS é injusto, (1) por não garantir a plenitude de um direito, qual seja, o acesso universal à saúde (atenho-me aqui a ideia estreita de não cumprimento da norma); ou (2) sua justiça pode ser definida pela coerência do sistema com as concepções de justiça sustentadas pela sociedade. É este segundo ponto que pretendo explorar. A pergunta de fundo é: como ações do sistema que percebidas como injustas, e por vezes ilegais de acordo com o primeiro viés de justiça, se reproduzem? Em minha pesquisa de doutoramento busquei demonstrar que o desenho da política e os objetivos do sistema brasileiro de saúde se baseiam em concepções de justiça que não só são distintas como divergentes entre si, divergência que transparece durante o processo de implementação da política. Trata-se de um paradoxo no qual está imerso o SUS e demais instituições, mais, diria que nossa sociedade como um todo. Os princípios que norteiam o direito à saúde – universalidade, integralidade, gratuidade e igualdade - no Brasil se justificam perante concepções de justiça próximas ao que é defendido pelas teorias liberais-igualitárias, ao mesmo tempo, também estão em conformidade com os princípios constitucionais norteadores dos deveres e direitos do cidadão, e dos direitos humanos internacionais ratificados pelo Brasil. O mesmo acontece com a noção de saúde, ou seja, com o que se entende por saúde, esse entendimento está orientado por uma concepção específica de direitos de cidadania e de pessoa humana. Tais princípios requerem uma determinada configuração da política e da administração pública para que o direito à saúde se realize, torne-se facto. Entretanto, há em sociedade outros valores, concepções de justiça social, de saúde, e projetos políticos em disputa que interferem nessa organização e em como tais princípios serão sustentados no cotidiano da política. O que o Estado pode fazer é resultado de uma confluência de diversos fatores determinantes das decisões políticas tomadas pelos governantes e das decisões técnicas a encargo do gestor público, e da burocracia de um modo geral. Tais fatores são dados pelos projetos políticos em disputa na sociedade civil, no Estado e também pela relação que se estabelece entre os usuários e a cidadania, de modo geral, com a política.

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Nesse artigo refletirei sobre o papel das ideias, dos valores morais e as concepções de justiça a que esses se referem, fundamentais para a análise da legitimidade da política. Não tenho conhecimento de pesquisa que tenha proposto tarefa semelhante, ao menos não quanto a concepções de justiça voltadas para pensar especificamente a justiça de políticas de saúde. Recentemente, enquanto eu desenvolvia esta pesquisa, Lena Lavinas e Barbara Cobo publicaram livro com resultado de um survey nacional que trabalhou com as percepções e concepções de justiça dos brasileiros com foco na desigualdade e nas políticas redistributivas. Elas também destacam a ausência de trabalhos nesse sentido, chamam atenção para os esforços que vêm sendo empreendidos por pesquisas que buscam explicar o apoio das pessoas às políticas redistributivistas na área da economia normativa e da filosofia política. Nas ciências políticas e nas pesquisas na área de políticas públicas desconheço pesquisas com esse intuito, o que temos são avaliações de percepção de qualidade dos serviços e dos procedimentos democráticos e suas instituições. A justiça ainda é tema secundário e visto como tarefa da teoria política. Cobo (2014) ressaltam que conhecer as preferências normativas dos cidadãos é útil para que possamos desenhar políticas mais propensas a terem seu apoio, e acrescento, mais propensas a serem consideradas legítimas, pois muito provavelmente o cidadão típico deve ter concepções de justiça distintas daquelas que nós cientistas sociais tendemos a valorizar, em suas palavras:

Compreender tal hiato entre concepções teóricas de justiça (e de políticas públicas que dela decorrem) e concepções intuitivas seria importante, portanto, não apenas como uma forma de “diagnóstico de preferências”, mas também possivelmente como precondição para qualquer estratégia de reforma progressista (ou de outra natureza). (COBO et al. 2014: 37)

É o que proponho. Conhecer as concepções de justiça e de saúde das pessoas nos permite entender os problemas enfrentados pela política que identifiquei como injustiças 5

perante a dois parâmetros normativos de justiça, um advindo das concepções teóricas e outro retirado do próprio desenho da política e da legislação constitucional e infraconstitucional balizadora da política e dos princípios norteadores da ação do Estado. O cidadão brasileiro pode ter concepções intuitivas distintas a partir das quais essas situações não sejam consideradas injustas; podem haver desacordos quanto ao entendimento do que é saúde, e consequentemente do que deve ser uma política de saúde; ou, talvez as concepções de justiça – a minha, liberal-igualitária; a sustentada pelo SUS e pela nossa Carta Constitucional – até sejam semelhantes com as concepções intuitivas das pessoas e o problema esteja na distribuição de poder político e no direito à justificação, assim uma distribuição justa do direito à justificação, em sentido forstiano, permitiria as pessoas a reivindicarem uma política de saúde mais justa, de acordo com uma concepção comum de justiça. Em qualquer dos casos são necessárias ações que levando em consideração essa percepção sobre a justiça social e política de saúde sustentadas pelos cidadãos, visem uma reforma no sistema orientada pelos requisitos da justiça.

2 - Justiça e Legitimidade das políticas públicas: o papel das ideias

Por que as pessoas confiam e apoiam as políticas públicas? O que faz uma política legítima e garante sua manutenção ao longo do tempo? A recente história brasileira é marcada pela luta da sociedade civil pela efetividade de direitos sociais e democratização das relações políticas em sociedade. Um de seus objetivos era a realização da justiça social, através da construção de um Estado democrático com políticas voltadas para mitigar o fosso social marcado pela desigualdade através da implementação de políticas redistributivas e, que reconhecessem a universalidade dos direitos da cidadania. A democracia que por aqui se construiu tem traços únicos, e foi forjada na luta, na prática política de atores que através de um amplo debate travado pelos movimentos sociais e pelos partidos de esquerda buscou também a mudança no padrão de relações 6

entre Estado e Sociedade, construindo-se uma “nova gramática social” e dando uma nova configuração ao Estado. Esses atores construíram um espaço para a justificação pública de suas demandas em um exercício político orientado por valores morais por eles considerados fundamentais para uma sociedade democrática. Tais valores são, hoje, base de nossas leis e instituições e funcionam como orientadores de nossas ações. Ideia fundamental que perpassa esse trabalho é a de que esses valores são sustentados por nossas instituições e pelos atores que delas fazem parte. Esses valores são o cerne das políticas públicas. Dentre as muitas definições que podemos levantar de políticas públicas, certamente a noção de que essas encerram valores sustentados pela sociedade não será objeto de controvérsias acirradas. Trata-se de uma ação do Estado que leva esses valores em consideração e a questão central passa então a ser o que o Estado é ou não capaz de fazer, e como faz uso desses valores para justificar seus atos. Acrescento, nas políticas públicas,

(...) se a autoridade desempenha um papel central, estamos longe de afirmar que o Estado age só. As políticas recebem intervenções de vários agentes, que com sua lógica e prioridades agem com autonomia, e suas intervenções se refletem no curso das coisas e das escolhas. (Cruz, 2012: 74)

Meu objetivo é jogar luz sobre os usuários, diretos e indiretos da política, que enquanto cidadãos formulam suas concepções morais, agem e julgam as instituições e os demais atores a partir delas. O debate sobre a relação entre as ideias e as instituições precisa certamente ser mais explorado, mas, a hipótese central é a de que se queremos entender as instituições e seus resultados é preciso uma abordagem normativa que discuta as ideias, valores e motivações que definem as instituições e também serão base para sua avaliação e legitimidade social. Defendo uma abordagem que conflita com a tradição institucionalista mais dura, para a qual o escrutínio das ideias não permite o desenvolvimento de uma abordagem teórica 7

adequada para a análise das instituições políticas, já que essas são muito mais do que ideias. Alinho-me à abordagem defendida por Rogers Smith. O autor ao expor suas opções teóricas assim formula sua perspectiva:

I have stressed, like others, that the purposes, rules, roles, and patterns of behavior found in institutions all represent incarnations of the ideas of those who participate in them and that the creation and maintenance of institutions cannot be understood apart from the ideas of the members of the political coalitions that do the creating and maintaining. (Smith, 2006: 93)

A tarefa a que me proponho nesse trabalho é pensar como articular as concepções de justiça sustentadas pelas instituições e pelas pessoas para a análise dos resultados e legitimidade das políticas públicas. Se as políticas públicas são fruto de valores morais definidores de nossas concepções e princípios de justiça socialmente validados e reconhecidos publicamente, o que as justifica perante a sociedade, então a legitimidade da política e a aceitação de seus resultados por parte dos cidadãos é profundamente perpassada por tais valores. Não se trata de afirmar que as ideias são mais importantes que as instituições mas sim que há uma relação dialética entre instituições e ideias que não pode ser ignorada, por mais que as instituições sejam definidoras de valores, e influenciem comportamentos, o outro lado também é verdadeiro, ou seja, os valores sustentados pela sociedade também influenciam na organização e no cotidiano das instituições que precisam se organizar e reorganizar em torno desses valores para se manterem estáveis. O terreno da legitimidade, de Estados, governos e instituições é demasiadamente movediço. Como identificar tais ideias e sua influência sobre a legitimidade das instituições é outra questão em aberto e difícil de ser enfrentada. Semanticamente, o termo legitimidade remete à noção de legalidade, bastaria estar de acordo com a lei para uma instituição ser considerada legítima. Mas o que faz de uma lei legítima? Em última instância essa é a pergunta que nos importa. A resposta a essa questão nos leva a um terreno normativo e substantivo que nos 8

convida a indagar sobre as ideias e sua justificação. É em seu sentido substantivo que a legitimidade se liga à justificação (Morris, 2005:156). De início para a construção do argumento trago a definição de justificação proposta por Morris (2005:158), o autor afirma que «justificar algo é mostrar que é justo ou certo, razoável, ou, ainda, autorizado; é validar ou provar. [...] Justificar um Estado, então, seria mostrar que seus poderes são justos (ou certos) ou razoáveis». Neste ponto Morris adentra a argumentação rawlsiana acerca da justificação, retendo a argumentação de John Rawls sobre a justificação de sua própria teoria. Nessa passagem, em “Uma Teoria da Justiça”, Rawls ressalta que a discordância é central para a justificação. É no conflito de pontos de vista que buscamos argumentos razoáveis a partir dos quais convencer os outros, buscando reconciliar através da razão. As políticas públicas enquanto instituições que criam regras para o jogo político, intervêm e moldam as vidas dos cidadãos (Pierson, 2006: 114). Precisam, portanto, justificar-se perante esses, para que sejam vistas como legítimas, e para que os cidadãos possam confiar em suas ações, mais, são regras que para serem seguidas é preciso que confiem que os demais também as aceitam e seguem. As instituições influenciam o comportamento das pessoas e limitam as escolhas dos atores; é comum pensá-las a partir desse ponto de vista, da instituição para os atores, já que essas, dado seu caráter, também são organizações difíceis de se modificar. Entretanto, há momentos históricos, especiais, no qual elas são criadas, e então nos movemos dos atores para as instituições, como coloca Rothstein (1998: 138) «This means that what is rational, socially acceptable, or politically possible is not given once and for all by some true, unchanging human nature, but can be influenced through conscious, rational political choice.» A ideia é a de que no momento da criação das instituições estamos diante de uma escolha racional, consciente de princípios e de valores que darão origem às instituições. Entretanto, o foco de Rothstein é outro, e o autor prossegue afirmando que um importante papel das instituições políticas é o de estabelecer normas. Em suas palavras:

The idea is that institutions not only influence what political actors 9

find to be a rational course of action, seen from the standpoint of their self-interest, but also what they consider to be a morally defensible behavior. [...] The morality prevailing in a society is, in other words, a product of the institutions built by that society’s citizens and their representatives. My hypothesis, then, is that social norms are not given by any such metaphysical entities as “the gender system”, “class consciousness”, or “the national character”. They are instead a product of the institutional conditions which have been created de facto by political decisions. (Rothstein, 1998: 139)

Ou seja, as instituições cumprem importante papel na formação e promoção dos valores em sociedade o que leva o autor a afirmar que instituições justas incentivariam um comportamento justo. E quando os resultados de uma instituição não são justos, o que a sustenta ao longo do tempo? No caso brasileiro as políticas públicas e o Estado que se constituiu com a Constituição de 1988 são fruto de um momento histórico, tal como o que Rothstein chama de especial, no qual os atores a partir de escolhas racionais criam as instituições. A premissa aqui é que tais instituições refletem as ideias sustentadas por esses atores e são frutos de um amplo debate para sua justificação no espaço público. É o processo de construção e avaliação das instituições que se dá a partir da moralidade sustentada pelos atores que delas participam que me interessa. É na chave de Smith (2006) que vejo um campo aberto à investigação, para a análise de políticas públicas tanto no que se refere a avaliação de seus resultados como à sua legitimidade. Estou supondo que mais do que estarem de acordo com a legalidade e com as normas, para que as instituições sejam legítimas é preciso que sejam coerentes com a moralidade sustentada pela sociedade. Se é verdade que elas influenciam e orientam comportamentos, também é verdade que são feitas por pessoas que imprimem nas instituições seus valores, sua moralidade. Dentre aquilo que se estabeleceu como desenho institucional, com suas normas, princípios e objetivos, e os resultados alcançados pela instituição há um jogo de forças político que pode ou não garantir que os resultados sejam coerentes com as metas propostas. Políticas Públicas são o tipo de instituição que estão sob forte influência desse jogo e 10

dos projetos políticos em disputa em seu âmbito e na sociedade de forma mais ampla. Por sua estrutura estão abertas à indeterminação e sujeitas a um constante processo de transformação, seja pelas demandas da sociedade que se alteram em um ritmo mais acelerado do que aquele que a própria instituição é capaz de incorporar, seja através da ação dos atores que fazem parte de seu cotidiano que ou aperfeiçoam ou burlam suas normas para realizar os fins da própria instituição, e os seus em particular.

3 - Brasilidade e o Ethos neoliberal

Em livro recente Jessé Souza (2009) tece uma reflexão que em muito colabora para pensarmos a perspectiva que proponho. O autor inicia nos lembrando de uma premissa básica da cidadania moderna, a ideia de comunidade, constitutiva tanto do imaginário e das identidades nacionais como da cidadania. A construção da identidade nacional é a construção do mito moderno que como coloca Souza (2009: 31) dota a realidade de sentido moral e espiritual para os indivíduos. É o sentido moral que permite ao indivíduo solidificar relações de identificação social e pertencimento a um grupo, garantindo a criação de laços de solidariedade e, acrescento, a tolerância. Para Souza (2009) o Brasil se percebe como mercado, seria esse seu “DNA simbólico”. Uma identidade nacional precisa sempre se estabelecer em relação/oposição a um outro, e o outro externo do Brasil é o EUA, superior em quase tudo, principalmente para um Brasil que em 1822 sofria de complexo de inferioridade. Portanto, para a construção da identidade nacional primeiro articulou-se o que havia de positivo, que era a grandeza da natureza e sua força, a amalgama para o próximo passo foi fornecida pela obra de Gilberto Freyre, “Casa Grande e Senzala”, que possibilitou transformar a miscigenação, até então motivo de vergonha em orgulho: o povo mestiço se transforma em virtude de um povo capaz de articular e unir contrários. É a aversão ao conflito transformada em núcleo da identidade nacional, forjada sobre o mito do homem cordial.

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É na ideia de cordialidade e de que havia entre os brasileiros mestiços um todo harmônico que o Estado de Getúlio Vargas encontrou «a energia simbólica para o esforço de integração nacional». (Souza, 2009: 37) Tínhamos de um lado o elogio da unidade e índole pacífica do povo brasileiro e de outro a demonização da crítica e da explicitação do conflito e das diferenças.

Está criado nosso DNA simbólico, o DNA simbólico do Brasil moderno, um conjunto de ideias que legitimam práticas sociais e institucionais de toda espécie que se destinam, em última instância a tirar toda a legitimidade do diferente e da diferença, do crítico e da crítica. (SOUZA, 2009: 38 [grifos do autor])

Através da metáfora do DNA o autor demonstra o perigo contido na ausência de crítica em uma sociedade como a brasileira que vai naturalizar sua vida social como no caso do DNA genético individual. Soma-se a isso que a sociedade brasileira é uma sociedade que só percebe o dinheiro e suas materializações sem sequer perceber a enorme influência das ideias e dos valores. A realidade assim se apresenta como dada, e não construída. Quando se transforma cultura em natureza não se percebe o principal:

Que toda a nossa orientação na vida e toda justificação de nossas ações e comportamentos dependem de “ideias” contingentes e fortuitas, formuladas por outros, e que comandam nossas decisões e julgamentos tanto mais quanto menos temos consciência delas. (SOUZA, 2009: 39)

Dessa forma a gênese da identidade nacional é fundamental para a compreensão da forma como a sociedade e seus membros percebem a si próprios, e ajuda a pensar as concepções de justiça sustentadas e o grau de justiça de suas instituições. De acordo com Souza (2009) os indivíduos precisam de uma definição acerca de quem são, de como devem agir e do que caracteriza uma sociedade justa. A grande maioria busca tais referencias no senso comum. No que se refere a questões de justiça é ainda mais importante que os indivíduos 12

sejam autônomos e capazes de formular e exercitar seus julgamentos morais, incluindo a capacidade de desenvolver um senso de justiça e a de decidir e de revisar sua concepção de bem. Tal importância é afirmada tanto por John Rawls como por Rainer Forst. Souza (2009) coloca que a existência de indivíduos autônomos e pensantes é importante para a existência de uma esfera pública verdadeiramente democrática, neste ponto as concepções dos três autores se complementam. Jessé Souza nos remete a uma das questões centrais da teoria da justiça de Rawls, o autor afirma que no mundo moderno o poder não se manifesta abertamente, que as relações e o como a estrutura social determinam as expectativas dos indivíduos não são visíveis: «existiria no mundo moderno uma igualdade de oportunidades falaciosa que justifica a noção de mérito e assim as desigualdades seriam fortuitas e justas» (Souza, 2009: 43) Para Rawls, uma sociedade justa precisa de uma estrutura básica que garanta a efetividade e o exercício das liberdades fundamentais básicas, que garanta a Igualdade Equitativa de Oportunidades e que as desigualdades existentes funcionem a favor de todos. A noção central desses princípios 6 é a de que a injustiça se constitui de desigualdades que não são vantajosas para todos. Nos termos de Rawls:

Todos os valores sociais – liberdade e oportunidade, renda e riqueza, e as bases sociais do autorrespeito – devem ser distribuídos de formal igual, a não ser que uma distribuição desigual de um ou de todos esses valores seja vantajosa para todos. (Rawls, 2008: 75)

Os princípios na teoria de Rawls se aplicam às instituições da estrutura básica da sociedade responsáveis pela distribuição dos direitos e deveres fundamentais o que determina a divisão das vantagens decorrentes da cooperação social. Dessa maneira as instituições ao definirem os direitos e deveres das pessoas repercutem em seus projetos de

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Os princípios que descrevi são seus dois princípios da Justiça, o primeiro garantidor das liberdades fundamentais básicas e o segundo voltado para a distribuição de renda e riqueza. Ver “Uma Teoria da Justiça” (2008).

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vida, nas suas expectativas e no grau de bem-estar que podem almejar. O que Souza (2009) está apontando é que a meritocracia que se sustenta no imaginário e na nossa identidade nacional cria uma falsa ideia de justiça social. Uma justiça social que na prática funciona aos moldes das concepções “libertarianas” de justiça mas que se legitima sobre a capa de um pretenso discurso “liberal-igualitário” destorcido em seus conteúdos, perversamente esvaziado de sentido, mas que dificilmente seria diretamente negado na esfera pública. Dessa forma o ataque à noção de igualdade fundamental dos cidadãos e aos direitos humanos e sociais dela derivados se dá pela manipulação, uma maquinação de seus sentidos que estabelece um campo de luta político entre “esforçados que fizeram por merecer” e “preguiçosos que acharam mais fácil viver das benesses do Estado”. Preguiçosos porque afinal as oportunidades estão aí, a disposição de todos. Esse discurso tem graves consequências não somente no que se refere ao reconhecimento e legitimidade de políticas de cunho mais assistenciais e de políticas compensatórias como o “bolsa família”, mas também daquelas que têm como objeto a implementação de serviços que garantam a efetividade dos direitos dos trabalhadores, do direito à saúde, à educação, à habitação, para citar alguns. Soma-se a isso que o status social do brasileiro está fortemente ligado ao consumo. Voltado para o mercado, o cidadão define-se mais enquanto consumidor que tem o direito à propriedade privada e a consumir ao seu bel prazer do que pela igualdade fundante da noção de cidadania. Dentro dessa perspectiva a noção de mercado e o consumo enquanto marcador central do status social e da brasilidade têm forte impacto sobre as Instituições estatais e sobre a Gestão Pública. No centro de tudo está a Economia e o Mercado, motor do crescimento e do desenvolvimento, às margens o Social, o Cidadão e seus Direitos. Consequentemente o Estado é atacado em seu cerne. Estamos adentrando o terreno do papel das ideias e seu impacto sobre as instituições. E do como essas agem e reagem, como são organizadas, avaliadas, percebidas e legitimadas. Paradoxalmente, ou não, o ideário neoliberal entra no Brasil com força e evidência no mesmo tempo histórico em que a luta por uma Constituição 14

Cidadã também ganhava força e visibilidade política. O Estado a partir de 1989 se forja neoliberal contraditoriamente (ou não) perante a um arcabouço jurídico de pretensões igualitárias. Essa história já conhecemos. A legitimidade desse processo foi garantida pelas ideias, e concepções de justiça já incorporadas pela sociedade. Cada perspectiva normativa de justiça pensará a distribuição de direitos e deveres, bens e recursos de maneira distinta. O libertarianismo de Robert Nozick, que mencionei anteriormente, entende o Estado como um tirano cujo poder de dominação deve ser minimizado pelo mercado. Para a lógica deontológica fundante do pensamento de Nozick, e também de Hayek, a injustiça não está em uma desigual distribuição de bens e recursos em sociedade, mas sim, em uma ação que infrinja o direito de outrem ou que venha a causar sofrimento a outra pessoa. Para os libertarianos é o indivíduo e não a comunidade que está no centro de tudo. O direito à propriedade funciona como uma maneira de estabilizar a democracia, e não podem de maneira alguma serem restringidos. (DeMario, 2013, p.263) Nessa esteira o princípio da equidade seria temível e condenável porque deturpa o princípio da auto-propriedade, já que as teorias igualitárias permitem direitos de propriedade parciais sobre outras pessoas.

A redistribuição de renda ou a definição de direitos sociais caracterizam uma violação dos direitos fundamentais da pessoa, cujos bens são frutos diretos de seu trabalho ou das trocas justas no mercado livre. Dessa forma, o Estado, ao buscar igualdade, estaria perpetrando uma violação desses direitos. (DeMario, 2013: 266)

A perspectiva libertariana alinha-se com o ideário neoliberal que deu a tônica das reformas do Estado Brasileiro nos anos 1990 e 2000 e também tem reverberações na maneira como a sociedade brasileira compreende a distribuição de bens e riquezas e o papel dos direitos sociais. Para Jessé Souza o que colabora para a força que o ideário neoliberal assumiu entre os brasileiros, juntamente a celebração do mérito individual versus a discriminação do 15

fracasso é o esquecimento do social no individual. Para o autor há um silenciamento do processo social que constrói indivíduos fadados ao sucesso ou ao fracasso. Para Souza a família cumpre importante papel na transmissão dos valores que ratificam essa ordem e colaboram para reprodução da desigualdade, injustiças e privilégios. A questão central é a de que o quê as famílias ensinam não é forjado pela própria família, é aprendido diariamente fora dela, em “outro” lugar, como coloca o autor. A classe social a qual as famílias pertencem e sua economia moral é o que dá o tom dos valores que elas reproduzem. É a presença da classe e da economia moral que determina os comportamentos individuais, mesmo que essa determinação seja sistematicamente escondida ou esquecida, esse esquecimento da classe social é para Souza (2009) o mais bem guardado segredo do senso comum. Nessa esteira os lares de classe média ensinam como valores a autodisciplina, o autocontrole, o pensamento prospectivo, o respeito ao espaço alheio, através da transmissão de regras que impõe horários para comer, ao valorizar o estudo, ao orientar a evitar confrontos direitos com os amigos, chegar em casa nos horários certos. Mas também ensinam algo mais importante ainda para uma sociedade meritocrática e individualizada, suas crianças aprendem desde cedo que são “um fim em si mesmas” (princípio que como vimos é ponto de partida das teorias da justiça e do direito) e a ser autoconfiantes, através da autoconfiança sustentada pela certeza de um amor incondicional que vem dos pais desenvolve-se a certeza do próprio valor, o que permite encarar as derrotas como transitórias e alimentar a esperança. Esse aprendizado só não é tematizado porque é afetivo, emocional. Dentre as classes mais pobres que Souza (2009: 46) denomina ralé esses valores não se sustentam. No que se refere a autodisciplina e a importância do estudo, é difícil para os pais das classes mais pobres sustentarem isso emotivamente, já que sua experiência que vida não se alinha à crença de que o estudo e a vida escolar traz benefícios. Quanto a sustentar seu valor e a autoconfiança, é extremamente difícil fazê-lo entre seres humanos que estão habituados a serem usados, dentro e fora de seus lares. As mulheres são normalmente expostas a uma sexualização precoce, e sexualmente instrumentalizadas dentro de suas casas e por familiares, como seus pais, padrastos, tios, irmãos. Em universos tão distintos os valores e crenças transmitidos provavelmente não serão 16

os mesmos. Neste cenário, as crianças da classe média, que têm contato com outras pessoas de seu mesmo universo perceberão suas conquistas na vida adulta como fruto, resultado de seu mérito e esforço próprio. «A renda econômica que advém desse sucesso é, portanto, efeito, e não causa das diferenças entre as classes.» (Souza, 2009: 46) Chegamos a um ponto fundamental do argumento de Jessé Souza (2009: 47), para o autor é essa confusão entre causa e efeito que fazem as determinações oriundas das classes sociais tornarem-se invisíveis, e só por isso o senso comum pode ver o indivíduo e o mérito individual como justificativa dos privilégios. As precondições familiares e sociais do mérito são cuidadosamente deixadas para fora do debate público e a justificação da desigualdade pelo esquecimento do pertencimento de classe é potencializada por uma aliança invisível com o mito da brasilidade que colaborou tanto para construir a noção de homogeneidade entre brasileiros tão desiguais, bem como a ideia de horror ao conflito, que acaba se desenrolando quase sempre se forma escamoteada, ou em explosões de ódio que precisam ser rapidamente controladas.

4 - Justiça: Direito à Justificação

Rainer Forst, formular sua teoria crítica da justiça a partir do debate travado pelo autor com as teorias de Jürgen Habermas e John Rawls acerca dos limites da moralidade e da lei para a aplicabilidade e efetividade dos direitos dos homens e do papel das instituições. O autor propõe uma terceira via e aponta que: «a theory of justice must pay attention to the function and relative autonomy of democratically legislated modern law, and according to Habermas, Rawls neglects this» (Forst, 2012: 101) Inicio com uma breve apresentação das ideias centrais da teoria de Rainer Forst, seu ponto de partida é o entendimento dos homens enquanto seres justificatórios, que têm a habilidade de justificar-se e esperam o mesmo dos outros, o lugar da justificação, para ele é por excelência o contexto político. A justiça política e social pode ser entendida a partir do direito de justificação, bem como os princípios para a estrutura básica da sociedade devem ser construídos de acordo 17

com esse direito. Segundo o autor somente considerando a justificação de relações sociais e da distribuição do poder de justificação em contexto político que é possível se aproximar da justiça, esse é o caminho que leva às raízes da injustiça social. Para o filósofo a justiça deve se voltar para as relações intersubjetivas e para a estrutura básica da sociedade considerando que a vítima da injustiça é aquela que não conta na distribuição de bens em sociedade, e que a demanda por justiça é uma demanda emancipatória. Sua teoria discursiva da justiça não é puramente procedimental, seu fundamento encontra-se essencialmente em um princípio moral de justificação que requer generalidade e reciprocidade. A noção de reciprocidade contém a ideia de que ninguém recusaria a outrem demandas que faria a si mesmo; a de generalidade que as razões para as normas gerais precisam ser compartilhadas por todos que por elas são afetadas. Somase a isso a exigência de que o princípio da justificação precisa estar de acordo com os contextos sociais concretos, com a pluralidade de valores éticos e com as várias esferas sociais e comunidades. Trata-se de uma teoria monista e deontológica, o primeiro permite que ela esteja aberta para o pluralismo de certos aspectos da justiça e as particularidades das diferentes esferas de distribuição nas quais os bens são distribuídos de acordo com critérios particulares. Quanto ao segundo,

This deontological character becomes clear not only from reflecting on the ethical pluralism of “comprehensive doctrines”, as Rawls would put it, but also from the validity claim made by justice itself to consist in principles and norms that cannot be reciprocally and generally rejected and so can even justify the force of law. (Forst, 2012: 08)

A justiça para ele não encobre todo o mundo normativo, mas que se aplica somente a alguns contextos normativos particulares. A base de sustentação da justificação precisa ser construída através de regras, cuja tarefa de conceitualização cabe a teoria da razão, pela qual se analisa quais falas e reclamos precisam ser justificados, em quais contextos e a 18

partir de quais critérios. Isso porque uma razão que se distingue por uma ação racional pode ser compreendida por outros mas isso não significa que ela requer a aceitação dos outros para sua validação. Ou seja, fornecer uma razão significa explicar uma ação, mas não justificá-la intersubjetivamente, o que só é possível através de uma justificação ética ou moral.

4.1. Lei e Moralidade

Forst (a partir de Habermas) afirma que junto da autonomia moral tem-se a autonomia legal de pessoas legalmente reconhecidas como o objeto da lei e a autonomia política de cidadãos que são autores de tais leis. Este é o duplo papel que surge no centro da conexão entre o Estado Constitucional e a democracia, ou entre, os direitos humanos e a soberania popular. (Forst, 2012: 102) De acordo com Habermas, normas legais precisam ser distinguidas de normas morais. As primeiras são legitimadas no discurso político, são legalmente institucionalizadas, não articulam apenas razões morais e possuem um efeito coercivo sobre as pessoas. Lei e moralidade convivem em uma relação complementar e compensatória, «It is this dual status of law, as both a factually binding system of norms (which also can described in a sociological-functional way) and claiming normative validity, that immanently connects the constitutional state and democracy.» (Forst, 2012: 102) Dessa forma para Habermas uma teoria da justiça que se baseia no princípio da autonomia, precisa considerar a conexão entre facticidade e validade, constitutiva da ordem legal moderna e perguntar quais direitos os cidadãos precisam acordar se desejam regular suas vidas legitimamente pela Lei. Coloca Forst:

To the initial question of how to justify a 'system of rights', Habermas attempts to provide an answer that goes beyond legal positivism and natural law. On the one hand, normative criteria apply to legitimate law; on the other hand, these criteria are not established by moral principles, but by means of a combination of 19

the discourse principle and the 'legal form'. (Forst, 2012: 102)

O princípio de justificação de Rainer Forst conecta-se com o princípio discursivo de Habermas, a diferença é que Forst busca responder essa mesma pergunta colocada por Habermas – quais direitos os cidadãos precisam para regular sua vida comum através das leis – atribuindo à moral importante papel. O princípio da justificação situa-se em ambos os terrenos, o da moral e o da política. Assim a questão colocada deve ser vista como moral e política-legal e deve ser respondida com base no princípio discursivo, no seu caso, o da justificação. «Then we get a different co-originality thesis according to which morality can neither be subsumed under law and democracy nor be rigidly opposed to them.» (Forst, 2012:111) Nesse ponto, chegamos a dois traços importantes da teoria de Forst o construtivismo e a crítica. O construtivismo diferentemente do de John Rawls, é entendido como um construtivismo discursivo, uma prática social, que coloca às pessoas a tarefa de erigir um edifício normativo sobre uma base moralmente imparcial e agir de acordo com os planos que elas podem aceitar e justificar, enquanto designers e produtores dessa base. Construção que se erige sobre a base de uma determinada concepção de pessoa e de um critério particular de uma prática de justificação razoável. Sobre a base do construtivismo moral é possível chegar a uma concepção de direitos humanos que nem estados e nem indivíduos podem negar a uma outra pessoa por razões que são recíprocas e defendidas por todos. Os direitos humanos têm uma natureza moral e uma lista de direitos deve ser pensada e justificada para cada situação social, com suas particularidades que colocam diferentes questões. Por isso, eles não são direitos “naturais” ou antropologicamente justificáveis. E se as normas para uma vida moralmente legítima e justa precisam ser justificadas de acordo com os contextos de cada sociedade, essa necessidade representa para a Forst o ponto central para toda prática de justificação para uma estrutura básica política e socialmente justa: o construtivismo político. E eis o ponto que nos importa:

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So neither is morality completely taken up into institutionalized legal-political procedures, since these cannot fully absorb the entire content of that which is morally required, nor does it remain external, since procedures of political justification must be organized such that the highest possible degree of participation and justificatory equality is guaranteed. Moral and political autonomy stand in an immanent relation, without blurring the distinction between moral and legal norms. Morally and politically responsible citizens, who recognize one another as such, owe one another a just regulation of their common life within the medium of law, which they can also confront as strategic actors. (Forst, 2012: 112)

Essa formulação de Forst nos permite pensar o nexo entre moral e política e fazer a necessária conexão com a validade dos direitos sociais e o papel das políticas públicas para sua efetividade. Estou entendendo o direito à saúde tanto a partir de sua validade e obrigatoriedade legal, como a partir das construções morais válidas sobre a definição de pessoa e o entendimento da cidadania no Brasil. O que a prática parece revelar é um deslocamento que esvazia de sentido a percepção de pessoa e subsequentemente de direito daquele legalmente expresso, descolando a justificação moral da prática política que parece operar com outra concepção de pessoa e de cidadania, retirando assim da legalidade a sua validade moral. Embora a definição de pessoa e de direito expressa na letra constitucional não seja publicamente contestada parece haver um acordo mútuo tácito que justifica o seu descumprimento, ou se preferirmos, a ausência de coerção para sua efetividade, coerção a ser exercida tanto sobre o Estado como sobre cidadãos, alvos e sustentáculos e razão desse direito, que deveriam reclamar, representar e sustentar politicamente. Não estou com essa afirmação negando toda a tradição política autoritária presente nas relações sociais e políticas na sociedade brasileira e o processo que forjou nossa subcidadania, ligada à invisibilidade da desigualdade que naturaliza a desigualdade e ao desenvolvimento de um habitus (no sentido bourdieusiano) de cidadania precário, nos termos de Jessé Souza, mas sim, tentando olhar para o que permite e ratifica essa ordem moral e politicamente. A percepção de justiça ou injustiça do sistema de saúde também nos remete a 21

legitimidade da política pública e aceitação por parte dos cidadãos. Neste ponto já é possível introduzir os três aspectos da legitimidade que serão norteadores de minha análise:

Three aspects of state legitimacy may be distinguished. These concern the extent to which citizens: (a) tolerate the intervention of the state; (b) accept state decisions aimed at influencing the behavior of individuals or of groups; (c) cooperate with the state to achieve the goals it has set. (Rothstein, 1998:104)

Estes aspectos só são possíveis se as pessoas concordam com os princípios e normas do sistema. Entretanto, a aceitação por falta de parâmetros para avaliação da instituição ou por medo, apesar de garantir aparente legitimidade ao sistema, não pode ser considerada como um aspecto de legitimidade da política, mas talvez uma manipulação de crenças e valores que permitem a manutenção da política institucional sem que essa seja verdadeiramente questionada, e aqui entramos no terreno da ideologia. Por essa razão, a teoria da justiça de Rainer Forst joga luz sobre importante aspecto para a análise das políticas públicas e da prática política: as relações de justificação em sociedade e o poder político, esse último o mais importante bem primário. Para o autor as pessoas são agentes da justiça, não são alvos, recipientes da justiça, são agentes autônomos que co-determinam as estruturas de produção e distribuição que determina suas vidas, dados, claro, os limites que os sistemas sociais desenvolveram nas sociedades modernas. A política é a mais importante dimensão da justiça. Nos termos de Forst (2014:114),

Justice, according to this view, is not primarily about what you have (or do not have); rather, it is about how you are treated. Justice is not a teleological notion, for first, it rests on a deontological duties of what persons owe to one another in a context of justice. Second, its critical part is not about persons lacking something that it would be good for them to have; rather, it is about persons being deprived of something they have reciprocally and generally non rejectable reason to claim. Justice 22

is above all about ending domination and unjustifiable, arbitrary rule, whether political or social life, that is, as persons with what I call a basic right to justification. (grifos do autor)

A justiça está na capacidade de fala, no poder de elaborar e demandar reclamos que se justificam aos olhos dos outros. Por isso a questão central não é o que se tem, mas sim como se é visto, pois a justiça requer que todos sejam vistos como pessoas racionais capazes de elaborar suas concepções morais, reconhecer que os outros também o são e requer que todos tenham o poder político de justificação. A demanda por justificação não se deve pelo bem da democracia, mas sim pelo bem dos fins relevantes das relações sociais e instituições em questão. É em função da realização desses fins que uma teoria do reconhecimento é fundamental, pois provê as perspectivas para uma definição concreta desses bens e sua distribuição.

The first question of justice is the question of power. For it is not just a matter of wich goods are to be legitimately distributed for what reasons, in what amount, and to whom; it is also a matter of how these goods come into the world in the first place, who decides on the distribution, and how it is carried out. This is the original, political meaning of social justice. Theories of a primarily allocative-distributive nature are accordingly “forgetful of power”, insofar as they think only from the “side of the recipient” and only require “re-distribution”, without posing the political question about the determination of the structures of production and distribution. (Forst, 2012: 195[grifos do autor])

É preciso questionar sobre a determinação das estruturas de produção. Razão pela qual é tarefa da justiça (1) Produzir uma estrutura básica de justificação; (2) Produzir uma estrutura básica plenamente justificada. Os princípios decididos pela primeira – a minimal justice - balizam as relações na segunda – a maximal justice. Esses princípios são mais do que princípios específicos para a distribuição de bens, «but a higher-order principle for justifying potential distributions». (Forst, 2012: 197[grifos do autor]) Para Forst a justiça fundamental se expressa então de forma aparentemente paradoxal, de uma implicação substantiva da justiça procedimental. A partir de um 23

“direito moral de justificação”, a estrutura básica é questionada sobre se de fato os indivíduos tem possibilidades, recíprocas e gerais, de determinar quais instituições são relevantes para eles no que se refere a produção e distribuição de bens, a violação da justiça fundamental se dá quando o poder básico de justificação é distribuído igualmente dentre as mais importantes instituições. Bens como a saúde devem então ser distribuídos considerando primeiro os requerimentos da justiça fundamental, e depois de acordo com os bens que são considerados mais pertinentes e que favorecem um ou outro esquema de distribuição, e esse segundo fator pode sempre mudar conforme o contexto.

5 - Considerações Finais

As teorias da justiça nos fornecem os parâmetros através dos quais pensar a justiça das políticas públicas, como as concepções intuitivas de justiças são elaboradas em sociedade e sua relação com a legitimidade da política. O fio condutor central dessa pesquisa é a ideia de que as concepções de justiça têm especial importância para a elaboração e análise das políticas públicas. Tais concepções são orientadoras da instituição, política pública, e da ação do cidadão quando em relação com essas. Considerando que as políticas públicas são marcadas pela indeterminação, e que estão permanentemente expostas às mudanças sociais e às “novas” necessidades e demandas trazidas pela sociedade civil, é preciso considerar que as ideias que a movem estão sempre sendo reatualizadas e submetidas à opinião pública e, em particular, dos

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atores que participam diretamente de seu cotidiano, seja enquanto produtores da política, ou enquanto seus usuários. Atores esses que ao mesmo tempo que são influenciados pela instituição também exercem influência sobre ela, nesse sentido a legitimidade das políticas públicas depende mais da correspondência da política com os valores sustentados pelas pessoas do que da validade jurídica de seus atos. De acordo com Jessé de Souza os valores morais do brasileiro estão fortemente relacionados com a crença no mercado, no indivíduo e na meritocracia. Combinação que cria uma falsa ideia de igualdade de oportunidades e se sustenta no esquecimento do social no individual. A moralidade é relevante justamente porque “deveres morais” referem-se fundamentalmente ao outro e são eles mais do que a ética das ações no plano do político que dão sentido aos direitos do homem, aos direitos sociais, e portanto, aos deveres do Estado e, ao final da linha, para as políticas públicas. A concepção de justiça de Forst dialoga diretamente com sociedades democráticas cujos princípios centrais baseiam-se na liberdade e na igualdade de seus cidadãos, e mais ainda em democracias propensas à participação direta. O caso brasileiro congrega tais características, atualmente nossa questão central não recai mais sobre a necessidade de abertura e criação de espaços de participação, mas sim, sobre a efetividade da participação já institucionalizada nas políticas públicas e sobre a distribuição do poder político e do direito à justificação dentre os participantes desses espaços, nos quais se cruzam burocracia e sua tecnocracia, e as opiniões subjetivas pautadas pelas necessidades reais dos cidadãos. A política pública é a partir disso pensada como resultante dos valores sustentados em sociedade e que, ao mesmo tempo, precisa ser responsiva aos valores e projetos políticos em disputa que influenciam em sua implementação ao longo do tempo, e são fundamentais para a compreensão de sua legitimidade. Ou seja, no caso da justiça, é em sua prática diária que a política pública será responsiva as concepções intuitivas de justiça sustentadas pelas pessoas, fundamento de suas demandas e de seus julgamentos. 25

O pano de fundo dessa discussão é pautado por concepções normativas de justiça que influenciam diretamente nas decisões do gestor sobre a implementação ou não de serviços ou programas específicos, nos diferentes contextos da política de saúde, pois é nesse campo de disputa que se coloca em pauta os limites de atuação do Estado via política pública.

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