SUBMISSÃO E JURISTOCRACIA

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Submissão e juristocracia

SUBMISSÃO E JURISTOCRACIA Submission and juristocracy Revista de Processo | vol. 258/2016 | p. 519 - 527 | Ago / 2016 DTR\2016\22292 Georges Abboud Doutor e Mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC-SP. Professor do mestrado e doutorado da Faculdade Autônoma de São Paulo – FADISP. Professor do curso de graduação da Pontifícia Universidade Católica de São – PUC-SP. Membro do Conselho Editorial da Revista de Direito Privado – RT. Membro fundador e Diretor Acadêmico da ABDPRO – Associação Brasileira de Direito Processual. Advogado. [email protected] Área do Direito: Constitucional; Processual Resumo: O artigo examina a relação entre o indivíduo e as instituições públicas, considerando a relevância de se compreender o confronto entre judicialização de direitos e o self-restraint. Para ilustrar essa relação, lançamos mão da inevitável experiência literária, nesse caso, da distopia Submissão de Michel Houellebecq. Palavras-chave: Ativismo - Submissão - Juristocracia - Direitos fundamentais - Liberdade Abstract: This article examines the relation between the citizen and the public institutions, considering the relevance about the judicializing rigths in confrontation with the self-restraint. To ilustrate this relation, this article takes the literary experience of Michel Houllebecq’s book, Submission Keywords: Activism - Submission - Juristocracy - Fundamental rights - Freedom Sumário:

O livro Submissão1 de Michel Houellebecq, em determinados aspectos, pode ser inserto na tradição literária de “1984”, de George Orwell, e no “Admirável Mundo Novo” de Aldous Huxley.2Isso porque sua leitura também nos apresenta uma distopia para o futuro da nossa sociedade. Houellebecq nos apresenta um futuro europeu, mais especificamente o francês – em que ocorre a narrativa. É no espaço político que se dá uma disputa acirrada entre a extrema direita e uma frente da fraternidade muçulmana, a qual sai vitoriosa dado o apoio obtido por partidos moderados e de esquerda. O personagem principal é François, um professor universitário de qualidade mediana, doutor em Huysmans, que leciona na Paris IV-Sourbonne. A vida de François é monótona, sem brilho, tal qual sua trajetória acadêmica. No aspecto pessoal, a monotonia só é interrompida pelas relações amorosas de François com mulheres cada vez mais jovens. Apesar de personagem principal, a vida de François é apenas pano de fundo para demonstrar a distopia que se estrutura a partir da vitória política da fraternidade muçulmana. As alterações advindas da vitória de um partido religioso são descritas de forma gradual e atingem todas as esferas da vida pública e privada. No plano pessoal, há uma mudança brusca na vestimenta das mulheres, que passam a evitar, progressivamente, roupas curtas e a abolir o uso de shorts.3 No âmbito acadêmico, houve reestruturação da grade curricular, mudança nos eixos temáticos, sendo apresentado plano de aposentadoria bastante favorável para incentivar a aposentadoria dos professores que não se adequassem às novas diretrizes do ensino, que cada vez era menos laico.4 Em relação ao ensino, o livro demonstra algumas das principais contradições, isso porque na mesma proporção que o espaço acadêmico se tornava menos independente cientificamente e se remodelava,5 havia uma melhora significativa dos salários e das condições de aposentadoria dos 6 professores em razão da maciça inserção de recursos por parte das tradicionais petromonarquias. Página 1

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O cotidiano também apresentava gradativas, porém significativas, mudanças. Se de um lado ocorria uma diminuição da esfera de liberdade e laicidade, inclusive na oferta televisiva e artística, por outro lado, a taxa de violência e desemprego havia despencado.7 A sociedade, pouco a pouco, se refazia em bases de feição patriarcal: os homens simbolizados pelo personagem – professor universitário de meia idade – viam com bons olhos essas mudanças, porque lhes possibilitava casar com mais de uma mulher e, principalmente, com mulheres cada vez mais jovens.8 A distopia exposta por Houellebecq impõe, a um só tempo, diversas reflexões: ocupar-nos-emos da complexa e intrincada relação entre o homem e as instituições em relação à liberdade. O cenário distópico projetado é altamente angustiante. Entretanto, a angústia não se dá em razão da perda da liberdade em virtude do aumento do controle religioso sobre todas as esferas do agir político e social. A angústia é sentida na medida em que a diminuição da liberdade é sempre acompanhada de uma relativa sensação de alívio. A contradição do homem com a liberdade é evidenciada em diversas passagens em que ocorrem retrocessos de vários marcos civilizatórios9, mas, em contrapartida, há uma benesse do ponto de vista econômico. Por exemplo, a teologização do Estado impôs a retirada das mulheres do mercado de trabalho, contudo, isso foi também positivo, porque permitiu a eliminação da taxa de desemprego do mercado de trabalho. A autonomia universitária é eliminada, sendo retirada por completo a liberdade de cátedra. Ocorre que essa situação não chega a ser um problema, porque, ao mesmo tempo, as petromonarquias haviam injetado uma infinidade de recursos nas Universidades. Por conseguinte, ninguém reclamava da perda da autonomia universitária, dados os polpudos salários e generosos planos de aposentadoria. Da mesma maneira, toda sufocação das esferas individuais de liberdade, seja referente à vestimenta, hábitos, lazer, era compensada por abonos estatais familiares – reiteradamente, o autor nos indica que a retirada de liberdade na esfera pública era compensável pela possibilidade de realização de casamento com mulheres mais jovens. O livro Submissão apresenta, enfim, uma intrincada e complexa relação do homem com a liberdade. Novamente, a sensação de angústia advém do jogo sensorial entre alívio e restrição, que é apresentado na medida em que ocorre a colonização da esfera de liberdade pelas instituições do Estado. A sensação é representada a partir de cruel e sincera na seguinte passagem: “a ideia assombrosa e simples, jamais expressada antes com essa força, de que o auge da felicidade humana reside na submissão mais absoluta.”10 Por óbvio que não há democracia sem instituições democráticas. Entretanto, inexistem instituições democráticas na ausência de um espaço de liberdade do indivíduo. Desse modo, agir com liberdade democrática não é algo simples. Em uma democracia constitucional, direitos e deveres constitucionais impõem ao cidadão um status de constante atividade enquanto indivíduo e partícipe de um processo político democrático. Em face de nossa esfera de liberdade, somos constantemente obrigados a tomar decisões. E toda tomada de decisão é precedida de momento de angústia que é proporcionalmente maior em relação à importância da decisão a ser tomada. É nesse contexto que parcela de nossa liberdade constitucional tem se esvaído por meio da judicialização de todas as esferas de nosso ambiente privado. No contexto brasileiro, assolado pelo ativismo, dificilmente imaginamos algum tema que não possa ser objeto de demanda judicial. Ocorre que o outro lado dessa perspectiva é que passa a não existir nenhuma esfera de nossa liberdade que não possa ser substituída por um pernicioso voluntarismo judicial. Página 2

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Quando admitimos que tudo pode ser judicializado num ambiente de completo ativismo, eliminamos qualquer discussão acerca de self-restraint – considerado um espaço imune à invasão judicial; no que especificamente nos interessa, consistiria em parcela de nosso agir individual que não pode ser substituída ou imposta por decisão judicial. Nesse particular, compartilhamos da preocupação, já apresentada por Ingeborg Maus, em que a esfera de liberdade é aniquilada pelo gigantismo judicial. Mais precisamente, “ Os espaços de liberdade anteriores dos indivíduos se transformam então em produto de decisão judicial fixados caso a caso”.11 Cada vez mais, buscamos o judiciário para, por exemplo: efetivar políticas públicas que sequer se referem a direitos fundamentais,12 obtenção de tratamentos médicos vultosos e experimentais em detrimento de toda uma sociedade que arcará com seus custos, a manifestação judicial para resolver todos os problemas familiares, requerimento para que o Judiciário proíba produtos, propagandas, manifestações de pensamento mesmo quando não há vedações legais para as hipóteses. Ora, se judicializamos tudo, não deveríamos nos espantar com decisões judiciais que liminarmente impedem o acesso de cem milhões de brasileiros ao uso de um aplicativo, que vedam um Centro Acadêmico de determinar quais assuntos serão objeto de discussão, que impossibilitam jornalistas e a imprensa de citar certas notícias ou o nome de determinadas pessoas, ou ainda, no âmbito do próprio Supremo Tribunal Federal13 que, por mais de uma vez, se invade a esfera dos demais poderes, em hipóteses sem autorizativo constitucional para tanto. Essa nossa busca cega de judicializar tudo, como se a toda vontade correspondesse direito subjetivo, Ingeborg Maus, com absoluta precisão, designou infantilismo na crença da justiça.14 No afã de efetivarmos direitos constitucionais, quando respaldamos a judicialização de toda esfera individual, a partir de parâmetros ativistas, em verdade, contribuímos para demolir os alicerces de nossa democracia constitucional. No local do nosso edifício democrático, erigimos um regime de Juristocracia.15 A Juristocracia não é apenas uma modificação interpretativa do direito, mas uma transformação da própria engenharia constitucional16 mediante uma invasão sem limites da esfera individual pelo Estado, mais especificamente, por suas decisões judiciais. Ou seja, modificamos toda a engrenagem que relaciona cidadão e Poder Público em uma democracia. Em outros termos, a juristrocracia é uma forma de degradação da democracia constitucional em que a autonomia e a separação de poderes é golpeada por um ativismo judicial que atinge a esfera dos demais Poderes, sem respaldo constitucional. Além da usurpação em relação aos demais poderes, é traço distintivo da juristocracia a crescente invasão do Poder Judiciário em face da esfera de liberdade do cidadão. Há uma espécie de colonização do mundo da vida.17 Ou seja, há uma substituição do agir livre do cidadão pela atuação do Estado, por meio de decisões judiciais. Nessa perspectiva, vale perguntar: estamos ganhando o que, efetivamente, com a crescente judicialização no Brasil? Há maior limitação do poder? De fato mais direitos têm sido realmente efetivados? A esfera de liberdade tem sido cada vez mais protegida? Parece-nos que não. Portanto, o descrédito de legitimidade em face do Legislativo e do Executivo não pode ser subterfúgio para um agigantamento do Judiciário, sob pena vislumbrarmos os estertores de nossa jovem democracia constitucional a ser substituída por uma juristocracia.18 Outrossim, a judicialização de toda a esfera de liberdade não significa fortalecimento da democracia constitucional. Pelo contrário, caracteriza sua degeneração em diversos aspectos para uma juristocracia. Nesse regime, nossa esfera de liberdade individual é trocada pelo voluntarismo ativista de segmentos do Judiciário. Acontece que se essa troca por um lado é imposta, fato é que por outro é alimentada pelos próprios indivíduos, o que nos impõe o seguinte questionamento: será que o auge da felicidade do jurisdicionado brasileiro reside na submissão total a um judiciário ativista? Torcemos para que a resposta seja negativa. Não há paralelo no mundo em que uma democracia tenha sido erigida a partir dessas bases. Essa judicialização de toda nossa esfera de liberdade nos impõe em verdadeiro relativismo que, na genialidade de Heidegger, já foi indicado como fator de ceticismoporque“todo relativismo, contudo, Página 3é

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ceticismo, e todo ceticismo traz consigo a morte de todo o conhecimento e, como também se diz, da existência do homem em geral”.19 Demais disso, nunca é demais recordar o aforismo de Nietzsche “no sentido de aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não tornar-se também um monstro. Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você ."20 No afã de implementarmos direitos fundamentais, historicamente sonegados por ineficiência legislativa e administrativa, não podemos criar uma judicialização de direitos que se converta numa invasão e colonização de todas as esferas da individualidade do jurisdicionado. O abismo social da ineficiência dos direitos existentes não se pode converter no abismo do hiperpublicismo ativista que esmaga o indivíduo enquanto o observa. Sempre que vislumbramos parcela de nosso Judiciário acreditando que a consolidação e o fortalecimento de nossa democracia constitucional passam por um agigantamento do Poder Judiciário com o recrudescimento de seu ativismo, em detrimento da democracia deliberativa, ficamos horas a fio contemplando o abismo sem nos aperceber que é o abismo está olhando para nós: criamos, assim, o monstro que nos devora. Nesse aspecto, possivelmente, a preservação de nossa democracia constitucional perpassa pela necessidade de criarmos um espaço de judicial self-restraint21para preservar a própria liberdade enquanto direito fundamental. Não se trata de criar self-restraint com a função vetusta de atribuir programaticidade aos dispositivos normativos da Constituição. Pelo contrário, o espaço de self-restraint é para preservar a própria autonomia dos poderes e principalmente a individualidade do homem. É um self-restraint de natureza e finalidade constitucional. Destarte, imprescindível não desistirmos de um espaço de liberdade que não deve ser judicializado ou determinado judicialmente é a forma de não desistirmos de nós como sujeitos da democracia. Se não é fácil a conceituação da liberdade, é fácil afirmar e demonstrar sua imprescindibilidade para uma democracia constitucional. Tal qual o vento de Guimarães Rosa,22a gente não vê a liberdade, tampouco a vê quando se acaba.

1 Livro originalmente publicado na França, sob o título Submission, no ano de 2015. 2 Cf. Georges Abboud. O dilema do direito: entre Huxley e Orwell. Revista dos Tribunais, n. 935, 2013, p. 167 et seq. Ver ainda: Georges Abboud. Processo Constitucional Brasileiro, São Paulo: Ed. RT, 2016, I, p. 45 et seq. 3 “Mas era sobretudo o próprio público que tinha sutilmente mudado, Como todos os shoppings – embora, é claro, de maneira muito menos espetacular que os de La Défense ou dos Halles –, o Italie atraíra desde sempre uma quantidade notável de gentinha; esta tinha desaparecido por completo. E as roupas femininas tinham se transformado, senti de imediato, sem conseguir analisar a transformação; o número de véus islâmicos havia aumentado um pouco, mas não era isso, e levei quase uma hora perambulando até captar, de um só golfe, o que mudara: todas as mulheres estavam de calças compridas (...) Uma nova roupa também tinha se disseminado, uma espécie de blusa comprida de algodão, parando no meio da coxa, que tirava todo o interesse objetivo das calças justas que certas mulheres poderiam eventualmente usar; quanto aos shorts, é claro que estavam fora de discussão. A contemplação da bunda das mulheres, mínimo consolo sonhador, também se tornara impossível. Uma transformação, portanto, estava indubitavelmente a caminho; começara a se produzir um deslocamento objetivo. Algumas horas zapeando pelos canais da TNT não me permitiram detectar nenhuma mutação extra; de qualquer maneira, já fazia muito tempo que os programas eróticos tinham saído de moda da televisão ”. Michel Houellebecq. Submissão. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015, p. 148. 4 “Foi só duas semanas depois de meu regresso que recebi a carta de Paris III. Os novos estatutos da universidade islâmica Paris-Sorbonne me proibiam prosseguir minhas atividades de ensino; Robert Rediger, o novo reitor da universidade, assinava pessoalmente a carta; manifestava-me seu profundo pesar e me garantia que a qualidade de meus trabalhos universitários não estava de jeito nenhum em causa. É claro que me era perfeitamente possível prosseguir minha carreira numaPágina 4

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Universidade laica; se todavia eu preferisse renunciar a essa hipótese, a universidade islâmica Paris-Sorbonne se comprometia a me pagar desde já uma aposentadoria cujo montante mensal seria indexado pela inflação e eleva-se neste momento a 3.472 euros. Eu podia agendar uma ida aos serviços administrativos a fim de tomar as providências necessárias”. Michel Houellebecq. Submissão. cit., p. 149. 5 “Na antessala, éramos acolhidos por uma fotografia de peregrinos fazendo sua circum-ambulação em torno da caaba, e as salas estavam decoradas com cartazes representando os versículos caligrafados do Alcorão; as secretárias tinham mudado, eu não reconhecia nenhuma, e todas estavam de véu”. Michel Houellebecq. Submissão. cit., p. 150. 6 “No novo sistema, a escolaridade obrigatória terminava no final do primário – isto é mais ou menos na idade de doze anos; restabelecia-se o certificado de conclusão de estudos, que aparecia como o coroamento normal do percurso educativo”. Michel Houellebecq. Submissão. cit., p. 167. 7 “A consequência mais imediata de sua eleição foi a diminuição da delinquência, e em proporções enormes: nos bairros mais problemáticos, ela despencou para menos de um décimo do total. Outro sucesso imediato foi o desemprego, cujas taxas estavam em queda livre. Isso se devia, sem a menor dúvida, à saída maciça das mulheres do mercado de trabalho – e isso estava por sua vez ligado à considerável revalorização dos abonos familiares, primeira medida apresentada, simbolicamente, pelo novo governo”. Michel Houellebecq. Submissão. cit., p. 166. 8 Michel Houellebecq. Submissão. cit., p. 206, et seq. 9 Cf. Norbert Elias. O Processo Civilizador. Formação do Estado e Civilização. vol. 2. Rio de Janeiro: Zahar, 1993. Ver: Georges Abboud. O processo civilizador e os direitos fundamentais. História e Cultura, vol. 4, 2015, p. 140. 10 Michel Houellebecq. Submissão. cit., p. 219. 11 Ingeborg Maus. O Judiciário como Superego da sociedade: o papel da atividade jurisprudencial na ‘sociedade orfã’. Novos Estudos CEBRAP, n. 58, 2000, p. 190 (tradução de Martonio Lima e Paulo Albuquerque). Obviamente, não compartilhamos da mesma perspectiva de self-restraint apresentada por Ingeborg Maus. Comungamos, todavia, do diagnóstico pernicioso que ela faz ao agigantamento do judiciário. Sobre a possibilidade de o Judiciário ser espaço amplo para proteção de direitos fundamentais, sugerirmos: Georges Abboud. Processo Constitucional Brasileiro, São Paulo: Ed. RT, 2016, n. 4, p. 437 et seq. Sobre o tema, a partir de uma perspectiva nitidamente liberal: Friedrich A. Hayek. Derecho, legislación y libertad, 2. ed., Madrid: Union Editorial, 2014, n. 5, p. 123 et seq e n. 18, p. 495 et seq. 12 Sobre as hipóteses em que consideramos possível a judicialização de políticas públicas, ver: Georges Abboud. Discricionariedade administrativa e judicial. São Paulo: Ed. RT, 2014, n. 2.7.3.1, p. 166 et seq. 13 Georges Abboud. Processo Constitucional Brasileiro. cit., n. 10, p. 703 et seq. 14 “Essa inversão das expectativas de direito não ocorre somente por meio da usurpação dos tribunais, mas também mediante a própria estrutura legal. Multiplicam-se de modo sintomático no direito moderno conceitos de teor moral como ‘má-fé’, ‘sem consciência’, ‘censurável’, que nem sempre são derivados de uma moral racional, mas antes constituem representações judiciais altamente tradicionais (ou politicamente autoritárias, como no caso da jurisprudência das Sitzblockade). A expectativa de que a Justiça possa funcionar como instância moral não se manifesta somente em pressuposições de cláusulas legais, mas também na permanência de uma certa confiança popular. Mesmo quem procura evitar ao máximo a precipitada interferência paterna nos conflitos que ocorrem nos aposentos infantis, seguindo critérios antiautoritários de educação, favorece com maior obviedade aquela mesma estrutura autoritária quando se trata da condução de conflitos sociais. A justiça aparece então como uma instituição que, sob a perspectiva de um terceiro neutro, auxilia as partes envolvidas em conflitos de interesses e situações concretas, por meio de uma decisão objetiva, imparcial e, portanto, justa. O infantilismo na crença na Justiça aparece de

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forma mais clara quando se espera da parte do Tribunal Federal Constitucional Alemão (TFC) uma retificação da própria postura em face das questões que envolvem a cidadania. As exigências de justiça social e proteção ambiental aparecem com pouca frequência nos próprios comportamentos eleitorais e muito menos em processos não institucionalizados de formação de consenso, sendo projetada a esperança de distribuição desses bens nas decisões da mais alta corte”. Ingeborg Maus. O Judiciário como Superego da sociedade: o papel da atividade jurisprudencial na ‘sociedade orfã’. Novos Estudos CEBRAP, n. 58, 2000, p. 190 (tradução de Martonio Lima e Paulo Albuquerque). Com preocupações assemelhadas no âmbito constitucional ver: Sebástian Linares. La (i)legitimidad democrática del control judicial de las leyes. Madrid: Marcial Pons, 2008, passim, em especial cap. II e VI. Larry D. Kramer. Constitucionalismo popular y control de constitucionalidad, Madrid: Marcial Pons, 2011, passim. Lawrence G. Sager. Juez y democracia, Madrid: Marcial Pons, 2007, especialmente cap. X, p. 197 et seq. 15 Ver: Georges Abboud. Processo Constitucional Brasileiro. cit., n. 10.4, p. 742 et seq. Georges Abboud e Nelson Nery Junior. O CPC/2015 (LGL\2015\1656) e o risco de uma juristocracia: a correta compreensão do função dos tribunais superiores entre o ativismo abstrato das teses e o julgamento do caso concreto. Revista Brasileira de Direito Processual, n. 93, 2016, p. 225-254. Sobre a questão do papel dos juízes na democracia e seus limites, conferir em especial a obra de Edouard Lambert. El gobierno de los jueces. Madrid: Tecnos, 2010, passim. 16 Giovanni Sartori. Engenharia Constitucional. Brasília: UNB, 1996, p. 09. Georges Abboud e Rafael Tomaz de Oliveira. O Supremo Tribunal Federal e a Nova Separação de Poderes: entre a interpretação da Constituição e as modificações na engenharia constitucional. Repro, vol. 233, 2014, p. 13 et seq. 17 Cf. Marcelo Neves. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 230. V. Jürgen Habermas. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, vol. 1, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 109 et seq. 18 Chester Neal Tate e Torbjörn Vallinder. The global expansion of Judicial Power: the judicialization of politics, cit.; Martin Shapiro e Alec Stone Sweet. On law, politics & judicialization. New York: Oxford University Press, 2002; Ran Hirschl. Towards juristocracy. The origins and consequences of the new constitutionalism. Cambridge: Harvard University Press, 2007. Há também textos traduzidos para o português e publicados recentemente na Revista de Direito Administrativo da Fundação Getúlio Vargas: Ran Hirschl. O novo constitucionalismo e a judicialização da política pura no mundo. Revista de Direito Administrativo, n. 251, maio.-ago., 2009, p. 139-175. 19 Martin Heidegger. Introdução à filosofia, São Paulo: Martins fontes, 2008, p. 119. 20 Friedrich Nietzsche. Além Do Bem E Do Mal: ou prelúdio de uma filosofia do futuro. Curitiba: Hemus, 2001, Aforismo 146, p. 89. 21 Sobre o risco de a judicial review conduzir a uma supremacia judicial, ver: Mark Tushnet. Constitucionalismo y judicial review, Lima: Palestra, 2013, n. 2, p. 75 et seq. 22 Parafraseamos a frase de Guimarães Rosa: “A gente não vê o vento, tampouco o vê quando se acaba”. A menina de lá. Primeiras Estórias, São Paulo: Nova Fronteira, 2001, p. 69.

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