Subjetividades antigas e modernas

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Descripción

História e arqueologia em movimento Dirigida por Pedro Paulo A. Funari

Pedro Paulo A. Funari Margareth Rago ( ORGANIZADORES )

SUBJETIVIDADES ANTIGAS E MODERNAS

Infothes Informação e Tesauro

Catalogação elaborada por Wanda Lucia Schmidt – CRB-8-1922

SUBJETIVIDADES ANTIGAS E MODERNAS

Coordernação editorial Joaquim Antonio Pereira Paginação Lívia C. L. Pereira Capa CONSELHO EDITORIAL Eduardo Peñuela Cañizal Norval Baitello junior Maria Odila Leite da Silva Dias Celia Maria Marinho de Azevedo Gustavo Bernardo Krause Maria de Lourdes Sekeff (in memoriam) Cecilia Almeida Salles Pedro Roberto Jacobi Lucrécia D’Alessio Ferrara 1ª edição:outubro de 2008 © Pedro Paulo A. Funari Margareth Rago ANNABLUME EDITORA . COMUNICAÇÃO Rua Tucambira, 79 . Pinheiros 05428-020 . São Paulo . SP . Brasil Tel e Fax. (11) 3812.6764 www.annablume.com.br

Mas os modos de existência ou possibilidades de vida não cessam de se recriar, e surgem novos. Se é verdade que essa dimensão foi inventada pelos gregos, não fazemos um retorno aos gregos quando buscamos quais são aqueles que se delineiam hoje, qual é nosso querer-artista irredutível ao saber e ao poder.

Gilles Deleuze

SUMÁRIO

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APRESENTAÇÃO

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I. ULTRAPASSAR AS FRONTEIRAS DO TEMPO

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1. ANTIGOS E MODERNOS: CIDADANIA E PODER MÉDICO EM QUESTÃO Margareth Rago e Pedro Paulo Funari.

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2. HISTÓRIA: CONSTRUÇÃO E LIMITES DA MEMÓRIA SOCIAl Tânia Navarro Swain

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3. GENEALOGIA E HISTÓRIA ANTIGA Glaydson José da Silva e Adilton Martins

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4. HELENISMO E MODERNIDADE: O CASO NIETZSCHE Alexandre Alves

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II. SUBJETIVIDADE, PODER E GÊNERO 5. DE BRUXAS E FEITICEIRAS Norma Telles

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6. UM MITO GREGO EM PARAGENS MEDÉIA DE EURÍPEDES Sandra C. A. Pelegrini

NACIONAIS.

PODERES E SUBJETIVIDADES

EM

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7. SOMOS TÃO ANTIGOS QUANTO MODERNOS? SEXUALIDADE E GÊNERO NA ANTIGÜIDADE E NA MODERNIDADE Lourdes Feitosa e Margareth Rago

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8. “AFASTE-SE, MARIA, DE NÓS,

POIS AS MULHERES NÃO MERECEM A

VIDA”: HETERODOXIA E ORTODOXIA NOS INÍCIOS DO

CRISTIANISMO

Roberta Alexandrina da Silva 000

III. TRANSGRESSÕES E ARTES DE VIVER

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9. R OSÁRIOS

E VIBRADORES : INTERFERÊNCIAS FEMINISTAS NA ARTE

CONTEMPORÂNEA

Luana Saturnino Tvardovskas 000

10. “UM

BEIJO PRESO NA GARGANTA”: CONTRACULTURA E ESTÉTICAS DA

EXISTÊNCIA NA CANÇÃO BRASILEIRA DOS ANOS 1960 E 1970

Ana Carolina de Toledo Murgel 000

11. DA ARTE DA AMIZADE ENTRE ANTIGOS E MODERNOS Marilda Ionta e Natália Ferreira Campos

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12. EM BUSCA DA BELEZA NO VIVER : DIÁLOGOS POSSÍVEIS ANTIGUIDADE E O ANARQUISMO CONTEMPORÂNEO Maria Clara Pivato Biajoli e Priscila Piazentini Vieira

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IV. CORPO, SEXUALIDADE E IMAGINÁRIO

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13. UMA LONGA CONTROVÉRSIA NA MODERNIDADE: GÊNERO E MEDICINA Elisabeth Juliska Rago

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14. GLADIADORES

ENTRE A

EM MOVIMENTO: IMAGENS DO CORPO E FORMAS DE

IDENTIDADES ENTRE OS ROMANOS

Renata Senna Garraffoni 000

15. O

FALO NA

A NTIGUIDADE

FOUCAULTIANA

Marina R. Cavicchioli

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AS/OS AUTORAS/ES

E NA

M ODERNIDADE :

UMA LEITURA

APRESENTAÇÃO MARGARETH RAGO PEDRO PAULO FUNARI

a história tem por função mostrar que aquilo que é nem sempre foi, isto é, que é sempre na confluência de encontros, acasos, ao longo de uma história frágil, precária, que se formaram as coisas que nos dão a impressão de serem as mais evidentes. Aquilo que a razão experimenta como sendo sua necessidade, ou aquilo que antes as diferentes formas de racionalidade dão como sendo necessária, podem ser historicizadas e mostradas as redes de contingência que as fizeram emergir (...). Michel Foucault

A HISTÓRIA ANTIGA teve um papel muito forte dentro da construção de conceitos de identidade nacional e da idéia de herança cultural (HINGLEY, 2002, p. 28). Enquanto a Grécia antiga era vista como ideal de civilização e de democracia a ser imitado, buscou-se ressaltar o passado romano em sua expansão territorial, seu imperialismo, sua força bélica, sua literatura, suas construções e sua arte: cada um desses temas foi mais ou menos privilegiado, em virtude do momento histórico em que esse passado era reclamado. Cada época, baseada em valores de seu momento presente, tentou resgatar um determinado tipo de passado de acordo com suas necessidades identitárias, buscando estabelecer as idéias de herança cultural e continuidade histórica. Como nos aponta Duby: “cada época constrói, mentalmente sua própria representação do passado, sua própria Roma e sua própria Atenas” (1980, p.44). Assim, quando, na Modernidade, buscou-se em Roma a idéia de identidade, ao mesmo tempo em que a sexualidade era vista com preconceitos e tabus, construiu-se um passado assexuado: durante muito tempo, arqueólogos e historiadores da arte silenciaram sobre esse tema em suas

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Subjetividades antigas e modernas

pesquisas. Ao excluírem-se materiais representantes da sexualidade como fontes documentais, já se fazia uma opção de um determinado tipo de passado a ser reconstruído, lembrando que o discurso histórico começa na seleção e transformação de objetos distribuídos de outras formas em documentos. Portanto, no mesmo movimento em que se valorizavam os antigos como referências fundamentais a serem copiadas e mantidas, uma narrativa histórica norteada pelas noções de objetividade e continuidade recriava os antigos à sua própria imagem, operação que permitia legitimar representações sociais de hierarquia social e superioridade racial, já que situava o presente como resultado de uma longa evolução histórica. Grandes nomes do evolucionismo, ao longo de todo o século XIX e do XX, entendiam que, tendo-se iniciado a civilização na Antiguidade Clássica, havia-se chegado, no presente, ao mais alto grau de desenvolvimento que a humanidade poderia atingir. Esse imaginário preservou-se por muitas décadas e esteve na base de ideologias políticas e de políticas públicas responsáveis por efeitos perversos e catastróficos. A exclusão dos negros africanos, dos orientais, das mulheres e dos despossuídos em geral da esfera pública e da vida social foi justificada com base em argumentos históricos e biológicos, pretensamente científicos, neutros e objetivos, como muitos estudiosos têm denunciado (GOULD, 1999). Essa crítica resultou num corte violento estabelecido entre o passado e o presente, orientando inclusive a cristalização de pesquisas em um momento histórico ou noutro, sem qualquer ponte ou conexão possíveis entre elas. Diferentes histórias, diferentes temporalidades; ausência de diálogos e de interações. O estudo comparativo entre diferentes temporalidades históricas ainda é pouco usual, algo que se explica, em parte, pelas compartimentações tradicionais do saber acadêmico, que distanciam historiadores de filósofos, classicistas de estudiosos da nossa época. Por isso mesmo, iniciamos um projeto temático, intitulado “Gênero, Subjetividades e Sexualidade na Antiguidade e na (Pós) Modernidade: pesquisa em história comparada”, desenvolvido na área de História Cultural do Programa de Pós-Graduação em História do IFCH da UNICAMP e apoiado pelo CNPQ, que apostou no caráter revigorante da intersecção programática dos estudos, em uma multidisciplinaridade que pode produzir resultados inovadores e inesperados. O projeto que desenvolvemos ao longo de dois anos (2006-2008), e do qual resulta a presente publicação, visou criar condições de possibilidade para a realização de uma história comparada da sexualidade, da subjetividade e das relações de gênero entre a Antiguidade greco-romana e a Modernidade, entendendo que, embora se trate de culturas muito diferentes, ao mesmo

Apresentação

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tempo, são suficientemente próximas para justificar-se um estudo comparativo. Assim, se de um lado, é fundamental desmistificar as leituras historiográficas marcadamente anacrônicas, que estabelecem fios de continuidade entre esses dois momentos históricos e impregnam fortemente nosso imaginário social, legitimando as formas sociais instituídas, de outro, desejamos conhecer melhor experiências históricas que, situadas como nossas origens, revelamse orientadas por modos de pensar e fazer outros, como bem observam Hannah Arendt, Michel Foucault e Jean-Pierre Vernant, entre outros importantes pensadores contemporâneos. (ARENDT,1981; FOUCAULT, 1994; VERNANT, 1981) Nesse sentido, não se trata de estabelecer quadros comparativos estanques entre um momento histórico e outro, mas de perguntar pelas múltiplas formas de apropriação do passado, pelos vários modos de hierarquização, inclusão e exclusão que atravessam as narrativas históricas, pelas relações que cada sociedade estabelece consigo mesmo e com seu passado, esse muitas vezes visado como o seu Outro sombrio, mais atrasado e primitivo, ou ao contrário, como a origem supostamente tranqüila e enobrecedora. A título de ilustração, é conhecido o uso legitimador que fizeram os eugenistas, nos anos de 1930, dos ideais de formação dos jovens e das práticas corporais valorizadas na Grécia Antiga, negando radicalmente, desse modo, a historicidade das concepções e experiências que marcaram aquela sociedade. Longe de perceberem aí “artes da existência” constituídas por práticas da liberdade, por exemplo, valorizaram a disciplina rígida do corpo, a recusa dos prazeres e a negação de si, a normatização do indivíduo, tal como preconizavam em sua própria época, a partir de valores supostamente existentes desde sempre. Do mesmo modo, pode-se afirmar, numa perspectiva feminista, que as mulheres foram excluídas da esfera pública moderna, recorrendo-se aos tradicionais discursos cristãos de inferiorização feminina, que naturalizavam a identidade, o corpo e as relações assimétricas de gênero. A história antiga serviu, em grande parte, portanto, para legitimar os discursos modernos, instituidores de formas sociais e culturais hierárquicas e excludentes, até recentemente hegemônicas em nosso presente, reforçando o essencialismo, hoje muito criticado, em especial, pelo pós-estruturalismo e pelo próprio feminismo, entre outras importantes correntes do pensamento crítico contemporâneo. Tendo como principais referências as problematizações e conceitualizações de Foucault, mas também daquelas trazidas pela epistemologia feminista e pela introdução da categoria do gênero, perguntamos muito mais pelas diferenças que nos separam dos antigos do que pelas semelhanças. Mais do

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Subjetividades antigas e modernas

que isso, procuramos perceber os constantes usos do passado que constróem mundos gregos e romanos, muitas vezes, para fins opressores, no presente. As palavras do filósofo, com as quais nos solidarizamos, são bastante esclarecedoras: Eu faço um uso rigorosamente instrumental da História. É a partir de uma questão precisa que encontro na atualidade, que a possibilidade de uma História se desenha para mim. (...) O que eu tento fazer é, ao contrário, mostrar a impossibilidade da coisa, a formidável impossibilidade sobre a qual repousa o funcionamento do hospício, por exemplo. As histórias que faço não são explicativas, jamais mostram a necessidade de alguma coisa, mas, antes, a série de encadeamentos, através dos quais o impossível foi produzido e reengendra seu próprio escândalo, seu próprio paradoxo, até agora. (...) No limite, pode-se pensar que é o mais impossível, finalmente, que se tornou o necessário. É preciso dar o máximo de oportunidades ao impossível e dizer-se: como esta coisa impossível efetivamente aconteceu ? (FOUCAULT, 2006, p. 98-99)

Esta obra congrega, assim, um conjunto de artigos de estudiosos críticos, provenientes de diferentes universidades, que buscam romper barreiras e hierarquias. Resulta de colóquios e convívios profícuos, fertilizados pela interação. O resultado é um convite a ousar pensar a diversidade e a heterarquia e a problematizar nossa própria pós-modernidade.

BIBLIOGRAFIA ARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense-Universitária; Rio de Janeiro: Salamandra; S. Paulo: Ed. Universidade São Paulo, 1981. FOUCAULT, M. “Eu sou um pirotécnico”. In: POL-DROIT, R. Michel Foucault. Entrevistas. Trad. Vera Portocarrero e Gilda Gomes Carneiro. Rio de Janeiro, Graal, 2006, p.68-100. . Dits et Ecrits. IV. Paris: Gallimard, 1994 GOULD, S. J. A falsa medida do homem. 2ªed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. HOLLANDA, H. B. Tendências e Impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994 VERNANT, J P. L´individu, la mort, l´amour. Soi-même et l´autre en Grèce ancienne.

Paris: Gallimard, 1981.

I. UL TRAPASSAR AS ULTRAPASSAR FRONTEIRAS DO TEMPO

1. ANTIGOS E MODERNOS: CIDADANIA E PODER MÉDICO EM QUESTÃO MARGARETH RAGO PEDRO PAULO FUNARI

A cidadania para os modernos e para os antigos A CONSTRUÇÃO da noção moderna de cidadania – inaugurada, em grande parte, com a Revolução Francesa - contou com importantes reforços colhidos na história da Antigüidade greco-romana. Por meio de uma operação ideológica já bastante questionada, estabeleceram-se estreitos laços de continuidade entre esses dois momentos históricos. Inúmeros pensadores e políticos modernos recorreram aos antigos para mostrar como a figura do cidadão que promoviam atendia às exigências da natureza e da normalidade, da evolução e do progresso, pois havia sido estabelecida desde aqueles tempos imemoriais. A título de ilustração, o médico Renato Kehl - introdutor da eugenia no Brasil, no final dos anos de 1910 -, preocupado com a formação do povo brasileiro, escreveu A Cura da Fealdade (1923), livro em que sugere técnicas modernas de embelezamento da população. Referindo-se à Antigüidade grega, como mostra Pietra Diwan, ele procurava justificar seus procedimentos como forma de reatar os vínculos com os nobres ideais da civilização, desde suas origens, e dar-lhes continuidade (DIWAN, 2003). Dizia ele: Imitemos os gregos dos tempos heróicos, no que eles tinham de belo e salutar. Esforcemo-nos como eles para reabilitar física e moralmente os atributos humanos que a degeneração se propõe a alterar. Embelezemos a espécie humana, certos de que a beleza pode ser criada à nossa vontade. Não é utópica essa afirmativa (KEHL, 1923 apud DIWAN, 2003, p.32).

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Antigos e modernos: cidadania e poder médico em questão

Gregos e romanos serviam como parâmetro e modelo. Os gregos, por seus conceitos mais abstratos, como o poder do povo, democracia, ou mesmo pela igualdade, tradução dos termos gregos isonomia (mesma lei), isegoria (mesmo direito de expressão) e isotimia (mesma honra), todos assemelhados pela igualdade (isos). A participação popular, contudo, era temida, a plebe ignara a ser evitada. Os romanos serviram por seus conceitos mais concretos, políticos e efetivos: da república (res publica, a coisa pública) aos cônsules (magistrados supremos), até o conceito mesmo da cidadania (ciuitas, o conjunto de ciues, cidadãos). Essas apropriações dos antigos, é claro, nada tinham a ver com gregos e romanos, cujas percepções e visões de mundo em nada se assemelhavam ao novo mundo burguês nascente. Nossos conceitos não são os mesmos dos antigos, como lembra Nietzsche (2005, p.180-191). No entanto, o passado foi usado para naturalizar as relações sociais modernas, como se, por naturais, estivessem presentes desde a Antigüidade e, por essa mesma suposta presença, fossem da ordem mesma das coisas. A História, nesse sentido, teve como função legitimar o presente, mostrando como as noções defendidas na Modernidade haviam sido herdadas do passado, desde nossa própria infância, porém, amadurecidas com o decorrer do tempo e com o acúmulo das experiências. A construção do conceito moderno de cidadania passa, pois, por uma estranha apropriação, melhor dizendo, distorção do que se entendia por política e cidadania na Grécia antiga, tendo em vista legitimar a racionalidade burguesa. Trata-se, contudo, de um uso do passado, pois a pólis grega, ainda que muito variada em seus exemplos concretos (OSBORNE, 2004, p.102-118), apresentava características diversas da cidade moderna. Pólis, de onde deriva o conceito grego de cidadania, politéia, e de cidadão, polités, constitui uma unidade territorial - composta de uma parte urbana (asty) e outra rural (khora) - assim como uma comunidade, koinonia. A politéia possuía leis de caráter divino, imutáveis (thémis), assim como outras estabelecidas pelos próprios cidadãos, as leis (nomoi) (FUNARI, 2002). Cada cidade tinha regras sobre quem eram os cidadãos, mas, em todas, os menores, as mulheres, os estrangeiros e os escravos estavam excluídos (TRABULSI, 2006, p.21-37). A cidadania grega, assim como a romana, era diferente da moderna, ainda que tenha servido às criações à época dos estados nacionais. Vale examinar, mesmo que brevemente, em que consistiu a formação moderna do cidadão, desde o final do século XVIII, através da imposição de um modelo público que vigorou, com poucas mudanças, até algumas décadas atrás, nas sociedades democráticas do Ocidente. Na Modernidade, ser cidadão passou a significar possuir determinadas características, como ser homem branco, proprietário, alfabetizado, mas também ser obediente, trabalhador,

Margareth Rago e Pedro Paulo Funari

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higiênico e cumpridor dos deveres, ou seja, seguidor dos preceitos da moral burguesa. Em outras palavras, nesse imaginário, renunciar a si mesmo e aos prazeres, segundo os ditames da moral cristã seria fundamental para aquele que quisesse ser percebido como racional e, assim, opor-se às figuras da loucura, da degenerescência e da vagabundagem, construídas e cada vez mais esmiuçadas pelos discursos científicos da Medicina e do Direito (ALVAREZ, 2003). Tratava-se de um ideal de subjetividade imposto pela moral dominante como “a verdade” do indivíduo, estabelecida universalmente como padrão de normalidade. Nessa direção, não foram poucos os esforços empreendidos pelos setores dominantes da sociedade para exportar e impor suas próprias concepções e regras do “bem viver”, as formas consideradas “normais” de agir, pensar e sentir também para as camadas pobres da população, como mostram vários estudos históricos (CORBIN,1988). Desqualificar as práticas e interpretações populares de vida, de organização do espaço, de cuidado com as crianças, de trabalho ou de lazer exigiu um extenuante trabalho das equipes médicas e higienistas que, desde meados do século XIX, sob o comando do Estado, passaram a vasculhar todos os cantos das cidades, vistoriando fábricas, ruas, praças, bares, clubes, bordéis e prisões, tendo em vista detectar possíveis focos de doença, de imoralidade e de transgressão (RAGO,1985). Aqui, os conceitos e as problematizações de Foucault são fundamentais, já que permitem questionar as verdades estabelecidas e dar visibilidade a manifestações de saber-poder pouco claras, quando ainda nos atínhamos à concepção jurídica do poder, “centrado exclusivamente no enunciado da lei e no funcionamento da interdição” (FOUCAULT,1982, p.83). É assim que, ao examinar a emergência da “sociedade disciplinar”, considerada como a outra face da “sociedade do contrato”, Foucault deixa bem claro que outra mecânica do poder entra em cena com o capitalismo industrial, capturando tanto o indivíduo como a população, o corpo e a gestão da própria vida. Explicando o biopoder, ele afirma que: o que se passou no século XVIII em certos países ocidentais e esteve ligado ao desenvolvimento do capitalismo foi um outro fenômeno, talvez de maior amplitude do que essa nova moral que parecia desqualificar o corpo: foi nada menos do que a entrada da vida na história – isto é, a entrada dos fenômenos próprios à vida da espécie humana na ordem do saber e do poder – no campo das técnicas políticas (1982, p.133).

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Antigos e modernos: cidadania e poder médico em questão

Em sua leitura, ao contrário do que ocorria na sociedade de soberania, entre o século XVI e meados do século XVIII, onde interessava ao poder soberano a obediência dos súditos e sua utilidade para os açambarcamentos dos produtos, trata-se, no capitalismo industrial emergente, da apropriação dos corpos para a elevação da produtividade econômica e para a total submissão política. Questão de dominação, em que duas grandes tecnologias políticas se entrecruzam e reforçam: as disciplinas, de um lado, e a regulação das populações - o biopoder -, de outro. Tudo isto era novidade e afastavase não apenas da sociedade de soberania como também das experiências antigas (QUIGNARD,1994, p.85). No primeiro caso, os “corpos dóceis”, tal como aparecem em Vigiar e Punir (1977), são caracterizados como efeitos dos saberes e dos micropoderes, de práticas discursivas e das disciplinas que se generalizam, tendo em vista desfazer as confusões, individualizar e esquadrinhar, domesticar os gestos, adestrar os corpos e instituir as identidades normais e anormais. Portanto, para Foucault, o poder deixa de ser percebido, segundo uma representação jurídica, como negatividade, como aquilo que reprime, como força que se exerce de cima para baixo, do Estado sobre a sociedade, para ser percebido como redes de relações que capturam os corpos, produzem os gestos, permeiam as instituições e constituem as subjetividades. Trata-se de uma outra concepção do poder - visto como positivo e produtivo -, o que é fundamental para entendermos as formas da dominação na Modernidade, que se exercem de modo muito mais sofisticado e sutil pela normalização do indivíduo e pelo controle das populações. Essa dominação ocorre tanto em contextos liberais, como em autoritários ou ditatoriais, ainda que de modo diversificado (FUNARI; ZARANKIN, 2006). No segundo caso, tendo em vista a regulação da população, nascem as biopolíticas que investem sobre a vida, visando seu prolongamento, a intensificação das forças e o fortalecimento da raça. Na passagem do século XVIII para o XIX, o conjunto de seres vivos, constituídos em populações, passa a ser objeto de governo. Por meio dos biopoderes locais, começa-se a se ocupar da higiene, alimentação e natalidade (REVEL, 2006, p.57). Daí, a importância que assumem os estudos demográficos, a estimativa da relação entre recursos e habitantes, a tabulação das riquezas, a estimativa da duração da vida, tanto quanto o que Foucault denomina de “dispositivo da sexualidade”. E por esse conceito, ele dá visibilidade às inúmeras estratégias e tecnologias de captura e ressignificação das práticas sexuais, classificadas cientificamente em “normais” ou “patológicas” pelo poder médico. Mais do que isso, questiona a centralidade que a sexualidade assume no imaginário moderno, situando-se como instância que responde pela “essência”, pela

Margareth Rago e Pedro Paulo Funari

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identidade do indivíduo. Afinal, pergunta ele, por que as relações sexuais, e não, por exemplo, as formas alimentares, podem revelar uma suposta “verdade” oculta do indivíduo? (FOUCAULT, 2004, p.93-103) A construção da “ordem civilizada” e do padrão de normalidade do indivíduo implicou, portanto, a definição do seu avesso, o Outro a ser perseguido, vigiado, domesticado e enquadrado, seja na figura do louco, como doente mental, seja na do criminoso-nato, como definiu o Dr. Cesare Lombroso (1835-1909), pai da Antropologia Criminal, seja ainda na do monstro patológico, concebido pelo saber médico-psiquiátrico e reconhecido pelos juristas. A preservação do bem público, a conservação da ordem social e dos bons costumes e a garantia da força das instituições sociais e políticas passam a fazer parte dos discursos científicos normativos, que legitimam a sociedade burguesa. Psiquiatria e Direito reforçam-se nessas construções discursivas em que ganham materialidade seus “regimes de verdade”, assim como nas práticas de “cura” e punição que progressivamente implementam e exportam para toda a sociedade.

Os anormais e o dispositivo da sexualidade Pode-se compreender o caráter de óbvia evidência que a prisão-punição adquiriu muito cedo. Desde os primeiros anos do século XIX, ainda se tinha consciência de sua novidade; e, contudo, ela pareceu de tal modo ligada, e de forma profunda, com o funcionamento mesmo da sociedade, que ela relegou ao esquecimento todas as outras punições que os reformadores do século XVIII haviam imaginado. Parecia sem alternativa, resultado do próprio movimento da História (FOUCAULT, 2001, p. 195).

. Segundo a hipótese de Foucault, as formas da dominação na sociedade burguesa atingem o próprio corpo do indivíduo e, mais do isso, visam a uma gestão da vida de toda a população. Cada vez mais, o Estado passa a ocuparse com dimensões como a saúde da população e seu poder, reforçado pela aliança com a Medicina, atingirá a todos e a todas nos ínfimos recônditos da vida pública e privada. O poder médico apresenta-se como a autoridade competente para a gestão da vida e da morte, no mundo urbano-industrial: da orientação às mães nos cuidados maternos à definição das práticas sexuais lícitas e ilícitas, da definição das identidades sexuais às teorias da degenerescência. Os médicos patologizam as práticas sexuais, instituindo

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Antigos e modernos: cidadania e poder médico em questão

como normal apenas o sexo do casal heterossexual destinado para fins reprodutivos. Já a figura da anormalidade passa a abarcar todos aqueles e aquelas que praticam uma série de atos definidos como “perversões sexuais”, segundo o “regime de verdade” da Medicina e da Psiquiatria. Nesse sentido, diz Foucault, o poder médico e psiquiátrico será responsável pela “implantação das perversões sexuais”, já que todas as práticas antes consideradas libertinas, mas não patológicas, passam a ser classificadas como doenças ameaçadoras e incuráveis (FOUCAULT, 1982, p.37). Tome-se, ainda, um ponto fundamental do dispositivo da sexualidade, a partilha entre a heterossexualidade e a homossexualidade, estabelecida pelo poder médico, como uma definição que se estende a todos os indivíduos do planeta, independente da classe social, etnia, gênero, idade e nacionalidade (COSTA, 1996). Ao contrário da experiência da sexualidade no mundo grecoromano, onde as práticas sexuais não se constituíam num critério de definição da essência do indivíduo, a Medicina moderna definirá aquele que se envolve amorosa ou sexualmente pelo mesmo gênero como um ser anormal, um perverso sexual, um doente mental, segundo uma tipologia construída a partir das referências morais dos médicos, por sua vez, fortemente marcados pela moral cristã. A sexualidade dos antigos tem sido muito discutida, nas últimas décadas, à luz do questionamento dos discursos normativos modernos sobre a suposta naturalidade das relações entre homens e mulheres. A relação sexual de varões com varões não constituía, para gregos e romanos, um critério de definição identitária: não existiam, pois, homossexuais. O amor conjugal não se contrapunha, em uma cidade como Atenas, à época clássica, ao Eros e à aphrodisia entre os maridos. A masculinidade compreendia, em certo sentido, ambas as experiências (FOUCAULT, 1984, p. 251-269). No mundo romano, tampouco as relações entre dois homens eram proscritas, como no famoso caso de Júlio César, símbolo claro da masculinidade e, ao mesmo tempo, alcunhado de “Rainha da Bitínia”. Foucault foi muito feliz ao caracterizar, a partir da literatura prescritiva antiga, as características contrastantes da sexualidade antiga e cristã. A atividade amorosa greco-romana era regrada pela arte dos prazeres, ajustada aos momentos oportunos (kairoi) e ao estatuto social do sujeito. O bom uso dos prazeres exigia do praticante um treinamento, domínio de si, temperança (sophrosyne), busca de uma verdade livre, potenciada na relação entre homens adultos e em formação. O cristianismo viria a introduzir noções de culpa à temperança e pessimismo da medicina antiga tardia, para transformar a relação sexual em destempero a ser combatido (GROS, 2005, p. 96-109). É neste contexto que podemos entender as reinterpretações modernas. O “homossexual”, termo que nasce no século XIX, torna-se uma “espécie”, uma identidade ameaçadora na tipologia das “perversões sexuais”

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elaborada pelos doutores, como o conhecido psiquiatra vienense Richard von Krafft-Ebing (1840-1902), autor de Psychopatia Sexualis, publicada em 1886. Segundo este, práticas eróticas e sexuais voltadas apenas para a obtenção do prazer deveriam ser condenadas, pois revelariam uma ausência de controle do homem ou da mulher sobre si mesmos ou sobre seu “instinto selvagem”, o que caracterizaria povos primitivos e subespécies humanas em processo de degeneração, a exemplo das prostitutas, dos onanistas ou das lésbicas. O modelo de definição do normal e do patológico, ou seja, do indivíduo a ser trabalhado pela norma, antes mesmo de ser atingido pela lei, parte, portanto, da Medicina e da Psiquiatria. Mas vale lembrar que a definição médico-psiquiátrica da anormalidade constitui-se paralelamente a um conjunto de instituições de controle e de mecanismos de vigilância (PORTOCARRERO, 2000, p. 218-232). A partilha que o saber psiquiátrico instaura entre normais e anormais, entre o final do século XVIII e o início do XIX, é fundamental para a emergência da noção de norma (FONSECA, 2002, p.243). É importante apontar, mesmo que brevemente, para as enormes diferenças que marcam as concepções, as práticas e o próprio lugar ocupado pelo sexo nas sociedades antigas. A problematização da sexualidade antiga ocorre no quadro geral das técnicas de elaboração de si. Esta subjetivação da experiência sexual define o nível ético da análise. Pode-ser, assim, distinguir quatro ângulos de estudo: • a substância ética que remete à parte do indivíduo que solicita a experiência ética; • o modo de assujeitamento que caracteriza o estilo de obrigação a partir do qual o indivíduo ético se submete a uma regra de comportamento; • o trabalho ético que constitui o nível das técnicas acionadas pela constituição do sujeito moral; e, • por fim, a teleologia do sujeito moral que determina o ideal no horizonte das condutas éticas. É nestas quatro modalidades de experiência que se precipitará a historicidade de uma ética dos prazeres. Aí adquire sentido a oposição entre uma experiência grega dos aphrodisia (as coisas do amor) e uma experiência cristã da carne. A experiência grega coloca os aphrodisia como uma substância ética, referente ao ethos. Remetem aos atos de amor interrogados e passam, portanto, ao largo de amores homossexuais e heterossexuais, termos modernos inexistentes na Antigüidade. Referem-se à medida e ao descontrole. Esses atos amorosos estão inscritos em uma natureza primeira, physis – sem qualquer relação com a natureza inventada nos tempos modernos –, que liga os aphrodisia aos prazeres intensos. A natureza, também

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Antigos e modernos: cidadania e poder médico em questão

sagrada, colocou na base desses atos uma força, ou energia (energeia) que sempre pode descambar para o excesso. Com esta noção de aphrodisia, estamos muito longe do tema do desejo cristão como marca indelével da finitude e da culpabilidade, como potência surda e multiforme (GROS, 2005, p.100). Nesse contexto, como já observamos, Foucault afirma que a alimentação era mais importante na vida de um grego do que sua vida sexual e, aliás, a questão que o preocupava não remetia aos atos que praticava nem aos seus objetos de desejo, homem ou mulher, mas destinava-se ao domínio do controle sobre si e do bom uso dos prazeres na construção do cidadão, como figura da temperança e capaz da vida bela (FOUCAULT, 1984). Segundo ele: o que na ordem da conduta sexual parece, assim, constituir para os gregos objeto da reflexão moral não é portanto, exatamente o próprio ato (...), nem mesmo o prazer (...); é sobretudo a dinâmica que une os três de maneira circular (o desejo que leva ao ato, o ato que é ligado ao prazer, e o prazer que suscita o desejo. A questão ética colocada não é: quais desejos? quais atos? quais prazeres? Mas: com que força se é levado “pelos prazeres e pelos desejos?” (FOUCAULT, 1984b, p.42)

Poder médico e medicalização da sociedade no Brasil No contexto interpretativo que estamos construindo, valeria examinar, mesmo que brevemente, a maneira pela qual se efetiva historicamente esse movimento molecular, mas intenso, de captura do corpo e da vida pela ciência médica, no Brasil, desde a passagem do século XIX para o XX. Destacam-se especialmente as experiências de São Paulo e do Rio de Janeiro, onde se aceleram os processos de formação do mercado de trabalho livre, de modernização, urbanização e expansão industrial, e onde se podem registrar profundas transformações nas formas da vida cultural, política e social, para além da econômica (PORTA, 2004, v.3). Ser moderno passa a ser um valor para todos os que discutem a questão da construção da nova ordem social, do Estado de direito e da cidadania (SEVCENKO,1992). Novas relações de trabalho são defendidas e implementadas pelos empresários, em suas fábricas, a partir dos modelos europeus e norte-americanos, como o taylorismo e o fordismo, que rompem com a lógica tradicional do trabalho vigente nas fazendas ou nas pequenas oficinas, onde praticamente inexistiam as leis trabalhistas; a vida urbana ganha uma dimensão antes desconhecida e novos padrões de sociabilidade e de subjetividade são adotados, como atestam inúmeros estudos históricos.

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Centrando-nos na questão da ascensão do poder médico e da sua crescente busca de gestão da vida cotidiana da população, nesse processo de racionalização social, são sugestivos alguns dados que remetem às discussões e às práticas das elites cultas em relação à formação desejada do povo brasileiro. Em 25 de janeiro de 1918, alguns meses depois das intensas greves que agitaram a cidade de São Paulo, é fundada a Sociedade Eugênica de São Paulo, que tem como objetivos principais “o controle eugênico da espécie humana” e o aperfeiçoamento da raça (STEPAN,1991). Considerandose responsáveis pela orientação do Estado na condução da população e como substitutos da Igreja, graças à sua autoridade científica sobre os corpos e as doenças, os médicos ganham rápida aceitação nas instituições públicas, nas agências estatais e, de maneira geral, na vida política e social do país. Afinal, vindos das poderosas elites locais, compostas por ricos proprietários de terra e por poderosos homens de negócios, freqüentemente educados na Europa e nos Estados Unidos, os médicos já participavam, de maneira direta ou indireta, das elites políticas que governavam o país. O Dr. Luiz Pereira Barreto, por exemplo, primeiro presidente da Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo (SMCSP), fundada em 1895, formou-se em Medicina na Universidade de Bruxelas, em 1864, onde conheceu o positivismo, que procurou divulgar no Brasil (RIBEIRO, 1993, p.150). Foi um distinto membro do Partido Republicano e representante na Constituinte Estadual de 1891, em que ocupou o cargo de presidente. O segundo presidente da Sociedade, Dr. Carlos Botelho, formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, era filho do Conde de Pinhal, proprietário de extensas plantações de café e das estradas de ferro que ligavam as cidades de Rio Claro e São Carlos. Foi um dos fundadores da Policlínica — posto médico sustentado pela SMCSP, visando prover assistência aos pobres da capital – e, durante o mandato de Jorge Tibiriçá como Presidente da República (19041907), foi Secretário da Agricultura. O terceiro presidente da SMCSP, Dr. Augusto César de Miranda Azevedo, era membro fundador do Partido Republicano Paulista e deputado da Assembléia Constituinte de 1891. Outros presidentes, como o Dr. Arnaldo Vieira de Carvalho, o Dr. Diogo de Faria e o Dr. Rubião Meira, também pertenciam à elite paulista. Portanto, os interesses comuns das elites médicas e políticas de São Paulo contribuíram para aumentar o poder do Estado sobre a vida pública e privada da população. Muitos doutores tinham gradualmente começado a ocupar postos públicos e políticos, aumentando cada vez mais o poder de sua categoria profissional; ao mesmo tempo, substituíam o poder dos padres na condução da vida privada e na orientação do espírito, aconselhando tanto as famílias ricas quanto as pobres.

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Arqueologia da repressão e da resistência na América Latina na era das ditaduras

A crescente intervenção social dos médicos evidencia-se na maneira como participam, cada vez mais intensamente, da definição dos modernos códigos da conduta moral e sexual para mulheres e homens, jovens e adultos, crianças e idosos, ricos e pobres, numa escala nacional e internacional. Nesse sentido, procuraram abolir as velhas tradições e concepções que informavam os antigos padrões de comportamento da população, classificando-os como ignorantes, primitivos e irracionais. O Dr. Moncorvo Filho, por exemplo, que estava a cargo do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, foi responsável pela criação do Instituto de Proteção à Infância do Rio de Janeiro, em 1901, e, em seguida, pelas muitas filiais estabelecidas em todo o país: em Minas Gerais (1904), Pernambuco (1906), Maranhão (1911), Paraná e Rio Grande do Sul. Em 1922, o Instituto promoveu o Primeiro Congresso Brasileiro de Proteção à Infância, apoiado, entre outros, pelo discípulo do Dr. Moncorvo em São Paulo, o Dr. Clemente Ferreira. As equipes médicas comandadas por ele engajaram-se, por todo o país, em trabalhos de consulta e aconselhamento das mães pobres nos bairros periféricos das cidades, assim como em seminários de difusão e até na produção de filmes exibidos em Buenos Aires. Este exemplo evidencia o quanto a categoria médica se articulava por todo o país, implementando seu projeto político de intervenção social que, se não totalmente realizado, obteve, pelo menos, resultados bastante evidentes. No Rio de Janeiro, muitos estudos sugerem que, desde os anos 1830, com a criação da Academia Imperial de Medicina e da Faculdade de Medicina, os doutores tinham começado a se organizar corporativamente e iniciaram uma produção científica voltada para diagnosticar os problemas que afligiam a cidade, vista fundamentalmente como espaço da doença (MACHADO, 1979). Instituindo-se como as autoridades mais competentes para sanear o espaço urbano e cuidar de seus habitantes, construíram paulatinamente um extenso projeto de higienização social e, para sua implementação, contaram com o apoio do Estado, em sua luta para restringir os enormes poderes dos grandes proprietários de terra, fortemente enraizados no mundo privado. No contexto de desodorização da cidade, de combate a doenças e controle epidêmico, de eliminação dos pântanos, de organização da distribuição da água e dos sistemas de canalização e do controle da mortalidade infantil, sexualidades legítimas e ilegítimas, como prostituição, homossexualidade, masturbação e outras “perversões sexuais” foram consideradas temas de domínio exclusivamente médico (RAGO,1991). Assim como lá e em outros estados, em São Paulo, os médicos e os policiais já tinham começado a perceber as “sexualidades perigosas” como uma grande ameaça, desde o final do século XIX, com a chegada dos enormes

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contingentes de imigrantes europeus, no porto de Santos. Dentre estes, desembarcavam figuras de todos os tipos, estigmatizadas como “indesejáveis”, como notificavam os inspetores de polícia: anarquistas italianos, portugueses e espanhóis; prostitutas e cafetinas francesas, russas e portuguesas; cáftens eslavos acompanhados de polacas voluntárias ou forçadas, as chamadas “escravas brancas”, destinadas a suprir o próspero mercado da prostituição nos trópicos (HUTTER,1972). Os esforços para prevenir o desembarque dessas figuras consideradas ameaçadoras levaram muitas autoridades a propor soluções radicais, apoiadas pelos jornais que promoviam campanhas morais contra a corrupção. Segundo o jornal O Tempo, de 13 de fevereiro de 1903, “Tendo a polícia de Santos resolvido dar caça aos proxenetas que a enchiam, estes estão fugindo para esta capital onde continuarão com a sua desmoralizadora e ignóbil indústria, digna de uma enérgica repressão da polícia”. Assim, começando em 1907, a penalização dos cáftens estrangeiros passou a incluir, no Código Penal de 1890, a deportação, procedimento que, no entanto, já vinha sendo posto em prática. Daí em diante, várias medidas de controle sanitário começaram a serem implementadas pelas autoridades públicas. Com o tempo, as medidas foram centralizadas no Serviço Sanitário de São Paulo, criado em 1894. No ano seguinte, alguns médicos fundaram a Sociedade de Medicina e Cirurgia, destinada a atuar como conselheira dos poderes públicos na formulação de políticas de controle sanitário. Em 1913, a Faculdade de Medicina de São Paulo era fundada como um lugar onde os médicos encontrariam um espaço institucional mais amplo para discutir suas estratégias de intervenção urbana e para exercer seus poderes nas esferas pública e privada, de modo mais organizado. Em 1918, criava-se a já mencionada Sociedade Eugênica com o intuito de melhorar e purificar a raça. A própria seleção dos que poderiam então ser identificados como normais e compor a nova força de trabalho do mundo moderno passava pela definição do tipo físico, da seleção corporal e de avaliações morais que seguramente implicaram toda uma domesticação dos hábitos e reeducação dos sentidos. Formar o povo brasileiro, tema constante nas reflexões das elites entre as décadas de 10, 20, 30 do século XX, significava criar novos indivíduos a partir dos padrões modernos, ou burgueses, de existência. Aliás, não fora outro o motivo da própria imigração européia - e não asiática ou africana -, destinada a substituir o trabalho negro, considerado inferior e incapaz e constituir uma nova “raça” mais civilizada no Brasil. Portanto, higienizar os pobres e eugenizar a população, de modo geral, ganha todo um sentido de dominação biopolítica, que o debate sobre a questão da cidadania e da noção dos direitos poderia ofuscar. Afinal, aquele que passa a ser

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considerado “cidadão da Pátria”, que poderá ser incluído na nova ordem republicana deveria preencher uma série de características físicas, biológicas, morais e culturais, que reduzirão bastante o seu número. E, como um louco, um criminoso, um negro pobre, uma prostituta, um mendigo ou um vagabundo, entre outros tipos da Antropologia criminal poderiam ser considerados cidadãos dignos de respeito e direitos?

Concluindo Pode-se dizer que esse leque de questões, aqui apenas enunciado, continua a ser bastante discutido e ampliado em nossos dias, em perspectivas críticas que contestam a necessidade desses saberes científicos, expõem seus fundamentos morais e subjetivos e evidenciam as relações de poder que os atravessam. A perda da ingenuidade em relação ao progresso, ao crescimento tecnológico e ao avanço científico produziu questionamentos bastante contundentes que atingiram e desestabilizaram os regimes de verdade construídos, ao longo do século XX, pela ciência – especialmente a Medicina e a Psiquiatria. As próprias noções de doença mental e de comportamentos criminosos pervertidos foram introduzidas para justificar a autoridade sobre loucos e criminosos, e não resultaram de critérios puramente científicos ou dos resultados curativos (GUTTING, 2005, p.74). Normas pressupõem o comportamento anormal, de modo que o julgamento de anormalidade ronda a todos, a todo momento. Nesse sentido, também a denúncia da violência simbólica das concepções médicas, psiquiátricas e criminológicas, especialmente na definição e instituição normativa das identidades sociais e sexuais foi bastante acirrada e, sem dúvida alguma, apresenta uma importante dimensão libertadora. Para isso, será necessária uma crítica de nossa cultura, com a discussão dos valores dominantes e dos códigos normativos. As relações de poder suscitam, por si mesmas, resistência, luta constante, uma política revolucionária sempre local e específica. Essa luta, afinal, dá visibilidade às pesadas implicações das noções excludentes e autoritárias de cidadania e direitos, que proliferam em nosso imaginário e que resultam na legitimação do lugar dos dominantes, valorizando sua suposta necessidade de dominar os anormais e de domesticar a loucura para garantir a ordem social. De que ordem, aliás, estamos falando?

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2. HISTÓRIA: CONSTRUÇÃO E LIMITES DA MEMÓRIA SOCIAL TÂNIA NAVARRO SWAIN

A RELEITURA das fontes utilizadas nas narrativas históricas bem como a crítica à historiografia são imprescindíveis para que surjam as múltiplas realidades, os agenciamentos sociais plurais, que ficaram ocultos no fazer histórico tradicional. O que a história não diz não existiu, pois o sistema de interpretações que decide sobre aquilo que é relevante para a análise histórica fica oculto nas dobras das narrativas. A questão da autoria, seja na literatura/ arte, seja na ciência, está imbricada às suas condições de imaginação e produção, ou seja, o autor exprime, na escolha e nos recortes de sua temática, as representações sociais, os valores, o regime de verdade no qual se constitui sua experiência e sua subjetividade, como bem assinala Foucault (1971). Em termos teóricos, neste caso, leva-se em conta a incontornável mediação discursiva das fontes e de suas condições de possibilidade, que nos trazem apenas indícios da materialidade do passado: neste sentido, o fazer dos historiadores, em sociedades patriarcais, exclui da memória social a diversidade possível das relações sociais, em que sexo e sexualidade não seriam determinantes nem de identidade, nem de exclusões. Elimina também a possibilidade de sociedades não-binárias, não fixadas em uma dicotomia incontornável de gênero, ou ainda de sociedades em que o feminino tenha tido uma importância inaceitável aos produtores de história. De fato, a produção histórica tem criado naturalizações, generalidades, que fazem das relações humanas uma eterna repetição do Mesmo: mesma divisão binária baseada no biológico, no genital, cujo referente é o masculino; mesma concentração de poderes e instituição de hierarquias entre os sexos; mesma compulsão à heteronormatividade, baseada na reprodução, ordem divina. Nas narrativas históricas, confundem-se valores e fatos, representações e verdades incontornáveis.

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Na realidade, os eixos de importância dos discursos históricos têm variado, de acordo com sua própria historicidade, ou seja, com as condições de imaginação que os orientam. Político, econômico, demográfico, o humano, em suas manifestações mais diversas, tem sido conjugado no masculino; defrontando-se com uma pletora de indícios de sociedades em que o referente social não era o masculino, os historiadores as têm relegado ao ilusório ou ao domínio da desordem, do caos anterior à civilização. É assim que foram abolidas da memória social a presença e atuação das mulheres em todas as esferas da produção humana. Os pressupostos, neste caso, de uma divisão do humano em que a ação e criatividade seriam apanágio do masculino levam a uma interpretação desvirtuada dos indícios do passado: quem disse, por exemplo, que os desenhos pré-históricos foram feitos por homens? Esta questão não se coloca na partilha entre cultura (criadora) e natureza (reprodutora), domínios respectivos do masculino e do feminino naturalizados, e as narrativas reforçam esta ótica, atribuindo invenções, arte, literatura ao “homem”, genérico masculino que, ao incorporar, apaga definitivamente o feminino. Como se pode afirmar que a descoberta do fogo, a criação da roda, a invenção de instrumentos, a construção de casas e monumentos, de cidades e estradas ao longo da história foram realizadas por homens, a não ser por um pressuposto, pré-conceito, de que as mulheres são incapazes de tais feitos? Aliás, a presença atual das mulheres em todos os setores dos quais não são excluídas mostra bem que é por imposição/discriminação que não atuam em certos espaços. Mas, em termos históricos, é um contra-senso afirmar a ausência pura e simples das mulheres das dimensões religiosas, sociais, políticas, da arte, da criação em todos os seus domínios, uma vez que se tenha em mente a historicidade absoluta das relações sociais. Nada escapa à construção e interpretação do real e, se a história não fala das mulheres, é por pura e simples exclusão androcêntrica, apoiada em valores que se confundem com fatos. É assim que historiadoras feministas trabalham indícios ignoradas pela tradição histórica e criam uma nova memória social, na qual o humano não é dividido necessariamente em feminino/masculino em termos de atuação social e sobretudo, na qual as mulheres estão presentes em todas as esferas do social. Que arrogância é esta que fixa para a história da humanidade os parâmetros de sua organização, fundada apenas em regimes de verdade cujos eixos são valores arbitrários, crenças e pré-conceitos? Jeannine Davis Kimball, arqueóloga e historiadora, abre os horizontes de uma história possível, remetida pela tradição ao domínio do fantástico. Assim explicita:

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Mulheres guerreiras, conhecidas pelos autores gregos como Amazonas, foram interpretadas como criaturas míticas. Porém, 50 antigos túmulos próximos de Pokrovka, Rússia, perto da fronteira do Kazakstan, com esqueletos de mulheres enterradas com armas, sugerem que os contos dos gregos tinham alguma base factual. [...] Em geral, mulheres eram enterradas com uma ampla e grande quantidade de artefatos, maior que dos homens, e 7 dentre elas continham espadas de ferro e adagas, cabeças de flecha em bronze e pedras para afiar as armas. Alguns estudiosos argumentaram que as armas encontradas nos túmulos de mulheres serviam para um simples propósito ritual, mas os ossos contam uma história diferente. As pernas arcadas de uma menina de 13, 14 anos atestam uma vida a cavalo e, em outra mulher, uma ponta de flecha entortada em sua cavidade torácica sugere que foi morta em batalha (KIMBALL, 1997).

O papel ritualístico das armas, aventado por alguns historiadores, como comenta a autora, nos dá a medida das representações sociais que ordenam o discurso histórico. Impossível existência de mulheres guerreiras, isto desconstrói a ordem patriarcal, fundada na força e na violência, em oposição à passividade e fragilidade das mulheres. Logo, armas nos túmulos não podem ser delas, e isto é afirmado sem pejo e sem constrangimento. A naturalização dos papéis e a universalização das relações de dominação do masculino sobre o feminino criam, no imaginário social, a representação de uma eterna e imutável partilha hierarquizada de trabalho e de poder e os historiadores não problematizam estas questões, arrastando suas próprias condições de imaginação para todas as épocas do passado. O silêncio é político e não falar destas descobertas ou apagar as construções sociais não patriarcais é uma estratégia de poder. As sociedades Maoris, nas ilhas do oceano pacífico prezavam e respeitavam o feminino em todas as suas instâncias; a chegada dos europeus, porém, impondo suas representações sexuais e sexuadas, pela força e pela religião, modificou as relações existentes, que passaram a ser apresentadas como que fazendo parte da grande confraria patriarcal. O mesmo aconteceu na época da descoberta do Brasil, como veremos adiante. O patriarcado, este sistema de dominação que cria e confere aos homens poderes sobre as mulheres, é também dotado de uma historicidade incontornável e considerá-lo permanente ao longo do tempo é aderir a um sistema interpretativo de crenças e valores, cuja força reside em sua própria repetição. Sem mencionar a pobreza intelectual de uma tal perspectiva. Uma

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vez traduzidas em dogmas científicos ou religiosos, as relações sociais sexuadas deixam de ser problema ou questão, passando ao domínio incontestável do “natural”. A sabedoria de Foucault convocava à “destruição das evidências” (1971) e a criação dos corpos sexuados em hierarquia esconde-se sob os discursos de verdade sobre a “natureza” humana. De toda forma, seja nas descrições da vida quotidiana, seja no panteão religioso e/ ou no exercício do poder, as narrativas históricas primam pela representação de um masculino todo-poderoso e de um feminino relegado à fertilidade/ reprodução. É assim que Kramer (1983), um dos “especialistas” sobre a Mesopotâmia, descreve a hierarquia divina, encabeçada pelo masculino: os deuses do céu, da terra, da atmosfera e da água, os quatro elementos criadores. Explicita que os deuses: Para assegurar sua própria subsistência, criaram o Homem, os animais e as plantas.[...] Mas o que o Homem e os animais, mortais e transitórios necessitavam [...] era o Desejo e o Amor, que levaria à União sexual e poderia assim assegurar a fecundação das “matrizes”. Estas emoções ardentes e ternas ao mesmo tempo [...] foram confiadas à sedutora, sensual e voluptuosa Innana (KRAMER,1983,p.65).

Note-se que tanto os homens como os animais foram criados à imagem e semelhança os deuses: machos, fecundadores das “matrizes”, fêmeas à espera de sua “substância” criadora e, portanto, simples receptáculos, tal como Maria, no panteão cristão, é apenas vaso para a semente divina. E para Inana, nada resta a não ser uma existência unicamente em função da sedução e reprodução, símbolo sexual. As representações do feminino aqui são apenas cópia e reprodução de uma imagem estereotipada, recriada periodicamente pelas pedagogias e tecnologias de gênero (DE LAURETIS, 1987), fazendo da Antiguidade palco de atuações “naturais” do humano, sempre binário, repetindo sempre a supremacia do macho. Entretanto, outros autores, como E. O. James (1989) e James Melaart (1971), apesar de suas interpretações que seguem a idéia do feminino atrelada à maternidade - Deusa Mãe -, traçam indícios de outros aspectos de Inana e da existência de cultos dedicados a deusas criadoras de todas as coisas, tais como Neith, no Egito. E. O. James assim descreve Neith: [...] sob a XXVI dinastia, quando os faraós de Sais estavam no apogeu de seu poder, Neith elevou-se a um nível soberano, que foi

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abandonado depois da queda da dinastia (663-525 a C.) Até este momento ela era o Ser divino por excelência, o poder soberano que governava o céu, a terra e o lugar dos mortos, assim como todas as criaturas e todas as coisas inanimadas que aí se encontravam. Era eterna e havia se criado por ela mesma, personificando, desde os tempos mais recuados, o princípio feminino, criador de sua própria existência, que se basta a si mesmo e cuja ação se reconhece em toda parte (1989, p.65).

Da mesma forma, Inana, deusa sumeriana, que, como vimos, foi relegada ao papel de instigadora dos desejos masculinos, era representada de outra maneira, mas, no discurso, é enraizada na maternidade. Mesmo armadas, as Grandes Deusas criadoras do universo não conseguiam perder o cunho de um feminino reprodutivo. Se, por um lado, Iconograficamente, Inana /Ishtar era usualmente representada como uma deusa guerreira, frequentemente alada e pesadamente armada.. Era também com freqüência representada em uma constelação de estrelas. O animal a ela ligado era o leão e seu símbolo uma estrela ou um disco-estrela (2005),

por outro, como vimos, é domesticada pela ordem do discurso que a define pela sexualidade e reprodução. Diz James, a respeito da deusa iraniana Anahita: Como a maior parte das deusas da fertilidade, ela era representada como uma deusa guerreira e se locomovia em um carro puxado por 4 cavalos brancos, que continha o vento, a chuva, as nuvens e o gelo. Era, na realidade, a contrapartida iraniana da deusa síria Anat, da deusa Inana/Isthar da Babilônia, da deusa hitita de Comana e da deusa grega Afrodite (1988, p.105).

Para este autor, não havia incompatibilidade entre fertilidade e guerra, podendo-se associar representações excludentes sobre o feminino. Mas como explicar estes atributos de força e poder, senão ancorando-os na ordem do natural, reprodutor? Merlin Stone comenta a respeito: O estudo das primeiras religiões femininas permanece muito incompleto e às vezes quase esquecido. Entretanto, revela com

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freqüência comportamentos e mentalidades que são a antítese destas pretensas tendências “naturais” […]a censura acidental ou intencional no ensino geral e na literatura popular vai até o ponto de negar a realidade de sua importância ou mesmo de sua simples existência (1979, p.342).

Além disto, afirma que: Desde o início do período histórico e mesmo na época neolítica, parece que em numerosas cidades e estabelecimentos, a monarquia já era de “direito divino”. […] Entretanto, nesta época, o direito era concedido, segundo toda verossimilhança, não por um deus, mas pela Deusa. Se nos atemos aos documentos mitológicos e arqueológicos, este direito seria concedido, em sua origem, não a um homem, mas a uma mulher, a grande sacerdotisa da Deusa. Esta grande sacerdotisa, rainha ou legisladora, recebia seu cargo das mulheres de sua linhagem. […] Este foi certamente o caso de Khyrim, em que, segundo Frazer, a grande sacerdotisa seria automaticamente chefe de Estado (1979, p. 201).

Se tomamos a mitologia como produto por excelência do imaginário social (CASTORIADIS, 1995), grande cadinho forjador de realidades, as narrativas mitológicas sobre as deusas-criadoras, associadas a todas as criações humanas, desde a agricultura até a legislação apontam para a diversidade nas relações humanas e relações sociais e para a existência de um feminino, cujos atributos iam muito além da reprodução. Os mistérios de Isis, de Demeter Thesmophoros, de Cybele, os cultos minoanos eram celebrados especialmente, senão exclusivamente por mulheres, mas o estudo destas “nuances” fica relegado a domínios do ultraespecializado. Os curricula das universidades, para não falar dos níveis secundário e primário, restringem o estudo da Antiguidade aos gregos e sobretudo aos atenienses, cuja “democracia” se fundava na exclusão das mulheres da cena política. Aliás, neste contexto, como se pode nomear prostitutas as hetairas, sem antes definir prostituição? Não seriam apenas mulheres livres do gineceu, que viviam fora dos padrões determinados para as mulheres casadas? Da mesma forma, como se pode chamar de prostitutas as sacerdotisas sumerianas que realizavam o hierogamos (STONE, 1979, p.232-238), o enlace sagrado, ritual de celebração da vida? (JAMES, 1988) De fato, a não problematização, a falta de questionamento do que é considerado “natural” leva a aberrações deste tipo, pois não foi codificado

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que as mulheres fora do padrão mãe/esposa seriam consideradas prostitutas, não importa sua condição ou atividade? O que gostaria de deixar claro é que os pressupostos interpretativos continuam a nortear a história e mesmo a história das mulheres, na medida em que repetem incansavelmente a existência binária de gêneros fundados em corpos sexuados. Judith Butler (1990) devia sofrer da mesma impaciência que a minha, quando afirma que são os gêneros que constroem o sexo, pois “não há gêneros fora de práticas de gênero”. Numa perspectiva evolucionista e binária, que vê nas religiões antigas os indícios de um “matriarcado primitivo”, domínio do caos anterior à civilização, à ordem, as condições de possibilidade da Alta Antiguidade, constitutivas da própria materialidade das relações sociossexuais são descartadas para a obscura região de um mito considerado ilusório, do improvável. Tudo se resume a “deusas-mãe”, deusas de fertilidade, quando se trata de cultos e celebrações tão importantes quanto os mistérios de Ísis ou Eleusis, os Haloa (PATERA; ZOGRAFOU, 2001), os jogos de Eleusinia, e os Thesmophoros, em honra de Demeter (JAMES 1988; FOUCART, 1914). Assim, em alguns parágrafos se resolvem séculos de celebrações à renovação dos ciclos agrários, sob a égide de um feminino ciclicamente criador, reduzindo-o à “fertilidade” reprodutiva, domesticando, de fato, uma representação extremamente ameaçadora para a Ordem do Pai; as narrativas passam assim rapidamente para Zeus e seus asseclas, numa hierarquia de subordinação geral ao masculino. O “matriarcado primitivo”, numa ótica evolucionista, seria o inverso do patriarcado, ou seja, as mulheres dominando homens, domínio do caos e da desordem, período pré-civilizado. Esta perspectiva limita todos os horizontes possíveis, pois, se não é patriarcado, é apenas sua inversão, justificando, de certa forma, este sistema pela “evolução” histórica. A civilização viria, obviamente, com a organização de Estados, patriarcais, que estabeleceria a “verdadeira” religião, a do deus-pai, abominando estes cultos pagãos de fêmeas.Vê-se claramente o quanto as narrativas históricas são permeadas e construídas pelas condições de imaginação de seus autores. Por que não seriam os governos feitos pelas/os anciãs/anciãos e não por divisão de sexo? Que sentidos compunham a idéia de feminino em épocas precisas? O pressuposto é a preeminência do masculino (também sem significações específicas ao tempo/ espaço) em todas as esferas do social, ou seja, a importância dada a este sexo genital e simbólico, construto histórico que se tornou “natural”, universal, inquestionável e por que não? - divino, pois não foi criado “à imagem e semelhança” de Deus?

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De toda forma, as narrativas históricas privilegiam os papéis exercidos pelos homens, em detrimento daqueles desempenhados pelas mulheres. O erudito Paul Foucart dedica dois capítulos aos hierofantes e apenas três páginas às sacerdotisas e às celebrações dos Thesmosphorios. Deixa, entretanto, algumas pistas a serem desenvolvidas no horizonte de uma história possível: Da Argólida, o culto de Demeter Thesmophoros espalhou-se por todas as partes do mundo helênico [...] Lá, como em toda parte alhures, parece ter tido o mesmo caráter: era reservado às mulheres iniciadas, com exclusão dos homens; [...] pela metade do segundo milênio, colonos ou fugitivos vindos do Egito se estabeleceram na Argólida [...] desenvolveram a civilização e espalharam o culto de Ísis, sua divindade nacional. Sob o nome de Hera ou Demeter, os Pelasgos adoram nela a deusa da agricultura [..] Com o apoio destas tradições, os antigos tomavam a cronologia das sacerdotisas de Hera, os monumentos e templos que perpetuavam a lembrança destes acontecimentos (FOUCART, 1914, p.39).

Foucart afirma ainda que “A introdução da agricultura e a do culto de Demeter são dois fatos inseparáveis, tendo uma realidade histórica da qual a tradição conserva a lembrança, envolvendo-a na fábula das caminhadas errantes da deusa em busca de sua filha” (1914, p.40). Atribuindo-se o uso dos cereais a uma deusa, que representação do feminino haveria nesta época? O que significava “ser mulher” nestes espaços e temporalidades diversas, onde os sentidos atribuídos ao feminino compunham igualmente a divindade? Nas listas das dinastias e realezas, quantos nomes de mulheres não foram apagados ou traduzidos no masculino? Por que a simbologia e a religião encabeçadas por deusas criadoras perderam sua pregnância no social? O fato é que os aspectos simbólicos dos cultos às deusas são extremamente perigosos para a ordem androcêntrica, que funciona com a violência/ opressão, mas também com o convencimento, com o assujeitamento das mulheres à sua condição biológica inferiorizada. A história da Alta Antiguidade vem despertando uma renovação de interesse, principalmente entre as acadêmicas feministas. Um sopro de ar, que pode varrer os silêncios e as exclusões na história e criar uma nova memória social. De toda forma, o que importa são os questionamentos e as destruições das evidências, em direção a um horizonte possível do humano.

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Bem perto de nós, no Brasil Em uma ótica feminista, a leitura das fontes pretende destacar a construção do feminino no olhar dos cronistas ou viajantes, ou literatos, no caso da história do Brasil colonial, segundo suas próprias representações e imagens da divisão social e natural dos sexos. Marcas, geradas às vezes pelo espanto, são registradas e nos deixam entrever nas sociedades indígenas relacionamentos sociais múltiplos, que não se orientam pelo sexo biológico nem pelo exercício da sexualidade. Nesta perspectiva, a história tem sido feita de retalhos, aos quais se atribui uma importância generalizante: é assim que histórias recortam o humano em “política”, “social”, “demográfica”, “cultural”, “ econômica”, cada qual reivindicando para si a totalidade do humano. Diz-se “no século XVI ou XVII”, como se houvesse uma entidade homogênea encobrindo esta abstração que é um século; diz-se “período colonial” ou “império”, como se apenas uma mudança na forma de governo fosse espelho de uma pretensa transformação da realidade total, de uma materialidade explícita e evidente. As narrativas históricas, de fato, imprimem um sentido e uma coerência ao caótico movimento do real, afastando, no mesmo movimento, a construção que a ordena. Não estou falando apenas dos positivismos, mas da história que se faz sobre o já-dito, sobre a autoridade de uma historiografia que erige em verdade seus enredos imaginados. A ficção histórica, assim, reconstrói mundos e relações em que os papéis são imutáveis e os gêneros, definidos pela biologia. Isto não significa, como querem alguns, redução da realidade ao discurso, mas apenas a constatação de que os indícios - impressos ou imagéticos - do real são incontornavelmente textuais, apesar de suas linguagens específicas. Estes indícios são também interpretações e esta decodificação, que constrói uma realidade a ser narrada, se faz a partir de um lugar de sujeito, de uma perspectiva de gênero. A política de localização, já consagrada no fazer da ciência, que inclui a subjetividade na própria construção do objeto, não contempla, porém, as posições generizadas, que instituem o real em sua percepção e narração, a partir de um lugar instituído no social, enquanto feminino ou masculino. Não porque este lugar seja “natural”, ou expresse uma natureza qualquer ligada ao biológico, mas porque, mulheres e homens, somos construídos em representações e modelos no social e assim adquirimos formas de percepção e de ação específicas, que instituem nossa materialidade em corpos femininos ou masculinos. O que conduziria a esta divisão sexuada do humano seria a “diferença”, que, entretanto, é, ela mesma, uma categoria, um construto social e político;

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baseia-se na importância que se dá ao biológico e seu corolário de características “naturais”, quer se trate de gênero quer de raça. Esta constatação, porém, não apaga os contornos e limites desta pretensa diferença, pois percebê-la não significa eliminá-la. Neste sentido, a “diferença” aparece como base justificativa para a divisão sexual de papéis e tarefas. Entretanto, aquilo que é mostrado como causa – a diferença biológica – é, de fato, conseqüência do agenciamento social e político, da importância que se dá ao genital para a definição do humano, da procriação como determinante da sexualidade das mulheres, da apropriação e troca dos corpos femininos, em nome desta especificidade e desta diferença. De fato, o estabelecimento da “diferença” é a criação e afirmação de um referente, que estabelece seu oposto e como tal o considera. No caso de uma sociedade patriarcal a “diferença” é instituída a partir do masculino universal, daquele que define o humano em geral e, a seguir, suas especificidades, seus “diferentes”. Não é, portanto, a diferença, biológica ou outra, que ancora a desigualdade, mas a imposição política de um referente que se erige em parâmetro e norma. No âmbito da sexualidade, é o desejo dos homens, a presença dos homens e a sexualidade masculina que aparecem como reguladores da ordem, como definidores da moral, como parâmetros de inserção no contrato social/ sexual que se estabelece na colonização portuguesa. A desigualdade surge aqui com o estabelecimento da “diferença” e de uma exclusão. Assim, aquilo que é tomado como causa da exclusão do político-social – a diferença biológica – não é senão o fruto da instauração de uma desigualdade forjada no político. A prática de ensino jesuítica nas escolas para meninos, por exemplo, de fato cria uma nova divisão entre os sexos, uma nova moral, um novo eixo de saberes, destinados exclusivamente ao sexo masculino, interlocutor escolhido pelos portugueses em seu contato com os indígenas. No confronto de fontes e da produção historiográfica, pode-se observar o obscurecimento da presença e ação das mulheres no Brasil colônia, numa percepção que institui sentidos binários e hierárquicos às organizações sociais indígenas e coloniais, instaurando cânones morais e assim criando gêneros, nos moldes eurocêntricos. Lá onde havia liberdade, viu-se lascívia ou submissão; lá onde havia desejo, viu-se dominação. De fato, se as fontes contemporâneas ao descobrimento deixaram-nos indícios múltiplos, estes foram muitas vezes ignorados ou transformados de acordo com os pressupostos teóricos ou representacionais d@s historiadoras/es. Isto significa que a narrativa histórica se caracteriza pela imposição de sentidos, pois distribui e opera significações

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que aprisionam a multiplicidade do humano em redes de formas modelares e/ ou essenciais. O humano é tratado como sendo um todo unívoco e também inequívoco: a biologia define as competências e os saberes, os papéis e os poderes, a expressão e a definição da sexualidade, em termos de normalidade e exclusão. Dessa forma, o enquadramento das sociedades indígenas em um modelo binário e hierárquico da relação entre os sexos apaga os indícios da pluralidade no social. Ou seja, os eixos de coesão social nem sempre estão fixados no sexo, na sexualidade ou na dominação de uns pelos outros, mas essa diversidade é apagada na política discursiva do silenciamento, modo de significação constitutivo de uma realidade que se apresenta como verdadeira, e os costumes indígenas são soletrados no masculino É assim que os caciques são apresentados como os chefes das tribos, o que, de fato, contradiz os indícios deixados pelos cronistas. Os caciques, com os quais os portugueses começam a tratar e os quais passam a elevar em hierarquia eram, de acordo com os cronistas, apenas organizadores da guerra ritual e sua autoridade não era nem definitiva nem obrigatória. São numerosos os cronistas a indicar que os indígenas não tinham “nem fé, nem lei, nem rei” e a apontar para a autoridade espiritual como a mais forte e importante. “E as mulheres também eram pajés, como indicam os mesmos cronistas.” Hans Staden descreve cerimônias de predição do futuro a partir de sonhos e visões, feita apenas por mulheres, de excepcional importância na cultura indígena (STADEN, 1942, p.175). Os caciques não “davam” as suas mulheres – que não eram sua propriedade. Ao contrário, era o prestígio na guerra que atraía mulheres a um homem ou a uma mulher-em-homem (o biológico não definia necessariamente os papéis e as relações sociais, como veremos). De fato, ele não as possuía, elas o escolhiam, de forma temporária ou permanente. Staden comenta que algumas índias “tinham um marido em comum” (STADEN,1942, p.171), perspectiva interessante, pois aponta exatamente para a escolha de um guerreiro valente e não para a posse de mulheres como tributo de guerra. Quando as índias se relacionavam com os brancos, isto era feito por sua própria vontade, não eram trocadas ou doadas – os cronistas enfatizam a liberdade sexual das índias e esta, para eles, é motivo de estranhamento maior. Para Capistrano de Abreu, historiador do século XX, porém, esta liberdade é vista como a irresistível atração do inferior pelo superior, acoplada ao comércio “natural” de seus corpos: “Da parte das índias, a mestiçagem se explica pela ambição de terem filhos pertencentes à raça superior [...]. Além disso, pouca resistência deviam encontrar os milionários que possuíam

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preciosidades fabulosas, como anzóis, pentes, facas, tesouras” (ABREU, 1982, p.61). “Pouca resistência” supõe uma pressão indevida e nos faz pensar no aforismo contemporâneo, segundo o qual “quando uma mulher diz não, ela quer dizer sim”, justificador de todas as violências sexuais – e no caso, sobretudo, com a possibilidade de um pagamento qualquer. Seriam as índias “naturalmente” propensas à venda de seus corpos? Nada parece mais absurdo. Entretanto, frases como o referido aforisma reiteram a força de um imaginário social em que os corpos das mulheres são bens apropriáveis. Da mesma forma, Buarque de Holanda, após enumerar a destribalização, as doenças, a fome, o trabalho forçado de toda espécie, como sorvedouros de seres humanos, esquece de mencionar a violência sexual e afirma que “Não obstante, foi no intercâmbio assim estabelecido entre os nativos e os portugueses que surgiu uma população mestiça, capaz de dar maior plasticidade ao sistema social em formação e de contribuir para a preservação de elementos culturais herdados dos indígenas” (HOLANDA, 1976, p.85). O estupro, aliás, é o grande ausente dos tratados e compêndios, manuais de história do Brasil, ao louvar a mestiçagem, tanto no que diz respeito às escravas negras, quanto às índias. Tudo se passa como se as mulheres só estivessem à espera dos favores e da honra que lhes concediam seus senhores ou colonos ou bandeirantes, ao violentá-las. Tudo se passa também em uma espécie de euforia lasciva, em que a violência está ausente e a sexualidade é a celebração de uma enorme festa em prol da mestiçagem. Qual a escrava, porém, que não foi violentada várias vezes ao longo de sua vida? Sem falar das “negras de ganho”, prostituídas numa cafetinagem generalizada e normalizada. No que diz respeito às índias, a imagem da prostituta reaparece: Gilberto Freyre comenta que elas se ofereciam para os brancos e as mais ardentes se esfregavam nas pernas daqueles que “supunham ser deuses” (FREYRE, 1974, p.98). Os sentidos expressos assim nos apresentam uma história asseptizada, des-generizada, sem nenhuma violência de gênero, na qual as mulheres aparecem apenas em seus limites estereotipados de mães, prostitutas ou feiticeiras. Desta forma, um olhar crítico feminista percebe, no relato histórico, “evidências” generalizantes, que supõem uma “ natureza” biológica dos gêneros, uma definição de corpos sexuados e um exercício da sexualidade padronizados, nos moldes das representações sociais do enunciador. Exemplo disto é o primeiro volume da História Geral da Civilização Brasileira, um clássico da historiografia sobre o período colonial. A narrativa histórica aí é reduzida a um amplo masculino, o “homem” universal, cuja superioridade

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política ou criativa se torna indiscutível. A ausência de mulheres no início da colonização é reafirmada com insistência, apesar dos relatos que apontam para o contrário. No que se refere às fontes, uma leitura de alguns cronistas, como Thévet, Abeville, Hans Staden, Gabriel Soares de Souza, Cardim e sobretudo de Gandavo, ilustra a quantidade de indícios por eles apontados da multiplicidade do real, de um agenciamento social que desapareceu das escolas e do ensino, silenciado pela historiografia tradicional, ou por ela transformado. Gandavo e outros cronistas mostram uma sociedade indígena complexa, em tons que variam do espanto à repulsa ou ao deslumbramento, e buscam captar sua ordem a partir de seus próprios parâmetros. São eles, entretanto, pródigos em detalhes sobre a produção, a vida quotidiana, as festas, as artes, as predominâncias, as divisões de trabalho e as condições de sobrevivência. Gandavo explica a liberdade no relacionamento entre mulheres e homens e sobretudo comenta, com espanto, a possibilidade entre os indígenas de escolher seu sexo social, independente do biológico: algumas índias desta parte que juram e prometem castidade e assim não conhecem homem de nenhuma qualidade e nem não consentirão ainda que por isto as matem. Elas deixam todo o exercício das mulheres e imitam os homens e seguem seus ofícios como se não fossem mulheres e cortam seus cabelos da mesma maneira que os machos trazem e vão à guerra com seus arcos e flechas e à caça e assim andam sempre em companhia dos homens e cada uma tem uma mulher que as serve e que lhe faz de comer como se fossem casadas (GANDAVO, 1965, p.215).

Estas observações são indícios de grande importância na quebra do unívoco e do binário, baseado no biológico, na quebra também da noção de uma heterossexualidade obrigatória e “natural”. Por um lado, Gandavo relata seu espanto diante do que vê e, por outro, interpreta ao expor seus valores: na relação entre mulheres não há sexo, pois são “castas”, já que não têm “comércio com os homens”. Mas não pode deixar de acrescentar que são “casadas” e têm relações “como marido e mulher”, ou seja, expõe uma sexualidade que não lhe é estranha, mas para cuja descrição não têm palavras fora de suas condições de imaginação. Além disso, elas “imitam” os homens, o que ainda hoje se enuncia a respeito das lesbianas, “simulacros” do masculino.

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A diversidade do social aparece aqui como um dos indícios a ser tratado pelas/os historiadoras/es – silenciada, entretanto, a partir da implantação da diferença entre mulheres e homens, a partir da criação e narração da realidade indígena em esquemas binários de divisão sexual de autoridade, importância e poder. De fato, o que a história aqui criou foi uma outra sociedade indígena, reproduzindo, em suas narrativas, o biológico apropriado em uma natureza binária e essencializada, em que o universal era o masculino e o específico, o feminino, máquina reprodutora ou sexo a ser tomado, dominado, utilizado. Vemos aqui, entretanto, uma sociedade na qual o gênero não está ligado ao sexo biológico; ao contrário, ela confirma a hipótese de Judith Butler, de que não existe sexo fora de práticas de gênero. Dessa forma, é o gênero que define o sexo biológico e modela, assim, os corpos instituídos em mulheres e homens. Ainda segundo as observações de Gandavo, e no que diz respeito às atividades produtivas, as mulheres dirigiam a economia das sociedades por ele contempladas: plantavam, colhiam, tratavam a produção; além disso, eram pajés, curandeiras, artistas, hábeis ceramistas, cantoras, sabiam nadar, pescar, remar. Cardim observa que as mulheres “arremedam pássaros, cobras e outros animais, tudo trovado, por comparação, para se incitarem a pelejar. Estas trovas fazem de repente e as mulheres são insignes trovadoras” (CARDIM,1978, p.185); “as mulheres nadam e remam como os homens... e por serem grandes nadadoras não temem água nem onda nem mares” (1978, p.188). Livres de sua sexualidade, podiam casar e trocar de parceiros, liberar prisioneiros, se assim o desejassem, como afirma Cardim (1978, p.114). Entretanto, ressemantizados pela historiografia, os costumes indígenas aparecem de forma diversa: “algum principal, contando com número suficiente de mulheres, em seu lar polígino (filhas, sobrinhas, agregados), cedia-as em casamento a jovens que se dispunham a aceitar sua autoridade” (FERNANDES, 1976 , p. 75). Com mais idade, o prestígio das mulheres se torna maior, como aponta Gandavo (1965, p.58): “Todos seguem muito o conselho das velhas, tudo o que elas lhe dizem fazem e têm por muito certo. Daí vem que muitos moradores não compram nenhuma velha, para que não levem seus escravos a fugir” (GANDAVO, 1965, p.217). Thévet (1944, p.218-219) sublinha o conhecimento e a magia das “velhas feiticeiras”. A idade parece ser um fator de grande importância em termos de respeito e autoridade na tribo e isto independe do sexo biológico. As mulheres decidiam sobre os casamentos, recebiam o fruto das caçadas e pescarias, acolhiam e se ocupavam dos prisioneiros de guerra,

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até o momento de seu sacrifício. De toda forma, como explicitam os cronistas, a autoridade dos caciques era nominal e funcionava apenas na organização da guerra ritual. Mas afirma ainda Fernandes, vestido em suas certezas: “É claro que a proteção das mulheres, crianças e velhos era atividade masculina, bem como a realização de expedições guerreiras”; e prossegue: “As atividades xamanísticas também constituíam prerrogativas masculinas, embora existam referências esporádicas à participação das mulheres nestas atividades, bem como nas guerreiras (na qualidade de combatentes, nos casos de mulheres tríbades)” (FERNANDES, 1976, p.75-76). Não importa, portanto, as indicações dos cronistas de que os pajés poderiam ser também as pajés: como os classifica – esparsos -, não atrapalhariam seu modelo de mundo. O “é claro”, do início da frase nos coloca de imediato numa comunidade discursiva cujos pressupostos são evidentes. O termo “tríbade”, utilizado para designar uma anomalia do sexo feminino – o clitóris aumentado –, carrega também o sentido de homossexualidade, de uma patologização biológico-social dos costumes indígenas. Quase todos os cronistas comentam a existência de mulheres guerreiras e a própria administração colonial, como aponta Sérgio Buarque de Holanda, preocupa-se em localizá-las Afirma este autor: “No Quito, a Real Academia apura a existência, em certas províncias, dessas viragos, capazes de sustentarse sem o convívio dos homens, salvo em determinadas ocasiões” (HOLANDA, 1976, p.25). Virago vem de viril, pejorativo para mulheres, masculinizadas. Nota-se a impossibilidade, portanto, para este autor, de admitir a diversidade de papéis sociais, senão classificando-os de acordo com seus estereótipos As guerreiras Aymorés desaparecem e surgem amazonas lendárias, histórias que Buarque de Holanda relega ao mito, pois as condições de imaginação não concebem mulheres fora de um esquema binário dominador/ dominado, masculino ativo e forte/ feminino passivo e frágil. Os depoimentos dos próprios indígenas sobre essas mulheres guerreiras, relatados pelos cronistas, os testemunhos de Carvajal e de Orellana ultrapassam o mundo representacional do historiador: para ele, são figuras míticas. O que chamo de condições de imaginação são as possibilidades de colocar em questão valores estabelecidos; é evidente que historiadores de 1976 não as possuem, quando afirmam que, “ao se defrontar com grupos indígenas com que combatera, na altura do Nhamundá, imaginando-os mulheres, dera ao rio, cuja calha central estava percorrendo, o nome de rio das amazonas” (REIS, 1976, p.257).

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Gandavo e Soares de Souza afirmam que os homens não poderiam, materialmente, viver sem as mulheres e suas explicações sobre a atividade guerreira permitem-nos pensar na guerra como um rito de passagem para a inserção dos homens na organização social da tribo, pois apenas um prisioneiro assegurava-lhe a possibilidade de entrar no mundo das mulheres, o mundo da vida social da tribo. Entretanto, para Fernandes: “como acontecia com os serviços e os cativos, as mulheres circulavam entre as parentelas como se fossem bens” (1976, p.79). A “ troca de mulheres” é uma aplicação direta da teoria de LévyStrauss sobre a troca de mulheres como forma de estabelecimento da sociabilidade entre os grupos sociais; isto significa impor um sentido préestabelecido às relações existentes entre os indivíduos, os grupos locais e às relações intertribais, cujo pressuposto primário é de que os homens possuem as mulheres, “naturalmente”. Este é um exemplo modelar de como a realidade é construída para abrigar a teoria e seus pressupostos. Encontramos aí diversos pressupostos e graus de naturalização: • a relação binária e heterossexual organizadora da sociedade indígena; • a posse coletiva das mulheres pelos homens, que as cedem, trocam, vendem, emprestam, como pressuposto evidente; • a patologização da diversidade de práticas e incorporações de sexo, sexualidade e papéis sociais; e • a inversão da importância do trabalho realizado segundo o sexo: o domínio do mundo do trabalho pelas mulheres é transformado em uma espécie de trabalho escravo apenas a partir de sua condição feminina. Ou seja, a feminização do trabalho, nas condições de imaginação do cientista social, torna-o automaticamente um trabalho subalterno e dominado. O que seria dito de uma sociedade em que os homens detivessem os meios de produção e assegurassem a vida e a inserção social das mulheres? Seria naturalmente classificada como patriarcal, como dominada pelo masculino. Este modelo é tão ancorado nas representações de mundo e nas condições de sua apreensão pelo historiador que, mesmo sendo as mulheres as responsáveis pela manutenção econômico-social da tribo, a sociedade continua a ser patriarcal. Podemos perceber que a subjetividade generizada do analista se derrama sobre sua narrativa, impondo sentidos aos indícios discursivos que nos aproximam da realidade, segundo suas próprias condições de imaginação. O papel da historiadora e do historiador, em meu entender, não é afirmar tradições, corroborar certezas, expor evidências. É ao contrário, destruí-las para reviver o frescor da multiplicidade, a pluralidade do real.

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É criar a inquietação, a interpelação, é suscitar a mudança, é levantar questões e pesquisar incansavelmente a diversidade, para escapar à tirania do unívoco, do homogêneo, da monótona repetição do mesmo, que nos faz reiterar uma história sem fim de dominação e exclusão entre feminino e masculino. As próprias noções de sexo biológico, de gênero social, de diferença, enquanto sistema não passam de uma reafirmação constante da primazia do biológico como divisor de um humano desenhado em dois, cuja complementaridade “natural” é a naturalização do destino biológico das mulheres na reprodução. Da diferença extraímos a diversidade, do estranhamento, a poética da existência, que não é senão a pluralidade do humano, a possibilidade de ser sem as contingências das normas e dos modelos. Afinal, como disse Foucault, “tudo que foi construído pode ser desconstruído”.

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CASTORIADIS, C. A Instituição Imaginária da Sociedade. Rio de Janeiro:Paz e terra, 1995. DAVIS-KIMBALL, J.; BEHAN, M. Warrior Women: An Archaeologists Search for History’s Hidden Heroines. New York: Warner Books, 2002. DAVIS-KIMBALL, J. “Warrior Women of Eurásia”. Archaeology, v. 50. n. 1, Jan. / Feb., 1997. Disponível em: http://www.archaeology.org/9701/abstracts/ sarmatians.html DE LAURETIS, T. Technologies of gender. Essays on Theory, Film, and Fiction., Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press, 1987. FERNANDES, F. “Antecedentes Indígenas: organização social das tribos tupis”. In: História Geral da Civilização Brasileira. Rio de Janeiro: Difel, 1976. REIS, A C. F. História Geral da Civilização Brasileira. Rio de Janeiro: Difel, 1976 FOUCART, P. Mystères d´Eleusi. Paris, Auguste Picard, 1914. FOUCAULT, M. L´Ordre du discours. Paris: Gallimard, 1971. FREYRE, G. Maîtres et Esclaves, la formation de la société brésilienne. Paris: Gallimard 1974. JAMES, E.O. Le Culte de la Déesse-mère dans l´Histoire des Religions. Paris Lemail:1988 KRAMER, S.N. Le Mariage Sacré. Paris: Berg International, 1983. MELAART, J. Çatal Huyuk, une des premières cités du monde. Paris: Jardin des Arts/ Tallandier, 1971. STONE, M. Quand Dieu était Femme, à la découverte de la Grande Déesse, source du pouvoir des femmes. Montréal: Editions Etincelle, 1979 . Disponível em: http://www.ancientneareast.net/religion_mesopotamian/gods/inana_ishtar.html Web.2001,14. Clio, Histoire, femmes, sociétés. Festins de femmes. Disponível em: http://clio.revues.org/document102.html Acesso em: set. 2007.

3. GENEALOGIA E HISTÓRIA ANTIGA GLAYDSON JOSÉ DA SILVA ADILTON LUÍS MARTINS

História e Origem A TRAJETÓRIA do pensamento histórico ocidental comumente foi balizada por preocupações e reflexões em torno da idéia de origem, uma origem tida como começo absoluto e “que traz em si a história futura e determina o curso de todas as coisas” (GRELL, 1993, p.128). Um passado original, desse modo, é comumente erigido como objeto de conhecimento e imperativo necessário à compreensão do tempo presente, sendo, concomitantemente, o seu conhecimento a garantia de um futuro profícuo, assentado na legitimidade do que foi e, como corolário, postulando o que deve ser. Dessa perspectiva, valores, costumes, práticas e experiências que orbitam universos originais são lidos, interpretados, imaginados e reivindicados no estabelecimento de compreensões de questões contemporâneas e na oferta de respostas ao que, aos olhos dos “agentes”, se configura como problemas no presente, fazendo do passado seu juiz e sua escola. Essa importância quase obsessiva conferida às origens na cultura moderna se deve ao engendramento político a que se pode prestar todo discurso original, pois está constantemente sob a sombra da legitimidade cultural. A História que busca as origens comporta-se como uma maquinaria, cujo processo exige uma matéria-prima, a origem verdadeira, a identidade pura de um objeto a ser estudado, e a elaboração textual de um produto final, uma consciência de mundo, que, em geral, apresenta-se como uma consciência de se estar na história, para então efetuar um projeto éticopolítico. Esse dispositivo maquínico cria sujeitos e identidades.

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Em resumo, a História aí pode ser entendida como uma máquina criadora de sujeitos pela legitimação ou pela crítica de idéias, mundos e signos. Esses pressupostos levam a uma questão que se deve ter em conta dentro do incompleto projeto foucaultiano: por que a genealogia de Foucault, tão ácida à subjetividade universalista dos modernos e dos “kantianos”, não freqüenta somente a documentação moderna, mas também deleita-se com documentos da Antigüidade Clássica, se a genealogia, metodologicamente, exige os começos mais imediatos, mais vertiginosos e menos metafísicos? O que motiva o ortodoxo recurso de usar a Antigüidade para pensar a Modernidade? O problema aprofunda-se, certamente, ao considerar-se o texto “Nietzsche, a Genealogia e a História” (FOUCAULT, 1979). Neste artigo, Foucault discute a presença da “origem” nos trabalhos de Nietzsche, mapeando-a em três formas bem diferentes: Ursprung, Herkunft e Entestehung. Resumidamente, cada uma destas palavras-conceitos tem uma mecanicidade diferente, que, de modo livre, pode ser dita da seguinte maneira: 1. Ursprung: é a origem em sentido metafísico. Uma busca pela identidade pura, homogênea, imóvel e primeira, anterior a toda queda. Uma entidade platônica imortal e verdadeira. Pergunta-se, por exemplo, pela origem da escrita, da política, da democracia, do machismo, da religião, da revolução. A História é dada como ato filosófico, criação imaterial. 2. Herkunft: uma proveniência nem longínqua, nem acumulativa, mas fragmentária. Um acidente anterior imediato ao acontecimento, que se dissolve inscrito nos corpos sujeitos à irrupção e à necessidade da existência material, oposto a qualquer idealidade ou idealismo. O emaranhado de variados fios sem meada, que nunca se liga a nenhuma pureza original. A trajetória sem bússola de um navio. Uma proveniência dada pelos sulcos de dobras históricas. Quais são as falhas que não permitem uma identidade racial? De onde provém a não-pureza de uma raça? Qual o engodo em uma pretensa fonte histórica? O que a morte revela da história que arruinou a vida? É o dionisíaco antes do apolíneo. 3. Entestehung: a emergência do acontecimento, o ponto de surgimento, o jogo de forças que o produz. O desejo de liberdade que só a escravidão é capaz de produzir, e a escravidão que só a liberdade colonizadora reclama. A paz armada e a guerra pela paz. A explosão meticulosa e o detalhamento das detonações e das estratégias sanguinárias. O dominador que forma no dominado uma outra classe dominadora. O acontecimento que emerge

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da ordem apolínea dos opostos e, imediatamente, a inserção do caos de Dionísio. Herkunft e Entestehung comportam-se como método, a genealogia, que, em suma, problematiza a diferença e a crítica à identidade. A diferença não surge de um jogo de comparações entre duas identidades - por exemplo, masculino e feminino. A enunciação do incomparável de diferenças nada mais faz do que legitimar identidades. Quando se enuncia que a mulher é mais sensível do que o homem, não se está inserindo na discussão uma diferença, mas afirmando duas identidades: o homem bruto e a mulher sensível. A diferença como método se opõe à identidade. Ursprung postula a origem a partir da identidade. Preocupa-se em homogeneizar, tornar uma esfera de mármore na qual se pode observar a mescla de cores, mas que nunca deixa de se caracterizar como uma esfera homogênea de mármore. As mulheres gregas eram diferentes das mulheres francesas, mas, mesmo assim, eram mulheres. Possuíam a mesma experiência de serem oprimidas pelo machismo, eram sensíveis, se embelezavam e cuidavam da casa, ambas tinham feminilidade. As mulheres de Esparta e Atenas, como as de Londres e as de Nova York, são mulheres. Para a origem, a essência é igual à experiência – idealidade pura que não faz distinção entre o empírico e o teórico Sem delongas, como definir a diferença? Qual a sua possível ontologia? Eis a definição irritante: a diferença se define como corpo. A diferença é matéria. A diferença é areia que escorre entre os dedos. Ela é um “entre” “que atua no interior das representações e do sensível” (CRAIA, 2005, p.78). Devir máximo. Eterno retorno (DELEUZE, 2006, p.77). A diferença é acontecimento, perpetuamente imanente – intensidade pura. Ao se dizer à identidade, objetar qualquer sensibilidade e ilustrar qualquer representação, a diferença impõe a dissolução dessas sedimentaridades. O que há entre a caatinga e a floresta amazônica? Entre a margem e o rio? A areia da praia e o mar? Entre o homem e a mulher? Entre a paz e a guerra? Entre a guerra e a paz? Entre o catolicismo e o Iluminismo? Entre a micro e a macro-história? Entre o cotidiano e o social? Entre Platão e os sofistas? Entre o passado e o presente. As não-identidades, essas teimosas fluididades. Mesmo que se encontrasse uma palavra para dizer o que há entre um sedimento e outro, um estrato e outro, uma identidade e outra, ainda se poderia perguntar o que há entre o substrato contínuo e imanente das identidades. Quem pergunta pelo que há “entre” é a genealogia. A diferença não é a não igualdade ou a dessemelhança, mas o “entre”. Ao perguntar o que há entre um negro e um branco e se acaso a resposta fosse um mestiço, o que há entre o mestiço e o negro, ou entre o mestiço e o branco?

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Foucault inventa um método genealógico para a História, um método que pergunta a respeito do “entre”. O que há “entre” as palavras e as coisas? Mas a questão do “entre” não deve ser pensada apenas no lado de fora, não é apenas a exterioridade sem fim, Herkunft – a “ars erotica” e a “hipótese repressiva” da História da Sexualidade (FOUCAULT, 2005). O “entre” deve ser pensado em seu jogo de forças interno – o que imputa o acontecimento, Entestehung – O “dispositivo de sexualidade” e a criação da mulher histérica, da criança masturbadora e de outros “anormais” para defender a “normalidade”; cria-se a guerra para defender a paz.

A História da Sexualidade A História da Sexualidade é um projeto de buscar os “entres”. Diferente de todos aqueles que se associam a gregos e romanos e que são capazes de simplesmente anunciar a continuação ininterrupta da a-histórica racionalidade ocidental, Foucault “retorna” ao mundo clássico para dizer o “entre”, que pode bem ser visto como ruptura das identidades. Para aqueles que tanto almejam domar a História, criando retratos abstratos em textos, seguindo a ordem filosófica da continuidade, do espelhamento do passado pelo presente, Foucault devolve este animal à sua selvageria. A História é um animal selvagem. Pode-se dizer que em Foucault há uma defesa declarada da História, uma proposta de sua libertação (RAGO, 2002, p. 255-272). Tradicionalmente, a Filosofia Antiga foi pensada como fundadora de tudo o que é ocidental, por meio de uma cronologia a qual Foucault não se permite subsumir. A Filosofia, animal doméstico e domesticador, pensa sua origem entre o final do século VII a.C. e o final do século V a.C.; seus problemas de ordem cosmológica instigam o universo rural da Magna Grécia. Eis, então, os pré-socráticos se perguntando pelo princípio de todas as coisas e a causa da mudança da natureza – a arché. Esse momento primeiro da Filosofia, esta identidade geradora pósmitológica, liga-se a outro momento, a filosofia antropológica de Sócrates, o pai tardio de todo o pensamento verdadeiramente filosófico. Milhares de vezes comparado a Jesus Cristo, dele se origina a preocupação com a verdade essencial e virtuosa. Do final do século V a.C. ao final do século IV a.C., Sócrates e Platão são os verdadeiros em meio a uma cidade inquieta pelo poder. Denunciam o universo da retórica vazia e de aparência dos sofistas e proclamam a essência almínica e imortal do homem, cujo dever é o bem político e moral. A cidade de Atenas, glorificada por Péricles, ainda receberia um estrangeiro que organizaria o saber filosófico: o ordenador e peripatético

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Aristóteles. A ele coube a missão de ordenar o pensamento, desde a lógica até a política. Marca-se assim o terceiro período da origem da Filosofia, entre o final do século IV a.C e o final do século III a. C. A “decadência” do modelo de cidade-estado e “ascensão” dos Impérios Alexandrino e Romano marcam uma nova necessidade do pensamento filosófico. Ele, que responde aos acidentes da História, apresenta a última etapa da origem do pensamento ocidental e, claro, a do próprio Ocidente. Surge, em um mundo cosmopolita, a figura ética dos estóicos, dos epicuristas, dos ceticistas e dos neoplatônicos. Eles ensinam e modelam o pensamento desde o final do século III a.C. até a “hegemonia” do pensamento cristão ao final do século IV d.C. Foucault retorna à “origem” do pensamento ocidental para encontrar a diferença da ética. Procura pensar uma ética que não perpassa a Filosofia, uma ética que perpassa o mundo “original” do Ocidente como forma histórica e necessariamente imanente da cultura. Eis o papel da genealogia. Qual o acidente fragmentário e imediatamente anterior à ética clássica (Herkunft)? Qual é a desarmonia histórica dos harmônicos “sistemas” clássicos e eternos de pensamento, ou seja, os jogos de forças que fazem aparecer determinado argumento (Entestehung)? A História da Sexualidade historiciza a ética clássica. O uso dos prazeres, como imanência histórica, para ética metafísica do amor à verdade platônica. Da origem “baixa” da aphrodisia, que orienta os desejos sem tipologias para a gloriosa erótica platônica, capaz de unir opostos em direção ao bem supremo e verdadeiro. Do desejo do corpo para o amor à sabedoria do mestre. Platão é desvio. Na base do pensamento foucaultiano, o interrogar da “diferença que nos mantém à distância de um pensamento em que reconhecemos a origem do nosso, e a proximidade que permanece a despeito desse distanciamento que nós aprofundamos sem cessar” (FOUCAULT, 1994, p.12). O cuidado de si se deriva da ausência do mundo político. O público de O uso dos prazeres torna-se o privado de O cuidado de si. O amor à esposa e a abstinência tornam-se problemas éticos. A questão de poder é a questão dos corpos. A ética só é se submetida à História (FOUCAULT, 2002a).

A Origem e os estudos em História Antiga Foucault recua para o mundo grego não para afirmar outra origem e criar uma nova identidade ética. Seu projeto é o (des)modelo não modelar da genealogia. A tese de Em Defesa da Sociedade (2002b), que, pela narrativa da origem, em suas mais diversas formas, afirma o direito de soberania e o direito sobre a vida, explica que narrar a História é narrar o Direito.

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Esteve claro para Foucault que a História é um dispositivo de poder. Esta ciência constitui-se como um saber jurídico e identitário para o pensamento e para as instituições ocidentais. Procurar as práticas históricas e esquecer as origens filosóficas do mundo ocidental, por meio da História da Sexualidade, cria um estranhamento original, imputa a ruptura e afirma que não somos greco-romanos. Somos uma espécie estranha que resolve e crias seus problemas a partir de textos escritos em universos diferentes. Uma das características do mundo moderno é a busca pela sua origem racional. Como a Bíblia ou escritos grego-romanos, muitos textos antigos são usados em propagandas políticas, mas, além disso, são também fontes de forma de pensar. Estas formas partem da origem. Deus criou um mundo perfeito. Deus é a causa não causada, argumento aristotélico que se funde tanto à teologia cristã. Deus é a perfeita e pura essência de si, identidade pura. Nada é tão igual e perfeito como ele. E, por ser tão igual a si e tão perfeito, só pode ser verdadeiro. Identidade é o mesmo que verdade. Este é o pressuposto tanto da História quanto da Física modernas. A verdade só pode ser uma identidade, nunca uma diferença fluida. A verdade só pode ser domada. Ela é um leão enjaulado, nunca um cavalo selvagem. A lei geral de causa e efeito só pode chegar a Deus. Contudo, como há a existência da queda, o perfeito cai. Adão peca e leva o gênero humano à decadência. O Império Romano cai pela imoralidade - novamente a decadência. Como perceber a grandiosidade de algo sem sua derrocada? Como cuidar de algo se não temer seu fim? A queda, então, é o pressuposto anterior e posterior à identidade, faz a ligação entre duas identidades. Não seria a queda do Império Romano o que dá a passagem ou a continuidade da Idade Antiga para a Idade Medieval? A queda é uma identidade. A origem, como forma primeira de identidade e de representação, apresenta sua mais importante característica, a teleologia. A História pensada por meio do agenciamento origem-queda exige uma reparação, uma redenção. A Igreja é a redenção da imoralidade romana. O Renascimento, a redenção da cultura humana. O Iluminismo, redenção das trevas religiosas. A revolução socialista, a redenção do proletariado. A redenção é a retomada da origem, sua atualização quando esta foi esquecida, maculada ou ferida. Quando os iluministas do século XVIII e os cientistas historiadores, a partir do século XIX, perguntam-se pela origem do que eram ou do que era a sua civilização européia, imediatamente vêem-se impulsionados para o mundo greco-romano, e compreendem a pureza máxima do que eram – a origem primeira do uso da razão, o modelo para sua redenção. Definir uma origem torna-se definir um modelo ético, um modelo político, uma raça, uma nação,

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uma missão e um destino, e, também, o valor dos que não pertencem a essas definições – processos de subjetivação. Mas Deleuze explica: “não são os gregos, é nossa relação com a subjetivação, nossas maneiras de nos constituirmos como sujeito” (1992, p.132). O processo mecânico em que se dá a compreensão política das origens pode ser chamado de “agenciamento das origens”, um agenciamento que “ultrapassa a simples crença no documento sagrado, está para além do documento que funda as suas bases epistemológicas, concentra-se nas formas de pensar e de ser racional” (MARTINS, 2007, p. 59). O desejo cristão de se realizar como a restauração do paraíso do Éden migra para formulação moderna da História, a questão torna-se a busca pelo Éden da Modernidade. O paraíso perdido da França, os revolucionários o encontrarão na República Romana de outrora (VIDAL-NAQUET, 2002, p. 237) – a origem política. Esse modus operandi, em maior ou menor grau, objeto ou não de problematizações, figura como aspecto central do conhecimento historicista. Nessa instância, o passado só pode ser em si, plasmado ao observador, e não uma esfera sobre a qual se reflete num contexto contemporâneo e que traria marcas do tempo presente nas suas leituras/interpretações dos documentos originais. Em contraposição a isso, o pensamento de Foucault auxiliou substantivamente na concretização do que se poderia denominar de uma guinada historiográfica, espaço em que as idéias de história e de documento rompem com as continuidades ideais e com as unidades ininterruptas às quais se encontram ligados todos os discursos assentados na busca das origens. A mudança da História acerca do documento é sintomática de uma mudança da própria História, que considera como sua tarefa primordial, não interpretá-lo, não determinar se diz a verdade nem qual é seu valor expressivo, mas sim trabalhá-lo no interior e elaborá-lo: ela o organiza, recorta, distribui, ordena e reparte em níveis, estabelece séries, distingue o que é pertinente do que não é, identifica elementos, define unidades, descreve relações. O documento, pois, não é mais, para a História, essa matéria inerte através da qual ela tenta reconstituir o que os homens fizeram ou disseram, o que é passado e o que deixa apenas rastros: ela procura definir, no próprio tecido documental, unidades, conjuntos, séries, relações (FOUCAULT, 2005, p.7).

Espaço de epistemologias menos pretensiosas, as proposições do modelo foucaultiano buscam escapar do artifício de recurso à busca pelas

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origens – criadoras de modelos gerais homogeneizadores; preocupam-se mais com os “jogos de verdade” (Herkunft) e com os “regimes de verdade” (Entestehung). Chamam a atenção para o aceite sem pestanejar dos modelos prontos, formatados, dados e aprioristicamente reconhecidos como válidos e que instituem sujeitos. Foucault nos lembra, como observa Veyne (1992, p.176), que os objetos de uma ciência e a própria noção de ciência não são verdades eternas. “A consciência não pode se opor às condições da história, já que ela não é constituinte, mas constituída” (VEYNE, 1992, p.177). Para Foucault, Se a história do pensamento pudesse permanecer como o lugar das continuidades ininterruptas, se ela unisse, continuamente, encadeamentos que nenhuma análise poderia desfazer sem abstração, se ela tramasse, em torno do que os homens dizem e fazem, obscuras sínteses que a isso se antecipam, o preparam e o conduzem, indefinidamente, para seu futuro, ela seria, para a soberania da consciência, um abrigo privilegiado. A história contínua é o correlato indispensável à função fundadora do sujeito: a garantia de que tudo que lhe escapou poderá ser devolvido, a certeza de que o tempo nada dispersará sem reconstituí-lo em uma unidade recomposta; a promessa de que o sujeito poderá, um dia – sob a forma da consciência histórica - , se apropriar, novamente, de todas essas coisas mantidas à distância pela diferença, restaurar seu domínio sobre elas e encontrar o que se pode chamar sua morada. Fazer da análise histórica o discurso do contínuo e fazer da consciência humana o sujeito originário de todo o devir e de toda prática são as duas faces de um mesmo sistema de pensamento. O tempo é aí concebido em termos de totalização, onde as revoluções jamais passam de tomadas de consciência. (2005, p.14)

A crítica de Foucault às cronologias contínuas da razão e à conveniência tranqüila das formas idênticas, ontológicas, significou um influxo para os estudos sobre a Antigüidade. O rompimento com modelos universalistas trouxe em seu bojo uma crítica contundente às origens, ao desejo de verdade histórica e a todos os essencialismos. Ao postularem a desnaturalização de sujeitos e identidades fixas, essas novas bases têm contribuído para uma melhor compreensão da pluralidade das experiências, principalmente ao reconhecerem a elaboração de sujeitos e identidades como produtos de forças culturais conflitantes, que operam em meio a jogos de relações de poder. Daí as diferenças serem percebidas pela

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genealogia foucaultiana como plurais, móveis, diversas, versáteis, descentradas, desunificadas, contrárias à existência de um núcleo interior imutável no qual se partia do princípio de que as experiências e os valores sempre foram os mesmos. A filosofia de Foucault ajudou efetivamente os historiadores na superação do discurso da naturalidade, rompendo com uma ligação que, ab origine, se creditava com legitimidade para dizer dos significados; seus aportes se inserem num contexto de fragmentação das paisagens culturais nos diferentes campos das experiências humanas. A rejeição de um caráter natural (naturalizado) dos indivíduos e de suas práticas no mundo trouxe como corolário uma compreensão maior da complexidade das formações sociais. No âmbito dos estudos sobre a Antigüidade, de longa data percebidos como conservadores, hierárquicos e patriarcais, ao mesmo passo que pouco teóricos e pouco dados à interpretação (SILVA, 2007, p. 25-27), as contribuições de Foucault foram inestimáveis. Já em 1978, Paul Veyne (1992) ilustrava, no clássico ensaio Foucault revoluciona a história, a importância do “método foucaultiano” por meio de exemplos retirados da história antiga (a explicação da suspensão dos combates de gladiadores). Sobre as questões ligadas à origem e a desnaturalização de indivíduos e práticas, os influxos de seu pensamento, ao lado de diferentes teorias sociais têm auxiliado na construção de uma história mais includente (FUNARI, 2004). Grandes modelos homogeneizadores baseados em tipos ideais e que se originam de concepções de conhecimento normativas e as reproduzem têm sido repensados nessa esteira. Temas como “o homem grego”, “o homem romano”, “a mulher grega”, “a mulher romana”, ou mesmo o plural generalizador dessas e outras formas similares têm perdido cada vez mais espaço nos estudos da área, em benefício de percepções das experiências humanas mais includentes. Uma característica muito marcante na História preocupada com as origens é a idéia de que judeus, egípcios, gregos, romanos eram de determindada forma; nos últimos tempos, esta idéia tem cedido a interpretações mais diversas, mais problematizantes. A opção por essas grandes unidades originais e discursivas tem sido associada a diferentes cortes sociais reforçadores das mais distintas exclusões: machismos, racismos, sexismos, questões identitárias nacionais etc. – todas ligadas à legitimidade de um discurso identitário que diz do que foi e do que era na origem. A ligação intrínseca dos estudos sobre a Antigüidade com a busca de um pensamento e uma identidade originais freqüentemente esteve associada

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a imperativos circunscritos na instância do tempo presente – instância que determinou, em diferentes espaços, a produção de memórias nacionais e/ou grupais, repousadas sobre valores originais e na ascendência primeva do povo e/ou dos grupos que o compuseram e compõem. Em seus múltiplos contextos, é o presente que confere significados às leituras e interpretações históricas. A história da Antigüidade, nesse campo, não constitui exceção; suas epistemologias sempre estiveram muito próximas das representações coletivas e atuaram na legitimação e justificação de direitos contemporâneos advindos de um direito original respaldado pelo sangue, pela ocupação territorial, pela língua, pela forma de ser dos sujeitos etc. Sua inserção nas esferas do conhecimento, particularmente em sociedades nas quais o estudo e o ensino de História têm na História da Antigüidade uma percepção da história da civilização ocidental capaz de produzir sujeitos e instituições. A História como máquina produtiva de poder de Foucault ligase àquilo que Bourdieu designou como poder simbólico – o poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo e, deste modo, a ação sobre o mundo, portanto o mundo; poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), graças ao efeito específico de mobilização (1989, p.14).

Esse efeito mobilizador tem sua origem na crença de que a história é um continuum, e de que as sociedades contemporâneas se depararam, de tempos em tempos ou estruturalmente, com iguais ou similares problemas, diante dos quais o conhecimento e o estudo do passado devem sempre ditar o como proceder – o retorno à pureza original. A genealogia, como método da diferença, propõe a iconoclastia e a renovação da historiografia. Ela é geradora de idéias na medida em que faz emergir a baixeza de verdades sublimes. Conceitos eternizados como naturais e humanos tornam-se estranhos, artificiais, afinal, o que é uma mulher, um homem, uma criança, a política, a ética? Pela genealogia somos levados a questionar o natural, o mundo presente, o mundo contemporâneo, indagando o ser normal do fazer-se isso ou aquilo, se essa é a melhor forma, a melhor maneira de se agir, colocando em questão as próprias concepções normativas que nos circundam. Experimentamos hoje um contexto de crítica às práticas de dominação e poder que temos e que nos moldam, e que reificam um sujeito nominado, identificado, catalogado, imerso em formas de poder e violência que

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aprisionam, ditando a necessidade sempre premente de “tornar-se” para alguém, uma projeção de si que anula o outro e a sua construção de si. Por que nos tornarmos e nos adequarmos ao que de nós desejam? A genealogia, o anti-método, retorna à Antiguidade como muitos que procuram lá as suas raízes modernas, no entanto, concluímos como Deleuze: (...) não há retorno aos gregos. (...) Embora Foucault remonte aos gregos, o que lhe interessa em O uso dos prazeres, bem como em seus outros livro, é o que se passa, o que somos e fazemos hoje: próxima ou longínqua, uma formação histórica só é analisada pela sua diferença conosco, e para delimitar essa diferença ( DELEUZE, 1992, p.141-142).

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4. HELENISMO E MODERNIDADE: O CASO NIETZSCHE ALEXANDRE ALVES

DESDE O pré-romantismo alemão, na segunda metade do século XVIII, afirma-se uma afinidade eletiva entre o pensamento alemão e a Grécia clássica. Numa Alemanha fragmentada e retardatária, a nostalgia pelo passado grego repercute no sonho de um “renascimento” da cultura alemã: “O único meio para nós de nos tornarmos grandes e, se isso é possível, inimitáveis é imitar os Antigos” (WINCKELMANN, 1990, p.95). Os estudos clássicos seriam a fonte essencial e autêntica de toda cultura, de toda Bildung: “Tudo o que é antigo é genial. A Antigüidade inteira é um gênio, o único que se pode chamar sem exagero de absolutamente grande, único e inatingível” (SCHLEGEL, 1997, p. 91). Em contraste com o caráter fragmentado e cindido do sujeito moderno, o ser grego seria marcado pela integralidade, pela simplicidade e pela plenitude. O espírito do helenismo, produto do “gênio” helênico, era visto como um todo orgânico, uma “bela totalidade” (schöne Totalität), caracterizada pela unidade de estilo em todas as suas manifestações. Assim, segundo Schiller, a unidade de estilo do ser grego manifesta-se na síntese perfeita entre ética e estética, na harmonia entre o indivíduo e o todo, ao passo que o mundo moderno se ressente pela “falta de gosto” e a “semi-barbárie”. De acordo com essa concepção, o homem moderno teria se alienado de sua própria natureza, enquanto na Grécia clássica cada indivíduo encarnaria as potencialidades de toda a espécie: “Que indivíduo moderno apresentar-seia para lutar, homem a homem, contra um ateniense pelo prêmio da humanidade?” (SCHILLER, 1995, p. 36). Com O Nascimento da Tragédia de Nietzsche, surge uma Grécia distinta da Grécia serena e apolínea dos classicistas de Weimar: a Grécia dos mistérios

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Helenismo e modernidade: o caso Nitzsche

órficos, da tragédia e dos êxtases dionisíacos. Certamente, em virtude da formação de Nietzsche em filologia clássica, mantém-se a afinidade espiritual entre a Grécia clássica e a modernidade alemã, mas sem a nostalgia romântica da “bela totalidade”. No pensamento de Nietzsche, o “retorno” aos Gregos terá uma função crítica. A relação com a Antigüidade lhe permitirá lançar um olhar intempestivo, distanciado, sobre sua própria cultura e sua própria época. Olhar a si mesmo com os olhos do outro: o “retorno” ao paganismo desempenhará a função de ideal alternativo e compensatório, possibilitando uma outra relação com o tempo presente: É somente na medida em que sou discípulo de tempos mais antigos [älterer Zeiten], especialmente dos gregos, que cheguei, para além de mim mesmo e enquanto filho do tempo presente, a tais experiências intempestivas [unzeitgemässen Erfahrungen]. Assim, devo concedê-lo a mim mesmo em virtude de minha profissão de filólogo clássico: pois não sei que significado a filosofia clássica poderia ter para nossa época, a não ser o de agir intempestivamente sobre ela – isto é, contra o tempo e, por isso, sobre o tempo e, esperemos, em benefício de um tempo por vir (NIETZSCHE, 1999, vol. I, p. 281).

À procura da essência do helenismo, o jovem Nietzsche ainda acalentava a idéia de um efetivo “retorno” a uma experiência originária, que teria sido ocultada no decorrer da história da civilização e da qual somente os Gregos da época pré-socrática e trágica possuiriam a chave. Entretanto, a partir da escrita de Aurora, quando Nietzsche iniciava sua luta contra a metafísica platônico-cristã, os Gregos passam a desempenhar o papel de um “contra-ideal” cultural para fazer face tanto à visão religiosa e metafísica de mundo quanto ao racionalismo científico moderno. Dessa forma, o helenismo será um dos elementos fundamentais na crítica de Nietzsche à modernidade.

A (re)descoberta da Antigüidade O classicismo alemão – nas figuras de Winckelmann, Goethe, Schiller associava o estudo dos clássicos gregos à luta pela cultura. Contudo, na opinião do jovem Nietzsche, nem eles conseguiram “arrombar aquela porta encantada que conduz à montanha mágica helênica” (2000, p. 122). A essência da cultura grega, sua verdadeira natureza, devia ser procurada no mito trágico e no fenômeno do dionisíaco. No Nascimento da Tragédia, a cultura grega pré-clássica é vista por Nietzsche como uma cultura artística em que o homem

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se tornara uma verdadeira “obra de arte” (2000, p.31). Num espírito utópico, ainda marcado pelo romantismo, ele antevê o “iminente renascimento da Antigüidade grega”, por intermédio do qual poderia haver uma “regeneração” da cultura alemã. Em O Nascimento da Tragédia e em alguns fragmentos do mesmo período, Nietzsche estabelece uma analogia histórica entre Grécia antiga e modernidade. O homem moderno estaria próximo de refazer no sentido inverso a trajetória do homem grego; em vez de passar da cultura trágica para a cultura racionalista alexandrina – marcada pela confiança na lógica e pelo socratismo moral -, os modernos estariam transitando dessa cultura alexandrina e científica para uma cultura trágica e pessimista, através da qual retornaríamos à essência do mundo grego e reencontraríamos a grandeza perdida: “nós revivemos analogicamente em ordem inversa, por assim dizer, as grandes épocas principais do ser helênico, e agora, por exemplo, parecemos retroceder da era alexandrina para o período da tragédia” (2000, p. 119). Nietzsche tenta pensar, portanto, uma regeneração da civilização européia que teria como pilares a música e a filosofia alemãs e que só poderia ser entendida através dessa analogia com o devir da cultura grega. Num curto ensaio escrito em 1872, “A paixão da verdade”, ele define seu conceito de cultura como uma constelação de momentos de culminância, de “cristas” que se alinham, na história da civilização, formando uma corrente: Que as grandes épocas formem uma corrente, que sua linha de crista ligue a humanidade através dos milênios, que a grandeza suprema de uma época desaparecida seja grande também para mim, e que os pressentimentos da fé se preencham com o desejo de glória, tal é o pensamento fundamental da civilização (NIETZSCHE, 1999, p. 756).

Numa nota preparatória a este estudo, ele afirma: “Cada ação nobre acende sua centelha numa outra ação nobre, como uma ligação elétrica, reatando todas as grandezas, atravessa os séculos” (NIETZSCHE, 1990, p.840). Num outro fragmento póstumo, de 1871, a descoberta ou redescoberta da Antigüidade é vista como um processo contínuo que teria se iniciado com o Renascimento: “A Antigüidade foi descoberta numa ordem cronológica inversa: Renascimento e época romana, Goethe e o alexandrinismo, agora é preciso liberar de seu túmulo o século VI” (1999, p. 756). Nesta época, Nietzsche estava à procura do sentido originário, da essência do helenismo e sua visão trágico-dionisíaca de mundo, que poderiam

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ser redescobertos ou desocultados na medida em que a moderna Aufklärung (“Esclarecimento”) conduzia ao enfraquecimento da interpretação cristã do mundo, responsável pela transmissão dos valores antigos ao mundo moderno, mas também por sua distorção e seu ocultamento. É essa mesma idéia que influenciará Heidegger em sua busca pelo sentido originário do ser, a ser procurado nos pensadores originários da Grécia pré-socrática. Posteriormente, a partir de Aurora, Nietzsche rejeitará a pretensão de chegar à essência do helenismo como uma ilusão metafísica, que resulta da falta de sentido histórico. A pesquisa da origem dará lugar à crítica genealógica da proveniência dos ideais e valores que enquadram a vida do homem moderno. Nada mais estranho, portanto, do que a imagem de um Nietzsche que glorificaria as origens, propondo um retorno anacrônico ao mito trágico. Ao contrário, essa nova atitude implica uma crítica da própria Antigüidade: Quanto mais penetramos na Origem, mais insignificante ela se torna para nós: enquanto o mais próximo, o que está em torno e dentro de nós começa gradativamente a mostrar cores, belezas, enigmas e riquezas significativas, com que a humanidade antiga nem sonhava (NIETZSCHE, 2004, p. 41).

Isso ajuda a esclarecer os motivos de adesão ao “mito de origem” da Grécia antiga. Os modernos são tentados a projetar seus desejos e suas crenças nos antigos, para melhor legitimar e enobrecer a si mesmos (pois a Antigüidade sacraliza). Mas trata-se apenas de uma ilusão retrospectiva, pois a natureza essencial do mundo grego, como toda essência, permanece inatingível: Para mim torna-se cada vez mais claro que a natureza do mundo grego e antigo, por simples e conhecida que nos pareça, é de compreensão muito difícil, é quase inacessível, e que a habitual facilidade com que se fala dos antigos é uma leviandade ou uma velha presunção e irreflexão hereditária. As palavras e conceitos semelhantes nos iludem: por trás deles sempre se oculta um sentimento que tem de ser alheio, incompreensível ou penoso para a sensibilidade moderna (NIETZSCHE, 2004, p. 140).

Nietzsche critica a pretensão dos estudos clássicos e da erudição histórica moderna de chegar à “verdade” sobre o passado. O seu objetivo, ao contrapor a cultura moderna à Grécia antiga, é evidenciar que a grandeza

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dos Gregos só poderia ser compreendida por um homem contemporâneo que se tornasse tão grande quanto o grego: só a grandeza é capaz de compreender a grandeza. Sem isso, a cultura grega permanecerá sendo exótica e misteriosa, assunto de erudição estéril e matéria de antiquários: “O conhecimento histórico é apenas um reviver. A partir desse conceito, nenhum caminho conduz à essência das coisas. Não é possível compreender a tragédia sem ser Sófocles” (NIETZSCHE, 2005, p.13). Numa época avassalada pela racionalidade técnico-científica, os gregos servem como contra-ideal à dominação da “vontade de verdade”. A ciência é vista por Nietzsche como hostil à vida e destruidora da cultura, que necessita da arte como meio de compensação: Oh, esses gregos! Eles entendiam do viver! Para isto, é necessário permanecer valentemente na superfície, na dobra, na pele, adorar a aparência, acreditar em formas, em tons, em palavras, em todo o Olimpo da aparência! Esses gregos eram superficiais – por profundidade! E não é que precisamente a isso retornamos [...] não somos precisamente nisso – gregos? (2001a, p. 15).

A reconstrução do conceito de cultura e a crítica da modernidade Na obra de Nietzsche, é constante a utilização de um mesmo conceito de cultura, entendida como cultivo de si ou auto-formação, por oposição à cultura geral do século XIX. Nietzsche herdou esse conceito de cultura do historiador Jacob Burkhardt, que foi seu colega na Universidade de Basiléia (LARGE, 2000): a cultura é vista não como o oposto da natureza, mas como modelagem da matéria-prima fornecida pela natureza, como unidade sintética de uma multiplicidade natural, assinalada pela constância de um mesmo estilo. O único objetivo da cultura seria o florescimento de grandes indivíduos e personalidades integrais e as instituições como o Estado seriam apenas instrumentos para a afirmação de si. A civilização moderna não entende o que é cultura, porque não possui essa unidade de estilo que caracterizava a Grécia antiga e a civilização do Renascimento: o século XIX é um carnaval de todos os estilos e épocas e vive numa “barbárie civilizada”. De acordo com a concepção de Burkhardt (1995), no Renascimento italiano, a individualidade tornou-se fonte de toda força e de toda soberania, dando origem a um novo ethos e a um novo conceito do bem e do mal. O homem renascentista, culto e multifacetado, era capaz de desenvolver harmonicamente todas as suas forças. A vida passa a ser medida não pelos códigos e valores da tribo, mas pela beleza e pelo estilo

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que há nela, na luta permanente do indivíduo consigo mesmo para se superar e aperfeiçoar. A partir do influxo das análises de Burkhardt, o Renascimento é visto por Nietzsche como “a última grande época” dos europeus, “um momento em que uma ordem superior de valores, em que os valores aristocráticos, que dizem Sim à vida, que trazem a promessa de um futuro, chegavam à vitória na própria sede dos valores opostos, dos valores de declínio” (NIETZSCHE, 2003, p. 104). O Renascimento seria uma dessas “cristas” históricas, ligando-se à corrente que une os períodos de cume civilizatório. O pensamento renascentista, contudo, não conseguiu separar o ideal do sábio antigo do modelo do bom cristão, como vemos tanto no caso de Erasmo quanto no de Montaigne, que se esforçaram por retornar à ética antiga do “cuidado de si”. Na perspectiva de Nietzsche, é o esgotamento do ideal cristão, da imagem cristã do homem e, com isso, a consumação da história da moral, o que permite restituir o sentido histórico da filosofia e da cultura grega. É que a possibilidade de um “retorno” ao ethos dos Antigos está ligada ao próprio sentido da modernidade, época do colapso dos valores. O declínio da moralidade cristã, ou seja, a perda de obrigatoriedade da moral, dá lugar a uma ética entendida como tekhnê tou biou, “arte de viver”. Esta expressão, que se tornou com o tempo gasta e banal, significa em Nietzsche duas coisas: 1) que a própria vida, liberta da metafísica cristã da alma, torna-se objeto de saber e de arte, campo aberto para a experimentação, e 2) que a filosofia deixa de ser encarada como conhecimento teórico e especulativo sobre o mundo e volta a ser pensada como uma forma de vida (Lebensform), uma arte de viver refletida e praticada. Entendida como arte de viver, a filosofia torna-se prática da liberdade e assume a tarefa da autoformação do sujeito que se libertou da moral (SCHMID, 2007). Essa perspectiva implica uma crítica do estatuto da filosofia moderna como corpo de conhecimentos especializado e separado da vida: Uma época que sofre daquilo a que se chama cultura geral, mas que não tem nenhuma civilização, nem na sua vida tem unidade de estilo, nunca saberá o que fazer com a filosofia, mesmo que ela seja proclamada nas estradas e nos mercados pelo gênio da Verdade em pessoa [...] Ninguém pode ousar cumprir a lei da filosofia em si, ninguém vive de maneira filosófica com esta lealdade elementar que obrigava um Antigo, onde quer que estivesse e fosse o que fosse que fizesse, a comportar-se como Estóico, se tinha jurado fidelidade ao Pórtico. Toda prática moderna da filosofia é restringida

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a uma aparência de erudição, politicamente e policialmente, por governos, por Igrejas, por academias, por costumes, por modas e pela covardia dos homens. Esta prática filosófica se limita a suspirar: “se somente!” ou a admitir “era uma vez”. A filosofia já não tem razão de ser e, por isso, o homem moderno, se fosse corajoso e honesto, deveria rejeitá-la e bani-la com palavras semelhantes àquelas com que Platão expulsou os poetas trágicos do seu Estado (NIETZSCHE, 1990, p. 24).

Para Nietzsche, a modernidade é a época da mistura de valores e ideais opostos e contraditórios, é um período propício a todas as experimentações, é também o momento em que se perde um critério absoluto para justificar os valores, as práticas e as instituições, e em conseqüência, o passado torna-se fonte de suspeita. Sem um valor incondicional para orientar a ação, ele escolhe tornar a atividade artística o paradigma para entender a relação do homem com o mundo e consigo mesmo. As artes são o único domínio em que não se pode distinguir perfeitamente entre bem e mal ou entre verdadeiro e nãoverdadeiro; por isso, elas se colocam para além das interpretações morais da existência. A ética de Nietzsche é, assim, uma forma de “estetismo”: a escolha de um modo de comportamento torna-se uma decisão artística, uma questão de gosto e não uma norma ou um código universal e válido para todos (NEHAMAS, 1996). Em Assim falou Zaratustra, a modernidade será vista como o momento crítico de uma decisão, que concerne ao próprio destino da civilização. O declínio inevitável da moral e do ideal cristãos de homem abre caminho para novas possibilidades de existência, que gravitam em torno de dois pólos opostos: o homem pequeno, que coloca o seu bem-estar acima de toda outra consideração, ou seja, o “último homem”, e o homem trágico, que fixa como meta da sua existência a contínua superação de si. O “além-do-homem” (Übermensch) é o diametral oposto do “último homem”: “Trata-se de manter, mesmo após a morte de Deus, o caráter heróico da existência humana; de trazer à vida aquilo que, enquanto Deus, aparecia estranho e transcendente” (FINK, 1965, p. 85). Nietzsche está à procura desse homem trágico, possuidor de uma visão dionisíaca e afirmativa da existência e capaz de realizar um ideal superior de cultura. Segundo Alexander Nehamas (1998, p.128 ss.), desde Humano, demasiado humano, Nietzsche teria abandonado a perspectiva de um renascimento da cultura, impondo-se a tarefa de tornar-se o que se é, ou seja, de cultivar-se como indivíduo em vez de intervir diretamente na sua época, seguindo o exemplo de Montaigne, que se retirou a seu castelo para escrever

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seus Ensaios. Em sua análise, Nehamas não leva em conta o vitalismo ao qual Nietzsche subordina a hierarquização dos valores, pensando correlativamente uma cultura que torne possível um indivíduo superior ao medíocre homem de rebanho moderno. A crítica genealógica, que realiza a transvaloração dos valores, é um “atentado contra dois milênios de anti-natureza e violação do homem”, necessário para que uma “era trágica” possa surgir, quando será possível o “cultivo superior da humanidade” (Höherzuchtung der Menschheit) e, através dele, uma renovação geral da cultura. Mesmo após o Nascimento da Tragédia e a ruptura com Schopenhauer, Nietzsche nunca abandonou o sonho do renascimento da cultura, que tem nos Gregos sua referência essencial. O Ecce Homo falará ainda da “proximidade do retorno do espírito grego, da necessidade de Anti-Alexandres, que voltem a atar o nó górdio da cultura grega, após ter sido cortado” (2003, p. 65). Não se trata, evidentemente, de um “retorno” puro e simples ao ideal do sábio da Antigüidade: o retorno ao passado será a ocasião para um salto no futuro. O ideal cristão de homem, o “homem bom”, o santo, ou seja, aquele que se sacrifica pelos outros, que é perfeitamente altruísta e desinteressado, é invertido: este é visto como o homem decadente, doente, malogrado, o mais “nocivo” ao florescimento da vida e do indivíduo. É tarefa dos “filósofos do futuro” não só desmistificar valores, mas também preparar o advento de um novo tipo de homem, de uma nova época: Ensinar ao homem o futuro do homem como sua vontade, como sendo dependente de uma vontade humana e preparar antecipadamente grandes e arriscadas tentativas globais de disciplina e cultivo [Zucht und Züchtung], para com isso pôr um fim a esse pavoroso domínio do absurdo e do acaso, que até agora se chamou ‘história’ (2001, p. 103).

Não há, para Nietzsche, uma “natureza” ou essência do homem, e é por isso que sua subjetividade se desloca continuamente ao longo da história, uma história que até agora teria sido produto do acaso: “o homem [...] é algo informe, um material, uma pedra feia que necessita de escultor” (2003, p. 93). No Prólogo de Assim falou Zaratustra, Nietszche afirma que o além-dohomem é o sentido do homem, pois até agora o homem não teve um sentido; o além-do-homem é o processo de contínua auto-superação do homem, de perpétuo deslocamento de sua subjetividade. É também a tentativa de planificar o futuro humano, realizando conscientemente aquilo que fora feito ao acaso, ou seja, a produção através de procedimentos de disciplina e

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cultivo de tipos superiores e grandes individualidades (LEBRUN, 1978, p. 46 e ss.). A modernidade é encarada por Nietzsche como uma época de dissolução (Auflösungs-Zeitalter), que confunde todas as raças, cujo corpo é marcado por valores e impulsos de diferentes proveniências, valores e impulsos em constante luta uns com os outros. O homem moderno é um decadente, pois vive em meio à anarquia dos instintos e experimenta o estágio final do enfraquecimento da vontade. Ele pertence a uma “cultura tardia e crepuscular” e “seu mais profundo desejo é que um dia tenha fim a guerra que ele é” (2001, p. 98). Esse homem de uma cultura cansada procura a felicidade epicurista, ou seja, a tranqüilidade, o repouso, a ausência de perturbação e sofrimento. Mas esse mesmo enfraquecimento da vontade pode propiciar o aparecimento do tipo oposto de homem, aquele que tem na luta consigo mesmo seu maior estímulo, um estímulo para mais vida. É o homem forte, que se cultiva a si mesmo e, como um estóico, é capaz de exercer soberania sobre si (Selbst-Beherrschung). Com a modernidade, se atinge a culminância de um processo – o niilismo como enfraquecimento da vontade e vontade de nada – que se esgotaria por si próprio, se autosuprimindo, para dar lugar a uma nova cultura.

Eterno retorno e estoicismo A procura de uma arte de viver, na época de Aurora e da Gaia Ciência, dará lugar, a partir de Assim Falou Zaratustra, à busca por um homem trágico, que seja capaz de passar pela prova seletiva do eterno retorno. Com a doutrina do eterno retorno, Nietzsche procura um critério para reconstruir os valores, o que o conduz do estetismo ao vitalismo, pois a própria vida torna-se esse critério de valor, que funciona como discriminante entre as avaliações. A arte de viver torna-se inseparável de uma ética da imanência, no sentido de que uma existência plenamente afirmativa deve justificar até mesmo os aspectos mais problemáticos da vida – o mal e o sofrimento - como necessários. Em contraposição, toda moral que se baseie na oposição entre prazer e desprazer e cujo objetivo seja o fim do sofrimento – tal como o budismo, o epicurismo e o cristianismo – é uma moral decadente. A procura de uma ética da imanência levará Nietzsche a reatualizar o estoicismo. A ética estóica oferece a Nietzsche a matriz de um homem que não precisa renegar seus instintos e a natureza dentro de si, mas os integra e os disciplina através da força plástica da cultura. Segundo Martha Nussbaum (1994, p.139 e ss.), Nietzsche estudou intensivamente os estóicos, especialmente as obras de Sêneca e de Epíteto, que o auxiliaram na luta

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contra a visão cristã de mundo. Não bastava submeter à crítica a moral cristã da renúncia de si, era preciso reconstruir uma ética para opor a essa moral e oferecer uma saída do vazio de valor da modernidade. Assim, Nietzsche tentará reconstruir a ética aristocrática do cuidado de si e da auto-afirmação, cujo modelo passa a ser precisamente o estoicismo do período imperial: “Estoicismo ou cristianismo, aristocracia do indivíduo ou o bem do rebanho”, diz um fragmento póstumo (1999, vol. XI, p. 341). Em seu ensaio sobre a relação entre Nietzsche e o estoicismo, Nuno Nabais afirma que Nietzsche reabilitou a cosmologia estóica na idéia de eterno retorno e pôs novamente no centro da teoria ética as figuras heróicas do destino. Toda a reflexão moral moderna seria ainda caudatária do cristianismo, tornando necessário recompor o sentido autêntico da ética antiga: A afinidade entre Nietzsche e o ideal ético do Pórtico é expressão de uma real identidade de programas – subtrair o agir humano ao universo moral demonstrando a essencial necessidade de tudo aquilo que não depende de nós e no interior do qual se recorta o poder infinito de nossa vontade [...]. Contra o formalismo da moral kantiana e contra os epígonos da teoria do direito de Hegel, na moral da compaixão de Schopenhauer e no utilitarismo de Mill e Spencer, podemos dizer que Nietzsche representa o momento de renascimento das linhas de força das éticas da Antigüidade (NABAIS, 1997, p.154, 155).

Se o cristianismo é a maior expressão da moral como anti-natureza, o retorno ao estoicismo será uma forma de fundar novamente a ética sobre a natureza, isto é, uma ética da imanência. Toda moral utilitarista, que procura evitar o sofrimento, seria uma moral escrava, como o epicurismo, o budismo e o cristianismo. O estóico é aquele que é capaz de disciplinar-se para aceitar o sofrimento como necessário para a vida; com isso, ele afirma o destino e a interligação universal entre todas as causas. O estóico não é um dogmático, ele não precisa crer que o universo seja como o descreve a física estóica, ele pode agir “como se” o universo não pudesse ser senão precisamente assim, isto é, um ciclo que se repete eternamente, uma totalidade orgânica na qual cada parte é necessária, uma rede de causalidade ligando todos os fenômenos entre si. Ele possui o “pessimismo dos fortes”, que permite agir sem a posse da certeza, apenas por hipóteses. Assim, os estóicos antigos concebiam sua física não como dogma, mas como justificação da ética: a compreensão da interligação necessária entre todas as causas tem função etopoética,

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preparando o indivíduo para a disciplina da aceitação do destino (HADOT, 1999, p.187 e ss.). Do mesmo modo, o eterno retorno de Nietzsche não é pensado como um novo dogma ou uma teoria científica, mas como uma hipótese, uma idéia reguladora, que enquanto tal pode ter efeitos sobre a existência: a disciplina do amor fati (“amor ao destino”), inseparável do eterno retorno como postulado prático, terá um efeito transfigurador sobre a existência, ensinando a ver a beleza na necessidade das coisas. Como hipótese sobre a natureza das coisas, o eterno retorno é necessário para afirmar o novo indivíduo nietzscheano, que superou o niilismo e renunciou ao ressentimento e ao desejo de vingança contra a vida. Com o eterno retorno, Nietzsche recupera a idéia estóica do destino, ou seja, da ligação necessária entre todas as causas, para reconstruir a ética após a demolição da história da moral. Deleuze diz que a ética estóica está ligada à afirmação do acontecimento e consiste em “tornar-nos dignos daquilo que nos acontece [...] querer e capturar o acontecimento” (1974, p. 152). O amor fati, a afirmação incondicional do que acontece, se contrapõe, portanto, à resignação cristã e configura uma atitude dionisíaca diante da existência, um dizer-Sim ao mundo e à necessidade: “Sob a égide do eterno retorno, querer será sempre querer o necessário: amor fati. É aqui que está o segredo da superação do niilismo, assim como a dificuldade final da filosofia de Nietzsche: fazer com que coincidam o querer e o destino, a liberdade e a necessidade” (MOURA, 2005, p. 283). Uma virtude essencial para os estóicos é a “grandeza de alma”, apanágio apenas do sábio, mas que deve ser uma busca diária para o filósofo, em sua luta contínua consigo mesmo. Paul Veyne nos informa que, numa de suas cartas, Sêneca conta a reação de Catão ao ser publicamente esbofeteado: não se aborreceu, nem se vingou, tampouco perdoou (como faria o cristão), simplesmente negou orgulhosamente que houvesse sido injuriado, obtendo, no lugar da vingança real, uma vingança imaginária, que lhe permitiu manter o orgulho e a grandeza de alma que o assemelhava aos deuses (VEYNE, 1996, p.130). Este é o modelo da moral nobre de Nietzsche, por oposição ao ressentimento do escravo. Aquele que avalia a partir de si não tem necessidade da vingança, mas sim da disputa, do agon que lhe permite afirmar-se, vencer resistências e superar a si mesmo. O escravo, em oposição, avalia a partir do outro, só é capaz de se afirmar negando o outro e disfarça sua sede de vingança por trás dos ideais de compaixão, abnegação e humildade. Nobre e escravo são tipos que simbolizam formas opostas de avaliar, formas assimétricas (pois apenas o senhor é capaz de criar valores, ao passo que o escravo impotente apenas inverte os valores do senhor), que remetem a modos de existência, à vida ascendente ou declinante.

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O estoicismo, que ensina como ser senhor de si mesmo em toda e qualquer circunstância, mantendo a qualquer custo a constância, a coerência consigo mesmo, é a posição moral antípoda do ressentimento do escravo. O ponto de toque da moral nobre é a aceitação do sofrimento e a renúncia a vingar-se do mundo, a recusa de culpá-lo pelos próprios infortúnios. É nesse sentido que, na sua procura por uma sabedoria trágica, há um trabalho subterrâneo operado pelas teses estóicas no pensamento de Nietzsche. Isto se torna manifesto a partir do momento em que ele redescobre a doutrina do eterno retorno, que é inseparável do amor fati, ou seja, a disciplina da aceitação do destino e da afirmação da inocência do devir: Estado mais alto que um filósofo pode atingir: ter para com a existência uma atitude dionisíaca: minha fórmula para isso é amor fati... - Para isso, devem-se considerar os aspectos renegados da existência não somente como necessários, mas como desejáveis: e não somente como desejáveis com relação aos aspectos até agora aprovados (por exemplo, enquanto complementos ou condições primeiras), mas para eles mesmos, enquanto aspectos mais potentes, mais fecundos, mas verdadeiros da existência, nos quais sua vontade se exprime com a maior clareza (NIETZSCHE, 1999, vol. XIII, p. 492-93).

A coerência absoluta consigo mesmo, essa virtude estóica por excelência, também era necessária para justificar a luta intempestiva de Nietzsche contra seu próprio tempo. Envolve igualmente pensar uma outra concepção de indivíduo, que resulta da prova do eterno retorno: não admitir nada de diferente, nem um único traço, pensamento ou gesto, mas tomar a totalidade da existência individual como necessária. A existência singular funde-se na totalidade. Partindo da tese de que a existência, no seu todo, não pode ser julgada, não é suscetível de avaliação moral, Nietzsche é levado a atualizar a tese estóica, presente em Epíteto, da perfeita inocência do todo, visto como um organismo ou um grande ser: “Partindo dele [o mundo] como um todo: todo bem e todo mal só o são na perspectiva do indivíduo ou das partes individuais do processo; porém, na totalidade, todo mal é tão necessário quanto o bem, o declínio é tão necessário quanto o crescimento” (2005, p. 187). Essa “sabedoria trágica”, entendida como dizer-Sim à vida e aceitação integral do devir, está presente no estoicismo antigo que, segundo Nietzsche, teria herdado de Heráclito “quase todas suas idéias fundamentais” (2003, p. 64). O pensamento do eterno retorno é, portanto, um novo imperativo ético

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dirigido ao indivíduo que se libertou da moral do rebanho: “[...] viver de modo que seja desejável voltar a viver esta mesma vida numa repetição eterna” (fragmento 11(161) de 1880-1884). Conferir a cada instante da existência o selo da eternidade contribuirá para o projeto de forjar a vida como uma obra de arte.

Conclusão Em Nietzsche, a relação com os gregos permite lançar um olhar intempestivo sobre sua própria cultura e sua própria época. Olhar a si mesmo com o olhar do outro: é essa a função que o “retorno” aos gregos desempenha no seu pensamento. Trata-se de uma crítica da modernidade que recorre a um contra-ideal compensatório, evitando compartilhar dos mesmos valores da cultura criticada, para considerá-los de fora. A Grécia antiga serve como alternativa ao auto-rebaixamento do homem na cultura técnico-científica moderna. Contudo, como assinala Marco Brusotti (1992, p.81), isso não significa a pura e simples repetição do helenismo, e sim uma forma de tomar distância da modernidade, ganhando consciência de sua estranheza a partir de um modelo alternativo. Foi o fio condutor do helenismo que guiou Nietzsche pelos labirintos da alma moderna. É ainda esta idéia da Antigüidade como contra-ideal (e não como mito de origem) que guiará autores como Hannah Arendt e Michel Foucault em sua viagem à Grécia. Trata-se de realizar uma crítica dos valores modernos utilizando elementos do mundo antigo como modelo alternativo a uma modernidade que perdeu o rumo: o ideal da vita activa da democracia ateniense, no caso de Hannah Arendt (2005), e a busca pelas “estéticas da existência”, no caso de Foucault (2001). Mas aqui a Antigüidade não é nem fonte originária, nem norma a ser imitada pelo homem moderno. Não há qualquer possibilidade de “retorno” e, portanto, nenhum motivo para nostalgia, como afirmava Foucault um pouco ironicamente: “Toda a Antigüidade me parece ter sido um profundo erro” (1994, p. 698). O estudo da Antigüidade não dá acesso a uma origem ou essência que teria permanecido encoberta, apenas esperando para vir à tona; ele nos permite tomar distância de nós mesmos e repensar o nosso presente, como adverte Jean-Pierre Vernant: Refletindo sobre a Antiguidade, é sobre nós mesmos que eu me interrogava, é nosso mundo que eu punha em questão. Se a Grécia constitui o ponto de partida de nossa ciência, de nossa filosofia, de nossa maneira de pensar [...] explicar historicamente o que se chama

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de o “milagre grego”, descobrir seu porquê e seu começo, é buscar situar nossa própria origem no lugar que lhe corresponde no curso da história humana, ao invés de fazer dessa origem um absoluto, uma revelação ao mesmo tempo universal e misteriosa [...] Esta tarefa científica nos obriga a tomar distância em relação a nós mesmos, a nos observar com o mesmo desapego, a mesma objetividade que teríamos face ao outro e, por isso mesmo, a melhor compreender o que nós somos (VERNANT, 1998, p. 50-51).

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II. SUBJETIVIDADE, PODER E GÊNERO

5. DE BRUXAS E FEITICEIRAS NORMA TELLES

ESTE TEXTO pretende verificar onde se encaixam fatos e figurações da bruxa. Faz também diligências para descobrir algo sobre elas, para precisar fatos e refletir sobre ficções. Pretende espreitar, observar um período específico da cultura Ocidental, o início da era Moderna, e mudar a direção de alguns volteios da dança macabra das bruxas, da festa noturna à qual compareciam voando em suas vassouras. Discorro aqui sobre a questão das bruxas no início da Idade Moderna e algumas representações posteriores. Organizei este texto ao redor de alguns tópicos: um mito, o cenário da bruxaria, a caça às bruxas e, finalmente, uma releitura da figura de uma bruxa muito nossa conhecida.

O mito Originalmente a Senhora Divina, Lilith, era uma deusa sumero-babilônia. Como tal, personificava o que de melhor e de belo há no feminino. Mas, nas religiões centradas num deus masculino, ela passou a ser vista como figura demoníaca, terrível e temível. Conta um mito, conservado na tradição esotérica judaica, no livro do Esplendor – o Sepher Há-Zoar (SICUTERI,1985, p.14) - que, após ter criado o mundo, Deus, no sétimo dia, criou o homem e chamou-o de Adão. Este sentia-se muito só, então Deus criou uma mulher, Lilith. No Paraíso, os dois logo começaram a brigar, porque Lilith se recusava a sempre se deitar por baixo de Adão. Afirmava não haver razão para ser assim, pois afinal era feita do mesmo barro que ele. Adão não cedia a suas solicitações, então, desgostosa, ela decide ir embora: evoca o nome de Deus e retira-se para o Mar Vermelho.

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Embaraçado, não sabendo como agir, Adão pede a ajuda de Deus para acabar com a rebeldia de Lilith. Deus então manda um anjo exortá-la a voltar para casa. Ela se recusa, diz que, depois do que passou, depois de suas vivências, não pode mais voltar. Deus então castiga Lilith. Além de viver exilada, como castigo, a partir de então ela terá de devorar, engolir todos os filhos que lhe nascerem. Como Adão ficou triste sozinho, Deus criou Eva para fazer-lhe companhia. Criou Eva de uma costela de Adão, enquanto este dormia. . O que a história de Lilith sugere é que, na raiz da cultura ocidental patriarcal, a afirmação da mulher, a reivindicação de igualdade, a revolta contra a dominação masculina, assim como a fala feminina – nomear, mitologicamente, significa criar - estão para sempre entrelaçadas e tidas como demoníacas. Excluída da comunidade humana, até mesmo do texto bíblico, a figura de Lilith representa o preço a pagar por tentar uma auto-definição, uma afirmação; amaldiçoada, fica condenada a uma vingança terrível, devorar suas próprias criações. Na cultura judaico-cristã, paralelamente, o feminino, quando se manifestar, será visto como demoníaco. Lilith reaparecerá comandando o cortejo das bruxas medievais e, mais tarde, por exemplo, no Fausto de Goethe (1808) como a rainha do sabá. E continuou personagem da literatura, desde o vitoriano George MacDonald, que a retrata como paradigma da mulher auto-assertiva atormentada, até a contemporânea Laura Riding, em Eve’s Side of It, que a toma como arquétipo da mulher criadora. A questão que Lilith representa tem duplo aspecto. O primeiro é a feminilidade assertiva, flamejante, a recusa da submissão sexual, da subordinação a outro, a afirmação de sua própria sexualidade, a afirmação de si mesma. O segundo é o da mulher criativa e diz respeito, entre outras coisas, à questão da autoria e da autoridade feminina. A mensagem é: uma vida de submissão feminina, de ‘pureza contemplativa’, é uma vida de silêncio, uma vida que não tem uma pena para criar e não tem uma história própria, enquanto a vida de rebelião da mulher, de ‘ação significativa’, é uma vida que precisa ser silenciada, uma vida cuja pena monstruosa conta uma história terrível (GILBERT, GUBAR, 1979, p.36).

Quando os aspectos criativos e positivos são reprimidos, há razão para temê-la: Lilith fica encolerizada com a negação e perversão de sua natureza. Se Lilith foi banida, sua sucessora, Eva, tem estado sempre no centro do palco, vezes sem conta evocada como o motivo da depreciação da mulher,

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como a representação da lascívia feminina, como a causa da queda e do pecado. Há diferenças entre as duas figuras: Lilith, a irmã sombria de Eva, fora criada de um barro semelhante ao de Adão, enquanto Eva saiu de seu sono e foi formada de sua costela. Eva é criação da inconsciência do homem, é parte (costela) em relação ao todo. O homem torna-se pré-condição para a existência da mulher, ele espelha a imagem de Deus, enquanto ela só a recebe como reflexo, através dele e, por isso, também ela deverá servi-lo. “A história psicológica da relação masculino-feminino em nossa civilização pode ser vista como uma série de notas de rodapé ao mito de Adão e Eva” (HILLMAN,1984, p. 194).

O cenário da bruxaria Durante a Idade Média, existiam práticas de feiticeiros, curandeiros, bruxas de aldeia. Tratavam das doenças naturais ou sobrenaturais, dos casos amorosos; podiam fazer benefícios ou malefícios; conheciam as ervas e fabricavam amuletos ou filtros de amor. No meio rural, a preparação dos medicamentos de ervas e a prática obstetrícia eram atividades femininas e as mulheres que a ela se dedicavam recebiam o nome de mulheres-sábias, que ainda hoje é conservado no francês e no inglês, nos quais as parteiras são ditas, respectivamente, sages-femmes e wise-women. Essas mulheres utilizavam alguns preparados, que continuam fazendo parte da nossa farmacopéia, como analgésicos, digestivos e tranqüilizantes; empregavam a ergotina contra as dores do parto, a beladona e, ao que consta, a digitalis, substância utilizada ainda para o coração, foi descoberta por uma bruxa inglesa (EHRENREICH, ENGLISH, 1974). É bom lembrar que, durante a Idade Média, embora fossem legalmente definidas como sujeitos não completos, as mulheres desempenhavam papel importante na administração da empresa doméstica e tinham tarefas múltiplas, devendo estar capacitadas a tomarem conta de tudo, na ausência do marido (POWER,1976). Admitia-se que deveriam ter algum conhecimento de medicina caseira. Assim, conheciam as propriedades de símplices, xaropes, extratos, bálsamos, tinturas. As mais especializadas eram, no meio rural, as curadoras. Esses saberes, as mulheres perderão gradativamente, após o período da caça às bruxas, e suas atividades serão deslocadas para outro setor da sociedade (TOSI,1987).

A Caça às Bruxas No início da modernidade, a essência da bruxaria deixa de ser vista como magia malévola ou benévola para se fixar no pacto com o demônio; a

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bruxaria torna-se heresia desde 1484, quando o Papa Inocêncio VIII publica uma bula fazendo esta qualificação. É por volta de 1430 que se inicia uma intensa perseguição - cujo auge ocorreu entre 1550 e 1650 -, que caracteriza o período como o da caça às bruxas. Depois de meados do século XVII, os processos não se extinguem por completo, mas diminuem em intensidade e credibilidade. Julgamentos espetaculares ocorreram, grandes fogueiras arderam, principalmente na Europa do Norte – Alemanha, Polônia, França, Países Baixos –, enquanto a Europa Mediterrânea presenciou espetáculos mais reduzidos, na Itália e na península Ibérica, onde a Inquisição continuou perseguindo mais aos judeus. Na Inglaterra, onde a caça foi intensa, não se delineou o quadro do sabá característico do continente. Para as pessoas que viveram naquele período, uma bruxa ou bruxo era alguém que podia, através de meios misteriosos, causar um bem ou um mal, curar ou matar outra pessoa; propiciar ou destruir uma colheita ou os animais. Maleficium era o termo técnico. Na tradição literária, os estereótipos distinguem a feiticeira, que aparece como produtora de ervas, feitiços ou como nicromante, da bruxa, que é retratada como mulher velha, que mora sozinha e isolada na floresta; e há também a figura da feiticeira urbana, personificada na personagem Celestina, da famosa história do mesmo nome de Fernando Rojas, a velha alcoviteira, solteira e amarga, cuja feitiçaria amorosa tem um lado benigno e atraente. Na verdade, os termos encobrem uma variedade de práticas, das curadoras aos adivinhos, das maléficas às dispensadoras de prodígios. O recrudescimento das perseguições ocorre num cenário colorido por uma demonização progressiva, gerada pelo medo que, segundo Delumeau (1965), depois do ano 1000, esteve sempre presente e de modo generalizado, devido às guerras constantes, às invasões e às pestes. Por outro lado, a supressão das relações tradicionais, devido ao avanço do capitalismo, modificou o relacionamento entre as pessoas, o que, por sua vez, gerava mais medo. E o medo, progressivamente, foi sendo demonizado. Os historiadores contemporâneos tem discutido exaustivamente as causas desse fenômeno social e, afora as divergências, o que fica claro é que o fenômeno coincide com o período de agitações sociais decorrentes do desgaste do feudalismo, com a introdução de novas formas de relação entre as pessoas e com insurreições camponesas que acompanharam o nascimento do capitalismo. Mudanças econômicas nos séculos XVI e XVII, período no qual a inflação devorou rendas agrícolas e as diárias dos trabalhadores, alteram profundamente a vida comunal. Em conseqüência, multiplicaram-se as formas de comportamento individualista, que, por seu lado, geraram uma culpa que se tornou o fator mais proeminente nas acusações de bruxaria. A

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bruxa acusada tendia a estar moralmente certa, seguindo os padrões tradicionais, e o seu acusador, moralmente errado pelos mesmos padrões, mas não pelos novos hábitos que então começavam a vingar (THOMAS, 1985). No continente europeu, a bruxaria teve uma característica a mais: o sabá, um elemento essencial nos processos. Muchembled (1978), estudando o caso francês, mostra o paralelismo entre a formação do Estado Absolutista e a caça às bruxas. Para instaurar-se, conquistar seu espaço, o Absolutismo impôs a unidade em detrimento da diversidade anterior e para conseguir implantá-la, foi necessário o assujeitamento dos corpos e das almas dos indivíduos. Visava também a eliminação dos agentes transmissores das culturas populares - as mulheres - e o fortalecimento da família nuclear centrada na figura do pai, tido, a partir de então, como o equivalente, no nível da família, da autoridade real que, por sua vez, derivava da vontade divina. A queima das bruxas significou, então, a queima dos símbolos, abusos e vestígios de cultura popular. A cultura popular começou a ser desvalorizada desde o século XVI, acompanhada por uma depreciação dos grupos de mulheres, de jovens e das festas populares. As festas foram ou eliminadas ou cristianizadas, acabaramse as noites movimentadas, povoadas de seres ou prazeres, quando jovens se encontravam depois do trabalho, as noites de serenatas ou de reuniões das mulheres, em conversas ao pé do fogo, nas quais, discutindo as questões da sua vila, trocavam receitas e saberes, tudo o que foi transformado em sabá. O ataque da Igreja e dos poderes instituídos foi a função central da mulher como transmissora de cultura, na mesma época em que ela se tornava rival para juízes, demonologistas e clérigos, que tentavam impor modos e saberes homogêneos, baseados em uma única verdade. Os elementos mais antigos dessa cultura popular foram incorporados pelas elites como traços diabólicos e a estrutura imposta em substituição à anterior, que era horizontal e ambivalente, foi uma estrutura dualista, pessimista, hierárquica e vertical. As mulheres foram, em grande número, acusadas de bruxaria e, em conseqüência, desmoralizadas, ou tiveram que aceitar como espúrios e ilícitos os seus saberes, aqueles que compartilhavam com outras mulheres, na convivência entre mães e filhas, uma geração após a outra. De várias maneiras, as massas camponesas foram aterrorizadas pelas perseguições, pela tortura e pelas fogueiras; foram infantilizadas pela imposição de outra cultura homogênea, alienante e muito distante da sua (MUCHEMBLED, 1978). É certo que, desde o século XIII, visando um maior apreço pelos preceitos da doutrina cristã, os pregadores vinham, com energia, atacando as mulheres como causa de luxúria e pecado. Com o renascimento urbano, a mulher deixa de ser vista como “mãe terra” e sua importância tornou-se menos visível, ao

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mesmo tempo em que sua presença se tornava mais visível. A fecundidade deixada de lado deu lugar à valorização da virgindade. A mulher casta passa a ocupar o lugar central nas representações e a bruxa, inversamente, será a prostituta do diabo. A imprensa difundiu livros e gravuras que mapearam o universo das bruxas e alguns desses livros foram best-sellers na época. Um deles, por exemplo, teve quatorze edições em 14 anos: o Malleus Maleficorum (Martelo das Feiticeiras), de 1486, escrito pelos Inquisidores Sprenger e Kramer. Outro livro muito famoso foi o Demonomanie, de 1580, escrito pelo advogado francês Jean Bodin, um dos homens mais cultos de seu tempo. Os dois títulos são citados até hoje. O Malleus considera que a mulher é bela para se olhar, mas é malévola para tudo que olha, porque é um ser mentiroso cujas palavras são venenos e “porque, sem dúvida, se não existissem as iniqüidades das mulheres, mesmo não falando de bruxaria, atualmente o mundo permaneceria livre de inúmeros perigos”. Isto é, a mulher é sempre vil. Em outro trecho afirma: “O pecado que começou com a mulher, mata a alma (...) por isso, a mulher é um inimigo brando e oculto cuja concupiscência carnal é insaciável.” Ou ainda, “que a mulher é mais carnal que o homem (...) a experiência ensina que para satisfazer essas imundícies carnais tanto sobre si mesmas quanto sobre pessoas poderosas no mundo (...) operam inumeráveis bruxarias arrastando os espíritos para um amor de perdição...(SICUTERI, 1985, p.111-115).

Em Jean Bodin, a mesma fúria contra as mulheres: Leiam-se os livros de todos os que escreveram sobre os bruxos. Encontrar-se-ão cinqüenta mulheres bruxas, demoníacas, para um homem, o que acontece, a meu ver, não pela fragilidade do sexo, visto que se observa uma obstinação indomável na maior parte delas. Aparentemente, é a força da cupidez bestial que eleva a mulher aos extremos para fruir de seus apetites ou para se vingar...” (apud EHRENREICH e ENGLISH, 1974).

A história da condenação da mulher pela Igreja é antiga, mas, nesse momento particular, sugerem Ehrenreich e English, confluem a misoginia, o anti-empirismo e a sexofobia da Igreja com a profissão dos médicos, que se inicia no século XIII e começa a firmar-se como atividade laica e também fará campanhas contra as curadoras de aldeia ou contra algumas médicas

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praticantes que ainda existiam nas cidades. A partir de então, os médicos falavam a partir da Universidade, de onde as mulheres eram excluídas. Durante a caça às bruxas, a Igreja legitimou a profissão dos médicos, já recomendada pelo Martelo das Feiticeiras que declarava: “uma mulher que tenha a ousadia de curar sem haver estudado é uma bruxa e deve morrer”. Tornou-se muito fácil acusar parteiras de serem bruxas, de assassinar bebês durante o parto para seus fins maléficos. “A distinção entre superstição ‘mulheril’ e medicina ‘varonil’ ficou consagrada, portanto, através dos mesmos papéis que representaram médicos e bruxas nos processos da Inquisição” (EHRENREICH, ENGLISH, 1974, p. 20). A tentativa de normatização do comportamento feminino e da sexualidade da mulher, não obstante a violência das perseguições, não se concretizou inteiramente e necessitou do empenho da medicina e das representações dos séculos posteriores.

As bruxas voam para o sabá O que passou a caracterizar a bruxa, no início da modernidade, foi a cerimônia do sabá e o pacto com o demônio. Supunha-se que, em troca de alguma coisa, muito pouco, um pedaço de pão ou uma moeda, como relatado nos processos, uma pessoa, em geral mulher, entregava sua alma ao Diabo, fazendo com ele um pacto de sangue. Tornava-se sua serva, podia cometer qualquer crime que ele lhe exigisse: matar e comer criancinhas, tornar os homens impotentes, as mulheres estéreis, envenenar pessoas e animais, perpetrar toda sorte de delitos sexuais. Podia também voar, deslocar-se rapidamente por grandes distâncias para fazer malefícios ou freqüentar o sabá. E era em seu próprio corpo, em verrugas ou manchas escuras, que estava inscrita/escrita a marca da infâmia. A bruxa estava entregue, de corpo e alma, ao Maligno. Na Idade Média, a idéia de sabá era desconhecida; o termo surge no final do período e se generaliza no século XVI. No sabá, vários elementos se combinam e, em geral, os processos não relatam todos; por isso, a breve descrição que se segue é uma construção ideal que junta vários desses elementos. O sabá era a assembléia noturna à qual as bruxas e os bruxos compareciam, voando enquanto dormiam, para venerar o Diabo e participar de uma orgia. Os dias em que se ajuntam e ficam sinalados são quartas e sextasfeiras; em as quais, dando o relógio dez horas da noite, ou antes, as ditas Bruxas se untam com certos ungüentos que elas fazem das

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confecções diabólicas (...) e untadas, o Demônio as leva pelas janelas ou chaminés [...] levando-as pelos ares, as põe em certos campos (REGO, s/d, p.15).

O ungüento que as bruxas usavam, dizia-se, era preparado com gordura de crianças cozidas em água, aipo e outras folhas. A receita variava, podia incluir fuligem ou gordura de porco, sangue de passarinho, gordura humana, sementes de girassol, raízes de heléboro. Estudiosos contemporâneos retomaram algumas das descrições e prescrições da época e constataram que elas poderiam conter plantas alucinógenas. Algumas das plantas mencionadas pelas bruxas continham atropina, que é absorvível pelo contato com a pele. Os alucinógenos podem também, algumas vezes, provocar a impressão de que o ser humano se transforma em animal (HERNER,1986). A excitação sexual do sabá tinha início, portanto, nos preparativos, no ungüento esfregado nas orelhas, pescoço, axilas, tórax, seios e outras partes do corpo. Em seguida, supunha-se, voavam, em cabos de vassoura, a cavalo, numa cabra, sós ou acompanhadas, e dirigiam-se ao sabá. A descrição desse vôo já se encontra num texto do século X, o Canone Episcopi. “Certas mulheres perversas, tornadas escravas de Satã e seduzidas por imagens e fantasias de demônio, acreditam e afirmam cavalgar nas horas noturnas com Diana, a Deusa dos pagãos, e com Erodiade e uma inumerável multidão de mulheres, sobre certas bestas...(SICUTERI,1985, p.122). Porém, foi somente no século XIV que se difundiu o quadro do sabá. Ao sabá acorriam bruxas velhas e noviças; dançavam, cantavam e veneravam o Diabo, que exigia familiaridade e homenagem, o beijo diabólico e obsceno. Depois dos ritos de submissão, todas relatavam os delitos, as vinganças e os malefícios que haviam perpetrado. E então os demônios em pouco espaço de tempo dormiam com elas muitas vezes, carnalmente, quantas vezes elas queriam e pelo lugar que elas queriam ou traseira ou pela dianteira, e por sua confiança diz que o gosto que eles dão e causam às mulheres é mui grande, sem comparação com os homens. E que têm suas naturas mui compridas e que eles também dormem com moças virgens (...) e provocam a que pequem e durmam com eles e com os mais da sua diabólica seita,

conta o texto já citado da Inquisição portuguesa, em tudo muito semelhante a tantos outros processos por toda Europa. Note-se que as relações da bruxa com o diabo são marcadas pela dor, causada pelas dimensões do

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membro do maligno, ou porque ele lhe morde, pica e chupa o sangue. O pênis do diabo é descrito como grande, torto e gélido; frio, como seu esperma. O prazer da bruxa então é dramático: “Alexia Gragaea confessa, em 1589, que seu amante [o diabo] tinha sempre um membro duro e em ereção, era como o cabo de um tiçoeiro, mas desprovido de testículos” (SICUTERI, 1985, p.132). Anote a lição: dando vazão à lascívia que a caracteriza, a mulher não tem como usufruir sua sexualidade, o que consegue é dor, sangue e arrependimento. Nos banquetes podiam comer criancinhas ou alimentos fétidos. O texto português precisa: “A qual comida, disse e confessou, que lhe fedia muito a enxofre e alcatrão...” A um sinal, todas as bruxas se alinhavam, dando as mãos, formando um círculo para dançar. A roda se movia em sentido anti-horário, exaltando o Mal e as Trevas. As danças descritas assemelhavam-se a carrosséis desenfreados. As bruxas gritavam, soltavam urros, proferiam palavras obscenas em meio a corpos vestidos, ou despidos, seios brilhantes de ungüento e suor. E o sabá prosseguia num incessante frenesi, que culminava na Missa Negra, oficiada sobre o corpo de uma mulher nua, transformado em altar. O encontro só findava quando o Diabo assim o ordenava. Carlo Ginzburg, em vários estudos, mas principalmente em seu livro Storia Noturna, pesquisa e traça uma valiosa contribuição para a compreensão do sabá. Mostra que a representação do sabá foi uma construção erudita, que demorou quase um século para se completar. Uma construção a partir de elementos populares, construção esta que, por sua vez, acabou por influenciar a todos, o que atesta a circularidade dos níveis de cultura. Em Os Andarilhos do Bem, trata de homens e mulheres que, durante os séculos XVI e XVII, eram praticantes de um culto agrário e diziamse protetores das colheitas contra os bruxos, que as queriam destruir. Na época em que começaram a serem perseguidos pela Inquisição, por volta de 1580, não entendiam o que diziam aqueles que os aprisionam, e vice versa. Houve “uma lenta e progressiva modificação, sob a pressão inconsciente dos inquisidores, sobre antigas crenças populares, que por fim se cristalizaram no modelo pré-existente do sabá diabólico” (GINZBURG, 1988, p. 48). Em menos de um século, os andarilhos do bem transformaram-se em bruxos do mal, adquiriram os traços dos odiados personagens que haviam combatido por séculos. Ginzburg (1989) encontra também evidência da existência, durante milênios, em todos os cantos da Europa, de um culto extático feminino dominado por uma Deusa Noturna, que recebia várias denominações: Diana, Erodiade, Madona Oriente - nome dado à deusa da lua, venerada em Milão, no final do século XIV -, Senhora do Jogo, etc. Na Sicília, aparece, na segunda

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metade dos quinhentos, menção à mulheres que se encontravam com as “donas de fora” e com elas saiam à noite, em companhias, banqueteavam-se em castelos misteriosos ou perambulavam pelos prados. As “donas de fora” vestiam-se ricamente, em geral, de preto ou de branco, mas sua origem sobrenatural era denunciada por garras de gato ou cascos de cavalo em lugar de pés. No centro dessas companhias, estava uma divindade: a Matrona, a Maestra, a Senhora Grega, a Sapiente Sibila que tocava enquanto elas dançavam de mãos dadas. Esse imaginário é atestado naquela região até o século dezenove. As “donne di fuori” eram figuras ambíguas, tradicionalmente benéficas, mas prontas para outorgarem malefícios se não lhes fossem prestadas as devidas homenagens. Este culto é análogo a outro, também encontrado na Itália, o das “buone signore”, as boas senhoras, fadas seguidoras do Oriente. Os testemunhos sicilianos fazem emergir um estrato mais antigo, no qual foram se mesclando elementos gregos, celtas, talvez mediterrâneos, que estão nos testemunhos processuais e outros documentos. Por detrás de Diana/ Ártemis, perfila-se Richela, deusa dispensadora de prosperidade, ricamente vestida. Os elementos desses cultos não têm estrutura institucional e, por isso, Ginzbug acredita que somente a mediação diurna, a transmissão oral, poderia tê-los perpetuado. Em última instância, essas idéias derivavam do âmbito euro-asiático, provavelmente das culturas caçadoras e dos cultos xamânicos. O quadro do sabá, seguindo essas demonstrações, parece derivado, então, de um remoto substrato euro-asiático, e não somente da inversão da missa católica, como muitos pensaram. É, sim, um quadro que inverte aqueles antigos ritos das festas das Deusas: as refeições e danças das companhias de mulheres. A comida deliciosa torna-se podre e fétida, as flores e os perfumes são substituídos por descrições de intenso mau cheiro, a alegria e o prazer dão lugar à cópula dolorosa, sempre dolorosa, com o demônio, e assim por diante. A história que um peruqueiro, Jasmim, registrou em livro, em 1840, a partir de uma narrativa oral e rural, e que ecoa acontecimentos ocorridos por volta de 1660 também atesta fatos dignos de lembrança (LADURIE,1983). Uma jovem, Françoneto, crescera numa modesta família de agricultores, que moravam em uma aldeia. E, moça alegre, cheirosa e perfumada, faz com a avó prósperas colheitas. Logo, tornou-se a rainha das festas e das danças em sua aldeia e os jovens se apaixonavam por ela de tal modo que perdem, ao que parece, a força dos braços, tornando-se incapacitados para o trabalho. Pouco a pouco, Françoneto começa a ser vista como uma ameaça para a força masculina e a ser encarada com hostilidade. Surge, então, em cena um outro personagem, o feiticeiro do bosque negro, um desinfeitiçador que se

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tornará também um denunciante. Ele lembra que a moça era neta e filha de huguenotes, isto é protestantes, e de uma avó acusada de feitiçaria. Diz mais, diz que a jovem, ao nascer, havia sido entregue pelo pai ao Diabo e, portanto, quem com ela se casasse, morreria na noite de núpcias. Estigmatizada, a moça passa a ser cada vez mais boicotada por seus vizinhos. Ninguém mais duvida, ela é uma bruxa. Iniciam-se os preparativos para seu linchamento. No entanto, um de seus apaixonados decide arriscar, casa-se com ela e não morre. Fica provado que Françoneto não é bruxa. Tudo termina bem. Através do casamento, a moça alegre que gostava de dançar, por quem todos se apaixonavam, é enquadrada. Nos séculos seguintes, através de muitas imagens orais ou literárias que retratam a bruxa ou a mulher má - sua equivalente -, a alegria será rebaixada à frivolidade. A sensibilidade alegre será diminuída como prostituição ou sentimentalizada e maternalizada. A vitalidade foi curvada pelo peso de obrigações e deveres e tudo isso gerou filhas de Lilith enraivecidas, porque frustradas.

O mundo domesticado Estabilizada a sociedade, anulados, na medida do possível, os particularismos, durante todo o século XVIII, pode-se constatar uma ofensiva cultural da burguesia, que se apropria dos saberes das mulheres, dos artesãos e dos camponeses, dos saberes orais, vindos de tempos imemoriais, e que, ao codificá-los e transcrevê-los, tentará formulações precisas, mas que alterarão e empobrecerão os conteúdos. Esse processo de homogeneização cultural e a coleta sistemática de “pequenos discernimentos” supriram as novas formulações da época moderna e tornaram a experiência cada vez mais mediada pelos textos, pelo literário. “O romance forneceu à burguesia um substituto e, ao mesmo tempo, uma reformulação dos ritos de iniciação - isto é, o acesso à experiência em geral” (GINZBURG,1986, p.182). As personagens femininas criadas pela literatura masculina, no século XIX, são polarizadas entre dois extremos, como chamou atenção Virginia Woolf: o anjo e o monstro/ bruxa, dito de outro modo, aquela que segue as artes de agradar aos homens e vive uma vida de auto-sacrifício e contemplação, sem uma história própria, e aquela que tenta uma afirmação e é monstruosa. A ambigüidade e o conflito entre o anjo e o monstro, entre o anjo e a bruxa foram repensados por algumas escritoras. O assunto é complexo e extenso, por isso, para uma reflexão final, proponho que nos detenhamos na re-leitura que Gilbert e Gubar (1979, p. 36-44) fazem de uma bruxa bem conhecida de todos, a Rainha da história de Branca de Neve.

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O conto se inicia com uma rainha sentada, costurando, perto de uma janela, durante o inverno. Ela pica o dedo na agulha, isto é, entra em contato com a sexualidade. Em seguida, dá à luz uma criança, Branca de Neve, e morre. A madrasta, na primeira vez em que surge na história, está emoldurada pelo espelho, como a Rainha havia estado pela janela; a passagem de uma à outra mostra que a boa rainha estava enquadrada pelo exterior, enquanto a má está empenhada na busca interior, aquilo que os psicanalistas denominam narcisismo, mas que aqui significa mais um estado no qual já não se tem nenhum projeto. O conto gira em tomo da obsessão com o espelho, isto é, do conflito mãe/filha, mulher/mulher, mulher/auto-definição. O rei fazia parte do projeto da primeira rainha e o fato de desaparecer ou só aparecer como a voz do espelho significa que, ao assimilar sua sexualidade, a mulher interiorizou as regras. Gilbert e Gubar entendem que o ódio da Rainha má por Branca de Neve existe antes mesmo do espelho fornecer uma razão para isso, provém do conflito interno entre o anjo, a doce, meiga, casta e ignorante Branca de Neve, e a bruxa, uma mulher rebelde, criativa, que conhece sua sexualidade e com grande energia tenta destruir a nulidade que significa a primeira. O que ela está tentando matar é a Branca de Neve, a docilidade e submissão, dentro dela mesma. Adulta e demoníaca, a madrasta é uma tramadora, inventora de enredos, auto-absorta como todos os criadores. A primeira trama que elabora para matar a inocente tem como personagem o caçador, claramente substituto do pai. Por isso mesmo, ele preservará Branca de Neve, levando para a Rainha má o coração de uma fera. Tolice solicitar ao representante do patriarcado que execute a ação de destruir o anjo. E a madrasta é enganada, acaba devorando sua raiva bestial e, por isso, fica ainda mais enlouquecida. Ela então inventa mais três tramas para se desfazer da inimiga, empregando sempre uma atividade ou um instrumento feminino, parodiado ou envenenado, como arma letal. O resultado nos faz ver que, do ponto de vista da assertiva Rainha, as artes femininas, na sociedade patriarcal, matam. Branca de Neve, antes de ceder à tentação e comer a maçã envenenada que a bruxa lhe oferece, viveu um período na casa dos sete anões, durante o qual aprendeu a ser o anjo do lar: aprendeu a cozinhar, lavar e arrumar a casa para eles. Isto mostra a perspectiva da história em relação à mulher. Demonstra que “o reino da domesticidade é um reino miniaturado no qual o melhor da mulher não só é como um anão, mas que ela própria é a serva do anão” (GILBERT, GUBAR, 1979, p. 40). A Rainha-Bruxa e Branca de Neve são, na realidade, uma mesma pessoa, a primeira tentando livrar-se da Segunda, enquanto esta tem de lutar consigo mesma para não ceder às tentações que a bruxa, isto é, a mulher cheia de

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energia, artes e ambição, faz ecoar dentro dela. Tendo aceitado a maçã, a jovem adormece e é colocada em um caixão de vidro, exposta à visitação. Torna-se a encarnação precisa do desejo patriarcal da mulher: uma estátua muda. Branca de Neve é a rainha perfeita para o patriarcado e, por isso, acaba regurgitando a maçã, quando o príncipe a beija. Sai do caixão para enquadrarse na janela do palácio, como esposa do rei. Dali pode, como antes dela sua mãe, contemplar o inverno lá fora, ou olhar para dentro e começar a tramar. A bruxa, sem lugar nesse mundo, dança sobre a fogueira uma tarantela terrível, uma dança da morte. E é Branca de Neve que a substitui, recomeçando o mesmo ciclo. O percurso deste texto, do mito de Lilith à Rainha Bruxa, nos mostra, acredito, que é preciso rever não só a documentação histórica como também as representações, as imagens que ainda hoje nos assustam, mas que continuamos a passar para nossas filhas e filhos. Lilith continua exilada e o lúdico, a alegria, o sensual, antigamente presentes entre as “donas de fora” ou as fadas, permanecem também no exílio. Como disse Tosi, “as fogueiras continuam a arder, em fogo lento” e, sobre elas, rainhas continuam encenando sua tarantela mortal.

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O UNIVERSO feminino surge como uma incógnita a ser desvelada, desafiadora e instigante. As estratégias utilizadas pela mulher para adquirir visibilidade social e conquistar seus direitos vêm, cada vez mais, se fazendo presentes na vida política e na produção historiográfica. Todavia, a análise sobre as formas como elas recusam ou questionam os papéis que lhes são impostos ainda é recente. Entre as interpretações que se debruçam sobre o tema na Antigüidade, não raro, observamos duas tendências. Uma busca esboçar um perfil feminino dependente e submisso ao elemento masculino (VEYNE, 1989; FINLEY,1991), outra investiga as brechas encontradas pelas mulheres para alcançar importância social e certa “autonomia” (GRIMAL, 1991; FUNARI, 1989; OMENA, 2001). Mas ainda parece predominar na historiografia uma aceitação tácita dos pressupostos da autoridade do pai ou do cônjuge sobre a mulher no mundo antigo. Já a literatura que se ocupa de temática similar na Modernidade tende a abordar a mulher como um sujeito social independente que busca se livrar dos estereótipos. Algumas dessas interpretações tendem a negar a naturalização do sentido da maternidade, a ratificar a liberdade de escolha da mulher e a fortalecer a perspectiva de sua permanente recusa à ordem instituída, colocando sob suspeição qualquer análise que reafirme indícios da submissão feminina ao corpo ou aos padrões sociais, principalmente, após a eclosão da denominada “revolução sexual” dos anos 60 do século XX (SANTOS, 2005). Contudo, um olhar mais acurado sobre essas questões pode surpreender os investigadores. Diante dessa perspectiva, torna-se pertinente a realização de um estudo semiológico da adaptação da tragédia grega Medéia, de Eurípedes (480-404

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a.C.), realizada por Oduvaldo Vianna Filho (1936-1974) e exibida na televisão brasileira em 1972. A análise desse enredo do teatro universal possibilita o entrever da intricada rede de micropoderes que envolvem os dispositivos sobre o corpo feminino na Antigüidade e na Modernidade, permite desvendar a complexidade dos papéis sociais culturalmente cristalizados e detectar tanto o aprisionamento dos sujeitos quanto sua capacidade de autonomia individual (FOUCAULT, 1986). Não obstante, antes de propor um mergulho na trama supracitada, faz-se necessário uma abordagem acerca do contexto sociocultural e político no qual a Rede Globo insere, na sua grade de programação Medéia e outros clássicos universais como Mirandolina, Noites Brancas, Ratos e Homens e A Dama das Camélias.

Arte, política e censura no Brasil A despeito das pretensões revolucionárias das organizações políticas de esquerda, a reviravolta institucional resultante da instauração do governo militar no Brasil em 1964, impôs alterações nos rumos da produção cultural no país. Diante da impossibilidade imediata da transformação social brasileira, os artistas que partilharam projetos voltados para a valorização da “arte nacional popular” e da “arte popular revolucionária” se depararam com um profundo processo de autocrítica e de realinhamento de propostas (PELEGRINI, 2004, p. 56-57, 59-60). A promulgação do Ato Institucional número 5, promulgado pelo regime militar em 1968, contribuiu para intensificar as ações repressoras do Estado, justificadas pela necessidade de se restabelecer a ordem democrática no país. Por ele foi outorgado ao presidente da República o poder de fechar o Congresso Nacional e intervir nos estados e municípios, promover a cassação de mandatos e suspender direitos políticos, demitir ou aposentar servidores públicos; além disso, foi suspenso o direito ao habeas corpus aos indivíduos acusados de atentar contra a segurança nacional e a ordem econômicosocial e ainda se estabeleceu a censura aos meios de comunicação. Tais medidas arrefeceram o discurso militante, no qual se ancorava a “arte engajada”, e fragilizaram diversas esferas da produção cultural, lesadas pela censura federal que impunha cortes aos textos de peças teatrais e composições musicais, bem como os roteiros de filmes e impedia a execução de espetáculos, shows e outras formas de expressão (KHÉDE, 1981; PELEGRINI, 2000a). Alguns artistas, porém, se mantiveram fiéis à idéia de promover a dramaturgia política, visando a legitimar não só as produções nesse campo, mas também a proposta do Partido Comunista do Brasil, que insistia na campanha pacífica em prol das transformações sociais (PELEGRINI,

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2000a). Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha, responsável pela adaptação de Medéia para a televisão, além de apoiar a linha de argumentação do PCB, via na televisão um meio de popularizar a dramaturgia universal e atingir um contingente maior de espectadores. Não obstante, as modificações no quadro econômico, geradas pelas medidas modernizadoras acionadas pelo Estado autoritário, colocaram a produção cultural diante de profundos entraves ideológicos, organizacionais e econômicos.

Os clássicos da literatura na TV brasileira A inserção de obras-primas do repertório universal na programação da Rede Globo se inseriu no contexto do “Milagre Brasileiro”, pautado pela implementação de uma política monetarista altamente inflacionária e pela intervenção do Estado na economia. Esse plano econômico viabilizou um crescimento acelerado e artificial sustentado por sistemas de créditos e subsídios governamentais, obtidos através de empréstimos internacionais (CHAUÍ, 1986, p. 47, 49, 85). Do ponto de vista da emissora que mantinha relações estreitas com o governo militar, a iniciativa de promover a adaptação dos clássicos evidenciava também a disposição de criar um projeto cultural “universalizante”, assentado no circuito da internacionalização da economia brasileira e na idéia da suposta “democratização das oportunidades”, tão decantada pelos tecnocratas da educação. No entanto, não se tratava mais da simples adaptação de peças para a TV, como ocorrera anteriormente na TV Tupi, mas sim da tentativa de “transplantar os enredos originais dos clássicos para o contexto brasileiro do século XX” e de desenvolver “um estilo televisivo exclusivamente nacional na expressão e popular na intenção” (BETTI, 1997, p. 273). Para Vianinha, esse aspecto contemplava duas questões nodais: a expectativa da tragédia assumir uma significação plena no campo da criação voltada para o popular e a possibilidade de, através dessa dramaturgia, viabilizar a elucidação e a interferência na realidade brasileira (1974, p. 161-173). Cumpre lembrar que a adequada acepção de tragédia se distancia um pouco da forma como a ela aludiu o dramaturgo. A apreensão desse gênero teatral implica a percepção do “trágico” como uma visão de mundo específica, mediada por princípios filosóficos e estéticos singulares. Logo, a tragicidade, longe de ser definida por um conceito único, apresenta elementos característicos, como enredos redigidos em forma de verso e tramas que reúnem personagens ilustres ou heróicos que, via de regra, terminam

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envolvidos em acontecimentos fatais. Aristóteles definiu a tragédia nos seguintes termos: “a tragédia é a imitação de uma ação de caráter elevado e completo [...] é feita por personagens em ação e não por meio de uma narrativa, e que, provocando piedade e temor, opera a purgação própria de semelhantes emoções” (apud PAVIS, 1999, p. 415). Na tragédia grega, em particular, o “sujeito da ação trágica, o que está enredado num conflito insolúvel” aparece cônscio de toda a problemática e sofre tudo de forma consciente. A “prestação de contas é um dos elementos constitutivos” da trama; por isso, as personagens exprimem amiúde em suas falas “os motivos de suas ações, as dificuldades de suas decisões e os poderes que as cercam” (LESKY, 1976, p. 26-27). Com efeito, deve-se reconhecer que a inserção dos clássicos da literatura universal na grade de programação da Rede Globo, como “Casos Especiais”, representou um espaço aberto para a experimentação no campo da teledramaturgia e a busca de um processo narrativo mais conciso, diverso da telenovela, que naquela época já vinha conquistando o gosto da audiência.

Entre a paixão arrebatadora e a obstinada vingança Eurípedes, reconhecido pelos especialistas como um dos maiores autores trágicos da Antigüidade e como um expoente da dramaturgia universal, modela seus personagens mediante uma intrínseca dualidade, manifesta pela ambição de lhes elevar o espírito ou de enredá-los no ardor das paixões. A partir desses dois vetores, o laborar maquinal do poder se expressa pela “consciência de visibilidade” da trama, na qual são desveladas as características dos poderes instituídos na sociedade e manifestos por intermédio de expressões discursivas subordinadas à cultura na Antigüidade. Mas, se as proposições de Foucault (1986) forem tomadas como referência, pode-se inferir que as redes de micropoderes e os sistemas de disciplinamento dos corpos perceptíveis nos meandros dessa obra estão relacionados à dinâmica social referida no enredo e à consciência que os personagens e/ou sujeitos têm de si. Destarte, essas redes de relações constituem resultados peremptórios dos padrões comportamentais instituídos na esfera pública e privada, cujas expressões se mostram historicamente mutáveis e artisticamente representadas. Medéia, como a maioria das peças do gênero, abrange uma temática mitológica que envolve deuses, semideuses e heróis da Antigüidade. Relata a lenda de uma mulher sagaz, tomada pela paixão e pelo sofrimento. Filha de Aetes, rei da Cólquida (Costa do Mar Negro, atualmente, a Geórgia), Medéia fugiu com Jasão, chefe dos argonautas (tripulantes lendários da nau de

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Argon), quando, graças a sua astúcia e habilidade, ele se apossou do “Velo de Ouro” – lã do carneiro alado que transportara Frixo, jurado de morte pelo próprio pai. O argonauta, nascido em Iolco, na costa meridional da Tessália, fora criado pelo centauro Quíron, nas montanhas do Pélio, pois seu pai, Eso, fora expulso do trono de Iolco pelo seu meio-irmão, Pélias. Quando, porém, Jasão atingira a idade adulta, regressara à terra natal para reclamar o trono de seu pai. Em desafio, o então Rei Pélias, convencido de que o mesmo sucumbiria na aventura, exigira que Jasão lhe trouxesse o “Velo de Ouro” de Cólquida. Entretanto, instruído por Medéia, ele saíra vitorioso. Ela o prevenira para que lançasse uma pedra no meio dos gigantes guardiões do “Velo de Ouro”; essa pedra teria o condão ou a força sobrenatural de os enfurecer, a ponto de se aniquilarem mutuamente (EURÍPIDES, 1976, p. 13 e 32). Jasão regressaria com o “Velo de Ouro” e traria consigo Medéia, que, apaixonada pelo herói, fugiria da casa do pai, o rei Aetes. Na companhia do amante, Medéia persuadiu as filhas do rei Pélias a fazer o pai ferver num líquido mágico, sob o pretexto de que o soberano rejuvenesceria. Após a morte de Pélias, Medéia e Jasão foram expulsos do reino de Iolco e depois acolhidos pelo rei de Corinto, Creonte. Tomado pela ambição, Jasão não tardou a trair a concubina e a abandonar os filhos, desposando a filha de Creonte, herdeira da coroa de Corinto. Ultrajada, Medéia manifestou seu desejo de vingança e maquinou sua desforra. Em sua dor e desgraça, não poupou sequer os filhos – frutos de sua junção carnal com o argonauta - e atingiu o Rei Creonte e sua filha. O comportamento inicial da protagonista, que abandona a família para seguir seu escolhido era visto como uma traição na Antigüidade, pois o tálamo garantia alianças entre as famílias aristocráticas e a “continuidade” da cultura dominante (FUNARI, 1989). No entanto, Eurípedes, ao atribuir essa atitude a Medéia, aludiu à ousadia de uma mulher que rompeu com o papel social que lhe era reservado e reagiu à vontade do seu pai. Essa situação dramática pode ser apreendida como uma “estratégia de afirmação social” viável no mundo antigo, no qual o poder do pai sobre a filha era praticamente incontestável, mas o poder do cônjuge apresentava brechas para a atuação feminina (OMENA, 2001, p.71). Essa conduta da protagonista na versão brasileira também seria julgada inadequada aos padrões morais da sociedade ocidental, na década de 1970, uma vez que a personagem subjugaria a autoridade do pai e transgrediria a ordem moral conservadora ao amasiar-se com Jasão (PELEGRINI, 2000, p.130-147). Em termos estéticos, a construção da trama se dá de maneira uniforme e apresenta eloqüente oratória, maldições e pragas. Mas carrega sutilezas

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que, cotejadas ao tom sarcástico, evidenciam uma singularidade pouco comum às obras daquela época. Como se sabe, as tragédias helênicas normalmente comportam algumas partes dialogadas e outras cantadas, por vezes acompanhadas pelo som de flautas. Estas partes consistem em estrofes, épodos, antístrofes, nas quais o coro tece comentários morais, discordantes ou não em relação às atitudes da personagem referida na cena. No caso de Medéia, o coro questiona a eqüidade das atitudes da protagonista. Há que se notar que a uniformidade do texto é interrompida a partir da performance da figura central, que “ora explode em lamentações selvagens, ora se fecha em silêncio”, aspecto que torna a ação dramática mais dinâmica (LESKY, 1976, p. 171). Aliás, a retórica das lamentações e a pouca sensibilidade das personagens, expressa em diálogos e/ou monólogos que perpetuam horrores – uma das características da tragédia grega –, aparecem atenuadas nessa obra devido aos elementos psicológicos e às indecisões que norteiam as ações da figura principal. Transformada em assassina por Eurípedes, Medéia surge como uma personagem enigmática que, sobretudo, esquiva-se da submissão imposta como padrão de conduta à mulher na Antigüidade, mas encontra-se cindida entre o amor-próprio ferido e o sentimento materno.

Do hieratismo clássico às expressões populares A adaptação de Medéia, realizada por Vianinha para televisão também apresenta uma protagonista dividida entre o amor que nutre pelos filhos e o desejo de vingança contra o ex-companheiro. Contudo, a tragédia, ambientada num conjunto habitacional do Rio de Janeiro, incorpora músicas de escola de samba, rituais de candomblé e outros elementos ligados às crenças populares (VIANNA FILHO, 1974, p. 161-173). A Medéia brasileira, tanto quanto a protagonista grega, mostra-se voluntariosa e apaixonada e também fugira com Jasão sem o consentimento da família. Mas depois, como o marido a abandonou para unir-se oficialmente a outra mulher – filha de Creonte, presidente da escola de samba local –, projetou uma surpreendente punição para aquela que pretendia desposar Jasão. A desforra, marcada por um crescente pavoroso, atinge também o pai da noiva e seus próprios filhos. A versão brasileira do clássico apresentada na série Casos Especiais, pela TV Globo, em meados de 1972, foi subdividida em quatro blocos: o primeiro deles esboça a traição de Jasão e a tentativa de Santana Creonte de expulsar Medéia da sua área de influência; no subseqüente, Medéia começa a tramar sua vingança; no terceiro, são encenados os preparativos para a cerimônia do casamento e a aparente rendição de Medéia; e, no último, é

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anunciada a morte de Santana Creonte e de sua filha Creusa, enquanto a protagonista realiza o filicídio e, em seguida, se suicida. Na adaptação, algumas personagens foram suprimidas ou cambiadas. A serva Aia e o preceptor foram substituídos por Dolores e pelo motorista de táxi. Ambos se compadecem do sofrimento de Medéia e têm uma permanência cênica efêmera. Já o coro e a Coriféia desapareceram do enredo, apesar de constituirem um recurso largamente utilizado no teatro antigo. O perfil dos personagens também foi alterado, tendo-se em vista uma maior identificação com o telespectador: Medéia, na adaptação, é uma rezadeira ou mãe-de-santo, Jasão é um compositor de música popular pouco conhecido e Creonte é um mandatário local e presidente da escola de samba. Ao seu nome é acrescentado Santana, provavelmente, para aproximá-lo mais da realidade brasileira. Curiosamente, as figuras masculinas são apresentadas de maneiras distintas: Jasão não assume a tarefa de provedor, posto tradicionalmente destinado aos pais de família, e Creonte personifica o poder, além de exercer a dominação local, suas ações envolvem clara tirania sobre o corpo feminino das mulatas que são escolhidas para representar a escola de samba, da filha que deverá se casar com o homem que ele escolheu, e de Média, que será expulsa da comunidade. No âmago dessa nova ambientação do enredo, é possível observar algumas inversões no padrão predominante de família, embora se percebam distinções de gênero que conferem aos homens autoridade sobre as mulheres. Nota-se que o perfil atribuído a Medéia não se ajusta aos “papéis femininos tradicionais”, como o de mãe e dona de casa; ela tampouco apresenta a candura ou a aptidão inata à maternidade – virtudes que expressariam sua “feminilidade” (BASSANEZI 1996, 1993, p. 112). Ao revés disso, o personagem é construído como uma mulher forte e corajosa que fora uma amante ardente na juventude e que na maturidade adquirira certa respeitabilidade na comunidade onde vivia, em função dos seus supostos saberes medicinais e poderes sobrenaturais. As características relacionadas à “feminilidade” foram justamente atribuídas a Creusa, aquela que desposaria Jasão. Vale lembrar que essas representações dos sujeitos resultam de definições desistoricizadas e de um conjunto de normas sociais concebidas como naturais e aplicadas a todas as classes sociais. Não raro, tais valores e interpretações são contestados pela literatura que trata o tema e por movimentos que, pela “necessidade política”, tendem a “falar enquanto mulheres e pelas mulheres” (BUTLER, 1998, p 35). Medéia adquire maior individualidade na versão brasileira, talvez, como expressão do conceito de sujeito na Modernidade. Seus dilemas apresentam-

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se mais complexos e, na esfera existencialista, tornam-se mais suscetíveis aos traços da personalidade individual (SENNETT, 2002). A modelagem dos sentimentos tende a adquirir maior mobilidade no mundo moderno do que na Antigüidade.

Os meandros da tragédia anunciada A ira de Medéia intensifica-se quando Creonte decide despejá-la de sua casa (na versão brasileira), ou arrancá-la do palácio, expulsando-a do reino de Corinto (no texto original). Naquela versão, ao som de uma batucada que vai aos poucos se exaurindo, ela é levada à força à presença de Santana Creonte e intimada a deixar a comunidade junto com seus filhos. Todavia, irreverente e dissimulada, mostra-se frágil e pede mais um dia de prazo para deixar o conjunto habitacional.Assim, mascara as suas verdadeiras intenções e, aparentemente, se submete ao domínio do mandatário local. No original, o diálogo travado entre Creonte e Medéia recebe um tratamento mais racionalista e não escamoteia os interesses políticos e as alianças familiares que estavam por trás daquele enlace matrimonial. Mais uma vez, Eurípedes inova quando concede à protagonista um perfil psicológico pouco comum no teatro grego. Tal procedimento pode ser percebido na reflexão que a própria Medéia realiza de sua trajetória frente a Jasão: [...] Salvei-te, como sabem todos os gregos que embarcaram contigo no Argo. [...] Eu mesma traí o meu pai, a minha casa e vim contigo à cidade do Pélio, em Iolco, mais apressada que prudente. Fiz sucumbir Pélias da morte mais cruel, pela mão das próprias filhas, e desembaracei-te de qualquer temor. Eis os serviços que te prestei, ao mais celerado de todos os homens. Depois me atraiçoaste, tomaste posse de novo leito, tu que geraras filhos! Se não fora isso, ainda terias desculpa de cobiçar o novo tálamo. Mas que é feito dos teus juramentos? (EURÍPEDES, 1976, p. 31-32).

A protagonista brasileira, num tom mais intimista, embalada pela melodia de um bolero e sob um enquadramento em plano médio, que vai se fechando até o close, relembrou toda a sua saga nos seguintes termos: Você pensou em mim? Eu deixei minha casa execrada por meu pai, meu irmão e minha família toda. Ti dei dois filhos. Você não fez legal a nossa união e eu aceitei, cega de confiança porque nós

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íamos esperar dias melhores. E trabalhei por você. Agüentei, ali... os teus desânimos, tua vacilação. Você perdeu vários empregos, ganhando uma miséria por aí, tocando violão. E eu ali... trabalhando, trabalhando, trabalhando... Você ficou doente durante seis meses numa cama. E eu ali... na tua cabeceira. Minha pele secando, meu corpo murchando... E eu ali firme, agüentando tudo. Paguei a tua roupa. Paguei para você comprar o direito de gravar o seu primeiro disco que só nós ouvíamos e mais ninguém. E se eu não tivesse filhos com você, Jasão, você poderia ir embora que eu estava pouco me incomodando... Porque um homem que não é capaz de manter na fortuna um amor que o ajudou na desgraça é um fraco. Não merece missa (VIANNA FILHO, 1972).

Nas duas versões, a fala da protagonista explicita o seu lamento pelo fato de o amásio não ter assumido o papel de provedor da família, nem legalizado a “união” deles – aspecto que, do ponto de vista de Medéia, talvez lhe conferisse algum direito. Ademais, não admite a traição, pois lhe havia gerado filhos, garantido sua descendência. Tais motivos, do ponto de vista da personagem, tornavam justa a sua vingança: “Eu vou até onde o meu ódio me levar ou até onde eu levar o meu ódio” – balbucia.

O desvelar do desagravo Mergulhada no infortúnio, embora aparentemente conformada diante dos desígnios que o destino lhe reservara, Medéia coloca em curso o seu plano de vingança. Muito sagaz, ela procura reconquistar a confiança de todos, mostrando-se resignada diante do sucedido e convence Jasão a receber os filhos na festa do enlace matrimonial, carregados de mimos destinados à jovem esposa. No original, ela a presenteia com um véu fino e um diadema de ouro cinzelado. Na versão brasileira, envia doces para a noiva e para o pai dela. Realizado o casamento, os noivos deixam a igreja da comunidade sob o badalar dos sinos e uma chuva de pétalas de flores. Quando a cena se reporta à festa, Creusa recebe dos filhos de Jasão a encomenda de Medéia. Prova os doces e começa a passar mal (close). Em seguida, seu pai também dá sinais de envenenamento (plano médio). No quarto e último bloco, o infortúnio é anunciado pelos quatro ventos: Veneno, veneno [...] Santana e a noiva foram envenenados no meio da festa, no meio da festa de casamento. No meio de uma

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alegria que eu nunca vi. Creusa começou a passar mal. As mãos no estômago, na garganta... Pálida, suando... De repente também Santana pálido, suando, estende os braços como se quisesse agarrar um resto de vida que sobrasse [...] Os olhos saltando das órbitas. Um grito preso na garganta... Foi terrível. Caíram os dois sobre a mesa. Dizem que foi Medéia. Medéia, sim! Veneno! Mataram Santana e a noiva. Veneno! (VIANNA FILHO, 1972).

No texto de Eurípedes, a descrição da morte da princesa e de seu pai demonstra maior densidade dramática e riqueza de detalhes: [...] Um duplo flagelo a torturava: a coroa de ouro na cabeça expelia uma prodigiosa torrente de fogo devorador, e os véus levíssimos, presente dos enteados, mordiam a carne branca da infeliz. Foge, após levantar-se do trono, esbraseada, sacudindo o cabelo em todos os sentidos, a fim de expulsar o diadema, mas o ouro continua fixo na cabeça, como se ali fora soldado, e o fogo (quando ela oscila com mais força o cabelo) redobra de esplendor. Cai por terra, vencida do infortúnio, inteiramente irreconhecível [...] Ora, o pai, coitado!, na ignorância da catástrofe, entra de súbito no aposento, lança-se sobre o cadáver, geme, envolve-o com os braços e beijao [...] Ao finalizar os seus lamentos e soluços, quer endireitar o corpo alquebrado, mas este adere, como a hera nos ramos do loureiro, aos finos véus, e é uma luta terrível. [...]Finalmente renuncia e dá a alma, pobre homem, pois o mal é mais forte do que ele. Jazem mortos, a filha e o velho pai, lado a lado. Que lágrimas não merece o seu infortúnio! (EURÍPEDES, 1976, p. 63-64).

O desfecho do drama, em ambas as encenações, se dá mediante o filicídio cometido por Medéia. Todavia, com uma significativa diferença. No primeiro, a protagonista acaba se exilando e fica subentendido que se casaria com o rei de Atenas, o soberano Egeu, a quem garantiria descendência. No mundo antigo, a procriação era considerada um “poderoso instrumento de afirmação” feminina (OMENA, 2001, p.71). Logo, apreende-se porque Medéia foi poupada do peso dos homicídios e ainda obteve vantagens em nome de sua fertilidade, quais sejam o casamento legítimo com o rei e a manutenção de sua liberdade. Na versão de Vianinha, a personagem não suportaria a dor de ter assassinado os próprios filhos e se suicidaria. Esse desfecho reservado à protagonista, por certo, foi considerado o mais ético de acordo com os padrões

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da sociedade ocidental e atendia as exigências austeras da censura na década de 1970. O gládio projetado para as crianças pela própria mãe seria inadmissível na adaptação e não seria justificado pela traição do amásio, muito pelo contrário, os atos de Medéia mereceriam a morte como punição. Definitivamente, o infortúnio da Medéia brasileira seria esboçado ao longo do enredo mediante a sua subserviência ao poderio do mandatário local, a freqüente exposição da personagem à injustiça e à humilhação a que eram submetidos os pobres. O ponto nodal da trama se mantém centrado na traição do companheiro, mas o foco da adaptação realizada por Vianinha foi deslocado para contradições cotidianas de uma comunidade carente da periferia do Rio de Janeiro. As imagens exibidas nas cenas não escamoteavam a falta de acesso aos equipamentos urbanos, à saúde e ao saneamento básico. A recorrente alusão aos saberes curativos populares por meio do uso de ervas e descarregos e também o registro do logradouro, do paupérrimo casebre de Medéia ou do lugar ermo onde ocorreram as mortes revelavam um Brasil bem diferente daquele projetado pelos governos militares que se sucederam. O país desenvolvido e próspero não estava ali representado. Como inferiu Maria Helena Dutra (1979), o trabalho efetuado pelo dramaturgo, “mesmo no pior período de férrea censura”, evidenciava que a televisão admitia a “inteligência”. Vianinha – complementaria a crítica – “sem fazer comícios ou querer brigar na área do impossível e do proibido”, conseguiu realizar um trabalho no qual, “sob o manto da peça e do mito grego”, mostrou “com força a realidade do país e desenhava sem paternalismo ou arquétipos o perfil de seus oprimidos e contraditórios habitantes”. Assim, o dramaturgo acabava discutindo um dado perfil da população pobre e advertia que, de uma forma ou de outra, eles apresentavam uma capacidade de reação ao que lhes era imposto. A postura e o gestual assumidos por Medéia, personificada pela atriz Fernanda Montenegro, seriam reveladores nesse sentido e representariam a disposição da protagonista de enfrentar com coragem suas desventuras.

Considerações finais A excelência da dramaturgia de Vianinha deve ser reconhecida à medida que ele se dispôs a dar prosseguimento à defesa da cultura nacional e ao desejo de transformar a sociedade brasileira através de uma arte comprometida socialmente, mesmo no período mais contumaz da censura. Na sua trajetória, abreviada com a morte precoce em 1974, adotou posturas políticas inovadoras, questionou as acepções que apreendiam a produção televisiva como um meio incapaz de promover o estranhamento e a crítica. E, sem

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participar organicamente das engrenagens da TV, o dramaturgo procurou dar continuidade àquela que entendia como “arte engajada”, tematizando os problemas cotidianos da população brasileira, inclusive dos segmentos médios. Em diversas situações, Vianinha (1973, 1974) não se furtou a reconhecer na televisão um instrumento de comunicação capaz de oferecer “brechas” que deveriam ser ocupadas pelos intelectuais. Mas admitia, com certa relutância, que o realismo naturalista adotado nos roteiros inclinava-se a obscurecer as possibilidades críticas da teledramaturgia, pois a linguagem e o formato utilizados dissimulavam a narrativa, tornando os textos uma extensão das experiências do próprio telespectador. Por certo, sua obra no teatro e na televisão expressou as transformações vivenciadas pela sociedade brasileira nas décadas de 1960 e 1970 e propiciadas pelo crescimento urbano e industrial, pela ampliação do campo profissional e pelo acesso à educação por parte tanto da população em geral quanto da feminina. Mas, não raro, seus enredos denunciaram distintas formas de discriminação de classe e de gênero. Aliás, tanto na esfera dramatúrgica quanto no dia-a-dia, a discriminação de gênero continuou se manifestando por intermédio de personagens e sujeitos que questionavam a autoridade de pais e esposos sobre a mulher e interpunham-se à eqüidade atribuída à dupla moral sexual, mais permissiva aos homens. Mas as vozes e vontades femininas que buscavam visibilidade passaram, de alguma forma, a ganhar maior ressonância. Paulatinas conquistas foram se desvelando e ultrapassando as fronteiras simbólicas entre os sexos (PELEGRINI, 2001). Todavia, enquanto as mulheres pobres continuaram, pela necessidade de trabalhar, adquirindo maior vivência social (externa às obrigações do casamento), as de classe média conquistaram com dificuldade seu direito ao trabalho, enfrentaram preconceitos e sujeições relativas ao caráter complementar da renda da família, na qual prevalecia o trabalho do provedor tradicional. Enfim, a literatura especializada assevera que, ao longo dos séculos, as mais diversas sociedades reconheceram a distinção entre o masculino e o feminino como uma cisão fundamental, apreendida como uma concepção de corpo “originária” ou “capital”. Destarte, a partir da década de 1980, atento aos mecanismos sociais que incidem sobre os corpos, Foucault (1984, 2005) observa os complexos processos de sujeição e busca apreender como, no cerne de práticas e discursos circunscritos a uma determinada cultura, o indivíduo se “produz” e tende a ser “produzido” (RAGO, 2006). Nessa linha de argumentação, a análise de Medéia (de Eurípedes) e de sua adaptação para a televisão brasileira (de Vianinha), sem dúvida, explicita, como bem o

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lembra Guacira Louro (2004, p. 76), que seria um grande equívoco conjeturar que a materialidade da forma e do corpo implica o reconhecimento de subjetividades sexuais e identidades de gênero, em quaisquer temporalidades, culturas e sociedades. A força e a determinação do perfil expresso nos personagens destacados nesse clássico da literatura universal não se restringem às dimensões ou às diferenças biológicas, mas se inscrevem nos padrões de comportamento culturalmente construídos, desnudados em suas incongruências e suscetibilidades.

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7. SOMOS TÃO ANTIGOS QUANTO MODERNOS? SEXUALIDADE E GÊNERO NA ANTIGUIDADE E NA MODERNIDADE LOURDES FEITOSA MARGARETH RAGO

(...) será que temos maneiras de nos constituirmos como “si”, e, como diria Nietzsche, maneiras suficientemente “artistas”, para além do saber e do poder? Será que somos capazes disso, já que de certa maneira é a vida e a morte que aí estão em jogo?

Deleuze

D IZ - SE QUE , no mundo globalizado, identidade e sexualidade desconectaram-se. Se assim for, estamos caminhando para a construção de novas referências da identidade, plurais e multifacetadas. Já não nos contentamos em nos percebermos enquanto identidades fixas, como pessoas únicas, racionais, definitivas, com um só nome e rosto para o resto da vida. Talvez seja mais confortável falar nas subjetividades mutantes e flexíveis, em movimento contínuo, constituindo-se e redefinindo-se a cada passo, promovendo novas possibilidades de existência (DELEUZE, GUATTARI, 1995). Os termos homem e mulher deixam de dizer alguma coisa acerca das identidades sexuais, num mundo em que a moda se torna andrógina e em que as crianças passam a brincar na internet, que não é nem masculina, nem feminina, ao contrário dos antigos brinquedos. Faz pouco tempo, portanto, que a principal referência para identificar alguém deixou de passar fundamentalmente pela sexualidade. Ou antes, faz pouco tempo que se questionou a conexão imediata estabelecida entre identidade e sexualidade, inexistente em muitos momentos históricos, a exemplo da Antiguidade greco-romana. Enquanto os movimentos sociais,

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desde a década de 1970, desafiavam e desnaturalizavam as definições modernas da homossexualidade e da heterossexualidade, assim como os códigos sexuais dominantes; enquanto o movimento feminista subvertia o regime de verdades instituído sobre as relações de gênero, importantes discussões filosóficas vinham à tona, enriquecendo consideravelmente o debate. Num texto conhecido, Foucault e Sennett (2004) propunham a historicização das formas pelas quais se construiu um dos principais dispositivos do poder: a noção da identidade, ancorada no biológico, evidenciando a maneira pela qual a sexualidade ganhou centralidade na explicação do próprio ser, desde o século XIX. Para além de um novo olhar sobre o passado, essas discussões traduziam um desejo de liberação das formas de sujeição impostas pelo Estado e pela cultura na Modernidade, ao questionarem as definições de feminilidade e de masculinidade, de hetero e homossexualidade, instituídas desde o século XIX. Colocava-se em pauta o tema da reinvenção de si, das possibilidades de se viver diferentemente do que se vive, experimentandose a si mesmo a partir de livres escolhas e de novas interpretações. Seguindo a discussão sobre a sexualidade, a categoria do gênero foi operacional nesse movimento de autonomização do sexo: mostrou teoricamente que as diferenças sexuais não poderiam ser explicadas por uma suposta natureza humana, instalada desde sempre nos órgãos genitais, mas que resultam de construções culturais, sociais e históricas (BUTLER, 2003). Por esta ótica, as reflexões de gênero valorizam as relações criadas entre os indivíduos, marcadas por conflitos e diversidades e pela influência cultural e histórica em que são articuladas como fundamentais para a compreensão dos significados de feminino e masculino (HEILBORN, 1992).

Os sentidos da sexualidade Com a separação entre sexo e gênero, a própria noção de sexualidade é repensada. Percebe-se a importância de considerarem-se os diferentes sentidos que poderia ter adquirido em tempos e espaços diversos, segundo suas tradições, seus costumes e seus valores. Torna-se possível recuperaremse de um enorme ostracismo acadêmico, obras literárias, inscrições e imagens com conotações sexuais de outras sociedades, o que exige vencer preconceitos. Nas décadas de 1980 e 1990, estudiosos europeus preocupavam-se em salientar a seriedade de seus estudos em temas “pornográficos”, não apenas do Mundo Antigo (CARTELLE, 1981, p. 93; D’AVINO, 1993, p.9), e até 1992, na Biblioteca Nacional francesa, as consultas à Collection de l´Enfer (Coleção do Inferno) só eram permitidas depois do

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preenchimento detalhado de muitos formulários e de muitas explicações (HUNT, 1999, p. 9). Outro exemplo é o da Raccolta Pornográfica di Pompei (Coleção Pornográfica de Pompéia), do Museu Nacional de Nápoles, aberta ao público apenas no ano de 2000, não sem o protesto do Vaticano, que considerou essa exposição “erótica” e ofensiva aos valores morais (WASSERMANN, LUZ, 2000, p. 71). Nesse mesmo período, aliás, as próprias noções de amor e pornografia passavam a ser historicizadas, enquanto se questionava a partilha estabelecida entre erótico e pornográfico, o primeiro referindo-se a uma dimensão amorosa limpa, nobre, sensual, ou melhor, a uma sexualidade considerada normal, enquanto que o pornográfico remeteria ao sexo baixo, explícito e indecente (VILLAÇA, 2007). Justamente essa separação contemporânea entre o amor como um sentimento nobre, e o pornográfico como prazer imoral é que levou Pierre Grimal, em seu livro O Amor em Roma, a concluir que o “povo romano” vivia em “maior liberdade de costumes e aventuras”. Mesmo assim, pressupõe que até essas criaturas simples refletiram que o prazer não perdura... e que este é apenas o primeiro momento da união das almas. Por isso, seria difícil pensar que mesmo os mais humildes da Campânia não colocassem alguma espiritualidade em seus amores” (GRIMAL, 1991, p. 326, 327).

A leitura dicotômica entre desejo sexual e amor, apresentada por Grimal mostra que a própria possibilidade de se admitir que esse desejo possa existir sem “amor” já reflete uma leitura histórica de seu conceito. Esta separação não é perceptível, por exemplo, no vocabulário latino. Os termos amor, affectus, dilectio, caritas, eros podem representar o “amor por um amigo”, o “amor por um namorado”, o “amor como desejo sexual” ou o “amor como um ato de solidariedade”; são aplicáveis para caracterizar tanto emoções e relações sexo-amorosas, quanto o desejo puramente sexual, diferente do concebido no universo ocidental.

Novos olhares, novos rumos Com a crítica da constituição de identidades a partir do biológico, percebeu-se a inadequação de inúmeros termos e interpretações modernas, quando projetados no passado. É o caso das representações “eróticas” encontradas no universo greco-romano. O que simbolizaria uma “cavalgada

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feminina” reproduzida em pintura, escultura, cerâmica, louça de luxo e moedas romanas? Um ato de felação representado na arte grega? A cena de cunilíngua presente nos epigramas e grafites romanos? As imagens de coitus a tergo (coito a três) em numerosos objetos gregos e romanos? Como olhar para essas representações espalhadas em quartos, salas, varandas, lupanares, muros e em uma vasta gama de objetos de uso comum? As reflexões sobre a sexualidade permitem um olhar crítico sobre essas menções de cunho sexual como elementos de estímulo ao desejo ou um sinal da “devassidão” de nossos antepassados, como banalmente interpretado anteriormente. Hoje, defende-se que essas referências não eram reservadas a circunstâncias exclusivamente eróticas, mas que também assumiam conotações religiosas, apotropaicas, satíricas, humorísticas ou simplesmente mostravam-se como um componente agradável e natural da vida (FUNARI, 2003). Por exemplo, o grafite “Florônio, fodedor e soldado da sétima legião, esteve aqui e as mulheres nem souberam, senão, até seis seriam poucas!” [Floronius binet ac miles leg vii hic fuit. Neque mulieres scierunt nisi paucae et ses erunt (CIL, IV, 8767), comumente interpretado como destaque à virilidade masculina, agora é lido em um sentido apotropaico, ou seja, como uma maneira de Florônio tentar afastar os maus agouros por ter sido negligenciado pelas mulheres que procurou conquistar; daí o seu “despeitado” comentário final de que seis seriam poucas para um homem com o seu vigor (FUNARI, 1995, p.13). Outra conhecida inadequação é a transposição simplista dos conceitos de homossexual e heterossexual para a análise da experiência sexual no mundo antigo. Nesse universo, o fato de um “homem” fazer sexo com outro “homem” ou “mulher” não era suficiente para identificar a sua categoria sexual, como ainda é pressuposto pelo senso comum em dias atuais. Longe de fundar uma espécie, o “homossexual”, a relação sexual entre dois homens era considerada uma prática erótica compatível com o casamento com o sexo oposto, não excludente, pois, da relação com as mulheres. E embora a ética sexual fosse exigente, complexa e múltipla, não havia um único código regendo o comportamento sexual. “Nem a lei civil, nem a lei religiosa, nem uma lei ‘natural’ prescreviam o que se deveria – ou não se deveria – fazer” (FOUCAULT, 1994, p.317). A posição do sujeito como ativo ou passivo e não a preferência hetero ou homossexual parece ser a grande fronteira moral que demarcava os indivíduos. Dentre os estudiosos da Antiguidade, a representação mais freqüente é aquela em que o homem aristocrático e cidadão exerce a função ativa, tanto no campo sexual como no social. Trata-se de um modelo de virilidade definido pela consonância entre o papel de comando social e de

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autocontrole emocional e sexual, que garantiria ao aristocrata a ação de penetrar, independente do gênero sexual do penetrado, seguindo a norma social estabelecida para as elites: não penetrar outro cidadão, jovem ou adulto, e mulheres aristocráticas, casadas, solteiras ou viúvas (CANTARELLA, 1999; WALTERS, 1997, p.30). Integridade física e autodomínio (controle sobre a paixão e a volúpia) resultariam no comando que esse “homem” exerceria sobre a sociedade: mulheres, libertos e escravos. É notória a semelhança da idéia apresentada por esses autores com aquela apresentada por Sêneca, no século primeiro: “a indecência (passividade sexual) é crime para o livre, fatalidade para o servo e obrigação para o liberto” [impudicitia in ingenuo crimen est, in servo necessitas, in liberto officium ] (1932, p. 10). Isso porque esses autores acatam a visão aristocrática do desempenho sexual definido para cada grupo e a reproduzem como legítima e padronizada. Entretanto, esse comportamento sociossexual idealizado para homens e mulheres aristocráticos, tanto por autores antigos quanto por contemporâneos, é contraposto em outras fontes que nos mostram realidades múltiplas e heterogêneas. A famosa passagem de Suetônio sobre Júlio César é o exemplo mais significativo do desrespeito à idéia de uma restrita prática sexual ativa masculina e abre um hiato entre aquilo que poderia ser idealizado e efetivado: “Júlio César era mulher de todo homem e homem de toda mulher” [omnium mulierum uirum et omnium uirorum mulierem]. (SUETONIO, De vita duodecim Caesarum, I, L). Também aqui se observam diferenças entre passado e presente. Embora Suetônio faça essa afirmação em tom jocoso, isso não foi suficiente para colocar em risco a posição de cônsul ocupada por Júlio César, diferente do que veio a acontecer a um representante de alto escalão do governo norteamericano, em 2006, que pediu sua demissão (ou foi induzido a fazê-lo), após confirmar sua preferência pelo mesmo sexo. Outro aspecto, em alguns meios já um tanto bizarro, é a tese defendida pelo médico oncologista e ex-ministro da Saúde italiano Umberto Veronesi, que indica a bissexualidade como uma tendência da humanidade, justificada como “resultado da evolução natural da espécie”. Argumenta que os homens, agora mais pacíficos, tendem a perder as características viris geradas por uma produção menor de hormônios; as mulheres, em um processo contrário, obrigadas a assumir um papel cada vez mais ativo na sociedade, tornam-se mais masculinizadas devido a uma produção menor de hormônios femininos (Jornal da Cidade, Bauru, p. 11, 23 ago 2007). O interessante é observar a polêmica gerada pela tese do italiano, contestada por psicólogos e historiadores entrevistados pelo próprio jornal, e ainda reflexo das muitas dúvidas e tabus que envolvem essa questão.

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Paradoxos da antigüidade romana Vivemos dias de reflexões sobre os paradigmas construídos em tempos modernos e a atenção para a diversidade também nos permite vislumbrar um universo Antigo muito mais complexo do que anos atrás. A leitura de fontes diversas, dentre elas a arqueológica, tem possibilitado questionar as projeções e idealizações apresentadas pelas e para as elites, em documentos aristocráticos, como comportamentos legítimos e aceitos pelos demais. A própria inoperância de conceitos como “romano”, “grego” etc. favorece perceber as diferenças sociais e os embates discursivos postos entre os muitos grupos, bem como as particularidades regionais e culturais. O ideal de beleza preconizado para a elite romana define a bela mulher como aquela de pele alva, belas formas, peso moderado, estatura alta, cabelos longos, elegante, delicada e culta. Dela espera-se a virgindade, a castidade, a procriação e a fidelidade ao esposo. A beleza masculina é realçada no corpo forte e bronzeado, símbolo de vigor e potência física. O homem educado conhece as artes liberais, o latim, o grego e fala com eloqüência. A ele é recomendado um comportamento amoroso austero, o respeito de sua mulher e autoridade sobre ela. Socialmente lhe é permitido ter relações extraconjugais, desde que não sejam com mulheres casadas ou solteiras nascidas livres e que não envolvam paixão (OVIDE, 1836; PETRONE, 1958). Embora alguns desses elementos possam nos ser familiares, a relação que tinham com a sociedade romana da época era bem distinta. Em um universo no qual grande parte da população efetuava trabalhos ao sol, a cor branca simbolizava o prestígio daquela que não precisava se queimar, nem suar com a realização de esforços. Os cuidados com o corpo e a educação compunham a estética da mulher que dispunha de tempo e condição financeira para cuidar de seu físico e aprimorar os seus conhecimentos. O ideal de castidade, fidelidade e procriação estava vinculado ao status que a mãe oferecia ao seu filho. Segundo as leis romanas, o estatuto jurídico que definia a condição de escravo ou livre de uma criança, ao nascer, era determinado pela condição de sua mãe, sendo ela casada ou não. A mulher livre e cidadã gerava um cidadão romano. O mesmo não acontecia com o homem, pois apenas as crianças nascidas de um casamento legítimo seguiam a condição do pai, ao passo que as nascidas fora desta relação partilhavam da condição da mãe, embora o homem pudesse conferir o seu status de cidadão a outro, em um sistema de adoção (THOMAS, 1990, p. 176). O ideal do otium permitia ao homem aristocrático aprimorar o corpo, o espírito, a sabedoria e a virtude, necessários para a sua atuação pública e a prática política - diferente da ação feminina, limitada à esfera da vida privada,

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aos afazeres domésticos. O corpo forte e bronzeado com os exercícios estava relacionado com a valorização da carreira militar (OVIDE; PETRONE). Entretanto, como acontece em dias atuais, o século primeiro (tanto antes como depois de Cristo) reflete as inúmeras mudanças pelas quais passava a sociedade romana. Os imperativos econômicos e políticos que comandavam o casamento, como a transmissão do nome, a constituição dos herdeiros, a organização do sistema de alianças e a junção de fortunas (caros durante os dois primeiros séculos da República), perderam parte de sua importância quando, nas classes privilegiadas, o status e a fortuna passaram a depender mais da proximidade do príncipe, a partir do Império (27 a.C.), das “carreiras” civil e militar, do sucesso nos negócios, do que somente da aliança entre grupos familiares (FOUCAULT, 1985, p. 81). A literatura amorosa romana ilustra muito bem essas transformações nos comportamentos e valores da sociedade da época. Ovídio, em A Arte de Amar, ensina às mulheres a arte de se fazer amar e de tornar o seu amor duradouro. Apresenta relacionamentos amorosos nos quais a mulher participa da escolha do parceiro, busca a sua satisfação sexual e a recíproca afetividade em relações furtivas e ilícitas. Descreve o casamento como o lugar das querelas, dos deveres sexuais e da falta de afeto. Tais relações parecem contrariar o modelo de casamento institucionalizado e o ideal de virtude estabelecido às mulheres da alta sociedade. Os conselhos do poeta ao seu público masculino também afrontam o ideal de austeridade colocado para os cidadãos, ao sugerirem a busca de um relacionamento fundamentado em bases afetivas e fora dos ditames legais e éticos, já que “o prazer é menor quando não ladeado de perigos”, o que supostamente ocorreria com as escravas ou prostitutas. Sobre elas considera: “preservem-me os deuses, se me quiserem julgar culpado, de querer estar com uma simples serva! Que homem livre gostaria de se unir a uma escrava e envolver em seus braços um dos destruidores de chicotadas...” (OVIDE, 1836, 2, 7) e “uma meretriz se vende, a tal preço, ao primeiro bem sucedido: é fazendo do abandono de seu corpo que ela adquire miseráveis riquezas...” (OVIDE, 1836, 1, 10). A multiplicação dos divórcios, a extensão do concubinato entre livres e libertos e a diminuição do número de crianças legítimas registram aspectos da crise que atravessava a instituição matrimonial, como pode ser observado na legislação da época. A situação era tão preocupante que o próprio imperador Otávio César Augusto (27 a.C. a 14 d.C.) efetuou uma série de revisões nas leis que regulamentavam o comportamento social. Preocupado em resguardar a moral dos jovens de ambos os sexos, o princeps alterou as leis referentes ao adultério, ao atentado contra o pudor, à ostentação e à

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regulamentação do casamento. Inibiu o casamento entre pessoas muito jovens e impôs um limite aos divórcios (SUETONIUS, Octavius Augustus, 31, p. 209). Foram as leis do imperador acatadas? Suetônio relata que a severidade sobre a revisão matrimonial provocou oposição veemente, tendo sido aprovada somente após supressões ou abrandamentos das penas (SUETONIUS, Octavius Augustus, 34, p. 209). Isso porque as leis de Augusto parecem afrontar diretamente o comportamento costumeiro da prática extraconjugal romana, tanto masculina quanto feminina. O próprio Augusto reconheceu publicamente os escândalos da casa imperial quando baniu a sua filha Júlia pela impudicícia e por orgias noturnas (SENECA, De Beneficiis, 4, 32); também o fez o imperador Nero através da denúncia do adultério de sua esposa Otávia. Alterações nas leis também atestam mudanças na condição feminina. O próprio Augusto efetuou uma série de revisões nas leis matrimoniais promulgadas em 18 a. C. (lex Iulia de adulteriis coercendis e lex Iulia de maritandis ordinibus), dentre elas, as que continham implicações na maternidade e na paternidade. Com elas ficou estabelecido que as romanas livres, casadas ou não, que passassem por três gestações (para as libertas ou livres itálicas, quatro, e para as provinciais, cinco), tendo os filhos sobrevivido ou não, estariam isentas do controle dos agnados sobre elas. Legalmente, essas mulheres deixavam de estar sob o poder paterno e passavam, elas próprias, a gerir o seu patrimônio, com exceção do dote, administrado pelos esposos enquanto estivessem casadas. Tal situação se estendeu posteriormente a todas as outras mulheres. A imagem da mulher aristocrática dedicada a fiar a lã e a administrar a casa, portanto, distante da vida pública e do centro das decisões políticas e de poder, característica da tradição republicana, manteve-se em nível discursivo no início do Império, embora já convivendo com uma redefinição dos papéis sociais femininos. A cidade de Pompéia guarda inúmeras evidências materiais da participação de mulheres de diferentes estratos sociais na economia, na vida social e no apoio a candidatos em escrutínios locais (TANZER, 1939; LEGALL, 1970; TREGGIARI, 1981; SAVUNEN, 1995). A desobediência à castidade matrimonial e à procriação e a diversificação de sua função social também têm os seus reflexos no âmbito da sexualidade feminina. A busca pelo prazer, pela satisfação de seu desejo é apresentada tanto na literatura como em grafites de Pompéia, por meio de menções à prática da cunilíngua. As paredes da cidade preservam a propaganda daqueles que desempenhavam essa “atividade” ou daquelas que usufruíam desse tipo de “serviço”, como observado nesse exemplo: “Vétio pratica a cunilíngua. Hum, isso é bom!” Ou: “Vétio pratica a cunilíngua. Ele é bom!” (CIL, IV, 8698).

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Essas observações também podem ser estendidas ao mundo moderno, em especial, ao século XIX, preocupado em circunscrever rigidamente os lugares sociais destinados às mulheres e em construir um código universal de moralidade social. Estudos históricos feministas, como os de Elizabeth Badinter, ao desnaturalizarem o ideal moderno da maternidade, revelam que o modelo da esposa submissa e da mãe abnegada e assexuada, tal como conhecemos inquestionado até meados dos anos de 1960, não pode ser estendido a outros momentos históricos (1985). As damas da corte, no Antigo Regime francês, como mostra Norbert Elias, participavam intensamente da vida pública e tinham seu próprio círculo de amizades, aliás, recebido em aposentos outros que não os dos esposos. Como adverte esse autor, “A dama de corte não é uma dona de casa!” (ELIAS, 1987, p. 24). Ou, em outras palavras, a noção da intimidade e a ideologia da domesticidade ainda não haviam se firmado, como ocorre nos séculos seguintes. Ao mesmo tempo, os modelos de feminilidade e maternidade promovidos no mundo urbano-industrial também não conformaram um padrão que se estendeu inquestionado por toda a sociedade, regendo a vida e as relações de gênero de modo absoluto. São inúmeros os casos de adultério, infanticídio, recusa do casamento, amor pelo mesmo sexo, entre as mulheres de várias classes sociais, como comprova abundantemente a história das mulheres no Ocidente (DUBY, PERROT, 1993-1995). O elenco das mulheres rebeldes, transgressoras, insubmissas e críticas de seu próprio tempo não cessa de aumentar, como atestam as inúmeras pesquisas feministas. Contudo, não há como negar a hegemonia que aquele padrão conquistou por longo tempo, já que faz apenas algumas décadas que passou a ser questionado e historicizado, apontando-se, assim, para a possibilidade de sua superação por formas mais humanizadas e libertárias de existência.

Perspectivas na atualidade Se os conceitos de que dispomos para interpretar nosso próprio mundo parecem cada vez mais inoperantes para dar conta de realidades históricas passadas, o que dizer de nossa própria atualidade, quando vivemos a crítica da Modernidade na teoria e na prática? Aqui, podemos dizer que urge a criação de novos conceitos e vocábulos para dar conta da multiplicidade de atitudes, práticas e experiências existentes. Em relação às mulheres, se percebemos que estão cada vez mais independentes, se surpreendem com a criação de novos padrões comportamentais e corporais, não há como negar que a “ditadura do corpo e da beleza” se fortalece. Os debates sobre os casos de anorexia, a bulimia e

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depressão abundam nas revistas e nos programas de televisão, enquanto o corpo “sarado” se torna sinônimo de sucesso pessoal e profissional, num mundo em que não há mais espaço para os “fracassados”. Os novos padrões de beleza valorizam o corpo magro, ágil, retilíneo e forte não só para as mulheres, mas também para os homens. As dietas se difundem assim como as academias de ginástica, que prometem o emagrecimento e o enrijecimento da musculatura, através de exercícios com máquinas e pesos de musculação. Realizando uma interessante pesquisa sobre a produção das identidades sexuais nas academias de ginástica, o sociólogo sueco Thomas Johansson afirma que as mulheres têm optado pela aeróbica e musculação, porque estas lhes permitem construir “a hard body”: Este corpo é delgado – como o corpo construído na aeróbica – mas também é bem definido, isto é, os músculos da jovem mulher são claramente visíveis e conferem uma certa forma e qualidade ao corpo, como efeito da musculação. Enquanto que o corpo delgado dá a impressão de ser fraco e frágil, o corpo duro exprime força e determinação. Na esfera pública, esses corpos são mais visíveis do que os tradicionais corpos femininos frágeis; eles exigem atenção e respeito. Esses corpos são corpos fortes, o que significa que não são meramente objetos de desejo, mas também agentes ativos, exigindo atenção e espaço. O desenvolvimento do corpo duro serve, em parte, para produzir uma identidade, mas também serve para a luta por igualdade. As mulheres que adquiriram uma certa força já não precisam pedir ajuda aos homens no momento em que a força física é necessária. Elas se tornam mais independentes e, assim, mais uma barreira de poder entre homens e mulheres é derrubada (JOHANSSON, 1998).

Ao mesmo tempo, o homem viril do passado – o “machão” tradicional, que em geral não concedia maiores cuidados ao próprio corpo, nem problematizava sua subjetividade - cede espaço para uma figura masculina mais leve, mais auto-centrada e menos ligada nas questões sexuais. Nessa direção, num artigo publicado na Revista Isto É, de 10 de outubro de 2007, intitulado “Adeus aos machões”, a jornalista Cláudia Jordão apresenta dados interessantes de uma pesquisa empírica realizada pelo IBOPE, em que se destacam as mudanças positivas nos comportamentos masculinos, decorrentes, em grande parte, das necessidades de adaptação às novas realidades criadas pelas transformações femininas e pelas pressões feministas.

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Além de trabalhar fora, os homens garantem que são capazes de cuidar de seus filhos e desempenhar as mais diversas tarefas domésticas. (...) Segundo o estudo, 50% dos pais deixariam de trabalhar fora para cuidar dos filhos e da casa – o mesmo índice registrado entre as mães em pesquisa anterior (...) (JORDÃO, 2007).

O modelo tradicional de virilidade, ao que tudo indica, retira-se progressivamente da cena, tornando-se, aliás, objeto histórico. O adjetivo “dinossáurico”, atribuído àqueles que não se reinventam, não é uma brincadeira de mau gosto. E, em se tratando da história da masculinidade, vale notar que o Super-Homem dos quadrinhos, criado em 1933, por Jerry Siegel, nos Estados Unidos, foi altamente criticado pela “revolução sexual” dos anos de 1960. Nos inícios do século XX, quando fazia grande sucesso a figura do Tarzã, criado por Edgar Rice Burroughs, assistia-se ao crescimento do debate sobre a formação dos jovens e a virilização da raça. Diante das mudanças provocadas pela entrada das mulheres no mercado de trabalho e pelas inovações tecnológicas, que tornavam o trabalho mais leve e delicado, as elites governantes, assustadas com um possível amolecimento da juventude, passaram a defender o revigoramento físico dos futuros cidadãos da pátria. Portanto, esses heróis foram produzidos num momento de profunda apreensão causada pela modernização, em que a desestabilização das antigas referências sexuais deixou a sociedade em pânico. Medo da “anarquia sexual”, com a ampliação e diversificação dos espaços do desejo - cabarés, bordéis, cafés-concerto; medo do feminismo: as mulheres deixariam de ser mulheres? As famílias se desagregariam com o trabalho feminino fora do lar? Medo do homossexualismo: estariam os homens se afeminando? Medo da proximidade dos corpos, com os bailes e as novas danças, com os esportes, a natação, os maiôs e as ameaças de explosão das desconhecidas “perversões sexuais” (SHOWALTER, 1993). Na pós-modernidade, essas crenças e esses valores morais são altamente criticados e ridicularizados. Ao mesmo tempo, afloram novas interpretações das práticas sexuais e a busca de novos parâmetros de referência pessoal e coletiva. É o caso das prostitutas, que, organizando-se em movimentos sociais em luta por seus direitos, desde a década de 1980, passam a identificar-se como “trabalhadoras do sexo”, isto é, como profissionais que desejam ser reconhecidas socialmente e pelo Estado. Mais recentemente, são elas mesmas que questionam as referências de identificação social recentes e passam a perguntar se essa transformação

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não acena para uma dessexualização da sua própria atividade. Nesse sentido, afirma Gabriela Leite Silva, fundadora da ONG DaVida, criada em 1992, que a “prostituição é um espaço do desejo”, e não uma violência: “O nosso ofício é este, trabalhar as fantasias sexuais, e faz um tempinho que estou na Ong falando sobre isso(...),vamos falar sobre as fantasias sexuais dos homens e essas coisas todas” (Entrevista realizada por M. Rago em fev. 2006). Já as mães pós-modernas, tendo criticado o modelo da “mãe santificada”, deixam de assumir a tradicional dicotomia entre a “mulher casta” e a “devassa” e passam a subjetivar-se de modo a integrar essas duas dimensões próprias da experiência afetiva, amorosa e sexual. A busca de novos modos de subjetivação, que não oponham rigidamente erotismo, vida familiar e trabalho, inscreve-se definitivamente no vocabulário e na agenda política das mulheres.

Será que somos capazes...? Finalizando, é possível que essas mudanças não traduzam um encontro maior dos gêneros, na atualidade, nem um enriquecimento da experiência amorosa e sexual, o que certamente é difícil de concluir, já que nossa época comporta uma grande diversidade de experiências, em que, ao lado das grandes rupturas, aparecem as insistentes permanências de padrões culturais tradicionais. Ao mesmo tempo, é bom lembrar que, no passado recente, nem mesmo se problematizavam as relações dos casais e a incomunicabilidade silenciada resultava das posições totalmente assimétricas entre homens e mulheres, especialmente no interior da família.O contexto das últimas décadas aponta para importantes reflexões e buscas de novas possibilidades de interação humana, especialmente nas relações de gênero, respeitando-se a liberdade de escolha, as potencialidades, os limites e os desejos de cada um. E, aqui, vale perguntar: estaríamos então em condições de aprender alguma coisa com os antigos, ou simplesmente de nos inspirarmos com as diferenças que nos separam? Ou, perguntando com Deleuze, leitor e amigo de Foucault: será que somos capazes de nos constituirmos de maneira suficientemente “artista”, para além do saber e do poder?

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8. “AFASTE-SE, MARIA, DE NÓS, POIS AS MULHERES NÃO MERECEM A VIDA!”: HETERODOXIA E ORTODOXIA NOS INÍCIOS DO CRISTIANISMO. ROBERTA ALEXANDRINA

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Portanto, para que seja excluída qualquer dúvida em assunto da máxima importância, que pertence à própria constituição divina da Igreja, em virtude do meu ministério de confirmar os irmãos, declaro que a Igreja não tem a faculdade de conferir a ordenação sacerdotal às mulheres e que esta sentença deve ser considerada como definitiva por todos os fiéis da Igreja (Carta Apostólica Ordinatio Sacerdotalis, de 22 de maio de 1994. Artigo 04)

O TRECHO acima foi retirado da Carta Ordinatio Sacerdotalis, escrita por João Paulo II, no dia 22 de maio de 1994, durante o período do décimo sexto Pontificado, endereçada aos fiéis da Igreja Católica. Algumas declarações anteriores, como a Mulieris Dignitatem, de 15 de agosto de 1988, e a Inter Insigniores, de 15 de outubro de 1976, já reforçavam a condição dualista entre o homem e a mulher, o que, ultimamente, tem ocasionado embates entre a ala conservadora e os grupos progressistas dentro da Igreja Católica. A relação problemática entre esses grupos foi potencializada no recente Pontificado de Bento XVI – sucessor de João Paulo II e ex-prefeito da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé –, em que, numa evidente declaração de desafio à hierarquia católica, a francesa Geneviève Beney teve sua cerimônia de ordenação, no dia 30 de julho de 2005, em Lyon, leste da França, pretendendo, com isso, tornar-se a primeira sacerdotisa francesa, uma bispa, com o risco de ser excomungada pela Igreja Católica.

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“Afasta-se, Maria, de nós , pois as mulheres não merecem a vida!”

Geneviève Beney não foi a primeira mulher a ser ordenada, mas foi a primeira do Pontificado de Bento XVI, expondo, assim, um dado importante acerca do gradativo crescimento de mulheres ordenadas, em países da Europa e América do Norte. Tanto que, em janeiro de 2006, aconteceu em Paris um congresso, patrocinado pela organização francesa Femmes et Hommes en Église, em que a questão mais importante foi o fim da determinação que exclui do sacerdócio os homens casados e as mulheres, além da demanda de uma reestruturação profunda de alguns dogmas da Igreja Católica. Já em 1673, avant la lettre, a francesa Poullain de la Barre reclamava o sacerdócio para a mulher, usando explicitamente argumentos médicos para sustentar os apelos para a igualdade social das mulheres (SCHIEBINGER, 2001). Desde então, a posição das mulheres mudou muito. Na Igreja, porém, a atitude discriminatória permaneceu, não só na prática, mas também na lei (ver o cânon 1024: “Só um varão batizado recebe validamente a ordenação sagrada”). Ainda assim, há 40 anos, mulheres e homens, teólogas e teólogos de renome, se dedicam a essa questão do ministério da mulher. A Igreja nunca ordenou mulheres, é o argumento da tradição. O clero que ela constituiu se inspirava no modelo judaico e, a partir do século II, a sua hierarquia seguiu os moldes do poder romano. A imagem da mulher que persistiu na Igreja e ainda influi amplamente nas nossas sociedades laicas é que torna difícil a sua plena integração nos ministérios. De acordo com Graciano (século XII), cujas compilações se tornaram fonte fundamental do direito canônico, a ordenação feminina é impossível por duas causas: só o homem, e não a mulher, é a imagem de Deus; foi a mulher, e não o homem, quem provocou o pecado (ALCALÁ, 1995, p. 305). Partindo dessa premissa, outros, como Duns Escoto (1265-1308), enfatizam que a “ordem é um grau eminente na Igreja e não pode ser desempenhado por uma mulher, que está no estado de sujeição” (ALCALÁ, 1995, p. 346). Ora, o Rosarium Super Decretum (1300) ainda é mais enfático em declarar que “a mulher não pode ser ordenada [...] a razão é que a ordem é própria dos membros perfeitos da Igreja, na medida em que possibilita conferir graça a outros. Mas, a mulher não é um membro perfeito da Igreja, mas sim o varão” (ALCALÁ, 1995, p. 311). Somente na carta apostólica Mulieris Dignitatem, de 1988, é que se encontram, pela primeira vez, escritas por um Papa, afirmações novas sobre as relações entre mulheres e homens. João Paulo II fala da igualdade essencial e da reciprocidade entre eles, expressa o seu pesar pelo papel da Igreja na desfiguração da mulher e proclama a responsabilidade igual do homem e da mulher na construção da História. Ainda assim, os textos oficiais discorrem longamente sobre a natureza da mulher, mas não sobre a do homem, que continua a ser visto como o

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protótipo da humanidade. A mulher permanece sendo a outra, a diferente, a misteriosa, sobre quem não se pára de falar, sobretudo se for celibatária. Atualmente, são três os textos principais que vedam o acesso das mulheres à ordenação. O primeiro é de Paulo VI, Inter Insigniores, de 1976. O único argumento que o texto evoca para negar o sacerdócio à mulher é que “A Igreja nunca o fez”. Em 1994, é publicada a Carta Apostólica Ordinatio Sacerdotalis, de João Paulo II, que declara a ordenação sacerdotal reservada exclusivamente aos homens, dando a questão por definitivamente encerrada. Alguns meses depois, em 1995, surge uma nota da Congregação para a Doutrina da Fé, assinada pelo então cardeal Joseph Ratzinger, atualmente Papa Bento XVI, esclarecendo a natureza da Ordinatio Sacerdotalis. Tratavase de uma doutrina que implicava a infalibilidade do magistério e exigia, portanto, um assentimento definitivo. De uma regra que se acreditava meramente disciplinar e histórica, fazia-se uma doutrina de fé. Em 1998, publica-se uma carta apostólica para a defesa da fé, Ad Tuendam Fidem, e, em 2001, a Liturgiam Authenticam. Na última encíclica de João Paulo II sobre a Eucaristia, Ecclesia de Eucharistia, de 2003, é fortemente sublinhado o seu sentido sacrificial e, conseqüentemente, a sua incompatibilidade com a vocação da mulher, que é de dar a vida, e não derramar o sangue. Além disso, a encíclica define, com mais precisão, o sentido da expressão in persona Christi: mais do que “em nome” ou “em lugar de Cristo”, ela significa identificação, uma identificação específica. Assim, visto que Cristo é homem, não poderia ser reconhecido numa mulher. Dessa forma, o cânon 1024, que diz que “só o homem pode receber validamente a ordenação”, está em contradição com a declaração dos direitos humanos e com os textos do Vaticano II (Guardium et Spes 29). Tanto é que um proeminente teólogo jesuíta alemão, Karl Rahner, resumiu assim o que foi o Concílio: Reforma litúrgica; o diálogo com o ecumênico, a ordem permanente dos diáconos; o Colégio Episcopal em ação conjunta e eficiente; a reforma prometida da Cúria Romana; a elaboração do Código de Direito Canônico dentro do espírito conciliar; a renovação dos seminários e da vida sacerdotal; a atualização dos religiosos e religiosas dentro do espírito de fidelidade à vocação religiosa e à nova exigência dos tempos; a permissão aos leigos de exercerem o múnus que o Concílio lhes atribui e deles exige; o apostolado bíblico que permite o encontro dos Homens de hoje com a revelação viva de Deus; as missões; a liberdade religiosa; a Igreja dos pobres finalmente realizada (1966, p. 26).

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Os anseios tanto deste teólogo como de outros, que esperavam uma renovação completa dentro da Igreja, foram malogrados, uma vez que o grupo conservador, que se baseava na Cúria Romana e no Santo Ofício, cujo título foi depois mudado para Sagrada Congregação da Doutrina e da Fé, pretendia manter a Igreja presa à tradição medieval, ignorando qualquer transformação por que tenha passado o mundo nos7 últimos decênios. O anacronismo clerical católico foi, assim, corroborado por algumas encíclicas, como a Mysterium Fidei, sobre a Eucaristia, a Sacerdotalis Coelibatus, que reafirma o celibato sacerdotal, e a Humanae Vitae, que proíbe o uso da pílula anticoncepcional. Com isso, há uma postura reacionária, mesmo que inicialmente moderadora, da parte de Paulo VI - em cujo Pontificado o concílio do Vaticano II se realizou -, posteriormente, de João Paulo II e, recentemente, de Bento XVI. Portanto, questões como a da ordenação ainda são um assunto interdito, como deixa claro a epígrafe, citada aqui novamente: “declaro que a Igreja não tem a faculdade de conferir a ordenação sacerdotal às mulheres e que esta sentença deve ser considerada como definitiva por todos os fiéis da Igreja”.

A heterodoxia e a ortodoxia: um problema tão antigo quanto atual As narrativas do Novo Testamento deram margem a várias interpretações, o que lhes conferiu uma função política essencial: a de legitimar a autoridade de certos homens que, como sucessores de Pedro, reivindicaram para si a liderança sobre as Igrejas. Portanto, a partir do século II, a política da sucessão apostólica dos bispos foi validada e, com isso, fundamentou a autoridade do Papa como figura máxima do cristianismo católico romano. Nos textos canônicos, a imagem de Pedro é bastante fluida e, de certa forma, discrepante, ao posicioná-lo como o representante máximo da cristandade. A tradição ortodoxa se centra em alguns trechos, como o do Evangelho de Lucas, 24, 34, que sugere que Pedro seria o sucessor de Jesus, depois da morte deste, e líder do movimento; do Evangelho de Mateus, 16,13-19, em que o próprio Jesus decide que Pedro, a rocha, iria fundar a Igreja; e do Evangelho de João, 21,15-19, em que o Cristo ressuscitado diz que Pedro deveria tomar o seu lugar como “pastor” das ovelhas. Para a historiadora Elaine Pagels, Jesus era a única autoridade que todos reconheciam, no pequeno grupo que o acompanhava pela Palestina, e ninguém contestava a sua autoridade (1997, p.38). Para a autora, mesmo sendo Jesus o único líder desse grupo, vindo da Galiléia, ele censurava o exclusivismo entre os seus seguidores. Em Marcos, 10, 42-44, há uma repreensão sobre essa questão:

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Sabeis que aqueles que vemos governar as nações as dominam, e os seus grandes as tiranizam. Entre vós não será assim: ao contrário, aquele que dentre vós quiser ser grande, seja o vosso servidor, e aquele que quiser ser o primeiro dentre vós, seja o servo de todos.

No entanto, por que Pedro se torna o único chefe de toda a Igreja? Historicamente, dispomos de poucas fontes sobre essa questão, e o que possuímos é uma literatura em que já estava instituída a autoridade de Pedro frente à Igreja. Contudo, um dos pontos a se destacar acerca da justificação dessa sua autoridade foi a sua alegação de que a ressurreição havia acontecido. É fácil de entender o que ocorreu pouco após a morte de Jesus: Pedro passou a ser o líder, porta-voz do grupo. A ressurreição foi o ponto crucial para a legitimação de Pedro e, de acordo com João, foi Jesus quem o incumbiu de assumir esse cargo depois de sua morte. Nesse caso, a ressurreição de Jesus tem um caráter político essencial no estabelecimento de uma tradição que traça Pedro como a primeira testemunha e, portanto, como líder de direito da Igreja e, consecutivamente, no estabelecimento de três níveis hierárquicos: o episcopado, o presbiterado e o diaconato. Contudo, a mesma ortodoxia que apóia Pedro como a primeira testemunha da ressurreição de Jesus, baseando-se nos evangelhos, tem um outro problema: como compreender a afirmação de João e Marcos de que Maria Madalena, e não Pedro, havia sido a primeira testemunha? Os evangelhos são unânimes ao registrarem, de modo insofismável, o papel testemunhal de Maria Madalena em momentos decisivos com Jesus, como atesta a existência, durante a Idade Média, de expressões que conotam a sua importância, como apostola apostolorum ou isapòstolos (igual aos apóstolos). Bem cedo, entretanto, há uma tendência de confundir Madalena com uma pecadora anônima, citada no Evangelho de Lucas (7, 36-50), a qual também é confundida com a mulher que ungiu Jesus antes da Paixão, conforme as narrações paralelas de Mt 26, 6-13 e Mc 14, 3-9; esta, por sua vez, foi identificada pelo quarto evangelista como Maria de Betânia, irmã de Lázaro (Jo 11, 2). A identificação – ao que parece, esporádica e incerta – foi finalmente concretizada pelo papa Gregório Magno; porém, nas Igrejas Católicas orientais, há uma distinção marcante entre cada uma das mulheres. Por isso, é pertinente analisar cada uma das referências. Maria Madalena obteve um status proeminente na Igreja Primitiva; sua importância se devia ao fato de seguir (akolouthéin) Jesus e participar, segundo os evangelistas, da vida itinerante de seu grupo, sem qualquer vinculação marital.

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Maria Madalena, Mágdala (María ke kaloumène Magdalené, Maria chamada de Madalena), é nomeada em primeiro lugar entre as mulheres que seguem a Jesus – em geral, tal precedência na Escritura não é casual. É ela quem presencia a morte de Jesus e descobre o sepulcro vazio; quem primeiro recebe o anúncio Pascal; quem anuncia antes a Boa Nova e se encontra com o Ressuscitado. Segundo Schotroff, Maria Madalena teve um papel tão grande na origem do cristianismo quanto Pedro, se não maior (1995, p. 418-427). É pertinente considerar com ponderação a afirmação da autora, contudo, é significativo citar o fato de que os textos canônicos e a literatura oficial, em geral, preocupam-se em posicionar melhor Pedro do que Maria Madalena, ao passo que a literatura apócrifa conserva muito viva a história dela. No Evangelho de Tomé, que remonta ao segundo século, em alguns trechos, constata-se um antagonismo latente entre Pedro e Maria Madalena: “Afaste-se, Maria, de nós, pois as mulheres não merecem a vida!”. E Jesus diz: “Eis, eu a guiarei de modo a fazer dela um homem, a fim de que ela se torne um espírito vivo igual a vós, homens. Porque toda mulher que se torna homem entrará no Reino dos Céus” (Trecho 114). Em relação ao trecho de Tomé e aos evangelhos canônicos, estes últimos não fazem referência à transformação de sexo para a entrada no Reino; contudo, em outros textos, como a Passio Sanctarum Perpetuae et Felicitatis, temos o exemplo de Perpétua, aristocrata martirizada no século II, que precisa se transvestir em homem para lutar contra o demônio (Trecho 3). Um outro ponto, no trecho do Evangelho de Tomé, se encerra num embate entre Pedro e Maria, no qual se dá uma disputa de autoridade, problema que já havia sido apresentado em outros apócrifos, como a Pistis Sophia, que data do terceiro século, e o Evangelho de Maria, procedente do segundo século. No caso do Evangelho de Maria, texto de característica gnóstica valentiana (BROWN, 1990, p.97), a protagonista é portadora da Gnose, conhecimento, transmitida por Jesus, que já ascendera aos Céus. Contudo, a revelação de Maria, no texto, apresenta um sério problema, uma disputa inquebrantável entre Pedro e ela, sobre a veracidade dessa revelação: André respondeu e disse aos irmãos: “Dizei o que (desejais) dizer sobre o que ela disse. Eu, pelo menos não acredito que o Salvador disse isso. Pois, certamente, esses ensinamentos são idéias estranhas”. Pedro respondeu e falou sobre essas mesmas coisas. E as questionou sobre o Salvador: “Ele realmente falou com uma mulher sem o nosso conhecimento (e) não abertamente conosco? Vamos todos mudar de posição e ouvi-la? Ele preferiu ela a nós?”.

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Então Maria lamentou e disse a Pedro: “Meu irmão Pedro, o que pensas? Tu crês que eu mesma inventei essas coisas no meu coração, ou que esteja mentindo sobre o salvador?”. Levi respondeu e disse a Pedro: “Pedro, tu sempre foste o exaltado. Agora eu te vejo te opondo a uma mulher como adversários. Mas se o Salvador a fez digna, quem és tu de fato para rejeitá-la? Certamente o Salvador a conhece muito bem. Por isso ele a amava mais do que a nós. Vamos nos envergonhar e nos vestir do homem perfeito e recebê-lo em nós como ele nos comandou e pregar o evangelho, sem proclamar outra regra ou lei além daquilo que o Salvador disse” (Evangelho de Maria, § 18-19).

Pedro e André representam as posições ortodoxas, que negam a validade da revelação gnóstica e rejeitam a autoridade da mulher no ensinamento. O Evangelho de Maria ataca ambas as posições na figura de Maria Madalena, pois ela é amada pelo Salvador, que lhe revela todo o conhecimento e ensinamento superior em que se baseia a tradição apostólica. O fato de existirem embates como esses, retratados nos trechos abordados, levaria, segundo Schotroff, à compreensão de que se firma uma autoridade dentro da comunidade, por meio da imagem de Maria Madalena, que, de acordo com os Evangelhos, é mencionada em primeiro lugar (1995, p.53-54). Por outro lado, redefinições dos papéis sexuais dentro da comunidade se ligavam ao controle da autoridade revelatória, que, é claro, é binária, o que se comprova pela existência, durante o segundo e o terceiro século, de alguns setores da Igreja que reclamavam a autoridade de Pedro e marginalizavam o papel feminino, ao passo que outros reivindicavam o protagonismo de Maria. Portanto, não é difícil entender a confusão, nem a transformação de Maria em prostituta. Mas a importância de Maria Madalena nos escritos gnósticos levanta uma outra questão crucial na análise das origens do cristianismo: a da participação da mulher nas funções eclesiais das comunidades. O bispo Irineu de Lyon observa que especialmente as mulheres são atraídas pelos grupos dos heréticos. Ele fala o seguinte sobre isso: Outro, entre eles, que se gaba de corrigir o mestre, chamado Marcos, espertíssimo na arte mágica com a qual seduzia muitos homens e não poucas mulheres, atraindo-os a si como aos gnósticos e perfeito por excelência, e como detentor da Potência suprema provinda de lugares invisíveis e indescritíveis, é como que o verdadeiro

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precursor do Anticristo. Com este modo de agir e falar seduziu muitas mulheres também na nossa região do Ródano e elas ficaram marcadas na consciência de tal forma que algumas fizeram penitência pública e outras, que não tinham coragem para isso, retiraram-se na solidão, desesperando da vida de Deus. Enquanto umas se afastaram completamente, outras hesitaram e provaram o que diz o provérbio, não estando nem dentro nem fora, e ficaram com o fruto da semente dos filhos da gnose (Adversus Haeresus I, 13.1,7).

Para Irineu, as palavras do grupo herético de Marcos têm especial êxito entre as mulheres por permitirem que estas “profetizem” (Adversus Haeresus, I, 13.3), ao passo que, na Igreja ortodoxa, isso lhes era proibido. Mas, ainda para esse teólogo, o pior era que Marcos permitia que as mulheres atuassem como “padres” na celebração da eucaristia, ao seu lado; “ele entrega o cálice às mulheres” (I, 13.4), ao oferecer a oração da eucaristia e ao proferir as palavras de consagração. Tertuliano expressa a mesma indignação acerca dos cristãos gnósticos: “Essas mulheres hereges – como são atrevidas! Carecem de modéstia, e têm a ousadia de ensinar, de discutir, de exorcizar, de curar e, talvez, até de batizar” (Apology, Trecho 125). Contudo, seu o principal alvo em relação às práticas dessas mulheres era o grupo de Marcião, seu contemporâneo, que as ordenava, em base igual à dos homens, para os cargos de padre ou de bispo. Marcelina, uma mestra gnóstica, viajou até Roma para representar os carpocráticos (Adversus Haeresus, I, 25.6), e afirmava que tinha recebido ensinamentos secretos de Maria, de Salomé e de Marta. Outros grupos, como o dos montanistas, reverenciavam duas mulheres, Prisca e Maximila, como fundadoras do movimento. Noutros grupos, como o dos valentinianos, as mulheres tinham direitos iguais aos dos homens, algumas eram reverenciadas como profetisas, outras exerciam as funções de ensino, evangelização e cura, agindo muitas vezes como padres e bispos. Em contrapartida, nas igrejas ortodoxas, as mulheres eram cada vez mais segregadas e relegadas às funções secundárias. Em relação às comunidades cristãs, algumas mulheres eram designadas, por seus serviços à comunidade, com o mesmo verbo grego – kopiáo (trabalhar, fastigar-se) – com que se designa o trabalho apostólico dos que têm autoridade na comunidade (1 Cor 16,16 e 1 Ts 5,12) ou o próprio trabalho apostólico (1 Cor 15,10; Gl 4,11; Fl 2,16; Cl 1,29) (AGUIRRE, 1995, p. 949). Ser apóstolo não era nada difícil, e uma mulher poderia alcançar esse status; Paulo saúda Júnia, por exemplo, que, sem nenhuma restrição, foi denominada de apóstola (Rm 16,7), juntamente com Andrônico.

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Retomando a Carta Apostólica da Ordinatio Sacerdotalis, um dos argumentos dados por João Paulo II, centrado nas Escrituras, é que Cristo havia feito apóstolos e não apóstolas; dessa forma, não admitindo a ordenação de mulheres, o papa contradiz o exemplo de Júnia, caso em que a noção de apostolado não se limita pelo quesito sexual, tomando por base, antes, a prática evangelizadora. Em relação a Júnia, denominada de apóstola por Paulo, era designada por alguns exegetas, até bem recentemente, como um homem. No texto em grego, aparece como Junias (nome masculino). Essa suposição do nome como masculino, segundo Margareth Macdonald, não ocorre na literatura antiga, nem nos primeiros intérpretes dos textos do Novo Testamento (apud KRAEMER, D’ANGELO, 1990, p.209). Contudo, a autora afirma que essa interpretação passou a ser feita somente a partir da Reforma, e enfatiza que o trecho Rm 16, 17 se referia a dois homens e não a uma mulher, já que esta última opção significaria o posicionamento da mulher no mesmo patamar dos doze apóstolos (apud KRAEMER, D’ANGELO, 1990, p. 209-210). Um outro problema, em relação à definição de papéis sexuais no ofício comunal, foi o de Paulo ter nomeado como diákonos e prostátis a Febe, provavelmente a portadora da Epístola aos Romanos (Rm 16,1). O termo diákonos, segundo Macdonald, era o mesmo usado para designar um ofício masculino que consistia em comandar a comunidade (apud KRAEMER, D’ANGELO, 1990, p.208; FIORENZA, 1992, p.203). A questão levantada é que alguns exegetas, como Lietzmann, interpretam o termo dado a Febe como representativo de uma função comunal voltada para a filantropia, de caráter subalterno (1963, p.146). Contudo, Fiorenza argumenta que alguns exegetas traduzem o termo diákonos, atribuído a Febe, como diaconisa (1992, p. 203). E, segundo a autora, o ofício do diaconato, naquele contexto, na Igreja de Cencréia, não estava limitado por definição de papéis sexuais prescritos. Tanto é que, segundo Macdonald, as escravas interrogadas e torturadas por Plínio, o Jovem, governador da Bitínia no século II (CARTAS 10.96), foram denominadas pelo termo, em latim, de ministra, que provavelmente corresponde a diákonos (apud KRAEMER, D’ANGELO, 1990, p. 208). Entretanto, Macdonald argumenta que, a partir do terceiro e do quarto séculos, o ofício do diaconato, para as mulheres, ficou restrito a trabalhos filantrópicos. Febe também é nomeada pelo termo prostátis, benfeitora, por muitos membros comunais e pelo próprio Paulo. O termo prostátis, na sociedade greco-romana, era dado comumente a algumas pessoas da elite, ao se tornarem benfeitoras e patronas daqueles abaixo do seu status social, seus clientes (SAWYER, 1996, p. 270; FANTHAM, FOLEY, KAMPEN, POMEROY,

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SHAPIRO, 1994, p. 256). No caso do cristianismo, o rico que se convertia entendia estar entrando para uma associação em que esperava exercer sua influência (FIORENZA, 1992, p.216). Nesse sentido, Paulo reconhece, no trecho de Rm 16,1, que Febe é sua benfeitora. Prisca também foi uma mulher que desempenhou, juntamente com Áquila, seu marido, um papel importante ao lado de Paulo, precedendo-o e colaborando com ele no trabalho missionário, mas sem ficar subordinada. Foi mencionada sete vezes, juntamente com o marido, tendo-o precedido na nomeação quatro vezes (1 Cor 16,19; Rm 16,2-5; 2 Tm 4,19; At 18,2-3,26). Pelas indicações dos trechos, Prisca foi missionária destacada e mais conhecida do que Áquila. Segundo os Atos dos Apóstolos 18,26, era instruída, visto que interveio no ensino cristão de Apolo, um alexandrino culto. Prisca e Áquila aparecem em Corinto, Éfeso e Roma, segundo Fiorenza, o que se deveu às viagens que lhes possibilitava sua profissão, a de vendedores de tenda, mesma atividade de Paulo (FIORENZA, 1992, p.213). Eram independentes, já que precederam a Paulo no missionarismo e fundaram a comunidade cristã em Roma. Nas Epístolas, há, ainda, menção escassa a outros casais missionários, como Filólogo e Júlia e Nereu e sua irmã (Rm 16,7). Cerca de cem anos após a morte de Paulo, algumas versões ascéticas da mensagem de Jesus estavam percorrendo rapidamente as cidades da Ásia Menor, onde o próprio Apóstolo havia pregado. Uma dessas versões foi uma narrativa popular, bastante difundida, denominada de Atos de Paulo e Tecla, em que uma jovem virgem renuncia à família e a um casamento vantajoso e inicia um processo de evangelização, convertendo Trifena e um grupo de mulheres: “Ela foi à casa de Trifena e esteve lá durante oito dias instruindo-a na Palavra de Deus, de tal forma que a maioria das suas servas acreditou” (apud PAGELS, 1979, p.85). Para a teóloga Elaine Pagels, os Atos de Paulo e Tecla sintetizam uma visão radical de Evangelho, por Tecla ter quebrado o vínculo com a família e refutado um casamento, declarando a si mesma um membro da “família de Deus” e exercendo o papel de apóstola. A narrativa do missionarismo de Tecla poderia causar-nos estranhamento, por dar a entender, conforme afirma a teóloga brasileira Marga J. Ströher, que as mulheres, na Ásia Menor, região onde surgiu essa narrativa, tinham mais igualdade em relação aos homens (2000, p.150). Contudo, a participação e o comportamento de certas mulheres acarretaram para a ortodoxia mal-estar e um grande problema.

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Algumas Considerações O discurso da Igreja católica frente à ordenação feminina é o ponto de partida na análise desses enfrentamentos, que, pelo que percebemos, são tão antigos quanto atuais. Tanto o grupo dos favoráveis quanto o dos desfavoráveis, na atualidade, concentram-se em posicionar seus discursos, apoiando-se em textos oficiais como legitimação de suas verdades e de suas histórias. A apropriação do passado, por ambos os grupos, lhes dá força e poder para os embates, em que o domínio da memória e suas correntes reconstruções e anulações se ligam e tomam forma para atender a anseios presentes. Os usos do passado nos posicionam diante de um presente em que não podemos entender a história como algo homogêneo, mas como algo constituído de cadeias e imbricações. De certa forma, seria de fato o ofício do historiador entender a história como uma série de embates, construções e desconstruções, sem uma linha de continuidade e harmonia. A observação de Michel Foucault é apropriada para essa questão: Mostrar às pessoas que um bom número das coisas que fazem parte de sua paisagem familiar – que elas consideram universais – são o produto de certas transformações históricas bem precisas. Todas as minhas análises [...] acentuam o caráter arbitrário das instituições e nos mostram de que espaço de liberdade ainda dispomos, quais são as mudanças que podem ainda se efetuar (2006, p.295-296).

Abreviações utilizadas no texto 1 Cor 2 Cor 1 Ts 2 Tm At Cl Fl Gl Jo Lc

Primeira Epístola aos Coríntios Segunda Epístola aos Coríntios Primera Epístola aos Tessalonicenses Segunda Epístola à Timóte Atos dos Apóstolos Epístola aos Colossenses Epístola aos Filipenses Epístola aos Gálatas Evangelho de João Evangelho de Lucas

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Mc Mt Rm

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Evangelho de Marcos Evangelho de Mateus Epístola aos Romanos

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III. TRANSGRESSÕES E AR TES DE VIVER ARTES

9. ROSÁRIOS E VIBRADORES: INTERFERÊNCIAS FEMINISTAS NA ARTE CONTEMPORÂNEA LUANA SATURNINO TVARDOVSKAS

Introdução: arte e feminismo na atualidade IMAGENS DA sexualidade compõem parte significativa da produção artística feminista na atualidade, quando se apresentam ainda críticas às estruturas de poder e à deserotização do corpo. Corpos nus, órgãos genitais coloridos, expostos, adornados compõem um arsenal de figuras inesperadas, que contrastam fortemente com as expressões sexuais apresentadas na mídia, em geral, profundamente simplificadas e banalizadas. Explorar as imagens sexuais na arte feminista suscita inúmeros debates acerca da economia do desejo. Nas próximas páginas, enveredo por esse território erótico e também político, enfocando algumas obras produzidas por mulheres, como a carioca Márcia X, artista visual e performática. Desde a década de 1980, ela aborda temas eróticos e sexuais em sua poética, questionando estereótipos e tabus sobre o corpo e o gênero. O surgimento dessa produção artística pode ser percebido como um acontecimento relativamente recente. De modo descentralizado, constata-se a emergência de uma potente rede de mulheres artistas, ao redor do mundo, que encontra meios sofisticados de denunciar o patriarcado e questionar os tradicionais lugares do feminino. No Brasil, são muitas as que, em maior ou menor grau, unem a prática artística às reflexões feministas, como se pode perceber nos trabalhos de Márcia X., Fernanda Magalhães, Nazareth Pacheco, Rosana Paulino, Cristina Salgado, Rosângela Rennó, Rosana Palazyan, além de muitas outras (HOLLANDA, 2003). No exterior, destacamse os nomes de Sarah Lucas, Ana Mendieta, Jenny Saville, Tracey Emin, Judy Chigago, Orlan etc. Suas poéticas visuais reelaboram importantes pautas

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políticas, como o preconceito sexual e racial, a violência doméstica e o imperativo do corpo belo e jovem. Segundo a historiadora da arte Whitney Chadwick, a arte contemporânea produzida por mulheres investe na formulação de complexas estratégias e práticas, com as quais elas vêm confrontando sua exclusão da história da arte, expandindo o conhecimento teórico e promovendo uma mudança social (1996, p. 422). Dar conta das particularidades dessa produção, através da invenção de novos referenciais teóricos, tem sido uma tarefa fértil dentro do debate feminista, que nos estimula a compreender as obras como um lugar de produção e de negociação da diferença sexual. Num mundo dominado pelo referencial fálico, isto é, pelo olhar masculino fundado em oposições binárias e hierárquicas, a invenção de outros significantes é imprescindível para a emergência da alteridade feminina no terreno das artes. O que está em pauta, portanto, é a invenção de “novos significantes, de maneira a produzir um sistema de significados que permitam ao imaginário feminino e ao simbólico feminino ser verdadeiramente parte integrante da nossa cultura que hoje exila as mulheres” (POLLOCK, 1996, p.75 apud PLATEAU, 2003, web). Um bom exemplo dessa produção é o coletivo Guerrilla Girls, formado por ativistas feministas, desde 1985. Esse grupo reage à discriminação sexual e racial existente nas artes através de ações, performances, panfletos e cartazes, criticando a hierarquia existente nos preços das obras e nos espaços dos museus, que as prejudicam. Guerrilla Girls ataca abertamente os estereótipos misóginos atribuídos às mulheres, em cartazes de protesto. Nestes, lê-se: “I’m not an aunt jemima, ballbreaker, biker chick, bimbo, bitch, bombshell, bra burner, bull dyke, butch, call girl, carmen miranda, china doll, dumb blond, fag hag, femme fatale (...)! Don’t stereotype me!” (“Eu não sou uma tia Anastácia, dominatrix, motoqueira, fútil, puta, gostosona, feminista radical, sapatão, mulher-macho, carmen miranda, bonequinha de luxo, loira burra, GLS, femme fatale (...)! Não me estereotipe!”) (Figura 1). Elas também denunciam incisivamente a desproporção entre o número de mulheres artistas dentro dos museus e o de homens, tanto quanto a superexposição da nudez feminina nas obras de arte. Nesse sentido, elas indagam ironicamente: “Do women have be naked to get into the Met. Museum? Less than 5% of the artists in the Modern Art Sections are women, but 85% of the nudes are female”. (“As mulheres têm de estar nuas para conseguirem entrar no Met. Museum? Menos de 5% dos artistas da Seção de Arte Moderna são mulheres, mas 85% dos nus são femininos”) (Figura 2). Ao utilizarem máscaras de gorila em todas as suas aparições públicas, fato que, aliado ao uso de pseudônimos, mantém-nas em proposital

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anonimato, essas “guerrilheiras” denunciam, de maneira bem-humorada, a homogeneização masculina da cultura, ao mesmo tempo destacada em seu aspecto de grande violência. O coletivo Guerrilla Girls também aplica máscaras de gorila em quadros tradicionais, causando um estranhamento crítico na apreensão dessas imagens. Afinal, a imagem assustadora do gorila é percebida simbolicamente como a dimensão animal e primitiva do humano, estando muito distante da delicadeza e suavidade comumente associadas às mulheres. O uso da máscara selvagem e rude é um modo de manter o foco na ação política e não na identidade das artistas, mas também parece estar conectado à atitude anti-racista do grupo, que alude de modo crítico às associações pejorativas entre pessoas negras e primatas. Ao mostrar os binarismos culturais - mulher/gorila, animal/humano, primitivo/civilizado, negro/branco - esse grupo feminista explicita relações de saber e de poder e opera deslocamentos audaciosos no status quo. A postura contestadora das artistas contemporâneas contra a violência sexista e racista forja potentes ataques ao falocentrismo, que se redefine velozmente na atualidade. Situando-se ética e politicamente, elas reivindicam outros modos de relação com o prazer e com a subjetividade e respondem às complexidades da cultura, ao criticarem os investimentos sobre os corpos e os desejos que estão ainda em pleno vigor (FOUCAULT, 1977).

Crítica do falocentrismo nas artes Causar interferências e ruídos nos enunciados sobre o corpo e a sexualidade, através de representações inusitadas do falo, isto é, do órgão masculino ereto, é uma das estratégias utilizadas por mulheres artistas no questionamento dos valores falocêntricos. Nessa perspectiva, o corpo é tomado como um terreno passível de crítica, perpassado por significados culturais, onde o falo emerge como um símbolo do poder e da virilidade masculinos, que remete a práticas hierárquicas disseminadas na sociedade, como a violência física e simbólica contra mulheres, negros, crianças, “loucos” etc. Para a compreensão da especificidade feminina no terreno das artes, é necessário observar como as escolhas estéticas estão também atravessadas pelas questões de gênero, embora ainda sejam habituais as leituras que tomam as representações da sexualidade nas artes como “naturais”. Exibir o corpo em seu erotismo e prazer não é, certamente, uma abordagem inédita na história da arte, mas captar as motivações e os objetivos das representações contemporâneas feitas por mulheres é imprescindível para que o potencial crítico e criativo dessas imagens apareça. Uma exposição de 2005, intitulada Erótica, os sentidos da arte, de curadoria de Tadeu Chiarelli, propôs que o público observasse “como o

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erótico perpassa a obra de artistas de todas as épocas - desde os ceramistas mochicas, do Peru, passando por nomes conhecidos, até artistas contemporâneos inéditos ou pouco vistos no país” (CHIARELLI, 2005, p.5). Da profusão de obras (mais de 100), restou, numa percepção pessoal, a sensação de que o erotismo e a sexualidade foram apresentados como experiências atemporais, de modo que as obras de arte seriam um meio de “interpretar, traduzir ou manifestar o desejo sexual”, nas palavras do curador. No entanto, ao observar criticamente a produção artística de mulheres na contemporaneidade, um traço de diferenciação aparece. Se muitas de suas obras expressam um desejo feminino pós-emancipação - muito mais livre e difuso -, também revelam um potencial contestador que não seria passível de análise, caso mantivéssemos essas obras dentro de uma “coletânea de imagens eróticas”, como a formulada por Chiarelli para a exposição acima mencionada. Trata-se, portanto, de distinguir o arsenal crítico inventado pelas mulheres em relação ao corpo e à sexualidade. Um exemplo de sucesso e de ousadia nesse tipo de abordagem foi apresentado na exposição Manobras Radicais, de 2006, de curadoria de Heloísa Buarque de Hollanda e Paulo Herkenhoff. O mote foi refletir conceitualmente sobre a participação das mulheres na arte brasileira, unindo obras produzidas desde 1920 até a atualidade (HOLLANDA, 2006). Para o que me interessa aqui, é importante notar que os lugares de fala de artistas contemporâneas, marcados histórica e culturalmente, produzem sentidos singulares em obras que discutem a sexualidade. A perspectiva das mulheres sobre o órgão masculino, apreendido como representação da dominação falocêntrica, é produtora de uma crítica de gênero bastante específica e localizada, que não pode ser colocada no mesmo estatuto de representações do falo produzidas por homens. A feminista Luce Irigaray denuncia como a ordem simbólica de nossa sociedade está fundada em um imaginário masculino, que é preciso subverter através da busca por um significante feminino. O que está em jogo, como alerta, é o fato de que a filosofia ocidental se constitui em torno de um sujeito único. Mesmo que o mundo tenha visto a inserção de outros sujeitos na história recente, o modelo fundamental permanece uno e historicamente masculino (IRIGARAY, 2002). Essa reflexão denuncia como a subjetividade da mulher vem sendo constituída como um outro do sujeito masculino, como um sujeito, portanto, que não compartilha de uma dignidade equivalente. Isto se conforma enquanto um problema ético, na medida em que este outro não existe em sua realidade própria e não é respeitado efetivamente em sua diferença.

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A questão do falocentrismo é delineada, assim, em seus desdobramentos mais sutis, a saber, a própria constituição da subjetividade feminina enquanto inferior à masculina, enquanto uma não-existência simbólica conformada por práticas opressoras. Segundo Griselda Pollock, é fundamental o reconhecimento de que o terreno da arte, mesmo que aparentemente livre e autônomo, é perpassado por essas relações de poder. Desse modo, ela indica a importância da construção de um olhar atravessado pelas questões de gênero, que abandone crenças na neutralidade política das imagens artísticas (POLLOCK, 2003). Na atualidade, o debate acerca da diferença sexual é presente em variadas obras, nas quais, por meio da estratégia de expor o corpo atravessado por interferências não habituais, parece estar em voga o embaralhamento dos signos tradicionais, que conformam as identidades em dois sexos. Assim, quando a artista performática francesa Orlan, mais conhecida por sua chamada carnal art, apresenta uma releitura da conhecida obra de Courbet, “A origem do mundo”, de 1866, nota-se bem como a crítica de gênero povoa a imagem por ela representada (Figura 3). Em seu quadro, que chegou a pertencer a Lacan, Gustave Courbet lança um olhar contemplativo sobre o corpo da mulher, plasmando-o de modo erótico e cheio de vida, distendido sobre os lençóis, numa atmosfera de intimidade absoluta. Aqui o espectador penetra como um voyeur, num tom próximo ao “pornográfico”. O título da obra permite que ela seja apreciada em um sentido metafísico de criação do mundo, como um elogio à vida, através da exposição radical do corpo feminino. Orlan utiliza, assim como Courbet, um enquadramento não usual do corpo, ou seja, a exposição do órgão genital em primeiro plano, com a imagem cortada acima do umbigo e nas coxas (Figura 4). No entanto, ela apresenta um corpo masculino com o pênis ereto, ao invés do feminino pintado por Courbet. A artista dá à tela o título “A origem da guerra” (1989-199?), possibilitando, ao mesmo tempo, a construção de uma nova leitura acerca da obra novecentista e uma reflexão sobre as relações da vida e da guerra com a sexualidade. Se contrastada com a obra de Orlan, “A origem do mundo” de Courbet ressurge como exemplo da construção cultural da mulher como mãe geradora. Orlan também se refere diretamente à belicosidade masculina e levanta a reflexão sobre a associação dessas práticas – maternidade e guerra – com a biologia. Vale lembrar que, no final do século XIX, período em que Courbet viveu e produziu, era forte o desejo de imputar à anatomia feminina as respostas para muitos mistérios da vida (LAQUEUR, 2001). Não se trata, evidentemente, de diminuir a beleza e o impacto do quadro de Courbet, reconhecidos mundialmente, mas de observar como uma artista

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pôde se reapropriar de uma imagem de ampla circulação na atualidade, para questionar o estatuto da guerra, da violência e do pensamento falocêntrico. Se Courbet apresenta a vagina como a origem do mundo, perante a obra de Orlan, as conseqüências dessa representação para as mulheres surgem veementemente. Michelle Perrot indica como esse quadro de Courbet constitui um exemplo de nossa tradição artística, em que o corpo feminino era o principal objeto da arte, mas em que “as mulheres carregavam o silêncio de seus corpos”. Em suas palavras: Falamos daquele corpo exibido, objeto de observação e desejo, mas ele próprio se cala, pois as mulheres não devem falar. O pudor, que prende seus membros e fecha suas bocas, é a marca desta feminilidade. O sexo a enche de mistérios. Um exemplo é um quadro de Courbet, cujo tema, “A origem do mundo”, é representado pelo sexo da mulher (PERROT, 2000 web).

Invertendo o enunciado tradicional, em que as mulheres eram objeto de desejo e passivas ao olhar masculino, Orlan fala e apresenta o corpo do homem nessa mesma situação de exposição constrangedora e obscena. As mulheres assumem a cena e pressionam por novas relações corporais. Ao mesmo tempo, essa relação de denúncia pode também ser percebida em sua dimensão erótica quando o desejo sexual é abordado e experimentado de modo mais libertário, como é o caso dos trabalhos de Márcia X.

O erotismo manifesto de Márcia X A artista performática Márcia X. destaca-se pela acidez com a qual atinge temas como pornografia e religião, confrontando elementos culturalmente antagônicos como sexo e infância, rosários e vibradores. Ela desenvolveu diversas performances e instalações, desde a década de 1980 até seu falecimento, em 2005, em função de uma doença grave. Experimental e ironicamente, essa artista ataca os centros simbólicos do poder, zombando dos estatutos da normalidade e da perversão que padronizam os comportamentos na sociedade contemporânea. As imagens sexuais utilizadas em suas obras levantam a reflexão acerca de novos lugares para o feminino, mais politizados e livres. Márcia X. confronta o modelo abstrato e universal que confinou as mulheres em uma identidade definida pela maternidade e opera deslocamentos que apresentam novas concepções para o erotismo, a beleza e a sexualidade.

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Aqui vale recorrer às discussões trazidas por Laqueur, em Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud, ao desconstruir os mitos relativos à sexualidade. Segundo ele, a diferenciação entre os sexos, no decorrer da história, oscila entre uma explicação onde a mulher é considerada semelhante ao homem, mas com os órgãos sexuais invertidos – sendo, portanto, inferior a ele e outra, predominante em nossos tempos, em que os dois sexos são apreendidos como absolutamente distintos e não equivalentes. Estas ordens discursivas baseiamse não apenas em supostas evidências médicas e anatômicas, mas mantêm-se profundamente atreladas aos modos como cada sociedade percebe culturalmente as diferenças entre os gêneros (LAQUEUR, 2001). Márcia X., em sua produção, parece compartilhar desse enfoque de desnaturalização do sexo, criando obras que geram transtornos nos enunciados tradicionais, os quais associam os papéis de gênero ao estatuto do corpo biológico. Ela subverte as imagens tradicionais e polarizadas de um feminino casto ou vampirizador e conjuga uma forte dimensão erótica a uma crítica feminista. Nesse sentido, merece destaque sua instalação “Os Kaminhas Sutrinhas”, de 1995, apresentada no Espaço Cultural Sérgio Porto (Figura 5). Nela, a artista expõe bonecos de plástico, sem roupas e sem cabeça, colocados sobre trinta camas pequenas no chão da galeria. Agrupados em duplas e trios, os bonecos executam mímicas sexuais de forma mecânica e constante, toda vez que um espectador aciona um pedal. Cada “kaminha” é enfeitada com bordados, possui lençol e travesseiro trabalhados com motivos infantis. Como os brinquedos foram projetados originalmente para engatinhar, a artista os liga uns aos outros por finos fios de aço, o que simula uma movimentação sexual. Ao mesmo tempo, os bonecos entoam a música “It’s a small world”, tema da Disneylândia, porque possuem chips musicais, gerando uma cacofonia de sons que intensifica a violência da movimentação mecânica. A artista coloca os bonecos em posições sexuais excêntricas, expondo com humor todo um catálogo de “perversões”. Como os bonecos não possuem cabeça, nem mesmo representação de órgãos sexuais, Márcia X. parece brincar com os signos de identificação hetero/homossexual/feminino/ masculino. O espectador não pode distinguir através do olhar, mas é convidado a imaginar quais corpos estão sobre aquelas camas. Dessa instalação também deriva uma crítica às práticas monogâmicas e heterossexuais, já que nenhum dos grupos de bonecos executa a tradicional posição “papai-mamãe”. Márcia X. parece ridicularizar o modo como nossa sociedade compreende e também faz sexo, pois apresenta a relação sexual de modo mecânico, asséptico e frio, aproximando-se de críticas feministas que denunciam como a heterossexualidade estimula preconceitos, poda o desejo e controla os corpos.

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É bastante interessante observar a produção de Márcia X. nestes termos, pois a artista produz uma brincadeira de duplo sentido: uma crítica às padronizações da sexualidade em nosso mundo (vide a trilha sonora irônica do “It’s a small world”, plastificada e mecânica), ao mesmo tempo em que proclama novas questões acerca dos modos como lidamos com o prazer e com o desejo. O título da obra, “Os Kaminhas Sutrinhas”, remete diretamente à Arte Erótica Oriental, cujo livro Kama Sutra é seu maior expoente. A artista parece ironizar assim a apropriação banalizada que o Ocidente faz das práticas Orientais, já que, na atualidade, o livro Kama Sutra é vendido em postos de gasolina, como se fosse um guia prático de orgasmos. A arte de amar – tradição perdida na atualidade - se tornou apenas a reprodução de poses excessivas, “Kaminhas Sutrinhas”, associação transgressiva de Márcia X. entre as esferas antagônicas das “perversões sexuais”, que são realizadas por bonequinhos infantis acéfalos. É possível observar essa instalação como sendo uma crítica à erotização infantil na atualidade, já que a artista sacode o tabu sexo/infância, aproximando esses dois temas incompatíveis moralmente. No entanto, notase, a cada dia, como as crianças são perversamente erotizadas na mídia, na música ou na propaganda. Márcia X. radicaliza essa erotização, dando destaque a um procedimento naturalizado, que faz parte de nosso cotidiano, mas que é preciso estranhar e combater (FELIPE, 2006). Márcia X. indica como a indústria pornográfica banaliza a experiência sexual, através da superexposição do corpo. Ela também infantiliza o pornográfico através do humor, evidenciando como essas práticas sexuais são correntes na sociedade. Tratando o tema com leveza, mas também com ironia, a artista ridiculariza os ícones da cultura falocêntrica, produzindo um olhar transversal.

Imagens do falo Em “Fábrica Fallus” (1992-2004), a artista forma uma série de objetos a partir da composição de vibradores comprados em sex shops com objetos variados, como medalhas religiosas, pompons, pequenos espelhos, etc. Os pênis de plástico, eretos e vigorosos são conjugados com elementos infantis, religiosos e femininos, adquirindo “faces” bem humoradas, como bispos, palhaços, amantes etc. Ela retira esses objetos de estimulação sexual das prateleiras das lojas, expondo segredos e desejos a eles relacionados e os transforma em imagens simultaneamente fálicas e femininas, pornográficas e infantis, sagradas e

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profanas. Um desses objetos remete a rituais sadomasoquistas, pois é formado de um objeto de estimulação sexual para dupla penetração; a artista amarra os dois pênis com correntes prateadas, também envolvendo o maior deles com pequenos espelhos. Outro está “vestido” com um casaco de peles formado por pés de coelhos e exibe o símbolo sexy do coelhinho da Playboy. Existe ainda o vibrador coberto por medalhinhas douradas de santos e que possui uma cruz de ponta-cabeça na ponta do pênis, remetendo a uma imagem católica (Figura 6). Outro se observa num pequeno espelho cor-derosa, que está acoplado na parte de cima do consolo e que se volta para ele (Figura 7). A “Fábrica Fallus” de Márcia X. ironiza a obsessão com a sexualidade característica da sociedade contemporânea, ao sugerir a fabricação de pênis em série: uma maquinaria que não pára de produzir ícones do desejo, de adaptar os “produtos” a toda sorte de gostos, de recriar e multiplicar o poder do falo. É uma imagem do que Foucault observou acerca da explosão discursiva sobre o sexo em nossa sociedade. Esse filósofo buscou compreender como a sexualidade foi colocada no centro da existência na Modernidade, como ela se tornou algo que seria preciso conhecer, examinar, classificar e vigiar, como se tornou o lugar privilegiado onde a “verdade” mais profunda do indivíduo residiria. Sagazmente, Foucault reverteu o discurso tradicional, que dizia ser a sexualidade reprimida, indicando como paralelamente às repressões constituiu-se todo um discurso de controle e poder, que nos incita a falar de sexo e a colocá-lo no centro de nossa ontologia. Positividade do poder, produtividade do sexo (FOUCAULT, 1977). A desestabilização dos símbolos do masculino promovida por Márcia X. parece também se remeter à crítica da psicanálise, visto que diferentes mulheres artistas insinuam sua desconfiança em relação a um saber que produz a diferença sexual de modo hierárquico e que possibilita a disseminação de crenças de senso comum, como a “inveja do pênis” ou o “medo da castração”. As discussões de Rosi Braidotti acerca do Complexo de Édipo, que para a psicanálise é o momento da diferenciação da masculinidade e da feminilidade, explicitam bem as divergências teóricas (com repercussões práticas) do feminismo em relação às explicações lacanianas. Se a castração é uma falta representada pelo significante fálico, uma castração pressupõe o falo como ponto de referência. Braidotti argumenta que, se toda a economia do desejo está enraizada no falo, atribuído ao pai, para o menino, isso reverberaria na descoberta da insuficiência por não ter um falo tão poderoso quanto o do pai e, para a

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menina, constituiria a não-existência simbólica do falo, do poder. Ela esclarece, assim, que uma coisa é dizer que o Complexo de Édipo é a fonte de todas as neuroses, outra é reconhecer que ele patologiza a sexualidade feminina e a feminilidade (BRAIDOTTI, 1997, p. 336). Para a menina não existe saída ideal para o Complexo de Édipo. A psicanálise constitui uma das importantes matrizes discursivas que produzem e legitimam saberes sobre o corpo e a sexualidade no mundo pósmoderno. No âmbito feminista, o saber psicanalítico é debatido porque reafirma a centralidade do falo na constituição da psique humana. O falo, representação do órgão masculino ereto, tem sentido de operador simbólico na psicanálise e é entendido não como uma fantasia ou como órgão sexual em si, embora o simbolize, mas como um significante. A arte contemporânea produzida por mulheres dialoga com essas críticas, desnaturalizando o olhar sobre o corpo e sobre o gênero, através de imagens que nos permitem estranhar e questionar categorias estanques. Podemos ampliar nossa percepção sobre a produção de Márcia X. se destacarmos como essa artista polemiza com a idéia psicanalítica da centralidade do falo. Ela capta e denuncia essa estratégia do poder com um toque de sarcasmo. Delineia-se, de modo cômico, uma crítica ao falocentrismo, arquitetada através da própria prática cultural do enaltecimento heróico do masculino. Os pênis fortes eretos - símbolos da masculinidade e do vigor da raça em outros tempos - são ironizados e ridicularizados, ao mesmo tempo em que sua carga erótica é potencializada.

Sagrado e profano Márcia X. também explicitou o estatuto do corpo carregado por sentidos morais e religiosos, através da performance “Desenhando com Terços”, polêmica obra que causou reações de indignação por parte da comunidade artística por ter sido censurada pelo Centro Cultural Banco do Brasil/SP, em 2006 (Figura 8). Nesta performance, a artista preenche uma sala de vinte metros quadrado, com desenhos de pênis feitos com rosários, que posteriormente mantêm-se em exposição. O trabalho se estende lentamente, até que toda a superfície esteja preenchida com imagens (simplificadas, estilizadas, icônicas) do órgão sexual masculino. Segundo Ricardo Basbaum, a artista parece “arrancar de um dos símbolos religiosos algo que está ali inscrito (o perigo da carne) e que os imperativos morais da religião preferem ocultar, privilegiando o espírito desencarnado” (BASBAUM, 2003, web). A relação traçada entre religiosidade e sexualidade é imediata e se torna cada vez mais importante, perante o incremento da repressão ao uso de

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preservativos, à liberdade de opção sexual etc. Enfrentando o tabu, Márcia X. produz um ritual sagrado/profano, ritualístico mas irreverente, vestida de branco, como uma virgem, mas com longos cabelos revoltos, como uma rebelde. Evidencia que a mulher assexuada, santificada e glorificada pelo imaginário ocidental agora se radicalizou e se autonomizou. Erotização rompante presente no gesto obsessivo e persistente de desenhar pênis com terços. Márcia X. parece reativar uma carga de potência existente na sexualidade, distinguindo-se de uma crítica rancorosa que proclama o ódio ao masculino e que acabaria também por negar os próprios corpos, o desejo, o prazer. A intersecção de práticas misóginas e hierárquicas constitui a lógica falocêntrica de saber-poder nas sociedades ocidentais. Longe de constituirse como uma linearidade que atravessa todos os tempos históricos, a dominação masculina tem características específicas e bem datadas em diferentes sociedades. É interessante notar, em contraste à percepção contemporânea do sexo, que a representação do falo possuía sentidos muito distintos na Antiguidade e que, nas sociedades da época, a experiência da sexualidade compartilhava o espaço do sagrado e da felicidade. Aqui cabe uma breve digressão. Estudiosos da Antiguidade desmontam pretensas leituras de um falocentrismo a-histórico, mostrando as particularidades das relações das sociedades antigas com a sexualidade e com a iconografia erótica. Nessa direção, o historiador Pedro Paulo Funari, em contraposição às leituras que convidam ao senso comum, observa que as representações romanas do falo e da união carnal teriam uma conotação positiva e quase religiosa. Funari avalia que a própria palavra falo estava primordialmente associada aos objetos religiosos em forma de pênis, utilizados no culto a Baco. Deuses como Príapo, Pã, Fauno e Mercúrio também eram associados ao falo. Ligadas à fecundidade, à vida e à sorte, as representações fálicas permeavam a vida cotidiana e eram comuns em amuletos, campainhas e figas, destinados a afastar desgraças e trazer boa fortuna. O sentido dessas imagens, segundo o historiador, residia na relação entre o falo e a fertilidade: Recorde-se que a palavra latina felicitas significa, a um só tempo, “felicidade” e “sorte”, ambos os sentidos derivados do significado original felix, ‘fértil’. O falo, elemento básico da fertilidade, traz, portanto, sorte e felicidade (FUNARI, 2003, p.320).

Funari observa que na Antiguidade romana o poder do falo advinha de sua associação com a fertilidade e que, mais do que atribuir esse poder

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somente ao homem, poderíamos conceber que as mulheres dessa sociedade também compartilhavam de seu sentido, já que era a “relação sexual” que estaria implícita nesse símbolo. Sem desconsiderar a estrutura patriarcal da sociedade romana, nem a supremacia masculina associada ao falo, Funari aponta a cautela necessária para o estudo de sua simbologia, trazendo uma importante contribuição para que diferenças apareçam. O poder do falo, associado à cópula, parece não se resumir apenas à opressão e à violência masculina naquela sociedade, mas também era sinônimo de liberdade e de segurança. Destacar, mesmo que brevemente, sentidos outros para a representação do falo, observando seu papel dentro da sociedade romana, fornece uma interessante perspectiva para a análise de obras de arte contemporâneas. O espaço de representação do falo, na Antiguidade romana, era o próprio cotidiano, pois circulava como imagem em pinturas parietais, dentro das casas ou em representações mitológicas. Nas obras de artistas contemporâneas, o falo pode ser utilizado como um elemento cultural que representa a supremacia da lógica falocêntrica, ao mesmo tempo em que permite explicitar como a sexualidade foi exaustivamente investigada, patologizada e esvaziada de sentido, estando muito longe da simbologia Antiga da liberdade e do sagrado. Márcia X. parece criticar essa lógica atual ao exacerbar a potência criativa do erotismo, ao modo dos surrealistas, como Bataille, manifestando uma autonomia audaciosa e ao mesmo tempo crítica do moralismo religioso e da sacralização do falo. O discurso do falo, que é o discurso do poder, está presente na relação obsessiva que a Modernidade construiu entre sexualidade e identidade. Já na abordagem de Márcia X., existe uma imaginação sexualizada, viva e libertina, que utiliza a força do erotismo como meio de desestabilizar e desconstruir o próprio discurso do poder. Sua formação católica é retomada e ironizada, talvez como estratégia de ruptura com um passado que perde sentido e força. A crítica aos elementos sagrados do passado, como o rosário, e a denúncia da sacralização dos produtos de consumo, como a Coca-Cola ou os próprios vibradores, operada pelo mercado, emergem com acidez em suas obras.

Conclusão: paradoxos do corpo e da sexualidade Artista múltipla, Márcia X. faz coexistir em sua produção concepções paradoxais em relação ao corpo e à sexualidade. Apropriando-se de maneira singular da crítica feminista, mescla elementos materiais e simbólicos como rosários e vibradores, bonecos infantis e relações sexuais. A sagacidade em

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rebater os ícones do patriarcado e da moral tradicional denota sua coragem de enfrentar os símbolos do poder na sociedade contemporânea. Ela não proclama ódio ao masculino, mas incorpora muitos elementos da crítica feminista à pornografia, à psicanálise e ao mito da essência materna da mulher. Tampouco desmerece o prazer, como vemos em “Fábrica Fallus”: ela celebra de maneira divertida a liberdade sexual, as fantasias e o erotismo, contrariando posturas feministas que, por vezes, são dessexualizantes. Um olhar singular é inventado, à margem das convenções sociais e artísticas. Se o terreno da arte oferece restrições e preconceitos às mulheres artistas, Márcia X. povoa-o de risos, de ironias e de imagens inusitadas. Sua poética visual denota um desejo de desfazer as identidades fixas, potencializando a experiência de conectar arte e vida. Porém, é preciso ter em vista que nem todo fazer artístico feminino se presta a essa vontade desestabilizadora. É precisamente o compromisso intempestivo das artistas aqui contempladas – esteticamente situadas em suas experiências de gênero – que nos leva a compreender como a criação artística feminina, na atualidade, participa de uma crítica à cultura contemporânea. O embaralhamento dos signos tradicionais e a fragmentação do corpo, nessas obras, pontuam a insatisfação com um imaginário masculino que não permite integrar as práticas femininas na constituição das esferas política, afetiva, cultural etc. Rompendo com as conformações convencionais do corpo e do gênero, jovens artistas nacionais e internacionais utilizam a força das imagens para a formulação de outros modos de lidarmos com o desejo, com a sexualidade e com a subjetividade. Elas captam o funcionamento dos jogos de poder e atacam suas estratégias mais sutis. O potencial crítico dessa geração de mulheres artistas, que ousam desfazer oposições binárias e lidar com paradoxos, merece ser destacado.

BIBLIOGRAFIA BASBAUM, R. ““X”: Percursos de alguém além de equações”. Revista Concinittas, Rio de Janeiro: Instituto de Artes da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), n. 4, ano 4, mar 2003. Disponível em: http://marciax.uol.com.br/ mxText.asp?sMenu=4&sText=43 BRAIDOTTI, R. “A política da diferença ontológica”. In: BRENNAN, T. (Org.) Para além do falo – uma crítica a Lacan do ponto de vista da mulher. Rio de Janeiro Record: Rosa dos Tempos, 1997, p. 123-144. CHADWICK, W. Women, Art and Society. Londres: Thames and Hudson, 1996.

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Sites http://www.guerillagirls.com/ http://www.orlan.net/fr/php/index.php

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Figura 1 – Guerrilla Girls

Figura 2 – Guerrilla Girls

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Rosários e vibradores: interferências feministas na arte contemporânea

Figura 3 - Gustave Courbet, « L’origine du monde », 1866, Museé D’Orsay, França.

Figura 4 - Orlan, « Origem da guerra » segunda versão, 1989-199 ?, oito exemplares.

Luana Saturnino Tvardovskas

Figura 5 – Márcia X., “Os Kaminhas Sutrinhas”, Instalação, 1995, Coleção Gilberto Chateaubriand.

Figura 6 - Márcia X., Sem título, Série Fábrica Fallus, 1992 – 2004.

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Rosários e vibradores: interferências feministas na arte contemporânea

Figura 7 - Márcia X., Sem título, Série Fábrica Fallus, 1992 – 2004.

Figura 8 - Márcia X., “Desenhando com terços”, registro de performanceInstalação realizada na Casa de Petrópolis - Instituto de Cultura (sala de jantar em processo de restauro), julho de 2000. Foram usados 500 terços (montados dois a dois). A sala mede 4 X 5m. A performance durou 6h.

10. “UM BEIJO PRESO NA GARGANTA”: CONTRACULTURA E ESTÉTICAS DA EXISTÊNCIA NA CANÇÃO BRASILEIRA DOS ANOS 1960 E 70 ANA CAROLINA A. T. MURGEL

FOUCAULT AFIRMOU, em uma entrevista, acreditar que, em breve, haveria uma nova busca por uma estética da existência, percebendo, em meados dos anos 1980, que “a idéia de uma moral como obediência a um código de regras está desaparecendo, já desapareceu” (FOUCAULT, 2004, p.290). A quebra da obediência às regras teve seu auge no final dos anos 1960, quando eclodiram globalmente os movimentos juvenis de contestação. Uma nova estética despontou nesse momento, muito próxima à estética libertária proposta desde o século XIX pelos anarquistas; a vida pôde transformar-se em arte, o que pode ser observado na produção musical e poética do período, que se estendeu para a próxima década e abriu os caminhos para a cultura contemporânea. No Brasil, as manifestações contraculturais ocorreram inicialmente nas artes, em especial na música, com o Tropicalismo, na poesia, nas artes plásticas, no teatro Oficina e no Cinema Novo, com destaque para o filme Terra em Transe, de Glauber Rocha. Essas manifestações foram duramente criticadas pela esquerda brasileira como frutos de alienação, como lembra com clareza Fernando Gabeira: Naquele momento, enquanto estávamos nos preparando para fazer a luta armada contra a ditadura militar, éramos talvez muito radicais e muito estreitos na nossa compreensão do mundo. Nós gostávamos de arte desde que a arte tivesse as nossas posições políticas. Mais ainda: nós gostávamos muito da arte desde que ela fosse quase um panfleto (GABEIRA, 2000, p.73)

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“Um beijo preso na garganta”

O Tropicalismo emerge nos anos 1967 e 1968 e, através da produção artística desse grupo, evidencia-se a busca por uma estética da existência questionadora da moral vigente, assim como a recusa por uma identidade fixa, ao contrário do que parece ser proposto por várias leituras sobre a Tropicália até o momento, as quais vêem nesse movimento, por exemplo, a busca de uma “identidade nacional” ou do “genuinamente brasileiro”, tal como teria acontecido no movimento modernista de 1922. Essa é a proposta do debate organizado em outubro de 1997, na Universidade de Brasília (UNB), intitulado “A Forma da Festa - Tropicalismo: a explosão e seus estilhaços”. Apesar do “ismo” somado à Tropicália por um grupo de intelectuais, entre eles Glauber Rocha, Cacá Diegues, Gustavo Dahl, Arnaldo Jabor, Luís Carlos Barreto e Nelson Motta (CALADO, 1997), não era a intenção de Gilberto Gil e Caetano Veloso transformar em doutrina ou sistema a experimentação musical que faziam. A proposta era universalizar a música brasileira que produziam, admitindo as influências externas, em especial do rock, do iê-iê-iê dos Beatles e da inclusão da guitarra, o que já vinha acontecendo na Jovem Guarda, de forma não crítica. Antes do “batismo” do movimento, os dois compositores chamavam seus experimentos de “som universal”, ou “som livre”. Vale lembrar que tanto a crítica pela “perda de uma identidade nacional”, como a “colonização” da canção brasileira são fenômenos reincidentes na história da música brasileira, cantados em versos por nomes como Assis Valente e Noel Rosa, em canções como “Good-bye” (“Good-bye, good-bye, boi/ deixa a mania do inglês/ fica tão feio pra você/moreno frajola/ que nunca frequentou/as aulas da escola...”) (VALENTE, 1933) e “Não tem Tradução” (“O cinema falado/ é o grande culpado/da transformação/ Dessa gente que sente/ que um barracão/ prende mais que um xadrez/ lá no morro/se eu fizer uma valseta/ a Risoleta desiste logo/ do francês e do inglês...”) (ROSA, ALVES, SILVA, 1933). A busca de uma “identidade nacional”, nesse período, era defendida no Anteprojeto do Manifesto do Centro Popular de Cultura (CPC), através de um discurso nacional, populista e paternalista, que conclamava o artista a ser povo (HOLLANDA, 2004), optando inclusive por uma linguagem simples para ser compreendido pelas massas. A maior parte dos compositores brasileiros da chamada MPB, no final dos anos de 1960, ainda se encontrava, de maneira geral, vinculada a essas idéias. Para o jornalista Carlos Calado, a marcha de 17 de julho de 1967 em defesa da música brasileira (que acabou ficando conhecida como “passeata contra as guitarras”) foi uma estratégia de marketing contra o sucesso que o programa da Jovem Guarda estava fazendo na televisão, “roubando o

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público” do programa O Fino da Bossa, comandado por Elis Regina e Jair Rodrigues. Gilberto Gil, que também compartilhara dos ideais do CPC, participa dessa passeata muito mais por se sentir em dívida com Elis Regina do que por concordar com os motivos do movimento. Caetano não participou, convencido pelos argumentos de Nara Leão, que também se recusou a aderir: para a cantora, “o que estava em jogo não era o aparente conflito ideológico entre a MPB e o iê-iê-iê, mas sim a queda da audiência de um programa de TV e o conseqüente prejuízo para os envolvidos, os artistas e a emissora” (CALADO, 1997, p.109). A cantora teria afirmado, assistindo à passeata com Caetano, “Isso aí é um horror! Parece manifestação do Partido Integralista. É fascismo mesmo!” (CALADO, 1997, p.109).

“Sem lenço, sem documento” O desprendimento de uma identidade fixa, o questionamento da moral “pequeno-burguesa”, assim como críticas contundentes àqueles que se recusavam a aceitar as referências externas podem ser encontrados nas letras das canções e nas poesias dessa geração de artistas, que é o que passo a analisar agora. Versando ou não sobre temas da contracultura, as letras e poesias apresentam um forte posicionamento ético e estético desses músicos e poetas. O primeiro marco é certamente “Alegria, alegria”, de Caetano Veloso. Composta especialmente para o festival da TV Record em 1967, a letra da canção traz recortes cinematográficos com sobreposições de imagens do universo pop, além de apontar para a negação de uma identidade: Caminhando contra o vento Sem lenço sem documento No sol de quase dezembro Eu vou O sol se reparte em crimes Espaçonaves, guerrilhas Em Cardinales bonitas Eu vou Em caras de presidentes Em grandes beijos de amor Em dentes pernas bandeiras Bomba e Brigitte Bardot O sol nas bancas de revista Me enche de alegria e preguiça

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Quem lê tanta notícia? Eu vou Por entre fotos e nomes Os olhos cheios de cores O peito cheio de amores vãos Eu vou Por que não? Por que não? Ela pensa em casamento E eu nunca mais fui à escola Sem lenço sem documento Eu vou Eu tomo uma coca-cola Ela pensa em casamento E uma canção me consola Eu vou Por entre fotos e nomes Sem livros e sem fuzil Sem fome sem telefone No coração do Brasil Ela nem sabe até pensei Em cantar na televisão O sol é tão bonito Eu vou Sem lenço sem documento Nada no bolso ou nas mãos Eu quero seguir vivendo amor Eu vou Por que não? Por que não? (VELOSO, 1967)

A frase “nada no bolso ou nas mãos” é uma citação de “As Palavras”, autobiografia de Jean-Paul Sartre (“nada no bolso e nada nas mãos”) (CALADO, 1997, p.120), mas era também a postura adotada, nesse período, pelos hippies, que se recusavam ao consumismo e às identificações. A composição ficou em terceiro lugar no Festival da Record, o que causou grande irritação aos “emepebistas”: além do arranjo com guitarras, Caetano era acusado pela esquerda radical de alienado e imperialista, por trechos como “Eu tomo uma Coca-cola”, “ ou “Por entre fotos e nomes/ sem livros e sem fuzil/ sem fome e sem telefone/ no coração do Brasil” – uma canção pacifista em tempos de guerrilha era inaceitável.

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Não me parece ter sido gratuito o enxerto de Geraldo Vandré em “Pra não dizer que não falei das flores”, canção que conclama à luta armada e à “revolução proletária”, inscrita no FIC, da TV Globo no ano seguinte: “Pelos campos há fome/em grandes plantações/pelas ruas marchando indecisos cordões/ainda fazem da flor seu mais forte refrão/e acreditam nas flores vencendo o canhão” (1968) – o trecho parece responder à canção de Caetano. Sobre essa questão da revolução proletária e do posicionamento dos tropicalistas, outra canção que chama a atenção é “Classe Operária”, de Tom Zé, gravada num show de 1984: Sobe no palco o cantor engajado Tom Zé que vai defender a classe operária, Salvar a classe operária e cantar o que é bom para a classe operária. Nenhum operário foi consultado não há nenhum operário no palco talvez nem mesmo na platéia, mas Tom Zé sabe o que é bom para os operários. Os operários que se calem, que procurem seu lugar, com sua ignorância, porque Tom Zé e seus amigos estão falando do dia que virá e na felicidade dos operários. Se continuarem assim, todos os operários vão ser demitidos, talvez até presos, porque ficam atrapalhando Tom Zé e o seu público, que estão cuidando do paraíso da classe operária. Distante e bondoso, Deus cuida de suas ovelhas, mesmo que elas não entendam seus desígnios. E assim, depois de determinar qual é a política conveniente para a classe operária, Tom Zé e o seu público se sentem reconfortados e felizes e com o sentimento de culpa aliviado. (TOM ZÉ, 1998)

Essa postura cômica e irônica contra a esquerda radical também será adotada posteriormente, nos anos 1980, pelo conjunto Língua de Trapo, na Vanguarda Paulista, em especial na canção em ritmo de moda de viola “Deusdéti”: “Ocê só pensa em champanhe, caviar e noutros produtos

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“Um beijo preso na garganta”

chiques/ Esquece sempre que o seu futuro noivo é do Partido Bolchevique/ Tem certos dias que me dá um nó na garganta/ Daqueles bem morfético/ Porque você rejeita o materialismo dialético/ Não pude, não pude/ Não pude ir jantar com você no Maquesude” (MELO, 1985). A poeta Alice Ruiz também questionou, em versos, a arte panfletária: se eu fizer poesia com tua miséria ainda te falta pão pra mim não (RUIZ, 1980, p.7)

E Paulo Leminski: en la lucha de clases todas las armas son buenas piedras noches poemas (LEMINSKI apud HOLLANDA, 1982, p. 18)

No FIC de 1968, Caetano Veloso questionava o desejo de poder, ao ser duramente vaiado pelo público, em peso na torcida pela canção de Vandré, antes mesmo de conseguir apresentar sua canção “É proibido proibir”: Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder? (...) São a mesma juventude que vão sempre, sempre, matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem! Vocês não estão entendendo nada, nada, nada, absolutamente nada. (...) Mas que juventude é essa? (...) Vocês jamais conterão ninguém. Vocês são iguais sabem a quem? (...) Àqueles que foram na Roda Viva e espancaram os atores! Vocês não diferem em nada deles, vocês não diferem em nada. (...) O problema é o seguinte: vocês estão querendo policiar a música brasileira. (...) Se vocês, em política, forem como são em estética, estamos feitos!

Essa contestação contra o desejo de poder marcou profundamente parte da juventude e dos artistas, nesse período. Para Deleuze, o Maio de 68 foi definitivo, inclusive nas preocupações de Foucault. Segundo ele,

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Há sim uma radicalização: 68 pôs a nu todas as relações de poder, em toda parte onde se exerciam, isto é, em toda parte. Antes Foucault tinha analisado sobretudo formas, agora ele passa às relações de força subjacentes às formas. Salta para dentro do informe, de um elemento que ele mesmo chama de “microfísico”. (DELEUZE, 2000, p.130)

Aqui no Brasil, a moral e os costumes da classe média foram duramente criticados em diversas canções, que apontavam ainda o profundo conflito entre as gerações naquele momento. É o caso de “Mamãe coragem” (“Mamãe, mamãe, não chore/ Pegue uns panos pra lavar/ Leia um romance/ Veja as contas do mercado/ Pague as prestações/ Ser mãe/ É desdobrar fibra por fibra/ Os corações dos filhos/ Seja feliz/ Seja feliz/ Mamãe, mamãe, não chore/ Eu quero, eu posso, eu quis, eu fiz/ Mamãe, seja feliz”) (VELOSO, TORQUATO NETO, 1968b), “Eles” (“Em volta da mesa/ Longe do quintal/ A vida começa/ No ponto final/ Eles têm certeza/ Do bem e do mal/ Falam com franqueza/ Do bem e do mal/ Crêem na existência do bem e do mal (...)/ Alegres ou tristes/ São todos felizes durante o Natal”) (VELOSO, GIL, 1967), “Panis et circenses” (“Mas as pessoas na sala de jantar/ São ocupadas em nascer e morrer”) (GIL, VELOSO, 1968), “Ele falava nisso todo dia” (“Ele falava nisso todo dia/ A herança, a segurança, a garantia/ Pra mulher, para a filhinha, pra família/ Falava nisso todo dia”) (GIL, 1968), “Ai de mim, Copacabana” (“Nossos filhos nosso fusca/ Nossa butique na Augusta/ O Ford Galaxie, o medo/ De não ter um Ford Galaxie”) (VELOSO, TORQUATO NETO, 1968a), “Com a boca no mundo” (“Quantas vezes eles vão me perguntar/ Se eu não faço nada a não ser cantar,/ Quantas vezes, eles vão me responder/ Que não há saída a não ser morrer!”) (CARLINI, MARCUCCI, LEE, 1976). Essa crítica é radicalizada por poetas como Paulo Leminski, na canção “Verdura” (“De repente vendi meus filhos/ pra uma família americana/ eles tem carro, eles tem grana/ eles tem casa e a grama é bacana/ só assim eles podem voltar/ e pegar um sol em Copacabana”) (LEMINISKI, 1981), ou Pedro Laje, poeta carioca, em “Traquinagem” (“Como papai passou muito mal a noite/ resolvemos matá-lo”) (LAJE apud HOLLANDA, 1982, p. 79). As explosões da sexualidade, do amor livre e do casamento aberto aparecem em canções como “Ave Lúcifer” (“As maçãs envolvem os corpos nus/ Nesse rio que corre/ Em veias mansas/ Dentro de mim”) (BAPTISTA, JONES, DECÁRIO,1970), “O seu amor” (“O seu amor/ Ame-o e deixe-o/ Livre para amar (...)/ Ir aonde quiser (...)/ O seu amor/ Ame-o e deixe-o brincar/ Ame-o e deixe-o correr/ Ame-o e deixe-o cansar/ Ame-o e deixe-o dormir em paz”) (GIL,1976), “Pai e mãe” (“Eu passei muito tempo/ Aprendendo a beijar/

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“Um beijo preso na garganta”

Outros homens/ Como beijo o meu pai”) (GIL,1975), “Perigosa” (“Sei que eu sou bonita e gostosa / E sei que você me olha e me quer/ Eu sou uma fera de pele macia/ Cuidado garoto, eu sou perigosa/ Eu tenho um veneno no doce da boca/ Eu tenho um demônio guardado no peito/ Eu tenho uma faca no brilho dos olhos/ Eu tenho uma louca dentro de mim”)(LEE, CARVALHO, MOTTA, 1979), ou em “Sandra” (“Amarradão na torre dá pra ir pro mundo inteiro/ E onde quer que eu vá no mundo, vejo a minha torre/ É só balançar/ Que a corda me leva de volta pra ela:/ Oh, Sandra”) (GIL,1977). As drogas e a loucura, a dissolução do eu, a estética, a gíria e os conflitos que caracterizaram essa geração também é tema de muitos poemas e canções, como “Vapor barato” (“Oh, sim, eu estou tão cansado/ Mas não pra dizer/ Que eu não acredito mais em você/ Com minhas calças vermelhas/ Meu casaco de general/ Cheio de anéis/ Vou descendo por todas as ruas/ E vou tomar aquele velho navio/ Eu não preciso de muito dinheiro/ (Graças a Deus)”)(MACALÉ, SALOMÃO, 1971), “Balada do louco” (“Dizem que sou louco/ Por pensar assim/ Se eu sou muito louco/ Por eu ser feliz/ Mais louco é quem me diz/ Que não é feliz, não é feliz (...)/ Eu juro que é melhor/ Não ser um normal/ Se eu posso pensar/ Que Deus sou eu”) (BAPTISTA, LEE, DIAS, 1970) “Ando meio desligado” (“Ando meio desligado/ Eu nem sinto meus pés no chão”); “Olho de lince” (“Quem fala que sou esquisito hermético/ É porque não dou sopa estou sempre elétrico/ Nada que se aproxima nada me é estranho/ Fulano sicrano e beltrano/ Seja pedra seja planta seja bicho seja humano/ Quando quero saber o que ocorre a minha volta/ Ligo a tomada abro a janela escancaro a porta/ Experimento tudo nunca me iludo”) (MACALÉ, SALOMÃO, 2005) e “Movimento dos barcos” (“É impossível levar um barco sem temporais/ E suportar a vida como um momento além do cais/ Que passa ao largo do nosso corpo/ Não quero ficar dando adeus/ As coisas passando, eu quero/ É passar com elas, eu quero/ E não deixar nada mais/ Do que as cinzas de um cigarro/ E a marca de um abraço no seu corpo/ Não, não sou eu quem vai ficar no porto/ Chorando, não/ Lamentando o eterno movimento/ Movimento dos barcos, movimento”) (MACALÉ, CAPINAN, 1972). Em “Cidadão-cidadã”, Jorge Mautner questionava não só os poderes e as patrulhas ideológicas como também a invenção da raça e do determinismo sexual: “Acho que se deve ser diferente/ E não como toda a gente/ Mas igualmente ser gente/ Como toda essa gente/ Deste país continente, e de todo o planeta (...) [parte falada]: E vieram pelos espaços os anjos do senhor. E desceram como pára-quedas azuis e transparentes no meio do campo de batalha que era televisionado vinte e cinco horas por dia, via satélite, a cores. E no meio dos horrores tocaram suas trombetas e derrubaram a muralha de Jericó. Quem, quem, quem a não ser o som poderia derrubar a

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muralha dos ódios, dos preconceitos, das intolerâncias, das tiranias, das ditaduras, dos totalitarismos, das patrulhas ideológicas e do nazismo universal?/ Acho que todo cidadão ou cidadã/ Deve ter possibilidades de felicidades/ Do tamanho de um super Maracanã/ E deve e pode ser azul, negro ou cinza/ Sorridente ou ranzinza/ Verde, amarelo e da cor vermelha/ Deve-se somente ser e não temer viver/ Com o que der e vier na nossa telha/ Vivamos em paz/ Porque tanto faz/ Gostar de coelho/ Ou de coelha” (JACOBINA, MAUTNER, 1981). Já os questionamentos e as novas posturas feministas aparecem principalmente nas compositoras e poetas. Dentre as canções, destacamos: “Cor-de-rosa choque” (“Sexo frágil não foge à luta/ E nem só de cama vive a mulher”) (CARVALHO, LEE, 1982), “Elvira Pagã” (“Todos os homens desse nosso planeta/ Pensam que mulher é tal e qual um capeta/ Conta a história que Eva inventou a maçã/ Moça bonita, só de boca fechada,/ Menina feia, um travesseiro na cara,/ Dona de casa só é bom no café da manhã”) (CARVALHO, LEE, 1982); “Essa mulher” (“Essa menina, essa mulher, essa senhora/ Em quem esbarro a toda hora no espelho casual/ É feita de sombra e tanta luz/ De tanta lama e tanta cruz que acha tudo natural”) (JOYCE, TERRA, 1979). Na poesia, como exemplos, Ledusha em “De leve”: “feminista sábado domingo segunda terça quarta quinta e na sexta/ lobiswoman”) (1984) e Alice Ruiz: “às vezes/ vem a certeza/ a vida agora/ já foi vivida/ era uma vez/ uma menina/ descobrindo a rotina”. Na primeira citação deste texto, Foucault mostrava uma expectativa sobre os caminhos abertos pela quebra dos códigos morais, a expectativa de que a vida pudesse novamente ser construída como obra de arte. Se muitas das nossas desilusões políticas na contemporaneidade foram plantadas naqueles anos, se, como disse Cazuza, uma parte dos “nossos heróis” morreu de overdose, também ficou uma parte dos libertários e sonhadores, que continuam plantando sonhos para as e nas novas gerações, como sugere Alice Ruiz: Tem os que passam E tudo se passa Com passos já passados Tem os que partem Da pedra ao vidro Deixam tudo partido E tem, ainda bem Os que deixam A vaga impressão De ter ficado (RUIZ, 1988, p. 16)

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“Eu não peço desculpa” Durante uma apresentação em um simpósio de historiadores, falando sobre as referências dos “anos loucos” no trabalho de Alice Ruiz, um rapaz levantou a seguinte questão: “Você mostrou somente o lado bom da contracultura, mas não falou sobre o que de nefasto ela trouxe para os dias de hoje. O que você teria a comentar sobre isso?” Outro rapaz comentou: “Essa geração idiota só trouxe problemas.” O impacto dessas colocações me levou a comentar e pensar a geração dos anos 1960 em sua multiplicidade e a questão da culpa, levantada por esses dois comentários. Não tive como proposta uma “volta ao passado” para glorificar ou mitificar aquela geração, mas entender as construções subjetivas da poeta – eu procuro e trabalho com subjetividades, e não identidades. Foi por isso que os dois comentários me surpreenderam. Porque o que estava implícito nas duas colocações era uma culpa coletiva, colocada em termos geracionais, baseada claramente em uma lógica identitária. Mas, afinal, a construção da subjetividade não poderia servir para a criação de uma identidade? Não creio. Onde a identidade estanca, a subjetividade transforma – esta última é o fruto de múltiplas relações, experiências e escolhas éticas. A subjetividade pressupõe a descontinuidade. A identidade, por outro lado, é a sujeição cristalizada e pressupõe a continuidade, a imutabilidade. Não é possível pensarmos os indivíduos como imutáveis, descartando ou minimizando suas experiências. Mais do que pensar meu tema específico, as colocações dos dois rapazes levaram-me a problematizar algumas questões colocadas por Hannah Arendt, em “Responsabilidade pessoal sob a ditadura” (2004). A primeira questão a ser considerada, colocada pela autora, é que “não existem coisas como a culpa coletiva ou a inocência coletiva. A culpa e a inocência só fazem sentido se aplicadas aos indivíduos” (ARENDT, 2004, p.91). Arendt mostra como, em relação à Alemanha nazista, os que se sentiram culpados não foram os que de fato apoiavam as atrocidades, mas os funcionários que “cumpriam as ordens”, ou seja, os “dentes da engrenagem totalitária”. A culpa coletiva, nesse sentido, só serviu para ocultar aqueles que de fato tinham cometido as atrocidades. Segundo seu argumento, agiram melhor aqueles que não fizeram nada, ou os que, pelo senso comum, seriam irresponsáveis do ponto de vista moral, já que não cumpriram as ordens. Os que continuaram em seus empregos estavam optando pelo mal menor. Para Arendt, o que difere aqueles irresponsáveis dos que buscaram o mal menor é que os primeiros preferiram não fazer nada para não ter que conviver com a própria culpa – uma opção ética.

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Outra distinção importante levantada pela autora e que nos interessa aqui é a noção de obediência e consentimento. Arendt aponta a falácia da idéia de que a obediência é uma virtude política, mostrando que remonta a Aristóteles e Platão essa noção secular da ciência política de que “todo corpo político é constituído de governantes e governados, e que os primeiros comandam e os últimos obedecem as ordens” (ARENDT, 2004, p.109). Essa idéia da obediência como virtude suplantou noções anteriores, de acordo com as quais a pluralidade dos homens se dividiria em dois estágios, em que um líder agruparia as pessoas para um empreendimento comum e em que aqueles que parecem obedecer a esse líder são na verdade seus pares: estão de fato apoiando suas ações (ou consentindo com elas). A obediência não cabe a um adulto – “um adulto consente onde a criança obedece” (ARENDT, 2004, p.109), e a falácia estaria em igualar obediência a consentimento. Moral e ética são construções, mas enquanto a primeira, tal como a identidade, é cristalizada em códigos e condutas normativas, pressupondo a obediência, a ética se encontra no campo da produção da subjetividade – está relaciona às escolhas e problematizações que fazemos, à experiência, ao que consentimos. Um princípio ético pode contradizer uma regra moral. A ética particulariza enquanto a moral generaliza. Isso não quer dizer que a moral seja imutável – Hannah Arendt mostra claramente como ela pode mudar rapidamente: [...] o total colapso moral da sociedade respeitável durante o regime de Hitler pode nos ensinar que, nessas circunstâncias, aqueles que estimam os valores e se mantêm fiéis a normas e padrões morais não são confiáveis: sabemos agora que as normas e os padrões morais podem ser mudados da noite para o dia, e que tudo o que então restará é o mero hábito de se manter fiel a alguma coisa. Muito mais confiáveis serão os que duvidam e os céticos, não porque o ceticismo seja bom ou o duvidar, saudável, mas porque são usados para examinar as coisas e tomar decisões. Os melhores de todos serão aqueles que têm apenas uma certeza: independentemente dos fatos que aconteçam enquanto vivemos, estaremos condenados a viver conosco mesmos (ARENDT, 2004, p.107-108).

Neste trecho, Arendt está claramente se referindo aos que se moviam pela moral e aos que pensavam suas condutas, portanto, a sujeitos éticos. A moral é o campo da prática, a ética da problematização.

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O movimento chamado de contracultura tem como marco a Califórnia, mas a juventude, em diversos países do mundo pós-guerra, passou a contestar os códigos morais vigentes que, para eles, produziram aquela guerra. Seus vestígios evidenciam-se já em meados dos anos 1950, com os poetas beats, com a agressividade e a sexualidade presentes no rock’-n-roll juntando multidões, na crítica ao consumo desenfreado, no desejo de transformar a vida em obra de arte. No final dos anos de 1960, reforça-se, entre os adeptos da contracultura, um profundo desinteresse pela política em suas formas tradicionais. A esquerda já tinha mostrado sua face autoritária e totalitária nas experiências da União Soviética e da China. Lembremos da já citada resposta irônica de Caetano Veloso, ao ser vaiado pelos estudantes de esquerda: “é essa a juventude que quer tomar o poder?” Uma mudança no foco e nas preocupações desses grupos exige uma “alteração na direção dos interesses, um remapeamento da realidade” (HOLLANDA, 2004, p. 75). Nenhuma das soluções apresentadas até então parecia razoável, era necessário uma reinvenção das utopias e da possibilidade de sonhar. Se, para a esquerda, a “revolução popular” encobria os jogos de poder que havia entre pais e filhos, homens e mulheres, negros e brancos, hetero e homossexuais, são esses os campos em que esses jovens vão focar sua atenção. Se a esquerda os encarava como “alienados”, o governo militar percebia claramente a presença ameaçadora desses grupos e sua ação política libertária. Tendo tomado o poder com o apoio da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, a direita via o perigo representado por um grupo que pregava a transgressão “da moral e dos bons costumes”. Caetano Veloso e Gilberto Gil foram, portanto, bastante pressionados pelo governo militar, o que motivou o auto-exílio da dupla em Londres (DIAS, 2003). É interessante pensarmos que, no Brasil, os movimentos de esquerda eram bastante ativos – e faziam questão de se manterem à distância dos adeptos da contracultura, vistos como “turmas” muito diferentes. Os “politizados”, de um lado e os “alienados”, de outro, o mundo era dividido de maneira bastante maniqueísta. Essas diferenças transpareciam inclusive na arte produzida pelos grupos, como já mostramos. Também nas palavras de ordem, a provocação era uma constante, especialmente do lado dos adeptos da contracultura, como essas referentes ao Maio de 68, na França. Constantes pichações lamentavam ou ironizavam: “Temos uma esquerda pré-histórica” Ou: “Sou marxista, tendência Groucho” (PEREIRA, 1983, p.89). Os alvos do questionamento, em especial, para a contracultural, nos anos 1950, 1960 e 1970 foram sobretudo os campos da moral, das práticas e

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dos comportamentos normativos. Muitas das pessoas que fizeram parte daquele momento seguiram suas vidas preocupadas em revolucionar a relação consigo mesmas, construírem-se como sujeitos éticos. Mas é inútil e contraditório pensarmos a “ausência da ética e da moral” na atualidade como resultado da contracultura. É claro que, ao contestar a moral vigente, muitas práticas foram quebradas e novas práticas assumiram esses espaços. E dentro desse movimento, também estavam aqueles que apenas não queriam perder o bonde da história, adotando as idéias da contracultura também como práticas, ou seja, transformando uma proposta de ideal libertador em código de obediência. No entanto, é importante ressaltar que essa vontade de obedecer se encontrava muito mais na esquerda daquele período do que entre os adeptos da contracultura. Concordando com Hannah Arendt, o incômodo com as perguntas feitas no referido simpósio adveio da idéia implícita de uma culpa coletiva atribuída a essa geração pelos males do presente. Aqueles rapazes referiam-se, ao mencionarem os possíveis efeitos “nefastos” da contracultura, aos tempos atuais, às perdas das ilusões políticas, quando encontramos antigos guerrilheiros acusados de chefiarem quadrilhas envolvidas com desvio de verbas, corrupção ativa e lavagem de dinheiro, ou faziam alusão a um certo “descontentamento com a espécie”, já que a cultura de si se transformou em absoluto narcisismo. Entendi as questões colocadas pelos dois jovens como uma visão cristalizada, como uma dificuldade de perceber rupturas: nessa lógica generalizante, se o sonho acabou e nos deparamos com boa parte daqueles que contestavam a moral vigente corrompidos e/ou no poder, toda aquela geração se torna responsável. Nesse sentido, foi muito interessante encontrar o texto de Irene Cardoso, “A geração dos anos de 1960: o peso de uma herança”, tratando dos perigos da mitificação, porque foi escrito num momento anterior à série de escândalos políticos que abalou o país em seguida, num momento em que ainda persistia uma profunda valorização dos ideais daquela geração. O peso de não termos nas novas gerações ideais tão libertários (e aqui estamos falando dos ideais da contracultura) -, transformou-se rapidamente na recusa de qualquer representatividade daqueles ideais. Trata-se de uma nova ruptura que estamos vendo acontecer um tanto apreensivos, uma busca nostálgica de um tempo em que as pessoas eram “boas” e seguiam os códigos morais estabelecidos... Quando culpamos toda uma geração por nossos problemas atuais, criamos um corpo único e individual, no qual deveriam existir multiplicidades, extirpando assim sua historicidade. Colocar a culpa pelos problemas atuais em uma geração pode livrar-nos da culpa por nosso próprio tempo e escolhas? Ou - voltando a Arendt – não somos, cada um de nós, individualmente

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responsáveis pelo que consentimos? “A linha divisória entre aqueles que querem pensar, e portanto têm de julgar por si mesmos, e aqueles que não querem pensar atinge todas as diferenças sociais, culturais ou educacionais” (ARENDT, 2004, p.107) Para Alice Ruiz, foram as discussões sobre as formas de poder e dominação levantadas pela contracultura e experimentadas por ela que a fizeram despertar para a questão feminina e tomar uma ação política. Penso em mim mesma, nascida na década de 60, vinte anos atrás, olhando para essa “geração 68” – eu também não percebia as diferenças entre os diversos grupos, mas olhava para “o conjunto da obra” de forma completamente admirada: o que poderia existir, depois deles, que chegasse perto do que conseguiram? O feminismo no Brasil, as lutas contra a ditadura, a arte produzida pelos diversos grupos eram uma referência da agitação política e cultural daqueles tempos; músicos de todas as tendências dividiam a minha “vitrola”, sem qualquer briga ou preconceito. Foi, talvez, meu próprio descontentamento político com os tempos atuais que me levou a buscar compreender melhor aquela geração e entender suas escolhas, diferenças e conflitos. Irene Cardoso mostra, em seu texto, que, mesmo com todas as rupturas, há uma filiação e traços herdados da geração anterior; daí o problema da mitificação, que congela uma experiência no tempo e no espaço. As desilusões são importantes para desconstruirmos essas imagens cristalizadas da geração dos anos 1960. Talvez possamos perceber, finalmente, os indivíduos únicos em suas experiências singulares e ainda ter a sorte de escolher admirá-los, não só pelo que foram, mas pelo que se tornaram, de forma a completar a filiação proposta por Irene Cardoso. Assim, seria possível reconhecermo-nos neles hoje, permitindo que também se reconheçam em nós, e percebermos que nem todos os caminhos de atuação política se fecharam: [...] E só precisamos imaginar por um momento o que aconteceria a qualquer uma dessas formas de governo, se um número suficiente de pessoas agisse “irresponsavelmente” e se recusasse a apoiá-la, mesmo sem resistência ativa e rebelião, para ver como essa arma poderia ser eficaz (ARENDT, 2004, p.111).

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BIBLIOGRAFIA 1. Documentos impressos ARENDT, H. “Responsabilidade pessoal sob a ditadura”. In: ARENDT, H.Responsabilidade e Julgamento: escritos morais e éticos. Trad. Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, pp. 79-111. CALADO, C. Tropicália: a história de uma revolução musical. São Paulo: Editora 34, 1997. CARDOSO, I. “A geração dos anos de 1960: o peso de uma herança”. Tempo Social, revista de sociologia da USP, São Paulo, v. 17, n. 2, 2005. DELEUZE,G. Conversações. São Paulo: Editora 34, 2000. DIAS, L. Anos 70: enquanto corria a barca. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2003. FOUCAULT, M. Ditos & Escritos V: Ética, Sexualidade, Política. Org. Manoel Barros da Motta. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. GABEIRA, F. “Depoimento”. In: A Forma da Festa - Tropicalismo: a explosão e seus estilhaços. Sylvia Helena Cyntrão (organizadora). Brasília: Editora da Universidade de Brasília: São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000, p. 73. HOLLANDA, H. B. Impressões de Viagem: CPC, vanguarda e desbunde. 1960/70. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004. ; PEREIRA, C.A M. Poesia Jovem Anos 70: Literatura Comentada. São Paulo: Editora Abril, 1982. LEDUSHA. Finesse e Fissura. Brasiliense: São Paulo, 1984. PEREIRA, C A O que é Contracultura? São Paulo: Brasiliense, 1983. RUIZ, A . Navalhanaliga. Curitiba: ZAP, 1980. .Vice-Versos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988.

2. Documentos sonoros “Ai de mim Copacabana” (Caetano Veloso e Torquato Neto). Caetano Veloso no Compacto Simples 365.236 (Philips/1968a). “Alegria, alegria” (Caetano Veloso). Caetano Veloso no LP Caetano Veloso (Philips/ 1967). “Ando meio desligado” (Arnaldo Baptista, Rita Lee e Sérgio Dias). Mutantes no LP A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado (Polydor/1970). “Ave Lúcifer” (Arnaldo Dias Baptista, Rita Lee Jones e Élcio Decário). Mutantes no LP A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado (Polydor/1970).

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“Balada do louco”. Gravada pelos Mutantes no LP Mutantes e Seus Cometas no País dosBaurets (Polydor/1972). “Cidadão-Cidadã” (Nelson Jacobina e Jorge Mautner). Jorge Mautner e Caetano Veloso no LP Bomba de Estrelas (WEA/1981). “Classe operária” (Tom Zé). Tom Zé. Gravada ao vivo no Teatro Lira Paulistana em 1984, lançada no CD Jardim da Política. (Independente/1998). “Com a boca no mundo” (Luís Sérgio Carlini, Lee Marcucci e Rita Lee). Rita Lee & Tutti Frutti no LP Entradas e Bandeiras (Som Livre/1976). “Cor-de-rosa choque” (Roberto de Carvalho e Rita Lee). Rita Lee no LP Rita Lee e Roberto de Carvalho (Som Livre/1982). Em 1980, a música já era tema de abertura da TV Mulher, da Rede Globo. “Deusdéti” (Carlos Melo). Língua de Trapo no LP Como é bom ser punk (RGE/ 1985). “É proibido proibir” (Caetano Veloso). Caetano Veloso no compacto simples “III Festival Internacional da Canção Popular (Philips/1968). “Ele falava nisso todo dia” (Gilberto Gil). Gilberto Gil e os Mutantes no LP Gilberto Gil (Philips/1968). “Eles” (Gilberto Gil e Caetano Veloso). Caetano Veloso no LP Caetano Veloso (Philips/ 1967). “Elvira Pagã” (Roberto de Carvalho e Rita Lee). Rita Lee no LP Rita Lee (Som Livre/ 1979). “Essa mulher” (Joyce e Ana Terra). Elis Regina no LP Essa Mulher (WEA/1979). “Good bye, boy” (Assis Valente). Carmen Miranda em 78 RPM (Victor/1933). “Mamãe coragem” (Caetano Veloso e Torquato Neto). Gal Costa no LP Tropicália ou Panis et Circenses (Philips/ 1968b). “Movimento dos barcos” (Jards Macalé e Capinan). Jards Macalé no LP Jards Macalé (Philips/1972). “Não tem tradução” (Noel Rosa, Francisco Alves e Ismael Silva). Francisco Alves em 78 RPM (Odeon/1933). “O seu amor” (Gilberto Gil). Gilberto Gil, Maria Bethânia, Gal Costa e Caetano Veloso no LP Doces Bárbaros (Phonogram/1976). “O sonho acabou” (Gilberto Gil). Gilberto Gil no LP Temporada de Verão (Philips/ 1974). “Olho de lince” (Jards Macalé e Waly Salomão). Jards Macalé no CD Real Grandeza (Biscoito Fino/2005). “Pai e mãe” (Gilberto Gil). Gilberto Gil no LP Refazenda (Philips/1975) “Panis et circenses” (Gilberto Gil e Caetano Veloso). Mutantes no LP Tropicália ou Panis et Circenses (Philips/1968). “Perigosa” (Rita Lee, Roberto de Carvalho e Nelson Motta). Frenéticas no LP Frenéticas (WEA/1979).

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“Pra não dizer que não falei das flores” (Geraldo Vandré). Geraldo Vandré no Compacto Simples SMCS-209 (Som Maior/1968). “Sandra” (Gilberto Gil). Gilberto Gil no LP Refavela (Philips/1977). “Vapor barato” (Jards Macalé e Waly Salomão). Gal Costa no LP FA-TAL – Gal a Todo Vapor (Philips/1971). “Verdura” (Paulo Leminski). Caetano Veloso no LP Outras Palavras (Polygram/ 1981).

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Pablo Picasso: A Amizade Museu do Eermitage, São Petersburgo

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ESTE TEXTO busca problematizar a amizade na atualidade. Para isso, recorreremos aos tradicionais discursos sobre a amizade que dão tonalidade ao imaginário ocidental, no que se refere aos laços intersubjetivos, em especial à canônica amizade relacionada à philia grega e à amicitia romana. A tradição aristotélico-ciceroniana da amizade criou um saber normativo sobre o tema, que se contrapõe a outras matrizes discursivas, principalmente à trilhada contemporaneamente pelos pensadores pós-estruturalistas. Essa vertente busca desestabilizar as imagens idealizadas da amizade e seu imaginário político construído historicamente, os quais não asseguram mais a consistência das relações sociais, pois tornaram-se clichês em um mundo marcado pelos fluxos da globalização, do cosmopolitismo e do crescente individualismo. Em nossa “modernidade líquida”, para usar uma expressão consagrada por Zygmunt Bauman (2004), vivemos, em meio aos espaços móveis das descontinuidades, tempos de incerteza e de liquefação dos laços sociais. Robert Musil, em seu livro O Homem sem Qualidades, também problematiza o tempo sombrio das relações humanas. Ulrich, o herói do romance, é um homem sem vínculos, desconectado de qualquer elo social codificado; ele é obrigado a ligar-se aos outros por iniciativa, habilidades e dedicação próprias e, sobretudo, é obrigado a criar redes de vida, que possa utilizar também com o restante da humanidade. Para o herói, trata-se de buscar formas de viver e relacionar-se. Certamente, o desafio enfrentado pelo personagem de Musil pode ser associado ao dos homens e das mulheres da sociedade de hoje, perpassada por múltiplas conexões, uma sociedade em que os vínculos sociais estão esgarçados, liquefeitos e carecem de novos significados e sentidos. Nesse contexto, pergunta-se: é possível criar laço ou distância e tecer um território existencial que escape aos padrões consensuais e à captura do capital, realizada a cada minuto na sociedade dita pós-moderna? Nesse momento histórico, em que a vida entrou nos cálculos do saber e do poder, como apontou Foucault (1998), tempos da biopolítica, a amizade pode constituirse em lugar de construção de subjetividade que escape às formas de subjetivação ligadas ao Estado, à família, à igreja e ao mercado? O que disseram os gregos e os romanos sobre a amizade? O que dizem os pensadores contemporâneos?

“Oh! meus amigos, não há amigos!”: a philia grega e amicitia romana A amizade é, por excelência, um tema associado à filosofia, à política e leva, inevitavelmente, a discutir questões de gênero, na medida em que, de

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Platão a Montaigne, de Aristóteles a Kant, postulou-se a incapacidade das mulheres para contraírem relações de amizade entre si e com o sexo oposto (IONTA, 2007). Dentre os filósofos gregos que refletiram sobre o tema, destacam-se Platão (428/27 a.C-348/47 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.). Ambos criaram duas matrizes discursivas sobre a amizade, que povoam o imaginário social sobre as relações humanas. Platão procurou elaborar uma ontologia da amizade, fazendo uma analogia entre o eros e a philia. Deriva desse esforço de pensamento a idéia da amizade como eros sublimado, noção que reincidentemente se reproduz no pensamento ocidental. Contudo, vale lembrar que as reflexões de Platão sobre o amor e a amizade estão inseridas no peculiar contexto da erótica grega, o paidikon eros, o amor pelos rapazes, elemento de formação militar e pedagógica dos jovens, considerado pelo filósofo mais importante do que a família. Como mostrou Foucault (1998), ao analisar a erótica grega, em uma sociedade em que as relações entre os sexos eram regulamentadas por contrato (matrimônio) ou pagamento (prostituição), e a mulher encontravase em uma relação de domínio e submissão, não era possível desenvolver a arte erótica nas relações entre homens e mulheres. Isso porque esta arte caracterizada pela sedução, recusa e persuasão só poderia existir entre pessoas livres. Dessa maneira, na polis clássica, o baixo estatuto da mulher e sua reclusão na esfera privada, espaço de privação, segundo Hannah Arendt (1995), levaram a concentrar a paixão e a ternura nas relações entre homens, o que teve como conseqüência o privilégio do culto da amizade e do amor masculinos. Platão busca dar a essa forma de amar entre homens – que foi objeto de intensa problematização moral entre os gregos – um contorno moralmente aceito na polis; sua estratégia para isso foi excluir o elemento sexual do paidikon eros, ou seja, transformá-lo numa relação de philia. Com isso, ele resguarda o caráter pedagógico do amor, eliminando a possibilidade de futuros cidadãos tornarem-se objeto de desejo, pois apenas as mulheres e os escravos podiam ocupar o lugar passivo de objeto de prazer. Ao transformar o eros paidikon em philia, o filósofo funda o bom uso de eros, o amor ao Bem, ao Belo e ao Absoluto, atributos da alma e não do corpo. A conexão entre desejo, amor e amizade na reflexão platônica, construída a partir dos conceitos de epithymia (desejo/falta), prôton philon (primeiro amigo) e oikeiótes (familiaridade, domesticidade, próximo por natureza), gera uma hiperbolização da amizade. Como escreve Francisco Ortega (2002), para Platão a amizade funda-se em proximidade, afinidade e auto-aperfeiçoamento moral recíproco, a união entre os parceiros deriva da relação de cada um com o bem, pois o amigo é amado por manter uma relação com o bem.

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Na philia erótica proposta pelo filósofo, ocorre a união entre eros e filosofia, e o amor sublimado é a força motriz que conduz à amizade virtuosa, aquela necessária para o conhecimento e para a busca da verdade. Assim, o amor sublimado adota a forma do amor philia. Portanto, a amizade filosófica seria a busca do bem e da verdade, um exercício do bom uso de eros, e representa uma tentativa de realização do ideal da amizade perfeita. Daí a importância da vida comunal para aprendizagem da virtude para as escolas filosóficas da Antiguidade, sociedades de amigos da sabedoria, que acreditavam que a “vida em comum” era imprescindível para a atividade filosófica. Mas, ao contrário de Platão, Aristóteles dissocia completamente eros e philia, ou seja, separa o amor da amizade. Para ele, o eros seria somente uma paixão, enquanto a philia seria um ethos, lançando luz para os aspectos racionais da amizade em detrimento de seu componente afetivo. Assim, ele funda uma outra matriz discursiva que dá tonalidade tanto à interpretação da amizade quanto do amor em nossa sociedade. Por meio da mencionada dissociação de eros e philia, Aristóteles desafetiva a amizade e “submete a philia a um processo de universalização que designa o vínculo geral entre os seres humanos, tendo a amizade perfeita (teleia philia) como modelo” (ORTEGA, 2002, p. 54). Dito de outra forma, a extensão da gramática da amizade às demais relações humanas produz um duplo efeito: desafetiva-a, pois quem ama todos não ama ninguém e, sobretudo, sublinha sua importância política e pública. A amizade será aproximada à natureza humana, ao governo da cidade e ao homem como animal político. Ao comparar as idéias platônicas e aristotélicas da amizade, Ortega destaca que, enquanto Platão elabora uma ontologia da amizade, procurando atingir a amizade perfeita e descortinar sua essência, seu discípulo busca trazer as idéias do mestre à realidade concreta da Grécia Clássica, delimitando sua gramática e analisando os tipos ideais de amizade, o que amplia seu escopo público. Para Aristóteles, a política é uma forma de amizade, assim como a família. Aliás, na visão aristotélica contida na Ethica Eudemia, é na família que se localizam as fontes e as origens da amizade, da organização política e da justiça. Ele compara a amizade entre irmãos à democracia; é um processo de fraternização e, por conseguinte, a amizade é, em princípio, democrática por ser fraternal. Tanto para Platão quanto para Aristóteles, há o desejo de que todos os cidadãos formem uma única família. Como se sabe, Aristóteles detém-se longamente sobre o tema da amizade em Ética a Nicômaco e Éthica Eudemia. E a propósito de promover uma

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politização da amizade, o filósofo acaba, como apontaram Hannah Arendt (1995) e Jacques Derrida (1994), despolitizando-a, pois utiliza o modelo doméstico e familiar para pensar a esfera do político, da qual a amizade faz parte. Para a filósofa, pensar a política a partir da família tem como resultado a ruína da própria política (1999). É de Aristóteles a doutrina do amigo como um outro eu, um espelho que permite a própria avaliação, pois na base do amor do amigo está o amor de si. Grosso modo, para o filósofo, a amizade perfeita caracteriza-se por uma relação de proximidade, de convivência, de confiança, de igualdade, de reciprocidade e semelhança entre pessoas de natureza viril. Em seu discurso fundador, a teleia philia (amizade perfeita) tem por base a excelência moral e só pode ocorrer entre pessoas boas e semelhantes. Dessa maneira, a amizade torna-se um assunto e uma prática de homens, constitutiva da virilidade, da cidadania e da ética entre os gregos. Seu exercício realiza-se entre pessoas virtuosas em sua sabedoria, comando e governo, em um círculo social restrito que exclui, entre muitos outros, as mulheres. A despeito das diferenças entre o pensamento de Aristóteles e o de seu mestre, os grandes discursos filosóficos da amizade são marcados pela obsessão pela busca da amizade perfeita, teleia philia (gregos), amicitia perfecta (romanos), amicitia dei (cristãos). São discursos de busca, culto e elogio de uma amizade transcendente, perfeita e, no limite, impossível. Tratase de idealizações que estão distantes da realidade social concreta, da relação entre amigos, das diversas experiências de amizades vividas por homens e mulheres na sociedade greco-romana. Apesar disso, pensadores gregos e romanos buscaram essa amizade perfeita; entenderam o amigo como um outro eu e a amizade como um ideal de perfeita unanimidade, de união moral e espiritual e de aperfeiçoamento recíproco. Porém, apesar das semelhanças existentes entre o discurso grego e o romano sobre a amizade, há diferenças significativas entre eles. Isso porque a experiência histórica da virtus (virtude) romana e da arete (virtude) grega apontam um deslocamento na forma de viver, pensar e sentir a amizade na Antiguidade. É bom lembrar que a virtude romana reside na obediência às leis, pois o homem bom é aquele que se comporta de acordo com leis romanas. Ao contrário disso, o valor da arete grega se encontra na prudência, no homem temperante; portanto, a virtude para os gregos reside na excelência moral, e a amizade é prolongamento da cidadania. Os cidadãos são amigos entre si ou irmãos para Aristóteles. Daí a valorização que esse filósofo faz da amizade civil. Por sua vez, Cícero (106-43 a.C.) irá valorizar a amizade política, subordinando a vontade individual dos amigos aos interesses do Estado. A

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dicotomia entre individual e coletivo é uma questão estranha para Aristóteles, que propunha uma relação intrínseca entre amizade e justiça e amizade e política. Não menos importantes para a ressignificação do discurso sobre a amizade formulado pelos romanos foram os deslocamentos ocorridos no papel da família, brilhantemente analisados por Foucault, no terceiro volume da História da sexualidade. Como ele nos faz crer, na sociedade romana, a pederastia perdeu sua função pedagógica e militar e a família assumiu funções morais e emocionais, deixando de ser simplesmente o lugar de reprodução econômica, o oikos econômico. Ela ganha importância, como atesta a instituição romana denominada patria potesta, ou seja, a autoridade suprema do chefe de família sobre todos os seus membros, que era legitimamente amparada pela legislação e pelos costumes. Como apontam diversos autores, a sociedade romana é fortemente marcada por sistemas de relações de poder local, de vínculos familiares, de dependência econômica, de relação de “clientela” e de amizade. Dessa forma, a amicitia liga-se à política por complexas relações, como a do patrocinium (relação entre patrões e cliente), a fides (boa-fé) e o officium (confiança). Nesse sentido, a amizade está extremamente codificada, regida por normas sociais de caráter informal cuja violação é passível de poderosas sanções sociais. De acordo com Francisco Ortega (2002), a amicitia teve, até o fim da República, a função de regular os conflitos e preservar a patria potesta, estabelecendo vínculos entre as famílias e garantindo preservação destas, as quais tecem elos tanto verticais quanto horizontais. Em Roma, “A amizade é o valor que preside ao funcionamento da vida pública romana. É o fulcro dos agrupamentos políticos, mas também o veículo que torna humanas e até solidárias as relações entre expoentes de diferentes formações” (CÂNFORA, 2002, p.194). Mas, afinal, qual a novidade no discurso da amizade introduzida pelos romanos? Apesar de haver uma espécie de conformidade entre eles quanto à importância da amicitia na sociedade, não havia consenso quanto a seu significado. Mesmo no interior da pequena elite havia divergências. Talvez as concepções de amizade apresentadas por Cícero possam ajudar a compreender os deslocamentos operados na sociedade romana no que se refere à philia e nas relações entre a amizade e a política na vida romana. Cícero, senador republicano e um político influente, que pretendia defender Roma das tiranias e ditaduras, vivia em meio às conspirações políticas. Seu escrito mais sistematizado sobre a amizade – uma vez que ele escreveu mais de mil cartas – encontra-se no texto Lélio ou A Amizade, endereçado a Pompônio Ático. O ensaio tem como tema a morte de Cipião,

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amigo de Lélio, e gira em torno da noção de que nada é melhor que a amizade. Em suas palavras: “De minha parte, tudo o que posso fazer é vos incitar a preferir a amizade a todos os bens desta terra; com efeito, nada se harmoniza melhor com a natureza, nada esposa melhor os momentos, positivos ou negativos da existência”. (CÍCERO, 1997, p.83) Com Lélio ou a Amizade, Cícero esquadrinha a amizade, tece seu culto às amizades duais e, além disso, inaugura as narrativas epitafiais, do luto pela perda do amigo que será transcendentalizada em Santo Agostinho e depois em Montaigne. A idealização da amizade dual nesse tipo de narrativa irá aprofundar ainda mais o abismo existente entre os discursos da amizade e a sua prática, ou seja, a lógica do epitáfio intensifica seu caráter idealizado. Ela só acontece raramente, é desinteressada e realiza-se entre homens bons. Vale dizer que, para Cícero, as pessoas de bem não são os sábios, os amigos do conhecimento, mas os homens que possuem experiências práticas de política vinculadas à responsabilidade com o Estado. A chave de leitura para a teoria da amizade ciceroniana encontra-se na noção de concórdia, consenso e acordo, termos que já evocam a relação entre amizade e política. Para o senador republicano, “a amizade não é senão uma unanimidade em todas as coisas, divinas e humanas, acompanhada de afeto e de benevolência: pergunto-me se ela não seria, excetuada a sabedoria, o que o homem recebeu de melhor dos deuses imortais” (CÍCERO,1997, p. 85-6). Dessa forma, a amizade é consentimento, concórdia e boa-fé, está acima dos interesses econômicos. Ela faz com que sintamos e queiramos as mesmas coisas, em especial, o bem da cidade e a paz. Este parece ser o sentimento político da amizade em Cícero, que vivia, como foi dito, em clima de conspirações políticas. Amizade é pacificação, possui diversas funções, realiza-se entre poucos e é coisa de homens virtuosos. Na interpretação de Ortega (2002), a philia grega, vínculo por excelência coextensivo da cidadania e, por conseguinte, da política na Grécia, é substituída na sociedade romana pela concórdia, que se converte na relação política básica dos romanos. Sem concórdia, a amizade só pode existir como um afastamento da política. Distanciamento da política e esgotamento do amor pela cidade mobilizaram os epicuristas a formar a sua própria sociedade de amigos. Para Epicuro (342-341 a.C.), não há pacificação na amizade. Da mesma maneira, o desencanto com a política equacionada por amigos e os perigos dos aduladores fizeram o estoicismo grego e, depois, o heterodoxo estoicismo romano tomarem a parrhesía na amizade, o “falar livremente”, como um de seus elementos capitais para restauração da virtude. Epicuristas e estóicos ressignificam o caráter universal que Aristóteles atribui à amizade e fazem

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ranger a lógica da identidade, semelhança e concórdia nessa relação social. Como afirma Passetti, epicuristas e estóicos farão reverberar novos sentidos da amizade. Ela será um bem acessível a todos, deixando de ser virtude entre homens de bem, imaginados por aristocratas e filósofos como aspiração para a cidade. Ela não é mais vista como parte integrante da história da tradição dos homens de bem, desde as lembranças remotas de sua existência, transformando-se em referência para uma sociabilidade com base na liberdade subjetiva que busca diferenciadas repercussões públicas (2003, p. 45-46)

Essas novas formas de vida colocaram em xeque os amigos da sabedoria, os homens de comando e os significados de homens de bem. Com a passagem da polis para o império, surgem os “modos de existência”, estudados por Foucault em seus livros O uso dos Prazeres e O Cuidado de si. Como ele indica, a filosofia perde sua aura, deixa de ser uma atividade dos homens especiais para se tornar uma arte acessível a todos, cujo objetivo é a vida feliz, mesmo que as circunstâncias sejam adversas. Cresce e floresce a “cultura de si”. Nesse contexto, o caráter metafísico da amizade torna-se evidente. A amizade elitizada, rara - constitutiva da virilidade, em que o amigo aparece como um outro eu, um ideal de perfeita unanimidade, de completa união espiritual e moral e de aperfeiçoamento recíproco entre homens - traz à tona suas lacunas e sua contingência histórica. Como disse o poeta Manuel de Barros (1997), “há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas”. O mesmo pode ser dito da escultura da amizade construída por Platão, Aristóteles e Cícero, sem arestas, sem arranhões, de modo que parece inventada. Mas a que vêm essas invenções? Para regular a conduta em sociedade, criar um imaginário político, ou seja, são discursos normativos, um saber maior sobre a amizade, que está ligada a uma intricada rede de poder e distante da prática social intersubjetiva da polis grega e, mais ainda, da sociedade romana. Certamente, seu caráter inexeqüível explica a frase atribuída por Montaigne a Aristóteles: “Oh! meus amigos, não há amigos” (ARISTÓTELES apud ORTEGA, 2002, p. 55). Não há amigos, porque, quando o assunto é vida não é possível falar de teleia philia, amicitia vera, enfim da amizade perfeita, pois entre o saber sobre a amizade e as redes de poder às quais ela está vinculada existem os processos de subjetivação, ou seja, a maneira pela qual os indivíduos são chamados a esculpir a si mesmos e suas relações

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sociais. Vale dizer que os gregos não foram autores apenas dos grandes discursos sobre a amizade, eles também nos legaram como herança a idéia de que é possível conduzir-se na vida de maneira singular, ou seja, de que existem variantes entre o código moral, o comportamento moral e a maneira como é necessário conduzir-se. Os gregos também inventaram as “artes da existência”.

Oh! Inimigos, não há inimigos: mutações do olhar e da amizade Como nos dá a ver a História, todo credo possui seus hereges e existem aqueles que percorreram a amizade a contrapelo dos tradicionais discursos aristotélico-ciceronianos. Esse parece ter sido o caso de Nietzsche. Segundo Derrida, ele é o primeiro a romper com a repetição histórica do vocativo atribuído a Aristóteles por Montaigne, “Oh! Amigos, não há amigos”. Em Nietzsche, é possível encontrar instrumentos que possibilitam despir a amizade da idealidade com a qual foi vestida pela canônica greco-romana. Em Assim falou Zaratustra, mais especificamente no canto “Do amigo”, Nietzsche problematiza a capacidade humana para a amizade por meio de sua personagem Zaratustra, para quem ser capaz de amizade é saber reconhecer no amigo o inimigo que ele pode ser, uma vez que, “no amigo, deve-se, ainda, honrar o inimigo” (1987, p. 72). Assim, reconhecer no amigo o próprio inimigo é para o filósofo um sinal de liberdade. Essa virtude não pertence nem aos escravos e tampouco aos tiranos, pois eles não são suficientemente iguais e livres para alcançar essa liberdade. Dessa conclusão política, Zaratustra passa à questão da mulher. Diz ele: Por demasiado tempo se esconderam na mulher um escravo e um tirano. Por isso a mulher não é ainda capaz de amizade: ela conhece somente o amor. No amor da mulher há iniqüidade e cegueira com relação a tudo o que ela não ama. E também no amor consciente da mulher há ainda sempre agressão, tempestade e noite, ao lado da luz. A mulher não é ainda capaz de amizade: como gatas e passarinhos são ainda as mulheres. Ou, no melhor dos casos, novilhas (NIETZSCHE, 1987, p. 73).

Como se observa no canto “Do amigo”, o filósofo serve-se de Zaratustra e elabora, a princípio, um julgamento político das mulheres bastante tradicional, pois elas seriam incapazes de amizade, de inimizade, de justiça, de respeito a tudo o que não amam. Zaratustra as reconhece como mães, como procriadoras, assim como as novilhas.

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Entretanto, após essas afirmações sobre o sexo feminino, Nietzsche, por meio de uma inversão apostrofada, faz com que Zaratustra se volte para os homens para acusá-los. Dirigindo-se a eles, pergunta: “A mulher não é ainda capaz de amizade. Mas, vós, homens, dizei-me quem de vós é capaz de amizade?” (NIETZSCHE, 1987, p. 73) E a seguir afirma: “Oh, quanta pobreza há em vós, homens, e quanta avareza de alma! Tanto quanto dais vós ao amigo, eu ainda, algum dia, darei ao meu inimigo, sem ficar mais pobre por isso” (NIETZSCHE, 1987, p. 73). Assim, Zaratustra parece não ver nos homens e tampouco nas mulheres a capacidade de amar e respeitar aqueles com os quais não se identificam. A incapacidade para o sentimento amistoso é comum aos gêneros, pois homens e mulheres igualmente não são generosos o bastante para darem-se uns aos outros, não possuem o “dom” infinito da irreciprocidade, do dar sem receber, que as relações de amizade requerem, segundo Nietzsche. Nesse sentido, pode-se dizer que, ao tornar homens e mulheres incapazes de amizade, o filósofo acaba por macular o falo e borrar as amizades viris. Habilmente, Nietzsche serve-se de um discurso quase cristão, usando a noção de amor ao inimigo, de dar sem receber, para se opor à herança aristotélica da amizade. Ele se lança contra a noção de amizade grega por excelência, fundada na igualdade, semelhança e reciprocidade. Zaratustra expõe, no canto “Do amigo”, as fragilidades da tradição discursiva aristotélico-ciceroniana da amizade, ao revelar a inexistência da amizade entre os homens. Mais adiante, no canto “Do amor ao próximo”, Nietzsche irá contrapor a idéia de amor ao próximo à noção de amor ao distante, afastando-se também do discurso cristão da amizade. Segundo Nietzsche, no cristianismo, para tornarmo-nos filhos de Deus e irmãos, devemos amar o próximo como a nós mesmos; este próximo também pode ser um inimigo. Para o filósofo é, então, em troca do benefício da vida eterna que os homens se esforçam para amar seu amigo e seu inimigo. Zaratustra propõe rompimento com a “economia do sublime” que caracteriza o cristianismo. Como apontou lapidarmente Derrida (1994), Nietzsche, que a princípio parece reafirmar os discursos dominantes sobre a amizade, rompe com o cânone hegemônico e cria fissuras profundas nas concepções falocêntricas da amizade, que procuraram manter a dominação masculina e reservar o espaço público aos poucos homens de bem e o espaço doméstico à mulher. Como mostra o filósofo, os discursos da amizade são prenhes de significações políticas. Eles ilustram uma ordem social fundada no poder masculino, na veiculação de um modelo político democrático, isto é, uma sociedade de irmãos da qual as irmãs estão excluídas. Os tradicionais discursos filosóficos

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da amizade são, segundo Derrida, ficções falocêntricas da fraternidade, são fantasmagorias democráticas que geram diversas estratégias que alimentam as políticas nacionalistas, eugenéticas, populistas e xenófobas. Vale dizer que a empreitada nietzschiana com procedência em Heráclito – para o qual a amizade origina-se na diferença que advém da discórdia estabelecida na tensão dos opostos – cria uma outra concepção de amizade, lançando luz para a assimetria, a irreciprocidade, a diferença, o estranhamento, a distância, a heterogeneidade e a alteridade. Como reconhece Passetti, é fantástica a bravura de Nietzsche em ver no amigo o melhor inimigo, “o guerreiro que desestabiliza, mas não destrói” (PASSETTI, 2003, p. 33). Não há conforto na amizade proposta pelo filósofo. A lente para olhar a amizade oferecida por ele põe em questão nossas crenças no monopólio da transparência, do consenso, da identificação, da fusão, da extrema intimidade nas relações de amizade, enfim na política da amizade instituída por semelhança e proximidade, pois onde há semelhança, não há amizade, há devoção, idealização da paz, prenúncio de nova guerra. O resgate da filosofia nietzschiana da amizade pelos intelectuais franceses contemporâneos, como Maurice Blanchot, Michel Foucault, Jacques Derrida, Gilles Deleuze, Felix Guatarri, Jean-Luc Nancy, tem possibilitado pensar esse vínculo como um mecanismo de formação e transformação, em que o conflito e a heterogeneidade desempenham um papel importante, não para reforçar nossa identidade, mas para transformála. Dessa forma, a amizade torna-se, na verdade, uma ascese, ou seja, uma atividade de autotransformação e aperfeiçoamento que possibilita modificar a própria vida e retraçar o político, escapando das formas de subjetivação ligadas ao Estado, à família, à igreja e ao mercado. É o que nos leva a crer o pensamento de Michel Foucault. Para Foucault, na modernidade, a amizade está livre das codificações sociais, coações, hierarquias e obrigações presentes na Antiguidade clássica e torna-se especialmente atraente para ser retraçada, na medida em que cria espaços intersticiais capazes de fomentar tanto necessidades individuais quanto coletivas. Na obra Amizade e Estética da Existência em Foucault, o filósofo Francisco Ortega postula que a amizade é um conceito-chave na obra desse pensador; ela é o ponto de chegada de sua meditação éticopolítica, que aponta para uma atualização da estética da existência dos gregos. Vale lembrar que a discussão foucaultiana da amizade está inserida no contexto da cultura homossexual. De todo modo, a amizade para Foucault é um convite à experimentação de novos estilos de vida e comunidade; uma forma de subjetivação coletiva e uma forma de vida. Para ele, falar de amizade é falar de multiplicidade, intensidade, experimentação, desterritorialização.

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Ele não define a amizade, não cria receitas; tem um programa vazio para a amizade. Em uma única situação, menciona que a amizade é “a soma de todas as coisas mediante as quais se pode obter um prazer mútuo”. Assim, para o filósofo, o candidato a manter viva a amizade não é a política – entendida como amor pela cidade –, tampouco o amor ao conhecimento (razão) e muito menos o lirismo fraternal entre irmãos, mas o prazer. Como nos faz crer Ortega, ele propõe uma nova economia dos corpos e dos prazeres cujo objetivo é superar a dicotomia entre eros e philia existente desde a Antiguidade nos discursos e na prática da amizade. Foucault defende a erotização da amizade a despeito da tradição filosófica que investiu em sua deserotização. A amizade prazerosa seria o núcleo irredutível de sua estilística de existência. Ele questiona se é possível a construção de uma ética dos prazeres que leve em conta o prazer do outro e pergunta: “É o prazer do outro algo que pode ser integrado em nosso próprio prazer – sem relação à lei, ao matrimônio e não sei que mais?”. Segundo Jurandir Freire Costa, é problemática a noção foucaultiana de ética como uma ascese dos prazeres, pois sua noção de prazer é fugidia, e o psicanalista indaga o que diferenciaria a ética dos prazeres de Foucault das experiências de vidas egocentradas que talham a vida contemporânea (COSTA apud ORTEGA, 1999). Na perspectiva de Michel Onfray, é possível criar uma ética dos prazeres nas relações intersubjetivas e escapar do hedonismo vulgar do “cada um por si” que dá tonalidade à sociedade intimista moderna. Diz ele: trata-se de realizar uma intersubjetividade contratual na qual os sujeitos consentem, tanto um quanto o outro, a uma álgebra dos prazeres que se instrua as partes malditas.[...] Dentro desta lógica, o gozo desejado por um deve imperativamente ser colocado em perspectiva com o do outro. Um prazer pessoal, sem o outro, pode rapidamente tornar-se prazer apesar do outro, contra ele. O hedonismo é dinâmico e considera que não existe volúpia possível sem consideração do outro. Não por amor ao próximo, mas por interesse, fique bem entendido, pois o outro é o conjunto da humanidade da qual eu extraio minha própria pessoa, o que cada um de nós experimenta. Assim todos são outro para mim, porém eu sou o outro para todos os outros. E aquilo que pratico na direção do outro se acha, dentro de uma perspectiva eudemonista, colocado em prática na minha direção (ONFRAY, 1995, p. 144).

O hedonismo proposto pelo filósofo faz da amizade uma afinidade eletiva submetida ao cálculo de interesses que traz ganhos para ambas as

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partes, e “suplemento da alma, aumento de volúpias, entesouramento de prazeres, capital jubiloso e dividendo em matéria de ser” (ONFRAY, 1995, p.145). Nessa direção, é plausível pensar na amizade como forma prazerosa de vida - vida que valha a pena ser vivida e que escape à biopolítica moderna. Segundo Ortega, “a ética foucaultiana da amizade com seu conceito de forma de vida representa a possibilidade de uma política nova, não mais fundada na ‘vida nua’, mas na sua forma, onde a vida e sua forma sejam inseparáveis” (2000, p. 95). Para Foucault, os homossexuais, entendidos como seres em devir, estariam potencialmente impulsionados a criar outras formas de existência e a reinventar o direito relacional. A propósito dessa discussão, ele localizou o elemento transgressivo da amizade na rejeição às formas de subjetividades impostas socialmente pelas instituições. Portanto, o projeto de uma ética da amizade foucaultiana consiste na busca de lugares de produção de subjetividade que escapem, dobrem as redes do saber e do poder. Como apontou Deleuze, o que interessa a Foucault é problematizar a atualidade e não retornar ao mundo de Sócrates, Epicuro e Sêneca, mas refletir: “qual é a nossa ética, como produzimos uma existência artística, quais são nossos processos de subjetivação irredutíveis a nossos códigos morais? Em que lugares se produzem novas subjetividades? Existe algo a esperar das comunidades atuais?” (1992, p. 142). Com Foucault, acredita-se que contemporaneamente a amizade crie um espaço particularmente atraente para forjar novas subjetividades que se realizam no espaço do mundo compartilhado entre indivíduos; ela é um locus privilegiado de resistência que suscita posicionamentos mais oblíquos e diagonais. A amizade pode resistir aos diagramas de poder, caso aceitemos o desafio de substituir a doutrina do amigo como outro eu pelo amigo que desestabiliza sem destruir; se trocarmos o amor ao próximo pelo amor ao distante, se incorporarmos a distância em nossas relações, entendida como valorização da alteridade, pluralidade, se incorporarmos o silêncio na amizade, rejeitando os princípios da sociedade da comunicação, e se trocarmos a idéia de amizade como artifício compensatório e confortável da sociedade intimista pela concepção de formas de vida que promovam a incitação recíproca. Contudo, não se pode esquecer que hoje a prática da amizade como resistência a biopolítica moderna concorre com a recriação das tecnologias de dominação (PASSETTI, 2003). A cada momento de sua história, a sociedade ocidental entrega-se à nostalgia de uma comunidade perdida, deplorando o desaparecimento de uma familiaridade, fraternidade, convivialidade e comunhão. Frente a essa ilusão retrospectiva, restam a despedida e a potência criativa da vida.

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Para retraçar e reinventar a amizade, é preciso nos despedirmos das tradicionais metáforas que nortearam nossa relação com o outro e continuam habitando nosso imaginário político, como o par amigo-inimigo. É necessário cuidar de nosso imaginário social. Talvez a idéia de laço social deva ser substituída por uma imagem menos aprisionadora. O laço elide o entre, espaço necessário para que o outro não se reduza ao mesmo; é esse o espaço compartilhado que introduz dissimetria, impedindo que todos sejam reabsorvidos numa totalidade homogeneizadora. As amizades não são laços estáticos. Amizades são plásticas, estéticas, moldam, amoldam-se e recriamse incessantemente, reinventando suas coordenadas de enunciação e exibindo sua potência política de vida.

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12. EM BUSCA DA BELEZA NO VIVER: DIÁLOGOS POSSÍVEIS ENTRE A ANTIGUIDADE E O ANARQUISMO CONTEMPORÂNEO MARIA CLARA PIVATO BIAJOLI PRISCILA PIAZENTINI VIEIRA

QUANDO MICHEL Foucault publicou, no começo dos anos 80, o segundo e o terceiro volumes de sua História da Sexualidade, acabou por fornecer aos historiadores outras ferramentas de análise e renovou muitas abordagens dessa disciplina. Esse “efeito Foucault” já foi muito debatido pelos acadêmicos da área (Cf.RAGO, 1993) e culminou em atitudes tanto de rechaço das teorias do filósofo quanto de total abertura a elas. Nossa posição é confluente com a do historiador Paul Veyne, quando afirma que “Foucault revoluciona a história” (VEYNE, 1998). Isso porque, em primeiro lugar, suas críticas a respeito da prática historiográfica tradicional - aquela que buscava as origens, a identidade e o reconhecimento - e sua proposta de desconstruir essas origens e praticar uma história genealógica renovam nossos preceitos teóricos. Mas também acreditamos que seu trabalho nos fornece ainda outros conceitos que podem ser instrumentos extremamente interessantes para a análise das experiências contemporâneas. Neste artigo, privilegiamos as noções de “estéticas da existência” e “cuidado de si”, referentes à Antiguidade greco-romana, que serão mais bem explicadas na primeira parte. Na segunda, daremos um salto temporal para o anarquismo espanhol do século XX, um salto proposto também por Foucault, de certa maneira, para refletir sobre esse movimento e pensamento político a partir daqueles conceitos retirados dos antigos.

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As “estéticas da existência” na Grécia Antiga É com o intuito de fazer uma “genealogia” tanto do desejo quanto do “sujeito do desejo”, buscando problematizar a centralidade do sexo na sociedade moderna, que Foucault recua para a Antiguidade, tentando empreender um estudo do que chamamos de “sujeito”. Para isso, ele propõe uma pergunta: “por que o comportamento sexual, as atividades e os prazeres a ele relacionados são objeto de uma preocupação moral?” (FOUCAULT, 1984, p.14). Ao encontrar essa problemática nos antigos, ele perceberá sua relação com o que chamou de “artes da existência”, sendo estas: práticas refletidas e voluntárias através das quais os homens não somente se fixam regras de conduta, como também procuram se transformar, modificar-se em seu ser singular e fazer de sua vida uma obra que seja portadora de certos valores estéticos e responda a certos critérios de estilo (FOUCAULT, 1984, p.15)

Para justificar as suas formas de problematização através dos temas “O medo”, “Um esquema de comportamento”, “Uma imagem” e “Um modelo de abstenção”, o autor elabora toda uma discussão sobre a moral cristã e o pensamento pagão. Nesse sentido, ele problematiza uma dada visão da Antiguidade, muito presente no período em que ele escrevia o seu livro, a qual defende que os gregos não teriam se preocupado com questões como a natureza do ato sexual, a fidelidade monogâmica, as relações homossexuais e a castidade (FOUCAULT, 1984, p.17), enquanto que os cristãos teriam dado a elas um grande destaque. Para entender melhor essa situação, ele fará um estudo percorrendo essas quatro questões, concluindo que estas já estavam presentes na Antigüidade: numa escala histórica bem mais longa, poder-se-ia acompanhar a permanência de temas, inquietações e exigências, que sem dúvida marcaram a ética cristã e a moral das sociedades modernas, mas que já estavam claramente presentes no cerne do pensamento grego ou greco-romano (FOUCAULT, 1984, p.18).

Essas permanências, no entanto, não indicam “que a moral cristã do sexo estava, de certa forma, ‘pré-formada’ no pensamento antigo” (FOUCAULT, 1984, p. 23). A moral sexual do cristianismo e do paganismo, assim, não formam uma continuidade. Ao contrário, é a partir da diferença

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que devemos entender essa relação, como explicita Foucault: “Diversos temas, princípios e noções podem perfeitamente se encontrar num e noutro; não possuem, no entanto, o mesmo lugar e o mesmo valor em ambos” (1984, p.23). Foucault encontrará grandes diferenças entre essas noções. Uma diversidade marcante é entendida ao percebermos que a Igreja cristã tinha como princípio uma moral cujos preceitos eram constritivos e cujo alcance era universal, ao passo que, no pensamento antigo, as exigências de austeridade não eram organizadas numa moral unificada, coerente, autoritária e imposta a todos da mesma maneira; ela eram, antes de mais nada, um suplemento, como que um “luxo” em relação à moral aceita correntemente; além disso, elas se apresentavam em focos “dispersos” (...) e propunham, mais do que impunham, estilos de moderação ou de rigor cada qual com sua fisionomia particular (1984, p. 23).

Portanto, esses temas de austeridade sexual no mundo antigo não deveriam ser vistos como uma tradução ou em comentário de proibições profundas e essenciais, mas como uma “elaboração e estilização de uma atividade no exercício de seu poder e na prática de sua liberdade” (Idem, p.25). É nesse sentido que as reflexões morais na Antigüidade grega ou greco-romana foram constituídas, baseando-se nos seguintes preceitos: A ênfase é colocada na relação consigo que permite não se deixar levar pelos apetites e pelos prazeres, que permite ter em relação a eles, domínio e superioridade, manter seus sentidos numa estado de tranqüilidade, permanecer livre de qualquer escravidão interna das paixões, e atingir um modo de ser que pode ser definido pelo pleno gozo de si ou pela soberania de si sobre si mesmo (FOUCAULT, 1984, p.30).

Além disso, Foucault encontrará diferenças no modo de trabalhar essa relação consigo dentro na própria Antiguidade. O preceito do “uso dos prazeres” na Grécia é diverso, em suas ênfases, em seus temas, em suas problemáticas, do que ele encontrará em Roma, que apresentará uma peculiaridade em relação aos gregos: a do “cuidado de si”.

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O “cuidado de si” no Império Romano Para trabalhar a noção de “cuidado de si”, Foucault centra-se sobre o Império Romano dos séculos I e II, percebendo uma transformação nos modos de subjetivação. Ele explica: Desconfiança face aos prazeres, insistência sobre os efeitos do seu abuso para o corpo e para a alma, valorização do casamento e das obrigações conjugais, desafeição com relação às significações espirituais atribuídas ao amor pelos rapazes: existe no pensamento dos filósofos e dos médicos, no decorrer dos dois primeiros séculos, toda uma severidade (...) Problematização mais intensa dos aphrodisia, dos quais é preciso tentar retomar as formas particulares e os motivos (FOUCAULT, 1985, p. 45).

Ao tentar encontrar os motivos dessa problematização particular, Foucault não os percebe através de uma limitação da liberdade sexual pelas instituições ou pela lei, observando que não se encontrará nos filósofos um projeto para uma legislação coercitiva e geral dos comportamentos sexuais (1985, p.46). Para ele, esse movimento deveria ser interpretado a partir de outras noções: essa majoração da austeridade sexual na reflexão moral não toma a forma de um estreitamento do código que define os atos proibidos, mas a de uma intensificação da relação consigo pela qual o sujeito se constitui enquanto sujeito de seus atos. E é levando em conta uma semelhante forma que convém interrogar as motivações dessa moral mais severa (1985, p. 47).

Assim, a austeridade sexual encontrada nos romanos deve ser entendida a partir da intensificação das relações consigo. Para analisá-las, Foucault discutirá uma idéia que, de certa forma, acompanhava a percepção dessa mudança: a noção de que teria ocorrido um fenômeno crescente de “individualismo” nesse período e de que as relações públicas, políticas e sociais teriam se enfraquecido, dando lugar a uma conduta privativa. Para ele, as atividades cívicas e políticas eram ainda muito importantes para as classes superiores, situando-se em fortes sistemas de relações locais, de vínculos familiares, de dependências econômicas, de relações de clientela e de amizade. Ainda acrescenta que doutrinas, como a dos estóicos, denunciavam as práticas de isolamento, vendo estas como uma atitude de frouxidão e de complacência egoísta.

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Para detalhar essa discussão, o filósofo distinguirá aspectos diversos que o termo individualismo suscitava: a atitude individualista, exemplificada pela liderança do militar diante do seu grupo; a valorização da vida privada, representada pelas classes burguesas dos países ocidentais no século XIX; e a intensificação das relações consigo, encontrada no movimento ascético cristão nos dois primeiros séculos e acompanhada de uma desqualificação dos valores da vida privada. Desse modo, as exigências da austeridade sexual detectadas no Império Romano não foram uma manifestação de um individualismo crescente, mas “o desenvolvimento daquilo que se poderia chamar de uma ‘cultura de si’, na qual foram intensificadas e valorizadas as relações de si para consigo” (FOUCAULT, 1985, p. 49). Portanto, essa arte da existência foi orientada pelo princípio segundo o qual é preciso “ter cuidados consigo”. E será em Epicteto que o autor encontrará essa elaboração, notando que nos Diálogos o ser humano é definido como o ser a quem foi confiado o cuidado de si. Seria essa a qualidade que diferenciaria os homens dos animais. Enquanto estes encontrariam “tudo pronto” em relação ao que lhes é necessário para viver, o homem deveria velar por si mesmo. E como Deus teria desejado que o homem pudesse, livremente, fazer uso de si próprio, teria o dotado para esse fim da razão (FOUCAULT, 1985, p. 57-58). Os cuidados de si eram sugeridos a todos e não se concretizavam somente em escolas, mas em todo o feixe de relações habituais de parentesco, de amizade ou de obrigação. Além disso, não eram práticas que faziam os indivíduos voltarem-se somente para si, mas também para a relação com o outro. Essas características são importantes para percebermos uma das implicações peculiares dessas práticas: “O cuidado de si (...) aparece então como uma intensificação das relações sociais” (FOUCAULT, 1985, p. 57-58). Acrescenta-se às características destacadas dessas práticas de si um objetivo comum: o princípio de conversão a si, notando que “convém manter em mente que o fim principal a ser proposto por si próprio deve ser buscado no próprio sujeito, na relação de si para consigo”(FOUCAULT, 1995, p.69). Isto é o que o filósofo chamou de “ética do domínio”. Porém, um alerta é colocado pelo autor, dizendo que essa experiência de si não implica apenas o domínio de uma força prestes a se revoltar, mas envolve um prazer que se tem consigo mesmo. Foucault ainda destaca que esse prazer é apresentado por Sêneca como um estado definido pelo fato de não ser provocado por nada que seja independente de nós, afirmando que ele nasce de nós e em nós mesmos. Assim, notamos que, em O Cuidado de Si, Foucault nos apresenta uma outra forma de constituição do sujeito moral. A austeridade sexual

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percebida no mundo romano não deve, como enfatiza o autor, ser interpretada como um estreitamento das interdições, mas como uma modificação em relação aos elementos constitutivos da subjetivação. Portanto, não vemos uma ruptura na ética do domínio de si, mas deslocamento, desvio e diferença de acentuação. O filósofo ainda destaca que vemos nessa mudança a definição de critérios estéticos e éticos da existência cada vez mais através de preceitos universais, os quais todos, independente do seu status, deveriam seguir. Por outro lado, a questão do conhecimento de si já coloca a noção da verdade do que se é, do que se faz e do que se é capaz de fazer, no cerne da constituição do sujeito moral. Mas, como o autor bem coloca: se está longe de uma experiência dos prazeres sexuais (...) associados ao mal, em que o comportamento deverá se submeter à forma universal da lei e em que a decifração do desejo será uma condição indispensável para ascender a uma existência purificada (1995, p.72).

Contudo, as questões do mal, da lei, da verdade e do conhecimento de si já podem ser visualizadas, permitindo perceber como, nos primeiros séculos do Império Romano, desenvolveram-se modos de subjetivação diversos dos encontrados na cultura grega.

As diferenças nos modos de constituição das subjetividades antigas e modernas Nos dois últimos volumes da História da Sexualidade (FOUCAULT, 1984, 1985), é fundamental, para Foucault, prestar atenção ao modo como o indivíduo constitui-se como sujeito moral. Ele caracteriza essa noção da seguinte maneira: constituição de si enquanto “sujeito moral”, na qual o indivíduo circunscreve a parte dele mesmo que constitui o objeto dessa prática moral, define sua posição em relação ao preceito que respeita, estabelece para si um certo modo de ser que valerá como realização moral dele mesmo; e, para tal, age sobre si mesmo, procura conhecerse, controla-se, põe-se à prova, aperfeiçoa-se, transforma-se (FOUCAULT, 1984, p. 28).

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É por isso que ele se interessa pela história da maneira como os indivíduos são chamados a constituirem-se como sujeitos da conduta moral. Foucault chamará esse trabalho de uma história da “ética” e da “ascética”, entendida como o estudo das formas da subjetivação moral e das práticas de si destinadas a assegurá-la, como ele defende a seguir: essa história será aquela dos modelos propostos para a instauração e o desenvolvimento das relações para consigo, para a reflexão sobre si, para o conhecimento, o exame, a decifração de si por si mesmo, as transformações que se procura efetuar sobre si (1984, p.29).

Para Foucault, o termo “moral”, em seu sentido amplo, comporta dois aspectos: o dos códigos de comportamento e o das formas de subjetivação. Se estes nunca podem ser dissociados, ele também aponta que, em certas morais, a importância é dada, sobretudo, ao código que cobre todos os campos de comportamento. A relevância, assim, estaria nas instâncias de autoridade que fazem valer esse código. Ao contrário, há morais cujo elemento forte deve ser procurado do lado das formas de subjetivação e das práticas de si. Nesse caso, o sistema de códigos e de regras seria bem rudimentar ou menos relevante em relação às formas de relações consigo, aos procedimentos, às técnicas e às práticas que permitam transformar seu próprio modo de ser. Não poderíamos reduzir a moral cristã, ou até mesmo a moderna, simplesmente ao primeiro modelo geral, para o qual é importante o código. Mas Foucault não hesita em defender que: “as reflexões morais na Antigüidade grega ou greco-romana foram muito mais orientadas para as práticas de si, e para a questão da askesis, do que para as condições de condutas e para a definição estrita do permitido e do proibido” (1984, p.30). É para enfatizar essas questões que Foucault, em uma entrevista, diferencia a ética e a moral na constituição de si tal como concebidas pelos indivíduos antigos: a ética seria o tipo de relação que se deve ter consigo mesmo “e que determina a maneira pela qual o indivíduo deve se constituir a si mesmo como o sujeito moral de suas próprias ações” (DREYFUS, RABINOW, 1995, p. 263) e a moral seria o código, as normas, bem como o comportamento efetivo das pessoas. Segundo Deleuze, A diferença é esta: a moral se apresenta como um conjunto de regras coercitivas de um tipo especial, que consiste em julgar ações e intenções referindo-as a valores transcendentes (é certo, é

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errado...); a ética é um conjunto de regras facultativas que avaliam o que fazemos, o que dizemos, em função do modo de existência que isso implica (DELEUZE, 1996, p. 125). Ao contrário da constituição de si na era cristã, em que o sujeito deveria anular-se em nome de um paraíso futuro, ou no tempo contemporâneo, em que devemos buscar sozinhos a nossa essência dentro de nós mesmos, a relação de si da Antiguidade era um eterno conhecer-se e construir-se na relação com o outro.

E a experiência de si que se forma nessa posse não é simplesmente a de uma força dominada, ou de uma soberania exercida sobre uma força prestes a se revoltar; é a de um prazer que se tem consigo mesmo. Alguém que conseguiu, finalmente, ter acesso a si próprio é, para si, um objeto de prazer (FOUCAULT, 1985, p.70) Essa relação consigo na Antiguidade, portanto, diferencia-se drasticamente da relação de obediência presente na moral cristã. Isso porque se, por exemplo, na Grécia, um aluno se submetia a um professor de filosofia, o grande objetivo era chegar a um momento dado, no qual ele seria mestre de si mesmo. Mas o intuito da obediência cristã é criar um sujeito que obedeça e renuncie definitivamente a sua vontade própria. É nesse sentido que Foucault afirma que o poder pastoral é um modo de individualização que implica a destruição do si (FOUCAULT, 2004, p.183). Diversamente, as reflexões morais na Antigüidade grega ou greco-romana foram constituídas segundo um domínio de si, que estava baseado nos seguintes preceitos: A ênfase é colocada na relação consigo que permite não se deixar levar pelos apetites e pelos prazeres, que permite Ter, em relação a eles, domínio e superioridade, manter seus sentidos num estado de tranqüilidade, permanecer livre de qualquer escravidão interna das paixões e atingir um modo de ser que pode ser definido pelo pleno gozo de si ou pela soberania de si sobre si mesmo (FOUCAULT, 1984, p. 30).

Ao mostrar como as formas de constituição do sujeito são diversas e características a cada período histórico, Foucault historiciza dois conceitos de extrema relevância para os historiadores: a de sujeito e a de experiência. Isso porque, para ele, não se tratava de fazer uma história da sexualidade como um tipo geral de comportamento no qual certos elementos poderiam

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variar segundo as condições demográficas, sociais ou ideológicas. Também não era a sua intenção fazer uma história das representações científicas, religiosas e morais, as quais, através de suas diversidades e de suas mudanças, estariam relacionadas a uma realidade invariante. O seu propósito, diversamente, era analisar a sexualidade “como uma forma de experiência historicamente singular” (1994, p. 578). Ou seja, seu principal objetivo era “pensar a historicidade das formas de experiências” (1994, p.579). Além disso, ao escrever a história das maneiras como o sujeito se constitui, Foucault introduz uma discussão nova para o campo da história, a das “estéticas da existência”. É através destas que ele sugere outras possibilidades de lutas contra as relações de poder que compõem a Modernidade. Ele abre essas possibilidades a partir desses estudos, pois percebemos que o sujeito moderno não é uma essência que integra uma suposta natureza humana, entendida como universal. Podemos, nesse sentido, historicizar sua forma de produção exatamente a partir da singularidade apresentada pelas relações consigo da Antiguidade. Todas as reflexões apresentadas aqui devem ser consideradas dentro da ressalva de que, para Foucault, as reflexões sobre o mundo antigo não apresentam alternativas ou soluções para o presente, mas instrumentos críticos para se pensar a atualidade. Como nos lembra Deleuze, (...) o que interessa essencialmente a Foucault não é um retorno aos gregos, mas nós hoje: quais são os nossos modos de existência, nossas possibilidades de vida ou nossos processos de subjetivação; será que temos maneiras de nos constituirmos como “si”, e, como diria Nietzsche, maneiras suficientemente “artistas”, para além do saber e do poder? Será que somos capazes disso, já que de certa maneira é a vida e a morte que aí estão em jogo? (DELEUZE, 1996, p. 124, grifos do autor).

Estéticas da existência no anarquismo espanhol Em uma de suas aulas no Collège de France, Foucault anuncia que é possível encontrar, em outras épocas, tentativas de elaboração de uma ética de si que se preocupavam em eliminar relações de poder: Mas podemos reler toda uma vertente do pensamento do século XIX como a difícil tentativa, ou uma série de difíceis tentativas, para reconstituir uma ética e uma estética do eu. Tomemos, por exemplo, Stirner, Schopenhauer, Nietzsche, o dandismo, Baudelaire,

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a anarquia, o pensamento anarquista, etc., e teremos uma série de tentativas, sem dúvida inteiramente diversas umas das outras, mas todas elas, creio eu, mais ou menos polarizadas pela questão: é possível constituir, reconstituir uma estética e uma ética do eu? A que preço e em que condições? (FOUCAULT, 2004, p.305)

É dessa forma que ele aponta para uma possibilidade de uso de seus conceitos: para mudar nosso olhar na releitura das nossas experiências históricas e no contato com os documentos. Novos temas, novas questões, áreas, relações, foram construídas dessa forma. O regime das verdades históricas viveu, assim, seus últimos dias. No trecho citado acima, o filósofo inclui, entre outros, o pensamento anarquista do século XIX no rol de tentativas de construção de uma ética do eu. Abordaremos, de uma forma mais detalhada, as características desse pensamento, em especial do anarquismo espanhol, que podem nos esclarecer as razões pelas quais Foucault escolheu incluí-lo nessa lista. Podemos, assim, tomar as idéias de “cuidado de si” e “estéticas da existência” e procurar refletir sobre quais as formas que os anarquistas utilizaram para tornar suas vidas “belas”, ou seja, coerentes com sua ética, em determinados momentos históricos. Trata-se de uma reflexão realizada por muitos intelectuais que acreditam encontrar, nos libertários, exercícios de construção de si muito interessantes. Segundo Edson Passetti, “os anarquistas foram decisivos fazendo vibrar suas vidas, muitas vezes quase contra todos, para expressar suas possibilidades de existência” (2003, p.12). Em primeiro lugar, devemos lembrar que o movimento anarquista, suas idéias e práticas são baseados em uma crítica do poder, não só daquele existente na relação do Estado com os “cidadãos”, mas principalmente dos pequenos poderes presentes nas relações cotidianas e nos códigos burgueses entre professor-aluno, médico-paciente, pai-filho, homem-mulher, etc. Esse pensamento propõe, então, a destruição dessas relações para dar espaço a novas formas mais livres, éticas. Diferenciando-se do marxismo e seu projeto utópico para o futuro, o anarquismo sempre foi pautado pelo tempo de agora, procurando uma forma de existência, no presente, que exija de seus militantes uma vida coerente com os valores desse pensamento. Assim, ao invés de um projeto utópico para o futuro, o anarquismo vive o presente. Poderíamos talvez utilizar um outro conceito de Foucault para caracterizar esse posicionamento, o de heterotopias. Para o filósofo, as utopias são posicionamentos que não possuem um lugar real, mas que, ao mesmo tempo, mantêm com o espaço real da sociedade uma relação de analogia direta ou inversa. Sobre isso, ele pontua: “É a própria

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sociedade aperfeiçoada ou é o inverso da sociedade mas, de qualquer forma, essas utopias são espaços que fundamentalmente são essencialmente irreais” (FOUCAULT, 2001, p. 415). Em contraposição às utopias, Foucault percebe lugares reais, efetivos, que são delineados na própria instituição da sociedade e que se apresentam como contraposicionamentos. Eles seriam, então: (...) espécies de utopias efetivamente realizadas nas quais os posicionamentos reais que se podem encontrar no interior da cultura estão ao mesmo tempo representados, contestados e invertidos, espécies de lugares que estão fora de todos os lugares, embora eles sejam efetivamente localizáveis (FOUCAULT, 2001, p. 415).

Dessa forma, podemos entender que o anarquismo se constitui como um movimento que busca as mudanças no tempo de agora, a coerência no existir de cada militante, e não em um futuro pós-revolução. Esta é, inclusive, uma das críticas desse movimento ao pensamento marxista. Christian Ferrer, analisando esta questão, afirma: Para eles, a liberdade era uma experiência vivida, resultado da coerência necessária entre meios e fins, e não um efeito de declamação, uma promessa para um ‘depois do estado’. De maneira que, para efeitos práticos, o anarquismo não constitui uma forma de pensar a sociedade de dominação, mas uma forma de existência contra a dominação. Na idéia de liberdade do anarquismo não havia unicamente um ideal, mas também um objetivo que reclamava por diferentes práticas éticas, ou seja, de correias de transmissão entre a atualidade da pessoa e a radicalização do porvir anunciado (FERRER, 2004, p. 161-162, grifos nossos).

Assim, cada militante deveria agir de acordo, ser o anarquismo, construindo sua vida conforme essa ética. Trata-se, dessa forma, de uma estética do eu, e que nunca foi narcisista ou egoísta, pois, acima de tudo, o anarquismo pensa na vida em comunidades e na solidariedade das relações entre as pessoas. Dentro da Espanha, esse movimento começou a expandir-se em meados da década de 1870 e rapidamente ganhou muita força entre camponeses e operários, em especial da região da Catalunha (WOODCOCK, 1983). Muitos de seus militantes tornaram-se grandes nomes do anarquismo mundial, entre eles Anselmo Lorenzo, Francisco Ferrer y Guardia, famoso pedagogo, Teresa Claramunt, Federico Urales, Federica Montseny, etc. Um outro militante

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espanhol que alcançaria a imagem de mártir e herói da Revolução de 19361939 seria Buenaventura Durruti. Quando fazia parte, na década de 1920, de um grupo anarquista chamado “Os Solidários”, Durruti e seus companheiros realizavam muitos assaltos. Com esse dinheiro, compravam armas para os operários, ajudavam as famílias dos amigos militantes presos e doavam todo o resto para a causa. Não ficavam com absolutamente nada para si, sobreviviam do seu próprio trabalho – Durruti era mecânico de trens. Com o tempo, ele ficou muito conhecido por sua militância, tornando-se persona non grata em muitas cidades e países. Mas sua mãe, apesar de tudo, nunca acreditou que seu filho roubasse: Bem, neste caso, eu acho que já não entendo mais o mundo. Nos jornais sempre dizem que Durruti fez isto ou aquilo, que estava aqui ou ali, mas toda vez que ele retorna para casa está vestido em trapos. Vejam só o estado dele! O que passa pela cabeça desses jornalistas? Eles estão precisando de um bode expiatório. (...) Toda vez que ele volta para casa eu tenho que costurar seus trapos, e nos jornais escrevem que ele tem pilhas de dinheiro (MONROY apud ENZENSBERGER, 1987, p.54-55).

Segundo esse depoimento, Durruti nunca guardou o dinheiro para satisfazer suas necessidades pessoais. Trata-se de um exemplo de coerência das atitudes cotidianas com as idéias anarquistas, o que levou Christian Ferrer a pensá-la como uma forma de construção ética de si desses libertários. Segundo alguns princípios anarquistas, tal como considera Ferrer em relação ao século XIX, o indivíduo que abraçava a “idéia” deveria efetuar uma reconstrução moral e subjetiva, deveria abandonar todos os males, vícios e hábitos da sociedade burguesa, que só constituíam uma vida falsa, e entrar em uma “nova fé”, acreditar na possibilidade de um mundo novo e lutar por ele. Alguns novos militantes inclusive optavam por mudar de nome, para marcar dessa forma o fim de uma vida e o começo de outra. Geralmente, os nomes tinham significados relacionados ao anarquismo, como Liberdade ou Liberto, Esperança, Ideal, Revolução. É esse tipo de coerência entre o pensar e o agir cotidianamente que podemos considerar como uma estética da existência anarquista. Trata-se de uma coerência que encontramos também nas experiências relatadas por algumas mulheres anarquistas espanholas que participaram do grupo Mujeres Libres, na mesma época de Durruti. Em sua luta pelo fim da opressão de gênero, o grupo procurou questionar a moral burguesa que definia as mulheres como frágeis, mães, passivas, ou prostitutas, pecadoras

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e impuras. Dessa forma, levantou mais uma questão a ser trabalhada pela revolução social que se constituía na Espanha e incentivou suas afiliadas a aderirem a novas formas de construção de si e a agirem de acordo com elas. Por exemplo, Lucía Sanchez Saornil, uma das fundadoras do grupo, reflete sobre a escolha do nome do grupo e de sua revista: No mês de maio de 1936, nascia a revista Mujeres Libres. Não era uma mera casualidade a coincidência destas duas palavras. Tínhamos a intenção de dar ao substantivo “mulheres” todo um conteúdo que reiteradamente a ele se havia negado, e ao associá-lo ao adjetivo “livres”, além de nos definir totalmente independentes de toda seita ou grupo político, buscávamos a reivindicação de um conceito mulher livre - que até o momento havia sido preenchido de interpretações equívocas e que rebaixavam a condição da mulher ao mesmo tempo em que prostituíam o conceito de liberdade, como se ambos os termos fossem incompatíveis (SAORNIL, 1937).

A opção pelo nome “Mujeres Libres” é um bom exemplo da reivindicação desse grupo e da sua sensibilidade para a necessidade de reconstruir as subjetividades das mulheres oprimidas no momento presente, ao invés de aguardar, confortavelmente, por uma mudança no futuro, que poderia chegar ou não. Para Christian Ferrer, os anarquistas construíam suas subjetividades através de novas práticas e novos relacionamentos, fundados na solidariedade e não na competição incentivada pela sociedade burguesa. Era essencial que essa nova subjetividade fosse forte: os anarquistas não deveriam desanimar ante as perseguições, prisões e violências praticadas contra eles, bem como ante os parcos resultados de sua propaganda. Tal resistência seria ainda mais fundamental para os exilados, os quais deveriam sempre lembrar-se de quem eram e viver em coerência com essa identidade, coerência estabelecida entre ideais e práticas. Podemos identificar, dessa forma, muitas práticas anarquistas entendidas como “cuidados de si”, como escolhas éticas. Christian Ferrer cita, por exemplo, o contato e a correspondência constante entre os militantes, que se articulavam em redes de luta e solidariedade, além das leituras, palestras e conferências, da imprensa e do teatro para a divulgação das idéias, da importância do autodidatismo, que pode ser entendido como uma ânsia de saber dos militantes. Ferrer comenta ainda sobre alguns modelos de conduta, aos quais dá o nome de “decálogo ético”: as recomendações, entre outras, para não beber ou jogar, para não aceitar promoções no trabalho, não se

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casar na Igreja, não batizar os filhos, escolher, para estes, nomes com significados anarquistas e, se possível, não enviá-los a escolas religiosas. Aqui, é muito importante perceber que, ao contrário da informação veiculada de que o anarquismo visava apenas a negação e destruição da sociedade, seus defensores construíam e ofereciam possibilidades e alternativas em resposta a todas aquelas recomendações: para a educação das crianças, havia as escolas modernas; para o matrimônio, havia o amor livre; para o bar, havia outras opções de lazer, como teatros e piqueniques. Os anarquistas não defendiam o fim da sociedade e das relações; muito pelo contrário, eles entendiam que os tipos de relacionamento entre os indivíduos deveriam ser mudados para se tornarem libertários, e não simplesmente para serem destruídos. A anarquia não deseja que cada homem seja uma ilha; muito pelo contrário, ela critica o individualismo e o narcisismo contemporâneos. Como afirma Rago, Da pedagogia libertária ao amor livre, da autogestão nas fábricas e nos campos à criação de centros culturais, ateneus e bibliotecas para os trabalhadores, toda uma tradição de lutas e resistências na história do anarquismo, em inúmeros países do Ocidente, revela que, desde o século XIX, os libertários estiveram comprometidos com a formação de novas individualidades capazes de questionar os códigos burgueses e de recusar a moral particular, imposta para toda a sociedade como universalmente válida (RAGO, 2006, p.166).

Considerações Finais Ao terminar essa breve reflexão sobre o anarquismo espanhol, podemos afirmar que são os conceitos foucaultianos que nos permitem enxergar diferentes aspectos desse movimento, em pesquisas que, por irem além da dicotomia envelhecida de operários versus patrões, oprimidos versus opressores, são muito enriquecedoras. Objetivamos mostrar, assim, uma possível relação do trabalho de Foucault sobre as sociedades antigas com o trabalho dos historiadores de história contemporânea. Assim, queremos afirmar que a relação Antiguidade/ Modernidade pode ser muito mais estreita do que se pensa e apresentar-se de formas diferentes também. Não se trata de falar em sociedades absolutamente diferentes, mas não é mais possível estabelecer a velha linha de continuidade.

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Tentamos mostrar aqui que, como Foucault indicou, a pesquisa sobre as sociedades antigas nos fornece instrumentos teóricos para renovar nosso trabalho, o estudo da História, e, consequentemente, a reflexão sobre nós mesmos. Isso foi possível entender porque Foucault recuou os seus estudos da Modernidade até à Antiguidade e notou as diferenças nas noções de subjetividade, sujeito, experiência e sexualidade, vistas por determinados estudiosos como essências permanentes que compunham a natureza humana. Ao nos desconstruir, Foucault abriu algumas importantes portas para a criação de uma História que não fosse mais um velho antiquário, mas sim que servisse ao presente.

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13. UMA LONGA CONTROVÉRSIA NA MODERNIDADE: GÊNERO E MEDICINA ELISABETH JULISKA RAGO

Neste artigo, procuro refletir sobre as relações entre gênero e medicina na Modernidade. Tento, primeiramente, realizar um breve mapeamento da participação das mulheres na arte de curar, tarefa que se beneficia das contribuições feministas envolvidas com essa problemática. Desejo ressaltar que, na base dessa discussão se situa o fenômeno do poder, visto que este ocupa o centro da organização social de gênero (SCOTT, 1995). Importante lembrar com Foucault que as pessoas, no quotidiano da experiência vivida, podem escapar aos micropoderes, assumirem diferentes formas de resistência e forjarem ativamente distintas e singulares trajetórias de vida. Segundo o autor, Nas suas malhas [dos micropoderes] os indivíduos não só circulam, mas estão sempre em posição de exercer esse poder e de sofrer sua ação; nunca são alvos inertes ou consentidos do poder, são sempre centros de transmissão (FOUCAULT, 1981, p. 83).

Para dar concretude a essa discussão, examinarei também alguns dos temas que constituíram o universo dos questionamentos da médica Francisca Praguer Fróes, nascida em Cachoeira, no Recôncavo Baiano, em 1872. Foi a quinta médica formada na Faculdade de Medicina da Bahia, em 1893. Lutou pela saúde da mulher, uma questão inovadora à época, tentando proteger o corpo feminino contra as chamadas “doenças venéreas”, como a sífilis. Corajosamente, a médica exerceu a militância feminista numa sociedade tradicional e machista, a Bahia na passagem do século XIX para o XX. Seus temas são relevantes para entendermos as relações de poder entre homens e mulheres, enquanto categorias sociais, num dado momento histórico.

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A profunda convicção iluminista na objetividade da ciência acentuou a fé no progresso inevitável e no conhecimento científico como condição sine qua non da emancipação humana e, por esta razão, a medicina foi uma peça-chave da modernidade, já que continha em si a promessa de superação do sofrimento e das doenças. Contudo, os médicos resistiram à participação ativa de mulheres nos seus projetos científicos, reiterando os argumentos da fragilidade feminina. A história parece ter demonstrado que elas foram “colocadas do lado de fora da modernidade como o ‘outro’”. (PRINGLE, 1998, p.6) Os médicos e os filósofos da época reafirmavam uma antiga crença de que “o modelo fundamental do ser humano permanecia imutável: uno, único, solitário, e historicamente masculino, o do homem ocidental adulto, racional, competente.”(IRIGARAY, 2002, p. 1) As tensões parecem ter aumentado no decorrer do século XIX, porquanto, após a superação das barreiras à educação superior, as mulheres enfrentaram a autoridade e os poderes masculinos que se constituíram no interior da medicina ocidental e moderna. Entre os séculos XVIII e XIX, a medicina supõe-se racional e objetiva, o que implicou a negação do sujeito feminino, que por suas características “naturais” de “fragilidade”, limitadas pelo corpo, não se adequariam a uma prática que exigia capacidade de decisão, resistência física e “frieza” nas intervenções cirúrgicas. Laqueur escreve que esse ideal de masculinidade e de objetividade que tanto impregnou os saberes biológicos e anátomo-fisiológicos, entre os séculos XVIII e XIX, dificultou ainda mais o ingresso de mulheres (LAQUEUR, 2001, p. 243). Uma imagem falocêntrica de vocação e de racionalidade estava de tal sorte enraizada naquela ciência que, de forma dicotômica, atribuiu a objetividade e a imparcialidade ao gênero masculino, enquanto as representações de sensibilidade e emoção foram conferidas às mulheres. O sexo feminino seria, pois, “objeto da medicina e seu principal beneficiário” (PRINGLE, 1998, p.6). De acordo com essas representações, as mulheres não poderiam ser membros ativos das comunidades científicas. Conforme Schiebinger, em O feminismo mudou a ciência?, [n]o século XIX, o rompimento da velha ordem (o sistema de guildas de produção artesanal e o privilégio aristocrático) fechou às mulheres o acesso informal à ciência de que podiam ter desfrutado. Numa época em que as atividades domésticas passavam por privatização, a ciência estava sendo profissionalizada (um processo gradual no decorrer de vários séculos) (2001, p. 69).

Assim, a intensificação do afastamento entre as esferas pública e privada deslocou as mulheres para o ambiente doméstico, “enquanto a ciência

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migrava para a esfera pública da indústria e universidade” (2001, p. 69). Convém lembrar, no entanto, que a ligação das mulheres com a medicina é milenar, pois, como veremos, existem referências àquelas que participaram da vida científica desde a antiguidade. Trata-se, assim, de um longo processo de lutas, na verdade, muito diversificadas, em que se verificam processos de inclusão e exclusão das mulheres, continuidades e rupturas. Ninguém contesta as atividades das parteiras que “formavam parte de uma comunidade maior de especialistas na arte de curar.” (SANTOS, TOSI, 1996:374) Nesse sentido, quero recordar que, apesar de quase ausentes dos registros históricos de passados remotos, não foram poucas aquelas que escreveram, inclusive sobre os homens, como mostrou DUBY (1995), praticaram a medicina e a obstetrícia em outros espaços e tempos distantes. Em períodos históricos anteriores à era Moderna, não havia uma rígida separação entre as atividades femininas e as masculinas. Havia especializações, segundo o gênero, dentre elas a parturição, mas nem a simplicidade, a facilidade ou a leveza regulavam as atribuições femininas. A feminilidade não era uma desculpa para se escapar da rudeza das atribuições, como ocorreu posteriormente (SOUZA, 1998, p.72).

O ensaio “Resgatando Métis – O que foi feito desse saber?” esclarece muitas questões a respeito das atividades científicas femininas em um passado longínquo. As autoras detectam, por meio de um retrospecto histórico, que as mulheres praticaram a arte de curar desde a antiguidade. No Egito, muitas deusas eram veneradas por suas habilidades médicas, a exemplo de Ísis (SANTOS, TOSI, 1996, p.373) Há provas, segundo as autoras, da existência de médicas e de cirurgiãs nas cidades gregas, apesar das proibições em virtude da falta de treinamento científico. O processo de excluir as mulheres da prática médica, embora tenha assumido formas diversas nos diferentes países, como Itália, Espanha, Inglaterra e Alemanha, manifestou-se em todos eles. Ao contrário do que se acredita, a liberdade das mulheres dedicadas à arte de curar diminuiu no período renascentista (em relação à Idade Média), uma vez que “as novas classes emergentes criaram novas formas de organização política e social que reduziram ainda mais a liberdade das mulheres, tanto sexual como econômica.” (TOSI, 1996, p. 379) Na prática, as mulheres continuaram presentes na vida social e política, mas o que fica claro é que foi “durante esse período que se estabeleceram as bases da exclusão das mulheres do exercício da prática médica independente.” (TOSI, 1996, p. 377)

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Na Idade Média, a maior parte das especialistas na arte de curar era constituída pelas parteiras, porém outras atividades foram exercidas pelo gênero feminino: cirurgiãs, físicas, barbeiras e bruxas. (1996, p.374) Elas também se dedicavam à preparação de remédios, ungüentos, bálsamos, à fabricação de perfumes e fórmulas rituais ou magia para curar os males do corpo e da alma. Note-se que a magia era praticada também por homens cultos e até mesmo pelos padres. A Escola de Salerno, a primeira escola de medicina reconhecida oficialmente em 1224 e extinta em 1811, parece ter acolhido um número significativo de mulheres. Um dos nomes que se destacou nessa instituição de ensino foi o de Trótula, considerada a primeira ginecologista da História, autora da obra De mulierum passionibus ante, in et post partum – um tratado de obstetrícia que aconselha quanto aos cuidados necessários durante e depois do parto, indica a dieta a ser seguida e até a escolha de uma ama seca (MARGOTTA,1996, p. 52). Os escritos de Trótula eram muito populares, foram lidos por mais de sete séculos, constituindo “um tratado ginecológico muito conhecido”. Não tardou, porém, ser a médica atacada por um editor da obra, na cidade de Basiléia, que atribuiu a autoria dos textos a um homem, duvidando que uma mulher pudesse ter escrito uma obra científica. Só muito mais tarde, no século XX, o pesquisador John Benton, encontrou, num arquivo em Madri, documentos que comprovaram se tratar de uma mulher (SANTOS, TOSI, 1996, p. 376). O exercício da medicina feminina era muito controlado, entretanto, a partir do século XIII, os doutores da Faculdade de Medicina de Paris proibiram a prática a todos que a exerciam sem uma licença, o que atingiu várias delas. O principal argumento utilizado nos processos versava sobre a ignorância feminina, que “punha em perigo a vida do paciente.” As praticantes também sofreram restrições na Espanha, por volta de 1329, quando surgiram leis limitando suas atividades em Valência, o mesmo ocorrendo posteriormente nas outras cidades. Na Inglaterra, em 1421, foram criadas medidas para garantir a hegemonia dos médicos (homens), e a idéia era a de que “nenhuma mulher us[asse] a prática da física sob pena de longa prisão e de uma multa de 40 libras”. (1996, p.377) Muitas dessas mulheres não se intimidaram e, por meio de múltiplas estratégias, encontraram soluções para aumentarem seus conhecimentos e continuarem atuando na arte de curar, até se vestindo de homem, por exemplo. Christine de Pizan, historiadora e poetisa que viveu entre 1364 e 1430, enfrentou a misoginia de seu tempo numa obra de combate, La cité des dames, defrontando não só aqueles que menosprezavam as mulheres, mas

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também as leis que as oprimiam. Além disso, defendeu teses feministas e não aceitou a opinião dos filósofos, dos moralistas e dos sábios sobre a inferioridade física e mental das mulheres. No período em que viveu, as possibilidades de ingresso nas ciências eram inacessíveis para o gênero feminino. No entanto, as mulheres transgrediam as barreiras e os interditos, praticando conhecimentos empíricos relacionados com a medicina até o fim da Idade Média. Na Renascença, os saberes femininos foram encarados como obra do demônio. “Uma imagem de bruxa é constituída por padres e magistrados e durante dois séculos as mulheres pagar-lhe-ão um duro tributo.” (1996, p.380) Não é casual a reflexão de Delumeau sobre o medo que os homens sentiam das mulheres no mundo antigo. A esse respeito, escreve que “a veneração do homem pela mulher foi contrabalançada ao longo das eras pelo medo que ele sentiu do outro sexo, particularmente nas sociedades de estruturas patriarcais”. (1996, p. 310) As fontes que retratam o passado de grupos marginalizados do poder, como as mulheres, expressam imagens historicamente distorcidas pelo uso de categorias naturalizadas, que essencializam a subjetividade feminina e consideram as mulheres como sendo o “outro sexo”, no dizer de Irigaray, o que significa “o outro do sujeito masculino.” (2002, p.12) Tem-se uma visão hierarquizada e naturalista que não conhece, ou melhor, não reconhece as diversidades dos sujeitos femininos, fato que traz conseqüências para a organização da vida social e política. Delumeau considera que o medo masculino diante das mulheres gerou agressividade e atitudes antifeministas. Outras fontes, também utilizadas pelo autor, dão a conhecer atitudes opostas, representações mais auspiciosas das mulheres, julgando-as belas obras da natureza, a exemplo da “deusa da fecundidade”, da “divina sabedoria” com Atenas ou do “canal de toda graça”, com a Virgem Maria. Goethe asseverou que “o eterno feminino nos arrebata para o alto”. (1996, p. 310) Sentimentos paradoxais em relação às mulheres, ora de admiração ora de hostilidade, estavam presentes não só no legado cultural greco-romano como no judaico-cristão. Vida e morte, criação e destruição, pecado e santidade, obscuridade, perigo, o enigma da maternidade e o mistério da fisiologia feminina eram algumas das representações misóginas geradas pelo medo masculino do outro gênero.“À sanguinária Kali [deusa hindu, ao mesmo tempo destruidora e criadora] correspondiam de uma certa maneira, nas mentalidades helênicas, as Amazonas ‘devoradoras’ de carne humana, as Parcas, que cortavam o fio da vida, as Erínias ‘assustadoras’, ‘loucas’ e ‘vingadoras’, tão terríveis que os gregos não ousavam pronunciar seu nome” (1996, p. 313).

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O cristianismo não foi o responsável pelo medo masculino diante das mulheres, porém incorporou esse sentimento e tomou a sexualidade, “o desejo turvo”, “mau e insaciável” como seus principais referentes. Já no século XIX, segundo Peter Gay, a imagem da mulher perigosa constituiu-se em um dos temas preferidos da criação literária e artística do século (1999, p.150). Dessa maneira, o “antifeminismo agressivo” que brotou desse medo teria provocado inquietação até o início do século XX.

Os saberes médicos e filosóficos Os médicos do século XIX, ao lado dos homens cultos da época, salvo exceções, foram os principais responsáveis pela construção da noção de “diferença sexual”, produzindo, dessa maneira, uma justificativa política para a divisão das esferas feminina e masculina. O saber médico hegemônico do período, na busca de novas explicações sobre a “diferença” biológica, baseouse na convicção de que a “diferença” residia no corpo feminino cujas características anatômicas se destinariam à função reprodutiva. Nesse sentido, a crença desmedida atribuída à anatomia do corpo foi convertida em “destino” social das mulheres, no imaginário dos séculos XVIII e XIX. Laqueur afirma que muitos médicos escreveram com intuitos políticos e culturais, produzindo uma variedade de discursos sobre a diferença sexual. Assim, a visão biológica e anti-histórica de uma mulher universal, na visão dominante da época, acentuou ainda mais a exclusão das mulheres das modernas instituições científicas e da medicina. Além do mais, fenômenos como menstruação, gravidez e menopausa eram considerados períodos críticos na saúde das mulheres e, por esta razão, muitos médicos e homens cultos do século XIX desaconselhavam a educação superior feminina, pois o esforço intelectual despendido poderia abalar-lhes a saúde. Esses postulados ideológicos têm origem nas estruturas de poder do patriarcalismo e não nas propaladas “descobertas científicas” que se desenvolviam à época. Uma importante literatura sobre os temas e os problemas que envolvem gênero e ciência demonstra que a autoridade detida por mulheres ligadas às atividades científicas, em períodos históricos anteriores, não se converteu em poder com o advento da Modernidade, diferentemente do que ocorreu com os cientistas e médicos. Sob esse prisma, é possível afirmar que as mulheres cultas da época não foram contempladas com nem um projeto de emancipação (SCHIEBINGER, 2001, p.57). Pautados na representação do atributo biológico feminino, os homens cultos dos séculos XVIII e XIX impuseram limitações aos trabalhos científicos

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realizados por mulheres até mesmo àquelas atividades que eram realizadas em suas próprias casas. Desta maneira, puderam definir os papéis e tarefas femininas, nomeadamente, as de esposa, mãe, irmã e filha, além do corolário de valores e comportamentos que correspondiam a cada um desses papéis sociais. A inserção e o reconhecimento profissional das médicas em países europeus, nos Estados Unidos e na América, se concretizariam no último quartel do século XIX, porém cercados de muitas desconfianças, não somente por parte dos médicos, mas da sociedade em geral, incluindo as próprias mulheres.

Muitas são as interdições A entrada histórica das mulheres na Medicina foi um processo lento e difícil e suscitou muita controvérsia, na medida em que representou aos olhos das sociedades em que o fenômeno ocorreu, transgressão de normas sociais, institucionais e culturais. Como se sabe, as mulheres não tinham acesso ao ensino superior antes da segunda metade do século XIX, em vários países. Apesar de o ingresso das mulheres na Medicina moderna fazer parte de um movimento de dimensões internacionais, as ações das envolvidas nessa luta não foram de modo algum unívocas. Ao contrário, variaram de acordo com o país e com o grau de desenvolvimento econômico, político, social e cultural. Em Sympathy and Science: women physicians in American Medicine, Morantz-Sanches relata que o ingresso na profissão médica teria sido conseqüência de mudanças significativas nos planos econômico e social no final do século XVIII e início do século XIX, que resultaram na transformação da vida familiar e dos papéis atribuídos aos gêneros. Sua pesquisa revelou que as norte-americanas se moviam com facilidade entre “as responsabilidades familiares e as novas formas de participação na vida pública”. Segundo a historiadora, muitas vezes, as médicas justificavam sua escolha pela medicina, reapropriando-se do discurso vitoriano das esferas separadas em seu próprio benefício: as mulheres seriam mais pacientes e mais dedicadas e de moral mais elevada que os homens. O estudo aponta para a multiplicidade de escolhas individuais feitas pelas mulheres médicas, ou seja, muitas delas foram sufragistas, várias se envolveram com movimentos reformistas, outras tiveram como preocupação humanizar a profissão, enquanto algumas queriam apenas ter uma vida decente e exercer uma profissão mais interessante do que o magistério. Por tudo isso,

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as mulheres jamais formaram um bloco monolítico, nem em sua postura em relação à profissão, nem nas posições políticas adotadas, nos cuidados médicos ou na maneira como administravam a vida pessoal (MORANTZ-SANCHES, 1985, p.13).

O caso brasileiro Nas décadas finais do século XIX, o Brasil passou por significativas transformações, com o processo de urbanização, a emergência das fábricas, a chegada de imigrantes europeus, o aumento populacional. No plano das idéias, a onda liberalizante vinda da Europa e dos Estados Unidos, teorias e idéias inspiradas no liberalismo e no cientificismo influenciavam a inteligência brasileira. Os esforços feitos pelas estudantes que desejavam ingressar numa faculdade de medicina, naquele período, encontraram respaldo nestas transformações, à medida que o debate sobre os papéis femininos ganhava, nesse contexto, uma nova dimensão. Entretanto, não é possível analisar as mudanças que envolveram o desenvolvimento intelectual das mulheres como um “mero efeito da modernização”. Isto porque, como explica Michelle Perrot, “nenhum processo histórico age por si mesmo” (PERROT, 1997, p. 93). As mulheres participaram de complexas redes nas quais desempenharam um papel fundamental como agentes de transformação. O mundo da medicina no Brasil, por ser rigorosamente masculino, na virada do século XIX, obrigava as estudantes a enfrentarem muitos constrangimentos. Rita Lobato Velho Lopes, a primeira médica formada por uma faculdade brasileira, a da Bahia, em 1887, assistia às aulas acompanhada pelo pai, sentando-se numa cadeira separada dos colegas – todos homens (SILVA, 1954, p.137). Na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, a congregação adotava o mesmo procedimento em relação às moças. Ermelinda Lopes de Vasconcelos, que defendeu uma tese sobre Meningite na Infância e seu diagnóstico, em 1888 (1954, p. 55), assistia às aulas sempre acompanhada pela mãe, que faleceu pouco antes da formatura da filha. Por estranho que possa parecer, aquelas que investiram na profissão de médicas, desde o final do século XIX, foram muito pressionadas não apenas pelos homens, mas também por outras mulheres, às vezes por familiares, que entendiam ser a medicina uma profissão masculina, não adequada a uma “boa moça de família”. No imaginário do século XIX e do começo do século XX, o gênero feminino estava à mercê de seu aparelho reprodutivo que, segundo se acreditava, tornava seu comportamento errático e imprevisível. Na Bahia,

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onde foi fundada a primeira faculdade de medicina do país, como em outras regiões, era ampla a misoginia do pensamento médico dominante, além do ideário religioso que reiterava o pressuposto da oposição “natureza x cultura”, enfatizando o argumento da “diferença sexual” que atribui às mulheres o papel exclusivo de esposa e mãe. Outros, numa condenação mais moralista, julgavam que a presença feminina em sala de aula, consoante os padrões de pudor e vergonha então vigentes, inibiria professores e alunos homens que quisessem tocar em assuntos “delicados” — principalmente a sexualidade, suas doenças e disfunções. Em Salvador, apesar de muitas restrições, algumas mulheres ingressaram na área da saúde e procuraram formação na arte obstétrica, em medicina e em odontologia. Francisca Praguer Fróes especializou-se em ginecologia e obstetrícia. Para que pudesse pôr em prática seu projeto de ser médica, precisou da ajuda de um irmão, Antonio Barreto Praguer, que a acompanhou durante o curso. Formaram-se ambos no mesmo ano. Como aluna da faculdade, Francisca era vista como uma “avis rara entre os homens”, conforme escreveu, anos depois, seu ex-professor de patologia clínica. (RAGO, 2007, p. 135) Entretanto, a estudante demonstrava certa indiferença aos comentários que se faziam a seu respeito. É o que sugere uma categórica afirmação em resposta aos temores, fundados, de seu zeloso professor: “Mestre, vou desassombradamente seguindo meu caminho, sem olhar para trás nem para os lados, completamente indiferente aos reparos que porventura possa despertar a minha passagem.” O sexismo sutil, cumpre salientar, não era apanágio da Faculdade de Medicina da Bahia; era norma em quase todas as universidades, seja na Faculdade de Medicina da Corte, no Rio de Janeiro, como em várias instituições de ensino e pesquisa de outros países da Europa e Estados Unidos, pois eram valores relativos aos papéis femininos que estavam sendo desafiados. Assim, a entrada de mulheres no campo médico estava impregnada de significados sociais e políticos, em conformidade com as representações sociais de gênero. As fontes documentais analisadas permitem afirmar que a obstetra baiana estava a par das dificuldades enfrentadas por outras mulheres que teriam desejado se tornarem médicas. Francisca Praguer Fróes publicou na Gazeta Médica da Bahia – um veículo importante de divulgação de conhecimentos médicos - , da qual se tornou redatora, um artigo intitulado “Emancipação das mulheres na Rússia”, traduzido por ela, sugerindo a necessidade de se abrirem espaços na medicina para as mulheres. Embora tivesse tido formação médica num meio conservador, Francisca Praguer Fróes não aceitava o modelo feminino divulgado pelo discurso médico

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dominante, que pregava a fragilidade física e intelectual das mulheres e o seu destino exclusivo de mãe e esposa. Dizia ela que, na Bahia, a tentativa de limitar as potencialidades femininas aos afazeres domésticos se devia ao “domínio absoluto de tantos séculos, dessa superioridade mental [masculina] tão arrogantemente apregoada.” E, ainda, nas suas palavras: Penso que não se deve limitar a mulher aos árduos misteres domésticos, esmolando de vez em quando as migalhas que lhe são atiradas. Não; é preciso que o seu amor próprio se insurja e proteste energicamente contra o jugo dessas leis absurdas, fabricadas em detrimento do seu trabalho e do seu direito. (...) Casada ou solteira deverá possuir os indispensáveis elementos para manter-se com dignidade e com maior ou menor independência. (RAGO, 2007, p. 215-216)

Os escritos de Francisca Praguer Fróes demonstram que ela apreendeu os conteúdos ideológicos da pretensa inferioridade definida cientificamente nos termos masculinos, distanciando-se daquele discurso que encontrava suas bases de justificação no âmbito da natureza. Apoiando-se em Frédéric Stackelberg, anarquista e autor do livro La femme et la révolution, ela reafirmou suas palavras em um artigo: “A inferioridade da mulher não é fisiológica, nem psicológica; ela é social. Sua escravidão sexual determina sua dependência econômica.” No seu entender, às mulheres faltava tão somente o suporte de uma educação mais qualificada e o pleno exercício da cidadania. Desse modo, confirmava sua discordância em relação à teoria das qualidades inatas a cada um dos sexos. A questão proposta pela médica era inovadora, pois ela ressaltava os mecanismos sociais da discriminação de gênero, que produzem as hierarquias de poder (ainda que não mencionasse a exploração econômica a que estavam submetidas). Refletindo sobre a raiz do excessivo domínio dos homens, ela observou que, apesar da supremacia sexual masculina, esta haveria de “se extinguir um dia e com ele também as diferenças somáticas [do corpo] anteriormente consideradas como peculiares ao sexo feminino.” (FRÓES, 1923, p. 11) Em outras palavras, Francisca Praguer Fróes vinculava a noção de inferioridade física e intelectual da mulher à dominação masculina (e não aos órgãos reprodutivos), convicta de que esse domínio excessivo tenderia a desaparecer um dia e, com ela, a naturalização das qualidades femininas. A naturalização do sexo feminino, ou seja, o artifício ideológico que desloca do social para a natureza a explicação dos fenômenos socialmente construídos,

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deu sustentação aos preconceitos que legitimaram a exclusão das mulheres da ciência, da vida pública, tentando relegá-las ao silêncio. Imbuída dos ideais de liberdade individual e do direito à cidadania social, econômica e política, Francisca, assim como outras reformadoras de seu tempo, pretendiam converter suas idéias feministas em uma forma de agenciamento capaz de trazer transformações na condição das mulheres. Muitas denúncias em relação às injustiças e desigualdades entre os sexos foram feitas por professoras, escritoras, jornalistas brasileiras, às vezes de maneira provocativa, outras mais cautelosas, desde o final do século XIX, como Josefina Álvares de Azevedo, Presciliana Duarte de Almeida, entre muitas outras. Francisca Praguer Fróes enfrentou, não sem dificuldades, as relações de poder no campo da medicina. Criticou o meio social e político baiano, o sexismo arraigado e aceitou o mito do “excesso sexual” dos brasileiros, causador, segundo ela, da desmoralização da família. Tocou num tema tabu – até mesmo para a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (1922), dirigido por Bertha Lutz e Carmem Portinho, no Rio de Janeiro, ou seja, o divórcio. O “excesso sexual” masculino seria um dos principais responsáveis pela propagação das doenças sexualmente transmissíveis no interior de lares que poderiam, segundo a médica, ser promissores. Verifica-se, em seu pensamento, ou melhor, nas suas concepções sanitárias, uma articulação entre saúde física, moral e psíquica da mulher com casamento higienizado e profilaxia matrimonial. Talvez, a questão que a tenha perturbado mais intensamente tenha sido a que se refere ao adultério masculino. Por essa razão, dedicou uma atenção especial aos problemas enfrentados pelas mulheres casadas infectadas pelos seus maridos e atacou de frente os homens de sua classe social, os das camadas altas da população e suas muitas outras formas de arranjos conjugais. Ao que parece, Francisca Praguer Fróes foi uma das raras mulheres, na Bahia, a enfrentar publicamente os temas da profilaxia matrimonial, do exame pré-nupcial, da educação sexual para as mulheres e homens, do atestado de saúde, da notificação da gravidez, defendendo a instituição do “casamento verdadeiro” como uma maneira de conter a proliferação do “mal venéreo” e garantir a segurança e a integridade das famílias. Por outro lado, a médica teve um estreito contato com mulheres pobres, mães solteiras, trabalhadoras, ex-escravas que recorriam ao serviço público prestado pela Maternidade Climério de Oliveira, onde atuou por mais de vinte anos. O direito à maternidade saudável e à assistência fazia parte de suas reivindicações junto ao poder público. Embora tenha lutado pelos direitos civis e políticos de mulheres educadas, tinha considerável

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preocupação com as políticas públicas que poderiam favorecer aquelas pertencentes às camadas desprivilegiadas da população. Francisca Praguer Fróes valorizou a maternidade como elemento unificador da condição das mulheres. Assim, a partir da valorização da maternidade, procurou estabelecer um vínculo entre reprodução e direitos civis e políticos. Como ela mesma afirmou, a maternidade era um trabalho social das mulheres. Com base nesse entendimento é que a médica reivindicava a cidadania feminina, demonstrando que ser mãe envolve também a maternagem, isto é, os cuidados com a prole, o aleitamento, o afeto (embora, evidentemente, não usasse esse termo), enfatizando, desta maneira, a experiência social da maternidade. Em suma, ao estabelecer a relação entre o fato natural do parto e a maternagem, seu objetivo era vincular essa questão aos direitos políticos não conquistados até então. Insistia na conquista do voto feminino, do trabalho remunerado (fora do lar), para garantir a independência econômica das brasileiras, inclusive das casadas. É interessante observar que algumas feministas, como a alemã Käthe Shirmacher, julgavam que a maternidade não pertencia ao domínio da natureza, mas à esfera do trabalho, aquele “trabalho que cria valor”, ou seja, que inclui a exploração (BOCK, 1991, p. 451- 452). No último quartel do século XIX, na França, outras feministas compartilhavam essas mesmas idéias, em decorrência da extrema pobreza das mães trabalhadoras e sua dependência econômica dos maridos. Para Bock, a pobreza das mães trabalhadoras fabris, das esposas abandonadas, das viúvas, das mães de muitos filhos, das mães solteiras, é que despertou o interesse das feministas provenientes das camadas mais elevadas da população pela defesa e proteção da maternidade, além de ter sido a motivação inicial de um diálogo entre as mulheres de elite e as das classes mais baixas (1991, p. 437). Teria sido Francisca Praguer Fróes motivada para lutar pela defesa do corpo e da saúde da mulher, em virtude de seu contato diário com a pobreza feminina, com a doença e o desamparo de suas pacientes da Maternidade Climério de Oliveira? O tema da maternidade, sua importância para o país, foi ressignificado para avançar propostas num momento em que as mulheres não detinham sequer o direito de voto. A posição assumida pela médica estava intimamente vinculada à sua formação intelectual, à ligação com os movimentos feministas de seu tempo e ao lugar que ocupava como uma mulher advinda de uma classe social favorecida. Vivendo num período histórico conturbado em que os médicos se consideravam cientistas sociais, moralistas e educadores, Francisca Praguer Fróes foi coerente com suas convicções. Entendia que o país vivia um processo de modernização e, por esta razão, deveria predominar uma

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organização social fundada na paz e na justiça social, o que significava incluir nesse processo histórico a outra metade do gênero humano. Procurei demonstrar, ainda que brevemente, as muitas representações sociais do masculino e do feminino, privilegiando as relações de gênero na medicina. Quanto ao passado, parece não haver contestação da literatura de que se trata de um passado heróico, visto que as pioneiras se opuseram, tenazmente, contra a medicina patriarcal. Rosemary Pringle afirma que as médicas européias realizaram várias “revoluções parciais” para transformar as práticas médicas. Atualmente, no meu entender, as médicas brasileiras desfrutam de um conceito sólido junto à opinião pública, inclusive por expressarem a face mais humanizada da medicina. Harrison (1981), por exemplo, relata que já na década de 1970 se tinha perdido o elo entre medicina e feminismo. Nas palavras da autora, longe de transformar as idéias e métodos da profissão médica, as profissionais norte-americanas e as britânicas parecem ter-se acomodado rapidamente à ética de uma profissão dominada pelos homens (Apud PRINGLE, 1998, p. 29).

Outros autores, embora concordem em que ocorreram transformações por causa da intervenção feminina, afirmam que, atualmente, a maioria das médicas encara as causas feministas com pouca simpatia. Todavia, para apurar a procedência desta hipótese em nosso país, valeria a pena uma cuidadosa pesquisa.

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14. GLADIADORES EM MOVIMENTO: IMAGENS DO CORPO E FORMAS DE IDENTIDADES ENTRE OS ROMANOS RENATA SENNA GARRAFFONI

Introdução Martin Bernal (1987, 2005), em seus estudos publicados nos anos de 1980, apresenta uma crítica à maneira como a História Antiga estava sendo escrita até então. A partir do ponto de vista da Ciência Política, Bernal afirma que as relações entre o mundo antigo e a política moderna eram mais estreitas do que se pensava. Sua abordagem no campo teórico abriu a possibilidade de refletir sobre como modelos interpretativos que tratavam do mundo grecoromano estavam embebidos dos valores colonialistas e imperialistas do final do século XIX e início do XX, iniciando um processo irreversível de críticas aos conceitos utilizados por especialistas e às categorias documentais empregadas para o estudo do passado antigo. Enfatizando a importância do contexto político-social no momento da produção do conceito, Bernal destacou a necessidade de reverem-se as imagens que foram construídas da Grécia, as quais foram inspiradas em ideais de superioridade racial e domínio, vigentes no período moderno. Tais pressupostos teriam sido transportados para o passado antigo e os modelos interpretativos criados para a compreensão da Grécia antiga estavam eivados de valores como superioridade cultural diante de outros povos do período, silenciando a pluralidade desta cultura e produzindo um ideal homogêneo dos elementos que formariam a “cultura ocidental”. Retomar este argumento de Bernal aqui me pareceu interessante para a reflexão que gostaria de propor nas páginas a seguir. Tais reflexões, fruto de pesquisas realizadas durante minha estada na Unicamp e ressignificadas a partir das discussões com os membros do grupo de pesquisa “Gênero,

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Subjetividades e Sexualidade na Antiguidade e na (Pós) Modernidade: pesquisa em História comparada”, confluem na direção das críticas apontadas por este estudioso do mundo antigo, pois partem da noção de que o passado não pode ser entendido independentemente do presente, não pode ser visto como um tempo fechado em si mesmo, passível de ser descoberto objetivamente, mas é construído, transformado ou silenciado a partir de experiências do presente daquele que escreve. Nesse sentido, ao voltar meu olhar para o mundo romano, mais especificamente para o cotidiano dos gladiadores que viveram durante o início do Principado, tenho procurado evitar a descrição objetiva de suas vidas ou a compressão de seus sentimentos na categoria de oprimidos. Pelo contrário, nestes anos de pesquisa, tenho buscado destacar suas paixões e aspirações, seus sonhos e as contradições de um dia a dia de vitórias e derrotas, de vida e morte. Para tanto, tenho adotado uma perspectiva teóricometodológica que, para além de rever conceitos e categorias que aprisionam os sujeitos históricos sob um único viés interpretativo, apontam para a importância do estudo interdisciplinar, em especial do diálogo entre História e Arqueologia. É sobre estas duas temáticas que gostaria de concentrar-me nestas páginas, analisando o impacto dessas discussões para uma interpretação mais plural do cotidiano daqueles que eram os protagonistas dos combates nas arenas romanas.

Por uma História plural Jean-Claude Schmitt (2001), em um ensaio intitulado “A História dos Marginais”, escrito para a coletânea organizada por Jacques Le Goff, no final da década de 1970, afirma que a idéia de se estudar marginais já estava presente entre os intelectuais do final do século XIX e início do XX e constituiu-se a partir de estudos literários. No entanto, é na década de 1960 que esses estudos se multiplicam e a expressão disto é o uso mais corrente do próprio termo “marginal”, pouco empregado até então. Schmitt refere-se a esse momento específico da historiografia como “tomada de consciência” ou “tomada de palavra”, pois expressa uma particularidade que viria culminar com uma série de transformações na escrita da História: grupos que até então estavam excluídos, como, por exemplo, negros, indígenas, mulheres e homossexuais, entre outros, começaram a denunciar as diversas formas de exploração e silenciamentos a que estavam submetidos em nome da manutenção de uma ordem social. A partir dessas considerações, é possível afirmar que os anos de 1960 representaram um marco importante para diferentes grupos e, vivenciando esse ambiente de

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contestação e reivindicação de diversas minorias, os historiadores começaram a dar visibilidade a grupos excluídos ou marginalizados, em outros períodos, por uma historiografia mais tradicional. Esse momento captado por Schmitt, além de propor uma releitura de posturas canônicas, também significou uma busca por novos documentos. Segundo o historiador, os estudiosos da época questionavam-se como ouvir as vozes daqueles que foram calados pelo poder e a tentativa de responder esta indagação gerou aquilo que Le Goff, anos mais tarde, chamaria de “explosão documental”. Assim, obras literárias, contos, depoimentos, mitos, inventários, diários íntimos, a cultura material, enfim, uma infinidade de fontes passaram a ocupar um lugar de destaque, pois nada escapava ao olhar dos historiadores de diferentes correntes teóricas que buscavam as faces e as vozes desses personagens invisíveis na documentação oficial. Além de ser um momento de reflexão sobre a diversidade dos sujeitos e de abertura para a utilização de uma infinidade de fontes, os intelectuais dos anos de 1960 também propuseram novas maneiras de se pensar e, principalmente, de escrever a História. Transpor barreiras e buscar renovações metodológicas eram as principais reivindicações desses intelectuais que pretendiam produzir uma interpretação da História na qual a vida estaria livre para manifestar-se em sua pluralidade e multiplicidade. Nesse contexto, alguns historiadores, inspirados por estes ideais, combateram a História política produzida desde meados do século XIX, a narrativa de acontecimentos, a história dos grandes homens e das origens e procuraram outros documentos para contar as histórias cotidianas de diferentes camadas da população. Com uma proposta de problematizar a História e compreender o passado a partir do presente, os diversos intelectuais que seguiram por esse caminho encontraram em Michel Foucault um forte aliado. Sua crítica apurada causou uma profunda repercussão no pensamento historiográfico, principalmente, após publicar A Arqueologia do Saber, em 1969 e A Ordem do Discurso, em 1971. Questionar a inércia do conhecimento e pensá-lo como algo móvel e construído a partir de práticas e opções do historiador, ou seja, como discursos que podem e devem ser questionados para libertar diferentes sujeitos presos a modelos interpretativos estáticos foi uma crítica profunda ao fazer do historiador, que acabava por restringir as diversas possibilidades humanas a algumas verdades universais. Estas novas idéias causaram um forte impacto, pois representaram, na verdade, questionamentos às bases epistemológicas de produção do conhecimento histórico. A partir dos desconcertos provocados pelas críticas a pressupostos até então tão fortemente arraigados na historiografia, como a objetividade, a busca pelo real, pela essência de sujeitos universais, enfim, pela necessidade

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de se ordenar o passado somente por meio de classes sociais e seus conflitos socioeconômicos (RAGO, 1995), abriu-se um debate que visava uma revisão de conceitos utilizados como naturais. Implícita a esta discussão estava, portanto, a urgência de reverem-se as categorias de análise do passado e repensar a metodologia de trabalho. Este movimento, que se fortaleceu nas décadas seguintes, passou a ser conhecido como pós-modernismo. Admirado por alguns e duramente criticado por outros, o movimento pós-moderno tem provocado o acirramento de posturas nas últimas décadas e produzido reflexões sobre seu alcance. Patrick Joyce (1998), por exemplo, afirma que não é possível generalizar o termo pós-modernismo, pois há diferentes tendências sob este nome. No entanto, Joyce menciona que, mesmo diante da possibilidade de diversas posturas, de maneira geral, elas fazem com que se reflita sobre a produção do conhecimento histórico. Criticando as grandes narrativas, a centralidade do pensamento, a existência de “leis” que organizavam o passado e, principalmente, o papel do historiador como aquele que revela a essência desse passado, os pesquisadores que se filiaram a esta corrente de pensamento propuseram um repensar de como se constrói o passado como História (MUNSLOW, 2000, p.189). Em outras palavras, a partir do questionamento de categorias binárias ou fixas e buscando a alteridade, os intelectuais ligados a este movimento prezam pela escolha de recursos teórico-metodológicos que propiciem a produção de novas interpretações e conceitos e criticam formas hierárquicas que aprisionam os diferentes sujeitos. Joyce deixa claro, portanto, que implícito a este pensamento há, muitas vezes, um aspecto subjetivo e político: a necessidade de se descentralizar estruturas e desnaturalizar conceitos para que seja possível ouvir diferentes vozes. É, portanto, nesse contexto que se inserem minhas pesquisas sobre o mundo romano. Recorrendo a uma perspectiva que busca um viés crítico e alternativo aos modelos normativos e homogêneos de cultura, muito difundidos entre os classicistas, o estudo sobre os gladiadores romanos se insere em um contexto mais amplo no qual classicistas tentam produzir interpretações mais dinâmicas que sensibilizem os homens de que os elementos do nosso presente são fundamentais no processo de seleção e escrita da memória. Este movimento é importante, pois implícita ao repensar da Antigüidade Clássica está, também, a possibilidade de perceber a existência de outros sujeitos, isto é, vidas desconhecidas de homens e mulheres infames, experiências que, nas palavras poéticas de Foucault (1992, p.92), foram “transformadas em cinzas nas poucas frases que as prostraram”. Assim, o estudo dos gladiadores e da relação das pessoas que compunham as camadas

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populares com os jogos, a partir dessa perspectiva, constitui um campo profícuo para questionar a imagem da sociedade romana como homogênea e bárbara de modo a se divertir com espetáculos sangrentos. Nesse sentido, o que tenho proposto é uma outra possibilidade de estudar estas camadas populares a partir de “fragmentos de discursos” que remanesceram e aos quais tive acesso, uma leitura que possa expressar as suas múltiplas manifestações e que seja, conseqüentemente, uma abordagem crítica da idéia de neutralidade e da universalidade do conhecimento. Em outras palavras, minha busca segue as trilhas abertas por Foucault na medida em que enfatiza a dispersão, a descontinuidade e a transformação. Neste contexto, como o trabalho se estrutura a partir de um constante diálogo entre texto e cultura material, é fundamental, portanto, explicitar como percebo esta relação.

Arqueologia e História A Arqueologia, em seu momento de criação no século XIX, tinha como principal objeto de estudo os artefatos, isto é, objetos produzidos pelos homens que constituíam, nas palavras de Funari, os fatos arqueológicos reconstituíveis pela escavação (1988). Nesse sentido, em um período em que estruturas cronológicas e espaciais estavam sendo organizadas no campo historiográfico, também foram desenvolvidas metodologias para o trabalho da cultura material. De acordo com Siân Jones (1997), essa metodologia consistia em traçar as origens dos povos europeus, ou seja, partia-se do conhecido (Alemanha, Inglaterra, França do século XIX) e recuava-se no tempo com a finalidade de encontrar os primeiros registros arqueológicos dessas nações. É nesse contexto que Gustav Kossina cria, na Alemanha, um método de pesquisa no qual uma área de cultura arqueológica coincide, sempre, com grupos de pessoas que podem ser reconhecidos. Esses pressupostos da “arqueologia de assentamento” constituíram a base do modelo desenvolvido, posteriormente, por Childe e conhecido como “arqueologia históricocultural”. Embora Childe tenha recusado a interpretação que estabelecia a idéia da superioridade alemã, a relação direta um povo, uma língua, uma cultura, elaborada a partir da cultura material encontrada nos sítios, mantevese produzindo uma concepção de identidade específica e quase eterna dos povos estudados (FUNARI, 1999a, 1999b). Tendo por base estas breves considerações sobre o momento da constituição da Arqueologia e os primeiros modelos interpretativos que foram desenvolvidos, é possível afirmar que o estudo da cultura material se

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estruturou, na Europa, a partir da busca pelas origens e do estabelecimento das identidades nacionais. Essa proximidade com o saber histórico do período, isto é, recorrer ao passado para uma explicação sobre as sociedades do presente, fez com que, durante muito tempo, a Arqueologia fosse considerada uma ciência auxiliar da História. Já nos Estados Unidos, como as origens da Arqueologia estavam relacionadas à Antropologia (estudo de povos indígenas do passado), a idéia de “serva” persistiu, mas não como auxiliar da História e sim da Antropologia. De uma forma ou de outra, como muitos intelectuais afirmaram que o papel do arqueólogo consistia apenas em coletar artefatos e objetos artísticos para serem analisados por historiadores ou antropólogos, a disciplina acabou, por algum tempo, reduzida ao status de técnica, ou seja, seu objetivo seria recolher e classificar objetos para que, a posteriori, fossem analisados por cientistas sociais. Assim como ocorreu em outras áreas das ciências humanas, ao longo do século XX os métodos e concepções da Arqueologia foram questionados por diferentes correntes intelectuais que se formaram tanto nos Estados Unidos como na Europa. Nesse sentido, para além de uma transformação nos pressupostos teóricos da disciplina, essas críticas acabaram alterando, inclusive, a relação da Arqueologia com as demais ciências sociais e redefinindo o papel do profissional na área. Muito embora a noção de “disciplina auxiliar” ainda hoje esteja presente em alguns meandros do mundo acadêmico, cada vez mais a Arqueologia tem se firmado como uma disciplina independente, que constrói seu conhecimento a partir da cultura material, mesmo que intimamente ligada à História e a outras ciências sociais. Devido a esta nova abordagem, o diálogo interdisciplinar tornou-se fundamental: por meio do questionamento de posturas mais tradicionais, abriu-se um espaço para o surgimento de interpretações que trouxeram outras possibilidades para se pensar tanto a Arqueologia enquanto prática inserida em um contexto científico e político específico quanto a construção do passado feita a partir dos pressupostos teóricos inerentes a ela. Esta perspectiva trouxe um outro espírito à disciplina. Siân Jones (1999), por exemplo, expressa de maneira enfática esta preocupação que vem, aos poucos, redefinindo o campo de trabalho dos arqueólogos. Em diversos trabalhos tem repensado a relação entre cultura material, objeto de estudo da Arqueologia e fonte escrita, principal documento utilizado pelo historiador, com o intuito de perceber como estas diferentes categorias documentais oferecem importantes informações para se perceber o processo de construção da identidade étnica. Jones menciona que a falta de diálogo que se verificou, por muito tempo, entre Arqueologia e História acabou gerando duas posturas diferentes

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que ainda são percebidas em estudos atuais. A primeira está relacionada ao grupo de intelectuais que acredita que o relato escrito prevalece sobre a cultura material, enquanto que a segunda estabelece que esses documentos são dois tipos independentes de fontes e que, portanto, devem ser estudados separadamente. Essa dualidade defendida por muitos pesquisadores não seria, para Jones, incompatível. Assim, a autora propõe um outro caminho teórico no qual os dois tipos de documentos oferecem contribuições para o estudo da etnicidade e, para tanto, se alia a um grupo de arqueólogos que defende a idéia de que a cultura material, assim como a fonte escrita, deve ser compreendida como um discurso e, por isso, capaz de expressar diversas subjetividades. Nesse sentido, um confronto entre os dois tipos de fontes possibilitaria tanto a percepção da complexidade que envolve os limites e a organização de grupos étnicos como a construção da identidade. Esta abordagem utilizada por Jones tem, portanto, no diálogo entre diferentes tipos de documentos, a base de sua metodologia e exprime uma tentativa de estudar as práticas sociais e a construção da identidade a partir de um prisma que preserve as diferenças e possibilite a crítica a modelos homogêneos de cultura. Considerando essa perspectiva de análise, gostaria de tecer alguns comentários sobre os gladiadores romanos em um momento muito particular: quando estão com seus corpos à vista, no centro das arenas, lutando e sendo observados pelas multidões que lotavam as arquibancadas das arenas.

Gladiadores na arena O momento da luta na arena era o ápice da carreira do gladiador. Durante o início do Principado, os homens e eventualmente as mulheres que aí lutavam não eram somente escravos e prisioneiros de guerra como em épocas anteriores; muitos poderiam ser cidadãos que trocavam, por um período, a sua liberdade pela atuação nas arenas. Essa diversificação na categoria jurídica do gladiador indica, segundo alguns estudiosos, a profissionalização desse fenômeno romano. Embora desempenhassem uma série de atividades em seu cotidiano, em especial, os treinos nas escolas especializadas, o momento da luta chama a atenção, pois permite uma análise que perpassa temas como identidade ou sexualidade, deslocando a perspectiva de análise do âmbito político, que tradicionalmente predominou nos estudos sobre os combates, para um outro aspecto, o cultural. Esse movimento é interessante uma vez que, para além de apontar para uma explicação geral sobre os espetáculos e a formação de uma identidade romana única, o estudo desse momento fugaz permite o repensar das categorias analíticas empregadas pelos estudiosos modernos para o cotidiano desses populares romanos.

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Embora a grande maioria dos estudos sobre os combates de gladiadores esteja calcada no âmbito político, isto é, aborde a potencialidade dos espetáculos para o controle da população ou, mais recentemente, a manutenção do poder romano sobre os povos conquistados, os que buscaram por análises no campo cultural acabaram desenhando uma imagem desfavorável dos gladiadores. Os argumentos de Edwards (1997) sintetizam bem esta postura ao afirmarem que gladiadores, prostitutas e atores eram estigmatizados por venderem o próprio corpo para o prazer de outros. Inseridos na categoria jurídica de infamia, gladiadores, assim como prostitutas e atores, aparecem sempre relacionados nas leis e em textos literários, o que leva a autora a afirmar que o fato de possuírem baixo status social, pois estavam submetidos a castigos corporais e não gozavam dos direitos dos cidadãos, torna-os aliados a pessoas que praticavam formas desviantes de sexualidades na Antiga Roma. Nesse contexto, desnudo e desqualificado, o gladiador não possuía nada que possibilitasse a criação de uma identidade própria, sendo definido somente por sua espada. Em concordância com uma idéia de pária, defendida por muitos estudiosos, está a interpretação de Wiedemann (1995), apresentada em Emperors and Gladiators. Embora Edwards não indique uma solução para o conflito dos gladiadores, excluídos e estigmatizados, mas que eventualmente poderiam se tornar heróis, Wiedemann afirma que a arena era um lugar de redenção, onde gladiadores, infames poderiam readquirir a fama de duas maneiras: lutando bravamente e sendo reconhecidos pela torcida ou, ao perder, tendo morte rápida pela espada, exclusividade dos cidadãos. No argumento de ambos segue, portanto, uma interpretação com forte ênfase na exclusão social amparada pelo uso de fontes escritas. No entanto, é possível perceber um outro quadro se recorrermos à cultura material. Sabbatini Tumolesi (1988) comenta, em seus trabalhos, a importância de registros epigráficos para os estudos sobre os combates de gladiadores, em especial, os concedidos pelos Imperadores. Esta estudiosa menciona as lápides dedicadas aos responsáveis pela ueste gladiatoria, isto é, as vestimentas dos gladiadores e indica uma possibilidade de se estudar a administração de objetos e roupas utilizados pelos gladiadores no momento do combate; conseqüentemente, leva-nos a pensar sobre a importância que elas possuíam durante a realização das lutas e os efeitos simbólicos que poderiam causar entre aqueles que viam os espetáculos. Nessas lápides é possível perceber a presença de escravos e libertos responsáveis pela ueste gladiatoria e, em alguns casos, o acúmulo de funções com o teatro. Esta documentação fornece indícios para pensar a administração dos espetáculos em sua complexidade e indica uma grande atenção aos

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aspectos cenográficos e à roupagem utilizada nos combates. O material administrado por esses homens e utilizado pelos gladiadores nos combates, muitas vezes, encontrava-se armazenado nos ludi imperiais. Dentre os ludi conhecidos, o de Pompéia, na região da Campânia, é uma referência particular. Em um dos ludi da cidade foram encontrados, durante escavações arqueológicas, diferentes tipos de armamentos utilizados pelos gladiadores nos combates (PESANDO, 2001). Elmos de bronze ou ferro, desde os mais simples até os mais ricamente ornados, com palmas, coroas e figuras mitológicas, com letras gravadas e distintos tipos de cristas desde a época Republicana até a erupção do Vesúvio (figuras 1 e 2); proteção de ombros utilizada por retiários (categoria de gladiador), decorada com motivos marinhos (figura 3); escudos de bronze com figuras da Medusa cunhadas em seu centro, para espantar o inimigo e proteger aqueles que os empunhavam (figura 4); proteções de braços em que encontramos esculpidas imagens de Atena (figura 5), Vênus ou figuras eróticas com caráter apotropaico; proteção de pernas simples, de trácios ou oplomaco, ou mais sofisticadas, com figuras de deuses como Netuno, sátiros ou animais distintos, como serpentes ou aves (figuras 6 e 7) são apenas alguns dos exemplos da diversidade de cores, formas e símbolos que emanavam do centro da arena pompeiana. Esses objetos que destaquei brevemente aqui constituem uma pequena amostra da diversidade de proteções e armas que os gladiadores de distintas categorias portavam. A riqueza de detalhes que aparecia em muitas peças de proteção ou mesmo a simplicidade de outras permitem uma leitura com ênfase na multiplicidade: dependendo do local e do tipo de espetáculo, valores eram transmitidos e reinterpretados seja entre os gladiadores, seja por aqueles que os assistiam das arquibancadas. A partir do centro das arenas, com rostos cobertos e corpos parcialmente desnudos, os movimentos de combate e os choques entre os oponentes produziam diversos símbolos que protegiam os gladiadores e, provavelmente, interagiam com o público. A representação de deuses em elmos, escudos e proteções de braços ou pernas expressa o imaginário religioso ainda presente nas lutas e, muito provavelmente, no cotidiano dos gladiadores. Já os símbolos de vitória (coroa, palmas) ou de boa fortuna permitem que pensemos sobre as crenças que se construíam dentro das arenas, bem como sobre a relação entre vida e morte vivenciada por esses homens e ressignificada por aqueles que assistiam ao combate. O centro da arena teria, assim, diversas facetas: mais que exprimir poder e domínio romano sobre as populações conquistadas, como muitos estudiosos atestam, as vestimentas e armas dos gladiadores podiam expressar suas atitudes diante do combate, como seu desejo de atrair boa sorte e, ao mesmo tempo, aterrorizar o oponente. Por outro lado, seus movimentos

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precisos também lembravam aos presentes o tênue fio que divide a vida e a morte, além de estabelecerem possíveis relações com as forças da Natureza (representadas em ambientes terrestres e marítimos) ou divindades protetoras de diferentes origens. Nesse sentido, a luta no centro do anfiteatro pompeiano pode ser entendida no âmbito da diversidade, pois os símbolos das vestes poderiam produzir distintos significados, entre os próprios gladiadores de diferentes origens étnicas e sociais e os gladiadores e o público. O exemplo de Pompéia é interessante, na medida em que permite supor relações no interior da arena e entre a arena e a arquibancada de maneira mais dinâmica e múltipla, possibilitando repensar modelos teóricos que consideram a arena somente como um locus de imposição de poder, onde bárbaros (gladiadores) e civilizados (romanos da arquibancada) se encontravam.

Considerações finais O diálogo da História com a Arqueologia, livre da tarefa de comprovar as fontes escritas, tem se mostrado um caminho profícuo para a construção de modelos interpretativos menos normativos e mais fluidos. Esta relação pode proporcionar uma melhor compreensão das identidades em jogo no momento dos espetáculos romanos, bem como ajuda a repensar as categorias de análise para que não se reduzam os sujeitos históricos que os protagonizavam a oprimidos ou vítimas de um hábito sangrento. Em outras palavras, a interdisciplinaridade permite um questionamento de modelos homogeneizadores e essencialistas de cultura ainda muito recorrentes nas interpretações sobre o mundo romano. Diante disso, é possível afirmar que os vestígios materiais, para além de classificar culturas ou justificar a dominação de um povo sobre outro, expressam múltiplos aspectos da sociedade estudada e as complexas teias de relações estabelecidas entre os homens. Assim, esta linha de pensamento, embebida nos pressupostos teóricos discutidos anteriormente, apresenta a cultura material como fonte importante para expressar aspectos às vezes invisíveis nos documentos escritos. Uma análise de vestígios materiais, a partir da perspectiva contextual que enfatiza o pluralismo, a alteridade e historiciza tanto a disciplina como o objeto, combinada com a perspectiva histórica, ajuda a enriquecer o conhecimento sobre o passado, pois abre novos caminhos interpretativos, evitando, portanto, o conhecimento de temas somente a partir de escritos eruditos.

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Figura 1– Elmos de gladiadores, in: LA REGINA, 2001: 370

Figura 2 – Elmos de gladiadores, in: LA REGINA, 2001: 371

Figura 3 – Proteção de ombro, in: LA REGINA, 2001: 381

Figura 4 – Escudo com a Medusa no centro, in: LA REGINA, 2001: 382

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Figura 5– proteção de braço, in: LA REGINA, 2001: 384 Figura 6 – Proteções de pernas, in: LA REGINA, 2001: 386

Figura 7– Proteções de pernas, in: LA REGINA, 2001: 389

15. O FALO NA ANTIGUIDADE E NA MODERNIDADE: UMA LEITURA FOUCAULTIANA MARINA REGIS CAVICCHIOLI

Para compreender como o indivíduo moderno podia experimentar a si mesmo como um sujeito de uma “sexualidade”, era indispensável, antes, mostrar a maneira como, por séculos, o homem ocidental havia sido levado a se reconhecer como sujeito de desejo. Foucault

Introdução MICHEL FOUCAULT, em uma entrevista concedida na época em que escrevia O cuidado de si, afirmou: “estou muito mais interessado nos problemas sobre as técnicas de si...do que em sexo – o sexo é enfadonho” (RABINOW, 1998, p. 253). Essa inquietação foucaultiana permeia minha experiência com o estudo das sexualidades antiga e moderna e um tema, em particular: o falo. O falo tornou-se, no mundo moderno, sinônimo de poder masculino e elemento central dos discursos psicanalíticos e das formações das identidades sexuais contemporâneas. Como conseqüência destas identidades, é recuperado como imagem erótica ou jocosa. Como parte de um discurso sobre o poder masculino, assistimos à difusão de termos e conceitos contemporâneos como falo, falocentrismo, sociedade falocêntrica e tantos outros. De um modo geral, esses conceitos vieram como críticas a um mundo misógino e masculinista e foram, dessa forma, fundamentais para uma reflexão sobre as relações de gênero. Por outro lado, havia aqueles que,

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pretendendo justificar o mundo androcêntrico moderno, destacaram a origem dessas imagens fálicas - iconográficas e simbólicas - na Antiguidade. No entanto, mais do que uma origem “direta”, esta é uma origem “diversa”: a simbologia de virilidade e poder masculino, pensada contemporaneamente no conceito de falo, ou a idéia de algo extremamente erotizado estão muito aquém dos simbolismos desse no mundo antigo. Entendemos, dessa forma, que essas imagens no mundo atual não se dão como uma herança cultural direta do passado, mas como uma releitura daquele passado – por vezes, pensando a herança cultural como forma de justificar e legitimar questões contemporâneas (CAVICCHIOLI, 2004, p. 25). Tomaremos como ponto de partida a genealogia foucaultiana de história, inspirada em Nietzsche, que nos direciona, para além de uma idéia de continuidade, a evidenciar aqui as rupturas e diferenças simbólicas. “É preciso despedaçar o que permitia o jogo consolante dos reconhecimentos. Saber, mesmo na ordem histórica, não significa ‘reencontrar’ e sobretudo não significa reencontrar-nos” (FOUCAULT, 1998, p. 27).

Representações fálicas O falo foi muito representado no mundo romano. Podemos encontrar uma grande quantidade de suas imagens em lamparinas, tigelas, sinos, máscaras, jóias, muros e paredes nas mais diversas localidades. Temos como exemplo vasos da Bretanha Romana e da Gália meridional (FUNARI, 2003, p. 321), cravo de bronze de Uley na Inglaterra (JOHNS, 1990, p.66), muros em Leptis Magna na Líbia (JOHNS, 1990, p. 19), adorno de casas de banho em várias regiões, como os sítios de acampamentos militares 0do norte (JOHNS, 1990, p. 64). Nos museus dos sítios arqueológicos de Segobriga e Empurias, na Espanha, assim como Conimbriga em Portugal, estão expostos diferentes tipos de objetos fálicos. Mas é sobretudo na cultura material oriunda da região de Pompéia que encontramos o maior número de exemplares, preservados pelas lavas e cinzas do Vulcão Vesúvio, de forma quase intacta, até as primeiras escavações no século XVIII. Ainda que a maior parte dos artefatos tenha vindo de Pompéia, peças arqueológicas provenientes de muitas outras áreas, até mesmo das mais distantes províncias do Império, parecem atestar que o falo era um símbolo familiar no cotidiano romano em geral (JOHNS, 1990, p. 64). A existência desse legado material de origem diversa não significa, uma vez que nenhuma sociedade é uniforme, que esse símbolo fosse apreendido por todos da mesma forma, como discutiremos posteriormente. Objetos em forma de falo também eram presentes no cotidiano egípcio, grego e etrusco, povos que

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sofreram influências e trocas culturais entre si e com os romanos. Todavia, isto não significa uma simples continuidade cultural. Mesmo que a iconografia fálica tenha se estabelecido com bastante força na Roma antiga como um todo, mais do que uma simples apropriação de um símbolo já existente, esse teve seus significados recodificados e especificados dentro daquela cultura, ou melhor dizendo, dentro dos diversos universos culturais que compunham a tradicionalmente chamada cultura romana. Nesse sentido, podemos pensar que também o mundo contemporâneo reapropriou-se de elementos do mundo antigo, atribuindo-lhes novos significados, como no caso específico aqui tratado do falo.

O falo e as interpretações contemporâneas O estudo das representações fálicas é sempre muito delicado, pois está submetido a valores morais contemporâneos. Isto levou, durante muito tempo, à exclusão da sexualidade e de suas imagens como um tema de pesquisa. Diante de uma noção contemporânea que concebia a exposição dos órgãos sexuais como algo erótico, as iconografias de “caráter sexual” como um todo foram tachadas de obscenas. Vários objetos provenientes da região vesuviana chegaram a ser destruídos, outros foram trancados em salas especiais cujo acesso era restrito (CAVICCHIOLI, 2004, p.15-31). Todavia devemos ressaltar que foi o mundo moderno que os categorizou de tal forma; no mundo antigo, tratam-se de lamparinas, sinos, amuletos, objetos de uso concreto e simbólico no cotidiano. Documentos elaborados pelos primeiros estudiosos da Antiguidade demonstram que as figuras fálicas haviam sido classificadas como indecentes (JOHNS, 1990, p.62). Nesta classificação estavam incluídos alguns dos objetos hoje pertencentes ao Museu Britânico (British Museum) e que foram preservados por serem de propriedade de colecionadores atraídos justamente pelo caráter “erótico” dessas imagens (JOHNS, 1990, p. 15-35). Todavia, nem todos se sentiam atraídos por tais representações e, de um modo geral, no contexto do desenvolvimento de algumas disciplinas, a sexualidade não foi considerada um tema para pesquisadores das humanidades, como arqueólogos, historiadores e historiadores da arte, que a excluíam de suas pesquisas, construindo, assim, um passado assexuado. Por outro lado, daqueles que se atreviam a pesquisá-la, muitos tomaram o falo como uma simples imagem do órgão genital masculino, acreditando que seria natural representá-lo e que suas representações estariam presentes em todas as sociedades. Comparavam as sociedades antigas com algumas sociedades “primitivas” que produziam objetos em forma de falo e com a

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ocidental contemporânea, que, sob a ótica das interpretações freudianas, também apresenta uma série de representações fálicas, através do carro, da caneta, dos edifícios, do cigarro... Essa naturalização das representações dos órgãos sexuais, estruturada na idéia de que a sexualidade é natural no ser humano, fez com que os preconceitos ao se tratar do assunto fossem diminuídos, embora esses sigam fortes até hoje. Contudo, isto levou a um outro problema: ao mesmo tempo em que a sexualidade foi tratada como “natural”, as relações entre os gêneros, sexo culturalmente construído (BARBIERI, 1981, p.12), também foram tratadas como “naturais”. Assim, conceitos como homem e mulher foram construídos partindo de diferenças anatômicas que justificariam as relações entre os gêneros. As análises desta sexualidade partiam de valores implicitamente androcêntricos, como a submissão do gênero feminino em relação ao masculino, o que levou a interpretações daqueles falos antigos como uma demonstração do poder masculino. Em oposição a esta idéia, considerando-se que para cada sociedade as vivências, práticas, representações e regras sexuais são distintas, mais do um aspecto biológico, a sexualidade, dentro das ciências humanas, deve ser entendida como um fenômeno cultural e estudada como tal. O próprio significado dos conceitos de sexualidade é culturalmente construído. Uma característica desta relação sexualidade/ cultura está nas noções de pecado e obscenidade embutidas no conceito de sexualidade nas sociedades ocidentais contemporâneas. Estas noções influenciam as próprias práticas sexuais e também os discursos em relação à sexualidade. Influenciam, ainda, outros discursos nos quais a sexualidade poderia ser abordada mas é silenciada, chegando-se ao ponto de o Museo Nazionali di Napoli proibir o acesso a materiais arqueológicos que representassem a sexualidade, por considerá-los obscenos (CAVICCHIOLI, 2004), como ocorreu com o material fálico proveniente de Pompéia.

Falo e erotismo É bem verdade, como já dissemos, que existem representações contemporâneas chamadas de fálicas, geralmente representando o pênis, que não se caracterizam apenas como símbolo de poder masculino Todavia estas pertencem ao universo do privado, do erótico, do pornográfico ou do jocoso. Dessa forma, desenhos encontrados em banheiros públicos, vibradores em sex shops, grafites em carteiras de colégio, em um primeiro momento, não podem ser associados com aquelas iconografias antigas, cujos significados e locais de representações eram distintos. Muitos dos objetos fálicos do mundo romano, além de sua imagem, tinham uma funcionalidade

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prática e não erótica, como veremos mais detalhadamente. Ainda que as representações do falo tivessem um forte vínculo com a sexualidade, elas não devem ser lidas como representações eróticas – considerando-se como erótico aquilo que despertaria o desejo sexual. Devemos levar em consideração que o erotismo é cultural, pois liga questões pessoais a sociais, que variam de acordo com a sociedade, ou grupo social, e época às quais um indivíduo pertence. Assim, acreditamos que o erotismo não tinha, na sociedade romana, os mesmos referenciais que tem hoje e, por isso, as representações de falos romanos não correspondiam necessariamente a imagens eróticas (CANTARELLA, 1999, p. 67; VARONE, 2000, p. 9-15). Dessa forma, a hipótese de que cada cultura apresenta suas formas de representações fálicas e o estabelecimento de uma continuidade simbólica entre estas representações nos parecem demasiado simplistas e aculturais. Embora possamos dizer que o símbolo fálico faz referência ao pênis em todas as culturas, para algumas ele aparece sobretudo como um símbolo de superioridade masculina (BORDO, 1999, p. 89), em outras como um elemento religioso da fertilidade e da sorte, obedecendo, assim, a critérios culturais específicos. No entanto, os preconceitos contemporâneos ainda são fortes e, por vezes, dificultam as pesquisas na área (JOHNS, 1990, p. 75; SCHMIDT, VOSS, 2000).

O falo no mundo romano A sociedade romana lidava com as referências à sexualidade de uma maneira muito diferente da atual. Imagens de órgãos sexuais masculinos e de atos sexuais não eram caracterizadas como pornografia e não remetiam necessariamente ao sexo em si, mas aos valores simbólicos a ele atribuídos. Interpretadas, algumas vezes, como propiciatórias ao ato sexual (GUZZO, 2000), tais iconografias tinham, muito mais do que isto, um caráter religioso. A posição religiosa dos falos pode ser atestada pelos cultos fálicos e pela existência do falo em procissões e templos. O templo das virgens vestais na cidade de Roma tinha a representação de um grande falo (ROBERTS, 2000, p. 84). Uma série de poemas antigos, estudados, reproduzidos e traduzidos por Oliva Neto “...apresentam a dimensão religiosa do falo” (2006, p.11). De acordo com Funari (2000, p.319): “a própria palavra falo, emprestada pelos romanos aos gregos, designava primordialmente objetos religiosos, em forma de pênis, usados no culto a Baco”. Assim, compreendemos que sexualidade e religião faziam parte de uma mesma realidade, pois é na capacidade procriadora e fértil do falo que residia seu poder e sua valorização (CANTARELLA, 1999, p. 67; GRANT, 1975, p. 32).

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A fertilidade simbólica do falo não se dava apenas em relação aos homens, mas também aos animais e às plantas (JOHNS, 1990), pois “este era símbolo de plenitude e exuberância procriadora em todas as esferas da vida, a vegetal, a animal e a humana” (OLIVA NETO, 2006, p. 11). A boa fertilidade da terra e dos animais, em um mundo no qual a alimentação é, por vezes, algo restrito e difícil de ser acessado, representaria uma forma de garantir sobrevivência e de prosperidade. Por conseqüência, uma grande produção poderia ser lida como abundância. Cabe ressaltar, ainda, que, assim como o falo, havia também uma série de divindades vinculadas à fertilidade e à terra. Destacamos o deus Priapo, originalmente considerado protetor dos campos e das hortas (OLIVA NETO, 2006) e que tem grandes falos como característica própria. As divindades fálicas em geral, tais como Pan, Silvanos e Fuanos, parecem ter sido vinculadas com as forças da natureza. Cantarella acredita ainda que todos os deuses que encarnavam as forças primordiais da natureza eram fálicos e, por isso, tinham uma personalidade hostil e agressiva, além de seu caráter protetor e propiciatório à fertilidade. Isto se daria justamente pela incorporação ideal da natureza, por vezes danosa e assustadora. Em virtude dessa associação, esses deuses poderiam ser bondosos e também cruéis (CANTARELLA, 1999, p.67; JOHNS, 1990, p. 62). Johns acredita que inicialmente existiam as divindades fálicas e, a partir destas, passou-se a cultuar o falo, mantendo-se o poder essencial e central destas na figura do falo. Para a autora, o falo teria então adquirido o simbolismo dual das divindades: protetor, por um lado, e agressivo e perigoso, por outro. E nisto consistiria sua força apotropaica: afastar o azar e o mau olhado com sua agressividade e proteger e trazer a boa sorte por sua bondade (JOHNS, 1990, p. 62). Oliva Neto, no entanto, parece traçar o caminho inverso: considera que inicialmente existia o culto fálico nas procissões dionisíacas e que, da personificação desse falo, ter-se-ia originado a divindade fálica de Priapo (OLIVA NETO, 2006, p.16). Há, ainda, outras divindades, como Mercúrio, que nem sempre aparece com grandes falos, característica que pode ter sido perdida ou incorporada às suas representações ao longo dos tempos ou de acordo com as necessidades simbólicas. Considerando-se que cada diferente localidade atribuía específicas características às divindades e aos objetos de culto, mais do que buscar uma origem exata – e intangível - para as representações fálicas e paras divindades fálicas, parece-nos apropriado, nesse momento, entender quais características eram comuns. Nisto parece haver um consenso entre os pesquisadores, pois todos atribuem ao falo os mesmos atributos simbólicos: fértil e apotropaico.

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Objetos apotropaicos A crença nesse poder apotropaico traduzia-se na confecção de objetos de uso cotidiano com a forma de falo, ou com representações fálicas, para que pudessem trazer sorte, abundância e proteger do mau agouro. (CANTARELLA, 1999, p. 67; FUNARI, 2003, p 319). Dentre estes, destacamos os amuletos de proteção, tais como pingentes, a serem utilizados ao redor do pescoço, como hoje se faz com a cruz cristã. Produzidos em materiais como bronze ou ossos, alguns, de valor monetário certamente maior e menos acessíveis, eram feitos em ouro ou coral. Havia, também, uma série de anéis em ouro com falos, alguns, inclusive, muito pequenos. Uma das interpretações possíveis é que poderiam ser destinados a crianças bem pequenas, para serem usados como anéis ou pendentes - uma vez que elas eram bastante vulneráveis a doenças e acidentes e, portanto, seria prudente protegê-las (JOHNS, 1990, p. 63). Os falos, também com esta função apotropaica, eram representados em locais públicos e de grande circulação, com certo “perigo potencial” (JOHNS, 1990, p. 64), como esquinas, pontes, soleiras das portas das casas, entradas e muros das cidades (fig.1).

Figura 1 – Representação de falo em um muro de Pompéia

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Os tintinnabula (espécie de sininhos ou campainhas) eram colocados nas entradas das casas ou nos pátios internos descobertos. Esses sinos, quando soavam tocados pelo vento, ajudavam a afastar o mal, poder potencializado se eles tivessem a forma fálica (JOHNS, 1990, p. 67). Funari acrescenta ainda: “Uma campainha, por sua própria natureza, atua na passagem do exterior para o interior, ligando o conhecido ao desconhecido; a representação fálica contribuía para afastar o perigo inerente a essa situação. Aquele que usa a campainha submete-se, obrigatoriamente, ao poder protetor do falo.” (FUNARI, 2003, p. 231).

Exemplos de tintinnabula vieram de diversos locais do Império. Muitos tintinnabula adicionavam ao falo outros motivos, algo também usual em pendentes e em falos esculpidos. Quando se tratava de outros elementos mágicos esses poderiam servir para reforçar ainda mais o poder do falo. No caso de objetos de uso cotidiano, o inverso seria mais provável: o falo traria a esses poder ou proteção. Temos como exemplos uma garrafa de vinho em meio a falos e falos em meio a determinados instrumentos de trabalho, encontrados nas paredes de Pompéia. Por vezes, esses falos adquiriam, ainda, a forma de animais, ou partes de animais, como caudas, patas e principalmente asas (fig 2). Johns (1990, p. 68) supõe que esses atributos faziam referência a animais aos quais os romanos atribuíam uma grande atividade sexual, como os pássaros. Vale considerar que tanto em latim como no italiano moderno, e também no português, a palavra “passarinho” é uma gíria que significa pênis.

Figura 2 - Lamparina em forma de falo com asas (MOUNTFIELD, PERDIGORD, 1996, p.66)

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Sexo, felicidade e sorte Embora o falo seja um símbolo que tenha como referência o pênis, é importante ressaltar que ele não é o pênis, pois o falo é sempre ereto, pronto para o ato sexual. Dessa forma, não estamos tratando do órgão genital masculino, e sim de uma representação cheia de outros significados, que pode, em virtude disso, levar a questionar a idéia de que ele representaria um poder eminentemente masculino. Deparamo-nos, por vezes, com uma leitura imediatista, que vê a representação falo como símbolo da supremacia masculina, em virtude de um falocentrismo cultural - no sentido contemporaneamente atribuído ao termo (BORDO, 1999, p. 89) – justificado na premissa de que a sociedade romana era uma sociedade patriarcal, em que o pater familia era o centro do poder. Todavia, alguns autores questionam esta idéia. Funari acredita que “era a relação sexual, implícita no falo, que portava consigo a verdadeira potência protetora” (2003, p.323). Há um grupo de amuletos mágicos apotropaicos, as figas – assim como as mãos tidas como simplificações da figa -, que servem para reforçar esta idéia. Por vezes, elas apareciam representadas junto com os falos. Para Funari (2003, p.323), as figas representariam o ato sexual (a penetração do pênis na vagina), para Johns (1990, p.72) estariam enfatizando a vagina. Assim, acreditamos que o ato sexual também estava vinculado à idéia de fertilidade. Nesse sentido, o ato sexual, representado em objetos do uso cotidiano, pinturas parietais, mosaicos e baixos-relevos, seria, assim como o falo, símbolo apotropaico e de sorte. Ao olharmos para as representações, podemos perceber, como já citamos, que não é o órgão genital masculino que aparece representado, mas esse órgão quando pronto para o ato sexual. Se o poder do falo advinha de sua capacidade de fertilidade e procriação (FUNARI, 2003; GRANT,1975, p.32), esse poder só seria concretizado pelo ato sexual. Funari acrescenta ainda que: “a simbologia romana do falo nada tem de natural e que dissociar falo e cópula, se pode fazer sentido no discurso moderno sobre a sexualidade, não se aplica à sociedade antiga” ( 2003, p. 319). Obviamente, se considerarmos a pluralidade de sujeitos e leituras, é de se supor que nem todos viam o falo da mesma maneira. Johns, por exemplo, aponta para a idéia de que alguns nem acreditassem nos poderes mágicos do falo. Acrescenta ainda que havia aqueles que consideravam tais amuletos como a expressão de uma crença em uma forma de religiosidade primitiva e pouco sofisticada (1990, p. 75). Tal idéia poderia ser reforçada por uma leitura feita por Paul Veyne de que os cultos não acreditavam nos deuses em geral (2004, p. 208-209). Nesse sentido, podemos fazer uma aproximação com o mundo contemporâneo, pois, embora nem todos acreditem, os símbolos religiosos

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estão presentes em nossas sociedades e nos deparamos com eles cotidianamente. Todavia, os símbolos das religiões predominantes na atualidade desvinculam-se de um referencial sexual explícito e, em oposição a isto, impõem uma fronteira entre sexo e religião, condenando as representações sexuais e o próprio ato sexual quando tido como elemento de prazer. Uma vez mais, observamos um distanciamento em relação ao ocorrido no mundo romano, pois os poderes mágico-religiosos atribuídos ao falo não eliminavam o caráter prazeroso da sexualidade. Um exemplo disto é a imagem de um falo encontrada em um panifício de Pompéia, seguida pelos dizeres “hic habitat felicitas” (“aqui mora a felicidade e a sorte”). A palavra latina felicitas significava, ao mesmo tempo, felicidade e sorte e ambos os sentidos são derivados do significado original de felix: fértil (FUNARI, 2003, p. 231). O falo estava, portanto, associado a ambas ao mesmo tempo.

Conclusões O estudo de caso apresentado demonstra que, entre a Antiguidade e a Modernidade, o significante falo adquiriu diferentes valores simbólicos. O falo na Antiguidade era valorizado na medida em que representava a fertilidade e, portanto, só teria seu poder no ato sexual, de forma que não era o homem que estava sendo valorizado, mas a relação sexual implícita no falo. De outra forma ele é lido na modernidade: passa a ser símbolo do poder masculino e de virilidade masculina. Tal poder foi dissociado do ato sexual procriador, em um mundo em que a sexualidade foi, do ponto de vista cultural, dissociada da fertilidade. É bem verdade que, na atualidade, vivemos a crise da sexualidade procriadora, pois, cada vez menos, dependemos do ato sexual entre duas pessoas para a fertilização, já que ele foi substituído clinicamente por inseminações artificiais e bebês de proveta - sem contar as pesquisas em curso sobre clonagens. Isso, se por um lado isto foi libertador para algumas mulheres que podem optar pela maternidade sem a presença de um homem durante o ato sexual, por outro, banaliza o sexo como fator gerador. Dessa forma, percebemos que o vínculo entre sexualidade e algo extremamente positivo, a vida, teve seus sentidos atenuados modernamente. Seguramente não foram as novas técnicas que desvincularam o sexo da vida; mais do que como resultado da evolução natural da medicina, estas surgiram como reflexo de uma mudança cultural muito anterior. Bordo acredita que, nas tradições antigas, os ciclos biológicos de morte e geração eram vistos como uma forma de imortalidade, um processo no qual o corpo sexual e reprodutivo cumpria um papel essencial. Nas novas tradições, a

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esperança individual para a imortalidade dependia de se conseguir a salvação pessoal, cada vez mais construída como um processo de sobrepor-se às necessidades e aos desejos do corpo “ animal”. Dessa forma, a sexualidade deixou de ser um instrumento divino de prazer e procriação e tornou-se um problema para a alma (BORDO, 1999, p. 90). Sabemos que ideologias de abstenção sexual existiam já na Antiguidade romana, embora não fossem hegemônicas naquela realidade. No mundo romano, em geral, os discursos acerca da sexualidade e do autocontrole preocupavam-se mais com as relações sociais de poder implícitas no sexo do que com suas práticas concretas. O foco não estava na relação sexual ou suas expressões (vistas como naturais), como algo condenável, mas nas relações de poder e submissão que determinam a posição de cada um na sociedade. A partir, principalmente, da expansão do cristianismo, em suas múltiplas vertentes, ao longo dos séculos e dos concílios, cria-se uma atmosfera repressora em relação à explicitação das práticas e dos desejos sexuais e, assim, a sexualidade e o falo, de um modo geral, deixam de ser explicitados. Foucault, no entanto, embora não negue que certa repressão tenha existido, para além desta hipótese, mostra como, através do “dispositivo da sexualidade” (1985), o sexo passou a ser central enquanto discurso: falado, lembrado, imaginado. Todavia, ele é agora analisado, avaliado, controlado. Já não é mais o sexo antigo, cotidiano, mágico, mas o sexo pensado, elaborado, categorizado, abordado em momentos específicos: restrito ao quarto do casal, à sala do psicanalista e ao confessionário. Falamos e insinuamos a sexualidade todo o tempo: nos filmes, nas novelas, no desfile das escolas de samba. Mas, de fato, a sexualidade poucas vezes pode ser encarada de forma direta e explícita. Encerramos o sexo aos motéis, ao quarto do casal, ao confessionário, ou delegamos ao psicanalista, ou à aula de reprodução sexual a tarefa de dissecá-lo. Foi nossa “vontade de saber” (FOUCAULT, 1985) que tornou o sexo tão sério, especial e tão controlado. O falo moderno, enquanto figura, é escondido, assim como a sexualidade. Se ele aparece, tem seus espaços muito bem determinados, geralmente privados. Quando representado em espaços públicos, estes são seguramente espaços controlados. Podemos olhá-lo em sex shops, em filmes pornográficos, em shows de streap tease ou mesmo em alguma exposição em um museu, mas são sempre espaços pré-determinados, escolhidos e classificados para tal função. Nesse sentido, é a forma explícita e cotidiana de representar a sexualidade na Antiguidade que parece incomodar contemporaneamente: a

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forma como o sexo é evidenciado sem ser o centro de referência daquelas sociedades – ele coexiste com tantas outras percepções de mundo, como a religião, a política, a alimentação. Por fim, percebemos que, se temos algo a olhar no passado, certamente não é a idéia de que o homem, tido modernamente na figura do falo, é o centro da vida social, mas uma forma mais tranqüila e positiva de vermos o sexo e suas expressões.

BIBLIOGRAFIA BARBIERI, T. “Sobre la Categoría Género. Una Introducción Teórico- Metodológica.” In STOLCKE, Verena e AZERÊDO, Sandra (coord.). Direitos Reprodutivos. São Paulo: FCC/ DPE, 1999. BORDO,S. The Male Body: A New Look at Men in Public and Private. New York: Farrar, Straus and Giroux, 1999 CANTARELLA, E. Pompei: I volti dell´amore. Milão: Mondadori, 1999. CAVICCHIOLI, M. R. As Representações da Sexualidade na Iconografia Pompeiana. Dissertação (Mestradoem História). IFCH, Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2004. FOUCAULT, M. Histoire de la Sexualité. 2. L´usage des plaisirs. Paris: Gallimard, 1984. .História da Sexualidade. I. A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1985. . Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1998. FUNARI, P. P. A. “Falos e Relações Sexuais. Representações romanas para além da natureza”. In: FUNARI; P.P.A; FEITOSA, L.; SILVA, G. J. (Org.) Amor desejo e poder na Antiguidade: relações de gênero e representação do feminino. Campinas: Editora da Unicamp, 2003. GRANT, M. Erotic Art in Pompeii.The secret collection of national Museum of Naples. Londres: Octopus Books Limited, 1975. GUZZO, P. Veberis Figurae: immagini di prostituizione e sfruttamento a Pompei. Nápoles: Electa, 2000. JOHNS, C. Sex or Symbol. Erotic Images of Greece and Rome. Londres: British Museum Publications, 1990. MOUNTFIELD, D.; PERDIGORD, P. L´Art Erotic dans l´Antiquité. Genebra: Liber, 1996. RABINOW, P. The Essential Works of Michel Foucault. Nova York: New Press, 1998. ROBERTS, T. Ancient Rome. Nova York: Metro Books, 2000. SCHMIDT, R.; VOSS, B. (Org.) Arqueologies of sexuality. Londres: Routledge, 2000.

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OLIVA NETO, J. Â. Falo no jardim: priapéia grega, priapéia latina. Campinas: Editora da Unicamp, 2006. VARONE, A. Eroticism in Pompeii. Roma: L´Erma di Bretschneider, 2000. VEYNE, P. “O Império Romano”. In: VEYNE, P. (org). História da Vida Privada. Vol. I: do Império Romano ao ano mil. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

AS/OS AUTORAS/ES

ALVES, Alexandre – Doutor em História pelo Departamento de História da Universidade de São Paulo; pós-doutorando no Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). BIAJOLI, Maria Clara Pivato - Mestre em História Cultural pelo Programa de Pós-Graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). CAMPOS, Natália Ferreira de – Bacharel em História pelo Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). CAVICCHIOLI, Marina Regis – Doutoranda em História Cultural no Programa de Pós-Graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). FEITOSA, Lourdes M. G. C. – Doutora em História Cultural pelo Programa de Pós-Graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). FUNARI, Pedro Paulo de Abreu - Professor titular do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Coordenador do Núcleo de Estudos Estratégicos (NEE) da UNICAMP. GARRAFFONI, Renata Senna - Doutora em História Cultural pelo Programa de Pós-Graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP); professora de História Antiga da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Pesquisadora associada ao NEE/UNICAMP e ao CPA/UNICAMP.

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Subjetividades antigas e modernas

IONTA, Marilda - Doutora em História Cultural pelo Programa de PósGraduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP); professora na Universidade Federal de Viçosa e pesquisadora na área de História, Cultura e Gênero. MARTINS, Adilton Luís - Doutorando em História Cultural no Programa de Pós-Graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). (Bolsista CNPQ). MURGEL, Ana Carolina Arruda de Toledo - Doutoranda em História Cultural no Programa de Pós-Graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). (Bolsista FAPESP). PELEGRINI, Sandra C. A. - Doutora em História pela Universidade de São Paulo; pós-doutora pelo NEE/UNICAMP; docente do Departamento de História da Universidade Estadual de Maringá. RAGO, Elisabeth Juliska - Doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professora da FEA-PUC-SP. RAGO, Margareth – Professora titular do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP. SILVA, Glaydson José da - Pós-doutorando do Departamento de História da UNICAMP – (Bolsista FAPESP). Diretor associado do Centro do Pensamento Antigo, Clássico, Helenístico e de sua Posteridade Histórica (UNICAMP). SILVA, Roberta Alexandrina da – Doutoranda em História Cultural no Programa de Pós-Graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Bolsista FAPESP. SWAIN, Tânia Navarro –Doutora pela Université de Paris III, Sorbonne. Pós- doutorado: Professora convidada pela Université de Montreal, e pela Université du Québec à Montreal, Canadá. Professora da Universidade de Brasilia. Editora da revista Labrys, études féministes/estudos feministas. http://www.unb.br/ih/his/gefem/labrys1_2/irigaray1.html

As/os autoras/es

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TVARDOVSKAS, Luana Saturnino – Mestranda do Programa de Pósgraduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). (Bolsista CNPQ). VIEIRA, Priscila Piazentini - Mestre em História Cultural pelo Programa

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