“Son diventati miei sudditi”. Cristãos-novos portugueses entre Lisboa e Florença: o caso da família Ximenes de Aragão (sécs. XVI-XVII)

Share Embed


Descripción

CON GRAN MARE E FORTUNA CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS, PESSOAS E IDEIAS ENTRE PORTUGAL E ITÁLIA NA ÉPOCA MODERNA

ORGANIZADORES

NUNZIATELLA ALESSANDRINI SUSANA BASTOS MATEUS MARIAGRAZIA RUSSO GAETANO SABATINI

LISBOA 2015

Cátedra de Estudos Sefarditas «Alberto Benveniste» Directora Maria de Fátima Reis Comissão Científica A. A. Marques de Almeida António Andrade António Borges Coelho João Cosme José da Silva Horta Maria de Fátima Reis Comissão de acompanhamento: Francisco Contente Domingues Monique Marcos de Benveniste Serge Marcos de Benveniste Impressão: Simbolomania-Artes Gráficas Lda - Lisboa Primeira Edição: Dezembro 2015 Depósito Legal: N.º403394/16 ISBN: 978-989-96236-7-5

Propriedade e edição: © Nunziatella Alessandrini, Susana Bastos Mateus, Mariagrazia Russo, Gaetano Sabatini e Cátedra de Estudos Sefarditas «Alberto Benveniste» Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa Alameda da Universidade- 1600-214 Lisboa Telef. 21 792 00 00 - Fax: 21 796 0063 Email: [email protected] Web site: www.catedra-alberto-benveniste.org Todos os direitos reservados As reproduções de imagens são da inteira responsabilidade dos autores A edição deste livro teve o apoio de: Centro de História de Além-Mar da Universidade Nova de Lisboa e Universidade dos Açores Fundação para a Ciência e a Tecnologia Associazione Emiliano Romagnoli nella Penisola Iberica (AERPI)

96

SUSANA BASTOS MATEUS

novos e judeus portugueses viram-se forçados a seguir ou sentiram-se atraídos por estes caminhos diaspóricos. Muitos deles dedicavam-se ao comércio e constituíamse em redes de grande complexidade, servindo de intermediários e de conectores entre os vários centros de poder e comerciais da Europa. Este movimento, associado às expansões ibéricas, alargou a àrea de influência e a realidade destas diásporas aos espaços ultramarinos, conferindo-lhe assim uma dimensão que podemos considerar global3. Através de um estudo de caso relacionado com uma importante família de mercadores de origem cristã-nova, a família Ximenes de Aragão, procuraremos analisar alguns dos mecanismos e das estratégias que norteavam as relações que estas famílias estabeleciam entre Portugal e a Toscânia, quais os principais objectivos deste estabelecimento e quais as condições em que a chegada e a vivência quotidiana se processavam. Conhecemos muitos casos de famílias de judeus e de cristãos-novos que se estabeleceram em cidades italianas e, de seguida, traçaremos as linhas gerais do quadro jurídico que permitia essas migrações: exemplos notáveis como o da família Abravanel que se estabeleceu no reino de Nápoles; o da família Mendes Benveniste que, em meados do século XVI, percorreu várias cidades italianas como Veneza e Ferrara, recebendo amplos privilégios por parte das autoridades governativas4; e, em contexto toscano, não deixa de ser paradigmático o caso da cidade portuária de Livorno que, nos finais do século XVI, sofre uma ampla dinamização motivada, em muito, pela presença significativa desta população ibérica de origem judaica. O caso da família Ximenes de Aragão traz-nos, no entanto, algumas diferenças em relação aos percursos tradicionalmente estudados. O seu exemplo é muito distante daquele escolhido pelos indivíduos que empreendiam a “via do retorno” e que saíam da Península Ibérica em busca de locais onde fosse seguro regressar à prática do judaísmo 5 . Pelo contrário, os Ximenes de Aragão procuraram uma integração na sociedade toscana dispensando, inclusivamente, os privilégios que eram destinados a indivíduos que demonstravam uma ambiguidade religiosa muito significativa ou que, na Península Ibérica, tivessem sido alvo de perseguição inquisitorial. Ao contrário de muitos outros indivíduos, os Ximenes de Aragão não

University of Delaware Press, Associated University Presses, 1998 e Jonathan RAY, After Expulsion. 1492 and the making of sephardic Jewry, Nova Iorque, New York University Press, 2013. 3 Sobre o papel destas diásporas na estruturação dos vários impérios marítimos é fundamental a reflexão de Jonathan Irvine ISRAEL, Diasporas within a Diaspora: Jews, Crypto-Jews, and the World of Maritime Empires (1540-1740), Leiden, Brill, 2002. 4 Uma síntese dos conhecimentos sobre o percurso desta família com amplas referências documentais pode-se encontrar em Herman Prins SALOMON e Aron di LEONE LEONI, “Mendes, Benveniste, de Luna, Micas, Nasi: the State of the Art (1532-1558)”, The Jewish Quarterly Review, 88, 3-4, 1998, pp. 135-211. 5 Sobre este fenómeno de grande complexidade com uma profunda análise das suas contradições e matizes cf. Yosef KAPLAN, Les nouveaux-juifs d'Amsterdam. Essais sur l'histoire sociale et intellectuelle du judaïsme séfarade au XVIIe siècle, Paris, Chandeigne, 1999.

98

SUSANA BASTOS MATEUS

empreender caminhos de fuga do seu local de origem. A cronologia destes movimentos de recepção começou sobretudo na década de 30 do século XVI e prolongou-se até finais do século XVI, com a promulgação de diferentes privilégios em cidades como Ancona, Ferrara, Nápoles, Florença ou Pisa. Não cabe aqui analisar detalhadamente o teor destes privilégios. No entanto podemos salientar que um dos principais aspectos desta legislação se prende com a tentativa de criar uma harmonia entre privilégios comerciais e a garantia de protecção à liberdade religiosa. Várias cidades italianas promulgaram importantes privilégios aos que fugiam ou se viam compelidos a sair da Península Ibérica. Em Ancona, no ano de 1532, já depois da sua integração nos estados pontifícios, são emanadas cartas patentes pelo cardeal Accolti, nas quais se procura receber mercadores e artesãos de origem judaica, levantinos, turcos, gregos e também originários da Península Ibérica 9 . Também em Veneza, os privilégios e os incentivos ao estabelecimento de sefarditas foi bastante notório, criando-se uma importante comunidade na cidade da laguna a qual, obviamente, dado o contexto em que se encontrava, apresentava um forte pendor comercial10. Mas talvez a cidade mais notória nestas medidas destinadas a acolher e a incentivar a migração da minoria judaica ibérica tenha sido Ferrara, governada pela casa de Este. Como bem demonstraram os estudos de Aron di Leone Leoni, a cidade estense foi muito precoce em promulgar legislação favorável aos fugitivos da Península Ibérica. As primeiras patentes datam de 20 de Novembro de 1492 e de 1 de Fevereiro de 1493 11 . Estaríamos, portanto, face a documentação directamente vocacionada para os indivíduos oriundos do espaço ibérico, alvos da expulsão de 1492. Esta legislação continha amplos privilégios que procuravam tornar apelativa a chegada destes indivíduos à cidade de Ferrara. O decreto de Fevereiro de 1493, destinado a alguns judeus espanhóis, não continha data de validade e alargava-se a outros judeus que, originários da Península, pretendessem chegar à cidade italiana12.

9

Cf. Aron di LEONE LEONI, “Per una storia della nazione portughese ad Ancona e a Pesaro”, in Pier Cesare Ioly ZORATTINI, L'Identità dissimulata. Giudaizzanti iberici nell'Europa Cristiana dell'età moderna, Firenze, Olshcki, 2000, pp. 27-88, no qual são publicadas as cartas de Accolti. 10 Sobre a comunidade sefardita de Veneza cf. Federica RUSPIO, La nazione portoghese. Ebrei ponentini e nuovi cristiani a Venezia, Torino, Silvio Zamorani Editore, 2007. 11 Sobre os vários privilégios concedidos aos sefarditas pela casa ducal de Este veja-se Aron di LEONE LEONI, La nazione ebraica spagnola e portoghese negli stati estensi. Per servire a una storia dell'ebraismo sefardita, Rimini, Luisè Editore, 1992. 12 Refere Aron di LEONE LEONI, “Il privilegio non prevedeva il pagamento di alcuna tassa, onorario o di qualsiasi contro-partita a fronte del permesso di residenza. Ercole I riteneva che l'imigrazione di mercanti ed artigiani avrebbe apportato vantaggi all'economia del suo Stato. I mercanti avrebbero contribuito all'erario pagando dazi e gabelle sulle merci da essi importate ed esportate mentre artigiani avrebbero versato alla Camera Ducale il normale corrispettivo delle licenze d'esercizio, così come facevano gli altri artigiani della città”, cf. La Nazione Ebraica Spagnola e Portoghese di Ferrara (1492-1559). I suoi rapporti col governo ducale e la popolazione locale ed i

SON DIVENTATI MIEI SUDDITI

99

A Toscânia dos Medici não foi alheia a esta vaga de privilégios conferidos a estrangeiros sobretudo por questões comerciais. No caso toscano, estes privilégios chegam em finais dos anos 40 e reflectem uma necessidade de atrair sobretudo mercadores e os seus respectivos produtos. Em Dezembro de 1548, Cósimo I emite algumas medidas destinadas ao repovoamento de Pisa e de Livorno, concedendo isenções e benefícios a estrangeiros 13 . Precisamente nesta conjuntura, ao longo destes anos, um grupo de portugueses tenta negociar a possibilidade de vários cristãos-novos já processados pelo Santo Ofício obterem salvo-condutos para se estabelecerem na Toscânia. A cabeça desta negociação seria o médico de Lamego, Pedro Furtado, que se tornaria médico do Grão-duque e elemento activo nas negociações dos cristãos-novos em Roma para travar a actuação inquisitorial 14 . Pedro Furtado e alguns elementos da sua família representam uma das primeiras vagas destes cristãos-novos que, fugindo da perseguição inquisitorial, acabaram por ter um papel activo nas cidades italianas, criando, inclusivamente importantes redes de contactos nos locais de chegada15. No caso do médico lamacense, este viria a desempenhar um papel importante no xadrez diplomático das tentativas de impedir a prossecução do funcionamento do Santo Ofício em Portugal16. Em Janeiro de 1549, Cósimo I decretou um privilégio especificamente destinado aos portugueses e redigido em latim 17 . O esforço de difusão deste convite foi bastante evidente e alguns intermediários foram escolhidos para se conseguir uma melhor divulgação entre os homens da nação estantes na Península Ibérica ou já nos espaços da diáspora, os principais alvos deste privilégio. As acções diplomáticas e a campanha de persuasão são bem claras numa figura enigmática que emerge da documentação florentina analisada por Lucia Fratarelli Fischer e James Nelson Novoa18. Trata-se de um agente sobre o qual pairam ainda

suoi legami con le Nazioni Portoghesi di Ancona, Pesaro e Venezia. A cura di Laura GRAZIANI SECCHIERI, Tomo I, Firenze, Leo S. Olschki Editore, 2011, p. 27. 13 Veja-se sobre estes privilégios Lucia FRATTARELLI FISCHER, Vivere furori dal ghetto. Ebrei a Pisa e Livorno (secoli XVI-XVIII), Torino, Silvio Zamorani Editore, 2008, pp. 15-68. 14 Cf. Susana Bastos MATEUS e James NELSON NOVOA, “De Lamego para a Toscana: o périplo do médico Pedro Furtado, cristão-novo português”, Cadernos de Estudos Sefarditas, n.º 5, Lisboa, 2005, pp. 313-338. 15 Ibidem. 16 Cf. Ibidem e Susana Bastos MATEUS e James NELSON NOVOA, “The case of the New Christians of Lamego as an example of resistance against the Portuguese Inquisition in sixteenth century Portugal”, Hispania Judaica Bulletin, 6, 2008, pp. 83-103. 17 Sobre estes privilégios veja-se Lucia FRATTARELLI FISCHER, “Gli ebrei, il principe e l'Inquisizione” in L'Inquisizione e gli ebrei in Italia. A cura di Michele LUZZATI, Bari, Laterza, 1994, pp. 217-231. 18 Cf. James NELSON NOVOA, “Tre lettere di Pedro de Salamanca, documenti per la storia dell'insediamento dei nuovi cristiani in Toscana nel Cinquecento”, Bollettino storico pisano, 74, 2005, pp. 357-369.



100

SUSANA BASTOS MATEUS

muitas dúvidas, designado na documentação como Pedro de Salamanca19. Poucos dados concretos se sabem sobre a identidade desta personagem, James Nelson Novoa refere-o como um provável procurador dos cristãos-novos em Roma 20 . Sabemos que traduziu os referidos privilégios para castelhano e que se dedicou a fazer uma campanha sobre as virtualidades da cidade de Pisa, descrições que enviaria em diversas cartas, provavelmente destinadas a membros da “nação portuguesa”. A carta, redigida em castelhano, conservada no Archivio di Stato di Firenze, transcrita por Novoa 21 , sumariza os privilégios do estabelecimento de “todos aquellos de la naçión” no território granducal e apresenta os muitos incentivos que estes poderiam encontrar, sobretudo na cidade de Pisa. Idealizados pela “exçelencia del duque de florencia mi señor, movido mas por ynspiración divina que por consejo humano” estes privilégios eram muito amplos incluindo “que no abrá agora ni em tiempo alguno Ynquisiçión ni visitaçión”, aspecto que era muito caro a todos os que fugiam das inquisições ibéricas. Em complemento, seguiam-se muitas isenções e diversos benefícios: “que puedan entrar por qual quier porto o puertos, así de mar como de tierra con dineros, joyas, oro y plata sin hacer ny serles pedido manyfiesto algun”, “que puedan tener ofiçios mecánicos, publicos y secretos”, “que puedan dar su dinero a cambio al preçio que qujsieren”, “que puedan thener sus logias públicas o secretas”, “que puedan bibjr en qualqujer çibdad, vilha, o castilho destos Reynos”, entre outros benefícios comerciais, bem como, também de grande importância para estas comunidades, “que puedan elexir un consul a su contento para que juzgue en las causas civiles”. Mostrando a amplitude destes privilégios, o autor da carta remata com uma afirmação contundente: “En fin señores, que todas las liberdades exçepto matar y robar es concedida 22 ”. Depois do elencar das várias cláusulas destes privilégios, a argumentação de Pedro de Salamanca segue duas vias: o louvor da cidade de Pisa e o louvor do seu soberano. Faz-se uma comparação entre Pisa e Lisboa, tentando demonstrar que a cidade toscana seria um sítio acolhedor para o início de uma nova estapa na vida de todos aqueles que fugiam da conjuntura persecutória ibérica23. Os anos seguintes marcam a emissão de novos privilégios, como aconteceu em 1551, destinados a mercadores gregos, turcos, arménios, persas e judeus, no qual, mais uma vez, se garante a liberdade de religião e diversas protecções a pessoas e bens24. Estes amplos privilégios comerciais conferidos aos cristãos-novos e judeus



19 Cf. Carta para Pedro de Salamanca, datada de 1548 in ASFi, Miscellanea Medicea, 611, fl. 98. O texto refere “diamo com missione à voi pietro salamanca che a nome nostro”. 20 Cf. James NELSON NOVOA, “Tre lettere di Pedro de Salamanca...”, cit. 21 Ibidem. 22 Cf. James NELSON NOVOA, “Tre lettere di Pedro de Salamanca...”, cit. 23 Ibidem. 24 Veja-se Lucia FRATTARELLI FISCHER, Vivere fuori dal ghetto..., cit., p. 29.

SON DIVENTATI MIEI SUDDITI

101

ibéricos fizeram com que a estratégia familiar de muitas famílias passasse pelo estabelecimento na Toscânia dos Medici. E talvez o momento que mais acelerou esta movimentação de gentes tenha sido o início da década de 90 do século XVI, quando o grão-duque Fernando I promulgou as chamadas leis Livornine que marcariam, de forma inexorável, a cidade de Livorno como um importante centro do cosmopolitismo europeu da Época Moderna. Podemos, de forma esquemática, afirmar que as Livornine são leis concedidas a mercadores de diversas nacionalidades e religiões para possibilitar e promover a sua fixação nas cidades de Pisa e Livorno. As negociações entre Florença e a cúria pontifícia foram complexas uma vez que, in extremis, o objectivo destas leis era garantir uma profunda protecção aos cristãos-novos que saíam da Península Ibérica, separandose muito claramente a esfera económica da esfera religiosa e possibilitando uma base teórico-jurídica para a defesa daqueles que pretendiam retornar ao judaísmo e permitindo um serena convivência entre católicos e não católicos. O Capítulo 3º das Livornine espelha perfeitamente este espírito que presidiu à sua elaboração: Vogliamo ancora che per detto tempo [25 anni] non si possa esercitare alcuna inquisitione, visita, denuntia, accusa contro di voi o vostre famiglie, ancorché per il passato siano vissute fuori del dominio nostro in habito come christiano o havutone nome, poter vivere habitare e conversare in dette nostre città di Pisa et Livorno et trafficare nelli altri luoghi del dominio nostro liberamente et usare in esse tutte le vostre ceremonie, precetti, arti, ordini e costumi di legge hebrea et altro secondo il costume et piacimento vostro, purché ciascuno di voi ne faccia denuntia all’infrascritto giudice da noi da deputarsi et mentre sarà tollerato dalla Sede Apostolica come a Venezia et a Ferrara si osserva, et prohibendovi o palliate o in altro qualsivoglia modo25.

Esta liberdade religiosa não deixava de ser um foco de atracção para os cristãos-novos portugueses que acorriam à cidade toscana de forma muito numerosa. De facto, o porto de Livorno sofreu um incremento considerável a partir da promulgação das Livornine e a cidade tornou-se num espaço de multiplicidade cultural e religiosa ímpar no plano europeu, sendo que a parcela da população de origem judaica ibérica era muito significativa e, em grande medida, responsável pelo desenvolvimento comercial que a cidade conheceu, sobretudo a partir do século XVII26.

25

ASFi, Pratica Segreta 189, cc. 115v-119v. Publicado em Lucia FRATTARELLI FISCHER e Paolo CASTIGLIONI, Le “livornine” del 1591 e del 1593. Documenti per la storia di Livorno, Livorno, Cooperativa Risorgimento, 1987, p. 17. 26 Sobre a nação portuguesa de Livorno existe uma ampla bibliografia. Com uma análise fundamental sobre as estratégias de estabelecimento dos portugueses na cidade, cf. Lucia FRATTARELLI FISCHER, Vivere fuori dal ghetto..., cit. Sobre as origens e principais características da comunidade judaica de Livorno cf. Cristina GALASSO, Alle origini di una comunità. Ebree ed ebrei a Livorno nel Seicento, Firenze, Leo S. Olschki Editore, 2002. Veja-se também o estudo já clássico de Renzo TOAFF, La Nazione Ebrea a Livorno e a Pisa (1591-1700), Firenze, Leo S. Olschki Editore, 1990.



102

SUSANA BASTOS MATEUS

Como contraponto, as autoridades ibéricas exprimiam em Roma as suas preocupações em relação a esta “descontrolada liberdade de consciência” 27 dos portugueses de Livorno, como referia o duque de Escalona, embaixador castelhano em Roma. Já em 1601 o duque de Sessa mostrara as suas preocupações em relação à política do grão-duque que permitia “deixar viver em Livorno hereges judaizantes” e que o papa deveria mostrar as suas preocupações, sendo também necessário que o Conselho de Portugal aconselhasse o monarca de forma a evitar “a fuga dos convertidos de Portugal28”. Os equilíbrios diplomáticos eram difíceis de manter, uma vez que os privilégios granducais anulavam sistematicamente o esforço de conservar a ortodoxia religiosa promovido por Roma e pelas inquisições dos estados ibéricos29. No entanto, apesar das dificuldades, a presença de cristãosnovos e de judeus de origem portuguesa na Toscânia foi significativa e constante ao longo de todo o século XVII. A conjuntura ibérica que criava dificuldades ao quotidiano dos cristãos-novos e a política de benefícios das autoridades toscanas, coadjuvada, obviamente, pela presença em Lisboa e nas rotas comerciais do império português de diversos agentes e operadores florentinos, fizeram com que várias redes comerciais de cristãos-novos portugueses tivessem como um dos seus pontos nodais a cidade de Florença 30 . Apesar de ter dedicado os seus estudos quase exclusivamente aos grupos castelhanos, Felipe Ruiz Martín pressentiu a progressiva afirmação das casas comerciais em Florença quando afirmou: De 1577 à 1585, les Portugais se limitent à prendre des positions dans la Péninsule apennine. Ces premiers pas, assez hésitants expliquent les buts qui seront atteints un peu plus tard, et réciproquement. Dans ces Lettres marchandes échangées entre Florence et Medina del Campo, nous verrons comment les Lusitaniens se sont de plus en plus solidement installés en Italie où ils commencent à être des personnages

27

Archivo General de Simancas (AGS), Estado, Legajo 978, fólio não numerado. Carta de Roma, datada de 4 de Maio de 1604. Tradução nossa. 28 AGS, Estado, Legajo 1495, fólio não numerado. Carta de Roma, a 15 de Maio de 1601. Tradução nossa. Cit. por Giuseppe MARCOCCI, “Itinerari marrani. I portohesi a Livorno nei secoli dell’età moderna”, in Livorno 1606-1806, luogo di incontro tra popoli e culture. Ed. Adriano PROSPERI, Torino, Allemandi, 2009, p. 410. 29 Sobre os processos inquisitoriais contra a população de origem ibérica e as dificuldades processuais provocadas pelos privilégios granducais a esta população veja-se Lucia FRATTARELLI FISCHER, Vivere fuori dal ghetto..., cit., pp. 207-252 e Adriano PROSPERI, “Ebrei a Pisa. Dalle carte dell'Inquisizione romana”, in Gli ebrei di Pisa (secoli IX-XX). A cura di Michele LUZZATI, Pisa, Pacini, 1998, pp.117-157. 30 Algumas considerações sobre as parcerias comerciais entre italianos e cristãos-novos em Nunziatella ALESSANDRINI e Susana Bastos MATEUS, “Italianos e cristãos-novos entre Lisboa e o império português em finais do século XVI: vínculos e parcerias comerciais”, Ammentu. Bollettino Storico e Archivistico del Mediterraneo e delle Americhe, Cagliari, n.º 7, 2015, pp. 29-48.

SON DIVENTATI MIEI SUDDITI

103

importants dans le monde des affaires, à cause des capitaux qu'ils ont accumulés, surtout grâce au commerce des épices31.

Uma destas famílias portuguesas a que se referia Ruiz Martin é, precisamente, a dos Ximenes de Aragão que, cedo dentro da sua estratégia familiar começa a procurar expandir os seus negócios e esfera de actuação para fora da Península Ibérica. A partir de finais do século XVI, a Toscânia surgiu no horizonte familiar como um espaço de comércio e de promoção social. A par das transacções comerciais, os Ximenes de Aragão conseguiram em Florença uma estreita união com as elites dirigentes e com as principais famílias da cidade. Esta projecção social foi mantida até à extinção da linha familiar, já nos inícios do século XIX. Son diventati miei sudditi. Os Ximenes de Aragão entre o comércio a nobilitação. A demonstrar a importância desta família na corte toscana, bem como o empenho da política granducal em defender os interesses destes mercadores, encontra-se uma polémica entre o grão-duque Fernando I e a rainha Isabel I de Inglaterra, a propósito de um embargo a mercadorias pertencentes à família Ximenes transportadas na nau Gatto Doratto. Esta polémica durou vários anos, de 1595 até cerca de 1602 e pode ser seguida em vários documentos da chancelaria granducal, através de uma ampla troca epistolar entre os dois soberanos. Para apaziguar os ânimos ingleses, num período de forte tensão entre as cortes espanhola e inglesa, e numa clara demonstração da importância dos mercadores portugueses na sua corte, Fernando I argumenta que os Ximenes vivem em Pisa e Florença como súbditos toscanos, sem ligações com os seus familiares na Península Ibérica e que, por esta razão, devem ser tratados como súbditos do grãoducado. Escrevia o grão-duque em Outubro de 1601: Resta hora ch' pavimenti' di nuovo replichi alla mta. vstra. quello che di già le ho sentitto, che io non pretendo di assicurar li mercatie di tutti li portoghesi, ma ch' ben' per li ragioni già addotti non mi par' conveniente chi' quelli ch' quantunque siano per origini portughesi non hanno piú domicilio ne beni in quel Regno ma son' diventati miei sudditi, et alcuni di loro nati qua' et ui habitano familiarment' con le lor' famiglie, et vi hanno casa et beni et godano li privilegij, et pagano hi carichi come naturali sudditi de miei stati devino puoi esser' danneggiati nelle lor' mercantie et trattati hostilmente com' nemici da vasselli sudditi della M.ta Vra. // poi ch'io non faccio differenza alcuna da loro agl'altri miei sudditi, et perché li signori del consiglio di V. M.ta mi scrivano che s'hanno a tener' per li ben quelli Portughesi, ché son' fatti vassalli miei con quelli conditioni, che le legge ricercano, dal transferirsi dalla iurisdition' naturali, a me pare che secondo le leggi civili, le quali qua' s'osservano quelli che sono nati nelli stati miei, o che vi sanno transferito et contratto il domicilio, et vi habitano familiarmente con le lor' moglie et figli et non habitano ne hann' piu beni in Portogallo et hanno qui la lor' substanza et sostengano tutt' incarichi et godano tutti i

31

Felipe RUIZ MARTÍN, Lettres marchandes échangés entre Florence et Medina del Campo, Paris, S.E.V.P.E.N, 1965, p. cxxx.



104

SUSANA BASTOS MATEUS

privilegi degl' altri miei sudditi non possino et deveno far' altra solennità, ne altre condizioni si son 'usati', o si usano in Jtalia per diventar veri sudditi d'un Principi et esser' li ben dall' hostilit`d'un'altro32.

Toda esta polémica tinha surgido em 1595 quando a embarcação Gatto Dorato (pertencente à família Ximenes) tinha sido apresada por corsários ingleses ao serviço da rainha de Inglaterra. Aos pedidos do grão-duque para que a rainha libertasse os “seus súbditos” e as suas mercadorias, a rainha responde que não podia emitir um salvo-conduto, uma vez que “gli Ximenes erano sudditi spagnoli” e “principali aiutanti della flotta di Spagna che nel 1588 hostilmente si spinse sulle coste d’Inghilterra” e “togliere a loro mostrava ai sudditi il modo di potersi delle perdite ricevute dai spagnoli risanare33”. Na sua já citada carta de Outubro de 1601, Ferdinando I, para reforçar o facto de que os Ximenes eram seus súbditos apresentava também alguns exemplos de portugueses que se tinham tornado súbditos toscanos e que, naquele momento, residiam em Pisa e em Florença. Da família Ximenes mencionava Niccolò Ximenes: Niccolo Ximenes proprio et separato et diviso da tutti gl’altri Ximenes habita in Fiorenza dove negotia in proprio senza interessi degl'altri e fatto cittadin' Fiorentino et ha amministration' d'offizi come tali, non ha più beni in Spagna ni in Portogallo, ha casa et beni proprij in Fiorenza ha preso moglie una dama di mia Corte, et ha quattro figli in detta Città34.

Num estudo recente, Lucia Frattarelli Fischer reforçou o termo de diventare toscani para se referir aos Ximenes de Aragão e ao seu processo de integração na Toscânia35. Efectivamente, o processo de entrada da família em Florença pressupôs uma adopção de elementos toscanos (trajo, nome, hábitos), facto potenciado pelas suas escolhas matrimoniais. Por outro lado, os Ximenes procuraram – à semelhança de outros mercadores de grande projecção com antepassados judaicos36 – os mecanismos mais eficazes e rápidos de promoção social. Para além dos já mencionados casamentos, a criação de comendas na recém-criada ordem de

32

ASFi, Mediceo del Principato, 175A, lettera 2. Sublinhado nosso. ASFi, Mediceo del Principato, 4183, fl. 36. Carta de Isabel I ao Grão Duque, datada de 29 de Setembro de 1595. 34 ASFi, Mediceo del Principato, 175A, lettera 2. Cit. in Lucia FRATTARELLI FISCHER, Vivere fuori dal ghetto, cit., p. 82. 35 Cf. Lucia FRATTARELLI FISCHER, Vivere fuori dal ghetto, cit., p. 82. 36 Um exemplo para o caso espanhol e com ampla formulação conceptual acerca dos processos de promoção social destes mercadores de origem judaica cf. Carmen SANZ AYÁN, Los banqueros y la crisis de la Monarquía Hispánica de 1640, Madrid, Marcial Pons, 2013. 33

SON DIVENTATI MIEI SUDDITI

105

Santo Stefano será um dos meios de mobilidade social escolhidos logo desde o primeiro momento de chegada da família ao território italiano37. Assim, em 1591, os doutores Valerio Brignosa e Fernando Mendes apresentam uma súplica ao grão-duque, em nome de Fernando Ximenes, português, morador em Antuérpia para a fundação de uma comenda com “il riserbo del padronato a favore dei suoi nipoti figli di Ruy Nunes Ximenes 38 ”. O grão-duque aceita e a comenda é fundada a 15 de Novembro de 1591, tendo a obrigação de 400 ducados por ano para a instituição do hospital de Santo Stefano em Antuérpia. O percurso dos Ximenes de Aragão na Ordem de Santo Stefano continuou e, pouco tempo depois, a 20 de Setembro de 1593, Sebastião Ximenes, filho de Tomás Ximenes, natural de Lisboa mas “cittadino di Firenze” fundou o Priorado de Romagna “sopra un credito di scudi 40.000 con l'Abbondanza di Firenze39”. A 2 de Agosto de 1616 será a vez de Tommaso, filho de Sebastião, tomar o hábito de cavaleiro da Ordem de Santo Stefano. As suas provanças de nobreza foram feitas em Lisboa e em Florença e, na cidade do Tejo, pela parte do seu pai “deposero nove testimoni, i quali affermarono che le due famiglie Ximenes de Ledesma e Elvas del Carmine erano vissute nobilmente40”. Esta presença tão significativa dos Ximenes na Ordem de Santo Stefano foi comum a muitos outros estrangeiros que se estabeleceram nesta época de fortalecimento político do grão-ducado, correspondendo à análise que deste fenómeno fez Danilo Barsanti quando referiu: Quindi le comende di padronato erano la forma più semplice per acquisire nobiltà e leggitimare la propria posizione sociale raggiunta, la via più veloce di un processo di ascesa sociale e di aristocratizzazione de parte di famiglie di recente fortune ed insieme un potente strumento politico di organizzazione del consenso, di aggregazione, di promozione e di controllo sociale da parte dei granduchi, che erano anche maestri dell'ordine di S.Stefano41.

O estabelecimento dos Ximenes na Toscana, em paralelo com a actividade mercantil, passou também pela pela gestão de propriedades fundiárias 42 . A

37

Sobre a presença de cavaleiros portugueses na ordem militar de Santo Stefano, veja-se Bruno CASINI, “I cavalieri portoghesi membri del sacro militare Ordine di S. Stefano Papa e Martire”, in Toscana e Portogallo. Miscellanea Storica nel 650º Anniversario dello Studio Generale di Pisa, Pisa, Edizioni ETS, 1994, pp. 133-190. 38 Ibidem, p. 146. 39 Ibidem, p. 149. 40 Ibidem, p. 163. Sobre as comendas da família Ximenes na Ordem de Santo Stefano o estudo mais detalhado é o de Danilo BARSANTI, “Portoghesi a Firenze: le commende Ximenes e Mendes”, in Toscana e Portogallo,cit., pp. 191-207. 41 Cf. Danilo BARSANTI, “Portoghesi a Firenze...”, cit., pp. 192-193. 42 A este propósito refere Fernand BRAUDEL: “secondando il genio del granduca portarono in Toscana i lor fondi per convertirli in terreni, ed applicarsi all’agricoltura; in conseguenza di ciò ritornarono da Londra i Corsini e i Gerini, i Torrigiani da Norimberga e si fecero fiorentini i Ximénes, mercanti portughesi, i quali ben volentieri concorsero a convertire in tante terre in Toscana le loro



106

SUSANA BASTOS MATEUS

integração desta família passa também pela sua participação nas políticas de fomento económico promovidas pelo grão-ducado, sobretudo durante o governo de Fernando I 43 .” Desta forma, famílias como os Ximenes, Guicciardini, Capponi, Bardi, entre outras, pertenciam a este grupo de dignitários que administravam, geriam e defendiam as zonas limítrofes do grão-ducado. Como refere Stefano Calonaci, na tentativa de fazer uma tipologia deste grupo: Si tratta dunque di un feudalesimo di ritorno, rappresentato da un gruppo sociale composito ma connotato in senso mercantile, volto alla rivalutazione delle potenzialità economiche dei territori attraverso bonifiche ed investimenti che sostenessero il nuovo peso che la corte e la burocrazia venivano assumendo44.”

Apesar destas várias actividades e estratégias, uma das principais formas de nobilitação e de inserção na sociedade florentina não deixou de ser a do mercado matrimonial. Sebastião Ximenes, provavelmente um dos mais importantes elementos que espelhavam a integração dos Ximenes no quotidiano do grãoducado e que, como referimos, entrou na Ordem de Santo Stefano através da fundação do Priorato di Romagna, casou com Caterina de’Medici filha de Raffaello de’ Medici e de Constanza Alemanni, conseguindo, deste modo, inserirse no tecido das camadas mais altas da sociedade florentina. Segundo as disposições matrimoniais, o dote a pagar por Raffaello seria de “scudi cinque mila di moneta di lire 7 per scudo 45 ”. Três anos mais tarde será Francesco Niccolo Capponi a pagar a Sebastião Ximenes “scudi 4000 di moneta di lire 7 per scudo46” como cumprimento do que havia sido prometido por Raffaello. Para além deste casamento inicial com a família Medici, muitas foram as outras famílias da aristocracia florentina com quem os Ximenes estabeleceram laços matrimoniais entre as quais se encontram as famílias Alemanni, Gerini, Antinori, Incontri, Scarlatti e Panciatichi, sendo nesta última que confluiu o património dos Ximenes quando, nos inícios do século XIX se extinguiu a sua linha masculina

ricchezze”, cf. Civiltà e Imperi del Mediterraneo nell'età di Filippo II, vol. 2, Torino, Einaudi, 1976, p. 766. 43 Fernando I tinha intenções claras de criar “un gruppo di feudatari nuovi distribuiti soprattutto nella Maremma senese, tendeva a configurarsi come un vero programma di politica economica, in cui il dignitario avrebbe dovuto garantire il recupero, in virtù del proprio spirito impreditoriale e delle proprie sostanze, del territorio a lui assegnato, nel pieno rispetto delle giurisdizioni delle comunità e nella sottomissione alle magistrature granducali”, cf. Stefano CALONACI, Dietro lo Scudo Incantato. I fedecommessi di famiglia e il trionfo della borghesia fiorentina (1400 ca.-1750), Firenze, Le Monnier Università, 2005, p. 134. Veja-se também Irene POLVERINI FOSI, “Un programma di politica economica: Le infeudazioni nel Senese durante il principato mediceo”, Critica Storica, XII, 4, (1976), pp. 660-72. 44 Ibidem, p. 135. 45 British Library (BL), Add. Ms. 48731, Medici Papers, fl. 68r. 46 Ibidem, fl. 74r.

SON DIVENTATI MIEI SUDDITI

107

Paralelamente aos casamentos com a elite florentina, neste processo de diventare toscani, esta família adopta gostos artísticos e sensibilidades típicas da Toscânia, patentes no patrocínio de obras devocionais e no patronato religioso que efectuam. Um bom exemplo disto é a Cappella di S. Francesco sopra l’Altare Maggiore da Chiesa di San Pier Maggiore di Firenze do patronato da família, cujos benefícios e obras de requalificação são amplamente fomentados pela família47. A transferência da família Ximenes para a Toscânia foi, sem dúvida, um momento importante para o capital simbólico do grupo familiar, conferindo-lhe uma posição de prestígio que, provavelmente, não conseguiram alcançar noutros lugares. Assim ocorreu em casos como o de uma petição feita por António Ximenes – estante em Madrid – por volta da década de 20 do século XVII, na qual se sublinha a importância dos elementos “toscanos” da família. Na Relacion de el linaje de los Ximenez del Reyno de Portugal (Vd. Anexo), faz-se um breve esboço genealógico da família, elencando os elementos de maior prestígio48. O texto refere, precisamente, a capacidade de uma boa estratégia matrimonial que se traduziu por: El termino y modo que tuuieron sienpre y tienen en sus casamientos es tal que de muchos años antes, no hicieron ninguno con persona de raça: y estan oy enparentados con muy illustres familias como son, (en Portugal) Pereyras, Noroñas, Mendoças Almadas, Syluas, Almeidas, Faros, Coutiños (en Florencia, con Medicis, Alemanis, Antinoris Bartalinis y otras: y antes se dexan extinguir, que casar con gente de raça; en tanto grado que los Mayorasgos que instituyeron, son con clausula que los pierda el posseedor no casando con persona de toda qualidad y limpieca49.

A escolha dos nomes apresentados obedece claramente a uma hierarquia que reside, por um lado, na prestação de serviços aos soberanos, como é o caso de Tomás, Jerónimo e André Ximenes, residentes em Lisboa; por outro lado, faz-se menção a altos dignitários florentinos como Sebastião e Nicolau Ximenes, o segundo, casado com Maria Antinori e senador florentino, e aos cargos eclesiásticos de vulto, como Manuel Ximenes, da Companhia de Jesus e inquisidor, e Tomás Ximenes, bispo de Fiesole. Salientam-se as obras pias, o apoio a fundações religiosas diversas, como a instituição de seminários. Neste particular refere-se o apoio dado por António Fernandes Ximenes em Lisboa à fundação do colégio dos irlandeses de São Patrício. No entanto, não deixa de ser digno de nota que, em documentação destinada à concessão de benefícios estreitamente relacionados com a limpeza de sangue e, como tal, amplamente escrutinados tanto pelo Conselho de Portugal, como pelo Santo Ofício português, se mencione

47

ASFi, San Pier Maggiore, 44, inserto XX. Relação da linhagem dos Ximenes do Reino de Portugal. AGS, Secretarías Provinciales, 1580, fls. 194-195. Gostaria de agradecer a Juan Ignacio Pulido Serrano que me indicou este documento. 49 Ibidem, fl. 194. Cf. Anexo. 48



108

SUSANA BASTOS MATEUS

António Fernandes Ximenes que, em Goa, tinha tido problemas com a Inquisição50. Teriam os Ximenes de Aragão uma confiança total no seu percurso genealógico que o consideravam capaz de superar os minuciosos inquéritos inquisitoriais? Pelo menos na Toscânia da Época Moderna as suas aspirações de promoção social parecem ter sido totalmente bem sucedidas, a par do sucesso comercial que conheceram. A medida do mundo: os produtos e os agentes. Os movimentos das expansões ibéricas originaram um significativo alargamento das mercadorias comerciadas e em circulação na Europa. Muitos deles eram produtos raros 51 , desconhecidos até então e cujo consumo motivou um interesse e uma aptência consideráveis por parte das coroas europeias52. Sem dúvida que um dos aspectos mais relevantes da presença dos Ximenes de Aragão na cidade do Arno foi a possibilidade de trazer para Florença produtos oriundos de vários pontos do globo, uma vez que detinham interesses na carreira da Índia e em outras rotas do comércio imperial que depois de 1580 se amplia visivelmente a uma escala global53. É bem conhecido o gosto da corte dos Medici pelos produtos de luxo e por matérias exóticas54. A família Ximenes de Aragão servia muitos destes interesses, introduzindo uma variedade de produtos. Através do estudo de alguma documentação da casa comercial dos Ximenes estabelecidos em Florença, podemos traçar algumas linhas gerais da actividade que exerciam na cidade, das ligações que mantinham com a sua família e com outros mercadores da elite de Lisboa, bem como os principais produtos comercializados. No Archivio di Stato di Firenze conserva-se um pequeno livro de contas e de ricordanze da casa Ximenes, neste caso relativo aos irmãos Nicolau e Sebastião55. O livro começa no ano de 1592, ou seja, num momento muito inicial do

50

Sobre este caso veja-se o que apresentámos em Nunziatella ALESSANDRINI e Susana Bastos MATEUS, “Italianos e cristãos-novos...”, cit., pp. 39-40. 51 Veja-se para o caso de produtos raros em circulação no mercado asiático e vários aspectos do seu cruzamento e disseminação na Europa, Mirabilia Asiatica. Produtos raros no comércio marítimo = Produits rares dans le commerce maritime = Seltene Waren im Seehandel. Coord. Jorge M. dos Santos ALVES, Claude GUILLOT, Roderich PTAK, Wiesbaden, Lisboa, Harrassowitz Verlag, Fundação Oriente, 2003. 52 Sobre o interesse da coroa portuguesa em objectos exóticos veja-se, por exemplo a questão da procura de animais, cf. Annemarie JORDAN, “A procura portuguesa por animais exóticos”, in Cortejo triunfal com girafas, animais exóticos ao serviço do poder, Lisboa, Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva, 2009, pp. 33-42. 53 Para o caso concreto dos interesses e parcerias comerciais no comércio asiático, cf. Nunziatella ALESSANDRINI e Susana Bastos MATEUS, “Italianos e cristãos-novos...”, cit., pp. 29-48. 54 Cf. Francisco ZAMORA RODRÍGUEZ, “Interest and Curiosity: American Products, Information, and Exotica in Tuscany”, em ARAM, B., e YUN, B., (Eds.), Global Goods and the Spanish Empire, 1492-1824, Circulation, Resistance and Diversity, Palgrave Macmillan, 2014, pp.174-193.. 55 Cf. ASFi, Antinori, 65.

L’Áquila, 1

Pisa, 2

Sanmezzano, 1

Sem local, 15

Porto, 4

Roma, 2 Sulmona, 2

Antuérpia, 18

Bolonha, 2 Lucca, 2 Veneza, 15

Lisboa, 35 Milão, 2 Hamburgo, 15

Livorno, 4 Madrid, 4 Génova, 4 Cádiz, 1 Alicante, 2

Sevilha, 1 Napoles, 4

110

SUSANA BASTOS MATEUS

destaca claramente a praça comercial de Lisboa que tinha um papel determinante nos negócios da família. Era também a Lisboa que chegavam as mercadorias oriundas do mercado asiático, no qual os Ximenes eram detentores de importantes contratos, mormente na compra e distribuição das especiarias na Europa 59 . Seguiam-se Hamburgo e Antuérpia, locais-chave para a família e outros pontos, correspondentes a praças comerciais europeias bem como da península italiana. Este livro de contas permite-nos, assim, individuar o teor das operações comerciais dos Ximenes de Aragão após a sua chegada a Florença. Para além desta variedade de produtos e de locais de contacto, emergem também os agentes, os homens de confiança que permitiam que se tecesse e se sustentasse esta rede comercial. O elencar destes agentes registados nas várias entradas do livro dão-nos uma lista de nomes nos quais surgem membros da família, membros de outras famílias da elite mercantil cristã-nova portuguesa, bem como um número considerável de mercadores espanhóis, italianos, do Norte da Europa, evidenciando o carácter transnacional e amplo desta rede60. Considerações finais O estudo da trajectória toscana da família Ximenes de Aragão mostra como esta família acompanha os percursos diaspóricos que caracterizaram amplamente as vidas de numerosas famílias de mercadores e de comerciantes judeus e cristãosnovos de origem ibérica. Membros de uma família muito alargada, os Ximenes de Aragão teceram uma rede com interesses e influência a nível global. Os vários ramos da família estabeleceram-se em cidades europeias com um peso comercial bastante significativo, a partir das quais podiam controlar os seus vastos negócios. Lisboa e Antuérpia foram importantes centros de actividade da família ao longo do século XVI e, sobretudo a partir da década de 90, Florença emerge como outro dos centros de actuação da família. Na cidade do Arno, os Ximenes de Aragão puderam desenvolver as suas actividades e ascender a um nível de promoção social que, na Península Ibérica, em virtude dos constrangimentos provocados pela aplicação dos estatutos de limpeza de sangue, lhes era dificultado, ainda que de forma variável e com muitos mecanismos para contornar essa imposição. Na Toscânia granducal, os Ximenes de Aragão desempenharam inúmeros cargos administrativos citadinos. Em Florença, através de diversas alianças matrimoniais com elementos do patriciado local,

59

Cf. Nunziatella ALESSANDRINI e Susana Bastos MATEUS, “Italianos e cristãos-novos...”, cit, pp. 29-48. 60 Os agentes mencionados são muito numerosos. A título de exemplo, seleccionámos alguns dos locais que aparecem nesta fonte – Antuérpia, Lisboa, Madrid, Porto e Roma – e elencamos os respectivos agentes que, neste caso correspondem aos produtores das cartas comerciais resumidas neste livro. Antuérpia: Diogo Rodrigues de Andrade, Filipe Jorge, Duarte e Manuel Ximenes; Lisboa: Francisco de Andrade, Rodrigo de Andrade, Juan Moreno, Fernando Rodrigues, Lopo Rodrigues, André Ximenes e Fernando Ximenes; Madrid: António Ximenes; Porto: Simão Vaz; Roma: Francisco Duarte. Cf. ASFi, Antinori, 65, passim.

SON DIVENTATI MIEI SUDDITI

111

integraram o tecido social do mais elevado escalão. Por outro lado, mantiveram a posse de comendas e de outras instituições na Ordem de Santo Stefano. Uma parte muito significativa das suas actividades na Toscânia continua a ser, porém, relacionada com o comércio, tendo íntimas relações com os restantes membros da sua família, posicionados em diferentes cidades europeias, bem como através de parcerias com a elite mercantil cristã-nova de Lisboa ou com outras redes comerciais europeias como a de Simón Ruiz, sediada em Medina del Campo. Deste modo, os Ximenes de Aragão integravam um circuito que promovia a circulação de mercadorias oriundas dos espaços ultramarinos ibéricos e que eram distribuídas por toda a Europa. A Florença chegavam os produtos mais diversificados, desde o trigo do Norte da Europa ao açúcar pernambucano, passando pelas especiarias asiáticas. Os Ximenes de Aragão faziam parte de um significativo fluxo migratório que uniu Portugal à Toscânia desde as primeiras décadas do século XVI. Tendo como motor principal a difícil conjuntura ibérica após a conversão-geral de 1496-7 e após o estabelecimento da Inquisição em 1536, este fluxo migratório transcendeu em muito a questão da fuga, para se tornar claramente num movimento de criação de novas oportunidades, de novas parcerias e de promoção da mobilidade social. Anexo – Relação da linhagem dos Ximenes do Reino de Portugal. AGS, Secretarías Provinciales, 1580, fls. 194-195. [fl. 194] Relacion de el linaje de los Ximenez del Reyno de Portugal. Por el año passado de 500 reinando en Portugal El Rey Don Manuel, y Don Juan el tercero; biuió en Lisboa Duarte Ximenes; el qual hauiendosse casado en ella con Jsauel Rodrigez de la Vega, vuo de aquel matrimonio, seis hijos Varones; que fueron Rodrigo, Fernando, Thomas, Jeronymo, Duarte, Manuel, y Andres Ximenez. Destos, los dós primeros Rodrigo y Fernando, por el año de 506 se passaron â Flandes, y Alemania, donde hicieron tan señalados serbicios a la Jglesia, defendiendo los Catholicos quando las heresias en aquellos Paises andauan más encendidas, que informado dellas el summo Pontifice Sixto Vº, les despacho Vn Motu proprio, su fecha en el año de 86 por el qual declaro, a los dichos Ximenes por de sangre Jllustre, hauilitandolos y a sus succesores para todas las honrras, officios, y beneficios, ecclesiasticos y seculares, como mas largamente de su tenor consta. A los que se quedaron en Portugal, que fueron Thomas, Jeronymo, y Andres Ximenez por los grandes seruicios que en differentes ocasiones, hicieron, a los Reyes Don Felipe 2.º y 3.º de que consta por certificaciones, y en concideracion de sus meritos y procedimiento por el año passado de 99 les hiço el Rey merced de hacerlos fidalgos de su casa con fuero en ella y con gajes como los mas fidalgos de aquel Reyno. Vltra desto dio el hauito de Cristo a Andres Ximenes ya difunto, y a Antonio Ximenes que oy biue en Madrid, y El de Santiago a Don Diego Ximenes de Vargas su hijo Pagador general de las guardas de Castilla. la liberalidad y franqueça de que Vsaron con la Jglesia, és digna de concideracion y aplauso pues és notorio que de quarenta años acà, ha gastado sola esta familia en fundaciones de Capillas y seminarios, assi en Flandes, como en Florencia y Portugal mas de dusientos y sincuenta mil ducados.



112

SUSANA BASTOS MATEUS

El termino y modo que tuuieron sienpre y tienen en sus casamientos es tal que de muchos años antes, no hicieron ninguno con persona de raça: y estan oy enparentados con muy illustres familias como son, (en Portugal) Pereyras, Noroñas, Mendoças Almadas, Syluas, Almeidas, Faros, Coutiños (en Florencia, con Medicis, Alemanis, Antinoris Bartalinis y otras: y antes se dexan extinguir, que casar con gente de raça; en tanto grado que los Mayorasgos que instituyeron, son con clausula que los pierda el posseedor no casando con persona de toda qualidad y limpieca // [fl. 194v] De toda esta familia, las más personas fueron señaladas y dignas de memoria: P[...] Fernando Ximenes que primero biuiò en Flandes y Alemania, y despues se passó á Florencia donde murio por el año de 600 fue comendador y Cauallero del orden de S. Esteuan, persona muy exenplar, y grandissimo deffensor de la Religion Catholica como se Vee del Motu proprio del Papa Sixto Vº, y dexó en su testamento 200 V ducados para que se repartiessen por lugares pios necessitados, como se hico; y dellos se gastan oy dòs mil ducados todos los años, en limosnas y dotes de donsellas huerfanas en la Ciudad de Lisboa, en la casa de la santa Mizericordia. El Padre Manuel Ximenez de la Compañia de Jesus, biuiò tanbien y murio en Florencia; doonde [sic] siruiò muchos años de diputado de la santa Jnquisicion. Sebastian Ximenes que oy biue en Florencia casado con Catharina de Medicis ermana del embaxador del serenissimo Granduque que oy assiste en esta corte, y sobrina del Cardenal Alexandro de Medicis que despues fue Papa Leon II. es Prior del orden de S. Esteuan, y señor de Saturnia y Samesano. Nicolas Ximenes biuiò y murio en Florencia, casado con Maria Antinori, senador de aquella ciudad y presidente del tribunal del crimen que es de los cargos mas supremos en aquella Prouincia. Fernando Ximenes que oy biue en Lisboa Arcediano en la santa Jglesia de Braga persona de Vida exenplar. Thomas Ximenes muchos años en seruicio de los Papas Referendario utriusque signaturæ, es oy Obispo de Fiesuli en Florencia. Antonio Fernandes Ximenes, que oy biue en Lisboa, fabricó en ella vn seminario en que tiene gastados 30 V ducados, para los Jrlandeses que echados de sus tierras, por los herejes, Vienen a España a instituersse en la féé, y bueluen a morir martires por ella como cada dia se Vee. la descendencia desta familia és de los buenos Ximenes de Aragon y Nauarra y oi dia se tratan estos con los de Portugal, y Vzan todos las mismas armas de tienpos inmemoriales. la fortaleca y constancia en la fee de toda esta familia es tal, que nó solamente nó se hallarà, que algun ascendiente ó, descendiente de Duarte Ximenes, fuesse conuencido ni acusado de heresia, o en algun crimen capital, contra la Pat[ria] y su Rey. Mas lo que más és de notar, por el año passado de 600 concediendosse por su santidad à Jnstancia de la gente de la nacion hebrea de Portugal // [fl. 195] perdon de las culpas de heresia en que muchos hauian incurrido; ellos por nó blandear vn punto de la enteresa que se deue; opponiendosse a tanta gente, tan poderosa, en materia que les importaua, nó solo las haciendas, sinó las Vidas; presentaron sus protestas en el santo tribunal de la Jnquisicion, declarando en ellas, que en ninguna manera querian participar de la dicha indulgencia, sino estar en todo, y por todo por los estilos y estatutos del santo officio: De todo lo qual el señor Jnquisidor general de aquel Reyno les mando dar certificaciones, que presentadas al señor Rey Don Phelippe 3º e informado de la fineça con que hauian procedido; mandó por su real cedula que todos los de la dicha familia de los Ximenes, fuessen essentos y libres, nó solo por entonces, mas in perpetuum, de las derramas y contribuciones que por aquella, ô semejantes causas se hiciese por la dicha gente de la nacion hebrea, como se hico, y parece de la cedula Real: siendo pues (comó es) Verdad infalible que esta familia de los Ximenez nó entra ni sale con la dicha gente en sus pretensiones; antes està tan apartada della con proceder y meritos tan euidentes y calificados; parece que en todo rigor se le deue la esencion total, y declaracion de que son Jllustres, de sangre y solar antigua, calificados, y habiles para todas las honrras, officios, y beneficios ecclesiasticos y seculares, y que assi lo deue s. Magestad declarar, conformandosse con el summo Pontifice Sixto V.º que tantos años antes le hico la misma merced que es solamente la que oy se pretende; y la que su Magestad que està en gloria tuuo intencion de hacerles, quando mandó proponer la materia en el Consejo de Estado, y en conformidad dello passar decreto para el de Portugal, con cuyo acuerdo se sacaron informaciones de las Jnquisiciones de Portugal, creciendo su credito al passo

SON DIVENTATI MIEI SUDDITI

113

que el examen se hacia con diligencias mas rigurosas. Y por parecer que la peticion era Vaga E indifinita, sin limite a personas ciertas, y que por essa causa no deuia concedersse sin distincion, se dexó de hacer la merced. El qual inconueniente puede cesar oy limitandole su Magestad a los descendientes de Duarte Ximenes por Via de Varon que es la cepa de que descienden los de Portugal que por todos son ocho personas solamente bien conocidas, y que por sus partes merecen que su Magestad les haga la merced que piden.



Lihat lebih banyak...

Comentarios

Copyright © 2017 DATOSPDF Inc.