Sobrevivência dos vaga-lumes - Georges Didi-Huberman

June 24, 2017 | Autor: Roberta Stubs | Categoría: Art History, Visual Arts, História da arte, História, teoria e crítica da arte
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Descripción

Georges Didi-Huberman

SOBREVIVÊNCIA DOS VAGA-LUMES

( E D IT O R A u fm g )

Georges Didi-Huberman. Filósofo e historiador da arte, é professor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris. Suas obras abordam, sob perspectivas teóricas contem­ porâneas, a história e a crítica da arte e da imagem. Entre seus trabalhos mais importantes, destacam-se Lapeinture incarnée (1985), Devant l'image: question posée aux fins d'une histoire de l'art (1990), Ce que nous voyons, ce qui nous regarde (1997), Devant le temps: histoire de l'art et anachronisme des images (2000), L'image ouverte: motifs de 1'incarnacion dans les arts visuels (2007).

U N IV E R S ID A D E F E D E R A L D E M IN A S G E R A IS R

Clélio C am p o lin a D iniz

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V i c e - R e i t o r a R o ck san e de C arvalh o N orton E D IT O R A U F M G D

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R ob erto A lexan d re d o C arm o Said

C O N S E L H O E D IT O R IA L W ander M elo M ira n d a ( p r e s i d e n t e ) Elavio de L em os C arsalad e H eloisa M aria M u rgel Starlin g M árcio G o m es Soares M aria d a s G raças S an ta B árb ara M aria H elena D am ascen o e Silva M egale Paulo Sérgio L acerd a B eirão R oberto A lexan d re d o C arm o Said

Georges Didi-Huberman

Vera Casa Nova Márcia Arbex Tradução

Consuelo Salomé Revisão

Belo Horizonte Editora UFMG 2011

© 2009, É dition s de M inuit. Título origin al: Survivan ce des lucioles CO 2011, E ditora U F M G Este livro o u p arte dele n ão p o d e ser rep rod u zid o p o r qu alq u er m eio sem au to rização escrita do Editor.

D 5 56s

D idi-H u berm an , G eorges. Sobrevivência d o s vaga-Ium es / G eorges D idi-H uberm an ; Vera C asa N ova, M árcia Arbex, tradução ; C on suelo Salom é, revisão. Belo H orizonte : E d ito ra U F M G , 2011. 160 p . : il. - (Babel) ISB N : 978-85-7041-889-0 T rad u ção de: Su rvivan ce des lucioles. Inclui bibliografia. 1. L in gu agem - Filosofia.

2. So cio lo gia. 3. Literatura francesa.

I. C a sa N ova, Vera. II. A rbex, M árcia.

III. Título.

IV. Série.

C D D : 844.914 C D U : 840-4

E lab orad a p ela D IT T I - Setor de Tratam ento d a In form ação B iblioteca U n iversitária da U F M G

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E D IT O R A U F M G Av. A ntôn io C arlo s, 6.627

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A la direita d a B iblioteca C en tral j Térreo

C am p u s P am p u lh a | 31270-901 | Belo H orizon te/M G Tel.: + 55 31 3409-4650 [ Fax: + 55 31 3409-4768 w w w .editora.ufing.br | editora@ ufm g.br

La luce è sempre uguale ad altra luce. Poi variò: da luce diventò incerta alba, [...] e la speranza ebbe nuova luce. A luz é sempre igual a uma outra luz. Depois se modificou: de luz se tornou alvorada incerta, [...] e a esperança teve uma nova luz. P. P. Pasolini. A resistência e sua luz (1961).

Era 1’unico modo per sentire la vita, Vunica tinta, Funica forma: ora è finita. Sopravviviamo: ed è la confusione di una vita rinatafuori dalla ragione. Ti supplico, ah, ti supplico: non voler morire. Era o único modo de sentir a vida, a única cor, a única forma: agora acabou. Sobrevivemos: e é a confusão de uma vida renascida fora da razão. Te suplico, ah, te suplico: não queiras morrer. P. P. Pasolini. Súplica à m in ha m ãe (1962).

SUMÁRIO

i INFERNOS? Grande luz (luce) paradisíaca versus pequenas luzes (lucciole) na vala infernal dos “conselheiros pérfidos” (11). - Dante revirado de cabeça para baixo nos tempos da guerra moderna (14). - Um jovem rapaz, em 1941, descobre nos vaga-lumes os lampejos do desejo e da inocência (17). - Uma questão política: Pier Paolo Pasolini em 1975, o neofascismo e o desaparecimento dos vaga-lumes (24). - O povo, sua resistência, sua sobrevivência, destruídos por uma nova ditadura (31). - O inferno realizado? O apocalipse pasoliniano reprovado, experimentado, aprovado, sobrevalorizado hoje (38). II SOBRE VIVÊNCIAS Os vaga-lumes desapareceram todos ou eles sobrevivem apesar de tudo? A experiência poético-visual da intermitência em Denis Roche: reaparecer, redesaparecer (45). - Luzes menores:

desterritorializadas, políticas, coletivas. O desespero político e sexual de Pasolini. Não há comunidade viva sem fenomenologia de sua apresentação: o gesto luminoso dos vaga-lumes (52). - Walter Benjamin e as imagens dialéticas. Qualquer maneira de im aginar é um a m aneira de fazer política. Política das sobrevivências: Aby Warburg e Ernesto De Martino (58). III APOCALIPSES? Interrogar o contemporâneo através dos paradigm as e uma arqueologia filosófica: Giorgio Agamben com Pasolini (67). - A “destruição da experiência”: apocalipse, luto da infância. Entre destruição e redenção (72). - Crítica do tom apocalíptico por Jacques Derrida e do impensado da ressurreição por Theodor Adorno (78). - Não há, para uma teoria das sobrevivências, nem destruição radical nem redenção final. Imagem versus horizonte (84). IV POVOS Luzes do poder versus lampejos dos contrapoderes: Carl Schmitt versus Benjamin. Agamben além de toda separação (91). Totalitarismo e democracia, segundo Agamben, via Schmitt e Guy Debord: da aclamação à opinião pública. Os povos reduzidos à unificação e à negatividade (96). - A arqueologia filosófica, segundo Benjamin, exige a “rítmica” dos golpes e contragolpes, aclamações e revoluções (106).

V DESTRUIÇÕES? Imagem versus horizonte: o lam pejo dialético “transpõe o horizonte” de m aneira intermitente (115). - Ressurgências da imagem versus horizontes sem recurso. Declínio não é desaparecimento. Declinação, incidência, bifurcação (119). - O inestimável versus a desvalorização. A temporalidade impura do desejo versus os tempos sem recursos da destruição e da redenção. Fazer aparecerem as palavras, as imagens (126). VI IMAGENS Fazer aparecerem os sonhos: Charlotte Beradt ou o saber-vaga-lume. Testemunho e previsão. A autoridade do moribundo (133). - Recuos na escuridão, lampejos. Georges Bataille na guerra: fissura, erotismo, experiência interior. Elucidação política e não saber (139). - O indestrutível, a comunidade que resta: Maurice Blanchot. Parcelas de humanidade na “brecha entre o passado e o futuro”: Hannah Arendt e a “força diagonal” (148). Luz dos reinos versus lampejos dos povos. As imagens-vaga-lumes de Laura Waddington. Organizar o pessimismo (155).

INFERNOS?

Bem antes de fazer resplandecer, em sua escatológica glória, a grande luz (luce) do Paraíso, Dante quis reservar, no vigésimo sexto canto do Inferno, um destino discreto, embora significativo, à “pequena luz” (lucciola) dos piri­ lampos, dos vaga-lumes. O poeta observa, então, a oitava vala infernal: vala política, caso existisse, visto que aí se reconhecem alguns notáveis de Florença reunidos com outros, sob a mesma condenação de “conselheiros pérfidos”. O espaço todo é salpicado - constelado, infestado - de pequenas chamas que parecem vaga-lum es, exatamente como aqueles que as pessoas do campo, nas belas noites de verão, veem esvoaçar, aqui e ali, ao acaso de seu esplendor, discreto, passante, tremeluzente: Tal o campônio vê, que ao monte ascende, na estação em que o sol a tudo aclara e mais na terra seu calor desprende

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- quando chega o mosquito, e a mosca para pirilampos a flux pela baixada, luzindo sobre as vinhas e a seara - assim, por chamas tais iluminada, jazia a nossos pés a vala oitava, mal à vista a tivemos devassada.'

No Paraíso, a grande luz se expandirá por toda parte em sublimes círculos concêntricos: será uma luz de cosm os e de dilatação gloriosa. Aqui, ao contrário, os lucciole vagam fracam ente - com o se um a luz pudesse gem er - num a espécie de bolsão sombrio, esse bolsão de pecados feito para que “cada chama contivesse um pecador”2 (ogne fiam m a un peccatore invola). Aqui a grande luz não resplandece, há apen as um a treva onde crepitam tim idam en te os “conselheiros pérfidos”, os políticos desonestos. Em seus 1

A L I G H I E R I , D a n te . A d iv in a co m éd ia. T rad . C ristia n o M a c h a d o . S ã o P au lo : Itatiaia, 1979. v. 1. p. 3 2 3 -3 2 4 . A c ita ç ã o d o a u to r fo i feita a p a r tir d a e d iç ã o fr a n c e sa : A L I G H I E R I , D an te. L a d ivin e com édie. L’ en fer. T rad . J. R isse t. P aris: F la m m a r io n , 1985 (éd . 1 9 9 2 ). X X V I , 2 5 -3 1 . p. 2 3 7 -2 3 9 , c u ja tr a d u ç ã o n o ss a p a r a o p o r tu g u ê s é: “C o m o o c a m p o n ê s d e s c a n s a n d o so b r e a e n c o s ta ,/ d u ­ ran te o te m p o em q u e a to c h a d o m u n d o / n o s m o s tr a su a fac e m e n o s te m p o o c u lta ,/ n a h o r a e m q u e a m o s c a d á lu g a r a o m o s q u ito ,/ vê v a g a - lu m e s n o v ale ( vede lucciole g iú p e r la v a lle a )/ ali o n d e d e d ia ele v in d im a e tr a b a lh a ,/ a s s im re sp le n d e c ia a o ita v a v a la ,/ d e t a n ta s c h a m a s (d i ta n te fia m m e tu tta risp le n d e a ) c o m o e u v i [...].” (N .T .)

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A L IG H IE R I, D an te. L a divine com édie. L’enfer. T rad . J. R isset. P aris: F la m m a rio n , 1992. X X V I, 42. p. 324. N a trad u çã o d e C ristia n o M a c h a d o p a r a o p o rtu g u ê s: “ [...] eu a s v ia m o v er-se, alg o in trig a d o ,/ ju lg a n d o e sta r u m a a lm a e m c a d a ch am a.”

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célebres desenhos para A divina comédia, Sandro Botticelli incluiu minúsculos rostos, que fazem caretas ou imploram nas débeis volutas das labaredas infernais. M as o artista, ao renunciar a m ergulhar tudo isso nas trevas, fracassa ao representar os lucciole tal qual Dante nos descreveu: o branco do velino não é mais que um fundo neutro de onde os “vaga-lum es” se destacarão em negros, em secos, em absurdos e imóveis contornos.3 Tal seria, em todo caso, a “glória” miserável dos conde­ nados: não a grande claridade das alegrias celestiais bem merecidas, m as o fraco lam pejo doloroso dos erros que se arrastam sob uma acusação e um castigo sem fim. Ao contrário das falenas que se consom em no instante extá­ tico de seu contato com a chama, os pirilam pos do inferno são pobres “m oscas-de-fogo” - fireflies, como se chamam em língua inglesa os nossos vaga-lumes - que sofrem em seu próprio corpo um a eterna e m esquinha queimadura. Plínio, o Antigo, inquietou-se, outrora, com um a espécie de mosca chamada pyrallis ou pyrotocon, que só podia voar no fogo: “Enquanto ela está no fogo, ela vive; quando seu voo a afasta dele um pouco mais, ela morre.”4 Assim, a vida dos

'

C f. A L T C A P P E N B E R G , H .-T . S ch u lz e . S a n d ro B o tticelli: p itto re d e lia D iv in e C o m m e d ia . R o m e-M ilan : S c u d e rie P ap ali al Q u irin a le - S k ira E d ito re, 2 0 0 0 . v. II. p. 108-109.

1 P L ÍN I O , o A n tig o . H isto ire n aturelle. T rad . A . E.rn out e R . P é p in . P aris: L es B e lle s L e ttre s, 1947. X I, 4 7 . p . 66.

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vaga-lumes parecerá estranha e inquietante, como se fosse feita da m atéria sobrevivente - luminescente, mas pálida e fraca, m uitas vezes esverdeada - dos fantasmas. Fogos enfraquecidos ou almas errantes. Não nos espantemos de que o voo incerto dos vaga-lumes, à noite, faça suspeitar de algo com o um a reunião de espectros em miniatura, seres bizarros com mais, ou menos, boas intenções.5

A história que gostaria de esboçar - a questão que gos­ taria de construir - começa em Bolonha, nos dois últimos dias de janeiro e nos primeiros dias de fevereiro de 1941. Um rapaz de dezenove anos, aluno da Faculdade de Letras, descobre, juntamente com a psicanálise freudiana e a filo­ sofia existencialista, toda a poesia moderna, de Hõlderlin a Giuseppe Ungaretti e Eugênio Montale. Ele não se esquece de Dante, naturalmente, mas relê A divina comédia com novo olhar: m enos pela perfeição composicional do grande poem a que por sua labiríntica variedade; menos pela beleza e pela unidade de sua língua que pela exuberância de suas formas de expressão, de'seus apelos aos dialetos, aos jar­ gões, aos jogos de palavras, às bifurcações; m enos por sua

5

C f. e s p e c ia lm e n te L E M O N I E R , R L e s a b b a t des lucioles: s o r c e lle r ie , ch am a n is m e et im a g in a ir e c a n n ib a le en N o u v e lle - G u in é e . P a r is: S to c k , 2 0 0 6 . p .1 8 5 -2 0 1 .

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imaginação das entidades celestes que por sua descrição das coisas terrestres e paixões humanas. Menos, então, por sua grande luce que por seus inumeráveis e erráticos lucciole. Esse estudante é Pier Paolo Pasolini. Se, naquele m o­ mento, ele revisita Dante com um a leitura, um a releitura que nunca acabará, é em grande parte graças à descoberta dessa história da m imese literária que Erich Auerbach problematizou em seu ensaio magistral sobre “Dante poète du monde terrestre” [Dante, poeta do m undo terrestre].6 Se ele reconfigura a humana Commedia para além do ensino escolar e do nacionalismo toscano, isso também se deve às “fulgurações figurativas”, como ele diria mais tarde, ex­ perimentadas nos sem inários de Roberto Longhi sobre a pintura dos “primitivos” florentinos, de Giotto a Masaccio e M asolino. Nesses sem inários, o grande historiador da arte confronta toda a visão humanista de M asaccio, por exemplo, o uso que faz das sombras, às reflexões de Dante sobre a sombra humana e a luz divina.7 M as Longhi, nesse 6

A U E R B A C H , E ric h (1 9 2 9 ). D a n te p o è te d u m o n d e te rr e str e . T rad . D . M eu r. I n : ________. É c rits s u r D a n te . P a ris: M a c u la , 19 9 8 . p. 3 3 -1 8 9 . Id ., (1 9 4 6 ). M im ésis: la re p r é se n ta tio n d e la ré a lité d a n s la litté ra tu re o c c id e n ta le . T rad . C. H e im . P a ris: G a llim a r d , 1 9 6 8 (éd . 1 9 9 2 ). p. 1 8 3 -2 1 2 .

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L O N G H I , R . G li a f f r e s c h i d e i C a r m in e , M a s a c c io e D a n t e ( 1 9 4 9 ) . In : ________. O p ere co m p lete, V I I I - 1. F a t t i d i M a s o l in o e d i M a s a c c io e a ltr i s t u d i s u l Q u a tt r o c e n t o , 1 9 1 0 - 1 9 6 7 . F lo r e n c e : S a n s o n i, 1 9 7 5 . p . 6 7 -7 0 . C f. P A S O L I N I , P. P. Q u e s t - c e q u u n m a itr e ? ( 1 9 7 0 - 1 9 7 1 ) ; S u r R o b e r t o L o n g h i (1 9 7 4 ). T ra d . H . Jo u b e r l - l a u r e n c in . I n : ________. É c r its s u r la p e in t u r e . P a ris: É d it io n s C a r r é , 1 9 97. p . 7 7 -8 6 .

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período de fascism o triunfante, não deixa de entreter os estudantes das sombras e das luzes bem mais contem porâ­ neas - e m ais políticas - de um Jean Renoir em La grande illusion [A grande ilusão] ou de um Charlie Chaplin em Le dictateur [O ditador]. À parte isso, o jovem Pier Paolo joga como attaccante na equipe de futebol da universidade que, naquele ano, sairá vitoriosa do campeonato interfaculdades.8 À parte isso - m as bem próxim a

a guerra irrompe

com violência. Os ditadores discutem: em 19 de janeiro de 1941, Benito Mussolini encontra Hitler em Berghof e, em seguida, em 12 de fevereiro, tenta convencer o general Franco a participar ativamente do conflito mundial. Em 24 de janeiro, as tropas britânicas começam sua reconquista da África oriental dominada pelos italianos: eles ocupam Benghazi em 6 de fevereiro, enquanto o exército da França Livre empreende sua campanha na Líbia. Em 8 de fevereiro, o porto de Gênova é bombardeado pela frota inglesa. Assim foram os dias e as noites desse final de janeiro de 1941. Im a­ ginemos, nesse contexto, algo como uma inversão completa das relações entre luce e lucciole. Haveria, então, de um lado, os projetores da propaganda aureolando o ditador fascista com um a luz ofuscante. M as tam bém os potentes proje­ tores da D C A 9 perseguindo o inimigo nas trevas do céu, as

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C f. N A L D I N I , N . C ro n o lo g ia . In: P A S O L IN I, P. P. Lettere, 1 9 4 0 -1 9 5 4 . T u rin :

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D C A : D é fe n se c o n tre a é ro n e fs [D e fe sa c o n tra a e ro n a v e s]. (N .T .)

F in a u d i, 1986. p. X X X - X X X I I .

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“perseguições” - como se diz no teatro - das sentinelas atrás dos inimigos na escuridão do campo. É um tempo em que os “conselheiros pérfidos” estão em plena glória luminosa, enquanto os resistentes de todos os tipos, ativos ou “passi­ vos”, se transformam em vaga-lumes fugidios tentando se fazer tão discretos quanto possível, continuando ao mesmo tempo a emitir seus sinais. O universo dantesco, dessa forma, inverteu-se: é o inferno que, a partir de então, é exposto com seus políticos desonestos, superexpostos, gloriosos. Quanto aos lucciole, eles tentam escapar como podem à ameaça, à condenação que a partir de então atinge sua existência.

É nesse contexto que Pasolini escreve um a carta a seu amigo de adolescência, Franco Farolfi, entre 31 de janeiro e 1° de fevereiro de 1941. Pequenas histórias na grande história. H istórias de corpos e de desejos, histórias de almas e de dúvidas íntimas durante a grande derrocada, a grande tormenta do século. “Sou formidavelmente idiota (.superbamente idiota), como o são os gestos do ganhador de loteria; minha dor de barriga começa enfim a passar, e sinto que me torno presa da euforia10 (mi sento perciò in

10 P A S O L IN I, P. P. Lettere, 1 9 4 0 -1 9 5 4 . T u rin : E in a u d i, 19 8 6 . p . 36. T rad . R. de C e c c a ty ._______ . C o rre sp o n d a n c e gén érale, 1 9 4 0 -1 9 7 5 . P aris: G a llim a r d , 1991. p. 37.

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preáa a á euforia)’’ Haveria, então, tanto a presa - em italiano preda; diz-se, por exemplo, preda di guerra para se falar dos espólios de guerra -, quanto a euforia. Haveria, desde então, essa tenaz onde estão dolorosam ente im bricados o desejo e a lei, a transgressão e a culpabilidade, o prazer conquistado e a angústia recebida: pequenas luzes da vida, com suas som bras pesadas e suas penas como inevitáveis corolários. É o que indicam as frases seguintes de Pasolini em sua carta ao amigo. Ao evocar, como jovem humanista, o que ele chama os parténai - da palavra grega parthénos, que indica o estado de virgindade -, ele escreve: Quanto aos parténai, eu passo horas de langor e devaneio muito vagos, que alterno com esforços mesquinhos, até mesmo estúpidos, de ação, e com períodos de extrema indiferença: há três dias, Paria e eu fomos até os recantos de alegre prostituição (alie laterbre di un allegro meretrício), onde gordas mammas e o hálito de quadragenárias desnudas nos fizeram pensar com nostalgia nos riachos da inocente infância {ai lidi deWinnocente infanzia). Depois mijamos com desespero.11

Palavras de um jovem em plena treva, buscando seu ca­ minho através da selva oscura e dos lampejos moventes do desejo (lucciola, em italiano popular, significa justamente a

11 Ib id ., p. 36. T rad . cit., p. 37.

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prostituta; m as tam bém essa misteriosa presença feminina nas antigas salas de cinema que Pasolini freqüentava muito, evidentemente: a “lanterninha” que, no escuro, munida de sua pequena lanterna-tocha, guiava o espectador entre as fileiras de poltronas). Entre a euforia e a “presa”, entre o prazer e o erro, os sonhos e o desespero, esse rapaz espera que apareça um a claridade, ao menos o vestígio de uma lucciola, senão o reino da luce. Ora, é exatamente isso que acontece (justificando até mesmo seu relato). O amor e a amizade, paixões absolutamente ligadas, para Pasolini, se encarnam de repente na noite sob a form a de um a nuvem de vaga-lumes: A amizade é uma coisa belíssima. Na noite da qual te falo, jan­ tamos em Paderno e, em seguida, na escuridão sem lua, subimos até Pievo dei Pino, vimos uma quantidade imensa de vaga-lumes (abbiamo visto una quantità immensa di lucciole), que formavam pequenos bosques de fogo nos bosques de arbustos, e nós os inve­ jávamos porque eles se amavam, porque se procuravam em seus voos amorosos e suas luzes (perché si amavano, perché si cercavano con amorosi voli e luci), enquanto nós estávamos secos e éramos apenas machos numa vagabundagem artificial. Pensei então no quanto é bela a amizade, e as reuniões dos rapazes de vinte anos, que riem com suas másculas vozes inocentes e não se preocupam com o mundo a sua volta, continuam vivendo, preenchendo a noite com seus gritos (riempiendo la notte delle loro

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grida). Sua virilidade é potencial. Tudo neles se transforma em risos, em gargalhadas. Sua impetuosidade viril nunca fica mais evidente e inquietante do que quando eles parecem ter voltado a ser crianças inocentes (come quando sembrano ridiventatifanciulli innocenti), porque em seus corpos permanece sempre presente sua juventude total, alegre.12

Eis então os lucciole prom ovidos à categoria de im pes­ soais corpos líricos por essa jo i dam or da qual, outrora, falavam os trovadores. M ergu lh ados na gran de noite culpada, os homens irradiam às vezes seus desejos, seus gritos de alegria, seus risos, como lampejos de inocência. Há, sem dúvida, na situação descrita por Pasolini, um a espécie de dilaceramento relativo ao desejo heterossexual (pois os vaga-lumes são machos e fêmeas, se iluminam para chamar e cham am para copular, para se reproduzir). M as o essencial na comparação estabelecida entre os lampejos do desejo animal e as gargalhadas ou os gritos da amizade humana reside nessa alegria inocente e poderosa que apa­ rece como um a alternativa aos tempos muito som brios ou muito iluminados do fascismo triunfante. Pasolini até indica, muito precisamente, que a arte e a poesia valem também como esses lampejos, ao mesmo tempo eróticos, alegres e

12 P A S O L IN I, P. P. Lettere, 1 940-1954. O p. cit., p . 36. T rad . R. d e C e c c a ty ._______ . C o rre sp o n d an cegén érale, 1 940-1975. P aris: G a llim a rd , 1991. T rad . cit., p. 3 7-38.

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inventivos. “ [É a m esm a coisa] quando falam de Arte ou de Poesia” diz ele a respeito desses jovens ilum inados e de sua “impetuosidade viril” no meio da noite. “Eu vi (e vejo a mim m esmo também) jovens falarem de Cézanne, e tínhamos a impressão de que falavam de suas aventuras amorosas, com os olhos brilhantes e perturbados.” 13 A carta de Pasolini termina e culmina com o contraste violento entre essa exceção da alegria inocente, que recebe ou irradia a luz do desejo, e a regra de uma realidade feita de culpa, mundo de terror concretizado aqui pelo raio in­ quisidor de dois projetores e o latido assustador de cães de guarda na noite: Assim estávamos, naquela noite; escalamos em seguida os flancos das colinas, entre os arbustos que estavam mortos, e sua morte parecia viva; atravessamos pomares e bosques de cerejeiras carregadas de ginjas e chegamos ao cume. De lá, viam-se claramen­ te dois projetores muito distantes, muito ferozes, olhos mecânicos aos quais era impossível escapar (due riflettori lontanissimi eferoci, occhi meccanici a cui non era dato sfuggire), e então fomos tomados pelo terror de sermos descobertos; enquanto os cães latiam e nós nos sentíamos culpados (e ci parve dessere colpevoli), fugimos deitados, escorregando pela crista da colina. Encontramos então uma outra clareira coberta de relva, em círculo tão reduzido que 13 Ib id ., p. 37. T rad . cit., p. 38.

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apenas seis pinheiros dispostos a pouca distância uns dos outros bastavam para cercá-la; nós nos deitamos lá, enrolados em nossos cobertores e, conversando agradavelmente, ouvíamos o vento soprar com força no bosque, e não sabíamos onde nos encontrá­ vamos nem que lugares nos cercavam. Aos primeiros clarões do dia (que são uma coisa indizivelmente bela), bebemos as últimas gotas de vinho de nossas garrafas. O sol parecia uma pérola verde. Eu me despi e dancei em honra da luz (io mi sono denudato e ho danzato in onore delia luce); eu estava completamente branco (ero tutto bianco), enquanto os outros, envolvidos em seus cobertores como peões, tremiam ao vento.]4

Poder-se-ia dizer que, nessa situação extrema, Paso­ lini se desnudava como uma larva, afirmando ao mesmo tempo a hum ildade animal - próxim a do solo, da terra, da vegetação - e a beleza de seu corpo jovem. Mas, “todo branco” na claridade do sol que nascia, ele também dançava como um pirilam po,'5como um vaga-lume ou um a “pérola verde”. Clarão errático, certamente, m as clarão vivo, chama de desejo e de poesia encarnada. Ora, toda a obra literária,

14 P A S O L IN I, P. P. L cttere, 1 9 4 0 -1 9 5 4 . T rad . R . d e C eccaty .

. C o rre spo n -

d an ce gén érale, 1 9 4 0 -1 9 7 5 . P aris: G a llim a rd , 1991. p. 3 7 -3 8 . T rad . cit., p. 38. 15 O a u to r u tiliz a a q u i u m sin ô n im o d e v a g a - lu m e , ver lu isa n t, q u e, se tr a d u z id o lite ralm e n te , sig n ific a ria “la r v a b rilh a n te ”, p a r a re fo rç a r a c o m p a r a ç ã o in ic ial d o c o r p o d e s n u d o t o d o b r a n c o c o m o d e u m a la r v a ( co m m e un v er). (N .T .)

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cinematográfica e até m esm o política de Pasolini parece de fato atravessada por tais momentos de exceção em que os seres humanos se tornam vaga-lumes - seres luminescentes, dançantes, erráticos, intocáveis e resistentes enquanto tais - sob nosso olhar maravilhado. Os exemplos são inu­ meráveis: basta pensar na dança sem sentido de Ninetto Davoli em La sequenza dei fiore di carta [A seqüência da flor de papel], de 1968, onde a graça lum inosa do rapaz se destaca sobre o fundo de um a rua muito movimentada de Roma, e sobretudo a partir da obsessão pelas imagens mais negras da história: bom bardeios entrecortados pelos pro­ jetores da DCA, visões “gloriosas” de políticos desonestos, em contradição com os ossuários som brios da guerra. O homem-vaga-lume acabará, como se sabe, por se prostrar sob um a absurda sentença divina: A inocência é um erro, a inocência é uma íalta, compreendes? E os inocentes serão condenados, pois não têm mais o direito de sê-lo (e gli innocenti saranno condannati, perché non hanno piü il diritto di esserlo). Eu não posso perdoar aquele que atravessa com o olhar feliz do inocente as injustiças e as guerras, os horrores e o sangue. Há milhares de inocentes como tu através do mundo que preferem se apagar da história ao invés de perderem sua inocência. E eu devo fazê-los morrer, mesmo sabendo que eles não podem

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agir de outra forma, devo amaldiçoá-los como a figueira e fazê-los morrer, morrer, morrer. 16

Sobre essa condenação celeste, o gentil Ninetto não compreende absolutamente nada. Ele perguntará apenas, com um ar m ais inocente do que nunca: “O quê?” (che?), antes de cair num a atitude que retoma exatamente a de um cadáver film ado durante a guerra do Vietnã. O vaga-lume está morto, perdeu seus gestos e sua luz na história política de nosso contemporâneo sombrio, que condena à morte sua inocência.

A questão dos vaga-lumes seria, então, antes de tudo, política e histórica. Jean-Paul Curnier, que não deixou de evocar a carta de 1941, diz, justamente, num artigo sobre a política pasoliniana, que a beleza inocente dos jovens de Bolonha não denota em nada “um a simples questão de estética e de forma do discurso, (um a vez que) o que está em jogo ali é capital. Trata-se de extrair o pensamento p o ­ lítico de sua ganga discursiva” e de atingir, dessa maneira, esse lugar crucial onde a política se encarnaria nos corpos,

P A S O L IN I, P. P. L a se q u e n z a dei fio re d i c a r ta (1 9 6 7 - 1 9 6 9 ). In : S IT I, W .; Z A B A G L I, K (é d .). P er il cin e m a I. M ilan : A r n o ld o M o n d a d o r i, 2 0 0 1 . p. 1.095.

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nos gestos e nos desejos de cada um .17 Naturalmente - não somente porque Pasolini repetiu durante anos, mas ainda porque nós podem os experimentá-lo a cada dia -, a dança dos vaga-lumes, esse momento de graça que resiste ao mundo do terror, é o que existe de mais fugaz, de mais frágil. Mas Pasolini, seguido nisso por inúmeros de seus comentadores, foi bem mais longe: ele praticamente teorizou ou afirmou, como uma tese histórica, o desaparecimento dos vaga-lumes. Em I o de fevereiro de 1975 - ou seja, trinta e quatro anos, contados dia a dia, ou melhor, noite por noite, após sua bela carta sobre a aparição dos vaga-lumes, e nove me­ ses exatamente antes de ser selvagemente assassinado, na m adrugada, num a praia de Ostia -, Pasolini publicava no Corriere delia Sera um artigo sobre a situação política de seu tempo. O texto se intitula “O vazio do poder na Itália” (II vuoto delpotere in Italia), mas será retomado nos Scritti corsari [Escritos corsários] com o título que se tornou famo­ so de “O artigo dos vaga-lumes” 18 (Uarticolo delle lucciole). Ora, trata-se, sobretudo, se posso dizer, do artigo da morte dos vaga-lumes. Trata-se de um lamento fúnebre sobre o momento em que, na Itália, os vaga-lumes desapareceram,

17 C U R N I E R , J.-R L a d isp a r itio n d e s lu c io le s. L ig n e s, n . 18, p. 7 2 , 2 0 0 5 . 18 P A S O L IN I, R P. L a r tic o lo d e lle lu c c io le (1 9 7 5 ). In:

. S a g g i su lla p o litic a

e su lla so cietà. W. S iti et S. D e L a u d e (éd .). M ilan : A r n o ld o M o n d a d o r i, 1999. p. 4 0 4 -4 1 1 . T rad . P. G u ilh o n . L a rtic le d e s lu c io le s. In: P A S O L IN I, P. P. É crits corsaires. P aris: F la m m a r io n , 1976 (éd . 2 0 0 5 ), p. 18 0 -1 8 9 .

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esses sinais hum anos da inocência aniquilados pela noite ou pela luz “feroz” dos projetores - do fascismo triunfante. A tese é a seguinte: acredita-se erroneamente que o fascism o dos anos de 1930 e 1940 foi vencido. M ussolini foi sem dúvida executado e dependurado pelos pés na praça Loreto de Milão, em uma encenação “infame” característica dos m ais antigos costumes políticos italianos.19M as, sobre as ruínas desse fascism o está atrelado o próprio fascism o, um novo terror ainda mais profundo, m ais devastador aos olhos de Pasolini. De um lado, “o regime dem ocrata-cristão era ainda a continuação pura e simples do regime fascista”; por outro lado, por volta da m etade dos anos de 1960, aconteceu “algo” que deu lugar à emergência de um “fascism o radicalm ente, totalm ente e imprevisívelmente novo”.20 A prim eira fase do processo foi m arcada pela “violência policial (e) o desprezo pela constituição”, tudo isso m ergulhado num “atroz, estúpido e repressivo conform ism o de Estado” contra o qual “os intelectuais e

19 S o b re a t ra d iç ã o d a s “ im a g e n s in fa m e s”, cf. O R T A L L I, G . L a p ittu r a in fam an te nei secoli X III-X V I. R o m e: S o c ie tà E d ito r ia le Jo u v en ce, 1979. E D G E R T O N JR ., S. Y. P ictu res a n d P u n ish m en t. A rt a n d c r im in a l p ro se c u tio n d u r in g th e F lo re n tin e

R c n a issa n c e .

Ith a c a -L o n d re s:

C o r n e ll U n iv e rsity P re ss,

1985.

P a so lin i se d e té m , e m L a ra b b ia , e m u m su p líc io d e sse gên ero . 20 P A S O L IN I, P P. L a r tic o lo d elle lu c c io le (1 9 7 5 ). In:

. S a g g i s u lla p o litic a

e su lla so c ie tà . W. S iti et S. D e L a u d e (é d .). M ila n : A r n o ld o M o n d a d o r i, 1 999. p. 4 0 4 . T rad . P. G u ilh o n . L a rtic le d e s lu c io le s. I n : _______ . É c rits co rsaires. P aris: F la m m a r io n , 1976 (éd . 2 0 0 5 ). p. 181.

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os opositores de então nutriam esperanças insensatas” de derrota política.21 A segunda fase desse processo histórico começou, segun­ do Pasolini, no m esmo momento em que “os intelectuais mais avançados e os mais críticos não perceberam que ‘os vaga-lumes estavam desaparecendo’ (non si erano accorti che ‘le lucciole stavano scomparendo’)”.22 Há, nas palavras que Pasolini então reúne, toda a violência do polêmico - e m esmo provocador, como se costuma dizer a seu respeito - associada, montada com toda a doçura do poeta. O polê­ mico não hesita em falar de “genocídio”, autorizando-se na m esm a ocasião a fazer um a referência a Karl M arx sobre o esmagamento do proletariado pela burguesia.23 Quanto ao poeta, ele utiliza a antiga imagem, lírica e delicada - e até m esm o autobiográfica - dos vaga-lumes: No início dos anos de 1960, devido à poluição da atmosfera e, sobretudo, do campo, por causa da poluição da água (rios azuis e canais límpidos), os vaga-lumes começaram a desaparecer (sono cominciate a scomparire le lucciole). Foi um fenômeno fulminante e fulgurante (ilfenomeno è stato fulmineo efolgorante). Após alguns anos, não havia mais vaga-lumes. Hoje, essa é uma lembrança

21 Ib id ., p . 4 0 5 -4 0 6 . T rad . cit., p. 18 2 -1 8 3 . 22 Ib id ., p. 4 0 6 . T rad . cit., p. 183. 23 Ib id ., p. 4 0 7 . T rad . cit., p. 184.

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um tanto pungente do passado (sono ora un ricordo, abbastanza straziante, delpassato)

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Ao recorrer a essa imagem poético-ecológica, Pasolini não pretende de form a algum a dim inuir a violência do fenômeno por ele diagnosticado. Trata-se, antes, de um a maneira de insistir na dimensão antropológica - a seus olhos a mais profunda, a mais radical - do processo político em questão. Q uando Pasolini emprega a palavra superlativa de “genocídio”, nessa época, é para designar, mais precisamente, um movimento geral de enfraquecimento cultural que ele define por meio da expressão “genocídio cultural”. A ideia de que um fascism o mais profundo tenha suplantado as gesticulações mussolinianas aparece claramente, em 1969, nas entrevistas com Jean Duflot.25 Em seguida, num artigo de 1973 intitulado “Aculturação e aculturação”, o cineasta precisa sua ideia: ainda era possível, nos tempos do fascis­ mo histórico, resistir, ou seja, iluminar a noite com alguns lampejos de pensamento, por exemplo, relendo o Inferno de Dante, m as também descobrindo a poesia dialetal ou sim plesm ente observando a dança dos vaga-lum es em Bolonha, em 1941.

24 Ib id ., p. 4 0 5 . T rad . c i t , p. 181. 25 P A S O L IN I, P. P. E n tretie n s av ec Je a n D u flo t (1 9 6 9 ). P aris: É d itio n s G u te n b e rg , 2 0 07. p. 1 7 3 -1 8 3 ( D u n fa sc ism e à la u tr e ).

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O fascismo propunha um modelo, reacionário e monumental, mas que permanecia letra morta. As diferentes culturas particu­ lares (camponeses, subproletariados, operários) continuavam imperturbavelmente identificando-se com seus modelos, uma vez que a repressão se limitava a obter sua adesão por palavras. Hoje em dia, ao contrário, a adesão aos modelos impostos pelo centro é total e incondicional. Renegam-se os verdadeiros modelos culturais. A abjuração foi cumprida.26

Em 1974, Pasolini desenvolverá amplam ente seu tema do “genocídio cultural”. O “verdadeiro fascism o”, diz ele, é aquele que tem por alvo os valores, as alm as, as lingua­ gens, os gestos, os corpos do povo.27 É aquele que “conduz, sem carrascos nem execuções em m assa, à supressão de grandes porções da própria sociedade”, e é por isso que é preciso chamar de genocídio “essa assim ilação (total) ao m odo e à qualidade de vida da burguesia”.28 Em 1975, perto de escrever seu texto sobre o desaparecim ento dos vaga-lum es, o cineasta dedicar-se-á ao tema - trágico e apocalíptico - de um desaparecim ento do hum ano no coração da sociedade atual: “Faço simplesmente questão 2fi Id ., A c c u ltu ra tio n et a c c u ltu r a tio n (1 9 7 4 ). T rad . P. G u ilh o n . I n : _______ . É crits co rsaires. p. 49. 27 P A S O L I N I , P P. L e v é r it a b le fa s c is m e ( 1 9 7 4 ) . I n : ________ . É c r its c o rsa ire s. p. 7 6 -8 2 . 28 Id ., L e g é n o c id e (1 9 7 4 ). Ibid., p . 261.

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de que tu olhes em torno de ti e tomes consciência da tra­ gédia. E que tragédia é esta? A tragédia é que não existem mais seres humanos; só se veem singulares engenhocas que se lançam um as contra as outras.”29 É preciso então compreender que o improvável e m inús­ culo esplendor dos vaga-lumes, aos olhos de Pasolini - esses olhos que sabiam tão bem contemplar um rosto ou deixar o gesto perfeito se desdobrar no corpo de seus amigos, de seus atores -, não metaforiza nada mais do que a hum ani­ dade reduzida a sua mais simples potência de nos acenar na noite. Veria Pasolini, à época, o meio contemporâneo a seu redor, como um a noite que teria definitivamente devorado, assujeitado ou reduzido as diferenças que formam, na escu­ ridão, os movimentos lum inosos dos vaga-lumes em busca do amor? Creio que esta última imagem não seja ainda a melhor. Não foi na noite que os vaga-lumes desapareceram, com efeito. Quando a noite é mais profunda, som os capazes de captar o mínimo clarão, e é a própria expiração da luz que nos é ainda mais visível em seu rastro, ainda que tênue. Não, os vaga-lumes desapareceram na ofuscante claridade dos “ferozes” projetores: projetores dos mirantes, dos shows políticos, dos estádios de futebol, dos palcos de televisão. Quanto às “singulares engenhocas que se lançam um as 24 Id ., N o u s s o m m e s to u s en d a n g e r (1 9 7 5 ). T rad . C . M ich e l et H . Jo u b e r t-L a u re n c in . I n : ________. C on tre la télévision et au tre s textes su r la p o litiq u e e t la société. B e sa n ç o n : L e s S o lita ire s In te m p e stifs, 2 0 0 3 . p. 93.

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contra as outras”, não são mais do que os corpos superexpostos, com seus estereótipos do desejo, que se confrontam em plena luz dos sitcoms, bem distantes dos discretos, dos hesitantes, dos inocentes vaga-lumes, essas “lembranças um tanto pungentes do passado”.

O protesto de Pasolini, em seu texto sobre os vaga-lumes, m istura inextricavelmente os aspectos estéticos, políticos e até m esmo econômicos desse “vazio do poder” que ele observa na sociedade contemporânea, esse poáer superexposto do vazio e da indiferença transform ados em mercadoria. “Eu vi com meus sentidos’”, diz ele, assumindo o caráter empírico, sensível e mesmo poético de sua análi­ se, “o comportamento im posto pelo poder do consumo (il potere dei consumi) de remodelar e deformar a consciência do povo italiano, até um a irreversível degradação; o que não havia acontecido durante o fascismo fascista, período durante o qual o comportamento era totalmente dissociado da consciência”.30 O aspecto verdadeiramente trágico e dilacerante de um tal protesto se deve ao fato de Pasolini, nesses últimos anos de sua vida, se ver constrangido a abjurar o 30 P A S O L IN I, P. P L a r tic o lo d elle lu c c io le (1 9 7 5 ). I n :________. S a g g i su lla p o litica e su lla so cietà. W. S iti et S. D e L a u d e (é d .). M ila n : A r n o ld o M o n d a d o r i, 1999. p. 4 0 8 . T a m b é m e m tra d . fr a n c e sa d e P. G u ilh o n , L a rtic le d e s lu cio le s. In: P A S O L IN I, P. P. É c rits co rsa ires (1 9 7 6 ). P aris: F la m m a r io n , 2 0 0 5 . p. 185.

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que havia constituído a base de toda a sua energia poética, cinematográfica e política. A saber, seu amor ao povo que transfigura, sobretudo, suas narrativas dos anos de 1950 e todos os seus filmes dos anos de 1960. Isso passa pela recuperação poética dos dialetos regionais,3’ a colocação em primeiro plano do subproletariado nas crônicas, tais como as Histoires de la cité de Dieu [Histórias da cidade de Deus] ou L a longue route de sable [A longa estrada de areia] ,32 a figuração da m iséria suburbana em filmes como Accatone - contemporâneo, diga-se de passagem, de Damnés de la terre [Os condenados da terra] de Franz Fanon -, M am m a Roma ou La ricotta.33 Em seus ensaios teóricos, por outro lado, Pasolini quis m ostrar o poder específico das culturas populares, para

31 P A S O L IN I, P. P. L a m e g lio gio v en tü . P o e sie friu la n e (1 9 4 1 - 1 9 5 3 ). I n : _______ . Tutte le p o esie. W. Siti (é d .). M ila n : A r n o ld o M o n d a d o r i, 2 0 0 3 . 1. p. 3 -3 8 0 . Id., L a p o e s ia d ia le tta le d e i n o v e ce n to (1 9 5 2 ). I n : ________. S a g g i su lla le tte ratu ra e su lla rtc . W. Siti et S. D e L a u d e (é d .). M ila n : A r n o ld o M o n d a d o r i, 1 9 9 9 . 1. p. 7 1 3 -8 5 7 . Id ., L a p o e s ia p o p u la r e ita lia n a (1 9 5 5 ), ibid., p . 8 5 9 -9 9 3 . H O F E R , K . v o n . F u n k tio n en des D ia le k ts in d e r italien isch en G eg en w artsliteratu r: P ier P ao lo P a so lin i. M u n ic h : W ilh elm F in k V e rlag , 1971. T E O D O N I O , M . (d ir.). P a so lin i tra fr iu la n o e rom an esco. R o m e : C e n tr o S tu d i G iu se p p e G io a c h in o B e lli- E d ito r e C o lo m b o , 1997. C A D E L , F. L a lin g u a dei desid eri. II d ia le tto s e c o n d o P ie r P a o lo P a so lin i. L ec ce: P ie ro M a n n i, 2 0 02. 32 Id. H isto ire s de la cité de D ie u . N o u v e lle s c h r o n iq u e s r o m a in e s (1 9 5 0 - 1 9 6 6 ). T rad . R. d e C e c c a tty . P aris: G allim a r d , 1998. Id ., L a longue rou te de sa b le (1 9 5 9 ). T rad . A . B o u r g u ig n o n . P aris: A rlé a, 1999. 33 C f. so b re tu d o : S IC IL I A N O , E. (d ir.). P aso lin i e R o m a. R o m e -C in ise llo B a ls a m o : M u se o d i r o m a in T ra ste v e re -S ilv a n a E d ito ria le , 20 0 5 .

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reconhecer nelas uma verdadeira capacidade de resistência histórica, logo, política, em sua vocação antropológica para a sobrevivência: “Gíria, tatuagens, lei do silêncio, mímicas, estruturas do meio ambiente e todo o sistem a de relações com o poder permaneceram inalterados”, diz ele a respeito da cultura napolitana, por exemplo. “Até m esm o a época revolucionária do consum o - que, por sua vez, mudou radicalmente as relações entre cultura centralista do poder e culturas populares - só fez isolar ainda um pouco mais o universo popular napolitano.”34 Um dia em que lhe perguntaram se, enquanto artista de esquerda, ele tinha nostalgia dos tempos brechtianos ou da literatura “engajada” à francesa, Pasolini respondeu nesses term os: “Absolutamente. Tenho apenas a n ostalgia das pessoas pobres e verdadeiras que lutavam para derrubar o patrão, m as sem querer com isso tomar o seu lugar.”35 Uma maneira anarquista, ao que tudo indica, de desconectar a resistência política de uma simples organização de partido. Uma maneira de não conceber a emancipação segundo o modelo único de uma ascensão à riqueza e ao poder. Uma maneira de considerar a memória - gíria, tatuagens, mímicas próprias a um a determina população -, logo, o desejo que 34 P A S O L I N I , P. P. L e s g e n s c u ltiv e s et la c u ltu r e p o p u la ir e (1 9 7 3 ). T ra d . P. G u ilh o n . I n : ________. É c rits c o rsa ire s, op. cit., p . 2 3 5 - 2 3 6 . C f. id ., É tr o ite sse d e 1’h isto ire et im m e n sité d u m o n d e p a y s a n (1 9 7 4 ). Ib id ., p . 8 3 -8 8 . 35 Id. N o u s so m m e s to u s en d an g er. Op. cit., p. 98.

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a acompanha, como tantas potências políticas, como tantos protestos capazes de reconfigurar o futuro. Isto não aconte­ cia sem um a certa “mitificação” do povo, sem dúvida. Mas o mito - o que Pasolini chamava com frequência de a “força do passado”, e que se vê agindo em filmes como CEáipe roi [Édipo rei] ou Médée [Medeia] - fazia parte, justamente, segundo ele, da energia revolucionária própria dos m iserá­ veis, dos excluídos do jogo político corrente.36 Ora, é tudo isso que o “desaparecimento dos vaga-lumes” destina ao fracasso e ao desespero. Com a im agem dos vaga-lumes, é toda uma realidade do povo que, aos olhos de Pasolini, está prestes a desaparecer. Se “a linguagem das coisas m udou” de forma catastrófica, como diz o cineasta em suas Lettres luthériennes [Cartas luteranas], é porque, em prim eiro lugar, o “espírito popular desapareceu”.37 E poder-se-ia dizer que essa é de fato um a questão de luz, um a questão de aparição. Donde a pregnância, donde a justeza do recurso aos vaga-lumes. Pasolini, desse ponto de vista, parece estar ao mesmo tempo no rastro de Walter Benjamin

36 C f. s o b r e tu d o F E R R E R O , A . L a r ic e r c a d e i p o p o li p e r d u ti e il p r e se n te c o m e o rro re . I n : ________. II c in e m a d i P ie r P a o lo P a so lin i (1 9 7 7 ). V e n ise: M a r silio E d ito ri, 2 0 0 5 . p . 10 9 -1 5 5 . S C H É R E R , R . L a llia n c e d e la r c h a iq u e et d e la rév o lu tio n (1 9 9 9 ). I n : _______ . P a ssa g e s p a so lin ie n s. V ille n e u v e d A s c q : P r e sse s U n iv e rsita ire s d u S e p te n trio n , 2 0 0 6 . p. 17-30. 37 P A S O L IN I, P. P. L ettre s lu thériennes. P etit traité p é d a g o g iq u e (1 9 7 5 ). T rad . A . R o c c h i P u llb e rg . P aris: L e S eu il, 2 0 0 0 (é d . 2 0 0 2 ). p . 56.

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e no espaço de reflexão explorado, mais próximo a ele, por Guy Debord. Benjamin, se bem nos lembramos, havia articulado toda a sua crítica política a partir de um argumento sobre o apa­ recimento e a exposição recíprocas dos povos e dos poderes. “A crise das democracias pode ser compreendida como uma crise das condições de exposição do homem político”, escrevia ele, já em 1935, em seu famoso ensaio sobre “L’oeuvre dart à Fère de sa reproductibilité technique” [A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica] ,38 Quanto à “sociedade do espetáculo” fustigada por Guy Debord, ela passa pela unifi­ cação de um mundo que “está mergulhado indefinidamente em sua própria glória”, ainda que essa glória seja a negação e a separação generalizada entre os “homens vivos” e sua própria impossibilidade de aparecer senão sob o reino - à luz crua, cruel, feroz - da mercadoria.39 Em 1958, num texto intitulado “Néocapitalisme télévisuel” [Neocapitalismo televisual], Pasolini já havia constatado a que ponto as luzes da telinha destruíam a própria exposição e, com ela, a dignidade , dos povos: “ [A televisão] não somente deixa de contribuir



B E N J A M I N , W. L’ oeuvre d a r t à 1’ère d e s a re p ro d u c tib ilité te c h n iq u e (1 9 3 5 ). T rad . R. R o c h litz . I n : ________. CEuvres. P aris: G a llim a r d , 2 0 0 0 . p. 93. v. III. O ar tig o p o d e se r lid o e m p o r tu g u ê s n a tr a d u ç ã o d e P a u lo S é rg io R o u a n e t. In: B E N J A M I N , W. M a g ia e técn ica, a rte e p o lític a . S ã o P a u lo : B ra silie n se , 1994. p. 183. (O b ra s e sc o lh id a s, v. I) D E B O R D , G . L a société d u sp ectacle (1 9 6 7 ). P aris: G a llim a r d , 1992. p . 16-21.

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na elevação do nível cultural das camadas inferiores, mas ainda provoca nelas o sentimento de um a inferioridade quase angustiante.”40 Eis a razão pela qual “não há mais povo”, não mais vaga-lumes em nossas grandes cidades, assim como em nossos campos. Eis a razão pela qual será preciso ao cineasta, em seu derradeiro ano de 1975, “abjurar” sua Trilogie de la vie [Trilogia da vida] e, de certa forma, “suicidar” seu próprio am or pelo povo em algumas linhas extremamente violentas de “Larticle des lucioles” [Artigo dos vaga-lum es]: O traumatismo italiano devido ao choque entre o “arcaísmo” pluralista e o nivelamento industrial teve talvez um único pre­ cedente: a Alemanha antes de Hitler. Ali também, os valores das diferentes culturas particularistas foram destruídos pela violenta ratificação da industrialização, com a conseqüente formação des­ sas gigantescas massas, não mais antigas (camponesas, artesãs) e não ainda modernas (burguesas), que constituíram o selvagem, o aberrante, o imprevisível corpo das tropas nazistas. Algo semelhante se passa na Itália, com uma violência ainda maior, na medida em que a industrialização dos anos de 1960-1970 constitui igualmente uma decisiva “mutação” em comparação à

40 P A S O L IN I, P. P. N é o c a p ita lism e té lé v isu e l (1 9 5 8 ). T rad . C . M ic h e l et H . Jo u b e rt-L a u re n c in . I n : ________. C o ntre la télévision et a u tre s textes s u r la p o litiq u e et la société. B e sa n ç o n : L e s S o lita ire s In te m p e stifs, 2 0 0 3 . p. 22.

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da Alemanha de cinqüenta anos antes. Nós não estamos mais, como se sabe, diante de “novos tempos”, mas de uma nova época da história humana, dessa história humana cujas cadências são milenares. Era impossível que os italianos reagissem pior do que o fizeram a esse traumatismo histórico. Eles se tornaram (sobretudo no Centro-Sul), em alguns anos, um povo degenerado, ridículo, monstruoso, criminoso (un popolo degenerato, ridicolo, mostruoso, criminale) - basta descer às ruas para compreendê-lo. Mas, naturalmente, para compreender as transformações das pessoas, é preciso compreendê-las. Eu, infelizmente, o amava, esse povo italiano, tanto independentemente dos esquemas do poder (ao contrário, em oposição desesperada a eles), quanto independen­ temente dos esquemas populistas e humanitários. Era um amor real, enraizado no meu caráter.41

Am or nesse momento desenraizado, aniquilado, des­ povoado. “Eu daria toda a M ontedison [...] por um vaga-lume (darei Vintera Montedison per una luccila)”, conclui Pasolini.42 M as os vaga-lumes desapareceram nessa época de ditadura industrial e consumista em que cada um acaba se exibindo como se fosse um a mercadoria em sua vitrine,

11 Id. L a r tic o lo d elle lu c cio le. I n : ________. S a g g i su lla p o litic a e su lla so cietà. W. S iti et S. D e L a u d e (é d .). M ila n : A r n o ld o M o n d a d o r i, 1999. p. 4 0 8 . T a m b é m e m tra d . fra n c e sa d e P. G u ilh o n , L a r tic le d e s lu c io le s. In : P A S O L IN I, P. P. É c rits co rsa ires (1 9 7 6 ). P aris: F la m m a r io n , 2 0 0 5 . p. 185. 12 Ib id ., p. 189.

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um a form a justamente de não aparecer. Uma form a de tro­ car a dignidade civil por um espetáculo indefinidamente comercializável. Os projetores tomaram todo o espaço social, ninguém m ais escapa a seus “ferozes olhos mecânicos”. E o pior é que todo mundo parece contente, acreditando poder novamente “se embelezar” aproveitando dessa triunfante indústria da exposição política.

D iabos! Tudo isso não se assem elha à descrição de um pesadelo? Ora, Pasolini insiste em nos dizer: esta é a realidade, nossa realidade contemporânea, esta realidade política tão evidente que ninguém quer vê-la pelo que ela é, m as que “os sentidos” do poeta - esse vidente, esse profeta - acolhem tão fortemente. A brutalidade de sua linguagem só se com para ao refinamento de sua percepção diante de um a realidade infinitamente m ais brutal. M as haveria apenas gritos de lamento - “os vaga-lum es estão m ortos!” - para responder àquela realidade? Além dos “sentidos” hipersensíveis do poeta, com preendem os que tal descrição diz respeito tam bém “ao sentido”, à própria significação, não apenas literária, m as tam bém filosófica do que a palavra “inferno” po ssa querer dizer, alguns sé­ culos após Dante. Pasolini, em seus textos políticos e até seu últim o filme, Salò, pretendeu nos apresentar ou nos

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representar esta nova realidade do círculo dos “fraudu­ lentos” ou da vala dos “conselheiros pérfidos”, sem contar os “luxuriosos”, os “violentos” e outros “falsificadores”. O que ele descreve com o sendo o reino fascista é, portanto, um inferno realizado do qual ninguém m ais escapa, ao qual nós todos estam os doravante condenados. Culpados ou inocentes, pouco im porta: condenados de qualquer forma. Deus está m orto, os “fraudulentos” e os “conse­ lheiros pérfidos” aproveitaram -se disso para ocupar seu trono de Juiz supremo. São eles, doravante, que decidem o fim dos tempos. Os profetas da infelicidade, os im precadores, são de­ lirantes e desm oralizantes aos olhos de uns, clarividentes e fascinantes aos olhos de outros. É fácil reprovar o tom pasoliniano, com suas notas apocalípticas, seus exageros, suas hipérboles, suas provocações. Mas como não experi­ m e n ta i sua inquietação lancinante quando tudo na Itália de hoje - para citar apenas a Itália - parece corresponder cada vez mais precisamente à infernal descrição proposta pelo cineasta rebelde? Com o não ver operar esse neofascismo televisual de que ele nos fala, um neofascismo que hesita cada vez menos, diga-se de passagem, em reassum ir todas as representações do fascism o histórico que o precedeu? 43 O a u to r u tiliz a a q u i a p a la v r a fr a n c e sa ép rou ver (p ro v ar, e x p e r im e n ta r ) n o d e se n v o lv im e n to d e u m a re d e d e sig n ific a n te s in ic ia d a a lg u m a s lin h a s an tes: reprouver, éprouver, ap ro u v e r , g r ifa d o s n o o rig in a l e m itálico . (N .T .)

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Eis porque um com entarista de Pasolini pode chegar a aprová-lo até à paráfrase, até à supervalorização: Então, sem dúvida, sim: esse mundo é fascista e ele o é mais do que o precedente, porque é recrutamento total até às profundezas da alma; ele o é mais do que qualquer outro, porque não deixa mais nada fora de seu reino despótico sem limite, sem referência e sem controle. [...] Hoje [...] essa característica, que se tornou exorbitante nos poderes à época do totalitarismo mercantil, foi a tal ponto assimilada por todos que a produção artística é, primei­ ramente, uma competição sem piedade para ganhar a possibilidade de ser recuperada.44

Dito de outra forma - por outro de seus leitores atentos o desastre diagnosticado por Pasolini será descrito como [...] infinitamente mais avançado do que fazia supor a abor­ dagem que inspirou os três filmes do início dos anos de 1970 [a saber, Trilogie de la v/e]. Com efeito [...] não é mais possível, em 1975, opor os “corpos inocentes” à massificação cultural e comer­ cial, à trivialização de qualquer realidade, pela boa razão de que a indústria cultural apossou-se dos corpos, do sexo, de eros e os injetou nos circuitos de consumo. A ilusão do reduto do imemo­ rial ou do porto de resistência inserido nos estratos profundos da 44 C U R N I E R , J.-P. L a d isp a r itio n d e s lu c io le s. Lignes> n . 18, p . 7 8 -7 9 , 2 0 0 5 .

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cultura popular dissolveu-se. As linhas de fuga mais ou menos pagãs que desenhavam os filmes que compõem a Trilogie estão cortadas, e tudo se passa como se não houvesse mais nem margens, nem limites exteriores ao território do consumo; este último é um poder, uma máquina cuja energia absorve infinitamente sua própria negatividade e reabsorve sem interrupção nem resto o que pretende se opor a ela.45

Os vaga-lumes desapareceram, isto quer dizer; a cultura, em que Pasolini reconhecia, até então, uma prática - popular ou vanguardista - de resistência tornou-se ela própria um instrumento da barbárie totalitária, uma vez que se encontra atualmente confinada no reino mercantil, prostitucional, da tolerância generalizada: A profecia - realizada - de Pasolini se resume, finalmente, em uma frase: a cultura não é o que nos protege da barbárie e deve ser protegida contra ela, ela é o próprio meio onde prosperam as formas inteligentes da nova barbárie. O combate de Pasolini é, nesse ponto, bastante distinto daquele de Adorno e seu séquito, que pensavam que era preciso defender a alta cultura e a arte de vanguarda contra a cultura de massa; os Écrits corsaires [Escritos corsários] são, antes, um manifesto em favor da defesa dos espaços

15 B R O S S A T , A . D e 1’in c o n v é n ie n t delire p r o p h è te d a n s u n m o n d e c y n iq u e et d é se n c h a n té . Op. c i t p. 4 7 -4 8 .

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políticos, das formas políticas (o debate, a polêmica, a luta...) contra a indiferenciação cultural. Contra o regime generalizado da tolerância cultural [...].46

Eis aí Pasolini esgotado, aprovado, prolongado, valo­ rizado. O apocalipse continua sua marcha. N osso atual “mal-estar na cultura” caminha nesse sentido, ao que tudo indica, e é assim que, com frequência, o experimentamos. M as um a coisa é designar a m áquina totalitária, outra coisa é lhe atribuir tão rapidamente uma vitória definitiva e sem partilha. Assujeitou-se o mundo, assim, totalmente como o sonharam - o projetam, o program am e querem no-lo im por - nossos atuais “conselheiros pérfidos” ? Postulá-lo é, justamente, dar crédito ao que sua máquina quer nos fazer crer. É ver somente a noite escura ou a ofuscante luz dos projetores. É agir como vencidos: é estarm os convencidos de que a m áquina cumpre seu trabalho sem resto nem resistência. É não ver mais nada.47 É, portanto, não ver o espaço - seja ele intersticial, intermitente, nômade, situado no improvável - das aberturas, dos possíveis, dos lampejos, dos apesar de tudo.

46 Ib id ., p . 62. 47 N o o rig in a l: “C e s t n e v o ir q u e d u tout.” O jo g o c o m o s sig n ific a n te s é r e to m a d o n e sse tre ch o : tout, m a lg ré tout, e n o p a r á g r a fo se g u in te , tou te, p a la v r a s ta m b é m g r ifa d a s e m itá lic o n o o rig in a l. (N .T .)

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A questão é crucial, sem dúvida inextricável. Não haverá, portanto, resposta dogmática para essa questão, quero dizer: nenhuma resposta geral, radical, toda. Haverá apenas sinais, singularidades, pedaços, brilhos passageiros, ainda que fra­ camente luminosos. Vaga-lumes, para dizê-lo da presente maneira. M as no que se tornaram hoje os sinais luminosos evocados por Pasolini, em 1941, e, em seguida, tristemente revogados em 1975? Quais são as chances de aparição ou as zonas de apagamento, as potências ou as fragilidades? A que parte da realidade - o contrário de um todo - a imagem dos vaga-lumes pode hoje se dirigir?

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II SOBREVIVÊNCIAS

Primeiro, desapareceram mesm o os vaga-lumes? D e­ sapareceram todos? Emitem ainda - m as de onde? - seus maravilhosos sinais intermitentes? Procuram-se ainda em algum lugar, falam-se, amam-se apesar de tudo, apesar do todo da máquina, apesar da escuridão da noite, apesar dos projetores ferozes? Em 1982 foi publicada na França uma obra intitulada, justamente, La disparition des lucioles [O desaparecimento dos vaga-lum es]. Nela, Denis Roche, seu autor, descrevia suas experiências de poeta-fotógrafo.48 O título, evidentemente, soava como um a hom enagem ao poeta-cineasta assassinado sete anos antes. D enis Roche utilizou, para um capítulo de seu livro, a form a de uma carta - estilo do qual o próprio Pasolini já havia feito grande uso - endereçada a Roland Barthes, na qual lhe fez a firme, ainda que carinhosa, crítica póstum a, de ter omitido, em L a chambre claire [A câmara clara], tudo o que

48 R O C H E , D . L a d isp a ritio n des lucioles: ré fle x io n s su r 1’a c te p h o to g ra p h iq u e . P aris: É d itio n s d e 1’É toile, 1982.

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a fotografia se m ostra capaz de operar no plano do “estilo”, da “liberdade” e, diz ele, da “intermitência”.49 Esse motivo da intermitência parece inicialmente surpre­ endente (mas somente se consideramos uma fotografia como um objeto e não como um ato). De fato, ele é fundamental. Com o não pensar, nesse sentido, no caráter intermitente (.saccadé) da imagem dialética, de acordo com Walter Ben­ jamin, essa noção precisamente destinada a compreender de que maneira os tempos se tornam visíveis, assim como a própria história nos aparece em um relâmpago passageiro que convém chamar de “imagem”?50 A intermitência da imagem (image-saecade) nos leva de volta aos vaga-lumes, certamente: luz pulsante, passageira, frágil. Tornam, ainda, os vaga-lumes os tempos visíveis sete anos após a morte de Pasolini? O título escolhido por Denis Roche para seu texto parece dizer: não. Tudo se altera, entretanto, a certo momento de nossa leitura. O motivo geral esboçado na crítica a Barthes dá lugar, de repente, a um fragmento de diário escrito em 3 de julho de 1981 numa cidadezinha italiana. Com o na carta de 1941, trata-se de um passeio inocente entre amigos, no

19 Ib id ., p . 158 (C a p ítu lo e m q u e a m o r te d e P a so lin i é, e n tão , e sp o n ta n e a m e n te e v o c a d a ). 30 B E N J A M I N , W. P a ris, c a p itale d u X X Csiècle. L e livre d e s p a s s a g e s (1 9 2 7 - 1 9 4 0 ). T rad . J. L a c o ste . P aris: L e C e rf, 1989. p. 4 7 8 -4 7 9 . C f. D ID I - H U B E R M A N , G . C e q ue n o u s voyons, ce qu i n o u s regarde. P aris: M in u it, 1992. p. 5 3 -1 5 2 . C f. ta m b é m : D I D I - H U B E R M A N , G . D e v a n t le tem p s: h isto ire d e la r t et a n a c h r o n is m e d e s im a g e s. P aris: M in u it, 2 0 0 0 . p. 8 5 -1 5 5 .

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campo, ao cair da noite. E eis então a reaparição, a desco­ berta encantada dos vaga-lumes: “Eles são uns vinte que se movimentam em torno das folhagens. N ós exclamamos [...] cada um conta onde e quando os viram

Beleza inespe­

rada, no entanto, tão modesta: “Outros dois voam um atrás do outro, um pouco mais longe, dois pequenos traços alter­ nados de morse luminosos na parte inferior do talo.” Beleza siderante que é a de “ver isso, ao menos uma vez na vida”.51 Em certo momento, entretanto, “os últimos vaga-lumes se vão, ou desaparecem pura e simplesmente”.52 E a página de maravilhamento se fecha. Redesaparecimento dos vaga-lumes. Mas como os vaga-lumes desapareceram ou “redesapareceram”? É somente aos nossos olhos que eles “desaparecem pura e simplesmente”. Seria bem mais justo dizer que eles “se vão”, pura e simplesmente. Que eles “desaparecem” apenas na m edida em que o espectador renuncia a segui-los. Eles desaparecem de sua vista porque o espectador fica no seu lugar que não é mais o melhor lugar para vê-los. O próprio D enis Roche, m ais adiante em seu livro, fornece todos os elementos para com preender essa relação através da necessidade fotográfica de fazer im agem - o que Barthes não teria observado, imobilizado que estava no luto frontal do “isso foi” - a partir de um a iluminação intermitente que é também, assim como para os vaga-lumes, um a vocação à 51 R O C H E , D . Op. cit., p. 165. 52 Ib id ., p. 166.

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iluminação em movimento. Os fotógrafos são, primeiro, via­ jantes, explica Denis Roche: como insetos em deslocamento, com seus grandes olhos sensíveis à luz. Eles form am um a [...] tropa de vaga-lumes avisados. Vaga-lumes ocupados com sua iluminação intermitente, sobrevoando a baixa altitude os descaminhos dos corações e dos espíritos da contemporaneidade. Tique-taque mudo dos vaga-lumes errantes, pequenas ilumina­ ções breves [...] com o acréscimo de um motor que fará do olhar atento um salmo de luz, clique-claque, de luz, clique-claque etc.53

Eu m esm o vivi em Roma uns dez anos após a morte de Pasolini. Ora, havia ali, em determinado lugar da colina de Pincio - um lugar chamado “Bosque de Bambus” -, uma ver­ dadeira comunidade de vaga-lumes cujos lampejos e m ovi­ mentos sensuais, com essa lentidão que insiste em manifestar seu desejo, fascinavam a todos aqueles que por lá passavam. Eu me espanto hoje de não ter pensado em fotografá-los (pelo menos de fazer uma tentativa). Em todo caso, os vaga-lumes não haviam desaparecido entre 1984 e 1986, até mesm o em Roma, até m esmo no coração urbano do poder centralizado. Eles sobreviveram ainda muito bem no início dos' anos de 1990. Eles deviam estar lá há muito tempo, uma vez que uma partitura para piano, datada da Primeira Guerra Mundial, foi conservada no “Fonds Casadeus” da Bibliothèque Nationale 53 Ib id ., p . 1 4 9 -1 5 0 .

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de France [Biblioteca Nacional da França], com o título Les lucioles de la Villa Médicis [Os vaga-lumes da Villa Médicis] .54 Mais recentemente, eu percebi, com tristeza, que o “Bosque de Bambus” do Pincio havia sido derrubado. Os vaga-lumes haviam, portanto, novamente, desaparecido. Há provavelmente m otivos para ser pessim ista a res­ peito dos vaga-lum es rom anos. No m esm o momento em que escrevo essas linhas, Silvio Berlusconi se exibe, como sempre, sob a luz dos projetores, a Liga do Norte age com eficácia e os R om s55 são fichados, um a boa m aneira de colocá-los para fora. H á sem dúvida m otivos para ser pessim ista, contudo é tão mais necessário abrir os olhos na noite, se deslocar sem descanso, voltar a procurar os vaga-lum es. Aprendo que existem ainda, vivas, espalha­ das pelo m undo, duas m il espécies conhecidas desses pequenos bichinhos (classe: insetos, ordem: coleópteros, família: lam pírides ou lampyridae).56 Certam ente, como observava Pasolini, a poluição das águas no cam po faz com que m orram , a poluição do ar na cidade também. Sabe-se igualmente que a ilum inação artificial - os lampadários, os projetores - perturba consideravelmente a vida dos vaga-lum es, com o a de todas as outras espécies 54 S A M U E L -R O U S S E A U , M . L es lucioles de la Villa M éd icis. P aris: J. H am elle, s.d. 55 N a F ra n ç a , o te rm o “ R o m ” d e sig n a o s T zigan es (c ig a n o s) o rig in á r io s d o s p a íse s d a E u r o p a d o L e ste , R o m ê n ia e B u lg á r ia , p rin c ip a lm e n te . (N .T .) 56 C f. M C D E R M O T , F. A . C o leo p teru m C a ta lo g u s. S u p p lem en ta , IX . L am p y rid ae. W. O. Steel (d ir.). G ra v e n h a g e : W. Junlc, 1966.

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noturnas. Isso conduz, às vezes, em casos extrem os, a com portam entos suicidas, p o r exem plo, quando larvas de vaga-lum es sobem nos p o stes elétricos e se tran sfor­ m am em pupas - da palavra la tin a pu pa, a boneca, e que design a o estágio interm ediário entre larva e imago, ou seja, a ninfa - , perigosam ente expostas aos predadores diurnos e ao sol que as resseca até a morte. É preciso saber que, ap esar de tudo, os vaga-lum es form aram em outros lugares su as belas com unidades lu m in osas (lem bro-m e, então, p o r associação de ideias, de algum as im agens do final de Fahrenheit 451, quando o personagem ultrapassa os lim ites da cidade e se encontra na com unidade dos hom ens-livros).

R e n a ta S iq u e ir a B u e n o , L u cio les, 2 0 0 8 . S e r r a d a C a n a s t r a (B ra sil). F o to g r a fia .

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Vale dizer que, em tais condições, os vaga-lumes for­ m am um a com unidade anacrônica e atópica (Figura 1). Eles estão, no entanto, na ordem do dia, talvez mesmo no centro de nossos m odernos questionamentos científicos. O prêmio Nobel de química acabou de ser atribuído a Osamu Shimomura: trata-se de um hibakusha, um sobrevivente das radiações da bom ba americana lançada sobre Nagasaki em 9 de agosto de 1945, quando ele tinha dezessete anos, e que dedicara toda a sua vida de pesquisador aos fenômenos de bioluminescência observáveis em certas águas vivas, sua especialidade, m as também entre nossos caros vaga-lumes.57 Já em 1887, o fisiologista Raphaél D ubois havia isolado nas lampírides um a enzima que chamou de luciférase e que age sobre um substrato químico, a luciferina, no fenômeno de bioluminescência nos vaga-lumes (decididamente, não cessam os de voltar ao diabo e ao inferno, cujo fogo - a má luz - nunca está muito longe).

57 S H I M O M U R A , O. B io lu m in esc en ce: ch e m ic a l p r in c ip ie s a n d m e th o d s. S in gap o u r : W o rld S c ie n tific P u b lish in g C o ., 2 0 06. A p r e c is ã o b io g r á fic a q u e a p r e ­ se n to a q u i e v o c a a terrív el n a rr a tiv a d e N O S A K A , A . L a tom b e des lucioles (1 9 6 7 ). T ra d . P. d e V o s. A r ie s: É d itio n s P h ilip p e P ic q u ie r, 1 9 8 8 (é d . 1 9 9 5 ). p. 1 9 -6 7 : relato em q u e N o s a k a d á à p a la v ra “v a g a - lu m e ” u m a g r a fia o rig in al sig n ific a n d o lite ra lm e n te “fo g o q u e ca i g o ta a g o ta ”, e e m q u e o s p e q u e n o s la m p e jo s d o s in se to s fo r m a m o a r g u m e n to - d isc re to , m a s fir m e - d a s b o m b a s in c e n d iá r ia s, d a s b a la s risc a n te s, até m e sm o d a p o e ir a e m m o v im e n to q u e p a s s a so b r e a s c id a d e s ja p o n e s a s b o m b a rd e a d a s em 1945.

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Seria crim inoso e estúpido colocar os vaga-lumes sob um projetor acreditando assim melhor observá-los. Assim como não serve de nada estudá-los, previamente mortos, alfinetados sobre uma mesa de entomologista ou observados como coisas muito antigas presas no âmbar há milhões de anos.58 Para conhecer os vaga-lumes, é preciso observá-los no presente de sua sobrevivência: é preciso vê-los dançar vivos no meio da noite, ainda que essa noite seja varrida por alguns ferozes projetores. Ainda que por pouco tempo. Ainda que por pouca coisa a ser vista: é preciso cerca de cinco m il vaga-lumes para produzir uma luz equivalente à de um a única vela. Assim como existe uma literatura menor - como bem o m ostraram Gilles Deleuze e Félix Guattari a respeito de Kafka -, haveria um a luz menor possuindo os m esmos aspectos filosóficos: “um forte coeficiente de desterritorialização”; “tudo ali é político”; “tudo adquire um valor coletivo”, de m odo que tudo ali fala do povo e das “condições revolucionárias” imanentes à sua própria m arginalização.59 Acreditando ter constatado o irremediável desapareci­ mento dos vaga-lumes, Pasolini, em 1975, teria somente se imobilizado em uma espécie de luto, de desespero político.

1,11 E n c o n t r a m - se e x e m p lo s d e v a g a - lu m e s (se c o s, e sc u r o s ), c a p t u r a d o s n o â m ­ b ar, n o liv r o d e G R I M A L D I , D .; E N G E L , M . S. Evo lu tion o ft h e in sects. C a m b r id g e -N e w Y ork: C a m b r id g e U n iv e r sity P re ss, 2 0 0 5 . p. 3 7 4 -3 8 6 . 59 D E L E U Z E G .; G U A T T A R I, F. K a f k a : p o u r u n e litté r a tu re m in e u r e . P a ris: M in u it, 19 7 5 . p . 2 9 -3 3 .

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Com o se, de repente, ele renunciasse a levantar os olhos em direção a essas regiões improváveis de nossas sociedades que ele havia, no entanto, tão bem descrito; como se ele próprio não pudesse mais se colocar em movimento, assim como ele o havia feito tão bem ao preparar Accatone nas zonas m ise­ ráveis do subúrbio romano, tendo Sergio Citti - o irmão de Franco, o intérprete de Accatone - como “dicionário vivo” do dialeto romanesco. “Eu passei, assim, os mais belos dias de minha vida”, disse ele a propósito dessas incursões numa região da humanidade que era ainda invisível - marginal, menor - à m aioria de seus contemporâneos.60 Mas, em 1975, Pasolini postulará a unidade sem recurso de um a sociedade subjugada em sua totalidade, sem temer, aliás, contradizer a si m esm o: “É certamente uma visão apocalíptica (une visione apocalittica, certamente). Mas se, ao lado dela e da angústia que a suscita, não houvesse também em mim um a parte de otimismo, ou seja, o pensamento de que é possível lutar contra tudo aquilo, eu simplesmente não estaria aqui, no meio de vocês, para falar.”61

60 P A S O L IN I, P. P L a v eille (1 9 6 1 ). T rad . A . B o u le a u e S. B e v a c q u a . C ah ie rs du C in é m a , H o r s série, p. 18, 1981 (P a so lin i c in é aste ). 61 P A S O L IN I, P. P. L e g é n o c id e . I n : ________. É c rits co rsaires. P aris: F la m m a r io n , 1 976 (éd . 2 0 0 5 ). p . 26 6 . P o d e r ía m o s se m d ú v id a a n a lisa r e s s a p o s iç ã o a p a r tir d o q u e F ra n c o F o rtin i c h a m a v a , já e m 1959, d e a “c o n tr a d iç ã o ” o p e r a n d o em P aso lin i. C f. F O R T IN I. L a co n tr a d iz io n e (1 9 5 9 ). In :_______ . A ttrav erso Pasolin i. T u rin : E in a u d i, 1993. p. 2 1 -3 7 . C f. ta m b é m , F O R T IN I. P a so lin i p o litic o (1 9 7 9 ). Ib id ., p. 191-206.

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Inútil recorrer à chave biográfica para compreender o laço fundamental que une, em Pasolini, a imagem dos vaga-lumes - tanto em 1941 como em 1975 - a alguma coisa que se poderia nomear história política da sexualidade ou, melhor ainda, uma história sexualizada da política. Em 1974, por exemplo, Jean-François Lyotard publicava seu Économie libidinale62 [Economia libidinal], enquanto Michel Foucault começava sua grande investigação sobre a Histoire de la sexualité [História da sexualidade] no Ocidente.63 Pasolini, de sua parte, havia com preendido há m uito tempo, por exemplo, em seu documentário Comizi damore [Comício de amor], em 1963, que as formas assum idas ou marginais da sexualidade implicam ou supõem um a certa posição política que vem sempre acompanhada - como no amor de um a certa dialética do desejo. A infelicidade é que, em 1975, a vida sexual de Pasolini se encontrava sob o fogo dos projetores; que sua Trilogie de la vie havia sido despejada, como o analisa Alain Brossat, no circuito mercadológico da “tolerância” cultural; com o se seu desespero dissesse respeito indissoluvelmente ao desejo sexual e ao desejo de emancipação política.

f‘2 L Y O T A R D , J.-F. É c o n o m ie lib id in ale. P aris: M in u it, 1974. (’3 F O U C A U L T , M . H isto ire de la se x u a lité : la v o lo n té d e sav o ir. P aris: G a llim a r d , 1976. v .I .

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Mas é preciso opor a esse desespero “esclarecido” o fato de que a dança viva dos vaga-lumes se efetua justamente no meio das trevas. E que nada mais é do que um a dança do desejo form ando comunidade (isso que Pasolini deveria colocar em cena no último plano de Salò, isso que ele bus­ cava ainda, sem dúvida, na praia de Ostia, pouco antes de aparecerem os faróis do carro que o dilacerou). Os órgãos fosforescentes dos vaga-lumes ocupam nos machos três seg­ mentos do abdômen; nas fêmeas, somente dois. Enquanto, em algumas espécies animais, a bioluminescência tem por função atrair as presas ou defendê-las contra o predador (por exemplo, espantando o inimigo através da emissão de um brilho lum inoso inesperado), nos vaga-lumes trata-se, antes de tudo, de um a exibição sexual. Os vaga-lumes não se iluminam para iluminar um mundo que gostariam de “ver melhor”, não.64 Um belo exemplo de desfile sexual é fornecido pelo Odontosyllis, um pirilam po das Bermudas: O acasalamento ocorre na lua cheia, cinqüenta e cinco minutos após o pôr do sol. As fêmeas aparecem, primeiro, na superfície e nadam rapidamente, descrevendo círculos e emitindo uma luz viva

64 C f. C H A M P IA T , D . L a b io lu m in e sc e n c e . In: C H A M P IA T , D ; L A R P E N T , J.-P. (d ir.). B io-ch im i-lu m in escen ce. P aris: M a s so n , 1993. p. 15: “A fu n ç ã o de u m sin a l lu m in o so q u e p a r e c e r ia a m a is e v id e n te s e r ia a d e ilu m in ar. P a r a d o x a l­ m e n te , e x iste m p o u c o s e x e m p lo s n ã o e q u ív o c o s d e ss e p ap el.” N e n h u m c a so d e sse tipo p a re c e ter sid o id e n tific a d o n o s v a g a - lu m e s.

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que aparece como um halo. [...] Os machos sobem então do fundo do mar, emitindo também uma luz, mas sob a forma de raios. Eles se dirigem com precisão em direção ao centro do halo e giram ao mesmo tempo que as fêmeas durante alguns instantes, liberando seu esperma com um exsudato luminoso. A luz desaparece em seguida brutalmente.65 Em nossas regiões do sul da Europa, onde predom ina a espécie cham ada Luciola Italica ou vaga-lume da Itália, as coisas se passam de forma diferente, e diferentemente ainda no continente americano, como bem o descreveu Claude Gudin em sua Histoire naturelle de la séduction [História natural da sedução]: Conhece-se bem, de nossas noites estivais, esses pequenos sinais luminosos amarelados emitidos pelos pirilampos. São as larvas de um pequeno coleóptero do gênero lampíride. Ignora-se porque a larva é luminescente, mas sabe-se que a lampíride fêmea, que mantém um aspecto larvar apesar de sua maturidade, atrai os machos voadores, com suas duas pequenas lanternas, ao canto de um arbusto. Nos primos americanos, os vaga-lumes do gênero Photinus, machos e fêmeas comunicam-se entre si através de vários raios. Assim, o desfile nupcial dos vaga-lumes do Antigo e do Novo Mundo, adaptados à noite, se faz por luminescência

65 Ibid., p . 30.

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colorida, e não pelas cores habituais visíveis durante o dia. Isso não acontece sem certa malícia. O vaga-lume fêmea do gênero Photuris responde aos lampejos do macho em voo, uma conversa luminosa se segue e os amantes se acasalam. Mas, depois disso, a fêmea adota a seqüência dos clarões de um outro vaga-lume do gênero Photinus e engana os machos que posam perto dela e acabam sendo devorados. Nesse caso, está claro que Lúcifer está presente.66

Através dessa nova evocação do diabo “portador de luz” - ou do mal -, o que está em questão, antes de tudo, é apenas o jogo cruel da atração inerente ao reino animal: dom de vida e dom de morte, alternadamente, apelo à reprodução e apelo à destruição mútua. Ora, no centro de todos esses fenômenos, a bioluminescência ilustra um princípio m a­ gistralmente introduzido em etologia por A dolf Portman: não há comunidade viva sem uma fenomenologia da apre­ sentação em que cada indivíduo afronta - atrai ou repele,

66 G U D I N , C . Une histoire n aturelle de la sédu ction . P aris: L e S eu il, 2 0 0 3 (éd . 20 0 8 ). p. 36-37. S o b re a b io q u ím ic a d e sse “siste m a v a g a -lu m e ”, cf. C H A M P IA T , D . L a b io lu m in esc en ce. A rt. cit., p. 3 4 -5 8 (“ L e sy stèm e lu cio le: lu c ifé rin e ty p e b en zo th iazole, o x y d atio n p ré c é d é e d a c tiv a tio n d u su b stra t” ). C f. ta m b é m : C A S E , J. F. et al. (d ir.). P roceedings o f the l l ,b In tern atio n al S y m p o siu m on Biolum inescence a n d C hem ilum inescence. S in g a p o u r-L o n d re s: W o rld S cie n tific P u b lish in g C o ., 2 0 01. p. 143-204 (F irely B io lu m in e sc e n c e ). S o b re o s d e b a te s c o n c e rn en tes à o r i­ g e m d a b io lu m in e sc ê n c ia - in te rp re taç ão a d a p ta c io n ista co n tra a in terp retação filo g en ética

cf. G R I M A L D I , D .; E N G E L , M . S. E volu tion o fth e insect. O p. cit.,

p. 3 8 3-387.

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deseja ou devora, olha ou evita - o outro.67 Os vaga-lumes se apresentam a seus congêneres por uma espécie de gesto mímico que tem a particularidade extraordinária de ser apenas um traço de luz intermitente, um sinal, um gesto, nesse sentido.68 Sabe-se hoje que no nível mais fundamental todos os seres vivos emitem fluxos de fótons, seja no espectro visível ou no ultravioleta.69

Tal foi, no entanto, o desespero político de Pasolini em 1975: teriam as criaturas hum anas de nossas sociedades contemporâneas, como os vaga-lumes, sido vencidas, ani­ quiladas, alfinetadas ou dessecadas sob a luz artificial dos projetores, sob o olho pan-óptico das câmeras de vigilância, sob a agitação mortífera das telas de televisão? Nas socie­ dades de controle - cujo funcionamento geral foi esboçado

('7 P O R T M A N N , A . L a u to p r é se n ta tio n , m o t if d e le la b o r a tio n d e s fo r m e s v iv an tes (1 9 5 8 ). T rad . J. D ew itte. É tu d e s P h én o m én o lo giq u es, v. X I I, n. 2 3 -4 , p . 131164, 1996. E , e m geral, P O R T M A N N , A . L a fo r m e a n im a íe (1 9 5 8 ). T r a d . G . R ém y. P a ris: P ayot, 1961. S o b re a o b r a d e P o rtm a n n , cf. T H I N È S , G . L a fo r m e a n im a le se lo n B u y te n d ijk et P o rtm a n n . É tu d es P h én o m én o lo giq u es, v. X II, n. 2 3 -2 4 , p . 1 9 5 -2 0 7 , 1996. C f. ta m b é m : A n im a lité et h u m a n ité . A u to u r d A d o lf P o rtm a n n . R ev u e E u ro p éen n e des Sciences S o c ia le s, v. X X X V I I , n. 115, 1999. 6H L L O Y D , J. E . B io lu m in e sc e n c e a n d c o m m u n ic a tio n in in se c ts. A n n u a l R eview o f En to m ology . v. X X V I I I , p . 13 1 -1 6 0 , 1983. B R A H A M , M . A .; W E N Z E L , J. W. T h e o r ig in o f p h o tic b e h a v io r a n d th e e v o lu tio n o f se x u a l c o m m u n ic a tio n in fire flie s. C lad istic, v. X I X , p. 1 -22, 2 0 0 3 . 69 C f. C H A N G , J.-J.; F I S H J.; P O P P , F.-A . (d ir.). B io p h oto n s. D o rd r e c h t-B o sto n -L o n d re s: K lu w e r A c a d e m ic P u b lish e rs, 1998.

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por Michel Foucault e Gilles Deleuze - “não existem mais seres hum anos” aos olhos de Pasolini, nem comunidade viva. Há apenas signos a brandir. Não mais sinais a trocar. Não há mais nada a desejar. Não há então mais nada a ver nem a esperar. Os brilhos - como se diz, “lam pejos de esperança” - desapareceram com a inocência condenada à morte. Mas, para nós que o lemos hoje com emoção, adm iração e assentimento, coloca-se doravante a questão: por que Pasolini se engana assim tão desesperadamente e radicaliza assim seu próprio desespero? Por que ele nos inventou o desaparecimento dos vaga-lumes? Por que sua própria luz, sua própria fulgurância de escritor político aca­ baram de repente consumindo-se, apagando-se, dessecando, aniquilando a si mesmas? Pois não foram os vaga-lum es que foram destruídos, m as algo de central no desejo de ver - no desejo em geral, logo, na esperança política - de Pasolini. Compreendem-se globalmente as razões exteriores a esse esgotamento: os ataques contínuos de que era objeto, o fracasso - ligado a seu próprio triunfo - da Trilogie de la vie, e tantas outras coisas que se encontram facilmente na biografia do cineasta. Mas quais foram as razões intrínsecas, ligadas à sua própria forma de linguagem? Que movimento interior de seu pensamento o levou assim a esse desespero sem recurso, ou antes, sem outro recurso a não ser o de se afirmar uma última vez,

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ardentemente, como uma falena nos últimos segundos de sua trágica e lum inosa consumação? Dou-me conta de que, ao colocar essa questão, não é tanto o próprio Pasolini que estou querendo ardentemente compreender melhor, m as um certo discurso - poético ou filosófico, artístico ou polêmico, filosófico ou histórico - proclam ado atualmente em seu rastro e que quer fazer sentido para nós mesmos, para nossa situação contemporânea. As conseqüências desse m odesto exemplo poderiam bem ser consideráveis, fora mesm o da significação extrema, hiperbólica que Pasolini lhe veio a conferir. Trata-se nada m ais nada menos, efetivamente, de repensar nosso próprio “princípio esperança” através do m odo com o o Outrora encontra o Agora para form ar um clarão, um brilho, um a constelação onde se libera alguma forma para nosso próprio Futuro.70 Ainda que beirando o chão, ainda que emitindo um a luz bem fraca, ainda que se deslocando lentamente, não desenham os vaga-lumes, rigorosamente falando, uma tal constelação? Afirmar isso a partir do minúsculo exemplo dos vaga-lum es é afirmar que em nosso modo de imaginar jaz fundamentalmente um a condição para nosso modo de

711 R e c o n h e c e m o s, m a is u m a vez, a p r ó p r ia d e fin iç ã o d a “ im a g e m d ia lé tic a ”, cf. B E N J A M I N , W. P a ris: c a p ita le d u X I X Csiècle. O p. cit., p . 4 7 8 -9 . N o ç ã o q u e d e ­ v e rá , a p a r tir d e a g o r a , se r c o n fr o n ta d a c o m a d a s “ im a g e n s - s o u h a it s ” s e g u n ­ d o B L O C H , E . L e p rin cip e esp eran ce. (1 9 3 8 - 1 9 5 9 ). T rad . F. W u ilm a rt. P aris: G a llim a r d , 1 9 76. p. 4 0 3 -5 2 9 . v. I.

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fazer política. A im aginação é política, eis o que precisa ser levado em consideração. Reciprocamente, a política, em um momento ou outro, se acom panha da faculdade de imaginar, assim como Hannah Arendt o m ostrou, por sua vez, a partir de prem issas bem gerais extraídas da filosofia de Kant.71 E não nos espantem os de que a extensa reflexão política empreendida por Jacques Rancière devesse, a certo momento crucial de seu desenvolvimento, se concentrar em questões de imagem, de im aginação e de “partilha do sensível”.72 Se a imaginação - esse m ecanismo produtor de imagens para o pensamento - nos mostra o modo pelo qual o Outrora encontra, aí, o nosso Agora para se liberarem constelações ricas de Futuro, então podem os compreender a que ponto esse encontro dos tem pos é decisivo, essa colisão de um presente ativo com seu passado reminiscente. Deve-se sem dúvida a Walter Benjamin essa colocação do problema do tempo histórico em geral.73 M as cabe inicialmente a Aby

71 A R E N D T , H . Ju ger. S u r Ia p h ilo so p h ie p o litiq u e d e K a n t (1 9 7 5 ). T rad . M . R e v a u lt d ’A llo n n e s. P aris: L e S e u il, 1991. p . 1 1 8 -1 2 6 (L’im a g in a tio n ). 72 R A N C I È R E , f. L e p a r t a g e du sen sible. P aris: L a F a b riq u e , 2 0 0 0 . Id., L e s destin des im ages. P aris: L a F a b riq u e , 2 0 0 3 . E , rec e n te m e n te , Id ., L e sp e c ta te u r ém an cip é. P aris: L a F a b riq u e , 2 0 08. 71 C f. M O S È S , S. L a n g e de 1'histoire: R o sen z w eig, B e n ja m in , S ch o lem . P aris: Le Seuil, 1992. p. 93-181. LÕ W Y , M . W alter B en jam in : av ertissem en t d m c e n d ie . U n e lecture d es th èses S u rle concept d ’histoire. P aris: P U F, 2001. D ID I - H U B E R M A N , G . D e v a n t le tem ps. Op. cit., p. 85-155.

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Warburg ter m ostrado não apenas o papel constitutivo das sobrevivências na própria dinâmica da imaginação ocidental, m as ainda as funções políticas de que os agenciamentos m em orialísticos se revelam portadores. Isso aparece com força, notadamente, num dos últimos artigos do grande historiador da arte sobre o uso da adivinhação pagã nos escritos e imagens políticas da Reforma luterana, ou ainda nas questões de teologia política que surgem nas últimas pranchas de seu atlas de imagens Mnemosyne.74 H istórica e intelectualmente próxim o do grande an ­ tropólogo italiano das sobrevivências Ernesto De M artino - que trabalhou notadam ente a longa duração dos gestos de lam entação e a história do im aginário apocalíptico75 -, Pasolini sabia, poética e visualmente, o que sobrevivência queria dizer. Ele sabia do caráter indestrutível, aí transm i­ tido, lá invisível, m as latente, m ais além ressurgente, das 'M W A R B U R G , A . L a d iv in a tio n p a ie n n e et a n tiq u e d a n s le s é c rits c t le s im a g e s à le p o q u e d e L u th e r (1 9 2 0 ). I n ________. E s s a is flo rc n tin s. T rad . S. M u ller. P aris: K lin c k sie c k , 1990. p. 2 4 5 -2 9 4 . Id ., G e sa m m e lte S c h rifte n , I I - l . In: W A R N K E , M .; B R I N K , C . (éd .). D e r B ild e ra tla s M n em o sy n e. B erlin : A k a d e m ie V erlag, 2 0 0 0 . p . 13 2 -1 3 3 . S o b r e a n o ç ã o d e so b re v iv ê n c ia , cf. D I D I - H U B E R M A N , G . Ü im ag e su rv iv an tc. H isto ire d e Fart et te m p s d e s fa n tô m e s se lo n A b y W arb u rg. P aris: M in u it, 2 0 02. S o b r e a d im e n s ã o p o lític a d a ic o n o lo g ia w a r b u rg ia n a , cf. S C H O E L L - G L A S S , C . A by W arbu rg u n d d e r A n tisem itism u s: K u ltu r w isse n sch aft a is G e ite sp o litik . F ra n c fo rt- su r-le -M a in : F isch e r, 1998. 7:’ D E M A R T I N O , E. M o rte e p ia n to ritu ale: d a l lam e n to fú n eb re an tico al p ia n to di M a r ia (1 9 5 8 ). T u rin : B o llati B o rin g h ie ri, 1975 (éd. 2 0 0 5 ). Id ., L a f in e dei m o n d o : co n trib u to a lT a n a lisid e lle a p o c a lissi cu ltu rali (1 9 6 1 -1 9 6 5 ). T u rin : E in a u d i, 1977 (éd . 2 0 0 2 ).

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im agens em perpétua m etam orfose. É o que aparece em seus filmes, m esm o os mais “contemporâneos” - penso, por exemplo, nos gestos de Laura Betti em Théorème [Teorema] - e, vale dizer, em todos os seus filmes m itológicos, reli­ giosos ou “medievais”. É o que determina nele a conjunção assum ida do arcaico e do contemporâneo, fazendo dizer a Orson Welles, em “La ricotta” : “Mais m oderno que todos os m odernos [...] eu sou um a força do Passado” (piü moderno di ogni moderno [...] io sono u n aforza dei Passato).76 Não nos esqueçam os de que essa frase, no filme, é pronunciada por um artista carregado de experiência e de am or pela história. M as sentado diante de um jorn alista incapaz, por sua vez, de fazer outra coisa a não ser reduzir todo o profundo contemporâneo à atualidade das banalidades necessárias à sociedade do espetáculo. No momento de “La ricotta”, Pasolini consegue então - e soberbamente - reivindicar uma posição dialética: sua própria narrativa é construída como a colisão do Outrora (filmado em cores) e do Agora (filmado em preto e branco). De m odo que, ainda que o fim do pobre Stracci seja cruel, o filme inteiro aparece como um a tom ada de posição efi­ caz, perturbadora, inventiva, alegre sobre as relações entre a história (da arte, sobretudo) e o presente (da sociedade

76 P A S O L IN I, P. P. L a ric o tta (1 9 6 2 - 1 9 6 3 ). In: S IT I, W.; Z A B A G L I, F. (éd .). P er il cin em a, I. M ila n : A r n o ld o M o n d a d o r i, 2 0 0 1 . p. 337.

I! - SOBREVIVÊNCIAS

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italiana). Mas parece-nos que, em 1975, tendo abjurado seus três últim os filmes e trabalhando na vala infernal de Salò, Pasolini tenha se desesperado de qualquer impertinência, de qualquer alegria dialética. É o momento, então, do de­ saparecimento das sobrevivências - ou o desaparecimento das condições antropológicas de resistência ao poder cen­ tralizado do neofascismo italiano - , que opera na pequena am ostra que representa o desaparecimento dos vaga-lumes. A objeção que poderia ser feita ao Pasolini do “desapa­ recimento dos vaga-lumes” seria então enunciável nestes termos: com o se pode declarar a morte das sobrevivências? N ão seria tão vão quanto decretar a morte de nossas obses­ sões, de nossa memória em geral? Não seria abandonar-se à inferência desgastada que vai de uma frase como o desejo não é mais como era antes, à outra como não há mais desejo? Aquilo que o cineasta foi tão magistralmente capaz de ver no presente dos anos de 1950 e 1960 - as sobrevivências operando e os gestos de resistência do subproletariado em Chroniques romaines [Crônicas rom anas], em Accatone ou em M am m a Roma - ele terá perdido de vista no presente dos anos de 1970. A partir de então, ele não veria m ais onde e com o o Outrora vinha percutir o Agora para produzir o pequeno lam pejo e a constelação dos vaga-lumes. Ele se desesperava de seu tempo, nada mais (daí, todas as suas posições ditas “reacionárias”, nessa época, poderiam ser

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compreendidas através de um tal prisma, sejam as que se referem às revoltas estudantis, aos cabelos longos dos jovens burgueses, à liberação sexual ou ainda ao aborto). Agindo dessa forma, Pasolini não somente perdeu in fine o jogo dialético do olhar e da imaginação. O que desapareceu nele foi a capacidade de ver - tanto à noite quanto sob a luz feroz dos projetores - aquilo que não havia desaparecido com­ pletamente e, sobretudo, aquilo que aparece apesar de tudo, como novidade reminiscente, como novidade “inocente”, no presente desta história detestável de cujo interior ele não sabia mais, daí em diante, se desvencilhar.

II - SOBREVIVÊNCIAS

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III APOCALIPSES?

Por um lado, adm irável visão dialética: capacidade de reconhecer no m ínim o vaga-lum e um a resistência, um a luz para todo o pensam ento. Por outro, desespero não dia­ lético: incapacidade em buscar novos vaga-lumes, um a vez que se perderam de vista os prim eiros - os “vaga-lumes da juventude”. É o m esm o tipo de configuração problemática que me pareceu reconhecer em alguns textos recentes de Giorgio Agamben, um dos filósofos m ais importantes, dos mais inquietantes de n osso tempo. O que m ais pedir a um filósofo senão inquietar seu tempo, pelo fato de ter ele pró­ prio um a relação inquieta tanto com sua história quanto com seu presente? N ão nos surpreendam os se Giorgio Agam ben for um grande leitor de Walter Benjamin. Não nos espantem os de que ele tenha sido, depois de Edgar Wind, um dos muito raros filósofos a m edir todo o alcance teórico da antropologia das sobrevivências elaborada por

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Aby W arburg.77 Stanze78 [Estâncias] é um soberbo livro benjam iniano no sentido de que diz respeito exatamente ao gênero que Benjamin põe em prática em seu Passagenwerk [Passagens]79 e que pretendia desenvolver sob a forma de um a “obra docum ental” (Dokumentarwerk), tendo por objeto a própria imaginação.80 Não por acaso, esse livro foi, em parte, escrito por Agamben entre as prateleiras/estan­ tes - as prateleiras/estantes exaltantes, simultaneamente inesgotáveis minas de saber e máquinas imaginativas - da biblioteca Warburg, em Londres. C om o certos textos seus mais recentes o desenvolvem luminosamente, Giorgio Agamben é um filósofo, não do dogm a, m as dos paradigm as: os objetos mais modestos, as im agens m ais diversas tornam-se para ele - além dos textos canônicos, da longa extensão filosófica que ele comenta e discute sem trégua - a ocasião de um a “epistemologia do

77 A G A M B E N , G . A b y W a rb u rg et la S c i e n c e sa n s n o m (1 9 8 4 ). I n : ________. Im a g e et m ém o ire: é c rits s u r 1’im a g e , la d a n s e et le cin é m a . T rad . M . D e lF O m o d a r m e , re v ista p o r D . L o a y z a e C . C o q u io . P aris: D e sc lé e d e B ro u w er, 2 0 0 4 . p. 9 -3 5 . 78 C ita m o s a tr a d u ç ã o e m p o r tu g u ê s , e la b o r a d a p o r S e lv in o A s s m a n n . A G A M ­ B E N , G . E stâ n cia s: a p a la v r a e o fa n ta sm a n a cu ltu ra o cid e n ta l. B e lo H o rizo n te : E d ito r a U F M G , 20 0 7 . (N .T .) 79 C ita m o s a tr a d u ç ã o e m p o r tu g u ê s, o r g a n iz a d a p o r W illi B o lle : B E N JA M IN , W. P a ssa g e n s. B e lo H o rizo n te : E d ito r a U F M G , 2 0 0 6 . (N .T .) 80 A G A M B E N , G . Stan ze: p a ro le et fa n ta sm e d a n s la cu ltu re o c c id e n ta le (1 9 7 7 ). T ra d . Y. H e rsa n t. P aris: C h r istia n B o u r g o is, 1981. O p r o je to d e u m D o k u m e n ­ tarw erk so b r e a im a g in a ç ã o é e v o c a d o p o r W. B e n ja m in , n o J o u r n a l de M o sc o u (1 9 2 6 -1 9 2 7 ). T rad . J.-F. P oirier. P a ris: LA rch e, 1983, p. 153.

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exemplo” e uma verdadeira “arqueologia filosófica” que, de maneira ainda bastante benjaminiana, “retoma em sentido inverso o curso da história, assim com o a im aginação” restabelece o curso das coisas fora das grandes teleologias conceituais.81 A revelação das fontes aparece aqui como a condição necessária - e o exercício paciente - de um pensa­ mento que não procura de imediato tomar partido, mas que quer interrogar o contemporâneo na m edida de sua filologia oculta, de suas tradições escondidas, de seus impensados, de suas sobrevivências. Distante, portanto, dos filósofos que se apresentam como dogmáticos para a eternidade ou como fabricantes imediatos de opiniões para o tempo presente - a propósito da última engenhoca tecnológica ou da última eleição presidencial -, Agamben vê o contemporâneo na espessura considerável e complexa de suas tem poralidades emaranhadas. Daí o aspecto de montagem, ele também warburguiano e benjam iniano, que seus textos adquirem com frequência. O contemporâneo, para ele, aparece somente “na defasagem e no anacronismo” em relação a tudo o que percebemos como nossa “atualidade”.82 Ser contemporâneo, nesse sentido, seria

81 A G A M B E N , G . S ig n a tu ra reru m : su r la m é th o d e (2 0 0 8 ). T rad . J. G ay rau d . P aris: V rin , 2 0 0 8 . p. 2 0 e 123. 82 Id., Q uest-ce q u e le con tem porain ? (2 0 0 8 ). T rad. M . R overe. P aris: P ayot & Rivages, 2008. p. 11. P u b lic a d o em p o r tu g u ê s, so b o título de: O q u e é o con tem porân eo? e o u tro s en saio s. T rad . V in íc iu s N ic a stro H o n esk o . C h a p e c ó : A rg o s, 2 0 0 9 .

I I I

-APOCALIPSES?

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obscurecer o espetáculo do século presente a fim de perce­ ber, nessa m esm a obscuridade, a “luz que procura nos alcan­ çar e não consegue”.83 Seria, então, retomando o paradigm a que nos ocupa aqui, dar-se os meios de ver aparecerem os vaga-lum es no espaço de superexposição, feroz, dem asiado

luminoso, de nossa história presente. Essa tarefa, acrescenta Agamben, pede ao mesmo tempo coragem - virtude política - e poesia, que é a arte de fraturar a linguagem, de quebrar as aparências, de desunir a unidade do tempo.84 Ora, essas duas virtudes são as m esm as que Pasolini pusera em prática em cada um de seus textos, em cada um a de suas imagens. De Pasolini a Giorgio Agamben, as referências históricas e filosóficas apresentam, de certo, dife­ renças consideráveis. M as o gestus geral de seus respectivos pensam entos deixa adivinhar um inegável parentesco, até em seus efeitos de provocação e nos ataques virulentos que suscitam com frequência seus posicionam entos. A m bos afirm am que “há entre o arcaico e o m oderno um encontro secreto”.85 Am bos fazem de seu trabalho um obstinado con­ fronto do presente - violentamente criticado - com outros tem pos,86 o que é um m odo de reconhecer a necessidade de

83 84 85 86

70

Ibid., p. 24. Ibid., p. 13-17. Ibid., p . 34. Ibid., p. 39.

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montagens temporais para toda reflexão conseqüente sobre o contemporâneo. Com o Pasolini, Agamben é um grande profanaãor das coisas que se admitem consensualmente como “sagradas”. E, assim com o o cineasta quando falava do “sacral”, o filósofo dedica-se a repensar o paradigm a antropológico contido na extensão da palavra sacer. Agamben, até onde sei, jam ais se dedicou a um estudo específico da poesia ou do cinema de Pasolini. M as ele próprio, e muito cedo, fez parte desse cinema, visto que encarnava em ÜÊvangile selon saint Matthieu [O Evangelho segundo São Mateus], em 1964, um dos doze apóstolos de Cristo. É, sobretudo, surpreendente encontrar no filósofo um conjunto de reflexões que atravessam as preocupações dramatúrgicas e antropológicas do poeta-cineasta: é o elogio da gíria e da potência “antiga” dos gestos populares, notada­ mente, na cultura napolitana;87 é um a reflexão recorrente sobre a noção de gesto e sua tem poralidade profunda.88 Enfim, trata-se de um a atenção ética no que diz respeito ao rosto humano “qualquer”, atenção que, no fundo, deve talvez m enos ao pensamento de Levinas do que à prática

87 A G A M B E N , G . Q u e st- c e q u u n p e u p le ? (1 9 9 5 ). In :

. M o y e n s s a n s fin s .

N o te s su r la p o litiq u e . T rad . D . V a lin . P aris: P ay o t & R iv a g e s, 1995. p . 3 9 -4 6 .

Id.y L e s la n g u e s et le s p e u p le s (1 9 9 5 ). Ibid., p. 7 3 -8 1 . Id. L e s c o r p s à ven ir. L ire ce q u i n a ja m a is été é c rit (1 9 9 7 ). (T ex to o r ig in a l em fra n c ê s). I n : _______ . Im a g e et m ém o ire. O p. cit., p . 11 3 -1 1 9 .

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am orosa do gros plan em Pasolini.89 Linguagens do povo, gestos, rostos: tudo isso que a história não consegue expri­ mir nos simples termos da evolução ou da obsolescência. Tudo isso que, por contraste, desenha zonas ou redes de sobrevivências no lugar mesm o onde se declaram sua extraterritorialidade, sua marginalização, sua resistência, sua vocação para a revolta.

Ora, o prim eiro livro de Agam ben que trata explici­ tamente da questão da história inscrevia, em seu próprio subtítulo, a palavra destruição,90 N essa palavra ressoa um diagnóstico inapelável sobre os tempos atuais, diagnóstico abruptamente enunciado desde as primeiras linhas da obra: Todo discurso sobre a experiência deve partir atualmente da constatação de que ela não é mais algo que ainda nos seja dado 89 I d P o u r u n e é th iq u e d u c in e m a (1 9 9 2 ). T rad . D . L o a y z a . I n : _______ . Im ag e et m ém oire. p. 1 2 1 -1 2 7 . Id ., L a co m m u n a u té q u i vient: th é o r ie d e la sin g u la r ité q u e lc o n q u e (1 9 9 0 ). T rad . M . R a io la . P aris: L e S e u il, 1990. p . 2 5 e 6 8 -7 0 . Id ., L e v isa g e (1 9 9 5 ). T rad . D . V alin . I n : ________. M o y e n s s a n s fin . O p. cit., p. 1 0 3 -1 1 2 . 90 Id ., E n fa n c e et h istoire. D e s t r u c t io n d e le x p é r ie n c e et o r ig in e d e 1’h is to ir e (1 9 7 7 ). T rad . Y. H e rsa n t. P aris: P ay o t, 1989 (éd . re m a n ié e ). A o b r a d e G io r g io A g a m b e n , In fâ n c ia e h istó ria : d e st r u iç ã o d a e x p e r iê n c ia e o r ig e m d a h istó r ia , fo i tr a d u z id a p a r a o p o r tu g u ê s p o r H e n r iq u e B u r ig o e p u b lic a d a p e la E d ito r a U F M G e m 2 0 0 5 . P a ra a s t r a d u ç õ e s d a s c ita ç õ e s d e a u to r ia d e A g a m b e n , n o liv ro d e D id i- H u b e r m a n , u tiliz a r e m o s, a p a r tir d e a g o ra , a e d iç ã o b r a sile ir a , p u b lic a d a p e la re fe rid a e d ito r a e m 2 0 0 8 ( I a r e im p r e ss ã o ). (N .T .)

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fazer. Pois, assim como foi privado da sua biografia, o homem contemporâneo foi expropriado de sua experiência: aliás, a inca­ pacidade de fazer e transmitir experiências, talvez, seja um dos poucos dados certos de que disponha sobre si mesmo.91

Essas frases, escritas apenas alguns meses após o texto de Pasolini sobre o desaparecimento dos vaga-lumes, proce­ dem, no fundo, da m esm a lógica. Num primeiro momento, tratava-se de se referir a um a situação de apocalipse m a­ nifesto, concreta, indubitável, explosiva, quero dizer, uma situação de conflito militar. Agamben, naquele momento, não evocava o fascism o histórico, m as a Primeira Guerra M undial, cuja paisagem mental Walter Benjam in havia apresentado em “Expérience et pauvreté” [Experiência e pobreza], em 1933, depois em “Le conteur” [O narrador], em 1936, texto ao qual ele remete explicitamente e cujo trecho central citamos a seguir: É como se nós tivéssemos sido privados de uma faculdade que nos parecia inalienável, a mais segura entre todas: a faculdade de trocar experiências (das Vermõgen, Erfahrungen auszutauschen). Uma das razões desse fenômeno salta aos olhos: o valor da experiência caiu de cotação (die Erfahrung ist im Kursegefallen). ''' A G A M B E N . In fâ n c ia e h istó ria : d e s t r u iç ã o d a e x p e r iê n c ia e o r ig e m d a h i s ­ tó ria . T r a d u z id a p a r a o p o r t u g u ê s p o r H e n r iq u e B u r ig o . B e lo H o riz o n te : E d ito r a U F M G , 2 0 0 8 . p. 21.

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E parece que a queda continua indefinidamente. Basta abrir o jornal para constatar que, desde a véspera, uma nova queda foi registrada, que não apenas a imagem do mundo exterior, mas também a do mundo moral sofreram transformações que jamais pensamos serem possíveis. Com a guerra mundial, vimos o início de uma evolução que, desde então, nunca mais parou. Não se constatou que, no momento do armistício, as pessoas voltavam do campo de batalha - não mais ricos, senão mais pobres em experiência comunicável? [...] Não havia nisso nada de surpreen­ dente. Pois jamais experiências adquiridas foram tão radicalmente desmentidas do que a experiência estratégica o foi pela guerra de trincheira, a experiência econômica pela inflação, a experiência corporal pela batalha de material, a experiência moral pelas manobras dos governantes. Uma geração que tinha ido à escola em bonde puxado a cavalo encontrava-se desprotegida numa paisagem onde nada mais era reconhecível, exceto as nuvens e, no meio, num campo de força atravessado de tensões e de explosões destrutivas, o minúsculo e frágil corpo humano.92

Tratava-se, num segundo momento - e seguindo sempre a m esm a lógica colocada em prática por Pasolini em 1975 -,

92 B E N J A M I N , W. L e co n teu r. R é fle x io n s s u r Iceu vre d e N ic o la s L e sk o v (1 9 3 6 ). T rad. M . d e G an d illac revista p o r P. R u sch . I n :__________ . CEuvres. O p. cit., p. 115116. (C it a d o p a rc ia lm e n te p o r G . A g a m b e n , E n fan c e et histoire. O p. cit., p. 2 0 ). C f. t a m b é m id .y E x p é rie n c e et p a u v re té (1 9 3 3 ). T ra d . P. R u sc h . I n : ________. CEuvres. P aris: G a llim a r d , 2 0 0 0 . p. 3 6 5 . v. II.

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de evocar o tempo presente como uma situação de apocalipse latente, onde nada mais parece estar em conflito, m as onde a destruição não deixa de fazer estragos nos corpos e nos espíritos de cada um, até nos fenômenos de m assa os mais inocentes, o turismo, por exemplo: Porém, nós hoje sabemos que, para a destruição da experiência, uma catástrofe não é de modo algum necessária, e que a pacífica existência cotidiana em uma grande cidade é, para esse fim, per­ feitamente suficiente. Pois o dia a dia do homem contemporâneo não contém quase nada que seja ainda traduzível em experiência: nem a leitura do jornal, tão rica em notícias do que lhe diz respeito, a uma distância insuperável; nem os minutos que passa, preso ao volante, em um engarrafamento; nem a viagem às regiões ínferas nos vagões do metrô; nem a manifestação que de repente bloqueia a rua; nem a névoa dos lacrimogêneos que se dissipa lenta entre os edifícios do centro e nem mesmo os súbitos estampidos de pistola detonados não se sabe onde; nem a fila diante dos guichês de uma repartição ou a visita ao país de Cocanha do supermercado; nem os eternos momentos de muda promiscuidade com desconhecidos no elevador ou no ônibus. O homem moderno volta para casa, à noitinha, extenuado por uma mixórdia de eventos - divertidos ou maçantes, banais ou insólitos, agradáveis ou atrozes

entretanto

nenhum deles se tornou experiência. É esta incapacidade de se traduzir em experiência que torna hoje insuportável - como em momento algum no passado - a

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existência cotidiana. [...] Uma visita a um museu ou a um lugar de peregrinação turística é, desse ponto de vista, particularmente instrutiva. Posta diante das maiores maravilhas da terra (diga­ mos, o patio dos leones, no Alhambra) a esmagadora maioria da humanidade recusa-se hoje a experimentá-las: prefere que seja a máquina fotográfica a ter experiência delas. Não se trata aqui, naturalmente, de deplorar essa realidade, mas de constatá-la.93

Esta descrição do tempo presente - formulada sobre a base de um a situação de guerra total - constitui um a verda­ deira m atriz filosófica: é a partir dela que, na seqüência do texto, será formulada toda uma série de reflexões em que a palavra crise, por exemplo, se transforma inelutavelmente em falta radical; em que toda transformação será pensada como destruição, assim como se pode constatar no ju lga­ mento desesperante sobre a história da poesia m oderna após Baudelaire, enquanto poeta de uma “crise da experiência”: “Pois, observando bem, a poesia m oderna - de Baudelaire em diante - não se funda em um a nova experiência, m as em um a ausência de experiência sem precedentes”94 - pro­ posição insustentável, a meu ver, em face do menor texto de Rilke, de Michaux, de René Char, de Bertold Brecht, de

93 A G A M B E N . In fâ n c ia e h istó ria : d e st r u iç ã o d a e x p e r iê n c ia e o r ig e m d a h is tó ­ ria . T rad . H e n riq u e B u rig o . B e lo H o riz o n te : E d ito r a U F M G , 2 0 0 8 . p . 2 1 -2 3 . 94 Ibid.,-p. 5 1 -5 2 .

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Paul Celan. Ou do próprio Pasolini, diga-se de passagem. Tem-se a impressão, de fato, de que Agamben teria preten­ dido retomar as coisas no ponto exato em que o cineasta as havia abandonado em 1975: no ponto preciso em que o elogio da infância - inerente à carta de 1941 e até aos filmes da Trilogie áe la vie - se transform a em luto áe toda infân­ cia. Donde a definição negativa, depois transcendental, da infância em Agamben. “O inefável é, na realidade, infância [...] É a infância, a experiência transcendental da diferença entre língua e fala”: uma experiência originária, certamente, m as que teria sido destruída, apagada como um vaga-lume, nos tempos de nosso pobre hoje.95 De que maneira procede Agamben, aqui? Primeiro, ele afirma um a destruição radical - em seguida, constrói um a transcendência. Esta seria a matriz filosófica, o movimento que estrutura essa inquietação e essa potência do pensamen­ to. A m aior parte dos paradigm as, elaborados pelo filósofo, na longa extensão de sua obra, parecem todos marcados, com efeito, por alguma coisa que, infelizmente, atravessa de forma latente a extraordinária acuidade de seu olhar: é como um movimento de pêndulo entre os extremos da destruição e de um tipo de redenção pela transcendência. Em seu ensaio sobre o “muçulmano” dos campos de concentração nazistas, por exemplo, Agamben parte do “intestemunhável” e da 95 Ib id ., p . 6 3 , 64.

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“im possibilidade de ver” com o objetivo de evocar, ao final de seu percurso, um a condição transcendental - sublime, em certo sentido, com o em Lyotard - do “testem unho integral” e da “imagem absoluta”.96 Em Moyens sans fins [Meios sem fins] - um livro dedicado significativamente a Guy D ebord

a dimensão “absoluta, integral” do gesto e

seu valor “místico”, no sentido de Wittgenstein, são afirm a­ dos apenas na base de um a destruição, de um luto inicial: “Desde o fim do século XIX, a burguesia ocidental havia definitivamente perdido seus gestos [,..].”97 Com o se cada coisa devesse sua dignidade filosófica apenas ao fato de ter, primeiro, desaparecido - destruída por algum neofascism o ou sociedade do espetáculo - de nosso mundo comum.

Trata-se, de fato, nesse caso, como o havia adm itido o próprio Pasolini, de um a “visão apocalíptica”. Ou, antes, de operar um modo apocalíptico de “ver os tempos” e, sin ­ gularmente, o tempo presente. Q uando Pasolini anuncia que “não existem mais seres hum anos” ou quando Giorgio

96 A G A M B E N , G . C e q u í reste cTAuschw itz: la r c h iv e et le t é m o in . I n : ________. H o m o sa c e r (1 9 9 8 ). T rad . P. A lferi. P a ris: P a y o t & R iv a g e s, 1 999. p. 4 9 , 5 7 e 6 5 -6 6 . v. III. y7 Id ., N o te s s u r le g e ste (1 9 9 2 ). T rad . D . L o a y z a . I n : _______ . M o y e n s s a n s fins-. n o te s s u r la p o litiq u e . T rad . D . V alin . P aris: P ay o t & R iv a g e s, 1 995. p . 5 9 e 71.

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Agamben, de seu lado, anuncia que o hom em contem po­ râneo se encontra “despossuido de sua experiência”, nós nos encontram os, decididam ente, colocados sob a luz ofuscante de um espaço e de um tem po apocalípticos. Apocalipse: é um a figura m aior da tradição judaico-cristã. Ela seria a sobrevivência que absorve todas as outras em sua claridade devoradora: a grande sobrevivência “sacral” - fim dos tem pos e tem po do Juízo Final - quando todas as outras terão sido aniquiladas. A grande sobrevivência anunciada para matar todas as outras, essas “pequenas” sobrevivências das quais fazem os a experiência, aqui e lá, em nosso caminho pela selva oscura, com o outros tantos lam pejos em que esperança e m em ória se enviam m utu­ amente seus sinais. N a contram ão dessa experiência m odesta, as visões apocalípticas nos propõem a grandiosa paisagem de uma destruição radical para que aconteça a revelação de uma verdade superior e não m enos radical. N ão encontram os aqui o antigo refrão da metafísica, o enunciado da “quididade” por Aristóteles, sob a form a do to ti èn einái (“o que era o ser”)? O ser dir-se-ia, então, apenas no passado? Revelar-se-ia, apenas, um a vez morto?98 Com preende-se, aqui, que é preciso ao m etafísico a morte de seu objeto ’ 8 N o o r ig in a l e m fra n c ê s, g r ifa d o e m itá lic o : trép assé (t r e s p a s s a d o , m o r to ), e m c o n tr a p o n to a p a s s é (p a s s a d o ), n a in d a g a ç ã o q u e p re c e d e . (N .T .)

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para se pronunciar, a título de um saber definitivo, sobre sua verdade ultim ai." Para verdades derradeiras, portan ­ to, realidades destruídas: este seria o “tom apocalíptico” dos filósofos quando eles preferem às pequenas “luzes de verdade” - que são fatalmente provisórias, empíricas, intermitentes, frágeis, díspares, passeantes como os vaga-lumes - um a grande “luz da verdade” que se revela, antes, um a transcendente luz sobre a luz ou sobre as luzes fadadas, cada um a em seu canto de trevas, a desaparecer, a fugir para outro lugar. Tom ando como base um opúsculo de Kant intitulado D ’un tongrand seigneur adopté naguère enphilosophie100 [De um tom senhorial adotado outrora em filosofia], Jacques Derrida tentou uma crítica do “tom apocalíptico” adotado - hoje com o outrora - por vários pensadores “radicais” dos quais ele m esm o faz parte. “Toda escatologia apocalíptica”, escreve ele, “é prometida em nome da luz, do vidente e da visão, e de um a luz da luz, de um a luz mais lum inosa do que todas as luzes que ela torna possível. [...] Não haveria verdade do apocalipse que não fosse verdade da verdade,

59 A R I S T O T E , Z. M étap h y siq u e : 1 0 2 9 a-1 0 3 0 b . T rad . J. T rico t. P aris: V rin , 1974. p . 3 5 2 -3 6 7 . C f. a a n á lise c lá ssic a d e s s a s p a s s a g e n s p o r A U B E N Q U E , P. L e p r o blèm e d e letre chez A risto te: e ssa i su r la p ro b lé m a tiq u e a risto té lic ie n n e . P aris: P U F , 1962 (éd . 1 9 7 2 ). p. 4 6 0 -4 7 0 . 100 K A N T , E . D ’un ton g r a n d seig n eu r a d o p té n ag u ère en p h ilo so p h ie (1 7 9 6 ). T rad . L. G u ille rm it. P aris: V rin , 1975 (éd. 1 9 8 7 ). p. 8 7 -1 0 9 .

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[...] antes, m ais verdade da revelação, do que verdade revelada.” 101 Derrida afirm a então [...] que é preciso conduzir essa desmistificação [do tom apocalíptico] tão longe quanto possível, e a tarefa não é modesta. Ela é interminável porque ninguém pode esgotar as sobredeterminações e as indeterminações dos estratagemas apocalípticos. E, sobretudo, porque o motivo ou a motivação ético-política desses estratagemas nunca é redutível ao simples.102

De um lado, então, a crítica kantiana dos “mistagogos” do pensamento deve se prolongar na das figuras catastróficas ou redentoras de todos os gêneros, desde o maitre à penser sectário até ao Führer totalitário.103 M as, de outro lado, Derrida quer reconhecer na frase apocalíptica uma voz que, como em Nietzsche ou Maurice Blanchot, seria envio (envoi), indicando a via {vote) em um enunciado do tipo venha (viens) [...].104 A crítica termina então por se reabsorver em

101 D E R R ID A , J. D u n ton a p o caly p tiq u e ad o p té n ag u ère en p h ilo so p h ie . P aris: G a lilé é , 1983. p. 6 3 , 69 e 79. 102 Ib id ., p. 81. 103 Ib id ., p . 27. 104 Ibid., p. 94-95. S ign ificativ am en te, o p ró p rio A g a m b e n artic u la se u “a p o calíp tico d a e x p e riê n c ia ” a u m a re fle x ã o so b r e a v o z : A G A M B E N , G . In fâ n c ia e histó ria: d e str u iç ã o d a e x p e riê n c ia e o rig e m d a h istó ria . T rad . H e n riq u e B u rig o . B elo H o riz o n te : E d ito ra U F M G , 2 0 0 8 . p . 9 -17.

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um discurso do anúncio que seria, indecidivelmente, “apo­ calipse sem apocalipse” ou verdade “sem visão, sem verdade, sem revelação”.105 M as isso - que tenta Agamben por sua própria conta, me parece - é possível? Não se pode fazer a essa hipótese geral, a esse projeto filosófico muito bem intencionado, diga-se de passagem , a crítica que Adorno dirigia a Heidegger no plano da impossível secularização de um pensam ento metafísico cujas estruturas mais fundamentais se apoiam em um m undo teológico cuja retomada, justamente, nada tem de profanação? Vale a pena lembrar essa passagem em que Adorno precisa sua crítica a respeito do impensável da ressurreição em Heidegger: Gostaria de dizer que, a abordagem de Être et temps [Ser e tempo] [...] não é talvez em parte alguma mais ideológica do que no momento em que seu autor busca compreender a morte a partir de um “esboço do ser-todo do estar-aí”, uma tentativa na qual ele suprime o caráter absolutamente inconciliável da experiência da vida com a morte tal qual nos aparece com o declínio definitivo das religiões positivas. Desse modo, ele procura salvar as estruturas da experiência da morte como se fossem estruturas do “estar-aí” [être-là], do próprio ser humano, mas essas estruturas, tais como ele descreve, existem apenas no mundo positivo da teologia, em 105 Ib id ., p . 95.

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virtude da esperança positiva da ressurreição. Heidegger não vê que, ao secularizar essa estrutura, que ele assume, em todo caso, tacitamente na sua obra, esses conteúdos teológicos não são simplesmente descompostos, mas que, sem eles, essa mesma experiência não é mais possível, deixa de ser possível. O que eu realmente critico nessa forma de metafísica é a tentativa de se apropriar, sub-repticiamente, sem teologia, das possibilidades da experiência que foram teologicamente colocadas.106

Esse desvio, sem dúvida, complica ainda um pouco mais nosso caso no plano filosófico. M as aclara a própria difi­ culdade em que Pasolini teria se encontrado, por exemplo, quando se remetia à tradição cristã - essa “religião positiva”, como a chama aqui Adorno - para legitimar politicamente as sobrevivências colocadas em prática na linguagem ou no gestual popular dos italianos “miseráveis”.107 Ele esclarece igualmente certas dificuldades teóricas com as quais lida Agamben ao manipular, conjuntamente, a historicidade heideggeriana e a imagem dialética benjaminiana, ou ain­ da o messianismo de São Paulo, com um a reflexão sobre a “Solução final” projetada pelos nazistas a respeito do povo

106 A D O R N O , T. W. M étap h y siq ue : c o n c e p t et p ro b lè m e s (1 9 6 5 ). T rad . C . D av id . P aris: P ay o t & R iv a g e s, 2 0 0 6 , p . 1 60-161. 107 S o b re a d istin ç ão cap ital en tre tra d iç ã o e so b rev iv ên c ia, cf. D I D I - H U B E R M A N , G . U im age su rv iv an te. O p. cit., p . 3 5 -1 1 4 .

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judeu.108Somente a tradição religiosa promete uma salvação para além de qualquer apocalipse e de qualquer destruição das coisas humanas. As sobrevivências, por sua vez, con­ cernem apenas à imanência do tempo histórico: elas não têm nenhum valor de redenção. E quanto a seu valor de revelação, ele nada mais é do que lacunar, em trapos: sintomal, em outras palavras. As sobrevivências não prometem nenhuma ressurreição (haveria algum sentido em esperar de um fantasm a que ele ressuscite?). Elas são apenas lampejos passeando nas trevas, em nenhum caso o acontecimento de um a grande “luz de toda luz”. Porque elas nos ensinam que a destruição nunca é absoluta - m esm o que fosse ela contínua -, as sobrevivências nos dispensam justamente da crença de que um a “última” revelação ou um a salvação “final” sejam necessárias à nossa liberdade.

Uma “política das sobrevivências”, por definição, dispen­ sa muito bem - dispensa necessariamente - o fim dos tem ­ pos. Jamais Warburg, do que conheço, faz alusão a isso no plano do método. Ele fala sobre o assunto apenas do ponto de vista histórico e sintomal, assim como o fará depois dele

108 A G A M B E N , G . C e q u i reste cfA uschw it. O p. cit.; e a in d a A G A M B E N , G . L e tem p s q u i reste: u n c o m m e n ta ire d e l’JÉpitre a u x R o n ia in s (2 0 0 0 ). T rad . J. R evel. P aris: P a y o t & R iva g es, 2000.

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Ernesto De Martino.109 Há, então, um a ambigüidade, tanto no plano do método quanto no plano político, em passar, com o Agamben o faz com frequência, de um a reflexão antropológica sobre a potência das sobrevivências a uma assunção filosófica do poder das tradições. Tal é, por exem­ plo, a interpretação dada pelo filósofo italiano ao tempo messiânico segundo São Paulo: desemboca de um lado, em um a referência preciosa à imagem benjaminiana enquanto “legibilidade” do tempo e “agora de sua conhecibilidade”.110 Mas, de outro lado, essa interpretação se reapropria do horizonte teológico de toda a tradição judaico-cristã para fazer dela um paradigm a político, o que aparece com força na obra mais recente do filósofo, “Le règne et la gloire”111 [O reino e a glória]. Ora, imagem não é horizonte. A imagem nos oferece algo próximo a lampejos (lucciole), o horizonte nos promete a grande e longínqua luz (luce). Tratando-se da relação fun­ damental - mas oh! quão problemática - entre pensamentos

109 W A R B U R G , A . L a d iv in a íio n p a ie n n e e t a n tiq u e d a n s le s é c rits e t le s im a g e s à le p o q u e d e L uther. In: D E M A R T I N O , E. L a fin e dei m o n d o : co n trib u to a lla n a lis i d elle a p o c a lissi cu ltu r a li (1 9 6 1 - 1 9 6 5 ). T u rin : E in a u d i, 1 9 7 7 (éd. 2 0 0 2 ). p. 2 4 5 -2 9 4 . 110 A G A M B E N , G . L e tem p s q u i reste: u n c o m m e n ta ire d e 1’É p itre a u x R o m a in s (2 0 0 0 ). T rad . ]. R evel. P aris: P ay o t & R iv a g e s, 2 0 0 0 . p . 2 2 0 -2 2 7 . 1,1 Id ., L e rè g n e et la g lo ire: p o u r u n e g é n é a lo g ie th é o lo g iq u e d e 1’é c o n o m ie et d u g o u v e rn e m e n t. I n : ________. H o m o sac er. (2 0 0 7 ). T rad . ]. G a y ra u d et M . R u eff. P aris: L e S eu il, 2 0 0 8 . v. II, 2.

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da história, posições políticas e tradições messiânicas, essa distinção pode se m ostrar preciosa para se considerar o recurso às sobrevivências e o retorno às tradições, em pen ­ sadores tais como Franz Rosenzweig e Walter Benjamin, de um lado,m Carl Schmitt e Ernst Jünger, de outro. Com o bem o m ostrou Stéphane M osès em um de seus mais recentes textos, o m essianism o benjaminiano, depois daquele de Rosenzweig, trata de uma imagem lacunar do futuro, e não de um grande horizonte de salvação ou de fim dos tem pos.113 A fam osa “porta estreita” do messianismo, em Benjamin, mal se abre: “um segundo”, diz ele.114 M ais ou m enos o tempo que é preciso a um vaga-lume para iluminar - para chamar - seus congêneres, pouco antes de a escuridão re­ tomar seus direitos. A imagem se caracteriza por sua intermitência, sua fragi­ lidade, seu intervalo de aparições, de desaparecimentos, de reaparições e de redesaparecimentos incessantes. É, então, uma coisa bem diferente pensar a saída messiânica como imagem (diante da qual não se poderá durante muito tempo

112 E ta m b é m H e rm a n n C o h e n , M a r tin B u b e r, G e r s h o m S c h o le m , E r n s t B lo ch , H a n s Jo n a s, L e o S tr a u ss o u E m m a n u e l L e v in a s, c u jo m e s s ia n is m o fo i o b je to d a im p o r ta n te sín te se d e B O U R E T Z , P. T ém oin s d u fu t u r : p h ilo so p h ie et m e ssia n ism e , P aris: G a llim a r d , 2 0 03. 113 M O S È S , S. M e s s ia n is m e d u te m p s p ré se n t. L ig n e s, n. 2 7 , p . 35, 2 0 0 8 . 114 B E N J A M I N , W. S u r le c o n c e p t d ’h isto ire (1 9 4 0 ). T rad . M . d e G a n d ílla c , r e v ista p o r P. R u sc h . I n : ________. CEuvres. P aris: G a llim a r d , 2 0 0 0 . p. 4 4 3 . v. III.

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mais acalentar ilusões, um a vez que ela desaparecerá logo) ou como horizonte (que apela para uma crença unilateral, orientada, apoiada no pensamento de um além permanente, na espera de seu futuro sempre). A imagem é pouca coisa: resto ou fissura (fêlure). Um acidente do tempo que a torna momentaneamente visível ou legível."5 Enquanto o hori­ zonte nos promete o todo, constantemente oculto atrás de sua grande “linha” de fuga. “Um a das razões pelas quais eu tenho reservas a respeito de todos os horizontes”, escreve Derrida em Force de loi [Força de lei], “por exemplo, a ideia reguladora kantiana ou o advento messiânico, ao menos em sua interpretação convencional, é que são justamente horizontes. Um horizonte, com o seu nome o indica, em grego, é ao m esm o tempo a abertura e o limite da abertura que define ora um progresso infinito, ora um a espera.” 116 A complexidade do pensamento de Agamben talvez se deva ao fato de que o regime da imagem e o do horizonte se encontram constantemente misturados ou sub-repticiamente associados, como se o primeiro - que é um regime empírico de abordagem e de aproximação locais - valesse apenas para liberar o espaço im enso do segundo, regime do longínquo, do apogeu, do absoluto. Enquanto leitor de 115 C f. C O H E N - L E V I N A S , D . L e te m p s d e la fêlure. Lignes, n. 2 7 , p. 5 -8 , 2 0 0 8 ; Id ., Tem ps contre tem p s: le m e s s ia n is m e d e la u tr e ; ibid ., p. 7 9-9 2 . 116 D E R R ID A , J. Force de loi. L e “fo n d e m e n t m y stiq u e d e la u t o r it e l P a ris: G alilé e, 1994. p. 57.

III - APOCALIPSES?

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Benjamin, Agamben é um filósofo da imagem (um pouco como Pasolini quando construía seus filmes por fragmentos ou em gros plans), daí essa maneira de filologia pela qual descobrimos, frequentemente com encantamento, a potên­ cia oculta do m enor gesto, da menor letra, do menor rosto, do menor lam pejo.117 Mas, enquanto leitor de Heidegger, Agamben procura o horizonte atrás de cada imagem (um pouco com o Pasolini quando decidiu julgar o todo e os fins da civilização na qual vivia). Ora, esse horizonte modifica infalivelmente o cosm os metafísico, o sistema filosófico, o corpus jurídico ou o dogm a teológico. É assim que “Le règne et la gloire” se apresenta como um a grande investigação filológica que se abre em dois planos fundamentais: de um lado, o mundo das fontes no qual Agamben nos faz descobrir um a fundamental “cisão da soberania” entre “reino” e “governo”.118A erudição filológica, a glosa e o método arqueológico - o de Michel Foucault e, mais ainda, o de Ernst Kantorowicz, por exemplo - 119

117 C f., p o r e x e m p lo , o s e stu d o s r e u n id o s e m A G A M B E N , G . Im a g e et m é m o ire : é c rits su r 1’im a g e , la d a n s e et le c in é m a . T rad . M . D eH ’O m o d a r m e , r e v ista p o r D . L o a y z a e C . C o q u io . P aris: D e sc lé e d e B ro u w er, 2 0 0 4 ; o u e m P r o fa n a tio n s (2 0 0 5 ). T rad . M . R u eff. P aris: P ay o t & R iv a g e s, 2 0 05. us A G A M B E N , G . L e r è g n e et la glo ire: p o u r u n e g é n é a lo g ie th é o lo g iq u e d e le c o n o m ie et d u g o u v e r n e m e n t. I n : ________. H o m o sa c e r. (2 0 0 7 ). T r a d . J. G a y r a u d et M . R u e ff. P aris: L e S e u il, 2 0 0 8 . p . 1 1 5 -1 6 7 . v. II, 2. liy Ib id ., p. 2 5 7 -2 9 5 .

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parecem ocupar, no pensam ento de A gam ben, o papel dedicado à poesia no de Pasolini: eles dão forma à potência, à violência intrínseca de seu pensamento. Por outro lado, é o mundo dos fins que se abre à nossa vista e concerne, desde logo, a nossa própria situação contemporânea. M as tudo isso sobre o fundo de um a terrível, de uma desesperante ou desesperada, de uma inaceitável equivalência política dos extremos imersos no m esmo horizonte, na m esm a claridade ofuscante do poder.

III-A PO C A LIPSES?

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IV

POVOS

O que desaparece nessa feroz luz do poder não é senão a menor imagem ou lampejo de contrapoder. Eis porque o judeu Walter Benjam in se vê convocado por Giorgio Agamben no mesmo plano que o nazista Carl Schmitt, e eis porque o comunista Pasolini se vê convocado no mesmo plano que o personagem fascista de seu próprio filme Salò: “Benjamin tinha razão nesse sentido, quando afirmava que não há nada de mais anárquico que a ordem burguesa; e o dito espirituoso que Pasolini colocava na boca de um dos hierarcas de seu filme Salò era perfeitamente sério: ‘A única anarquia verdadeira é a do poder’.” 120 Benjamin, sabe-se, utilizou por conta própria certos conceitos extraídos da Théologie politique [Teologia política] de Carl Schmitt, em particular o fam oso “estado de exceção”, cujo valor de uso o próprio Agamben estendeu à análise de nossas socieda­ des contemporâneas.121 M as a utilização por Benjamin do !2° Ib id ., p. 108. 121 I d É tat d e x c e p tio n . In:

. H o m o sa c e r (2 0 0 3 ). T rad . J. G a y r a u d . P aris:

L e S eu il, 2 0 0 3 . v. II, 1.

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conceito schmittiano tinha somente como objetivo derrubar justamente seu conteúdo: para substituir à tradição do poder - que se radicaliza e se “totaliza” exemplarmente na política nazista form alizada pelo próprio Schmitt122 - um a tradição dos oprimidos que caracteriza, à sua época, a luta a qualquer preço contra o fascismo: “A tradição dos oprim idos nos ensina que o estado de exceção’ no qual vivemos é a regra. Devemos chegar a uma concepção da história que dê conta dessa situação. Descobriremos, então, que nossa tarefa con­ siste em instaurar o verdadeiro estado de exceção; e assim consolidarem os nossa posição na luta contra o fascismo.”123 Agamben, ao retomar Carl Schmitt, parece caminhar na esteira de Jacob Taubes, cujas glosas ele prolonga, tanto na extensão dos conceitos escatológicos, quanto naquele mais pontual do comentário de São Paulo.124Taubes havia tentado explicitar a razão de ter recorrido a Carl Schmitt através da expressão - emprestada ao vocabulário heraclitiano - degegenstrebige Fügung, a “junção de tensões opostas” [lajointure contre-tendue]. Estigmatizado como judeu e como inimigo por um a corrente de pensamento de onde ele extraía, no

122 S C H M I T T , C . É tat, m ouvem en t, p eu p le: 1’o r g a n isa t io n tr ia d iq u e d e lu n it é p o litiq u e (1 9 3 3 ). T rad . A . P illeu l. P aris: É d itio n s K im é , 1997. ™ B E N J A M I N , W. S u r le c o n c e p t d ’h isto ire , art. cit., p. 433. 124 T A U B E S , J. A ben d lü n d isch e E sch ato lo gie (1 9 4 7 ). M u n ic h : M a tth e s u n d S e itz V erlag, 1991. l í i , L a Th éologie p o litiq u e de sa in t P a u l (1 9 8 7 ). T rad . M . K õ lle r et D . S é g la r d . P a ris: L e seu il, 1991.

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entanto, sua própria energia teórica, Taubes formulava, a respeito de Martin Heidegger como de Carl Schmitt, um diagnóstico de um a grande clareza: “São homens levados por um ressentimento [...] m as que, com o gênio do ressen­ timento, renovam a leitura das fontes”, em troca do que, eles revelam melhor que ninguém o próprio horizonte de todo o pensamento ocidental do poder.125 Mas, ao recusar “julgar” aqueles m esm os que form ali­ zavam sua exclusão enquanto inimigo radical,126 Taubes, ao que rae parece, já se absteve de compreender a falha, o ponto de bifurcação que, decisivamente, separa um con­ ceito form ulado com todo rigor, com toda legitimidade - seja ele o de “soberania” ou de “estado de exceção”- , 127 das escolhas através das quais gostaríam os de orientar sua colocação em prática. Ora, essas escolhas são elas próprias

125 Id., E n divergent accord-, à p r o p o s d e C a rl S c h m itt (1 9 5 2 -1 9 8 7 ). T rad . P. Ivernel. P aris: P ay ot & R iv ages, 2003. p. 112. 126 Ib id ., p. 6 7 -6 8 e 107: “E n q u a n to ju d e u n o m a is p r o fu n d o ju s t a m e n t e , eu h e s i­ ta r e i a c o n d e n a r irre v o g a v e lm e n te . P o r q u e e m to d o e sse h o r r o r in e x p r im ív e l, f ic a m o s p r e s e r v a d o s d e u m m a l. N ã o t ín h a m o s e sc o lh a : H itle r n o s e s c o lh e u c o m o in im ig o a b so lu to . M a s o n d e n ã o h á n e n h u m a e sc o lh a , t a m b é m n ã o h á ju lg a m e n t o , e so b r e t u d o ju lg a m e n t o s o b r e o o u tro . [...] E e u d is s e a m im m e s m o : e s c u ta u m p o u c o , Ja c o b , v o c ê n ã o é o ju iz , e n q u a n to ju d e u p r e c is a ­ m e n te , v o c ê n ã o é o ju iz [...].” S o b r e C a r l S c h m it t e s u a “q u e s tã o ju d ia ”, cf. o e s t u d o d e G R O S S , R . C a r l S c h m itt et le s ju ifs (2 0 0 0 ). T r a d . D . T rie rw e ile r. P a ris: P U F , 2 0 0 5 . 127 S C H M I T T , C . T h é o lo g ie p o litiq u e : q u a tr e c h a p itre s s u r la th é o r ie d e la so u v era in e té (1 9 2 2 ). T rad . J.-L. S ch legel. I n :________. Th éologie p o litiq u e (1 9 2 2 ,1 9 6 9 ) . P aris: G a llim a rd , 1988. p. 9-75.

IV 'P 0 V 0 S

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orientadas por um horizonte: toda a questão é de saber o que queremos fazer com um conceito seja ele qual for, até onde se quer torná-lo operatório. Um dos raros momentos em que Taubes marca claramente sua escolha, isto é, seu protesto, sua tom ada de posição no debate que ele enseja com Carl Schmitt, é quando escreve: “Pretendo lhe m ostrar que a separação dos poderes entre mundano e espiritual é absolutamente necessária, se essa linha de dem arcação não for traçada, não poderem os mais respirar. É o que eu queria fazê-lo assim ilar contra a ideia totalitária que ele tinha.” 128 A recente contribuição de Giorgio Agamben nesse debate concerne não à reivindicação da separação contra a totalização do poder, como o faz aqui Taubes, m as à observação des­ sa separação até nas formas m ais totalizantes da soberania, por exemplo na “distinção entre reino e governo”, distinção de longa duração que Carl Schmitt, segundo Agamben, “reelabora num a nova perspectiva” no momento em que reflete, em 1933, por conta de Hitler, sobre as relações entre “estado”, “movimento” (isto é, o partido nazista) e o “povo”.129 O autor de Homo sacer se situaria então, em seu pensamento sobre a soberania, além de toda separação, assim como de

128 T A U B E S , ]. O p. cit., p. 111. 129 A G A M B E N , G . L e r è g n e et la g lo ire : p o u r u n e g é n é a lo g ie th é o lo g iq u e d e le c o n o m ie e t d u g o u v e r n e m e n t. I n : ________. H o m o sa c e r. (2 0 0 7 ) . T r a d . J. G a y r a u d et M . R u eff. P aris: L e S eu il, 2 0 0 8 . p . 124. v. II, 2 (e m re fe r ê n c ia a S C H M I T T , C . É ta t, m ou vem en t, p eu p le. O p. cit.).

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toda totalização: a segunda estaria sempre dividida, e a primeira sempre totalmente, radicalmente operando nessa genealogia do poder no Ocidente.130 O paradoxo de tal economia - palavra central em toda análise de Agamben - é que permite assum ir “seriamente” o dito espirituoso do carrasco de Salò: “A única verdadeira anarquia é a do poder.”131 Não haveria, assim, mais distin­ ção a fazer - enquanto Taubes, por sua vez, insiste ainda em sinalizar sua importância (a da distinção) - entre os “apocalípticos da revolução”, como o foram Léon Trotski, Bertolt Brecht ou o próprio Benjamin, e os “apocalípticos da contrarrevolução”, como o foram Oswald Spengler, Ernst Jünger, Martin Heidegger ou o próprio Carl Schmitt.132O que cai por terra, em tal horizonte de pensamento, não é senão a possibilidade de trazer um a resposta ou um a objeção à economia do poder assim descrita. Agamben sabe muito bem - na esteira de Guy Debord, por exemplo - que não há reino nem glória sem efeitos destrutivos de trevas e de opressão. Mas ele se abstém de falar disso, parece ver somente a ofuscante luz do reino e de sua glória. Para onde foi então o “verdadeiro estado de exceção” que Benjamin desejava em 1940, no contexto de sua própria “luta contra o fascismo” ?



Ib id ., p. 1 15-167.

131 Ib id ., p . 108. 132 T A U B E S , J. E n divergent ac co rd . Op. cit., p , 37 e 109.

ÍV-PO VO S

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Pode-se fazer um a genealogia do poder sem desenvolver o contratema que aí constitui a “tradição dos oprimidos”? Para onde foram, em tal economia, os vaga-lumes? ^

"V* ^

Os vaga-lumes, em tudo isso, não sofrem nada menos - metaforicamente, é evidente - que a sorte dos próprios povos expostos ao desaparecimento. No início dos anos de 1970, Pasolini se m ostra ainda em toda sua potência de ver e de se mover: ele deixa a Itália para ir para a Eritréia, um a viagem cujo objetivo é o de fazer um a reportagem e o casting para seu filme Les mille et une nuits [As mil e uma noites]. Ali, tudo é vaga-lume, um a seqüência incomparável de maravilhas diante da lum inosidade, beleza dos povos encontrados: “ [...] eu me emocionei até às lágrim as com aqueles traços delicados, um pouco irregulares [...] essa violência não excluía a graça, ela fazia parte das coisas da vida [...] de um a população revoltada. [...] Decidi-me por Fessazion Gherentiel, o barm an de um desses pequenos bares, aparição esplêndida, o sorriso explodindo em seu rosto com o um a luz silenciosa”,133 e cosi via. Mas, dois anos mais tarde, tendo retornado a Roma, os ferozes projetores do 133 P A S O L IN I, P. P. M e s m ille et u n e n u its (1 9 7 3 ). T rad . H . Jo u b ert-L au ren cin . In: _______ . É crits su r le ciném a. Lyon: P re sse s U n iv ersitaires d e L yo n -In stitu t Lum ière, 1987. p . 2 3 2 -2 3 8 . (T exto in felizm en te n ã o in c lu íd o n a e d ição m a is recen te d e É crits su r le cin ém a. P etits d ia lo g u e s avec le s film s 1957-1974. P aris: C a h ie rs d u cin ém a, 2 0 0 0 . M e u s a g rad e cim e n to s a D elp h in e C h a ix p e la in fo rm ação .)

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neofascismo ofuscaram tudo: Pasolini, então, deixa o povo desaparecer

infelizmente, eu o amava, esse povo [...]” -, ele

o abandona sob a lei do reino e sob a luz da glória. O povo, a seus olhos, a partir de então, foi esquecido. Estilisticamente falando, o artigo dos vaga-lumes é somente um túmulo dos povos perdidos.134 As recentes conclusões de Agamben, uma vez mais, não deixam de ter relação com tal desespero político. Após dois notáveis capítulos “arqueológicos” dedicados - via Erik Peterson e Carl Schmitt, Andreas Alfõldi e Ernst Kantorowicz, Percy Ernst Schramm e Jan Assmann - à história dos aspectos cerimoniais do poder, em seguida à própria noção de “glória” (Herrlichkeit) “desestetizada”, com a finalidade de ser melhor articulada à do “reino” como tal (Herrschaft),135 Agamben abre um limiar que aparece como a própria con­ clusão de sua investigação, ainda que provisória, no imenso arquipélago de Homo sacer.'36 Investigação que o terá con­ duzido, enfim, “à proximidade do centro da m áquina que a glória recobre com seu esplendor e seus cantos”.137 134 N o o r ig in a l e m fran c ê s: “ L e p e u p le est, à se s y eu x , d é so r m a is, tom bé. Stylistiq u e m e n t p a rla n t, 1’article d e s lu c io le s ríest q u u n to m b eau d e s p e u p le s p e rd u s.” N a tr a d u ç ã o p a ra o p o r tu g u ê s n ã o foi p o ssív e l m a n te r a e q u iv a lê n c ia en tre o s sig n ific a n te s g r ifa d o s p e lo au tor. (N .T .) 135 A G A M B E N , G . L e rè g n e et la g lo ire : p o u r u n e g é n é a lo g ie th é o lo g iq u e d e le c o n o m ie et d u g o u v e r n e m e n t. I n : ________. H o m o sa c e r. (2 0 0 7 ) . T ra d . J. G a y r a u d et M . R u eff. P aris: L e S e u il, 2 0 0 8 . p . 2 5 7 -3 7 6 . v. II, 2. 136 Ib id ., p . 3 7 7 -3 8 5 . 137 Ib id ., p. 3 77.

IV - POVOS

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M áquina do reino (Herrschaft) e espetáculo da glória (Herrlichkeit): esta oferecendo àquela sua própria luz, senáo sua voz. “Jamais, sem dúvida, um a aclamação no sentido técnico foi pronunciada com tanta força e eficácia com o o Heil Hitler na Alemanha nazista ou o Duce Duce na Itália fascista.” 138E hoje? “Esses clamores unânimes que ressoavam ontem nas praças de nossas cidades”, responde primeiro Agamben, “parecem hoje pertencer a um passado longínquo e irrevogável.” “M as é de fato assim ?”, interroga-se ele im e­ diatamente depois.139Compreende-se, então, que a questão deveria, antes, ser formulada da seguinte maneira: como a vitória das dem ocracias ocidentais sobre os totalitarismos da Alemanha hitlerista e da Itália fascista terá transformado, “secularizado”, até prolongado um fenômeno de culto cujo apogeu se encontra perfeitamente colocado em cena no Triumph des Willens filmado por Leni Riefenstahl? Ora, é a Carl Schmitt que Agamben dá a palavra para responder a essa pergunta. Ele cita a Verfassungslehre [Teoria da Constituição], texto de 1928 em que se exprimia a crítica conservadora do jurista a respeito da República de Weimar: Somente uma vez fisicamente reunido é que o povo é povo, e somente o povo fisicamente reunido pode fazer o que cabe espe­ cificamente à atividade desse povo: ele pode aclamar [...]. A partir 138 Ib id ., p. 377-378. I3y Ib id ., p. 378.

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do momento em que o povo está fisicamente reunido - pouco importa com que objetivo [...] nas festas públicas, no teatro, no hipódromo ou no estádio -, esse povo com suas aclamações está lá e constitui, ao menos potencialmente, uma potência política.140

Onde Carl Schmitt evocava um povo unânime reunido no estádio seis anos antes das grandes manifestações de Nuremberg, seja no horizonte do totalitarismo nazista, Giorgio Agamben buscará, nesse mesm o texto, alguma coisa que va­ lha como diagnóstico para aquilo que nos cabe, hoje, oitenta anos depois dele, e no horizonte da democracia ocidental. M as será preciso, para isso, reduzir a “potência política” do povo de aclam ação - rom ana, bizantina, medieval... totalitária - , e devolvê-la ao que as democracias nomeiam a opinião pública: A opinião pública é a forma moderna da aclamação. E talvez uma forma difusa, e o problema que ela coioca não se resolve nem sociologicamente nem em direito público. Mas é a possibilidade de interpretá-la como aclamação que lhe confere sua essência e sua importância política. Não há democracia e nem Estado sem opinião pública, da mesma forma que não há Estado sem aclamações.141

140 Ib id ., p. 3 7 8 -3 7 9 (c ita n d o C . S c h m itt, T h éorie d e la con stitu tio n (1 9 2 8 ). T rad . L. D e ro c h e . P aris: P U F , 1993. p. 3 8 2 -3 8 3 ). 141 Ib id ., p. 3 7 9 (c ita n d o C . S c h m itt, T h éorie de la con stitu tion . O p. cit., p. 38 5 .)

IV-PO VO S

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Perguntar-se-á então: o que faz da opinião pública nas dem ocracias um estrito equivalente - haveria diferenças, elas não são evocadas - da aclamação nos sistemas de poder absoluto? É a Guy Debord que Agamben passa, de agora em diante, a palavra, para responder a essa questão: a “sociedade do espetáculo” é para a opinião pública hoje o que a sub­ m issão das multidões foi para os totalitarismos de ontem. [...] o que aqui nos interessa, é o fato de que a esfera da glória - cujas significação e arqueologia tentamos reconstituir - não de­ saparece nas democracias modernas, mas se desloca simplesmente para um outro contexto, o da opinião pública. Se esse for mesmo o caso, o problema da função política das mídias nas sociedades contemporâneas, hoje tão discutido, adquire uma nova significa­ ção e uma nova urgência. Em 1967, com um diagnóstico cuja justeza nos parece hoje evidente, Guy Debord constatava a transformação em escala planetária da política e da economia capitalista em uma “imensa acumulação de espetáculos”, onde a mercadoria e o próprio capital tomam a forma midiática da imagem. Se aproximarmos as análises de Debord da tese de Schmitt sobre a opinião pública como forma moderna da aclamação, o problema da atual dominação espeta­ cular das mídias, em todos os aspectos da vida social, aparece sob um novo olhar. O que está em questão não é nada mais que uma nova e espantosa concentração, multiplicação e dissemina­ ção da função da glória como centro do sistema político. O que

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ficava outrora confinado nas esferas da liturgia e do cerimonial se concentra nas mídias e, ao mesmo tempo, através delas se di­ funde e se introduz em todos os momentos e em todos os meios, tanto públicos quanto privados, da sociedade. [Assim,] o Estado holístico fundado sobre a presença imediata do povo aclamando e o Estado neutralizado, dissolvido nas formas comunicacionais sem sujeito estão em oposição apenas aparentemente. Eles são somente as duas faces do mesmo dispositivo glorioso sob suas duas formas: a glória imediata e subjetiva do povo aclamante e a glória midiática e objetiva da comunicação social.142

As imagens - que Agamben reduz aqui à “forma m idiá­ tica da imagem” - assumem, assim, no mundo contem po­ râneo, a função de um a “glória” presa à máquina do “reino” : imagens luminosas contribuindo, por sua própria força, para fazer de nós povos subjugados, hipnotizados em seu fluxo. O diagnóstico não é, sem dúvida, falso. Ele corresponde às sensações de sufocamento e de angústia que nos invadem diante da proliferação calculada das imagens utilizadas, ao mesmo tempo, como veículos de propaganda e de merchandising. M as esse diagnóstico aparece, no livro de Agamben, como verdade última: a conclusão de seu livro tanto quanto o horizonte apocalíptico do qual ele procede. De m odo que 142 A G A M B E N , G . L e rè g n e et la g lo ire : p o u r u n e g é n é a lo g ie th é o lo g iq u e de le c o n o m ie et d u g o u v e rn e m e n t. In: ________. H o m o sacer. (2 0 0 7 ). T rad . J. G a y ra u d et M . R u eff. P aris: L e S e u il, 2 0 0 8 . p. 3 8 0 -3 8 1 e 383. v. II, 2.

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ele acaba por desdialetizar, desconflitualizar, empobrecer tanto a noção das imagens quanto a dos povos. A imagem não é mais, nesse caso, uma alternativa ao horizonte, a lucciola como alternativa à luce. Ela não parece mais que um a pura função do poder, incapaz do menor contrapoder, da menor insurreição, da menor contraglória. O que indica bem mais do que um a simples questão de estética, lembremo-nos: do estatuto da imagem - do valor de uso que se lhe atribui depende efetivamente o aparecer do político enquanto tal, o que compromete todo o “valor de exposição” dos povos confrontados ao “reino” e à sua “glória”. Se o desenvolvimento de Agamben acaba por estabelecer um a espécie de equivalência desencantada entre dem ocra­ cia e ditadura no plano de um a antropologia da “glória”, é porque imagens e povos foram inicialmente reduzidos, as prim eiras a puros processos de assujeitamento, os outros a puros corpos subjugados. Pasolini, em 1975, terá sem dúvida declarado seu desencorajamento quanto ao povo italiano, m as as pequenas pessoas que assistiam ao espetáculo de marionetes, em Che cosa sono le nuvole? [O que é o novo?], em 1967, não hesitaram em protestar, em se levantar de seus assentos, em invadir a cena, num a palavra, em se insurgir por um a ruptura concreta das regras im postas pela repre­ sentação. Ao deixar falar em seu lugar Carl Schmitt, de um lado, e Guy Debord, de outro, Agamben não vê nenhuma

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alternativa à assustadora “glória” do espetáculo. E, sobre­ tudo, vê no povo apenas o que dizem Carl Schmitt e Guy Debord: ou seja, algo que só se pode definir privativamente, negativamente. “Com o isso devia ser hoje evidente, povo-nação e povo-comunicação, apesar da diferença dos comportamentos e das figuras, são as duas faces da doxa que, enquanto tais, se entrelaçam e se separam sem cessar nas sociedades contemporâneas.” 143 Todas as diferenças, num tal conceito dos povos, seriam então redutíveis ao m esmo estatuto, ao m esm o destino: a doxa, a opinião, a crença. O que sucumbe aos enganos das aparências sensíveis, o que pensa mal e produz falsos conhecimentos. Num a palavra, tudo o que o idealism o filosófico opõe tradicionalmente à épistémè, o conhecimento verdadeiro, a ciência inteligível, a apreensão das ideias justas. Essa definição vem, talvez, de muito longe, isto é, de Platão. Mas, na economia do livro de Agamben, ela se conclui com Carl Schmitt, que recolhe, no que lhe diz respeito, toda uma tradição conservadora do medo das mul­ tidões144e a amplia, prolonga-a numa vontade constitucional de dominá-las, de contê-las, de subjugá-las. 143 Ib id ., p . 3 8 3 (p r o p o siç ã o r e ite r a d a in fin e , p . 3 8 5 ). 144 C f. M O S C O V I C I , S. L’ âge d e sfo u le s: u n tra ité h isto r iq u e d e p sy c h o lo g ie d es m a s s e s (1 9 8 1 ). B ru x elles: Ê d itio n s C o m p le x e , 1991 (é d . re fo n d u e ). E , p a r a o c o n tr a - a r g u m e n to d ialé tico , id ., Psychologie des m in o rités activ es (1 9 7 6 ). T rad . A . R ivière. P aris: P U F, 1979.

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É o que se vê em Carl Schmitt, em 1928, no contexto m esm o das páginas que Agamben extraiu da Verfassungslehre: a noção de povo aí está, primeiramente, reduzida à unificação de um a essência (não há multiplicidades, não há singularidades naquele povo); em segundo lugar, reduzida a se expressar como simples negatividaáe. Em razão de sua essência, o povo não é uma magistratura e, mesmo em uma democracia, jamais uma autoridade constituída dotada de uma competência. [...] A noção de povo é aqui definida negativamente, em realidade, por oposição ao sistema organizado do Estado em administrações e em magistraturas. Além dessa ne­ gação do caráter administrativo, é característico da noção de povo que ela se defina negativamente mesmo em outros campos. Definir o povo negativamente, dessa maneira, não toca unicamente, em geral, num ponto sociologicamente importante (por exemplo, num teatro, o público define-se como a parte da assistência que não representa); essa negatividade específica também não deve mais ser desconhecida no estudo científico das teorias políticas. Num sentido particular da palavra, o “povo” são todos aqueles que não são distintos e diferenciados, todos os que não são privilegiados, todos os que não são colocados acima do conjunto por suas posses, sua posição social ou sua formação.145

145 S C H M I T T , C . T h éorie de la co n stitu tion . T ra d . L. D e ro c h e . P aris: P U F , 192 8 . p. 2 1 8 e 381.

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Notemos, enfim, que essa definição negativa se encontra na abertura do capítulo da Verfassungslehre dedicada aos “limites da democracia”.146 E que o texto de 1933 intitulado Staat, Bewegung, Volk - que conheceu, até 1935, três edições sucessivas - consagrará, logicamente, a “unidade do povo” sob o reino do Estado, sob o controle do partido único e no horizonte que indica claramente sua última frase: “todas as perguntas e respostas desem bocam na exigência de uma identidade da raça (Art), sem a qual um Estado total do Führer não pode subsistir um só dia.” 147 Ao adotar os diagnósticos de Carl Schmitt, Agamben não adota, evidentemente, as visadas “terapêuticas” dele. M as um a resposta sempre está inscrita na form a m esm a de toda questão colocada: ela insiste sobre isso, por assim dizer. Por colocar a questão nesses term os unilaterais esses term os que não adm item a m enor contraform a ou “contraquestão” -, Agamben fecha sua investigação sobre a cor sombria, cinzenta, de uma consciência infeliz condenada a seu próprio horizonte, a sua própria clausura. A respeito da consciência infeliz e sua “cisão interior”, Hegel escrevia que a “consciência da vida, [a] consciência do estar-aí e da operação da própria vida, é somente a dor imposta ao sujeito deste estar-aí e dessa operação; pois ela tem aqui somente

14e Ib id ., p. 4 1 9 -4 2 0 . 147 S C H M I T T , C . Ê tat, m ou vem en t, peu ple. O p. cit., p. 63.

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a consciência de seu contrário e de seu próprio nada.”148 Quanto a mim, eu não consigo im aginar um pensamento político que deixa a seu inimigo a definição e o controle de seus conceitos mais fundamentais. Poder-se-ia, desse ponto de vista - e sem m esmo prejulgar os resultados obtidos nes­ ses dois exemplos

comparar o horizonte cruel concebido

por Giorgio Agamben ao horizonte alegre imaginado, em outra obra, por Antônio Negri e Michael Hardt, ao oporem o “império” do reino e da glória contemporâneos à “multidão” como nova “possibilidade da democracia”.149

D a m esm a forma que Pasolini, por suas posições tão extremas quanto paradoxais, havia suscitado reações tão es­ candalosas quanto unilaterais, Agamben foi alvo de críticas com um a violência que ofusca, com frequência, toda leitura mais aprofundada de seu trabalho. Por exemplo - e para ficar apenas no dom ínio francês -, Philippe Mesnard e Claudine Kahan fustigaram a análise do “muçulmano” desenvolvida em Ce qui reste d ’A uschwitz [O que resta de Auschwitz], enquanto Éric Marty atacava a noção de “exceção” elaborada 148 H E G E L , G . W. E P h én om én ologie d e Vesprít (1 8 0 7 ). T rad . J. H y p p o lite . P aris: A u b ie r - M o n ta ig n e , 1941. p. 178. v. I. C f. H A R D T , M .; N E G R I , A . E m p ire (2 0 0 0 ). T rad . D .-A . C a n a l. P a ris: E x ils, 2 0 0 0 (éd . “ 1 0 /1 8 ”, 2 0 0 4 ). Id ., M u ltitu d e, g u e rr e et áé m o c r a tie à lã g e de VEm pire (2 0 0 4 ). T ra d . N . G u ilh o t. P aris: L a D é c o u v e r te , 2 0 0 4 (éd . “ 1 0 /1 8 ”, 2 0 0 6 ).

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em État dèxception150 [Estado de exceção], A essas críticas unilaterais, Giorgio Agamben respondeu, recentemente, que o julgávam os no plano dos “fenômenos históricos” - aqui Auschwitz, lá Guantánamo -, quando sua análise tinha um caráter arqueológico e tratava apenas de paradigm as, “tendo por função construir e tornar inteligível por inteiro um contexto histórico-problemático bem m aior”.151 Agamben articula filosoficamente o aparecimento dos paradigmas, e sua “escavação” arqueológica da história como Pasolini, antes dele, articulava poeticamente suas imagens do presente a um a energia que ele extraía das sobrevivências, na arqueologia sensível dos gestos, cantos, dialetos, arquite­ turas em ruínas de Matera ou dos subúrbios de Roma. Há, em am bos os pensadores, uma grande impaciência quanto ao presente; m as sempre ligada a um a infinita paciência quanto ao passado. Nisso, eles nos são necessários uma vez que olham seu mundo contemporâneo com um a violência sem pre apoiada em im ensas pesquisas na espessura do tempo. Por isso m esmo eles escandalizam: porque levantam impensados, porque nos colocam com frequência face aos 150 M E S N A R D P.; K A H A N , C . G io rgio A g a m b e n à lép reu v e âA u sc h w itz . P aris: K im é , 2 0 01. p. 1 4-76; M A R T Y , É. A g a m b e n et les tâ c h e s d e 1’in telle ctu el: à p r o p o s d 'é ta t d èx ce p tio n . L es Tepm s M o d ern es, n. 62 6 , p. 2 1 5 -2 3 3 , 2 0 0 3 -2 0 0 4 (r e to m a d o e rev isto e m Une qu erelle com A la in B a d io u , p h ilo so p h e. P aris: G a llim a r d , 2 0 0 7 . p. 1 3 1 -1 5 5 ). 151 A G A M B E N , G . S ig n a tu r a reru m : su r la m é th o d e . T rad . J. G a y r a u d . P aris: V rin, 2 0 0 8 . p. 9.

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retornos do recalcado histórico. É, evidentemente, muito desagradável, quando se grita Forza Italia em um estádio de futebol - e m esmo quando não se grita para apoiar ex­ plicitamente Silvio Berlusconi - , ler os avisos de Agamben sobre as aclam ações medievais e seu destino no Duce Duce dos fascistas. Agamben e Pasolini nos interessam, então, antes de tudo, pelo que nomeei aqui uma política das sobrevivências que vai de par com toda política das imagens e da exposição política em geral. Não serve de nada acreditar em refutá-los sobre o único plano histórico (se argumentamos, por exemplo, que o entusiasmo pelo futebol não tem nada a ver com a política, o que pode ser verdade, ou que o cam po de Guantánamo não tem nada a ver com o de Auschwitz, o que é verdade). Parece-me necessário, ao contrário, debater, discutir as construções de Agamben no próprio plano em que elas querem se situar. E um a vez que o pensamento de Walter Benjamin, parece-me, dá a essas construções sua condição m esm a de possibilidade, pode ser útil voltar um pouco sobre o valor de uso das hipóteses benjamínianas, tanto no plano do método “arqueológico” como no plano da revelação dos “paradigm as”. A arqueologia filosófica que Giorgio Agamben reinvidica possui, ela própria, um a arquelogia ou, pelo menos, um a tradição m arcada pelos nom es de Kant, de N ietzsche

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e de Overbeck, de H erm ann Usener, de Heidegger, de Dumézil, de Michel Foucault [...] e, certamente, de Walter B enjam in .152 Este participa com sua célebre tese sobre o “anjo da história” que “avança em direção ao futuro tendo os olhos fixos no passado”.153 M as um a passagem m ais fundamental sobre essas questões, na expectativa de outros textos m ais explícitos sobre a ideia de escavação arqueológica,154encontra-se em “Préface épistémo critique” de Origine du drame baroque allemand [Origem do drama barroco alemão], em que Benjamin constrói a noção do que seria um a verdadeira “história filosófica considerada como ciência da origem”155 (philosophische Geschichte ais die Wissenschaft vom Ursprung). Esta, diz ele, “não emerge dos fatos constatados” - o que pode justificar a defesa de Agamben a respeito de seus detratores

“m as toca a sua pré

e pós-história” 156(er betrifft dessen Vor- und Nachgeschichte). Uma maneira, para Benjamin, de dar um a nova direção à dialética com o “testemunha da origem” (der Dialektik die dem Ursprung beiwohnt), no que ela “faz proceder dos

152 Ib id ., p . 9 3 -1 2 8 . 153 Ib id ., p . 114. 154 B E N J A M I N , W. F o u ille s et so u v e n ir (1 9 3 2 ). T rad . ).-F. P o irier. Im ag es dep en sée. P aris: C h r istia n B o u r g o is, 1998. p. 18 1 -1 8 2 . 155 Id ., O rigin e d u d ra m e b aro q u e a lle m a n d (1 9 2 8 ). T rad . S. M u lle r e A . H irt. P aris: F la m m a r io n , 1985. p. 45. 156 Ib id ., p. 44.

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extrem os afastados, dos excessos aparentes da evolução [...] onde tais oposições podem coexistir de uma maneira que faça sentido”.157 Eis também porque “a origem nunca se dá a conhecer na existência nua, evidente do factual, e sua rítmica (seine Rhythmik) só pode ser percebida num a dupla perspectiva. Ela pede para ser reconhecida, de um lado, como um a restauração, uma restituição (Wie derherstellung), de outro lado como algo que está, por isso mesmo, inacabado (unvollendet), sempre aberto.” 158 Isso significa, concretamente, que um a arqueologia filo­ sófica, em sua própria “rítmica”, é obrigada a descrever os tem pos e os contratempos, os golpes e os contragolpes, os tem as e os contratemas. Isso significa que falta fundam en­ talmente a um texto como “Le règne et la gloire” a descrição de tudo o que falta ao reino (quero dizer a “tradição dos oprim idos” e a arqueologia dos contrapoderes), com o à glória (quero dizer a tradição das obscuras resistências e a arqueologia dos “vaga-lum es”). À arqueologia das acla­ mações, oriunda de Ernst Kantorowicz e de Carl Schmitt, falta um a arqueologia das manifestações, e m esm o das revoluções, em que os povos fazem bem m ais que dizer “sim” - ou “não”, aliás, pois o “não” eventual das aclamações está sujeito às m esm as condições do cerim onial que fixa a instância do poder. É quando os povos se constituem em 157 Ib id ., p. 4 4 -4 5 . 158 Ib id ., p . 4 3 -4 4 .

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sujeitos políticos por inteiro, de m odo a m udar as regras do reino e da glória. Tudo isso é sublinhado por Benjamin em Paris, capitale du X IX e siècle [Paris, capital do século XIX] ou, ainda, nas Thèses sur le concept á ’histoire [Teses sobre o conceito de história], quando evoca a Revolução Francesa, a de 1848, e o movimento espartaquista, ou ainda quando descreve esse m om ento da Revolução de Julho em que “se viu em vários lugares de Paris, no m esm o momento e, sem que houvessem previamente combinado, as pessoas atirarem contra os relógios”.159 C aberia logicam ente a um a filosofia dos paradigm as assum ir a descrição dessa maneira de m udar as regras que, a despeito de sua radical novidade, encontra suas fontes ou seus recursos em algo como um a tradição oculta. Escreve Agamben: O paradigma é um caso singular que é isolado do contexto de que faz parte apenas na medida em que, ao apresentar sua própria singularidade, torna inteligível um novo conjunto cuja homogeneidade ele mesmo constitui. [...] Enquanto a indução procede do particular ao universal e a dedução do universal ao particular, o que define o paradigma é uma terceira espécie de movimento, paradoxal, que vai do particular ao particular [...] da 159 B E N J A M I N , W. P a r is ü . c a p ita le d u X I X e sièc le. O p. cit., p. 6 3 5 -6 8 4 e 7 8 8 -7 9 3 ; id ., S u r le c o n c e p t d ’h isto ire (1 9 4 0 ). T r a d . M . d e G a n d illa c , re v ista p o r P. R u sc h . I n : _______ . CEuvres. p. 44 0 . v. III.

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singularidade à singularidade e que, sem sair desta, transforma todo caso singular em exemplo de uma regra geral impossível de ser formulada apriori.'a)

E Agamben precisa, a respeito dessa paradoxal e informulável regra: “A suspensão da referência e do uso normal é aqui essencial.” 161 Ora, o que propõe o paradigm a da aclamação, na análise que dele é feita em “Le règne et la gloire” - ou, antes, nas conclusões a que Agamben, aí, chega, de Carl Schmitt e de Guy D ebord reunidos - ignora justamente essa capacidade de suspensão, de transform ação, de bifurcação. Schmitt procede antes por indução, inferindo de um a situação particular (aclamar) o universal de uma definição do povo (que, justamente, só sabe fazer isso, aclamar). Já Debord procede com mais frequência por dedução, inferindo de uma situação universal (a sociedade do espetáculo) a totalidade dos com portam entos particulares em que cada gesto dos povos acabará por se encontrar assim ilado à doxa, variante impotente da aclamação. Em resumo, o paradigm a perdeu sua própria potência: sua potência de sintoma, de exceção, de protesto em ato. Ele se transm ite sem tran sform ar

160 A G A M B E N , G . S ig n a tu r a reru m . S u r la m é th o d e (2 0 0 8 ). T rad . J. G a y r a u d . P aris: V rin , 2 0 0 8 . p. 19-20 e 24. 161 Ib id ., p. 26.

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verdadeiramente. Ele só faz reconduzir, por deslocamentos ou secularizações, as relações tradicionais do reino e da glória. Ironia da história, sem dúvida, é que seja em um filósofo bem diferente de Agam ben - e m esm o hostil a seu trabalho - que se encontre um caso exemplar, um paradigma em que a voz do povo soube impor sua singularidade para além de todo cerimonial de aclamação: penso nesse Cri du peuple [Grito do povo] restituído por Jacques Rancière, com Alain Faure, à “tradição dos oprim idos”, na abertura de sua investigação sobre Laparole ouvrière [A palavra operária] ,162

162 F A U R E , A .; R A N C I È R E , J. L a p a r o le o u v rière (1 9 7 6 ). P a ris: L a F ab riq u e , 2 0 0 7 . p. 3 7-43.

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Não se percebem absolutamente as m esm as coisas se ampliamos nossa visão ao horizonte que se estende, imenso e imóvel, além de nós; ou na proporção que se aguça nosso olhar sobre a imagem que passa, m inúscula e movente, bem próxima de nós. A imagem é lucciola das intermitências pas­ sageiras; o horizonte banha na luce dos estados definitivos, tempos paralisados do totalitarismo ou tem pos acabados do Juízo Final. Ver o horizonte, o além é não ver as imagens que vêm nos tocar. Os pequenos vaga-lumes dão forma e lampejo a nossa frágil imanência, os “ferozes projetores” da grande luz devoram toda forma e todo lampejo - toda diferença - na transcendência dos fins derradeiros. Dar exclusiva atenção ao horizonte é tornar-se incapaz de olhar a menor imagem. Talvez, somente em momentos de exaltação messiânica é que se pode, eventualmente, começar a sonhar com um horizonte que acolheria, que tornaria visíveis todas as im a­ gens. Em raras ocasiões, é o que aparece em Walter Benjamin

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quando se trata de uma hipotética história bem-sucedida, em que cada instante - cada imagem - poderia ver-se con­ vocada na duração absoluta, paradoxal, do Juízo Final: O cronista que relata os acontecimentos sem distinguir entre os grandes e os pequenos tem direito a esta verdade: de que nada do que um dia aconteceu está perdido para a história. Certamente, somente à humanidade redimida é devido plenamente seu pas­ sado. Isso quer dizer que somente para ela seu passado tornou-se integralmente citável. Cada um dos instantes vividos por ela torna-se uma “citação na ordem do dia” - e esse dia é justamente o do Juízo Final.163

M as esse “dia” não nos é dado. Cabe a nós apenas um a “noite” atravessada, aqui, pelo doce lampejo dos vaga-lumes; lá, pelo cruel raio dos projetores. As teses de Benjamin, sabe-se, se interrompem - com palavras que são, para nós, suas últimas palavras - sobre a imagem desta “porta estreita” m essiânica que encerra “cada segundo” de tempo investido pelo pensamento.164Essa moldura estreita, esse lapso ínfimo designam apenas, parece-me, a própria imagem: imagem que “passa como um relâmpago [...] imagem irrecuperável 16:1 B E N J A M I N , W. S u r le co n c e p t d ’h isto ire (1 9 4 0 ). T rad . M . de G an d illac , re v ista p o r P. R u sch . I n :_______ . CEuvres. p . 4 2 9 . v. III. 164 Ib id ., p. 4 4 3 .

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do p assado que está arriscada a desaparecer com cada presente que não a reconhece”.165 N a versão francesa de seu texto, Benjamin escreve que essa definição da imagem “se apoia sobre (um) verso de Dante” que ninguém, de meu co­ nhecimento, pôde ainda identificar.166M as essa lembrança, embora vaga, nos é preciosa: ela faz da imagem, algum lugar entre a Beatriz de Dante e a “beleza fugaz” de Baudelaire, a passante por excelência. A im agem seria, portanto, o lam pejo passante que transpõe, tal um cometa, a imobilidade de todo horizonte: “A imagem dialética é um a bola de fogo que transpõe todo o horizonte do passado”, escreve Benjamin no próprio con­ texto - os “paralipom ènes et variantes” [paralipômenos e variantes] manuscritos - de sua reflexão sobre a história e a política.167Nesse nosso mundo histórico - longe, portanto, de todos os derradeiros fins e de todo Juízo Final -, nesse mundo onde “o inimigo não para de vencer”"58 e onde o horizonte parece ofuscado pelo reino e por sua glória, o

165 Ib id ., p .4 3 0 . Id., S u r le co n c e p t d’h isto ire (1 9 4 0 ). In: M O N N O Y E R , J.-M . (éd .) É c rits fra n ç a is. P aris: G a llim a rd , 1991. p. 341. 167 B E N J A M I N , W P a r a lip o m è n e s et v a ria n te s d e s th è se s s u r le c o n c e p t d ’h isto ire (3 9 4 0 ). In : M O N N O Y E R , J.-M . (é d .) É c rits f r a n ç a is . P a r is: G a llim a r d , 1 991. p . 3 48. 168 Id ., S u r le co n c e p t d ’h isto ire . (1 9 4 0 ). T rad , M . d e G a n d illa c , r e v ista p o r P. R u sch. I n : _______ . CEuvres. P aris: P U F , 2 0 0 1 . p. 4 3 1 . v. III.

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primeiro operador político de protesto, de crise, de crítica ou de emancipação, deve ser chamado imagem, no que diz respeito a algo que se revela capaz de transpor o horizonte das construções totalitárias. Este é o sentido de um a reflexão, a meu ver capital, esboçada por Benjamin sobre o papel das imagens como m odos de “organizar” - isto é, também, de desmontar, de analisar, de contestar - o próprio horizonte de nosso pessim ism o fundamental: Organizar o pessimismo significa... no espaço da conduta política... descobrir um espaço de imagens. Mas esse espaço de imagens, não é de maneira contemplativa que se possa medi-lo. Esse espaço de imagens (Bíldraum) que procuramos... é o mundo de uma atualidade integral e, de todos os lados, aberta (die Welt allseitiger und integraler Aktualitãt)}69

A imagem: aparição única, preciosa, é, apesar de tudo, muito pouca coisa, coisa que queima, coisa que cai.170 Tal é a “bola de fogo” evocada por Walter Benjamin: ela apenas “transpõe todo o horizonte” para cair sobre nós, nos atingir (échoir). Ela apenas raramente se ergue em direção ao céu 1W I d ., P a r a lip o m è n e s et v a r ia n te s d e s t h è s e s s u r le c o n c e p t cT h istoire. O p. cit., p. 3 5 0 . C f. D I D I - H U B E R M A N , G . L’Im a g e b r ú le . In : Z IM M E R M A N , L. (d ir.). P en ser p a r les im ages. A u to u r d e s tra v a u x d e G e o r g e s D id i-H u b e rm a n . N a n te s: É d itio n s C é c ile D e fa u t, 2 0 0 6 . p. 11-52.

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imóvel das idéias eternas: em geral, ela desce, declina, se precipita e se danifica sobre nossa terra, em algum lugar diante ou atrás do horizonte. Com o um vaga-lume, ela aca­ ba por desaparecer de nossa vista e ir para um lugar onde será, talvez, percebida por outra pessoa, em outro lugar, lá onde sua sobrevivência poderá ser observada ainda. Se, de acordo com a hipótese que tentamos construir, a partir de Warburg e Benjamin, a imagem é um operador temporal de sobrevivências - portadora, a esse título, de uma potência política relativa a nosso passado como à nossa “atualidade integral”, logo, a nosso futuro -, é preciso então dedicar-se a melhor compreender seu movimento de queda em nossa direção, essa queda ou esse “declínio”, até mesm o essa declinação, que não é, por mais que Pasolini o tenha temido em 1975, seja o que for que pensa Agamben hoje, desaparição.

É preciso então voltar ao horizonte sem recurso (horizon sans ressource) que sugere a proposição liminar de Giorgio Agamben em Enfance et histoire, para confrontá-lo a essa ressurgência da imagem (ressource de Vimagé) que tentamos aqui apreender.171Agamben, como vimos, encara todo o con­ temporâneo sob o ângulo de um a destruição da experiência, 171 U tilizo e ste term o , “re sso u rc e ” a p ó s u m a d isc u ssã o recen te c o m L u d g e r Sch w arte, q u e c o m e n ta , n e sse se n tid o , o te rm o h e id e g g e ria n o d e M òglichkeit

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e funda sua tese sobre uma leitura de Benjamin: “O valor da experiência caiu de cotação

172Trata-se, certamente,

para Agamben, de uma destruição efetuada, acabada: e é isso que “torna hoje insuportável - mais do que ela foi no passado - a existência cotidiana”,173 mesm o nos momentos de guerra evocados pouco antes. D a m esm a forma que, aos olhos de Pasolini, havia um a destruição efetuada no desa­ parecimento dos vaga-lumes, Agamben converte a “queda” p a r a c r itic a r se u u s o p o r A g a m b e n n o se n tid o - n o d u p lo se n tid o - d o “p o d e r ” (potere). C f. S C H W A R T E , L. P h iloso ph ie d er A rchitektur. M u n ic h : W ilh elm F in k V e rlag, 2 0 0 9 . p. 3 2 5 -3 3 6 . S ig rid W eigel, p o r o u tro lad o , critic o u lo n g a ­ m e n te a le itu ra feita p o r A g a m b e n d o s te x to s d e B e n ja m in so b r e a v io lê n c ia , o e sta d o d e e x ce ç ão , a n o ç ã o d e se c u la r iz a ç ã o , a re la ç ã o en tre m á r tir e so b e r a n o , a ssim c o m o o u so d o s co n c e ito s ju ríd ic o s - t e o ló g ic o s p ro v e n ie n te s d a tra d iç ã o ju d a ic o - c r istã . C f. W F JG E L , S. W alter B e n ja m in : d ie K reatur, d a s H e ilig e , die B ild er. F ra n c fo rt-su r-le -M a in : F isc h e r V e rlag , 2 0 0 8 . p. 5 7 -109. E m e -m a il, d a t a d o d e 9 d e d e z e m b r o d e 2 0 1 0 , o a u to r re fo r ç a o e m p r e g o d o t e r m o ressou rce c o m o “ u m a m a n e ir a p e s s o a l (e m fra n c ê s) d e tr a d u z ir a p a la v r a a le m ã M õ glich eit, p o ssib ilid a d e . N o in te r io r d e ressou rce h á a p a la v r a so u rce, q u e é, a o m e s m o te m p o , filo ló g ic a (W a rb u rg ) e d in â m ic a (a á g u a , a fo n te ).” D e v id o a s e u c a rá te r p o lissê in ic o , b e m c o m o à o b se r v a ç ã o d o p r ó p r io au tor, o p ta m o s p o r tr a d u z ir ressource p o r “r e c u r so ” o u “re ssu rg ê n c ia ”. E ste ú ltim o se n tid o le v a e m c o n sid e r a ç ã o a e tim o lo g ia d e ressource, d o v e rb o reso u rd re q u e sig n ific a rejaillir, jo r ra r , s u r g ir d e n o v o , d o la tim resurgere. A o p ç ã o p o r u m a o u o u tr a d a s fo r m a s, e m d ife re n te s p a s s a g e n s d o texto, fo i feita te n d o e m v ista o c o n te x to e sp e c ífic o d a p a ssa g e m . (N .T .) 172 B F ,N JA M IN , W. L e co n te u r: r é fle x io n s s u r lo e u v r e d e N ic o la s L e sk o v (1 9 3 6 ). T rad . M . d e G a n d illa c re v ista p o r P. R u sc h . I n : _______ . CEuvres. p. 115. v. III, cf. S u p ra , p. 4 7 -5 2 . 173 A G A M B F )N ,G . E n fan c e et histoire. O p. cit., p. 19-20. T r a d u ç ã o d e H e n r iq u e B u r ig o : “É e sta in c a p a c id a d e d e t r a d u z ir -s e e m e x p e riê n c ia q u e t o r n a h o je in su p o rtá v e l - c o m o e m m o m e n to a lg u m n o p a s s a d o - a e x istê n c ia co tid ia n a .” In fâ n c ia e h istó ria , p . 22.

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diagnosticada por Benjamin em ocorrência passada, em “destruição” sem recurso. “A experiência caiu de cotação” (die Erfahrung ist im Kurse gefallen): o particípio gefallen, “caído, fracassado”, indica certamente um movimento terrível. M as continua sendo um movimento. Mais ainda, ele soa estranhamente a nossos ouvidos, um a vez que o verbo gefallen significa, por outro lado, o ato de amar, de agradar, de convir. E, sobretudo, esse movimento não diz respeito à própria expe­ riência, m as a sua “cotação” na bolsa de valores m odernos (o diagnóstico de Benjamin se confirma ainda se se consi­ dera a “bolsa de valores” pós-m oderna). O que Benjamin descreve é, sem dúvida, um a destruição efetiva, eficaz; mas é um a destruição não efetuada, perpetuamente inacabada, seu horizonte jam ais fechado. O mesm o aconteceria então com a experiência e com a aura, pois o que se apresenta, em geral, sob o ângulo de uma destruição acabada da aura nas imagens à época de sua reprodutibilidade técnica pede para ser corrigida sob o ângulo do que chamei um a suposição: o que “cai” não “desaparece” necessariamente, as imagens estão lá, até m esmo para fazer reaparecer ou transparecer algum resto, vestígio ou sobrevivência.174 174 D I D I - H U B E R M A N , G . L’im a g e - a u ra . D u m a in te n a n t, d e 1’a u tre ío is et d e m a m o d e rn ité (1 9 9 6 ). I n : ________. D e v a n t le temps-, h isto ire d e Fart et a n a c h ro n ism e d es im a g e s. P aris: M in u it, 2 0 0 0 . p. 2 3 3 -2 6 0 .

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Todo o vocabulário utilizado por Walter Benjamin em seu artigo sobre “Le conteur” [O narrador] é, sem dúvida, o do declínio. M as declinio entendido em todas as suas harmonias, em todas as suas ressurgências, que supõem a declinação, a inflexão, a persistência das coisas decaídas. Desde o início, Benjamin fala do “declínio da experiência” em termos de “fenômeno”:175Erscheinung, ou seja, um a apa­ rição, justamente, uma “aparição apesar de tudo”, se assim posso dizer. Em seguida, ele evoca um a “evolução que [...] nunca parou”:176 “um Vorgang, ou seja, um processo, um acontecimento, um a reação (com o se diz em química) ou um incidente, palavra que descreve exatamente o que Ben­ jam in quer significar, por sua referência ao movimento de queda e ao fato de que ele não está isento de conseqüências, sem incidência. Vocabulário de processo, portanto. Quando Benjamin nos diz que “a arte da narrativa tende a se perder”, ele ex­ pressa ao m esm o tempo um horizonte de “fim” (Ende) e um movimento sem fim (neigen: pender/debruçar-se, inclinar, abaixar) que evoca não a própria coisa como desaparecida, mas “em vias de desaparecer”, o que o verbo aussterben, aqui, traduz com o despovoar-se, apagar-se, ir em direção a sua

175 B E N J A M I N , W. L e c o n te u r : ré fle x io n s s u r 1’c euv re d e N ic o Ja s L e sk o v (1 9 3 6 ). T rad . M . d e G a n d illa c re v ista p o r P. R u sc h . I n : ________. CEuvres. p . 1 15. v. III. 176 Ib id ., p. 115.

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desaparição.177 Trata-se, portanto, da questão do “declínio” e não de desaparição efetuada: a palavra Niedergang, em ­ pregada - aqui como, frequentemente, em outros lugares - por Benjamin, significa a descida progressiva, o pôr do sol, o ocidente (isto é, um estado do sol que desaparece de nossas vistas, m as nem por isso deixa de existir em outro lugar, sob nossos passos, nos antípodas, com a possibilidade, o “recurso” de que ele reapareça do outro lado, no oriente). Um pouco mais adiante ainda - tento nada deixar na som bra -, Benjamin escreverá que “a arte de contar tornou-se coisa rara”,178 o que supõe de fato o vir-a-ser (Werden) e não a estase mortal, assim como a subsistência, fosse ela minoritária, “rara” ou “extraordinária” (selten), daquilo que não terá sido destruído. A experiência transm itida pelo narrador, sem dúvida, “caminha em direção a seu fim”, mas o verbo aqui empregado, geben, supõe de fato que o fim do caminho - o horizonte - não está ainda na ordem do dia.179É a própria “caminhada” que deve nos ocupar inteiramente. A última frase do texto - “o narrador é (ist) a figura sob a qual o justo se encontra consigo mesmo” - 180emprega o tempo do presente: não a intemporalidade de um a definição regulada 177 Ib id ., p. 120. 178 Ibid-, p. 123. 179 Ib id ., p . 129. 180 Ib id ., p. 151. N a t ra d u ç ã o d e S é rg io P a u lo R o u a n e t: “O n a r r a d o r é a fig u r a n a q u a l o ju sto se e n c o n tra c o n sig o m e sm o .” p. 221.

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sobre o eterno ou o absoluto, m as a própria temporalidade daquilo que, hoje, entre nós, na extrema precariedade, sobre­ vive e se declina sob novas formas em seu próprio declínio. A urgência política e estética, em período de “catástrofe” - esse leitmotiv corrente em toda obra de Benjamin -, não consistiria, portanto, em tirar conclusões lógicas do declínio até seu horizonte de morte, m as em encontrar as ressurgências inesperadas desse declínio ao fundo das imagens que aí se m ovem ainda, tal vaga-lumes ou astros isolados. Lembremos o m aravilhoso modelo cosmológico proposto por Lucrécio em De rerum natura: os átomos “declinam” perpetuam ente, m as sua queda admite, nesse clinâmen infinito, exceções com conseqüências inauditas. Basta um átomo se desviar ligeiramente de sua trajetória paralela para que ele entre em colisão com os outros, de onde nascerá um m undo.181 Este seria, portanto, o essencial recurso do declínio-, o desvio, a colisão, a “bola de fogo” que atravessa o horizonte, a invenção de um a form a nova. Não nos espan­ temos se Walter Benjamin estiver situado próximo a Alois Riegl, um de seus grandes m odelos historiográficos, cuja história da arte tendia precisamente a mostrar a vitalidade particular dos períodos ditos de “declínio”, a Antiguidade

181 L U C R È C E . D e la n a tu r e , II, 2 1 6 -2 5 0 . T ra d . A . E r n o u t. P a r is: L e s B e lle s L e ttre s, 1 9 6 6 . I, p. 5 0 -5 1 .

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tardia ou - no que diz respeito a Benjamin em seu trabalho sobre o Trauerspiel - o m aneirism o e a arte barroca.182 Se voltarmos, nessa óptica, ao texto sobre “Le conteur”, não tardaremos a encontrar nele todos os elementos dessa m esm a vitalidade: é a impressão (empreinte) indestrutível pela qual o narrador “im prim e sua marca na narrativa, como o oleiro deixa sobre o vaso de argila a impressão de suas m ãos”183 (die Spur der Tópferhand an der Tonschale). É a memória épica cuja transform ação revela, nos romances modernos - de Proust ao surrealismo - tantos processos de rem em oração184 (Eingedenken). É a intermitência dessa mem ória que atinge o leitor de hoje, como tantos “instantes de felicidade”, a despeito de sua pobreza em experiência.185 Ao utilizar aqui as palavras nur bisweilen, “somente às vezes” Benjamin nos dá uma indicação preciosa sobre o estatuto temporal das sobrevivências. “É por isso”, diz ele a respeito de uma história contada por Heródoto na Antiguidade e lida em nossa época, “que essa narrativa vinda do antigo Egito é ainda capaz, após milhares de anos, de nos surpreender 182 B E N J A M I N , W. O rigin e d u d r a m e b a ro q u e a lle m a n d (1 9 2 8 ). T ra d . S. M u lle r e A . H irt. P aris: F la m m a r io n , 1985. p . 54. 183 Id ., L e co n te u r: ré fle x io n s su r Iceu v re d e N ic o la s Leslcov (1 9 3 6 ). T rad . M . de G a n d illa c re v ista p o r P. R u sc h . I n : ________. CEuvres. p. 127. v. III. N a tra d u ç ã o d e S é r g io P au lo R o u an e t: “A s s im se im p r im e n a n a rra tiv a a m a r c a d o n a rra d o r, c o m o a m ã o d o o le iro n a a rg ila d o v aso .” p. 205. 184 Ib id., p .1 3 6 . 185 Ibid., p .1 4 1 -1 4 2 .

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e nos fazer refletir. Ela parece esses grãos fechados hermeticamente durante milênios nas câmaras das pirâmides e que conservaram até hoje seu poder germinativo (ihre Keimkraft).” 186

O valor da experiência caiu de cotação, é verdade. M as cabe somente a nós não apostarm os nesse mercado. Cabe somente a nós compreendermos onde e como “esse m o­ vimento [...] ao m esmo tempo, tornou sensível um a nova beleza naquilo que desaparecia (eine neue Schónheit)”.'87 Agamben nos m ostra com gravidade, com acuidade, um horizonte derradeiro para essa desvalorização. M as ir muito longe nesse sentido é, paradoxalmente, condenar-se a só fazer a m etade do caminho necessário. A “imagem dialéti­ ca” à qual nos convida Benjamin consiste, antes, em fazer surgirem os momentos inestimáveis que sobrevivem, que resistem a tal organização de valores, fazendo-a explodir em momentos de surpresa. Busquemos, então, as experiências que se transmitem ainda para além de todos os “espetáculos” 186 Ib iá ., p. 125. N a t r a d u ç ã o d e S é rg io P a u lo R o u a n e t: “ P o r isso , e s s a h istó r ia d o a n tig o E g ito a in d a é c a p a z , d e p o is d e m ilê n io s, d e s u sc ita r e sp a n to e re fle x ã o . E la se a s s e m e lh a a e s s a s se m e n te s d e tr ig o q u e d u r a n te m ilh a r e s d e a n o s f ic a ­ r a m fe c h a d a s h e r m e tic a m e n te n a s c â m a r a s d a s p ir â m id e s e q u e c o n s e r v a r a m até h o je su a s fo r ç a s g e rm in a tiv a s.” p. 2 0 4 . 187 Ib id ., p . 120.

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com prados e vendidos a nossa volta, além do exercício dos reinos e da luz das glórias. Som os “pobres em experiência”? Façamos dessa mesma pobreza - dessa semiescuridão - uma experiência. A paixão de Adorno pelo trabalho de Samuel Beckett188 não terá sido, sem dúvida, isenta de um recurso implícito aos preceitos já enunciados por Benjamin em seu ensaio de 1936: “Le conteur”. O valor da experiência caiu de cotação, m as cabe so ­ mente a nós, em cada situação particular, erguer essa queda à dignidade, à “nova beleza” de uma coreografia, de uma invenção de formas. N ão assum e a imagem, em sua própria fragilidade, em sua intermitência de vaga-lume, a m esm a potência, cada vez que ela nos m ostra sua capacidade de reaparecer, de sobreviver? Em um artigo intitulado “L’image im mémoriale” [A im agem im em orial], Giorgio Agamben radicalizava a noção de imagem atribuindo-lhe dois desti­ nos, dois horizontes: o prim eiro é o de destruição pura (“a imagem morre”): o outro é de sobrevida no Hades (versão pagã) ou no apocatástase, a “restauração final” segundo Orígenes (versão cristã). Em resumo, a sobrevivência era aqui com preendida com o sobrevivência após a morte, sobrevivência do apocalipse, do fim dos tempos, de pura

188 A D O R N O , T. W. N o tes su r B eckett (1 9 6 0 - 1 9 6 8 ). T rad . C . D a v id . C a e n : N o u s, 2008.

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redenção.189Agamben acrescentava que esse m esmo parado­ xo - paixão radical e potência radical - encontra-se “inscrito na própria origem da metafísica ocidental”.150Um a maneira de assum ir a imagem no plano da própria metafísica, tendo Nietsche e Heidegger como artesãos de sua vertigem. Bem outra era a proposta de Walter Benjamin, que reto­ mamos aqui por nossa conta: “organizar o pessim ism o” no m undo histórico, descobrindo um “espaço de im agens” no próprio vazio de nossa “conduta política”, com o ele diz. E ssa proposta se refere à tem poralidaâe impura de nossa vida histórica, que não se compromete nem com a destruição acabada, nem com o início de redenção. E é nesse sentido que é preciso com preender a sobrevivência das im agens, sua im anência fundamental: nem seu nada, nem sua plenitude, nem sua origem antes de toda memória, nem seu horizonte após toda catástrofe. M as sua própria ressurgêncía, seu recurso de desejo e de experiência no próprio vazio de nossas decisões m ais im ediatas, de nossa vida m ais cotidiana. N a m esm a época - de 1933 a 1940 - em que Walter B enjam in evocava essa p o ssib ilid ad e de “organ izar o

|:':i A G A M B E N , G . L’im a g e im m é m o r ia le (1 9 8 6 ). T ra d . J. G a y r a u d e M . R u eff. I n : ________. L a p u issa n c e d e la p en sée. E s s a is et co n fé re n c e s. P a ris: P a y o t & R iv a g e s, 2 0 0 6 . p. 2 8 3 -2 9 2 . 1911 Ib id ., p. 29 0 .

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pessim ism o” pela ressurgência de certas im agens ou con­ figurações alternativas de pensamento, a vida cotidiana certamente não lhe dava descanso. Pode-se im aginar o que era a vida de um judeu alem ão “sem recursos”, em fuga perpétua diante do cerco que se fechava em torno dele? A im pressão de Agam ben sobre a destruição da experiência em “nossa existência cotidiana hoje insuportável - como em mom ento algum no passado - ” m deve ser orientada na m edida desse contraste. Contraste ainda m ais forte, na m edida em que Benjam in soube “organizar seu p essim is­ mo” com a graça dos vaga-lum es, buscando, por exemplo, entre o teatro épico de Bertold Brecht e a deriva urbana dos poetas surrealistas, entre a Biblioteca N acional e a Passage des panoram as, esse “espaço de im agens” capaz de contradizer a polícia - as terríveis restrições - de sua vida. O valor da experiência havia caído, m as Benjamin respondeu a isso com imagens de pensamento e com expe­ riências de imagem cujos textos sobre o haxixe oferecem ainda, entre outros, alguns exemplos surpreendentes por suas ressurgências de “aura autêntica” ou de infância do olhar sobre todas as coisas.192 181 A G A M B E N , G . E n fan ce et histoire. O p. cit., p . 2 0 ; A G A M B E N , G . In fâ n c ia e h istó ria. T rad . H e n riq u e B u rig o . B e lo H o riz o n te : E d ito r a U F M G , 2 0 0 8 . p. 22. 152 B K N JA M IN , W. ím ages dep en sée. O p. cit. E ta m b é m , Id., S u r le hasch ich e tau tre s écrits s u r la drogu e (1 9 2 7 - 1 9 3 4 ). T rad . J.-F. P o irier. P aris: C h r istia n B o u r g o is, 1 993. p . 5 5 -6 0 e 8 8-98.

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Agam ben sentenciou a destruição da experiência e o luto de toda infância, como Pasolini o desaparecimento dos vaga-lumes, projetando sobre o presente o que ele conhecia de diferentes situações de guerra mundial, notadamente as descritas por Walter Benjamin. Ora, a própria experiên­ cia da guerra nos ensina - no que ela terá encontrado as condições, por mais frágeis que sejam, de sua narração e de sua transm issão - que o pessim ism o foi, às vezes, “orga­ nizado” até produzir, em seu próprio exercício, o lampejo e a esperança intermitentes dos vaga-lumes. Lam pejo para fazer livremente aparecerem palavras quando as palavras parecem prisioneiras de uma situação sem saída. Pensemos na coletânea de textos composta por Henri Michaux entre 1940 e 1944 com o título de Épreuves, exorcismes [Provas, exorcismos]: “sua razão de ser”, escrevia ele na abertura, “manter em fracasso as potências que circundam o m un­ do hostil.” 193 Pensemos nas admiráveis Feuillets d ’Hypnos [Páginas de Hypnos], escritas por René Char durante suas lutas cotidianas no maquis,'94 e onde a Resistência política ativa, militar, a cada instante perigosa para sua vida - fazia corpo com o que abordamos aqui como “resistência” do 1
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