Sobre curadorias
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Sobre curadorias: entre ilustração e experiência1 Fabio Cypriano A primeira década do século 21 representa o profissionalismo decisivo no sistema das artes plásticas do Brasil. Museus com salas expositivas adequadas aumentaram significativamente em todo país, centros culturais privados multiplicaram-‐se impulsionados pela generosidade das leis de incentivo, colecionadores deixaram de ser contados nos dedos, feiras de arte passam a exercer papel importante no circuito, cursos universitários em crítica e curadoria surgem como espaço de formação, e, uma produção fértil garante promessas de crescimento a curto e médio prazos. Profissionalismo, contudo, costuma vir aliado a sedimentação de práticas, que muitas vezes tornam-‐se tão cotidianas que não são mais colocadas em dúvida. Uma questão que se coloca é até que ponto estamos frente à popularização efetiva ou à fetichização da arte, extremos que, na verdade, coexistem e podem ser observados em cada uma das pontas do mesmo sistema. Demonizar o sistema como um todo seria uma atitude superficial e maniqueísta. Nessa primeira década, galerias comerciais organizaram festivais de performance2, por exemplo, uma tipo de ação artística que se destaca justamente por desqualificar o objeto. Além do mais, recente pesquisa3 aponta que o colecionismo privado é o principal sustentador da arte contemporânea brasileira, já que colecionadores brasileiros são responsáveis por 66% das vendas, contra 15% dos colecionadores estrangeiros e apenas 8% das instituições culturais brasileiras. Por estas e outras razões, é inegável que o ciclo econômico positivo que o Brasil atravessa, aliado ao boom das feiras internacionais4, tem determinado um tipo de procedimento a ser 1
Esse texto foi apresentado, em uma versão parcial, no 1ª RODA – Rodada de debates sobre arte, organizado pela Prefeitura de Porto Alegre, nos dias 3 e 4 de abril de 2012, sob o título “Arte Contemporânea Brasileira: como decorar casa de emergentes” 2 A galeria Vermelho promoveu, anualmente, entre 2005 e 2011, o festival de performance Verbo, que apresentou mais de 300 ações de artistas brasileiros e estrangeiros, ao longo de suas sete edições, uma plataforma inédita para tal proposta no país 3 Coordenada pela consultora Ana Letícia Fialho, a pesquisa foi realizada entre o final de 2011 e o início de 2012 entre 40 galerias de sete estados brasileiros que fazem parte do projeto setorial da ABACT (Associação Brasileira das galerias de Arte Contemporânea) e APEX (Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos). Juntas, representam aproximadamente 900 artistas. 4 Segundo artigo do Financial Times de 28/04/2012, enquanto os anos 1990 foram marcados pelo processo de bienalização, com bienais sendo criadas em várias cidades ao redor do mundo, os últimos anos foram o período do surgimento de feiras (http://www.ft.com/cms/s/2/50e0e500-‐8e1d-‐11e1-‐b9ae-‐00144feab49a.html#axzz1tRBoI6JX)
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analisado. O mercado aparece, atualmente, como o primeiro destino da atividade artística, já que o circuito de feiras consegue movimentar grandes demandas. As galerias de prestígio (não estão contempladas as lojas de quadros) participam de ao menos sete feiras por ano, o que, paradoxalmente, tem diminuído a qualidade de mostras nas próprias galerias. Artistas são levados a trabalhar (com raras exceções, em artistas como Renata Lucas ou a dupla Maurício Dias e Walter Riedweg, que, basicamente, vivem de projetos institucionais e não comerciais) em formatos de fácil assimilação, fator que deteriora a vitalidade da experimentação engendrada. Afinal, galeristas precisam agradar o novo colecionismo emergente que, entre outras características, ainda valoriza a pintura como principal suporte, embora esse debate pareça superado entre os principais pensadores da arte ao menos há 40 anos. Essa ideia ganha síntese nas palavras de Paulo Herkenhoff: Elencar técnicas pode ser hoje uma solução retórica que quase sempre substitui a problematização dos fenômenos de arte da expansão do campo linguístico, dos modos de enunciação, da complexidade fenomenológica do aparato sensorial, da migração do significante em seu atravessamento do corpo, da deriva ou da ruptura pós-‐moderna do cânon. Sobretudo, é ignorar o novo objetivo da arte que, segundo Oiticica, “já não é mais instrumento de domínio intelectual. 5: Com o retorno ao objeto e a valorização da pintura ou do desenho, decorrentes de sua facilidade comercial, a tradição da produção experimental brasileira, que chegou ao seu momento mais radical, na produção dos anos 1960 e 1970, com artistas como Hélio Oiticica, Lygia Clark e Lygia Pape, ficou arrefecido frente à produção que prioriza sua circulação em feiras. É possível dedicação a uma produção radical, quando é necessário um ritmo frenético e de fácil consumo para atender as feiras? Outra questão a ser abordada em relação às feiras diz respeito à sua penetração como local incontornável de trabalho (contatos e pesquisas) para curadores e diretores de instituições públicas e privadas. Uma situação um tanto perversa que pode ser observada na criação de fundos aquisitivos para museus com valores, em geral, muito aquém do valor de obras significativas. No caso da SP Arte, a feira paulistana, por exemplo, foram concedidos a instituições como a Pinacoteca, o Museu de Arte Contemporânea da USP ou o Museu de Arte Moderna, em 2011, montantes da ordem de R$ 10 mil para aquisição, total muito abaixo do que é necessário para obras com relevância para coleções de caráter museológico. Mas, mesmo assim, a feira consegue transformar o que seria uma (boa) estratégia de marketing em argumento social para trazer legitimidade e relevância cultural ao evento. 5
Pág. 20 de “Lygia Pape – Espaço Imantado”, catálogo da retrospectiva organizada por Manuel Borja-‐Villel e Teresa Velázquez, no Museu Reina Sofia, em 2011, também exibida na Pinacoteca do Estado de São Paulo, em 2012.
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Na atualidade, percebe-‐se que o ciclo de aquecimento do mercado e a supervalorização do objeto tornam-‐se hegemônicos, enquanto a produção e a reflexão que escapam desse sistema autossustentável tornam-‐se de difícil viabilidade. Nessas circunstancias, um dos agentes que mais ganhou importância foi o curador que, de certa forma, substituiu o papel até então atribuído à crítica. São principalmente os curadores, agora, os responsáveis pela inserção de certos artistas no circuito, seja o institucional, seja do colecionismo privado, além de ser o curador quem formula as principais questões debatidas nesse circuito. A cada cinco anos, por exemplo, espera-‐se que o curador da Documenta de Kassel apresente as principais tendências do sistema, como se espera o mesmo de um estilista na moda. No entanto, desde 1997, quando Catherine David, elegeu o tema “Politics -‐ Poetics”, para a Documenta X, não se formula um debate consistente com repercussão e intensidade comparáveis. Ilustração x Experiência Uma forma de compreender o circuito brasileiro pode ser perceber como o curador tem atuado. Algumas exposições recentes ajudam a compor alguns modelos adotados, que de certa maneira são bastante contraditórios. Para tornar esse quadro mais didático, eu dividiria esses modelos em dois tipos: exposições ilustrativas e exposições experienciais. Para exemplificar a primeira, vou abordar a 12ª Bienal de Istambul, realizada em 2011, na capital turca, com curadoria do brasileiro Adriano Pedrosa e do costa-‐riquense Jens Hoffmann. “Untitled” (sem título), a bienal foi baseada na obra do cubano Felix Gonzalez-‐Torres (1957 – 1996), que também não dava título a seus trabalhos. Assim como polemizou com o Panorama da Arte Brasileira do Museu de Arte Moderna em São Paulo, em 2009, ao não selecionar brasileiros para a mostra, Pedrosa, em Istambul, causou expectativa ao não divulgar os nomes dos participantes da Bienal antes de sua abertura, para simbolizar que o conceito era mais importante que uma lista, estratégia já utilizada por Catherine David, na Documenta X, em 1997. Os curadores da Bienal optaram em organizá-‐la num único lugar, o Entrepôt, um antigo entreposto de cigarros, onde outras edições do evento já tinham ocorrido. No entanto, essas outras edições também espalharam obras por outros locais da cidade, o que buscava criar um diálogo entre Istambul e a Bienal, a mostra e seu contexto. Confinada, então, em um único espaço, a 12ª Bienal teve uma sofisticada expografia de Ryue Nishizawa, sócio fundador do escritório de arquitetura japonês SANAA, com Kazuyo Sejima, que mesclava espaços amplos, onde aconteciam as cinco coletivas da mostra, e pequenos gabinetes, onde viam-‐se 54 individuais. O caráter arquitetônico, contudo, fez com 3
que a Bienal mimetizasse ambientes privados de um colecionador, e seus curadores, com isso, se revelassem como que decoradores desses espaços. No entanto, pretendo focar um ponto específico dessa Bienal, a partir das cinco coletivas apresentadas: Untitled (Abstraction); Untitled (Ross); Untitled (Passport); Untitled (History); Untitled (Dead by Gun). Cada uma delas partia de uma temática específica na obra de Gonzalez-‐Torres, como as questões das identidades nacionais, em Passport, ou da violência, em Dead by Gun. Essa última sessão serve como uma bom exemplo sobre para o modelo que apresento como mostra ilustrativa: a maioria dos trabalhos eram constituídos por representações de armas de fogo, como no registro da performance histórica de Chris Burden, “Shoot”, de 1971, na qual o artista recebeu um tiro no braço; na ilustração de Roy Lichtenstein para a “Time Magazine”, de 21/06/1968, intitulada “The Gun in America” (A arma na América); o backlight de Mat Collishaw, “Bullet Hole” (buraco de bala), de 1988, a fotografia de um cabeça humana perfurada por uma bala; ou a instalação de Kris Martin, “Obussen II”, de 2010, uma pilha com imensos cartuchos de bala de revólver. São apenas quatro obras num conjunto maior, mas a redundância temática aponta para a questão central: todos os trabalhos acabam simplificados a uma leitura, no caso a arma de fogo, independentemente se for uma radical performance ou a mera ilustração para uma revista. Esse exercício retórico com obras de arte numa mostra coletiva tem sido uma prática comum, uma instrumentalização redutora e unidirecional de trabalhos artísticos. A questão torna-‐se então: é preciso mobilizar uma exposição como uma bienal com seus altos custos para tal efeito? Uma publicação não seria suficiente, afinal, as obras parecem ser apenas exemplos para o exercício discursivo da curadoria, quando, na verdade, ver uma obra de arte é uma experiência. Exposições com esse caráter me parecem uma constante no circuito nacional. Lembro por exemplo, da mostra “Ecológica”, com curadoria de Felipe Chaimovich, no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 2010, “inspirada em conceitos do intelectual austro-‐francês André Gorz”, segundo o catálogo da mostra. Aqui, percebo uma outra modalidade nesse tipo de mostra ilustrativa que é se apoiar num texto filosófico. Mostras assim, em geral, seguem um receituário básico: usam um conceito em moda e o aplicam a alguns trabalhos. A profissionalização do circuito envereda aqui pelo seu lado mais pragmático, ao optar por uma fórmula que se aplica de maneira autoritária sobre os trabalhos. O pensador russo Boris Groys chama esse tipo de curador de “iconoclasta”6.
6 em tradução ao termo “The Curator as Iconoclast", publicado por Boris Groys em “Art Power”, MIT Press, pp 43 – 52.
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Esse modelo ilustrativo tem sido mais frequente do que pode parecer, mas, ao mesmo tempo, ele pode apresentar fissuras. Um exemplo é a última edição da Bienal do Mercosul, realizada em 2011, intitulada “Ensaios de Geopoética”, com curadoria do colombiano José Roca. Apesar de a mostra principal também apresentar muito trabalhos que apenas confirmavam o discurso retórico em torno de questões geopolíticos, o que fez com que muitas obras apresentas fossem constituídas por mapas ou bandeiras, a Bienal dividiu-‐se em vários outros segmentos, com obras espalhadas pela cidade e, o que gostaria de enfatizar, a criação de um espaço voltado especialmente para a reflexão, denominado Casa M, que funcionou além do tempo da mostra propriamente dita, estimulando debates e encontros na cena local da cidade. Mas antes de terminar de abordar esse modelo, gostaria de abordar ainda alguns decorrências éticas na curadoria da Bienal de Istambul. Parte da mostra foi financiada por colecionadores privados para os quais um dos curadores trabalha: o advogado brasileiro radicado em Portugal, Luis Augusto Teixeira de Freitas, e o brasileiro Paulo Vieira. Esse último deu apoio à mostra individual de Leonilson, com 34 obras. No caso de Teixeira de Freitas, que bancou parte da participação palestina na mostra, Pedrosa é responsável tanto por sua coleção privada como a corporativa (coleção de Desenhos da Madeira), e muitos trabalhos desse colecionador, ao menos doze, estavam na exposição. Mesmo que a mostra apresentasse mais de 200 trabalhos, daí, decorrem, a meu ver, alguns possíveis questionamentos éticos: Até que ponto curadores devem usar em suas mostras obras com as quais realiza atribuição de valor; Existe conflito de interesses nesses casos? O debate sobre essas questões nunca é realizado, apesar de comentários sobre esse tipo de comportamento serem usais. Um outro exemplo polêmico nesse mesmo sentido ocorreu durante a 29ª Bienal de São Paulo, em 2010, quando um dos curadores, Agnaldo Farias, apresentou nove artistas da galeria Nara Roesler, com a qual possui vínculos na produção de textos e curadorias. Foi a galeria melhor representada na Bienal. Também aqui não se tratou dessa questão publicamente, mas, novamente, esse foi um tema recorrente entre especialistas do circuito. Talvez seja necessária a realização de um código de ética que permeie mostras dessa natureza, assim como existe um código de ética7 do Conselho Internacional de Museus (ICOM), que prega, entre outros itens, que: “No caso de atividades privadas de formação de coleções, o profissional de museu e sua autoridade de tutela devem estabelecer um acordo a ser escrupulosamente observado.” Contra-‐pensamento selvagem 7
O código de ética do ICOM pode ser encontrado em http://www.icom.org.br/C%C3%B3digo%20de%20%C3%89tica%20Lus%C3%B3fono%20iii%202009.pdf
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Enquanto mostras de caráter ilustrativo baseiam-‐se num caráter didático e, possivelmente, poderiam funcionar melhor em publicações impressas, já que, no geral, elas ignoram a necessidade da presença, gostaria agora de apresentar algumas exposições que partem no sentido oposto, ou seja, a experiência é vital para sua fruição. Um primeiro exemplo é a exposição “Desvios de la deriva -‐ Experiências, Travessias e Morfologias”, realizada no Museu Reina Sofia, em 2010, tendo como curadoras Lisette Lagnado, do Brasil, e Maria Berrios, do Chile. A mostra enfatizou a prática da arquitetura e suas decorrências alcançam uma visão tão criativa que alguns projetos tornaram-‐se mera utopia. Para tanto, foram apresentados dois grupos de artistas-‐arquitetos: os brasileiros Lina Bo Bardi, Flávio de Carvalho e Sérgio Bernardes, por um lado, e os chilenos Roberto Matta, Juan Borchers e o grupo Ciudad Abierta, da Escola de Valparaíso, por outro. A mostra exibia ainda uma série de desenhos feitos pelo arquiteto francês Le Corbusier (1887-‐1965), quando de sua passagem pelo Brasil, em 1936. Le Corbusier era visto na mostra como uma figura visionária, no sentido da busca de uma arquitetura não marcada apenas pelas linhas racionais mas também por uma visão orgânica da construção e da busca do diálogo com o contexto. Além de ter influenciado grande parte da arquitetura brasileira, por conta de suas constantes visitas ao país, na mostra explicitado por seus desenhos apresentados numa conferência, em 1936, Le Corbusier ainda abrigou Matta em seu escritório. No entanto, e creio essa ser uma das principais virtudes da mostra, aquilo que era exposto não contradizia o dispositivo expositivo. Construída com estantes vazadas, como os típicos cobogós da arquitetura moderna brasileira, em vez de paredes, a cenografia da exposição, assinada pela arquiteta Aurora Herrera em parceria com Lagnado, era marcada pela transparência. Assim como a exposição abordava propostas radicais em torno da arquitetura, essa mesma característica era aplicada à expografia. O melhor exemplo desse enfoque foi o dispositivo criado pela artista francesa Dominique Gonzalez-‐Foester, pelo qual o famoso conjunto de saia e blusa New Look para Verão, de Flávio de Carvalho, “caminhava” pelo espaço expositivo pendurado em um cabide, que se movimentava graças a um pequeno motor. Com cerca de 200 obras, entre maquetes, desenhos e documentos, "Desvios de la Deriva" apresentava uma visão de alternativas, no Brasil e no Chile, ao modernismo racionalista, ao mostrar que a utopia nos trópicos não era uma meta distante, mas consistia na concepção de projetos que respeitavam o ambiente e a escala humana. Por isso, ao criar esse mesmo tipo de proposta na cenografia da exposição, a experiência tornava-‐se essencial para a compreensão do conceito: o espaço expositivo mimetizava as propostas em exibição.
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Outro exemplo dessa natureza foi a exposição "Caos e Efeito", organizada no instituto Itaú Cultural, em 2011, que pode ser considerada um divisor de águas na história das mostras da cidade. Concebida por cinco curadores que segundo pesquisas da instituição estavam entre os dez com maior número de mostras na primeira década do século 21, no país, ela revelava os dilemas do que significa expor obras de arte. Quatro dos curadores, Fernando Cocchiarale, Lauro Cavalcanti, Moacir dos Anjos e Tadeu Chiarelli, organizaram seus módulos em formatos convencionais: conjuntos de obras que ilustram ideias, mas que também poderiam estar reunidas em livro, já que a exposição não demandava vivência. Moacir dos Anjos, por exemplo, em sua seção "As Ruas e as Bobagens" partiu da série "Espaços Imantados" (1968), de Lygia Pape, que registrava concentrações de pessoas em locais públicos cariocas, como uma roda de capoeira ou a banca de um camelô. São imagens que apontam como ações cotidianas são capazes de transformar seu entorno. A partir daí, o curador reuniu trabalhos que podiam se relacionar com tal efeito, mas que ficaram tão contidos e domesticados no espaço expositivo que contradiziam a própria ideia de Pape. Um exemplo que aponta para isso, nesse segmento, era a obra de Rivane Neuenschwander, “Atrás da Porta” (2007), uma coleção de imagens e frases colhidas em banheiros, que se tornou tão higienizada na mostra, que, de fato, funcionava apenas como ilustração para a obra da curadoria. É justamente esse dilema -‐ de ideias que não acontecem no espaço expositivo porque são apenas ilustrações delas -‐ que permeia grande parte do trabalho curatorial atual. Mostras de arte contemporânea se transformaram em tediosas sequências de obras que apenas validam conceitos. Por isso, serviços educativos dos museus ganham relevância, já que o discurso se sobrepõe ao trabalho artístico. No entanto, tudo isso não estaria tão explícito se Paulo Herkenhoff, em seu módulo "Contra-‐pensamento Selvagem", não tivesse rompido de maneira tão radical com essa fórmula. Sua mostra encarnou o caos. Nela, tornava-‐se difícil identificar a autoria de muitos trabalhos e até mesmo o que podia ser uma obra de arte. Mas, afinal, não tem sido essa uma questão essencial da arte desde os anos 1960: acabar com os limites entre a obra de arte e seu usufruidor? Em parte, a “confusão” ocorria graças ao trabalho do artista carioca radicado em Recife Fernando Perez, responsável pela maior parte dos objetos que envolviam a exposição e a transformaram num conjunto orgânico, uma experiência que só podia ser de fato vivenciada no espaço. 7
Transgressor, polêmico, só com artistas de fora do eixo Rio-‐São Paulo, Herkenhoff criou um caos frente ao marasmo burocrático que mostras de arte contemporânea atravessam. É praticamente impossível descrever a exposição, já que sua fruição era essencial: a mostra é ela mesma uma experiência que envolve todos os sentidos, como uma contra “estética dos jardins”, como defendia Oiticica8: “os parques são mais belos quando são abandonados porque são mais vitais”. Mostras corporativas Finalmente, gostaria ainda de abordar um outro tipo recorrente de exposição que ocorre de maneira transversal aos dois modelos já abordados e que chamo de “mostras corporativas”. São exposições que se baseiam no suporte, seja a pintura, a arte e tecnologia, a arte de rua, a fotografia ou a videoarte, entre outras tantas possíveis. Essas exposições funcionam como uma reserva de mercado e, muitas vezes, tiveram sentido quando certos procedimentos não tinham sido ainda incorporados ao sistema da arte, caso da fotografia ou do vídeo, nos anos 1970 e 1980. Contudo, retomando a citação de Herkenhoff, esse tipo de mostra acaba funcionando como uma “solução retórica que quase sempre substitui a problematização dos fenômenos de arte da expansão do campo linguístico”. Um exemplo que aponta para a superação de mostras corporativas como essa pode ser visto na transformação do Festival Videobrasil, criado, em 1983, por Solange Farkas. Dedicado à promoção da videoarte, daí o nome, o festival fortaleceu a produção desse segmento no circuito, não só criando vínculos com importantes nomes do exterior, como comissionando obras de artistas brasileiros. Prestigiado internacionalmente, o festival que passou a se caracterizar por focar a produção do sul geopolítico do mundo, a partir de uma seção denominada “panoramas do sul”, ficou quatro anos em suspenso, de 2007 a 2011, para voltar com um novo formato em sua 17ª edição9. Ele, então, deixou de ser um festival dedicado exclusivamente ao vídeo, o que já vinha ocorrendo paulatinamente em suas últimas edições, para ser aberto a todo tipo de produção e seu nome passou a Festival Internacional de Arte Contemporânea SESC_Videobrasil. Acompanhar as mudanças na produção artística é essencial para se manter fiel à ela, especialmente quando tal produção ocorre, agora, em situação tão complexa, com distintas propostas, muitas vezes contraditórias, convivem ao mesmo tempo. Por isso, é necessário 8
Em texto de 1966, intitulado Posição e Programa, disponível no site do Itaú Cultural, em Programa Hélio Oiticica A mostra, com 101 artistas, selecionados através de edital, ocorreu no Sesc Belenzinho. Lá e outros dois locais, Sesc Pompéia e Pinacoteca do Estado, o Videobrasil apresentou, como artista convidado, o dinamarquês Olafur Eliasson. 9
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perder o medo e deixar de se atrelar a padrões convencionais. Olhar para o trabalho artístico e criar caminhos curatoriais a partir deles é um princípio fundamental para a reflexão que o circuito precisa. O trabalho do curador tem sido fundamental, desde a histórica mostra de Harald Szeemann, “When attitudes becomes form”, de 1969, como uma nova estratégia para lidar com a obra de arte. Sua prática, contudo, vem se tornando simplista e burocrática. Lentes que criam leituras unidirecionais são um desrespeito à arte. É preciso reinventar a prática curatorial. Bibliografia Argan, Giulio Carlo. (1995) Arte e Crítica de Arte. Lisboa: Editorial Estampa. Borjas-‐Villel, Manuel e Velázquez, Teresa (2012). Lygia Pape: espaço imantado. São Paulo: Pinacoteca do Estado. Lagnado, Lisette. (2010). Desvios de la deriva: experiencias, travesias y morfologías. Madri: Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofia. Pedrosa, Adriano e Hoffmann, Jens (2011). Catálogo da 12a Bienal de Istambul. Istambul Foundation for Culture and Arts.
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