Segredos de liquidificador

July 19, 2017 | Autor: Claudia Antunes | Categoría: Wikileaks, Imprensa
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Descripción

Segredos de liquidificador

Assange e a imprensa lavam roupa suja 

RESUMO
O escândalo dos vazamentos de documentos secretos do governo dos EUA pelo
WikiLeaks ganha novos desdobramentos com a publicação, na semana passada,
de livros de três dos veículos escolhidos para difundir o material,
revelando rixas e animosidades entre jornalistas e Julian Assange, o
fundador do site.

CLAUDIA ANTUNES

TUMULTUADA e desconfortável, a associação entre alguns dos principais
veículos da imprensa internacional e a guerrilha de informações proposta
pelo fundador da organização WikiLeaks, Julian Assange, foi ainda assim
proveitosa para todos os envolvidos.
A partir de julho do ano passado, foram seis meses de manchetes estufadas
com documentos militares e diplomáticos dos EUA repassados pelo WikiLeaks.
Assange, alçado a um polêmico estrelato, assinou um contrato equivalente a
R$ 4,3 milhões para escrever sua autobiografia, que será publicada em abril
(a editora brasileira será a Companhia das Letras).

ROUPA SUJA 
O conteúdo dos documentos, entretanto, submergiu no monte de roupa suja
lavada em público entre os dois lados. Os sócios estremecidos de Assange
acham que ele precisa lavar literalmente as dele ("ele fedia como se não
tomasse banho há dias", escreveu o editor do "Times"), e fazem balanços da
relação em livros lançados na última semana, que também incluem reportagens
feitas a partir dos vazamentos.
Os livros foram editados pelo "Guardian" britânico, o "The New York Times"
e a revista alemã "Der Spiegel", formação inicial de um grupo que seria
ampliado e viria a incluir a Folha. Os três são, em essência, aliados na
disputa que de início opôs Assange ao "Times", mas com diferentes ênfases.
Em contraponto provisório, saiu nos EUA "The Age of WikiLeaks: from
Collateral Murder to Cablegate" [A Era do WikiLeaks, do Assassinato
Colateral ao Escândalo dos Telegramas; US$ 11,95]. O autor, Greg Mitchell,
é da revista de esquerda "The Nation" e mantém um blog em defesa de
Assange. A edição do autor -justo na era da espionagem cibernética- é a
única não disponível em versão eletrônica. Tampouco está à venda na Amazon,
que aderiu ao boicote ao WikiLeaks, sob pressão de congressistas
conservadores.

THE GUARDIAN
David Leigh e Luke Harding, do "Guardian", contam em "WikiLeaks - Inside
Julian Assange's War on Secrecy" [WikiLeaks -Dentro da Guerra de Julian
Assange ao Secretismo; ebook: US$ 13,79] que a associação com o australiano
de 39 anos foi iniciativa do repórter veterano Nick Davies.
Assange registrou o domínio WikiLeaks em 1999. O diário britânico,
identificado com a social- democracia trabalhista, havia publicado informes
sobre corrupção no Quênia conseguidos por ele quando viveu no país
africano, enfronhado em ONGs que participaram do Fórum Social Mundial de
2007. Em junho de 2010, Davies iniciou sua própria caça a Assange assim que
leu a notícia de que o hacker andarilho estava sendo procurado pelo
Departamento de Defesa americano. Era uma consequência da prisão do
analista de Inteligência do Exército Bradley Manning, que teria copiado 260
mil páginas de documentos confidenciais quando servia no Iraque.
O australiano divulgara dois meses antes o vídeo em que os tripulantes de
um helicóptero Apache americano atiram contra supostos terroristas em Bagdá
e matam 12 pessoas, entre elas um fotógrafo e um motorista da agência de
notícias Reuters. O vídeo, feito pela câmera do Apache em 2007, foi um hit
na internet. Mas não teve o efeito político que Assange esperava. Em parte
porque a Reuters, que já havia recebido do governo americano uma versão
editada das imagens, decidiu não fazer muito barulho.
Em parte também, aponta o "Guardian", por causa do título dado por Assange,
"Assassinato Colateral". Referência a "dano colateral", eufemismo para a
morte de civis em bombardeios, era "tendencioso" e "leitores e espectadores
não gostam de ser encurralados num ponto de vista". Davies disse a Assange
que a imprensa tradicional aumentaria o impacto da divulgação do material
em poder do WikiLeaks, além de facilitar sua contextualização. Ele propôs
incluir o "Times" na sociedade, dizendo que a maior proteção à liberdade de
expressão nos EUA evitaria que a publicação fosse embargada por ordem
judicial.

RIXA 
O australiano topou e incluiu a "Spiegel" no primeiro lote do material,
sobre a guerra no Afeganistão. Eram boletins repletos de siglas e jargões
militares. Quando foram publicados, no fim de julho, começou a rixa entre
Assange e o "Times". Primeiro, porque o jornal foi o único que não incluiu
em seu site um link para o WikiLeaks. O argumento era o de que o grupo
poderia não ter o cuidado de preservar os informantes, que correriam risco
de morte.
Depois, por causa de um perfil de Bradley Manning. Para Assange, o texto
"psicologizava" a decisão do soldado de 23 anos de copiar os documentos
secretos, ao enfatizar seu histórico de desagregação familiar e sua
condição de gay, quando ainda vigorava nas Forças Armadas a regra de "não
pergunte, não conte". Por fim, em outubro, um dia depois do início da
publicação da segunda remessa do material, sobre a guerra no Iraque, o
"Times" publicou um perfil do fundador do WikiLeaks que este considerou
"calunioso".
No mês seguinte, quando estava para sair a última e maior remessa, com
despachos de embaixadas e consulados americanos em quase todo o mundo,
Assange tentou excluir o "Times" da sociedade. Mas o "Guardian" já havia
passado os telegramas ao jornal americano. Alegou que o acordo de
exclusividade havia sido rompido quando um simpatizante do WikiLeaks
entregou uma outra cópia a uma jornalista freelancer.
Assange acusou os jornais de "roubo" e disse que a cópia entregue ao
"Times" era ilegal - "sem dar- se conta de que só havia cópias ilegais",
assinala a equipe da "Spiegel" em seu livro "Staatsfeind WikiLeaks"
[WikiLeaks, Inimigo Público Número Um; 336 págs.; € 14,99].
O fundador do WikiLeaks conformou-se, não sem antes ampliar sua rede,
incluindo "Le Monde" e "El País". Também decidiu distribuir despachos a
veículos de fora de EUA e Europa. Em dezembro, Assange acabaria rompendo
com Nick Davies, seu contato original no "Guardian", quando tornou-se ele
próprio alvo de um vazamento.
O repórter publicou a íntegra dos depoimentos à polícia sueca das duas
mulheres que o acusam de crimes sexuais. Por causa do processo, ele espera
o julgamento da extradição pedida pela Suécia na mansão de um improvável
protetor, Vaughan Smith, ex-capitão de um regimento de elite e dono do
clube Frontline, em Londres, ponto de encontro de jornalistas.

NEW YORK TIMES 
A partir dessa sequência de fatos mais ou menos consensual, a avaliação dos
envolvidos se diferencia. No texto publicado há 11 dias pelo "Times" e que
abre "Open Secrets: WikiLeaks, War and American Diplomacy" [Segredos
Abertos: WikiLeaks, Guerra e Diplomacia Americana; ebook: US$ 8,84], o
editor-executivo do jornal, Bill Keller, é muito duro com Assange.
Ele o chama de "evasivo, manipulador e volátil". Diz que demonstrava
"desprezo" pelo governo dos EUA e que era visto pelo jornal como "fonte, e
não parceiro". Relata "indiferença" do WikiLeaks quanto à sorte de pessoas
que estariam ameaçadas caso os seus nomes viessem a público.
O editor do "Guardian", Alan Rusbridger, é mais flexível. Diz que Assange
não cabe fácil num papel, podendo ser "fonte, intermediário ou editor".
Avalia que as rusgas mútuas "foram, em sua maioria, superadas". Conta que o
hacker, no final, até se ofereceu para negociar a edição dos documentos com
o Departamento de Estado -oferta que foi recusada.
"Não foi demonstrado nenhum prejuízo à vida de ninguém", diz. O livro julga
"revoltante" que tal suspeita seja lançada "por generais que tinham galões
de sangue de civis em suas mãos".

REAÇÕES 
O editor britânico mata a charada ao contrastar as reações do público de
cada jornal. Enquanto os leitores do "Guardian" pediam mais vazamentos, nos
EUA "a discussão foi amarga e partidária, ensombrecida por ideias
diferentes sobre patriotismo".
Keller acena para esse contraste ao enfatizar o "compromisso pessoal" dos
jornalistas do "Times" com a segurança nacional e sua proximidade do
establishment da política externa americana. Ele antecipou para o
Departamento de Estado os despachos que seriam publicados, medida que o
parceiro britânico não segue.
A decisão sobre o enfoque da notícia também atendeu a "musas" distintas,
escreve Keller. A primeira reportagem do "Guardian" destacou as mortes de
civis afegãos; a do "Times", o jogo duplo do serviço secreto do Paquistão
em relação ao Taleban.
O editor do "Times" diz que as mortes não eram novidade. Tampouco, diga-se,
a cumplicidade paquistanesa com os fundamentalistas, tão velha quanto a
iniciativa americana de armar combatentes religiosos contra a ocupação
soviética do Afeganistão, já se vão mais de 30 anos.
Keller conta, a propósito dessa reportagem, que Richard Holbrooke, enviado
dos EUA à Ásia Central e que morreu há dois meses, sabia o que seria
publicado e planejava fazer "do limão uma limonada": usaria a informação
para pressionar o Paquistão a um alinhamento mais fiel a Washington.
Como o "Guardian" e o "Times", a "Spiegel" alfineta os parceiros. Diz que
eles tinham um plano para deixar a revista de fora da divulgação dos
telegramas diplomáticos. Insinua que o perfil que o "Times" fez de Assange,
citando "especialmente seus inimigos", foi produzido para aplacar os
críticos à direita do diário americano.

BALANÇO
No meio de tanta intriga, que balanço os livros trazem do conteúdo do
megavazamento? Para começar, contagem feita pelo "New York Times" mostra
que a maioria dos mais de 250 mil documentos obtidos pelo WikiLeaks não é
confidencial. Cerca de 11 mil são "secretos". E apenas cerca de 3.000,
pouco mais de 1% do total, foram divulgados até agora.
Assange, antes um anarquista que defendia o despejo bruto do material,
teria se dado conta das virtudes da edição. De todo modo, Keller e
Rusbridger contestam os bocejos dos que avaliam que tudo já era sabido. "As
notícias avançam em centímetros, não em saltos. [Os documentos] trouxeram
nuances, textura e drama" mesmo ao já conhecido, escreve Keller.
Frank Rich, colunista do jornal, dá razão a Assange e a Daniel Ellsberg, o
ex-funcionário que há 40 anos vazou ao "Times" os papéis do Pentágono.
Ambos equiparam os documentos de agora aos de então. Ele lembra que nos
anos 70 a ofensiva de Richard Nixon (1969-1973) contra a imprensa teve mais
atenção do que o conteúdo dos documentos sobre o Vietnã. "Também se dizia
que não mudariam o curso da guerra, mas foram um marco na retirada em
câmera lenta" das forças dos EUA do sudeste asiático, diz.
David Sanger, repórter do "Times", diz que os despachos são prova do
"pragmatismo extremado" da diplomacia, mas admite que Assange "não está
totalmente errado" ao alegar que eles revelam "a contradição entre a
persona pública americana e o que se diz a portas fechadas". Sanger vê nos
documentos um retrato realista dos movimentos da superpotência num mundo
que considera ameaçador, depois de duas guerras "que abalaram sua
influência".
O material mostra que a lógica dicotômica transferiu-se da Guerra Fria à
guerra ao terror. Daí os relatos confidenciais sobre desmandos de ditadores
aliados, como o tunisiano Zine el Abidine Ben Ali, deposto em janeiro, e o
egípcio Hosni Mubarak.
O "Guardian" e o "Times" apontam possível influência desses telegramas
sobre as rebeliões populares nos países árabes, mas não como fator
determinante. O que fica claro é que autocratas de todo o mundo
desenvolveram a arte de dizer aos emissários americanos o que eles
gostariam de ouvir.

EUROPA 
Mas é na relação com as democracias da Europa que as contradições
americanas ficam mais evidentes. Os despachos detalham a ofensiva do
governo Barack Obama para suspender a investigação no Judiciário da Espanha
de seis funcionários de George W. Bush (2001-09) acusados de criar a
justificativa legal para a tortura de suspeitos de terrorismo.
Na Alemanha, a embaixada faz ameaças e consegue barrar o mandado de prisão
e o pedido de extradição de agentes da CIA acusados do sequestro ilegal de
Khaled Masri. Alemão de origem libanesa, Masri foi levado ao Afeganistão e
solto na Albânia depois que seus captores descobriram ter apanhado o homem
errado.
Nos telegramas de Brasília, chamam atenção as disputas internas no governo
Lula, sobre temas como a Alca (Área de Livre Comércio das Américas) e o
programa nuclear. Divergências entre o Itamaraty, a Fazenda e a Defesa são
expostas à embaixada, que as utiliza para promover suas políticas.

LIQUIDIFICADOR
É possível que os vazamentos tenham exposto segredos de liquidificador, que
berram sob as aparências. Mas seria imprudente subestimar o número dos que
não ouvem -por desinformação, credulidade ou interesse.
O livro do "Guardian" é o que dá maior destaque ao soldado Manning, que
emerge como a figura mais trágica da narrativa. Confinado há seis meses
numa cela de 1,8 m por 3,6 m nos EUA, Manning teria sido denunciado por
Adrian Lamo, hacker de Boston com quem trocou mensagens angustiadas quando
estava no Iraque.
"Deus sabe o que acontecerá agora: espero que uma discussão mundial,
debates e reformas. Mas pode ser que eu seja apenas jovem, ingênuo e
estúpido", diz o soldado, segundo transcrição publicada pela revista
"Wired".
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