Revisao Historiografica Inconfidencia Baiana

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL – UFRGS Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – IFCH Departamento de História História do Brasil I - B – HUM 03041

Inconfidência Baiana ou “A Conjuração dos Alfaiates” Revisão historiográfica do movimento de independência de 1798

Karlos Bruno Rohrsetzer – 00263199 Matheus Rocio - 00194663 Pedro Luiz Vianna Osorio – 00263196

Professor Fábio Kühn Porto Alegre, janeiro do 2017

1. Introdução A Inconfidência Baiana, ou “Conjuração dos Alfaiates”, foi um intento de independência ocorrida na Bahia em 1798 à luz das ideias revolucionárias francesas. Participaram dela soldados e trabalhadores de Salvador, especialmente das classes populares, em busca de um ideal republicano de igualdade. A elite letrada da cidade, inicialmente favorável, saiu da conspiração, tornando-a um movimento popular. Alguns dos pontos amplamente explicitados pela historiografia acerca do evento, que estão presentes em praticamente todas os textos analisados, são: a presença francesa, os “boletins sediciosos”, a Reunião do Dique, as devassas e os “mártires”. Nessa ordem também pode ser reconstituído o movimento de sedição intentado, que nunca chegou a se realizar de fato. A presença francesa, personificada por um “Larcher”, passou de certeza para dúvida e logo caiu do foco das pesquisas, porém a influência nunca foi e nem pode ser negada. Os boletins sediciosos são a cara do movimento e causadores do rebuliço na cidade de Salvador, já que estavam espalhados pela mesma e convocavam a população para revolucionar. Documentalmente, mostram que o contato com as letras existia entre os soldados. Foi através deles que foi preso Luís Gonzaga das Virgens e Veiga, soldado redator dos boletins, ato que culminou na Reunião do Dique. Esta reunião pretendia ser a cartada final dos revoltosos e adiantaria a proclamação da República Baiana para aquela noite, mas foi impedida pois tinham sido entregues ao poder público, que tratou de atacar a reunião e prender os presentes. Os presos foram interrogados e os documentos das duas devassas geraram e embasaram toda a produção histórica subsequente acerca do movimento, mas só foram compilados 200 anos depois, numa iniciativa do Governo Baiano. Dos presos na Reunião do Dique, apenas quatro foram condenados à morte por crime de lesa-majestade. Luís Gonzaga das Virgens e Veiga, Lucas Dantas do Amorim Torres, Manuel Faustino dos Santos Lira e João de Deus do Nascimento se tornaram os “mártires” da revolução, mas este termo acabou caindo do vocabulário historiográfico da sedição. Ao longo deste trabalho, os autores que se debruçaram sobre o tema serão analisados entre si sobre o que escreveram acerca do movimento de sedição de 1798. A bibliografia, inicialmente extensa, reduziu-se devido à falta de acesso à vários textos, físicos e virtuais A bibliografia deste trabalho tem um recorte temporal extenso, indo de 1959 a 2009, totalizando cinco décadas de produção historiográfica acerca do movimento de sedição baiano de 1798.

Vários tópicos foram abordados ao longo dessas décadas e algumas mudanças de foco podem ser visualizadas com clareza. Alguns pontos serão tratados à parte, visto a proeminência que tomam transversalmente ou primariamente ao longo dos trabalhos. Haverá subtítulos específicos para tais assuntos.

2. Desenvolvimento 2.1.

Uma visão geral

O movimento de sedição baiana de 1798 começa a ser estudado, ao menos no Brasil, antes do recorte deste trabalho. Affonso Ruy já havia publicado pesquisas na área, que é citada em Tavares (1959; 1975) e Mattoso (1969). Ao que escreve István Jancsó, historiador brasileiro de origem húngara, professor em diversas universidades, (JANCSÓ; MOREL, 2007), “a tese de Ruy surpreende pela ousadia” (p. 207), pois ele propõe que o movimento seja chamado de Revolução Proletária devido ao caráter popular dos participantes e por estarem “doutrinados princípios políticos, socialistas e irreligiosos da França” (RUY, 1978 apud JANCSÓ; MOREL, 2007, p. 207). Até onde foi conferido, o termo proposto por Ruy não se popularizou e não se provou a tal doutrinação. O que ficou deste autor é a certeza do pertencimento dos participantes a classes subalternas da cidade de Salvador. Após Ruy, quem tomou a dianteira nos estudos do movimento foi Luiz Henrique Dias Tavares, professor emérito da UFBA, e Kátia de Queirós Mattoso, professora no Brasil e na Europa. Tavares é um dos autores mais importantes na área da História da Bahia, sendo seu livro homônimo (1959) editado até os dias de hoje, estando em sua 11º edição. Mattoso produziu sua pesquisa através de documentos encontrados nas posses de alguns participantes da sedição – Cipriano Barata de Almeida e Hermógenes Aguilar Pantoja (1969, p. 12) – e que prova a presença francesa, pelo menos em texto, nas mãos revolucionários. Em linhas gerais, os autores baseiam-se fielmente nos documentos históricos constituídos na época da revolta (os cartazes confeccionados pelos revoltosos, o dossiê da investigação feita pela Coroa, livros, diários e cartas encontrados nas casas dos investigados etc.). Assim, os autores defendem estar realizando uma narrativa fiel à realidade. Nas palavras de Affonso Ruy: “O presente trabalho rigorosamente feito à luz das fontes documentais dos arquivos (...) não deixa lugar para a fantasia com que se anda doirando e deturpando os episódios da vida dos povos” (1970, p. 13). Por causa das fontes, os autores dão grande destaque ao julgamento e condenação dos revoltosos. Também investigam a suposta participação francesa na revolta – centrados no comandante Larcher da marinha francesa. Estes autores seguem, na maioria de seus textos, uma narrativa linear: começam apresentando a cidade de Salvador como um lugar lúgubre, de planejamento desordenado e intensa desigualdade social. Atribuem à economia a responsabilidade maior pela insatisfação

dos revoltosos, que também se levantaram em nome da justiça social. Os autores também apontam a intenção dos participantes de tornar a Igreja no Brasil independente de Roma. O ideal republicano é influência da Independência Americana (1776) e da Revolução Francesa (1789) – o que também explica a forte repressão da Coroa portuguesa em seu esforço de manter o Brasil sob sua tutela. Mattoso (1969) intitula a Conjuração Baiana de “Movimento Democrático”. Assim os autores delineiam a Metrópole do império português: como uma entidade opressora e ao mesmo tempo incompetente. A grande dificuldade encontrada pelos autores deste primeiro momento, preocupados em caracterizar o movimento definitivamente e reconstruir o passado, é a localização dos documentos. Mattoso (1969) trabalha com fontes francesas. Tavares (1975, p. XI) destaca uma séria de abreviaturas referentes à arquivos onde achou suas fontes e anos antes (1959) já comentava esse detalhe. Assim, faltava um trabalho de coleta e compilação para um melhor estudo do movimento baiano. Em 1998, o Governo da Bahia, através do Arquivo Público da Bahia (APB) e em parceira com a Biblioteca Nacional (BN), publica em dois volumes os Autos da devassa da Conspiração dos Alfaiates, coletânea de manuscritos encontrados tanto no APB quanto na BN. Antes dos documentos, há uma parte introdutória que resume os estudos sobre os movimentos até então. Assim, o texto assinado por Anna Amélia Vieira Nascimento, falecida historiadora e ex-diretora do APB, serve tanto como introdução acadêmica quanto um pequeno manual didático sobre o movimento de sedição. Dos textos que tivemos acesso e que foram lançados após a publicação dos Autos, grande parte das suas ideias básicas – origem social e étnica dos sediciosos, a participação de Larcher no movimento e a condenação dos mártires – já estão inscritas nesse breve resumo. O século XXI não abandonou os estudos do movimento de sedição intentado na Bahia em 1798, mas deu continuidade e novas abordagens às fontes agora compiladas e organizadas. Porém, a era digital não foi facilitador nosso ao acesso de textos atuais, mas muito pelo contrário. Da bibliografia indicada, grande parte dos antigos livros estavam disponíveis na grande rede mundial enquanto poucos do presente quase imediato forma localizados. Assim, com o que foi possível angariar, trabalhamos o que fomos capazes. Dessa bibliografia mais nova, acessamos o texto de Jancsó (2007), já referenciado, do falecido professor Ubiratan Castro de Araújo (2004) e o artigo da professora da UFBA Patrícia Valim (2009). Assim como para os autores-chave antigos, para estes também será aberto um trecho neste trabalho.

Os textos Araújo (2004) e de Valim (2009) não se ocupam dos mesmos assuntos já tratados por décadas de historiografia sobre a sedição baiana. O primeiro, intitulado “A política dos homens de cor no tempo da Inconfidência”, é uma espécie de história vista de baixo, que visa dar mais ênfase aos participantes da sedição do que a seus ideais. Araújo caracteriza os homens que foram mortos no ano seguinte à prisão como “os primeiros políticos negros da Bahia”, que “fizeram política e por isso foram cruelmente reprimidos” e “representavam a ousadia de homens de cor em se meter no que não era da sua alçada, o governo da cidade” (2004, p. 267). Já Valim (2009), apresenta uma outra visão da execução dos quatro condenados. Através de relatos de um frei dos Carmelitas Descalços, encontrados em Portugal e no Brasil, Valim reconstitui o episódio do enforcamento em praça pública ocorrido um ano depois da prisão. O frei José do Monte Carmelo, personagem nova que aparece com a descoberta dos documentos, narra os minutos finais dos quatro homens, sua morte e o uso dos seus corpos pelo Governo da Bahia como meio de autoafirmação e controle. Acontece que, ao longo dos relatos, o frei muda sua visão dos homens de “réus delinquentes” para “pequeninos” de Deus e “[...] talvez arrependido por saber dos acontecimentos em curso no ano de 1798, fez questão de afirmar que os réus não foram os únicos culpados” (VALIM, 2009, p. 19). Valim apresenta a tese de que os Carmelitas Descalços sabiam da possível tentativa de independência, mas não foram pegos pelas autoridades. Por isso, o frei talvez tenha ficado com algum peso na consciência, o que explicaria sua mudança de visão sobre os condenados. O artigo de Patrícia Valim é o mais recente encontrado em termos de produção acadêmica acerca do movimento em questão e finaliza esse breve resumo. Nas próximas páginas, subtítulos sobre os autores-chave abordarão mais a fundo cada um dos que achamos mais pertinentes para esta breve revisão. 2.2.

Autores-chave

2.2.1. Affonso Ruy Em seu livro “A primeira revolução social brasileira 1798” (RUY, 1970), o autor começa a narrativa apresentando um panorama da situação socioeconômica do Brasil, depois da Bahia e finalmente de Salvador. Altos impostos cobrados pela Coroa - opressão da metrópole - são responsáveis pela pobreza do povo e consequente perda de valores

(corrupção, violência, promiscuidade): “Os homens se faziam mais impertinentes; o mulherio, mais petulante; os malandrins, mais temíveis. Os conflitos eram frequentes e sangrentos; as noites, perigosas para a gente honesta” (ibid. 1970, p. 21-22). Sobre a “perda de valores” da sociedade baiana, o autor cita o exemplo dos conventos em Salvador – as famílias mais abastadas mantinham a tradição de mandar suas filhas seguirem a vida religiosa, mas as mulheres não possuíam “vocação” para a vida celibatária: “Por isso mesmo os claustros tornavam-se centros de irreverência, primando pela irreligiosidade, soberbia e amores pecaminosos” (ibid. 1970, p.23). Ruy também aponta a influência exterior sobre a aparente mudança no comportamento da população A irreligiosidade e descrença correlatas das reformas sociais europeias se faziam sentir até nos quartéis; o Tenente Hermógenes de Aguilar Pantoja, no ato de seu casamento, declarou ao padre que presidia à cerimônia, dispensar o ritual da igreja, bastando que ele, o noivo, afirmasse o desejo de desposar a sua prometida (ibid. p. 55).

Tratando ainda da incompetência da Coroa, o autor comenta sobre o então governador, D. Fernando José de Portugal, “sua honradíssima inércia” (ibid. p.61), pois corria na cidade rumores sobre a impopularidade do governador. Também em comentário acerca da corrupção e da desigualdade da sociedade baiana no momento da condenação dos quatro homens capturados: “Encerrava-se assim o ciclo judiciário com a punição daqueles que enchiam a cadeia da Cidade, excluindo os mentores da revolução, protegidos pelo prestigio de D. Fernando.” (ibid. p. 138). Assim o autor assinala a questão de que, mesmo sendo uma revolução socialista, como ele defende que seja chamada, ela ainda possuía uma clara diferenciação entre seus membros. As bases cunhadas por Ruy seguem na historiografia. Os “mentores da revolução” são referenciados também por Araújo (2004), Jancsó (2007), Tavares (1975), Valim (2009) e na apresentação dos “Autos” (1998) como sendo parte da elite local. Apesar da sua denominação de “Revolução Proletária” (RUY, 1970) não ter sido amplamente utilizada, nunca se questionou o fato de os participantes mais afincos serem de classes subalternas. A procedência étnica é central em Araújo (2004) e outros culpados que talvez devessem ter sido condenados, segundo frei José do Monte Carmelo, está em Valim (2009). Mesmo que tenha

sido criticado, Ruy não perdeu sua importância como um dos pioneiros no estudo do movimento 2.2.2. Luiz Henrique Dias Tavares István Jancsó (2007, p. 208) classifica Tavares como “o historiador que certamente mais tempo de pesquisa documental dedicou aos ‘Alfaiates’”. Além dos três livros que tivemos acesso (TAVARES, 1959; 1970; 1995), o autor ajudou na compilação dos “Autos” (BAHIA, 1998) e teve seu livro “História da Bahia” editado mais de dez vezes. Na primeira edição do mesmo, Tavares classifica a Inconfidência Baiana -e os Motins do Maneta - como movimentos de cunho nativista. Na unidade VII do seu livro (TAVARES, 1959), intitulada “Sentimento Nativista”, ele descreve que as origens deste sentimento nativista seriam as fortes restrições que a Metrópole portuguesa impunha aos colonos baianos, como por exemplo, os altos impostos e as restrições a produção local de certos produtos. Estas restrições prejudicavam a vida dos colonos e geravam tensão entre eles os portugueses ao longo do século XVIII. Tavares destaca também que as exigências de independência eram apenas locais, e não se estendiam ao resto do Brasil, como gostaria Larcher (JANCSÓ, 2007). Em seu outro livro, “História da Sedição Intentada na Bahia em 1798” (TAVARES, 1970), o autor faz um relato quase jornalístico do movimento. Contando com documentos da época - preservados da investigação feita pela Coroa - para reproduzir “uma versão correta, exata” (ibid. 1970, p.1) dos eventos que cercam a revolta, Tavares em seu livro reproduz diálogos oriundos dos depoimentos coletados durante as investigações, diários, tabelas de taxas sobre produtos e os cartazes confeccionados pelos revoltosos. Sobre a influência francesa, Tavares comenta a existência de livros desembarcados na Bahia de navios franceses: “o navio francês descarregou ‘uns livrinhos’ na Bahia, o que envolve a participação subversiva direta da França no movimento de 1798” (1970, p. 80) e como esses “livrinhos” supostamente possuíam uma ideologia anti-religiosa. 2.2.3. István Jancsó No capítulo 8 (A sedução da liberdade: Cotidiano e contestação política no final do século XVIII) do livro História da vida privada no Brasil: Cotidiano e vida privada na América Portuguesa, de 1997, Jancsó contextualiza as sedições do final do século XVIII (a da Bahia e a de Minas Gerais) no Brasil como consequências da crise do antigo regime. Para ele, as sedições eram o sinal da erosão de um antigo modo de vida e da emergência de novas

formas de organizar a sociedade. (p.389). Ainda nesta questão da contextualização, Jancsó crítica a ideia de que as sedições eram apenas sinais da independência que estava por vir ou um como indícios de uma “brasilidade” em formação. Ele acha que os historiadores devem buscar significados além destes para explicar esses acontecimentos (p. 391). Havia um envolvimento nas sedições de pessoas vindas de todas classes sociais. Os ideais revolucionários chegavam primariamente por livros, a maioria de origem francesa. Apesar das restrições de Portugal à circulação destes livros, o acesso a eles pelas elites coloniais que viajam para a Europa era extremamente comum, o contrabando de livros era uma ativada praticamente rotineira entre as elites letradas. O acesso a esses livros era tão comum que também não era raro ver eles nas mãos de pessoas fora da elite, os “pardinhos e branquinhos” (p.403) também demonstravam forte interesse no conteúdo desses livros, mesmo sem dominar o francês necessário para lê-lo. As sociedades secretas, como Os Cavaleiros da Luz da Bahia, onde eram discutidos os livros e as ideias revolucionárias era grupos bastante igualitários e democráticos: Mas o mais surpreendente no tocante ao rompimento com as formas tradicionais de sociabilidade de letrados é a ênfase na 'boa-fé e o segredo, para que ninguém saiba do que se tratou na Sociedade', e é afirmado o princípio de que 'não deve haver superioridade alguma' em seu interior, e ela 'será dirigida igualmente por modo democrático'(p.413)

As reuniões desses grupos geralmente eram feitas em espaços privados, como a casa de um dos membros. Apesar dos ideais igualitários e libertários dentro das sociedades, fora delas, no cotidiano, as dinâmicas de classe tradicionais ainda se manifestavam entre pessoas de classes distintas que falavam em pé de igualdade dentro das sociedades. Donos de escravos que defendiam as sedições e seus ideais libertadores não deixavam de ter escravos e de abusar de seu trabalho, membros das elites ainda tratavam as pessoas de classes mais baixas como inferiores fora de suas reuniões (p.432).

2.2.4. Ubiratan Castro de Araújo O principal objetivo de Araújo no texto acessado (2004) é mostrar a cidade e a situação social a partir dos homens que de fato participaram da sedição, ou seja, negros,

mulatos, desertores do exército, libertos e outros de posições sociais subalternas. Uma Bahia superpopulosa em todas as camadas sociais guardava pouco espaço para essa população, que vivia numa espécie de limbo social. O autor emprega o termo “povo mecânico” pois grande parte desses homens ocupavase de trabalhos manuais. Mesmo assim, acabavam competindo com os escravos, que faziam o mesmo serviço sem custo, por serem propriedade dos seus senhores. Esses homens então ficavam presos à uma situação de imobilidade social por causa da cor e de sua ocupação (ARAÚJO, 2004). Assim, muitos acabavam juntando-se às Forças Armadas da Bahia. Apesar de apontar diversas dificuldades enfrentadas pelos homens do exército que poderiam gerar o fenômeno da deserção, Araújo faz questão de assinalar que Em uma sociedade urbana tão marcada pela diversidade de atividades econômicas, pela segregação espacial, racial e social dos seus habitantes, a força armada (1ª Linha, Milícias e Ordenanças) constituiu o único espaço institucional em que os indivíduos pertencentes às camadas sociais subalternas puderam estabelecer uma relação estável, ainda que pautadas na hierarquia e na disciplina militar, onde até os oficiais oriundos das camadas mais ricas, compostas pelos brancos da terra, também estavam descontentes com a supremacia portuguesa (ibid., 2004, p. 257)

Ou seja, a situação de estar nas tropas facilita o encontro entre diferentes pessoas, algumas que podem estar em concordância perante alguns pontos, neste caso, o descontentamento com a situação colonial. Por isso, “Não é difícil de compreender que todos os movimentos populares e republicanos, dos Alfaiates em 1798 à Sabinada em 1837, tenham como epicentro a corporação militar” (ibid., 2004, p. 257). De fato, grande parte dos sediciosos eram militares, e dos 34 considerados culpados, 11 vinham das tropas, incluindo dois tenentes (BAHIA, 1998). Esse contato todo também serviria para trocar ideias revolucionárias de liberdade, igualdade e fraternidade. Numa situação de inferioridade social, sem saída do contexto em que se encontravam, “esses negros da terra [...] pensavam mais além do seu próprio estômago” (ARAÚJO, 2004, p.257). Eles queriam ser iguais aos brancos e, por constar nos boletins sediciosos a chamada para uma República, conheciam o ideal republicano. As ideias francesas haviam chegado aos seus ouvidos, mentes e corações. Para além disso, “mais importante do que a ideologia revolucionária veiculada nos ‘papéis sediciosos’, as propostas econômicas nele contidas

revelam uma busca de alternativas para a crise urbana” (ibid., 2004, p. 262). O autor mostra que essas pessoas não estão mais apenas se acomodando à conjuntura, mas tentando mudá-la a seu favor, pois estão insatisfeitos. Em conclusão, Araújo caracteriza os considerados culpados e especialmente os condenados como “os primeiros políticos negros da Bahia” (ibid., 2004, p. 267), pois tentaram interferir num status quo que não os agradava e acreditavam que necessitava de uma reforma. 2.2.5. Patrícia Valim No artigo lido, Valim traz à tona a existência de novos documentos a respeito da morte dos quatro condenados pelo Governo da Bahia. Intitulados “Notícia da execução que se fez na Bahia em 8 de novembro de 1799 aos libertinos que saíram produzidos na sentença da Relação da sublevação intentada na cidade da Bahia” (AHU - Lisboa) e “Outra relação feita pelo P. Fr. Joze D’Monte Carmelo, religiozo carmelita descalço” (Arquivo do IHGB), ambos são redigidos pelo frei José do Monte Carmelo, responsável por pegar a confissão final dos quatro homens (VALIM, 2009) Acontece que o frei não se detém apenas a relatar as confissões e o fim da vida dos homens. Ele imprime, discretamente, suas impressões quanto aquele ato final. [...] o carmelita descalço deixa em aberto em sua narrativa que não foram eles os únicos culpados no ‘delito de sublevação’, sugerindo ter havido iniquidade do poder local em relação à circunscrição social do evento (ibid., 2009, p. 15, grifo da autora).

Essa mesma tese pode ser encontrada na apresentação dos “Autos”, onde a ex-diretora Anna Amélia assinala que os quatro condenados “certamente não foram os mais culpados, apenas os escolhidos como exemplo, numa demonstração de força da administração colonial” (BAHIA, 1998). O uso dos corpos após os esquartejamentos que seguiram a forca também foi relatado pelo frei José, que diz que os pedaços foram espalhados em locais estratégicos da cidade. Convocando Foucault, a autora do artigo explica que o uso do corpo servia como uma “punição exemplar” através do “suplício”, para que, a partir dos exemplos que aqueles homens mortos representavam, as pessoas da cidade não tentassem a rebelião, pois certamente seriam punidas (VALIM, 2009).

As novas questões abertas pela autora talvez seja o que mais interessa neste artigo e abre novas portas para reconstituir os episódios da sedição intentada. A principal delas referese aos Carmelitas Descalços. Poderiam eles saber da intenção dos revoltosos? A dúvida se abre por causa de uma mudança de posição que o frei em questão toma em relação aos homens condenados. Ao ser indicado para recolher as confissões, frei José afirma sentir “‘uma repugnância em ir pessoalmente’”, mas, ao lá encontrar-se, vê o arrependimento nos olhos dos “‘condenados delinquentes’” (VALIM, 2009, p. 18). Porém, no seu relato, o frei afirmar que os homens estão arrependidos pois Deus os usou para provar que sua misericórdia é infinita e que os “pequeninos” estarão salvos (ibid., 2009). Segundo o frei, quando no momento final de suas vidas, cada um dos quatro homens demonstra seu arrependimento em público, uma última súplica para que o Senhor os salvasse. A autora, ao indicar que o frei não está de acordo com a pena, diz que [...] frei José questiona a pena imputada aos quatro réus, mas o faz afirmando que o milagre da misericórdia divina só foi possível porque Deus, que tudo vê, sabia que os quatro homens enforcados em praça pública não foram os únicos que cometeram o delito régio (VALIM, 2009, p. 17)

Em conclusão a esse tema, a autora aponta que O religioso, abstraindo a “repugnância” inicial que sentiu ao ser chamado a ouvir a confissão dos “réus delinqüentes”, argutamente explicita sua crítica ao processo de secularização das ideias, no final do século XVIII, através da vitória de Deus no verdadeiro embate com o demônio: as luzes divinas exteriorizadas no milagre da misericórdia vencendo as luzes da razão iluminista. Esse embate aparece na narrativa do carmelita descalço quando os acusados são convertidos de “réus delinqüentes” em “pequeninos” após o arrependimento por projetarem uma revolta e rejeitarem os preceitos da religião católica, quando deram “ouvidos a um Voltaire, a um Calvino, a um Rousseau”. (VALIM, 2009, p. 17, grifo da autora)

E também Cumpre destacar que no final do seu relato, frei José, talvez arrependido por saber dos acontecimentos em curso no ano de 1798, fez questão de afirmar que os réus não foram os únicos culpados no “delito de sublevação”. (VALIM, 2009, p. 19, grifo da autora)

Assim, a autora abre essa nova questão, que talvez fique sem resposta, trazendo à luz uma nova personagem e trabalhando a partir de outro ângulo, “Trata-se da posição de um religioso cristão em relação às forças diametralmente opostas no final do século XVIII: razão/revelação; liberdade/despotismo; natureza/civilização; moral/política; luzes/trevas” (VALIM, 2009, p. 15)

2.3.

A presença francesa

De visitação intensa no início da segunda metade do século XX, quase central nos trabalhos de Tavares (1959; 1960; 1975; 1995) e orientador da pesquisa de Mattoso (1969), o tema perde popularidade entre autores mais novos, como Araújo (2004) e Valim (2009), que não negam, mas também não se aprofundam no tema. Um dos mais clássicos autores, Tavares, sobre essa presença, inicia tendo como certa a mesma na pessoa do comandante Larcher e na suposta loja maçônica Cavaleiros da Luz, onde reuniam-se os sediciosos soldados e trabalhadores com a elite letrada para estudo de texto iluministas (TAVARES, 1959). As ideias revolucionárias “das conversas de Larcher passaram, em julho de 1797, à criação da Cavaleiros da Luz” (ibid.., 1959, p. 54). Na década seguinte, Tavares questiona a proposição anterior, na realidade proposta por Affonso Ruy. Após a publicação do trabalho de Mattoso, em 1969, Larcher passa de um personagem central na sedição para uma mera suposição. Mattoso encontra-se na França, e lança o livro baseada também em documentos da Marinha francesa. Nesse trabalho, a autora traduz os textos franceses encontrados em posse de Cipriano José Barata de Almeida e Hermógenes Francisco de Aguilar Pantoja, soldados que participaram da conspiração e foram réus nas devassas. A autora, buscando uma influência francesa direta sobre a organização do movimento na Bahia, também questiona a afirmação de que Larcher seria o responsável por influenciar (talvez até organizar) os revoltosos baianos (MATTOSO, 1969). Como citado por Tavares Como poderia Larcher, que chegava à Bahia em 30 de novembro, e partia em 31 de dezembro do mesmo ano, ou no máximo, em 2 de janeiro de 1797, contribuir para a fundação duma sociedade secreta de baianos em julho de 1797? (1975, p. 18-19)

A questão é: existia um Larcher, mas o período em que este se encontrava na Bahia não coincidia com o período em que se precisava que ele lá estivesse para agir diretamente sobre a sedição (TAVARES, 1975). Jancsó, em 2007, lança um artigo intitulado “Novas perspectivas sobre a presença francesa na Bahia em torno de 1798” junto com Marco Morel, professor da UFRJ. Nesse artigo eles publicam e traduzem dois documentos que abrem outras possibilidades sobre a influência de Larcher no movimento. A tese dos autores é a de que Antoine René Larcher, capitão da Marinha francesa, era um enviado com objetivo de infiltrar-se na sociedade baiana, abrir caminhos para a expansão dos ideais franceses e, culminando em uma independência que se tornaria geral na América portuguesa, obter um exclusivo comercial com a área (JANCSÓ; MOREL, 2007). Essa teoria já está inscrita no texto de apresentação dos Autos da devassa da Conspiração dos Alfaiates (BAHIA, 1998) e usou, pelo que indica o corpo do texto, o mesmo documento que Jancsó, o “Projeto de expedição contra São Salvador (Brasil) pelo Cap. de navio Larcher – 24 de abril de 1797” (JANCSÓ, 2007), onde Larcher descreve a quantidade de pessoas e suas necessidades para o movimento de independência. A partir dessas cartas, enviadas pelo capitão Larcher para o Diretório da República Francesa, os autores constatam que o mesmo deixou uma cópia da Constituição Francesa de 1795 (2007, p. 212) visando moldar a suposta nova nação baiana. Provam também a existência do contato de Larcher com a elite baiana e a formulação de um “projeto de invasão da Bahia” (2007, p. 212), também título da primeira carta enviada pelo capitão francês.

3. Conclusão A Inconfidência Baiana é, e ainda será, assunto de muita pesquisa como um episódio importante inserido num momento de transformações no Brasil e no mundo. De Affonso Ruy à Patrícia Valim, foram vários os pesquisadores vistos aqui que se debruçaram sobre as fontes históricas num esforço de entender onde a Inconfidência Baiana se encaixa no contexto do final do século XVIII. A Conjuração dos Alfaiates foi apenas uma das várias revoltas e sedições do Brasil. Um movimento que sinalizava a exaustão de uma sociedade e o crescente anseio de uma nova. Uma conspiração marcada por personagens, ideias e interesses estrangeiros com participação popular e de elites locais. Um confronto ideológico que colocava um mundo católico, monárquico e escravocrata contra um ideal laico, republicano e de liberdade para todos. Um evento complexo com muitas questões em aberto esperando por novas fontes e historiadores para examiná-las.

4. Referências bibliográficas ARAÚJO, Ubiratan C. de. A política dos homens de cor no tempo da Inconfidência. In:

Estudos

Avançados,

São

Paulo,

v.18,

n.50,

2004.

Disponível

em

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