RENA, Alemar - Três (anti)métodos de pesquisa para a multidão - cartografar, copesquisar, coletivizar (Cap. de livro)

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TRÊS (ANTI)MÉTODOS DE PESQUISA PARA A MULTIDÃO: CARTOGRAFAR, COPESQUISAR, COLETIVIZAR ALEMAR S. A. RENA É possível falarmos de “métodos” para as pesquisas multitudinárias, isto é, pesquisas que, à guisa dos escritos e reflexões mais recentes de autores como Hardt e Negri, buscam no conceito (e prática) da multidão alternativas para a crise contemporânea no que concerne ao engajamento político, à produção cultural e aos paradigmas linguísticos e conceituais no campo da filosofia política? Não pretendemos nos aprofundar numa resposta para essa pergunta, mas gostaríamos de indicar aqui algumas breves pistas possíveis tendo em vista três exemplos de metodologias com as quais nos deparamos pelos meandros da pesquisa sobre/com/para a multidão (HARDT e NEGRI, 2005). Buscamos assim, no caminho, tensionar sutilmente aquilo mesmo que temos tradicionalmente entendido por “método de pesquisa” não somente na esfera da filosofia política, mas igualmente na esfera da pesquisa sóciocultural e linguística (incluindose aí análises contemporâneas no campo do design atravessadas por uma verve ativista). O primeiro ponto que gostaríamos de destacar diz respeito à cartografia tal como proposta por Deleuze e Guattari em Mil platôs. O conceito de cartografia é, nestes pensadores, profundamente atravessado pelo conceito de rizoma. No rizoma o princípio de cartografia opõe-se ao princípio de decalcomania. Se a decalcomania possui a árvore como modelo, pautando-se por eixos

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genéticos (originadores) estruturantes, bem definidos, profundos, a cartografia é a realização do próprio rizoma: “o mapa se opõe ao decalque”, dirão, por estar inteiramente voltado para “uma experimentação ancorada no real. O mapa (…) contribui para a conexão dos campos, para o desbloqueio dos corpos sem órgãos, para sua abertura máxima sobre um plano de consistência. Ele faz parte do rizoma”. O mapa é aberto, é conectável, desmontável, reversível. Ele pode adaptar-se a montagens diversas, vir de um indivíduo, de um grupo, de uma formação social. Pode-se “desenhá-lo numa parede, concebê-lo como obra de arte, construí-lo como uma ação política ou como uma meditação. (…) Um mapa tem múltiplas entradas contrariamente ao decalque que volta sempre ao mesmo’”. Um mapa é uma “questão de performance, enquanto que o decalque remete sempre a uma presumida ‘competência’” (1995, p. 22). Note-se portanto que se pensamos a proposta de Deleuze e Guattari enquanto um método do pensamento, o próprio método, enquanto performance, já se confunde com o objeto e o sujeito. Desenhe mapas, sendo mapas. Faça rizomas, sendo rizomas. O método cartográfico, portanto, propõe-nos o desafio de não pensar sujeito e objeto como instâncias distintas, mas como processo em que continuamente o objeto produz o sujeito e o sujeito produz o objeto. A mente está no mundo que está na mente. O mesmo podemos dizer do corpo: performance, não competência. Em Pistas do método da cartografia, Virgínia Kastrup et. al. procuram levar a hipótese de Deleuze à condição de método aplicado à pesquisa acadêmica. Eles escrevem: a realidade cartografada “se apresenta como mapa móvel, de tal maneira que tudo aquilo que tem aparência de ‘o mesmo’ não passa de um concentrado de significação, de saber e de poder, que pode por vezes ter a pretensão ilegítima de ser centro de organização do rizoma. Entretanto, o rizoma não tem centro” (2009, p. 10). Se o rizoma é acêntrico, como sobre ele compor um método? Obviamente, o próprio método é um mapa, em constante produção de si mesmo. Por isto os autores não vão falar de uma “teoria” da cartografia, mas “pistas” para um fazer cartográfico:

a metodologia, quando se impõe como palavra de ordem, define-se por regras previamente estabelecidas. Daí o sentido tradicional de metodologia que está impresso na própria etimologia da palavra: metá-hódos. Com essa direção, a pesquisa é definida como um caminho (hódos) predeterminado pelas metas dadas de partida. Por sua vez, a cartografia propõe uma reversão metodológica: transformar o metá-hódos em hódos-metá. Essa reversão consiste numa aposta na experimentação do pensamento — um método não para ser aplicado, mas para ser experimentado e assumido como atitude. Com isso não se abre mão do rigor, mas se é ressignificado. O rigor do caminho, sua precisão, está mais próximo dos movimentos da vida ou da normatividade do vivo. (idem, p. 10-11)

Eis, portanto, algumas pistas que o método cartográfico nos oferece: 1) o método já se confunde com o objeto. Estão ambos a se fazerem enquanto se fazem; cartografar é performance, e não estrutura profunda a priori 2) o mapa se opõe ao decalque; está inteiramente voltado para uma experimentação ancorada no real; 3) o mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente; 4) por

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fim, a cartografia é feita de elementos heterogêneos, sobre elementos heterogêneos, por corpos heterogêneos. O segundo ponto a ser destacado em nossa coleta de pistas (anti)metodológicas para se pensar a multidão é a copesquisa. A Copesquisa é uma metodologia de pesquisa-ação que implica o pensamento crítico na participação e integração social. Ela tem hoje se tornado um recurso interessante entre diversos grupos de pesquisa participativa no país, inclusive o grupo Indisciplinar do qual temos participado nos últimos anos na Escola de Arquitetura da UFMG. Nascida no contexto das lutas operaístas italianas nos anos 60 e 70 — nas quais Antonio Negri foi assíduo atuante —, em sua versão original a copesquisa (ou, em italiano, conricerca) propunhase, como nos informa Bruno Cava, a “mais do que apenas colher uma base sociológica empírica para metas de pesquisa, acercando-se do objeto com uma metodologia de tipo epistemológico”. A copesquisa buscava assumir o “conhecimento situado subjetivamente, compreender o todo, sem perder de vista a sua importância como organização política”. Se, por um lado, a pesquisa ganha corpo com a experiência e a perspectiva desenvolvida pelos trabalhadores, por outro, “compartilha e faz circular os saberes e hipóteses, contribuindo para a auto-organização do movimento” (2013, p. 22). Desta forma, a copesquisa não possuía como objetivo a interferência direta no objeto de pesquisa, já que, na prática, a comunidade operária sequer era vista como objeto. Com efeito, ainda segundo Cava, “não existe a distinção entre sujeito e objeto da pesquisa, devendo avançar em permanente autocrítica (formal e material) no sentido da mútua implicação entre lutas e teoria” e produção de “uma teoria das lutas imanente aos problemas de autonomia”. Isto por certo não queria dizer ausência de rigor, mas um redimensionamento da pesquisa: tanto “conhecer para transformar”, quanto “transformar para conhecer”. As sínteses prático-teóricas, se bem sucedidas, “vão reforçar a autovalorização” ao valorizar a capacidade de os próprios sujeitos se envolverem em narrativas sobre si (2013, p. 22-23). Estes seriam, portanto, os principais vetores conceituais passíveis de serem destacados do método da copesquisa e reaplicados ao contexto das pesquisas multitudinárias (não mais, claro, tendo em vista as lutas operárias): 1) conhecimento situado subjetivamente, aprendendo com a experiência do outro ao mesmo tempo que compartilhando e fazendo circular os saberes e hipóteses; 2) contribuição para a auto-organização da comunidade e dos próprios pesquisadores e comunidade acadêmica. Em outros termos, “conhecer para transformar” e “transformar para conhecer”; 3) ausência de distinção entre sujeito e objeto da pesquisa, devendo esta avançar em permanente autocrítica e mútua implicação entre experiência e teoria; 4) centralidade dos problemas da autonomia. Um último ponto de nossa indicações (anti)metodológicas diz respeito à inteligência coletiva em rede como descrita por Pierre Lévy em seus estudos das décadas de 1980 e 1990. Naquele contexto, Lévy notou que as tecnologias molares — no campo do social, da mecânica, da política, etc. — implicam um manejo de seu objeto de forma grosseira, tomando-se as sutilezas das partes pelo todo, unificando, uniformizando, massificando. Estas, que também podemos chamar de “tecnologias da transcendência”, passam por um centro, um ponto elevado e, dessa exterioridade, separam, organizam e unificam o coletivo. Falamos, portanto, de gestão em massa, em que “as pessoas não são consideradas pelo que são em si (…), mas por sua pertença a categorias. (…) O grupo molar organiza uma espécie de termodinâmica do humano,

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uma canalização exterior dos comportamentos e características que leva muito pouco em consideração as qualidades das pessoas” (2003, p. 56). Assim, o Estado, a educação moderna, as legislações, as políticas populacionais, as mídias de massa, etc. são todas tecnologias molares. Os grupos são considerados “fontes de energia a serem utilizadas no trabalho”, forças a explorar. As políticas moleculares, de forma bastante diversa, fazem uso das inteligências coletivas que “elaboram e reelaboram seus projetos e recursos, refinam constantemente suas competências, visam indefinidamente o enriquecimento de suas qualidades” (idem). Promove, deste modo, uma “engenharia do laço social” (LÉVY) colocando o conjunto para trabalhar como tal, trazendo à tona as criatividades, a capacidade de iniciativa, a diversidade das competências e a sinergia entre capacidades individuais, sem encerrá-las ou limitá-las por meio de categorias ou estruturas molares a priori. A política fina “não quer modelar o coletivo segundo um plano preestabelecido: isso seria evidentemente reincidir na pior das tecnologias de massa. Ela suscita um laço social imanente, emergindo da relação de cada um com todos” (2003, p. 56-57): na esfera do humano, as tecnologias moleculares propõem aos grupos e às pessoas instrumentos que lhes permitam valorizar a si próprias, qualidade por qualidade. Promovem o reconhecimento mútuo e a sinergização das qualidades antrópicas (…). Os membros dos coletivos moleculares se comunicam transversalmente, reciprocamente, fora de categorias, sem passar pela via hierárquica, dobrando e redobrando, cosendo e recosendo, complicando a seu bel-prazer o grande tecido metamórfico das cidades calmas. (2003, p. 57)

A multiplicação de coletivos moleculares supõe não a comunicação massificada, mas um conjunto de técnicas moleculares operacionais e de baixo custo. A inteligência coletiva necessita, contudo, “da infra-estrutura técnica adequada” (2003, p. 57), devendo ser definida por cada agenciamento específico, correspondendo às dinâmicas emergentes. Portanto, desta visão podemos tirar quatro componentes metodológicos: 1) a desierarquização da prática de pesquisa, inserido seus agentes numa tendência transversal de produção e comunicação; 2) valorização da escolha ponderada dos elementos técnicos para o processo de produção de conhecimento (inclusive e principalmente nos exercícios cartográficos); 3) valorização da imanência em detrimento da transcendência, isto é, a emergência das formas e métodos no próprio fazer, limitando, portanto, a capacidade de saber de ante-mão todas as particularidades do próprio método escolhido; 4) a valorização das singularidades-plurais, isto é, das qualidades e competências individuais ao mesmo tempo que sua sinergia com as outras habilidades e competências do grupo de trabalho, promovendo o “reconhecimento mútuo e a sinergização das qualidades antrópicas”. Com efeito, poderíamos dizer que tanto o princípio de cartografia, proposto por Deleuze a respeito de seu rizoma, quanto os conceitos de molar/molecular de Lévy avizinham-se do conceito de multidão proposto por Hardt e Negri (2005). Diríamos, contudo, que o “fazer a multidão”, o “fazer o rizoma” e o “fazer a inteligência coletiva” não são fazeres excludentes, mas complementares, às vezes coincidentes, e certamente potencializadores mútuos. Deleuze

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encontra-se em Hardt e Negri, bem como a multidão de Hardt e Negri em Deleuze (na forma das composições de malta, agenciamentos coletivos e nomadismo) e a inteligência coletiva de Lévy em Hardt e Negri. Portanto, uma pesquisa multitudinária pode pautar-se, ela mesma, no âmbito dos conceitos, pelo princípio da cartografia, uma multiplicidade heterogênea com diferentes portas de entrada e saída, diferentes dimensões, diferentes agenciamentos, conformando um mapa com vetores de malta, de multidão, de singularidades-plurais e de coletividades pensantes. REFERÊNCIAS CAVA, Bruno. A copesquisa militante no autonomismo operaísta. Lugar comum, n. 37-38, p. 17-38, 2013. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia vol. 1. São Paulo: Ed. 34, 1995. GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolíticas: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 2010. HARDT, Michael e NEGRI, Antonio. Multidão: guerra e democracia na era do Império. Rio de Janeiro: Record, 2005. HARDT, Michael e NEGRI, Antonio. Império. Rio de Janeiro: Record, 2006. KASTRUP, Virgínia, et. al. (orgs.). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Editora Sulina, 2009. LÉVY, Pierre. A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. São Paulo: Edições Loyola, 2003.

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