Racionalmente sensível

June 16, 2017 | Autor: C. Santarelli | Categoría: Advertising, Publicidade, Resenha critica
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Racionalmente sensível CARRASCOZA, João Anzanello. Razão e sensibilidade no texto publicitário. Prefácio de Washington Olivetto. São Paulo: Futura, 2004, 331 p. por Christiane Santarelli1

A trama de persuasão, tecida pelo redator publicitário em seu ofício, pode ser categorizada em dois modelos básicos: o apolíneo e o dionisíaco. Essas definições, que estão amarradas a conceitos estudados por Nietzsche no século XIX, já serviram de inspiração para inúmeras reflexões sobre as artes e constituem o fio condutor da análise de Carrascoza sobre o discurso da propaganda em seu novo livro Razão e sensibilidade no texto publicitário. Nietzsche, em sua primeira obra, A origem da tragédia (1871), busca respostas filosóficas para a origem da valorização da razão na cultura ocidental e resgata a tragédia grega, nascida do culto ao deus do vinho Dionísio, como gênero fundador das artes cênicas. O espírito dionisíaco representa os excessos, a irracionalidade e as emoções extremas, e o seu inverso, o espírito apolíneo, caracteriza a ordem, a racionalidade e a moderação ou o mundo idealizado dos sonhos, e no teatro grego está ligado à epopéia. A arte é sempre tensão e desequilíbrio entre esses dois espíritos. Transpondo os conceitos nietzschianos para a realidade do texto publicitário, segundo Carrascoza, o modelo apolíneo seria o esquema tradicional de formatação do anúncio, de cunho racional e persuasivo. Em um contraponto, a estrutura do modelo dionisíaco é mais solta, criada no formato narrativo ou poético em que a persuasão é diluída e seduz

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Christiane Santarelli é doutoranda em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) com a tese: “A publicidade de moda: processos de análise da imagem gráfica”. Na mesma instituição se formou bacharel em Comunicação Social e mestre em Ciências da Comunicação. Também cursou Comunicação Social na ESPM-SP. Atua como professora universitária e publicitária. 1

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2 Curiosamente a obra de maior divulgação no Brasil, com 84 milhões de exemplares atingidos em 1973.

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pelos aspectos emocionais contidos na narrativa. O texto dionisíaco é aparentemente muito pouco usual no discurso publicitário de mídia impressa e assume ares de contemporaneidade. Entretanto, o percurso histórico feito pelo autor nos apresenta o modelo dionisíaco de maneira embrionária nos “reclames” do século XIX e mostra sua consagração no célebre anúncio de Monteiro Lobato, com o personagem Jeca Tatu, criado para o laboratório Fontoura na década de 19402. Razão e sensibilidade no texto publicitário está dividido basicamente em três partes. Após os primeiros esclarecimentos sobre o texto publicitário, vem a descrição do modelo apolíneo. Esse tipo textual está preso a um esquema de persuasão retórico, o esquema aristotélico de discurso deliberativo que visa aconselhar ou desaconselhar alguém e tem geralmente o formato dissertativo. Além dessa especificidade, ele agrega uma série de características próprias, como o apelo à autoridade, as afirmações e repetições, a circularidade da mensagem, o uso de estereótipos, os argumentos de superação, a rede semântica, entre outros. Nesse capítulo, Carrascoza retoma conceitos já explorados em seu primeiro livro, A evolução do texto publicitário, de uma maneira mais concisa, mas igualmente interessante. A segunda parte da obra segue com a apresentação do modelo dionisíaco e suas características, como o uso da narrativa, das funções emotivas e poéticas de um texto, da intertextualidade, dos testemunhais e outras características do texto dionisíaco. Essa divisão representa a linha mestra do livro, e vem seguida de um percurso histórico da presença da narrativa e da poesia na publicidade impressa brasileira. No último capítulo o autor une as linhas de persuasão apolínea e dionisíaca e ressalta que elas não são excludentes, e sim complementares. Também frisa que para ser um bom redator publicitário hoje em dia não é mais suficiente dominar

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as técnicas já estabelecidas, é preciso ir além e saber criar nos limites do gênero literário, até mesmo pela exigência de um discurso irracional para a valorização de produtos cada vez mais simbólicos. Com a leitura entendemos que o aparente encantamento provocado pelo texto publicitário dionisíaco revela uma faceta bem menos emocional ao extrairmos de sua essência as reais intenções da publicidade, que são persuadir e convencer. No processo de criação do anúncio narrativo, a sensibilidade oculta uma outra dimensão que esconde o verdadeiro intuito do anúncio e do anunciante, o redator jamais perde de vista o seu briefing e o aparente flerte com a literatura, e toda a carga emocional que ela suporta é mais um aparato persuasivo racional. O convencimento pode ser mais efetivo, pois o texto dionisíaco utiliza ferramentas do inconsciente. A narrativa, encobrindo parcialmente a informação principal, introduz continuamente sugestões sutis que se transformam em chaves de persuasão. A esse respeito, uma das considerações essenciais do livro, e do modelo dionisíaco, é a apropriação da teoria de Ricardo Piglia (in O laboratório do escritor) sobre o conto, em que, conforme o escritor, sempre relata duas histórias. A primeira é a narrativa simples, e a segunda é a história paralela que se desenvolve oculta, de forma elíptica e fragmentária, e que só é revelada no final para a surpresa do leitor. Somadas à tese de Piglia, Carrascoza acrescenta considerações de Umberto Eco sobre o leitor em seu livro Sobre literatura. Para Eco existem dois tipos de leitor: o semântico (interessado nos acontecimentos) e o semiótico (aquele que deseja descobrir como é feita a narrativa). Costurando as duas teorias no contexto do discurso publicitário, Carrascoza concebe que “a narrativa verbal publicitária é concebida objetivamente para se dirigir ao leitor semântico, capaz e disposto apenas a ler, ou ‘consumir’, a história 1, já que

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a história 2 só será captada pelo leitor semiótico, que não vê nesse tipo de discurso unicamente um relato” (p. 130). E ainda complementa que “nos contos publicitários variam a história 1, mas a história 2 é, em essência, a mesma: a de quem se satisfaz e é feliz por consumir tal ou qual produto/ serviço. E essa história 2, secreta, é construída ‘com o nãodito, com o subentendido e a alusão’” (p. 131). O livro arremata uma trilogia iniciada em 1999, com A evolução do texto publicitário, publicação que nasceu da dissertação de mestrado do autor. Em 2003 Carrascoza lançou Redação publicitária: estudos sobre a retórica do consumo, uma coletânea de oito ensaios publicados ao longo de sua carreira acadêmica. Razão e sensibilidade no texto publicitário, de 2004, é a obra mais completa sobre o tema. Nela temos mostras claras do amadurecimento dos conceitos desenvolvidos anteriormente somados a uma fundamentação teórica consistente, que dá sustentação às propostas e análises. As três publicações exibem a técnica do redator publicitário, a simplicidade e a sutileza do contista e a fluência didática e o conhecimento do acadêmico. No cruzamento dessas qualidades do autor (que efetivamente atua nesses três campos, integrando uma nata de intelectuais brasileiros) surge um texto leve, preciso e informativo, como poucos livros nascidos de teses. O leitor é seduzido, pois as técnicas expostas se tornam texto e metalinguagem. Assim, uma leitura que presumidamente deveria ser técnica e conseqüentemente árida se torna envolvente. Esse aspecto é reforçado pela interposição de anúncios antigos e novos que fazem a alegria de qualquer publicitário e aficionado pelo assunto. Outra preocupação deliberada do autor é a de aliar o conhecimento formal com a prática da profissão, assim tudo o que é proposto tem sua funcionalidade, mas carrega o refinamento acadêmico das origens das fórmulas propostas e das chaves do seu funcionamento.

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Em uma área carente de produção acadêmica, onde as poucas obras disponíveis estão mais próximas de “receitas” para se fazer anúncios do que uma reflexão formal sobre o assunto, o autor dá um passo além e merece todo o respaldo dado pela academia na validação do seu texto. Uma comprovação do seu mérito é o fato de que seus dois livros anteriores já foram incorporados como bibliografia básica na disciplina Redação Publicitária em cursos de graduação de todo o Brasil. As publicações também são legitimadas pelo mercado publicitário, já que as três obras foram prefaciadas por profissionais de destaque, como Luiz Celso de Piratininga (A evolução do texto publicitário), Roberto Dualibi (Redação publicitária: estudos sobre a retórica do consumo) e Washington Olivetto (Razão e sensibilidade no texto publicitário). Olivetto justifica a relevância desta última obra para profissionais e estudantes “porque reposiciona o valor do conhecimento teórico e sólido num universo que, ingenuamente, exalta a onipresença do prático e leve” (p. 9). Utilizar a própria teoria do autor numa tentativa de classificação do livro em um dos modelos propostos é cair em uma rede de persuasão, pois se os argumentos e o convencimento do leitor é racional, e portanto faz parte da proposta apolínea, o plano de fundo é dionisíaco. E, após encerrar sua leitura, estamos definitivamente convencidos das proposições do hábil escritor/redator, que nem de perto esgotou suas reflexões sobre o assunto e continuará tecendo suas contribuições. Assim aguardamos...

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