Profecia, política e propaganda: anúncios de livros e panfletos radicais publicados por Livewell Chapman durante a Revolução Inglesa do século XVII

Share Embed


Descripción

X SEMANA DE HISTÓRIA POLÍTICA Minorias Étnicas, de Gênero e Religiosas VI SEMINÁRIO NACIONAL DE HISTÓRIA Política, Cultura e Sociedade

ISSN 2175-831X

2015

ANAIS 2014 Programa de Pós-Graduação em História da UERJ

ISSN 2175-831X

X SEMANA DE HISTÓRIA POLÍTICA Minorias étnicas, de gênero e religiosas

VI SEMINÁRIO NACIONAL DE HISTÓRIA: POLÍTICA, CULTURA E SOCIEDADE

ANAIS

!

Rio de Janeiro 2015



Semana de História Política / Seminário Nacional de História: Política, Cultura e Sociedade. (x: 2015: Rio de Janeiro)

Anais / X Semana de História Política: Minorias étnicas, de gênero e religiosas / VII Seminário Nacional de História: Política, Cultura e Sociedade; Organização: Eduardo Nunes Alvares Pavão, João Paulo Lopes, Layli Oliveira Rosado e Rafael Cupello Peixoto - Rio de Janeiro: UERJ, PPGH, 2015.

3323 Texto em português ISSN 2175-831X 1.História Política – Congresso. 2. Cultura – Sociedade. 3. Relações Internacionais

!

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

Reitor: Ricardo Vieiralves de Castro Vice-Reitor: Paulo Roberto Volpato Dias Sub-reitora de Graduação – SR1: Celly Cristina Alves do Nascimento Saba Sub-reitora de Pós-Graduação e Pesquisa - SR2: Monica da Costa Pereira Lavalle Heilbron Sub-reitora de Extensão e Cultura - SR3: Regina Lúcia Monteiro Henriques Diretor do Centro de Ciências Sociais: Léo da Rocha Ferreira Diretor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH): Dirce Eleonora Nigro Solis

Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) Coordenadora geral: Márcia de Almeida Gonçalves Coordenadora adjunta: Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves Coordenador do Doutorado: Ricardo Antônio de Souza Mendes Coordenadora do Mestrado: Érica Sarmiento da Silva Coordenadora da Linha Política e Cultura: Maria Regina Candido Coordenadora da Linha de Politica e Sociedade: André Luís Vieira de Campos

X SEMANA DE HISTÓRIA POLÍTICA Minorias étnicas, de gênero e religiosas VII SEMINÁRIO NACIONAL DE HISTÓRIA: POLÍTICA, CULTURA E SOCIEDADE

Comissão Organizadora Eduardo Nunes Alvares Pavão, João Paulo Lopes, Layli Oliveira Rosado e Rafael Cupello Peixoto Realização Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – PPGH/UERJ Apoio CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico FAPERJ - Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro IFCH - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UERJ SR-2 - Sub-Reitoria de Pós Graduação REDES - Redes de Poder e Relações Culturais NUCLEAS - Núcleo de Estudos das Américas NEA - Núcleo de Estudos da Antiguidade LEDDES - Laboratório de Estudos das Diferenças e Desigualdades Sociais NUBHES - Núcleo de Estudos sobre Biografia, História, Ensino e Subjetividade NIBRAHAC - Núcleo de Identidade Brasileira e Historiografia Contemporânea LABIMI - Laboratório de Estudos de Imigração IHGB - Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro APERJ - Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro AGCRJ - Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro ABHR – Associação Brasileira de História das Religiões ACESSO LIVRE – Revista da Associação dos Servidores do Arquivo Nacional RHBN – Revista de História da Biblioteca Nacional Faculdade de Comunicação Social - UERJ Instituto de Letras da UERJ Livraria República

APRESENTAÇÃO A Semana de História Política da UERJ, em sua décima edição, pretende dar continuidade às questões que foram abordadas nos encontros anteriores, ou seja, promover a pesquisa histórica, bem como o diálogo e aproximações entre pesquisadores com estudos que envolvam abordagens teórico-metodológicas no âmbito da história política. Esse projeto visa fomentar o debate acadêmico entre pesquisadores, tendo o intuito de divulgar a produção historiográfica dos interessados e promover o intercâmbio de ideias, profissionais (discentes e docentes) e instituições, contribuindo para a solidificação do Programa de Pós-Graduação, além de investir na produção editorial da revista Dia-Logos, fruto imediato do desenvolvimento desta Semana. Dentro de seu espírito de renovação e incentivo aos novos pesquisadores, a Semana oferece mesas para apresentações de trabalhos de pesquisa de graduados, de graduandos (iniciação científica e projetos de monografia de conclusão de curso), convidando-os a contribuir com a qualidade alcançada pelo evento nas edições anteriores. O Evento realiza-se nas dependências da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, sob a direção de uma Comissão Organizadora, composta por discentes do Programa, que se liga à Coordenação da Pós-Graduação em História. Essa Semana impulsiona pesquisadores de diversos Programas do estado, e também do país, a produzir e movimentar seus conhecimentos, permitindo-os ganhar visibilidade, ampliar a temática e trocar experiências. É de grande valia tal esforço dos discentes, junto à Coordenadoria do Programa, em administrar a Semana, de forma que contribua para a construção de mais um espaço de discussão e de apropriação do universo científico acadêmico, corroborando com a práxis de pesquisa e de docência dos cursos de pós-graduação no Brasil.

Comissão Organizadora

www.semanahistoriauerj.net

IX Semana de História Política: Política, Conflitos e Identidades na Modernidade VI Seminário Nacional de História: Política, Cultura e Sociedade ISSN 2175-831X – PPGH/UERJ, 2014

01

SIMPÓSIOS TEMÁTICOS

02

TRABALHO, POLÍTICA E FÉ: A RELAÇÃO ENTRE O PROGRESSISMO CATÓLICO E OS MOVIMENTOS SOCIAIS DO CAMPO NO AGRESTE PERNAMBUCANO Adauto Guedes Neto

11

APONTAMENTOS SOBRE O ESTADO DE BEM ESTAR SOCIAL, A CRÍTICA ULTRALIBERAL E SUAS VANTAGENS INSTITUCIONAIS COMPARATIVAS. Adebiano Robert Rodrigues Pereira

20

O CULTURALISMO DA FACULDADE DE DIREITO DO RECIFE E SUAS PERSPECTIVAS ACERCA DO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO Adriana Gomes

30

MULHERES NO SERINGAL: TRABALHO, COTIDIANO E RESISTÊNCIA. (1940-1960) Agda Lima Brito

47

A CULTURA NO CONGRESSO CONSTITUINTE DE 1987-88 Aimée Schneider Duarte

57

A PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO DE CAMPINA GRANDE, NO SÉCULO XXI. Alcilia Afonso de Albuquerque e Melo

67

MARECHAL JOÃO BAPTISTA DE MATTOS: “UM HOMEM EMINENTEMENTE LEGALISTA” Alessa Passos Francisco

77

GOLBERRY DO COUTO E SILVA E CARL SCHMITT: OS DILEMAS ENTRE A DEMOCRACIA O AUTORITARISMO Alex Conceição Vasconcelos da Silva

87

IDENTIDADE EM CRISE: A RELAÇÃO ENTRE A CONSTRUÇÃO DE UMA ÉTICA DO TRABALHO MASCULINO, O DESEMPREGO E A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER EM VITÓRIA/ES (2002-2010) Alex Silva Ferrari

97

OS HOMENS DE GOVERNO E OS HOMENS DE PARTIDO NA VISÃO DE PAULINO JOSÉ SOARES DE SOUZA (FILHO) Alexandra do Nascimento Aguiar

107

POR DEUS DEUS E POR RONALD REAGAN: A CONSOLIDAÇÃO DA DIREITA CRISTÃ NO CENÁRIO POLÍTICO DOS ESTADOS UNIDOS Alexandre Guilherme da Cruz Alves Junior

115

POR VONTADE DE DEUS: A INVESTIDA SASSÂNIDA DE 614-618 NO ESPELHO CRISTÃO Alfredo Bronzato da Costa Cruz

127

NA ESCOLA TEM UM MUSEU? USOS E DESUSOS DA MEMÓRIA NO INSTITUTO DE EDUCAÇÃO GOVERNADOR ROBERTO SILVEIRA Alyne Mendes Fabro Selano

IX Semana de História Política: Política, Conflitos e Identidades na Modernidade VI Seminário Nacional de História: Política, Cultura e Sociedade ISSN 2175-831X – PPGH/UERJ, 2014

134

O IAHGP E O SECRETÁRIO PERPÉTUO MÁRIO MELO Amanda Alves Miranda Cavalcanti

144

A ATUAÇÃO DOS FRANCISCANOS NO PERNAMBUCO COLONIAL DOS SETECENTOS E A POLÍTICA REFORMISTA  POMBALINA. Amanda Pricilla Pascoal da Silva Trindade

153

O PARTIDO PROLETÁRIO NAS ELEIÇÕES DE 1935: GILBERT GABEIRA DIANTE DO CONFRONTO ENTRE O PARTIDO SOCIAL DEMOCRÁTICO E O PARTIDO DA LAVOURA NO ESPÍRITO SANTO Amarildo Mendes Lemos

163

A GUERRA DE LIBERTAÇÃO DA ARGÉLIA E A CIRCULAÇÃO DE IDEIAS: REVOLUÇÕES NA AMÉRICA LATINA Ana Carolina Galante Delmas

173

POLÍTICA E ESPAÇO PÚBLICO EM QUESTÃO: A PLAZA DE MAYO E A FEDERALIZAÇÃO DE BUENOS AIRES Ana Carolina Oliveira Alves

183

AS REPRESENTAÇÕES DE LONDRES EM STRANGE CASE OF DR. JEKYLL AND MR. HYDE E THE SUICIDE CLUB. Ana Carolina Silva

193

MADAME CARVALHO FALA DE MODA E DE MULHRES: A COLUNA "ELEGÂNCIAS" DO DIÁRIO CARIOCA NOS ANOS 30 Ana Cristina Audebert Ramos de Oliveira

203

SUNDJATA, EPOPÉIA MANDINGA MANUTENÇÃO E DIFUSÃO DAS TRADIÇÕES NA SOCIEDADE ACÚSTICA MANDINGA Ana Lúcia Rabello Silva

211

O DEPARTAMENTO DE IMPRENSA E PROPAGANDA (DIP) COMO EDITOR: (1938-1945) Ana Paula Leite Vieira

221

A CONSTRUÇÃO DE UMA IDEIA DE CULTURA BRASILEIRA NOS ESTUDOS DE FOLCLORE (1961-1982) Ana Teles da Silva

230

A MODA E SUA CONSTRUÇÃO NA HISTÓRIA: EM BUSCA DE PERSPECTIVAS MENOS TOTALIZANTES Anamélia Fontana Valentim

240

A INCONFIDÊNCIA MINEIRA E A ERA VARGAS: VALORIZAÇÃO DE UM MOVIMENTO HISTÓRICO E DE SEUS ARTÍFICES André Barbosa Fraga

IX Semana de História Política: Política, Conflitos e Identidades na Modernidade VI Seminário Nacional de História: Política, Cultura e Sociedade ISSN 2175-831X – PPGH/UERJ, 2014

251

"NÃO INVENTO, APENAS TRANSMITO": RE-INTERPRETANDO A ESCRITA HISTORIOGRÁFICA DE CONFÚCIO André da Silva Bueno

261

O PARTIDO DO BRASIL: O PMDB E A POLÍTICA BRASILEIRA (1980-2010) Andre Franklin Palmeira

271

O SUJEITO INSTÁVEL E O SENTIDO BIFURCADO: UMA HIPÓTESE A PARTIR DE DOIS TRECHOS DE MINHA FORMAÇÃO André Jobim Martins

282

O CONSELHO DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E SOCIAL (CDES) COMO CÂMARA DE GESTÃO DA CRISE PARA O CAPITAL (2008-2009) André Pereira Guiot

292

O ESTADO BARROCO: A MUDANÇA NA GESTÃO POLÍTICA DO XVII André Ricardo de Oliveira Barbosa

302

A BIOGRAFIA POLÍTICA DE DOMINGOS DE ANDRADE FIGUEIRA André Rocha Carneiro

312

PELAS MÃOS DE ALICE : A TRAJETÓRIA DE UMA FILANTROPA COMUNISTA NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX Andréa Ledig de Carvalho Pereira

322

MÍDIA E POLÍTICA NA AMÉRICA LATINA: UM ESTUDO SOBRE A OPERAÇÃO LAVA JATO (BRASIL) E O CASO NISMAN (ARGENTINA) Angela Maria Carrato Diniz

334

BAGDÁ NAS OBRAS DE BENJAMIN DE TUDELA E IBN JUBAYR Anna Carla Monteiro de Castro

343

PODER DAS ELITES LOCAIS NA CAPITANIA DO ESPÍRITO SANTO NO PERÍODO DA MONARQUIA ESPANHOLA (1580-1640) Anna Karoline da Silva Fernandes

356

DAS GAZETAS AOS JORNAIS Arthur Ferreira Reis

366

MUNDO DO TRABALHO RURAL - POLÍTICAS DE ESTADO E PRODUÇÃO DE REFUGO HUMANO Beatriz dos Santos de Oliveira Feitosa

376

A ARTE VAI A LUTA: RESISTENCIA ARTISTICA DA ITÁLIA FASCISTA Beatriz Nascimento Teles

387

A ASSOCIAÇÃO COMERCIAL DE PERNAMBUCO E OS GRUPOS DE INTERESSE, 1839 – 1849. Bruna Iglezias Motta Dourado

IX Semana de História Política: Política, Conflitos e Identidades na Modernidade VI Seminário Nacional de História: Política, Cultura e Sociedade ISSN 2175-831X – PPGH/UERJ, 2014

397

AS MISSÕES ESTRANGEIRAS NA USP: ELEMENTOS DIVULGADORES DA ALTA CULTURA (1934 – 1945). Bruno César Nascimento

407

CONFLITO, ESCRITA E PODER NAS MISSÕES JESUÍTICAS DO PARAGUAI Bruno Oliveira Castelo Branco

417

ANTÍGONE DE SÓFOCLES: A SEMÁNTICA DAS PERGUNTAS E LUGAR DA POLÍTICA Bruno Paniz Botelho

426

OS INTELECTUAIS E A REPÚBLICA NA IMPRENSA Camila de Freitas Silva Bogéa

435

"TRABALHADORES E COMUNISTAS: UNI-VOS!" UM ESTUDO SOBRE AS GREVES EM BELO HORIZONTE NO ANO DE 1950 Camila Gonçalves Silva Figueiredo

444

REFLEXÕES EM TORNO DO MODELO REPRESSIVO DA PRIMEIRA REPÚBLICA BRASILEIRA Camila Similhana Oliveira de Sousa

456

OS PCN E O LUGAR DA TRADIÇÃO: TENSÕES SOBRE A ESCOLHA DA NARRATIVA HISTÓRICA Carine de Oliveira Vieira

466

“CARTOGRAFIA E ITINERÁRIO: UM CAMINHAR PARA “PERDIÇÃO” NA FEIRA MODERNA (1940-1960) Carlos Alberto Alves Lima

477

ÁFRICAS: O REGRESSO EM BUSCA DA ANCESTRALIDADE YORÙBÁ Carlos Alberto Ivanir do Santos

484

O CINEMA COMO AGENTE LEGITIMADOR: PERMANÊNCIAS DA GUERRA FRIA NO CINEMA ESTADUNIDENSE Carlos Cesar de Lima Veras

494

A CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA HISTÓRICA DA REVOLUÇÃO DE 1930 EM JURACY MAGALHÃES. Carlos Nássaro Araújo da Paixão

504

RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA NO MUSEU DA MARÉ: UM CONVITE PARA DISCUTIR A INTOLERÂNCIA RELIGIOSA Carolina Barcellos Ferreira

513

A IMPORTÂNCIA DA GESTÃO DE RENATO SOEIRO NA DIREÇÃO DO IPHAN PARA O DESENVOLVIMENTO DA POLÍTICA FEDERAL DE PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO NO BRASIL (1967-1969) Carolina Martins Saporetti

522

PERSEGUIÇÃO POLÍTICA NO GOVERNO CONSTITUCIONAL DE GETÚLIO VARGAS: O CASO DE NAURICIO MACIEL MENDES Caroline Antunes Martins Alamino

529

PRIMEIRA REPÚBLICA: MÚSICA POPULAR E QUESTÕES DO SEU TEMPO Caroline Moreira Vieira Dantas

IX Semana de História Política: Política, Conflitos e Identidades na Modernidade VI Seminário Nacional de História: Política, Cultura e Sociedade ISSN 2175-831X – PPGH/UERJ, 2014

539

O PICTORIALISMO NA FOTOGRAFIA BRASILEIRA: A REVISTA PHOTOGRAMMA E O DEBATE SOBRE A FOTOGRAFIA ARTÍSTICA NO BRASIL Catia Silva Herzog

549

DE BERLIM A WASHINGTON: O PAPEL DA FEB NA ALIANÇA BRASIL - EUA. César Alves da Silva Filho

559

O EMPREENDEDORISMO HISTÓRICO NA HISTORIOGRAFIA AMERICANA : A CRIAÇÃO DA AMERICAN HISTORICAL ASSOCIATION NO FINAL DO SÉCULO XIX César Haueisen Zimerer Perpétuo

569

DE TRÁS PARA FRENTE: NOSSOS MESMOS PROBLEMAS DESDE OS TEMPOS DE SÍLVIO ROMERO Cícero João da Costa Filho

579

“À SERVIÇO DA CIÊNCIA”: A FOTOGRAFIA COMO INSTRUMENTO DA PESQUISA CIENTÍFICA NO BRASIL IMPERIAL (1865-1877). Clarissa Franco de Miranda

587

JUSTINIANO JOSÉ DA ROCHA: IMPRENSA E POLÍTICA (1836-1840) Claudia Adriana Alves Caldeira

594

AS ORDENS TERCEIRAS E A CONFIGURAÇÃO URBANA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO Claudia Barbosa Teixeira

603

QUEIMADOS, CIDADE EMANCIPADA: HISTORIOGRAFIA E ENSINO DE HISTÓRIA Claudia Patrícia de Oliveira Costa

610

INTERESSES E ESCRITA DA HISTÓRIA Cláudio Kuczkowski

620

MODA BRASILEIRA: IDENTIDADE, ESTEREÓTIPOS E RELAÇÕES DE PODER Cristiana Katagiri

630

DUARTE DA PONTE RIBEIRO NA CONFEDERAÇÃO PERU - BOLIVIANA (1837-1839) Cristiane Maria Marcelo

641

PENSANDO COM IMAGENS NA/DA DIFERENÇA NO/COM O COTIDIANO ESCOLAR Cristiano Sant'Anna de Medeiros

651

UM VIAJANTE INTELECTUAL: PAUL GROUSSAC E A LITERATURA DE VIAGENS Daiana Pereira Neto

661

JOGO DE PALAVRAS: O DISCURSO POLÍTICO DOS REPUBLICANOS LIBERAIS PELA QUEDA DA MONARQUIA NO BRASIL (1870-1891) Daiane Lopes Elias

671

O ROCK ERROU? ROCK BRASILEIRO E A NOVA REPÚBLICA Daniel Cantinelli Sevillano

IX Semana de História Política: Política, Conflitos e Identidades na Modernidade VI Seminário Nacional de História: Política, Cultura e Sociedade ISSN 2175-831X – PPGH/UERJ, 2014

681

A AMÉRICA DO SUL NO RELATO DA VIAGEM DE VOLTA AO MUNDO DE ABEL DUPETIT-THOUARS (1836-1840): NOTAS DE PESQUISA Daniel Dutra Coelho Braga

688

O “TRONO ALTAR” NA FRANÇA DA RESTAURAÇÃO E A ESCRITA DE STENDHAL: PERCEPÇÃO DE UMA CRÍTICA POLÍTICA RELIGIOSA Daniel Eveling da Silva

698

A DUALIDADE DO DISCURSO: CONHECIMENTO E DOMINAÇÃO ATRAVÉS DO CÓDICE FLORENTINO – BERNARDINO DE SAHAGÚN, MÉXICO, 1588. Daniella Machado Fraga

707

CULTURA E EMANCIPAÇÃO EM AMILCAR CABRAL Danilo Ferreira da Fonseca

717

O FAZENDEIRO DO BRAZIL: PÁGINAS DE UM PENSAMENTO DIRETIVO NO RENOVADO SISTEMA COLONIAL DO ATLÂNTICO PORTUGUÊS DO SÉCULO XVIII Dannylo de Azevedo

727

MERCADO DAS HABILITAÇÕES: O USO DA FAMILIATURA COLONIAL DO SANTO OFÍCIO NUM MOVIMENTO MAIS AMPLO NA BUSCA PELO RECONHECIMENTO SOCIAL NO RECIFE SETECENTISTA (C.1700-C.1750) Davi Celestino da Silva

737

PUBLICIDADE E PROPAGANDA EM FAVOR DA GUERRA: O SIMBOLISMO DOS ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS DURANTE A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL (1939-1945) Daviana Granjeiro da Silva

747

“BACHARÉIS DEVASSADOS”: LEITURAS DE BACHARÉIS DOS JUÍZES DE FORA DE VILA DO CARMO (SÉC. XVIII) Débora Cazelato de Souza

755

CULTURA (S) POLÍTICA(S) EM PAULO DE TARSO E SUAS IMPLICAÇÕES NO IMPÉRIO ROMANO Débora Rodrigues de Souza

765

O IMPACTO DA OIT NO BRASIL Denilson Gomes Barbosa

775

AS ESMOLAS AOS NECESSITADOS: A NOÇÃO DA CARIDADE NOS TESTAMENTOS DE VILA RICA NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XVIII Denise Aparecida Sousa Duarte

782

SOCIEDADE DE LEITURA HERMANN FAULHABER: A LEITURA COMO AMEAÇA E RESISTÊNCIA AS POLÍTICAS NACIONALIZANTES DE VARGAS Denise Verbes Schmitt

790

A MAYRINK VEIGA NA NA BATALHA DAS IDEIAS: BRIZOLA, REFORMISMO E O GOLPE DE 1964. Diego Martins Dória Paulo

IX Semana de História Política: Política, Conflitos e Identidades na Modernidade VI Seminário Nacional de História: Política, Cultura e Sociedade ISSN 2175-831X – PPGH/UERJ, 2014

800

A MEMÓRIA E A HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE: UM AMPLO MOVIMENTO DE RENOVAÇÃO HISTORIOGRÁFICA Dinoráh Lopes Rubim Almeida

819

DA ELITE OU DO POVO? UMA HISTÓRIA COMPARADA DA MEMÓRIA FUTEBOLÍSTICA NO RIO DE JANEIRO E EM JOÃO PESSOA. Diogo Pimenta Pereira Leite

829

"METÁFORA DO HOLOCAUSTO: OTTO DOV KULKA E A BUSCA DA PALAVRA SOBREVIVENTE" Dirson Fontes da Silva Sobrinho

839

ENTRE LIBERALIDADES E HIERARQUIAS: MECANISMOS INTERNOS DE CONTROLE DO OPERARIADO DA VALE - 1959 À 1962 Douglas Edward Furness Grandson

849

CIDADANIA E TRABALHO NO LITORAL DA CORTE: CONTROLE E RESISTÊNCIA NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XIX Edilson Nunes dos Santos Junior

859

ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA NAS MINAS OITOCENTISTAS: DA TRANSGRESSÃO A ASPECTOS DO VIVER COTIDIANO Edneila Rodrigues Chaves

870

SEGUINDO A FORMA E A ORDEM: AS LEIS FUNDAMENTAIS DO REINO E A SUCESSÃO RÉGIA NAS CORTES PORTUGUESAS DO SÉCULO XVII (1641-1698). Eduardo Henrique Sabioni Ribeiro

880

O DISCURSO MÉDICO E A PRÁTICA DE GINÁSTICA NO ASYLO DE MENINOS DESVALIDOS (1875-1894). Eduardo Nunes Alvares Pavão

887

A BANDA MARCIAL E A SUA LINHA DE FRENTE: EMBATES E TENSÕES PELA DISPUTA DO ESPAÇO NA CORPORAÇÃO MUSICAL Elizeu de Miranda Corrêa

896

DESVENDANDO A ORIGEM PURI: UMA DISCUSSÃO SOBRE A PROVÁVEL ORIGEM DOS ÍNDIOS PURIS DO VALE DO PARAÍBA. Enio Sebastião Cardoso de Oliveira

906

UMA DANÇA DE MAL-ENTENDIDOS: RELIGIÃO E CONCEITOS DE PODER NA IRLANDA ELIZABETANA Eoin Paul O'Neill

917

DO DESLIGAMENTO À LUTA PELA ANISTIA: A ASSOCIAÇÃO DOS ANISTIADOS POLÍTICOS E MILITARES DA AERONÁUTICA– GEUAR. Esther Itaborahy Costa

927

A DIPLOMACIA DA INCLUSÃO SOCIAL: O CASO BRASILEIRO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE COMBATE À POBREZA COMO FERRAMENTA DE INSERÇÃO INTERNACIONAL Fabiana de Oliveira

IX Semana de História Política: Política, Conflitos e Identidades na Modernidade VI Seminário Nacional de História: Política, Cultura e Sociedade ISSN 2175-831X – PPGH/UERJ, 2014

937

O DIVINO EM VIANA DO ESPÍRITO SANTO: INDÍCIOS DE UMA "AÇORIANIDADE" CAPIXABA. Fabiene Passamani Mariano

947

LEGISLAÇÃO E PRÁTICA DO SISTEMA DE SESMARIAS: O CASO DAS TERRAS DOS MOCAMBOS DE PALMARES (SÉCULOS XVII E XVIII) Felipe Aguiar Damasceno

957

TROCAS CLIENTELISTAS NA CONSTRUÇÃO DA AVENIDA CENTRAL NA CAPITAL DA REPÚBLICA (1903-1904) Felipe Martins dos Santos

967

A PROPAGANDA COMO DIVULGADORA E FORMADORA DE CONCEPÇÕES SOBRE LUCAS DO RIO VERDE A PARTIR DE UMA ANÁLISE DE MÍDIA ESCRITA Fernanda Celina Nicoli da Silva

977

A”SER CONTRA OU A FAVOR”:A DEFESA DO GOLPE CIVIL MILITAR NAS CRÔNICAS POLÍTICAS DE RACHEL DE QUEIROZ Fernanda Coelho Mendes

987

O POSICIONAMENTO POLÍTICO DA GRANDE IMPRENSA NO EPISÓDIO DA GUERRILHA DO CAPARAÓ Fernanda Mattos da Silva

997

OS SENTIDOS DA MESTIÇAGEM EM MANOEL BOMFIM E EUCLIDES DA CUNHA Fernanda Miranda de Carvalho Torres

1007

OO BRASIL DE LAUDELINA: USOS DO BIOGRÁFICO NO ENSINO DE HISTÓRIA Fernanda Nascimento Crespo

1016

EDUCAÇÃO SOB CENSURA: OS RECENTES PROJETOS DE LEI SOBRE EDUCAÇÃO E A AMEAÇA À LIBERDADE DE PENSAMENTO Fernanda Pereira de Moura

1026

O INSTITUTO DE PESQUISA E ESTUDOS SOCIAIS (IPÊS): A CONSTRUÇÃO DE UM PROJETO PEDAGÓGICO E SANEADOR NO PÓS-1964 Fernanda Teixeira Moreira

1036

O PADRE E O JUIZ: A EDUCAÇÃO PARA A LIBERDADE DE MENORES CORRIGÍVEIS NO BRASIL E EM PORTUGAL (1911-1927) Fernanda Teixeira Moreira

1046

ENTRE A FEBRE DA PAIXÃO PELO SAMBA E O DESAFIO QUE SURGE DA ESPETACULARIZAÇÃO: A TAREFA DOS COMPOSITORES NAS ESCOLAS DE SAMBA NO RIO DE JANEIRO HOJE EM DIA Friederike Jurth

1056

A CONQUISTA DE PAPEL: AS ESTRATÉGIAS RETÓRICAS DE GOMES EANES DE ZURARA NA CRÔNICA DA TOMADA DE CEUTA (1449-1450) Gabriel Gonzales Ballestero de Souza

1066

A REABERTURA DO CONSULADO DO IMPÉRIO DO BRASIL EM ANGOLA (1854-1857). NOTAS SOBRE A EVOLUÇÃO DO SISTEMA CONSULAR IMPERIAL E SOBRE O LUGAR DA ÁFRICA NA POLÍTICA EXTERNA DO SEGUNDO REINADO Gilberto da Silva Guizelin

IX Semana de História Política: Política, Conflitos e Identidades na Modernidade VI Seminário Nacional de História: Política, Cultura e Sociedade ISSN 2175-831X – PPGH/UERJ, 2014

1075

MEMÓRIA E IMIGRAÇÃO: UMA ANÁLISE DAS FALAS DOS DESLOCADOS DA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL. Guilherme dos Santos Cavotti Marques

1085

ENÉAS CARNEIRO E O PRONA: NACIONALISMO E CONSERVADORISMO NO BRASIL PÓS-DITADURA MILITAR Guilherme Esteves Galvão Lopes

1095

WILLIAM HODGES. A PAISAGEM COMO NARRATIVA HISTÓRICA. Guilherme Goretti Gonzaga

1103

A PRIMEIRA EXPOSIÇÃO NACIONAL DE 1861: O ENSAIO GERAL E OS CIENTISTAS BRASILEIROS Guilherme Guimarães Martins

1113

FRANTZ FANON (1925-1961) : UM PENSADOR AFRICANO ENTRE O PROJETO DE EMANCIPAÇÃO E A LUTA ANTICOLONIAL. Gustavo de Andrade Durão

1122

A HISTORIOGRAFIA DO NAZISMO E A NARRATIVA DA EXPERIÊNCIA PESSOAL. Gustavo Feital Monteiro

1132

CAMINHOS E DESCAMINHOS DA COLONIZAÇÃO: UMA ANÁLISE CRÍTICA SOBRE A COLONIZAÇÃO AGRÍCOLA NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO NO GOVERNO VARGAS (1930-1945) Henrique Dias Sobral Silva

1142

PROJETOS NACIONAIS EM PERSPECTIVA NAS PÁGINAS DA REVISTA AMAUTA (1926-1930) Henrique Guimarães da Silva

1152

"EXPURGAR OS COMUNISTAS": O APOIO POLÍTICO DO MUNICÍPIO DE MUNIZ FREIRE (ES) AO GOLPE DE 1964 Herbert Soares Caçador

1161

UM GÊNERO EM DISPUTA: O ENSAIO HISTÓRICO NO BRASIL NA VIRADA DOS SÉCULOS XIX E XX Hugo Ricardo Merlo

1171

SALDANHA MARINHO NO DIÁRIO DO RIO: UM LIBERAL HISTÓRICO NO DEBATE POLÍTICO EM 1860 Iete Cherem Levy

1176

PROJETOS DE SOCIEDADE E REFERÊNCIAS EXTERNAS: A PRESENÇA FRANCESA EM PUBLICAÇÕES LUSO-BRASILEIRAS (1808-1840) Inoã Pierre Carvalho Urbinati

1186

O PROTAGONISMO FEMININO NA FOTOGRAFIA DE RICARDO RANGEL: O PÃO NOSSO DE CADA NOITE. Isa Márcia Bandeira de Brito

1199

O CASO DA ESCOLA DE FARMÁCIA E ODONTOLOGIA POR UM VIÉS DE GÊNERO. Isabella Bonaventura de Oliveira

IX Semana de História Política: Política, Conflitos e Identidades na Modernidade VI Seminário Nacional de História: Política, Cultura e Sociedade ISSN 2175-831X – PPGH/UERJ, 2014

1209

“IERECÊ A GUANÁ” E A ETNOGRAFIA ROMANESCA DO VISCONDE DE TAUNAY Isadora Tavares Maleval

1219

"SE OS RELIGIOSOS, E MONGES SÓ CUIDASSEM NA CONSERVAÇÃO DOS BENS ESPIRITUAES": A POLÍTICA REGALISTA DE CARVALHO E MELO E O TRATADO DE PROIBIÇÃO DE POSSE DE BENS POR RELIGIOSOS Iverson Geraldo da Silva

1229

O BARÃO DO RIO BRANCO: AS DUAS FACES DO MONARQUISTA NA REPÚBLICA (1889-1902) Jacqueline de Andrade Lopes

1236

"ESCOLARIZANDO AS INFAMES: AS PRIMEIRAS LETRAS NA PENITENCIÁRIA DA CORTE (1868-1889)" Jailton Alves de Oliveira

1245

DO QUIMONO A CASACA, TRANSFORMAÇÕES E MARCAS IDENTITÁRIAS NO INDUMENTÁRIO JAPONÊS. Jaqueline de Sá Ribeiro

1255

ORIGINALIDADE E DESVIOS NA LITERÁRIA BRASILEIRA Jean Bastardis

1264

TEMPO, MONTAGEM E NARRATIVA: UMA ANÁLISE DO REEMPREGO DE IMAGENS DE ARQUIVO NO CINEMA DOCUMENTÁRIO Jean Carlos Pereira da Costa

1274

A BUROCRATIZAÇÃO DA JUSTIÇA - TENSÕES E NEGOCIAÇÕES POLÍTICAS DA MAGISTRATURA NA CAPITANIA DE PERNAMBUCO (1702-1750) Jeannie da Silva Menezes

1284

A DEFINIÇÃO DOS LIMITES BRASILEIROS COM A REPÚBLICA DO PARAGUAI NAS PENAS DE DUARTE DA PONTE RIBEIRO Jéssica de Freitas e Gonzaga da Silva

1294

POLÍTICA PATRIMONIAL DO CONSELHO FEDERAL DE CULTURA Jessica Suzano Luzes

1304

“COM POUCOS RECURSOS E UMA CÂMERA EM MÃOS”: APROXIMAÇÕES INICIAIS SOBRE AS RELAÇÕES DE GÊNERO NO CINEMA PERNAMBUCANO DA DÉCADA DE 1920. Jéssika Evelyn Leitão Alves

1314

A MATERNIDADE E OS PRECEITOS MÉDICOS NA FORMAÇÃO DE UM NOVO MODELO DE FEMINILIDADE NA AMÉRICA LATINA DURANTE OS SÉCULOS XVIII E XIX Jhoana Gregoria Prada Merchan

1324

A EDUCAÇÃO ESCOLAR EM MONTES CLAROS-MG NO INÍCIO DO SÉCULO XX NA PERSPECTIVA DA IMPRENSA João Paulo da Silva Andrade

1334

EM BUSCA DA COR; EM BUSCA DA RAÇA: A ESCRITA DA HISTÓRIA E DA NAÇÃO NA IMPRENSA NEGRA (1924-1937) João Paulo Lopes

IX Semana de História Política: Política, Conflitos e Identidades na Modernidade VI Seminário Nacional de História: Política, Cultura e Sociedade ISSN 2175-831X – PPGH/UERJ, 2014

1348

O ESTUDO DA "GUERRA" EM UMA PERSPECTIVA CONCEITUAL João Victor da Mota Uzer Lima

1359

MÍDIAS NA EDUCAÇÃO E LETRAMENTO DIGITAL: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS. Joiciele Rezende Costa

1369

POR UM CONCEITO DE “PACTO SOCIAL” NO PRIMEIRO REINADO: DEBATES NO PARLAMENTO E NA IMPRENSA. Jônatas Roque Mendes Gomes

1377

A ESPECIALIZAÇÃO DO CONSELHO NACIONAL DE DESPORTO E A POLÍTICA NACIONAL DE EDUCAÇÃO FÍSICA E DESPORTO Jorge Fernando Albuquerque D'Amaral Moreira

1387

OS BISPOS OS NOVOS MAGISTRADOS ROMANOS – A RELAÇÃO CRISTIANISMO E IMPÉRIO NO SÉCULO IV. Jorge Henrique Oliveira de Lima

1397

MISTÉRIO E RELIGIOSIDADE NO HIPÓLITO DE EURÍPIDES Jorge Steimback Barbosa Junior

1406

O ESPECTRO VERMELHO: CULTURA POLÍTICA E REPRESENTAÇÕES ANTICOMUNISTAS EM JORNAIS DO AGRESTE PERNAMBUCANO (1950-1960) José Adilson Filho

1416

A HISTORIOGRAFIA SOBRE INDEPENDÊNCIA DA AMÉRICA ESPANHOLA José Lucio Nascimento Júnior

1426

A RELAÇÃO ENTRE O BOM GOVERNO E A SALVAÇÃO NO REINADO DE DOM JOÃO III José Vinicius da Costa Meneses

1436

TEMPO E ACONTECIMENTO NA CRÔNICA DE D. JOÃO I, DE FERNÃO LOPES Josena Nascimento Lima Ribeiro

1446

FILINTO JUSTINIANO FERREIRA BASTOS: ABOLICIONISMO E BIOGRAFIA NA TRAJETÓRIA DE UM INTELECTUAL (1856-1939) Josivaldo Pires de Oliveira

1456

PIN UP GIRLS: O PODER DAS ILUSTRAÇÕES AMERICANAS DURANTE A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL Joviana Fernandes Marques

1466

SOBRE A EMERGÊNCIA DE UMA FIDALGUIA COLETIVA EM BISCAIA Julian Abascal Sguizzardi Bilbao

1476

UNIÃO DAS ROSAS DE DONA CLARA: COR, IDENTIDADE E MORALIDADE EM UM CLUBE DANÇANTE DO SUBÚRBIO CARIOCA (1912-1914). Juliana da Conceição Pereira

IX Semana de História Política: Política, Conflitos e Identidades na Modernidade VI Seminário Nacional de História: Política, Cultura e Sociedade ISSN 2175-831X – PPGH/UERJ, 2014

1486

DO PORTO AO MONUMENTO: PRESERVAÇÃO E RUÍNA COMO INTERAÇÕES DO PATRIMÔNIO PORTUÁRIO EM ANTONINA-PR Juliana Regina Pereira

1496

A LITURGIA DAS LETRAS: A TRAJETÓRIA INTELECTUAL E POLÍTICA DE ARNOLD FERREIRA DA SILVA ATRAVÉS DO JORNAL FOLHA DO NORTE – FEIRA DE SANTANA-BA (1909-1930) Juliano Mota Campos

1506

A QUEM PERTENCE A ARTE DE CURAR?: A DISPUTA PELA AUTORIDADE MÉDICA NO PORTUGAL DAS LUZES. Julie Hamacher Liepkaln

1514

A IMPRENSA COMO FONTE DE PESQUISA NA RECONSTRUÇÃO DA TRAJETÓRIA DO TRAFICANTE DE ESCRAVOS MANUEL ANTONIO VICTORINO DE MENEZES. Jurama Bergmann Vieira

1523

O 1º CONCURSO LITERÁRIO DA REVISTA MENSAGEM: O DISCURSO DE MEMÓRIA E IDENTIDADE NOS VERSOS DE SEUS VENCEDORES Karina Helena Ramos

1541

ARTE E SOCIEDADE: A PRODUÇÃO VISUAL DE PAULO WERNECK NA DÉCADA DE 1940 Karina Pinheiro Fernandes

1549

D’OULTREMER À INDIGO: ENTRE A CRÔNICA E A FICÇÃO, A REINVENÇÃO DO FOLCLORE COMO METODOLOGIA NA CONSTRUÇÃO DE UM NOVO E TROPICAL PARADIGMA DE CIVILIZAÇÃO Karla Adriana de Aquino

1559

ÁGUA SANTA: DO NÃO LUGAR AO LUGAR- REFLEXÕES SOBRE A IMPORTÂNCIA DO ENSINO DE HISTÓRIA NOS DIAS DE HOJE Karla Rodrigues da Costa

1569

CIÊNCIA E TECNOLOGIA NA ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE DE 1987 Katherine Nunes de Azevedo

1577

A REVISTA AMERICANA COMO VEÍCULO DE SONHOS: REPRESENTAÇÕES DE PAN-AMERICANISMO NOS ARTIGOS DE NORBERTO PIÑERO (1909-1919) Larissa Milanezi Fabriz

1587

UM BREVE ESTUDO DE FONTE: O LIVRO DA SABEDORIA E O GUIA DOS PERPLEXOS DE MAIMÔNIDES EM PERSPECTIVA (SÉC. XII D.C.). Layli Oliveira Rosado

1596

OS “CASTELISTAS” E O GOLPE DE 1964 Leandro Arraes Liberali

1606

A HISTÓRIA SOCIAL E ARQUIVOS: BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE OS NOVOS USOS E APROPRIAÇÕES Leandro Coelho de Aguiar

IX Semana de História Política: Política, Conflitos e Identidades na Modernidade VI Seminário Nacional de História: Política, Cultura e Sociedade ISSN 2175-831X – PPGH/UERJ, 2014

1616

AS DIFERENTES RAINHAS EM FERNÃO LOPES Leandro Cordeiro de Souza

1624

NÃO PERGUNTARÁS MEU NOME: A POLÍTICA EM LOHENGRIN DE RICHARD WAGNER Leandro Couto Carreira Ricon

1634

A HISTÓRIA QUE SE NARRA NA ESCOLA: REFLEXÕES SOBRE NARRATIVIDADE E ENSINO DE HISTÓRIA Leandro Rosetti de Almeida

1643

PERFORMANCES DE MASCULINIDADES NA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA Leandro Teofilo de Brito

1653

BICHO-PAPÃO DE PAPEL-MOEDA: RELAÇÕES ENTRE ESCOLAS DE SAMBA E PATROCINADORES A PARTIR DO CASO IMPERATRIZ LEOPOLDINENSE 2002 Leonardo Augusto Bora

1663

ARQUITETANDO UMA PROFISSÃO: O PAPEL DOS PERIÓDICOS ESPECIALIZADOS NA REGULAMENTAÇÃO PROFISSIONAL DOS ARQUITETOS NO BRASIL Leonardo Faggion Novo

1673

POR QUE BIOGRAFAR WILSON CHOERI: REFLEXÕES METODOLÓGICOS Leonardo Faria Cazes

1683

"ISSO NÃO SE ESQUECE ! PARA VITÓRIA, COMPRE BÔNUS DE GUERRA": A CAMPANHA BRASILEIRA DE LANÇAMENTO DOS BÔNUS DE GUERRA (1942-1945)" Leonardo Montanholi dos Santos

1694

VÂNDALOS LITERÁRIO: HISTORIAS, MEMÓRIAS, LITERATURA E IDENTIDADE Leuvis Manuel Olivero Ramos 

1705

POLÍTICA E ECONOMIA NO ALTO SERTÃO DA BAHIA: TEMPOS, TRAJETÓRIAS E MUDANÇAS (CAETITÉ, 1870-1899) Lielva Azevedo Aguiar

1717

A INSTAURAÇÃO DA REPUBLICA E A CONSOLIDAÇÃO DA DEMOCRACIA NO BRASIL Liliane Capilé Charbel Novais

1727

DO GÊNIO ROMÂNTICO AO HERÓI MODERNO: APROXIMAÇÕES E DISTANCIAMENTOS Lívia Assumpção Vairo dos Santos

1737

MESTIÇAGEM E BRANQUEAMENTO: AS TENTATIVAS DE DEFINIÇÃO DE UMA IDENTIDADE NACIONAL NAS PÁGINAS DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO NO FINAL DO SÉCULO XIX. Lívia de Lauro Antunes

1747

POBREZA EM PERSPECTIVA: A ASSISTÊNCIA PÚBLICA E PRIVADA NO DISTRITO FEDERAL (1891-1930) Lívia Freitas Pinto Silva Soares

1756

INTELECTUAIS E A MÚSICA BRASILEIRA: REFERÊNCIAS E ESTUDOS ANÁLOGOS. (1920-1960) Lucas Assis de Oliveira

IX Semana de História Política: Política, Conflitos e Identidades na Modernidade VI Seminário Nacional de História: Política, Cultura e Sociedade ISSN 2175-831X – PPGH/UERJ, 2014

1766

A DESCOLONIZAÇÃO DA IDADE MÉDIA NO ENSINO DE HISTÓRIA: O PASSADO MEDIEVAL REINVENTADO Lucas Moreira Calvo

1772

ESTADO E IMPRENSA: BRASIL E PORTUGAL NA REVISTA A ILLUSTRAÇÃO LUSO-BRAZILEIRA (1856, 1858, 1859). Lucas Schuab Vieira

1782

CONFLITOS DE PRECEDÊNCIA NAS EMBAIXADAS DA RESTAURAÇÃO PORTUGUESA Luciano Cesar da Costa

1793

PERSEGUIÇÕES A ESTRANGEIROS DURANTE A II GUERRA MUNDIAL: O ARQUIVO DO CRIME DE JUIZ DE FORA Luiz Antonio Belletti Rodrigues

1803

CONTRIBUIÇÃO DA REFLEXÃO SOBRE A LINGUAGEM PARA A HISTORIOGRAFIA Luiz Eduardo Espindola de Souza

1813

IGREJAS LGBTS E MILITÂNCIA POLÍTICA NO BRASIL Luiz Gustavo Silva de Oliveira

1820

A REVISTA PARAÍBA AGRÍCOLA: RURALISMO E PROJETOS DE MODERNIZAÇÃO PARA O MUNDO RURAL (1922-1959) Luiz Mário Dantas Burity

1830

DA GUERRA INTERIOR À GUERRA EXTERIOR: OS LEVANTES TAPUIAS E AS SUAS POSSIBILIDADES PARA OS COLONOS DE SÃO PAULO (1653-1660) Luiz Pedro Dario Filho

1840

ADMINISTRAÇÃO IMPERIAL: FORMAÇÃO DA CÂMARA DA VILA DE SAPUCAIA (1875-1885) Luiza Coutinho Ottero

1847

ARQUITETURA MILITAR E AS REDES DE METODOLOGIA: SABERES E PRÁTICAS CULTURAIS EM PORTUGAL (1700-1750) Luiza Nascimento de Oliveira da Silva

1855

"PARA QUÊ ESTOU APRENDENDO ISSO?": JUSTIFICATIVAS DO ENSINO E APRENDIZAGEM DA HISTÓRIA NOS LIVROS DIDÁTICOS Luiza Rafaela Bezerra Sarraff

1861

EDUCAÇÃO EM PERSPECTIVA HISTÓRICA: ESCRITOS DE COELHO SAMPAIO NA COLUNA ENSINO E EDUCAÇÃO NO CEARÁ DOS ANOS 1940. Manuelle Araújo da Silva

1870

VENCER NÃO É ESMAGAR PELA FORÇA: OS POSICIONAMENTOS POLÍTICOS DO JORNAL CATAGUAZES NO ESTADO NOVO (1937-1945) Marcela Andrade da Silva

IX Semana de História Política: Política, Conflitos e Identidades na Modernidade VI Seminário Nacional de História: Política, Cultura e Sociedade ISSN 2175-831X – PPGH/UERJ, 2014

1879

A (NÃO) FICCIONALIDADE NO IMPRESSO "O DOMINGO" (1873-1875): MANEIRAS DE ENSINAR UM PÚBLICO FEMININO Marcella Lima Ribeiro

1887

O REICH AOS PÉS DO CRISTO: O NAZISMO SEGUNDO OS CARICATURISTAS DA CARETA DURANTE A II GUERRA MUNDIAL Marcelo Almeida Silva

1897

O PAINEL DOS POVOS AFROS DE CARYBÉ PARA MEMORIAL DA AMÉRICA LATINA. Marcelo Mendes Chaves

1909

POLÍTICA CURRICULAR E LIVRO DIDÁTICO DE HISTÓRIA Marcelo Vieira Ferreira Ferro

1915

LE REGARD D’ULYSSES: ODISSEIA CONTEMPORÂNEA Márcia Helena de Mendonça

1926

O CATOLICISMO POLÍTICO NA ERA VARGAS Marco Antonio Baldin

1934

FINANCIAR AS FESTAS DE SÃO SEBASTIÃO NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO: USOS POLÍTICOS E ECONÔMICOS. (1790-1828). Maria Beatriz Gomes Bellens Porto

1943

NOTAS SOBRE OS PROCESSOS DE CRIAÇÃO E SECULARIZAÇÃO DOS CEMITÉRIOS BRASILEIROS: O CASO DA PRIMEIRA NECRÓPOLE PÚBLICA EM CAMPOS DOS GOYTACAZES, ENTRE O IMPÉRIO E A REPÚBLICA Maria da Conceição Vilela Franco

1952

VILLA-LOBOS, MODERNISTA: A MÚSICA EM BUSCA DA ALMA ARTÍSTICA NACIONAL Maria das Graças Reis Gonçalves

1965

A BIBLIOTECA PARTICULAR DE ALMEIDA GARRETT Maria do Rosário Alves Moreira da Conceição

1973

SER QUILOMBOLA DIANTE DO PODER ECONÔMICO Maria Ester Santana Silveira Nascimento

1982

"NZINGA MBANDI E AS IDENTIDADES EM ANGOLA: UMA ETNOGÊNESE" Mariana Bracks Fonseca

1993

"EL ALTO DE PIÉ": AS LUTAS LOCAIS NA CONTRAMÃO DO CAPITALISMO Mariana Bruce Ganem Baptista

2003

A QUESTÃO DO TEMPO E TEMPORALIDADES NOS PCNS E CURRÍCULOS MÍNIMOS DA PREFEITURA E ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Mariana Mendes Lins

IX Semana de História Política: Política, Conflitos e Identidades na Modernidade VI Seminário Nacional de História: Política, Cultura e Sociedade ISSN 2175-831X – PPGH/UERJ, 2014

2013

OS ESBOÇOS DO CONSULTOR – A ENCICLOPÉDIA BRASILEIRA POR MÁRIO DE ANDRADE E A TENTATIVA DE EDIÇÃO DE UMA OBRA NACIONAL Mariana Rodrigues Tavares

2021

CAPITÃES DE ABRIL: CINEMA CONSTRUINDO UMA MEMÓRIA DA HISTÓRIA Marilda dos Santos Monteiro das Flores

2031

MARIA ANTONIETA: SÍMBOLO DE PODER NA MODA E NA POLÍTICA FRANCESA Marina Hammes de Carvalho

2040

UMA SECRETARIA PARA O ULTRAMAR Mario Francisco Simões Junior

2050

MODA, MODERNIDADE E RELAÇÕES DE GÊNERO NAS CARICATURAS DE BELMONTE (1924-1927) Marissa Gorberg

2060

O CASO “LUIZ VIEIRA LIMA” E O PROCESSO DE REINTEGRAÇÃO SOCIAL DOS EX-EXPEDICIONÁRIOS SERGIPANOS (1945-1950) Marlíbia Raquel de Oliveira

2070

OS SÍTIOS ARQUEOLÓGICOS DOS SAMBAQUIEIROS: NA COLÔNIA, NO IMPÉRIO E NA REPÚBLICA. Marlon Barcelos Ferreira

2080

MUHAMMAD IBN TÜMART, O MAHDI E AL-ANDALUS ALMOHADA Marta Bezerra de Almeida

2087

A AUSÊNCIA DO NEGRO NO MUSEU DA REPUBLICA Marta Cristina Soares Dile Robalinho

2097

CONFLITOS EM TORNO DE UM RITUAL NA VILA DE SÃO JOÃO BATISTA DE NOVA FRIBURGO NO SÉCULO XIX: O CASAMENTO DE CLARA EGRIN E AMADÉE SINNER Mateus Barradas Teixeira

2109

AS MIMÉSIS DE D.PEDRO II: UMA ANÁLISE ESTÉTICA DAS BIOGRAFIAS DE FREYE E CALMON SOBRE O IMPERADOR Mauro Henrique Miranda de Alcântara

2119

O CULTO AO TRABALHO NA CARTILHA “A JUVENTUDE NO ESTADO NOVO” Mayra Coan Lago

2130

SOMBRAS E SANGUE: DON CALMET AS INVESTIGAÇÕES SOBRE VAMPIROS NA EUROPA ILUMINISTA Mayte Regina Vieira

2141

RELAÇÕES DE RECIPROCIDADE ENTRE DESIGUAIS: OS RITOS FÚNEBRES COMO FORMA DE BENEFÍCIO. Michele Helena Peixoto da Silva

2148

VIOLÊNCIA DE GÊNERO: QUANDO A POSSE E O DOMÍNIO SÃO CONSIDERADOS PRERROGATIVAS MASCULINAS Mirela Marin Morgante

IX Semana de História Política: Política, Conflitos e Identidades na Modernidade VI Seminário Nacional de História: Política, Cultura e Sociedade ISSN 2175-831X – PPGH/UERJ, 2014

2158

A ASSOCIAÇÃO ENTRE O VETOR MILITAR E A INTELECTUALIDADE PARA A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE NACIONAL BRASILEIRA NO PRIMEIRO QUARTEL DO SÉCULO XX Misael Henrique Silva do Amaral

2167

CHÁCARA DO CARVALHO: UM LOTEAMENTO DE ELITE EM UM BAIRRO OPERÁRIO? Monique Felix Borin

2177

A “DOCILIZAÇÃO” DOS CORPOS SOB A ÓTICA DO PENSAMENTO FOCAULTIANO, NAS RELAÇÕES DE TRABALHO: UMA ABORDAGEM HISTÓRICA. ESTUDO DE CASO DA SIDERÚRGICA MENDES JUNIOR/JF (1984-1995) Myrtes Raposo

2186

“FAÇO SABER, AOS QUE ESTE REGIMENTO VIREM”: UMA ANÁLISE SOBRE A CRIAÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO RIO DE JANEIRO. Nara Maria de Paula Tinoco

2192

O COMBATE À TRADIÇÃO BACHARELESCA NO ROMANCE ANGÚSTIA Natália Augusta Fontes de carvalho Ribeiro Rodrigues

2201

A COMPANHIA DE JESUS EM CONFLITO: OS DIFERENTES RUMOS DA MISSÃO Natália de Almeida Oliveira

2210

O MODERNO NO URBANO: REFLEXOS DE UMA ARQUITETURA ESCOLAR NO PATRIMÔNIO CULTURAL DE TERESINA. (1965-1985) Nayane Áurea Santiago Costa

2220

OS USOS E PROVEITOS DA HISTÓRIA FARROUPILHA NO RIO GRANDE DO SUL Nayara Emerick Lamb

2230

AS CADEIAS PÚBLICAS NAS CORRESPONDÊNCIAS DAS AUTORIDADES BRASÍLICAS (SÉCULOS XVII-XIX) Nayara Vignol Luchetti

2238

TRAVESSIAS, FUGAS E FRONTEIRAS: AS MOVIMENTAÇÕES INTERNACIONAIS DE FUGA DOS ESCRAVOS BRASILEIROS EM DIREÇÃO À BOLÍVIA Newman di Carlo Caldeira

2248

“A CATALOGUE OF ERROURS NOW IN BEING”: APONTAMENTO SOBRE A TRADIÇÃO “HERESIOGRÁFICA” NA OBRA GANGRAENA DE THOMAS EDWARDS (1646) Patrícia Moreira Nogueira

2258

O DESAFIO HEURÍSTICO DA FORMAÇÃO DE UMA SÉRIE DOCUMENTAL SOBRE O CASO FLOR DE LOANDA: ANÁLISE E POSSIBILIDADES Pedro Brandão de Sousa Culmant Ramos

2268

EM TEMPOS DA PAX: A REGIÃO PLATINA E A PRESENÇA DO BRASIL Pedro Gustavo Aubert

2278

ENTRE A REVOLUÇÃO CUBANA E A LITERATURA: TRÊS TRISTES TIGRES DE GUILLERMO CABRERA INFANTE E O CONTEXTO POLÍTICO REVOLUCIONÁRIO. Pedro Henrique Leite

IX Semana de História Política: Política, Conflitos e Identidades na Modernidade VI Seminário Nacional de História: Política, Cultura e Sociedade ISSN 2175-831X – PPGH/UERJ, 2014

2288

MIGUEL REALE E O CORPORATIVISMO INTEGRALISTA: UMA VIA DE ANÁLISE PARA A CONTEXTUALIZAÇÃO DO ESTADO NOVO Pedro Ivo Dias Tanagino

2298

A QUESTÃO SOCIAL E TRABALHISTA NOS ANOS INICIAIS DA ERA VARGAS (1930-1932) Pedro Paulo Lima Barbosa

2306

O CÓDIGO DE OBRAS DE 1937 E AS INTERVENÇÕES URBANAS DA GESTÃO DE HENRIQUE DODSWORTH NO DISTRITO FEDERAL (1937-1945) Pedro Sousa da Silva

2316

A COROAÇÃO DA PRIMAZ MINEIRA EM MONUMENTO NACIONAL Pollianna Gerçossimo Vieira

2324

CRÔNICAS RÉGIAS PORTUGUESAS: UM PROJETO HISTÓRICO-LITERÁRIO LEGITIMADOR Priscila Cardoso Silva

2334

JOÃO DAUDT D’OLIVEIRA E O PARTIDO ECONOMISTA DO BRASIL: EMPRESARIADO E POLÍTICA NO GOVERNO VARGAS (1930-1937) Priscila Musquim Alcântara de Oliveira

2344

JORNAL A CRUZ: INTEGRALISMO E ANTICOMUNISMO (1935-1945) Rafael Adão

2359

HOMENS DE “QUALIDADE”: A NOMEAÇÃO DOS OFICIAIS DA TROPA REGULAR NO ESTADO DO MARANHÃO E GRÃO-PARÁ NO SÉCULO XVII (1644-1684) Rafael Ale Rocha

2369

O FIM ESTÁ SEMPRE PRÓXIMO: DISTOPIA LITERÁRIA COMO PROGNÓSTICO E DIAGNÓSTICO DO MUNDO MODERNO (1920-2012) Rafael da Cunha Duarte Francisco

2379

OBRAS, TEMPO E GUERRA VIVA: A NOBREZA NO BRASIL COLONIAL Rafael Jose de Paula Braga

2389

UM LÍRICO NO AUGE DA FÚRIA URBANÍSTICA: OS RIOS DE MARQUES DE REBELO. Rafael Lima Alves de Souza

2399

A MEMÓRIA E SEU USO POLÍTICO: UMA ANÁLISE DA INTERVENTORIA AMARAL PEIXOTO (1937-1945) Rafael Navarro Costa

2408

FORMAÇÃO E GÊNESE POLÍTICA NA ESCOLA MILITAR DO REALENGO Rafael Roesler

2418

ZICO E O FUTEBOL BRASILEIRO EM TRANSIÇÃO NOS ANOS DE 1970 E 1980 Rafael Soares Gonçalves

2427

O PROBLEMA DE ESTAR AQUI COM VOCÊ QUE É TÃO DIFERENTE DE MIM: REFLEXÕES A RESPEITO DA HISTÓRIA ORAL E DO TRABALHO DE CAMPO Rafaela Paula da Silva

IX Semana de História Política: Política, Conflitos e Identidades na Modernidade VI Seminário Nacional de História: Política, Cultura e Sociedade ISSN 2175-831X – PPGH/UERJ, 2014

2438

PODCAST: USOS E POSSIBILIDADES PARA O APRENDIZADO HISTÓRICO Raone Ferreira de Souza

2448

PARTIDO DOS TRABALHADORES E O DESAFIO DO DIREITO À CIDADE Raphael Fernandes Xavier Duarte

2458

USOS DA IMPRENSA DURANTE A QUERELA SUCESSÓRIA EM PORTUGAL (1826-1834) Raphael Rocha de Almeida

2468

UN MILLIÓN DE MUERTOS: O ROMANCE HISTÓRICO TOTAL Rebeca de Lemos Gonzalez Gil

2478

O PAPA PIO VII E AS INDEPENDÊNCIAS AMERICANAS Rebeka Leite Costa

2488

DIVERGÊNCIAS ENTRE O PROJETO MODERNIZANTE-CONSERVADOR DE REFORMA AGRÁRIA E O DISCURSO TRADICIONAL ACERCA DA QUESTÃO AGRÁRIA APÓS O GOLPE DE 1964 Regiane Cordeiro Souza

2499

A COLABORAÇÃO POLÍTICO-MILITAR DOS INDÍGENAS AOS NEERLANDESES NOS TEMPOS DO BRASIL HOLANDÊS: OS CASOS DE PEDRO POTI E DE ANTÔNIO PARAOPABA Regina de Carvalho Ribeiro da Costa

2509

"ESSAS CRIANÇAS SÃO INFELIZES POR NATUREZA, JÁ NASCEM NUM LUGAR INFELIZ POR NATUREZA, TEM PAIS QUE SÃO INFELIZES POR NATUREZA E QUE NÃO SE FAZEM DE PAIS PRESENTES”: RELAÇÕES ENTRE SEGREGAÇÃO RESIDENCIAL, PERCEPÇÕES E PRÁTICAS INTRAESCOLARES. Regina Lucia Fernandes de Albuquerque

2519

RAÇA E RACIALISMOS NA REVISTA BRAZILEIRA (1895-1899) Renan Siqueira Moraes

2526

MACHADO DE ASSIS E A ABOLIÇÃO: CRÔNICAS DO PÓS-ABOLIÇÃO Renata Figueiredo Moraes

2536

A REDAÇÃO DO CORREIO DA MANHÃ E OS IMPREVISÍVEIS IDOS DE ABRIL Renato Pereira da Silva

2546

MEMÓRIAS ARENISTAS: A "ILUSÃO DEMOCRÁTICA" NAS BIOGRAFIAS DE EX-ARENISTAS CATARINENSES (1997-2008) Ricardo Duwe

2556

O BRASIL E A SEGURANÇA DO ATLÂNTICO SUL Ricardo Pereira Cabral

2566

NOS PRIMÓRDIOS DA INFORMÁTICA: ESTUDO SOBRE A CONSTRUÇÃO DOS PRIMEIROS COMPUTADORES ELETRÔNICOS DIGITAIS NOS ESTADOS UNIDOS E UNIÃO SOVIÉTICA Roberto Lopes dos Santos Junior

2576

ARENA PERNAMBUCO: NOTAS E REFLEXÕES. Rodrigo Carrapatoso de Lima

IX Semana de História Política: Política, Conflitos e Identidades na Modernidade VI Seminário Nacional de História: Política, Cultura e Sociedade ISSN 2175-831X – PPGH/UERJ, 2014

2586

ENSINO DE HISTÓRIA E DIREITOS HUMANOS: PROPOSTAS DE PRÁTICAS DE APRENDIZAGEM Rodrigo Dias Teixeira

2597

UTLIZANDO AS LENTES DO BATISMO: A ESCRAVIDÃO NA VILA DE SÃO JOÃO BATISTA DE NOVA FRIBURGO,RJ.1820-1850 Rodrigo Marins Marretto

2606

O ESPETÁCULO DAS IMAGENS EM MOVIMENTO: A INSERÇÃO SOCIAL DO CINEMA EM CACHOEIRA 1913-1923 Rosana de Jesus Andrade

2616

O CONSUMO DA MODA COMO FERRAMENTA PARA A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE Savanna de Albuquerque Freire

2626

O MOVIMENTO OPERÁRIO E A SUA RELAÇÃO COM O ESTADO: PERCURSOS NA CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA NA PRIMEIRA REPÚBLICA Sayonara Faria Sisquim

2634

O CONVENTO DE SANTA TERESA E A ALTERAÇÃO GEOGRÁFICADOS ARREDORES DO CAMINHO DO DESTERRO Scheyla Taveira da Silva

2642

LAÇOS DE FAMÍLIA: REDE DE SOLIDARIEDADE ENTRE OS MORADORES DA COMARCA DE ESTÂNCIA(SE) 1840-1888 Sheyla Farias Silva

2652

SANTO DE CASA TAMBÉM FAZ MILAGRE: AS RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS NO METAL DA GANGRENA GASOSA Shirlei da Costa Borges

2662

DISCURSOS SOBRE OS JOGOS NA INFÂNCIA VEICULADOS PELA REVISTA DO ENSINO DE MINAS GERAIS (1925-1940) Tacimara Cristina dos Reis

2670

OS ÍNDIOS DO SUL DA BAHIA E A POLÍTICA DE PACIFICAÇÃO E ATRAÇÃO (1910-1911) Talita Almeida Ferreira

2680

ICONOGRAFIA DA ESPERA: PROFECIA E POLÍTICA NAS IMAGENS DA RESTAURAÇÃO (1640-1668) Talita de Jesus Noronha Sanchez

2690

“POR QUE QUE A CARMEN DE LARA CASTRO?” REFLEXÕES SOBRE HISTÓRIA ORAL E ESCRITA BIOGRÁFICA Tamy Amorim da Silva

2699

PALÁCIOS DE BARRO, PEDRA E OURO: AS PRIMEIRAS CASAS DE GOVERNADORES NAS MINAS DE OURO (1703-1720). Tarcísio de Souza Gaspar

2717

MARCELINO FREIRE ENTRE TEXTO E IMAGEM. Tatiana de Almeida Nunes da Costa

2726

RELIGIÃO E DIREITOS HUMANOS EM LADOS OPOSTOS?: A QUESTÃO LGBT Tatiana de Souza Sampaio Freitas

IX Semana de História Política: Política, Conflitos e Identidades na Modernidade VI Seminário Nacional de História: Política, Cultura e Sociedade ISSN 2175-831X – PPGH/UERJ, 2014

2737

A MEMÓRIA DOS OUTROS: RELATOS DE DOIS DESCENDENTES DE JUDEUS SOBRE O HOLOCAUSTO Thais de Santis Rocha

2744

DESAFIOS DA IMPLEMENTAÇÃO DA LEI 11.645/08 NO MUNICÍPIO DE DUQUE DE CAXIAS: POSSIBILIDADES DE RESPOSTA AO DEVER DE MEMÓRIA Thais Elisa Silva da Silveira

2753

A MONTAGEM DA COLONIZAÇÃO NO BRASIL: AS RELAÇÕES DE PODER ENTRE O GOVERNO-GERAL E A CAPITANIA DE PERNAMBUCO (1548-1553) Thaís Silva Félix Dias

2762

JENOTDEL - A SEÇÃO DE MULHERES DO PARTIDO COMUNISTA SOVIÉTICO Thaiz Carvalho Senna

2771

ENTRE DITOS E SILÊNCIOS: PETRÓPOLIS E O DIÁRIO DE GETÚLIO VARGAS (1930-1942). Thales Rocha de Freitas

2781

O PAPEL POLÍTICO DA IMPRENSA: O JORNAL TRIBUNA DA IMPRENSA EM OPOSIÇÃO AO SEGUNDO GOVERNO DE GETÚLIO VARGAS (1951-1954). Thársyla Glessa Lacerda da Cunha

2790

SOBRE O CARGO DE SECRETÁRIOS DE GOVERNO (1688-1750) Thiago Rodrigues da Silva

2798

TRANSIÇÃO POLÍTICA, OPOSIÇÃO LIBERAL E CRISES MILITARES NO BRASIL E CHILE EM PERSPECTIVA COMPARADA (1975-1982) Tiago Francisco Monteiro

2808

REFORMA DO ESTADO NO GOVERNO FERNANDO HENRIQUE CARDOSO: UMA ANÁLISE DAS FUNDAÇÕES DE APOIO PRIVADO Tiago Siqueira Reis

2818

A CONSTRUÇÃO DA LUTA CONTRA O GAFANHOTO ATRAVÉS DAS REUNIÕES POLÍTICAS, CIENTÍFICAS E DIPLOMÁTICAS (ARGENTINA, URUGUAI E BRASIL, 1900- 1950) Valeria Dorneles Fernandes

2827

RIO BRANCO PAI, RIO BRANCO FILHO: BIOGRAFIA, AUTOBIOGRAFIA OU MEMORIALISMO? Vanessa da Silva Albuquerque

2835

TRABALHANDO COM A MEMÓRIA: DISPUTA DE MEMÓRIA ENTRE PRESOS POLÍTICOS E PRESOS COMUNS QUE ESTIVERAM NO INSTITUTO PENAL CÂNDIDO MENDES ENTRE 1969 E 1976 Vanessa Oliveira Benetido

2845

PROFECIA, POLÍTICA E PROPAGANDA: ANÚNCIOS DE LIVROS E PANFLETOS RADICAIS PUBLICADOS POR LIVEWELL CHAPMAN DURANTE A REVOLUÇÃO INGLESA DO SÉCULO XVII Verônica Calsoni Lima

2855

UM OLHAR PORTUGUÊS O SOBRE A CULTURA ITALIANA SETECENTISTA: ÓPERA, MÚSICA E CULTURA ITALIANAS NO EPISTOLÁRIO DA MARQUESA DE ALORNA COM A CONDESSA DE VIMIEIRO Victor Emmanuel Teixeira Mendes Abalada

IX Semana de História Política: Política, Conflitos e Identidades na Modernidade VI Seminário Nacional de História: Política, Cultura e Sociedade ISSN 2175-831X – PPGH/UERJ, 2014

2865

O PROJETO DE DESENVOLVIMENTO DO REGIME MILITAR NOS ESTADOS DA GUANABARA E RIO DE JANEIRO: A INTERVENÇÃO GOVERNAMENTAL NA CONSTITUIÇÃO DA REGIÃO METROPOLITANA DO GRANDE RIO E PONTE RIO-NITERÓI Vinícius Martins Pereira

2875

ACERVOS E DOCUMENTAÇÃO MILITAR EM ARQUIVOS PÚBLICOS: O PROJETO DE DESCRIÇÃO DO ACERVO DA SECRETARIA DE ESTADO E NEGÓCIOS DA MARINHA DO SÉCULO XIX SOB A GUARDA DO ARQUIVO NACIONAL Wagner Luiz Bueno dos Santos

2884

A POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA PARA A ÁFRICA NO PERÍODO 1995-2010: VÍNCULOS E SEMELHANÇAS COM O PASSADO HISTÓRICO Walace Ferreira

2894

NEOLIBERALISMO E "REFORMA AGRÁRIA" NO BRASIL: O CASO DO PROGRAMA NACIONAL DE CRÉDITO FUNDIÁRIO (2003-2015) Wallace Lucas Magalhães

2904

APONTAMENTO SOBRE OS INDIVÍDUOS PRESENTES NOS EX-VOTOS PINTADOS DAS MINAS (SÉCS. XVIIII-XIX) Weslley Fernandes Rodrigues

2911

A ESFERA MUNICIPAL NA PRIMEIRA REPÚBLICA: O PLANEJAMENTO URBANO EM JUIZ DE FORA Yuri Amaral Barbosa

2921

INICIAÇÃO CIENTÍFICA

2922

AMADO A LAMPIÃO UMA CONSTRUÇÃO IMAGÉTICA Alcilene Jorge Lopes

2932

MOVIMENTO ESTUDANTIL E A REFORMA UNIVERSITÁRIA DA DITADURA NA UFES - 1964-1968 Alexandre Caetano

2942

AS MÚLTIPLAS HISTÓRIAS EM AMERICANAH: A PERSPECTIVA DE UMA MULHER NEGRA NÃO-AMERICANA ENTRE A NIGÉRIA E OS ESTADOS UNIDOS Alice Ripper Cordeiro de Azevedo Coe

2953

O PERFIL DO ESCRAVO DOMÉSTICO A PARTIR DOS ANÚNCIOS DO JORNAL DO COMMERCIO DE 1840. Aline Bezerra Lopes

2961

ÁFRICA OCIDENTAL, A CONSTRUÇÃO DO HERÓI NA FALA DE UM GRIÔ Almir de Alcantara Ramos

2971

DA RESISTÊNCIA À RE-EXISTÊNCIA: TESTEMUNHOS FEMININOS SOBRE A TORTURA NA DITADURA MILITAR BRASILEIRA, EM “QUE BOM TE VER VIVA” Ana Carolina Monay dos Santos

2981

O GRAFFITI COMO FORMA DE EXPRESSÃO POLÍTICO-CULTURAL Andréia Simões de Araujo

IX Semana de História Política: Política, Conflitos e Identidades na Modernidade VI Seminário Nacional de História: Política, Cultura e Sociedade ISSN 2175-831X – PPGH/UERJ, 2014

2990

MINERVA BRASILIENSE E A FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL: UMA ANÁLISE DOS ANTECEDENTES DO PERIÓDICO Bruna Schulte Moura

2998

VOZES QUE CLAMAM DO DESERTO: O ANTIFASCISMO NAS PÁGINAS DA IMPRENSA ANARQUISTA – ALBA ROSSA, A PLEBE E SPARTACUS (C.1919-C.1926) Bruno Corrêa de Sá e Benevides

3008

A SOCIEDADE CEARENSE LIBERTADORA E A ABOLIÇÃO DA ESCRAVIDÃO NO CEARÁ (1881-1884) Camila de Sousa Freire

3016

PRECISA-SE & ALUGA-SE: A DINÂMICA DE TRABALHO DAS AMAS DE LEITE NA PRIMEIRA REPÚBLICA Caroline Amorim Gil

3026

ARACAJU EM PERSPECTIVA: ASPECTOS DO COTIDIANO DURANTE A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL (1939-1945) Caroline de Alencar Barbosa

3033

A FAVELA E O MEIO AMBIENTE SOB A ÓTICA DO MUTIRÃO DE REFLORESTAMENTO (1986-2000) Caroline dos Santos Souza

3043

CELIBATO CLERICAL: A BIOPOLÍTICA NO PRIMEIRO REINADO DO BRASIL Claudio da Silva Costa

3053

DISCOTECA PÚBLICA DO DISTRITO FEDERAL (1941-1945) Denise da Silva de Oliveira

3062

CONTRIBUIÇÕES HISTÓRICO-POLITICAS DO ESPORTE EM DEBATE NA EDUCAÇÃO FISICA ESCOLAR. Emanoel Borges Candal

3072

SOBRE LUTAS E IDENTIDADES: A GREVE DE 1901 E O "FAZER-SE" CLASSE DOS OPERÁRIOS DA FÁBRICA DE TECIDOS CONFIANÇA INDUSTRIAL Henrique de Bem Lignani

3082

ANARQUISMO E GUERRA: ASPECTOS DAS CONCEPÇÕES ANARQUSITAS SOBRE A PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL Ingrid Souza Ladeira de Souza

3092

“PARAHYBANOS ILLUSTRES” NO TEATRO DA GUERRA: UMA ANÁLISE HISTORIOGRÁFICA SOBRE A GUERRA DO PARAGUAI NA REVISTA DO IHGP (1910-1912). Janyne Paula Pereira Leite Barbosa

3102

CONFLITOS POLÍTICOS DAS COROAS ULTRAMARINAS POR MEIO DO ATAQUE CORSÁRIO DE THOMAS CAVENDISH À VILA DE SANTOS (1580-1591) Jonathan André da Silva Xavier

3110

DA GÊNESE DO ESPÍRITO DE CLÃ AO MODELO BRASILEIRO DE PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO: A DEFICIENTE INTERSECÇÃO ENTRE A POLÍTICA E A SOCIEDADE José Marcio Figueira Junior

IX Semana de História Política: Política, Conflitos e Identidades na Modernidade VI Seminário Nacional de História: Política, Cultura e Sociedade ISSN 2175-831X – PPGH/UERJ, 2014

3115

NATURALISTA E POLÍTICO: A TRAJETÓRIA DE VIDA DO ILUSTRADO ANTONIO CARLOS RIBEIRO DE ANDRADA MACHADO E SILVA (1790-1823) Leandro da Silva

3123

“O 2º MARQUÊS DO LAVRADIO E A SOCIEDADE DE CORTE EM PORTUGAL: REDES DE PODER E DE PARENTESCO” Leonardo Guedes Soares

3131

A CONSTRUÇÃO DO “INIMIGO” NO IMAGINÁRIO POPULAR E O GENOCÍDIO NA GUERRA DA BÓSNIA (1992-1995) Leonardo Pires da Silva Belançon

3141

UM ENCONTRO APOCALÍPTICO: O CHOQUE DAS CIVILIZAÇÕES INDÍGENAS E PORTUGUESA EM GONÇALVES DIAS Luiza de Oliveira Botelho

3151

LUZES E CENSURA: OS PRIMEIROS ANOS DO SÉCULO XIX NO IMPÉRIO LUSO-BRASILEIRO Maíra Moraes dos Santos Villares Vianna

3160

O JORNAL "O GLOBO" E A CAMPANHA CONTRA AS AÇÕES AFIRMATIVAS NO BRASIL. Matheus de Carvalho Leibão

3169

A UFRJ E OS 50 ANOS DO GOLPE CIVIL-MILITAR Mauro Vinicius de Souza Floriano

3178

O POSICIONAMENTO DO GOVERNO CHILENO SOBRE A FORMAÇÃO DO ESTADO PALESTINO: 1970-1976 Michele Peixoto dos Santos

3188

PRIMEIRO ANO DO GOVERNO DE PEREIRA PASSOS:ASPECTOS RELEVANTES Mônica de Matos Teixeira D'Assumpção

3198

OS 450 ANOS DE HISTÓRIA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO NARRADOS PELAS BIBLIOTECAS DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO (UFRJ). Nathália Andrade Ribeiro

3202

A PATRONAGEM CIENTÍFICA DE DOM RODRIGO DE SOUZA COUTINHO Nathália Maria Andrade dos Santos

3208

“A CONSTRUÇÃO DO INVISÍVEL NO ESPAÇO LITERÁRIO ANGOLANO EM VOZES NA SANZALA E SUA RELAÇÃO COM A HERANÇA CULTURAL E RELIGIOSA BRASILEIRA E, PRINCIPALMENTE, AFRODESCENDENTE. Nathalia Rocha Siqueira

3218

A INFLUÊNCIA DO WAHABISMO SAUDITA E A QUEDA DO CALIFADO) Rafael Vargas da Silva

3223

NORMAS, PRÁTICAS E COSTUMES DA ADMINSITRAÇÃO COLONIAL PORTUGUESA NA AMÉRICA MERIDIONAL NO SÉCULO XVI Raick de Jesus Souza

IX Semana de História Política: Política, Conflitos e Identidades na Modernidade VI Seminário Nacional de História: Política, Cultura e Sociedade ISSN 2175-831X – PPGH/UERJ, 2014

3233

HOSPITALIDADE PADRÃO MG: O REDESCOBRIMENTO DO POTENCIAL TURÍSTICO DE BELO HORIZONTE MOBILIZADO PELO DISCURSO DO "ESTADO DE MINAS" EM TEMPOS DE MEGAEVENTOS ESPORTIVOS (2013-2014) Raul de Paiva Oliveira Castro

3243

A GESTA LA CHANSON DE ROLAND: MECANISMOS ORAIS DE DIFUSÃO E CONSTRUÇÃO DE UM IDEAL Renan Perozini Gomes Barrozo

3254

CORPOS COLONIZADOS NA CONTEMPORANEIDADE Samuel Barreto dos Santos

3261

‘REPLICANDO’ A MEMÓRIA: O PASSADO PRESENTE NAS REPÚBLICAS FEDERAIS DE OURO PRETO Taciana Sene Lúcio

3271

A INTOLERÂNCIA RELIGIOSA CONTRA OS CRISTÃOS COPTAS DURANTE A PRIMAVERA ÁRABE NO EGITO. Tatiana Cristina Sobral da Silva

3281

UM “BRASILEIRO ADOTIVO” DEDICADO À LITERATURA E VULGARIZAÇÃO DO CONHECIMENTO Thaís Ferreira Pilotto

3291

FERNANDO COLLOR DE MELLO: AS RELAÇÕES ENTRE A IMPRENSA E A POLÍTICA NA CAMPANHA ELEITORAL DE 1989. Thais Sangineto de Carvalho

3301

OLHAR À DIREITA: RECRUTAMENTO E EMPODERAMENTO DE SOLDADOS EM UM QUARTEL DO EXÉRCITO BRASILEIRO Thiago Elias Monteiro

3313

SUBDESENVOLVIMENTO BRASILEIRO EM DEBATE NO SÉCULO XX: OS INTELECTUAIS E A CABEÇA DE JANO. Vanessa Costa Ferreira

SIMPÓSIOS TEMÁTICOS

1

TRABALHO, POLÍTICA E FÉ: A RELAÇÃO ENTRE O PROGRESSISMO CATÓLICO E OS MOVIMENTOS SOCIAIS DO CAMPO NO AGRESTE PERNAMBUCANO

Adauto Guedes Neto Mestre em História pela UFPE Professor da Faculdade do Belo Jardim-FBJ RESUMO Nosso trabalho tem como objetivo analisar a experiência do progressismo católico e sua relação com as atividades de emancipação política a partir do trabalho no interior do estado de Pernambuco, especificamente na região agreste, bem como, os conflitos que surgem no processo da luta pela terra ou por promover a ruptura com práticas políticas tradicionais, enfatizando sobre a experiência da Teologia da Enxada em tal processo, que promove novas reflexões e rompe, inclusive, com práticas conservadoras do catolicismo. Palavras-chave: Catolicismo Progressista; Movimentos Sociais; Poder Político.

ABSTRACT Our work aims to analyze the experience of Catholic progressivism and its relation to the political emancipation of activities from the work in the state of Pernambuco, specifically in the rugged region, and the conflicts that arise in the struggle for land process or to promote the break with traditional political practices, focusing on the experience of Theology Hoe in such a process, which promotes new thinking and breaks even with conservative practices of Catholicism. Keywords: Progressive Catholicism ; Social movements; Political power.

INTRODUÇÃO

Com a chegada no ano de 1969 de um grupo de seminaristas na cidade de Tacaimbó, interior agreste de Pernambuco, ocorreram transformações na vida social dos grupos que se integram a tal nova concepção de formação, que tem seus ares iniciais na experiência dos padres operários franceses, passando pela ratificação da hierarquia católica no Concílio Vaticano II, e que portanto, trouxe reverberações nas camadas populares da periferia do mundo. 2

O contexto político nacional era de forte repressão, vivia-se a ditadura militar (19641985) em pleno vigor o AI-5, e sobretudo o aumento das perseguições a membros da Igreja Católica. Em Pernambuco, o Padre Henrique Pereira Neto, assessor de Dom Hélder Câmara, foi barbaramente assassinado, conforme destaca o Jornal A Defesa:

PADRE FOI ASSASSINADO BARBARAMENTE NO RECIFE: O Padre

Henrique

Pereira Neto da arquidiocese de Olinda e Recife, foi assassinado barbaramente, com requinte de perversidade, nas aproximações da Cidade Universitária. O Corpo foi encontrado com uma perfuração provocada por tiro de arma de fogo, no frontal esquerdo, uma corda envolta no pescoço, vários ferimentos penetrante produzidos por arma branca, na garganta, um pouco abaixo do ouvido esquerdo e ainda várias esquimoses pelo tórax, braços e abdomem, provocados segundo a polícia técnica por cacete [...].i

Portanto, o clima de perseguição, virou-se contra quaisquer atitudes consideradas subversivas. Isto não estava restrito as grandes centros urbanos, guardadas as devidas proporções, também existiram em pequenas cidades do interior, porém, ainda pouco investigado, o que, inclusive, denota a originalidade e relevância social e acadêmica da análise em questão, pois com o desenvolvimento de uma nova perspectiva de formação, orientada pelo ITERii, através do padre belga José Comblin, desenvolveu-se a Teologia da Enxada, e tal experiência trouxe reflexões para a libertação e gerou problemas com grupos políticos locais, que sempre foram desejosos em manter o povo dependente da prática política clientelista. Desta feita, podemos perceber como os conflitos que colocaram em lados opostos o clero progressista versus ditadura militar, também reverberou distante dos grandes polos.

O PROGRESSIMO CATÓLICO NO INTERIOR PERNAMBUCANO A ala progressista da Igreja Católica, desenvolveu no agreste pernambucano um importante trabalho de evangelização com forte identificação com o trabalhador rural, sobretudo com a organização das Comunidades Eclesiais de Base. Tal identidade com o campo pode inclusive ser percebido nas letras das músicas analisadas na cartilha das comunidadesiii, livro de cânticos utilizados em suas missas, além de outras músicas do mesmo teor, tais como: Jovem da Roça: “sou jovem da roça, sou trabalhador, mas agricultura não tem valor. Não sou da cidade, nem da capital, nasci lá no campo, amo o vegetal[...]”. Pé de Serra de Luiz Gonzaga: “Lá no meu pé de serra, deixei ficar meu coração. Ai que saudade que 3

tenho, eu vou voltar pro meu sertão[...]”. Dentre outras músicas, que além de retratar aspectos da vida do agricultor, do povo nordestino, mais do que isso, tem a função de gerar um ambiente de reflexão nas celebrações, além de animar as missas fugindo da monotonia sem precisar ser uma igreja de louvores. Tal prática surge quando do trabalho encampado pelo Pe. Pedro Aguiar, que se fortalece com a chegada de seminaristas de formação orientada a partir das reflexões do Concílio Vaticano II.

No início de 1969, o Seminário Regional do Nordeste resolveu correr o risco de dar cobertura e orientação a uma experiência de tipo novo. Nove seminaristas de diversas dioceses, autorizados pelos seus respectivos bispos, projetaram viver alguns anos numa região rural. [...] Repartiram-se em dois grupos, um de quatro pessoas e outro de cinco. O primeiro instalou-se em Tacaimbó, município do Agreste pernambucano, situado a 170 km do Recife. O segundo foi viver em Salgado, município do Agreste paraibano, situado perto de Itabaiana a 80 km de João Pessoa e a 130 km do Recife. Os dois grupos constituíram um programa de vida em que a parte da manhã era reservada aos trabalhos de agricultura, a parte da tarde ao estudo e a noite aos trabalhos apostólicos.iv

O grupo de seminaristasv que foi para Tacaimbó contava com o apoio do Bispo da Diocese de Caruaru D. Augusto Carvalho. Padre Pedro Aguiar, coordenador dos trabalhos era de origem camponesa e sua formação, assim como a dos seminaristas estavam ligadas às idéias do IIvi e III Conselho Episcopal Latino-Americano e da Teologia da Libertação, que definirão como uma de suas práticas teológicas a opção preferencial pelos pobres. Em 1979, o III CELAM foi realizado no México onde:

Confrontaram-se as diversas correntes do pensamento católico. Mais uma vez prevaleceu a ala progressista. Reafirmou-se a Teologia da Libertação com as propostas de mudanças profundas nas estruturas latino-americanas, em benefício da maioria, ou seja, dos pobres.vii

Mas, que tipo de trabalho seria este? Que experiência de tipo novo seria esta? Como se explica a presença dos seminaristas formados no ITER, no Agreste, especificamente à priori numa pequena cidade como Tacaimbó? Vejamos o que nos explica o Seminarista Nonato:

A ideia de ir para o interior do Estado, saindo da capital, era a ideia de buscar um diálogo novo com a população, sobretudo com os camponeses, com os agricultores [...]. A formação que a gente tinha em Recife, era uma formação sacerdotal influenciada positivamente pelo Concílio Vaticano

4

II que se iniciou em 1962, e até 1969 quando fomos para Tacaimbó, houve realmente muita energia, muita vontade de mudança [...]. O Seminário Regional do Nordeste, onde estávamos estudando, a ideia era de evangelização popular, era de formar Comunidades Eclesiais de Base, no meio popular, quer urbano, quer rural.viii

Esta iniciativa de trabalho preferencial pelos pobres, que relaciona as atividades pastorais às atividades do campo, teoria e prática, na intenção de sentir de perto as dificuldades do agricultor, o sofrimento da população, no dizer de Nonato: “com o mesmo calor do sol, com o mesmo peso da enxada”, é entender melhor a sociedade; pensar alternativas para as dificuldades existentes e elaborar os estudos teológicos; Nascia assim, a Teologia da Enxada e Tacaimbó foi a primeira cidade no agreste pernambucano a conhecer esta nova experiência.

TRABALHO, RESISTÊNCIA E NOVAS RELAÇÕES COM O AMBIENTE Os Seminaristas seriam, na perspectivas de Norbert Eliasix os outsidersx, muito embora, os estabelecidos, ou seja, a comunidade do agreste pernambucano ou especificamente a comunidade tacaimboense não tivessem a mesma coesão grupal do bairro operário analisado pelo mencionado sociólogo, porém outras características que se assemelham podem ser destacadas, tais como: a mesma origem familiar e o passado comum. Como outsiders os seminaristas não terão a mesma conformidade que tiveram os recém-chegados em Winston Parva, pois se organizaram para resistir ao discurso negativo sobre suas imagens elaboradas pelos que exercem o poder político. Uma das estratégias adotadas pelos seminaristas vai ser a promoção de uma evangelização que se relaciona com as dificuldades da comunidade (o desemprego, a seca etc), sobretudo a partir da apropriação da cultura local. O contato da Igreja com o povo, neste ritmo novo de atuação, contribui para a população tornar-se mais esclarecida sobre os problemas sociais locais. A Igreja desce do pedestal e procura relacionar-se com o trabalhador da cidade e do campo, e este primeiro contato ocorre através de entrevistas e respostas de questionários, a fim de conhecer e perceber da população as suas maiores carências e necessidades. Temas como moradia, desemprego, saúde, seca etc., são bastante discutidos, conhecidos as suas causas e pensadas as suas alternativas.

Os estudos eram feitos por temas, estes temas duravam três semanas, uma semana de pesquisa e de conversa com a população que a gente visitava as casas, nos caminhos, nas estradas, nas viagens

5

de ônibus, conversávamos com as pessoas e depois dessa semana, a gente anotava tudo. A outra semana, a segunda semana, era de aprofundamento nos livros e na Bíblia e a semana seguinte era de elaboração de uma síntese entre o pensamento popular, e o que diz o povo; e o que reflete também os teólogos sobre aquele assunto. E tirávamos sempre conclusões práticas pastorais que seriam ou deveriam ser aplicadas imediatamente. Um dos temas que eu me lembro era por exemplo, a moradia. E fizemos um levantamento da situação de moradia da população, muitas casas eram de taipas. E uma das coisas práticas que decidimos, foi de na medida do possível construir casas populares em mutirão com a população.

xi

De fato, as atividades da Igreja rompem com os padrões tradicionais, provocando na elite política da cidade, receio de perder espaço, pois a aproximação do Padre, dos seminaristas e da Igreja como um todo à comunidade local, sobretudo da camada carente desprovida de recursos próprios para sobreviver, irá aumentar quando da articulação na cidade e no campo com o surgimento das Comunidades Eclesiais de Base. As comunidades serão a prática da Teologia da Libertação, ou seja, a realização de atividades políticas e pastorais xii, que ocorrem no cotidiano, na intenção de colaborar para melhorar as condições sociais do povo que sofre com a seca, com a falta de trabalho, pensando e realizando meios alternativos de sobreviverxiii, desvinculando-os, sobretudo da dependência dos políticos; e isto gera conflitos. A Teologia da Libertação recebeu influências marxistasxiv, por isso pode ser verificado nas regiões em que tal teoria será colocada em prática, como no caso de Tacaimbó, atitudes e reflexões que se contrapõem a qualquer forma de exploração, opressão e de desrespeito à dignidade humana, além do fato de provocar nos indivíduos a reflexão da situação social, Construir a consciência para a partir daí, ser protagonista das mudanças necessárias; como cita inclusive a Gaudim et Spes xv no seu artigo 73: “O homem é o protagonista, o centro e o fim de toda a vida econômico-social”. Este pensamento transformado em atitudes, irá se confrontar com a ordem local. Em nível nacional, um segmento da Igreja, a ala progressista, corrente ligada à CNBB xvi, praticante da Teologia da Libertação através das CEBs, será contrária ao governo militar. Posicionando-se contra às torturas, a falta de democracia e ajudando na resistência ao regime. Aliás, no momento em que os espaços democráticos do país são tolhidos pela ditadura, são as CEBs um espaço de resistência, e sobretudo, de articulação contra a ditadura militar. A articulação da comunidade de Tacaimbó, feita por Pedro, chegará na zona rural através da Teologia da Enxada, com a fundação do Sindicato de Trabalhadores Rurais em 1973xvii, fundação da Cooperativa Agrícola Mista dos Pequenos Agricultores de Tacaimbó

6

Ltda – CAMPEATA, em 1983, e da construção de salões comunitários nos sítios. Estes salões serviram para a realização de missas e reuniões de estudo bíblico e político organizado pela Igreja Católica progressista, e festas populares como o forró, a ciranda e a mazuca, promovidas por grupos de animadores da Igreja e membros da comunidade em diferentes espaços rurais. Sobre essa atividade de resistência do setor progressista, analisa Severino Vicente:

Foi a Igreja católica de tendência progressista uma Igreja que, ao longo de duas décadas, quase, tornou-se a mais comentada por sua coragem em confrontar aqueles que tomaram o poder em 1964. Foi a Igreja progressista uma espécie de guarda nacional na defesa dos interesses da sociedade brasileira e na defesa dos direitos humanos.xviii

Este caráter progressista de proceder em Tacaimbó teve seus opositores, representados pelos políticos locais e que estavam afinados ao governo militar. Através deles, percebemos a presença de tal governo na cidade. Seja através da ideia do desenvolvimento, marca econômica do regime militar, seja através de um estilo conservador e truculento de administrar e fazer política, adotando discursos pejorativos para com integrantes da Igreja, na intenção de afastar a comunidade local do contato com as ideias libertadoras, presentes na fala e na ação de Pedro Aguiar e sua equipe. Em Tacaimbó os políticos ligados ao regime militar (1964-1985) continuavam, mesmo após o final da ditadura, mantendo as mesmas práticas clientelistas. Mesmo encontrando dificuldades a partir dos conflitos gerados com os políticos locais, conseguiu-se promover resistência com organização popular e de uma nova maneira de lidar com o meio ambiente, além de outros benefícios adquiridos por projetos, conforme citamos abaixo:

[...]1985: Criação do Projeto São Vicente, pela SUDENE, através do Deputado Federal Miguel Arraes; Entre 1986 – 1988 foram aprovados 35 projetos com quase 1.200 famílias. Primeiro projeto: os 80 associados da Cooperativa; Segundo projeto: as 125 famílias sem terra da periferia de Tacaimbó. Os projetos doaram benfeitorias para os agricultores: 160 vacas, 77 juntas de boi, 220 cabras, sementes de milho e feijão, ferramentas e implementos (enxadas, arados, carros de boi), arame e estacas para cerca, e a construção de 700 cisternas. Outros projetos da Cooperativa em parceria com PRODECOR, CISAGRO (apicultura), PRORURAL (100 cisternas) e FIAM (3 poços). Aquisição de estrume, mudas de plantas, potes de barro para irrigação, poços amazonas (5), matrizes de porcos (25) com pocilgas, matrizes de caprinos (25) com apriscos;

7

Criação de abelhas (PROMEL); Capital de giro para revenda de consumo (alimentos) e insumos: ferramentas, remédios veterinários.xix

A partir de tais conquistas, os agricultores foram se livrando das amarras que os prendiam, e desta feita poderiam reagir com mais força às suas práticas de opressão; inclusive conseguiram eleger na cidade de Tacaimbó em 1982 o primeiro vereador pelo PMDB (até então prevalecia ARENA e depois PDS), apoiado pela Igreja, Sindicato dos Trabalhadores Rurais, cooperativas e demais entidades do campo. O discurso ecológico passa a predominar nas atuações da Igreja Católica no agreste com as CEBs em meados da década de 1980, especialmente quando percebemos um afastamento da Igreja das questões políticas com o fim da ditadura militar, porém sua atuação voltada para as questões ambientais contribui paralelamente para de certa maneira promover mais autonomia política e econômica dos agricultores. E neste sentido, surge a Associação de Produtores Orgânicos de Brejo da Madre de Deus – Terra Fértil, que além de organizar promove espaços de vendas. A referida Associação surge em meio ao crescimento dos discursos que valoriza a política do desenvolvimento sustentável, ou seja, um desenvolvimento que possa gerar renda, mas sem agredir o meio ambiente. São os produtos orgânicos que darão a renda necessária para que os agricultores possam desvincular-se de qualquer forma de dependência política, e ainda dentro de uma lógica ambiental politicamente correta. Desta prática surgirá a venda de tais produtos orgânicos em Brejo da Madre de Deus e Caruaru, e depois a semana de promoção agrícola sustentável com a Feira do Verde que ocorre todos o anos em Brejo, sempre na última semana de Abril. A Feira do Verde é um momento para refletir sobre os benefícios da produção orgânica de alimentos, além de ser um espaço para exposições de animais e vendas dos produtos agrícolas. É na verdade uma grande festa, dedicada a um mundo melhor, mais saudável, com menos agrotóxico. Tal atividade era uma demonstração prática de resistência que surge a partir da organização de trabalhadores do campo em conjunto com membros progressistas da Igreja Católica. Serão tais práticas que contribuíram para o desenvolvimento de uma produção agrícola alternativa e que se estabelece como prática de resistência em meio a atitudes de opressão contra o produtor rural e técnicas de produção que além de agredir o meio ambiente empobrecem o solo.

8

A Igreja Católica através das CEBs e da Teologia da Enxada - práxis da Teologia da Libertação tiveram um papel fundamental em tal prática que além de resistir, liberta. É pela crença na libertação do pobre, do oprimido, que tais práticas serão exercidas. Não existe liberdade sem luta, conforme diz Gutiérrez:

Conceber a história como processo de libertação do homem é perceber a liberdade como conquista histórica, é compreender que a passagem de uma liberdade abstrata a uma liberdade real não se realiza sem luta.xx

Não é por acaso que a música mais cantada nas missas está relacionada a esta temática, conforme destacamos a seguir: “Eu acredito que o mundo será melhor, Quando o menor que padece, acreditar no menor”.xxi

i

Jornal A Defesa de 01 de junho de 1969. O Jornal A defesa, foi um semanário católico da Diocese de CaruaruPE, cujas publicações existiram até o ano de 1984. ii Instituto de Teologia do Recife. Criado pelo Arcebispo de Olinda e Recife, Dom Hélder Câmara. iii NADJA, ZEFINHA, JUVENAL. Cartilha das Comunidades. (et al). 2ª Edição. Impressão: Vanguarda. 1995. iv COMBLIN, José. Teologia da Enxada. Rio de Janeiro: Vozes, 1977, p.09. v O grupo de seminarista que fora ao Agreste foi: João Firmino, Francisco das Chagas, João Moura e Raimundo Nonato, depois chegaria Frei Enoque Salvador. vi Queremos que a Igreja da América Latina seja evangelizadora e solidária com os pobres, testemunha do valor dos bens do Reino e humilde servidora de todos os homens de nossos povos. Seus pastores e demais membros do Povo de Deus devem dar a sua vida, suas palavras, atitudes e ação, a coerência necessária com as exigências evangélicas e as necessidades dos homens latino-americanos. (Trechos das conclusões do II CELAM em Medellín. Orth apud AQUINO et al. 2000, p. 624). vii AQUINO, R. S. L. de,et al. História das Sociedades - das sociedades modernas às sociedades atuais. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 625. viii Entrevista concedida ao autor em 07 de março de 2009, no Centro de Formação Missionária, na sede da Fundação D. José Maria Pires. Serra Redonda – PB. ix

ELIAS, Norbert e SCOTSON, John. Os Estabelecidos e os Outsiders. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.

x

Em seu estudo, Elias explica que os outsiders eram os recém-chegados em um bairro operário utilizado pelo autor como espaço de análise, ao qual os mesmos eram rejeitados pelo os moradores mais antigos (os estabelecidos). xi Raimundo Nonato, entrevista concedida ao autor em 07 de março de 2009. xii Numa perspectiva de fé, o que move, em última análise, os cristãos a participar na libertação dos povos oprimidos e das classes sociais exploradas é a convicção da radical incompatibilidade das exigências evangélicas com uma sociedade injusta e alienante. GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia da Libertação. Rio de Janeiro: Vozes, 1986, p. 123. xiii Capacitações e cursos de tecelagem, cursos para os artesãos da cidade, revestimentos de barreiros na zona rural e construções de cisternas. Apoios financeiros junto à SUDENE: Projeto São Vicente, durante o segundo Governo Arraes.

9

xiv

A isto se acrescenta a influência do pensamento marxista centrado na práxis, dirigido para a transformação do mundo. GUTIÉRREZ, Gustavo. Op. cit. p. 22. xv Constituição Pastoral do Concílio Vaticano II: sobre a Igreja no mundo de hoje. xvi Reafirmamos, nossa confiança e nosso apoio às organizações que atuam no meio operário e no meio rural. CNBB, 1966, p. 284. IN: FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (org). O Brasil Republicano: O tempo da ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro. Ed. Civilização Brasileira. 2003, p. 113. xvii O Sindicato de Trabalhadores Rurais de Tacaimbó fundado em 1973 teve como primeiro presidente Vicente Caetano e foi um importante instrumento na organização e na luta do camponês local. xviii SILVA, Severino Vicente da. Entre o Tibre e o Capibaribe: os limites da Igreja progressista na arquidiocese de Olinda e Recife. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2006, p. 215. xix Relatório: O Rolo do Tempo 1969 – 1989: 20 anos de caminhada das Comunidades Eclesiais de Base CEBs de Tacaimbó. p. 02. xx xxi

GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia da Libertação. Rio de Janeiro. Ed. Vozes. 1986. Eu acredito. Cartilha das Comunidades. 2ª edição, p. 44.

10

Apontamentos sobre o Estado de Bem Estar Social, a crítica ultraliberal e suas vantagens institucionais comparativas. Adebiano Rodriguesi

O presente trabalho surge de um esforço na compreensão do Estado Social e suas especificidades. Para tal, dividiremos o trabalho em três partes. Na primeira parte trataremos de seu surgimento, definição e trajetória. Na segunda, analisaremos a crítica liberal e a forma com que ataca o Estado Social. Por fim, traçaremos uma análise sobre a forma com que as políticas de bem-estar social podem proporcionar uma vantagem institucional comparativa na economia capitalista minimizando os efeitos das flutuações de mercado. Palavras-chaves: Estado de Bem Estar Social, Políticas Sociais, Neoliberalismo.

This work stems from an effort in understanding the social state and its specificities. For this, we divide the job into three parts. The first part will deal with its emergence, definition and trajectory. In the second, we will analyze the liberal criticism and the way attacks the welfare state. Finally, we will draw an analysis of the way the social welfare policies can provide a comparative institutional advantage in the capitalist economy minimizing the effects of market fluctuations. Keywords: Welfare State, Social Policy, Neoliberalism.

1. O Estado de Bem Estar Social. Na segunda metade do século XIX, diante da emergência da ordem capitalista, a sociedade começa a produzir movimentos de autodefesa. Um dos efeitos destes movimentos é o chamado Estado de Bem Estar Social, ou simplesmente Estado Social. O termo alemão Sozialpolítik expressa uma forma de fusão entre políticas sociais [Social Polítics] e a política social [Social Policy], denotando o emprego da arte da política com a finalidade de garantir coesão e bem estar da sociedade, essa concepção foi traduzida na Lei básica Alemã, no conceito de Estado Social (Sozialstaats)ii. Trata-se de um movimento que parte do entendimento de que a situação dos trabalhadores é algo que deve ser resolvido coletivamente. Deste modo, o Estado de Bem Estar Social determina mecanismos de compensatórios de coesão social para a manutenção da força de trabalho necessária ao desenvolvimento do capitalismo iii. Neste sentido, a existência do Estado de Bem Estar Social evidencia uma situação desigual dos trabalhadores frente ao capital. Segundo Esping-Andersen o Estado de Bem Estar Social representou, historicamente, muito mais do que um simples desenvolvimento de políticas

11

sociais, haja visto que significou também a reestruturação econômica, ética moral e política das naçõesiv. O que leva a crer que o Estado de Bem Estar Social foi “uma das mais importantes conquistas da civilização ocidental, é certamente a mais completa, abrangente e profunda síntese dos grandes avanços experimentados pela História social, política e econômica nos últimos trezentos anos”v. Como dito, sua história inicia-se na segunda metade do século XIX quando a ordem capitalista consolida seus mecanismos de produção. Um dos resultados deste fenômeno é a emergência de organizações sindicais e políticas dos trabalhadores, ao lado de incipientes políticas sociais de Estados que atendiam basicamente questões previdenciárias e acidentárias de trabalho. Neste processo a Conferência de Berlim de 1890 cumpre papel significativo como primeiro instrumento jurídico de ordem internacional, visando combater a precariedade do trabalho e ainda os altos índices de trabalho infantil. Lançando as bases para a regulação legal do trabalho ao deliberar o imperativo da ação do Estado nesta searavi. A noção de Democracia também é característica da segunda metade do século XIX, coincidindo com a prática da afirmação do trabalho e do emprego, por meio das organizações sindicais e partidos de formação popular. Ainda nesse contexto constroem-se a prática da Justiça Social, que se aprofunda no século XX. A ideia da justiça social vai permeando o Estado por meio de políticas públicas, e também as relações sociais por meio da embrionária Justiça do Trabalhovii. Neste sentido, o Estado de Bem Estar Social vai além de políticas públicas, se colocando como uma forma de organização da sociedade civil. Mostrou-se ainda, plenamente compatível com as necessidades econômicas do sistema capitalista e funcional a um desenvolvimento econômico palpável, duradouro e criativo nesse sistema viii, haja visto que alguns dos países com Estados de Bem Estar Social mais avançados se desenvolveram historicamente como economias abertas, a exemplo dos países escandinavosix x. Na primeira metade do século XX o Estado de Bem Estar Social se estruturou. Diante da ameaça concreta da revolução socialista e do avanço de partidos de fundo popular, devido ao colapso da gestão ultra liberalista do Estado representada pela Crise de 1929. Sob a égide dos acordos de Breton-Woods e da Declaração da Filadélfia, ambos produzidos em 1944 à luz dos efeitos da depressão da Segunda Guerra Mundial, legitima-se a posto dos Estados de construir sistemas produtivos econômicos e sociais de cunho nacional que fujam parcialmente as flutuações de mercado. Devido a intervenção do Estado na economia, os setores econômicos protegidos e o sistema de câmbios fixos o keynesianismo torna-se a ideologia econômica que abona opções pró-intervencionistas no campo da economia, opções que inclusive eram vistas neste momento como cruciais ao desenvolvimento dos Estadosxi.

12

Assim, após a Segunda Guerra Mundial sua política se aprofunda e generaliza, atingindo seu ápice entre as décadas de 1950 a 1970 momento em que lhe são conformados seus limites, que terminaram por lhe caracterizar pela forma com a qual o Estado se relaciona com o mercado e com a família no que tange a aprovisionamento social. Além disso, o processo produtivo industrial certamente provoca a marginalização de determinados grupos de indivíduos e este processo haveria criado novas demandas de gastos públicos. Passou-se então de uma ideia funcionalista das finanças públicas para uma intervenção direta do Estado por meio de investimentos públicos e pela política de taxas juros e política fiscal que interviam indiretamente na economia incentivando um elevado consumo em uma política de rendas. Havia, neste período, uma crença implícita de que a ação redistributiva do Estado se harmonizava com o crescimento econômicoxii. As políticas de proteção social estão no cerne do Estado de Bem Estar Social e se tornam essenciais aos mecanismos macroeconômicos de natureza keynesiana, mesmo se integrando a diferentes maneiras de solidariedade que podem compor o Estado Socialxiii. A partir das crises ocorridas na década de 1970, ocorre também a crise do modelo Keynesianista que até então embasava as políticas do Estado de Bem Estar Social. Considerada, sobretudo pela crítica ultraliberal que ganhou força neste momento, uma crise fiscal, a convulsão instalada no seio do Estado de Bem Estar Social é fruto de uma crise de confiança nos mecanismos de regulação praticados no pós-guerra. A partir das décadas de 1970 e 1980 a noção de crise do Welfare State ganha proporções internacionais devido a uma crise financeira nos Estados e uma decorrente crise de legitimidadexiv. A ideia da crise fiscal se deveria a uma menor arrecadação frente a crise econômica, puxada pelas crises do petróleo, e a elevação da dívida diante de aumento dos juros e a pauta de gastos públicos tida como excessiva, passando a se sustentar a inviabilidade de manutenção do Estado de Bem Estar Social na nova fase do capitalismo. Isso porque o fim do padrão monetário de Breton-Woods torna os países muito mais vulneráveis ao movimento de capitais que fogem à sua esfera de atuaçãoxv. Somente a partir do enfraquecimento do Estado de Bem Estar Social é que se iniciaram estudos sistemáticos por parte das ciências sociais para explicar sua caracterização, seus processos de desenvolvimento e para qualifica-loxvi xvii. Harold Wilensky, uma das referências nas primeiras teorizações do Estado de Bem Estar Social, defende que sua essência reside na proteção oferecida pelo governo como um direito político e não como caridade. De modo que o Estado social é a institucionalização dos direitos sociaisxviii. Mary Ruggie, em sintonia com Wilensky defende que há um consenso entre os estudiosos do Estado de Bem Estar Social de que ele envolve algum nível de comprometimento do Estado numa tentativa de minimizar as

13

desigualdades sociais modificando a correlação de forças no mercadoxix. No entanto, não há um consenso sobre as causas que levaram a expansão do Estado Social após a Segunda Guerra, as teorias mais comuns para explicar sua ascensão e crise inevitavelmente trabalham com três elementos; a disponibilidade de um excedente econômico possível de ser redistribuído, o desenvolvimento econômico entre o final da guerra e a crise de 1970 proporcionando meios para essa expansão associado ao Keynesianismo, e o crescimento da centralização do governos durante o período de guerra o que aumentou a capacidade administrativaxx. Neste processo de abandono das políticas de bem estar social e da política econômica Keynesianista, é central a militância de organismos internacionais de gestão do capitalismo que levantam as bandeiras da crítica ultraliberal, juízo que chegou também aos círculos universitários e burocracias estatais. Segundo este entendimento o social tornou-se um peso para a economia e para toda a sociedade, desarticulando a competitividade internacional das economias avançadas e instituindo uma subtração inaceitável das riquezas. Diante da massiva campanha de descrédito nos países onde o Estado Social havia se desenvolvido melhor as mudanças não foram capazes de desarticula-los, ficando o seu desmonte mais efetivo nos países que sequer havia completado sua estruturaçãoxxi xxii. Certamente este fenômeno ocorre devido a maior capacidade de pressão desses organismos multilaterais de gestão do capitalismo nos países de economias periféricas. 2. As Políticas Neoliberais entram em Cena. A nova economia internacional exige uma disciplina orçamentária, monetária e fiscal que se torna uma preocupação de todos os governos, independentemente da posição que ocupam no capitalismo, mas continuando a financiar os direitos sociais alcançados pela população e cobrir despesas sociais acentuadas em momentos de crise. No Estado de Bem Estar Social essas medidas de coesão social são financiadas pelo governo, que se obriga a conviver com problemas gerados pelo aumento da expectativa de vida que prolonga o tempo de sobrevida dos aposentados, entrada mais tardia na vida ativa com o aumento dos anos de estudo e trabalho informal entre outros fatores que lhe forçam a recalibrar seus mecanismos. Assim, no Estado Social a preocupação é dupla, manter a disciplina em suas contas e financiar, com base em seu orçamento, um sistema de proteção social em desequilíbrio estrutural. Diante de um cenário de crise econômica internacional com flutuações que fogem ao controle dos Estados e lhes afetam profundamente devido ao fim do padrão monetário de Breton-Woods, a descrença nos benefícios do princípio redistributivo do Estado e descrédito da ideologia econômica do keynesianismo, além do engajamento de grandes organizações internacionais (FMI, BM, GATT, OCDE…) fez com que triunfasse a visão ultraliberal de que

14

o Estado deveria se retirar de certos campos e deixaram que o mercado operasse sem qualquer interferência, cabendo proteção social apenas aos indigentes e pessoas comprovadamente pobres. Desta maneira, a partir do início da década de 1980 os especialistas neoliberais tomam o cenário internacional como seu campo de trabalho por excelência. O grande argumento para justificar as análises e proposições que se dão com a confiança nas virtudes do mercado e das associações voluntárias, que irão crescer como nunca a partir daí, é a globalização. Seria ela o elemento capaz de justificar o posto residual ao qual caberia ao Estado e a política socialxxiii. Nos países ocidentais e periféricos do capitalismo as ideias econômicas liberais, que vão adquirindo importância ao longo das décadas de 1980 e 1990, criam uma forte pressão para o desenvolvimento de um programa de desregulação econômica e de privatizações, afirmando ainda, os efeitos negativos das políticas sociais para o desenvolvimento econômico 1. Essas políticas ferrenhas de adequação a nova economia política mundial ao longo da década de 1990 irão provocar efeitos desastrosos nos indicadores sociais e econômicos, desemprego galopante, taxas de pobreza que sobem ainda mais, aumento nos déficits de previdência, cortes orçamentários aprofundam a debilidade dos serviços públicos, sobretudo saúde e educação, ocorre uma queda da produtividade em detrimento do crescimento do capital especulativo e um aumento considerável dos preços de bens de consumoxxiv. Nesse cenário as organizações internacionais alteram radicalmente a lógica das políticas sociais. A partir de 1994, o Banco mundial, graças a sua função de credor internacional, torna-se a principal organização em matéria de política socialxxv. O objetivo redistributivo, defendido pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) é abandonado em detrimento de uma política de economia individual com políticas sociais restritas somente a aqueles muito pobres2. O modelo de proteção social defendido é composto por três pilares, sendo o primeiro custeados pelos impostos e por isso mínimo e obrigatório; o segundo composto pela iniciativa privada com serviços de previdência, seguros saúde, hospitais e escolas; e o terceiro apoiado na economia voluntária, desenvolvido através de Organizações não Governamentais (ONG’s) que foram profundamente incentivadas pelas ideias neoliberais. No que se refere ao sistema de saúde, vários países deixam de buscar um sistema de acesso universal conforme recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) por influencias do Banco Mundial e do FMI xxvi. Nas últimas décadas do século XX os organismos internacionais de gestão do capitalismo 1

Para mais detalhes ver relatórios da OCDE: La reforme des Régimes Públics de Pensions. Paris, 1988; The Future of Social Protection; La Nouvelle Politique Sociale. Paris, 1994. 2 Para mais detalhes ver publicações do Banco Mundial: Assistence Strategies to Reduce Poverty. Washington DC. 1991; The East Asian Miracle, 1993; Averting the Old Age Crisis; Policies to Project the Old and Promote Growth, 1994; From Plan to Market; Assessing Aid: What Works, What doesn’t and Why?. 1996.

15

assumiram o papel de paladinos das análises neoliberais em matéria de proteção social e de política de saúde. Somente após a virada do século, depois dos efeitos desastrosos das crises na Ásia e na América Latina é que esses organismos internacionais começam a admitir a necessidade de reforçar políticas sociais e de programas efetivos de combate à pobrezaxxvii. 3. As Vantagens Institucionais Comparativas do Estado De Bem Estar Social. A crítica ultraliberal encontrou terreno fértil no ambiente acadêmico, nos organismos internacionais e multilaterais de gestão do capitalismo e até entre as burocracias estatais xxviii

devido a tal situação produziu-se uma grande literatura apontando que programas de bem-

estar seriam nocivos ao desenvolvimento econômico e que indubitavelmente reduziriam a capacidade de competição no ambiente globalizado. O objetivo central desta seção é rebater tal crítica demonstrando como os programas de bem-estar podem constituir uma vantagem institucional comparativa mediante outros países e não uma desvantagem derivada de seus custos. Políticas de bem-estar inseridas na moderna economia com frequência se colocam em lugar de destaque frente a vantagens relativas ao baixo custo resultantes de pequenos níveis de tributação, gastos sociais acanhados ou de uma reduzida máquina públicaxxix. Na abordagem de Variedades de Capitalismo as firmas ocupam o lugar central na economia nacional, pois seriam mais engajadas que outros atores na atuação dentro das múltiplas esferas da política econômica, seja para alcançar financiamentos, para a regulação das relações de trabalho, na política de capacitação de mão-de-obra, para assegurar acesso à tecnologia, para competir por consumidores e para assegurar a cooperação de sua força de trabalho, entre outras questões de interface entre a produção e a vida política. Adotando uma visão relacional das firmas a perspectiva de Variedades de Capitalismo, define que o sucesso de cada uma dessas questões depende da eficiência da coordenação entre a firma e os demais atores. De maneira que a ponto central para as firmas é a coordenação de problemas. A coordenação, por sua vez, é apresentada em dois modelos distintos. No primeiro as economias de mercado, as firmas são coordenadas juntamente com outros atores primários em competitivos mercados, onde o equilíbrio dos resultados é ditado primeiramente pelos preços e sinais de mercado. No segundo modelo, as firmas são coordenadas com outros atores através de um processo estratégico de interação, neste caso o equilíbrio dos resultados depende do suporte institucional disponível para a formação de contratosxxx. Os mecanismos predominantes de interação estratégica das firmas (mercado e coordenação) são constituídos por diferentes legados institucionais que no ambiente nacional definem as condições em que se verificam os poderes de sanção dos atores sociais xxxi. Neste sentindo o Estado Social cumpre um papel econômico central, considerando seu impacto na

16

cooperação e coordenação de longo prazo entre agentes econômicos. Na ordem capitalista o Estado não é apenas mais um ator de interação das empresas. Ele é indispensável para o desenvolvimento da economia de mercado, é instrumento decisivo na execução das condições institucionais em que os processos de interação se realizamxxxii. A coordenação econômica de longo prazo pressupõe a presença de instituições que tornam os agentes econômicos capazes de empreenderem em investimentos duradouros e confiáveis, daí a essencialidade do Estado de Bem Estar Social, pois certamente ele, e não o Estado mínimo com sua reduzida capacidade de intervenção, é que será a instituição capaz de fornecer este suporte. Livres a sua própria sorte trabalhadores e empregadores normalmente não são capazes de criar instituições que possibilitem o estabelecimento de uma coordenação estável de longo prazo, o mais comum é que a intervenção do Estado nas relações de emprego é vital para estabelecer a coordenação econômica de longo prazoxxxiii. A coordenação econômica torna possível a criação de determinados nichos de mercado em que há pouca ou nenhuma concorrência de outros competidores, possibilitam os agentes econômicos a obterem retorno financeiro a partir de lucros oriundos de baixos custos de transação proporcionados por altos investimentos em estruturas específicasxxxiv. As políticas sociais se constituem como a área de atuação por excelência da intervenção estatal, seja de forma direta ou indireta. A vantagem econômica dessas políticas é dada porque o alto salário social cria uma pressão para empregadores e empregados que induz os agentes econômicos a buscarem estratégias de produção baseadas em elevadas habilidades profissionais e altos salários. Nas relações de emprego a intervenção do Estado possibilita formas de coordenação e cooperação que auxiliam as empresas a elaborarem estratégias que possibilitam obter lucros acima da média ocupando nichos e seguimentos de mercado protegidos da competiçãoxxxv. Essa situação torna possível o pagamento de salários acima do mínimo competitivo, de modo que o Estado Social não se torna um benefício apenas porque proporciona maior estabilidade e segurança frente as flutuações de mercado aos capitalistas, bem como seguridade social aos trabalhadoresxxxvi. Visto por este prisma o Estado de Bem Estar Social abrangente e orientado para o trabalho e mão-de-obra especializada é um fator de desestímulo ao engajamento das empresas em um “regime de leilão” reduzindo a mobilidade empresarial, além do investimento em qualificação previne o risco da acelerada desqualificação durante períodos de crise de emprego, estas são alguns fatores que favorecem as estratégias de longo prazo. A expansão dos gastos públicos é plenamente compatível com o alto nível de integração dos mercados mundiais e podem ainda conferir suporte para seu alargamentoxxxviixxxviii. As políticas sociais que favorecem

17

a criação de empregos de salário elevado e proteção ao desemprego, devem ser vistas como complementares as estratégias de produção com base no uso de habilidades específicas, porque favorecem a formação de um corpo de trabalhadores com incentivos para aquisição dessas habilidadesxxxix. Observando estas questões relacionadas a intervenção estatal, seja por meio de políticas sociais ou mesmo por incentivos ao desenvolvimento de setores estratégicos da economia, podemos compreender a vantagem comparativa potencial das economias que possuem um Estado ativo e empreendedor, um ator poderoso quando se trata de alterar as regras do jogo e estabilizar as flutuações de mercado. Já no que se refere as políticas sociais, elas podem ser tomadas como “equivalente funcionais” ao protecionismo, com o aditivo de assegurar um nível de bem-estar a sociedade como um todoxl. 4. Considerações Conclusivas. De posse da analise apresentada é possível compreender que o Estado de Bem Estar Social foi um dos movimentos de reação desintegração social causada pela afirmação do modo de produção capitalista. Este movimento dos Estados nacionais mostrou-se de grande valia nos momentos de crises. Contudo, diante de novos arranjos da economia internacional sua credibilidade foi abalada por uma lógica cartesiana e imediatista que ignora benefícios de longo prazo das políticas sociais, tomando-as apenas pelo fluxo de capitais que consomem. Diante do cenário atual da economia internacional marcada por expressivas flutuações e crises recorrentes, o Estado Social ainda se mostra de grande valia na redução destes efeitos nas economias nacionais, favorecendo a coordenação econômica de longo prazo, reduzindo as inseguranças de investimentos, elevando as habilidades profissionais e reduzindo a mobilidade empresarial. i

Adebiano Robert Rodrigues Pereira é licenciado em História, mestrando no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora na linha de pesquisa Poder, Mercado e Trabalho, bolsista CAPES. Orientador: Prof. Doutor Ignácio Godinho Delgado. Email: [email protected]. ii GINSBURG, Norman. Divisions of Welfare State; A Critical Introduction to Comparative Social Policy. London. Sage. 1993. p. 68. iii SWAAN, A. In Care of State. Cambridge. Policy Press. 1988. iv ESPING-ANDERSEN, Gösta. Welfare State na Nova Ordem Mundial. Lua Nova, nº 35, 1995. v DELGADO, Maurício Godinho; PORTO, Lorena Vasconcelos. O Estado de Bem Estar Social no Capitalismo Contemporâneo. In: Estado de Bem Estar Social no Século XXI. São Paulo – S. P. LTr, 2007. vi SOUZA, Zoraide A. de. A Organização Internacional do Trabalho - OIT. Revista da Faculdade de Direito de Campos. Ano VII, nº 9. Dez. 2006. P. 460. vii DELGADO, Maurício Godinho; PORTO, Lorena Vasconcelos. O Estado de Bem Estar Social no Capitalismo Contemporâneo. In: Estado de Bem Estar Social no Século XXI. São Paulo – S. P. LTr, 2007. p.22. viii KUHNLE, Stein. A Globalização e o desenvolvimento das Políticas Sociais. In: Estado de Bem Estar Social no Século XXI. São Paulo – S. P. LTr, 2007. p.92. ix KATZENSTEIN, Peter. Small States in world Markets; Industrial Policy in Europe. Itacha, N.Y. Cornel University Press, 1985.

18

x

ESPING-ANDERSEN, Gösta. Welfare State in Transition; National Adaptations in Global Economies. London: Sage, 1996. xi SHONFIELD, Andrew. Le Capitalisme Moderne. Paris. Gallimard. 1967. xii FARIA, Carlos Aurélio Pimenta de. Uma Genealogia das Teorias e tipologias do Estado de Bem Estar Social. In: Estado de Bem Estar Social no Século XXI. São Paulo – S. P. LTr, 2007. p. 34. xiii MERRIEN, François Xavier. O Novo Regime Econômico Internacional e o Futuro dos Estados de Bem Estar Social. In: Estado de Bem Estar Social no Século XXI. São Paulo – S. P. LTr, 2007. p.125. xiv MERRIEN, François Xavier. O Novo Regime Econômico Internacional e o Futuro dos Estados de Bem Estar Social. In: Estado de Bem Estar Social no Século XXI. São Paulo – S. P. LTr, 2007. p.133. xv EPSTEIN, Gerald. International Capital Mobility and the Scope for National Economic Management. In: State Against Markets; The Limits of Globalization. London. Routeledge. 2013. p. 159. xvi QUADAGNO, Jill. Teories of the Welfare State. IN: Annual Review of Sociology.vol, 13, 1987. xvii FARIA, Carlos Aurélio Pimenta de. Uma Genealogia das Teorias e tipologias do Estado de Bem Estar Social. In: Estado de Bem Estar Social no Século XXI. São Paulo – S. P. LTr, 2007. xviii WILENSKY, Harold. The Welfare State and Equality; Structural and Ideological Roots of Public Expenditures. Berkeley University California Press. 1975. p.1. xix RUGGIE, Mary. The State and Working Women; A Comparative Study of Britain and Sweden. Princeton University Press. 1984. p. 11. xx FARIA, Carlos Aurélio Pimenta de. Uma Genealogia das Teorias e tipologias do Estado de Bem Estar Social. In: Estado de Bem Estar Social no Século XXI. São Paulo – S. P. LTr, 2007. p. 34. xxi DELGADO, Maurício Godinho; PORTO, Lorena Vasconcelos. O Estado de Bem Estar Social no Capitalismo Contemporâneo. In: Estado de Bem Estar Social no Século XXI. São Paulo – S. P. LTr, 2007. p. 27. xxii MERRIEN, François Xavier. O Novo Regime Econômico Internacional e o Futuro dos Estados de Bem Estar Social. In: Estado de Bem Estar Social no Século XXI. São Paulo – S. P. LTr, 2007. p. 120. xxiii MERRIEN, François Xavier. O Novo Regime Econômico Internacional e o Futuro dos Estados de Bem Estar Social. In: Estado de Bem Estar Social no Século XXI. São Paulo – S. P. LTr, 2007. p. 132. xxiv THORP, R. Progress, Poverty and Exclusion; An Economic History of Latin America. Wasington DC. IADB, 1998. xxv DEACON, Bob. Global Social Policy. London. Sage, 1997. xxvi KOIVUSALO, M; OLLILA, E. Making a Haelthy World. London. Zed Books, 1997. xxvii MERRIEN, François Xavier. O Novo Regime Econômico Internacional e o Futuro dos Estados de Bem Estar Social. In: Estado de Bem Estar Social no Século XXI. São Paulo – S. P. LTr, 2007. p. 138. xxviii DELGADO, Maurício Godinho; PORTO, Lorena Vasconcelos. O Estado de Bem Estar Social no Capitalismo Contemporâneo. In: Estado de Bem Estar Social no Século XXI. São Paulo – S. P. LTr, 2007. p.27. xxix MANOW, Philip. As Vantagens Institucionais Comparativas dos Regimes de Estado de Bem Estar Social e as Novas Coalizões na sua reforma. In: Estado de Bem Estar Social no Século XXI. São Paulo – S. P. LTr, 2007. p. 171. xxx HALL, Peter; GINGERICH, Daniel. Varieties of Capitalism and Institutional Complementarities in the Political Economy. British Journal of Political Science nº 39. Vol. 3. P. 5. xxxi HALL, Peter; SOSKICE, D. Varieties of Capitalism. Oxford University Press. 2001. xxxii POLANYI, Karl. A Grande Transformação; as Origens da Nossa Época. Campus. 2º ed. 2000. xxxiii MANOW, Philip. As Vantagens Institucionais Comparativas dos Regimes de Estado de Bem Estar Social e as Novas Coalizões na sua reforma. In: Estado de Bem Estar Social no Século XXI. São Paulo – S. P. LTr, 2007. p. 174. xxxiv LANZONICK, Willian. Comparative Advantege on the Stop Floor. Cambridge. Harvard University Press. 1990. xxxv MANOW, Philip. As Vantagens Institucionais Comparativas dos Regimes de Estado de Bem Estar Social e as Novas Coalizões na sua reforma. In: Estado de Bem Estar Social no Século XXI. São Paulo – S. P. LTr, 2007. p. 175. xxxvi SWENSON, Peter. Arranged Alliance; Business Interests in the New Deal. In: Politics & Society 25. 1997. p. 69. xxxvii MANOW, Philip. As Vantagens Institucionais Comparativas dos Regimes de Estado de Bem Estar Social e as Novas Coalizões na sua reforma. In: Estado de Bem Estar Social no Século XXI. São Paulo – S. P. LTr, 2007. p. 184. xxxviii KATZENSTEIN, Peter. Small States in world Markets; Industrial Policy in Europe. Itacha, N.Y. Cornel University Press, 1985. xxxix HALL, Peter; GINGERICH, Daniel. Varieties of Capitalism and Institutional Complementarities in the Political Economy. British Journal of Political Science nº 39. Vol. 3. p. 15. xl RUGGIE, John Gerard. International Regimes, transactions, and Change; embedded Liberalism in the Postwar Economic Order. In: International Organization 36. 195-231. 1982.

19

O culturalismo da Faculdade de Direito do Recife e suas perspectivas acerca do pensamento jurídico brasileiro ADRIANA GOMES1 Resumo: A Faculdade de Direito do Recife no século XIX promoveu o ‘culturalismo’, que foi um movimento intelectual relevante para a formação do pensamento jurídico brasileiro. Por meio dele o Direito foi desvelado como um fenômeno real e cultural em que o homem tornar-se-ia a resultante de um processo cultural, indo de encontro ao pensamento positivista preeminente no oitocentos. A cultura se desvelaria como elemento imprescindível para a apreensão de valores que a ciência não seria capaz de compreender por si mesma. Dessa forma, seus pressupostos se afastariam do determinismo social dos seguidores de Auguste Comte. Palavras-Chave: Faculdade de Direito do Recife – Pensamento Jurídico Brasileiro Culturalismo



Abstract: The Faculty of Law of Recife in the nineteenth century promoted the 'culturalism', which was an important intellectual movement for the formation of the Brazilian legal thought. For it means the law was unveiled as a real and cultural phenomenon in which man would become the result of a cultural process, going against positivist preeminent thought in eight. The culture unveiling as an indispensable element for the apprehension of values that science would not be able to understand itself. That way, your assumptions fall away from the social determinism of Auguste Comte's followers. Key Words: Law School of Recife - Brazilian Legal Thought – Culturalism

As faculdades de Direito no oitocentos foram um meio disseminador do intelectualismo no Brasil, pois o ingresso a elas proporcionava o vislumbre ao acesso às carreiras nos cargos públicos, além da possibilidade de ascensão social e a viabilidade de se ter aquisição à cultura em geral por assegurar inúmeras perspectivas de consecuções profissionais nos meios aristrocráticos. As Faculdades de Direito foram institucionalizadas por meio da aprovação do projeto de 31 de agosto de 1826, que se converteu em lei em 11 de agosto de 1827. Primava-se pela instalação de dois centros dedicados ao estudo jurídico no Brasil, inicialmente em Olinda e São Paulo. As localizações geográficas das faculdades foram consideradas estratégicas por atenderem as necessidades dos brasileiros residentes no norte e no sul do país. As Faculdades de Direito de Recife e de São Paulo foram responsáveis pela formação de uma parcela significativa de intelectuais brasileiros oriundos, sobretudo, das camadas favoráveis da sociedade brasileira, cuja perspectiva era que contribuíssem na construção do 1

Doutoranda em História Política (UERJ); Docente (SEEDUC-RJ).

20

Estado brasileiro, a fim de possibilitarem a produção de uma intelectualidade própria com uma identidade e autonomia nacional, que não mais adviria das academias portuguesas e francesas.1 Porém, paradoxalmente, no momento inicial do funcionamento das Faculdades de Direito a autonomia intelectual que se preconizava não foi uma realidade. Uma vez que as ideias assoalhadas na academia, assim como diversos professores e até mesmo os próprios alunos foram importados da Europa, sobretudo de Portugal. As faculdades aceitavam sem obstáculos os estudantes europeus que não haviam conseguido o ingresso nas Faculdades de Coimbra e de Paris. A estrutura do curso de Direito era uma cópia do ensino jurídico de Coimbra, em que até os hábitos dos frequentadores da academia se assemelhavam. Segundo Rodrigo Naspolini2, apesar de descomunal os futuros bacharéis usavam indumentárias europeias na faculdade do Nordeste brasileiro, como o chapéu alto, o fraque e a sobrecasaca preta. Os cursos não tinham a excelência que se aspirava para cumprir o presumido propósito de construção do Estado Nacional. Havia intensas críticas quanto à qualidade de ensino, que perpassava pelo alto índice de desrespeito dos alunos e para a própria inabilidade dos magistrados que ministravam as cadeiras nas academias. Tais ações indicavam a minudência dos brasileiros nos costumes com os estudos e com discussões reflexivas. 3 Não obstante, era prestigioso ser bacharel em Direito. A busca pelo título apresentava um capital simbólico muito mais valorizado pelos brasileiros do que a própria formação com perspectivas de uma carreira academicista. Tanto, que apesar de já existirem no século XIX cursos superiores nas áreas da Economia, Engenharia e Medicina, e todos poderem ser denominados bacharéis no campo acadêmico, foram os graduados em Direito que se apropriaram da titulação e tiveram o reconhecimento na sociedade para assim serem denominados. Era a concepção do ‘bacharelismo’ formando-se um elemento com grande significância para se compreender a intelectualidade brasileira que estava em ascensão no oitocentos. A atividade jurídica e política dos bacharéis manifestava-se na sociedade em várias esferas, não se restringia somente nas questões da jurisprudência. Grande parte dos literários e jornalistas do país era oriunda de faculdades de Direito. Como afirmou Venâncio Filho, estas forneciam um dos principais instrumentos dos intelectuais que trabalhavam com a escrita e com a oratória: o domínio do discurso retórico. 4 O domínio da retórica era muito apreciado e considerado por se apresentar como uma “língua elegante [que] concerne a uma elite social”. Isto é, um habitus de um grupo social que

21

por meio da escrita e da oratória eloquente imbuída de recursos retóricos, diferenciava-se da maior parte da sociedade brasileira, por torná-lo possuidor de um código adquirido, sobretudo na formação acadêmica, com irrefutável legitimação de um bem de valor social. A ideia de habitus supracitada vem ao encontro às concepções do sociólogo francês Pierre Bourdieu, quando este se refere à habitus como um “sistema de

disposições

socialmente constituídas que, enquanto estruturas estruturadas e estruturantes, constituem o princípio gerador e unificador do conjunto das práticas e das ideologias características de um grupo de agentes”, que na especificidade da intelectualidade brasileira no oitocentos pode-se compreender que por meio da apropriação dos instrumentos dos recursos retóricos, se viabilizaria a operacionalidade de incorporação de disposições que os conduziriam, como indivíduos, a agir de forma harmoniosa com o histórico de um grupo de intelectuais com uma identidade já socialmente aceita. 5 O valor simbólico do domínio da retórica era tão representativo na sociedade brasileira oitocentista, que para o ingresso nas Faculdades de Direito um dos instrumentos de avaliação era a retórica. Além do seu domínio básico, os candidatos que deveriam ser maiores de 15 anos, também eram avaliados em exames de idiomas francês e latim, em filosofia racional e moral, aritmética e geometria. As diferenças no acesso à educação ficavam bastante evidentes nos níveis das avaliações, como já era de se esperar mediante as desigualdades sociais do Brasil, o desempenho daqueles que tiveram acesso aos seminários e aos colégios era assaz superior daqueles que não tiveram a possibilidade de arcar com os custos para a educação. 6 Segundo Clóvis Beviláqua, o acesso à Faculdade de Recife era precedido por um Curso Preparatório ministrado no Colégio das Artes – reminiscência do modelo da Universidade de Coimbra – onde ensinavam os idiomas e as áreas de conhecimento que seriam exigidas nos exames de ingresso na Faculdade de Direito, com ênfase às aulas da pleiteada retórica, além de poética, aritmética e geometria, história e geografia, metafísica, lógica e ética constituindo a cadeira de filosofia. 7 Vale ressaltar que, as faculdades de Direito também proporcionavam o acesso aos cargos públicos no Estado, por viabilizarem a entrada dos bacharéis nos “ambientes mais aristrocráticos” da sociedade brasileira. Dessa forma, a Faculdade de Recife tornar-se-ia um espaço acadêmico de grande relevância para os jovens do Nordeste brasileiro que buscavam a formação superior a fim de adquirirem o almejado prestígio social, político e profissional, principalmente para aqueles que viviam em meio às produções agrícolas de suas famílias latifundiárias, numa região de economia predominantemente agrária, porém muito importante para o país por ser foco de intenso comércio nacional e internacional.

22

A Faculdade de Direito do Recife contribuiu intensamente para discussões críticas sobre a sociedade, a sua contribuição foi tão significativa que deu origem a um movimento intelectual do país no oitocentos, denominado Escola de Recife. Entre os expoentes dessa Escola de relevante produção acadêmica, destacam-se os juristas Tobias Barreto de Meneses (1839-1889) e Silvio Romero (1851-1914). O movimento cultural “Escola de Recife”, surgiu na década de 60 do oitocentos e se estendeu até os anos 20 do século XX. O movimento pode ser considerado o prelúdio de ideias originalmente produzidas no Brasil sobre pensamento jurídico em adequação às propensas concepções evolucionistas do século XIX, tornando-se um revelador de produções intelectuais que transmutaram as fronteiras regionais do Nordeste brasileiro. Segundo Antônio Paim, a Escola de Recife abriu novos horizontes para o pensamento jurídico brasileiro por trazer à luz “toda a problemática da historiografia brasileira”, com a essencialidade de uma corrente filosófica.8 O movimento dos intelectuais de Recife vislumbrava combater as concepções jurídicas em voga naquele momento histórico, não somente para esboroar o ecletismo e refutar as suas antigas percepções, mas com o propósito de reformar costumes políticos diligentes no Brasil.9 Com essa acepção de refratar as concepções jurídicas do país, que Tobias Barreto foi o precursor do culturalismo. Uma corrente inicialmente filosófica, que após as interpelações de Silvio Romero também se tornou sociológica, em que a cultura passaria a ser considerado um elemento imprescindível para afastar o determinismo social de Auguste Comte, que tinha forte tendência no meio intelectualizado do país. Tobias Barreto compreendia que o homem era produto de um processo cultural e não de um produto natural como preconizava as ideias positivistas10. As concepções evolucionistas tiveram larga aceitação em Recife, sobretudo após apropriação de ideias de Haeckel, Buckle, Spencer, Darwin, Littré, Le Play, Le Bon e Gobineau por Tobias Barreto. Como um apreciador dos escritores germânicos, o sergipano também se inspirou nas obras do alemão Immanuel Kant (1724-1804) para encetar a nova corrente filosófica e jurídica, a quem a sua compreensão de relevância à abrangência da cultura muito se assemelha, na medida em que para Kant ao referir-se à mesma afirmava que “a produção, em um ser racional, da capacidade de escolher os próprios fins em geral e, consequentemente, de ser livre, deve-se à cultura”. 11 Tobias Barreto começou a apropriar-se das ideias de Kant por volta dos anos de 1886 e 1887, quando buscava encontrar ideias que pudessem contrapor com o positivismo, em larga ascensão no Brasil. Na concepção do sergipano, o positivismo representaria uma ruptura

23

abrupta no processo de constituição de uma consciência filosófica da nação e a sua resistência era para que a filosofia tivesse um espaço garantido nas discussões dos problemas do país. 12 Nesse sentido, uma das maiores contribuições de Tobias Barreto foi chamar à atenção para os escritos de Kant no contexto histórico de quase hegemonia do positivismo, do que propriamente divulgar as suas ideias com assertividade, pois segundo Mercadante e Paim, o próprio Tobias Barreto não tinha uma completa compreensão das obras Kantianas, porém sem desmerecer a sua contribuição por ter trazido à “deblateração uníssona” a possibilidade de confrontamento de concepções para a compreensão da sociedade brasileira. 13 Tobias Barreto contemplou a jurisprudência brasileira em 1884 com a publicação do livro Menores e Loucos em Direito Criminal, cujo lançamento foi por intermédio da editora Lammert & Cia, com a segunda edição publicada com o intervalo de apenas dois anos. A publicação deste livro cingiu a sua trajetória profissional, pois de acordo com Beviláqua, o impresso foi a consolidação do sergipano como um jurista, por revelar as suas “qualidades de pensador e de escritor e talvez, até, as qualidades de homem”. Contudo, Menores e Loucos em Matéria de Direito não evidenciou de forma sistemática as ideias de Barreto em direito penal, alguns conceitos e ideias apresentaram-se esparsas e colidiram de alguma forma com algumas de suas obras fragmentárias. 14 Na ocasião da publicação do livro, Tobias Barreto lecionava Direito Natural na Faculdade de Direito de Recife e o impresso era uma oportunidade para que as suas concepções jurídicas fossem amplamente divulgadas. Todavia, a percepção de Direito por Tobias Barreto já havia sido revelada desde 1882 na ocasião da publicação dos Estudos de Filosofia. O pensador sergipano compreendia o Direito como um “produto histórico, um produto cultural da humanidade”.

15

Porém, com a modulação do tempo e os saberes

adquiridos, o jurista complementou o seu entendimento de Direito, segundo Mercadante e Paim, com um “conjunto das condições existenciais e evolucionais da sociedade, coativamente asseguradas” pelo poder público. 16 Nessa ordem, as ideias da Antropologia Criminal que tanto entusiasmaram os intelectuais da Faculdade de Direito do Recife não eram precisamente aceitas por Tobias Barreto, cuja importância era ímpar na Faculdade nordestina. Apesar da Lilia Moritz Schwarcz17, afirmar que as teorias científicas deterministas eram efervescentes em Recife por meio da introdução simultânea dos modelos evolucionistas e social-darwinistas, que resultou numa “tentativa bastante imediata de adaptar o direito a essas teorias, aplicando-as à realidade nacional”, Tobias Barreto mostrou-se inúmeras vezes em seus escritos sobre Direito algumas

24

reticências e relutâncias às teorias de Cesare Lombroso (1835-1909), sobretudo as escritas na primeira edição de O Homem Delinquente pelo criminalista italiano. Ao seu ponto, o fato é que as concepções da Antropologia Criminal tiveram eco em Recife, porém não foram unânimes. Tão pouco houve unanimidade no campo jurídico brasileiro. Grande parte do movimento intelectual de Recife propalou com veemência as ideias da Antropologia Criminal, mas os intelectuais da Faculdade de Direito de São Paulo eram mais circunspectos às proposições lombrosianas. As ponderações destes intelectuais foram reveladas e debatidas, sobretudo, nos artigos de Direito Criminal publicados pela Faculdade de Direito de São Paulo. As proposições da Antropologia Criminal eram relativizadas pelos juristas do sudeste em seus artigos científicos por considerarem que nas suas considerações criminalistas havia um rijo determinismo racial que conduziria a certo exagero cientificista. 18 Tobias Barreto proferia críticas às concepções jurídicas sócio-naturalistas de Cesare Lombroso pelos excessos antropológicos aferidos pelo italiano para as acepções jurídicas. Barreto considerava que os argumentos de Lombroso desconsideravam a importância da posição e da análise do jurista em relação ao crime, colocando-o em condição secundária nas decisões de jurisprudência.19 Era a asseveração de intromissão em que o “psiquiatra [...] quer destronar o jurista”, além de pretender modificar “completamente as ideias tradicionais sobre o crime e o criminoso, derrogar de todo a intuição corrente do instituto da pena”. 20 Ademais, as ideias lombrosianas não conseguiram se impor e muito menos fazer eco na Alemanha, mesmo com todas as suas interpretações antropológicas em relação ao crime. E, sendo a Alemanha o país que, segundo Tobias Barreto, emergia o manancial de elaborações intelectuais por ser o local onde se emanava a verdadeira ciência, as ideias de Cesare Lombroso não obtiveram desprendidamente destaque na produção científica do pensador da Faculdade de Recife. Entretanto, a aproximação de Enrico Ferri (1856-1929) ao Cesare Lombroso possibilitou algumas reinterpretações em relação à Antropologia criminal, sobretudo pela inserção de algumas observações sociológicas às análises antropológicas, que em processo de adaptação foram gradativamente e discretamente se adequando sub-repticiamente aos olhares jurídicos do Tobias Barreto, que transigiu à ideia central das ideias lombrosianas referente ao atavismo, como uma perspectiva de entendimento da delinquência. Esta ideia central se figuraria no darwinismo, cuja apreensão estaria emergente no meio jurídico brasileiro nos anos finais do oitocentos.21

25

Era tão emergente no pensamento jurídico, que mesmo refutando as concepções criminalistas de Lombroso e até mesmo publicamente condená-las, Tobias Barreto em seu livro Menores e Loucos, argumentava que a gênese de um crime tinha como fatores impulsionadores os aspectos naturais e sociais, que atuavam em consonância com a própria vontade do criminoso. Afirmava com assertividade que o “crime era uma das mais claras manifestações da hereditariedade” e que por mais que um ato delinquente tenha sido propulsado por uma vontade individual, a motivação poderia ser atribuída, entre outros aspectos, às disposições da herança genética.22 Assim sendo, as concepções de Tobias Barreto mesmo com enfáticas negações acabava indo ao encontro de proposições lombrosianas. Um dos grandes legados de Tobias Barreto nas questões jurídicas foi justamente nos seus diálogos mesmo escamoteados com as ideias de Cesare Lombroso. O pensador de Sergipe compreendia que as causas naturais poderiam intervir na gênese de um crime e para a sua análise dever-se-ia recorrer à psicologia do crime e a tese das características físicas. Assim, Tobias Barreto antevia a contribuição da ciência do comportamento na interpretação de crimes e da delinquência. Porém, evidenciava que o caráter como um “capital herdado [...] pode modificar-se pelo próprio trabalho do indivíduo, pela ação das circunstâncias, pela influência do meio”. 23 Outrossim, Barreto interpretava que nada poderia ser totalmente determinado por mais natural que se pudesse pressupor e, metaforicamente, faz a analogia de uma pessoa com o curso de um rio, em que por mais lógico que se possa antever o seu caminho, sempre existe a possibilidade de desvios. E caberia ao Direito, sobretudo o Direito Penal, a “arte de mudar o rumo das índoles e o curso dos caracteres que a educação não pode amoldar [...] no sentido de adaptar o homem a sociedade, de reformar o homem pelo homem mesmo”. 24 Nessa ordem, o pensador da Escola de Recife atribuía um olhar peculiar à Antropologia Criminal, que mesmo sob-repúdios conseguiu assimilar algumas de suas concepções readaptando às suas apreensões intelectuais, sem sobremaneira anular o papel do jurista, pelo contrário, atribuiu ao mesmo um valor extraordinário que ultrapassaria a lucubrações lógicas e verídicas para uma análise mais pormenorizada que restabelecesse o direito violado pelo delito. Baseado na defesa social como justificativa para a ação repressiva do Estado, Barreto analisava o crime como um fato humano em uma anomalia social e que a pena não teria a ver com a ideia do Direito, mas sim como um instrumento de defesa social e a necessidade que lhe daria a fundamentação. 25. A sanção criminal seria baseada na responsabilidade moral, na vontade livre, mas esta vontade poderia ser propulsada por causas remotas e por diversas

26

motivações, entre elas o próprio atavismo. Neste ponto, mais uma vez, as suas divagações do Direito encontram diálogo axiomático com a Antropologia Criminal. A trajetória individual de Tobias Barreto até o seu ingresso na Faculdade de Direito proporcionava comoção entre os estudantes de Recife por destoar da trajetória da maioria dos jovens que ali estudavam cujas origens eram, em sua maioria, de famílias tradicionais e aristrocráticas do Nordeste. Tobias Barreto era um mulato de origem muito humilde do interior de Sergipe, que chegara a Recife em 1862 e passara por inúmeras dificuldades financeiras e por enfermidades, que retardaram o seu ingresso como estudante na Academia, que só ocorreu aos 25 anos de idade. Após várias tentativas frustradas de implementar reformas sociais por meio de sua titulação acadêmica, o intelectual nordestino intentou-se que o ingresso na docência da Faculdade de Direito de Recife poder-se-ia tornar a via de acesso para a execução das reformas que pleiteava para o país.26 O ingresso de Tobias Barreto na Faculdade de Direito do Recife em 1882 teve uma extraordinária importância para os estudantes pelo espírito de reforma que o sergipano figurava. Barreto também dispunha de uma excelente oratória com pleno domínio dos recursos retóricos, era um polêmico destemido e agressivo na alocução, além de entoar um discurso engajado com as causas dos mais pobres e dos mestiços do país. Por tudo isso, a juventude acadêmica o identificava como um representante e aliado. O concurso que enfrentara para o ingresso na carreira de lente na Faculdade de Direito foi extremamente acirrado, porém só foi o início de sua empreitada acadêmica cuja proposta audaciosa era emancipar a mentalidade brasileira. 27 Dessa forma, logo no ano seguinte ao seu ingresso como docente na Faculdade de Direito de Recife, Tobias Barreto se envolveu no processo eleitoral para representante acadêmico. O candidato dos estudantes era o poeta ‘abolicionista acadêmico’ Martins Júnior, que se opunha ao baiano Felinto Bastos, que era protegido pelo lente Seabra, considerado o mais reacionário dos professores. Com a ocorrência de fraude nas eleições acadêmicas que davam suposta vitória ao Felinto Bastos, os estudantes partidários de Martins Júnior foram às ruas e reuniram-se na república dos maranhenses com os líderes do ‘movimento abolicionista acadêmico’: Benedito Leite, Urbano Santos e Francisco José Viveiros de Castro. Os líderes redigiram um manifesto em repúdio à fraude atribuída ao seguidor de Seabra. O incidente desdobrou-se e deu origem a processos que deveriam ser respondidos pelos envolvidos no caso. Nesse ensejo, por meio da Congregação de Professores, Tobias Barreto intervém no caso em favor dos envolvidos no processo junto aos lentes José Higino e João Vieira. Acuado,

27

Seabra recorreu ao governo de Pernambuco que mandou processar alguns estudantes, escapando Martins Júnior e Francisco José Viveiros de Castro, entre outros. A Congregação dos Professores, com exceção dos professores supracitados, acabou por condenar dois estudantes à perda de um ano de estudos por participar de uma sublevação contra a instituição. 28 Tobias Barreto que representava para os jovens da Faculdade de Direito do Recife a possibilidade de renovação no pensamento filosófico da academia e até no currículo do curso, não se esquivava da representação que os estudantes lhe conferiram e tecia críticas severas ao ensino da academia nordestina, considerando, em 1883, que “o grau de desenvolvimento das doutrinas do curso, é duro e triste dizê-lo, mas é verdade, não esteve à altura que era para se desejar [...] com o extremo obscurantismo”. 29 Assim, para a geração dos estudantes do ‘movimento abolicionista acadêmico’ do Recife, Tobias Barreto era o representante de uma ideia, que mesmo ainda desconhecida, direcionava-os ao enfrentamento. O lente de Recife compreendia que somente mediante o arrosto se suplantaria uma opinião dominante no tempo, a audácia em desafiar seria a qualidade capaz de sobrepujar a minudência do Brasil no campo da ciência. 1

ADORNO, Sérgio. Os aprendizes do poder: o bacharelismo liberal na política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 162. 2 NASPOLINI, Idem, p. 4. 3 ADORNO, Sérgio, idem,p. 164. 4 VENÂNCIO FILHO, Alberto. Das Arcadas ao Bacharelismo. São Paulo: Perspectiva, 1982, p. 136. 5 BOURDIEU, Pierre. A Distinção: crítica social do julgamento. São Paulo/Porto Alegre: EDUSP/Zouk, 2007, p. 191. 6 SANTOS, Daniella; CASIMIRO, Ana Palmira. História do Ensino Jurídico Brasileiro. In: Revista Thesis Juris, São Paulo: v. 2, nº 1, p. 258-287, Jan/Junho, 2013, p. 273. 7 BEVILAQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito de Recife. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1927, p. 105. 8 PAIM, Antônio. A filosofia da Escola do Recife. 2ª ed. São Paulo: Editora Convívio, 1981, p. 174. 9 Idem, p. 78. 10 PAIM, Idem, p. 209. 11 KANT. Immanuel. Crítica da Razão Pura. São Paulo: Martin Claret, 1976, p. 83. 12 MERCADANTE, Paulo; PAIM, Antonio. Tobias Barreto na cultura brasileira: uma reavaliação. São Paulo: Grijalbo, 1972, p. 85-86. 13 Idem, p. 87. 14 BEVILAQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito de Recife. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1927, 114. 15 BARRETO, 1882, p. 106-107. 16 MERCADANTE, Paulo; PAIM, Antonio. Idem, p. 70.

28

17

SCHWARCZ, Lilia M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870-1930). São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 150. 18 NASPOLINI, idem, p. 7 19 BARRETO, Tobias. Estudos de Direito II: obras completas de Tobias Barreto. Aracaju: Record, 1991, p. 75. 20 BARRETO, Tobias. Menores e Loucos em Matéria de Direito. Aracaju: Edição do Governo de Sergipe, 1926, p. 74. 21 BRUNO, Aníbal. Tobias Barreto criminalista. In: Edições comemorativas das obras completas de Tobias Barreto. Aracaju: Record, 1991, p. 275. 22 BARRETO, Tobias. Menores e Loucos em Matéria de Direito. Aracaju: Edição do Governo de Sergipe, 1926, p. 11. 23 Idem, p. 74. 24 Idem, p. 75. 25 Idem, p. 149-151. 26 MERCADANTE, Paulo; PAIM, Antonio, idem, p. 51. 27 Idem, p. 65. 28 Idem, p. 72-73. 29 BEVILÁQUA, Clovis, idem, p. 250.

29

Mulheres no seringal: trabalho, cotidiano e resistência (1940- 1960) Agda Lima Brito1

Buscamos tratar da história de trabalho dessas mulheres nos seringais do Amazonas, seja dentro das colocações ou dos barracões2, com intuito de mostrar como viviam essas trabalhadoras, as dificuldades que enfrentaram e como essas vão resistindo, trabalhando com novas formas de sobrevivência dentro dessas regiões, através da produção da farinha, da coleta da castanha, da pesca, do trabalho de roça, práticas de curas, de assistência que vão sendo trocadas em seus cotidianos, buscando assim se tornarem menos dependentes do consumo nos barracões. A história das mulheres no Brasil começa a ganhar destaque por volta 1960, com o crescimento dos movimentos feministas, que acabam contribuindo para o crescimento dos estudos sobre a história das mulheres3. No Amazonas a história das mulheres ainda conta com o número de publicações recentes, o que não significa que o número de pesquisas acerca dessa temática não venha crescendo na região, sobretudo quando falamos de mulheres nos espaços da cidade Manaus4. No entanto se tratando das mulheres trabalhadoras nos seringais no Amazonas, encontramos alguns trabalhos tais como Heloísa Lara Costa5, Iraildes Caldas6 ambas são pioneiras acerca da pesquisa sobre a história das mulheres na região do Amazonas, vale ressaltar que agora com o crescimento da história oral, a historiografia regional tem voltado cada vez mais os olhos para dentro das matas, com isso para a história dessas mulheres, sendo campo fértil a ser explorado, tendo em vista a dimensão da região da Amazônia legal e das famílias que moram naquelas localidades.

1

Graduada em História na Universidade Federal do Amazonas, Estudante do Mestrado em História pela Universidade Federal Fluminense. Bolsista da Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado do AmazonasFAPEAM. 2 Colocações são chamados as casas onde viviam essas mulheres, juntamente com suas famílias e barracões é nome dado ao estabelecimento onde o seringueiro trocava borracha, castanha, farinha dentre outros produtos por ferramentas, remédios, comida, neste caso os barracões sempre elevavam os preços das mercadorias, a fim de aumentar a dependência desses trabalhadores aos barracões. 3 SOIHET, R. História das Mulheres e História de Gênero - um depoimento. Cadernos Pagu (UNICAMP), Campinas/ São Paulo, v. 11, p. 77-87, 1998. 4 UGARTE, Maria Luiza.(Org.) Gênero e imprensa na História do Amazonas. Manaus: EDUA, 2014. 210P. 5 COSTA, Heloisa Lara Campos da. As Mulheres e o Poder na Amazônia. Manaus: EDUA, 2005. 6 TORRES, Iraildes Caldas. As Novas Amazonidas. Manaus: Edua, 2005. 140p.

30

Para desenvolver a pesquisa, nos utilizamos de fontes orais, pois entendemos que essa metodologia nos permite analisar, neste caso, a experiência das entrevistadas nos seringais, conforme indica Portelli: A primeira coisa que torna a história oral diferente, portanto, é aquela que nos conta menos sobre eventos e mais sobre significados. Isso não implica que a história oral não tenha validade factual. Entrevistas sempre revelam eventos desconhecidos ou aspectos desconhecidos de eventos conhecidos: elas sempre lançam nova luz sobre ares inexploradas da vida diária das classes não hegemônicas (...) 7

Vale ressaltar que meu interesse pela história dessas mulheres, nasceu a partir de meu contato com as histórias de vida de minha avó Altina Lopes, uma das entrevistadas deste trabalho, suas narrativas que desde muito cedo me acompanham ao longo dos anos, deixando meus ouvidos aguçados para cada relato que minha avó contava no decorrer de nossa convivência, com isso resolvi desenvolver essa pesquisa, indo posteriormente coletar entrevistas de outras mulheres que trabalharam e passaram parte de suas vidas nos seringais do Amazonas, pois: Quando uma pessoa passa a relatar suas lembranças, transmite emoções e vivências que podem e devem ser partilhadas, transformando-as em experiência, para fugirem do esquecimento. No momento em que uma entrevista é realizada, o entrevistado encontra um interlocutor com quem pode trocar impressões sobre a vida que transcorre ao seu redor; é um momento no qual lembranças são ordenadas com o intuito de conferir, com a ajuda da imaginação, ou da saudade, um sentido à vivência do sujeito que narra sua história.8

Através do trabalho com a memória, levantamos essas questões, neste caso, a vivência dessas mulheres nos seringais, já que a memória envolve experiências, sensibilidade, construir este trabalho que de outra forma, não poderia ser realizado, os excluídos, os marginalizados, os sem-poder sim, têm voz, mas não há ninguém que os escute9, escutar e observar a humanidade dessas pessoas, algo que tão somente com periódicos não poderia ser regastado, dentro deste tema. Durante a pesquisa de campo que ocorreu na cidade de Manaus, procurei por mulheres que eram da segunda ou da primeira geração de cearenses ou por imigrantes PORTELLI, Alessandro (I). O que faz a história oral diferente. in Projeto História – Cultura e Representação. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História. SP: Educ. Fevereiro/1997. P 30. 8 SANTOS, Antonio Cesar de Almeida . Fontes orais: testemunhos, trajetórias de vida e história. 2005. P.3 9 PORTELLI, Alessandro. História Oral e Poder. Conferência no XXV Simpósio Nacional da ANPUH, Fortaleza, 2009 .p.2 7

31

cearenses, tendo em vista que durante a retomada do segundo ciclo da borracha no Amazonas, uma leva de imigrantes Nordestinos se dirigiu para a região para trabalhar, posteriormente com o fim da Segunda Guerra Mundial, a diminuição na produção da borracha e queda no valor desse produto, muitos imigrantes cearenses foram para a cidade de Manaus, em busca de oportunidades, estes por sua vez acabaram formando muitos bairros naquela região10. Foram entrevistadas sete pessoas, entre homens e mulheres, no entanto optamos por utilizar nessa pesquisa, quatro entrevistas de mulheres que trabalharam nos seringais da Amazônia. São elas: Ana Xavier Pinto aos 94, nascida no Seringal do Japurá, trabalhou na roça, com castanha, na pesca, fazendo farinha, na defumação da borracha, Francisca Diogo de Jesus nascida no seringal do Anori, de nome Auaçu, trabalhava com sua mãe na roça, na produção de farinha; Francisca das Chagas Ribeiro, nascida no seringal Hamburgo, no Baixo Solimões, acredita ter 84 pois foi registrada depois de grande na Igreja que ficava no seringal do Jutaí, trabalhava entre esses dois seringais, em Hamburgo e Jutaí, na defumação da borracha, no corte da borracha, serviços de roça, produção de farinha; Altina Lopes de Lima 79 anos migrante cearense, veio com sua família trabalhar no barracão, no seringal do Pauini, trabalhava tratando da caça, pesando borracha, descascando castanha pra pesar, em serviços de costura para os seringueiros, e por fim resolvemos inserir uma entrevista que se trata da seu Antonio Guimarães de 76 anos, nascido no seringal de Bela Rosa, no Purus, pois sua narrativa esta muito ligada aos serviços que realizava com sua mãe Hermogênia Guimarães, tais como trabalho de roça, de produção de farinha.

As mulheres nos seringais

O corte da seringueira para a coleta do leite era algo que exigia tempo e esforço, as árvores ficavam afastadas umas das outras, só o trabalho de recolher a seringa, poderia durar um dia e uma noite toda, depois transformariam o látex em pele da borracha, trabalho realizado nas colocações e teriam ainda que levar rumo aos barracões para realizar a pesagem e adquirir bens básicos, como comida e ferramentas, o que fazia aumentar sua dívida, visto que o seringueiro já chegava aos seringais devendo

a

Ver BENCHIMOL, Samuel. Amazônia: Um Pouco – Antes e Além Depois. Manaus: Ed. Umberto Calderaro, 1977.- LIMA, Frederico Alexandre de Oliveira. Soldados da Borracha, das vivências do passado às lutas contemporâneas. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal do Amazonas, Manaus, 2013. 10

32

passagem e as ferramentas para o patrão e através de contas que não paravam de crescer, por fim o seringueiro ficava preso ao seringal11. Se no primeiro momento, o seringal era um ambiente masculino, a chegada das mulheres modificou os modos de trabalho nestas localidades, que por sua vez, foram reorganizados com a formação dessas famílias, surgindo assim, novas formas de sobreviver nas colocações12. Segundo Freitas13 essas mulheres estavam longe de serem apenas donas de casa e mães de famílias, onde a figura do homem é o único responsável pelo sustento da casa, a autora destaca a questão da resistência da mulher quebrando esse domínio do marido e aprendendo a realizar trabalhos dentro da mata como o corte da seringa, pescar, com a roça, aprenderam a fazer remédios com ervas da floresta, dentre muitos outros saberes. À medida que vão criando uma autonomia dentro de seu relacionamento, com sua família, vão experimentando uma liberdade, como por exemplo, na tomada de decisões, vão estabelecendo canais importantes no ambiente doméstico e de trabalho14. Ellen Woortmann trata das mudanças estabelecidas nos seringais com a chegada das mulheres imigrantes no seringal por volta de 1940, visto que os seringalistas criavam estratégias de manter os seringueiros presos ao modo de trabalho, evitando que eles saíssem das colocações. Uma destas estratégias foi permitir a entrada das mulheres no seringal, o que vai ocasionar mudanças na organização e a certo ponto fazendo crescer os níveis de produção nos seringais15. Altina Lima, retrata sua chegada ao seringal do rio Pauini, onde veio a mando do irmão que trabalhava no barracão esta senhora imigrante nordestina, saiu do Ceará rumo ao Pauini, neste trajeto esteve em Fortaleza, em Belém viajando de barco com boa parte da família e mais oito famílias que os acompanharam. Olha que nos viemos de la, de fortaleza nos passemos uns dois meses esperando o navio, ai viemos em Belém nos passemos outro bucado de tempo, em Belém eu não me lembro o tanto que nos passemos... ai 11

Ver LEAL, D. A..Entre Barracões, Varadouros e Tapiris: os seringueiros e as relações de poder nos seringais do rio Madeira (1880-1930). Dissertação(Mestrado em Sociedade e Cultura) Universidade Federal do Amazonas, Manaus, 2013.P 207 12 WOORTMANN, Ellen F. . Família, Mulher e Meio Ambiente no Seringal. In: Ana Maria Niemayer; Emilia Pietrafeza Godoi. (Org.). Além dos Territórios: por uma troca entre a etnologia Indígena. Os estudos rurais e estudos urbanos. 1ed.São Paulo: Editora Mercado das Letras, 1998, v. 1, p. 1-50. 13 FERREIRA, Maria Liége Freitas. Mulheres no Seringal: submissão, resistência, saberes e praticas( 1940-1945). VIII Simpósio Internacional Processo Civilizador, História e Educação. Paraíba, 2004. 14 Ibidem, p.p 6-15 a 24.

33

nos ficamos la esperando pra vir embora, olha naquele tempo era tão difícil pra gente vir pra ca que nos passamos uns seis meses la na hospedaria esperando passagem pra poder vir... É por que meu irmão tava La minha filha, meu irmão morava aqui mandou buscar nós, foi o tempo que o Ceará ficou seco não chovia passou dois anos sem chover, ai assim olha passou dois anos pra você ver como é que é, passou dois anos sem chover...16

Em decorrência da seca que assolava o Nordeste, a família de Altina como muitas outras famílias cearenses, optaram por migrar para região do Amazonas, neste período o índice de evasão no Ceará aumentava e muitos imigrantes, sobretudo cearenses viram na região do Amazonas uma forma de recomeçar suas vidas, sobre tudo na década de 194017, quando as políticas varguistas, buscavam atrair mão obra para trabalhar nos seringais, visando a extração da borracha para a exportação para o mercado Norte Americano, no entanto esses trabalhadores e trabalhadoras ao se dirigirem para o Amazonas, se encontraram em uma situação não muito diferente da do inicio do século XX, no trabalho de Frederico Alexandre18 este demonstra que o soldado da borracha migram para a Amazônia, respaldados por contratos, que garantiriam a manutenção do trabalho que seria exercido pelos mesmos, segundo o autor, ouve toda uma propaganda em torno disso, no entanto ao chegar aos seringais a realidade foi de abandono dentro dos interiores da região. As mulheres vindas de outras regiões ou nascidas nos seringais, dentro das colocações, desde muito cedo já tinham uma rotina de trabalho, contanto com o tempo para que cada coisa, para cada colheita, para o corte da seringa, percebemos como os modos de trabalho ainda estão vivos na memória dessas mulheres, já que o cotidiano de trabalho nos seringais dessas mulheres estava em torno de sua sobrevivência nas colocações e nos barracões, as que trabalhavam nas colocações ao mesmo tempo em que trabalhavam para o seringalista, experimentavam a liberdade criando suas formas de resistência, pois segundo Gerson: A diferença é que no mundo em que vivem, os personagens dessas histórias ganham forma no silêncio, na solidão e nos seus modos de relacionamento com a floresta. Em sua compreensão de mundo, 16

LIMA, Altina Lopes Lima. Altina Lopes Lima. depoimento [08 Maio. 2013]. Entrevistadora: Agda Lima Brito, Manaus: Amazonas, 2013. 17 Ver BENCHIMOL, Samuel. Amazônia: um pouco – antes e além depois. Manaus: Ed. Umberto Calderaro, 1977. Cap. II Nossa gente: Ex - Antes e Ex-Post: O perfil antropogeográfico do “Cearense” Imigrante na Amazônia. P142 a 389. 18 LIMA, Frederico Alexandre de Oliveira. Soldados da Borracha, das vivências do passado às lutas contemporâneas. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal do Amazonas, Manaus, 2013.

34

eles ganham concreticidade porque se articulam com os significados da preservação da existência humana, com suas tradições e valores, significados que fazem parte de seus modos de vida em constante reelaboração.19

Dentro da reflexão de Gerson Albuquerque20, acerca da história de resistência desses trabalhadores do rio Muru, de suas vivencias na mata, uma história de lutas, de solidariedades entre essas famílias, onde estes dentro do

seus

territórios

de

trabalho, a mata, buscam estratégias de burla o sistema, desviar a produção e negociar longe dos olhos do patrão, fugas, reivindicações por melhores preços, tudo isso simboliza a resistência nas colocações, dentro de suas experiências de trabalho, rompendo com o medo presente e gesticulando formas de reação contra os patrões21. Ana Xavier22, durante todo seu relato demonstra uma insatisfação visível com os patrões, esta que tinha uma rotina constante de trabalho em meio à mata, demonstra a todo instante revolta com o domínio exercido pelos patrões ao mesmo tempo que através de sua produção, burlava o sistema imposto pelo patrão vendendo para o regatão23: Mas la era uma miséria de vida, uma pobreza, só o patrão que tinha dinheiro e quem tirasse um quilo de borracha pra vender fora, ele botava pra rua... Vendia, eu, meu cunhado, um irmão meu, irmão não, irmão do meu marido e eu, meu marido, todos os dois cortava seringa, eles fazia um príncipiozinho24, escondia e ia esperar o regatão, la na outra praia e vendia, la ele ia... é que nos podia comprar uma roupa mulher, uma roupa melhorzinha.25

Essas mulheres começam a buscar outras formas de se manter fora das dependências dos barracões, além da borracha, a castanha, a farinha, a roça são exemplos claros de mercadorias que eram vendidas nos regatões e também armazenadas para consumo próprio, as criações de pequenas hortas, inicialmente a mulher também trabalha na extração da seringa, mas somente nas seringueiras perto das colocações por 19

ALBUQUERQUE, G. R.. Trabalhadores do Muru: o rio das cigarras. 1. ed. Rio Branco - Acre: Editora da Universidade Federal do Acre - EDUFAC, 2005. v. 01. P.60 20 ALBUQUERQUE, G. R.. Trabalhadores do Muru: o rio das cigarras. 1. ed. Rio Branco - Acre: Editora da Universidade Federal do Acre - EDUFAC, 2005. v. 01. P.177 21 Patrões são os donos dos seringais, seringalistas. 22 PINTO, Ana Xavier. Ana Xavier Pinto. Depoimento [15 Novembro. 2013]. Entrevistadora: Agda Lima Brito, Manaus: Amazonas, 2013. 23 negociantes fluviais que vendiam mercadorias aos seringueiros a um preço mais baixo que os do barracão 24 Principiozinho é principio início de borracha. 25 PINTO, Ana Xavier. Ana Xavier Pinto. depoimento [15 Novembro. 2013]. Entrevistadora: Agda Lima Brito, Manaus: Amazonas, 2013.

35

causa dos filhos e com as ferramentas velhas doadas pelo marido 26, Ana Xavier após a morte do pai, começa a corta a seringa nas regiões mais afastadas e continua a vida de seringueira até mesmo depois de casada: (...) por que o serviço mais pesado que tinha, era você corta seringa, brincadeira mana eu saia de madrugada, o Anibal (marido de Ana Xavier) saia duas horas da Madrugada pra estrada, dava um rodo, quando chegava oito horas do dia chegava em casa, ai almoçava, ficava um pedacinho virava pra trás, chegava em casa quatro horas, quatro e meia, com o leite, ia colher, ai ia defumar27, guardava, botava a borrachinha la, vamos pro lago, vamos mariscar...28

A rotina dessas trabalhadoras é responsável pela manutenção de sua família, se organizando de modo que envolvia toda família nos afazeres diários, trabalho esse que se fazia necessário, tendo em vista que o seringueiro passa muito tempo fora na realização deste e outros serviços, como são responsáveis pela manutenção de suas famílias, muitas cortam seringa perto das colocações como foi dito acima, essas mulheres também eram responsáveis pelo serviço de defumação Francisca Ribeiro evidencia esse serviço: (...) ele cortava seringa e eu ficava em casa com os meninos, ai quando era de tarde que ele chegava com o leite, ajudava ele defumar, fazia borracha (risos) defumar ne, no tapiri29 ne, ai deixava nos defumando eu mais o Jucelino (filho de Francisca) e ele ia atrás de matar um bicho pra nos cume, caçar, ai quando ele chegava nos já tinha acabado de defumar a borracha, ai no outro dia ele saia quatro horas da madrugada pra cortar, ele ia cortando e ia botando aquela tigelinha na arvore ne, ai quando acabava de corta tudinho meio dia ele voltava colhendo já o leite no balde ne, ai quando ele chegava, já era de tarde ne, uma quatro horas ele chegava com o leite, ai ele, deixava nos defumando eu mais o Jucelino (filho) e ele ia atrás de uma comida, mata uma caça pra nos jantar...30

Existiam as implicações da defumação, levando em consideração que muitos foram os trabalhadores adoeceram com problemas pulmonares, malária, sofriam de desnutrição devido à falta de consumo de alimentos frescos, pois mesmo morando na mata, somente tinham tempo para o corte da seringa, os preços do instrumento para caçar ou pescar eram muito altos, o que faziam com que consumissem 26

somente

Ibidem,p. p. 12 -14, 34. Abrigo onde a seringueira, defuma borracha. 28 PINTO, Ana Xavier. Ana Xavier Pinto. depoimento [15 Novembro. 2013]. Entrevistadora: Agda Lima Brito, Manaus: Amazonas, 2013. 29 Espécie de prensa ou espremedor de palha trançada usado para escorrer e secar raízes 30 RIBEIRO, Francisca das Chagas. Francisca das Chagas Ribeiro. depoimento [10 Fevereiro. 2014]. Entrevistadora: Agda Lima Brito, Manaus: Amazonas, 2014. 27

36

produtos dos barracões31, percebemos aqui com as mulheres auxiliando nos serviços nas colocações tais como defumação, coleta de seringa agora estas famílias conseguiam ter tempo para caçar, para por roça, diminuindo o consumo nos barracões, não estamos aqui afirmando que os produtos deixaram de ser consumidos por essas famílias, estamos evidenciando que essa nova divisão de trabalho e também algumas práticas que eram mantidas por essas mulheres possibilitaram uma nova forma de quebrar com a dependência desses produtos do barracão, que ao serem comprados aumentavam a dívidas dessas trabalhadoras e trabalhadores. Seguimos com esse pensamento ao percebemos, por exemplo, que a lida na roça, a produção da farinha pra troca e consumo, a castanha todos foram evidenciados como um trabalho muito pesado, cansativo e muito bem separado entre serviço do homem e da mulher, juntamente com as crianças, conforme percebemos no depoimento de Francisca Diogo ao descrever um dos processos de fazer a farinha era realizado por sua mãe, juntamente com seu auxilio: Era outro serviço, em roça, ela fazia roça, e ai a gente faz o roçado e depois planta maniva, ai chega o tempo ela vai colher ne, ai dali que sai a farinha, da maniva, ai ela cria uma batata ne, ai daquela batata que sai a farinha, era o serviço dela era esse, o dele era de seringueiro e o dela era em roça...Era , era, da farinha saia a goma, farinha de tapioca, fazia, é (pausa), farinha de tapioca, qualquer coisa que você quisesse fazer, pé de moleque que chama... mas a farinha era bem complicada ne, você põem uma parte de molho dentro da água, que é pra poder pra ela amolecer, ai você vai arrancar outra parte e raspa, ceva, no cevado, ai depois você mistura aquela farinha que ta raspada com aquela que ta mole, que amoleceu, ai depois disso a gente coloca dentro de um tipiti 32que chama tipiti, ai depois coloca pra escorrer a água, depois que escorre aquela água, ai você vai peneirar tudinho, aquela massa, vai peneirar ela, depois que ela ta peneirada, ai você já fez o fogo, embaixo do forno, ai você vai jogando aquela massa, aos poucos assim, vai jogando vai mexendo, vai jogando vai mexendo, com pouco fogo, ate ela ficar torradinha, ai depois que la, ficar torrada já ta pronta, ai já ta boa...33

Antonio Guimarães evidencia o processo de fazer a farinha em que sua mãe trabalhava, diferente do primeiro depoimento, neste caso contava com a ajuda de toda família: 31

WOORTMANN, Ellen .Família, Mulher e Meio Ambiente no Seringal. In: Ana Maria Niemayer; Emilia Pietrafeza Godoi. (Org.). Além dos Territórios: por uma troca entre a etnologia Indígena. Os estudos rurais e estudos urbanos.São Paulo: Editora Mercado das Letras, 1998. P.12 - 14 32 Espécie de prensa ou espremedor de palha trançada usado para escorrer e secar raízes 33 JESUS, Francisca Diogo. Francisca Diogo Jesus. Depoimento [06 Abril. 2014]. Entrevistadora: Agda Lima Brito, Manaus: Amazonas, 2014.

37

Nessas alturas, os adultos era torrar a farinha no fogo, puxar roda, puxar roda era pra cevar, manual ne, puxar roda, botar a massa feita na prensa, pra espremer pra secar ela, pra poder peneirar e dai pra torrar, o serviço era isso, aquela mulherada tudinho na, embaixo da casa de farinha um galpão grande e coberto de palha, descasca tudinho, lava e vai dois homens pra roda e um cevando, cevando, aquela massa vai pra prensa, acocha ela um terminado tempo uns minutos, meia hora, ai ela seca aquela água, ai suspende aquele pau que imprensa ela, ai vai pra peneira peneirar, ai é que vai pro forno pra torrar isso é o serviço da farinha...”34

Dentro de todas essas etapas, percebemos o grau de exigência desses processos, tendo em mente que sem a ajuda de toda família (em alguns casos de ajuda de outras famílias), neste processo a participação maior eram das mulheres e crianças, já que o homem passava horas dentro da mata cortando seringa e quando não estava no tempo de cortar, estes auxiliava em outros serviços, buscando fabricar sua farinha para o consumo ou para trocar nos regatões, evitando compra-las no barracão. Como afirma: “Podia plantar mandioca, nos fizemos uma casinha de farinha, ai nos plantava mandioca, fazia farinha, ninguém comprava farinha... era cara que só o diacho”. 35 O processo da castanha também demandava tempo e disposição; “Ela (mãe), ele (pai) trabalhou também, a castanha é o mesmo que a seringa, você sai de manhã, ai vai colhendo a castanha, vai colhendo, leva um paneiro36, pegando a castanha vai botando na costa assim, dentro do paneiro ne, ai enche o paneiro e vem despeja no lugar, ai quando ele termina de colher aquela castanha, debaixo da castanheira, ai ele vai quebrar corta tudinho, com terçado, cortando e vai colocando no paneiro, vai cortando, quando enche o paneiro é, ai ele vai lavar, a castanha, lava tudinho, ai sai aquela castanha aquela castanha que não presta ne, ai fica só as boas, ai ele vende, ai vai vender em caixa, eles trazem na canoa ne, ai chega la eles vende assim, em caixa...37

Em sua maioria, era um serviço realizado por mulheres, neste caso quem faz a colheita da castanha é o pai e a mãe da entrevistada, no entanto devemos nos atentar para o fato de que agora a seringa não era cortada, fora desse período de colher o leite

34

GUIMARÃES, Antonio. Antonio Guimarães. depoimento [06 Abril. 2014]. Entrevistadora: Agda Lima Brito, Manaus: Amazonas, 2014. 35 PINTO, Ana Xavier. Ana Xavier Pinto. depoimento [15 Novembro. 2013]. Entrevistadora: Agda Lima Brito, Manaus: Amazonas, 2013. 36 Pequeno cesto de vime com duas asas 37 JESUS, Francisca Diogo. Francisca Diogo Jesus. depoimento [06 Abril. 2014]. Entrevistadora: Agda Lima Brito, Manaus: Amazonas, 2014.

38

da seringueira, faziam serviços de retirar à castanha, segundo dona Francisca, castanha não dava todo tempo, tinha um tempo para tudo 38. Essas castanhas além de serem usadas para o consumo, também era trocadas por outras mercadorias nos barracões, Altina trabalhadora do barracão salienta o trabalho que realizava quando recebia essas mercadorias, tais como castanha, caça, borracha: (...) ai eu ia pro barracão passava a noite todinha que Deus dava, das seis da manhã as seis da noite, as seis da noite ia medindo castanha no batelão39, por que la tudo tinha que chegar e receber e contar quantas latas, medir, pra poder pagar o freguês40 ne, o freguês cortava seringa, fazia tudo, as vezes minha filha tinha o barracão la, tinha o barracão em cima e embaixo tinha o flutuante, aquilo flutuante era de botar as coisas quando chegavam em cima, por acaso a borracha, a castanha, a gente tinha dia que eu passava a noite todinha nesse flutuante, recebendo castanha, pesando borracha, era eu e o Benjamin, nos sofremos muito nos dois, por que quando ele(irmão de Altina) saiu ele dizia mana eu confio em vocês...41

Vale ressaltar que Altina fica responsável por todo serviço pesado do barracão, em virtude da prisão de seu irmão, está acaba por assumir todo o serviço do barracão, juntamente com seu irmão mais novo Benjamin, podemos percebe como o serviço dentro dos barracões também era pesado, além disso, está não tinha contato com dinheiro, que ficava com o patrão, dono do seringal, por isso algumas vezes Altina retrata que sofreu enfrentamento por parte dos fregueses. (...) ai tinha freguês que chegava la queria que nos vendesse mercadoria pra eles sem a gente ter ordem de vender, uma vez o cara chegou eu peguei um pedaço de pau eu disse pra ele olha se é homem se você subir aqui no barracão, ele disse que ia entrar e ia tirar as coisas de dentro do barraca, precisa você ter três culhões, por que você não vai tirar nada aqui do meu irmão(...) eles iam querer que gente pagasse o dinheiro pra ele ou pagasse em mercadoria e nos não ia fazer isso, nos não tinha ordem pra fazer isso, não era que a gente não queria fazer, a gente não tinha era capacidade de fazer botar aquilo na mão dele sem ter uma.42

As explorações aconteciam dentro do barracão também, conforme evidencia Ana Xavier, seus pais eram cearenses, seu pai trabalhou nos barracões, pois sabia fazer 38

JESUS, Francisca Diogo. Francisca Diogo Jesus. Depoimento [06 Abril. 2014]. Entrevistadora: Agda Lima Brito, Manaus: Amazonas, 2014. 39 Embarcação de madeira, empregadas para transporte de cargas. 40 Freguês, nome dado aos seringueiros. 41 LIMA, Altina Lopes Lima. Altina Lopes Lima. Depoimento [08 Maio. 2013]. Entrevistadora: Agda Lima Brito, Manaus: Amazonas, 2013. 42 LIMA, Altina Lopes Lima. Altina Lopes Lima. Depoimento [08 Maio. 2013]. Entrevistadora: Agda Lima Brito, Manaus: Amazonas, 2013.

39

contas, ficou cego, acabou morrendo, ela e sua família não recebeu nenhuma assistência por parte dos patrões e ela e seus irmãos, tiveram que cortar seringa para sobreviver nas colocações. Os modos de sobrevivência são retirados do meio onde vivem, são as relações com a mata e os saberes adquiridos que possibilitam essas trabalhadoras, construir novas formas de resistir ao patrão, entender o tempo para a realização de cada trabalho, observar quando vai nascer fruta, quando é bom para caçar, são ensinamentos que vão sendo passados por gerações através da oralidade 43. A lida na roça era referente principalmente ao cultivo da farinha, levando em consideração as fontes, milho, feijão, tabaco, passaram a ser cultivados nesse período, no entanto a memória dessas pessoas, esta muito presente no processo de plantio e colheita da mandioca, justamente por que este é um trabalho não diferente dos demais, que necessita da cooperação, principalmente das mulheres que preparam o solo para o plantio e cuidam daquele roçado. A farinha é uma das muitas formas de resistência que essas famílias buscam como alternativa, para não comprarem no barracão, com queda na borracha e constante oscilação de preço desse produto, os produtos do barracão iam ficando cada vez mais caros: Se era caro, tudo era uma carestia doida mana, se levasse qualquer outra coisa, fora da borracha se comprar, se comprar era pela hora morte, agora o que eles queriam vender era caro, ali era caro, não era brincadeira não, agora a borracha na mão deles dava dinheiro, eles comprava borracha da gente um pouco mais nada, ia vendia para aquela turma, para aqueles ricos, eu sei que era segundo feito... 44

No entanto os trabalhadores do seringal, sempre buscaram burla o sistema, as mulheres vão ser as principais responsáveis por esconder essas mercadorias, para que pudessem ser vendidas. Evidente que estas famílias sofriam pressões por parte do patrão, tudo que feria a ordem do barracão, em uma lógica de exploração onde o oprimido, não conseguia ter os bens básicos para a sobrevivência de sua família, ou seja, para as mulheres que cuidavam das colocações, encobriam a venda de produtos por fora, faziam roça, cuidavam das crianças, cortavam seringa, a rotina de trabalho exaustiva e necessária 43

ALBUQUERQUE, Gerson Rodrigues. Trabalhadores do Muru, o rio das cigarras. Rio Branco; EDUFAC, 2005.p.38-39. 44 PINTO, Ana Xavier. Ana Xavier Pinto. Depoimento [15 Novembro. 2013]. Entrevistadora: Agda Lima Brito, Manaus: Amazonas, 2013.

40

sobre constante preocupação com o patrão, que poderia, se ele pegasse vendendo borracha, expulsava e confiscava toda a produção daquela família, dentre outras práticas violentas, com esse trabalho coletivo, que se faz possível com e chegada dessas mulheres, a rotina, o cotidiano e a companhia dentro da mata, das colocações, se tornava mais ameno, surgindo assim outras formas de resistência naquele espaço de trabalho.

Cotidiano, lazer e resistência

Muitas mulheres enfrentam dificuldades no seringal, como a questão do parto, encontramos registros de que o marido que vai ajuda – lá no parto ou estas tem seus filhos sozinhas dentro das colocações, tendo em vista que havia parteiras, mas não em todas as localidades do seringal, muitas acabam morrendo no parto.45 (...) eu nasci nesse tempo, quando dia de sábado, ia tudo pra mata, ia dormi na mata, na casa daqueles vizinhos mas longe, com medo deles, ai a mamãe tava grávida de mim, ate que um dia ela saiu, chegou na casa de um preto que tinha la, que era la, la, eu nasci la, na caso do nego velho...46 Em casa, nesse tempo não tinha esse negocio de doutor não minha filha, era mocinha paria era sozinha, não tinha doutor não...47

Segundo Benedita Celeste estas mulheres terapêuticas, para exercerem seu oficio, criam uma relação de afetividade com os doentes, as grávidas são acompanhadas desde muito cedo, no inicio da gravidez, a parteira já visita constantemente esta mulher, oferecendo a ela as condições de medica popular, para estas comunidades onde a medicina oficial não chega, regiões afastadas, estas rezadeiras, parteiras, curandeiros desempenham o papel de solidariedade, afetividade com os membros dessas comunidades48. As práticas e saberes destas mulheres vão se consolidando ao longo dos anos no meio de uma clientela que confia no poder de suas palavras, de suas ervas, de suas orações e de suas mãos; daí não por que são historicamente rotuladas pela medicina oficial como “curiosas”, “praticas”, “comadres”, “leigas”. Por outro lado,

45

WOORTMANN, Ellen .Família, Mulher e Meio Ambiente no Seringal. In: Ana Maria Niemayer; Emilia Pietrafeza Godoi. (Org.). Além dos Territórios: por uma troca entre a etnologia Indígena. Os estudos rurais e estudos urbanos.São Paulo: Editora Mercado das Letras, 1998. 46 PINTO, Ana Xavier. Ana Xavier Pinto. Depoimento [15 Novembro. 2013]. Entrevistadora: Agda Lima Brito, Manaus: Amazonas, 2013. 47 RIBEIRO, Francisca das Chagas. Francisca das Chagas Ribeiro. Depoimento [10 Fevereiro. 2014]. Entrevistadora: Agda Lima Brito, Manaus: Amazonas, 2014. 48 PINTO, Benedita Celeste de Moraes..Filhas das Matas: práticas e saberes de mulheres quilombolas na Amazônia Tocantina. (CIP) UFPA, Belém: Açaí, 2010.P. P.51 -106

41

através dos dons que dizem possuir, tornam – se confiáveis, dignas de curas e “milagres” no meio em que atuam.49

Carlos Alberto de Souza no livro Aquirianas50, destaca as mulheres que vivem e trabalham nas florestas do Acre, estas desempenham esse papel de parteiras, curandeiras através da medicina popular com relação direta com a natureza, fazendo remédios naturais: O conhecimento sobre a mata, adquirido no cotidiano, no trabalho, nos passeios, no plantio dos roçados com outras mulheres, fez com que as seringueiras aprendessem uma prática medicinal que pudesse curar suas doenças, as dos filhos e as dos maridos, realizando partos, levadas pelas necessidades51.

Estas pesquisas demonstram uma realidade comum dentro da região do Amazonas, levando em consideração que são áreas afastadas, o trabalho dessas mulheres terapêuticas que trabalharam nas colocações funcionava como uma alternativa para aquelas famílias não tinham condições de adquirir remédios nos barracões. O fato é que estas mulheres estavam presentes na mata, e sendo aceitas ou não, a necessidade de sobreviver neste espaço levou-as a realizarem inúmeras tarefas e funções. Benzedeiras, rezadeiras, parteiras, curandeiras e até feiticeiras foram algumas das profissões adotadas por elas.52

No entanto, por se tratarem de práticas herdadas, aprendidas, é evidente que em muitas regiões do interior não eram encontradas com tanta facilidade, até por que, se trata de algo que cria laços, uma relação das parteiras com a comunidade, é necessário uma vivencia para que tudo corra bem, com a tensão continua de agentes da saúde sobre essas mulheres que exercem esse oficio, estas se sentem intimidadas, no entanto estes não podem impedir que estes saberes sejam passados e aplicados, principalmente nas regiões mais afastadas onde não existem hospitais e nem médicos, como evidencia Bendita estas mulheres ainda são responsáveis por 15% dos partos realizados fora de hospitais, principalmente nas regiões Norte e Nordeste53, onde existem implicações para 49

PINTO, Benedita Celeste de Moraes. Filhas das Matas: práticas e saberes de mulheres quilombolas na Amazônia Tocantina. (CIP) UFPA, Belém: Açaí, 2010.p 106 50 SOUZA, Carlos Alberto Alves. Aquirianas:mulheres da floresta na história do Acre. Rio Branco: instituto de Pesquisa, Ensino e de Estudos das Culturas Amazônicas, 2010. 51 idem. Aquirianas:mulheres da floresta na história do Acre. Rio Branco: instituto de Pesquisa, Ensino e de Estudos das Culturas Amazônicas, 2010.p117 52 LAGE, M. M. L. Mulheres e Seringal: um olhar sobre as mulheres do Amazonas - 1880 – 1920, Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal do Amazonas, Manaus, 2013. 53 PINTO, Benedita Celeste de Moraes. Filhas das Matas: práticas e saberes de mulheres quilombolas na Amazônia Tocantina. (CIP) UFPA, Belém: Açaí, 2010.p.p.124,136.

42

chegar até a essas populações interioranas, este por sua vez buscam os cuidados das parteiras e curandeiras. Essas mulheres vão criando suas teias de relações com outras mulheres em busca de se ajudarem dentro da realidade em que viviam, no caso dessas parteiras\curandeiras existe uma solidariedade para com essas pessoas das comunidades, dentro dos seringais. O encontro para a organização de festas, a lavagem de roupa no igarapé, eram oportunidades que surgiam para que estas mulheres pudessem expor seus problemas, trocar receitas, aprender rezas para serem utilizadas nas crianças, até métodos de não engravidar ou praticar abortos, como mostra a autora Liege Ferreira, em seu trabalho disserta sobre as varias formas de resistência que a mulher vai buscando de se proteger, passando assim de empregada do seringueiro para mulher do seringueiro.54 As relações das famílias, ainda que sobre todas as dificuldades, iam além do trabalho, no depoimento de Ana Xavier, cheia de alegria ao lembrar-se daquelas festas, animadas em meio a mata, com sanfoneiros, e todos dançando descalços, sem se importar com a aparência ou com a falta dos sapatos, tão caros naquelas localidades. Esta fala carregada de nostalgia nos demonstra bem como as relações que foram se estabelecendo nesses ambientes foram vitais para a sobrevivência dessas pessoas, não só no trabalho, mas na troca de experiências, receitas ou uma simples conversar, saber que tinham uma solidariedade umas com as outras55. Tinha festa ai no Capori, mais não era essas festas não, que tem hoje... Gargalhadas, me lembro, quando eu já fiquei grande ne que tinha, Natal, São Cristovão, tinha um nome que festejava ne... Era, afastado, a gente ia em canoa, la pras festas, a gente ia em canoa, era assim, era muito, difícil ir pra la naqueles tempos, no meu tempo, era muito difícil.56

Francisca das Chagas, assim como Ana Xavier, demonstram saudades daqueles momentos de festas com as comunidades, no caso de Francisca das Chagas, mesmo sendo distante, estava presente nessas comemorações, que eram uma das poucas formas de lazer dessas trabalhadoras. A memória destes trabalhadores, destas famílias e, sobretudo dessas mulheres, mostram um universo de trabalho, de exploração, de resistência, de lazer, mulheres que 54

FERREIRA, Maria Liége Freitas. Mulheres no Seringal: submissão, resistência, saberes e praticas( 1940-1945). VIII Simpósio Internacional Processo Civilizador, História e Educação. Paraíba, 2004. 55 Ibidem, p.p, 6. 56 RIBEIRO, Francisca das Chagas. Francisca das Chagas Ribeiro. depoimento [10 Fevereiro. 2014]. Entrevistadora: Agda Lima Brito, Manaus: Amazonas, 2014.

43

se tornaram responsáveis em boa parte na garantia da sobrevivência da família, trabalhando nas roças, fazendo farinha, isto por que ainda encontramos relatos de mulheres que perderam seus maridos e criaram seus filhos trabalhando dentro das matas, seja cortando seringa, seja no plantio, como é o caso da mãe de Antonio que após a morte do marido, mantém família fazendo serviço de roça. A memória dimensiona a esfera da construção do vivido, do histórico e do cultural. Assim, relembrar o passado não significa apenas, recordação valorizada e fragmentada, mas a busca pelo conhecimento histórico e cultural de um grupo, em que a memória também constrói a cidadania. Diferentes experiências em um lugar constroem espacialidades com redes de significados visíveis, imaginárias, hábitos de alimentação, espaços de trabalho, de lazer, de crenças.57

Estes breves depoimentos sobre as festas e sobre o nascimento, mesmo sendo curtos, se mostraram carregados de alegrias por partes destas senhoras, essas mulheres evidenciam que naqueles momentos, onde trabalharam sobre domínio de um patrão que tentou controlar de todas as formas essas trabalhadoras, ainda assim, lembram com sorriso no rosto de quando escondiam borracha para vender ao regatão, assim como também das festas, do trabalho nas roças, da colheita da seringa, dos trabalhos nos barracões, de toda a experiência construída dentro das matas, nas colocações, nos seringais do Amazonas.

Referências: ALBERTI, V., FERNANDES, TM, and FERREIRA, MM., orgs. História oral: desafios para o século XXI. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2000. 204p. ALBUQUERQUE, Gerson Rodrigues. Trabalhadores do Muru, o rio das cigarras. SOIHET, Rachel. História das Mulheres. Rio Branco: EDUFAC, 2005. 177p. ANDRADE, Regina Marcia. Delírios e agruras do látex: o amazonas de 1880 a 1920. Dissertação de Mestrado. Ano de obtenção: 1991. ASSUNÇÃO, Sandra; SILVA, Josué; SILVA, Adnilson. Lembranças do Lugar: O ser Seringueiro em Extrema RO. Revista Igarapé, Vol. 1, No 1 (2013).

57

ASSUNÇÃO, S.T. ; SILVA, J. C. ; ALMEIDA SILVA, ADNILSON DE ; ALMEIDA SILVA, ADNILSON DE . Lembranças do lugar: o ser seringueiro em Extrema/RO. Igarapé - Revista de Estudos de Literatura, Cultura e Alteridade, v. 1, p. 7

44

FERREIRA, Maria Liége Freitas. Mulheres no Seringal: submissão, resistência, saberes e praticas( 1940-1945). VIII Simpósio Internacional Processo Civilizador, História e Educação. Paraíba, 2004. FILHO, Cosme Ferreira. Amazônia em novas dimensões. Manaus: Conquista, 1961. Pag 266. In: LEAL, Davi Avelino. Por uma arqueologia dos seringais. Canoa do tempo (UFAM), v. 1, p. 205-2201, 2007. LIMA, Frederico Alexandre de Oliveira. Soldados da Borracha, das vivências do passado às lutas contemporâneas. Dissertação de mestrado. Ufam: Manaus, 2013. NASCIMENTO, Maria das Graças. O Trabalho silencioso da mulher no interior da Floresta Amazônica. Revista de Educação, Cultura e Meio Ambiente- Março. - N° 11, Vol. II, 1998. PERROT, Michelle. Minha História das Mulheres. São Paulo, editora Contexto, 2007, Pag 190. PINTO, Benedita Celeste de Moraes. Filhas das Matas: práticas e saberes de mulheres quilombolas na Amazônia Tocantina. (CIP) UFPA, Belém: Açaí, 2010.p.p.124,136. POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. Revista Estudos Históricos, Vol. 5, Nº 10 (1992). PORTELLI, Alessandro. Forma e significado na História Oral. A pesquisa como um experimento em igualdade. Projeto História, São Paulo, (14) de fev. 1997. PORTELLI, Alessandro. O que faz a história oral diferente. Projeto História, São Paulo, (14) de fev. 1997. PORTELLI, Alessandro. História Oral e Poder. Conferência no XXV Simpósio Nacional da ANPUH, Fortaleza, 2009. p.2. SANTOS, Roberto Araújo de Oliveira. O genius de uma economia: reflexões e propostas sobre o desenvolvimento da Amazônia. Populações Humanas e Desenvolvimento Amazônico. Belém: UFPA, 1989. 351p. SENA, Odenildo. A engenharia do Texto: um caminho rumo á prática da boa redação. Manaus: EDUA\ FAPEAM, 2005. 182 p. SOIHET, R. História das Mulheres e História de Gênero - um depoimento. Cadernos Pagu (UNICAMP), Campinas/ São Paulo, v. 11, 1998. SOUZA, Carlos Alberto Alves. “Varadouros da Liberdade”: Cultura e trabalho entre os trabalhadores seringueiros do Acre. Projeto História, São Paulo,(16) de fev. 1998. SOUZA, Carlos Alberto Alves. Aquirianas: mulheres da floresta na história do Acre. Rio Branco: instituto de Pesquisa, Ensino e de Estudos das Culturas Amazônicas, 2010. 45

VIEIRA, Maria do Pilar de Araújo, PEIXOTO, Maria do Rosário da Cunha Peixoto, AUN, Yara Maria. A pesquisa em História. 3. Ed. São Paulo: Ática, 1995.159 p. WOORTMANN, Ellen .Família, Mulher e Meio Ambiente no Seringal. In: Ana Maria Niemayer; Emilia Pietrafeza Godoi. (Org.). Além dos Territórios: por uma troca entre a etnologia Indígena. Os estudos rurais e estudos urbanos. São Paulo: Editora Mercado das Letras, 1998.

Fontes Orais: GUIMARÃES, Antonio. Antonio Guimarães. Depoimento [06 Abril. 2014]. Entrevistadora: Agda Lima Brito, Manaus: Amazonas, 2014. JESUS, Francisca Diogo. Depoimento [06 Abril. 2014]. Entrevistadora: Agda Lima Brito, Manaus: Amazonas, 2014. LIMA, Altina Lopes Lima. Altina Lopes Lima. Depoimento [08 Maio. 2013]. Entrevistadora: Agda Lima Brito, Manaus: Amazonas, 2013 PINTO, Ana Xavier. Ana Xavier Pinto. Depoimento [15 Novembro. 2013]. Entrevistadora: Agda Lima Brito, Manaus: Amazonas, 2013. RIBEIRO, Francisca das Chagas. Depoimento [10 Fevereiro. 2014]. Entrevistadora: Agda Lima Brito, Manaus: Amazonas, 2014.

46

A CULTURA NO CONGRESSO CONSTITUINTE DE 1987-88

AIMÉE SCHNEIDER DUARTE1

Resumo: A valorização cultural sofreu modificações principalmente com a introdução de novos dispositivos legais para sua promoção e com a participação popular que se manifestava em prol da democracia e dos direitos fundamentais. A Constituição Federal de 1988 é um marco na valorização da cultura e, neste teor, examinam-se alguns debates ocorridos na Constituinte de 1987-88, a partir dos seus Anais. A análise se enriquece com a constatação de que os indivíduos estão ligados à memória de cada grupo e nação.

Palavras-Chave: Cultura. Constituinte de 1987-88. Memória.

Abstract: The cultural value has suffered changes especially especially through the introduction of new legal provisions regarding its promotion and popular participation that manifested itself for democracy and fundamental rights. The Federal Constitution of 1988 is a landmark when it comes to the appreciation of culture and, in this contente, are examined some of debates in the Constituent 1987-88, according to its Annals. The analysis is enriched by the fact that individuals are linked to the memory of each group and nation.

Keywords: Culture. Constituent 1987-88. Memory.

47

Introdução

A historiografia atual é o resultado das transformações sofridas nas últimas décadas, principalmente em relação à análise de determinados vieses, como a cultura. Não se pretende fazer um retrospecto desse processo, mas destacar a importância desse novo olhar, apresentada pela nova história cultural, com a “história dos de baixo” e influências da antropologia. Essa atual perspectiva expandiu as possibilidades de análises com novas fontes, objetos e métodos, além de reivindicar temáticas até então deixadas de lado. No Brasil, a mudança é percebida com a introdução de novos dispositivos legais para a promoção e o incentivo da cultura em geral, ou seja, de todas as ramificações sociais, e não somente a considerada adequada pela elite. O patrimônio, por exemplo, se consolidou tradicionalmente como um instituto do âmbito privado – sendo, portanto, destinatário das atenções do Direito Civil –, abrangendo os bens materiais e sua transmissão no seio da elite. A sua abordagem constitucional sofreu grande influência da participação popular, que, no começo da década de 1980, reivindicava e se manifestava em prol da democracia e da disposição dos direitos fundamentais na vindoura nova ordem jurídica. Havia um sentimento de mudança, sintetizado na busca por um novo arranjo social, jurídico e político, que marcava a época e veio a se destacar na reformulação da arquitetura do Estado brasileiro. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88), por ser considerada uma “Constituição Cidadã”, segundo expressão do constituinte Ulysses Guimarães, é um divisor de águas na valorização da cultura: questões subjetivas do cotidiano saíram do ostracismo. Com isso, o presente artigo tem por objetivo pesquisar questões atinentes ao tratamento dado à cultura no âmbito da Assembleia Nacional Constituinte de 1987-88, tomando por referência os anais desta.

A Cultura à Luz dos Debates da Assembleia Nacional Constituinte de 1987-88

Situado no campo da Teoria Social Crítica, Edward P. Thompson conseguiu integrar aspectos culturais na análise do processo histórico, que, para ele, são um campo de conflitos historicamente determinado. A história é a disciplina do contexto e do processo, logo todo significado é um significado-no-contexto, e, quando as estruturas mudam, as formas antigas

48

podem

expressar funções novas e as funções antigas podem encontrar sua expressão em formas novas2.

Com base nesse pensamento, não se pode entender um arranjo político-social sem seu contexto histórico. A pesquisadora Márcia Chuva3, seguindo essa lógica, afirma que a noção de patrimônio cultural é historicamente constituída e tem se transformado no tempo. Na visão da historiadora Angela de Castro Gomes4, a identidade de qualquer grupo social não se faz sem recorrer a “sua” história, em um processo dinâmico. Neste ponto, o pesquisador Pierre Laborie5 sustenta que, através da rememoração de fragmentos do passado, cada memória social transmite ao presente uma das múltiplas representações daquele que ela deseja testemunhar – ou seja, há uma multiplicidade de memórias fragmentadas. A historiadora Hebe Mattos6 trata da mesma questão ao afirmar que a construção de memórias coletivas se faz, necessariamente, como função de questões políticas e identitárias, vividas no tempo presente. Como em todo processo de construção, os episódios narrados são tão importantes quanto aqueles que são esquecidos ou sobre os quais simplesmente se silencia. A cultura, como referência e suporte da memória coletiva, é a perpetuação dos sentidos e dos valores que identificam um indivíduo, uma coletividade e/ou uma nação, sendo um fator de sentimento de continuidade e de coerência consigo mesmo e com o grupo. Para perpassar no tempo, são utilizadas diversas ferramentas: danças, imagens, escritas, sons, discursos narrativos, rituais e atos festivos, assim por diante. A própria oralidade lhe serve como meio de transmissão; porém, cumpre destacar que, segundo o historiador Daniel Aarão Reis7, a memória é sempre seletiva e, quando provocada, revela, mas também silencia. Sendo assim, a História deverá estar sempre lidando com as narrações e as suas versões, pois os saberes locais, os costumes e os modos de vida estão intimamente ligados às relações afetivas e às experiências vivenciadas. Nesse sentido, Paulo Knauss8 esclarece que foi no início dos anos 80 que o estudo da cultura se tornou central para as ciências humanas e que a imagem passou a ser considerada como um componente de grande destaque, evidenciando a pluralidade. Os significados não são tomados como dados, mas como construção. Sob a ótica de Fredrik Barth 9, a pessoa está “posicionada” em virtude de um padrão singular formado pela reunião, nesse indivíduo, de partes de diversas correntes culturais, bem como em função de suas experiências particulares. Segundo Serge Berstein10, os historiadores, por meio de estudos empíricos, constatam a existência de vários sistemas de representações coerentes, muitas vezes rivais entre si, que determinam a visão que os eleitos possuem da sociedade, do lugar que eles ocupam, e do que

49

motivam e explicam seus comportamentos. A retomada da história permite interpretar esses comportamentos a partir das suas percepções e sensibilidades. A instalação da Constituinte de 1987-88 foi uma etapa importante para se restaurar a democracia, resultado da ruptura com o modelo autoritário iniciado pelo golpe de 1964. Enquanto a Carta de 1967 constitucionalizou o arbítrio – apesar de ter sido elaborada com o fito de promover uma aparência legal ao sistema –, a Carta de 1988 prometia o retorno radical à democracia. Salienta-se a importância de conhecer o processo de construção das instituições, assim como a natureza dessas decisões e as relações estabelecidas nas esferas do Estado. Nessa perspectiva, os elementos básicos da análise histórica e, consequentemente, da Constituinte de 1987-88 são as pessoas e as organizações, com competências e comportamentos variados. Os parlamentares que atuaram no processo constituinte não possuíam interesses estáticos, mas dinâmicos, de acordo com os papéis que interpretavam, o que permitiu a inserção no cenário político de novos e, também, de velhos atores sociais, aptos a deliberar sobre a nova Lei Fundamental – vide, por exemplo, os senadores eleitos em 1982, que também contribuíram para a concepção da Carta Magna. Não à toa, Fábio Konder Comparato (1986) 11 acusa uma peculiaridade no contexto da Constituinte, uma vez que ela surgiu na medida em que o regime instaurado em 1964 evoluiu e se transformou sem ser propriamente derrotado pelos adversários. Cumpre destacar que a estrutura organizacional da Constituição é o resultado da divisão dos trabalhos constituintes em comissões e subcomissões que trataram de diversos assuntos. A Assembleia Nacional Constituinte foi organizada a partir de oito Comissões temáticas, cada uma delas, por sua vez, dividida internamente em três Subcomissões12. Os espaços de representação são objetos de estudos privilegiados, não sendo possível se entender os conflitos senão no âmbito do contexto que os geraram. Nesse aspecto, o exame acerca dos pontos centrais do proceder da Constituinte rumo ao cenário atual deve partir da análise das falas dos parlamentares e dos representantes de entidades e associações. Tome-se como exemplo o discurso do Membro do Conselho Diretor da Associação Brasileira de Antropologia, Sr. Antônio Augusto Arantes, que alertou sobre a necessidade de o Estado defender e valorizar o patrimônio cultural em sua forma plural, não linear e uniformizadora, abrangendo todos os seus aspectos: documental, artístico e ambiental 13. O Ministro da Cultura da época, Sr. Celso Furtado, também foi ouvido na Assembleia, ocasião em que afirmou que o patrimônio e a memória são concebidos não apenas como acervo da herança cultural, mas

50

como um todo orgânico cuja significação cresce à medida que se integra ao viver cotidiano da população14. Continuando a examinar as atas, uma passagem que chama muito a atenção é o discurso do Sr. Geraldo Bentes, Presidente do Sindicato dos Empregados das Entidades Culturais, Recreativas, de Assistência Social, de Orientação e Formação Profissional de Brasília. Nele, o Sr. Bentes afirma que a educação e o desporto são apenas dimensões e desdobramentos da cultura, de modo que emparelhá-los com ela diminuiria e despolitizaria a questão cultural; por isso, assevera que a organização dos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte é conservadora15. Mais apaziguadora foi a fala do Sr. Carlos Miranda, Presidente do Instituto Nacional de Artes Cênicas, INACEN, que afirmou ser dever do Estado propiciar indistintamente aos cidadãos condições de participação no processo social da cultura. Esclareceu não se tratar, como nas Constituições anteriores, de amparo a esta, mas sim de possibilitar a criação de uma política cultural que valorize o ser humano situado na realidade do País16. A antropóloga Sra. Lélia Gonzales explicou que, para falar da sociedade brasileira, de seu processo histórico e de seu processo social, é imperioso abordar a contribuição que o negro trouxe e continua trazendo para esta sociedade, frisando a sua extrema importância na cultura brasileira17. Sob esse mesmo aspecto, porém concernente aos índios, o Presidente do Conselho Indigenista-Missionário, o Sr. Erwin Krautler registrou a relevância da influência indígena ao indagar qual a legitimidade que temos para dizer que os índios não possuem cultura quando, na verdade, eles simplesmente têm uma diferente da nossa18. Corroborando tais questões ligadas à diversidade, a professora da USP e Presidenta da Associação Brasileira de Antropologia, Sra. Manuela Carneiro da Cunha, foi convidada a dar seu depoimento sobre o reconhecimento, finalmente, dos valores das sociedades diferentes e, em particular, das sociedades indígenas, e da importância que elas representam para o patrimônio cultural da Humanidade. O seu discurso esclareceu o quanto o Brasil, comportando 180 sociedades diferentes com 180 línguas próprias, contribui para o patrimônio cultural da Humanidade. Além disso, ela afirmou que cada sociedade é uma forma original especifica de convívio entre seres humanos e, portanto, deve ser preservada19. Foram os constituintes que decidiram quais instituições/pessoas/órgãos seriam ouvidos nas reuniões. Dentre eles estavam representantes de instituições renomadas e pessoas de notável conhecimento do tema, tal como a Casa de Rui Barbosa; o Ministro da Cultura da

51

época e as pessoas ligadas ao seu Ministério (servidores, por exemplo); a Associação Brasileira de Antropologia; o Conselho Indigenista-Missionário; o Instituto Nacional de Artes Cênicas (INACEN), etc. Nota-se que a cultura, de forma geral, passou a ser concebida, nos debates ocorridos durante a Constituinte, como um processo criativo. Além disso, evidencia-se, conforme estudo mais aprofundado do que esta breve síntese permite, a formação de um conceito amplo de patrimônio, de modo que novas possibilidades de interpretação sejam incluídas, abarcando a vida social e cultural. O próprio patrimônio imaterial, muito presente na cultura popular, é um exemplo: o seu uso na classificação de bens expressa uma valorização das relações sociais e simbólicas, e não necessariamente do objeto materializado. Mas qual o conceito de cultura extraído do texto constitucional?

A cultura sob uma Nova Perspectiva

Não é tarefa fácil responder a esse questionamento, pois o termo possui conteúdo mais facilmente intuído que definível, em virtude da riqueza e complexidade que encerra. É impossível sintetizar com um substantivo abstrato ou com longas orações coordenadas algo tão abrangente e subjetivo. Não são recentes as preocupações em relação à cultura; entretanto, sua indeterminação conceitual admite mais de uma possibilidade interpretativa. A definição envolve não apenas os historiadores, mas também os operadores do direito, os gestores públicos e a sociedade como um todo. Assim, como norte inicial, será adotado o conceito mais ampliado de cultura, consagrado pela Declaração da Cidade do México sobre Políticas Culturais pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), em 1982. (...) cultura pode agora ser considerada como todo o complexo de traços distintivos espirituais e materiais, intelectuais e emocionais que caracterizam uma sociedade ou grupo social. Ela inclui não apenas as artes e letras, mas também os modos de vida, os direitos fundamentais do ser humano, sistemas de valores, tradições e crenças. (UNESCO, 1982, p.01).20

Foram introduzidas inovações na interpretação do que seriam cultura e, por conseguinte, patrimônio cultural brasileiro – uma delas diz respeito ao registro de tal patrimônio de acordo com sua natureza, ou seja, como material e/ou imaterial, deixando de

52

lado a concepção anterior, restrita, constante do Decreto-Lei nº 25/37 e que previa somente o patrimônio cultural material. Em 2000, há a criação, no Brasil, do Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial; em 2003, em Paris, a Conferência Geral da UNESCO estabeleceu, em sua 32ª sessão, a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial. Promulgada no Brasil pelo Decreto nº 5.753/2006, a Convenção entende por patrimônio cultural imaterial: “as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas - junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural. Este patrimônio cultural imaterial, que se transmite de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade e contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana (...).”. (UNESCO, 2003, p.02).

Portanto, o patrimônio não só é algo surgido do meio ambiente como também produzido pela cultura humana. E, por englobar tanto os aspectos físicos quanto os nãofísicos, possibilita a interpretação em diversas frentes: material, imaterial, genético, espiritual, formas de uso, costumes e valores, entre outras. Em decorrência, esta concepção ampliada abarca minorias, conforme abrange manifestações populares, indígenas e afro-brasileiras, bem como aquelas de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional, trazendo significações para os diferentes segmentos étnicos. A importância dada às questões sociais, assim como o incentivo a uma nova institucionalidade no campo da gestão da cultura, demonstra a preocupação em garantir também o exercício dos direitos culturais, o acesso às fontes da cultura nacional e a liberdade das manifestações, constituindo um incentivo ao processo de criação de políticas públicas. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 foi um dos marcos divisório entre o regime anterior – ditatorial – e o atual Estado Democrático de Direitos. Das premissas defendidas nesta Carta Política está a valorização da área cultural, tendo sido reservado o Capítulo III à Educação, à Cultura e ao Desporto. A Seção II21 deste Capítulo é destinada especificamente à cultura que trouxe avanços na promoção do patrimônio brasileiro. Tem-se que o patrimônio cultural é constituído pelos bens materiais e imateriais, individuais ou coletivos, “portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira” (art. 216, caput, da CRFB/88). Incluído pela Emenda Constitucional nº 71/2012, o artigo 216-A enumera alguns princípios

53

que o Sistema Nacional de Cultura deve seguir, tal como a diversidade das expressões culturais. Por isso, frisa-se a necessidade de conhecer os efeitos dos debates que envolveram parlamentares e representantes institucionais no seio da Assembleia Nacional Constituinte de 1987-88. A redução das distâncias entre o texto constitucional e as práticas cotidianas fomenta o amadurecimento das experiências e a motivação de novas iniciativas para o fortalecimento da identidade do povo brasileiro e, indubitavelmente, do desenvolvimento humano.

Considerações Finais

A cultura é um fator indispensável ao estudo de uma sociedade, sendo fundamental para que se concebam as definições existentes em torno dela. Insta salientar que o processo de releitura do patrimônio não se esgota no âmbito das leis, mas implica no fomento e na descoberta dos valores presentes no meio social, objetivando a sua preservação e promoção. É crível que se formulem e se implementem ações que tenham como objetivo enaltecer as diversidades e particularidades impostas pelos patrimônios vivos, mutáveis e humanos. Um dos maiores desafios enfrentados pela História é o de superar o velho esquema tradicional que adota como protagonistas essenciais os grupos dominantes, deixando os grupos “subalternos/os de baixo” à margem. Conforme abordado, a historiografia 22 existente aponta que a institucionalização da cultura era direcionada ao caráter patrimonialista e conservador. A intervenção do Estado ocorreu essencialmente na preservação do patrimônio material e na orientação de ações alinhadas à ideologia de segurança nacional. Sua ação era restrita à preservação dos símbolos formadores da nacionalidade ligados ao que consideravam como sendo espaços eruditos. Sobrava às manifestações populares registrarem-se dentro do folclore nacional. O atual ordenamento jurídico pátrio, por sua vez, refletindo a sociedade brasileira, começou a mudar tal paradigma. Consequentemente, a cultura e a sua expressão popular foram ganhando espaço no campo constitucional rumo às suas valorizações e promoções. Certamente, ainda existem diversos debates a desenvolver, o que proporcionará revisões constantes perante as formas de tratar esses temas. O que se deve ter em mente, nesta discussão, é a possibilidade de transitar nos diversos mundos, de forma a englobar todas as 54

culturas e diluir as dicotomias engessadas, existentes entre presente versus passado e popular versus erudito. E essa pequena abordagem teve como proposta expor um panorama que convide ao começo da reflexão sobre o assunto.

1

Mestranda em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Samantha Viz Quadrat. E-mail: [email protected] 2 THOMPSON, Edward P. “Folclore, antropologia e história social”. In: A.L. Negro e S. Silva (orgs.). As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campina: Editora da Unicamp, 2001, p. 238. 3 CHUVA, Márcia. “Por uma história da noção de patrimônio cultural no Brasil”. In: Revista do Patrimônio, nº 34/2012. Rio de Janeiro: IPHAN, p. 147. 4 GOMES, Angela de Castro. “Cultura Política e Cultura histórica no Estado Novo”. In: ABREU, M., SOIHET, R. e GONTIJO, R. Cultura Política e Leituras do Passado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, Faperj, 2007. 5 LABORIE, Pierre. “Memória e opinião”. In: AZEVEDO, Cecília; ROLLEMBERG, Denise; KNAUSS, Paulo; BICALHO, Maria Fernanda e QUADRAT, Samantha Viz (orgs). Cultura política, memória e historiografia. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2009. 6 MATTOS, Hebe. “Memórias do cativeiro: narrativa e identidade negra no antigo sudeste cafeeiro”. In: RIOS, Ana Lugão e MATTOS, Hebe. Memórias do Cativeiro. Família, trabalho e cidadania no pós-abolição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. 7 REIS, Daniel Aarão. “Ditadura e sociedade: as reconstruções da memória”. In: Daniel Aarão Reis, Marcelo Ridenti e Rodrigo Motta (orgs). O golpe e a ditadura militar, 40 anos depois (1964-2004). Bauru: EDUSC, 2004. 8 KNAUSS, Paulo. O desafio de fazer História com imagens: arte e cultura visual. ArtCultura, Uberlândia, v.8, n.12, jan-jun 2006. Disponível em: . Acesso em: 20 jul. 2015. 9 BARTH, Fredrik. “A análise da cultura nas sociedades complexas”. In: Lask, Tomke (org.). O Guru, o Iniciador e outras variações antropológicas. BARTH, Fredrik. Rio de Janeiro: Contra-Capa, 2000. 10 BERSTEIN, Serge. “Culturas políticas e historiografia”. In: AZEVEDO, Cecília; ROLLEMBERG, Denise; KNAUSS, Paulo; BICALHO, Maria Fernanda e QUADRAT, Samantha Viz (orgs). Cultura política, memória e historiografia. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2009. 11 Anteprojeto de Constituição - Muda Brasil: uma Constituição para o desenvolvimento democrático produzido por Fábio Konder Comparato em solicitação pelo Partido dos Trabalhadores (PT). 12 Conforme a seguinte disposição: I - Comissão da Soberania e dos direitos e garantias do homem e da mulher: a) Subcomissão da nacionalidade, da soberania e das relações internacionais; b) Subcomissão dos direitos políticos, dos direitos coletivos e garantias; c) Subcomissão dos direitos e garantias individuais; II - Comissão da organização do Estado: a) Subcomissão da União, Distrito Federal e territórios; b) Subcomissão dos Estados; c) Subcomissão dos municípios e regiões; III - Comissão da organização dos poderes e sistema de governo: a) Subcomissão do Poder Legislativo; b) Subcomissão do Poder Executivo; c) Subcomissão do Poder Judiciário e Ministério Público; IV - Comissão da organização eleitoral, partidária e garantia das instituições: a) Subcomissão do sistema eleitoral e partidos políticos; b) Subcomissão de defesa do Estado, da sociedade e de sua segurança; c) Subcomissão de garantia da Constituição, reformas e emendas; V - Comissão do sistema tributário, orçamento e finanças: a) Subcomissão de tributos, participação e distribuição das receitas; b) Subcomissão de orçamento e fiscalização financeira; c) Subcomissão do sistema financeiro; VI - Comissão da ordem econômica: a) Subcomissão de princípios gerais, intervenção do Estado, regime de propriedade do subsolo e da atividade econômica; b) Subcomissão da questão urbana e transportes; c) Subcomissão da política agrícola e fundiária e da reforma agrária; VII - Comissão da ordem social: a) Subcomissão dos direitos dos trabalhadores e servidores públicos; b) Subcomissão da saúde, seguridade e do meio ambiente; c) Subcomissão dos negros, populações indígenas, pessoas deficientes e minorias; VIII - Comissão da família, da educação, cultura e esportes, da ciência e tecnologia e da comunicação: a) Subcomissão da educação, cultura e esportes; b) Subcomissão da ciência e tecnologia e da comunicação; c) Subcomissão da família, do menor e do idoso 13 Palavra dada na 19ª Reunião, ocorrida em 05 de maio de 1987 na Subcomissão da Educação, Cultura e Esportes. 14 Manifestação ocorrida nos debates da 24ª Reunião da Subcomissão da Educação, Cultura e Esportes, realizada em 12 de maio de 1987.

55

15

Depoimento ocorrido na 20ª Reunião da Subcomissão da Educação, Cultura e Esportes, realizada em 06 de maio de 1987. 16 Depoimento ocorrido na 20ª Reunião da Subcomissão da Educação, Cultura e Esportes, realizada em 06 de maio de 1987. 17 Fez uso da palavra na 7ª reunião da Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias, em 28 de abril de 1987. 18 Debate ocorrido na 7ª reunião da Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias, em 29 de abril de 1987. 19 Fala proferida na 4ª Reunião da Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias, realizada em 23 de abril de 1987. 20 Tradução livre da autora. No original: (…) culture may now be said to be the whole complex of distinctive spiritual, material, intellectual and emotional features that characterize a society or social group. It includes not only the arts and letters, but also modes of life, the fundamental rights of the human being, value systems, traditions and beliefs. 21 Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. § 1º - O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. (...) Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I - as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. (...) Art. 216-A. (Incluído pela EC nº 71, de 2012). O Sistema Nacional de Cultura, organizado em regime de colaboração, de forma descentralizada e participativa, institui um processo de gestão e promoção conjunta de políticas públicas de cultura, democráticas e permanentes, pactuadas entre os entes da Federação e a sociedade, tendo por objetivo promover o desenvolvimento humano, social e econômico com pleno exercício dos direitos culturais. § 1º O Sistema Nacional de Cultura fundamenta-se na política nacional de cultura e nas suas diretrizes, estabelecidas no Plano Nacional de Cultura, e rege-se pelos seguintes princípios: I - diversidade das expressões culturais; II - universalização do acesso aos bens e serviços culturais; III - fomento à produção, difusão e circulação de conhecimento e bens culturais; (...) 22 Obras que tratam sobre a intervenção do Estado na área da cultura e o seu fomento durante o período ditatorial: MICELI, Sérgio. Estado e Cultura no Brasil. São Paulo: Difel, 1984; ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira e Identidade Nacional. São Paulo: Brasiliense: 1986; e ORTIZ, Renato. A Moderna Tradição Brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1988.

56

A preservação do patrimônio arquitetônico de Campina Grande no século XXI. Alcília Afonso de Albuquerque e Melo Professora do Curso de Arquitetura e Urbanismo. UFCG Coordenadora do grupo de pesquisa arquitetura e lugar. CAU. UAEC. CTRN. UFCG E-mail: [email protected]

Resumo O trabalho a ser apresentado possui como objeto de estudo, o patrimônio arquitetônico da cidade de Campina Grande, situada na região do agreste paraibano, e as ações que vêm sendo desenvolvidas para a preservação da história e da memória urbana, compreendendo que arquitetura e cidade estão sempre dialogando, e a produção dos espaços- sejam privados ou públicos, internos ou externos, interagem constantemente. O objetivo é analisar as relações entre a história, a memória e o patrimônio arquitetônico e urbanístico, na constituição de identidades na contemporaneidade campinense. Palavras chaves: história, memória, patrimônio arquitetônico. Abstract The work to be presented has as object of study, the architectural heritage of the city of Campina Grande, located in the “Agreste” region, and the actions that have been developed for the preservation of history and urban memory, understanding that architecture and city are always in dialogue, and the production of spaces- public or private, internal or external, constantly interact. The objective is to analyze the relationship between history, memory and the architectural and urban heritage in the constitution of identities in contemporary in the city. Keywords: history, memory, architectonic heritage. 1. Introdução O trabalho a ser apresentado possui como objeto de estudo, o patrimônio arquitetônico da cidade de Campina Grande, situada na região do agreste paraibano, e as ações que vêm sendo desenvolvidas para a preservação da história e da memória urbana, compreendendo que arquitetura e cidade estão sempre dialogando, e a produção dos espaços- sejam privados ou públicos, internos ou externos, interagem constantemente. O objetivo deste artigo é analisar as relações entre a história, a memória e o patrimônio arquitetônico e urbanístico, na constituição de identidades na contemporaneidade campinense, e justifica-se pela necessidade de se discutir

57

com demais pesquisadores, os caminhos possíveis para ações mais contundentes para a preservação do acervo, que nas cidades brasileiras vêm passando por descaracterizações, abandonos, trazendo uma série de problemas para a cidade e seus cidadãos. Os estudos fazem parte do grupo de pesquisa Arquitetura e Lugar, cadastrado na UFCG e no CNPQ, que vem inventariando o acervo arquitetônico através de fichas estilísticas, bem como, desenvolvendo ações de educação patrimonial, junto à universidade e à prefeitura municipal, na busca em colaborar mais ativamente, com tal processo. 2. Referencial teórico As reflexões desse artigo giram em torno de quatro palavras chaves, que constituem a base teórica do mesmo: os conceitos de cidade, história, memória, e patrimônio arquitetônico. Partese do princípio básico que a cidade pode ser compreendida como o arquivo da história, conforme colocou Chueca1. É no espaço urbano, ou também, no espaço rural, que se encontra edificado o patrimônio arquitetônico de uma sociedade, que guarda a memória coletiva de vários indivíduos, ou grupos, através da construção de edificações, ruas, praças, lugares de memória. Montenegro 2 colocou que “a memória coletiva de um grupo representa determinados fatos, acontecimentos, situações e os reelabora constantemente” e que dessa maneira, a memória possui como elemento primordial o processo de reação que a realidade opera sobre o indivíduo. A relação história e memória coletiva foi tratada por Montenegro 3, que afirmou: “O campo da memória se construiria, dessa maneira, a partir de acontecimentos e dos fatos que também se transformam em elementos fundantes da história. O resgate da memória coletiva e individual se projeta como uma possibilidade de trazer para o plano do historiador o registro da própria reação vivida dos acontecimentos e fatos históricos”.

O conceito de patrimônio histórico- após a Convenção realizada por uma Assembleia Geral da Unesco- em 1972, trouxe à tona a “mundialização dos valores e das referências ocidentais que contribuiu para a expansão ecumênica das práticas patrimoniais”, conforme apontou Choay 4, em seu livro “A Alegoria do patrimônio”. O texto resultante dessa convenção foi somente publicado em 1983, e contribuiu de forma fundamental para a amplitude do que poderia ser considerado patrimônio. Choay 5 colocou que: “O texto da Convenção baseava o conceito de patrimônio cultural universal no de monumentos históricos- monumentos, conjunto de edifícios, sítios arqueológicos, ou conjuntos que apresentem um valor universal excepcional do ponto de vista da história da arte ou da ciência.”

58

A autora francesa observou ainda que paralelamente a essa discussão, houve uma expansão tipológica do patrimônio histórico, inserindo aí, edificações modestas, de arquitetura vernácula, nem memoriais, nem prestigiosas, reconhecidos e valorizados por disciplinas novas como a etnologia rural e urbana, a história das técnicas, entre outros- que passaram a integrar o corpus patrimonial. Porém, pode-se observar que, na contemporaneidade, as cidades, como arquivos da história e da memória coletiva, constituídas de seus respectivos acervos patrimoniais, vêm cada vez mais, desenvolvendo um processo de “apagamento da memória” ou passando por processos de “traumas urbanos”, como tão bem colocaram os autores catalãs Montaner e Muxi 6. A dissolução da memória- um dos meandros dos processos contemporâneos de urbanizaçãoatinge a memória plural e complexa, através de mecanismos políticos que pretendem impor novas identidades coletivas e manipuladas do social. Os autores colocaram sobre o tema 7: “Podemos falar de um apagamento sistemático da memória coletiva que ocorre em situações não explicitamente traumáticas, sem conflitos sociais aparentes, de uma maneira lenta e oculta, como consequência do desenvolvimento capitalista e neoliberal das grandes urbes, que querem estabelecer identidades simples para o controle interno e a comunicação externa, voltadas aos investimentos e ao turismo, e que se transmite através de campanhas publicitárias”.

Observa-se na contemporaneidade, que há uma prioridade política em priorizar a memória das classes dominantes, de uma história oficial, deixando de lado, a memória coletiva das minorias, dos imigrantes, das classes menos favorecidas, procedentes de culturas e identidades distintas. É bastante pertinente aqui, colocar as questões feitas por Montaner e Muxi 8 sobre esse cenário contemporâneo da discussão da relação cidade/ história/memória e patrimônio: “Quem possui o interesse em recordar? Que grupo ou classe social, dos diversos que confluem em cada cidade, tem o poder de definir a memória? Como cada cidade vai construindo seu imaginário à custa da ênfase em alguns aspectos e do esquecimento dos outros? Porque para recordar certos fatos é preciso esquecer os outros?”

São inquietações atuais dessa natureza que poder-se-ão ser discutidas e refletidas por nós, pesquisadores no tema. Em seguida, serão colocadas algumas informações fundamentais para a compreensão dessa discussão em nosso objeto de estudo, a cidade de Campina Grande e sua política de preservação do patrimônio arquitetônico, especificamente. 3. Contextualização: A cidade de Campina Grande. A cidade de Campina Grande está localizada no nordeste brasileiro na região do Agreste Paraibano, no planalto da Borborema a 550m acima do nível do mar, no ponto de latitude

59

7º13’11’ sul e de longitude 35º52’31’’ a oeste; geograficamente está bem privilegiada, situada no centro da Paraíba (figura 1). Figura 1. Mapa de localização de Campina Grande. PB. Nordeste brasileiro.

Fonte: Montagem de mapa editado pela autora.

Possui uma população de 400 mil habitantes, e por ser uma cidade polo, exerce grande influência sobre os aproximadamente 60 municípios que estão em seu entorno. Seu contexto histórico é rico em manifestações culturais, principalmente na cultura popular- reconhecida nacionalmente por suas festas juninas, que atraem um público de todo o pais e do exterior. Economicamente, um dos momentos que marcou os campinenses foi o ciclo do algodão, o ouro branco, que levou o município a ser considerada a segunda maior produtora de algodão do mundo, sendo denominada nas décadas de 20 a 40, de Liverpool do Sertão. Como breve histórico, coloca-se aqui, algumas informações básicas a respeito da evolução histórica da cidade, baseada no texto de Basílio 9, que escreveu que a cidade teve origem em uma aldeia indígena dos índios Ariús, tribo "domesticada" por Teodósio de Oliveira Ledo, capitão-mor das fronteiras das Piranhas, Cariri e Piancó, que levava este grupo consigo quando, vindo do Sertão, ia em direção à capital João Pessoa, para atender a um chamado do governadorgeral. Ao ir por um caminho diferente, deparou-se com uma "campina verde". Demorou-se no local e por ter gostado do lugar ali resolveu aldear os seus índios. Tal fato ocorreu em aproximadamente, em 1697. Em 1769, transformou-se em Freguesia. Em 1790, em Vila, passando à cidade, em 1864 - Por Lei Provincial. Sendo a sexta da Paraíba que já contava com Parahyba (antigo nome da capital, João Pessoa), Mamanguape, Areia, Souza e Pombal. O apogeu econômico de Campina Grande se deu quando o trem chegou à cidade, no dia 2 de outubro de 1907, impulsionando o comércio

60

local, e a população deu um salto de mais de 600%, chegando à marca de 130 mil habitantes no transcurso de pouco mais de três décadas- a cidade virou um polo atrativo de pessoas que foram trabalhar em volta da indústria algodoeira. Nas décadas de 20 e 30, a cidade atraiu empresas de outros lugares, como do estado de Pernambuco, e vários empresários investiram na cidade, tais como os irmãos Marques de Almeida, o empresário José Tavares de Moura, entre outros. Tais empreendimentos passam a ocupar novas praças, como a das Boninas, onde foi implantada a importante indústria Marques de Almeida. A cidade que estava passando por seu momento áureo econômico, devido ao ciclo do algodão, não mediu esforços para se modernizar, tanto com iniciativas públicas, quanto privadas, havendo no espaço urbano várias reformulações no traçado ocorridos na gestão do prefeito Verginaud, que edificou prédios em estilo déco para simbolizar sua gestão modernizadora, formando um dos mais importantes acervos proto modernos brasileiro. Contudo, a partir dos anos 50, com a entrada do estado de São Paulo na produção algodoeira nacional, tal ciclo nordestino teve o seu processo de decadência iniciado e atrelado a uma série de fatores, que foram citados por Araújo 10. Nos anos seguintes, observou-se um novo ciclo econômico, o da proliferação de curtumes, e a cidade, continuou a construir novas edificações de valor histórico e urbanístico para a constituição da paisagem urbana. 4. A política de preservação em Campina Grande no século XXI. 4.1. Características do acervo arquitetônico As cidades brasileiras vêm se desenvolvendo em um rápido processo de urbanização, sendo propostas novas tipologias arquitetônicas, novos programas, que, infelizmente, não consideram a importância de se preservar as estruturas existentes, exemplares ricos de períodos recentes, que deveriam ser trabalhados de forma a conservar soluções projetuais, construtivas, e materiais. Como somente em 1864, o lugar da antiga aldeia campinense, após se desenvolver foi transformado em cidade, possui um acervo de bens imóveis que pode ser classificado por estilos arquitetônicos, que vão desde o neoclássico, o ecletismo, o art déco, a linguagem moderna, até uma produção arquitetônica contemporânea com tendências variadas. Observa-se a existência na contemporaneidade, de poucos exemplares neoclássicos, alguns ecléticos, mas, o que mais caracteriza o acervo patrimonial campinense, destacando-se no cenário regional, é o conjunto de arquitetura art déco no centro histórico urbano, e a preservação de vários exemplares isolados modernos diluídos nos bairros periféricos ao centro. Desperta interesse ainda, o acervo patrimonial decorrente do ciclo do algodão, que

61

deixou edificações

tanto na área central, quanto na periferia, mas que vem passando por um estado de abandono, sendo muitos desses exemplares destruídos, descaracterizados. 4.1.1. O art déco em Campina Grande. Conhecido como art déco sertanejo 11, mantém as bases do movimento acerca da geometrização dos ornamentos, das linhas verticais e curvas, dos escalonamentos, porém, sem uso de detalhes em metal e com certo primitivismo. O termo art déco provém da Exposição Internacional de Artes Decorativas e Industriais Modernas, ocorrida em 1925 em Paris, e de certa forma representou na arquitetura, a passagem do ecletismo e do art nouveau para o modernismo, recebendo grande influência do construtivismo, futurismo e do cubismo. São geometrizações dos volumes, com a manutenção da tripartite clássica, uso de metais e vidro, aerodinâmica, escalonamentos, referências aos povos pré colombianos, e uma simplicidade que caminhava para o moderno. Figura 2. Conjunto art déco. Rua Maciel Pinheiro. Década de 50.

Fonte: Blog http://www.art-deco-sertanejo.com/historia/

O estilo tornou-se símbolo da grande reforma urbana empreendida pelo prefeito Vergniaud Wanderley nos anos 1940, na tentativa de modernizar a “Liverpool Brasileira”, segunda praça algodoeira do mundo. O acervo campinense de art déco (figura 2) é um dos mais importantes no cenário nacional, com bens possuidores de grande qualidade arquitetônica, e está localizado e concentrado na área do centro histórico da cidade de Campina Grande. O centro histórico é tombado em nível estadual, através de Decreto estadual de No. 25.139 de 28 de junho de 2004, que homologou a deliberação de No.25/2003 do Conselho de proteção dos bens históricos culturais-CONPEC, órgão de orientação superior do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do estado da Paraíba- IPHAEP, que delimitou o Centro Histórico inicial

62

de Campina Grande (figura 3). Por grande parte dos exemplares art déco existentes estarem implantados na zona do Centro histórico, encontram-se preservados, apesar de já terem sofrido alterações antes do processo de tombamento da área. Figura 3. Mapa de localização do Centro histórico de Campina Grande. PB.

Fonte: Arquivo do Grupo de Pesquisa Arquitetura e Lugar. CAU. UAEC. CTRN.UFCG

4.1.2. O acervo moderno campinense. O aporte regional das discussões sobre a produção arquitetônica moderna campinense, vem sendo respaldado em trabalhos elaborados por Afonso12, Queiroz13, Tinem e Cotrim14 e demais pesquisadores que vêm investigando sobre a importância da preservação da arquitetura moderna nordestina no cenário nacional. O acervo moderno em diversas cidades brasileiras, inclusive em Campina Grande (figura 4), vem pouco a pouco, sendo destruído devido à falta de conhecimento das instituições e da comunidade, a respeito da importância do mesmo. Figura 4. Clube do trabalhador. Arquitetura Moderna. Campina Grande.

Fonte: Arquivo do Grupo de Pesquisa Arquitetura e Lugar. CAU. UAEC. CTRN.UFCG

63

Na cidade em estudo, tal fato é realidade e através de pesquisas que vêm sendo realizadas, pelo grupo Arquitetura e Lugar, pode-se observar nesta produção, que as contribuições projetuais, construtivas, técnicas, bem como, as soluções climáticas que procuraram adaptar a modernidade aos trópicos brasileiros possuem um grande valor arquitetônico. Contudo, observou-se nas pesquisas que tal acervo possui poucos exemplares protegidos pela Legislação estadual e municipal. 4.1.3. O patrimônio industrial em Campina Grande. Considerando-se a formação histórica da cidade- que teve o seu apogeu urbanístico no início do século XX, devido ao ciclo do algodão, conforme foi visto anteriormente, não se pode deixar de considerar aqui, a existência de um acervo que necessita de maior atenção por parte do poder público. O acervo patrimonial industrial existente na cidade, pertence à produção arquitetônica da região, que durante meio século (primeira metade do século XX) foi uma das maiores produtoras de algodão do país, exportando o chamado “ouro branco” para várias cidades do mundo, bem como, implantando na cidade, fábricas têxteis importantes e empresas beneficiadoras do produto. Campina Grande recebeu muitos investimentos com a instalação de grandes empresas, que foram norteadoras para a expansão do tecido urbano, sendo protagonistas do surgimento de novos bairros. Várias fábricas foram construídas, como a sede da antiga Indústria Marques de Almeida (figura 5), a antiga fábrica de tecidos Bodocongó de Aires & Cia, entre outras, que infelizmente, foram demolidas ou descaracterizadas. Afonso 15 possui trabalhos publicados sobre tal acervo que podem ser enriquecer os estudos sobre o tema. Figura 5. Imagem da antiga Fábrica Marques de Almeida. Campina Grande.

Fonte: Arquivo Público Municipal. Prefeitura de Campina Grande.

64

5. Conclusão. A preservação do patrimônio arquitetônico de Campina Grande no século XXI, composto pelo acervo visto anteriormente, vem se dando através de resgates documentais realizados, principalmente pela Academia, que através de projetos de pesquisas vêm documentando e realizando ações de educação patrimonial. As instituições públicas criaram mecanismos legais para a preservação desse acervo, tais como a Lei Municipal nº 3721/1999, e o Decreto Estadual nº 25.139/2004. Através do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da Paraíba- IPHAEP, dezoito imóveis encontram-se tombados em nível estadual, enquanto que o Iphan, não realizou nenhum tombamento, ainda, na cidade. Em nível municipal, existe um departamento que tenta desenvolver um trabalho de educação patrimonial, dialogando com o IPHAEP, com a UFCG/ Universidade Federal de Campina Grande e com a Universidade Estadual de Campina Grande, no sentido de buscar parcerias e se fortalecer no trabalho de preservação do acervo. Observa-se contudo, que intervenções práticas de restauração e revitalização das obras arquitetônicas não vêm sendo realizadas. A prioridade da preservação está voltada para o acervo de art déco, e para imóveis isolados concentrados na área do Centro histórico. O acervo do patrimônio moderno, do industrial, bem como, o acervo singelo de núcleos urbanos periféricos, encontram-se completamente desprotegidos das ações institucionais, havendo algumas exceções, como é o caso da proteção legal do edifício moderno que abriga o Teatro Severino Cabral, e o da antiga Fábrica Marques de Almeida. Não se pode esquecer que os espaços públicos, as paisagens culturais urbanas, a arquitetura e o urbanismo têm um papel determinante nas condições de vida das populações urbanas. Há que se preservar os edifícios históricos, os espaços públicos e o valor urbanístico e arquitetônico que eles representam. A criação e preservação de espaços, equipamentos e serviços urbanos funcionais e bem concebidos é uma tarefa que deve ser desenvolvida conjuntamente pelas instituições nacionais, regionais e locais, e também pelos cidadãos e pelas empresas. 6. Notas 1. CHUECA, Fernando. Breve história do urbanismo. Lisboa: Editorial Presença.1982. 2. MONTENEGRO, A. História oral e memória. A cultura popular revisada.3ª. Edição. São Paulo: editora Contexto.1994.

65

3. MONTENEGRO, A. História oral e memória. A cultura popular revisada.3ª. Edição. São Paulo: editora Contexto.1994.p.19 4. CHOAY, F. A Alegoria do Patrimônio. 4ª. Ed. São Paulo: Estação Liberdade. UNESP. 2006. 5. CHOAY, F. A Alegoria do Patrimônio. 4ª. Ed. São Paulo: Estação Liberdade. 2006.p. 207

UNESP.

6. MONTANER, J e MUXI, Arquitetura e política. Barcelona: editora Gustavo Gili.2011. 7. MONTANER, J e MUXI, Arquitetura e política. Barcelona: editora Gustavo Gili.2011.p.159 8. MONTANER, J e MUXI, Arquitetura e política. Barcelona: editora Gustavo Gili.2011.p.168. 9. BASILIO, A. No princípio, eram os tropeiros In A história de Campina Grande PB. Em rede http://revistacafeicultura.com.br/index.php?tipo=ler&mat=26920&especial---a-historia-decampinagrande-pb.html. Acessado em 10 de março de 2015. 10. ARAÚJO, Jair. O algodão em Campina Grande. Uma discussão acerca dos livros didáticos na história. Campina Grande: Agenda. 2006.p.35. 11. ROSSI, L. Art Déco Sertanejo e uma revitalização possível: programa Campina Grande déco. Goiânia: Revista UFG / Julho 2010 / Ano XII nº 8. 12. O Grupo de pesquisa Arquitetura e Lugar/ CAU/ UAEC/ CTRN/ UFCG coordenado pela professora Dra. Alcilia Afonso, desenvolve pesquisas sobre o patrimônio arquitetônico campinense, resgatando os diversos bens imóveis e seus distintos estilos arquitetônicos. 13. QUEIROZ M. V. D. de. Quem te vê não te conhece mais; arquitetura e cidade de Campina Grande em transformação (1930-1950). 2008. Dissertação (Mestrado): PPGAU, E.E. de S. Carlos, USP. 14. TINEM, N. e COTRIM, M. Na urdidura da modernidade Arquitetura Moderna na Paraíba.

João Pessoa: PPGAU-UFPB; 1ª edição, 2014. 15. AFONSO, A. e CARVALHO, J. O Ouro branco no nordeste brasileiro. Resgate das fontes documentais do patrimônio industrial do ciclo do algodão em Campina Grande. 1900-1950. Espanha: Anais do XVII International Conference On Industrial Heritage Incuna. 2015.

66

Marechal João Baptista de Mattos: “um homem eminentemente legalista” ALESSA PASSOS FRANCISCO* ** [email protected]

Resumo: Marechal João Baptista de Mattos, nascido em 1900, negro, descendente de cativos, percorreu caminhos em sua trajetória que o levou, na década de 50, a uma efetiva participação na cena política do Brasil. Acionado pela memória de sua filha como um homem “eminentemente legalista”, apesar de não se identificar até o momento nenhum documento sobre seu posicionamento político, parte de sua rede de sociabilidade será discutida para a análise de sua participação política, o que nos aproxima de suas escolhas. Palavras chaves: Rede de sociabilidade – Legalidade – Participação Política

Abstract: Marshal João Baptista de Mattos, born in 1900, black, slave descendant, he had a trajectory in his career that led him to an effective participation in the political scene in Brazil in 50s. Triggered by the memory of his daughter as a man "highly legalistic", although there were no identified any documents about your political position at this time, part of his network of sociability will be evaluated for the analysis of political participation which brings us closer to their choices.

Keywords: Sociability Network - Legality - Political Participation

Este trabalho se propõe a discutir a trajetória militar do Marechal João Baptista de Mattos, que é acionado pela memória de sua filha como um “homem eminentemente legalista” i. O principal objetivo discutir e trazer em debate algumas aproximações sociais e algumas participações ou até mesmo algumas omissões que possam caracterizar seu posicionamento político na década de 50 e 60. Para isso retomaremos algumas de suas vivências desde os tempos de escola e faremos um salto tomando do início de sua trajetória até tais décadas, perseguindo uma lógica de aproximação feita pelo Marechal ao escrever duas dedicatórias de livros de sua autoria à

67

alguns colegas de Colégio Militar a seus professores. Retomaremos essa análise para pensar algumas de suas posições e posicionamentos políticos nesta época. Com esses documentos associados ao depoimento oral de sua filha, Umbelina Sant’Anna, será possível entender suas aproximações políticas e sua atuação na sociedade no Brasil pré-golpe militar. Foi através do depoimento oral que a afirmativa do título foi extraída. A ideia é tecer considerações sobre sua trajetória e de suas participações que fizeram com que sua filha o declarasse dessa forma. Esta declaração foi um dos resultados de um ciclo de entrevistas feitas com D. Umbelina Sant’Anna, filha do Marechal Mattos. A entrevista foi realizada em janeiro de 2013 e foi dividida em três sessões, ocorridas em sua residência, no Rio de Janeiro. A trajetória aqui tratada não se refere à história de vida da depoente e sim de seu pai. Apesar disso as histórias aqui narradas também são referentes à experiência de vida de D. Umbelina, que por um lado teve a oportunidade de escutar muitas histórias da infância e adolescência de seu pai e por outro foi testemunha de uma parte dessa história, através da convivência familiar. A discussão está pautada em uma visão sobre o Marechal, a visão de sua filha. Como mediadores dessa visão estão uma série de influenciadores que a ajudaram a construir a imagem como homem, pai, marido de sua mãe, filho, militar e tantos outros papéis que exerceu ao longo de sua vida. Por isso, dentro do campo da história de vida, a entrevista aqui tratada organizou-se como uma “narrativa biográfica”ii. É importante salientar que não se insere no escopo deste trabalho uma discussão específica de política e sim discutir um trabalho de memória. Entender e tecer considerações sobre os indícios e as vivências que levaram D. Umbelina a caracterizar o posicionamento político de seu pai como eminentemente legalista através de aproximações sociais. Para isso uma reflexão sobre sua trajetória será construída utilizando, além da narrativa biográfica, outros documentos e fontes que explicitem direta ou indiretamente as ações de Mattosiii e principalmente suas alianças políticas, seguindo o fio de uma de suas redes de sociabilidades. Este artigo é fruto dos resultados parciais que venho obtendo com o desenvolvimento da pesquisa de mestrado. João Baptista de Mattos nasceu no Rio de Janeiro, em 24 de junho de 1900. Negro, descendente do cativeiro, sua mãe foi ventre livre e sua avó e bisavó haviam sido libertas doze anos antes de seu nascimento, com a promulgação da Lei Áureaiv.

68

Logo que saiu das senzalas, a mãe de Mattos foi trabalhar como babá para a família Carqueja, família com boas condições financeiras, meio em que Mattos foi criado. Ainda menino Mattos se alfabetiza e estuda em uma das mais proeminentes escolas do Rio de janeiro, fundada para formar a elite governante do país, o Colégio Pedro II. Apesar da condição humilde em que sua família vivia, João Baptista de Mattos freqüentou o externato do colégio como contribuintev, entre os anos 1913 e 1917. Logo que se formou se candidatou aos exames do Colégio Militar do Realengo. Segundo sua filha os motivos que o levou a almejar o serviço militar foi a necessidade de ter uma renda para se sustentar. Para isso realizou exames de conhecimento lingüístico e matemático, nas quais obteve êxito. Mattos ingressou no Colégio Militar do Realengo em 2 de maio de 1918, tornando-se praça do Exército brasileiro. Na Escola Militar do Realengo João entrou em contato muitos militares, colegas de arma. Entre os seus colegas do Colégio, podemos identificar no “Boletim Comemorativo da Turma de 1921”vi alguns militares como Artur da Costa e Silva, Humberto de Alencar Castelo Branco. Também é possível perceber o contato com Henrique Duffles Teixeira Lott, que nesta época era o seu instrutor de arma. São três militares que mais tarde encontraremos no centro dos acontecimentos políticos no Brasil, meio que Mattos estará envolvido, como veremos. O Marechal João Baptista de Mattos além de sua carreira acadêmica, em muitos momentos de sua vida esteve ligado à pesquisa histórica. Assim, em 1947 começa a escrever livros catalogando e fazendo uma breve história dos Monumentos Nacionais Brasileiros. Seu conteúdo se resume a coleção de suas publicações na Revista Militar Brasileira, meio onde esteve atuante. Para pensar em algumas das redes de sociabilidades que construiu serão utilizados 2 de seus livros, onde serão analisadas as dedicatórias. “Os Monumentos Nacionais - Matogrosso”vii relembra em sua dedicatória aqueles amigos “como recordação da amizade mui estreita dos bancos da Escola Militar, e que sempre procurei consolidar durante o caminhar dos anos.”, dentre os quais não se identificam os nomes de Castelo Branco e nem Costa e Silva. O silêncio contido nesta dedicatória sobre os nomes desses colegas de farda e de turma aponta para um distanciamento social e que mais tarde pode ser entendido também como um distanciamento político, fator que pode indicar o seu distanciamento na deflagração do golpe civil-militar que ocorreria sete anos depois, que segundo Jorge

69

Ferreira em seu texto “Crises da República: 1954, 1955 e 1961”

viii

, já vinha sendo

arquitetado desde a posse de Vargas. No momento em que este livro foi publicado pela Imprensa do Exército, em 1957, Mattos já ocupava a patente de general do Exército, além de exercer o cargo de secretário do Ministério da Guerra. Quando Mattos faz o exercício de olhar para o seu passado e trazer à lembrança e homenagear através da dedicatória pessoas que foram importantes para a construção de sua carreira, já ocupava um influente cargo político e suas relações políticas já estavam bem definidas. Mattos foi indicado para o cargo de secretário do Ministério da Guerra nos meses finais do governo Vargas, segundo sua filha, fora indicado pelo próprio presidente. Em fevereiro de 1954 Getúlio Vargas fez uma renovação ministerial, para o ministério da guerra indica Zenóbio da Costa. Ele era legalista e a intenção de colocá-lo no ministério era acalmar os ânimos no Exército, conforme afirma Boris Fausto em “História do Brasil” ix. Talvez como uma forma de apoio político o tenente-coronel João Baptista de Mattos foi indicado para o seu aparato ministerial na secretaria de guerra. Esta indicação do Tenente-coronel pode ser mais um fator que pese para a afirmação da posição de Mattos como legalista. Apesar de não apoiar abertamente o governo Vargas aparentemente se punha ao lado da legalidade. Boris Fausto aponta que “o presidente resistia, apoiado pelo general Zenóbio da Costa, insistindo no fato de que ele representava o princípio da legalidade constitucional” x. Com todas as pressões militares, políticas e da imprensa Getúlio nega abrir mão do poder e na manhã de 24 de agosto de 1954 põe fim a sua própria vida com um tiro no coração. Jorge Ferreira, de maneira enfática afirma que o suicídio trata-se também de uma manobra política dizendo que “jogando seu próprio cadáver nos braços dos udenistas que, atônitos, não souberam o que fazer com ele”xi. O suicídio teve efeitos diretos e imediatos na população que saiu às ruas contra os opositores de Vargas, que estiveram acuados e paralisados. O golpe que, segundo Jorge Ferreira, vinha sendo arquitetado desde a posse de Vargas, não tinha mais razão de existir. Com a morte de Vargas era preciso substituir o presidente, ficando nas mãos de João Fernandes Campos Café Filho, vice-presidente. Café Filho logo renova seu ministério contando com a maioria dos ministros da oposição udenista. Exclui-se deste quadro apenas o novo ministro da guerra nomeado, Henrique Batista Duffles Teixeira Lott, considerado legalista, que por sua vez, confirma no cargo de secretário o Coronel

70

Mattos. É importante salientar que a relação entre Mattos e Lott se inicia desde o Colégio Militar, quando Lott foi um dos seus instrutores de arma, como visto acima. Além disso, a amizade e empenho de Lott enquanto seu instrutor não foram esquecidos com o passar dos anos, o que pode ser indicado através da dedicatória de um dos seus livros aos “dignos mestres da Escola Militar” onde o seu nome aparece em meio a outros, em 1956, no livro “Os Monumentos nacionais – Estado da Bahia”. Além de Lott, outros professores foram lembrados por Mattos “pelo interesse com que se empenharam em ensinar bem, o que lhe cabia como encargos funcionais para que tivéssemos boa formação profissional. O que hoje somos, muito lhes é devido” xii. Nesse percurso realizado por Mattos, D. Umbelina Sant’Anna, sua filha, indica outro momento importante para o estreitamento de laços entre seu pai e Lott. Foi em 1932, após a guerra Constitucionalista de São Paulo na qual João Baptista de Mattos, enquanto coronel liderou uma tropa governista. Sob seu comando, durante a revolução, esteve um estimado primo de Lott que, nas palavras dele, “lutou com tanta bravura que morreu com uma bala no peito, na frente de seu pelotão. Um homem bom, estimadíssimo, que distribuía com seus soldados os abrigos e guloseimas que a senhora dele, muito carinhosa e dedicada, lhe mandava. Morreu em combate” xiii. Segundo Umbelina Sant’Anna, a solidariedade do Capitão com os cadáveres dos soldados que morreram em combate fizeram aproximar o Capitão de Lott. Conta que quando o soldado veio a falecer o Capitão Mattos tratou o cadáver com todo o respeito e não o deixou para trás o corpo. Lott ficou muito agradecido ao Capitão pelo respeito que tivera com seu ente querido. Dona Umbelina relata os detalhes desta empreitada em entrevista. Porém, posteriormente ao ceder entrevistas ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), contando sobre a morte de seu primo através das palavras supracitadas, ele não menciona em nenhum momento o nome de João Baptista de Mattos. Porém, como vimos, a relação entre os dois foi confirmada através das dedicatórias e no trabalho no Ministério da Guerra. Desde a morte de Vargas começou a se articular as próximas eleições que definiriam o novo presidente do Brasil. O PSD lançou Juscelino Kubitschek para dar continuidade à política getulista, enfrentando Ademar de Barros e Juarez Távora (e ainda, pelos integralistas, Plínio Salgado). A oposição temia a derrota e pregava a necessidade de adiamento das eleições. O general Canrobert Pereira da Costa, em

71

solenidade de 1 ano da morte de Rubens Vaz fez um discurso alarmante que salientava a necessidade de decidir “entre uma pseudolegalidade, imoral e corrompida, e o restabelecimento da verdade e da moralidade democrática mediante uma intervenção aparentemente ilegal”

xiv

. A grande preocupação do grupo era que entendiam que a

consciência política dos trabalhadores havia sido corrompida com os direitos sociais e com isso continuariam votando nas lideranças, que acusavam de demagógicas, afirma Ferreira. Dentro desse contexto, Jorge Ferreira indica três grupos políticos com projetos diferentes. No primeiro representado por Zenóbio, era defendido o nacionalismo e a legalidade, no qual também se insere Lott que foi conhecido como “príncipe da legalidade”, como veremos, e Mattos, que a todo momento esteve próximo no trabalho político destes militares. O segundo, chamado de nacionalistas de esquerda, defendia-se a soberania nacional, mas não se envolvia em polêmicas sobre o apoio ou oposição ao comunismo. O terceiro grupo, indicado como cosmopolita de direita, agia contra o nacionalismo, o trabalhismo e o comunismo. Em meio a estes projetos Lott, que insistia na ideia de enquadramento nos moldes militares, percebeu que as Forças Armadas estavam divididas entre si e no seu interior. Porém, Juscelino venceu as eleições realizadas em 3 de outubro de 1955, com estreita diferença de votos. Forças políticas começaram a se articular contra a posse do novo presidente. Jorge Ferreira relata que, após o falecimento do general Canrobert Pereira da Costa, o coronel Jurandir Mamede pronunciou durante o velório um discurso desafiador da hierarquia, que acusava a democracia no Brasil de imoral e corrompida. Com esse discurso no Ministro da Guerra, Lott, estava disposto a restabelecer a legalidade e a hierarquia punindo Mamede pelo tom golpista. Mas, devido a posição funcional de Mamede era preciso pedir o apoio do presidente para a aplicação da sanção. Esta situação foi agravada pelo afastamento de Café Filho da presidência por problemas de saúde. Em seu lugar assume o presidente da Câmara dos Deputados, Carlos Luz, próximo na sucessão presidencial. Carlos Luz convocou Lott, para uma reunião marcada às 18 horas. Depois de passadas duas horas de espera, teve seu pedido de punição negado. Com a humilhação pela longa espera, Lott demite-se do cargo. Logo os jornais e membros das Forças Armadas tomaram conhecimento da situação.

72

Jorge Ferreira afirma que as possibilidades de golpe eram reais e claras. Lott chegou à conclusão de que a posse do novo presidente corria sérios riscos e começou a articular um golpe preventivo, com a intenção de garantir a posse de JK. Lott mobilizou as tropas no Rio de Janeiro em uma ofensiva contra o governo. A intenção era garantir o cumprimento da Constituição com uma medida preventiva, chamada de contragolpe. Tropas dos estados do Rio de Janeiro, Espírito Santos, Minas Gerais e São Paulo se posicionaram para o cumprimento da legalidade. Envolvido com o governo e trabalhando diretamente no Gabinete do Ministério, o Coronel de Brigada Mattosxv, apoiou às iniciativas de Lott e a este movimento preventivo. Mattos esteve participando do movimento, mas não sabemos de que maneira e em que grau isso ocorreu. Para dar legalidade ao ato, Lott convocou uma sessão extraordinária na Câmara para a eleição de um civil para ocupar a presidência após o golpe. A Câmara dos Deputados concordou em entregar o cargo para Nereu Ramos, que seria o próximo na linha sucessória. Fortalecido com o apoio de tropas do Exército, Lott cercou tanto os Promovido em setembro deste ano através da carta-patente prédios públicos quantos prédios da imprensa. O presidente Carlos Luz, sentindo a deflagração do golpe já havia fugido. Carlos Luz se refugiou no Cruzador Tamandaré, com a intenção de organizar uma resistência em Santos. Percebendo a falta de apoio também das tropas do Exército de São Paulo, ainda dentro do Cruzador, através de rádio, Luz ordenou que não houvesse resistência ao golpe. O Congresso Nacional então concedeu o poder executivo à Nereu Ramos, vice-presidente do Senado. Logo depois, a pedido dos ministros militares, foi decretado o Estado de sítio por trinta dias. O próprio Coronel Mattos entendeu como necessárias a aplicação da medida, apresentando, inclusive, algumas justificativas para a aplicação do Estado de Sítio expressas através de um relatório ao General Antônio José de Lima Camara: “ - Exaustão pela intensidade da Campanha eleitoral (em) que houve muita paixão para o pleito estadual e pouco apreço ao federal; - Forte entrelaçamento de famílias entre candidatos adversários; - serem os políticos presos ao estado pelos haveres que nele possuem e portanto ligados por interesses economicos e não por aventuras; - ser a imprensa ainda dirigida por idealistas e não por forças econômicas; - não ter grande alcance o éco do que for feito sòmente para causar efeito temporário”

xvi

.

73

Consta que Mattos foi designado como delegado do executor do Estado de Sítio do Estado de Mato Grosso. Sua função neste Estado era garantir que a lei estivesse sendo cumprida e assegurar a legalidade xvii. Ainda no mesmo relatório percebemos que quando por lá esteve, o tenente-coronel tentou por muito se reunir com o governador, que segundo Mattos, por não ter sido reeleito, não se interessou em cooperar com o estado de Sítio e não fez questão de se encontrar com o mesmo. Além disto, Mattos se reuniu com representantes da imprensa do Estado para pedir que não criassem “ambiente para a censura efetiva”. Mattos exerceu seu comando como delegado do executor do Estado de Sítio ordenando a libertação de dois presos políticos, Antônio Sobreira e Adolfo Borges, por considerar estas condenações impostas como ilegais. Apesar disto, avaliou que tudo correu bem durante o estado de Sítio em Mato Grosso, concluindo que o “o mal do Brasil reside apenas no aventureirismo político”. O Coronel Mattos esteve ao lado de Lott durante todo o governo Juscelino na secretaria de guerra. Em entrevista concedida ao CPDOC Lott afirma que enquanto ministro agiu em favor da justiça: “E eu agi, quando estive no Ministério da Guerra, não no sentido de evitar problemas de subversão da ordem, mas no sentido da justiça militar e da justiça social...”

xviii

. O trabalho que realizaram no ministério ajudou a

acalmar os ânimos que há tempos vinham exaltados no Exército, fervilhados por lutas políticas. Mattos se mantém no cargo de secretário da guerra durante todo o governo Kubitschek. Já no posto de General de Brigada desde 1955, João Baptista de Mattos se afasta do Exercício de função no gabinete do Ministério da Guerra no dia 10 de agosto de 1961xix. No dia 25 de agosto, Jânio Quadros renuncia à presidência do Brasil. É curioso notar que a distância entre o afastamento de Mattos do gabinete do Ministério da guerra tenha antecedido à renúncia do presidente em apenas quinze dias. Uma das possibilidades para o ocorrido é a não compatibilidade com o que pensa e age o novo Ministro da Guerra empossado com o novo governo, Odílio Denys. Pois nos acontecimentos que se seguem à renúncia veremos que, o novo ministro mostrará sua posição realmente oposta ao grupo que, neste momento, defendia a legalidade constitucional. Em segunda hipótese, é possível supor que, talvez percebendo que a situação política brasileira não caminhava bem, resolveu se afastar do envolvimento político direto. Pois com a renúncia de Jânio o Brasil entra em uma séria crise política, que segundo Jorge Ferreira chegou perto da deflagração de uma guerra civil.

74

No dia 3 de agosto de 1961 Mattos é promovido ao posto de General de Brigada e apenas 7 dias depois, no dia 10 de agosto, se afasta do Ministério da Guerra e é conduzido para a 9ª Região Militar, para atuar sob suas funções de General. Serviu ao Exército nesta Região até ser conduzido para a reserva, em 28 de julho de 1964, aproximadamente 3 meses após os militares tomarem o poder. O primeiro presidente militar é o Marechal Castelo Branco, conhecido de Mattos desde os bancos do Colégio Militar. A sucessão do governo Castelo foi conquistada em 1967 pelo militar Costa e Silva, que também havia estudado, décadas atrás, na Colégio Militar do Realengo, junto com o Marechal Mattos. O afastamento de Mattos de suas funções militares e a não aproximação da política nesse período corrobora com o silêncio sobre os seus nomes na dedicatória oferecida aos seus amigos de Colégio Militar. Além de um afastamento social, pode-se entender um afastamento em posição política. Com base nas considerações feitas acima, é possível perceber que por mais que não se encontre indícios diretos sobre o posicionamento político do próprio marechal Mattos, suas escolhas, seus silêncios e o depoimento oral de sua filha caminham no mesmo sentido. A sua participação no ministério da guerra no momento em que se primava pela legalidade e sua permanência por anos, pode ser considerado como um apoio político ao posicionamento de Zenóbio e Lott neste período. Seu afastamento da cena política antecedeu a crise política que culminou no golpe civil-militar de 1964. Seu afastamento para reserva três meses depois apontam para a sua exclusão dessa cena política que corrobora com a não sociabilização com seus colegas do Colégio Militar que aqui são presidentes de uma ditadura.

75

NOTAS * Bacharel e licenciada em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro; Mestranda do programa de Pós-Graduação da Universidade Federal Fluminense. ** Orientador Prof. Dr. Marcus de Oliveira Ajuruam Dezemone. i Entrevista com D. Umbelina, janeiro de 2013. ii MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Manual de História Oral. São Paulo: Loyola, 1996. iii Dentro deste contexto, as ações do indivíduo estão inserida na discussão que Joan Scott levanta quando considera o agir e as atitudes do indivíduo como movimentos sociais. iv Entrevista com D. Umbelina, janeiro de 2013. v COLÉGIO PEDROII. Livro de registro de matrículas dos alunos do Externato. 1896-1914. 300p. vi ACERVO FAMILIAR. Boletim comemorativo do aniversário da turma de aspirantes a oficial de 18 de janeiro de 1921. Quartel General do estado da Guanabara, Janeiro de 1981. vii MATTOS, João Baptista de. “Os Monumentos Nacionais – Mato Grosso”. Rio de Janeiro: Imprensa do Exército, 1957. viii FERREIRA, Jorge. “Crises da República: 1954, 1955 e 1961”. In: FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucília de Almeida Neves (org.). O Brasil Republicano. O tempo da experiência democrática. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003. ix FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo : Edusp, 1999. x FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo : Edusp, 1999. xi FERREIRA, Jorge. Crises da República: 1954, 1955 e 1961. In: FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucília de Almeida Neves (org.). O Brasil Republicano. O tempo da experiência democrática. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003. xii MATTOS, João Baptista de. Os Monumentos Nacionais – Estado da Bahia. Rio de Janeiro: Imprensa do Exército, 1956. xiii LOTT, Henrique Batista Duffles Teixeira. Henrique Teixeira Lott (depoimento, 1978). Rio de Janeiro, CPDOC, 2002. xiv FERREIRA, Jorge. Crises da República: 1954, 1955 e 1961. In: FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucília de Almeida Neves (org.). O Brasil Republicano. O tempo da experiência democrática. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003. xv Promovido em setembro deste ano através da carta-patente: ACERVO FAMILIAR. Carta-patente do posto de general de brigada. Rio de Janeiro, DF, 10 de setembro de 1955. xvi ACERVO FAMILIAR. Ofício enviado pelo General João Baptista de Mattos ao General Antônio José de Lima Camara – Relatório com 5 páginas. Corumbá, MT, 15 de fevereiro de 1956. xvii ACERVO FAMILIAR. Ofício enviado pelo General João Baptista de Mattos ao General Antônio José de Lima Camara – Relatório com 5 páginas. Corumbá, MT, 15 de fevereiro de 1956. xviii LOTT, Henrique Batista Duffles Teixeira. Henrique Teixeira Lott (depoimento, 1978). Rio de Janeiro, CPDOC, 2002. xix ACERVO FAMILIAR. Carta-patente do posto de general de brigada. Rio de Janeiro, DF, 10 de setembro de 1955. E AQUIVO HISTÓRICO DO EXÉRCITO. Setor Pessoal. Dados Biográficos de João Baptista de Mattos.

76

GOLBERY DO COUTO E SILVA E CARL SCHMITT: OS DILEMAS ENTRE A DEMOCRACIA O AUTORITARISMO

Alex Conceição Vasconcelos da Silva1

Resumo Esta comunicação tem como objetivo analisar o projeto político-intelectual do Gal. Golbery do Couto e Silva (1911-1987), que atuou ativamente na esfera pública brasileira entre os decênios de 1950-80. Uma análise preliminar do pensamento

de

Golbery demonstra uma intensa aproximação com o pensamento do teórico alemão Carl Schmitt, acerca de sua teoria acerca do decisionismo na política e, do conflito entre amigo/inimigo, desenvolvido numa vasta obra, na qual pode-se dizer que as

suas

principais publicações são: A Crise da Democracia Parlamentar e Teología política, cujo objetivo era o por fim ao conflito, com a derrota total do inimigo. Em Golbery, essa perspectiva é perceptível durante a fase em que lecionou na ESG (1952-1955), conforme podemos observar na análise de suas publicações: Pensamento Estratégico e Geopolítica do Brasil, cujas bases foram as suas conferências como professor da ESG. Nesse trabalho pretendo analisar, num viés teórico, o projeto de modernidade defendido pelo Golbery, reconhecido como ideólogo da ESG, cujo “lema” era Segurança e Desenvolvimento, servindo de fundamentação teórica e política para o Regime Militar brasileiro (1964-85). Palavras-Chave: Golbery do Couto e Silva; Carl Schmitt; Autoritarismo.

Abstract This communication aims to analyze the political and intellectual project Gal. Golbery do Couto e Silva (1911-1987), who was active in the Brazilian public sphere between the decades of 1950-80. A preliminary analysis of the thought of Golbery shows an intense approach to the thought of the German theorist Carl Schmitt, about his theory 1

Doutorando do Programa de Pós-Graduação de História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Pesquisa financiada pela CAPES. E-mail: [email protected]

1 77

about the decisionism in politics and the conflict between friend / enemy, developed a vast work, which can be said that its main publications

are:

The

Parliamentary

Democracy Crisis and political Theology, whose aim was to end the conflict, with the total defeat of the enemy. In Golbery, this perspective is noticeable during the stage where he taught at ESG (1952-1955), as can be seen in the analysis of its publications: Strategic and Geopolitical Thought Brazil, whose foundations were his lectures as a professor at ESG. In this paper I analyze in a theoretical bias, the project of modernity advocated by Golbery recognized as ideologue of ESG, whose "motto was" Security and Development, serving as a theoretical framework and policy for the Brazilian military regime (1964-85). Keywords: Golbery do Couto e Silva; Carl Schmitt; Autoritarismo.

Introdução A presença do general Golbery do Couto e Silva na história política do país, como no pensamento político brasileiro, é de notável importância e as análises dai decorrentes já suscitaram algumas controvérsias2. Seu nome pode ser encontrado em estudos historiográficos e das ciências políticas, tanto quanto na área do jornalismo político, e a sua lembrança estará para sempre associada a um acontecimento histórico da maior relevância para a história política brasileira: o golpe de 1964, originado a ditadura que governou o país durante 21 anos. A obra escrita de Golbery revela o pensamento de um militar intelectual contemporâneo a seu tempo e apoiado em uma visão histórico-filosófica do Ocidente. Resume de certa forma a ideologia dominante nas Forças Armadas brasileiras, arquitetada desde o rompimento do segmento militar denominado “Cruzada Democrática” com o governo Vargas em 1937, passando pela criação da Escola Superior de Guerra em 1949, até sua consolidação hegemônica através do movimento da denominada “Revolução de 1964”. A análise de seus livros indica precisamente a construção dessa ideologia de “cooperação ocidental” que propunha integrar o Brasil ao “bloco do Ocidente cristãodemocrático” em oposição ao discurso da soberania nacional proposto pelo 2

campo

Os estudos acerca do Golbery guiam basicamente em duas direções: a primeira é a que enfatiza o caráter geopolítico de sua obra, analisando-o como um dos estrategistas das relações internacionais brasileiras; a segunda é a que enfatiza o seu caráter discreto enquanto ator político, havendo uma certa “mitologia”, devido a sua principal característica: a de ter sido uma “eminência parda”.

78

“nacionalista progressivo”. Não obstante, as causas e vantagens apontadas pelo autor sugerem um indisfarçável oportunismo patriótico através do discurso de cooperação. Se desse certo, o Brasil estaria no “primeiro mundo. Tão mais evidente é a visão ideológica que transcorre seus livros, estruturada mundialmente com a Guerra Fria, em que o Ocidente teria de se opor ao comunismo “ateu e totalitário”, por conta do qual as forças progressivas teria se tornado crescente vulnerável. O Brasil era então, na concepção de Golbery, um país de frágeis instituições políticas, e consolidar uma sociedade democrática, livre da “ameaça comunista” e da “xenofobia” do nacionalismo, dependeria de uma intervenção autoritária que suspendesse temporariamente as liberdades individuais para garantir, num futuro a curto prazo, a realização de uma nação política, econômica e socialmente moderna. Sua visão histórica do ocidente, com base nas leituras da filosofia da história, se desenha tal qual um complexo mosaico de caráter fatalista, porém não ao absoluto, justamente por que composto de uma dualidade entre o pessimismo de Oswald Spengler e a esperança de Arnold Toynbee. Esta influência o levou a assumir uma

postura

visionária e redencionista ao propor a alternativa contraditoriamente autoritária para assegurar o desenvolvimento da democracia brasileira, o que estaria nos planos da estratégia ocidental de defesa de seus valores básicos ameaçados pelo comunismo. A denominada “Revolução de 64” significaria, assim, um ato calculado de ruptura política. Respondeu à demanda de alguns setores da sociedade insatisfeitos com a condução que se dava ao Estado brasileiro. Foi, a grosso modo, a tentativa de modernizar a economia do país através de um modelo tecnocrático de crescimento rápido que o livraria da ameaça ideológica, mais que física, do comunismo proscênio da Guerra Fria. As ideias do general Golbery do Couto e Silva vem merecendo uma atenção ainda não suficientemente dispensada, senão de maneira superficial. O objetivo dessa texto é analisar as raízes teóricas de seu pensamento, em suma, as teorias que ele absorveu em seu projeto político-ideológico.

O Pensamento de Golbery Golbery sustentou a tese que vinculou um projeto global de desenvolvimento a um

79

planejamento de segurança nacional3. Tal estratégia dá à obra o caráter de um planejamento capaz de levar o Brasil a condição de país desenvolvido, objetivo de época equissonante à sua inserção no chamado “Primeiro Mundo”. A viabilidade desse projeto dependeria da capacidade político-administrativa do Estado em organizar uma elite tecnocrática civil e militar para orientar este desenvolvimento com o auxilio da iniciativa privada e o apoio financeiro internacional. O “guia” do projeto seria fornecido por uma doutrina de segurança nacional que preconizasse o apoio do Brasil à liderança dos Estados Unidos na defesa dos valores e interesses ocidentais, contra as pretensões universalistas do expansionismo soviético. A democracia estaria ai entre os valores fundamentais do

ocidente

e

sua

garantia

demandava, segundo Golbery, a consecução do referido projeto de desenvolvimento. Sua execução implicaria numa eventual e temporária suspensão de direitos individuais com o objetivo de combater o oportunismo do inimigo comunista. Acreditar em um desenvolvimento auto-sustentado, em seu entendimento, seria ignorar nossa defasagem tecnológica, que jamais seria superada sem a ajuda expressiva de um país adiantado e convicto da importância desse auxilio para a defesa do mundo ocidental. O objetivo de Golbery será, portanto, o de justificar a importância de um país sul-americano como baluarte do Atlântico Sul e, por conseqüência, tornar o Brasil a opção preferencial por investimentos norte-americanos. Em Geopolítica do Brasil, para justificar a necessidade de investimento norte-americanos, Golbery faz minuciosas descrições da posição geográfica e política do Brasil frente aos seus vizinhos, demonstrando as possíveis vantagens que o país teria a oferecer para tratar a desejada aliança bilateral com os Estados Unidos4. Para a consecução do planejamento que orientasse o desenvolvimento brasileiro à condição de país “desenvolvido”, exigiria do Estado, o surgimento de uma nova elite que agisse politicamente e administrativamente de forma centralizada, restringindo ou 3

Em outros termos,a Doutrina de Segurança Nacional, que Golbery ajudara a desenvolver enquanto instrutor da Escola Superior de Guerra entre 1952 a 1955. Para Birkner, “não haverá receios em afirmar que Planejamento Estratégico e Geopolítica do Brasil se confundem, pela semelhança, com a doutrina de Segurança Nacional” In: BIRKNER, W. O realismo de Golbery, p. 33. Essa semelhança justifica-se já que o modelo defendido era planejamento, segurança e desenvolvimento. 4 Para Golbery, a aliança incondicional entre o Brasil e os EUA era fundamental para o Desenvolvimento brasileiro, porém em sua concepção o melhor modo de atrair os investimentos norte-americanos era demonstrando a importância estratégica do Brasil para a segurança nacional dos EUA, como fizera a Europa Ocidental logo após o término da II Guerra Mundial, recebendo em troca os financiamentos do Plano Marshall, assim como o Japão, com sua singular importância estratégica no pós Revolução Chinesa (1949) recebera financiamentos do Plano Colombo.

80

suspendendo liberdades individuais para evitar atitudes contestatórias que pudessem por em risco o planejamento para o desenvolvimento econômico. Na Geopolítica do Brasil, aparece de forma muito clara a necessidade da aliança com os Estados Unidos, como única alternativa para o desenvolvimento. Porém, menos claro estava a face autoritária do planejamento. Golbery deixa implícito aquilo que Oliveira Vianna já havia explicado há décadas atrás. Assim, considerar as peculiaridades brasileiras

significava,

no

fundo,

admitir

uma

cultura

política

autoritária

e

democraticamente instável. Mais que isto, significava respeitar os ensinamentos da história que revelavam uma estrutura política marcada por vários momentos de centralização ou fechamento. No Brasil, a garantia da unidade nacional e da estabilidade sempre dependeram da ação intervencionista do Estado para proteger “as mais profundas aspirações” de uma sociedade fragilmente estruturada. E, na ótica de Golbery, a instabilidade política do ocidente, aliada a vulnerabilidade da estrutura política nacional fazia ver a necessidade de suspender as liberdades democráticas para fortalecer, através da centralização do poder, as bases de uma futura sociedade democrática5. Golbery tinha, o que era próprio de seu conhecimento sobre a história do Brasil, noção da tradição ibérica de que o Estado sempre fora institucionalmente o fundador da sociedade, e não o contrário – leia-se a formação histórica das sociedades anglo-saxãs já descrita por Oliveira Vianna, em que o Estado é de certa maneira, o reflexo da sociedade. Desse modo, a construção de uma sociedade moderna e “democrática” no Brasil também teria que ser obra do Estado. Ou seja, a falta de maturidade política da sociedade brasileira é a marca do pensamento de Golbery. Podemos inferir que, para Golbery de que democracia, bem-estar social e desenvolvimento econômico são sinônimos de segurança. Mas lhe é igualmente certo que estes componentes só serão alcançados através de um planejamento de segurança, que se não poderia partir de um governo despótico, tampouco seria possível através de um governo regulado pelas regras do jogo democrático da Quarta República (1945-1964). De todo modo teria de vir de um governo forte, já que a sociedade nunca lhe inspirara confiança. Aliás, isso conduz a outra concepção que Golbery sempre teve em mente: a de que jamais, em qualquer tempo, a construção política brasileira fora o resultado efetivo de

5

Esta é, aliás, a ideia mais clássica do pensamento de Oliveira Vianna.

81

grande participação da sociedade. Pois quando Golbery fala da importância de se observarem “as raízes de um povo num passado tradicional ou recente”, está também aludindo a esta característica da formação social brasileira. Assim o autor vai demonstrando persuasivamente os limites a serem impostos a um povo que deseja alcançar suas mais genuínas aspirações: é implantando um regime político que respeite suas “mais genuínas” peculiaridades. Contudo, se a democracia é uma aspiração permanente do povo brasileiro, pela sua identidade cultural de país ocidental, não é contraditório a Golbery admitir que o Brasil não tenha a necessária tradição democrática, no sentido de participação popular. Isto significa dizer, que em sua interpretação, a pré-disposição à democracia seria uma das propriedades do povo brasileiro, em razão do seu “espírito de liberdade”. Na contrapartida, porém, faltaria a experiencia necessária no campo democrático, capaz de aperfeiçoá-la sem a ameaça da anomia social. Se a democracia era um valor fundamental a ser alcançado, para ele, contudo, não era o próprio meio de sua consolidação. Golbery não entende a democracia como um processo, mas como um fim a ser realizado. É assim que ele via a realidade brasileira: uma sociedade convicta pelo ideal da democracia, porém sem uma cultura democrática madura. A democracia no Brasil não lhe parecia um processo de construção da própria sociedade, devendo ser uma espécie de concessão do Estado, possibilitada por etapas, até que a sociedade estivesse preparada para usufruí-la de modo mais amplo. Em decorrência dessa visão, é fácil concluir que o desenvolvimento econômico não poderia correr o risco de uma democracia frágil, e só poderia ser encaminhado em pleno ambiente de segurança nacional. Uma vez alcançado, é que tal desenvolvimento daria as bases para uma sociedade democrática. Manifesta-se aí a crença, comum a todos, de que não poderia haver democracia sem desenvolvimento econômico e que, por extensão, este desenvolvimento só poderia ser operado por um Estado tecnocrático e autoritário, que permitisse eficiência e controle social. Dentro desta ótica, portanto, democracia não é caminho para o desenvolvimento econômico. Estreitamente vinculada a esta fragilidade democrática estaria a falta de racionalidade, outra “peculiaridade” da sociedade brasileira. A frente disso, um Estado brasileiro, mero reflexo, com significativos índices de ineficiência e corrupção,

82

se

mostraria incapaz de levar o país rumo a conquista de suas aspirações6. E não é senão este o sentido da Doutrina de Segurança Nacional, ou seja, o de incutir na sociedade brasileira um espírito disciplinado, de colaboração às suas elites, na direção de uma sociedade moderna e apta a se condicionar, preparar e assumir o compromisso com as suas aspirações num futuro que seria tanto mais próximo, quanto antes o Estado fosse capaz de encaminhá-lo, e construí-lo para que a sociedade dele desfrutasse.

Golbery e Schmitt Carl Schmitt foi o pensador autoritário mais criativo do século XX, cujo foco é o enfrentamento entre as pessoas e entre os grupos políticos. Para Schmitt, o que marca a política é a busca pela imposição7 do grupo político vencedor em relação ao grupo político vencido. A tendência de fugir para uma política marcada pelo conflito e pela falta de consenso é algo que o século XX e a história como um todo demonstra com exaustão, principalmente, no caso alemão, marcado pela instabilidade política e pela decadência completa do Estado Liberal, representado pela República de Weimar (1918-1933). No âmbito do pensamento schmitteano, a política e o Estado não podem ser neutros porque a existência humana, o poder e o Direito não o são. Portanto, a oscilação entre os centros de gravidade nos leva a conclusão de que nem mesmo a busca da neutralidade, ou melhor, da tecnização é suficiente para superar a força do enfrentamento político e das suas consequências. No século XIX, onde se desenvolve a última fase mencionada por Carl Schmitt, o liberalismo e os valores da burguesia industrial se encarregaram de estabelecer uma conexão entre o econômico e o técnico. O século XX começa com o império da técnica e com a busca da neutralidade, que esbarra na existência política, isso significa que o império da técnica é impotente perante a força do poder político8. Em A Crise

6

da

Um estudo importante sobre os índices de racionalidade social e eficiência do Estado foi feito por Hélio Jaguaribe. O autor afirma que sociedades com baixo nível de racionalidade acabam gerando racionalidade pública proporcional, perpetuando o subdesenvolvimento. Segundo Jaguaribe, isto explicaria as extremas dificuldades de superação do subdesenvolvimento nas décadas seguintes a II Guerra Mundial. In: JAGUARIBE, H. Sociedade, Estado e partidos políticos na atualidade brasileira, 1992, p. 15. 7 SCHMITT, C. Concepto de lo político. Buenos Aires: Editorial Struhart, 2006. 8 SCHMITT, C. La época de la neutralidad. Buenos Aires: Editorial Sruhart, 2009. p. 21.

83

Democracia Parlamentar, Schmitt demonstra sua angustia perante as limitações do poder Executivo em prol do legislativo, retirando dessa forma o poder de decisão do aparelho estatal. A evolução da moderna democracia de massas transformou a discussão pública, argumentativa, numa simples formalidade vazia, em que os partidos não se apresentavam mais em posições divergentes, mas como grupos de poder sociais ou econômicos, que calculam os interesses e as potencialidades de ambos os

lados

para

selarem

compromissos e formarem coalizões, levando a um antagonismo amigo/inimigo entre esses grupos políticos divergentes. O antagonismo amigo/inimigo, alçado por Schmitt à condição de critério de identificação do político, é uma das principais categorias da sua obra, a chave, que abre as portas para a compreensão de um mundo hostil em que a única saída para a paz é a imposição do domínio por parte do grupo mais forte, em outros termos, o antagonismo político leva a vitória o grupo politicamente mais forte, que em razão de sua força, vai se impor sobre os demais. Na verdade, o antagonismo schmitteano é um enfrentamento de último nível entre as diferenças que existem entre o eu e o outro, uma espécie de choque irreconciliável de “civilizações” ou de “projetos de civilizações”9. O antagonismo atua, ademais, como ausência notável de tolerância e de diálogo, ausência nascida de contingências históricas que levam o grupo político a sobreviver e se impor ou a ser destruído ou incorporado ao agrupamento vencedor. O antagonismo funda-se, em geral, na incompatibilidade política ou da impossibilidade de harmonizar pontos de vistas diferentes (criação de uma democracia, de um regime teocrático, de uma ditadura militar, etc.), acerca de aspectos considerados pelos grupos políticos como estruturantes para a vida de uma comunidade. A conjuntura em que Golbery vivera nac década de 1950 é, de certo modo, análoga ao cenário vivido por Schmitt, pois o sistema representativo brasileiro, no qual emergira a democracia de massa pós-Estado Novo era estranho à cultura

política

brasileira, marcada pelo autoritarismo. O referencial de Carl Schmitt é fundamental para a compreensão da mentalidade de Golbery porque, ao expor o ideário do teórico alemão é, de certa maneira, semelhante ao pensamento não só de Golbery, como dos militares conservadores em relação ao antagonismo amigo/inimigo entre grupos políticos divergentes. No caso brasileiro, a polarização entre a tecnocracia e o poder

9

SCHMITT, C. Op. Cit. p. 77.

84

das

oligarquias, além da vinculação das massas com o ideário inimigo (comunismo e trabalhismo), levava a uma situação, na perspectiva de Golbery, de um quadro próximo da anomia, cuja solução era a “suspensão temporária da democracia”. Em suma, Carl Schmitt, no plano do pensamento conservador, é essencial para compreender o processo de ruptura com a democracia, como foi no caso de Golbery e os esguianos em 1954, quando conspiraram contra Vargas através do Manifesto dos Coronéis, e em 1955, quando conspiraram tentando impedir a posse do Presidente eleito Juscelino Kubitschek.

Conclusão Golbery reunira todos os fatores que pudessem justificar o seu pensamento, demonstrando o desenvolvimento da história política brasileira (fundamentando-se em Oliveira Vianna), demandando uma transição operacionalizada pelo Estado, para que o Brasil pudesse desenvolver economicamente, porém o Estado teria que ter outros atores políticos em seu comando, atores tecnocráticos, vinculados com o ideal do planejamento, e livre da instabilidade e da ambiguidade que o caracterizou durante a Quarta República (a batalha pelo espaço público – que consequentemente ,levou a uma polarização na sociedade brasileira naquele período, levando a um profundo antagonismo, de certa maneira mortal, entre amigo/inimigo). E as metas deste

planejamento

estariam

plenamente assentadas na Doutrina de Segurança Nacional, cuja configuração ideológica nos autoriza realizar a seguinte afirmação: é a expressão do pensamento de cristalizado pelo Golbery, que marcou a conjuntura nacional após a emergência do Regime Militar em 1964.

BIBLIOGRAFIA COUTO E SILVA, C. Geopolítica e Poder. Rio de Janeiro: Univercidade, 2003. . Planejamento Estratégico. Brasília: Ed. UNB, 1981. DREIFUSS, René. 1964: A conquista do Estado. Ação, política, poder e golpe de classe. 2ª ed. revista. Petrópolis: Vozes, 1981.

85

IANNI, Otávio. O Ciclo da Revolução Burguesa. Petrópolis: Vozes, 1984. SCHMITT, C. A Crise da Democracia Parlamentar. São Paulo: Scritta, 1996. , Concepto de lo político. Buenos Aires: Editorial Struhart, 2006. , La época de la neutralidad. Buenos Aires: Editorial Sruhart, 2009. , Teología política. Madrid: Trotta, 2009. SCHWARTZMAN, S. Bases do autoritarismo brasileiro. 3ª ed. Rio de Janeiro: Campus, 1988. SKIDMORE, T. Brasil: de Getúlio a Castello (1930-1964). 4ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975. SPENGLER, O. A Decadência do Ocidente. Rio de Janeiro: Zahar, 1973. STEPHAN, A. Os militares na política: as mudanças de padrões na vida brasileira. Rio de Janeiro: Artenova, 1975. WEBER, M. Economia e Sociedade. Brasília: Ed. UNB, 2005. . Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1974.

86

IDENTIDADE EM CRISE: A RELAÇÃO ENTRE A CONSTRUÇÃO DE UMA ÉTICA DO TRABALHO MASCULINO, O DESEMPREGO E A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER EM VITÓRIA/ES (2002-2010) ALEX SILVA FERRARI1 Resumo: O Brasil do século XX foi marcado por rápidas e permanentes mudanças em seu tecido social. Desde a construção de uma república, ditaduras e democracias, o fortalecimento dos movimentos sociais e suas reinvindicações. Neste trabalho destacamos como a construção de uma ética do trabalho masculina no começo do século se relaciona com a crise da masculinidade da segunda metade do período, e se reflete nas denuncias da violência contra a mulher registradas na DEAM/Vitória entre os anos de 2002 e 2010. Palavras chaves: masculinidade; desemprego; violência de gênero. Abstract: The Brazil of the twentieth century was marked by rapid and permanent changes in the social fabric. Since the construction of a republic, dictatorships and democracies, strengthening of social movements and their claims. In this paper we highlight as the construction of an ethic of male labor at the beginning of the century is related to the masculinity crisis of the second half of the period, and is reflected in denunciations of violence against women registered in DEAM / Vitória between the years of 2002 and 2010. Keywords: masculinity; unemployment; gender violence; I. Feminismo e a violência contra a mulher A história do século XX é marcada por rápidas e profundas mudanças na sociedade mundial. Palco de duas grandes guerras, a primeira metade desse período foi a base de formação de uma revolução social e política do período pós década de 1950. Segundo Céli Regina Pinto2, a geração que nasceu no período das grandes guerras, ou nos anos posteriores, se empenhou na busca pela mudança de vários aspectos da sociedade em que estavam inseridos, a ordem era a não aceitação de um modelo de sociedade que remetesse ao período de conflito. Segundo a autora, é na esteira desse pensamento que os movimentos sociais se fortaleceram na segunda metade do século XX, quando grupos como, por exemplo, beatniks, hippies, ou os manifestantes nas ruas de Paris em maio de 1968, advogaram por uma revolução dos costumes, colocando em xeque os valores conservadores e as hierarquias sociais, que tradicionalmente regiam a vida em sociedade da época. Nesse contexto surge o que algumas autoras chamam de segunda onda do feminismo. Uma vez que o surgimento do feminismo como movimento social é muito anterior, datando do final do século XIX, sua atuação a partir da segunda metade do século XX merece destaque pois, como afirma Maria Amélia de Almeida Teles3, nesse período esse movimento social

87

emerge de forma mais ampla politicamente ao questionar as estruturas de poder, denunciar a exploração e a opressão de pessoas e se posicionando de forma enfática contra os resquícios de estruturas patriarcais na sociedade. No Brasil, Joana Maria Pedro4 observou que o feminismo de segunda onda se organizou por meio de grupos de reflexões, responsáveis pela divulgação dos temas ligados ao movimento, e espaço de debate acerca das questões que envolviam o universo feminino como, por exemplo, a sexualidade, a maternidade, o trabalho, a família, etc. Dentro desses grupos de reflexão, e consequentemente no movimento feminista como um todo, um dos temas que mais ganhou repercussão foi a questão da violência contra a mulher. Pinto5 enfatiza que nas décadas de 1970 e 1980, o feminismo ganhou bastante visibilidade na sociedade brasileira, o que possibilitou a exposição da violência contra a mulher na forma de um problema social. A partir de então, o feminismo passou a atuar não só junto a sociedade civil, mas também na política nacional, ao lutar pelo reconhecimento desse tipo de violência enquanto problema social e também politico, pois uma vez reconhecidas essas dimensões da questão, abriu-se o caminho para exigir do poder público medidas para o combate e erradicação desse fenômeno. Suely Souza de Almeida6 destaca que a primeira conquista do feminismo no sentido do reconhecimento da problemática da violência sofrida por mulheres, foi a criação de órgãos participativos na maioria dos estados, que tinham por objetivo pensar políticas públicas voltadas para as mulheres. No mesmo período foi criado uma versão nacional desses órgãos estaduais, O Conselho Nacional de Direito Das Mulheres (CNDM), que recebeu a mesma função. Ações como essa resultaram na criação as Delegacias de Defesa da Mulher (DDM), que mais tardes seriam conhecidas como Delegacias Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM). O primeiro passo no combate a violência contra a mulher estava dado, o poder público, ao criar um espaço destinado exclusivamente para o atendimento das vítimas dessa modalidade de violência, não só reconhecia o problema social por atrás desses acontecimentos, mas também dava o primeiro passo em direção ao combate e erradicação da violência contra a mulher. Para além de uma política pública de combate a violência, as DEAMs abrigam importantes fontes para o estudo e entendimento do quadro de violência vivido por tantas mulheres. Ao fazer o registro de ameaças e agressões, a polícia civil, entidade responsável pela operação das delegacias especializadas, produz fontes para o estudo dessa modalidade de violência não

88

letal, que possibilita a análise desse fenômeno. As fontes produzidas pelas delegacias especializadas, o Boletins de Ocorrência (BOs), segundo Lúcia Freitas 7, mesmo que não representem um quadro fidedigno da realidade, podem oferecer importantes informações acerca de um problema ainda silenciado. Uma vez que os casos de violência contra a mulher ainda estão envoltos pela privacidade do lar, a amostragem proporcionada pelos registros das DEAMs auxilia a desmistificar os processos envolvidos nesse tipo de violência. Foi pensando nessas questões que, no ano de 2008, o Laboratório de Gênero, Poder e Violência da Universidade Federal do Espírito Santo (LEG-UFES) iniciou o projeto de mapeamento da violência contra a mulher na cidade de Vitória, capital do estado do Espírito Santo, com base nos dados registrados nas denuncias da DEAM da cidade de Vitória (DEAM/Vitória). O mapeamento consistiu na coleta e inserção das informações dos BOs em um banco de dados do Microsoft Access, confeccionado para a pesquisa. Foram coletados dados de 12.255 boletins de ocorrências, registrados entre os anos de 2002 e 2010. O projeto de mapear a violência contra a mulher na cidade de Vitória faz-se necessário, uma vez que, segundo o Mapa da Violência8 e sua atualização9, o estado do Espírito Santo e sua capital, apresentam os maiores índices de feminicídios10 do pais. Segundo essa pesquisa publicada pelo instituto Sangari, a cidade de Vitória possui uma taxa de 13,2 feminicídios para cada cem mil mulheres, muito acima da média entre as capitais, que é de 5,4. Mesmo esses dados alarmantes, não são suficientes para quantificar a problemática da violência contra a mulher na cidade, uma vez que diz respeito apenas a modalidade de violência que pôs fim a vida da vítima, e não às modalidades não letais, que são o objeto de denúncia na DEAM/Vitória. É importante ressaltar a importância do estudo da violência não letal, pois esse fenômeno, aparentemente invisível, se inscreve por todo o tecido social brasileiro. No ano de 2010, a Fundação Perseu Abrano (FPA), em parceria com o SESC publicou uma pesquisa, na qual 40% das mulheres entrevistadas afirmaram já terem sido vítima de violência, e estima que a cada vinte e quatro segundos, uma mulher é agredida do país. 11 Diante de tais fatos, o projeto de mapeamento dessa modalidade de violência executado pelo LEG-UFES na cidade de Vitória, apresenta-se como estudo de grande importância na análise da questão da violência contra a mulher na atualidade. O processo de coleta dos dados para o mapeamento durou até o ano de 2014. Todavia, ainda com dados parciais, o mapeamento já fui utilizado como fonte em projetos de pesquisa de alunos de graduação em História da UFES que participaram do programa de Iniciação

89

Científica, assim como em três dissertações de mestrado já defendidas no programa de pósgraduação do mesmo curso. O mapeamento também é a fonte primária da pesquisa desenvolvida junto do Programa de Pós Graduação em História Social das Relações Políticas da UFES (PPGHIS-UFES), intitulada “Patriarcado, masculinidade e papéis sociais: o desemprego masculino e a violência contra a mulher em Vitória/ES (2002-2010)”, da qual este artigo se origina. A pesquisa tem como objetivo identificar o desemprego como motivador da violência contra a mulher em Vitória/ES, no período entre os anos de 2002 e 2010. II. O desemprego masculino nas denúncias da DEAM/Vitória (2002-2010) No processo de coleta de dados na DEAM/Vitória foi possível observar a repetição de alguns padrões nos registros dos BOs. O que mais nos chamou a atenção foi a incidência das questões financeiras nos relatos das vítimas. Para se ter ideia, no campo destinado ao registro da motivação dos crimes, do total de 12.255 registros, 1.342 citavam os problemas financeiros e o desemprego como motivação para a violência, todavia, em vários boletins que não estavam registrados sob essa motivação, as vítimas citavam em seus relatos algum fato relacionado a essa questão.12 No estudo desses casos percebemos que a origem do conflito entre as partes estava no comportamento desviante de um deles, no tocante à performance do papel social de gênero. Em alguns casos, o conflito se dava, pois a vítima estava no mercado de trabalho, e sua ausência do lar a impedia de cumprir seu papel tradicional de mãe e/ou esposa, já nos casos nos quais os autores eram os desviantes, maioria das vezes, eles falhavam no desempenho da função de provedor do lar, tradicionalmente atribuída ao homem. Em alguns casos, a combinação dessas duas situações foi o estopim para a agressão. No processo de análise desses casos uma relação curiosa chamou-nos a atenção na questão do desemprego. Heleieth Saffioti13 afirma que, o desemprego é uma motivação para a violência contra a mulher, pois ao perder sua fonte de renda o homem fica destituído de sua posição de poder, já que não é mais possível que ele provenha a casa, para além de uma cride de identidade, a situação de desemprego masculina pode levar a conflitos familiares, e na busca pelo reestabelecimento de sua dominação sobre os membros da família, a violência surge como uma opção para o homem desempregado e “desempoderado”. Entretanto, ao analisar os 1.342 casos registrados como tendo por motivação as dificuldades financeiras e o desemprego, apenas 52 casos citavam o não exercício de uma atividade remunerada como

90

motivação para a violência. Uma conclusão prematura poderia sugerir que a afirmação de Saffioti14 não se verificaria. Tendo isso em mente, uma nova seleção encaminhou essa pesquisa para outro prisma de análise. Ao selecionarmos os casos de violência registrados na DEAM/Vitória, que tinham como autores homens desempregados descobriu-se que, dos 12.255 casos, 1.170 registraram a profissão do autor como desempregado, ou indicavam que ele não exercia atividade remunerada. Grosso modo, 9,5% do total de denúncias registradas na delegacia especializada da cidade de Vitória entre os anos de 2002 e 2010, foram de autoria de indivíduos do sexo masculino que se encontravam em situação de desemprego, ou não exerciam atividade remunerada. Mesmo que essas denúncias não apontem o desemprego como motivação da violência em seus registros oficiais, descartar a participação dessa condição do autor nos pareceu prematuro. Na pesquisa, a qual esse artigo trata, advoga-se a ideia de classificação entre motivadores e detonadores da violência contra a mulher. A tabela a seguir nos auxilia a demostrar de que forma essa relação se constrói: Tabela 1 – Motivação dos casos registrados na DEAM/Vitória entre os anos de 2002 e 201015 Motivação Ciúme e outras situações Problemas familiares Álcool, droga e outras situações Desemprego e problemas financeiros Outras motivações imediatas Fonte: Boletins de Ocorrência de DEAM/Vitória

Número de Registros 4.374 3.326 2.358 1.342 3.922

Pelos registros da DEAM/Vitória, o ciúme seria a motivação com maior número de casos, seguido pelos problemas familiares. Todavia, essa tabela obedece a uma lógica baseada no senso comum de o que poderia ser a motivação de um agressor em praticar um ato de violência contra a vítima. Isso fica claro ao nos remetermos à pesquisa feita pelo Instituto Patrícia Galvão, em parceria com o instituto AVON16, na qual os entrevistados responderam quais seriam as possível motivações para a violência contra a mulher, 38% apontaram o uso de álcool/alcoolismo como motivador, 36% a agressividade e o sentimento de posse do homem sobre a mulher, 15% que seria a mulher quem provoca as agressões e 8% alegam que razões financeiras seriam por que a violência acontece. Em momento algum é possível afirmar que as motivações apontadas pela pesquisa anteriormente citada, e as registrada nos boletins de ocorrência, não tem qualquer participação nos casos aqui apresentados, todavia,

91

defendemos a necessidade de um olhar mais crítico e apurado sobre essa questão. Por exemplo, acreditamos não ser possível apresentar apenas o uso de drogas, lícitas ou não, como exclusiva motivação para um ato violento. Segundo Maria Cecília de Souza Minayo17, apesar de ser possível observar que o consumo masculino de sustâncias entorpecentes gera fatores que potencializam a incidência da prática da violência doméstica, o mesmo não se verifica ao observarmos o uso de tais substancias feito por mulheres. Desta forma, a participação dessas substâncias nos casos de violência não acontece de forma exclusiva, sendo necessário que se observe essa relação levando-se em consideração os fatores que envolvem o contexto social do seu uso. Diante deste quadro, creditamos ao uso de substâncias psicotrópicas valor de detonador da violência, o meio pelo qual ela acontece, e não como um motivador da mesma. Mesmo nos casos em que a motivação é registrada sob um marcador mais sólido, como o ciúme, enquanto sentimento de posse sobre a vítima, o estudo desses casos deve ser conduzido nas mais diversas frentes que expliquem as razões pelas quais esse sentimento acontece, e suas implicações na motivação da agressão. Por tanto, um olhar crítico sobre a fonte aqui utilizada nos mostra que, apenas a catalogação e quantificação dos dados registrados nos BOs não são suficientes para explicar o quadro estudado pela pesquisa da qual esse trabalho versa. Sendo assim, optamos por demostrar de que forma o desemprego é um motivador da violência contra a mulher na cidade de Vitória/ES, a partir de uma análise sócio cultural, historicamente conduzida, que nos auxiliará no entendimento da participação do desemprego, nos casos aqui apresentados. III. A construção da ética do trabalho masculino e a violência contra a mulher perpetrada por homens desempregados. Uma vez estabelecido que o viés de análise utilizado na pesquisa consistiria em um estudo aprofundado dos fatores sócio culturais que explicam a participação do desemprego masculino nos casos de violência, voltamo-nos ao início dessa pesquisa, no qual descobriu-se que o desvio do comportamento padrão dos papéis sociais atribuídos a cada sexo, era recorrentemente citado nos boletins de ocorrência. Faz-se necessário que se defina o que entendemos por papel social de gênero. Para Maria Beatriz Nader18, papel social é o conjunto de ações e atribuições exigidas de um indivíduo pelo meio em que está inserido, uma construção social acerca do comportamento

92

esperado de homens e mulheres, a partir dos costumes e valores da época. Exemplificando essa relação, Erving Goffman19, ao tratar da relação entre o indivíduo e a organização social, afirma que, a interação entre essas duas partes pode ser comparada a uma peça de teatro, na qual o indivíduo representa um papel, é observado por uma plateia, que simboliza a sociedade. A performance desse indivíduo deve sempre se ater as exigências de sua audiência, que se encarregará de julgar a veracidade de sua atuação. As relações de gênero tem desempenhado posição preponderante na construção dos papéis sociais, uma vez

que,

segundo Nader20, os papéis sociais de gênero já começam a ser atribuídos ao indivíduo antes mesmo do seu nascimento. Ao se descobrir o sexo do bebê, os pais já começam a preparar sua o enxoval da criança a partir de uma lógica binária que diferencia meninos e meninas, azul para o primeiro, e rosa para a segunda. Mas não só as manifestações materiais, mas a expectativas entorno daquele indivíduo já começam a ser formadas, antes mesmo que ele tenha consciência de sua existência. Da menina, espera-se que cresça e se torne uma esposa e uma mãe, dedicada aos afazeres domésticos e o cuidado da família, em suma, desenvolva atividades reprodutivas e limitadas ao ambiente doméstico. Já do menino, espera-se que seja forte, viril, que esteja sempre pronto para demostrar sua força e superioridade, e que, principalmente, desenvolva atividade produtoras, sendo por consequência o protetor e provedor da família. Essas atribuições se remetem a estrutura patriarcal que marcou o período colonial brasileiro, na qual homens e mulheres possuíam atribuições sociais complementares, mas desproporcionais nas relações de poder entre os sexos. Segundo Eni de Mesquita Samara21, esse tipo de relação que definia as estruturas da família extensa rural do período colonial, foi transferida para o modelo de família urbana e nuclear que surgiu no Brasil a partir do século XIX, garantindo a manutenção desse modelo de divisão de papéis sociais. Todavia, a autora destaca que esse modelo era mais comum apenas às famílias dos segmentos médios e altos da população, e que nas massas populares, o comportamento desviante era mais comum. Segundo Samara22, a necessidade do trabalho feminino para a subsistência da família, marcava as diferenças entre as divisões de atribuições das mulheres ricas para com as pobres, além da flexibilidade das relações afetivas serem uma característica daqueles que não integravam a elite econômica do país, uma vez que, sem condições de oficializar suas uniões pela instituição do casamento, era comum a dissolução de relações de concubinato, inclusive

93

levadas a cabo por mulheres descontentes, que por exercerem atividades remuneradas, tinham condições de se separarem de seus companheiros. Todavia, o início do período republicano brasileiro foi acompanhado por um esforço de modernização da sociedade brasileira como um todo. Riolando Azzi 23 identificou discursos moralizadores que, entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, buscaram normatizar as relações entre homens e mulheres, estabelecendo modelos rígidos de papéis sociais de gênero, o quais reproduziam uma lógica patriarcal na qual homens deveriam se encarregar do provimento do lar, por meio do trabalho, e a mulher deveria se voltar para a as atividades familiares, deixando ao homem o apanágio sobre o mundo público, político e do trabalho formal. Mesmo nas famílias nas quais o trabalho feminino era uma realidade, este passou a ser encarado como uma forma de complementação do orçamento familiar, e deveria ser temporário, o homem deveria, com o auxilio da esposa, buscar condições para ser capaz de sustentar a família, permitindo assim que a mulher se dedicasse de forma integral aos cuidados da casa. Antonia de Lourdes Colbari24 afirma que no imaginário das famílias operárias da primeira metade do século XX, o trabalho feminino era uma atribuição temporária que deveria auxiliar o trabalho masculino para a construção de um lar aos moldes do discursos modernizadores republicanos. Por esse motivo, segundo a autora, era comum que a esposas de operários só trabalhassem até a compra da casa própria, ou o advento do primeiro filho do casal, passando então a se dedicarem exclusivamente a atividades reprodutivas. Ao se dedicar ao estudo da formação da ética do trabalho, Colbari 25 identificou que esse processo coincide com a disseminação dos modelos rígidos de divisão de papéis sociais. Se o período entre o final do século XIX e início do século XX foi palco para a formação da sociedade republicana brasileira, ele também ficou marcado pelos primeiro passos do processo de industrialização do país. O surgimento da indústria demandava mão de obra para ocupar as linhas de produção, todavia, o trabalho no brasil, diferente das grandes nações liberais, não possuía alto valor social, pelo contrário, era encarado como atividade dos segmentos mais baixos da população. Segundo Colbari26, até a abolição no final do século XIX, a economia brasileira era extremamente dependente do trabalho escravo, o desenvolvimento de atividades laborais era atribuído somente a negros e homens livres que viviam em péssimas condições. Diante do estigma que envolvia o trabalho, e também a resistência em contratar a mão de obra negra, a saída encontrada pelos donos das industrias

94

foi a importação de mão de obra, principalmente de países europeus, os quais já haviam se industrializado, e possuía trabalhadores qualificados para o trabalho nas linhas de produção. Todavia, esses operários imigrantes trouxeram consigo sua própria cultura, fortemente influenciada pelas correntes socialistas e sindicais, o que gerou conflito com a categoria patronal brasileira. Colbari27 afirma que, diante dos conflitos com a mão de obra imigrante, a saída encontrada foi o esforço para a valorização do trabalho na sociedade brasileira a fim de criar uma classe operária nacional, que atenderia aos interesses das indústrias locais, e evitariam relações de trabalho tumultuadas. Os discursos que defendiam a função de provedor masculina se aliaram àqueles que construíam a imagem do trabalho como um dever social de todo homem, trabalhar deveria ser a ferramenta de ascensão social e moral de todo aquele que almejasse ser reconhecido como um cidadão de valor. O trabalho é então incorporado a construção da identidade masculina, sendo constituidor de sua subjetividade. O processo que ligou trabalho, masculinidade e papel social foi extremamente efetivo. O psicanalista Socrates Nolasco28 afirma que essa relação é tão significativa na vida do homem, que o desempenho de uma atividade remunerada vai influenciar na vida social, familiar e até sexual do homem. Sua relação com o trabalho é fundamental para a formação de sua identidade. Um homem sem trabalho é, segundo o autor, o homem sem um propósito. Devese considerar também a relação entre trabalho e dominação, citada anteriormente. É por meio da remuneração do trabalho que o homem garante a provisão da família, e consequentemente o domínio sobre ela. Desta forma, o desemprego representa uma forma de (des)identidade masculina e de perda de poder na família. Tendo-se, durante muito anos, se construído a ideia de que o trabalho é a forma de valor social do homem, assim como seu legitimador de poder dentro da família, o não exercício de uma atividade remunerada representa o oposto dessas fortes construções sociais. O homem desempregado passa a se enxergar como um pária entre aqueles que outrora foram os seus iguais. Destituído de poder e estigmatizado pela sociedade que o cerca, vivendo em uma crise de identidade, a violência pode se apresentar como uma forma de busca pela retomada do poder, uma vez que ao fazer uso dessa ferramenta objetificadora, o homem intensifica as diferenças de poder dentro da relação, já assimétrica, de poder para com a mulher. Desta forma, no imaginário masculino o emprego da violência contra a mulher, é uma forma de reconquistar o poder e a dominação, ambos perdidos em uma situação de desemprego.

95

1

Mestrando do programa de pós-graduação em História Social das Relações Políticas da Universidade Federal do Espírito Santo (PPGHIS-UFES), bolsista pela Fundação de Amparo a Pesquisa de Espírito Santo (FAPES), orientado pela professora doutora Maria Beatriz Nader; e-mail: [email protected]. 2 PINTO, C. R. J. Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2003. 3 TELES, M. A. de A. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1993 4 PEDRO, J. M. Corpo, prazer e trabalho. In: PINSKY, C. B.; PEDRO, J. M. (Orgs.). Nova história das mulheres. São Paulo: Contexto, p. 238-259, 2012. 5 PINTO, 2003. 6 ALMEIDA, S. S. de. Feminicídio: algemas (in)visíveis do público-privado. Rio de Janeiro: Reinverter 1998 7 FREITAS, L. Representações de papeis de gênero na violência conjugal em inquéritos policiais. Cadernos de Linguagem e Sociedade, 12(1), 2011, p. 128-152. Disponível em: . Acesso em: 28 jun. 2015. 8 WAISELFISZ, J. J. Mapa da violência: homicídio de mulheres. Rio de Janeiro: CEBELA/FLACSO, 2012. Disponível em acesso de 22 de jan. de 2015 9 WAISELFISZ, J. J. Mapa da violência: homicídios e juventude no Brasil. Rio de Janeiro: CEBELA/FLACSO, 2014. Disponível em < http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2014/Mapa2014_AtualizacaoHomicidios.pdf> Acesso em 25 de jan. de 2015 10 Feminicído é o termo utilizado para designar o assassinato de mulheres. 11 Pesquisa nacional realizada em agosto de 2010, sobre a Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e Privado, pelo Núcleo de Opinião Pública da FPA. Nessa pesquisa foram realizadas 2.365 entrevistas com mulheres e 1.181 com homens, distribuídas em 25 UFs nas cinco macrorregiões do país (N, S, SE, NE e C-O), cobrindo as áreas urbana e rural de 176 municípios na amostra feminina e 104 municípios na masculina, estratificados por porte (tercis macrorregionais: municípios grandes, médios e pequenos) e mesorregião. Amostragem probabilística nos primeiros estágios (sorteio dos municípios, dos setores censitários, quarteirões e domicílios), com controle de cotas de idade na seleção dos indivíduos (estágio final). Disponível em acesso em 25 de jan. de 2015. 12 Boletins de ocorrência da DEAM/Vitória. 13 SAFFIOTI, H. I. B.. Já se mete a colher em briga de marido e mulher. São Paulo Perspec., São Paulo , v. 13, n. 4, dez. 1999 . Disponível em . acessos em 20 jul. 2015. 14 SAFFIOTI, 1999. 15 Para a catalogação dos registros foram contabilizadas a frequência em que uma motivação foi registrada, uma vez que muitos boletins apresentam mais de uma motivação para o fato. 16 Pesquisa nacional realizada em fevereiro de 2009, sobre a violência contra a mulher, encomendada pelo instituto Avon ao Ibope, com apoio do instituto Patrícia Galvão. Nessa pesquisa foram realizadas 2002 entrevistas pessoais em todos os estados brasileiros, capitais e regiões metropolitanas. Disponível em acesso em 15 de jan. de 2015. 17 MINAYO C. S. Complexidade das relações entre drogas, álcool e violência. Cad Saúde Pub 1998. 18 NADER, M. B. A condição masculina na sociedade. Dimensões: Revista de História da. UFES, Vitória, n. 14, p. 461-480, 2002. 19 GOFFMAN, E. A Representação do Eu na Vida Cotidiana; tradução: Maria Célia Santos Raposo. 13ª Edição. Petrópolis: Editora Vozes, 2005. 20 NADER, 2002. 21 SAMARA, E. de M. de. As mulheres, o poder e a família: São Paulo, século XIX. São Paulo: Editora Marco Zero, 1989. 22 SAMARA, 1989. 23 AZZI, R. Famílias e valores no pensamento brasileiro (1870-1950). Um enfoque histórico. In. RIBEIRO, Ivete. Sociedade brasileira contemporânea. Famílias e valores. São Paulo: Edições Loyola, p. 85-120, 1987. 24 COLBARI, A. de L. . Ética do trabalho. São Paulo: Letras e Letras; Vitória-ES: FCAA-UFES, 1995. 25 COLBARI, 1995. 26 COLBARI, 1995. 27 COLBARI, 1995. 28 NOLASCO. S. O mito da masculinidade. 2ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.

96

Os homens de governo e os homens de partido na visão de Paulino José Soares de Souza (filho) Alexandra do Nascimento Aguiar1

Resumo: A presente comunicação visa analisar os discursos de Paulino José Soares de Souza (filho), deputado na Assembleia Geral de 1881. Proponho compreender suas concepções sobre o significado de governar, no contexto da primeira eleição direta no Brasil e enaltecida como renovação política. Paulino era herdeiro político do Visconde de Uruguai, seu pai, e chefe do Partido Conservador fluminense. A influência política do deputado foi expressiva naquele quadro parlamentar atípico na Monarquia, em que o Partido Liberal e Partido Conservador compartilharam a Câmara. A hipótese é que embora a Câmara fosse apresentada como liberal, havia predominância e legitimidade do pensamento conservador. Palavras-chave: Conselheiro Paulino, Partido Conservador, Segundo Reinado

Abstract: This paper analyzes the speeches of Paulino José Soares de Souza (son), deputy at the Congress of 1881 in Brazil. We propose to understand their point of view about government in the context of the first direct election in Brazil. This direct election has been analyzed like a political renewal in Brazil. Paulino was bonded in political network of Viscount of Uruguay, his father. Viscount of Uruguay was a head of the Conservative Party in Rio de Janeiro. His political influence in the Congress was significant in a moment when we had, in Brazil, one atypical parliamentary monarchy in which the Liberal Party and Conservative Party divided the Congress control. Our hypothesis is that Congress was presented as liberal, but, during the daily political actions, the conservatism had prevalence and legitimacy. Keywords: Councillor Pauline, Conservative Party, Second Empire

Apresentação A presente comunicação pretende pôr em perspectiva a atuação de Paulino José Soares de Souza (filho) como deputado do Partido Conservador na Assembleia Geral de 1881, a primeira eleita por voto direto no país, visando demonstrar sua concepção sobre

97

o significado de governar. Proponho a leitura de seus discursos como síntese do pensamento político conservador e além da identidade partidária, porque fornece ideias coesas de um projeto político e social e que norteava a dinâmica da política imperial. Mannheim define o conservadorismo como “visão de mundo”, um estilo de pensamento que tem a história e o passado como principais referências. Orientando-se pela tradição e pelos costumes, identificados ao regionalismo e preservados através da família, da religião e da comunidade, e cujas preocupações são a ordem e a liberdade qualitativa2. Nisbet classifica o conservadorismo como uma ideologia, ao lado do liberalismo e do socialismo3, e apresenta os conservadores como defensores de uma ordem social enfraquecida pela emergência dos direitos naturais, do individualismo, da igualdade, da liberdade e da soberania popular, preconizados pelo Iluminismo e que tem na Revolução Francesa sua expressão máxima4. Nas sociedades conservadoras, os proprietários rurais gozam de prestígio não somente pela posse da terra como fonte de riqueza, porém pelo significado simbólico dessa posse. A terra é compreendia como origem das sociedades, o fundamento real e econômico do Estado e o cenário dos eventos que constituíram a história5. Paulino era representante dessa aristocracia rural, sua posição nesse universo foi consolidada através do casamento que lhe concedeu terras e escravos, unindo-se ao capital político herdado de seu pai. Como é conhecido através da historiografia, Paulino José Soares de Souza (1834-1901) era filho do Visconde de Uruguai, homônimo, e que foi um dos fundadores do Partido Conservador, ao lado de Joaquim José Rodrigues Torres (Visconde de Itaboraí) e de Euzébio de Queirós. O Partido Conservador foi criado a partir do movimento denominado Regresso, como reação à descentralização regencial, e se consolidaria a partir do Rio de Janeiro, durante a plena expansão do café na região, uma associação que garantiu a proeminência econômica e política da província fluminense6. O Conselheiro Paulino trilhou o caminho dos jovens filhos das elites na monarquia, desde a formação até sua consolidação como chefe de destaque do Partido Conservador. Estudou no Colégio Pedro II, bacharelou-se na Faculdade de Direito de São Paulo e seguiu para a Europa como primeiro adido. Durante a passagem por Roma, em 1857, foi informado sobre sua eleição como deputado geral pelo 3º distrito da Província do Rio de Janeiro e círculo de Niterói, mesmo ausente do Brasil e com apenas 22 anos de idade. Enquanto Paulino esteve no exterior como funcionário diplomático, o

98

Visconde de Uruguai iniciou sua carreira política, apresentando e recomendado o filho através de circulares ao eleitorado7. A partir do seu ingresso na Câmara, Paulino apenas deu continuidade à trajetória política e ao prestígio herdados de seu pai, percorrendo os postos de poder e visibilidade política no Império: deputado reeleito desde 1856 até 1884, ano de sua nomeação para o Senado, durante essas décadas foi Ministro do Império, Presidente da Câmara. O Conselheiro Paulino aprendeu com o pai a fazer política, doutrinava seus eleitores através de cartas e, como Alonso bem definiu, aprendeu a “armar jornais, discursos e panelas. Política respirada em casa”8. De fato, a política se misturava aos laços de parentesco, pois contava, além do sobrenome, com o tio Joaquim José Rodrigues Torres, que o nomeou ministro do Império em 1869. Paulino também era sobrinho e afilhado do desembargador Bernardo Belisário Soares de Souza, pai de Francisco Belisário Soares de Souza, primo, amigo e correligionário de Paulino 9. Este emaranhado de relações familiares e pessoais era a base das associações nos partidos e nas instituições políticas do Estado. Na década de 1870, os grupos insatisfeitos com o governo pela aprovação da Lei do Ventre Livre (1871), aderiram a reivindicação de reforma eleitoral com introdução das eleições diretas, e que era bandeira do Partido Liberal de 1869. Conservadores e liberais argumentavam que o votante de primeiro grau era o responsável pelo falseamento do sistema eleitoral e que impedia a representação da minoria no Parlamento. Cabe lembrar que a formação de Câmaras unânimes, ou seja, por praticamente um dos partidos, foi problema crônico durante quase toda a Monarquia. Além das fraudes e da violência nas campanhas eleitorais que comprometiam a credibilidade da representação política. Quando o Partido Liberal retornou ao poder, em 1878, após dez anos de afastamento, a prioridade era a implantação da eleição direta, contudo também faziam parte do mesmo programa a reforma policial e judiciária, abolição do recrutamento, abolição da guarda nacional e emancipação dos escravos10. Em 1881, a reforma eleitoral foi realizada pelo governo do Partido Liberal, que introduziu a eleição direta no país e conseguiu eleger a oposição em número expressivo – foram eleitos 75 liberais e 47 conservadores –, resultado enaltecido por ambos como renovação do sistema representativo graças à habilidade política de José Antônio Saraiva e como a “nova política de Conciliação” que pôs fim ao conflito entre os partidos11.

99

Nesse panorama de governo do Partido Liberal, a Província do Rio de Janeiro permaneceu com o Partido Conservador e Paulino José Soares de Souza foi o deputado mais votado de 188112. Outros nomes conhecidos da política conservadora fluminense foram eleitos ao seu lado como Ferreira Viana, Andrade Figueira, Duque-Estrada Teixeira, Francisco Belisário, reconhecidos antiabolicionistas. Posição declarada também por outro amigo e aliado de Paulino, o presidente da nova Câmara, Martinho Alvares da Silva Campos, destacado político do partido adversário. O jornal Gazeta de Notícias já havia insinuado o fortalecimento da aliança política entre Paulino e Martinho nessa eleição: “apenas a saída, ‘bras dessus bras dessous’ [de braços dados], o Sr. Martinho Campos perguntou ao Sr. Paulino: – o que vai ser esta Câmara? O Sr. Paulino limitou-se a sorrir diplomaticamente”13. Os discursos de Paulino José Soares de Souza, na Câmara de 1881, foram selecionados tendo como panorama os Gabinetes presididos por Martinho Campos (janeiro à julho/1882) e pelo Visconde de Paranaguá (julho/1882 à maio/1883), devido à postura distinta dos dois sobre as reformas preconizadas pelo Partido Liberal, do qual eram correligionários. Na visão do deputado conservador, os homens de governo estavam acima das bandeiras partidárias, governavam no sentido estrito de administrar os negócios públicos e aperfeiçoar a infraestrutura do país e priorizar a economia, estas se resumiam nas necessidades concretas e imediatas da sociedade. Ao contrário dos homens de partido, que governavam orientados pelos ideais, pelas “paixões”, guiavam-se por perspectivas que desrespeitavam os costumes, as instituições, as hierarquias. Os “partidários” buscavam apenas permanecer no poder e, por isso, precisavam destruir as formas e estruturas históricas em nome de reformas que seduziam a opinião pública, porém sobre as quais não conseguiam demonstrar os meios ou vislumbrar suas consequências.

Os homens de governo Martinho Campos havia ocupado o cargo de Presidente de Província do Rio de Janeiro entre março e dezembro de 1881, meses que coincidiram com a campanha da eleição direta, no contexto de retorno do Partido Liberal ao poder (1878). O quadro político era de desentendimento entre as esferas provincial e central, pois a composição majoritária de conservadores da Assembleia Provincial do Rio de Janeiro dificultava o diálogo com o governo liberal, situação agravada pela crise financeira da província14.

100

Com o fim das eleições, o nome de Martinho Campos apareceria cotado para assumir a presidência da Assembleia Geral de 1881, eleita na nova legislação; de fato, ele permaneceu neste cargo até janeiro de 1882, quando foi nomeado Presidente do Conselho. Pedro II o escolheu no momento em que a emancipação voltava ao debate após a lei de 1871, para tranquilizar os ânimos dos dois lados, pois Martinho era “aceitável para muitos liberais, por ser um deles, mas inimigo de qualquer alteração no estatuto do trabalhador escravo”15. No discurso de apresentação do programa como presidente do Conselho, Martinho Campos explicitou que seu governo não faria reformas e priorizaria a economia. A fala evidenciou a afinidade entre Martinho e a oposição conservadora e foi aproveitada por Paulino, que ressaltou a semelhança de ideias, pois tanto o Partido Conservador quanto o presidente do Conselho e membro do Partido Liberal enfatizavam políticas antirreformistas e voltadas para o desenvolvimento da economia, leia-se a lavoura. Portanto, um presidente do Conselho avesso às reformas preconizadas por seu próprio partido esvaziaria o discurso do Partido Liberal, especialmente da ala que cobrava a realização do programa de 1869: Estudando a posição em que se achavam os partidos, e verificando bem aquela em que no meu conceito está o partido a que pertenço, não me pareceu também que o partido liberal tenha nesta ocasião, para realizar, ideias de alcance político que firam de frente o Partido Conservador. Penso, senhores, que o Partido Conservador quer nessa ordem constitucional em que temos vivido desde logo após a maioridade do atual imperador, ordem constitucional que praticamente se traduz nas leis orgânicas de que foram autores os grandes estadistas da nossa escola política16.

Paulino expunha a contradição no governo liberal de 1881, pois, por um lado o Presidente do Conselho se comprometia em não realizar reformas, em manter a organização do Estado nos moldes conservadores; por outro, o Imperador havia anunciado a reforma do judiciário e da polícia17, o que significava o início do desmonte da centralização criada pelos homens do Regresso com o Código de criminal de 1841. Por isso, Paulino exaltava os personagens regressistas, “os grandes estadistas”, como construtores do Estado e daquela “ordem constitucional”. Paulino protestava contra a revisão do Judiciário que devolveria o controle dos instrumentos e órgãos jurídicos e de ordem social para os governos locais. Tal alteração, segundo ele, traria de volta a “expansão democrática que sucedeu à abdicação do primeiro imperador”, quando, pelo Ato Adicional de 1834, o Estado foi conduzido segundo o “princípio eletivo [...] desde o regente até os juízes de paz”18. Na memória

101

dos conservadores, esse período representou ameaça de fragmentação do território brasileiro, riscos à propriedade e à economia e insegurança social generalizada. As insurreições populares, ou a “expansão democrática”, nasceram do vazio de poder de instituições de governo fracas, da descentralização das províncias e da liberdade em demasia. A partir de 1834, a autonomia e o poder concedido aos governos locais somados às revoltas espalhadas pelo território se tornaram empecilho para a autoridade do governo central19. Coube ao Partido Conservador a defesa dos alicerces da ordem monárquica: a preservação da hierarquia social, da propriedade fundiária e escrava e do modelo econômico agrário exportador. Paulino defendia a continuidade da estrutura legal criada por seu partido e que considerava o pilar da estabilidade em que o país se encontrava desde então. Ele via a ausência de reformas no programa de Martinho Campos como positiva porque demonstrava que o Presidente do Conselho se harmonizava com a concepção do Partido Conservador sobre governar. Ao mesmo tempo, ele se utilizou da política antirreformista de seu amigo para construir a imagem de indefinição do projeto de governo Partido Liberal. Na visão do deputado, os liberais se orientavam por um programa que não tinha mais razão de existir porque fora criado em um cenário de conflito entre os partidos, e que foi sanado com a Lei Saraiva. Segundo Paulino, o ano de 1881 marcou uma “situação política de moderação e tolerância” e, como ele havia declarado em campanha aos eleitores do 4º distrito, “os partidos no momento não tinham motivos acentuados de luta” 20. Liberais e conservadores, naquele contexto, não eram mais inimigos, possuíam naturezas complementares: Vós todos sabeis, senhores, quais as duas tendências da sociedade que caracterizam os dois partidos, o espírito de inovação e o espírito conservador. O primeiro acolhe pressuroso as amplas e indefinidas inspirações do ideal. Tem as mais das vezes aspirações que são mais de futuro do que realizáveis no presente, adianta o pensamento público e procura atrai-lo aos seus planos; o segundo, atido à tradição e aos costumes, observador e acautelado, não aceita a ideia nova sem que tenha amadurecido e seja reclamada na consciência nacional. Daí resulta que os liberais se preocupam mais com os progressos sociais e políticos e os conservadores com as garantias reais existentes e com o bem estar da sociedade21.

Na percepção do deputado, o Partido Conservador tinha o papel de indicar as mudanças necessárias e possíveis, considerando a trajetória de formação e a história de seu povo. Portanto, cabia aos conservadores conter as transformações lideradas pelo

102

partido adversário e que desconsideravam os limites da natureza do país, suas reais demandas, porque se guiavam pelo idealismo e pelas abstrações.

Os homens de partido Com a demissão de Martinho Campos da Presidência do Conselho, Pedro II voltou a convidar João Lustosa da Cunha (Visconde de Paranaguá). Era esperado que ele levasse adiante o programa liberal, em parte por sua trajetória política inclinada a reformas identificadas aos liberais quando ainda pertencia quadro conservador, do qual fizera parte até 1861. O novo programa de governo de Visconde de Paranaguá confirmou as expectativas dos correligionários e os receios dos parlamentares da oposição, ao declarar que seguiria a orientação partidária de 1868. Os principais pontos de seu governo seriam a independência do judiciário, a descentralização administrativa, a ampliação da instrução pública e a transição do trabalho escravo para o livre. Ressaltando, sobre esta última, que o governo não adotaria nem a abolição imediata, nem a inação, pois ainda seria necessário adequar o Brasil aos novos tempos não admitiam mais a escravidão. Paulino comentou o programa do novo Gabinete, respondendo à insinuação do presidente do Conselho sobre sua liderança na coalizão que derrubou o Gabinete de Martinho Campos. O relato sobre sua audiência com Pedro II evidencia a influência de Paulino José Soares de Souza na Câmara como articulador político e que sabia se aproveitar das divisões internas do governo, compondo alianças com os membros descontentes do Partido Liberal. Segundo o próprio deputado, o Imperador o havia convocado, juntamente com Martinho Campos, para que explicasse a coalizão que se formara no panorama de desentendimento entre o Ministério e a Câmara. A convocação de Paulino indicava que Pedro II o via como liderança capaz de ameaçar a governabilidade do Partido Liberal e a continuidade daquela legislatura, considerada especial por ser a primeira sob a nova lei. Com a permanência do conflito entre as duas esferas de governo, Pedro II se veria forçado a dissolver o parlamento e convocar novas eleições, o que sinalizaria o fracasso da reforma eleitoral. Entretanto, Paulino refutou a existência de coalizão e alegou que houve apenas “coincidência” entre duas partes heterogêneas, uma era a dissidência liberal e a outra, os conservadores, que se colocaram contra o grupo aliado de Martinho

103

Campos.

Portanto,

segundo

o

deputado,

formaram-se

“três

minorias”

que

inviabilizariam os trabalhos daquela Câmara. Pode-se supor a intenção dos conservadores de obstaculizar as reformas do programa liberal na Câmara, intensificando divisões e atritos com o Executivo, visando forçar a dissolução que conduziria às eleições, em que esperavam voltar como maioria. Entretanto, Pedro II confirmou a permanência dos liberais no governo e daquela composição parlamentar e pressionou Paulino sobre a conduta de seu partido com o Gabinete de Paranaguá: Tive então a honra de dizer a sua majestade que o procedimento da oposição conservadora seria pautado pela política do novo gabinete; que se o gabinete procedesse com moderação, não se aventurasse as reformas irrefletidas e radicais, se aliviasse nas províncias a pressão partidária que pesa sobre os conservadores não deixaríamos de proceder com a mesma moderação e tolerância de que déramos prova durante a administração passada22.

Paulino observou que a boa relação entre os partidos naquele momento devia-se ao “retraimento do espírito inovador” por parte dos liberais, correspondido pela “escusa da resistência formal e resoluta”, papel que cabia aos conservadores na defesa das instituições e dos pilares das sociedades. O deputado se disse inclinado à “política moderada e tolerante”, como os amigos à serviço de instituições representativas. Lembrou que Paranaguá já havia sido membro do Partido Conservador, portanto, ele não desconhecia a doutrina que visava, Sempre formar dos homens de partido homens, principalmente, de governo, colocamos acima dos interesses e das paixões partidárias os interesses do Estado, os grandes princípios de nossa forma de governo, regularidade e a boa ordem da pública administração. Assim, pois fique o nobre presidente do Conselho certo de que, com relação ao ponto mais urgente e importante de seu programa, a votação da lei de orçamento e normalidade de nosso sistema governamental encontrará da nossa parte a melhor vontade e muitas facilidades23.

Os conservadores sempre lançavam a pecha de “partidários” contra os liberais, acusando-os de sobreporem os interesses locais aos interesses nacionais e de se apropriarem de questões atraentes à imaginação, as “paixões”, para conquistar o apoio popular, ainda que com prejuízo do Estado. Porém, Paulino lembrou que, diferente das legislaturas anteriores, a oposição estava presente na Câmara, significando que os conservadores assumiriam o papel fiscalizar o governo. Por isso,

seu

partido

interferiria na aprovação do orçamento, que ele considerava a questão mais relevante entre aquelas apresentadas por Paranaguá. Era comum que o presidente do Conselho acumulasse a pasta da Fazenda e uma das atribuições era a submissão do balanço da receita e da despesa do Tesouro Nacional

104

do ano anterior ao parlamento, assim que este se reunisse no ano seguinte. Mas, a tarefa não era simples, pois a aprovação do orçamento era utilizada pelo Legislativo para pressionar o Executivo, porque envolvia os impostos. O debate sobre a lei de orçamento motivava desentendimento entre o público e o privado24, pois os deputados agiam como membros das duas esferas, representando interesses conflitantes. Paulino objetivava desacreditar a pauta de governo de Paranaguá, negando a radicalização de seu conteúdo ao compará-lo ao programa do antecessor e, assim, esvaziar o discurso reformista liberal. Para isso, realçou a ausência dos meios, dos recursos para o programa de reformas: Quanto ao programa do gabinete, deixou-me o nobre presidente do Conselho algum tanto tranquilizado. Bastou-me ouvi-lo para convencer-me de que S. Ex. é nas sofreguidões do liberalismo um dos mais calmos e retardatários. S. Ex. quer reformas muito restritas: enunciando-as, quer logo o adiamento das mesmas reformas. Não serei quem por isso me descontente com o nobre ministro. V. Ex. sabe, Sr. Presidente que no nosso vocabulário parlamentar, adiamento para a sessão do ano que vem quer dizer o mesmo que significava em Roma – deixar algum negócio para as calendas gregas. É, portanto, o programa do nobre ministro o mesmo do ilustre chefe do gabinete de 21 de janeiro, apenas com a variante de um edição correta. No programa de janeiro havia mais franqueza; neste, mais palavras e todas elas sonoras, dessas que já lá vão três século, Camões qualificava: nomes com que se o povo néscio engana [grifo do autor]25.

Segundo o deputado, o anúncio do adiamento das reformas para 1883 era subterfúgio para sua não realização, pois, o governo passava por crise financeira e recorria aos empréstimos. Quanto à política de emancipação, o deputado Paulino criticava abordar tal reforma entre outros problemas urgentes na administração pública, que ele resumia como “os sentimentos de humanidade, o direito privado e a riqueza pública. Como homem sobrepuja em mim a consideração humanitária, que se limita, porém, pelo respeito ao direito privado e pela atenção devida ao interesse público”. Por isso, advertiu que, se o Estado não dispunha de recursos, “não desperteis temores e reações morais que não estará depois em vossas mãos apaziguar”26.

Considerações finais A visão do deputado Paulino sobre o significado de governar é manifestada nas expressões utilizadas por ele como os “homens de governo” e os “homens de partido” e que apontam projetos antagônicos de Brasil presentes na monarquia. Tais projetos se diferenciavam, sobretudo, a partir da inclusão de reformas sociais, leia-se extinção da escravidão, identificada ao progressismo, em contrapartida da percepção de governo que visualizava apenas as reformas administrativas. Nesse sentido, a título de hipótese, o

105

conservadorismo possibilitava a governabilidade, sem distinção, para os dois partidos. E serviu como o principal elemento norteador para as estratégias, as tomadas de decisão, as construções de correlações de força e o exercício de governo para liberais e conservadores.

1

Doutoranda em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Orientadora: Profª. Drª. Maria Emília Prado. E-mail: [email protected]. 2 MANNHEIM, Karl. O Pensamento conservador. In: MARTINS, José de Souza (org.). Introdução crítica a sociologia rural. São Paulo: Hucitec, 1981. 3 Compreendendo ideologia como “conjunto de ideias morais, econômicas, sociais e culturais razoavelmente coerente, possuindo relação sólida e óbvia com a política e o poder político”. NISBET, Robert. O Conservadorismo. Lisboa: Editorial Estampa, 1987, p. 9. 4 O conservadorismo surgiu com Edmundo Burke e sua obra Reflexões sobre a Revolução em França (1790), como sentimento de precaução contra a influência da Revolução Francesa na Europa. Segundo Nisbet, os temas levantados por Burke apenas foram desenvolvidos por seus seguidores e deram corpo ao conservadorismo como doutrina. NISBET, Robert. Conservantismo. In BOTTOMORE, Tom; NISBET, Robert (org.). História da análise sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1978, p. 119. 5 MANNHEIM, Karl. O Pensamento conservador... p. 123. 6 Ver MATOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema. A formação do Estado Imperial. 2a. ed. São Paulo: Editora Hucitec, 1990. 7 SOUSA, Álvaro Paulino Soares de. Três brasileiros ilustres: José Antônio Soares de Sousa, Visconde de Uruguai e Conselheiro Paulino José Soares de Sousa. Contribuições biográficas por ocasião do centenário da independência. Rio de Janeiro, typo. Leuzinger, 1923, p. 85. 8 ALONSO, Ângela. Escravismo de Circunstância: o repertório moral do escravismo e do abolicionismo brasileiros. http://cebrap.org.br/bv/arquivos/211_artigo.pdf 9 SOUSA, Álvaro Paulino Soares de. Três brasileiros ilustres... p. 116. 10 BRASILIENSE, Américo. Programas dos partidos e o Segundo Império. São Paulo: Typografia de Jorge Seckler, 1878. 11 Anais da Câmara dos Deputados, 24 de janeiro de 1882. 12 ALONSO, Ângela. Escravismo de circunstância. 13 Gazeta de Notícias, 14 de dezembro de 1881. 14 GOUVEA, Maria de Fátima. O império das províncias: Rio de Janeiro, 1822-1889. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 243-244. 15 HOLANDA, Sergio Buarque. O Brasil monárquico, v. 7: do Império à República. 8ª ed. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008, p. 125-126. 16 Anais da Câmara dos Deputados, 24 de janeiro de 1882. 17 Fala do Trono, 17 de janeiro de 1882. 18 Anais da Câmara dos Deputados, 24 de janeiro de 1882. 19 Ver. BASILE, Marcello. O laboratório da nação: a era regencial (1831-1840). In: GRIMBERG, Keila; SALLES, Ricardo. O Brasil Imperial, vol. II: 1831-1870. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 55-119. 20 Anais da Câmara dos Deputados, 24 de janeiro de 1882. 21 Idem. 22 Anais da Câmara dos Deputados, 05 de julho de 1882. 23 Idem. 24 CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem e Teatro de sombras. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ/Relume Dumará, 1996, 2ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 263-264. 25 Anais da Câmara dos Deputados, 05 de julho de 1882. 26 Idem.

106

POR DEUS E POR RONALD REAGAN: A CONSOLIDAÇÃO DA DIREITA CRISTÃ NO CENÁRIO POLÍTICO DOS ESTADOS UNIDOS Alexandre Guilherme da Cruz Alves Junior Doutor em História /PPGH/UFF Professor de História da América da Universidade Federal do Amapá Email: [email protected] Resumo: Após décadas de isolamento político, os fundamentalistas cristãos começaram, a partir dos anos 1970, a atuar de forma cada vez mais agressiva no cenário político norte-americano, construindo uma retórica moralista, buscando contrabalançar os avanços sociais obtidos pelos setores mais progressistas da sociedade norte-americana na década anterior. A chamada Direita Cristã organizou-se e institucionalizou-se, procurando atuar no interior do partido Republicano, alcançando o seu auge durante os dois mandatos presidenciais de Ronald Reagan, com o intuito de reverter os avanços sociais obtidos nas décadas anteriores e influir na política externa. Palavras-chave: Estados Unidos – Fundamentalismo Cristão – Conservadorismo

Abstract: In the 1970´s, after decades of political isolation, Christian fundamentalists began to act aggressively in the US political field with a moralistic rhetoric but seeking to counteract the social progress achieved by progressive sectors of the american society. The Christian Right was organized and institutionalized, acting inside the Republican party, reaching its peak during the two presidential terms of Ronald Reagan, in order to reverse the social progress achived in previous decades and influence the foreign policy .

Keywords: United States - Christian Fundamentalismo - Political and Religious Conservatism

Introdução: A declaração de apoio do pastor Batista e líder da Moral Majority, Jerry Falwell, ao candidato do partido Republicano à presidência dos Estados Unidos, Ronald Reagan, em 1980, pareceu, a muitos observadores da época, uma aliança instável e destinada a terminar rapidamente.

107

Apesar de algumas convergências ideológicas óbvias entre os fundamentalistas cristãos e o partido Republicano, como se posicionarem contrariamente à legalização do aborto, poucos vislumbraram naquele momento, a possibilidade de uma aliança prolongada entre os dois grupos. Em 1980, Corwin Smidt deu voz a essa descrença, afirmando que embora fosse possível encontrar interseções entre as duas agendas, os evangélicos seriam mais interessados em questões sociais, enquanto os republicanos teriam como principal preocupação os aspectos econômicos. Segundo o cientista político, os evangélicos tendem a se tornar um pouco impaciente com os conservadores, e novos alinhamentos e estratégias políticas podem tornar-se evidentes1. De fato, experiências políticas nos anos 1970 tendiam a corroborar essa linha de pensamento que previa um apoio efêmero. O fato de Jimmy Carter, candidato democrata a presidência norte-americana em 1976, ter se declarado um born again, redundou na simpatia de diversos grupos evangélicos conservadores. Embora tenha gerado desconfianças entre os católicos e judeus. Porém, o alinhamento evangélico com o programa de Jimmy Carter não durou muito tempo. Em 1978, a aliança deu lugar à críticas e, por fim, o rompimento. Entretanto, a aliança entre os evangélicos conservadores e o partido republicano permanece há mais de 30 anos depois. A grande maioria da parcela de eleitores norte-americanos, que se consideram conservadores cristãos, apoiou os candidatos do partido Republicano em todas as eleições a partir de 1980. Como afirma, Finguerut, a história da direita cristã é recente, tendo ganhado corpo apenas nos últimos 30 anos. Toda a chamada nova direita, onde a direita cristã se inclui como também os neoconservadores e o conservadorismo, por eles revigorado, influenciaram o Partido Republicano e a própria 2 sociedade americana.

O candidato republicano John McCain recebeu o voto de ¾ dos conservadores cristãos nas eleições de 2008, vencida pelo Democrata Barack Obama. Neste sentido, para muitos cientistas sociais, o apoio de grupos religiosos conservadores, liderados pelos fundamentalistas cristãos, ao partido Republicano em fins dos anos 1970, pode ser explicado pela convergência de pensamento em temas sociais e morais. Para Finguerut, as décadas de 1960 e 1970 foram de grandes transformações na sociedade americana e também para os religiosos e conservadores da época. As mudanças nos costumes, principalmente o declínio de uma prática então muito comum, a de se rezar nas escolas americanas, somadas à inédita proteção constitucional à prática do aborto e de respeito à

108

liberdade de expressão que incluía o que muitos consideravam pornografia, levaram a uma organização militante dessas pessoas.

3

A conjuntura política e econômica dos Estados Unidos nos anos 1970 e 1980 criou um terreno ideal para o crescimento de vozes políticas conservadoras. A crise econômica em final dos anos 1970 gerou fortes críticas às praticas econômicas do Welfare em diferentes setores da sociedade norte-americana. Somado a este contexto, percebemos uma aparente desarticulação de vários grupos originados no movimento pelos direitos civis, abrindo caminho para o surgimento de fortes críticas aos resultados das lutas mais progressistas dos anos 1960. Como afirma Sean Purdy, Os movimentos sociais se desmobilizaram depois dos ganhos iniciais ou se enfraqueceram por causa de divisões internas e da retomada da repressão por parte das autoridades locais [...] Nem todos os americanos nos anos 1960 haviam apoiado a expansão das liberdades. No fim dos anos 1970, uma ´nova direita´ surgiu e lançou um projeto feroz para ´restabelecer a 4 autoridade social´

Podemos definir esta Nova Direita como um conjunto de correntes políticas, religiosas e intelectuais conservadoras que foram sendo construídas e articuladas na sociedade norteamericana ainda no início dos anos 1960, em torno de uma agenda comum, antagônica ao movimento pelos Direitos Civis e o welfare, ganhando corpo enquanto movimento político no final dos anos 1970. Para Schlensiger Jr5 , a partir de 1981 uma nova coalizão conservadora, liderada pelo presidente Ronald Reagan, foi muito além do âmbito econômico. Tratava-se, segundo seus adeptos, de um movimento popular, capaz de empolgar intelectuais, católicos, operários e as próprias comunidades evangélicas. Apresentando-se como o novo, embora reavivasse várias questões anteriores. Para Fein6, a nova direita norte-americana pode ser definida um movimento plural, surgido no pós 2ª. Guerra Mundial, iniciado por um pequeno grupo de intelectuais e ativistas, ainda nos anos 1950, ganhando robustez ao longo das décadas, abarcando grupos sociais diversos, como sulistas segregacionistas, algumas denominações protestantes e homens de negócios das cidades do norte. Embora este movimento conservador amplo não apresentasse uma ideologia sistematizada, convergiam pontos significativos, como o anticomunismo, valores sexuais tradicionais e liberalismo econômico.

109

Neste sentido, Fein7 defende a hipótese de que o conservadorismo evangélico se constituiu em paralelo ao conservadorismo secular, aproximando-se deste apenas no final dos anos 1970. Entretanto, temas de cunho moral, comumente relacionados como a causa desta aproximação, como o famoso caso Roe vs Wade, em 1973, que na prática legalizou o aborto, tornam-se insuficientes pra explicar a convergência de interesses entre esses grupos, resultando numa organização institucional. Para compreender esta união, tendo como foco o ponto de vista dos intelectuais conservadores, faz-se necessário pontuar o pensamento de um grupo recente na história norteamericana, os neoconservadores. Segundo Brown8 um dos principais fatores que diferenciaria os neoconservadores dos conservadores tradicionais, estaria a defesa da moralização do poder do Estado, tanto em se tratando de assuntos domésticos, como de assuntos externos. A aproximação com os fundamentalistas cristãos teria sido capitaneada principalmente por Leo Strauss e Russel Kirk, pois, baseados no conceito de sociedade orgânica de São Tomas de Aquino, passaram a defender a organização da sociedade norte-americana através da alimentação espiritual. Desse modo, a religião passaria a ter um papel fundamental dentro da sociedade ideal imaginada pelos neoconservadores. Segundo Irving Kristol9, considerando um dos fundadores do neoconservadorismo: “os três pilares do conservadorismo moderno são a religião, o nacionalismo e o crescimento econômico. Destes, a religião é sem dúvida a mais importante, porque é o único poder que pode moldar o caráter das pessoas e regular a motivação.”10 Do ponto de vista da Direita Cristã, para compreendermos as razões para a aproximação com o partido Republicano, torna-se imperativo compreender o papel de liderança desempenhado pelos fundamentalistas cristãos na construção da aliança. Diferentemente de outras denominações do protestantismo norte-americano, além dos próprios católicos e judeus, os fundamentalistas cristãos mantiveram certa distância dos debates políticos públicos, distância esta, fruto de uma interpretação teológica que visava a salvação individual, e de experiências públicas mal sucedidas no primeiro quarto do século XX, como veremos adiante. Segundo Brinkley11, a ressurgência dos fundamentalistas na cena política norte-americana pegou muitos estudiosos de surpresa. Os objetivos principais deste grupo seriam combater o secularismo, o cientificismo e os valores sexuais liberais. Entretanto, as defesas destes valores sempre estiveram na agenda fundamentalista, e por si só, não justificaram a organização de uma militância política até 1970.

110

É importante lembrar que o caso Scopes, em 1925, foi paradigmático para o afastamento dos fundamentalistas da arena política. O primeiro quarto do século XX marcou, nos Estados Unidos, o avanço do secularismo e cientificismo. No bojo desse processo, alguns estados mais conservadores pretenderam através de leis combater essa tendência. Assim sendo, em 1925, o estado do Tennessee aprovou uma lei (Buttler Act) proibindo o ensino da teoria evolucionista nas escolas. O então professor de ciências e matemática, John Thomas Scopes, desobedeceu a lei, e acabou sendo processado pelo estado. O Monkey Trial, como foi apelidado pela imprensa o caso, envolveu figuras conhecidas nacionalmente, como William Jennings Bryan, candidato democrata por 3 vezes à presidência dos Estados Unido, atuando na acusação, por convite da World´s Christian Fundamentals Association, e o advogado Clarence Seward Darrow, líder da American Civil Liberties Union (ACLU), atuando na defesa do professor John Scopes. O julgamento teve ampla cobertura midiática, repercutindo em todo o país, sendo apresentado pela imprensa como uma batalha entre o velho e o novo, o rural e o urbano, o obscurantismo e o progresso. Neste contexto, os fundamentalistas cristãos foram os que mais se empenharam publicamente na condenação do professor. Embora a decisão final tenha sido favorável ao estado do Tennessee, sendo jovem Scopes multado em 100 dólares, o que mesmo na época significava um valor simbólico, a imagem dos fundamentalistas cristãos ficou bastante arranhada nacionalmente, sendo associada com o atraso, a ignorância, obscurantismo e o mundo rural. Nos anos subsequentes ao caso Scopes, os fundamentalistas cristãos tornaram-se cada vez mais dominados por associações radicais como: World's Christian Fundamentals Association, Bible Crusaders of America, Bryan Bible League e Defenders of the Christian Faith, corroborando para a solidificação deste estereótipo. Entretanto, a associação da imagem fundamentalista ao pensamento considerado atrasado presente em regiões do sul dos Estados Unidos não era de todo verdadeira. Como afirma Mardsen (1980), o fundamentalismo também estava presente nas cidades industriais do norte. Ainda segundo o autor, o movimento de radicalização dos fundamentalistas após o caso Scopes, ao contrário de confirmar o estereótipo criado, demonstra justamente uma adequação ao estereótipo. “Acontecimentos bizarros em atividades fundamentalistas significaram que, nos anos após 1925, tornou-se cada vez mais difícil levar a sério o fundamentalismo”12.

111

Percebe-se, portanto, a partir desses eventos, um declínio da influência fundamentalista cristã na vida pública dos Estados Unidos. Desse modo, o processo de radicalização do discurso fundamentalista, baseado na interpretação literal da Bíblia, gerou o afastamento da vida política, como única forma de preservar os seus valores da influência do mundo moderno. Por outro lado, é incorreto caracterizar os fundamentalistas como um grupo isolado, vivendo no interior sulista e rural dos Estados Unidos. Como afirma Bjerre-Poulsen, o desenvolvimento de instituições fundamentalistas [entre 1930 e 1950] demonstram claramente suas ambiguidades com relação a cultura [secular] americana. Os fundamentalistas estão divididos entre a pureza da doutrina e o desejo de interagir com a sociedade ao redor. O dilema entre a salvação individual através do separatismo, e o compromisso de espalhar o evangelho e deter a maré de modernismo através da ação social, tem se mantido como uma tensão não resolvida do fundamentalismo. Os fundamentalistas fundaram suas próprias instituições e organizações profissionais, a fim de suportar a atração da vida moderna. Neste processo, no entanto, eles assumiram a competição com as suas 13 contrapartes liberais ou seculares, e perderam grande parte de sua alegada inocência.

Não por acaso, os pastores fundamentalistas foram um dos primeiros representantes religiosos a se utilizarem das rádios como meio de divulgação de suas ideias, criando uma escola de atuação que iria alcançar o seu auge nos anos 1970 e 1980 com os pastores televangelistas Pat Robertson e Jerry Falwell. Como afirma Bellotti (2008), entre 1920 e 1970, podemos perceber a ascensão dos grupos fundamentalista na comunicação de massas na cultura norte-americana. Por meios de diferentes mídias, procuraram, e podemos afirmar que ainda procuram, construir um consenso social em torno de sua teologia, tendo como principais bandeiras, a defesa da família tradicional e a manutenção dos papéis de gênero. Logo, as interpretações históricas que vislumbraram um isolamento dos fundamentalistas cristãos da vida política norte-americana, após os anos 1920, não levaram em conta diferentes formas de atuação politica, não restrito necessariamente à instituições tradicionais. Como afirma Coutrot, como corpos sociais, as Igrejas cristãs difundem um ensinamento que não se limita às ciências do sagrado e aos fins últimos dos homens. Toda vida elas pregaram uma moral individual e coletiva a ser aplicada hic et nunc; toda a vida elas proferiram julgamentos em relação à sociedade, advertências, interdições, tornando um dever de consciência para os fiéis se submeter a eles14.

112

Neste sentido, podemos pensar que por outros meios não tradicionais, como organizações e partidos políticos, os fundamentalistas cristãos continuaram se relacionando com a sociedade norte-americana, lutando, não necessariamente de forma articulada, contra o que consideravam os seus desvios, seja através de cultos, sermões, publicações e programas de rádio e televisão. Como afirma Poulsen15, embora tenha se transformado numa espécie de subcultura norte-americana, o fundamentalismo cristão não parou de crescer em diferentes regiões do país. Como afirma Bellotti, “A guerra cultural entre os fundamentalistas e a sociedade secular acirra-se com a criação da direita cristã norte-americana nos anos 1970, que leva ao plano político os debates sobre casamento gay, aborto e feminismo.”16 Ou seja, a estruturação da Direita Cristã nos final dos anos 1970, tendo como liderança pastores fundamentalistas, não deve ser interpretada como um fenômeno repentino, um ressurgimento. De fato, os fundamentalistas cristãos nunca se isolaram verdadeiramente.

1 WILLIAMS, Daniel K. Jerry Falwell´s Sunbelt Politics: The regional origins of the Moral Majority. (in) The Journal

of Policy History. Vol. 22 No.2, 2010. 2 FINGUERUT, Ariel. Formação, crescimento e apogeu da direita cristã nos Estados Unidos. (in) SILVA, Carlos Eduardo Lins da (Org) Uma Nação com alma de Igreja: religiosidade e Políticas públicas nos EUA. São Paulo: Paz e Terra, 2009. p. 115-6 3 Op.Cit. 4 PURDY, Sean. O Século Americano. KARNAL, Leandro et al. História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. São Paulo: Contexto, 2007.p. 255 5 SCHLESINGER JR, Arthur M. Os Ciclos da História Americana. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992. 6 FEIN, Kim Philips. Conservatism: a state of the field. (in) Oxford Journal, n. 31, jul. 2012. 7 Op. Cit. 8 BROWN, Wendy. American Nightmare: Neoliberalism, Neoconservatism and De-Democratization. (in) Political Theory, vol. 34, n. 690, 2006. 9 KRISTOL, Irving. The Neoconservative Persuation: selected essays 1942 - 2009. New York: Basic Books, 2011. 10 No original: “The three pillars of modern conservatism are religious, nationalism, and economic growth. Of these, religion is easly the most important because it is the only power that, in no longer term, can shape people´s character and regulate motivation.” 11 BRINKLEY, Alan. The Problem of American Conservatism. (in) The American Historical Review. Vol 99. No. 2, 1994. 12 MARDSEN, George M. Fundamentalism anda American Culture: the shape of twentieth-century evangelicalism 1870 - 1925. Oxford - New York - Toronto: Oxford University Press, 1980. p. 191 No original: “Bizarre developments in fundamentalist activities meant that in the years after 1925 it became increasingly difficult to take fundamentalism seriously.” 13 BJERRE-POUSEN, Niels. The Transformation of the Fundamentalist Movement, 1925 – 1942 (in) American Studies in Scandinavia, Vol. 20, 1988. p. 97 No original: “The development of fundamentalist institutions most clearly illustrates is the movement's ambiguity towards American culture. Fundamentalists are torn between purity of doctrine and the wish to interact with the surrounding society. The dilemma between personal salvation through strict separatism, and the commitment to spread the gospel and stem the tide of modernism through social action, has

113

remained an unresolved tension in fundamentalism. The fundamentalists have founded their own institutions and professional organizations in order to withstand the lures of modern life.56 In the process, however, as they have taken up competition with their liberal or secular counterparts, they have lost a great deal of their alleged innocence.” 14 COUTROT, Aline. Religião e Política . In: RÉMOND, René (Org.) Por uma História Política. Rio de Janeiro: editora FGV, 2003.p. 334 15 Op. Cit. 16 BELLOTTI, Karina. A batalha pelo ar: a construção do fundamentalismo cristão norte-americano e a reconstrução dos “valores familiares” pela mídia (1920-1970). In: Gênero, Fundamentalismo e Religião. Vol. 14. 2008. p.60

114

Por vontade de Deus: a investida sassânida de 614-618 no espelho cristão By God’s will: the sassanid onslaught in 614-618 in the christian mirror

Alfredo Bronzato da Costa Cruz*

Resumo: Em 614 exércitos persas ocuparam a cidade de Jerusalém. Quatro anos mais tarde tomaram Alexandria, estabelecendo uma ocupação duradoura. Tal campanha, que expôs de modo dramático a fragilidade da autoridade bizantina sobre as províncias levantinas e africanas do Império Romano, implicou danos severos para a infraestrutura religiosa da região, já abalada por mais de um século de violentos conflitos deflagrados por polêmicas teológicas. Pretende-se retomar documentos que tratam dessa investida persa – duas vidas constantes da História do Patriarcado Copta de Alexandria e o relato da invasão de Jerusalém por Antíoco Estratego – para pensar como os invasores foram representados em fontes eclesiásticas. Palavras-chave: Guerras entre bizantinos e sassânidas; historiografia eclesiástica; memória e religião. Abstract: In 614 persian armies occupied the city of Jerusalem. Four years later they took Alexandria, establishing a durable occupation. Such a campaign that exposed dramatically the weakness of byzantine authority over the levantine and african provinces of the Roman Empire, led to severe damage to religious infrastructure in the region, already rocked by more than a century of violent conflict triggered by theological controversies. This text intended to retake documents that address this persian onslaught – two lives constants of the History of the Coptic Patriarchate of Alexandria and the account of the invasion of Jerusalem by Antiochus Strategos – to think like attackers were represented in ecclesiastical sources. Keywords: Byzantine-Sasanian wars; Ecclesiastical history; Memory and religion.

No ano de 590 d.C., aproveitando-se do ensejo de uma revolta liderada pelo general aristocrata Bahrām Chobin, o filho do Xá Hormizd IV(c.570-628), governante do Império Sassânida, tomou o poder através de um golpe palaciano, assumindo o nome de Cosroés II. Essa mudança de governo, todavia, não aplacou Bahrām, que avançou contra a corte de Ctesifonte, forçando o novo xá a fugir para além da fronteira ocidental do seu domínio. O general, descendente dos arsácidas (247 a.C.-224 d.C.), assumiu ele mesmo o trono, tomando o nome de Bahrām VI. Em troca de um tratado que concedia a parte ocidental do Cáucaso aos bizantinos, de outra parte, Cosroés conseguiu a ajuda do imperador bizantino Maurício (539602) para retomar seu diadema; para cimentar essa aliança, casou-se com uma de suas filhas, *

Doutorando em História Política no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGH/UERJ, 2015- ).. Mestre em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (PPGH/UNIRIO, 2011-2013). Bacharel e Licenciado em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio, 2005-2009). Bolsista CAPES. Orientador: Prof. Dr. Edgard Leite Ferreira Neto. E-mail: [email protected].

115

a princesa Míriam.1 Vencidas as forças de Bahrām por uma coalizão de persas, armênios e gregos na Batalha de Blarathon, travada em agosto de 591 nas proximidades da cidade de Ganzak, firmou-se um acordo de paz entre Constantinopla e Ctesifonte. Levado a fugir para o leste, o general arsácida terminou assassinado por nômades turcos, instigados por Cosroés. A aliança então estabelecida entre bizantinos e sassânidas permitiu que ambos os impérios se voltassem para outras fronteiras militares que não o oriente sírio – combates contra populações seminômades, respectivamente, nos Balcãs e na Margiana.2 Cosroés aproveitou-se para consolidar seu poder também ao redor do Golfo Pérsico, mandando emissários aos diversos potentados árabes para obter sua lealdade. O último rei de al-Hira, al-Nu’man III ibn al-Mundhir, um cristão nestoriano, foi assassinado em 602 por agentes despachados desde Ctesifonte, falsamente acusado de traição; sua cidade foi abandonada, partes de seus edifícios foram utilizados na reconstrução de Kufa e o domínio dos Banu Lakhm passou a ser governado por legalistas persas após a derrota destes árabes do sul da Mesopotâmia na Batalha de Dhi Qar, travada em 609. No mesmo ano de 602, depois que o Imperador Maurício, sucessivamente benfeitor, aliado e sogro de Cosroés, foi deposto e assassinado por Focas, o Xá teve um motivo apropriado para começar uma invasão ao território bizantino, facilitada pelo estado de guerra civil ocasionado pela recente mudança política na Nova Roma e pela duvidosa adesão de alguns dos oficiais provinciais ao César adventício. Encontrando uma resistência rarefeita, pouco eficaz, os generais sassânidas submeterem as cidades romanas fortemente guarnecidas da Mesopotâmia, da Armênia e da Anatólia, em uma campanha de arco e intensidade sem precedentes na história dessa dinastia. Os persas iniciaram a invasão da Síria em 604 e capturaram Antioquia em 611; dois anos depois, infligiram uma derrota decisiva aos bizantinos nos arredores desta metrópole, desbaratando o contra-ataque pessoalmente liderado pelo Imperador Heráclio (c.575-641), assunto ao trono em 610, também por meio de uma revolta palaciana. Após isso, o avanço persa rumo a oeste prosseguiu por anos sem encontrar uma barreira significativa. Em 614 Jerusalém foi capturada de uma maneira que a documentação contemporânea registrou como particularmente violenta; o fato da relíquia da cruz de Cristo ter sido tomada como parte do espólio foi lamentado de modo especial. Alexandria foi ocupada em entre 618 e 619, e o restante do Egito em 621. O esforço militar sassânida tinha então como meta a restauração das fronteiras do antigo império do Xá Dário (521-486 a.C.), período histórico de maior extensão do domínio persa, enquanto o Império Romano do Oriente encontrava-se aparentemente à beira do colapso.3

116

Durante o período da trégua firmada entre Maurício e Cosroés, diante das contínuas declarações públicas de amizade entre os dois monarcas, alguns eclesiásticos armênios e sírios chegaram a acreditar e registrar em suas crônicas que o xá havia se convertido ao cristianismo. Embora nada permita afirmar que tenha sido ele mesmo um cristão em qualquer momento de sua vida, todavia, é certo que Cosroés tinha ao menos uma esposa cristã, de nome Sira ou Shīrīn, e que demonstrou nos anos iniciais de seu reinado – até a campanha contra Focas – uma simpatia considerável para com esta religião, inclusive fazendo ofertas em bens e dinheiro a alguns de seus santuários.4 Isto considerado, os relatos da invasão de Jerusalém por Antíoco Estratego e de Alexandria pela História do Patriarcado Copta assumem um matiz ainda mais pungente. O relato de Antíoco Estratego do saque de Jerusalém pelos sassânidas, originalmente escrito em grego, foi-nos transmitido a partir de manuscritos georgianos, talvez transcritos não diretamente, mas traduzidos desde uma versão em árabe. Ele é de grande importância, pois foi composto por uma testemunha ocular dos eventos narrados; suas marcas de estilo evidenciam que era destinado não a ser lido em privado, mas a ser proclamado em voz alta, nas reuniões capitulares dos mosteiros ou nas assembleias litúrgicas. Antíoco viveu primeiro como eremita e, em seguida, como monge no famoso Mosteiro de São Sabas, perto de Jerusalém; como responsável pela segurança deste estabelecimento – daí seu designativo – ele teve uma participação privilegiada nos eventos que relata. 5 Isso não quer dizer, todavia, que seu relato seja objetivo em qualquer sentido que nos seja contemporâneo. Durante muito tempo acreditou-se que o escrito de Antíoco sobre a investida persa representava uma verdade sem maiores adornos, mas recentes pesquisas arqueológicas em Israel não conseguiram reunir quaisquer evidências significativas das destruições nele mencionadas.6 Além disso, os elementos miraculosos e os estereótipos hagiográficos que entram na composição do texto nos fazem duvidar de seu caráter referencial, em sentido estrito. Este justo ceticismo, entretanto, não toca aquilo que compõem o eixo da narrativa, ou seja, o universo cultural e a paleta de representações mobilizadas por Antíoco – justamente aquilo que aqui é o objeto de nossa atenção.7 Pois bem, este religioso conta que, enquanto seguiam para Jerusalém, os persas capturaram dois de seus confrades. Seu líder, nomeado Kasmi Ozdan, interrogava-os constantemente sobre a possibilidade de rendição da cidade, mas os religiosos obstavam-no que em vão se ergueria o sítio, pois estavam certos de que Deus a protegia de modo direto. Estando diante dela e percebendo “o número dos mosteiros e moradas de tementes a Deus”, os invasores desejavam concluir um tratado com os locais; o Patriarca Zacarias, líder da Igreja

117

calcedônica na região, exortou os citadinos a considerar esta possibilidade, mas se viu hostilizado em função disso. Este religioso tentou ainda mobilizar reforços bizantinos vindos de Jericó e de outras cidades do litoral palestino, mas estas não se atreveram a romper o cerco que os persas haviam levantado em torno de Jerusalém.8 A dupla de monges capturados, por fim, declarou às tropas do leste que a cidade sagrada haveria, afinal, de ser submetida; isso porque os anjos que tinham avistado protegendo as suas torres e ameias com escudos e lanças de fogo dali se retiraram sob o comando de um outro deles, recém-descido do céu, que disselhes: “(...) Saiam daí, retirem-se, pois o Senhor deu toda esta cidade santa nas mãos do inimigo”.9 Souberam assim, que os persas haveriam de ser vitoriosos nesta empreitada e comunicaram-nos disto. Tendo as negociações de rendição chegado a nada, os homens do xá “foram agitados com viva raiva, como ferozes bestas, e planejaram todo tipo de injúria contra Jerusalém” e, enfatiza Antíoco, “Deus não quis vir em seu socorro”.10 A primeira fase do combate durou uma quinzena, na qual a muralha da cidade foi posta abaixo pelas balistas inimigas; vencidas as forças defensivas, o pior foi inevitável. O monge narrador não economizou nos detalhes, e suas várias referências metafóricas, muitas das quais animalizam tanto os invasores persas quanto suas vítimas, são de um sabor especialmente acre:

Então os malignos soldados entraram na cidade com grande fúria, como bestas selvagens e enfurecidas e serpentes irritadas. Os homens que defendiam a muralha da cidade, no entanto, fugiram e esconderam-se nas cavernas, fossos e cisternas para se salvarem; e as pessoas debandaram em multidão para as igrejas e altares, e lá eles destruíram-nas. Pois o inimigo entrou em altíssima ira, rangendo os dentes em violenta fúria; como feras que rugiam, berrando como leões, assobiando como serpentes ferozes, e mataram todos os que encontraram. Como cães raivosos, rasgaram com seus dentes a carne dos fiéis, não respeitando nenhum deles, nem homem, nem mulher, nem jovem, nem velho, nem criança, nem bebê, nem padre, nem monge, nem virgem, nem viúva... § Os malignos persas, que não tiveram compaixão em seus corações, correram a cada lugar na cidade e de comum acordo extirparam todas as pessoas. Qualquer um que os visse fugia tomado de terror; e se alguém gritava de medo, eles rugiam rangendo os dentes, e quebravam seus dentes obrigando-o a fechar a boca. Eles abatiam tenros bebês no chão, e depois chamavam seus pais com altos gritos. Seus pais batiam-se com vociferações e soluços, mas eram prontamente despachados com eles. Qualquer um que fosse pego armado era massacrado com suas próprias armas. Aqueles que correram rapidamente foram perfurados com flechas, e os que não resistiram e ficaram quietos foram mortos sem piedade. Eles não ouviram os apelos dos suplicantes, não tiveram pena da beleza dos jovens, não tiveram compaixão da idade dos homens velhos, nem coraram diante da humildade do clero. Ao contrário, eles destruíram pessoas de todas as idades, massacrando-as como animais, cortando-as em pedaços, cortando-os por baixo como repolhos, de modo que todos solidariamente beberam, dividindo entre si, uma taça repleta de amargura. Lamentação e terror puderam ser vistas em Jerusalém. Santas igrejas foram queimadas com fogo, outras foram demolidas, majestosos altares foram tombados, sagradas cruzes foram pisoteadas, vivificantes ícones foram cuspidos pelos imundos. Então sua ira caiu sobre sacerdotes e diáconos: mataram-nos em suas igrejas como animais irracionais...11

118

Segue o relato de como os sobreviventes que conseguiram se esconder foram enganados para vir a público e como aqueles que não tinham habilidades úteis aos invasores foram atirados ao fosso de Mamel, não muito distante da Torre de Davi para fora da cidade, sendo submetidos ao esmagamento, à sede, ao calor intenso e, o pior, às tentações de alguns judeus que, estando na cidade, aproveitaram-se da investida persa para se voltarem contra os seus vizinhos cristãos. Antíoco também conta como os conquistadores tiveram como especial presa um convento no Monte das Oliveiras onde viviam quatrocentas virgens, de como o Patriarca Zacarias foi capturado entre as lamentações daqueles que haviam se reunido ao seu redor, de como os fiéis remanescentes tiveram de assistir à destruição das igrejas da cidade e foram conduzidos para o cativeiro na Pérsia, no caminho de onde foram tentados a pisar a relíquia da verdadeira cruz.12 Segundo Yuri Stoyanov, toda a narrativa foi modelada para realçar de modo deliberado os elementos religiosos da guerra contra os persas, em um contexto de instrumentalização de clichês referentes aos mártires, aos judeus e aos orientais na propaganda militar do Império Romano do Oriente.13 Seu final, todavia, é bastante surpreendente, pois o monge Estratego conta que Patriarca Zacarias conseguiu sair-se bem em uma disputa com os magos do Xá Cosroés, e terminou sendo resgatado com alguns dos seus e com a cruz roubada por uma das esposas reais, que tinha “o nome de cristã, mas depois da heresia de Nestório, o ímpio e desprezado de Deus”.14 O próprio Antíoco, entretanto, não testemunhou isso pessoalmente, porque, juntamente com alguns de seus confrades, havia antes conseguido fugir durante uma noite e retornar a Jerusalém.15 Deve-se observar que segundo o Estratego a tomada de Jerusalém pelos persas não se deu em função da precariedade de suas forças de defesa - que ressalta, aliás, antes terem sido suplementadas por uma guarnição celeste –, mas pela vontade de Deus. Este religioso sublinhou que enquanto o Patriarca Zacarias “pastoreava seu rebanho de maneira correta, decente a agradável a Deus”, chegaram em Jerusalém “certos homens ímpios”, que aí se instalaram “com a ajuda do diabo (...) repletos de toda vilania, e não estavam contentes em apenas agredir e saquear os crentes, mas foram se reunindo para derramar o sangue como um bem, e para o homicídio”.16 Não está claro se devemos ver nestes personagens lugarestenentes ou aliados locais do Imperador Focas ou participantes das forças que viabilizaram a ascensão de Heráclio ao trono constantinopolitano. De toda forma, para Antíoco parecia evidente que era por causa deles que Jerusalém foi tomada tão brutalmente em 614, pois

(...) Depois disso o Juiz da verdade, que deseja não a morte do pecador, mas que ele possa ter a possibilidade de transformar-se e viver, enviou-nos a má raça persa, como uma vara de castigo e uma medicina de repreensão. Eles avançaram com uma grande

119

força e numerosa horda, apreenderam toda a terra da Síria, e puseram em fuga os destacamentos e forças dos gregos, capturando diversos deles; seguiram com um exército como um enxame que pululava, e capturaram cada cidade e aldeia. Eles chegaram à Palestina e suas fronteiras, e eles vieram a Cesareia, que é a metrópole. Mas lá imploraram por uma trégua, e curvaram seus pescoços em submissão. Depois o inimigo avançou para Sarapeon, capturando-o, bem como todas as cidades do litoral, juntamente com as suas aldeias... § Em seguida eles alcançaram a Judeia, e chegaram a uma grande e famosa cidade, uma cidade cristã, que é Jerusalém, cidade do Filho de Deus. Vieram com furor e muitíssima raiva na alma, e o Senhor entregou-a em suas mãos, e eles cumpriram todas as coisas de acordo com Sua vontade. E quem pode descrever o que aconteceu dentro de Jerusalém e nas suas ruas? Qual número da multidão de mortos que jazia estirada em Jerusalém?17

Passe-se agora à invasão persa do Egito conforme descrita nas vidas dos Patriarcas Andrônico e Benjamin, que lideraram a Igreja Copta, respectivamente, nos anos de 616 a 622 e de 622 a 661. Á bem da verdade, diga-se que se faz aqui referência quase que só à primeira delas; a ocupação sassânida é um pano de fundo apenas para os primeiros parágrafos da vita de Benjamin. Registre-se também que elas não são hagiografias isoladas, mas fazem parte da coleção de relatos de vidas de bispos egípcios conhecida como História do Patriarcado Copta de Alexandria. Pode-se considerar validamente esta História como um registro oficial da memória dessa instituição, composta por diferentes mãos a partir da reação egípcia ao Concílio de Calcedônia, celebrado em 451; diante de uma série de desafios político-religiosos, os coptas recordaram e registraram a história de sua comunidade e do território ao qual ela estava ligada por vínculos de origem e significação devocional, de modo que se resolveram a retomar e dar continuidade à obra de seus predecessores. Seus primeiros colaboradores escreveram em cóptico, inicialmente realizando traduções do grego, mas seus sucessores a partir do século X compuseram seus relatos em árabe. A maior parte das versões atualmente conhecidas da História do Patriarcado Copta consiste em uma reunião de traduções para árabe de textos cópticos anteriores ao século X e de trechos escritos originalmente em árabe, perfazendo um relato mais ou menos contínuo sobre a trajetória do cristianismo egípcio do século I ao XIII. No interior deste material, os especialistas reconheceram pelo menos doze distintas camadas redacionais – as quatro primeiras em cóptico, vertidas para o árabe em um grande rearranjo editorial feito no século X, e as oito seguintes redigidas originalmente em árabe daí em diante. Há notícias de manuscritos dessa História que foram complementadas com material posterior, de tamanho e natureza variável, tratando de personagens e episódios situados no longo período que vai do início do século XIV ao início do século XX. A data em que as vidas de Andrônico e Benjamin adquiriram sua forma final são incertas, mas se supõe que a primeira date do início do século VIII e que foi composta por primeiro em cóptico,

120

enquanto a segunda, baseada em materiais cópticos mais antigos, date da segunda metade do século X e tenha sido redigida originalmente já em árabe.18 Em todo o caso, de acordo com o redator da vita do Patriarca Andrônico, não foi o ódio à fé que levou os persas a massacrarem a Igreja Ortodoxa, ou seja, a Copta, mas a ambição, um tal “amor ao dinheiro”, que fazia com que pudessem “matar um homem por um denário, ou por algo que vale aproximadamente três denários”, levando-os a “pisar a terra do Egito como os bois trilham a eira, tomando todas as suas riquezas, tudo o que tinham em seus tesouros”.19 Compostas por homens de “muitas doutrinas”, que “não conheciam a Deus, mas adoravam o sol”, as tropas do xá avançaram contra os mosteiros de Henaton, nas proximidades de Alexandria, então em número de seiscentos, “florescentes, como pombais”, ocupados por monges “independentes, insolentes, sem nenhum temor, confiantes de suas grandes riquezas”, que “promoviam atos de escárnio” contra os invasores. Cercaram a região pelo oeste e assassinaram todos os religiosos, com exceção de alguns que se esconderam no ermo, “(...) E tudo de dinheiro e de mobília que estava lá foi tomado como despojo pelos persas, e eles destruíram os mosteiros, que permanecem em ruínas até hoje”.20 Quando a notícia do desfecho do cerco de Henaton chegou até Alexandria, seus habitantes apressaram-se a abrir os portões da cidade em busca de algum acordo com os sassânidas. Há bons motivos para suspeitar que a negociação foi inicialmente bem sucedida, dando tempo suficiente para que duas notáveis personalidades da cidade, os dois mais importantes representantes nela do governo constantinopolitano, conseguissem escapar: o praefectus augustalis and dux, Nicetas, e o líder civil e militar da província bizantina do Egito, e patriarca em exercício da Igreja calcedônica da mesma região, João Eleemon, que foi entronizado em 610. Ambos foram inicialmente para a Ilha de Rodes; o Patriarca João seguiu depois para Chipre e morreu em sua cidade natal, Amatos, em novembro de 619. 21 A História do Patriarcado Copta, que não preservou o nome do comandante persa responsável pela ocupação de Alexandria, mas apenas seu título oficial, Salar, registra que ele fez então construir na cidade um palácio de nome Tarâwus, em persa casa dos reis, que na segunda metade do século X era conhecido simplesmente como Qasr Farisi, o castelo dos persas.22 Algo, entretanto, parece ter corrido profundamente errado logo no estágio inicial da ocupação persa de Alexandria. Em determinado momento, o Salar fez proclamar que todos os homens de dezoito a cinquenta anos aí residentes deveriam sair da cidade para receber uma provisão de vinte denários cada um, supostamente em recompensa de sua pronta rendição. Atraídos por essa promessa, deixaram a proteção de suas casas e tiveram seus nomes registrados em uma lista; tendo se assegurado que nenhum dos membros do

121

conjunto

determinado havia deixado de atender à proclamação, os persas cercaram o grupo reunido e os assassinaram todos. A História do Patriarcado Copta registra que “o número de pessoas que foram assim abatidos chegou a oitenta mil homens”, e que o estratagema de seu extermínio foi uma demonstração da astúcia do Salar. De modo talvez impressionante, entretanto, atribuiu a motivação do massacre a uma manifestação divina: tendo ingressado em Alexandria com facilidade, o comandante persa teria sonhado com um personagem celeste que havia declarado que a ele entregava “esta cidade e seus edifícios e tudo o que ela contém”, e, sendo assim, que deveria guardar-se “para não ferir a cidade”, mas, por outra parte, não poderia deixar que seus habitantes permanecessem “em seu interior, pois eles são hipócritas [em matéria de religião]”.23 O massacre promovido pelos persas, portanto, teria uma relação causal com a adesão de boa parte da população de Alexandria à cristologia calcedônica e com a consequente pressão exercida pelas autoridades municipais contra a Igreja Copta, não apenas durante os pontificados de Eulógio e João Eleemon. Desta forma configurada, o relato da História do Patriarcado Copta a respeito possui um vínculo genético não apenas com o relato de Antíoco Estratego sobre a tomada de Jerusalém pelos persas, mas com toda a tradição eusebiana e da Bíblia Hebraica, que considerava as derrotas militares do povo fiel como castigos divinos por seus pecados. Como os antigos judeus e como os bizantinos – mas em sentido diverso destes –, os coptas interpretaram esses massacres como duras penitências – aos gregos de Alexandria por sua heresia, aos monges da região de Henaton por sua insolência e opulência – fazendo operar “uma estrutura temporal histórica que objetivava a noção repetitiva de que a desobediência religiosa implicava em derrota”, estrutura que supunha ainda a possibilidade do arrependimento como restauração, “concebida como um ciclo: pecado-castigo-arrependimento-restauração”.24 A vita de Andrônico registra ainda mais um massacre dos persas contra a população monástica do Egito. Conquistada Alexandria, as tropas lideradas pelo Salar marcharam para o sul, rumo ao Alto Egito. Na cidade de Niciu, “certas pessoas lhe deram informações sobre os monges que vivam nas montanhas e nas cavernas (...) Disseram-lhe como eles haviam se encerrado por trás de um muro fortificado, e que suas obras eram repreensíveis, por conta da enormidade de sua riqueza”. A História do Patriarcado Copta não dá mais informações sobre estes colaboradores locais dos invasores, mas em seu relato mais uma vez o “amor ao dinheiro” dos persas serve à vontade divina de castigar com toda a dureza a hipocrisia em matéria de religião – no caso dos monges dos arredores de Niciu, como nos da região de Henaton, evidenciada por sua riqueza, contrária ao ideal monástico de desapego diante das coisas materiais.25 O resultado é agora previsível: “(...) Ao nascer do sol, eles [os persas] 122

entraram [pelo muro fortificado] e mataram todos [os monges] com a espada, não restando nenhum deles”.26 Em seguida, o redator da vita de Andrônico registra laconicamente que “este Salar foi a causa de muitos problemas, porque ele não conheceu a Deus. Mas o tempo é muito curto para contar seus feitos”. O patriarca copta, tendo escapado de alguma forma ao massacre da população adulta de Alexandria, talvez em função de sua avançada idade, faleceu depois de seis anos ocupando esta posição, “sofrendo por causa desta nação dos persas, havendo visto todos esses desastres, que encontrou e suportou com paciência (...) apegando-se à fé correta, a fé de seus pais”, ou seja, a miafisita.27 Tendo registrado estas coisas, e destacado que a voracidade e violência dos persas, ainda que eles mesmos desconhecessem o Deus cristão, não eram senão guiados pela vontade divina, a História do Patriarcado Copta conta-nos pouco a respeito das fases posteriores da ocupação persa. Deste modo, não está nada claro como a Igreja Copta administrou seus negócios durante este período.28 Há evidência externa do ímpeto da conquista sassânida, apesar de ser necessário reconhecer, antes do mais, que as fontes literárias de origem grega e

copta,

independentemente de quaisquer considerações a respeito das origens divinas de suas ações, depreciam de modo global os invasores vindos do leste como selvagens e assassinos, enquanto os análogos siríacos e armênios limitam suas ações reprováveis estritamente ao momento das ocupações.29 Ruth Altheim-Stiehl considerou razoável acreditar que depois do estágio inicial da tomada do Egito, caracterizado pelo desejo pela coleta de espólios, pelo violento esforço de supressão das forças de resistência e por uma política de terror para com a população helenófona/calcedônica, que poderia auxiliar de numerosas maneiras um contraataque bizantino, os sassânidas passaram a ter uma ocupação caracterizada por medidas moderadas e diplomáticas, decerto para viabilizar certo modus vivendi com a população, alçada à categoria de contribuintes de seu império.30 A mesma autora também destacou que há boa razão para acreditar que os persas se esforçaram para levar em consideração os costumes locais na administração do Egito, e Saeid Jalalipour afirmou que, depois da conquista, os egípcios viviam suas vidas de forma não muito diferente do que no período imediatamente anterior de sua história.31 Uma das poucas interferências realmente significativas parece ter sido a introdução do calendário zoroastriano em substituição às formas autóctone e romana.32 Com esta única exceção da marcação do tempo, e apesar de não terem promovido em quaisquer das terras que ocuparam nenhuma expansão significativa de sua própria religião oficial, os sassânidas zoroastrianos envolveram-se nos negócios das instituições religiosas egípcias, como então era comum. Quando o governo episcopal de Isna ficou vazio, ele

123

foi

assumido pelo titular de Hermontis por ordem do Patriarca Andrônico, porque os persas não permitiam então a ordenação de novos bispos, mas essa parece ter sido a sua mais significativa restrição à Igreja Copta.33 De fato, Andreas Stratos sublinhou a política de tolerância religiosa praticada em todos os domínios persas, assim como o contraste entre o relativo favorecimento dos cristãos nestorianos e miafisitas em relação aos calcedonianos, eventualmente perseguidos e considerados como inimigos políticos, pois diretamente sustentados pelo trono constantinopolitano.34 Há relatos, aparecidos em textos de eclesiásticos calcedônicos, de que os coptas exploraram a situação e assumiram certo número de templos bizantinos no Baixo Egito; de modo geral, parece que os sassânidas deixaram-nos livres para praticar sua religião – isto se não os sustentaram de modo ativo.35 As igrejas e demais edifícios eclesiásticos situados no interior das muralhas de Alexandria não foram tão danificados quanto se poderia esperar em um primeiro momento, muito ao contrário; e mesmo os mosteiros, tão atingidos durante a conquista, foram deixados em paz para curar suas feridas, e parece que se recuperaram com rapidez dos golpes recebidos. A História do Patriarcado Copta registra no relato da vita do sucessor de Andrônico, Benjamin, que este se retirou em 621 para junto a um mestre de nome Theonas, irmão de um mosteiro chamado de Canopus, que, ficando certa distância a nordeste de Alexandria, não havia sido destruído pelos persas, “como os demais que haviam posto abaixo”. Canopus, onde Benjamin “cresceu dia a dia, até que sua santidade, paciência e autocontrole houvessem feito grandes avanços”, parece, de fato, não ter sido molestado pelos invasores até o fim do período da ocupação.36 1

De acordo com Frye, é bastante improvável que tal matrimônio efetivamente seja algo mais do que uma pura projeção lendária. Cf. FRYE, Richard R. “The political history of Iran under the sasanians”. In: YARSHATER, Ehsan (org.). The Cambridge History of Iran. V. 3, t. 1: the Seleucid, Parthian and Sasanian Periods. Cambridge: Cambrigde UP, 1983. p. 166. FRYE, “The political...”, pp. 162-166. DARYAEE, Touraj. “The Sassanian Empire (224-651 CE)”. In: DARYAEE, Touraj (org.). The Oxford Handbook of Iranian History. Nova Iorque: Oxford UP, 2012. p. 199. 2

FRYE, “The political...”, pp. 166-169. DARYAEE, “The Sassanian...”, p. 200. DORFMANN-LAZAREV, Igor. “Beyond empire I: eastern christianities from the persian to the turkish conquest (604-1071)”. In: NOBLE, Thomas F. X. & SMITH, Julia M. H. (orgs.). The Cambridge History of Christianity. V. 3: early medieval christianities (c.600-c.1100). Cambridge: Cambridge UP, 2008. p. 71. 3

FRYE, “The political...”, p. 166. EVÁGRIO Escolástico. A History of Church in six books, from a.D. 431 to a.D. 594. Londres: Samuel Bagster and Sons, 1843. Coleção “Greek ecclesiastical historians of the first centuries of the christian era”, n. 6. Disponível em http://migre.me/rzoxG. Consultado em setembro de 2015. pp. 306-310. 4

CONYBEARE, Frederick Cornwallis (organização, tradução e notas). “Antiochus Estrategos’ account of the sack of Jerusalem in AD 614”. English Historical Review. Londres, v. 25, 1910. Disponível em http://migre.me/rzJM0. Consultado em setembro de 2015. p. 502. J. GRIBOMONT, verbete Antíoco Estratego. DI BERARDINO, Angelo (org.). Dicionário Patrístico e de Antiguidades Cristãs. Tradução de Cristina Andrade. Petrópolis / São Paulo: Vozes / Paulus, 2002. p. 110. 5

6

STOYANOV, Yuri. Defenders and enemies of true cross: the sasanian conquest of Jerusalem in 614 and byzantine ideology of anti-persian warfare. Viena: Österreichischen Akademie der Wissenschaften, 2011.

124

Coleção “Philosophisch-Historische Klasse: Sitzungsberichte”, n. 819; série “Veröffentlichungen zur n. 61. pp. 15-23.

Iranistik”,

GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros: verdadeiro, falso e fictício. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar e Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. pp. 9-10. Cf. BLOCH, Marc. Apologia da história, ou o ofício do historiador. Prefácio de Jacques Le Goff; apresentação de Lilia Moritz Schwarcz; tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. pp. 78 e 105. Também: HARTOG, François. O espelho de Heródoto: ensaio sobre a representação do outro. Tradução de Jacyntho Lins Brandão. Nova edição revista e aumentada. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999. p. 48: “(...) a primeira questão que levanto não é sobre os citas, mas simplesmente sobre os citas de Heródoto. Objeção: se você começa recusando toda confrontação do texto com o que não é diretamente texto, corre o risco de fechar-se nele e de desenvolver, mais ou menos habilmente, uma máquina de produção de perífrases e tautologias; no fim das contas, de instaurar um culto ao texto, que não ousa sequer confessar-se como tal. Em resumo: de valorizar o texto pelo texto e os citas pelos citas – ou de fazer, como se dizia antigamente, arte pela arte. § Os citas de Heródoto? Se não se trata de confrontá-los com um referente (ou com o que se constitui como tal: os citas “reais”), não se trata também de recusar toda confrontação e, antes de tudo, no próprio interior das Histórias, em que o lógos cita ocupa, num momento da narrativa, um dado lugar. Estamos, pois, autorizados a relacionar um enunciado deste lógos com outros enunciados pertencentes ao mesmo contexto. (...) O fato de que certos enunciados remetem a outros enunciados do mesmo contexto é um indício do que se poderia chamar de injunções narrativas. Injunções não exteriores e impostas, mas interiores e produzidas pela própria narrativa no processo de sua elaboração. Segue-se que o lógos cita não é informação imediata sobre os citas, a qual se oferece de chofre a qualquer leitor desse único lógos, nem um documento, se posso assim dizer, em estado bruto e imediatamente confrontável com o que não é ele mesmo” (grifos no original). 7

8

CONYBEARE, “Antiochus Estrategos’...”, pp. 504-505.

9

CONYBEARE, “Antiochus Estrategos’...”, pp. 506.

10

CONYBEARE, “Antiochus Estrategos’...”, pp. 506.

11

CONYBEARE, “Antiochus Estrategos’...”, pp. 506-507.

12

CONYBEARE, “Antiochus Estrategos’...”, pp. 507-511.

13

STOYANOV, Defenders and enemies...

14

CONYBEARE, “Antiochus Estrategos’...”, pp. 511-513.

15

CONYBEARE, “Antiochus Estrategos’...”, pp. 513.

16

CONYBEARE, “Antiochus Estrategos’...”, pp. 503.

17

CONYBEARE, “Antiochus Estrategos’...”, pp. 503.

18

BROWN, Peter. The rise of Western Christendom: triumph and diversity, AD 200-1000. Edição revisada e ampliada de 10º aniversário. Nova Jersey: John Wiley & Sons, 2013. Coleção “The making of Europe”, n. 21; direção de Jacques Le Goff. p. 310. JOHNSON, David W. “Further remarks on the arabic History of the Patriarchs of Alexandria”. Oriens Christianus. Weisbaden, Harrassowitz Verlag, n. 61, 1977. ATIYA, Aziz. “Sawirus Ibn Al-Muqaffa’”. In: ATIYA, Aziz S.; ATIYA, Lola; TORJESEN, Karen J. & GABRA, Gawdat (orgs.). The Coptic Encyclopedia Claremont [online]. Claremont: CGU School of Religion, 1991. Disponível em http://migre.me/rIGy8. Consultado em setembro de 2015. HEIJER, Johannes Den. “History of the Patriarchs of Alexandria”. In: ATIYA, Aziz S.; ATIYA, Lola; TORJESEN, Karen J. & GABRA, Gawdat (orgs.). The Coptic Encyclopedia Claremont [online]. Claremont: CGU School of Religion, 1991. Disponível em http://migre.me/rIGyT. Consultado em setembro de 2015. EVETTS, Basil Thomas Alfred (org.). “History of the Patriarchs of the Coptic Church of Alexandria. Parte 2: de Pedro I a Benjamin (†661)”. (Versão bilíngue em árabe e em inglês, editada, traduzida e comentada por Brasil Thomas Evetts). In: VV. AA. Patrologia Orientalis. Tomo 1. Paris: Firmim-Didot, 1907. pp. 381-518. Disponível online em http://migre.me/rpjBY. Consultado em setembro de 2015. p. 484. 19

20

EVETTS, “History of...”, p. 485.

ALTHEIM-STIEHL, Ruth. “Persians in Egypt”. In: ATIYA, Aziz S.; ATIYA, Lola; TORJESEN, Karen J. & GABRA, Gawdat (orgs.). The Coptic Encyclopedia Claremont [online]. Claremont: CGU School of Religion, 1991. Disponível em http://migre.me/rzhWm. Consultado em setembro de 2015. pp. 2-3. 21

22

EVETTS, “History of...”, p. 485.

23

EVETTS, “History of...”, pp. 485-486.

125

24

SANTOS, André Ricardo Nunes dos. Flávio Josefo e a historiografia judaica. História e-história. Publicado em 31 de agosto de 2010. Disponível em http://migre.me/rzhTn. Consultado em setembro de 2015. §4. Cf.KOSELLECK, Eeinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução de Wilma Patrícia Maas e Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto / Ed. PUC-Rio, 2006. p. 127. J. GRIBOMONT, verbete Monaquismo, in: DI BERARDINO, Dicionário Patrístico... p. 953: “(...) O movimento [monástico] leva avante uma exigentíssima concepção ascética do batismo, fundada na continência e na pobreza, na vida de oração e numa tradição profética judaico-cristã (...). Com o termo grego monachos, documentado no Egito (papiros) a partir de 324 e designando os pertencentes à classe (tagma) dos celibatários, que abandonam a própria casa e (em parte) os seus bens, compartilhando em certa medida da dignidade do clero, o movimento assume uma forma bem definida” (grifos no original). 25

26

EVETTS, “History of...”, p. 486.

EVETTS, “History of...”, p. 486. Para um breve, mas muito útil resumo da conjuntura das divisões teológicas no Império Romano do Oriente desde o início do século VII até o fim da ocupação sassânida, ver: DORFMANNLAZAREV, “Beyond empire...”, pp. 65-71. 27

28

ALTHEIM-STIEHL, “Persians in...”, p. 4.

JALALIPOUR, Saeid. “Persian occupation of Egypt (619-629): politics and administration of sasanians”. eSasanika. Graduate paper, n. 10, 2014. Disponível em http://migre.me/rzhTM. Consultado em setembro de 2015. p. 2. 29

30

ALTHEIM-STIEHL, “Persians in...”, p. 5.

31

JALALIPOUR, “Persian occupation...”, p. 7.

32

ALTHEIM-STIEHL, “Persians in...”, p. 4.

33

ALTHEIM-STIEHL, “Persians in...”, p. 5.

34

STRATOS, Andreas Nikolaou. Byzantium in the seventh century. V. 1: 602-636. Tradução de Marc OgilvieGrant. Amsterdã: Adolf M. Hakkert, 1968. p. 284. 35

DORFMANN-LAZAREV, “Beyond empire...”, p. 71.

36

EVETTS, “History of...”, p. 487.

126

Na escola tem um museu? Usos e desusos da memória no Instituto de Educação Governador Roberto Silveira. Alyne Mendes Fabro Selano PROFHISTORIA - UERJ Agência: CAPES Resumo A pesquisa pretende relacionar os campos de educação, patrimônio e ensino de história com as experiências vividas por alunos da educação básica de uma escola estadual do Rio de Janeiro num espaço de memórias criado nessa instituição. Através das análises das dinâmicas realizadas tanto nas aulas de História, quanto no Instituto Histórico da escola, buscamos motivar esses alunos a se perceberem como agentes históricos, capazes de atuar nesse espaço, contribuindo para reflexões a respeito da construção da identidade e empoderamento. Palavras-chave: educação, patrimônio, história

Abstract The research aims to relate the fields of education, patrimony and history teaching with the experiences of students in basic education of a public school in Rio de Janeiro in a memory space created in this institution. Through the analysis of the dynamics performed both in history class, as in the school Historical Institute, we seek to motivate these students to understand how historical actors, able to operate in this space, contributing to reflections on the construction of identity and empowerment. Keywords: education, patrimony, history

127

Diante das preocupações em se pensar um tipo de educação que acompanhe a dinâmica da sociedade atual e que se torne relevante para os alunos, na construção de um caminho que produza saberes, muitas são as estratégias de trabalho adotadas pelos professores. No caso das inquietações a respeito desse trabalho, pretendemos utilizar a temática da educação patrimonial, com o objetivo de compreender a relação que o aluno estabelece com a escola a partir da memória, como uma ferramenta para o ensino de História. Nosso objeto é a exposição permanente do Instituto Histórico de uma escola da rede estadual do Rio de Janeiro, localizada em Duque de Caxias, Baixada Fluminense: o Instituto de Educação Governador Roberto Silveira (IEGRS). Por atuar na instituição como professora regente de História, a direção solicitou que o Instituto Histórico fosse apresentado aos alunos, pois, segundo a narrativa da direção e coordenação, um dos problemas enfrentados pela escola é o fato dos alunos atuais não possuírem identificação e não atribuírem importância a ela, por desconhecerem sua história. O pedido da direção não foi inicialmente atendido, pois não encontramos relevância em somente “apresentar” a história institucional. Afinal, que tipo de mobilização ocorre quando se recebe um discurso já estabelecido? A educação patrimonial permite a construção de um sentido histórico que perpassa o espaço escolar, além de proporcionar questionamentos e problematizações no tocante à relação que o indivíduo estabelece com os signos, sendo assim, transitar entre as esferas da educação, memória e patrimônio, trazendo os alunos do nono ano do Ensino Fundamental II do IEGRS a pensarem essas relações através de dinâmicas e sensibilizações, tanto nas aulas de História, quanto nas experiências proporcionadas pelo contato com o Instituto Histórico de IEGRS se torna importante para que eles mesmos se reconheçam como agentes históricos. A Educação Patrimonial consiste em provocar situações de aprendizado sobre o processo cultural e, a partir de suas manifestações, despertar no aluno o interesse em resolver questões significativas para sua própria vida, pessoal e coletiva. O patrimônio histórico e o meio ambiente em que está inserido oferecem oportunidades de provocar nos alunos sentimentos de surpresa e curiosidade, levando-os a querer conhecer mais sobre eles. Nesse sentido podemos falar na “necessidade do passado”, para compreendermos o “presente” e projetarmos o “futuro” (HORTA,1999, p.2)

A professor cabe auxiliar ao aluno a entender a necessidade de construir pontes relacionando os assuntos e conteúdos históricos ao processo de construção da história, a entender a dinâmica do trabalho incansável do historiador em preencher determinadas lacunas com suas hipóteses e críticas às fontes. O professor pode viabilizar a aprendizagem onde o aluno

128

atue como protagonista da história. Essa tomada de consciência é importante para que a disciplina cumpra o seu papel crítico, instigante. Há que se considerar, no entanto, que nos processos de ensinar e aprender história estão implicados três elementos indissociáveis, quais sejam: a natureza da história que se escolhe ensinar, com seus conceitos, dinâmicas, operações, campos explicativos; as opções e decisões sobre aspectos de natureza metodológica, a transposição didática ou o “como ensinar”; e a especificidade da aprendizagem histórica, que pressupõe o desenvolvimento de estratégias cognitivas, de noções e conceitos próprios dessa área de conhecimento com vistas à construção do pensamento histórico por crianças, jovens e adultos. (CAIMI, 2009, p.8)

A escola está situada no município de Duque de Caxias que faz parte de uma região periférica do estado do Rio de Janeiro e possui uma trajetória de descaso governamental, abarcando uma população empobrecida. Na década de 1960, época da fundação do IEGRS, por exemplo, eram poucas as ofertas de vagas nas escolas, obrigando os pais a dormirem na fila, na tentativa de garantirem uma oportunidade de estudo para os seus filhos. Também eram precárias as condições de saúde, saneamento e transporte. Portanto, para se falar sobre a história da educação nesse município, também é necessário compreender as lutas travadas através das décadas, pelo direito à cidadania. Fica a seguinte questão: como mobilizar o aluno para a compreensão do que vem a ser patrimônio sem historicizar o local em que vivem? De certo não há como deixar de promover tal reflexão. Compreender as lutas pelo direito à educação torna-se premente não apenas pela possibilidade de investigação da memória e da história dos movimentos docentes, mas sobretudo pelo desafio político-epistemológico que representa escavar, recuperar, escrever e socializar uma história ainda pouco sistematizada. (ALVARENGA, 2009, p.47)

O IEGRS foi criado no ano de 1962, onde anteriormente funcionava a Escola Abraham Lincoln e em 1964 e reinaugurado em prédio próprio, sob a direção do seu fundador, o Professor Álvaro Lopes. Nesse período, os alunos tinham a oferta de Educação Infantil, Ensino Fundamental I e II, Ensino Médio e Ensino Médio Formação de Professores. Com o passar dos anos e diante de novas políticas implementadas pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro, a escola deixou de abrigar a Educação Infantil e o Ensino Fundamental I, restando ainda os demais segmentos já citados. A mobilização política na região se apropriou da questão do patrimônio fazendo com que os professores da localidade se preocupassem em marcar um território relacionado à educação patrimonial. Assim surgiu o Centro de Memória da Educação da Baixada Fluminense (CEPEMHEd), uma iniciativa dos professores do município de Duque de Caxias que compreendiam o direito à memória como uma função social e com isso, inseriram na pauta de

129

reivindicações do ano de 2004 a criação de um centro de pesquisa que tratasse da memória da educação (Decreto nº 4.805 de 2005). Os movimentos de preservação do patrimônio cultural e de outras memórias específicas já contam como força política e têm reconhecimento público. Se o antiquário, a moda retrô, os revivals mergulham na sociedade de consumo, a memória também tem fornecido munição para confrontos e reinvindicações de toda espécie. (grifo nosso) (MENESES, 1992, p.9)

No ano de 2012 na ocasião do cinquentenário do IEGRS a direção da escola em parceria com os integrantes do CEPEMHEd organizou uma sala que recebeu o nome de Instituto Histórico do IEGRS. Ali, foram dispostos objetos, fotografias e documentos relacionados à administração escolar, produção e prática docente, além de atividades discentes das décadas de 1960 até 1980. Ao entrarmos em contato com o Instituto Histórico pela primeira vez, percebemos que muitos documentos e objetos que compunham o acervo não possuíam nenhum tipo de identificação de datação e/ou procedência. As motivações dessa pesquisa estão justamente na compreensão que um Instituto Histórico não se faz somente com a exposição de objetos, mas, é importante que se estabeleça um processo de reflexão diante do que foi selecionado. Mais ainda, em se tratando de um espaço voltado para o patrimônio escolar, entendemos que ele não deve somente apresentar a história da Instituição como algo pronto e acabado, mas propor ações que despertem no aluno atual o interesse e a aproximação com espaço, para que ele se aproprie e seja capaz de promover as próprias intervenções. Afinal, o que o Instituto Histórico do IEGRS significa para o aluno atual? As dinâmicas relacionadas ao ensino propõem que os alunos atuais construam um caminho de ressignificação desse espaço, abrindo possibilidades para intervenções. Pretendemos oportunizar experiências que relacionem escola x aluno x espaço de memória, na tentativa de contribuir para que ele se perceba no fazer histórico, dotado de intenções que transitam entre o lembrar e o esquecer. Por essa razão as questões relacionadas à memória são importantes para elucidar as discussões também quando se trata de educação. Segundo Pierre Nora, como podemos definir “memória”? A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, susceptível de longas latências e repentinas revitalizações. (NORA, 1993, p.2)

130

Para mergulhar nesse campo será necessário compreender as diferentes narrativas de diretores, coordenadores, professores, ex-alunos e alunos atuais e as tessituras dos discursos dentro da perspectiva da cultura escolar. Sobre o assunto, discorre Dominique Julia. (...) poder-se-ia descrever a cultura escolar como um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos; normas e práticas coordenadas a finalidades que podem variar segundo as épocas (...). (JULIA, 2001, p. 2)

Analisar a cultura escolar do IEGRS vai possibilitar, além de problematizar os interesses da escola em salvaguardar a memória institucional, a reflexão sobre as memórias da escola, através de entrevistas, pesquisas de opinião, fotografias antigas e atuais, dinâmicas dos objetos, para juntamente com os alunos, compreender como a educação patrimonial pode estar diretamente relacionada ao processo de construção da identidade do aluno nesse espaço. Como atividades práticas propostas, dedicaremos as aulas de História para provocações a respeito das narrativas presentes no Instituto Histórico: o que está visível? Por que está visível? O que dizem os objetos selecionados? Qual seria o lugar do aluno atual? Tais reflexões nos instigam na tentativa de compreender em que medida lembrar e esquecer podem auxiliar para que conheçamos melhor a nós mesmos e à nossa história? Mais ainda, nos impulsiona a perceber diferenças latentes entre história e memória, embora ambas operem com o passado. Os alunos também serão convidados a fazer o percurso do projeto “Palimpsesto”, visita guiada pelo CEPEMHEd e a contribuírem com as suas impressões sobre o Instituto Histórico, a partir desse contato poderemos compreender o que faz sentido para esse aluno. Pretendemos, posteriormente, que esses alunos tenham contato com os ex-alunos e suas narrativas muitas vezes saudosistas, na tentativa de compreender a afirmativa, “nos tempos passados a escola era melhor”. Os ex-alunos serão convidados pelos atuais para uma roda de memória, onde contribuirão com objetos, fotos e impressões sobre “os seus tempos no IEGRS”. O projeto Palimpsesto – Reescrita do Patrimônio Histórico-Educativo: Espaço Museal da Escola Doutor Álvaro Alberto e do Instituto de Educação Governador Roberto Silveira se propõe a mediar visitações aos espaços museais dessas escolas, proporcionando o conhecimento de suas histórias, memórias, culturas e práticas escolares, além da investigação e compreensão da trajetória da educação no período de 1920 a 1970. Durante o percurso, são apresentadas as pesquisas elaboradas a partir dos documentos garimpados no acervo das escolas, em arquivos pessoais, documentos oficiais, fontes bibliográficas, imprensa escrita e entrevistas. Por não considerarmos o espaço apenas como um palco onde se desenrola as tramas do presente, mas um território marcado e pleno de sentido pelos sujeitos que nele atuam, recorremos aos palimpsestos como metáfora para transitar pelos diferentes extratos de tempo que pertencem ao nosso espaço/território (site CEPEMHEd)

131

O que se propõe em todo esse processo de pesquisa, é um movimento de historicização, compreensão e utilização do IEGRS, através da análise de como o aluno atual compreende o acervo ali exposto, proporcionando o contato com a construção histórica da instituição e não lhes apresentando um discurso institucional, sem relação com a sua própria história. Nessa perspectiva, concordamos com Margarida Louro Felgueiras, que dedicada a estudar a relação entre museu e escola, defende uma participação ativa dos professores enquanto profissionais atuantes nesses espaços, na tentativa de colaborar para uma visão positiva do patrimônio educativo, uma vez que, para ela este “não pode ficar preso a um saudosismo triste e ineficaz” (FELGUEIRAS, 2005, p. 98). Sendo assim, ao propor modificar esse Instituto Histórico sob uma perspectiva da visão do aluno atual, pretendemos mostrar que novas propostas educacionais são importantes para estimular a criatividade e o engajamento do aluno no espaço escolar, tornando-o um lugar onde se questiona, problematiza e busca respostas. Esse trabalho pretende ser desenvolvido com eles e para eles, proporcionando a sensibilização e educação do olhar ao mesmo tempo que instiga críticas e possibilita desnaturalizações.

Referências Bibliográficas ALVARENGA, M. S. de. “Movimentos sociais e direito à memória como processos formativos de professores”. In: Memórias e Patrimônios: experiências em formação de professores. PEREZ, C.L.V. TAVARES, M.T.G. ARAÚJO, M. da S. (Orgs) Rio de Janeiro, EdUERJ, 2009.

CAIMI, F,.E. “História escolar e memória coletiva: como se ensina? Como se aprende?” In. ROCHA, H. A.B. MAGALHÃES, M. S. GONTIJO, R. A escrita da história escolar. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009.

CEPEMHEd. http://centrodememoriadaeducacao.net.br/. Acesso em 26/09/2015, às 15:50h

FELGUEIRAS, M.L. “Materialidade da cultura escolar. A importância da museologia na conservação /comunicação da herança educativa”. In: Pro-Posições, v. 16, n.I (46) – jan/abr. 2005.

HORTA, Mª de L. P. GURMBERG, E. MONTEIRO, A de Q. Guia Básico de Educação Patrimonial. Brasília, Museu Imperial/IPHAN/MinC, 1999.

132

JULIA, D. “A cultura escolar como objeto histórico”. In. Revista brasileira de história da educação n°1 jan./jun. 2001.

MENESES, U. T. B. de. “A história cativa da memória? Para um mapeamento da memória no campo das Ciências Sociais”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, 34, 1992.

NORA, P. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História. São Paulo, n.10, dez. 1993.

133

O IAHGP E O SECRETÁRIO PERPÉTUO MÁRIO MELO Amanda Alves Miranda Cavalcanti Mestranda em História pela Unirio [email protected] Orientadora: Angela de Castro Gomes

RESUMO Este artigo tem como objetivo dar visibilidade a trajetória intelectual do historiador e jornalista pernambucano Mário Melo (1884-1959), que viveu as intensas crises políticas que permearam as primeiras décadas do século XX, contribuindo para a consolidação de uma Cultura Política republicana. O trabalho busca ressaltar a sua atuação como Secretário Perpétuo do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP), lócus central da produção historiográfica em Pernambuco na primeira metade do século, pensando a Instituição como o principal lugar de sociabilidade deste sujeito. Palavras-chave: Mário Melo, historiador, Instituto Arqueológico Geográfico Pernambucano (IAHGP). ABSTRACT This article aims to give visibility to intellectual trajectory of Pernambuco historian and journalist Mario Melo (1884-1959), who lived intense political crisis that permeated the early decades of the twentieth century, contributing to the consolidation of a Culture Republican Policy. The work seeks to emphasize its role as Perpetual Secretary of the Archaeological Institute, History and Geography Pernambucano (IAHGP), central locus of historical production in Pernambuco in the first half of the century, considering the institution as the main place of sociability this subject. Keywords: Mário Melo, historian, Archaeological Institute of History Geographic Pernambucano (IAHGP).

De mangas de camisa, realmente, durante meio século, trabalhou aqui, sem interesse pecuniário, de olhos postos nas grandezas de Pernambuco. [...] De mangas de camisa, aqui revolvia o pó dos arquivos, aqui estudava, como um monge em sua cela, em meio ao silêncio e a solidão destas paredes. De mangas de camisa, aqui o encontrei, uma tarde, há oito domingos passados, recurvo

134

sobre uma mesa pejada de papéis. Tão impregnado de Mário Melo estava o Instituto e tão impregnado do Instituto estava Mário Melo, que um e outro se confundiam.1

Mário Melo (1884-1959) é sempre representado como um historiador incansável de seu ofício, e como um intelectual que se dedicou incondicionalmente ao Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP), como aponta este fragmento do seu necrológio, proferido por Valdemar de Oliveira 2 durante a sessão solene organizada conjuntamente pelo Instituto e pela Academia Pernambucana de Letras. Foi essa a principal instituição que o legitimaria como historiador, tanto que, muitos dos seus biógrafos se sentiram à vontade para lhe associar a ela, buscando tecer a trajetória da vida dele imbricada na do Instituto. Mário Carneiro do Rego Melo, nasceu no Recife em 5 de fevereiro de 1884, filho de um Juiz federal, o republicano Manuel do Rego Melo com Maria da Conceição Carneiro da Cunha, prima do ilustre abolicionista pernambucano José Mariano. Ele foi um intelectual que viveu intensamente as crises políticas que permearam o Brasil no fim do século XIX e início do XX, período de transição da monarquia escravocrata para a instalação de um regime republicano. Assim, sua trajetória intelectual foi marcada pelo seu envolvimento nas questões políticas da época, de modo que, vai se dedicar à reflexão acerca das problemáticas que envolvem a construção da noção de nação, contribuindo para a consolidação de uma Cultura Política republicana. No início do século XX, em 1907, Mário Melo se formou em direito pela Faculdade de Direito do Recife, - sendo aluno do ilustre intelectual Martins Júnior 3 e colega do poeta Augusto dos Anjos - porém, não tinha como perspectiva profissional a carreira jurídica. Sendo assim, ele foi trabalhar no funcionalismo público, tendo sido telegrafista do Telégrafo Nacional, Inspetor Estadual dos Monumentos Nacionais4, membro do conselho administrativo de Pernambuco na década de 1930, durante o governo de Agamenon Magalhães, e deputado estadual, em 1946, pelo partido PSD, por apenas um mandato. Como era comum entre os intelectuais brasileiros da primeira metade do século XX, ele atuou no jornalismo, despertando seu interesse pela profissão aos 16 anos, cursando ainda o ginásio no Colégio Ginásio Pernambucano. Nesse momento, ele fundou, com um grupo de amigos, um periódico denominado O Álbum. Este jornal servia como aporte para a disseminação das ideias que permeavam a Sociedade Literária Bernardo Viera de Melo, centro literário que Mário Melo fez parte, juntamente com: Mário Rodrigues, Alcebíades

135

Lemos, Adalberto Ribeiro, Euzébio de Souza. Com o grupo ele compartilhou ideias, afinidades e inimizades, configurando, assim, uma de suas primeiras redes de sociabilidade, estratégia fundamental para a formação de um intelectual.5 Ao longo da primeira metade do século XX, suas narrativas jornalísticas, caracterizadas pelos seus assíduos leitores como sempre polêmicas e marcadas pela combatividade, estavam presentes em diversos periódicos pernambucanos, como no Diário de Pernambuco, Jornal do Commercio, Jornal Pequeno, Folha da Manhã, tendo uma vasta produção em cada um destes periódicos. Ele possuía, inclusive, diversas colunas próprias nestes jornais, onde escrevia diariamente sobre assuntos variados, tratando de questões polêmicas sobre política, escrevendo crônicas sobre a vida cotidiana da cidade do Recife, e até mesmo, divulgando seus textos de cunho histórico acerca de temas da história de Pernambuco e do Brasil. Além disso, salientase também a sua produção jornalística expressiva para outros veículos espalhados pelo Brasil6,

contribuindo até em jornais de outros países.7 Além de seu destaque no jornalismo, Mário Melo, também vai se consagrar como historiador, possuindo uma vasta produção historiográfica sobre a História de Pernambuco, presente nos jornais de grande circulação do Estado e do país, em revistas e em livros publicados desde 19128. Sua legitimação como um intelectual que produz saberes históricos vai se consolidar através de sua associação, em 1909 - intermediada pelo seu sogro, Antônio da Cruz Ribeiro9, - à principal instituição que tinha como função primordial construir uma História do Brasil sob o viés regional, isto é, o Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambuco (IAGP)10. Em 1919, já como 1º Secretário, recebe o título de Secretário Perpétuo do Instituto, nomeação proposta por Oliveira Lima 11, que o consagra como “a alma das comemorações”, pelo seu sucesso na organização das comemorações do Centenário da Revolução de 1817. Este sodalício foi considerado pelos seus biógrafos como o seu principal lugar de sociabilidade e a instituição que marcou sua vida e toda a sua produção histórica. Nela, ele permaneceu até o último dia de sua vida, 24 de maio de 1959, quando só faltavam três dias para completar seu cinquentenário nesta instituição. Sobre a atuação de Mário Melo no IAGP, quem nos conta é o jornalista Cláudio Tavares, um de seus biógrafos: Mas, acadêmico, jornalista, filólogo ou numismata, sua casa mesmo, aquela a quem deu o melhor de si, foi o Instituto Arqueológico a cujo corpo social passou a pertencer desde 1909, e pois com a idade de 25 anos.12

136

O IAGP, criado em 28 de janeiro de 1862, que inicialmente se chamava “Sociedade Arqueológica Pernambucana”, foi o primeiro instituto histórico regional do país. Ele foi fundado por recomendação do Imperador D. Pedro II, na intenção de que fosse criada uma instituição aos moldes do IHGB. A proposta foi à criação de um sodalício, que, além de ser um espaço de produção historiográfica, deveria conter também um museu, onde estariam presentes pinturas sobre os eventos e personagens da História de Pernambuco, bens culturais no geral, recebidos na forma de doação feita por particulares e por entidade que tinha o interesse na preservação de peças antigas13. O grupo que impulsionou a formação da instituição era composto por 5 homens Joaquim Pires Machado Portela, Antônio Rangel Torres Bandeira, Salvador Henrique de Albuquerque, Antônio Vitrúvio Pinto Bandeira e Acioli de Vasconcelos e José Soares Azevedo - de origens e posições sociais distintas, havendo desde um filho de família tradicional da zona cafeeira, até um simples professor de origens modestas. 14 O que eles tinham em comum era o gosto pelas letras e pelos estudos históricos, além do forte desejo de que a História de Pernambuco fosse preservada, estudada, divulgada e valorizada pelos próprios pernambucanos e pelos brasileiros em geral. Ou seja, com a fundação do sodalício, eles tinham como objetivo fazer um resgate da história local, buscando um lugar de destaque à província na escrita da história nacional. Com isso, Pernambuco poderia retomar para si legitimidade e importância no contexto político imperial. No dizer de Machado Portela, o IAGP deveria produzir conhecimento histórico na perspectiva regional: (...) evitando que tais preciosidades se percam, ou que mão estranha e parcial proceda a sua exploração, de modo para nós talvez inglório (...) por ser mais fácil e exata a sua investigação e verificação de fatos no próprio teatro em que aconteceram.15 Já no final do século XIX, com o advento da República, tanto o IHGB quanto o IAGP buscaram redimensionar as suas tradições históricas, para que elas se adequem aos novos preceitos político vigentes no país. Porém, era preciso estabelecer uma transição segura de uma memória imperial para uma republicana, havendo a necessidade de se produzir narrativas que harmonizassem o passado colonial com o presente. Neste contexto, o sodalício pernambucano prosseguiu com o seu objetivo inicial de trazer visibilidade nacional para a História de Pernambuco, construindo a ideia de uma tradição republicana no Estado, na intenção de que os seus símbolos, personagens e eventos, ingressassem ao panteão da História que deveria ser enquadrada16.

137

Poderíamos dizer que o IAGP lutava em duas frentes: por um lado, fazia oposição ao discurso histórico produzido pelos historiadores do IHGB sobre a História de Pernambuco, considerando injustas as análises feitas por eles; por outro, batalhavam contra a indiferença dos pernambucanos em relação ao seu passado, na intenção de leva-lo às gerações futuras. E é neste contexto que o protagonista deste trabalho vai se inserir, produzindo narrativas que tratavam e ajudavam a construir a ideia de uma vocação republicana para o Estado. Durante a década de 1911 a 1919, o IAGP passou por um período bastante difícil, já que, em 1911, sua sede foi demolida, na administração do prefeito Arquimedes de Oliveira e Souza, para a construção e ajardinamento da Praça Joaquim Nabuco 17. Sem contar com a morte de alguns membros de grande importância para a Instituição, como: Alfredo de Carvalho, Regueira da Costa, Coelho Leite, Dom Luís de Brito e Desembargador Luna Freire. Neste momento, Mário Melo, exercendo a sua função de 1º secretário, e logo depois, de secretário perpétuo, vai assumir um papel estratégico para que a Instituição conseguisse permanecer ativa, e para que isso não afetasse a publicação periódica de sua revista. O sodalício funcionou, inicialmente, no Convento do Carmo, depois na Biblioteca Pública, e, em seguido no Convento de São Francisco. Daí, indo ocupar um prédio construído para servir de sede à Escola Modelo, que se localizava na esquina da Rua da Concórdia, próximo a então Praça que seria construída. A demolição aconteceu sem dar tempo de os membros obterem outra sede, de forma que seus livros foram guardados em uma sala do Colégio Ginásio Pernambucano, e suas relíquias atiradas no seu quintal. Já as reuniões de seus sócios passaram a ser feitas nos recintos do Diário de Pernambuco18, jornal que tinha vínculos estreitos com a Instituição, pois, além de jornalistas, muitos dos intelectuais que contribuíam no periódico também eram membros do IAGP, de maneira que quase tudo que acontecia no Instituto era divulgado nas páginas deste jornal. Somente em 1919, por intermédio de Mário Melo, que mantêm seu apoio ao então governador de Pernambuco, Manuel Borba, é que a instituição consegue uma nova sede, no bairro da Boa Vista, Rua do Hospício, nº 130, onde funciona até hoje. Em defesa ao IAGP, o historiador, escreve, em seu relatório de 1º secretário na Revista de volume XVII, em 1915, advogando a favor da utilidade pública do Instituto: Os institutos históricos não são associações meramente particulares, mas grêmios de utilidade nacional, porque são arquivos e museus onde se guardam as relíquias dos feitos dos nossos antepassados.19

138

Neste início de século, os nomes ligados ao IAGP formavam redes de sociabilidades que extrapolavam os limites impostos pelos portões da instituição, se misturando com outros lugares de sociabilidade, como a Academia Pernambucana de Letras (APL) 20, e o jornal Diário de Pernambuco. Estes lugares são formados tanto por uma estrutura organizacional, física e geográfica, quanto por um sentido simbólico, isto é, são compostos por grupos intelectuais que se articulam entre si, compartilhando ideias e simpatias, estimulando um estreitamento de laços afetivos. Os intelectuais se mantinham presentes em vários espaços com diferenciados formatos organizacionais, que tinham tradições internas muito variadas. Sendo assim, podemos dizer que a função do intelectual, nas primeiras décadas do século XX, possibilitava a estes homens se movimentarem entre as fronteiras fluidas dos vários campos disciplinares.21 Segundo o historiador Jean-François Sirinelli22, a categoria de intelectual não possui contornos rígidos para a sua definição, formando, portanto, um grupo multifacetado. Esse “pequeno mundo”, como diria Sartre, seria o responsável por produzir e mediar às interpretações da realidade social brasileira, sendo composto por atores políticos do campo da cultura. Além disso, eles são personagens essenciais à legitimação de regimes políticos modernos, exercendo o papel de produtores de bens culturais e simbólicos, utilizando-se de vários suportes para veicularem suas ideias. Para tratar dos intelectuais que constituíam as redes de sociabilidades brasileira do final do século XIX e início do XX, temos que entendê-los em função da interseção entre os campos políticos e intelectuais, percebendo-os em suas variadas ocupações e múltiplas atuações na sociedade. Pensando em um grupo específico, os historiadores23 seriam aqueles que produziam “estudos históricos” e que muito lutavam para diferenciar a sua área tanto da filosofia quanto dos chamados “estudos político-sociais”. Sendo assim, esse ofício era executado por uma categoria mais abrangente de intelectuais, sendo eles, considerado “homens de letras”, que, com frequência também eram poetas, romancistas, juristas, jornalistas e militares.24 O discurso histórico formulado pelo IAGP era divulgado por meio de sua revista, que iniciou a circulação em 1863, com poucos anos de intervenção. Em seus primeiros anos, era trimestral, tendo a publicação limitada, de forma que eram editadas apenas as atas de sessão ordinárias e extraordinárias, discursos e relatórios do presidente e dos secretários. No entanto,

139

com o passar do tempo e com o aperfeiçoamento das pesquisas, ela passou a contar com artigos monográficos assinados, que vinham em edições menos frequentes, já que a revista passou a ser publicada anualmente ou de dois em dois anos.

25

Podemos arriscar a falar que

esta revista estava direcionada à elite intelectual, sendo provável que não fosse comercializada - já que não há em suas edições nenhuma inscrição de preço - e sim distribuída ao grupo de sócios e colaboradores que financiavam ou articulavam politicamente o financiamento de sua publicação. Nela colaboraram figuras de grande respaldo da intelectualidade brasileira, como: Capistrano de Abreu, Nina Rodrigues, Oliveira Lima, José Hygino Duarte Pereira, Barbosa Lima Sobrinho, José Antonio Gonçalves de Mello, Evaldo Cabral de Mello, Alfredo de Carvalho, Pereira da Costa, entre outros. Ao tratarmos da Revista do IAGP, não podemos nos esquecer das contribuições do sujeito histórico que se baseia esta pesquisa, pois desde que Mário Melo se associou à instituição, nunca deixou de publicar seus trabalhos neste impresso, de maneira que, estão presentes em quase todas as edições que vão de 1909 a 1959. No entanto, acreditamos que essa frequência não ocorre por acaso, já que, ainda em 1910, este historiador passa a compor a “Comissão de Estatuto e Redação da Revista”, juntamente com Regueira Costa e Henrique Capitulino, ficando com o encargo até seus últimos dias de vida. Ou seja, ele passou a efetuar a função de editor, sendo este um papel decisivo na produção da revista. Sendo assim, podemos destacar alguns de seus textos de caráter historiográfico publicados na Revista, na intenção de apresentar a ampla contribuição de Mário Melo no impresso. Seu primeiro trabalho de fôlego foi “A maçonaria e a Revolução de 1817”, publicado na edição de número 79, em 1910, que serviu como aporto para Oliveira Lima nos seus comentários ao livro de Muniz Tavares, “Historia da Revolução de Pernambuco”, quando houve a reedição deste.26 Temos ainda “Arquipélago de Fernando de Noronha”, contido no número 91 de 1916, editado em separata pela Imprensa industrial em Recife; “O suplício de Frei Caneca”, publicado na edição comemorativa do centenário da Revolução de 1824, cujo volume corresponde a XXVI, de 1924. As edições de volume XXVIII, de 1927 e XXIX, de 1929, foram dois exemplares nos quais, Mário Melo, teve uma extensa contribuição, possuindo em cada uma deles 7 e 6 textos, respectivamente. Além dessas, ressalta-se ainda a de XXXVI, de 1930-1940, na qual ele publica seus trabalhos acerca da pesquisa referente à Guerra dos Mascates, empreendida em arquivos portugueses, intitulados: “A Guerra dos Mascates como afirmação nacionalista”, artigo que em 1941 dará origem a seu

140

maior livro, considerado pelos biógrafos, “A Guerra dos Mascates através da correspondência do governo geral do Brasil”, “Documentos inéditos sobre a guerra dos mascates”. Além de seus artigos, a Revista conta também com seus inúmeros relatórios, sendo a elaboração deles uma de suas tarefas como secretário da instituição. Estes relatórios, que não estão presentes em todas as edições, possuindo uma periodicidade irregular, seria o espaço onde Mário Melo tratava, das tomadas de decisão dos membros do Instituto, e dos problemas enfrentados pela Casa, fazendo reinvindicações e defesas em prol de seu melhoramento. Portanto, este artigo tem a proposta de apresentar a trajetória intelectual do historiador Mário Melo, destacando a sua relação com o IAHGP, lugar de sociabilidade em que atuou durante quase 50 anos de sua vida, ocupando o cargo de secretário perpétuo, posicionamento este estratégico dentro da instituição. Realizar uma pesquisa sobre este intelectual é trazer à tona a construção da memória de um homem que se consagrou como personalidade pública na cidade do Recife, pois se manteve presente diariamente nas páginas de vários impressos pernambucanos, e na revista do IAHGP, na qual publicava seus estudos historiográficos mais expressivos e onde exercia o papel de editor. Ademais, tratar deste sujeito é também dar visibilidade a aspectos da trajetória do próprio Instituto Arqueológico e sua constituição política, ressaltando a importância de sua revista como veículo de transmissão de uma cultura histórica republicana que estava sendo formulada na primeira metade do século XX. Logo, este artigo pretende contribuir para a ampliação e o adensamento das discussões acerca de alguns conceitos que envolvem a problemática da trajetória intelectual, que tem grande relevância para os estudos voltados para a construção do pensamento social brasileiro. E também contribuir para com os estudos sobre cultura política e cultura história no Brasil, já que Mário Melo, durante muito tempo de sua vida, foi o “portavoz” de um importante instituto histórico do país, auxiliando, assim, na construção de uma prática historiográfica bem singular desenvolvida pela instituição.

1

Revista do IAHGP, XLV, Recife, 1960. Valdemar de Oliveira (1900-1977) foi um médico, jornalista, teatrólogo, e professor recifense. Grande amigo de Mário Melo. 3 José Isidoro Martins Júnior (1860-1904) foi um destado participante do grupo dos positivistas do Recife, que desenvolveu intensa ação de divulgação das ideias de Comte e de propaganda abolicionista e republicana da década de 1880. Fundou com Arthur Orlando uma sociedade abolicionista em 1883, e participou mais tarde do Clube Republicano de Pernambuco, da Sociedade Positivista e, em 1888, do Partido Republicano de Pernambuco. In: MELLO, Maria Tereza Chaves de. A República Consentida. FGV. Rio de Janeiro, 2007. 2

141

4

Mário Melo assume, durante a década de 1930, o cargo de inspetor na Inspetoria Estadual dos Monumentos Nacionais de Pernambuco, órgão criado em 1929 que tinha como papel a preservação do patrimônio histórico geográfico do Brasil. Ele dirigiu a instituição até 1933. In: CANTARELLI, Rodrigo. Contra a conspiração da ignorância com a maldade: A Inspetoria Estadual dos Monumentos Nacionais e o Museu Histórico e de Arte Antiga do Estado de Pernambuco. 2012. Dissertação (Mestrado) – Programa de PósGraduação em Museologia e Patrimônio, UNIRIO/MAST, Rio de Janeiro, 2012. Disponível em: . Acesso em: 15 jun. 2015. 5 SIRINELLI, Jean-François. “Os intelectuais”. In : René Rémond (org.). Por uma história política. Rio de Janeiro: EdUfrj / Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1996. 6 Como é bastante salientado em um roteiro jornalístico sobre Mário Melo de autoria do jornalista Luiz Nascimento, ele contribuiu frequentemente vários periódicos importantes do país, nos quais, destacamos a Revista Ilustração Brasileira, publicando nela durante os anos de 1922 a 1924, o Jornal do Brasil, de 1936 e 1939, e a revista Cultura Política, publicando em 1942. In: NASCIMENTO, Luis. Roteiro jornalístico de Mário Melo. In: BARBOSA, Virgínia. GASPAR, Lúcia. Mário Melo 1884-1959: uma bibliografia. FUNDAJ. Recife, 2012. 7 Destacamos a sua contribuição para o jornal O Século, de Lisboa e no La Prensa, um dos maiores diários da Argentina. Idem. 8 Seu primeiro trabalho historiográfico publicado foi “A maçonaria e a Revolução de 1817”, editado pelo Instituto Arqueológico Geográfico Pernambucano (IAGP) em Recife. 9 Antônio da Cruz Ribeiro (1855-1927), nasceu em Itabaiana, Paraíba, e foi nomeado para trabalhar para a Fazendo Federal, se aposentando como Tesoureiro dela. Este intelectual manteve uma relação bastante estreita com Mário Melo, de maneira que fez a intermediação para que este se associasse ao IAGP. Os dados biográficos dele foram retirados de um periódico. In: Falecimento. A Província. Recife, 8 set. 1927. p. 5 10 O IAGP passa a se chamar Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP) a partir de 1920. A inclusão do termo “histórico” no nome da instituição foi uma discussão polêmica, já que, ao invés de acrescentar o nome, alguns membros queriam que a denominação “arqueológico” fosse retirada. Sobre a questão, o Secretário Perpétuo, Mário Melo, expõe sua opinião em seu relatório para a revista de volume XXII, de 1920. Segundo George Cabral, a denominação “arqueológico” foi escolhida por influência do pensamento francês, que a percebe como designativa do conhecimento do passado, em todas as suas facetas. Já o termo “pernambucano” foi adotado a partir das ideias liberais europeias na intenção de salientar o pertencimento da instituição ao “Povo” de Pernambuco, e não ao governo da província. In: SOUZA, George Félix Cabral de. Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano: breve história ilustrada. IAHGP. Recife, 2010. 11 O pernambucano Oliveira Lima (1867-1928) entrou para ser sócio honorário do IAGP em 1904. Nesse momento, já era um homem influente, assumindo a carreira de diplomata, vivendo em vários países distintos em razão de sua função, chegando até a fazer parte da equipe diplomática chefiada por Joaquim Nabuco em Londres, intelectual com quem tinha estreita amizade, até rompê-la por motivo de dissidência política. Em 1896 ele lançara a sua primeira obra historiográfica, Pernambuco, seu desenvolvimento histórico, garantindo o seu lugar como sócio correspondente do IHGB. Ele também é autor do livro D. João VI no Brasil (1808-1821), escrito em 1908. 12 TAVARES, Cláudio. Mário Melo – jornalista e Historiador Democrata. Associação da Imprensa de Pernambuco. Recife, 1976.p. 89. 13 A visitação ao museu teve início em 1866, funcionando, inicialmente, como um verdadeiro “gabinete de curiosidades”. Este museu permanece até os dias atuais. In: SOUZA, George Félix Cabral de. Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano: breve história ilustrada. IAHGP. Recife, 2010. 14 SOUZA, George Félix Cabral de. Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano: breve história ilustrada. IAHGP. Recife, 2010. 15 Citação presente no texto: SOUZA, George Félix Cabral de. Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano: breve história ilustrada. IAHGP. Recife, 2010. P. 32 16 Este termo é referente ao conceito de enquadramento de Michael Pollak. In: POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 3-15, 1989. 17 Este período é marcado por uma intensa crise política em Pernambuco, sendo este um momento eleitoral que faria com que o Estado se dividisse entre os “dantistas”, aqueles que eram à favor de do general Dantas Barreto, e os “rosistas”, aliados ao Conselheiro Rosa e Silva. Neste momento, Recife é permeado por muitas perseguições políticas e assassinatos nas ruas, como, por exemplo, o caso de da morte do jornalista Francisco Chacon. 18 O jornal Diário de Pernambuco, fundado em 1825, tem sua história marcada por uma trajetória conservadora, sempre ligada a políticos situacionistas. Isto é, durante todo o império sempre apoiou a monarquia, porém com o advento da República converte seu discurso para se encaixar aos moldes da situação política. In:

142

NASCIMENTO, Luiz do. Historia da Imprensa de Pernambuco. V.1. Recife: UFPE. Ed. Imprensa Universitária. 2ed, 1968. 19 Revista do IAHGP, v. XXII, ns 107 a 110, Recife, 1920. 20 A Academia Pernambucana de Letras é fundada pelo literato Carneiro Vilela e tendo como primeiro presidente Teotônio Freire. Desde sempre a instituição tem vínculos estreitos com o instituto histórico. In: PARAÍSO, Rostand. Cadê Mário Melo... Comunigraf. Recife, 1997. 21 GOMES, Angela de Castro. A República, a História e o IHGB. Belo Horizonte, MG: Fino Traço, 2009. 22 A categoria de intelectuais utilizada neste artigo parte das ideias de Jean-François Sirinelli, que vai adentrar-se nas discussões da História dos intelectuais, debates esses que permeiam a década de 1980 e que está inserido nas discussões da retomada da História Política. Este historiador francês procura traçar uma metodologia eficaz para a operacionalização articulada entre o campo intelectual e a defesa política, tendo como ponto de partida conceitos-chaves como o de itinerário, de geração, e de sociabilidade. In: SIRINELLI, Jean-François. “Os intelectuais”. In : René Rémond (org.). Por uma história política. Rio de Janeiro: EdUfrj / Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1996. 23 O ofício de historiador, até os anos 30 não tinha marcas muito especiais, pois ainda não havia distinção disciplinares muito nítida no Brasil, além de não haver formação profissional em faculdades. In: GOMES, Angela de Castro. História e Historiadores. Rio de Janeiro, RJ: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1996. 24 GOMES, Angela de Castro. História e Historiadores. Rio de Janeiro, RJ: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1996. 25 SOUZA, George Félix Cabral de. Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano: breve história ilustrada. IAHGP. Recife, 2010. 26 Mosenhor Francisco Muniz Tavares foi o primeiro presidente do IAGP e participante da Revolução de 1817, sobre a qual escrever o livro Historia da Revolução de Pernambuco em 1840, que foi reeditado com comentários de Oliveira Lima em 1917, durante as comemorações do Centenário da Revolução de 1817.

143

A ATUAÇÃO DOS FRANCISCANOS NO PERNAMBUCO COLONIAL DOS SETECENTOS E A POLÍTICA REFORMISTA POMBALINA. Amanda P. P. da Silva Trindade 1.

O presente artigo tem por objetivo analisar a atuação da Ordem Franciscana em Pernambuco e suas anexas no período colonial século XVIII com destaque para religião na interação com as questões cotidianas da sociedade colonial, deste modo, desenvolver um trabalho que verse sobre a relação que existiu entre franciscanos, colonos e outras Ordens religiosas no contexto do Pernambuco colonial, explorando as dinâmicas de colaboração e conflitos que se estabeleceram. Vinculada a mudanças estruturais do reformismo sociopolítico exercido pela implementação das políticas do Marques de Pombal nesse período, demostrando impactos e mudanças sistemáticas impostas no campo eclesiológico. Palavras chaves: Ordem Franciscana, Pombal.

This article aims to analyze the performance of the Franciscan Order in Pernambuco and his attached in the eighteenth century colonial period with emphasis on religion in the interaction with the everyday issues of colonial society, thus, develop a work that addresses the relationship that existed between Franciscans, settlers and other religious Orders in the context of colonial Pernambuco, exploring the dynamics of cooperation and conflict that have established them. Linked to structural changes in the socio-political reformism exercised by Marques de Pombal policy implementations in this period, showing systematic impacts and changes imposed in the ecclesiological field. Keywords: Franciscan Order, Pombal.

INTRODUÇÃO

A associação entre Igreja e o Estado no projeto colonial no Brasil se caracteriza pela constante busca de expansão ou manutenção do seu poder. Nesse contexto seguem juntos no caminho de implementação da soberania lusa e da própria cristandade que se expandia aos novos mundos2. Essa ampliação de ocupação territorial era, de certa forma, concebida como “único meio de adquirir novos espaços onde o cristianismo pudesse estabelecer-

144

se”3, além de elevar os poderes das duas instituições em questão: a Igreja e o Estado, sendo assim “a aliança estreita e indissolúvel entre a cruz e a coroa, o trono e o altar, a fé e o império, era uma das principais preocupações comuns aos monarcas ibéricos, ministros e missionários em geral. ” 4 As missões representadas pelas Ordens Religiosas tinham por objetivo enviar os religiosos para as terras colonizadas com o intuito de transformar outros indivíduos em cristãos. Por outro lado, os missionários obstinados em converter os

gentis

ao

cristianismo, buscavam interagir aprendendo a língua nativa, os costumes, conquistando o respeito e fazendo-se obedecer quando necessário. Desta forma, as Ordens Religiosas vão desempenhar papel de fundamental importância nesse processo de expansão da fé cristã e dos objetivos do Estado, em que os religiosos seguiam para terras de colônia, com o compromisso de servir a Deus e à Coroa. A mescla entre política e religião se torna um estratagema da Coroa Portuguesa no controle sociopolítico da colônia brasileira.

No século XVI, o projeto missionário para Terra de Santa Cruz se inscreve no coração da política do padroado que atendia aos objetivos de ampliação dos domínios da Igreja e da monarquia portuguesa. A missão da Igreja, enquanto projeto missionário, era, principalmente, a de conversão dos nativos. Para tanto, a Coroa portuguesa o financiou no Brasil colônia, fazendo jus à bula Inter Coetera de 1493, na qual os soberanos de Portugal e Castela ficaram encarregados das ações de povoar e evangelizar as terras “descobertas” e as por “descobrir”. Essa bula trata também do direito do padroado e política de ampliação dos domínios da Igreja Católica Apostólica Romana, já definido para África explorada pelos portugueses, onde também ocorreram ações missionarias.5

O governo português, tal como outras monarquias,

era

responsável

pela

manutenção e financiamento das atividades e instituições religiosas nas colônias, essa relação é definida por Padroado Régio. Diante disto, o Estado custeava construções de igrejas, o pagamento de estipêndios ao clero secular

ou

financiamento

das

ordens

religiosas estabelecidas em terras colonizadas. Como forma utilizada para captação de recursos necessários, a coroa portuguesa recolhia o imposto eclesiástico, o dízimo, cobrado pela Igreja. O padroado português é definido como “uma combinação de direitos, privilégios e deveres concedidos pelo papado à Coroa de Portugal como patrona

das

missões e instituições eclesiásticas católicas apostólicas romanas em vastas regiões da Ásia e no Brasil”6.

OS FRANCISCANOS E AS ATIVIDADES MISSIONÁRIAS

145

O papel dos missionários, no processo histórico de implementação da cristandade e poderio da coroa, nunca foi de meros espectadores, mostrando-se ao inverso,

como

atuantes e protagonistas7. Dentre as várias funções delegadas pela coroa portuguesa às missões religiosas destacavam-se as responsabilidades atribuídas para si o dever de, não só lutar pelas terras coloniais em nome da Coroa, mas abrir fronteiras para garantir a soberania em novas áreas ocupadas. A atuação das Ordens missionárias como instituição de fronteiras era uma forte característica da colonização Ibérica, pois os missionários, na medida em que seguiam desbravando terras da coroa portuguesa, assumiam, no momento inicial, a responsabilidade de pacificação de áreas fronteiriças, escoltados sempre que possível por pequenas guarnições. Segundo os religiosos “era mais fácil ganhar a confiança dos nativos hostis ou não subjugados com missionários desarmados trabalhando sozinhos ou aos pares”8. Organizar a força de trabalho indígena era fundamental para a sobrevivência e permanência dos religiosos, além de atender aos serviços do Rei, dos colonos e dos missionários9. Sendo assim, iniciou-se um momento o qual podemos primariamente classificá-lo como migratório de religiosos a colônia, cuja mentalidade de “rigor” espiritual caberia para conter ações incivilizadas tanto dos “selvagens nativos” quanto dos colonos, como também servir de controle e normatização social. Aos Franciscanos presentes na capitania de Pernambuco nos setecentos, era atribuído tanto atividades missionários imbuídas na disseminação dos preceitos cristãos aos gentis e aos colonos que habitavam terras de colônia, assim como tomavam para sim a incumbência de ministrar aulas para filhos dos colonos. Segundo a documentação analisada, paralelamente à construção de um convento ou hospício erguido, destinado à Ordem Franciscana, em Pernambuco e suas anexas, era prenunciado atividades nas quais os frades assumiam funções pedagógicas em escolas direcionadas para a educação da sociedade local menos privilegiada10. A questão da contribuição cultural dos Franciscanos11 aos colonos através da ministração de aulas aos menos favorecidos, articulado ao ideal de boa conduta eram também uma forma de possível captação de noviços, o Frei Venâncio Willke12 cita o trabalho da Ordem com fundamental, não só no que tange a evangelização, mas na questão educacional na qual os frades estavam envolvidos atuando no estabelecimento de padrões

146

culturais para a sociedade local. Além dos jesuítas, que tiveram grande destaque de atuação no Brasil, a Ordem Franciscana também desenvolveu forte atividade missionária em capitanias importantes, especialmente em Pernambuco, pois

a presença franciscana na paisagem, na vida, na cultura não apenas em Recife, mas do Brasil inteiro, é uma das constantes da condição brasileira; do modo brasileiro de ser ou, antes, de “estar sendo”, como diria outro pensador espanhol, Ortega y Gasset, para melhor caracterizar o que em qualquer expressão regional ou nacional da condição humana é fluxo, movimento, transformação13.

Atuantes seja no desempenho das atividades missionárias, seja em trabalhos voltados para cristianização dos gentis ou ainda na educação de filhos de colonos, os Franciscanos vão exercer forte trabalho com a sociedade local em Pernambuco e suas anexas. Além de delimitar territórios

e

proteger

as

fronteiras,

os

frades

vão

implementar normas de conduta responsáveis na promoção de influências culturais. De modo que são responsáveis por exercer um papel determinante na formação da sociedade colonial brasileira.14 Mesmo subordinada política e financeiramente ao Estado, as Ordens religiosas na dinâmica de suas atividades, procuravam sempre ter uma certa autonomia. A reforçar esta autonomia estava o fato de que, mesmo submetidos ao Padroado, os religiosos, em última instância deviam somente obediência aos seus superiores e à Roma, não podendo a Coroa intervir diretamente nos espaços controlados por estas ordens. Esta foi uma das razões para que fosse proibida a entrada de ordens regulares na região das Minas Gerais, sob o argumento de que sem o controle sobre as casas religiosas a Coroa não teria como controlar as possíveis ações no descaminho do ouro. Deste modo, as atividades missionárias caminhavam lado a lado com a colonização e se desenvolviam conforme as suas próprias necessidades, estabelecendo com as ações da Coroa e dos colonos áreas de complementariedade e de conflitos. As Ordens que se estabeleceram no Brasil, com o passar do tempo, foram adquirindo significativos poder e riqueza, pois mesmo instituto o sistema de Padroado as alegavam que a verba enviada para custeio dos missionários demorava para chegar obrigando os religiosos a encontrar alternativas viáveis para custear a missão.

Não

obstante, já no século XVIII, eram detentoras de verdadeiras fortunas, através de doações dos colonos e realizações dos sacramentos. 147

No caso dos Franciscanos, a doação de bens e a prática da mendicância contribuíram bastante para o sustento e ampliação de bens da Ordem não só em Pernambuco, mas em todo Brasil colonial. Nesse sentindo, doações configuradas em repasse de propriedades para a Ordem Franciscana15, ou mesmo abastecimento de produtos alimentícios enviados aos conventos pelos moradores locais, principalmente as que eram enviadas pelas elites dos engenhos vizinhos aos conventos, demonstra uma possível relação com a perspectiva de ideal de salvação.

OS IMPACTOS DA POLÍTICA REFORMISTA POMBALINA

Diante do poder adquirido pela Igreja e seus respectivos representantes na colônia, o Estado português implementou em meados do século XVIII, reformas regalistas para reverter esse quadro na colônia brasileira. No que se refere ao período pombalino “esteve longe de configurar-se em anticatolicismo ou mesmo em um

anticlericalismo” 16 pois,

as

medidas reformistas tinham por objetivo efetuar uma reforma do aparelho eclesiástico que permitisse a submissão da Igreja ao Estado, uma manobra para submeter as Ordens e todo a aparelho religioso ao Estado. Dessa forma, objetivo do Estado era, ao que tudo indica, impor uma “razão de Estado” e para tanto usou como recurso a expulsão dos jesuítas em

1759

e

a

desapropriação dos ditos “bens santos” dos religiosos “como uma forma de limitar o poder da Igreja dando aos mesmo uma utilidade pública, fazendo com que aplicados de forma produtiva”17 resultasse de forma lucrativa para a sociedade e, conseguintemente, para o Estado. Assim, a política reformista implementada pelo Marquês de Pombal, com o apoio do monarca português, dentro de suas perspectivas, “consegui romper com maior eficiência os condicionalismos estruturais vigentes” na medida que afetou o patrimônio eclesiástico.18 As reformas ditas “esclarecidas” implementadas pelo Marques de Pombal, que em um momento inicial atingem o poderio dos inacianos, acabam por reduzir as atividades de outras Ordens religiosas, principalmente a dos Franciscanos, pois várias restrições são impostas aos frades, contudo a que talvez mais tenha abalado e enfraquecido a ação desses religiosos foi o decreto imposto por Pombal proibindo a aceitação de novos noviços para a

148

Ordem19. Com isso o número de franciscanos diminui significativamente, e com o passar dos anos, na medida que os frades atuantes vão envelhecendo e sem a entrada de novos membros, a Ordem franciscana em Pernambuco perde espaço e força de atuação. 20 Sem autorização para fundar novos conventos ou mesmo sem a quantidade de frades necessária para desenvolver as atividades missionárias, o número de membros ativos da Ordem Franciscana em Pernambuco pós reformas Pombalinas reduz de forma significativa. As reformulações estruturais propostas pelo reformismo sociopolítico exercido pela implementação das políticas do Marques de Pombal em meados de 1750, demonstra impactos e mudanças sistemáticas impostas no campo eclesiológico. Dentre os muitos elementos constituídos das reformas “esclarecidas” do Estado absolutista, avulta o das relações em torno do poder civil e o eclesiástico as quais, à época de Pombal, cristalizaramse em torno dos padres da Companhia de Jesus, culminando na sua expulsão de Portugal e seus domínios (1759).21 Conforme a análise do autor Evergton Souza, Pombal não agiu diretamente contra a igreja, mas sim contra grupos do corpo eclesiástico que ameaçavam seu projeto político. O autor considera as reformas Pombalinas não pelo viés de condenação, mas como ações que buscavam afastar práticas supersticiosas da teologia, para uma melhor formação do clero e de um catolicismo esclarecido. Conclui afirmando que o projeto Reformador foi em boa medida vitorioso a que se propôs: expulsão dos jesuítas; difusão das teorias regalistas e a aceitação das leis promulgadas, compreendendo nesse contexto aquelas que diziam respeito ao patrimônio eclesiástico22. No entanto os jesuítas não foram os únicos a serem atingidos pelas reformas Pombalinas. Grande parte das ordens religiosas no Brasil Colonial, principalmente no tocante aos Franciscanos em Pernambuco, vão sentir os reflexos das mudanças e a substancial diminuição da sua atuação. Diferentemente das conclusões estabelecidas por Evergton Souza, o autor C. R. Boxer se refere a uma Ditadura Pombalina caracterizando-a como um momento de terror e perseguição aos jesuítas e a aristocratas portugueses. O marquês, segundo o autor, “atribuía o atraso e o subdesenvolvimento (como diríamos hoje) de Portugal e das colônias era quase inteiramente devido às maquinações diabólicas da Companhia de Jesus. A origem do ódio patológico de Pombal pelos jesuítas é incerta. ”23 O aumento significativo de inacianos em território

português

e

nas

suas

possessões ultramarinas, fez com que os jesuítas acumulassem prestigio e riqueza, principalmente nas colônias, este fato fez com que a Coroa e, principalmente o Marquês de

149

Pombal tomasse medidas para suprimir o poder da Ordem e consequentemente anexar a Coroa todo a dita riqueza que estavam sob posse.

“O surpreendente feito de Pombal em aniquilar o ramo português da Companhia revelouse o prelúdio da expulsão dos jesuítas de França e Espanha (1764-1767) e da relutante supressão de toda a Companhia pelo papado, em 1773. O seu sucesso inicial deveuse largamente ao facto de Pombal ter conseguido implicados numa conspiração destinada a assassinar o monarca, que falhou por pouco em Setembro de 1758. Esta conspiração foi, ao que parece, obra de alguns membros da família aristocrata dos Távoras, muito ofendidos com a ligação notória que D. José mantinham com a jovem e linda marquesa do mesmo nome. As provas incriminatórias contra eles foram obtidas sob tortura e a maior parte delas é altamente suspeita; mas Pombal aproveitou esta oportunidade para intimidar a alta nobreza através da execução pública dos Távoras mais importantes, em circunstâncias de uma barbaridade revoltante. ” 24

Boxer ressalta em suas analises uma perseguição por parte do Marquês de Pombal à Companhia de Jesus na qual culminou com uma aniquilação dos

missionários

território português. O autor, inclusive, reporta a um reinado de terror que

em

perdurou

durante todo período de permanência do Marques como secretário de Estado da Guerra e dos Negócios Estrangeiros na Corte portuguesa, findando apenas com

a

morte

do

monarca D. José. A pretensão de Pombal, ao que tudo indica, ainda segundo o autor, era levar ao extremo as concepções absolutistas e subordinar a Igreja ao controle supremo da Coroa. O fato é que o objetivo da Coroa portuguesa foi alcançado, pois os jesuítas foram extintos das colônias portuguesas principalmente em Portugal, retornando apenas tempos depois em pequeno número. As medidas reformistas adotadas por Pombal não atingiram apenas os inacianos, mas grande parte das Ordens religiosas que transitavam em Pernambuco, nesse caso damos destaque para a questão Franciscana, na medida que esta teve significativa redução de sua atuação na segunda metade do século XVIII. Sendo assim, o Estado foi nomeado como detentor dos bens dos inacianos, e manteve as demais Ordens e a própria Igreja, em territórios do poderio da Coroa Portuguesas, subordinada ao Estado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No que se refere ao projeto colonial/missionário brasileiro, as Ordens religiosas desempenharam um papel fundamental, como foi visto, pois receberam incentivos do Estado para que seguissem em missão. Ao desempenharem suas atividades missionárias, as

150

respectivas Ordens religiosas foram, gradativamente, construindo admirável fortuna que lhes concedeu certa autonomia em relação ao padroado, muito embora nunca tenham escapado do controle do Estado, a exemplo das reformas Pombalinas. No tocante as atividades dos Franciscanos em Pernambuco, é perceptível na análise das fontes que houve uma forte assistência dos frades para com a sociedade local, seja na execução de atividades missionarias ou pedagógicas, mas, no entanto, essa atuação é significativamente reduzida com as limitações impostas pelas reformas Pombalinas. Desta forma, o interesse do Estado e da Igreja seguem lado a lado, de maneira que esta relação intrínseca entre essas duas Instituições se torna fundamental para análise e compressão das complexas relações que envolvem as Ordens religiosas e os Estado Português no período colonial Brasileiro.

151

1

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, sob orientação do Professor Doutor Anderson José Machado de Oliveira. Licenciada em História pela Universidade Federal Rural de Pernambuco - [email protected] . 2 SOUZA, Evergton Sales. Igreja e Estado no Período Pombalino. Lusitania Sacra, n. 23, 2011. 3 SÁ, Isabel dos Guimarães. Estruturas Eclesiásticas e Ação Religiosa. In: BETHENCOURT, Francisco; CURTO, Diogo Ramada (Orgs.) A expansão marítima portuguesa, 1400-1800. Lisboa, Portugal: Edições 70, 2010, p. 265. 4 BOXER, C. R. A igreja e a expansão ibérica (1440-1770). Lisboa, Portugal: Edições 70, 2013, p. 87. 5 BARBOSA, Bartira Ferraz. Missionação na Capitania de Pernambuco. In: GUEDES, Roberto (Organizador). Dinâmica imperial no antigo regime português: escravidão, governos, fronteiras, poderes, legados: séculos XVII-XIX. Rio de Janeiro: Editora Mauad X, 2011, p. 225. 6 BOXER, C. R. O império marítimo português 1415-1825. Lisboa. Portugal: Edições 70, 2014 (1977), p. 227. 7 AMORIM, Maria Adelina. Os Franciscanos no Maranhão e Grão-Pará: Missão e Cultura na Primeira Metade de Seiscentos. Lisboa. 2005. 8 BOXER, C. R. A igreja e a expansão ibérica (1440-1770). Lisboa, Portugal: Edições 70, 2013, p. 83. 9 ALMEIDA. Maria Regina Celestino de. Evangelizar e Reinar: Poder e Relações sociais do Rio de Janeiro Colonial. Caminhos, Goiânia, v. 4, n. 1, p. 115-141, jan. /jun. 2006. p. 116. Acervo do Projeto Resgate do Arquivo Histórico Ultramarino – A.H.U – Pernambuco. Cx. 25, D. 1977. FREYRE, Gilberto. A propósito dos Frades. Bahia, 1959. p. 60-61. 12 Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 1956. Capitulo I – Arquivo Franciscano de Ipojuca. p. 256 a 353. 13 FREYRE, Gilberto. A propósito dos Frades. Publicações da Universidade da Bahia, 1959, p. 15. 14 JABOATÃO, Fr. Antônio de Santa Maria, Novo Orbe Seráfico, Brasílico, ou Chronica dos frades menores da Província do Brasil, por Fr. Antônio de Santa Maria Jaboatão, impressa em Lisboa em 1761, e reimpressa na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Vol. I, Primeira Parte, Rio de Janeiro, Typ. Brasiliense de Maximiano Gomes Ribeiro, 1858; Vol. II, Segunda Parte, 1859-1862. 15 Encontramos na análise documental doações em terras para os franciscanos em figura de testamento. Conforme a Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. N. 13. 1956. p. 270 - 271. 16 OLIVEIRA, Anderson José Machado de. As irmandades religiosas na época pombalina: algumas considerações. In: FALCON, Francisco; RODRIGUES, Claudia (Orgs.). A “época pombalina” no mundo luso-brasileiro. Rio de janeiro: Editora FGV, 2015, p. 348. 17 Ibidem. p. 358. 18 RODRIGUES, Claudia. Entre o regalismo e secularização: significados das reformas pombalinas sobre a pratica católica de testar no mundo luso-brasilerio. In: OLIVEIRA, Anderson José Machado de; MARTINS, Willian de Souza (Orgs.). Dimensões do catolicismo no império português (séculos XVI-XIX). 1ª Ed. Rio de Janeiro: Gramond, 2014, p. 310. 19 A proibição da recepção de novos membros é datada na documentação a parti de 1764. 20 Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Volume 286. Departamento de Impressa Nacional – Rio, 1970. Atas Capitulares da Província Franciscana do Brasil (1649-1893); Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional- 13. Rio de Janeiro, 1956. Capitulo I – Arquivo Franciscano de Ipojuca. p. 256. 21 FALCON. Francisco Calazans. Pombal e o brasil. In: TENGARRINHA, José (Org.). História de Portugal. 2ª Ed. Bauru, SP: EDUSC; São Paulo, SP: UNESP; Portugal, PT: Instituto Camões, 2001, p. 228. 22 SOUZA, Evergton Sales. Igreja e Estado no Período Pombalino. Lusitania Sacra, n. 23, 2011, p. 225. 23 BOXER, C. R. O império marítimo português 1415-1825. Lisboa. Portugal: Edições 70, 2014 (1977), p. 185. 24 Ibidem. p. 187. 10 11

152

O Partido Proletário nas eleições de 1935: Gilbert Gabeira diante do confronto entre o Partido Social Democrático e o Partido da Lavoura no Espírito Santo

Amarildo Mendes Lemos (Mestre em História-UFES)1

Resumo: Nas eleições de 1934 no Espírito Santo o Partido Proletário (PP) elegeu Gilbert Gabeira Proletário para deputado na Assembleia Constituinte do estado do Espírito Santo. Na escolha do nome do Interventor do Governo do Estado naquele ano houve uma cisão no PSD liderada por Asdrúbal Soares lançado candidato por uma frente organizada pelo Partido da Lavoura e pelo PP contra o PSD. Esse trabalho traz esclarecimentos acerca do posicionamento adotado pelo PP realizamos uma cobertura no jornal Diário da Manhã. Palavras-chave: Partido Proletário; Gilbert Gabeira; Espírito Santo.

Abstract: In the 1934 elections in the Espírito Santo the Proletarian Party (PP) elected Gilbert Gabeira Proletarian for deputy in the Constituent Assembly of Espírito Santo state. Interventor in choosing the name of the State Government in that year there was a split in the PSD led by Asdrubal Soares launched candidate by a front organized by the Party of Crop and the PP against the PSD . This work brings clarification about the attitude adopted by the PP performed a cover in the Diário da Manhã newspaper. Keywords: Proletarian Party; Gilbert Gabeira; Espírito Santo.

Após a Revolução de 1930, a vida política no Espírito Santo dividiu-se entre o apoio e à oposição à interventoria federal. O Partido da Lavoura, em São Paulo e no Espírito Santo, independentes entre si, foi estruturado a partir de entidades profissionais, como permitia o decreto de 1932. O Partido da Lavoura no Espírito Santo, além de congregar políticos alijados da situação, foi formado por pessoas que não residiam no estado (Jerônimo Filho, Abner Mourão, radicado em São Paulo) ou que tinham poucos vínculos com o campo.2 Na eleição para a Constituinte Estadual em 1934 para a posse em 1935, o PP fez um deputado estadual, o PL fez oito e o PSD fez 16. Além desses partidos, disputaram as eleições em 1934 os seguintes partidos: Pelo Espírito Santo Unido; Partido Conservador Municipal; Integralismo; Partido da Lavoura; e Partido Social Democrático.3 O Partido Proletário (PP) garantiu a representação na Assembleia Constituinte elegendo um deputado estadual com 1.643 votos no 1º turno, com 77 votos a mais que o quociente eleitoral.4 O PP não precisou

153

dos votos de nenhum outro partido para eleger seu candidato. Apesar disso, observamos a estreita ligação de muitos de seus membros com o PSD e com a Interventoria. Mas na medida em que o Governo Federal direcionava políticas para os trabalhadores, essa ligação se tornava algo mais viável. A Constituição de 1934 foi assinada por Gilbert Gabeira que foi eleito como deputado classista no Espírito Santo. A atuação de Gabeira na Constituinte Federal era acompanhada pelo Diário da Manhã com muitos elogios à sua atuação. Assim, vemos em 1933: O deputado trabalhista Gilbert Gabeira, falando ao ‘Diário da Manhã’, traçou em poucas palavras a orientação que lhe parece mais acertada para os seus companheiros no prélio eleitoral do próximo dia oito. ‘Devem os trabalhistas do Espírito Santo ficar com aqueles que defendem e prestigiam o eminente Chefe do Governo Provisório cooperando no cumprimento integral do programa revolucionário’ – assim se expressou o prestigioso representante das classes trabalhadoras. E muito bem o fez. Não seria de acreditar que os trabalhistas se voltassem contra os verdadeiros defensores dos novos ideais, depois de lhes haverem eles atendido aos anseios, reconhecido direitos, estendido as mãos em legitima atitude de solidariedade.5

Os trabalhadores do Espírito Santo não representam uma grande expressão no conjunto da força de trabalho no Brasil, mas participaram dos debates que envolviam a Questão Social no Brasil. Nesse contexto, eles tomavam parte no debate nacional em consonância com as ações do Ministério do Trabalho. Tanto que podemos observar telegrama publicado no Jornal do Brasil um pedido de visita do ministro Salgado Filho à cidade de Vitória feito pela Federação do Trabalho, cujo presidente em 1933 era Gilbert Gabeira.6 Nesse mesmo ano, entre 03 e 18 de abril de 1933, foi organizado em 1933 o Congresso Sindicalista Nacional Proletário. O Espírito Santo foi representado pelo Sindicato dos Operários e Empregados da Companhia Central Brasileira de Força Elétrica que enviou Gilbert Gabeira e Persio Nascimento. 7 Contudo, oito meses antes da escolha para governador pela Assembleia Constituinte Estadual, em 05 de agosto de 1934, o noticiário do jornal O Radical anunciava aos cariocas que João Punaro Bley organizou uma reunião com sindicatos de trabalhadores, intermediada pelo delegado do ministro do Trabalho, com o objetivo de se lançar candidato. De acordo com Gabeira, Bley queria garantir o apoio dos trabalhadores sem realizar mudanças em prol dos mesmos. Essa declaração foi feita ao jornal pelo próprio Gilbert Gabeira e dada como motivo para o rompimento de Gabeira com a “maioria trabalhista” na Constituinte Federal, a qual, segundo ele, não estaria “mais cumprindo as finalidades de defesa do proletariado”.8 O Jornal do Brasil também noticiou o rompimento de Gabeira com o grupo que defendia o interventor da seguinte forma: “Rompendo com o grupo a que estava filiado não ingressa, contudo, no da esquerda.” Gabeira teria tornado-se “franco atirador, acompanhando a minoria da bancada em todos os movimentos que entender justos”.9 154

Antes das eleições de outubro de 1934 que elegeu a Assembleia Constituinte Estadual a qual escolheria o presidente do Estado, Bley promovia as articulações políticas. A atitude de Gabeira em relação ao interventor foi de oposição, sem se alinhar com a esquerda. Essa declaração contida no Jornal do Brasil denota que até aquele momento o representante do Partido Proletário na Assembleia Nacional Constituinte não estava, ainda, alinhado com os comunistas. Essa aproximação se deu posteriormente. De acordo com Achiamé o PP foi “organizado para servir como face legal ao proibido PCB” (2010, p.219). Entretanto, no Espírito Santo essa ligação só poder ser identificada claramente a partir de 1935 quando Gilbert Gabeira, na condição de representante profissional, se destacou na Constituinte Federal fazendo o pronunciamento e a leitura do manifesto da Aliança Nacional Libertadora (ANL), uma nova agremiação de esquerda liderada pelos comunistas, em 17 de janeiro de 1935.10 Em janeiro de 1935, Asdrúbal Soares anunciou a sua dissidência dentro do PSD, contra a candidatura do interventor João Punaro Bley, e foi lançado como candidato pelas Oposições Coligadas. As chamadas Oposições Coligadas reuniam a dissidência pessedista, o Partido da Lavoura (PL) e o Partido Proletário (PP). Gabeira, nessa ocasião, teve seu nome transformado em verbo: gabeirar, ou seja, mudar de partido a troco de dinheiro. Esse registro está contido nas memórias do próprio intervento João Punaro Bley: Gilbert Gabeira, nome de triste memória pelas vezes que se vendeu, criando até na gíria popular o verbo “gabeirar”, ou seja, mudar de partido. (...) A atitude de Gilbert Gabeira, pela sua vocação para venalidade, ficou célebre nos anais da política do Espírito Santo. Filho de uma família de súcios sírios conseguiu se eleger, com as sobras de outros partidos, deputado estadual. De início, filiou-se à oposição, mas, precisando de dinheiro, por intermédio de Carlos Marciano de Medeiros, ofereceu-se passar para o nosso lado, por 50 contos, pagos com repugnância. Ficou conosco até que por 100 contos passou-se para o Partido da Lavoura. Nesta ocasião para tapear sua vergonhosa atitude simulou até um seqüestro pelos seus adversários (BLEY apud ACHIAMÉ, 2010, p. 343).

Contrário ao que se registra nas memórias de Bley, Gilbert Gabeira não se elegeu com as sobras dos outros partidos. Conforme registramos acima Gabeira elegeu-se deputado estadual com 1.643 votos no 1º turno, 77 votos a mais que o quociente eleitoral. Em 13 de janeiro Gabeira discursa na Câmara dos Deputados “atacando o interventor federal, criticando sua administração e elogiando o sr. Asdrúbal Lima (sic), candidato à presidência do Estado”. Gabeira ainda defende que “congreguem em torno todos os partidos oposicionistas do mesmo para elegê-lo presidente, a fim de que o actual interventor não continue á testa da administração do Estado, onde, diz, se tem muito mal conduzido”.11 Segundo Gabeira, Bley teria dito a ele quando teria se reuniram para tratar de interesses dos trabalhadores: “veja se vae tapeando um pouco mais essa gente”.12 O Jornal do Brasil destacou também a perda de

155

apoios políticos do interventor. As eleições na capital do Espírito Santo que o interventor havia perdido foram anuladas e Bley recorria aos sindicatos para garantir apoios. Aproximando-se a nova eleição, o Sr. Gabeira fora chamado á palácio, onde o interventor pedira o seu apoio e dos elementos proletarios por ele leaderados, em troca de certas medidas em beneficio do operariado. Com esse apoio, o governo ganhava a segunda eleição em Vitória. As medidas prometidas, porém, nunca vieram. O Sr. Gabeira, se cansára de as reclamar inutilmente. Da última vez que o fizera, o interventor lhe respondera que fosse ‘tapeando’ os interessados.13

Gabeira é alvo, também, da seguinte matéria no jornal O Radical: “O sr. Gilbert Gabeira ‘sequestrado’ pelas sympathias dos partidos do Espírito Santo”, que traz o seguinte subtítulo: “alçado como mercadoria de um interessante leilão político, o deputado classista não se define e é protagonista de um caso humorístico que fez rir a cidade”. Gabeira teria declarado ao gerente do Magnífico Hotel que iria à estação Barão de Mauá acompanhado de Elias Miguel, comerciante de Vitória. A polícia saiu a procura de Gabeira que foi encontrado na casa de “seu novo amigo político, sr. Attílio Vivácqua, que o ‘sequestrara’ as sympathias do vacilante prócer”. Gabeira não fora sequestrado, estava lá por “espontânea vontade”.14 Attílio Vivácqua era representante do Partido da Lavoura e articulava o apoio de Gabeira para as Oposições Coligadas juntamente com Asdrúbal. A decisão de formar essa frente de oposição não era unanimidade dentro do Partido da Lavoura. Como evidência, vemos que Hildebrando Silva, presidente do Partido da Lavoura, condenou o apoio a Asdrúbal Soares pelo fato deste ter negligenciado o interesse das classes produtoras quando era Secretário da Agricultura. Hidebrando afirmou: não nos exteriorisamos nunca pela falta de polidez ou da consideração dos nossos delegados para com a Commissão Executiva do nosso Partido por não termos sido ouvidos no momento, nesta deliberação tão importante de escolha de candidato à presidência do Estado. (...) Vetamos por que a lavoura bateu-se por um governo novo. Ella não confunde política com questões econômicas. Seus oito delegados não têm credenciais para indicar um auxiliar do governo que combatemos para dirigir os seus destinos econômicos como chefe supremo.15

Ao que respondeu assim a dissidência no Partido da Lavoura: “A orientação do Partido exprimol-a nós, que resumimos sua collectividade”.16 A ligação de Gabeira com as Oposições Coligadas gerou, portanto, a permanência de uma memória negativa a seu respeito. No entanto, nesse mesmo período, o Jornal do Brasil, além de apresentar as críticas de Gabeira a Bley, também ressalta que: Quanto à pecha de traidor que o órgão oficial espiritossantense lhe assacára, devia apenas observar que, por ocasião da revolução de 1930, o Capitão Bley seguira para o Espírito Santo para defender a legalidade, mas depois verificando a vitória do movimento, aparecera como interventor da revolução.17

156

A posição do Jornal do Brasil em relação a Gabeira, fazendo sua defesa, entra em consonância com o historiador Fernado Achiamé quando se questiona: Não foi somente Gabeira que mudou de lado político. Por que somente o seu caso ficou público e notório, a ponto dele criar uma gíria local? Por estar abrigado numa legenda que todos sabiam ser de fachada para o proibido PCB? Por ter se vendido de forma desavergonhada? Por ter desafiado, com seu comportamento, os ditames dessa elite política que desejava a todo custo dominar a situação política estadual? (ACHIAMÉ, 2010, p.260).

O próprio Asdrúbal Soares havia prometido fidelidade ao PSD quando eleito como deputado federal. Também o deputado Jair de Freitas, antes de ser eleito com os votos do PSD teria afirmado “serei na nossa futura Assembléa Constituinte, caso eleito, fiel representante do pensamento do nosso Partido”.18 Paralelamente à atuação de Gabeira, outros líderes sindicais se movimentavam no Espírito Santo. Em meados de fevereiro Gabeira mudou sua orientação e anunciou-a aos capixabas por meio de telegrama divulgado no noticiário do Diário da Manhã, órgão oficial, que teceu elogios a Gilbert Gabeira pelo fato do mesmo ter se submetido ao partido acatando a orientação de apoio ao PSD: Examinando actual situação política do Estado, julguei de melhor alvitre motivos interesses de nossa classe retirar o apoio à candidatura Asdrúbal Soares. Espero ver sanccionada esta minha deliberação definitiva pela Comissão Executiva do Partido.19

Gabeira se viu no centro de uma disputa que chegou a ocupar o noticiário dos jornais da capital e encaminha telegrama ao primeiro secretário do Partido Proletário afirmando sua submissão ao partido. Faço tornar pública nenhuma notícia minha terá valor não feita intermédio Partido. No mais tudo boato, intriga e infâmias. Quanto política Estado companheiros ah(i?) melhor poderão avaliar do que eu afastado meio ambiente, assim espero resolverão caso presidencial collocando acima de tudo interesse colectivo. Momento impossível seguir aguardando discussão lei segurança trabalhador nacional. Em todo caso aguardo instruções. Responda. Abraços. Gilbert Gabeira.20

Assim, diante da iminência das eleições, todas as referências negativas ao deputado Gabeira encontradas atualmente nas memórias de Bley não foram encontradas na leitura do Diário da Manhã, pelo contrário, esse jornal passou a tecer elogios aos proletários e à atitude de Gabeira. No entanto, a Comissão Executiva do Partido Proletário insistia no projeto de se manter nas Oposições Coligadas. O que mostra que essa não era uma ação isolada de Gabeira. Para garantir o apoio do partido a Asdrúbal Soares, foi organizada a chamada Convenção de Vitória. O MOMENTO PROLETARIO – Os elementos mais prestigiosos do Partido Proletário, desgostosos com a attitude do presidente da comissão executiva que, orientado pelo burguez e lavourista Antonio Venancio, vem imprimindo um cunho de facciosidade ás

157

deliberações do partido, resolveram, como protesto retirar-se do simulacro de convenção hontem realizada – “Reunião hontem efectuada, foi um verdadeiro esbulho à vontade soberana do operariado que se pode dizer estava ali legitimamente representado” dizem os dissidentes em telegrama enviado ao deputado GILBERT GABEIRA.21

O Diário da Manhã aponta ainda que Liomeu Terra, presidente da Federação do Trabalho do Espírito Santo e membro da Comissão Executiva do Partido Proletário, e Antônio Venancio teriam ido ao Rio de Janeiro “mudar a opinião da maioria dos elementos da Commissão Executiva do Partido Proletário, que lá haviam ido para melhor ouvir o deputado Gilbert Gabeira”.22 Liomeu e Venancio teriam pensado em uma Convenção “apressada” e não levaram a cabo por ter que obedecer trâmites. Como saída para garantir o apoio aos lavouristas teriam reunido somente os diretórios de orientação lavourista. Segundo a matéria Liomeu pretendia também ocupar o lugar de Gabeira no partido. Em reunião realizada no dia 28 de março de 1935, Liomeu teria organizado uma comissão para estudar as duas propostas de candidatura para que o partido deliberasse sobre o apoio a ser dado. O Diário da Manhã acusou Liomeu de ter indicado somente pessoas de sua confiança para que a escolha fosse favorável aos lavouristas. O órgão oficial acusou ainda que somente dois participantes da reunião teriam se colocado contra Liomeu e que o próprio Antonio Venancio teria sido indicado para a dita Comissão. Atestou ainda que Waldemar Garcia, delegado do Partido Proletário em João Pessoa, foi impedido de apresentar por escrito seu voto, por ser contra os lavouristas

23

. A Mesa ainda teria impedido a manifestação e a

votação de todos que fossem a favor da proposta do PSD.24 Diante dessa situação muitos teriam abandonaram a reunião, abrindo dissidência, por dois motivos principalmente: primeiramente “amparar o deputado Gilbert Gabeira, pela sua digna attitude, e contra o qual os despeitados, tendo à frente Liomeu Terra, querem desferir um golpe traiçoeiro”; e em segundo lugar “no facto de abandonar uma proposta de execução immediata, em benefício dos proletários, como o foi a do PSD, por outra que constitue apenas uma promessa sem fiador sequer”.25 Waldemar Garcia de Freitas, que na época representava, segundo ele, 25% das rendas do Estado e 35.000 habitantes, reiterou, em telegrama, a crítica, considerando que o fato do Capitão Punaro Bley ter maioria de deputados trazia à sua proposta, mais simples do que a de Asdrubal - considerada o “paraíso” - maior capacidade de se executada. Afirmou ainda: não somos políticos profissionaes, não nos interessa derrubar essa facção em aproveitamento da outra, não podemos ser açoite manejado pelos profissionaes, por que terminando a lucta, este sente-se um pouco fatigado, e nós esfacelados por servir de surrão, e assim companheiros deveis meditar.26

158

Felix Hatum, presidente do Diretório do Partido Proletário de Cachoeiro de Itapemirim, e João Baptista Martins, delegado dos Trabalhadores de Cachoeiro de Itapemirim, comunicam em telegrama a José Mendes Marques (Cachoeiro de Itapemirim) que teriam telegrafado a Gabeira informando a dissidência em relação à Comissão Executiva e a oposição a Venancio e Liomeu Terra, que era redator do jornal oposicionista O Estado. No manifesto lemos as seguintes decisões: 1º discordarem da decisão adotada na reunião do Partido Proletário ontem realizada, por considerá-la contrária aos interesses do mesmo Partido, desde que foi rejeitada uma proposta de execução imediata para ser aceita outra que constitui apenas promessa impossível de ser cumprida, visto que a maioria da futura Constituinte apoia o candidato do Partido Social Democrático; 2º não permitir que seja desprestigiado o deputado Gilbert Gabeira, contra o qual pretendem os pseudo-proletários desferir um golpe traiçoeiro; 3º protestar contra atuação dos elementos que deixaram de servir aos interesses da classe para se empenharem em defesa de uma facção política; 4º deixarem bem claro que aprovam a proposta apresentada ao Partido Proletário pelo Partido Social Democrático, por considerá-la de acordo com as necessidades da classe e em condições de servir aos trabalhadores, tanto mais quanto ficou declarado que, uma vez aceita, tal proposta seria imediatamente posta em execução; 5º reafirmar os aplausos à atitude assumida pelo deputado Gilbert Gabeira de retirar o apoio à candidatura Asdrúbal Soares, hipotecando ao citado representante do Partido Proletário inteira solidariedade; 6º convocar uma convenção de proletários para o dia que for designado pelo deputado Gilbert Gabeira e a ser realizada em Cachoeiro de Itapemirim; Vitória, 02 de março de 1935.27

Liomeu Terra continuou o combate por meio do jornal O Estado. Segundo o Diário da Manhã ele estaria afirmando que os proletários se venderam por “emprego, dinheiro, facilidades para aquisição de automóvel”. Dizia também que os proletários “queimaram” suas mãos com “dinheiro malfadado”, que teria vindo do Governo “para a campanha do suborno”.28 No dia seguinte o Diário da Manhã reiterou a defesa de Gabeira e das lideranças que o apoiam, pois, Liomeu Terra investia contra eles acusando: “Vinte proletários souberam resistir às seduções do dinheiro que o Governo arrancou do suor de seus companheiros trabalhadores”.29 Esse debate provavelmente fez com que a interventoria se apressasse em anunciar, no dia 08 de março de 1935, a criação do Departamento Estadual do Trabalho um dia antes da “grande assembleia”. Para organizar esse departamento inicialmente foi formada uma Comissão para elaborar ante-projeto com os seguintes membros: Cap. Carlos Marciano de Medeiros (deputado à Constituinte Estadual), Euphrásio Ignácio da Silva e Persio Nascimento (sindicalistas e membros do PP).30 João Punaro Bley escolheu duas lideranças estratégicas para articular o apoio dos proletários. Esses sindicalistas e trabalhadores que apoiavam a aliança do Partido Proletário com o PSD se organizaram num movimento chamado “Bandeira Syndicalista”. Segundo o Diário da Manhã eram os “legítimos representantes do proletariado” que organizaram a “grande assembleia”

159

em Cachoeiro de Itapemirim” para dar um desfecho ao “Caso Gabeira”, ou seja, definir a posição do PP nas eleições para governador e para senador que seriam realizadas em abril daquele ano.31 Na Assembleia, por aclamação unânime, Gilbert Gabeira foi escolhido presidente da Assembleia. Posteriormente Gilbert Gabeira disse: “Se o capitão Punaro Bley não poude fazer muita cousa em favor das classes proletárias como interventor federal, tenho certeza que muito fará em benefício dos trabalhadores como governador constitucional do Espírito Santo”.32 Foi aprovada na Assembleia de Cachoeiro de Itapemirim a proposta do PSD. Gabeira asseverou ainda que “de accordo com o deliberado pelos que subscreveram este documento, votarei na chapa do PSD (...)”. Teria sido considerado que ela “assegura reivindicações immediatas, de que tanto necessita o proletariado em geral neste momento em que a massa trabalhadora espera confiante na legislação social do Brasil após a revolução”.33 O Diário da Manhã defendia a honra e a atitude de Gabeira enquanto que O Estado o acusava. Todas as acusações feitas a Gabeira pela oposição são relacionadas aqui a partir da leitura feita pelo Diário da Manhã. O Estado acusava que: “Ao terminar o seu discurso em Cachoeiro, o deputado Gabeira chorou... Que tristes pensamentos ou remorsos o teriam assaltado?” O Diário da Manhã rebatia afirmando que Gabeira avaliou o erro em que ia caindo e tomou a atitude correta.34 Os jornalistas d’O Estado contestavam ainda: “a) um trecho do discurso do sr. Gabeira; b) a presença de 5.000 operários; c) o comparecimento do sr. Liomeu Terra.” A oposição atestava que não passaram de 500 e que muitos não eram proletários. Diário da Manhã informou, contudo, que só de Cachoeiro foram 500 trabalhadores. Outras acusações feitas foram que os proletários foram comprados por 5$000 e 10$000 e que a Bandeira Syndicalista foi uma criação do Governo.35 Liomeu disparava ainda que o Governo estava “insuflando com dinheiro do Estado o deputado Gabeira a desrespeitar a Commissão Executiva do Partido que o elegeu”.36 Em resposta o Diário da Manhã divulgava defesas de Gabeira Gabeira que afirmava que Asdrubal Soares oferecia cargos para atrair os membros do Partido Proletário: “a secretaria da Agricultura foi oferecida, entre outros, a mim e ao sr. Solón de Castro. Para o Departamento do Trabalho, elle já convidou o sr. Liomeu Terra, o sr. Romualdo Leão Castello e a mais alguns”.37 O jornalismo oficial dispensou inúmeras matérias de capa tecendo elogios à sua atitude. Interessante reconsiderar que mesmo após a mudança de atitude de Gilbert Gabeira, Liomeu Terra e outras lideranças que ocupavam a Comissão Executiva do partido insistiram nessa posição tentando inclusive legitimá-la por meio do evento que ficou conhecido como Convenção de Vitória. A interventoria atuou, contudo, no sentido de mobilizar

160

lideranças

adesistas dando respaldo ao apoio de Gabeira ao PSD, de tal forma que o líder proletário foi homenageado por sua atitude partidária Querer misturar o gesto do deputado classista Gilbert Gabeira com as attitudes ziguezagueantes dos srs. José Ayres, Solon de Castro e Estelitta Lins, é um absurdo innominavel. Enquanto os trânsfugas abandonaram seus eleitores, apedrejaram o seu partido, fugiram aos compromissos publicamente assumidos, o jovem proletário reuniu, em memoravel assembleia, os seus companheiros e seguiu, fielmente, a voz de comando daqueles que o elegeram.38

Diante da estratégia do interventor em se retirar da cena e anunciar o apoio à candidatura de Jerônimo Monteiro Filho (PL), explorando antigas rivalidades presentes nas oligarquias que dominavam antes de 1930, a posição de muitos membros do Partido Proletário que apoiaram o PSD foi de acompanhar o interventor e também apoiar Jerônimo Monteiro Filho. Em 28 de março de 1935 foi realizada uma Assembleia em Cachoeiro de Itapemirim que deferiu em favor do apoio a Jerônimo Monteiro Filho. Na nota divulgada no Diário da Manhã encontramos os seguintes nomes: Pérsio Nascimento - primeiro Secretário do Partido Proletário e membro da C.E. – e Eufhrásio L. da Silva – Delegado do Diretório de Itaquari e membro – que já haviam sido nomeados para organização do Departamento Estadual do Trabalho. Além deles encontramos também o nome de outras lideranças dando apoio à interventoria e a Jerônimo Filho em duas ocasiões: uma que relata em telegrama a realização da Assembleia39 e outra quando o jornal divulga diversos telegramas de apoios a Jerônimo Filho vindos de várias regiões do estado.40 João Punaro Bley não conseguiu articular todos os apoios de que necessitava. Além disso, o deputado estadual Carlos Marciano de Medeiros, que garantia o apoio ao PSD e a Bley, se recusava a dar apoio a Jerônimo Filho. Diante desse impasse foi feito um “pacto de honra” entre Jerônimo Monteiro Filho e João Punaro Bley. Esse pacto garantiu a vitória de Bley no segundo escrutínio. Esse novo rearranjo, com o pacto de honra entre Bley e Monteiro Filho, trouxe ao cenário político outras variáveis que não estavam presentes na disputa inicial. Gilbert Gabeira provavelmente votou em Asdrúbal Soares. Seu nome apareceu na chapa que concorreu aos cargos da Mesa Diretora. Concorreu como segundo secretário obtendo 12 votos e perdeu para Mário Rezende que recebeu 13 votos. Todos os cargos disputados ficaram com o mesmo número de votos: 13 a 12. Inclusive a disputa para governador constitucional. Ao contrário da referência encontrada na obra de Fernando Achiamé, segundo o qual Jerônimo Monteiro Filho recebeu 13 votos, vemos no Diário da Manhã que ele foi a exceção, eleito com 14 votos, recebeu o mandato de 8 anos, enquanto Brício de Moraes Mesquita ficou com 11 votos. Genaro Pinheiro foi eleito senador com 13 votos e recebeu o mandato de 4 anos,

161

enquanto que Atílio Vivácqua ficou com 12 votos.41 Gabeira que havia sido o orador que leu o manifesto da Aliança Nacional Libertadora na Câmara dos Deputados atuou na Assembleia Legislativa defendendo seu programa, apoiando greves e denunciado as prisões de seus membros. Sua atuação redundou em condenação por atividade comunista no final de 1937, após o golpe de Estado que deu início ao Estado Novo em 10 de novembro de 1937.42

Notas Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo (IFES) – campus Colatina. ACHIAMÉ, F. O Espírito Santo na Era Vargas. Rio de Janeiro: FGV, 2010. 3 Resultado 1ª zona. Diário da Manhã, Vitória, capa, 08 nov. 1934. 4 Resultado das Eleições no Espírito Santo. Diário da Manhã, Vitória, p.2, 15 dez. 1934. 5 A atitude dos trabalhistas. Diário da Manhã, Vitória,19 set. 1933, capa. 6 Telegramas. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 15 ago. 1933, p.7. 7 A instalação do Congresso Syndicalista Nacional Proletario. O Radical, 02 abr. 1933, p.6. 8 O deputado Gilbert Gabeira não quer pertencer mais a maioria trabalhista. O Radical. Rio de Janeiro, 05 ago. 1934, capa e p.2. 9 Câmara dos Deputados. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 15 ago. 1933, p.7 10 http://www2.camara.leg.br/a-camara/conheca/historia/republica2.html 11 Em torno á política do Espírito Santo. O Radical. Rio de Janeiro, 13 jan. 1935, p.2. 12 Atacando a situação capichaba. O Radical. Rio de Janeiro, 13 jan. 1935, p.2. 13 Câmara dos Deputados. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 15 jan. 1935, p.7. 14 O sr. Gilbert Gabeira ‘sequestrado’ pelas sympathias dos partidos do Espírito Santo. O Radical. Rio de Janeiro, 21 jan. 1935, capa. 15 O Partido da Lavoura contra a candidatura de Asdrúbal Soares. Diário da Manhã, Vitória, 25 jan. 1935, capa. 16 Até que emfim. Diário da Manhã, Vitória, 25 jan. 1935, capa. 17 Câmara dos Deputados. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 15 jan. 1935, p.7. 18 Um perfil. Diário da Manhã. Vitória. 25 jan. 1935, capa. 19 Attitude de Gabeira. Diário da Manhã, Vitória. 15 fev. 1935, capa. 20 Partido Proletário. Diário da Manhã, Vitória. 17 fev. 1935, capa. 21 O Momento Proletário. Diário da Manhã, Vitória, 03 mar. 1935, capa. 22 O Momento Proletário. Diário da Manhã, Vitória, 03 mar. 1935, capa. 1 2

23 24

O Momento Proletário. Diário da Manhã, Vitória, 03 mar. 1935, capa. O Momento Proletário. Diário da Manhã, Vitória, 03 mar. 1935, capa. 26 O Momento Proletário. Diário da Manhã, Vitória, 03 mar. 1935, capa. 27 O Momento Proletário. Diário da Manhã, Vitória, 03 mar. 1935, capa. 28 Explorações contraproducentes. Diário da Manhã, Vitória, 07 mar. 1935, capa. 29 Diário da Manhã, Vitória, 08 mar. 1935, capa. 30 Departamento Estadual do Trabalho. Diário da Manhã, Vitória, 09 mar. 1935, capa. 31 Deputado Gilbert Gabeira. Diário da Manhã, Vitória, 12 mar. 1935, capa. 32 Deputado Gilbert Gabeira. Diário da Manhã, Vitória, 12 mar. 1935, capa. 33 Deputado Gilbert Gabeira. Diário da Manhã, Vitória, 12 mar. 1935, capa. 34 A manchete d’O Estado. Diário da Manhã, Vitória, 13 mar. 1935, capa. 35 Os informantes d’O Estado. Diário da Manhã, Vitória, 13 mar. 1935, capa. 36 Um pedaço de ‘bacalhau’... Diário da Manhã, Vitória, 14 mar. 1935, capa. 37 Palavra autorizada do ‘leader’ proletário. Diário da Manhã, Vitória, 16 mar. 1935, capa. 38 Só mesmo...Diário da Manhã. Vitória, 31 mar. 1935, capa. 39 Aos nossos camaradas. Diário da Manhã. Vitória. 30 mar. 1935, capa. 40 Alguns dos telegramas, que tem sido enviados ao Dr. Jerônimo Monteiro Filho, candidato do Povo ao Governo do Estado. Diário da Manhã. Vitória. 09 abr. 1935, capa. 41 A Reunião de Hontem da Assembléa Estadual Constituinte. Diário da Manhã. Vitória. 13 abr. 1935, capa. 42 Condenado o ex-deputado Gilbert Gabeira. Diário da Manhã. Vitória. 17 dez. 1937, p.2. 25

162

A Guerra de Libertação da Argélia e a circulação de ideias: revoluções na América Latina Ana Carolina Galante Delmasi

Resumo: O presente projeto visa estudar os movimentos revolucionários na América Latina buscando o lugar da África. Partindo das redes de poder que se formaram em torno da ideia de revolução socialista e independência nacional após a Guerra de Libertação da Argélia (19541962), objetiva-se analisar a circulação de ideias e intelectuais no Brasil por meio de suas trajetórias e das publicações dos periódicos Diário de Notícias e Correio da Manhã, e suas interpretações do conteúdo político das guerras de libertação.

Palavras-chave: Argélia - Movimentos revolucionários - Trocas político-culturais

Abstract: This project aims to study the revol'utionary movements in Latin America, seeking the importance of Africa. Starting from the political networks formed around the idea of socialist revolution and national independence after the Algerian War of Liberation (1954-1962), the objective is to analyze the circulation of ideas and intellectuals in Brazil through its trajectories and publications of the newspapers Diario de Noticias and Correio da Manhã, and also their interpretations of the political content of the liberation wars.

Key-words: Algeria - Revolutionary movements - Political-cultural exchanges

O presente artigo é fruto de um esforço de pesquisa recente, uma vez que foram recém-iniciados os trabalhos relativos ao pós-doutorado. O objetivo do projeto é compreender a importância e a repercussão da Guerra de Libertação da Argélia nos ideais de revolução na América Latina, procurando explicar de que forma Argel se transformou em ponto de encontro das esquerdas revolucionárias. Busca-se também lançar nova luz aos estudos dos movimentos revolucionários na América Latina, deslocando a tradicional análise da relação com os movimentos europeus para buscar o lugar da África.

163

Em primeiro lugar, é preciso compreender a trajetória da Argélia, que de 1834 a 1962 fez parte do território nacional francês. A Argélia não teve nenhuma existência territorial fora da experiência francesa e de sua luta pela libertação nacionalii. O sentimento de pertencer a uma comunidade nacional foi forjado em oposição à lei francesa que, desde 1865, impunha aos candidatos à naturalização o repúdio da religião muçulmana. O sentimento de injustiça diante da ordem colonial alimentava o nacionalismo argelino. O papel da intelectualidade na elaboração do nacionalismo foi ambíguo, já que a administração colonial procurou continuamente dividir a sociedade muçulmana, em particular os letrados iii. Nesse sentido, é difícil imaginar um esquema analítico onde o papel da elite letrada fosse central na difusão do ideal nacionalista: primeiro porque os principais intelectuais apesar nascidos na Argélia estudavam na França, onde desenvolviam parte de suas atividades; segundo por existir uma grande distância entre a sociedade urbana, capaz de ler e de compreender a mensagem dos autores do nacionalismo, e a sociedade rural, em grande parte analfabeta e dispersa pelo imenso território. Os letrados diplomados na metrópole constituíram o objeto de análise de Guy Pervillé, que se debruçou sobre a sociologia histórica dos estudantes argelinos na França. Desse grupo de diplomados originaram-se os primeiros líderes do movimento de reinvindicação da igualdade de direitos. Porém, o autor aponta para a diferença entre a elite intelectual e a vanguarda militante de origem modesta, embora raramente rural. Para a vanguarda militante a ruptura com a metrópole era a única alternativa viável para consolidar a nação argelina, enquanto a elite intelectual percorreu uma trajetória diversa se deslocando do reformismo à convicções revolucionárias. Ambas as correntes concorriam para conquistar a adesão do povo, noção ambígua e idealizada, cuja interpretação oscilava entre a análise marxista e a concepção islâmica. O nacionalismo argelino situava-se na intersecção de dois projetos políticos: um definido pelo movimento socialista e o outro pela tradição islâmica. Marcada por uma forte tendência demagógica, a ideologia nacional adquire o aspecto de um mosaico, onde a coerência de valores encontra sentido positivo na desestruturação do colonialismo iv. O nacionalismo argelino seria assim uma práxis anticolonial; sendo assim. anticolonialismo e anti-imperialismo ligavam-se na mesma luta pela libertação nacional. Da mesma maneira que o nacionalismo argelino era uma práxis anticolonial, o socialismo seria uma práxis revolucionária. Nessa perspectiva, intelectuais oriundos de distintas correntes ideológicas, dentro do espectro político das esquerdas, defenderiam o ideal anti-imperialista da revolução argelina. A política internacional da FLN utilizava essas duas noções, no intuito de congregar

164

o maior número possível de simpatizantes. A elite intelectual argelina garantia a expressão internacional da revoluçãov. Seus membros exerceram funções executivas dentro do governo provisório, como o farmacêutico Ben Youssef Ben Khedda, que se tornou representante do Governo Provisório para a América Latina. Conforme a guerra se estendia, tanto a elite intelectual quanto a vanguarda militante se distanciavam da população, de forma que o apoio internacional se tornou fundamental na estratégia de luta anticolonial. O primeiro ensaio de independência aconteceu em 1927, dentro da comissão colonial do Partido Comunista Francês, pelas mãos de Messali Hadj, fundador do movimento Estrela Norte-Africana. Durante trinta anos, esse representante do movimento nacionalista argelino enfrentou divisões e lutas fratricidas que provocaram a ruptura, primeiro com o próprio Partido Comunista, em 1937, que resultou na criação do Partido do Povo Argelino, e, em 1954, com os militantes nacionalistas que fundaram separadamente o Comitê Revolucionário de Unidade e Ação. No mesmo ano de ruptura, a Frente de Libertação Nacional foi criada para reunir os distintos movimentos nacionalistas em torno da ideia de unidade na luta, e nesse sentido encontrou certo sucesso. Contrariamente aos movimentos que reivindicavam a igualdade de direitos entre cidadãos franceses e argelinos, portanto a

independência

negociada, a FLN buscava a independência pelas armas, através de uma guerra revolucionária e internacional. No geral, o papel dos intelectuais na Guerra da Argélia foi central tanto na difusão de notícias sobre o conflito, quanto na definição de seu conteúdo político. vi No campo militar, o Exército de Libertação Nacional era o braço armado da FLN, e encontrava sérias dificuldades. Sua guerra de guerrilhas se concentrava no campo e só chegou à capital, Argel, em 1957, onde foi brutalmente reprimida pelas tropas de elite do exército colonial francês, durante o que ficou imortalizado como a Batalha de Argel, no filme homônimo do militante comunista italiano Gillo Pentecorvo. Durante os oito anos de guerra e apesar dos esforços, a FLN não chegou a controlar nenhuma parte do território nem tampouco chegou à vitórias emblemáticas como a de Dien Bien Phu [cf Guerra da Indochina ou Primeira Guerra do Vietnã]. Seus principais quadros foram obrigados a deixar o território e de Túnis, Rabat ou o Cairo, comandavam as tropas do ELN que agiam nas regiões desérticas fronteiriças com o Marrocos e a Tunísia. Cada vez menos a FLN entrava em confronto com as tropas do exército colonial e sempre que possível provocava represálias que alimentavam o debate em torno da ilegitimidade da colonização. A estratégia era tornar a guerra mais política do que militar. No exílio, os líderes da FLN criaram o Governo Provisório da República da Argélia, em 1958:

165

um grande passo em direção à internacionalização da guerra, reforçado, em abril de 1960, pelo apelo à voluntários de todos os países. O combate político tinha a finalidade de levar as Nações Unidas a reconhecer a guerra, portanto a existência da nação argelina. vii Mas a FLN pretendia em sua atuação internacional ir além das tentativas pontuais de levar delegações dos países não-alinhados a votar por resoluções favoráveis à independência da Argélia: pretendiase provocar pressões diplomáticas que afastassem esses países da França. Simultaneamente, os emissários argelinos buscavam apoio diplomático junto aos países da Europa do Norte, às democracias populares e aos países da América Latina. Utilizavam da solidariedade árabe que supostamente moveria os emigrantes árabes dos países latino-americanos.viii Portanto, a estratégia se baseava numa forte propaganda exterior, com a finalidade de sensibilizar a opinião de intelectuais e políticos dos, então, países do Terceiro Mundo. Era necessário agir diretamente para informar, sensibilizar e convocar o envolvimento dos “irmãos árabes e muçulmanos”, criando grupos de pressão, por meio de partidos políticos e do movimento estudantil. Nesse quadro, em agosto de 1957, foi criada a versão francesa do jornal El Moudjahid, órgão oficial da FLN, com o intuito de divulgar a luta pela independência nacional à todo o mundo. Em árabe, moudjahid são os soldados do exército de libertação nacional. Rapidamente, El Moudjahid tornou-se um ponto de encontro de intelectuais e militantes anti-imperialistasix. Editado no Cairo e depois em Túnis, ele contava com a contribuição de europeus, africanos e latino-americanos, numa rede de revolucionários que passaram então a circular entre a África, a Europa e as Américas. As questões mais importantes do momento eram tratadas, por um lado a democracia, a revolução, a contrarrevolução e o retorno ao antigo regime, por outro lado a exclusão social, o racismo e a opressão. Pode-se também perceber a evolução do discurso oficial da FLN, que buscava estender sua base, no intuito de obter maior representatividade tanto interna, junto à população, quanto externa, junto aos países não alinhados.x Apesar de limitado o grupo de brasileiros envolvidos com o órgão argelino de propaganda, intelectuais de renome nacional e internacional eram contatados por representantes oficiais da FLN, que estendia indiretamente sua rede a dom Helder Câmara, Josué de Castro, Roberto Silveira, João Dantas, Wilson Rahal, Oliveiros Guanais, Frederico Trotta entre muitos outros. A relação com a FLN durou os últimos anos da guerra e teve forte repercussões na trajetória de muitos intelectuais, militantes e políticos. A relação dos partidos comunistas com a FLN foi bastante ambígua. O Partido Comunista Francês rompera com o nacionalismo argelino em 1937 e, após 1945, se opusera claramente à independência da

166

Argélia, considerando o seu rumo fora dos moldes bolcheviques.xi Apesar de os militantes comunistas franceses serem suspeitos de traição, o Governo Provisório não vacilava na hora de se aproximar da China, da Tchecoslováquia e, sobretudo, de Cuba. O contexto político de criação e desenvolvimento da revolução nacional argelina nos permite situar o escopo central do projeto: a contribuição da FLN para a revolução na América Latina, tomando como exemplo o caso do Brasil. A intenção de abordar os estudos sobre o pensamento revolucionário nos anos 1950-60 encontra perspectivas de trabalho na propaganda da FLN junto à América Latina. Propomos aqui reestabelecer a experiência revolucionária africana como uma das chaves para se entender o pensamento político contemporâneo. Para isso, deve ser relembrado o lugar da África. Atualmente artigos de jornais, revistas e livros traduzem a imagem positiva ao redor da África e a participação brasileira é sempre comentada. Cada vez mais, a bibliografia das relações internacionais enfatiza a importância das relações sul-sul na diplomacia brasileira. Cabe ressaltar que foi na conjuntura internacional após a Segunda Guerra Mundial que países africanos começaram a se aproximar do Brasil que tinha expressão em quadros regionais e internacionais e eventualmente pudesse apoiar os movimentos anticoloniais na recém criada tribuna da Organização das Nações Unidas.xii Em documentos do Itamaraty, pode-se perceber a ênfase no arcaísmo do governo francês que defendia um império colonial anacrônico. No entanto, o Itamaraty pouco ou nada explorou a possibilidade de instrumentalizar as guerras coloniais, por exemplo, para renegociar acordos diplomáticos com as metrópoles europeias [Lessa, 2000]. Muitos diplomatas diferenciavam então a colonização francesa, inglesa e holandesa da portuguesa, esta seria mais branda e próxima da natureza do povo brasileiro. Havia de certo modo uma identificação ideológica entre setores da intelectualidade brasileira e o regime salazarista, em torno do conceito de luso-tropicalismo e da pretendia harmonia entre as raças que colonização portuguesa promoveria.xiii O tratamento da questão colonial variou muito. Os governos Vargas e Kubitschek apoiaram a política colonial portuguesa, mantendo equidistância com relação às demais colônias europeias e somente reconhecendo a independência destas quando ela já era consentida pela metrópole.xiv Até mesmo o governo J. Goulart só veio a reconhecer a autoridade da FLN sobre a Argélia em julho de 1962, quatro meses após a assinatura pela França e pela Argélia do armistício de Evian. Foi também durante o governo Goulart que as relações se desenvolveram, por um tempo, antes de serem condenadas pelos governos militares. As guerras de libertação na África surgem nesse caso como um campo de estudos

167

ainda pouco explorados, em particular no âmbito das relações do Brasil com a África. Devido à inexistência de relação diplomática oficial, antes da independência, o estudo das relações entre movimentos políticos encontra sua plena justificação e pretende preencher uma lacuna bibliográfica. Tomaremos como exemplo o caso do Brasil. Um dos aportes da pesquisa é sublinhar a contribuição das doutrinas coloniais na formação do pensamento estratégico no quadro global de Guerra Fria, onde a África permanecia um dos continentes menos estudados. As lutas de independência no continente transformaram a noção de guerra revolucionária em uma doutrina política. Para os quadros da FLN, como para os mais exaltados oficiais de elite do exército francês, a revolução era um instrumento de poder. O seu significado político era continuamente discutido, dentro da linha definida por pensadores marxistas, leninistas e maoístas. Apesar de adversários, o Exército colonial e a FLN liam os mesmos textos, alimentavam reflexões similares e buscavam conquistar a adesão da mesma população. A revolução era reivindicada devido a sua capacidade de transformar a sociedade. A pesquisa ainda levanta questões sobre a concorrência ideológica entre a França e a FLN na América Latina e junto ao Brasil em particular. Os estudos debruçam-se tanto sobre a contribuição dos pensadores da revolução argelina, quanto sobre a atuação da FLN junto a intelectuais, militantes e partidos brasileiros. Apesar de inúmeras vezes referido e citado, em monografias sobre o Movimiento Izquierda Revolucionariaxv sobre o Movimiento de Liberación Nacional - Tupamarosxvi ou ainda na biografia dos principais ícones da revolução latino-americana, pouco se conhece efetivamente sobre a contribuição da FLN à ideia de revolução. Esse projeto se insere em uma perspectiva de história política, orientada pela contribuição da Frente de Libertação Nacional da Argélia – FLN – tanto à ideia de revolução na América Latina quanto às redes de militantes que se consolidaram, desde os primórdios da revolução anticolonial até o ápice das ditaduras de segurança nacional. O ponto de partida será o estudo da recepção de textos do ensaísta e político martiniquense Frantz Fanon, emblemático editorialista do órgão oficial da FLN, embaixador do Governo Provisório da República da Argélia junto aos países da África Central.xvii Psicanalista da Martinica (Antilhas francesas), ele se envolvera plenamente na Guerra de Libertação da Argélia e suas obras se tornaram fonte de inspiração para líderes políticos africanos e latino-americanos, e foram amplamente discutidas por J.-P. Sartre e Pierre Bourdieu. A violência colonial e o ímpeto revolucionário estão intimamente associados na ideia de libertação nacional expostas

168

em seu livro Os Condenados da Terra (1961) e em seus artigos do El Moudjahid, reunidos no livro Em defesa da Revolução Africana (1964). Por outro lado, analisaremos a interpretação das guerras de libertação nacional por intelectuais brasileiros, na tentativa de se entender a contribuição da revolução argelina para o pensamento político da esquerda revolucionária. Estudaremos em seguida a contribuição de militantes anti-imperialistas radicados no Brasil ao El Moudjahid. Trataremos da maneira como eles comparavam a situação colonial na Argélia e a situação de dependência na América Latina. Além desses textos, busca-se compreender a imagem da guerra de Libertação Nacional em artigos do Correio da Manhã, nomeadamente os do jornalista Paulo de Castro, defensor de primeira hora da independência da Argélia. Por fim, a partir de um estudo sobre a propaganda revolucionária argelina na América Latina, busca-se identificar redes de pessoas envolvidas com a luta anti-imperialista, que se deslocaram do Brasil e da América Latina à Argélia e logo à demais países africanos que naqueles tempos lutavam pela independência. Essas conexões colocam em relação os movimentos políticos europeus, os asiáticos, os de libertação das colônias africanas e aqueles contra as ditaduras latino-americanas. Elas se relacionavam a valores compartilhados por parte da esquerda e variadas correntes do marxismo, alimentados pela dinâmica de guerrilhas, revoluções e independências, que ocorria desde a década de 1950. Faz-se necessário saber quais os pontos de convergência com intelectuais e militantes revolucionários, indagando por exemplo como foi explorado o apoio da comunidade árabe e de que maneira existiu uma ligação entre esses dois grupos extremamente heterogêneos.A delimitação cronológica do projeto está circunscrita ao período que vai de 1957, ano de criação da versão francesa do jornal El Moudjahid da Frente de Libertação Nacional da Argélia, até o ano de 1974, quando muitos dos refugiados políticos brasileiros trocaram Argel por Paris. No que diz respeito aos arquivos diplomáticos brasileiros, muito ainda há de ser investigado, em Brasília, sede principal do Arquivo do Ministério das Relações Exteriores, e no Rio de Janeiro, onde constam os documentos do Arquivo Histórico do Itamaraty, anteriores a 1959. Pretende-se aqui reunir novas informações sobre a atuação do Consulado do Brasil no Cairo e em Túnis, as duas sedes do Governo Provisório da República da Argélia. As notas do Secretário político do Itamaraty, enviadas aos embaixadores e cônsules, constituem fonte capital para reconstituir a posição oficial do Brasil. Nesse quadro inicial, tenta-se analisar as atividades dos representantes do movimento argelino no Brasil, sua estratégia internacional, seus objetivos a curto e longo prazo e os grupos políticos visados por 169

sua propaganda. Essas fontes devem ser completadas por entrevistas, que serão realizadas junto a militantes brasileiros que participaram das guerras de libertação nacional em Cabo Verde, Guiné Bissau e Angola. Cabe ainda indagar, de que maneira Argel se tornou a porta de entrada da África. Sendo assim, a hipótese central, que norteia o trabalho é de que a Guerra da Argélia restaurou uma rede de militantes revolucionários, mobilizados desde a Guerra Civil Espanhola, em torno da defesa de ideais como Justiça, Liberdade e Igualdade. Este é um traço distintivo, na medida em que as demais guerras na África colonial, durante o período pós1945, levaram a uma participação efetiva menor, por parte de militantes da esquerda. Nos anos 1960, Argel se tornou uma das mais importantes capitais africanas no âmbito da guerra revolucionária, o ponto de encontro das esquerdas oriundas de países que até então se encontravam sob domínio colonial ou sob regimes opressores.xviii Muitos líderes africanos frequentaram aquela capital: Amílcar Cabral, líder político do movimento de libertação da Guiné-Bissau e Cabo Verde; o angolano Agostinho Neto que lutou contra a opressão portuguesa; Joaquim Chissano que se tornou hoje presidente de Moçambique e Samora Machel, líder da independência moçambicana. A solidariedade entre militantes era particularmente ativa, repartindo-se tanto a favor dos militantes africanos anticolonialistas quanto dos exilados de regimes ditatoriais. Os militantes que ali chegavam beneficiavam-se de um ambiente favorável para a divulgação da mensagem de libertação. Após independência consolidou-se em torno da Argélia um eixo anti-imperialista, em particular em torno de pensadores da esquerda revolucionária. No caso da Argélia, o exílio de Miguel Arraes, 1965, ex-governador de Pernambuco, muito ajudou na criação de elos com a FLN. Aliás, Arraes foi acompanhado pelo jornalista Arthur Poerner, que escreveu uma das principais referências no Brasil sobre a guerra, Argélia: o caminho da independência, publicado em 1966. Além de jornalistas, políticos e militantes da esquerda armada foram a Argel, por intermédio de Arraes. Exilados das ditaduras salazaristas ou franquistas, muitos intelectuais europeus agiam como intermediários entre dois ou mais universos militantes: europeus, africanos e latinoamericanos.

xix

No caso do Brasil, portugueses, em sua maioria, passaram pela Argélia, antes

de chegar ao Brasil, como Francisco Cachapuz, também conhecido pelo pseudônimo de Paulo de Castro, jornalista no Correio da Manhã. Desde Cuba, recém libertada da ditadura de Fulgencio Batista, até o Brasil de Goulart, com escala na Venezuela, no Chile e na Argentina, a trajetória e a atuação de intelectuais deve ser salientada, como por exemplo a do padre Alfred Bérenguer e Jean-Paul Sartre. Enquanto Sartre conta com uma extensa bibliografia

170

sobre sua viagem pela América Latinaxx, A. Bérenguer permanece desconhecido, embora seu papel tenha sido crucial para consolidar vínculos entre a ala progressista da Igreja católica latino-americana, em especial a teologia da libertação, e os clérigos franceses que se mobilizavam contra a tortura na Argélia.xxi Três autores retém então a nossa atenção: Jean-Paul Sartre, devido a seus textos sobre ideologia e revolução, que teve forte audiência no meio universitário; Frantz Fanon, cujo papel na divulgação da revolução africana deve ser sublinhado; e Pierre Bourdieu, crítico da violência revolucionária, especialmente no caso argelino, por ele estudado durante a guerra. A recepção dessas obras é tema pouco estudado e merece atenção, pois seus leitores eram igualmente envolvidos no debate sobre o colonialismo. Da leitura marxista nasciam novas interpretações e críticas aos limites dos movimentos revolucionários, tanto na América Latina quanto na África colonial. Os artigos do El Moudjahid indicam que a ideia mestre naquele momento era a união das lutas em nome do anti-imperialismo. Sendo assim, partindo do jornal El Moudjahid e das publicações dos periódicos Diário de Notícias e Correio da Manhã, objetiva-se analisar a circulação de ideias e intelectuais no Brasil por meio de suas trajetórias e, e suas interpretações do conteúdo político das guerras de libertação. É objetivo analisa-los como espaço de uma nova sociabilidade revolucionária, onde ocorrem intercâmbios culturais, circulação de livros, de pessoas e de informações. Nos textos do jornal discutem-se o papel da vanguarda militante e o lugar dos intelectuais na sociedade. Espera-se assim poder identificar uma série de atores políticos envolvidos no processo revolucionários, tanto por meio do conteúdo dos textos quanto da trajetória dos autores. A observação de intercâmbios políticos e culturais no espaço Atlântico abre então perspectivas para o estudo da formação de identidades políticas e correntes de pensamentos, como o do presente projeto. i

Bolsista de Pós-Doutorado Júnior do CNPq. HOBSBAWN, Eric. Nations et nationalismes depuis 1780. Paris: Gallimard, 1992. iii PERVILLE, Guy. “L’élite intellectuelle, l’avant-garde militante et le peuple Algérien”. In: BRANCHE, Raphaëlle (org.). La guerre d’indépendance des Algériens 1954-1962. Paris: Presses Nationales de la Fondation des Sciences Politiques, 2009, p. 59-73. iv STORA, Benjamin. Les sources du nationalisme algérien: Parcours idéologiques - Origines des acteurs. Paris: L’Harmattan, 1989 v PERVILLE, Guy. “L’élite intellectuelle, l’avant-garde militante et le peuple Algérien”. In: BRANCHE, Raphaëlle (org.). La guerre d’indépendance des Algériens 1954-1962. Paris: Presses Nationales de la Fondation des Sciences Politiques, 2009, p. 59-73. vi ORY, Pascal, SIRINELLI, Jean-François. Les intellectuels en France. De l’affaire Dreyfus à nos jours. Paris: Armand Colin, 2002. vii WALL, Irwin. Les États-Unis et la guerre d’Algérie. Paris : Soleb, 2004. viii GADANT, Monique. Islam et nationalisme en Algérie, d'après El Moudjahid, organe central du FLN, de 1956 à 1962. Paris: Harmattan, 1988. ii

171

FITTE, Albert. Spectroscopie d’une propagande révolutionnaire. El Moudjahid du FLN des temps de guerre. Montpellier: Presses Université Paul Valéry, 1973. x PERVILLÉ, Guy. “L’insertion internationale du FLN algérien (1954-1962)”. In: Relations internationales. Genève, n. 31, 1982, p. 373-386. xi VERNANT, Jean-Pierre. “Le PCF et la question algérienne (1959)”. In: Vacarme. n. 13, 2000, en ligne (http://www.vacarme.org/article143.html - consulté pour la dernière fois le 7 avril 2013). xii PENNA FILHO, Pio. “A Evolução das Relações entre o Brasil e a África do Sul - de 1918 a 2000”. In: X Congresso da ALADAA. 2001, Rio de Janeiro. Anais do X Congresso da ALADAA. Rio de Janeiro: Educam, 2001. v. 1. p. 447-457. xiii SARAIVA, José Flávio Sombra. O lugar da África: a dimensão atlântica da política exterior do Brasil. Brasília: Ed. UnB, 1996. xiv LESSA, Antonio Carlos, PENNA FILHO Pio. “O Itamaraty e a África: origens da política africana do Brasil”. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, FGV. n. 39. 2007. p. 57-81. xv PALIERAKI, Eugénia. Histoire critique de la « nouvelle gauche » latino-américaine : Le Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR) dans le Chili des années 1960. Tese de doutorado. Paris, Université de Paris 1 Panthéon-La Sorbonne, 2009. xvi LABROUSSE, Alain. Tupamaros de l'Uruguay des armes aux urnes. Paris: Editions du Rocher, 2009. xvii CHERKI, Alice. Frantz Fanon. Portrait. Paris: Seuil, 2000. xviii PAULO, Heloisa. “O republicanismo e a oposição exilada: combates e crises”, Estudos do Século XX. Coimbra: Imprensa da Universidade/Ceis 20, n.º11, 2010, p. 423-436. xix PAULO, Heloisa. “O republicanismo e a oposição exilada: combates e crises”, Estudos do Século XX. Coimbra: Imprensa da Universidade/Ceis 20, n.º11, 2010, p. 423-436. xx CAUBET, Rosa Alice. “La bibliographie brésilienne de Sartre”. In: Fragmentos. UFSC, Florianópolis, n. 2, 1986, p. 59-73. xxi BOZ, Pierre. Une fin des temps. Fragments d'histoire des chrétiens en Algérie. Paris: Desclée de Brouwer, 2009. ix

172

Política e espaço público em questão: A Plaza de Mayo e a federalização de Buenos Aires Ana Carolina Oliveira Alves1 RESUMO: Este trabalho discute o espaço público considerando a Plaza de Mayo, em Buenos Aires. O campo político, entendido como virtude que ultrapassa o privado, norteia essa discussão. As memórias municipais e projetos urbanos dos anos 1880 permitem compreender este espaço como alvo de negociações políticas quando a cidade se torna capital. A luta política acontece na esfera pública e no espaço público onde projetam-se reivindicações de poder e valores culturais que entrelaçam os sentidos e papéis de política e cidade. PALAVRAS-CHAVE: Plaza de Mayo; espaço público; Buenos Aires. ABSTRACT: This paper discusses the public space considering Plaza de Mayo, in Buenos Aires. The political area, understood as a virtue that goes through the private, guides this discussion. 1880’s municipal memories and urban projects enables this space’s comprehension as a target of political negotiations when the city becomes capital. Political struggle happens on the public sphere and in the public space where power vindication and cultural values take place. They interlink the meanings and roles of politic and city. KEY-WORDS: Plaza de Mayo; public space; Buenos Aires. As possibilidades de investigação das cidades por parte dos historiadores são das mais variadas, como corroboram as contribuições de Françoise Choay que indicou uma relação direta entre posições político-filosóficas e os modos de compreensão das cidades2. Inspirados principalmente no ensaio da historiadora Maria Stella Bresciani e seu objetivo de abordar diferentes possibilidades metodológicas que podem ser utilizadas nos estudos urbanos, buscamos aqui trabalhar com essas possibilidades problematizando conceitos e questões que tem circulado no debate entre historiadores que se dedicam à História Urbana3. Estas são, segundo a autora, portas conceituais relacionadas a saberes antigos e novos que abrem infinitas opções para o estudo das questões urbanas. Nesta perspectiva de ampliação dos estudos sobre cidades, acreditamos ser necessário construí-los a partir de diferentes linguagens e áreas e, por isso, este projeto se enquadra em mais de uma das portas metodológicas indicadas por Bresciani. Durante o século XX, é possível notar nas cidades latino-americanas a transformação de alguns espaços urbanos ou mesmo a ressignificação destes. Os acelerados processos de urbanização das metrópoles foram responsáveis por alterações físicas na aparência das cidades, mas também pelo surgimento de uma disputa pelos espaços. Buenos Aires no final do século XIX foi parte de um processo de modernização. As ruas e praças da capital portenha constituíram locais privilegiados de manifestações, festas e rituais realizados por indivíduos e grupos com demandas especificas que parecem entender essas apropriações como forma expressão pública suas vontades4. Nesse contexto, essa infinidade de expressões ocorre na intenção de manifestar demandas, 173

sobretudo quando se considera um espaço específico para entender essa ressignificação urbana: a Plaza de Mayo5. As praças, que constituíam espaços centrais da civilidade na época colonial, se tornam, ao longo da história, verdadeiros locais de negociação entre diversos grupos – principalmente esta que acolheu elementos que reverberariam em toda a nação. A Plaza de Mayo, que se localiza no microcentro da cidade de Buenos Aires, emerge, ao longo de sua história, como um lugar de diversas memórias, manifestações cívicas e ações coletivas, adquirindo aos poucos um papel simbólico particular6. Há mais de quatro séculos, esta configurase de forma central no espaço urbano da capital argentina e é derivada da colonização e conquista espanhola do território americano7. Foi criada desde sua segunda fundação em 1580, chamada anteriormente de Plaza Mayor, estabelecendo-se como local de acontecimentos históricos relevantes tal como a Revolução de Maio (1810) – da qual herdou seu atual nome8. Encontra-se hoje no bairro de Monserrat, tem formato retangular e é delimitada pelas ruas Hipólito Yrigoyen, Balcarce, Bernardino Rivadavia e Simón Bolívar. Três linhas de metrô possuem estação próxima à praça e à esta se ligam ainda avenidas de grande importância como as Avenida de Mayo, que a conecta com a Plaza del Congresso, e as Avenidas Diagonais Sul e Norte – configuração material que acentua a centralidade da praça na dinâmica urbana. Além disso, ao longo de sua existência, reuniram-se ao seu redor importantes instituições como o Cabildo, antiga sede da administração colonial, a Casa Rosada, sede do governo da República, o Banco de la Nación e a Catedral Metropolitana de Buenos Aires. A praça se constituiu em torno não só do governo local, mas também de um centro financeiro e de uma instituição religiosa e é percebida como um espaço urbano plural com o qual diversos agentes interagem diariamente. A plaza é, portanto, foco deste estudo por este caráter público que permite uma clara compreensão do entrelaçamento da esfera política, dimensão simbólica e a própria materialidade da cidade. A praça foi e continua a ser, portanto, um espaço histórico de poder, por mais que tenha sido completamente modificado e apropriado de diferentes formas. As transformações sofridas nesse espaço não anulam a estética do poder que se configura como predominante. Ao contrário, essas transformações também são alvo desta busca por legitimidade evidenciando uma intencionalidade no próprio processo de constituição da praça. A praça que é apropriada também foi pensada e, portanto, é também um projeto intelectual que funciona como incentivador do uso que o espaço adquire uma vez que, em sua essência, este já nasce político. Este espaço faz parte de um constante movimento de atualização do poder e, portanto, tem seu sentido simbólico renovado a todo momento. Tornar este espaço simbólico não é escolha deliberada, mas faz parte de uma negociação. Nessa perspectiva, nos interessa investigar a natureza e o tipo de relações estabelecidas entre o Estado e a sociedade, explorando a trama política como configuradora dessa dinâmica.

174

Destacamos, portanto, a necessidade de repensar as interpretações da ação pública colocando o território como um componente chave destes processos de mudança. Trabalhamos com a hipótese de que a praça é um lugar que reitera e atualiza o sentido de poder ao longo de sua história e que, além disso, não está alheia às disputas efetivadas no espaço público, materializadas na cidade. Ao contrário, a praça é a materialização deste processo de negociação e isso, acreditamos, pode ser evidenciado em vários momentos de sua história. Para compreender as intervenções no espaço da cidade é necessário atentar para as mudanças da própria política. Para tal, seguimos os referenciais construídos por Carl Schorske ao analisar o caso de Viena9. A construção de um conjunto arquitetônico na capital austríaca – na chamada Ringstrasse10 – foi uma das grandes realizações do planejamento urbano e os variados estilos de seus edifícios parecem reunidas harmoniosamente pelo compromisso com seus significados simbólicos de estilo. Entretanto, o que Schorske traz à tona neste processo é o conflito que jaz escondido e solidificado nesta suposta harmonia. Afinal, durante sua construção, a Ringstrasse foi um espaço contestado e, portanto, resultado de lutas entre subgrupos que compunham as tentativas de moldar a política em mudança. A teoria de Schorske evidencia os conflitos ocultos na cidade que são tão importantes em sua constituição. A Plaza foi/é um espaço constantemente contestado. Não só sua ocupação, mas mesmo os projetos para esse espaço são resultantes de disputas políticas entre interesses de subgrupos participantes da elite e suas tentativas de moldar a política e a cidade de Buenos Aires que passava por mudanças rápidas. Nesse ambiente construído projetam-se reivindicações de poder e de valores culturais assim como verificado no caso austríaco e cabe investigar como se dá esse processo11. Analisaremos esta dinâmica durante o processo de federalização da cidade, ocorrida no ano de 1880, mas que reverberou nos seguintes anos no qual a cidade configurou-se como centro do espaço nacional com a formalização de seu predomínio administrativo. Desde então, consolidou-se a idealização de um projeto civilizatório que transformaria a Capital e englobaria o país de forma mais geral – buscando uma modernização pautada na construção simbólica de uma capital. Por isso, é importante considerar o conceito de “capitalidade” delineado por Giulio Carlo Argan que pode também ser aproximado ao caso de Buenos Aires12. Segundo tal conceito, cidades eleitas para capitais perderiam seu caráter municipal e passariam a funcionar ao mesmo tempo como a imagem do Estado e aparelho do seu poder. Buenos Aires ganha assim posição de destaque em meio à nação argentina sendo representante desse sentimento maior de pertencimento nacional. Focar este estudo na Plaza de Mayo é essencial, pois partimos do pressuposto de que esta configura um espaço no qual a cidade e o país se reconhecem como tal. Para tal, trabalhamos com uma perspectiva ampliada sobre o campo político, como atestou Christophe Prochasson ao definir que este não se reduz a sua dimensão cognitiva, mas também às

175

simbólicas e afetivas, sendo feito com um conjunto de signos que conclamam identidades e transbordando das instituições que habitualmente a abrigaram13. A política, segundo Hannah Arendt, existe quando os homens agem e se comunicam coletivamente, o que requer um espaço onde os homens possam se encontrar e interagir através da ação e da palavra14. A autora defende, portanto, uma noção de esfera pública como lugar que gera a vida política. A categoria de espaço público é utilizada em diversos campos com muitas intenções. É um espaço público em transformação, que traz à tona o caráter conflitivo da composição do espaço urbano e das diversas apropriações – ininterruptas – da cidade. Como afirma Adrían Gorelik, a categoria de espaço público funciona como uma categoria-ponte que coloca em um mesmo recipiente conceitual duas dimensões da sociedade: a da política e a da cidade15. O conflito, segundo o autor, é inerente à definição do espaço público. Cabe aqui compreender como funcionam essas representações do espaço público e como estas operam na cidade que se transforma. A proposta do autor é que além de considerar a capacidade da categoria de colocar unidas diferentes esferas, convenha decompor estas partes da trama para compreender o que se passa com a cidade e com a política – agregando a este espaço as qualidades sociais e políticas. Os projetos de transformações urbanas revelam como as expressões arquitetônicas ajudaram a moldar a construção ideológica de um determinado imaginário. Nossa intenção é compreender como essa materialidade deve ser lida, no caso argentino da Plaza de Mayo, para que possamos identificar os discursos que se expressam em suas transformações e reformas. As modificações do final do século XIX estavam inseridas em um contexto de transformação da cidade e, acabaram por expressar interesses específicos de um grupo que buscava mudanças físicas correspondentes ao projeto político de nacionalização da cidade. Estes interesses, entretanto, não estavam imunes a disputas que se deram a todo momento na constituição do espaço construído. Pretendemos aqui discutir a relevância dos ideais nacionalistas durante a federalização de Buenos Aires – que representavam a visão de um grupo para a cidade que agora incorporava uma nova função – e as negociações nas quais estes estavam envolvidos a partir das memórias municipais e projetos pensados pelo poder público nesta época. Os significativos avanços políticos da década relacionavam-se principalmente por um elemento específico da vida moderna: as classes médias. O grupo apelidado de Generación del 8016, teve um papel fundamental nessa expansão. Formado por literatos que também ocupavam variadas funções na estrutura da cidade, este grupo constituía a elite responsável por governar a Argentina durante este período. Suas ideias e ações emparelhavam-se com o positivismo, pois estes acreditavam plenamente no progresso esperando que, desta forma, o país crescesse em diferentes aspectos: econômicos, sociais e culturais e acreditam que a ciência e a tecnologia seriam capazes de resolver todos os problemas dessa cidade em vias de se modernizar.

176

Ainda que em 1880 Buenos Aires fosse administrada por uma Comissão Municipal, a partir de 1883 foi criado o posto de intendente. Torcuato de Alvear foi o primeiro a ocupar esse cargo e ocupara também durante os três anos anteriores a presidência da comissão. O intendente, representante também da Generación del 80, encabeçou projetos que buscavam alterar a imagem da cidade para que esta sustentasse ideias de expansão da ordem e da civilização defendidas por este grupo. As memórias do município que serão analisadas aqui (grosso modo as da gestão de Alvear) consistem em relatos sobre o ano de governo, dividido em distintas partes que elucidam questões que a administração considere relevante para a cidade. Estas memórias, junto com alguns projetos pensados para a cidade nos permitirão compreender o que se pretendia para o espaço da plaza nesse novo momento em que Buenos Aires se transformara em capital. A reforma mais significativa da gestão de Alvear foi a da própria praça que, segundo seu discurso, visava dar forma ao desejo de todos de comemorar a nacionalidade argentina através de monumentos públicos. Ainda naquele período, o atual espaço da praça era ocupado pelas Plaza 25 de Mayo e a Plaza de la Victoria, que se separavam a partir do edifício da Recova17. Em 1882 o intendente recebeu de Juan Antonio Buschiazzo, um arquiteto e engenheiro italiano, um plano e uma descrição de uma proposta para unificar as duas praças: uma proposta coerente com o projeto modernizador da cidade e que incorporava as mudanças no entorno daquele espaço pensando também no embelezamento. O que chama atenção nessa proposta é que ela é apresentada a partir de “tres ideas capitales” que deveriam ser homenageadas nas melhorias da praça, ideias estas que expressam os cernes nacionalistas deste projeto que estavam alinhados com as pretensões de determinado grupo18. Estas ideias eram: a revolução de Mayo, os homens que asseguraram tais conquistas e a voz nacional desta revolução, encarnada no Hino Nacional. A unificação definitiva dos dois espaços foi finalizada em 1884 dando lugar a simbólica praça e a demolição da recova representou um avanço rumo às ideias de modernidade pretendidas pela Generación del 80. Essa união é vista como forma de celebrar o nascimento da própria nação argentina que é representada simbolicamente naquela praça no coração de sua capital, e é este tipo de materialização de discurso que pretendemos analisar a partir destas propostas. Também esta união frente a destruição da recova evidencia também a negação do projeto anterior. A recova, havia sido construída para colaborar com a função comercial da praça. Esta função já não interessava nesse momento e a destruição desta construção significou uma tentativa de evidenciar o aspecto político e representativo da praça – que era agora o projeto vencedor. Já nas Memórias Municipais do ano de 1880, na sessão dedicadas as praças públicas, destacam-se os trabalhos de demolição da recova e, consequente união das duas praças. Neste ano, segundo os relatórios, a realização do projeto foi postergada para melhor época, visto que os

177

proprietários exigiam pelo edifício muito mais do que era possível. São também publicadas correspondências destinadas a indivíduos da família Anchorena, principais proprietários dos terrenos da Recova, iniciando negociações e pedindo indicações de preço para a venda dos mesmos. Diante da resistência e do pedido acima da média, a opção do governo é ressaltar a obra como de interesse público em um lugar no qual se vinculam glorias e feitos patrióticos, ainda pautados na ideia nacionalista que viria a permear todos este projeto em muitos momentos distintos19. O próprio presidente da república, segundo consta nas memórias, teria prometido em uma desta publica exercer influência para que o tesouro da nação compartisse com a municipalidade os gastos de expropriação da Recova. Isto foi justificado a partir da ideia demonstrada nas últimas comemorações cívicas de que a cidade carecia de um local capaz de conter o aumento progressivo da população. Essa ideia permeava todo o projeto de construção de uma grande praça central que seria, não só uma necessidade vital do presente da cidade, mas também um ato de previsão que adiantaria a cidade do porvir que passaria por novas ondas de crescimento populacional. O que se pode observar nas seguintes memórias municipais é a reiteração continua da ideia de que a capital da República ainda não teria uma praça apropriada para “suas necesidades y á la importância política y social que le corresponde por su carácter”20. Foi a partir desta ideia que a Corporação Municipal justificou e desenvolveu projeto a união da Plaza Victoria y da Plaza 25 de Mayo fazendo estudos correspondentes para tal projeto, que permeiam praticamente todas as edições das memórias municipais ao menos durante o período da gestão de Alvear. Buschiazzo foi chamado pelo intendente para executar suas ideias e, por mais que as estratégias urbanas fossem do próprio Alvear, encontraram no arquiteto um eficiente técnico para executá-las seguindo o preceito das novas exigências da cidade que buscava uma caracterização em particular, em consonância com o grupo da Generación del 80, em sua nova dimensão como sede do governo nacional. Dois anos depois da federalização, o arquiteto enviou formalmente ao intendente descrições de uma proposta para efetivar a união das duas praças, detalhando os trabalhos que deveriam ser efetuados para suprimir a Recova que ainda as separava. Esta nota indica a nova forma desta grande praça, assim como descreve as ruas que a circundam, a mudança de posição das fontes e da estátua do General Belgrano e o lugar onde se ocupariam outras estatuas que deveriam ainda ser colocadas. A forma definitiva das ambas praças reunidas seria um retângulo recortado no meio pela prolongação da rua Defensa (até então prolongada pela própria Recova) e terminando em seus lados menores junto em forma de um semicírculo. A nova praça teria uma calçada circular de pedra e outra de igual amplitude e material, algumas em linhas retas e outras em diagonal. Na intersecção das ruas diagonais se formariam espaços de forma circular, em cujo centro se colocariam as duas fontes atuais.

178

Ainda é dito que nos compartimentos dos estremos se colocaria no da rua Balcarce a estátua atual de Belgrano e em outro poderá se colocar a de outra general da independência a quem não se tivesse tributado justa homenagem. A disposição de todos estes monumentos ocuparia uma linha que forma exatamente a prolongação do eixo da grande Avenida (de Mayo) que se pretende realizar de modo que estas obras contribuíram para o embelezamento completando sua perspectiva estética. As ruas adquiririam maior amplitude do que anteriormente e, particularmente, nas quatro esquinas como resultado da forma semicircular da praça, seria garantida uma comodidade para estação de carruagens e o trânsito de todos veículos, para facilitar as paradas militares e festas pátrias. São feitas avaliações da renda mensal da Recova, nas quais busca-se equivalência da produção dos proprietários para efetuar a expropriação dos terrenos. Juntamente com estas avaliações, acompanhou-se uma nota para o Ministro do Interior, na qual o intendente e seu secretário reafirmavam a conveniência e utilidade das obras ali descritas já que estas dotariam a capital da República de uma praça apropriada a sua importância política e social. Nesta nota, a municipalidade afirma que encontra recursos próprios para a realização das obras mas pede mediação para o governo federal para a expropriação dos terrenos particulares que atualmente separam as duas praças. “no me há parecido que esa misma cantidad importe um sacrifício para la Nacion ni pueda ser negada por el Congreso que ha estabelecido la Capital de la República em um Municipio como el de Buenos Aires, sin las dificultades y los gastos que hubiera demandado necessariamente la creacion de uma nueva ciudade”21.

Retoma-se a ideia de que a praça não deveria ser encarada como específica apenas da cidade de Buenos Aires, mas que ela representava toda a nação e que, para tal, demandava ações para adquirir a imagem desejadas pelos projetos de governo. O projeto arquitetônico foi enviado por Alvear ao ministro juntamente com a lei de expropriação da Recova que “se conserva como uma especie de muralla que se opone á la realizacion del pensamento”22. Essa ideia conserva o pensamento especificamente nacionalista e progressista que enxergava a cidade como alvo específico da política que pretendia converter a capital em expressão nacional de grandes símbolos. Assim, o discurso era de que existiam razões poderosas que falavam em favor da expropriação e deveriam ser tidas como principais como a higiene e o embelezamento de um dos centros mais importantes da capital e local onde “nuestros padres dieron el grito de Patria y Libertad”23. As negociações mostraram-se ainda difíceis por algum tempo. No ano seguinte, os trabalhos foram suspensos por não ter sido possível tão rápida demolição da Recova como se pretendia e também pelo Conselho não ter se pronunciado sobre a Pirámide de Mayo que impedia a colocação de uma das fontes no local assinalado no plano24. A municipalidade apresentou a cópia da lei que a autoriza a proceder com a expropriação, executada pelo departamento de interior em agosto de 1883. Assim, são tomadas medidas preocupadas em fixar o justo preço da propriedade na esperança de que

179

o processo transcorresse sem maiores dificuldades. Os trabalhos para execução desenvolveram-se e poderiam se terminar quando se resolvesse esta última instância da expropriação resolvida. Também em 1883 fica clara a intenção da construção de um monumento para comemorar de maneira permanente e digna o movimento de 1810. É feita a nomeação de uma comissão para decisão sobre o atual monumento da pirâmide. A questão em torno deste girava entre dois extremos: se seria destruído ou conservado para servir como base do próximo monumento que se planejava construir. “La idea de conmemorar con monumentos públicos la entidade nacional del Pueblo argentino que se inició con la gloriosa revolucion de 1810, es uma de essas aspiraciones que son naturales al noble espiritu de todos los hijos de esta República, que hoy están viendo desarrollarse á la luz del siglo lo que fué uma modesta, pero grandiosa inspiracion de la generacion de Mayo. Esos monumentos debem tener su lugar preferente en la plaza aquella de donde partió el primer grito de libertad, que despuer de emanciparnos del poder colonial, debia ir hasta las entrañas de las madres que habian nacido esclavas para romper las cadenas de suas hijos. Con la mira de dar uma forma grandiosa á este deseo el infrascripto tiene el hunor de acompanhar um plano de mejoras y embellecimento que debe hacer de nuestra plaza de la Victoria um vivo testimonio de esos hechos famosos que tuvieram lugar em ella, para que las generaciones sucessivas la miren como los Romanos miraban el Mons Sacrum, donde sus padres habiam adquirido y salvado sus libertades y sus derechos. El infrascripto espera que las dos Cámaras del H. Congresso, darán á esta obra nacional á nombre de todos los pueblos de la República, uma cooperacion eficaz, que ponga á la Municipalidad de la Capital em aptitud de llevar á cabo esa obra; ya que em esa plaza está el suelo que vió la primera aurora de la pátria, ilumiada por el sol de la historia, es menester tambien que se presente digna de esos antecedentes á las naciones del mundo que nos traen el contingente de sus riquezas y de sus lucez; y que encontrarán ahí la justification de las ideias que debem hacerse de nuestra cultura. Como V. H. puede verlo, si no es posible erigir em sua reduxido recinto las estátuas de todos los patriotas y guerreiros que tienen celebridade em nuestros fastos, se alzará em su centro la coluna de Mayo, donde esos nombres quedarán grabagods de un modo indeleble”25.

A construção e valorização destes monumentos teve um claro propósito de criação de imagens e templos para culto à pátria, para completar um conjunto de referenciais materiais e históricas para mobilizar o entusiasmo patriótico popular. Em 1884, foi autorizado o pedido de mudança do pedestal da Estátua de Belgrano que se encontrava em más condições. Por meio de uma carta, o governo federal agradece pela realização do concurso que “com tan bueno voluntad se há servido prestarle, para llevará buen término uma obra patriótica que será un nuevo ornato de la ciudad y que debe ser entregada á la Municipalidad una vez terminada”26. Em 1885, foi colocada umas das fontes na praça, enquanto a outra não pois ocuparia o lugar ainda ocupado pela pirâmide27.Em 1886, reitera-se a reformulação a partir da demolição da recova e outras ações como: a construção de um novo pedestal para a estátua do General Belgrano, maior amplitude das ruas que a circulam, plantação de palmeiras e construção de calçadas28. Tais ações teriam demorado porque se julgou necessário posterga-las para esperar a construção do monumento pensado para ser colocado no centro da praça e também sobre a permanência da pirâmide, que não fora decidida e envolveria ainda muitas opiniões divergentes. No ano de 1887, último da gestão de Torcuato Alvear, nota-se o foco no concurso para confecção de planos e projetos para o monumento de Mayo, que ocuparia lugar central na praça e que

180

deveria acontecer como comemoração dos sucessos que teriam conduzido a Argentina ao posto de Nação Soberana, tendo como objetivo “conmemorar la entidade política del Pueblo argentino”29. Considerado como um projeto para o qual todas as províncias deveriam contribuir, a intendência confiou sua direção ao Governo Geral, sob responsabilidade do próprio presidente.“La realizacion de esta patriótica idea constituye una aspiracion tradicional del Pueblo argentino y las glorias que se trata de perpetuar pertenecen á la Nacion entera”30. Em carta ao intendente da capital também publicada no relatório deste ano percebe-se, mais uma vez, a intencionalidade por trás deste projeto. “espera de su patriotismo que se servirá dedicar una preferente atencion á esta assunto, empleando todos los medios que estén á su alcance á fin de que la capital de la República sea dignamente representada em la realizacionde um pensameiento destinao á honrar y perpetuar el recuerto del glorioso movimento que dió origem á la Independeica Argentina”31

A criação deste novo monumento, entretanto, a partir da destruição da pirâmide não era consensual. Após a solicitação de Alvear para sua destruição, teve início uma divergência entre progressistas e preservacionistas que era facilmente notada nas páginas de periódicos, escritos de época ou documentos oficiais. Ao contrário do caso da Recova, entretanto, a pirâmide não foi destruída. Prevaleceu a ideia de que tal monumento era ponto de partida da história argentina e estava também vinculado com suas vitórias e, para tanto, deveria ser preservada para perpetuar tal memória. O Plano de Buschiazzo centrou-se unificação das praças e todos este processo, como pudemos aqui observar, envolveu negociações que foram se moldando à dinâmica política e envolveram questões também no âmbito nacional. Ainda que não descrito diretamente, a concentração dos poderes públicos em torno da praça foi uma das propostas do projeto, com reformas que envolveram a Casa do Governo e as sedes da Municipalidade e dos Tribunais. O projeto pretendido pelo intendente claramente visava a modernidade ao tentar negar antigos traços como a própria recova e a pirâmide, mas previa bordas curvas para melhor deslocamento veicular, se concentrando na ideia de garantir uma nova imagem moderna para a cidade e, consequentemente, para a nação. Neste momento de reforma da praça, antes ainda da virada do século XIX cujas as tramas políticas envolveram a federalização da cidade, originaram-se disputas que se refletiram nas reformas realizadas nas cidades. É possível destacar um projeto que pauta as mudanças que é permeado pelas ideias pretendidas para a nova capital, mas que também entra constantemente em embates e negociações. Fica claro que o espaço se configura a partir destas disputas e que é em resposta às próprias mudanças de poder político e social que a nova capital vai se delineando. Entre os festejos e comemorações que tiveram lugar na praça, sua importância fora ratificada em meio a modernidade buscada pela cidade como símbolo e expressão do poder representado pela capital nacional. Do plano geral se concretizou o redesenho da praça e a demolição da Recova, mas a Pirámide de Mayo envolveu ainda uma serie de polêmicas acerca de sua validade histórica, material e estética

181

como símbolo da revolução. As tres ideas capitales que deveriam ser homenageadas constituíram certa retórica de efervescência patriótica que tiveram uma correlação material neste projeto. A destruição da Recova se concretizou de maneira autoritária enquanto a Pirâmide permanece até hoje na praça, tendo sofrido modificações posteriores, mas não desaparecido completamente. Ao defender a essência nacional, este grande projeto mostrava sua consonância com os ideais da Generación del 80 buscando uma retórica de glorificação de certos símbolos sem, entretanto, estar livre de disputas e negociações que permearam, como tentamos destacar aqui, vários pontos de sua execução. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Campinas na área de “Política, Memória e Cidade”, na linha “Cultura e Cidade”, orientanda da Profª Drª Josianne Francia Cerasoli e bolsista da CAPES. E-mail: [email protected] 2 CHOAY, Françoise. O urbanismo: utopias e realidades – antologia. São Paulo: Perspectiva, 1979 3 BRESCIANI, M. S. As sete portas da cidade. Espaço & Debates: Revista de Estudos Regionais e Urbanos. Núcleo de Estudos Regionais e Urbanos, 1981, p. 10-15. 4 LOBATO, Mirta Zaida (Ed.). Buenos Aires: manifestaciones, fiestas y rituales en el siglo XX. Buenos Aires: Biblos, 2011 5 Optamos por conservar a grafia original do nome da praça por consideramos que este já carrega grande carga de significado. 6 Microcentro é uma região composta por uma área financeira de 60 quadras, sendo uma área de vital importância para a cidade. 7 BERJMAN, Sonia. La plaza española en Buenos Aires, 1580-1880. Buenos Aires: Kliczkowski, 2001. 8 A Revolução de Maio foi um movimento ocorrido no início do século XIX pela emancipação do vice-reinado do Prata da Coroa espanhola e responsável pelo nome concedido à praça. Ver: LLANES, Ricardo. Antiguas Plazas de la Ciudad de Buenos Aires. Cuadernos de Buenos Aires 48. Municipalidad de la Ciudad de Buenos Aires. Buenos Aires, 1977. 9 SCHORSKE, Carl. Viena Fin-de-siècle, São Paulo: Cia das Letras, 1989 10 Ringstrasse significa rua do Anel e é uma estrada circular circundando a cidade tendo sido construída de acordo com uma antiga muralha, que servia para proteger a cidade. 11 SCHORSKE, Carl. Museu em espaço contestado: a espada, o cetro e o anel. In: Pensando com a História: indagações na passagem para o modernismo, São Paulo: Companhia das Letras, 2000 12 ARGAN, Giulio Carlo. Imagem e persuasão: ensaios sobre o barroco. Organização de Bruno Contardi. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 13 PROCHASSON, Christophe. Emoções e política: primeiras aproximações. Varia História. Belo Horizonte, vol.21, n.34, 2005, p. 305-324. 14 ARENDT, Hannah. As esferas pública e privada. In: A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. p.59-83 15 GORELIK, Adrian. O romance do espaço público. Arte & Ensaios, nº 17. Rio de Janeiro: EBA/UFRJ, 2008. (pp. 189-205). 16 Se denominava assim a elite governante da Argentina durante o período da República Conservadora (1880-1916) 17 Ainda no século XVIII, foi sugerida a construção de um edifício que se destinasse ao mercado da cidade. A construção da Recova aconteceu em 1803 para servir de centro a vendedores ambulantes que circulavam por aquela área da cidade. Era propriedade de uma família que alugava seus espaços para comerciantes. 18 Fonte: Proyecto de mejoras de la Plaza Victoria. Buenos Aires, mayo de 1883 19 Memoria de la Municipalidad de la Ciudad de Buenos Aires, 1880. 20 Memoria de la Municipalidad de la Ciudad de Buenos Aires, 1882, p. 386 21 Memoria de la Municipalidad de la Ciudad de Buenos Aires, 1882, p. 390 22 Memoria de la Municipalidad de la Ciudad de Buenos Aires, 1882, p. 391 23 Memoria de la Municipalidad de la Ciudad de Buenos Aires, 1882, p. 392 24 A Pirámide de Mayo foi o primeiro monumento pátrio da cidade, inaugurado na ocasião do primeiro aniversário da Independência em 1811. Sofreu, entretanto, modificações e foi alvo de intensas negociações em distintos momentos. 25 Memoria de la Municipalidad de la Ciudad de Buenos Aires, 1883, p. 522 e 523. 26 Memoria de la Municipalidad de la Ciudad de Buenos Aires, 1884 p. 202 e 203 27 Memoria de la Municipalidad de la Ciudad de Buenos Aires 1885, 236 28 Memoria de la Municipalidad de la Ciudad de Buenos Aires, 1886, p. 67 e 68. 29 Memoria de la Municipalidad de la Ciudad de Buenos Aires 1887, p. 127 30 Memoria de la Municipalidad de la Ciudad de Buenos Aires, 1887, p. 129 e 130. 31 Memoria de la Municipalidad de la Ciudad de Buenos Aires, 1887, p. 135 1

182

As representações de Londres em Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde e The Suicide Club. Ana Carolina Silva1 Resumo: O presente trabalho tem a pretensão de traçar, abranger e compreender alguns dos procedimentos literários utilizados pelo autor escocês Robert Louis Stevenson para representar a cidade de Londres no fim de século e analisar o quanto o espaço interagiu e contribuiu para moldar a forma narrativa (romance) e para a emergência e consolidação de certas características concernentes ao imaginário e a originalidade das experiências sensoriais, comportamentais e sociais oriundas e manifestas no meio urbano. Palavras- chaves: Robert Louis Stevenson, Literatura, Cidade. Abstract: This present work has the pretension to sketch, comprise and comprehend some literary procedures used by the Scottish writer Robert Louis Stevenson to represent city of London during the end of the nineteenth century and analyse how the space have interacted and contributed to shape the narrative form (novel) and to the emergence and consolidation of certain characteristics relating to the image and originality of the sensory, behavioural and social experiences which have come and revealed by the urban areas. Keywords: Robert Louis Stevenson, Literature, City. Há diferentes maneiras de representar o espaço, porém existe um traço partilhado por todas elas: a atribuição de sentido e significados decorrentes da apreensão e ordenação do mesmo. Franco Moretti ao analisar diferentes obras ficcionais, sobretudo, dos séculos XVIII e XIX, através da relação entre espaço e literatura, apresentou significativamente o quanto as produções literárias carregam em si e expressam, tanto em sua forma como em sua lógica interna, aspectos concernentes ao local de sua criação.2 A apropriação do espaço urbano feita pelos literatos no século XIX pode ser analisada a partir de duas chaves de leituras: uma que buscou traçar um paralelo entre cidade e campo e outra que delimitou as diferenças de um mesmo local, através do contraste entre as (permanências e) transformações pelas quais este passou ao longo de um período. Estas interpretações geralmente não se excluem ou caminham em direções opostas, mas, muitas vezes, estabelecem vínculos e diálogos entre si e endossam a observação de Schorske de que a análise das representações da cidade nos conduzem “inevitavelmente para fora de seu enquadramento” ao trazer a tona uma “miríade de conceitos e valores sobre a natureza humana, da sociedade e da cultura” 3. Recorrer aos escritos literários para compreensão das questões referentes ao crescimento das grandes cidades em geral e das relações sociais gestadas pela construção e expressão do que conceituou como comportamentos urbanos não é uma prática pouco comum. Afinal de contas, muitas das representações criadas sobre a emergência

183

das

metrópoles são provenientes dos registros ficcionais como expôs a historiadora Bresciani, em “Literatura e cidade”.4 Ao buscarmos inquirir sobre as representações feitas por Stevenson sobre Londres no fim de século, não temos a pretensão de estabelecer uma análise do espaço físico da cidade, mas sim vislumbrá-la como o lugar inaugurador e de consolidação de certas práticas e comportamentos sociais, sendo estes também gestores desse ambiente e manifestações do que se conceituou como vivência e/ou cultura urbana. Dessa maneira, é possível perceber, como assinalou Naxara, as similaridades existentes entre as abordagens literárias e historiográficas. Ambas compartilham o foco e a finalidade de compreenderem “os homens, as relações deste com o meio e entre si, suas formas de expressões culturais, suas instituições, organizações e visões de mundo”.5 Entretanto, enquanto é vedada a historiografia o uso irrestrito da imaginação e enfatiza-se o seu caráter temporal e a preponderância do particular com relação ao universal, a literatura tem a liberdade de captar os sonhos, desejos e as aflições dos homens e moldar os seus relatos a partir de infinitas possibilidades, sejam essas dentro do âmbito do que foi ou do que poderia vir a ser, conforme salientou Peter Gay em Represálias Selvagens6. Diante disto, asseveramos que ao analisarmos os procedimentos literários de Stevenson não buscaremos confirmar ou ilustrar certas características e traços existentes na Londres do final dos anos oitocentos e sim apreender as reverberações e as delineações dadas à sociedade e a capital britânica em duas de suas obras: Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde (1886) e The Suicide Club (1882). Não obstante as duas produções literárias possuam configurações de enredos bastante díspares, a segunda calcada na narrativa moldura e a primeira estruturada na narração proferida por diferentes personagens, e uma delas apresente distintos palcos, ambas têm Londres como (um dos) cenário(s) para as ações de suas personagens. Vejamos a seguir, através de alguns trechos de The Suicide Clube nas quais a capital do Reino Unido aparece representada, o que podemos conjecturar a respeito da mesma: Lieutenant Brankenburry Rich had greatly distinguished himself in one of the lesser Indian hill wars […] He arrived in London at last, in the early season, with as little observation as he could desire; and he was an orphan, and had none but distant relatives who lived in the provinces, it was almost a foreigner that he installed himself in the capital of the country for which he had shed his blood. 7 (STEVENSON, 2002, p. 52) The succession of faces in the lamplight stirred the Lieutenant’s imagination; and it seemed to him as if he could walk for ever in that stimulating city atmosphere and surrounded by the mystery of four million private lives. He glanced at the houses, and marveled what was passing behind those warmly lighted windows; he looked into face after face, and saw them each intent upon some unknown interest, criminal or kindly. 8 (STEVENSON, 2002, p.53) They talk of war,’ he thought, ‘but this is the great battlefield of mankind. 9 (STEVENSON, p.53)

184

As cenas descrevem a chegada do Coronel Rich em Londres após sua participação em algumas campanhas do exército britânico no Oriente. Partindo do princípio de que as personagens são construções do autor, sendo assim, um dos mecanismos de exposição e expressão de certas atitudes comportamentais e ideários. A primeira impressão transmitida pelos fragmentos citados é a de que a personagem apresenta uma mistura de desconforto, fascinação e encantamento, desde o momento em que começou a sua caminhada pela cidade e constatou de que seria a grande cidade o verdadeiro campo de batalha da humanidade. Tais observações evidenciam os constantes embates travados no espaço urbano, denotam características relevantes da decorrente revolução nos sentidos e a percepção de que a atmosfera urbana portava em si uma aura de mistério, capaz de desencadear uma série de estímulos à imaginação daqueles que se defrontavam com uma conjuntura histórica definida pela sua intensa e imensa originalidade. Segundo Lees, o que tornou Londres tão especial e única ao longo do século XIX foi o seu rápido, abrupto e discrepante crescimento em um curto intervalo de tempo. Ao comparar as taxas da expansão urbana e o crescimento populacional da capital do império britânico entre o início e meados do XIX, mais precisamente nos períodos de 1801- 1851, a historiadora constatou o aumento de 10 a 25%, por década, nos números correspondentes aos habitantes da cidade; taxas que ultrapassavam consideravelmente o índice de crescimento populacional de toda a nação. Surpreendentemente, Londres triplicou de tamanho e atingiu em 1811 a marca de 1 milhão de habitantes e em 1891, alguns anos posteriores a publicação das duas obras de Stevenson, o número de pessoas que viviam em Londres ultrapassava os 4 milhões.10 É notável, desse modo, o quanto que a capital britânica destoava e exprimia singularidades significativas quando contrastada com outros locais do próprio Reino Unido (ou capitais estrangeiras), e isso praticamente justifica e exemplifica um dos aspectos de como era inovadora e extraordinária a experiência de viver em uma metrópole. Para entender devidamente o impacto e a inquietação gerada por esse crescimento assombroso é preciso vinculá-lo com as profundas e intensas transformações decorrentes da Revolução Industrial e os desdobramentos ocasionados por esta na distribuição e circulação de mercadorias, na divisão do trabalho e dinamização da economia e das políticas internas e externas colocadas em curso. Londres era a capital de todo um Império; e dessa forma, centralizava em seus portos uma ampla gama de itens a serem distribuídos e comercializados interna ou externamente. Assim, mesmo com a emergência da indústria nas cidades do norte e a instalação de algumas delas em sua região e arredores, Londres não perdeu a sua função e posto de cidade comercial e, como bem destacou Lees, além de ter um substancial setor de

185

serviços e transporte, possuía um considerável poder de atração para a efetivação de trocas e transações de nível internacional.11 Não é difícil de perceber que todo esse dinamismo da economia londrina era causado e resultado das constantes correntes migratórias, tanto de estrangeiros quanto de britânicos, em direção à metrópole. Os motivos dessa massiva e progressiva entrada de imigrantes, todavia, não tem as suas bases ancoradas somente nas modificações perpetradas pelo processo de mecanização da produção; outros aspectos bastante relevantes foram às mudanças derivadas de um processo amplo comumente conceituado como modernidade, sendo a duplarevolução12 o ápice e a consolidação de uma abrangente série de alterações já em curso há algum tempo. Essas potencializaram o poder e reverberações da modernidade, ao solaparem as estruturas sociais e políticas do Antigo Regime e introduzirem novos procedimentos técnicos que redefiniram as práticas sociais (e produtivas) e possibilitaram a ascensão de novos atores sociais, o proletariado e a burguesia, elencados e problematizados por Bresciani em dois de seus artigos.13 Camadas antagônicas cujas identidades foram definidas e formadas através dos incessantes enfrentamentos e das imputações fornecidas por seus respectivos membros e distintos discursos gestados e veiculados, mormente, nos meios de opiniões públicas, pelos diferentes setores sociais. Manifestações e divulgações que por si só revelam interesses múltiplos, confluentes e/ ou contraditórios, e conjuntos de dispositivos contribuintes para a criação de inúmeras simplificações e estereótipos acerca do mundo moderno. Representações devidamente exploradas por Peter Gay em a

Experiência

burguesa.14 A aglomeração de inúmeras pessoas heterogêneas em um mesmo espaço exigiu das autoridades, públicas e/ou privadas, o desenvolvimento de diversas propostas e intervenções políticas, voltadas a solucionar uma série de problemas intensificados ou oriundos do processo de expansão do território urbano, assim como impeliu a sociedade a uma conturbada e aguda redefinição das relações e estruturas sociais e as múltiplas reformulações no espaço e aspectos físicos da cidade. Caminhar pelas ruas da cidade e observar as pessoas e a atmosfera urbana, como fazia a personagem do Tenente Rich, nada mais era, do que um esforço de, através do uso dos sentidos, procurar esquadrinhar, sistematiza, tornar cognoscível e compreensível, o que até então causava surpresa e estarrecimento. Era a cidade, como expressou Bresciani, se convertendo em um “grande observatório da diversidade” não só por ser o reduto de uma nova sensibilidade, que colocou em xeque grande parte das referências analíticas formuladas para explicar a relação do ser humano com a natureza e seus semelhantes, mas também por

186

ser o espaço onde ficava notória a percepção de que o homem havia sobrepujado a natureza e ampliado, até então em um grau jamais visto, o seu potencial de ingerência sobre o mundo.15 Locke em seus escritos já havia demonstrado o quanto que o uso dos sentidos é de suma relevância para o nosso aprendizado e compreensão tanto das relações humanas quanto do mundo em que vivemos.16 O estímulo aos sentidos na cidade se manifestava das mais diversas maneiras. Todavia, em um dos excertos escolhidos, é bastante perceptível que a curiosidade do Tenente Rich encontrava-se fundada em sua visão. Tal conduta exemplifica claramente qual foi o sentido que mais se sobressaiu e teve o seu uso intensificado nessa busca em apreender e compreender essa “nova era” e direciona, mesmo que indiretamente, para uma das posturas científicas vigentes no XIX, também presente em Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde. Foi a partir da visualização de uma porta secundária e marginal que dava acesso à casa do médico e, maiormente, com fato de Hyde tê-la utilizado, que Utterson passou a se interessar pela conexão existente entre os dois homens.17 Os olhos, desse modo, funcionam como peças fundamentais para a suscitação de pensamentos, atitudes, entendimento e configuração da própria narrativa. Ambas as cenas escolhidas dos romances acabam por sugerir comportamentos que sinalizam não só a constante tensão entre os domínios: público e privado (porta e as residências fechadas operando como elementos que tensionam os limites do que deve ou não ser alvo de especulações e vir a ser conhecido); mas também a questão da revolução dos sentidos, cuja ênfase recaiu sob o olhar. Essa tendência fisionômica exprimia que a aparência, atos e gestos, quando bem observados, forneciam inúmeras informações. Stevenson pôs em xeque essa sagacidade e crença no olhar que a tudo se atinha com a dupla identidade e o desenlace apresentado em Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde e com a revelação do esquema de ingresso e “desligamento” do clube do suicídio, onde os próprios membros eram os responsáveis pelas mortes dos próprios integrantes da associação. Demonstrou que nem sempre as causas e motivações são reveladas pela exterioridade dos objetos (e/ou situações), pois a complexidade da natureza humana está muito além da aparência. Segundo Ginzburg, “cada sociedade observa a necessidade de distinguir os seus componentes, mas os modos de enfrentar essa necessidade variam com os tempos e os lugares”18. A partir do momento em que a população começou ser tratada como um problema econômico e político, de acordo com Foucault, uma série de mecanismos, fundamentados nos diagnósticos atribuídos pelas instituições de saberes, foram postos em prática com a finalidade de controlar e disciplinar os sujeitos. Discursar sobre o desconhecido era colocá-lo

187

em destaque, apreender as suas particularidades e definir regras para a contenção e prescrição dos desvios.19 Posto isso, analisar a natureza humana, presumir seus hábitos e reações fazia parte dos jogos de poder, sendo essa apenas uma das facetas das confrontações dos diferentes anseios e princípios das proposições políticas para ordenação da sociedade e dos choques destas com as práticas sociais. A rua seria - e ousamos dizer que é - o lugar em que as disputas simbólicas dos diversos projetos eram exteriorizadas e colocadas à prova; pois sua ocupação e uso não só são engendradas pelas relações sociais, mas essas também são alvos e forças atuantes nas representações feitas do espaço e dos distintos grupos sociais que dele se apropriam. Pechman e Storch ao refletirem sobre a ordenação do espaço e atuação da força policial demonstraram o quanto que as representações formuladas a respeito da cidade se estruturaram na qualificação ou desqualificação do uso do espaço público e privado e no relevante papel desempenhado pelos agentes da polícia para a “redefinição dos elementos constituintes” 20 da ordem social.21 Em suma, o aparato policial, cujas funções foram reformuladas justamente nesse período de abstrusas tensões, foi essencial para os desdobramentos de propostas sociais voltadas para civilizar as massas e impor novos padrões de decoro urbano, manifestos pelos pensamentos e preceitos dos reformistas morais.22 Não obstante, Storch tenha chamado a devida atenção para certa permissividade por parte das autoridades para com algumas práticas e comportamentos perpetrados em determinados locais de Londres; François Beguin apresentou a existência de formas mais sutis e brandas de intervenção e interferência no cotidiano das camadas baixas e promoção de sua domesticação.23 Se por ora as interpretações, principalmente dos excertos, focaram a rua como expressão e palco das disputas simbólicas entre os distintos grupos da sociedade. A análise do enredo e outros dois trechos tende por fim a explorar o quanto as narrativas de aventura estimulavam o imaginário ao trazer a tona uma série de subsídios destinados a circunscrever e incutir sentido ao que até então era desconhecido e negligenciado. Todavia, Stevenson, ao se valer do olhar definido como estrangeiro, evidenciou que não era preciso sair do Velho Mundo para se defrontar com situações adversas, obscuras e portadoras de aspectos incógnitos. As novas experiências urbanas de certo modo tornavam praticamente a todos uma espécie de forasteiro. O exótico ganhava contornos e feições provavelmente a cada esquina, fosse pela heterogeneidade dos passantes; pelos traços exteriores e materiais das construções, em geral, ou pela transitoriedade das circunstâncias esboçadas, sobretudo, pelas ascensões sociais e pela impessoalidade e rigidez dos vínculos entre os sujeitos e instituições.

188

Páginas adiante, o Tenente Rich ao adentrar em um coche não deixou de apontar o quanto se sentia um estrangeiro em Londres, reforçando desse modo às bases do princípio de estranhamento: as sensações de não pertencimento e distanciamento; e confirmou o quão longe “viajavam” as informações acerca de Londres e a sua fama de cidade labiríntica e cenário de desaparecimentos repentinos e crimes estarrecedores.24 Se as explorações comerciais, científicas, militares e religiosas mitigavam a curiosidade dos habitantes europeus e suas ações estimulavam e fomentavam a produção e circulação dos relatos de viagem, esses mesmo desbravadores também recebiam e tinham a sua imaginação instigada pelas notícias provenientes de casa. Estabelecia-se assim um circuito de trocas, cada vez mais crescente e profícuo, de conhecimentos e difusão de informações, como demonstrou Mary Louise Pratt em Os Olhos do Império.25 A excepcionalidade da capital do império britânico tornava oportuna a vivência de aventuras tanto quanto as áreas coloniais. As zonas pobres e miseráveis de Londres, ao mesmo tempo em que estas desafiavam o mundo civilizado, estruturado pelo progresso científico- tecnológico, serviam como fomento para as mais diversas análises de cunhos sociais e higienistas. Pois as condições ali manifestas ultrapassavam os limites do que até então era tangente ao conhecimento humano acerca da degradação, fosse essa material, física, moral e/ ou social. Um dos exemplos mais notórios disso era região do East End, mormente, o famigerado distrito de Whitechapel. Em suma, essa região sintetiza todos os males e vícios associados ao ambiente urbano e elencados pelos teóricos defensores da cidade viciada.26 Ao longo dos dois romances, Stevenson não estabeleceu descrições detalhadas dos bairros e regiões citadas de Londres. A maioria delas foram vagas e pontuais; todavia, através de algumas referências e apontamentos é possível inferir o predomínio das zonas centrais e apreender informações bastante significativas a partir da leitura e interpretações das mesmas. Segue abaixo dois trechos sobre o Soho: The dismal quarter of Soho seen under these changing glimpses, with this muddy ways, and slatternly passengers, and its lamps, which had never been extinguished or had been kindled afresh to combat this mournful reinvasion of darkness, seemed the lawyer’s eyes, like a district of some city in a nightmare. 27 (STEVENSON, 2002, p.274) As the cab Drew up before the address indicated, the fog lifted a little and showed him a dingy street, a gin place, a low French eating house, a shop for the retail of penny numbers and twopenny salads, many ragged children huddled in the doorways, and many women of many different nationalities passing out, key in hand to have a morning glass […].28 (STEVENSON, 2002, p. 274)

O Soho em ambas as narrativas aparece como uma região permeada pela ideia de decadência, obscuridade e abandono. Foi em um restaurante localizado nesse bairro, que o Príncipe Florizel e o Coronel Geraldine ficaram sabendo da existência do secreto clube do suicídio.29 Sendo este também o local em que se encontrava situada à residência de Hyde. Os

189

dois trechos delineiam o trajeto de Utterson e da policia aos aposentos do “protegido” de Jekyll. Era como se os bons cidadãos adentrassem em um espaço caótico e sem ordem, visto a priori como parte não pertencente do mundo civilizado e não como a outra face do progresso. O encontro desses mundos tão distintos só se dava quando uma das partes, devido a alguma situação inusitada, era obrigada a cruzar a fronteira (e na maioria das vezes isso acontecia) em nome da ordem. A cidade pesadelo pode ser vista como correlata a algumas das facetas da cidade monstro. Símbolo tanto do progresso técnico-científico, assim como da sociedade civilizada, quanto da degradação humana; fosse essa decorrente da rigidez dos vínculos sociais e institucionais, da aceleração do tempo, devido às inovações tecnológicas e seus impactos na produção e no cotidiano das pessoas, das possibilidades de ascensão e queda provenientes do capital industrial e financeiro ou das condições sub-humanas as quais grande parte dos indivíduos fora submetidos. Muitos deles desamparados sobreviviam às duras penas e a quantia ganha não dava conta das necessidades básicas e desse modo acabavam tendo que dividir aposentos, sem ou com pouca mobília e/ ou quase nenhum pertence. Para esses casos o que restava ou era a intervenção via políticas sanitárias, já que tais aglomerações eram sempre culpabilizadas pelas transmissões epidêmicas, ou o auxílio missionário ou, ainda, as Casas de Trabalho. O cotidiano londrino para aqueles que não desfrutavam dos benefícios do progresso era duro e tornou-se ainda mais conforme as leis se enrijeceram, sobretudo, a partir da década de 40 dos anos oitocentos, como expôs Bresciani em Londres e Paris no século XIX.30 Apesar de Stevenson ter caracterizado a região central genericamente, o que contribui para a sensação de que essas descrições poderiam ser aplicadas as outras áreas, é relevante o aspecto da construção dos trechos estabelecerem um jogo de opostos, cuja pretensão seria destacar as dimensões negativas do ambiente. E essas dimensões eram extremamente reforçadas pelos comportamentos, vestimentas, trejeitos e fisionomias dos moradores representados. Era como se de certo modo a miséria do meio transparecessem nas atitudes, costumes e corpos dos residentes daquela região, tão singulares e notoriamente inconfundíveis quando contrastados com os ocupantes e frequentadores das regiões entre a Regent Street e Trafalgar Square. Dessa maneira, não é nada surpreendente a localização dos aposentos de Hyde; é como se o meio social praticamente (confirmasse e) condissesse com a sua má fama e aterrorizante aparência. A situação começa a ganhar contornos mais dúbios, quando Utterson e o inspetor de polícia, introduzidos nos aposentos do criminoso, vislumbraram o bom gosto e requinte tanto dos pertences quanto da mobília e decoração existentes no local. Era como se os aposentos pertencessem a Jekyll e não a Hyde (percepção um tanto verdadeira à luz da 190

dupla personalidade, desconhecida até então por Utterson e apenas sugerida ao leitor através dos indícios delineados pela estruturação e dinâmica da narrativa). Stevenson mostrou que não era preciso sair da zona central para se defrontar com as agudas desigualdades e tensões sociais presentes na sociedade londrina e se deparar com o endurecimento das relações sociais (perdas dos laços de solidariedade), os sofrimentos e as condições insalubres e indignas descritas por Engels.31 E, embora, Londres tenha sido representada de maneira fragmentada e centralizada em ambas as obras, são sobressalientes e notórias as correspondências dos estereótipos vinculados às áreas evocadas e seus habitantes com as caracterizações sociais e espaciais contidas nos romances. Ademais, Moretti, ao se pautar, sobretudo, nos romances de Dickens argumentou o quanto era difícil a leitura de Londres e a representação de seu caráter aleatório, uma vez que era forte a tendência na narrativa inglesa de dividir Londres em duas partes tão bem delimitadas e ordenadas (que praticamente nunca interagiam entre si). Dickens foi um dos poucos a quebrar essa dicotomia e a dar contornos a terceira Londres.32 Stevenson, embora de um modo aparentemente simples, sem sair da zona central, bagunçou esses mundos ao esboçar o quão tênue e fluida eram as fronteiras entre as duas Londres e o quanto uma se fazia presente na outra, ainda que de maneira quase que imperceptível. Inicialmente, a ambientação dos romances em Londres pode até ter tons de algo secundário; de uma escolha simples e pontual com o intuito de apenas servir como cenário para as histórias. Entretanto, determinadas circunstâncias só ganham coerência e plausibilidade em um dado local. Praticamente todas as articulações promovidas por Stevenson em ambas às narrativas, desde os encontros e conversas repentinas e fortuitas até os crimes perpetrados, só fariam jus e sentido em uma metrópole. Era preciso representar as potencialidades proporcionadas por uma grande cidade para que tais situações se tornassem críveis. Qual opção era melhor do que a grande e impressionante capital do Reino Unido? 1

Mestranda do PPGH (Área de Política, Memória e Cidades) da Unicamp. Orientadora: Maria Stella Bresciani. Email: [email protected] 2 MORETTI, Franco. Atlas do romance europeu: 1800-1900; tradução: Sandra G. Vasconcelos. São Paulo: Boitempo, 2003, p.15. 3 SCHORSKE, Carl. E. “A ideia de cidade no pensamento europeu: de Voltaire a Spengler”. In: Pensando com a História: indagações na passagem para o modernismo; tradução: Pedro M. Soares. São Paulo: Cia das Letras, 2000, p.53. 4 BRESCIANI, Maria Stella M. Literatura e Cidade. In: Arte e Cidades: imagens, discursos e representações. Bahia: EDFBA, 2008, p.10. 5 NAXARA, Márcia R. C. Historiadores e texto literário: alguns apontamentos. In: História: Questões e Debates. Ano 23, n. 44. Curitiba: Editora da UFPR, 2006, p. 39. 6 GAY, Peter. Represálias Selvagens: Realidade e Ficção na Literatura de Charles Dickens, Gustave Flaubert e Thomas Mann; tradução: Rosaura Eichenberg. São Paulo: Cia das Letras, 2010.

191

7

O tenente Brackenburry Rich obteve considerável destaque numa das guerras travadas nas montanhas da Índia. [...]. Por fim chegou a Londres no começo da estação pouquíssimo notado, como era de seu agrado; era órfão, não tinha ninguém além de parentes distantes que moravam no interior, e foi quase na condição de estrangeiro que se instalou na capital do país pelo qual derramara o seu sangue. As traduções dos excertos serão retiradas da edição de 2001 da Cosac Naify. STEVENSON, R. O Clube do Suicídio; tradução: Andréa Rocha. São Paulo: Cosac Naify, 2011, p. 123. 8 A sequência de rostos destacados pela iluminação das ruas atiçou-lhe a imaginação; ele sentiu que poderia andar para sempre naquela estimulante atmosfera da cidade, cercado pelos mistérios de quatro milhões de vidas privadas. Olhou para as casas e ficou imaginando o que estaria acontecendo por trás daquelas janelas iluminadas de maneira tão aconchegante. Olhou bem para os rostos, um após o outro, e notou que cada um deles ocupava um interesse desconhecido, fosse de natureza malévola ou generosa. p.124. 9 “As pessoas falam das guerras”, pensou, “mas este sim é o grande campo de batalha da humanidade.”, p. 124. 10 LEES, Lynn. “Metropolitan Types: London and Paris compared”. In: The Victorian City: Images and Realities, v. 1. London/ Boston: Routledge & Keagan Paul, 1973. 11 Idem, Ibidem. 12 Conceito cunhado para designar conjuntamente as Revoluções: Francesa e Industrial inglesa. HOBSBAWM, Eric. A Era das Revoluções: 1789- 1848; tradução: Maria Tereza Lopes Texeira; Marcos Penchel. 20ª edição. São Paulo: Paz e Terra, 2007. 13 BRESCIANI, Maria Stella M. Permanências e rupturas no estudo das cidades. In: Cidade & História: modernização das cidades brasileiras nos séculos XIX e XX. Salvador: UFBA, 1990; Idem. As sete portas da cidade. In: Espaços & Debates, n.34. São Paulo NERU, 1991. 14 GAY, Peter. A experiência burguesa da rainha Vitória a Freud: a educação dos sentidos; tradução: Per Salter. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. 15 Idem. As Faces do Monstro Urbano (as cidades no século XIX) In: Cultura e Cidades. Revista Brasileira de História. vol. 5, nº 8-9. São Paulo: Anpuh/ Marco Zero, 1985. 16 LOCKE, J. Draft A: do ensaio sobre o entendimento humano; tradução: Pedro. P. Pimenta. São Paulo: UNESP, 2013. 17 Acontecimentos narrados no primeiro capítulo do romance. STEVENSON, Robert L. The Complete Stories of Robert Louis Stevenson: Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde and nineteen other tales. New York: The Modern Library, 2002, pp. 255- 260. 18 GINZBURG, Carlo. “Sinais: Raízes de um paradigma indiciário”. In: Mitos, Emblemas, Sinais: Morfologia e História; tradução: Federico Carotti. 2ª edição. São Paulo: Cia das Letras, 2009, p. 171. 19 FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vontade de saber; tradução: Maria Tereza C. Albuquerque; J.A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro, Graal, 2010. 20 STORCH, Robert. D. “O policiamento do cotidiano na cidade vitoriana”. In: Cultura e Cidades. Revista Brasileira de História. vol. 5, nº 8-9. São Paulo: Anpuh/ Marco Zero, 1985, p.7. 21 PECHMAN, Robert. M. “Os excluídos da rua: ordem urbana e cultura popular”. In: Imagens da Cidade: Séculos XIX e XX. São Paulo: Anpuh/ Marco Zero, 1993; STORCH, 1985. 22 Idem, Ibidem. 23 BEGUIN, François. “As maquinarias inglesas do conforto”. In: Espaços & Debates, n.34. São Paulo NERU, 1991. 24 STEVENSON, Robert L. “The Adventure of the Hansom Cabs”. Op., cit., pp. 52-69. 25 PRATT, Marie L. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação; tradução: Jézio Gutierre. Bauru: EDUSC, 1999. 26 SCHORSKE, Carl E. Op., cit.; STORCH, Robert D. Op., cit. 27 “A soturna região do Soho, vista à luz desses clarões, transitórios, com seus caminhos lamacentos, transeuntes desmazelados e lampiões que nunca se apagavam, ou que eram mais uma vez acesos para combater aquela fúnebre retomada da escuridão, parecia aos olhos do advogado, um bairro de alguma cidade pesadelo.” p. 180. 28 Quando a carruagem parou diante do endereço indicado, o fog se dissipou um pouco e revelou a ele uma rua suja, um bar sórdido, um restaurante francês ordinário, uma quitanda que vendia livros por um tostão e hortaliças por dois, crianças maltrapilhas amontoadas juntas ao vão das portas e muitas mulheres de diferentes nacionalidades que passavam com suas chaves na mão, a caminho de um trago matinal [...]. p.180. 29 STEVENSON, Robert L. Op. cit., pp. 3-29. 30 BRESCIANI, Maria Stella M. Londres e Paris no século XIX: O espetáculo da pobreza. São Paulo: Brasiliense, 2004. 31 ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Trad.: B. A Schumann. São Paulo: Boitempo, 2010. 32 MORETTI, Franco Op., cit.

192

Madame Carvalho fala de moda e de mulheres: a coluna Elegâncias do Diário Carioca nos anos 30 Ana Cristina Audebert Ramos de Oliveira* Resumo: Apresentamos a Coluna de moda Elegâncias assinada por Madame Carvalho (Sophia Jobim) e publicada no Jornal Diário Carioca na década de 30 na cidade do Rio de Janeiro. Destacamos as diversas atividades desempenhadas por Jobim no universo da moda e da indumentária tendo como base a análise de fontes documentais da Coleção Sophia Jobim do Museu Histórico Nacional. Sinalizamos a relação da pesquisa desenvolvida por Jobim com outras pesquisas na temática de indumentária no mesmo período. Palavras-chave: Coluna de moda; Sophia Jobim; Museu

Abstract: We present the column fashion Elegances signed by Madame Carvalho (Sophia Jobim) and published in the newspaper Diário Carioca during the 30 in the city of Rio de Janeiro. We highlight the various activities performed by Jobim in the universe of fashion and clothing based on the analysis of documentary sources of the collection of the National Historic Museum. We will mark the relationship of the research developed by Jobim with other thematic research outfit in the same period. Key-words: Column Fashion; Sophia Jobim; Museum

Carvalho era o nome de casada de Sophia Jobim, adotado para assinar sua coluna de moda Elegâncias publicada no Jornal Diário Carioca. A coluna circulou na cidade do Rio de Janeiro na década de 30. Estruturamos essa comunicação em dois momentos: apresentação de Sophia Jobim com destaque para as inúmeras atividades que desenvolvia no universo da moda e indumentária; abordagem da coluna Elegâncias analisando aspectos do discurso textual e imagético presente nos artigos. Sofia1 Jobim Magno de Carvalho nasceu em Avaré, cidade do interior paulista, em 1904. Em 1927 casou-se com o engenheiro Waldemar Magno de Carvalho que constituiu

*

fortuna

Museóloga (UNIRIO). Mestre em História Social da Cultura (PUC/RJ). Doutoranda em Museologia e Patrimônio – (UNIRIO/MAST). Orientador: Dr. Ivan Coelho de Sá (PPG-PMUS/UNIRIO). Professora do Departamento de Museologia da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). e-mail: [email protected]

193

atuando como engenheiro da Central do Brasil e em diversos projetos no exterior. Formou-se professora pelo Curso Normal Superior na cidade de Itapetininga/SP e desenvolveu interesse por campos de conhecimento distintos, tais como indumentária, moda, culinária, museologia, feminismo entre outros. Como docente e pesquisadora, sua carreira se focou sobre a temática da indumentária. Podemos destacar sua atuação como professora desde 1949 da disciplina de Indumentária Histórica da Escola Nacional de Belas Artes (ENBA) e a partir de 1956 sua regência e ainda na cadeira de Usos e Costumes no Conservatório Nacional de Teatro/RJ. Sophia Jobim ocupou posição no debate sobre o feminismo de seu tempo. Fundou o Clube Soroptimista2 em 1947 juntamente com Bertha Lutz (1894-1976) e Stella Guerra Durval (1879-1971). Fundou o Lyceu Império em 1932, escola onde ensinava corte, costura e desenho de roupas, sendo “uma escola de artes profissionalizantes para moças, que se tornou uma das mais conceituadas escolas profissionais no Rio de Janeiro e da qual foi diretora por 22 anos.”.3 Assinava a Coluna de moda Elegâncias durante a década de 30 no Jornal Diário Carioca. Colecionou de forma sistemática trajes, objetos, documentos e livros ligados à temática da indumentária e da moda ao longo de sua vida. Criou um Museu de Indumentária em sua residência inaugurado em 1958. Formou-se museóloga no Curso de Museus do Museu Histórico Nacional no ano de 1963. Faleceu de embolia pulmonar no dia 02 de julho de 1968 na cidade do Rio de Janeiro. O que hoje se designa por Coleção Sophia Jobim Magno de Carvalho no Museu Histórico Nacional é um amplo conjunto composto por documentos, discursos e palestras, anotações de aula e estudos, desenhos de figurinos e trajes que exemplificam a evolução da indumentária, objetos pessoais, fotografias, correspondências, material bibliográfico diverso (livros e periódicos), reportagens de jornais e as peças de indumentária e trajes típicos. Desta heterogeneidade resultou o seu consequente desmembramento para fins de acondicionamento e pesquisa no Museu, de modo que os itens encontram-se alocados no Arquivo, Biblioteca e Reserva Técnica da instituição. No Arquivo estão preservados os documentos textuais e iconográficos entre eles as aquarelas de Sophia Jobim para ilustrar as aulas de Indumentária Histórica, seus desenhos de nús artísticos em grafite, estudos de anatomia do corpo humano, etc. A Biblioteca do MHN conserva a coleção constituída por volumes que pertenceram a Sophia Jobim divididos em livros e periódicos que tratam de assuntos relacionados a artes, história, culinária e indumentária. É considerada a terceira coleção em volumes, ao lado das coleções Miguel

194

Calmon e Gustavo Barroso. A Reserva Técnica do MHN conserva a coleção constituída por mais de 500 peças de indumentária. Em uma de suas palestras Jobim define sua coleção como “copioso material didático” composta por “raridades de um grande valor sentimental”. Um dos aspectos instigantes para pensar a produção de Sophia Jobim na área de moda é verificar sua versatilidade e perceber que seu interesse pelo vestuário cobria abordagens bastante distintas indo desde o ensino de indumentária na ENBA, passando pela prática colecionista, desenho e produção de moda na Coluna Elegâncias, desenho e ensino de moda no Lyceu Império, preservação e pesquisa de trajes através da criação do Museu de Indumentária. Sua produção como professora é expressiva. O acervo de Sophia Jobim legado ao Museu Histórico Nacional/RJ por seu irmão, o jornalista Danton Jobim possui inúmeros cadernos, ilustrações, notas de aulas e palestras preparadas por Sophia para seus alunos na ENBA, bem como documentação administrativa relacionada à docência nesta instituição. Uma outra perspectiva de seu trabalho com moda era sua produção como colecionadora. Sua coleção de trajes típicos e de miniaturas trajadas é feita com critério e bastante especializada. Suas constantes viagens ao exterior e mesmo no Brasil propiciaram que Sophia reunisse uma expressiva coleção de trajes etnográficos mas não só, que ela denominava “copioso material didático.” Neste sentido, é muito importante o Museu de Indumentária criado por ela e que funcionava em sua residência no Bairro de Santa Teresa no Rio de Janeiro. Apesar do caráter um tanto diletante do Museu é fácil perceber que Sophia destinava tempo e se empenhava em divulgá-lo. O Museu possuía papel timbrado, livro de assinaturas e foi por diversas vezes matéria de cobertura de revistas e jornais. O Museu de Indumentária pode ser entendido como uma das motivações que teriam levado Sophia a matricular-se como aluna no Curso de Museus do Museu Histórico Nacional em 1961, tendo formado-se museóloga na turma de 1963, já com idade bastante avançada. Um outra perspectiva é sua atuação à frente do Lyceu Império onde oferecia aulas presenciais e por correspondência. É muito interessante observar, por exemplo, que os moldes-modelos usados em suas aulas são o manequim 48, segundo ela, o tipo médio da mulher brasileira naquele tempo. Também é possível observar o que ela denominou de “método próprio” para a costura do que ela denominava “corpos difíceis”, ou seja corpos de proporções pouco usuais ou de difícil ajuste. Por fim, sua produção na Coluna de moda Elegâncias, objeto específico dessa comunicação no Simpósio Temático de Moda, Imagem e Poder e da qual falaremos adiante.

195

Como professora de Indumentária Histórica da Escola Nacional de Belas Artes Jobim situava sua pesquisa com indumentária no campo da Etnografia onde se colocava como indumentarista. Habilitada pois, para facilitar a nossa “titânica” tarefa nesse riquíssimo ramo da etnografia, entendemos que para se fazer o estudo sistemático da indumentária histórica convém dividir o copioso material que se nos oferece em seus 3 elementos essenciais: 1ª Tradição: É o princípio em virtude do qual um traje criado pelos homens do passado, numa determinada época já superada, continua a existir através dos séculos, alheios às mudanças operadas no ambiente que foi fatalmente evoluindo e que continua a evoluir em volta dele. Exemplo: os trajes religiosos, nacionais ou regionais, folclóricos, etc., fazem parte deste grupo.(...) 2º Símbolo é a expressão de uma ideia traduzida materialmente no traje como: a vestimenta dos reis, a sotaina dos monges, a “cornette” das irmãs de caridade; o turban-verde dos muçulmanos; o tarbush da mulher casada do Islã; a farda do militar, a peruca do magistrado inglês; a beca do catedrático; o traje da Reforma do século XVI simbolizando o movimento de Lutero; a roupa austera dos puritanos e dos quakers, expressando os sentimentos antimonarquistas, contra a formalidade das cortes inglesas da “Virgin Queen” e de Carlos I, etc. (…) 3º Moda. É o traje que segue o capricho dos tempos e que prossegue com os séculos e com os indivíduos, criando sucessivamente os estilos. Inspirada em qualquer movimento espiritual, político, literário ou artístico de uma época, por isto mesmo sofre variações constantes que os menos perspicazes qualificam de frivolidade.4

Percebemos que a abordagem do traje incluía o estudo da moda mas não só. Jobim inscrevia a vestimenta dentro de um complexo analítico social mais abrangente no qual a moda tinha um lugar mas não exclusivo. De fato, é possível argumentar que Sophia Jobim não era pesquisadora isolada no tema indumentária, e talvez ela ocupe um lugar pioneiro nesses estudos no Brasil, como várias vezes afirmou. Na perspectiva que também nos interessa, da indumentária e do traje como documento trata-se de uma abordagem com a vestimenta que extrapola o universo da moda no sentido estrito e alcança o universo da pesquisa acadêmica voltada também aos campos da Antropologia, da Museologia, dos museus e suas coleções. É o caso do trabalho de Heloísa Alberto Torres Alguns aspectos da indumentária da crioula baiana apresentada pela pesquisadora ao concurso para provimento da cadeira de Antropologia e Etnografia da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil em 1950. Esta pesquisa volta-se para a análise formal do pano da costa e demais nuances da indumentária crioula tais como as rendas, aspectos decorativos e demais adereços, e é realizada com base no acervo do Instituto Feminino da Bahia (IFB) como aponta a autora no início de seus trabalhos, as coleções de vestimentas de crioulas baianas, pertencentes ao Instituto Feminino da Bahia, em Salvador, foram minuciosamente estudadas. O material não poderá ser totalmente utilizado neste trabalho; selecionamos o que de mais expressivo encontramos para esclarecimento de tópicos determinados. 5

Este é um tema presente também nos Anais do Museu Histórico Nacional, um veículo expressivo de produção de conhecimento no âmbito dos estudos de coleção e Museologia que

196

circula desde 1940. É o caso da pesquisa da conservadora Sigrid de Porto Barros A condição social e a indumentária feminina no Brasil-colônia publicada nos Anais em 1947.6 É um estudo que aponta para os condicionantes de comportamento e vestimenta das mulheres no Brasil colônia, à partir de documentação iconográfica, documental e do acervo tridimensional do museu. Um outro trabalho é a pesquisa O Espírito das Roupas: a moda no século dezenove de 7

Gilda de Mello e Souza. O trabalho é tese de doutoramento da pesquisadora apresentada para vaga à 1ª cadeira de Sociologia no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo,

USP, de onde seria futuramente professora e coordenadora. A autora relata na edição em livro, Esta é a primeira edição, sob a forma de livro, da tese de doutoramento A moda no século XIX, publicada na Revista do Museu Paulista em 1950. (…) Naquela época ele constituiu uma espécie de desvio em relação às normas predominantes nas teses da Universidade de São Paulo. Hoje a perspectiva mudou e o tema abordado, que talvez tenha parecido fútil a muita gente, assumiu com o transcorrer do tempo uma atualidade inesperada.

É importante ressaltar a relação entre os estudos de indumentária e a produção acadêmica/intelectual produzida por mulheres nesse tema que certamente era ainda pouco legitimado. Não é nosso objetivo nesta comunicação aprofundar essa questão mas gostaríamos de deixá-la sinalizada. Esses são exemplos expressivos para considerarmos que a temática da moda e indumentária despertava o interesse de intelectuais brasileiras a partir da mesma lógica de trabalho com coleções com que Sophia Jobim operava. Os estudos de coleções constituem parte importante das pesquisas em ciências humanas e sociais, em especial no campo da Museologia. Compreender a formação das coleções, os critérios para a seleção bem como os princípios de organização dos objetos que as integram ajuda a desvendar valores, ideias e narrativas que reproduzem. A institucionalização desses objetos, os trâmites e processos ao dar entrada no museu, sua trajetória dentro da instituição e as ações e procedimentos documentais, de conservação e comunicação são aspectos importantes para construção da musealidade que foi a eles atribuída, justificando assim sua preservação como bens culturais musealizados. É o museu como instância legitimadora da memória que importa analisar. Por isso, entender como essas coleções se tornam acervo, ou seja, estudar seu processo de musealização é crucial. Como afirma Mário Chagas: (...) as coisas não são documentos em seu nascedouro. As coisas são coisas. Em outros termos, os objetos nascem objetos, com determinadas e específicas funções. (…) Um documento se constituti no momento em que sobre ele lançamos o nosso olhar interrogativo; no momento em que perguntamos o nome do objeto, de que matéria-prima é constituído, quando e onde foi feito, qual o seu autor, de que tema trata, qual a sua função, em que contexto social, político, econômico e cultural foi produzido e utilizado, que relação manteve com determinados atores e conjunturas históricas. 8

Ao tomarmos a coluna de moda Elegâncias como documento interrogamos sobre quais

197

os sentidos e os lugares de uma coluna de moda nesse período na cultura feminina? Qual espaço a moda ocupava nos periódicos, revistas e jornais? Como e por quem a moda era pensada e produzida no Brasil na década de 30? À partir de que referências e documentos é possível pensar e analisar hoje a moda de outrora? Ainda que não seja possível nesse momento responder a todas essas questões é importante questionar a coluna em seu contexto mais amplo da produção e publicação. A Coluna de moda Elegâncias9ocupava um espaço central e generoso nas páginas da seção Vida Mundana do Diário Carioca considerado um importante jornal na história da imprensa no Brasil que circulou entre os anos de 1928 a 1965. Fundado pelo jornalista José Eduardo de Macedo Soares é um jornal reconhecido como precursor de muitas inovações nos planos gráfico e editorial mas também por ser um jornal de opinião política e que abalou governos e estruturas políticas estabelecidas. Segundo Cecília Costa o Diário Carioca foi o “jornal que mudou a imprensa brasileira” e caracterizava-se por ser (…) um jornal de elite, de poucos leitores, relativamente, mas de enorme influência, e que abrigou em sua redação alguns dos jornalistas mais notáveis que o Brasil produziu. Com seu característico senso de humor e requinte estilístico, encarnou como poucos concorrentes o esprit da antiga Capital Federal.10

A coluna Elegância circulou ao menos entre os anos de 1932 a 1935 e foi posteriormente intitulada Elegâncias no plural. O termo elegância, bastante vinculado ao universo da moda e do traje mas não só, pode ser visto com um valor e neste sentido possui características tais como harmonia, leveza, proporção, parcimônia, economia. A elegância parece rejeitar o excesso, os abusos e os desvios sendo de certa forma um caminho seguro e equilibrado que conduz para o padrão vestimentar e de comportamento. De modo geral elegância é sinônimo de bom gosto. A coluna tem uma abordagem da moda que mescla as dicas do vestir com uma leitura do espírito feminino, ou seja, traduz na concretude das roupas aspectos espirituais e de comportamento tidos como femininos. Evidencia a abordagem da moda com foco nas tendências das estações e confecção de roupas mas também observa a personalidade das mulheres e dá dicas sobre como se comportar. De certa forma Madame Carvalho faz uma “psicologia da moda”, ao associar dicas de sugestões de trajes de acordo com o tipo físico mas com características da personalidade e temperamento femininos como podemos observar: O espírito feminino é essencialmente analítico. Por isso, arrastados, às vezes, pelas nossas inclinações naturais, nos perdemos em detalhes de somenos importância, sacrificando o nosso conjunto estético. Em arte, devemos nos abster de grande dose da nossa faculdade analítica procurando sintetizar, num golpe de vista a harmonia de linhas. 11

198

Os textos sugerem os modelos adequados para as estações, bem como trajes para eventos diurnos ou noturnos. Os desenhos feitos por Sophia ilustram os modelos dos trajes indicados. Os tecidos relacionam-se aos caimentos desejados bem como à adequação ao clima e/ou ocasião de uso. O público é o feminino, e em algumas colunas identificamos ainda sugestões relacionadas à moda infantil, tanto para meninos quanto para meninas, sendo que crianças aparecem nas ilustrações da coluna. Também notamos que Jobim se dirige às suas leitoras com termos afetuosos e ainda se refere à mulher carioca acentuando traços comuns às mulheres do Rio de Janeiro que lidam com o desafio de vestir-se elegantemente mesmo em pleno verão como podemos observar na coluna de 12 de novembro de 1933 “a carioca prudente precisa no momento não esquecer que o verão traiçoeiro aí está, nos ameaçando de uma hora para outra.” Elegâncias saía aos domingos mas não com periodicidade semanal. De fato ainda não conseguimos sistematizar a frequência e ao que tudo indica Jobim era convidada a colaborar frequentemente na seção Vida Mundana. Em média a coluna trazia de dois a quatro desenhos grandes e alguns pequenos ou de detalhes reproduzidos em escala grande considerando sua diagramação no jornal. Em termos comparativos a coluna se destacava visualmente mais pelas ilustrações do que pelos textos que não eram extensos. Entretanto, os textos de Madame Carvalho não são apenas indicativos e descritivos dos modelos sugeridos na edição. Eles trazem juízos acerca da moda, da arte e da mulher. Argumenta a colunista na coluna do domingo do dia 06 de novembro de 1932 que: Hoje em dia, o gosto artístico pelas costuras está tão difundido, que todo mundo é obrigado a se vestir bem. Existe atualmente, na nossa moda, um pouco de senso estético, produto de uma civilização evoluída, cujo ideal máximo é o belo. (…) Por culpa da inabilidade de algumas mestras, não pode pairar, sobre a teoria da costura feminina, a menor dúvida sobre a sua eficiência.”12

A associação da moda com o gosto artístico e por extensão com a arte e ainda os juízos emitidos acerca da sociedade de seu tempo em relação à moda adquirem, de certa forma, um tom professoral e a costura é vista à partir de um ponto de vista quase científico ao referir-se à “teoria da costura feminina”. Esse aspecto é interessante quando pensamos que Sophia desenvolveu um método próprio de costura para “corpos difíceis” como dissemos anteriormente. Ainda sobre as ilustrações chamamos a atenção para um aspecto importante na medida em que Madame Carvalho (Jobim) desenhava exclusivamente para a coluna Elegâncias. Neste sentido, há o caráter autoral ligado às peças, ou seja, os modelos são criações suas e há também a valorização do desenho de moda enquanto arte e da própria roupa como arte como

199

é possível verificar no trecho citado anteriormente. A produção de desenhos exclusivos para a coluna Elegâncias difere da prática mais comum nos editoriais de revistas de moda neste período no Brasil em que o usual era o “recorte e cola” de ilustrações de revistas estrangeiras ou então o envio de ilustrações por agências de notícias estrangeiras. Conforme destaca Laura Ferrazza de Lima a partir do final dos anos 20 o acesso à publicação de fotografias é maior e estas tendem a substituir as ilustrações.13 O desenho de Jobim não parece muito distinto dos desenhos de moda da época. Os corpos das mulheres são sempre corpos delgados. As figuras das mulheres são representadas de corpo inteiro em ângulos variados e aparecem quase sempre de chapéu, os cabelos são curtos ou presos. A postura do corpo em exibição evitando posições estáticas e simétricas. Os pés vistos de lado, enviesados, um à frente e o outro meio atrás, valorizam uma visão completa do sapato, geralmente salto alto. Também são desenhados de frente, as pernas entrelaçadas, notamos algumas posturas pouco usuais, típicas de pose. As mãos são expressivas. Geralmente uma delas pousa sobre a cintura enquanto a outra segura um objeto: bolsa, chapéu, xale, casaco, lenços. Nos trajes de festa ou noite as mãos aparecem com luvas mas também é comum vê-las nos trajes de passeio. Pulseiras adornam os pulsos em algumas ilustrações. As mãos também são retratadas guardadas nos bolsos dos vestidos, no ombro ou escondidas atrás do corpo ou as duas apoiadas na cintura. Todas as ilustrações vistas mostram vestidos cujo comprimento alcança a panturillha. Chamamos a atenção para a presença do desenho “O Modelo do dia” em que a colunista indicava os tecidos e algumas indicações sobre a confecção das peças, (…) os godets inteiros, como o do modelo 2, que jaziam esquecidos, voltam novamente à baila com outro aspecto, isto é: menos amplos. Para cortá-los porém, não devemos prescindir da costura dos lados, para que o possamos ajustar muito aos quadris e os fazer cair, ligeiramente encanudados, em baixo. (...)14

Madame Carvalho parece dirigir-se a leitoras que são também costureiras ou que possuem a habilidade de costurar e partilham daquele conhecimento e repertório. Esse aspecto nos dá uma dica para pensarmos a produção no campo da moda nesse momento. Percebemos uma característica comum às colunas de moda15 da primeira metade do século XX em que a indicação e sugestão dos modelos era seguida de orientações para sua confecção, às vezes de maneira mais precisa em outras mais geral. Algumas casas e lojas vendiam modelos importados, em especial franceses, mas a venda de roupas confeccionadas não havia ainda se difundido largamente. É o caso da Casa Canadá (Mena Fiala) no Rio de Janeiro que funcionou até 1934 e da Casa Madame Rosita (Rosa de Libman) em São Paulo que entretanto

200

atuavam na esfera da moda de Alta Costura adaptando peças de grandes nomes da costura internacional. Esse não nos parece ser o campo onde Madame Carvalho operava. Em sua coluna não vimos nenhuma referência a griffes ou Alta Costura. Conforme indica Ana Claudia Lopes16, o prêt-à-porter existia de forma ainda incipiente nos anos 40 e 50 no Brasil tendo difundido-se efetivamente à partir dos anos 60. É possível pensar em um sistema de produção de moda nos anos 30 no Rio de Janeiro em que as atividades de costura não eram associadas à produção em larga escala e dependiam dos ateliers de costureiras mais ou menos habilidosas e autorais. Associamos muito facilmente a produção da coluna Elegâncias com suas atividades no Lyceu Império pois o próprio cabeçalho da coluna indicava (em alguns mas não todos) “Desenhos feitos especialmente para o Diário Carioca por Madame Carvalho, Diretora do Lyceu Império” e ainda o endereço onde funcionava a escola de corte e costura. Em algumas colunas é possível verificar a resposta dada a cartas no espaço Correspondências onde anuncia a abertura de novas turmas no Lyceu, responde a dúvidas diversas e dá dicas específicas. Podemos ler a resposta dada a alguém que escreve com o pseudônimo “Filha do Céu”: “O meu modelo que tanto lhe agrada não ficará bonito na fazenda cuja amostra me mandou. Convém adquirir um tecido mais pesado”. Talvez seja necessário pensar a coluna Elegâncias de forma associada ao Lyceu Império, reconhecida escola profissionalizante de costura fundada e dirigida por Sophia Jobim.

1

Há sobre a grafia de seu nome um interesse particular, pois seu registro de nascimento foi feito com a letra f, ou seja, Sofia. Entretanto, encontramos várias anotações, correções, justificativas e até um grande poema no qual ela reforça o desejo de que seu nome seja escrito com ph, ou seja, Sophia. E assim, ao longo de sua vida, inclusive nos documentos oficiais como o registro de sua matrícula como aluna para o Curso de Museus em 1961 escreve seu nome com ph, inclusive no seu Ex Libris. Não se trata meramente da adoção de um nome artístico, mas sim da vinculação com a cultura grega clássica, a relação com a sabedoria e a herança da avó materna que também se chamava Sophia. 2 O Clube Soroptimista funcionava na residência de Sophia Jobim no bairro de Santa Teresa/RJ e foi desativado em 1957. O termo Soroptimista foi criado em 1921 nos Estados Unidos e o nome surge a partir da junção das palavras “soror” irmã e “optimus” melhor, ou seja “o melhor para as mulheres”. A filial do Rio de Janeiro se compunha de mulheres dos seguimentos mais altos da sociedade carioca, fluentes na língua inglesa. Nomes como o de Bertha Lutz, Maria Lenke e Anésia Pinheiro Machado constavam entre as fundadoras, que totalizavam inicialmente vinte mulheres. Ver: CRUZ, Cacilda Fontes e BOREL, Luciana Galvão. A Coleção Sophia Jobim: um estudo sobre o soroptimismo no Brasil. In: Anais do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro: vol. 30, 1998, p. 267. 3 DICIONÁRIO MULHERES DO BRASIL: de 1500 até a atualidade biográfico e ilustrado/organizado por Schuma Schumaher, Érico Vitl Brazil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000, p. 50. 4 CARVALHO, Sophia Jobim Magno de. “O que é indumentária histórica.” Rio de Janeiro: Escola Nacional de Belas Artes, 1960, p. 14. 5 TORRES, Heloísa Alberto. “Alguns aspectos da indumentária da crioula baiana”. In: Cadernos Pagu (23), julhodezembro, 2004, pp: 413-467. (Documento), p. 416.

201

6

7

8 9 10 11

12

13

14

15

16

BARROS, Sigrid de Porto. “A condição social e a indumentária feminina no Brasil-colônia”. In: Anais do Museu Histórico Nacional,1947, pp: 117-152. SOUZA, Gilda de Mello. O espírito das roupas: a moda no século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 7 CHAGAS, Mário de Souza. Museália. Rio de Janeiro: JC Editora, 1996, p. 43. Disponível para consulta online em http://issuu.com/faustoviana/docs/recortes_jornal?e=4184471/4002673. COSTA, Cecília. Diário Carioca. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2011, p. 12. Instituto Brasileiro de Museus, IBRAM. Museu Histórico Nacional, Biblioteca, Coleção SM, Livro de Recorte 1, n 68.556. Diário Carioca. Seção Vida Mundana. Coluna Elegancias. Domingo, 06 de novembro de 1932. Edição 01303. Biblioteca Nacional Digital. Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=093092_02&pasta=ano%20193&pesq=Elegancias LIMA, Laura Ferrazza de. “Uma mulher fala de moda feminina: as colunas de Madame Clemenceau em “O Cruzeiro” de 1929 a 1931”. In: Iara – Revista de Moda, Cultura e Arte. São Paulo, v. 5, nº 1, maio de 2012, pp: 2249. Instituto Brasileiro de Museus, IBRAM. Museu Histórico Nacional, Biblioteca, Coleção SM, Livro de Recorte 1, n 68.556. Revista Feminina, Ano XVII, número 189, 1930. Disponível em http://bibdig.biblioteca.unesp.br/bd/cedap/periodicos/revista_feminina/1930_ano17_n189/#/1/zoomed. A Revista Feminina (1914-1936) foi fundada por Virgilina de Souza Salles em São Paulo. LOPES, Ana Claudia L. F. “Alta-costura, prêt-à-porter e as cópias: a produção e difusão da moda nos anos 50”. In: Anais do 10º Colóquio de Moda – 7ª Edição Internacional. 2014, 12 páginas. Disponível em: http://coloquiomoda.com.br/anais/anais/10-Coloquio-de-Moda_2014/ARTIGOS-DE-GT/GT06-MODACULTURA-E-HISTORICIDADE/GT-6-Alta-costura-pret-a-porter-e-as-copias-a-difusao-e-producao-da-moda-nosanos-1950.pdf

202

Sundjata, epopéia mandinga Manutenção e difusão das tradições na sociedade acústica mandinga *Ana Lúcia Rabello Silva

Resumo: O presente trabalho tem como proposta analisar a utilização de um saber técnico de transmissão da memória coletiva por fórmulas práticas responsáveis pela manutenção e difusão das tradições, bem como de eventos de importância social encontradas na obra literária de Djibril Tamsir Niane; Sundjata, epopeia mandiga. Palavras-Chave: memória, tradição oral, África.

Abstract: This paper aims to analyze the use of a technical knowledge of transmission of colletive memory for practical formulas responsible for the maintenance and dissemination of traditions and events of social importance found in the literaty work of Djibril Tamsir Niane, Sundjata, epic mandinga. Keywords: memory, tradition oral, Africa

203

Des-cobrimento da História da África As pesquisas referentes à História da África foram produzidas sobre o prisma da civilização ocidental. A raiz dos métodos empregados para a construção do conhecimento e compreensão do continente africano e suas gentes está intimamente ligada ao conceito do racionalismo (séc. XVIII e XIX). Conceito encontrado nos discursos políticos, éticos e morais que legitimaram os processos colonialistas do final dos oitocentos. Seus efeitos prolongaram-se até os nossos dias, deixando fortes marcas nas ciências humanas e, em particular, na antropologia e na historiografia sobre a África. As perspectivas destas produções reforçaram um olhar etnocêntrico cuja visão do mundo coloca o grupo hegemônico no centro de tudo e todos os outros são pensados e sentidos através dos valores, modelos, definições do que é existência segundo o grupo dominante.

O

pensamento moderno era, pois, revestido por uma legitimidade científica fomentadora de uma consciência planetária equivocada sobre as múltiplas realidades históricas e culturais do continente africano. Perpetuando ideias da cisão entre as Áfricas, da não-historicidade da África subsaariana e dos estereótipos raciais. Através dos olhares de gerações de viajantes, de traficantes de escravos, de exploradores, de missionários, de procônsules, de sábios de todo tipo, uma gama literária fixou a imagem de um continente

miserável,

bárbaro, irresponsável e do caos. Distorção projetada e extrapolada ao infinito ao longo do tempo, passando a justificar tanto o presente quanto o futuro. J. Ki-Zerbo1 enfatiza declarando na introdução do volume I da Coleção História Geral da África que a África tem uma história. Esta história, como a de

toda

a

humanidade, é a história de uma tomada de consciência. Esta afirmação nos faz pensar que a história da África deva ser reescrita. Que se faz necessário um olhar científico que 1

Historiador Joseph Ki-Zerbo, nascido em Burkina Fasso. Dentre muitos trabalhos destaca-se a contribuição dada na coordenção e organização do volume I da coleção de História Geral da África: Metodologia e préhistória da África, editada pela UNESCO a partir de trabalhos discutidos em seminários na década de 1960, e escritos ao longo das décadas de 1970 e 1980.

204

promova as especificidades do continente, distanciada do etnocentrismo. Ki-Zerbo orienta o retorno à ciência, a fim de que seja possível criar em todos uma consciência autêntica para a construção de um cenário verdadeiro cujo discurso seja modificado. O que conhecemos hoje por descolonização do conhecimento e na atualidade

as

novas

perspectivas de construção científica nos apontam desafios para abordagens que tragam à tona novas histórias e ferramentas as quais auxiliem na reconstrução da historicidade da África, retirando-a da obscuridade a qual foi legada. Produzir novas concepções e recortes possíveis para apreensão das várias realidades contidas no continente africano. As vozes que conclamaram por um projeto científico com abordagens adequadas à história do continente africano, utilizaram ferramentas auxiliares (linguística e antropologia) capazes de analisar as ambiguidades e silêncios que mascaravam

a

ignorância voluntária recorrentes nos estudos que pretendiam servir de testemunho escrito sobre o processo do conhecimento histórico desse mundo

não

ocidental.

A

intencionalidade desses testemunhos nos dá base para observarmos como a funcionalidade deles serviu, antes de tudo, como instrumentos de política nacional, contribuindo de modo mais ou menos direto para uma rede de interesses político-econômicos que ligavam as grandes empresas comerciais, as missões, as áreas de relações exteriores e o mundo acadêmico2. O trabalho de crítica do passado encontra um ar rejuvenescedor nas novidades multiplicadas pelo fluxo de trabalhos realizados com êxito pelos institutos de estudos africanos penetradas pela cultura islâmica. Segundo Amadou Hampaté Bâ3, entre as nações modernas, onde a escrita tem precedência sobre a oralidade, o livro constitui o principal veículo da herança cultural, 2

Hernandez, Leila Leite. O olhar imperial e a invenção da África. In: A África na sala de aula – visita à história contemporânea/ Leila Leite Hernandez – São Paulo. Selo Negro, 2005, p.18.) 3 Amadou Hampaté Bâ foi um escritor malinês no cenário da alta brousse do Mali (1900 – 1991), nascido de uma família aristocrática fula em Bandiagara, a maior cidade de Dogonf – território e a capital da pré-colonial Empire Masina .Filho de Hampaté Bâ e Kadidja Diallo . Após a morte de seu pai, ele foi adotado pelo segundo marido de sua mãe, Tidjani Amadou Ali Thiam da Toucouleur(grupo étnico). Ele participou da primeira escola corânica dirigida por Tierno Bokar, um dignatário da fraternidade Tijaniyyah, em seguida transferido para uma escola francesa em Bandjiagara, em seguida, para Djenné. Em 1915, ele fugiu da escola e voltou para sua mãe em Kati, onde terminou seus estudos.

205

este modelo predominante do saber ocidental durante muito tempo julgou-se que povos sem escrita eram povos sem cultura. O escritor malinês observa que este

conceito

infundado começou a desmoronar após as duas últimas guerras e como resultado do notável trabalho realizado por alguns grandes etnólogos do mundo inteiro. O trabalho da coleta de tradições orais processados em todos os países africanos favorece uma das fontes para a reconstrução histórica.

A tradição oral como fonte histórica A tradição oral aparece como repositório e o vetor do capital de criações sócioculturais acumuladas pelos povos ditos sem escrita: um verdadeiro museu vivo. A história falada constitui um fio de Ariadne muito frágil para reconstituir os corredores obscuros do labirinto do tempo Seus guardiões são os velhos de cabelos brancos, voz cansada

e

memória um pouco obscura, rotulados às vezes de teimosos e meticulosos ( veilesse oblige!): ancestrais em potencial... São como as derradeiras ilhotas de uma

paisagem

outrora imponente, ligada em todos os seus elementos por uma ordem precisa e que hoje se apresenta erodida, cortada e devastada pelas ondas mordazes do “modernismo”. Fósseis em sursis!4 É através dessa ótica que os estudos históricos constroem

suas

ponderações

quanto a utilização dos testemunhos oculares ou à tradição para complementar lacunas, bem como a compreensão da evolução do povo. Aqueles que detêm o vasto conhecimento dessa herança da forma de transmissão da memória coletiva ou individual nas sociedades acústica ou chamadas ágrafas, segundo A. Hampaté Bâ são conhecidos como "tradicionalistas’, homens que exercem o conhecimento da forma de transmissão da tradição, são os grande depositários dessa herança oral. Conhecidos como verdadeiros arquivos ambulantes, são a Memória viva da África. Existem os domas,ou Soma , (Conhecedores) para cada ramo do conhecimento, mas na maioria das vezes são “generalizadores”, ou seja, conhecedores “completos”, possuidores de informações 4

Ki-Zerbo, Joseph. Introdução Geral. In:história geral da África:I. Metodologia e pré-história da África/ coordenador do volume J. Ki-Zerbo – são Paulo: Ática; Paris: Unesco, 1982.

206

relativas à história, à religião, às ciências iniciatórias5, à simbologia e às ciências naturais. Além disso, são grandes contadores de história, mitos, lendas e provérbios. Se faz necessário atentarmos a respeito de características que marcam a atuação desses senhores da memória. Um griot6, por exemplo não é necessariamente um tradicionalista “conhecedor”, mas pode se tornar um, se for a sua vocação. Os griots têm o direito de ser cínicos. Conhecidos por serem grandes animadores de público, são também músicos e poetas; também sabem embelezar histórias de maneira a atrair seus ouvintes, porém, não possuem nenhum compromisso com a verdade. Geralmente são ligados a uma família nobre ou real. Ao contrário do que acontece com os griots, os domas tem um grande comprometimento com a verdade; podem, sim, ensinar a um dado público por meio de narrações divertidas, embelezadas, mas nunca devem inventar, mentir; a base da história a ser contada ou do ensinamento a ser transmitido é sempre a mesma. Um mentiroso não poderia ser um iniciador, nem um “Mestre da faca”, e muito menos um Doma. A tradição africana abomina a mentira. A proibição da mentira deve-se ao fato de que

se

um

oficiantes mentisse, estaria corrompendo os atos rituais7. Uma outra característica presente nas narrativas da tradição oral, de maneira geral todas as tradições africanas postulam uma visão religiosa do mundo. Segundo A. Hampaté Bâ, o universo visível é concebido e sentido como sinal, a concretização ou o envoltório de umuniverso invisível e vivo, constituído de forças em perpétuo movimento 8.

Contextualização e análise da produção de Djembril Tamsir Niane Sundjata, a epopéia mandinga

5

“(...) quando falamos de ciências ‘iniciatórias’ ou ‘ocultas’, são termos que podem confundir o leitor racionalista, trata-se sempre, para a África tradicional, de uma ciência eminentemente prática que consiste em saber como entrar em relação apropriada com as forças que sustentam o mundo vivível e que podem ser colocados a serviço da vida.” Bâ, A, Hampaté. Op. Cit., p. 187-188. 6 Griot é um termo de criação francesa que significa criado, ou mestre de cerimônia. A função tanto pode ser exercida por homens quanto por mulheres ( griottes) podem atuar como essa importante figura social pertencente à maioria dos países da África Ocidental. 7 Bã, Amadou Hampaté. Op. Cit., p. 189. 8 Bâ, A. Hampaté. Op. Cit., p.186

207

A busca por uma perspectiva histórica do continente africano serviria de pano de fundo para tentativas de grupos rivais pela perpetuação no poder da memória hegemônica. A historiografia africana tornou-se palco de lutas ideológicas

presentes

no

sistema

colonial e a literatura traria consigo esses registros valorativos das sociedades que se delineavam a partir das vivências dos processos coloniais e posteriores. A literatura africana tem como característica ser uma ferramenta cultural de contrarresposta integrado ao processo de descolonização no qual o movimento de Negritude9 (1930, EUA) com seu caráter político, ideológico e cultural serviu de subsídio para a ação transformadora de uma consciência da necessidade de desnaturalizar os estereótipos e preconceitos disseminados no imaginário mundial contra africanos e diáspora. No campo ideológico, negritude pode ser definida como um processo de aquisição de uma consciência racial. Já na esfera cultural, negritude é a tendência de valorização de toda manifestação cultural de matriz africana. Trata-se de um conceito dinâmico e multifacetado. Tendo como patrono o afro-americano W. E. B. Du Bois (18681963). Os principais nomes da literatura africana quando estudantes começaram a frequentar as universidades europeias – sobretudo as de Paris e Londres – constataram que a civilização ocidental não era um modelo universal e absoluto tal como era ensinado nas colônias (Antilhas e África). Nesse contexto, despertou-se uma consciência racial, e, por conseguinte, a disposição de lutar a favor do resgate da identidade cultural esvaecida do povo africano e diáspora. Djembril Tamsir Niane10 é um desses nomes que se destaca nesse período no qual se buscava elementos que despertassem o sentimento comum, regional, de pertencimento 9

Conceito que reivindica a identidade negra e a sua cultura. Prestigiado historiador de África, dramaturgo e escritor de contos, nascido em Conakry (1932). Depois de estudos do ensino secundário, formou-se em História, em 1959, na Universidade de Bordéus, França. Ensinou na sua cidade natal e no Institut Polytechnique, entre outros. Atualmente é membro do comitê científico internacional da Rota de Escravos (projeto da UNESCO), presidente da Sociedade Africana de Edição e Comunicação (Conakry) e da Organizção para a Memória e o Patrimônio (OMP). É também professor honorário na Universidade Howard (Washington D.C.) e na Universidade de Tóquio. Entre os seus títulos: Recherches sur l’empire Du Mali (1959) e Histoire de l’Afrique occidentale (1961). O AUTOR MERGULHADisponível em: http://www.casadasafrricas.org.br 10

208

dos homens e mulheres do continente africano, como a desnaturalização do legado dos estereótipos, em contraponto ao processo nivelador representado pelo colonialismo. Ao adotar a língua administrativa (idioma do colonizador) para a escrita, transportou sua herança cultural oral para o texto, desmaterializando as fronteiras entre a escrita e a oralidade. O autor se debruça em cima da trajetória do importante personagem da história tradicional do Mali, Sundjta Keita, e na expansão do reino Mandinga. Para isso investiga das diferentes tradições orais sobre a formação do Império de Mali. Sua obra trouxe elementos importantes para a compreensão das construções possíveis de fórmulas empregadas na transmissão e preservação da história e costumes

encontrados

nas

sociedades chamadas ágrafas ou acústicas. A difusão dos saberes desenvolvido por esta sociedade não se fundamentam nas fontes escritas como reza a tradição do ocidente. Suas informações estão ligadas à uma educação oral tradicionalmente iniciada em casa, com a família, em que lições são ensinadas através das circunstâncias do cotidiano, em situações que possibilitem a transmissão de conhecimento por meio de histórias, fábulas, lendas, mitos, provérbios, etc. A obra provoca em seus leitores um olhar atento à narração, perscrutando com mais profundidade os recursos utilizados na narrativa do griot djeli Mamadu Kuyatê11 e nos revela a prodigiosidade de preservar com minúcia e extrema precisão, ao relembrar algum acontecimento que reconstituem o passado, revivendo experiência vivida de forma atual. A técnica utilizada por esses tradicionalistas dá eloquência à narrativa e ao ouvinte o êxtase da percepção do formidável domínio e a virtuosidade da tradição oral.

A

percepção do mundo está condicionada ao privilégio do ouvido, devido o caráter fônico da palavra. Assim pode-se entender o domínio estabelecido no qual se prioriza a fala e a preocupação com a interioridade e a integração, mais adequadas à natureza da audição. Niane traz na obra a inspiração dos provérbios utilizadosA idoneidade quanto ao manuseio da palavra é incontestável e é por tanto reconhecida a autoridade e legítima o testemunho do griot como suporte dessa memória. Djembril Tamsir Niane dessa forma ,segundo uma 11

Clã dos Koyate, descendentes de Balla Fasséké, griot de Sundjata Keita.

209

análise a respeito do valor da memória na luta das forças sociais pelo poder, devolve ao seu produtor (uma autoridade na preservação e transmissão da memória coletiva), o olhar interno dos fatos históricos que permeiam a fundação do Reino de Mali e a saga de seu fundador.

Conclusão: A obra de Niane, além do valor literário, nos permite desconstruir visões distorcidas a respeito da historicidade do continente africano e reforça a curiosidade em produzir novos olhares para temas que ainda sofrem a negligência de um olhar mais atento às matizes culturais das várias Áfricas. Como se torna indispensável entender melhor a relação da cultura relacionada com a memória e com os procedimentos disponíveis, numa sociedade fundamentada na tradição oral, de processamento armazenamento e transmissão das informações.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS HERNANDEZ, Leila Leite. A África na sala de aula: visita à história contemporânea. 1ª reimpressão. São Paulo: Selo Negro, 2005. KI-ZERBO, Joseph (Org.). História geral da África: I. Metodologia e préhistória da África. São Paulo: Ática; Paris: UNESCO, 1982. NIANE, Djjibril Tamsir. Sunddjata ou a epopeia mandinga. São Paulo: Ática, 1982. Disponível em: http://www.casadasafricas.org.br

210

O DEPARTAMENTO DE IMPRENSA E PROPAGANDA (DIP) COMO EDITOR (1938-1945) Ana Paula Leite Vieira*

Resumo Este artigo se propõe a apresentar, de maneira ainda inicial, algumas considerações sobre a atuação do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) como editor e financiador de material bibliográfico propagandístico da política cultural do Estado Novo (1937-1945). Para tal, tomaremos como fonte os livros e periódicos que conseguimos identificar como tendo sido editados ou financiados pelo departamento durante seu período de existência (1939-1945).

Palavras-chave: Departamento de Imprensa e Propaganda; Estado Novo; edição.

Abstract The aim of this article is to discuss, on preliminary bases, the acting of the Department of Press and Propaganda (DIP) as a publisher of propagandistic books of the Estado Novo (1937-1945) cultural policy. For this purpose, we will analyze books and periodicals edited or funded by the department between 1939 and 1945.

Keywords: Department of Press and Propaganda; Estado Novo; edition.

Introdução

O Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) foi criado em 27 de dezembro 1939, pelo Decreto-Lei 1.9151. Seu regimento e atribuições foram apresentados pelo decreto 5.077 no dia 29 de dezembro do mesmo ano e já no artigo 1° é exposta a finalidade de sua criação: “O Departamento de Imprensa e Propaganda (...) é diretamente subordinado ao Presidente da República e tem a seu cargo a elucidação da opinião nacional sobre de diretrizes doutrinárias do regime, em defesa da cultura, da unidade espiritual e da civilização brasileiras”2. Fica clara a função propagandística do departamento, que se utilizou de diversos meios de comunicação para divulgar as ideias do regime estanovista e seu projeto cultural para o país: foram produzidos livros, revistas, folhetos, cartazes, programas de rádio,

211

fotografias, entre outros tipos de produção, dirigidos aos cidadãos brasileiros e até ao público estrangeiro. O DIP tinha funções bastante abrangentes: era o porta-voz do regime, o responsável por sua imagem pública e divulgação de seus ideais, dentro e fora do Brasil. Era de tamanha importância que foi em sua sede, no Palácio Tiradentes, que se realizou a III Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores das Repúblicas Americanas (1942) – e não no Palácio do Itamaraty, sede do Ministério das Relações Exteriores desde 1899. De acordo com Capelato3, não é possível entender a Era Vargas, sobretudo o Estado Novo, sem compreender este aparato de propaganda política e cultural. Desta forma, estudar a ação do Departamento de Imprensa e Propaganda como editor é contribuir diretamente para uma melhor compreensão historiográfica do regime em toda a sua amplitude, sobretudo no que diz respeito à relação entre os intelectuais e o Estado e, ainda, às relações internacionais do Brasil no período, especialmente com os Estados Unidos.

Considerações teóricas Para analisarmos as funções do Departamento de Imprensa e Propaganda no Estado Novo, nos inspiramos em algumas ideias formuladas por Michel Foucault em A ordem do discurso4, através das quais é possível pensá-lo como um órgão que seleciona, controla, organiza e distribui discursos produzidos durante o Estado Novo. Nesse sentido, pensar o Departamento como editor significa a possibilidade pensar em duas esferas de sua atuação: 1) a censura, através da qual o DIP controlava e selecionava o que poderia ser publicado e o que era passível de punição porque transgredia as regras ou feria os ideais estadonovistas; 2) na produção, organização ou financiamento de produtos culturais diversos – como livros, revistas, folhetos, filmes –, como se órgão funcionasse como uma grande editora. Valer-se de Foucault como inspiração para pensar o Departamento como um editor não significa, porém, adesão automática a todas as suas ideias e nem que este estudo seguirá esta filiação teórica. Embora de grande valia para enriquecer e instrumentalizar nossa análise, esta linha interpretativa concede um poder quase irrestrito às instituições e não abre espaços para a ação dos indivíduos, para as ambiguidades, disputas e divergências. O Departamento de Imprensa e Propaganda era responsável por divulgar/promover a política cultural do Estado Novo e, para tal, contou com “(...) setores especializados de uma burocracia estatal (meios administrativos e recursos financeiros), com atores sociais relevantes da sociedade, com destaque para os intelectuais”5.

212

Os intelectuais se destacam, então, como atores sociais especializados na construção e divulgação da política cultural do Estado Novo e, por isso, o governo buscou a cooperação deste grupo e ampliou suas formas de vinculação ao aparelho burocrático do Estado – através do DIP, por exemplo. Porém, não significa que estas instituições tivessem total controle sobre seus colaboradores e que estes tenham sido, então, cooptados pelo regime. Interessa-nos aqui pensar de que maneira os intelectuais atuaram neste universo simbólico, negociando com o projeto cultural estadonovista, muitas vezes dialogando com ele e, por outras, propondo novas soluções, pautas e debates. É preciso considerar a complexidade das relações sociais que se estabelecem nos grupos que possuem afinidades intelectuais, neste caso reunidos em torno do DIP, seja como funcionários permanentes ou colaboradores eventuais: o simples fato de fazer parte

da

redação de um jornal ou revista, ou até mesmo assinar um editorial ou um manifesto não quer dizer, de maneira automática, que todos os participantes compartilhem das mesmas ideias sobre todos os assuntos; sempre há espaço para divergências, de forma que nenhum grupo é homogêneo. Como alerta Angela de Castro Gomes, o Estado Novo tem a ambiguidade como uma marca fundamental; as análises maniqueístas não conseguem dar conta da complexa relação estabelecida entre os intelectuais e um projeto político mais amplo, na qual há sempre uma “variada gama de aproximações, distanciamentos e negociações”6. Nesta perspectiva, para pensarmos o meio intelectual organizado em torno do Departamento de Imprensa e Propaganda, trabalharemos com o conceito amplo do termo “intelectual” formulado por Jean-François Sirinelli, onde estariam incluídos “os criadores e os ‘mediadores’ culturais”7, sendo eles jornalistas, escritores, eruditos e professores. Isto significa dizer que estão sendo considerados intelectuais tanto os autores dos diversos tipos de produções textuais veiculados pelo órgão, como também aqueles responsáveis pela mediação através da tradução, seleção, organização, revisão, edição, impressão ou publicação dos textos. O DIP mobilizou não só um grande número de escritores, como também uma rede de editoras e de veículos de imprensa diversos, que publicaram livros e revistas editados ou encomendados pelo departamento. Podemos aqui, por exemplo, citar o relacionamento estreito de Lourival Fontes (diretor do DIP) com grandes mediadores culturais como José Olympio. Desta forma, é de fundamental importância mapear e entender as redes de sociabilidade constituídas no meio intelectual relacionado ao Departamento de Imprensa e Propaganda. Os laços se formam de várias maneiras e em diversos espaços, como na redação de uma revista ou jornal, num conselho editorial de uma editora, no ambiente de trabalho, nas

213

agremiações políticas, apenas para citar alguns exemplos dos diversos círculos de sociabilidade. Como sugere Sirinelli, os elementos afetivos e ideológicos se interpenetram nestas redes, que nos revelam amizades, hostilidades, rivalidades, rupturas, pactos, dada a complexidade de estilos de vida e visões de mundo dos indivíduos que convivem em grupo. Isto serve para pensar como eram escolhidos e convidados os intelectuais que trabalharam no corpo editorial do DIP – no corpo permanente ou de forma eventual –, bem como suas ligações com diversas editoras e jornais. Através da mobilização destes intelectuais e de sua intensa produção, o regime constrói e coloca em prática sua política cultural de construção ou (re)definição de uma identidade nacional e seu projeto político de construção de um “novo” Brasil. Nesta empreitada, o passado e a construção de uma determinada memória sobre este passado ocupam um lugar primordial na representação da nacionalidade. O conceito de cultura política será, portanto, particularmente caro a esta pesquisa, já que o DIP está sendo entendido aqui como um dos instrumentos formadores e divulgadores do conjunto de ideias e representações que compunham a política cultural estadonovista. Entendemos cultura política também nos termos definidos por Serge Berstein, como um código ou um conjunto de referentes formalizados e compartilhados por um grupo, como um partido ou uma família8; definição esta muito próxima da exposta por Gomes, “um sistema de representações, complexo e heterogêneo, mas capaz de permitir a compreensão dos sentidos que um determinado grupo (...) atribui a uma dada realidade social, em determinado momento do tempo”9. Uma cultura política se expressa, na maior parte das vezes, através de “(...) uma leitura comum e normativa do passado histórico com conotação positiva ou negativa com os grandes períodos do passado, uma visão institucional que traduz no plano da organização política do Estado os dados filosóficos ou históricos precedentes, uma concepção da sociedade ideal tal como a veem os detentores dessa cultura e, para exprimir o todo, um discurso codificado em que o vocabulário utilizado, as palavras-chave, as fórmulas repetitivas são portadoras de significação, enquanto ritos e símbolos desempenham, ao nível do gesto e da representação visual, o mesmo papel significante.”10

Através das publicações do DIP e de sua articulação com os intelectuais do período, conseguiremos mapear os elementos que compunham a cultura política estadonovista nos moldes definidos por Berstein, principalmente a articulação feita entre a leitura do passado – mais longínquo ou recente – com um projeto social de futuro que deveria ser construído no presente. A ação do departamento como editor, neste sentido, é vista como um dos principais

214

instrumentos de edificação deste projeto.

O Departamento de Imprensa e Propaganda como editor: algumas reflexões sobre o conjunto das fontes

A Era Vargas (1930-1945) é um dos temas da História do Brasil que mais recebeu atenção dos historiadores nos últimos anos, sobretudo o período do Estado Novo (1937-1945). Ainda assim, continua sendo estudado e revisitado a partir de novos questionamentos e novas fontes. O Departamento de Imprensa e Propaganda foi citado ou analisado em grande parte destes estudos já que, como vimos, era o grande articulador da política cultural do regime. A maioria dos trabalhos nos quais o DIP aparece, porém, focam na questão da censura da imprensa e da repressão. À título de exemplo, podemos citar estudos como o de Silvana Goulart (1990), Doris Haussen (1992), Cláudia Matos (1982) e José Inácio de Melo e Souza (1990 e 2003). Estes autores mostram que, além da propaganda, o aparato burocrático dos Estados autoritários exerce uma rigorosa censura do conjunto de informações veiculadas pelos meios de comunicação, conjugando o monopólio da força física e também simbólica, com a intenção de impedir a circulação de discursos que confrontem a legitimidade do projeto político-cultural estatal. Segundo Capelato, a Constituição brasileira de 1937 legalizou a censura prévia aos meios de comunicação, que os investiu de caráter público, “tornando-se instrumento do Estado e veículo oficial da ideologia estadonovista”11. Coube ao DIP realizar esta tarefa, já que entre suas atribuições estava “ (...) interditar livros e publicações que atentem contra o crédito do pais e suas instituições, e contra a moral” e “(...) combater por todos os meios a penetração ou disseminação a qualquer ideia perturbadora ou dissolvente da unidade nacional”12. Alguns estudos deslocam este foco e destacam a ação propagandística do DIP e analisam alguns aspectos de sua produção editorial e sua política cultural, mas não se propuseram a pensar a atuação do órgão como editor, nem mapearam ou analisaram sua extensa obra em conjunto. Nem mesmo a Cultura Política, principal publicação do departamento, foi estudada como fonte e objeto. Para exemplificar, podemos citar o livro Os intelectuais e a política cultura do Estado Novo, no qual Mônica Velloso (1987) fala sobre o DIP e sua ação propagandística, mas sua questão primordial é a análise das relações estabelecidas entre os intelectuais e o regime político e, por isso, a autora não analisa a produção editorial do departamento. Maria Helena Capelato (2009), em seu livro Multidões em cena: propaganda política no varguismo e no peronismo, se refere ao DIP como o

215

principal articulador da propaganda estadonovista, mas o foco de seu estudo não foi sua produção editorial, embora parte dela seja citada. Podemos citar também a pesquisa de mestrado de André Barbosa Fraga (2012), que trabalhou em um dos capítulos com uma das coleções produzidas pelo departamento, intitulada “Vultos. Datas. Realizações” 13. A historiadora Angela de Castro Gomes, que possui uma expressiva produção sobre o período, utilizou a revista Cultura Política do DIP em sua pesquisa de doutorado (GOMES, 1988); e, mais tarde, utilizou apenas a última seção do periódico – “Brasil social, intelectual e artístico” – para investigar a construção de uma cultura histórica durante o Estado Novo, refletindo sobre o lugar da história no discurso do regime e sobre como o passado foi reinterpretado no período (GOMES, 2013). Tânia de Luca aponta um dos motivos que pode ter contribuído para a carência de estudos que enfoquem o conjunto da produção bibliográfica do DIP: o desaparecimento do arquivo da instituição. Infere-se que o departamento possuía um rico acervo, já que “(...) havia a determinação explícita de se organizar ‘um arquivo de jornais e revistas, folhetos de propaganda etc., nacionais e estrangeiros’, além de se prever que os serviços de administração deveriam dispor de filmoteca, discoteca e biblioteca, destinadas a guardar e conservar materiais comprados ou produzidos pelo órgão. Indício indireto de que a determinação foi cumprida, pelo menos no que respeita à biblioteca, está no fato de ser possível encontrar livros com o carimbo ‘Biblioteca do DIP’”14.

Contudo, em 1946, o general Eurico Gaspar Dutra ordenou a queima de todo o arquivo da instituição. Parte da biblioteca permaneceu preservada no Serviço de Documentação da Agência Nacional, mas um de seus diretores “autorizou a dispersão e desmembramento do acervo, selando assim a perda do material produzido pelo Departamento e por seus antecessores” (LUCA, 2011, p. 274). Como Tânia descreve em seu artigo, foram realizadas algumas tentativas frustradas de localizar este acervo nas principais instituições de pesquisa brasileiras e, por isso, a pesquisadora realizou uma busca pela documentação do DIP em bibliotecas estrangeiras e encontrou diversos títulos em duas universidades norte-americanas – Tulane e Vanderbilt15. Tomando como base o trabalho da Tânia de Luca, conseguimos identificar a presença de uma grande quantidade de produções do departamento em bibliotecas de outras universidades de diversas regiões dos Estados Unidos, como Harvard, Stanford, Columbia, NYU, Yale e até em bibliotecas públicas, como a New York Public Library. Este mapeamento indica um aspecto interessante a respeito da ação do DIP: a presença do material bibliográfico do departamento no exterior demonstra a intenção do regime em

216

propagar a imagem do Brasil no cenário internacional. Além do material produzido em língua portuguesa para os próprios brasileiros, esta pesquisa revelou títulos publicados especificamente para o público internacional, produzidos em língua estrangeira (inglês, francês e espanhol) – como a revista Travel in Brazil e o livro La pensée politique du président Getúlio Vargas, por exemplo. A própria presença destas publicações nos Estados Unidos também não é aleatória, já que a iniciativa de enviar este material partiu, em alguns casos, do próprio departamento. Conseguimos afirmar isto porque Tânia de Luca encontrou inscrições “Gift from DIP” em alguns dos livros com os quais teve contato. Através do contato que tivemos com as fontes até o momento conseguimos identificar que o período mais intenso da produção editorial do DIP coincide com a direção de Lourival Fontes (1939-1942), no auge da ditadura do Estado Novo. Neste período, foram produzidos livros sobre os temas centrais do projeto político do Estado Novo: centralização política e ampliação dos poderes do chefe do executivo federal; perda de autonomia dos governos dos estados e municípios e valorização da organização municipal em detrimento da estadual; a política trabalhista; grande intervenção do Estado em setores estratégicos: na economia, segurança nacional, educação, cultura, relações internacionais, entre outros temas16. Percebemos também que há uma grande preocupação em construir uma história, um discurso oficial sobre o passado recente. Em 1940 foi realizado um concurso de monografias em comemoração aos dez anos da “Revolução de 1930”, através do qual seriam selecionadas algumas para serem publicadas em uma coleção, chamada “Decenal da Revolução Brasileira”. Num dos livros escolhidos, o autor diz que “Entre as condições básicas do certame instituído pelo D.I.P., salienta-se a de que 'os trabalhos apresentados ao julgamento devem fixar realizações que contribuíram para o progresso e o desenvolvimento do Brasil e terão o valor de depoimento de fixação histórica”. 17

Em todas as publicações da série, os autores realizam um balanço das realizações mais importantes do governo dos últimos dez anos, ressaltando a importância da figura do presidente Getúlio Vargas na liderança e condução deste processo de transformações, bem como do comprometimento que todos os cidadãos devem assumir com a continuidade do projeto iniciado em 1930 e que ainda está “em marcha”. No campo educacional, o Estado Novo foi decisivo na implementação de um sistema de educação nacional, que padronizasse o ensino em todo território nacional e centralizasse as atividades em busca de uma tão sonhada unidade. Esta unidade se traduziria tanto

217

na

aplicação de programas e conteúdos escolares quanto no sentimento de pertencimento dos cidadãos a uma coletividade, na afirmação da identidade nacional brasileira – empreitada em que a educação tem papel fundamental. Porém, a educação era vista num sentido amplo, não restrito ao ambiente escolar. De acordo com Monica Velloso, enquanto o Ministério da Educação de Gustavo Capanema preocupava-se com a educação formal, ao DIP de Lourival Fontes competia a orientação das manifestações da cultura popular e ampla divulgação da política cultural estadonovista18. Periódicos produzidos pelo DIP, como a Cultura Política, demonstram a clara intenção de Vargas de popularizar seu projeto político-cultural através da imprensa. Algumas produções do departamento tinham claras funções educativas, com intenção de formar um homem novo para um Estado Novo. Como exemplo, podemos citar o livro de Antônio Figueira de Almeida, A Constituição de dez de novembro explicada ao povo. O autor, que era professor e escreveu também trabalhos na área de História e Geografia, toma neste livro a responsabilidade de explicar ao povo de forma bastante didática os artigos da constituição brasileira de 1937. Após a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial, Lourival Fontes foi demitido do cargo e sucedido por dois militares: Antonio José Coelho dos Reis e Amílcar Dutra de Meneses. Nestas gestões, a orientação editorial do departamento sofreu remodelações, algumas publicações permanentes criadas na administração anterior foram interrompidas – como Dos Jornais e Estudos e Conferências – e substituídas por outras, como Brasil Reportagens. Nestas gestões, o foco das coleções publicadas passou aos assuntos militares e a ação o Brasil na guerra, através de títulos como O Brasil Aeronáutico e Os brasileiros chegam ao front. Também neste período aparece a coleção “Vultos. Datas. Realizações”, criada para “evocar as figuras, etapas e acontecimentos do passado brasileiro, a fim de que as modernas gerações possam inspirar-se no exemplo dos que permitiram a nossa terra e a nossa gente adquirirem a grandeza e o prestígio que apresentam em nossos dias”19. O departamento possuía também uma Divisão de Turismo, que era responsável por “organizar planos de propaganda turística no exterior e executá-los”, “organizar e divulgar publicações de albuns e catálogos de propaganda do Brasil” e “manter uma publicação ilustrada, que servirá como órgão de turismo do D.I.P.”20. Conseguimos identificar algumas publicações desta divisão, como a revista Travel in Brazil, escrita em inglês e organizada por Cecília Meireles. De acordo com Tania Regina de Luca, a revista possuía “capas coloridas e chamativas, grande quantidade de fotografias de excelente qualidade e um projeto gráfico muito bem cuidado”21, tendo circulado sem interrupções entre setembro de 1941 e 1943 22. Como colaboradores, podemos citar intelectuais de destaque como Mário de Andrade, José

218

Lins do Rego, Tasso da Silveira, Sérgio Buarque de Holanda, Paulo Rónai e Menotti Del Picchia. No catálogo da biblioteca da Harvard University, conseguimos encontrar também dois livros produzidos pela Divisão de Turismo: Poços de Caldas e Rio de Janeiro. Através destas publicações que foram destinadas ao público internacional, poderemos examinar a imagem do Brasil que o governo estadonovista desejava projetar no cenário internacional. Pelo que pudemos apurar até o momento, fica nítido que a produção do Departamento de Imprensa e Propaganda foi bastante extensa e que há muito ainda há ser pesquisado. As publicações dos dois departamentos – tanto livros como periódicos – serão indexadas e analisadas, a fim de caracterizar sua(s) linha(s) editorial(is), construir uma visão ampla do conjunto das fontes e do grupo de intelectuais envolvido na redação e distribuição do material. Definidas as características gerais, selecionaremos algumas publicações para realizar uma análise mais detalhada. Além do exame do conteúdo do material bibliográfico, nos interessa

também

a

pesquisa

de

“(...)

correspondências,

memórias,

produções

autobiográficas ou textos que evocam a trajetória de escritores que se envolveram com a fundação, direção ou foram assíduos colaboradores dos periódicos estudados” 23, bem como dos autores dos livros, para que possamos compreender melhor a estrutura de funcionamento do DIP e as redes de sociabilidade formadas em torno do órgão. 1

Decreto-Lei disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1930-1939/decreto-lei-1915-27dezembro-1939-411881-publicacaooriginal-1-pe.html Acesso em 22/09/14, as 15h24. 2 Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-5077-29-dezembro-1939345395-publicacaooriginal-1-pe.html Acesso em 24/09/2014, as 19h15. 3 CAPELATO, Maria Helena R. Multidões em cena: propaganda política no varguismo e no peronismo. 2ªed. São Paulo: Unesp, 2009. 4 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1999. 5 GOMES, Angela de Castro. “Cultura Política e Cultura histórica no Estado Novo”. In: ABREU, M., SOIHET, R. e GONTIJO, R. (org.). Cultura Política e Leituras do Passado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, Faperj, 2007. p. 46. 6 Idem. p. 45. 7 SIRINELLI, Jean-François. “Os intelectuais”. In: Rémond, René. Por uma história política. Rio de Janeiro: EdUFRJ/ Editora Fundação Getúlio Vargas, 1996. p. 242. 8 BERSTEIN, Serge. “A cultura política”. In: RIOUX, Jean-Pierre; SIRINELLI, Jean-François (org.). Para uma História Cultural. Lisboa: Editorial Estampa, 1998. p. 350. 9 GOMES, Angela de Castro. “História, Historiografia e cultura política no Brasil: algumas reflexões”. In: SOIHET, Rachel, BICALHO, Maria Fernanda B. e Gouvêa, Maria de Fátima Silva (orgs.). Culturas Políticas: ensaios de história cultural, história política e ensino de história. Rio de Janeiro: Mauad, 2005. p. 31. 10 BERSTEIN. Op. cit. p. 351. 11 CAPELATO. Op. cit. p. 79. 12 Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-5077-29-dezembro-1939345395-publicacaooriginal-1-pe.html Acesso em 24/09/2014, as 19h15. 13 A análise desta coleção é feita por André Fraga no capítulo V. Ver: FRAGA, André Barbosa. Os heróis da pátria: política cultural e história do Brasil no governo Vargas. Dissertação de Mestrado. Departamento de História, Universidade Federal Fluminense, 2012. 14 LUCA, Tania Regina de. “A produção do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) em acervos norteamericanos: um estudo de caso”. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 31, nº 61, 2011. p. 273. 15 Para maiores informações, ver LUCA, Tania Regina de. “A produção do Departamento de Imprensa e

219

Propaganda (DIP) em acervos norte-americanos: um estudo de caso”. Op. cit. 16 Isto pôde ser observado através do contato que tivemos com alguns livros que conseguimos localizar no Arquivo Nacional (RJ) e através dos títulos dos livros mapeados. 17 BARRETO FILHO, Mello. Anchieta e Getúlio Vargas. (Iniciativas e Realizações). Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa e Propaganda, 1941. p. 12. 18 VELLOSO, Mônica P. Os intelectuais e a política cultural do Estado Novo. Rio de Janeiro: CPDOC/FGV, 1987. 19 FRAGA. Op. cit. p. 118. 20 Disponível em http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-5077-29-dezembro-1939345395-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em 06/10/2014, as 22h. 21 LUCA, Tania Regina de. “A produção do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) em acervos norteamericanos: um estudo de caso”. Op. cit. p. 290. 22 Pelo que pôde averiguar em universidades norte-americanas, Tania de Luca identificou que a revista circulou de setembro de 1941 até, pelo menos, fevereiro de 1942, sem interrupções. A pesquisadora identifica uma provável interrupção no ano de 1943, e no ano seguinte a revista ressurge com o nome This is Brazil, da qual se conservou apenas o primeiro número. Ver: LUCA, Tania Regina de. “A produção do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) em acervos norte-americanos: um estudo de caso”. Op. cit. p. 290 23 LUCA, Tania Regina de. Leituras, projetos e (Re)vista(s) do Brasil (1916-1944). São Paulo: Assis-UNESP, Tese de Livre Docência, 2009.

220

A construção de uma ideia de cultura brasileira nos estudos de folclore (19611982) Ana Teles da Silvai Resumo: Neste trabalho tomamos como objeto de análise duas publicações da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro (1958-1978), a Revista Brasileira de Folclore (1961-1982) e os Cadernos de Folclore (1975-1986). A leitura destas publicações

revela,

dentre outros interesses, a discussão sobre influências africanas e portuguesas nas manifestações populares brasileiras. Buscamos, então, compreender o interesse por estas origens culturais no contexto maior da preocupação destes estudiosos com a formação de uma cultura brasileira. Palavras-Chaves: Cultura Brasileira; Cultura Popular; Intelectuais. Abstract: This paper focuses on the analysis of two journals edited by the Brazilian Folklore Campaign (1958-1978) the Revista Brasileira de Folclore (1961-1982) and the Cadernos de Folclore (1975-1986). These journals reveal many areas of interest for these intellectuals amongst those the discussion about African and Portuguese influences on Brazilian popular culture. We discuss then the quest for these cultural origins in the larger frame of these scholars’ interest on the subject of the building of a Brazilian culture. Key Words: Brazilian Culture; Popular Culture; Intelectuals. Neste trabalho pretendemos discutir a construção de uma ideia de cultura brasileira no âmbito da rede de estudiosos do folclore brasileiro a partir da análise de duas importantes publicações destes, a Revista Brasileira de Folclore (1961-1976) e a 2ª Série dos Cadernos de Folclore (1975-1985). Conforme indicou Vilhena (1997), o Movimento Folclórico Brasileiro tem como marco a constituição da Comissão Nacional de Folclore, em 1948, a partir de uma iniciativa das Nações Unidas para promover a paz entre os povos depois da II Guerra Mundial. Com apoio da Unesco, este Movimento articulou uma rede nacional de estudiosos organizados através de um centro, configurado por esta Comissão, que se ligava nos diferentes estados brasileiros às então chamadas Subcomissões de Folclore, intelectuais e estudiosos que, interessados na cultura popular, de forma mais ou menos diletante, foram chamados a participar desta rede. Deste modo, esforços anteriores, muitas vezes individuais e sem apoio

221

oficial, foram canalizados para a Comissão Nacional de Folclore (CNF), e nos anos subsequentes para as Subcomissões, logo denominadas Comissões Estaduais.ii Em 1958, o Movimento Folclórico conseguiu uma importante vitória ao obter a sua institucionalização como órgão autônomo do Ministério de Educação e Cultura. Este órgão, chamado de Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro (doravante CDFB), foi criado pelo presidente da República, Juscelino Kubitschek, e tinha como objetivo promover pesquisas, divulgar e preservar o folclore brasileiro (Cavalcanti e Vilhena, 2012). A Revista Brasileira de Folclore e a 2ª Série dos Cadernos de Folclore foram publicados no âmbito da CDFB. A Revista Brasileira de Folclore [doravante RBF] era uma publicação trimestral que reunia artigos de estudos de folclore, resultados das pesquisas de muitos estudiosos; reflexões sobre a disciplina folclore e formas de valorizá-la; homenagens a pioneiros e importantes artífices no campo dos estudos de folclore; notícias sobre assuntos relativos aos intelectuais estudiosos de folclore, à valorização da cultura popular, à instituição de prêmios para trabalhos sobre o folclore e à criação de museus que apresentassem a cultura popular; resenhas de livros e periódicos voltados para a antropologia e os estudos de folclore. Os Cadernos de Folclore em sua 2ª Série constituem-se de monografias variando de 16 a 80 páginas sobre expressões da cultura popular e do folclore. Alguns destes Cadernos, assim como os artigos de pesquisa da RBF apresentavam fotografias, partituras, glossários e coreografias. Entretanto, de forma diversa dos artigos da RBF, os Cadernos tinham também referências bibliográficas. Na diversidade de temas abordados nos artigos dos Cadernos e da Revista, um dos que sobressaiem é a busca das origens das expressões populares brasileiras. Neste aspecto pudemos observar que é sobretudo o interesse por expressões culturais que seriam de origem portuguesa e africana, não havendo artigos na RBF ou nos Cadernos que tratem de expressões populares indígenas. Em relação à busca de origens portuguesas encontra-se um interesse mais amplo pela relação com intelectuais portugueses, em que havia troca de publicações, correspondências e participações em congressos. Por parte dos portugueses havia a busca de continuidades culturais portuguesas no Brasil.

222

No Brasil, é sobretudo nos estados da região Sul que se procura efetivamente pesquisar quais seriam os indícios da origem cultural portuguesa nas expressões populares desta região. Dantas observa que embora intelectuais brasileiros de várias regiões tenham sido tocados pela ideia do branqueamento como solução para os problemas nacionais, no nordeste, devido ao maior contingente de negros, o interesse em encontrar uma positividade na herança africana (1982, p. 157) foi muito maior do que no sul, onde a ênfase passa a ser a busca de constituição de uma herança europeia. A cultura portuguesa, na visão dos estudiosos do folclore, é percebida como hierarquicamente superior às demais contribuições formadoras da cultura brasileira, e esta ideia aparece mesmo em artigos que tratam de influências africanas na cultura brasileira. No artigo “Formação do Folclore Brasileiro/Origens e Características Culturais” (RBF, nº 4, 1962), Diegues argumenta que a cultura brasileira é formada pelas correntes indígena, negra e portuguesa. Ele defende, contudo, que nenhuma destas três culturas é homogênea, e que as três são, por sua vez, formadas por diversas outras culturas. Assim, os africanos são bantos, nagôs; muitos são os grupos indígenas; também os portugueses do norte têm influências dos suevos, os do sul, dos mouros. Para Diegues Junior, no entanto, é indiscutível que a base da cultura brasileira é a portuguesa: “O folclore brasileiro é basicamente um produto dessas três correntes, sem que se possa esconder o alicerce fundamental em que assentou; e que foi, sem dúvida, o elemento português” (1962, p. 45). O autor aponta dois motivos pelos quais a cultura portuguesa é o fundamento: primeiro, porque ela seria a cultura mais adiantada; segundo, porque a sua religião, o cristianismo, criava uma unidade que permitia a plasticidade e a adaptação em qualquer lugariii (1962, p. 45). Embora houvesse essa crença comum na superioridade da cultura portuguesa e muitos artigos da RBF e dos Cadernos de Folclore façam considerações sobre a origem portuguesa ou ibérica de determinada manifestação cultural, o único artigo dedicado somente a influência portuguesa é “Traços da Cultura Portuguesa em Goiás – 1967” (RBF, nº 22, 1968), de Regina Lacerda. A professora Regina Lacerda, membra da Comissão Goiana de Folclore, trata do legado dos ex-votos, confrontando-os com traços similares pesquisados por Rocha Peixoto, estudioso português do século XIX. Por outro lado, encontramos nos cadernos e na Revista uma maior quantidade de artigos sobre expressões culturais de origem africana e sobre estudiosos do negro. Dos 41 números da RBF, há um número, a RBF 21, que é dedicado à temática da influência da cultura africana no Brasil. 223

Algumas das questões que permeiam os artigos deste número falam da natureza dessa influência: seriam elementos trazidos diretamente da África, ou elementos europeus ressignificados pelos escravizados africanos e seus descendentes? As áreas em que essa influência teria se exercido é abordada pelos autores. No artigo “Influências Africanas no Folclore Brasileiro” (RBF, nº 21, 1968), o autor Theo Brandão acha difícil a tarefa de definir “as influências do elemento afro-negro das manifestações folclóricas brasileiras” (RBF, nº 21, p. 129, 1968). Ele recorre a Arthur Ramos, que diz que, com o crescente processo de sincretização e aculturação, a definição de elementos tradicionalmente africanos se tornará tarefa cada vez mais difícil. Independente desta dificuldade, Brandão considera o trabalho importante. No entanto, segundo ele, muitos folcloristas interessam-se somente por teses funcionalistas e aculturacionistas, dedicando-se pouco à questão da gênese. O fator da escravidão limitou, na visão de Brandão, a possibilidade de o africano exercer influência cultural, pois esta estava, no Brasil, destroçada, atomizada, sem a primitiva integração que possuía nos seus habitats por força da violenta destribalização que sofreu e vem ainda sofrendo no Brasil. Para Brandão, é importante discutir a questão das origens dos folguedos, pois ele discorda de outros autores que enxergam origens africanas em diversos deles. Segundo Brandão, talvez a influência de Nina Rodrigues tenha sido responsável por esta visão “surgida para contrabalançar a anterior insistência do Romantismo no Índio e no Português, a ver africanismos, sobrevivências africanas, ou origens africanas em avultado número de manifestações folclóricas brasileiras, se não em todas as formas de cultura popular” (RBF, nº 21, p. 129, 1968). Brandão crê que os estudiosos que viam africanismos por toda parte estavam ignorando a superioridade da cultura portuguesa e sua influência sobre as culturas ameríndias e africanas. “Era, então, o desconhecimento do papel de uma cultura mais elaborada como a portuguesa e a força de coerção que essa cultura transplantada quase integralmente ao Brasil determinara nas culturas ameríndia e africana” (RBF, nº 21, p. 129, 1968). O artigo de Renato Almeida, “O Folclore Negro no Brasil”, busca traçar a influência africana em várias áreas da cultura: a música, a dança e as artes plásticas. Embora Almeida utilize o título Folclore Negro, o artigo trata muito mais da ideia de determinar as influências africanas na cultura brasileira do que propriamente de algo que se circunscreva à etnia negra. Já no início do artigo, ele fala do que inevitavelmente seriam as limitações para o pleno exercício de influência cultural por parte da etnia negra, uma vez que esta aportou ao Brasil

224

numa condição escrava. Neste sentido, ele compara a influência negra com a portuguesa, esta última considerada mais ordenada. O Negro se integrou no folclore brasileiro pelos folk-ways que carreou e pela adaptação com outros povos formadores da nacionalidade. Não foi uma contribuição tranquila nem ordenada, como em certos aspectos a portuguesa, mas intensa e confusa, a qual, dada sobretudo a sua condição de escravo, teria de cingir-se às variáveis condições do meio, onde era o elemento servil (RBF, nº 21, p. 105, 1968).

Tanto Almeida quanto Brandão acham difícil a tarefa de descobrir origens culturais africanas, dado o grau de sincretismo da cultura brasileira e o aculturamento do africano. Além disso, a maneira da entrada do africano no Brasil através da escravização dificultaria que este tivesse uma posição dominante capaz de impor maior influência cultural. Desta forma, tanto Renato Almeida como Brandão veem a influência negra como acréscimos à cultura portuguesa: é como se a base cultural fosse portuguesa e a influência africana efetuasse contribuições, porém não provesse a matriz. É o que depois fizeram os negros vindos da África. Nos reinados e nos autos que os portugueses lhes inculcaram, entraram eles com o seu modo particular de dançar, de cantar e de trajar, o que talvez tenha constituído a mais importante e duradoura influência dos africanos no folclore brasileiro (BRANDÃO, RBF, nº 21, p. 141, 1968).

Assim, Almeida e Brandão parecem de alguma forma circunscrever a influência africana apenas a determinadas áreas. Além disso, a questão não é apenas determinar o grau de influência da cultura africana, mas também seu tipo. Para estes autores, a cultura africana estabeleceu sua influência sobre uma base da cultura portuguesa, europeia. Na RBF e nos Cadernos de Folclore aparece a temática das origens das expressões culturais populares e a ênfase na superioridade da cultura portuguesa, embora efetivamente tenha um número expressivamente maior de artigos e cadernos que tratem de influências africanas ou expressões culturais populares praticadas por grupos negros e pardos. Em relação às expressões culturais indígenas embora haja a defesa por parte de Renato Almeida, fundador da Comissão Nacional de Folclore e diretor da CDFB entre 1964 a 1974, de que a cultura indígena também faz parte do folclore o que de fato se constata é a ausência de artigos que tratem de culturas indígenas. Como compreender a preocupação com as temáticas de origens culturais portuguesas e africanas nos artigos dedicados aos estudos de folclore? O que a ausência de estudos sobre expressões culturais indígenas nos revela? O interesse por expressões populares de origem africana nos estudos de folclore está intrinsecamente ligada à temática da formação da nacionalidade. Como analisa Schwarcz:

225

De fato, a interpretação racial, a constatação de que essa era uma nação singular porque miscigenada, é antiga e estabelecida no país. [...] Da constatação da hibridação em Von Martius à afirmação darwinista em Romero, para se chegar ao elogio à democracia racial com Gilberto Freyre, percebe-se como é arraigado o argumento de que o “Brasil se define pela raça” (1993, p. 247).

Vilhena (1997) fala do conceito de África no Brasil em sua análise das diferentes etapas do pensamento social brasileiro. Para o autor, a África, neste caso, é sobretudo metafórica na medida em que o interesse não é pela África tal como está geograficamente situada, e sim pelo legado da escravidão e pelos descendentes destes escravizados no Brasil e sua relação com a questão da identidade nacional (1997, p. 128). Dessa forma, o estudo do negro, ou a África nas ciências sociais, também se insere na construção da nação. Como visto, a ideia mítica de formação da nação brasileira pelas três raças presentes no cenário histórico da colonização continua presente em alguns autores estudiosos do folclore. Embora haja a crença difusa no lugar superior da cultura portuguesa na hierarquia do triângulo relacional das três raças formadoras, conforme indicou Roberto DaMatta (1981), a ideia é que todos teriam um lugar, ainda que de forma hierárquica. Numa hierarquia triangular, o branco estaria no vértice superior e o índio e o negro nos vértices inferiores. Nos dois lados do triângulo, os mestiços: os cafuzos (índio com branco), e os mulatos (negro com branco). Na base inferior do triângulo encontra-se o mameluco (índio com negro). Retomando esse triângulo interpretativo proposto por DaMatta, Vilhena considera que a importância dada pelo pensamento social brasileiro às relações entre brancos e negros seria maior do que a atenção conferida às relações entre brancos e índios. Vilhena retoma o sociólogo Florestan Fernandes para compreender o lugar do estudo das relações raciais nas ciências sociais. A partir da citação de Fernandes de que os Tupinambás seriam o ponto zero de nossa história, confirma-se a maior relevância do negro nas construções de representação da nação. O conflito racial, ao contrário, é algo que ocorria no interior da sociedade nacional, e que fala de seus dilemas mais cruciais. Como podemos ver, na tradição das Ciências Sociais brasileiras, a assimetria do triângulo racial não está somente na posição superior ocupada pelo branco (1997, p. 51).

Desta forma podemos compreender a ausência de artigos sobre expressões culturais indígenas justamente pelo interesse por parte dos estudiosos do folclore na temática da formação da cultura brasileira. Como postula Vilhena o índio não faria parte de dilemas cruciais da sociedade nacional. Portanto, ainda que os estudos de folclore reconheçam a cultura indígena como parte do folclore nacional, não há interesse em empreender pesquisas sobre este assunto.

226

Stocking, em seu artigo “Afterword: A view from the Center” (1982), discute a crise da chamada antropologia internacional no contexto pós-colonialista. Ele traz questionamentos tanto sobre a antropologia de longa tradição de alguns países quanto aquela de empreendimentos antropológicos mais recentes em outros países. A antropologia internacional seria assim a antropologia euro-americana, nascida junto com o imperialismo e definida pelo estudo do outro externo não europeu (STOCKING, 1982, p. 173). Num contexto pós-colonial, o acesso à alteridade tornou-se problemático na medida em que os grupos descritos como “primitivos” e “tribais” estavam sendo incorporados às nações emergentes (STOCKING, 1982, p. 175). Ao mesmo tempo, a antropologia periférica, desenvolvida seja em ex-colônias, cujos nativos foram foco de estudos antropológicos, seja em contextos metropolitanos secundários, teria como característica dominante a problemática da construção da nação. A alteridade, neste caso, é majoritariamente interna (STOCKING, 1982, p. 179). Por sua vez, Peirano (1981, 1991), ao analisar o desenvolvimento das ciências sociais no Brasil, procurou articular a produção de conhecimento ao contexto social em que é produzido. Tomando o sociólogo Florestan Fernandes como um dos casos de estudo, a autora indaga por que este não levou adiante a sua pesquisa realizada nos anos 1950 sobre a sociedade indígena Tupinambá no século XVI. Florestan Fernandes, como sabido, voltou-se nos anos 1960 para o estudo das relações raciais entre brancos e negros na sociedade brasileira e, com este tema, buscou desenvolver uma teoria sociológica “feita no Brasil”. A autora argumenta que esta virada de Fernandes do tema dos indígenas para aquele das relações raciais está relacionada ao compromisso geral das ciências sociais com o nation building. Esses tópicos são suficientes para mostrar como, de uma realidade como a dos índios Tupinambá, o interesse do autor redefiniu-se. Aqui, vemos Florestan Fernandes mergulhado não só em problemas contemporâneos da sociedade brasileira, mas vislumbramos, constantemente, uma apreciação dos mesmos vis-à-vis a uma realidade desejada e à expectativa de transformação do Brasil em uma sociedade integrada democraticamente. O exame da composição da sociedade brasileira em termos de castas (no período escravocrata do século XIX) e o posterior desenvolvimento em termos de classes sociais (na ordem competitiva do século XX) igualmente atestam a preocupação de Florestan Fernandes para com as “partes” que compunham/compõem a sociedade brasileira e, implicitamente para o “todo” que elas formam – o Brasil como nação (PEIRANO, 1991, p. 82; grifos nossos).

Em relação à etnologia também ocorre essa orientação quanto à problemática da construção da nação. Peirano analisa como a etnologia feita por antropólogos brasileiros era diferente daquela realizada por etnólogos estrangeiros que para cá vinham. Enquanto estes

227

últimos estudavam as comunidades indígenas como entidades isoladas da sociedade nacional, aqueles buscavam estudar as relações entre os indígenas e a sociedade nacional. Exemplar nessa direção seria a elaboração do conceito de fricção interétnica cunhado por Roberto Cardoso de Oliveira no Processo de Assimilação dos Terena (1960), justamente para dar conta do que seriam os conflitos entre os grupos indígenas e a sociedade mais ampla. Para este autor, tal conflito equivaleria ao da luta de classes (1991, p. 16) interna à sociedade de classes nacional. Para Peirano, a antropologia na década de 1950 feita no Rio de Janeiro também incorporou a temática da sociedade nacional. A antropologia não estuda mais apenas o exótico, o diferente, o que ideologicamente está além das fronteiras nacionais. [...] A sociedade nacional como totalidade se impõe também nesta disciplina e, daí, estamos a um passo da transformação do campesinato e de temas urbanos em objetos próprios à antropologia (PEIRANO, 1992, p. 87).

Desta forma vemos que no âmbito dos estudos de folclore também ocorre esta preocupação com a questão nacional, em sua via de formação da cultura brasileira. Por esse motivo podemos compreender que embora haja a defesa do índio como fazendo parte do folclore não há efetivo interesse neste. E muito embora haja a defesa da superioridade da cultura portuguesa, européia e branca, há efetivamente maior quantidade de artigos sobre influências culturais africanas ou expressões culturais de grupos negros. É possível, portanto, compreender este maior interesse pelas influências africanas justamente em seu víeis de miscigenação e contribuição para a formação da cultura brasileira.

Referências Bibliográficas ALMEIDA, Renato. O Folclore Negro no Brasil. Revista Brasileira de Folclore, nº 21, p. 105-118, Rio de Janeiro, CDFB/MEC, 1968. BRANDÃO, THEO. Influências Africanas no Folclore Brasileiro. Revista Brasileira de Folclore, nº 21, p. 129-142, Rio de Janeiro, CDFB/MEC, 1968. CAVALCANTI Maria Laura Viveiros de Castro; VILHENA, Luiz Rodolfo da Paixão. Traçando Fronteiras. Florestan Fernandes e a marginalização do Folclore. In:CAVALCANTI Maria Laura Viveiros de Castro (org.). Reconhecimentos: antropologia, folclore e cultura popular. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2012. DAMATTA, Roberto. Relativizando: Uma Introdução à Antropologia Social. Petrópolis: Vozes, 1981. DANTAS, Beatriz Góis. Vovô Nagô e papai branco: Usos e abusos da África no Brasil. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Unicamp, Campinas, 1982.

228

DIEGUES JUNIOR, Manuel. Formação do Folclore Brasileiro/Origens e Características Culturais. Revista Brasileira de Folclore, nº 4, p. 43-58, Rio de Janeiro, CDFB/MEC, 1962. FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. São Paulo: Global Editora, 2008. LACERDA, Regina. Traços da Cultura Portuguesa em Goiás. Revista Brasileira de Folclore, nº 22, p. 269-274, Rio de Janeiro, CDFB/MEC, 1968. PEIRANO, M. The anthropology of anthropology: the case of Brasil. PhD. Dissertation, Harvard University, 1981. . Uma antropologia no plural. Três experiências contemporâneas. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1992. REIS, Daniel. Entre arquivos e memórias: a respeito de uma narrativa audiovisual sobre a CDFB. Em busca da Tradição Nacional [1947-1964]. In: Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (org.). Encarte de CD. Rio de Janeiro: CNFCP, 2008. p. 7-24. SCHWARZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. STOCKING JR, George. Afterward: a view from the center. Ethnos, nº 47, 1982 VILHENA, Luís Rodolfo. Ensaios de antropologia. Rio de Janeiro: Editora Uerj, 1997. . Projeto e Missão: o movimento folclorista brasileiro (1947-64). Rio de Janeiro: Funarte/Fundação Getúlio Vargas, 1997.

i

Doutora em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do IFCS/UFRJ “Depois da criação da CDFB, em 1958, as Subcomissões, ligadas à Comissão Nacional de Folclore, passaram a ser chamadas Comissões, o que – no entender de Renato Almeida – favoreceria seu prestígio e a almejada capacidade de articulação junto aos órgãos do estado” (REIS, 2008: 14). iii Vemos em Diegues Junior uma nítida influência das ideias de Gilberto Freyre, expostas, entre outros textos, em Casa Grande e Senzala, do qual emerge a ideia do português como um cristão antes mesmo de ser um lusitano e de este fator ter contribuído de modo decisivo para a plasticidade e a adaptabilidade do português em terras estrangeiras (2008, passim). ii

229

A MODA E SUA CONSTRUÇÃO NA HISTÓRIA: EM BUSCA DE PERSPECTIVAS MENOS TOTALIZANTES Fashion and its construction in history: In search of less totalising perspectives Anamélia Fontana Valentim1 IFSC/UNISUL

Resumo: Este estudo compreende a moda como parte de um sistema que se amplia a todo momento, passando por sua materialidade até ultrapassar os limites do corpo. Nossa crítica e justificativa se baseia nas noções enraizadas que produzem uma história da moda baseada na forma, na temporalidade, na linearidade, na localização geográfica Ocidental, no consumo e na hierarquia. Ampliando assim o campo de percepção da moda, seus sentidos e potências. Palavras-chave: Moda; História; Imagem; Abstract: This study considers fashion as part of a system that is in continued expansion, through its materialism and exceeding the limits of the body. The critique and reasoning is based on the enrooted notions that yield a history of fashion that is based on shape, temporality, linearity, the West, consumption and hierarchy. Thus, expanding the field of perception of fashion, its senses and powers. Key-words: Fashion; History; Image; 1 CONTEXTUALIZAÇÃO E PROBLEMATIZAÇÃO

O ponto de partida para este estudo foi a percepção do potencial político da moda ao pensar os atravessamentos possíveis e as inúmeras formas de apresentar, analisar e considerar a moda sob uma perspectiva filosófica. Este breve recorte faz parte de uma pesquisa de doutorado em andamento e pretende especialmente a pensar a moda distanciandoa da ideia de efemeridade. Entendemos que o caminho para discutir qualquer inquietação inerente ao tema deve passar pelo questionamento de noções enraizadas da própria concepção de moda presentes na academia. Ao pensar a História da Moda como contada na literatura acadêmica percebemos um equívoco em reduzi-la a uma linearidade cronológica e/ou determinada localização espacial, principalmente se pensarmos na infinidade de estilos atuantes na atualidade e especialmente se pensarmos a moda além das formas presentes em sua materialidade. A ordem cronológica que encadeia e nomeia os períodos históricos, levando em consideração o estilo de vestir adotado pela época e determinando historicamente o início e fim de cada período, desconsidera as simultaneidades e as des/continuidades da moda ao longo da História e atualmente ao mesmo tempo, talvez por não perceber a política que habita a moda em toda sua dimensão. A moda como a percebemos neste estudo compõe 1

Doutoranda no programa de pós-graduação em Ciências da linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina/UNISUL Orientadora: Dra. Alessandra Soares Brandão. Professora no Instituto Federal de Santa Catarina/IFSC. E-mail: [email protected]

230

um sistema que se amplia a todo momento, compreende desde a criação das matérias-primas até o uso ou descarte do produto de moda propriamente dito. Porém, este caminho cheio de atravessamentos produzidos por fotografias, capas e matérias de revistas, vídeos, desfiles, usos, etc., também nos permite apreender a moda na sua dimensão política que ao ultrapassar o corpo para além do seu uso promove a sobrevivência seja como forma e estilo, seja como sentido político. É importante frisar a inegável relevância da história tradicional, no entanto, entendemos que em tempos onde se torna impossível perceber formas de vestir totalizantes, se torna imprescindível também promover novas formas de olhar que possibilitem um campo de visão mais significativo do ponto de vista das conexões que a moda estabelece e das permanências que sua política pode provocar. Política, no sentido descrito por Jacque Ranciere (2005), é o agrupamento de atividades que vêm confundir, embaralhar, perturbar a ordem por meio da inscrição de uma hipótese que lhe é inteiramente homogênea, ou seja, não foi percebida por meio de consenso ou ordem. O sentido de moda como imagem que tomamos para este estudo parte de um contexto histórico onde a moda não se limita a vestimenta e seu valor de uso, mas como imagem passa a ter valor de troca, destacamos dois momentos onde a moda se destaca como imagem, nas vitrines e nas fotografias de moda. Benjamin (2009) escreve sobre este período que a vitrine ganha destaque com a utilização de vidros e neste recorte de exposição é vista como imagem. Outro suporte que produz moda como imagem é a fotografia, já que por este meio pode ser inclusive materializada em papel. Ao destacar a moda como imagem, procuramos dimensões construtoras de significados que ao fazer parte da memória produzem história. Perceber estas dimensões nos faz problematizar a construção histórica da moda por meio de imagens ocidentais de posição hierárquica e determinadas por temporalidades lineares, desta forma menosprezando as sobreposições simultâneas de tempos que a moda promove no seu fazer criativo. O livro de João Braga e André do Prado (2011), juntamente com o documentário em DVD escrito pelo autores e dirigido por Tatiana Lohmannem (2011) que o acompanha nos mostram como as influências externas, sejam africanas ou europeias e as indígenas tornaramse autorreferências e este é mais um dos motivos pelo qual não podemos ignorar estas presenças, misturas e simultaneidades na história da moda, já que estas permanências nos mostram o que resiste na moda seja como forma ou sentido político. Se

considerarmos

as

simultaneidades

que

se

fazem

presentes

na

contemporaneidade onde muitas formas são possíveis ao mesmo tempo, especialmente em 231

relação a moda, a periodização é praticamente impossível, independente do critério. Formas de vestir coexistem em espaços e tempos impossíveis de determinar cronologicamente, não há fronteiras espaciais nem temporais. [...] nos tempos ainda da burguesia mercantil, as modas permaneciam muitas décadas, e até séculos, em voga antes de se tornarem inválidas. O mundo estava, ainda, muito distante da produção em série da indústria, mais ainda da indústria informatizada e robotizada. No século XXI, chegamos a um ponto em que ocorreram tantos ciclos de invalidação da moda de se vestir que esse processo chegou a um esgotamento. (BRAGA; PRADO, 2011, p. 19).

O esgotamento de que falam Braga e Prado (2011) relacionamos neste projeto ao fato de não ser possível, especialmente na contemporaneidade, identificar a totalidade dos ciclos de invalidação da moda e desta forma a história como é descrita, não abrangendo as simultaneidades. Quando falamos da contemporaneidade, estamos falando de uma forma de moda amplamente divulgada em inúmeras imagens por meio de sites de streetstyle , fotos de look do dia em blogs de todos os continentes, semanas de moda que acontecem em todas as principais cidades do mundo, etc. Nesta mistura a moda dissemina suas imagens e ideias e mais do que nunca pode estar em qualquer lugar e fazer referência a qualquer tempo.

2 MODA E SUA CONSTRUÇÃO NA HISTÓRIA

Nesta seção pretendemos elaborar uma breve crítica à noção de história da moda como apresentada nos livros, especialmente os utilizados nas escolas de moda. Um dos caminhos teóricos encontrados para expandir esta noção é contrapor a visão tradicional da história da moda aos conceitos de origem de Walter Benjamin, além de reconhecer o salto que Aby Warburg traz para o estudo da história por meio da análise de imagens sobreviventes. Todas estas inquietações nos servem para pensar as mudanças da moda como algo que não se apaga por completo. Cabe neste ponto tornar clara a diferença entre vestuário e moda a fim de evitar possíveis desentendimentos. O primeiro, segundo historiadores deu origem às formas de vestir modernas e surgiu com os povos do Mediterrâneo, gregos e romanos nos oito séculos que antecederam a era Cristã. Já a moda, além de ter local e data de nascimento definidos pela história tradicional como veremos a seguir, se diferencia do vestuário por ser muito mais abrangente, não se limitando ao vestir. Há moda em arquitetura, decoração, lugares a serem frequentados, ritmos musicais, design de objetos, tendência literária etc. Moda, porém, no que diz respeito ao hábito de cobrir o corpo com determinadas características visuais, é de fato uma maneira de ser, um modo de se vestir dentro do padrão vigente. Nem sempre houve, na História humana, o conceito de moda. (BRAGA, 2005, p. 35).

232

Se nem sempre houve o conceito de moda, qual a origem dele? Com natureza sazonal, conforme nos fala Braga (2005), a moda aparece na história como estratificadora social, diferenciando as pessoas entre classes, isso até mesmo antes do surgimento

do

conceito de moda situado pelos historiadores no final da Idade Média e início da Idade Moderna. Tida como diferenciador de sexo, também é entendida como fator resultante da procura da individualidade, fato relacionado à passagem da Idade Média para o Renascimento. Ressaltamos a principal característica associada à moda, a mudança que a mesma convoca sazonalmente, a permanente oposição entre o desejo do novo e a obsolescência destaca ainda mais o caráter de mudança constante, de todas as mudanças na moda a única que sobrevive é a própria mudança. Abordaremos a seguir a problematização da efemeridade, associada ao embate entre antigo e moderno, propulsor das mudanças na moda segundo o entendimento generalizado dos livros a seguir citados. Não temos a pretensão de neste breve recorte fazer um apanhado geral sobre a história da moda encontrada em livros, porém a crítica que fazemos se ancora neles para construção de um olhar mais desafiador e coerente com a atualidade do sistema da moda. A perspectiva utilizada por Warburg (2009, 2013) para pensar a história da arte de um modo não linear e centrado nas imagens nos serve de ponte para pensar os atravessamentos da moda com o mundo e além disso não nos permite totalizar ou nomear períodos. Os livros de moda, não apenas os de história da moda ou começam sua trajetória pelo século XIV ou no século XIX, este último em função do nascimento da Alta-Costura, e localizam a origem da moda na França. A bibliografia utilizada para esta breve apresentação é composta de livros de história da moda encontrados nas estantes de duas bibliotecas do sul de Santa Catarina, onde há ensino de moda nos níveis técnico e graduação. Neste momento é importante dividir os livros que abordam o vestuário como objeto e os que tratam da moda, ou seja, datam seu conteúdo partindo do final do século XIV. Em “História Ilustrada do Vestuário”, livro organizado por Melissa Leventon em 2009, a antiguidade é o ponto de partida, os trajes femininos e masculinos incluindo os acessórios são divididos por localidade abrangendo o Egito Antigo, todas as regiões da Europa, Ásia, África, Oceania e Américas finalizando no final do século XIX. De forma semelhante “História do Vestuário” de Kohler (2001), também inicia com os povos da antiguidade e se divide em períodos assim determinados, Egito; Creta; Grécia; Roma; Idade Média; Séculos XVI, XVII, XVIII, dividindo o século XIX aproximadamente em 1790-1820 e 1820-1870. Em “A evolução da Indumentária: Subsídios para criação de figurino” de Marie Louise Nery, a autora 233

começa sua abordagem também da pré-história mais precisamente da Mesopotâmia e Egito e fixa sua análise especificamente na Europa até os anos 80 do século XX. Porém, as divisões feitas no sumário propõem uma “evolução” da moda com títulos associados aos movimentos artísticos. No sentido moderno do termo, a moda afirma-se na segunda metade do século XIX. Entretanto, nem todos os elementos que a constituem são novos. O que há de novo é o sistema de produção e difusão, sistema que funcionará regularmente por um século. (SORCINELLI, 2008, p. 53).

Esta colocação se faz importante para entender porque mesmo com data de nascimento estimada em meados do século XIV, a moda dos livros percebe a moda mais atuante na vida das pessoas somente no final do século XIX, no entanto, esta atuação relaciona-se especialmente à informação de moda divulgada e imposta pela Alta-Costura por praticamente cem anos. Nos livros brevemente selecionados, desta vez de história da moda, temos basicamente dois inícios: com ponto de partida no século XIV ou na transição entre o século XIX e XX. Um dos pontos em comum une todos os livros verificados, a divisão do século XX em décadas e a origem Ocidental de todas as modas. Em “A moda do Século XX, Mendes e La Haye (2003), dividem o livro em décadas não exatas, mas relacionadas e nomeadas conforme o contexto da época. Em outro livro, “Moda do Século” de Baudot (2002), as divisões feitas nos capítulos também se inserem no contexto do período, dando destaque para os estilistas mais importantes para a moda em cada década. No mais atual dos livros analisados, “Histórias da Moda” do Francês Grumbach (2009), o ponto de partida é a AltaCostura, e sua divisão principal se dá entre ela e o Prêt-à-Porter. Partindo desta pequena apresentação dos livros de história da moda, especialmente de sua organização no tempo destacamos alguns pontos inquietantes e que nos levam aos porquês da pesquisa aqui sucintamente apresentados. Primeiramente, a origem do conceito de moda, localizada no século XIV e a origem da própria moda. Independente da época ou dos motivos que são entendidos como determinantes para o nascimento da moda, as roupas sempre foram estratificadoras sociais, as cores, os tecidos, o corte, o volume e as técnicas empregadas na confecção denunciavam quem eram os portadores do poder. Sendo assim, entendemos que o interesse por moda nas sociedades talvez esteja no desejo de dominar este poder. Ao observar a origem da moda sob a ótica tradicional, que encontra um começo, determina períodos e os nomeia, o que isso nos diz sobre a própria moda? Na pretensão de problematizar o assunto percebemos uma conexão com a crítica de Walter Benjamin (2013a), para o autor os historiadores de 234

tradição

historicista possuem uma empatia pelo vencedor, alimentando desta forma a imagem dos antepassados oprimidos, ignorando o ideal de descendentes livres. [...] em cada momento, os detentores do poder são os herdeiros de todos aqueles que antes foram vencedores. Daqui resulta que a empatia que tem por objeto o vencedor serve sempre aqueles que, em cada momento, detêm o poder. (BENJAMIN, 2013a, p. 12).

E a história da moda, não foi sempre a dos vencedores? Para desenvolver essa questão podemos considerar que sua existência não se localiza apenas na figura dos renomados criadores de moda, mas também no trabalho anônimo de quem a produz e no uso, além disso essa opção por um dos lados da história desconsidera a potência que produz o que foi suprimido da história. Outro ponto de questionamento é a divisão datada de moda e a fonte de seu surgimento, quase sempre europeu. Adotando o conceito de origem também de Benjamin, entendemos a origem, não como sinônimo de nascimento, mas na atuação de várias forças em movimento que norteiam as pessoas criando uma possível conexão. “A origem, portanto, não se destaca dos dados factuais, mas tem a ver com a sua pré e pós história.” (BENJAMIN, 2011, p. 34). Apesar de ser uma categoria histórica, entendemos que a origem pode ser considerada como processo, não é possível fixá-la, o autor em questão ao tratar filosoficamente da dialética indissociável à origem encontra nela duas “linhas-mestras”, uma condicionante da outra, são elas a unicidade e a repetição. Caberá ao andamento desta pesquisa, de pretendido caráter filosófico, estabelecer as conexões ou agenciamentos entre elas buscando as linhas de fuga que permitiram e permitem sua sobrevivência como potência política. Este ponto nos ajuda a pensar a moda além da binaridade existente entre novo e velho e que determina sua característica efêmera, nos permite pensar também a resistência não relacionado-a a ideia binária de contraposição direta à sociedade de controle ou no caso da moda de negar-se à efemeridade, tida como sua principal característica. Porém, o olhar que pretendemos sobre a moda não a percebe somente na efemeridade das formas, cores, matérias, etc., a moda que produz imagens políticas utiliza suas próprias materialidades e agenciamentos como forma de dar visibilidade a questões que resistem na medida que sobrevivem como potência política para a origem do que muitas vezes é tido como novo. Segundo Benjamin (2011) toda origem deve demonstrar autenticidade para ter direito ao que ostenta, em tempos de facilidade de informação e sobretudo de reprodução, ambos globalizados, como é possível localizar no tempo e espaço o início e o fim, bem como determinar a origem de uma moda?

235

Ao olhar para a moda, como contada nos livros que brevemente apresentamos, não poderíamos pensar que o ponto de partida que a localiza no século XIV seria apenas mais um dos re-começos da moda? A quem interessou perceber a moda apenas deste ponto? Neste momento nos ancoramos no conceito de história defendido por Walter Benjamin buscando pressupostos teóricos para desafiar o estado de exceção que condiciona a história a seguir um percurso linear e tendencioso do ponto de vista que é contada. Em O Anjo da história (BENJAMIN, 2013a), nos apresenta o materialismo histórico e sua diferença em relação ao historicismo. A grande crítica do autor no texto, que faz parte do primeiro capítulo do livro, paira sobre os acontecimentos históricos e a forma como são descritos. As primeiras inquietações que o autor lança relacionam-se ao fato da história ser sempre a da vitória e dos seus sujeitos vencedores. Para Benjamin não há diferença entre grandes e pequenos acontecimentos, por isso considera que não há documento de cultura desvinculado de barbárie. O materialista histórico, portanto, para “escovar a história a contrapelo” (BENJAMIN, 2013a, p. 13), deve se afastar da tradição historicista que considera o processo histórico pelo viés do vencedor. Perceber a história por essa ótica nos trouxe uma visão histórica que ignorou todos os agenciamentos que atravessavam esta linha “vencedora” e que desqualificou todos os sujeitos e acontecimentos provenientes de quem não detinha o poder. Perceber esta história tradicional como tendenciosa é talvez o primeiro passo para pensar uma história contada de forma que escapa aos limites, cabe ressaltar que não nos interessa e nem seria possível, dar conta da história da moda em sua totalidade, isto iria inclusive contra a abordagem que considera as multiplicidades históricas. Benjamin nos leva a pensar a moda e sua história saindo da noção de lugar e partindo para a noção que entendemos se tratar de um espaço rizomático, ampliando nosso horizonte de percepção também pela possibilidade de potencia política que encontra em objetos desvalorizados cientificamente e ligados à lógica capitalista, como acontece com a moda e o cinema por exemplo. A exclusão que a história da tradição fez dos oprimidos, chamada por Benjamin (2013b) de “estado de exceção” é a regra na qual vivemos. O conceito de história que Benjamin convida a criar deve levar em conta esse “estado de exceção”, para então podermos provocar este mesmo estado. A moda está em movimento constante porque sempre anseia o futuro e paralelamente utiliza o passado como referência nostálgica. Pensando assim o presente da

236

moda é de difícil apreensão, nenhuma forma de totalização ou nomenclatura que cerque um período do tempo será capaz de superar o “estado de exceção” da qual fala Benjamin (2013b). Ao entender e pensar a história de forma rizomática, considerando seus inúmeros agenciamentos, nos distanciamos da ideia de um tempo “vazio e homogêneo, mas nos aproximamos de um tempo preenchido pelo Agora (Jetztzeit).” (BENJAMIN, 2013a, p. 18). Para o materialista histórico, segundo Benjamin (2013a) o tempo presente deve sempre ser uma passagem, ao contrário de propor uma imagem “eterna” do passado, este deve ser uma experiência única. Só assim é possível destruir o contínuo da história. Colocar em crise as imagens de moda é afastá-la da ideia de simples progressão, mais que isso é conectálas a outras imagens que permitem provar e perpetuar a re-existência da moda através de sua política.

3 EM BUSCA DE POSSIBILIDADES: A PERSPECTIVA WARBURGUIANA

Dentre os períodos históricos tradicionalmente apresentados onde considera-se a presença da moda atuando na mudança do vestuário, ou seja, após o século XIV, destacamos um período que coincide com a criação da alta-costura e que foi fundamental para o entendimento de moda como imagem, a consolidação do capitalismo no século XIX. É de fundamental importância este entendimento uma vez que entendemos ser a perspectiva warburguiana um caminho possível para uma diferente proposta de olhar para a moda na contemporaneidade. Para Aby Warburg as imagens da história se revelam como constelações, que ao surgir criam uma rede de significados dentro de determinada sociedade ou tempo. Pretendemos nesta seção abordar alguns aspectos da obra de Aby Warburg que nos servem de possibilidade para pensar a moda num sentido expandido e desta forma entendê-la como movimento contínuo. A perspectiva fantasmal da imagem encontrada em Warburg (2009) nos permite desenvolver associações que ultrapassam os limites da história tradicional da moda. “O pensamento warburguiano abala a história da arte porque o movimento que abre nela constitui-se de coisas que são, ao mesmo tempo, arqueológicas (fósseis, sobrevivência) e atuais (gestos, experiências).” (MICHAUD, 2013, p. 25). A perspectiva de Warburg (2009), especialmente no atlas mnemosyne, era a produção de uma história sem texto verbal. Para tanto, reunia em quadros várias imagens de produções com finalidades e suportes diversos, com o propósito de produzir sentidos contínuos por meio da análise destas representações, que para o autor são formadoras da memória. 237

A tradicional história da arte ainda hoje sustenta-se na linearidade do tempo e nas divisões em etapas cronológicas, noções estas relacionadas à ideia de progresso fundada no Eurocentrismo. Nossa proposta de perspectiva entende que essas

características

centralizadoras e de noção evolutiva apresentada pela história da arte fazem luz à noção de moda ditada e datada e desta forma tornam-se restritivas para o estudo coerente da contemporaneidade e da dimensão da moda. Autores consagrados no universo recente dos estudos sobre moda, como o filósofo Francês Lipovetsky (1989, p. 25), que inclusive elabora uma nova divisão, entende que “a moda exige que se saia da história positivista e da periodização clássica em séculos e decênios, caras aos historiadores do vestuário.” Na busca por uma perspectiva de olhar rizomático, ou seja, sem fronteiras espaciais ou temporais sobre a moda, encontramos o método Warburguiano de pensar a história da arte e este se destaca pela enfâse dada à imagem em sua construção historiográfica. Didi-Huberman no prefácio do livro de Michaud (2013, p. 19) nos fala do caminho que o olhar de Warburg pode trazer para a história e que conecta os tempos de forma a produzir conteúdo. “[...] num saber-movimento das imagens, um saber em extensões, em relações associativas, em montagens sempre renovadas, e não mais um saber em linhas retas, em corpos fechados, em tipologias estáveis”. Desta forma, é desafiador e oportuno elaborar um conceito de moda que escape às ordens do efêmero como princípio motor. A ideia de novo tão presente na moda a rotula como império do efêmero e imobiliza suas dimensões possíveis e criadoras, seja na produção ou na academia, seja na política que promove. A percepção do potencial que uma perspectiva baseada em imagens pode trazer para a construção de uma história da moda mais fluída e problematizadora, nos permite olhar a moda como um espaço que dá condições de se praticar filosoficamente a criação, a subversão a partir de seus próprios equívocos, reconhecendo sua potência, desenvolvendo subversões da moda pensadas como ato de criação, uma atitude positiva não condicionada a uma oposição e sim como estímulo a invenção de novas armas.

REFERÊNCIAS BENJAMIN, Walter. O anjo da história. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013a. . A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica. In: . Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 2012. (Obras Escolhidas, v. 1). . Origem do drama trágico alemão. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011. 238

. O capitalismo como religião. São Paulo: Boitempo, 2013b. . Passagens. Belo Horizonte: UFMG, 2009. BAUDOT, François. Moda do século. São Paulo: Cosac Naify, 2002. BRAGA, João. Reflexões sobre a moda. São Paulo: Editora Anhembi Morumbi, 2005. v.1. . História da moda: uma narrativa. São Paulo: Editora Anhembi Morumbi, 2009. CALANCA, Daniela. História social da moda. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2008. GRUMBACH, Didier. Histórias da moda. São Paulo: Cosac Naify, 2009. HISTÓRIA da Moda no Brasil: das influências às auto-referências. Dir: Tatiana Lohmann. 2011. (documentário). KOHLER, Carl. História do vestuário. São Paulo: Martins Fontes, 2001. LEVENTON, Melissa. História ilustrada do vestuário: um estudo da indumentária do Egito antigo ao final do século XIX. São Paulo: Publifolha, 2009. LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Companhia das letras, 1989. MENDES, Valerie; LA HAYE, Amy de. A moda do século XX: 280 ilustrações, 66 em cores. São Paulo: Martins Fontes, 2003. MESQUITA, Cristiane. Moda contemporânea: quatro ou cinco conexões possíveis. São Paulo: Anhembi Morumbi, 2004. MICHAUD, Philippe-Alain. Aby Warburg e a imagem em movimento. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013. NERY, Marie Louise. A evolução da indumentária: subsídios para criação de figurino. Rio de Janeiro: Senac Nacional, 2007. RANCIERE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Ed. 34, 2005. SORCINELLI, Paolo (Org.). Estudar a moda: corpos, vestuários, estratégias. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2008. WARBURG, Aby. A renovação da antiguidade pagã: contribuições científico-culturais para a história do Renascimento europeu. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013. . “Mnemosyne”. Arte & Ensaios, n. 19, 2009.

239

A Inconfidência Mineira e a Era Vargas: valorização de um movimento histórico e de seus artífices

André Barbosa Fraga Doutorando UFF [email protected] Resumo: Ao longo do governo Vargas (1930-1945), houve um investimento no fortalecimento de um nacionalismo, que chegou ao ápice durante o Estado Novo. Com base nisso, procuramos analisar as políticas culturais desenvolvidas pelo Ministério da Educação e Saúde para valorizar a Inconfidência Mineira e heroificar os envolvidos nesse movimento. No entanto, apesar de tal valorização, o período é marcado por versões distintas sobre a Inconfidência, que rivalizavam com a que estava sendo construída pelo governo Vargas, possibilitando o aparecimento de batalhas de memória. Palavras-chave: Inconfidência Mineira; Governo Vargas; Memória.

Abstract: During the Vargas government (1930-1945), there was an investment in the strengthening of nationalism, which reached its peak during the “Estado Novo”. Based on this, we seek to analyze the cultural policies developed by Ministry of education and health to enhance the “Inconfidência Mineira” and become heroes involved in this movement. However, although this valuation, the period is marked by different versions of the “Inconfidência”, that rivaled that was being built by the Vargas government, enabling the emergence of memory battles. Keywords: Inconfidência Mineira; Vargas government; Memory.

O governo Vargas e os heróis da luta pela liberdade do Brasil Ao longo do governo Vargas (1930-1945), houve um investimento no fortalecimento de um nacionalismo de teor cívico-patriótico, que chegou ao ápice durante o Estado Novo. Isso ocorreu principalmente por causa da chamada Intentona Comunista. Para estimular na população o amor pelo Brasil era preciso fazê-la conhecer o país, seu passado histórico e os “grandes homens” que o habitaram. Dentro desse projeto, que foi gestado principalmente por Gustavo Capanema, a Inconfidência Mineira ganhou papel de destaque. Uma das primeiras medidas de valorização da Inconfidência ocorreu em 1936, com a iniciativa de repatriar os despojos dos inconfidentes mineiros1. Tal iniciativa partiu do escritor

240

Augusto de Lima Júnior2, sendo recebida com entusiasmo pelo ministro da Educação e Saúde Pública, Gustavo Capanema. Por causa disso, Getúlio Vargas assinou, em 21 de abril de 1936, o Decreto n°. 756 A, que autorizou a exumação dos restos mortais e a transladação para o Brasil das cinzas dos inconfidentes, que estavam na África, concedendo àqueles heróis, mortos no exílio, o louvor de repousarem em terras brasileiras. Ainda segundo o decreto, ficava sob responsabilidade do Ministério da Educação e Saúde Pública, em associação a dois outros, o das Relações Exteriores e o da Marinha, providenciar o que fosse necessário. Além disso, os artigos 2° e 3° informavam, respectivamente, que caberia à cidade de Ouro Preto, Minas Gerais, guardar os despojos que seriam depositados em monumento a ser construído, e que o Ministério da Educação e Saúde Pública comprometia-se a fazer a publicação dos autos do processo da Inconfidência Mineira. Coube a Augusto de Lima Júnior ficar encarregado dessa missão. Ele dirigiu-se, assim, a Portugal, uma vez que as ossadas e as cinzas dos inconfidentes jaziam em terras coloniais daquele país, e passou a acompanhar as autoridades portuguesas na exumação dos restos mortais dos inconfidentes, certificando-se da absoluta veracidade do processo. Ou seja, a dimensão simbólica de autênticas relíquias, de objetos capazes de ligar o visível ao invisível – no caso à própria ideia de luta pela liberdade do povo brasileiro – foi um cuidado constante e nada ingênuo. Finalizando os trabalhos, em novembro de 1936, o balanço era animador. Como podemos acompanhar por meio do termo de entrega dos autos de exumação e das urnas contendo ossadas e cinzas dos inconfidentes3, produzido pelo governo português e oferecido, no dia 26 daquele mês e ano, ao Delegado do governo brasileiro, foram encontrados doze restos mortais. Em dezembro do mesmo ano, disponibilizaram-se, ainda, o auto de exumação e a urna que abrigava as cinzas de mais um inconfidente identificado, totalizando treze. Todos os despojos haviam sido localizados em igrejas situadas nas colônias de Angola e Moçambique4. Terminado o processo de buscas, era preciso iniciar os preparativos para o retorno triunfal ao Brasil. Optou-se por desembarcar as ossadas e as cinzas na capital, o Rio de Janeiro, e só depois decidir como elas seriam levadas para Ouro Preto. Em 24 de dezembro de 1936, chegou ao Rio de Janeiro o navio brasileiro Bagé, que trazia os restos mortais daqueles heróis. Dois dias depois, representantes do estado de Minas Gerais dirigiram-se à embarcação para depositar sobre as urnas funerais a bandeira mineira, ocorrendo vários discursos, entre os

241

quais o de Augusto de Lima Júnior, que agradeceu o apoio recebido do governo português. Coincidindo com esse cerimonial, o Ministério da Educação e Saúde Pública distribuiu nas livrarias os três primeiros volumes do livro Autos da Devassa da Inconfidência Mineira, produzidos em associação com a Biblioteca Nacional, reunindo a documentação relacionada ao processo, conforme se havia comprometido. Em julho de 1937, dando prosseguimento à iniciativa de editar esse conjunto de documentos históricos, o agora denominado Ministério da Educação e Saúde5 lançou o seu 5º volume6. Os inconfidentes voltavam, e a história deles, com tais publicações, poderia estar ao alcance de todos, estudiosos e cidadãos em geral. No dia do desembarque das ossadas e cinzas, 27 de dezembro, o próprio presidente compareceu ao Armazém n°. 4, no cais do Porto. Uma banda de música da Polícia Militar executou o Hino Nacional. Os despojos foram solenemente entregues ao chefe de Estado, que prometeu que o Brasil guardaria com orgulho o “corpo” dos inconfidentes. Dando prosseguimento ao evento, as urnas foram desembarcadas e transportadas pela oficialidade do Bagé aos carros que fariam o translado. Em seguida, o cortejo saiu da Praça Mauá com destino à Catedral Metropolitana, onde as cinzas ficariam depositadas em exposição pública. Ao longo de todo o percurso, segundo os jornais de época, reuniram-se centenas de pessoas. O retorno triunfal dos restos mortais dos inconfidentes estava sendo considerado um acontecimento de importância nacional e, portanto, era não só preferível, mas necessário que pudesse ser visto por todos os brasileiros, e não apenas por uma parte da população do Rio de Janeiro. A estratégia utilizada pelo governo, para tornar esse momento visível a todo o país, foi a de “eternizá-lo” por meio da produção de um filme, que poderia ser distribuído a diversas salas de cinema do Brasil. O documentário, em Curta-metragem, Os Inconfidentes, de dezembro de 1936, elaborado pelo INCE7, foi rodado em 35 mm e teve a direção de Humberto Mauro8. Na Catedral, as urnas foram colocadas na nave central. Porém, até esse momento, os inconfidentes haviam cumprido apenas uma parte de sua peregrinação, restando chegar ao destino final: Ouro Preto. O Jornal do Brasil anunciou que em poucos dias os restos mortais seriam levados a Minas Gerais9. No entanto, o tempo de transferência foi bem maior do que se esperava. Apenas no dia 15 de julho de 1938, um ano e meio após o ritual de chegada ao Brasil, Ouro Preto receberia seus filhos ilustres.

242

A solenidade se inicia com as urnas sendo transportadas em trem especial do Rio de Janeiro para Ouro Preto e depositadas na Igreja Matriz de Antonio Dias. Cristiano Machado aproveitou a ocasião para proferir um discurso, do qual reproduzimos um trecho: Imortalizaram-se. São, pois, os nossos símbolos. Não os discutamos. Cultuemos a sua memória na memória eterna de seus feitos. Infelizes dos povos que os não tenham e vivam apenas no túmulo material da existência, sem atentar nas lições que os fatos históricos despertam à contemplação das gerações futuras. E o episódio histórico, marcante por excelência em nossa vida coletiva é a Inconfidência, porque todo ele, desde a ideia nascente até o holocausto heróico que culminou na Praça da Lampadosa, e o degredo de que estamos fazendo, com estas cinzas, a hora nacional de exaltação cívica, tem o sentido da Nação Brasileira10.

Mais uma etapa cumprida, pois os restos mortais permaneceram naquela igreja até o dia 21 de abril de 1942, quando enfim foi inaugurado o Museu da Inconfidência 11 e nele instalado o panteão dos inconfidentes. No local havia 14 lápides funerárias, sendo 13 ocupadas pelas ossadas e cinzas trazidas da África; e uma, mantida vazia, para representar os integrantes do movimento cujos corpos não foram encontrados. A tentativa de aproximar os dois corpos do herói nacional, por meio de várias ações promovidas pelo governo, visou a despertar nos brasileiros o apego à nacionalidade e à própria Pátria. Enfim, o governo Vargas, principalmente através do ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema, em seu projeto de valorização de personagens históricos ligados à Inconfidência e de reforço à construção da memória da Inconfidência, empregou, principalmente a partir de 1936, as seguintes medidas: • O repatriamento dos restos mortais dos inconfidentes • A publicação dos Autos da Devassa, contendo parte dos documentos reunidos em torno do processo judicial elaborado contra os inconfidentes. • Construção do Museu da Inconfidência. • Informações a respeito da vida dos inconfidentes foram buscadas e cuidadosamente averiguadas12 • As atividades em torno das comemorações do 21 de abril expandiram-se e diversificaram-se sob o controle atento do governo.

Tiradentes para além dos inconfidentes

243

No entanto, embora existisse o interesse de se valorizar, de um modo geral, todos os envolvidos na Inconfidência Mineira, havia um personagem, em particular, cujos esforços de glorificação se sobrepunham aos demais: o Tiradentes. O governo Vargas deu continuidade a um projeto de culto iniciado pelos propagandistas do regime republicano, ainda durante o 2° Império, quando, por exemplo, inúmeros Centros Republicanos chamavam-se Tiradentes. Esse culto foi intensificado após a Proclamação da República, que o elegeu como o mártir e a principal figura inspiradora do movimento sedicioso. Sua imagem era continuamente cultivada nas escolas, e o dia 21 de abril comemorado como uma das maiores datas cívicas da nação, sendo Tiradentes o grande herói da Pátria, na medida em que se confundia/era com/como a bandeira ou o Hino Nacional, uma representação simbólica da própria República. Tendo em vista colocar em prática esse projeto de promoção da memória de Tiradentes, o Ministério da Educação e Saúde empregou uma série de políticas culturais que mobilizavam e abrangiam diversas áreas e órgãos subordinados a ele. Um exemplo desse tipo de investimento encontra-se na dramaturgia. Peças de teatro de caráter pedagógico, explorando temas históricos, foram uma grande novidade do final da década de 1930, das quais Tiradentes. Comédia histórica em três atos e sete quadros, de Viriato Corrêa13, é um dos melhores representantes14. Sob o patrocínio do Serviço Nacional de Teatro do Ministério da Educação e Saúde, foi encenada pela primeira vez no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, no dia 16 de novembro de 1939, como parte do programa das Comemorações do quinquagésimo aniversário da República. Nessa peça, que foi um entre os vários instrumentos utilizados para a maior divulgação da história de Joaquim José da Silva Xavier, o caráter de cada personagem é apresentado de maneira específica: Tiradentes era o mais entusiasmado com o movimento sedicioso, aparecendo como destemido, sincero, ativo, sonhador, revolucionário e disposto a morrer pela liberdade, mantendo a proximidade com a imagem de Jesus Cristo; Joaquim Silvério dos Reis era o interesseiro, o traidor, sendo comparado a Judas; e os outros inconfidentes foram construídos como pessoas fracas e desprovidas da capacidade de lutar até o fim, no que diferiam e se inferiorizavam a Tiradentes15. É importante notar que Gustavo Capanema, para além das medidas oficiais empregadas, estava atento ao efeito multiplicador que elas poderiam desencadear, ao incentivar outras iniciativas que, mesmo sem seu patrocínio, seguiam a direção propagada pelo Ministério da Educação e Saúde, no que se referia às formas de caracterização da figura desse herói maior. Capanema fazia questão de reconhecer e estimular todos os tipos de ações que fortalecessem e expandissem o culto a um determinado herói, em especial Tiradentes.

244

O

ministro, por exemplo, chega a enviar um telegrama de felicitação a Antonio dos Santos, parabenizando-o por sua iniciativa em propor a seus colegas bacharéis da Faculdade de Direito da Universidade de Minas Gerais o nome de Tiradentes como figura homenageada para paraninfo da turma de formatura no ano de 1943, ideia que, aliás, tinha sido unanimemente aceita16. Na verdade, uma das poucas iniciativas de celebração da imagem de Tiradentes realizadas no Estado Novo sem o envolvimento de Gustavo Capanema foi a publicação pelo DIP do livro Tiradentes17, de Luciano Lopes, que integrava a coleção “Vultos. Datas. Realizações”, produzida em 1944 e 1945. Dessa maneira, o uso constante da figura de Tiradentes pelo Estado Novo pode ser explicado pelo fato de que foi possível reunir em torno desse personagem muitos dos valores destacados pelo regime, como o desapego aos interesses individuais e a doação aos ideais coletivos, entregando a própria vida para salvar seu projeto e o dos demais companheiros. Tiradentes aparece, assim, também como um representante da índole pacífica e do espírito grandioso do brasileiro, ao aceitar a morte em razão da Pátria. Além disso, Tiradentes passou a ser de extrema importância após o surgimento da 2ª Guerra Mundial e, principalmente, com a entrada do Brasil neste conflito. Novamente, a preocupação era com a defesa nacional, estimulando-se a busca por precursores desses valores, o que trazia a luta de Tiradentes por liberdade, no século XVIII, para a ordem do dia. Ele seria o melhor exemplo de amor patriótico, mesmo que, em sua época, o Brasil ainda estivesse longe de se constituir enquanto nação. Sua inabalável virtude cívica seria, em tempos de guerra, um símbolo e uma inspiração, a fortalecer o espírito dos brasileiros frente ao conflito mundial. Por fim, essa figura é lembrada como um dos personagens históricos que mais contribuíram para a defesa nacional, ao ousar libertar o Brasil da metrópole portuguesa. Com a entrada do país na Segunda Guerra, em agosto de 1942, a proteção à liberdade torna-se a grande bandeira contra o fascismo, e Tiradentes é reverenciado como um dos primeiros a lutar e morrer por ela, servindo como forte elo de ligação entre o passado e o presente. Em meio a uma luta decisiva para a preservação da liberdade e dos direitos do homem no mundo, a memória de Joaquim José da Silva Xavier alcançava os corações de todos os patriotas, fazendo brotar neles os mais fortes sentimentos de brasilidade.

245

Batalhas de memória em torno da Inconfidência e de Tiradentes Embora o governo procurasse valorizar a Inconfidência e o Tiradentes, outras versões coexistiram a essas: • A Inconfidência não teria sido um movimento importante para a história do Brasil. Capistrano de Abreu nega a importância de tal movimento. Para ele, como a tratou-se de um movimento que não chegou a se efetivar, que não passou de simples confabulações, a Inconfidência seria inexpressiva do ponto de vista histórico18. • Tiradentes não foi uma figura importante. A historiografia da época já ressaltava a importância de outros inconfidentes e a posição secundária do alferes no decurso da conspiração. Dessa maneira, a valorização dessa figura histórica também encontrou alguns obstáculos e oposições. Nesse sentido, as discussões envolvendo o projeto de criação e organização da Juventude Brasileira19 são um campo fértil para acompanharmos uma batalha de memória ocorrida durante o Estado Novo em torno da figura de Tiradentes, ao permitir o acesso a visões distintas sobre seu papel e importância no episódio da Inconfidência. No final de 1939, após o projeto original de criação da Organização Nacional da Juventude, elaborado por Francisco Campos, ter passado por reformulações, inclusive com a entrada de Capanema nas discussões, o ministro da Educação e Saúde submeteu à apreciação de Vargas a versão mais recente desse projeto. Ao atentarmos para o conteúdo do documento, vemos como Capanema aproveitou essa oportunidade para investir no culto a Tiradentes, estabelecendo, no artigo 4 do capítulo I, que a Juventude Brasileira adotaria como data oficial de sua festa o dia 21 de abril, “em que se recorda a figura de Tiradentes, paradigma de grandeza humana, no propósito, na ação e no sacrifício”; e, no artigo 37 do capítulo VI, que a Juventude Brasileira faria, a cada ano, duas formaturas gerais, realizadas por ocasião das grandes festas nacionais, “a) no dia 21 de abril, em comemoração do sacrifício de Tiradentes; b) no primeiro sábado ou no primeiro domingo de setembro, em comemoração

da

independência do Brasil”20. O ministro da Educação e Saúde recebeu de várias personalidades, como Gustavo Barroso, padre Leonel Franca e Osvaldo Cordeiro de Farias, pareceres críticos sobre o seu projeto, sugerindo a modificação de alguns pontos. O interesse aqui, em meio a tantos registros encontrados no arquivo Capanema, reside em um comentário, sem identificação, escrito nos primeiros dias de janeiro de 1940, que sugere, entre outras, a seguinte alteração:

246

O art. 4° não me parece defensável. Esse 21 de Abril é uma data sem significação, e o Tiradentes um herói muito pouco imponente e de pouca exemplaridade. Creio que seria de bom aviso procurar um herói jovem, pouco conhecido, mas acerca de quem se pudesse criar uma lenda verdadeiramente interessante21.

Em função da crítica, Capanema informa ao presidente, em 15 de janeiro de 1940, até aceitar suprimir o artigo em questão, deixando a Juventude Brasileira de ter uma data própria para a sua festa, ainda que não concordasse com os argumentos utilizados, pois em sua opinião: [...] o 21 de abril não é uma data sem significação. É uma data gloriosa, cheia de beleza e de força, e que marca na história do Brasil o real início da independência e da República. É também injustificável dizer que Tiradentes é um herói pouco imponente e de pouca exemplaridade. Tiradentes é ao contrário uma das mais impressionantes e exemplares figuras não só de nossa história, mas de toda a história humana, pelo seu critério, pela sua clarividência, pela sua capacidade de atuar e dirigir, pela sua coragem, pela sua resistência física e moral, pelo seu espírito de sacrifício e enfim pela sua bravura na tragédia que envolveu e ensangüentou a sua vida. [...] Se acrescentarmos que Tiradentes era um homem jovem, de cerca de quarenta anos, chegaremos à conclusão de que nenhum herói de nossa historia é mais próprio do que ele para figurar como guia e inspiração da Juventude22.

Contudo, essa defesa que Capanema fez de seu projeto e da figura de Tiradentes não ficou sem resposta de seu crítico. Este enviou a Vargas uma contra-argumentação, julgando as considerações do ministro insuficientes para rebater suas críticas. Nesse texto, acrescenta que, na maior parte do Brasil, a figura de Tiradentes nada significa e que a adjetivação do ministro nada demonstra, uma vez que os heróis são feitos pelas suas grandes ações e era preferível desenterrar um pioneiro como Pedro Teixeira, Antonio Raposo, Domingos Jorge Velho, Santos Dumont, Plácido de Castro ou ainda um homem do povo, um soldado, um marinheiro e criar-lhe uma aureola de santo nacional a adotar a figura de Tiradentes, já que: Não se pode, nem deve, pois, dar à juventude brasileira um herói comportando discussões. O herói deve ser ou um produto acabado e completo ou uma criação nova. De modo algum uma simples figura histórica, que comporte discussões, dúvidas, negações [...] Como generalização nota-se que, num país novo, por cultivar, o herói deve ser um desbravador, um homem puro e de grande ação, um criador de força nacional e não um ideólogo político. A exemplaridade que se deve apresentar aos jovens em vez de aureola de mártir deve carregar a coroa do triunfo. O herói dos jovens é um vitorioso e não um vencido. Não pretendemos uma discussão sem finalidade. Não concordamos, porém, em que Tiradentes, apesar do Palácio e da estátua, seja maior que qualquer outro herói regional [...] Tome-se portanto um herói verdadeiramente nacional – do Brasil todo –, e quanto mais anônimo melhor, porque a sua lenda poderá ser enriquecida à vontade23.

Essa troca de correspondência, sempre endereçada a Vargas, é bom observar, diz muito a respeito das disputas pela construção da figura do herói nacional, através do debate

247

em torno da caracterização de Tiradentes, uma figura, como se vê, sobre a qual havia, apenas aparentemente, um consenso máximo entre lideranças políticas e intelectuais. O que se verifica é sua apresentação como um herói “regional” (mineiro), desconhecido na maior parte do país e, bem pior, um herói vencido, que, se contribuíra com a Pátria, o fizera com ideias e não com ações, situadas como um contributo superior. Após diversas mudanças no texto, motivadas pelas críticas de inúmeros atores, finalmente é criado o movimento da Juventude Brasileira, pelo Decreto-Lei n°. 2.072, de 8 de março de 1940, sem qualquer menção a uma data própria de comemoração e a um patrono. Além disso, no lugar de duas formaturas, como previa o projeto de Capanema, o decreto estabeleceu apenas uma, na data da comemoração à independência do Brasil, que se realizaria no primeiro fim de semana do mês de setembro, devendo ser marcada por grandes paradas realizadas na “Semana da Pátria”. Ou seja, o dia 21 de abril foi abandonado, bem como qualquer referência a Joaquim José da Silva Xavier. Enfim, dentro de um projeto de culto à figura de Tiradentes, a ação em torno da Juventude Brasileira não tinha alcançado os resultados esperados. Esse episódio, denso de significados, ajuda-nos a compreender como, apesar de um forte imaginário sobre Tiradentes já estar internalizado na população, havia discussões sobre tal figura e a possibilidade de alteração de uma hierarquização de sua grandeza, indiscutivelmente, desde a proclamação, como a do herói magno da República. Tal concepção que se mantinha, mas também estava em aberto, havendo claras investidas para sua redefinição, deixa nítido, mais uma vez, que é o presente que constrói o passado e, nele, seleciona e desenha o perfil de seus heróis, quer por via da história, quer da memória, quer por ambas, convergindo ou divergindo. No caso de Tiradentes, não existia uma unanimidade entre os grupos que integravam o governo. O que se verifica são disputas em torno da memória de determinados personagens históricos, quer dizer, do lugar hierárquico que deveriam ocupar no panteão nacional, e em torno da quantidade de investimentos, materiais e simbólicos, para a realização de celebrações. Capanema procurou empregar seus esforços na promoção da figura de Tiradentes, utilizando toda a estrutura do Ministério da Educação e Saúde, conseguindo, como resultado, manter forte o culto a esse personagem, apesar de fracassar no que se referiu à Juventude Brasileira.

248

1

As informações aqui presentes foram colhidas da leitura das seguintes matérias do Jornal do Brasil de 1936: “O repatriamento das cinzas dos inconfidentes” (pag. 10) e “As cinzas dos inconfidentes” (pag. 14), quinta-feira, 24 de dezembro; “As cinzas dos Inconfidentes” (pag. 3) e “A chegada das cinzas dos Inconfidentes” (pag. 35), sexta-feira, 25 de dezembro; “Em homenagem à memória dos Inconfidentes mineiros” (pag. 6), domingo, 27 de dezembro; e “De volta ao solo pátrio” (pag. 8), terça-feira, 29 de dezembro. 2 Antônio Augusto de Lima Júnior (1889-1970), filho primogênito do conhecido político mineiro Antônio Augusto de Lima, foi advogado, poeta, magistrado, jornalista e historiador, além de membro do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais e da Academia Mineira de Letras. Ao longo de sua vida, colaborou em diversos jornais do Rio de Janeiro, como A Gazeta de Notícias, A Noite, Jornal do Brasil, Jornal do Comércio e Correio da Manhã. Em Belo Horizonte, fundou o Diário da Manhã e a Revista de História e Artes. 3 O documento original, intitulado “Termo de entrega ao Excelentíssimo Senhor Doutor Augusto de Lima Júnior, Delegado do Governo Brasileiro, dos autos de exumação e das urnas contendo ossadas e cinzas dos conspiradores da ‘Inconfidência Mineira’”, pode ser consultado em: Arquivo Cristiano Machado, CM c 1936.11.26. FGV/CPDOC. 4 Os inconfidentes eram: Domingos de Abreu Vieira, Francisco de Paula Freire de Andrada, Inácio José de Alvarenga Peixoto, José Álvares Maciel, Luiz Vaz de Toledo Piza, Antônio de Oliveira Lopes, João da Costa Rodrigues, José Aires Gomes, Salvador Carvalho do Amaral Gurgel, Tomás Antônio Gonzaga, Vicente Vieira da Mota, Vitoriano Gonçalves Veloso e Francisco Antônio de Oliveira Lopes. 5 Com a Lei n°. 378, de 13 de janeiro de 1937, o Ministério da Educação e Saúde Pública passou a chamar-se apenas Ministério da Educação e Saúde. 6 “O Ministério da Educação promove a publicação de documentos históricos”. Jornal do Brasil, sexta-feira, 2 de julho de 1937. P. 6. 7 O Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE) foi criado em 1936 por Gustavo Capanema e dirigido pelo antropólogo Edgard Roquete Pinto, tendo como objetivo fazer do cinema um instrumento de educação, ao produzir e divulgar filmes de cunho educativo. 8 Para uma análise desse filme, ver: SCHVARZMAN, Sheila. Humberto Mauro e as imagens do Brasil. São Paulo: Ed. UNESP, 2004, p. 248. 9 “De volta ao solo pátrio”. Jornal do Brasil, terça-feira, 29 de dezembro de 1936. P. 8. 10 Arquivo Cristiano Machado, CM pi Machado, C. 1936/1945.00.00/2. P. 1. FGV/CPDOC. 11 O Museu da Inconfidência está situado na antiga Casa de Câmara e Cadeia de Vila Rica, localizada na Praça Tiradentes, em Ouro Preto, Minas Gerais. 12 Por exemplo, Rodolfo Garcia, diretor da Biblioteca Nacional, em carta endereçada no dia 11 de janeiro de 1943 a Carlos Drummond de Andrade, chefe de gabinete do Ministério da Educação e Saúde, respondia ao memorando que havia sido enviado a ele a pedido de Gustavo Capanema, no qual este requeria informações, oriundas de pesquisas realizadas em documentos originais pertencentes ao arquivo da Biblioteca Nacional, relativas à naturalidade de Tomas Antônio Gonzaga, um dos personagens que atuaram na Inconfidência Mineira. Arquivo Luiz Vergara, LV c 1943.01.11. FGV/CPDOC. 13 Viriato Correa (1884-1967), além de teatrólogo, foi político, jornalista, romancista e membro da Academia Brasileira de Letras. Sua produção de maior repercussão esteve voltada para o público infanto-juvenil, para quem produziu inúmeros títulos, sendo Cazuza (1938) o mais conhecido deles. Ver: GOMES, Angela de Castro. A República, a História e o IHGB. Belo Horizonte, MG: Argvmentvm, 2009, p. 126. 14 Além de Tiradentes, as principais peças históricas realizadas no período foram: Marquesa de Santos, de Viriato Correa, encenada pela Cia. Dulcina-Odilon e estreada em 30 de março de 1938; Iaiá Boneca, de Ernani Fornari, encenada pela Cia. Delorges Caminha e estreada em 4 de novembro de 1938; Carlota Joaquina, de Raimundo Magalhães Júnior, encenada pela Cia. Jayme Costa e estreada em 26 de maio de 1939; Mauá, de Castello Branco de Almeida, encenada pela Cia. Delorges Caminha e estreada em 25 de agosto de 1939; Caxias, de Carlos Cavaco, encenada pela Cia. Comédia Brasileira e estreada em 10 de agosto de 1940; Sinhá Moça Chorou!, de Ernani Fornari, encenada pela Cia. Dulcina-Odilon e estreada em 4 de outubro de 1940; e O Chalaça, de Raul Pedrosa, encenada pela Cia. Jayme Costa e estreada em 10 de outubro de 1940. Ver: FERREIRA, Adriano de Assis. Teatro Ligeiro Cômico no Rio de Janeiro: a década de 1930. Tese de doutorado em Literatura Brasileira. São Paulo: USP, 2010, p. 198 e 199. 15 . Teatro Ligeiro Cômico no Rio de Janeiro: a década de 1930, p. 198 e 199, p.213-26. Nessa tese, é possível encontrar também uma análise do teatro brasileiro na década de 1930. A peça Tiradentes foi publicada em 1941, no Rio de Janeiro, com o selo do Ministério da Educação e Saúde, pela editora Guarany. Uma cópia datilografada da peça, datada do mesmo ano em que esta foi produzida pela primeira vez, 1939, encontra-se em: Arquivo Luiz Vergara, LV pi Correa, V. 1939.00.00. FGV/CPDOC. 16 Os dados descritos encontram-se em “Relatório de minhas atividades cívicas”, enviado a Gustavo Capanema por Antonio dos Santos. Sobre a escolha de Tiradentes como homenageado de honra da formatura, ver: fot.

249

676/3 a 679/2 ou páginas 3 a 11. Arquivo Gustavo Capanema, GC pi Santos, A. 1944.06.17. Microfilme rolo 10 fot. 674 a 687. FGV/CPDOC. 17 LOPES, Luciano. Tiradentes. Vultos. Datas. Realizações. Rio de Janeiro: DIP, 1944. 18 “A Inconfidência Mineira”. Revista Cultura Política. Vol. 2; num. 16; jun. 1942. P. 271. 19 A ideia de se criar uma instituição oficial de mobilização da juventude brasileira partiu de Francisco Campos, então ministro da Justiça. O projeto original de elaboração da Organização Nacional da Juventude, sugerido por ele, datado de março de 1938, encontra-se no arquivo Getúlio Vargas e era caracterizado pela proposta de mobilização político-miliciana da juventude e pela intenção de instituir uma organização paramilitar nos moldes fascistas, estando prevista a sua direção pelo presidente da República e pelos ministros da Guerra, da Justiça e da Marinha, ficando de fora o Ministério da Educação e Saúde, ainda que o projeto também possuísse um caráter educativo. No entanto, houve muitas críticas e oposições ao projeto, principalmente por parte do Exército e do ministro da Guerra, Eurico Gaspar Dutra, o que o levou a constantes alterações, propostas inclusive por Gustavo Capanema. Finalmente criada, em 8 de março de 1940, pelo Decreto-Lei n°. 2.072, após inúmeras mudanças, a função da Juventude Brasileira se mostrou completamente distinta da apresentada no projeto original, resultando apenas em um movimento cívico-educativo formado pela juventude escolar de todo o país, mobilizada em torno do culto às datas, aos vultos e aos símbolos nacionais. Para uma análise aprofundada do processo de constituição da Juventude Brasileira, ver: STEIN, Cristiane Antunes. “Por Deus e pelo Brasil”: a Juventude Brasileira em Curitiba (1938-1945). Dissertação de mestrado em Educação. Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 2008; SCHWARTZMAN, Simon; BOMENY, Helena M. B.; COSTA, Vanda M. R. “Contenção das mulheres, mobilização dos jovens”. In: Tempos de Capanema. Rio de Janeiro: Paz e Terra; São Paulo: EDUSP, 1984. Pp. 107-140; e HORTA, José Silvério Baia. “A Juventude Brasileira: da mobilização ao civismo”. In: O hino, o sermão e a ordem do dia: regime autoritário e a educação no Brasil (1930-1945). Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1994, p. 205-287. 20 Essa versão do projeto de decreto-lei redigida por Capanema situa-se em: Arquivo Gustavo Capanema, GC g 1938.08.09. Microfilme rolo 52 fot. 81 a 85. Pasta II. FGV/CPDOC. As duas citações, mais precisamente, encontram-se, respectivamente, no fot. 81/1 e 84/2. 21 Arquivo Gustavo Capanema, GC g 1938.08.09. Microfilme rolo 52 fot. 209. Pasta III. FGV/CPDOC. 22 Arquivo Gustavo Capanema, GC g 1938.08.09. Microfilme rolo 52 fot. 212/1 e 212/2. Pasta III. FGV/CPDOC. 23 Arquivo Gustavo Capanema, GC g 1938.08.09. Microfilme rolo 52 fot. 233/1 e 233/2. Pasta III. FGV/CPDOC.

250

"NÃO INVENTO, APENAS TRANSMITO": RE-INTERPRETANDO A ESCRITA HISTORIOGRÁFICA DE CONFÚCIO André Bueno1 Resumo: Nessa comunicação, pretendemos analisar a escrita historiográfica de Confúcio (551 a 479 AEC), com base no livro "Primaveras e Outonos", de sua autoria. Nele, o antigo pensador chinês lançava as bases de uma história ética e reflexiva, que marcaria profundamente as teorias históricas chinesas, cuja relação com a ideia de "verdade histórica" estaria ligada a uma condição específica do uso da linguagem. Palavras-Chave: Sinologia; Historiografia Chinesa; Primaveras e Outonos Abstract: In this communication, we intend to analyze the historiographical writing of Confucius (551-479 BCE), based on the book "Spring and Autumn", of his own. In it, the ancient Chinese thinker laid the basis for an ethical and reflective history, that deeply mark the Chinese historical theories, whose relationship with the idea of "historical truth" would be linked to a specific condition of use of language. Keywords: Sinology; Chinese historiography; Spring and Autumn

Introdução A história tradicional chinesa possui seus próprios conceitos, desenvolvidos por uma historiografia em construção contínua desde o século -6.2 Buscar compreender esses conceitos e teorias é, antes de tudo, um difícil trabalho de tradução. Por vezes, como nós, os chineses denominam seus próprios procedimentos de maneira conceitual, por meio de termos e palavras definidas, permitindo uma identificação clara dos mesmos nos textos. Em outras ocasiões, porém, há uma sistemática em pleno uso, embora ninguém a denomine apropriadamente. De conceito, ela torna-se um “estilo”, uma forma de proceder na escrita, que podemos nomear por aproximações, mas não sem correr certos riscos. Devemos ter em mente que os chineses antigos, ao estabelecerem seu cânone histórico, pensavam a história como uma forma diferenciada de literatura, calcada em evidências, e analisada sob um prisma intelectual que teríamos certa dificuldade em classificar. Os pensadores chineses transitavam entre diversos campos – História, Filosofia, Arqueologia, Antropologia, Arte, etc. – de maneira interdisciplinar, tornando absolutamente arbitrárias e movediças nossas possíveis classificações sobre o seu modo de fazer História. Assim, investigar a metodologia e o conceitual histórico dos chineses é um relevante desafio para a Teoria da História, apresentando-nos possibilidades enriquecedoras de compreender uma antiqüíssima tradição histórica cuja continuidade, por si só, nos revela diferenças sutis e interessantes. Nesse texto, buscaremos discutir a escrita histórica de Confúcio 孔夫子 (-551 a -479) 3

presente no livro Primaveras e Outonos (Chunqiu 春秋). Esse livro trata de uma longa

251

compilação dos principais eventos ocorridos na China entre -722 e -481, organizados cronologicamente, e que apresentam uma metodologia constitutiva singular. Pretendemos discutir como, nesse livro, se dava a aplicação do conceito de Analogia, conceito fundamental na estruturação da escrita histórica chinesa. A própria palavra Analogia (αναλογία), proveniente do grego, incorpora uma noção não diretamente traduzível para o chinês: todavia, o processo análogo – comparação, exemplificação, metáfora – era vastamente empregado na escrita histórica, nos permitindo traduzir o procedimento por meio de um termo que se aproxima. A palavra chinesa usada em um contexto de comparação (Bi 比) denota uma relação direta de mediação entre dois objetos, sujeitos ou situações. Ela pressupõe a análise por meio da identificação de elementos comuns ou diferentes, bem como indica que algo está para outro em um grau qualitativo ou quantitativo. Por causa disso, a estrutura lingüística chinesa deixava em aberto a definição de um termo para esse procedimento, mas o realizava de modo direto na construção frasal. O termo atual, que designa em chinês “Analogia” é, justamente, Biyu 比喻, que pode ser traduzido como “explicar uma comparação” Outras formas de indicação análoga se davam pela contextualização espaço-temporal, fosse pela ocorrência de uma situação X, comparada a situação Y, ou pelo exemplo dado por uma determinada figura Z, em contraposição a outras figuras. Uma conhecida passagem chinesa exemplifica bem isso: “Não faça aos outros o que não quer que seja feito para consigo”.4 Ou seja: não faça X (ação) para outros (Y), pois isso pode se voltar contra si mesmo. Esse raciocínio era aplicado às passagens históricas. Poder-se-ia compreender um evento, passagem ou atitude de um personagem histórico por empatia? O que Confúcio buscara construir em sua literatura histórica, portanto, seriam imagens referenciais sobre as quais poderia se estabelecer algum tipo de correlação ou reflexão. Embora esse procedimento tornasse a abordagem histórica um procedimento indireto, por outro lado, ele construiu um largo arcabouço de imagens disponíveis a classificação e comparação, concretizadas nas formas e temáticas do discurso histórico. O que veremos aqui, portanto, é como se davam essas construções, e seus efeitos para a padronização de uma escrita histórica desde a China antiga.

O surgimento do pensamento correlativo Para compreendermos o surgimento do pensamento análogo entre os chineses, precisamos retornar ao século -12, quando estava sendo redigido o primeiro manual chinês de ciências naturais, o Tratado das Mutações (Yijing 易經).5 O Yijing é provavelmente o

252

primeiro livro chinês a nos dar uma visão organizada de universo, buscando explicar a natureza por meio de suas estações, tendências e qualidades, expressas num sistema complexo absolutamente associativo, simbólico e correlacionado. As forças naturais são catalogadas em conjuntos de expressões – água, fogo, trovão, montanha, etc. – que significam expansões de um sistema dual primário, conhecido por Yin 阴 – Yang 阳. Yin e Yang não são duas forças primevas, ou duas essências universais, e uma série de equívocos tem sido causados, nesse sentido, entre os leitores ocidentais - e mesmo entre os chineses - que desconhecem mais profundamente essa teoria. Yin e Yang representam, nesse antigo sistema cosmológico, a idéia de uma oposição primária e correlata, pelo qual algo se revela pela sua interdependência com outra coisa. São, por assim dizer, coordenadas pelas quais concebemos uma imagem, operando em nível básico como nossa classificação X e Y. Nesse sistema, pois, tudo se define por oposição complementar. Uma simples linha só existe, por exemplo, pela contraposição do traço no papel; ela mesma só existe porque tem dois lados, e divide o espaço em dois, etc. De modo a organizar a expressão dessas tendências, os autores do Yijing decidiram grifar como um traço contínuo a coordenada Yang ----- e, como um traço partido, a coordenada Yin --o--. A combinação dessas linhas em sistemas triplos gerava os

Gua

卦(Trigramas), que representavam oito fenômenos ou dimensões básicas da natureza (como dissemos; Água, Fogo, Céu, Terra, Trovão, Montanha, Lago e Vento), denominados de sistema Bagua 八卦 (Oito trigramas). A representação ternária foi bem sintetizada pelo filósofo Laozi 老子 (séc.-6): “O um gera o dois, o dois gera o três, e o três gera as dez mil coisas”.6 Assim, de um princípio único é gerada a oposição complementar; dela, surgem os trigramas, imagens da natureza; e da associação deles surgem todos os seres, estações, movimentos da natureza. Nessa idéia, estava implícita a cópula entre as duas coordenadas para a geração de uma imagem. O Bagua organizava as tendências da natureza num sistema que indicava direções, movimentos, posturas e qualidades, expressos em dois arranjos básicos chamados de “Céu Anterior” e “Céu Posterior”. Não nos cabe aqui aprofundar a complexidade desse sistema cosmológico, mas explicar seus desdobramentos para a mentalidade chinesa. As seqüências organizadas de trigramas produziam sessenta e quatro hexagramas, que representavam, dentro desse sistema, as tendências e propensões dos movimentos naturais. Por causa disso, os chineses desenvolveram a crença de que o Yijing poderia explicar as leis ecológicas, bem como ser utilizado com fins oraculares, antevendo eventos, o desfecho de situações naturais e

253

explicando a configuração e propriedades de determinadas tendências sociais e cosmográficas.7 O papel do Yijing, porém, era mais amplo. Ele descrevia e acompanhava a Mutação (Yi 易), ou ainda, Tudo-abaixo-do-Céu (Tianxia 天下) por meio de símbolos, de sistemas correlatos, que permitiam explicar “cientificamente” a Natureza e o Mundo através do sistema Yin–Yang. Isso obviamente acompanhava a estrutura lingüística chinesa, que nasceu, e se desenvolveu, por meio de expressões Logográficas (Pictografias e Ideografias), tornando a linguagem chinesa um meio de expressão de imagens.8 O importante, contudo, é que o Yijing legou a idéia fundamental de que o contexto material e temporal (logo, histórico) é expresso por uma imagem, a ser decodificada pela interpretação das linhas. Um evento histórico qualquer é um acontecimento no mundo material (isto é, no Mundo da Mutação), e por isso é mutável, efêmero, transitório. Não se pode resgatá-lo por completo, mas dele se poderia extrair ou registrar uma imagem que captaria a sua essencialidade, expressa num Hexagrama qualquer que explicasse a configuração da natureza e das forças envolvidas no referido acontecimento. Ou seja, o registro hexagramático representava uma analogia ao processo natural – e por conseqüência, histórico. O sinólogo Richard Wilhelm (1873+1930), numa das mais qualificadas traduções do Yijing, transcreveu a interpretação histórica do surgimento dos hexagramas, com base no texto do Baihutong 白虎通,9 cujos trechos selecionados exemplificam bem essa idéia. Selecionei as duas primeiras seções, que explicam (de

forma

mítica) o surgimento da civilização humana a partir do grande herói e artífice Fuxi 伏羲 (ou, Paoxi 庖犧), que teria concebido a teoria do Bagua e dos hexagramas, e a partir dela, as leis e tendências da Natureza: 1 — Quando na mais remota antigüidade Paoxi governava o mundo, ele levantou os olhos e contemplou as imagens no céu, e abaixou os olhos e contemplou os fenômenos na terra. Observou os sinais dos pássaros e dos animais, e sua adaptação às regiões. Ele procedia diretamente a partir de si mesmo, e indiretamente a partir das coisas. Inventou, assim, os oito trigramas, para entrar em contato com as virtudes dos deuses luminosos e para organizar as condições de todos os seres. (...) 2 — Ele trançou cordas e as utilizou em redes e cestas para caça e pesca. Provavelmente inspirou-se para isso no hexagrama ADERIR. Análise de Richard Wilhelm: Esse capítulo explica como todas as criações da civilização apareceram como reproduções de imagens ideais arquetípicas. Essa idéia encerra uma verdade superior. Todo invento surge primeiro como imagem na mente do inventor, antes de aparecer como "utensílio", como "objeto acabado". Partindo da escola representada por Xizi, para a qual os 64 hexagramas misteriosamente apresentam imagens paralelas à natureza, aqui se procura deduzir as invenções humanas que conduziram ao desenvolvimento da civilização. Isso não deve ser interpretado no sentido de que os inventores tivessem simplesmente tomado os hexagramas do Livro e realizado a partir deles suas invenções, mas sim que as invenções tomaram forma na

254

mente de seus autores a partir das tendências representadas nos hexagramas. A rede é composta de malhas vazias por dentro, cercada de fios por fora. O hexagrama Li, O ADERIR (n.30), representa uma reunião de tais malhas. Além disso, o ideograma significa "aderir" a algo, "ser apanhado por". Por exemplo, no Livro das Odes em vários trechos se diz que o ganso selvagem ou o faisão foram apanhados pela rede (Li).10

Embora essas crenças não possam ser datadas, sabemos que esse sistema constituía a base para a interpretação da Natureza e da realidade no século -12, e se tornaria o pilar das futuras ciências chinesas. Para o campo do pensamento chinês, contudo, sua contribuição fundamental era a importância dada à representação análoga. Os chineses construíram uma série de discursos sobre o problema, alcances e limites das analogias, e isso se refletiu diretamente na escrita histórica.

A crise ética do séc. -6 e a História Confucionista Uma série de crises políticas e sociais afetava a estrutura do império chinês, durante a dinastia Zhou 周, em torno do séc. -6. A China estava fragmentada em diversos reinos, envolvidos numa escalada crescente de violência, que parecia se encaminhar em breve para uma absoluta guerra civil. Uma preocupação generalizada com o destino da civilização surgira entre diversos pensadores e intelectuais, marcando também um momento fértil para a reelaboração do pensamento chinês.11 Confúcio 孔夫子

(-551 a -479) foi, provavelmente, o mais conhecido e destacado

deles. Em sua avaliação, o problema central da sociedade desse período era a ausência de um programa educacional mais amplo, que privilegiasse o estudo e o resgate da Cultura e das Tradições (Li 禮). Sem conhecimento do passado, seria impossível compreender os fundamentos da vida humana, em harmonia com a natureza (Tudo-abaixo-do-Céu), levando a um estado de desequilíbrio que provocava a guerra, ao conflito e a perda de valores. A partir disso, pois, a História transformar-se-ia no principal fundamento da moral, e seu estudo abriria as portas para a redenção do indivíduo, possibilitando-lhe o conhecimento das raízes de sua cultura. Por essa razão, Confúcio afirmou: “Mestre é aquele que, por meio do antigo, descobre o novo”12 e “amo os antigos, e os imito”13. Sua pretensão não era de reinventar a história, mas de repassá-la (transmiti-la) de modo a perscrutar o passado em busca de respostas14, dando continuidade e preservando as tradições.15 Nesse sentido, Confúcio trabalhou na difusão de uma série de livros antigos que, a seu ver, poderiam estabelecer um conhecimento mais completo sobre a Antiguidade Chinesa. Eram os seis clássicos (Liujing 六經), que consistiam em:

255



O Tratado das Poesias (Shijing 詩經), que apresentava poemas e canções antigas, ilustrando o cotidiano, os ideais e as angústias da sociedade antiga;



O Tratado das Mutações (Yijing), como já dissemos, explicava a ciência chinesa;



As Recordações da Cultura (Liji 禮記) consistia numa enciclopédia das tradições, costumes e leis chinesas, abrangendo vários aspectos sociológicos;



O Tratado da Música (Yuejing 樂經, hoje perdido) apresentava as teorias e músicas mais conhecidas, aproximando-se do Tratado das Poesias;



O Tratado dos Livros (Shujing 書經) era uma coletânea das principais passagens e discursos da história chinesa, revelando seus grandes heróis, vilões e acontecimentos marcantes;



As Primaveras e Outonos (Chunqiu 春秋), por fim, se tratava de uma cronologia episódica dos tempos mais recentes, feita pelo próprio Confúcio, com os registros e arquivos mantidos pelo Estado de Lu, sua terra natal e lugar onde passou seus últimos anos.

O Shujing e o Chunqiu eram, por excelência, os dois livros especificamente voltados para a literatura histórica. O Shujing era construído por longos capítulos, nos quais apareciam personagens importantes e episódios diversos da história chinesa, cujo escopo era fomentar a criação de imagens exemplares – ou seja, dentro da lógica da analogia, proporcionar ao público os modelos inspiradores do passado. Todavia, não nos deteremos nesse livro, tendo em vista que ele é anterior a Confúcio; nosso objetivo aqui é analisar melhor o Chunqiu, que teria sido escrito pelo próprio mestre. As Primaveras e Outonos

Ciente de que a história pode ser esquecida ou perdida, Confúcio investiu em outro tipo de redação: ele elaborou uma longa relação de eventos, organizados cronologicamente, com base nos Anais de sua terra natal, o Estado de Lu 魯國. As informações são sucintas, apresentando uma data, uma relação de informações, organizadas pelas estações do ano, e mais nada. A primeira leitura dessas crônicas é decepcionante, e praticamente inacessível: quase nada podemos extrair delas, em sua forma original. No entanto, a escrita de Confúcio tinha um objetivo bem claro em sua época: ela buscava criar imagens, por meio da linguagem, e estimular o leitor ao debate e a reflexão. Como vimos, o pensamento chinês, 256

bem como a linguagem, estavam estruturados diretamente a questão da imagem como símbolo transmissor de idéias. Assim, pois, o raciocínio de Confúcio se dirigia a uma interpretação da percepção estética e literária sobre a elaboração das imagens históricas. Naquela época, as passagens por ele elencadas eram provavelmente conhecidas de todos. A questão era como Confúcio escrevia: havia todo um vocabulário próprio, cujo sentido específico era carregado de sentidos morais. O texto devia ser ‘traduzido’, para que o estudioso pudesse compreender o que ele expressava. Nisso, pois, Confúcio determinava aos seus personagens avaliações, condenações e enaltecimentos, numa apreciação que, durante anos, causou temor e preocupação entre os nobres chineses. Mesmo assim, com o tempo, as explicações para as passagens foram se diluindo ou tornando-se confusas, o que levou posteriormente a redação de três livros auxiliares para explicar o Chunqiu: o Zuo zhuan 左傳 (Comentário Zuo)16, o Guliang zhuan

穀梁傳

(Comentário Guliang) e o Gongyang zhuan 公羊傳 (Comentário Gongyang). Outros livros de comentários teriam existido, mas esses três foram os que mais se difundiram, sendo o Zuo zhuan considerado, pela maior parte dos Confucionistas, como o comentário “ideal” do Chunqiu. Um fragmento irá nos ilustrar o teor do livro: Na primeira lua da primavera do nono ano do seu reinado, o duque de Zhuang 魯莊公 derrotou o exército do Estado de Qi em Chang Zhuo (-683). Comentário Zuo: Tendo o Estado de Qi declarado guerra, e estando o nosso duque preparado para iniciar a campanha, apareceu um homem chamado Cao Gui a pedir uma audiência. Disseram-lhe os seus conselheiros: - Os oficiais já decidiram sobre as estratégias a adotar. Que papel pensas desempenhar nesses planos? - Eles não passam de um grupo de incompetentes, que não têm a menor idéia do que sejam planos secretos. Cao Gui acabou sendo levado à presença do duque, e imediatamente interrogou: Que forças dispõe vossa alteza para fazer a guerra? - Nunca monopolizei alimentação e roupas, sempre as partilhei com todos - respondeu o duque. - Isso não passou de um pequeno favor, compartilhado apenas por alguns. O povo não o acompanhará, fiado apenas nesse motivo. - Bem - continuou o duque - nos sacrifícios aos deuses, confiei mais na sinceridade do coração do que no fausto das aparências. - Também isso constitui uma razão insuficiente. Os deuses não abençoarão as vossas armas baseados apenas nessa desculpa. - Nas investigações judiciais, ainda que fosse difícil dar com a verdade, tomei decisões sempre de acordo com provas que me foram apresentadas. - Também isso está longe de lhe dar a certeza de confiar no povo, e pode comprometer o resultado da guerra por causa disso. Peço-lhe, assim, para o acompanhar na sua campanha. A isto o duque acedeu, levando Cao Gui na sua própria carruagem. A batalha travou-se em Chang Zhuo. E à vista do inimigo, o nosso duque deu sem demora as suas instruções para se iniciar o ataque, mas Cao Gui advertiu: -Ainda não.

257

E só quando os tambores do inimigo rufaram três vezes é que Cao Gui aconselhou a não atacar. E o duque prontamente deu ordens para os perseguir, mas Cao Gui tornou a dizer: -Ainda não. Apeou-se da carruagem, e estudou cuidadosamente os trilhos dos carros adversários. E só depois de examinar tudo com os seus olhos, gritou: - Agora. E o duque deu ordem então para perseguir os inimigos. Quando a batalha foi totalmente ganha, o duque pediu a Cao Gui uma explicação da sua tática. - Uma batalha - respondeu este - depende inteiramente, e acima de tudo, do ardor dos combatentes. Ao primeiro sinal do tambor, o ardor do inimigo estava violentamente excitado. Com o segundo, começou a atenuar-se. E com o terceiro, entrou em exaustão. Então, quando o ardor do inimigo chegou a essa fase, estavam os nossos no auge do seu ardor. Assim os vencemos. Porém, contra uma formidável força inimiga, deve estar-se preparado para tudo. Receava uma emboscada. Mas, verifiquei pelos trilhos das carruagens, que a retirada foi feita em visível desordem. Reparei igualmente nos seus pendões, e concluí que se agitavam também em confusão. Portanto, aconselhei que só nessa altura se perseguisse o inimigo.17

Notem, pois, o comentário de Confúcio: o Duque derrotou (grifo meu) o exército de Qi. Apenas isso! É o verbo “derrotar” que tem a implicação crucial, que nos permite decodificar a passagem, como está no Zuo zhuan. Significava antes de tudo, por sua interpretação, que Qi estaria errado em seus propósitos ou meios, e por essa razão, fora derrotado. Mas quais seriam? É o Zuo zhuan que fornece a historieta conexa que explica a passagem. O duque Zhuang contava com generais hábeis e moralmente superiores, além de ser, ele mesmo, uma pessoa de inteligência privilegiada e modesta – ou não teria aceito os conselhos de Gui. Dar ouvidos a Gui foi, pois, uma atitude sensata. Tudo isso era compreendido, assim, a partir da análise de um único termo. A elaboração desse método de escrita impactou profundamente a Historiografia Chinesa: Confúcio transferira o problema da Analogia ao estabelecimento de um vocabulário, que atrelava sentidos, e demarcava uma série de eventos cronologicamente definidos que emprestavam um caráter ‘verídico’ ao acontecimento e a sua interpretação. Obviamente, os autores posteriores desenvolveram visões diferentes sobre os mesmos eventos, o que levou a criação de sucessivos comentários sobre o mesmo material. No entanto, Confúcio lançara as bases para a criação de um texto moral e reflexivo, que a tradição fez questão de preservar.18 Um fragmento do Liji nos explica melhor essa importância do Chunqiu:

Confúcio disse: Assim que entro num país, posso dizer facilmente o seu tipo de cultura. Quando o povo é gentil e bom e simples de coração, isto se demonstra pelo ensino da poesia. Quando o povo é esclarecido e cioso de seu passado, isto se demonstra pelo ensino da história. Quando o povo é generoso e disposto ao bem, isto se demonstra pelo ensino da música. Quando o povo é quieto e pensativo, com agudo poder de observação, isto se demonstra pelo ensino das mutações. Quando o povo é humilde e respeitoso,

258

sóbrio de costumes, isto se demonstra pelo ensino dos costumes (Li). Quando o povo é culto na maneira de falar, ágil nas figuras e na linguagem, isto se demonstra pelo ensino da prosa (Livro das Primaveras e dos Outonos). (...) o perigo do ensino do “Livro das Primaveras e Outonos” é que o povo se deixe contaminar pela confusão moral dominante. (...) e se um homem é culto na maneira de falar, ágil nas figuras e na linguagem, mas não é contaminado pela confusão moral dominante, decerto será profundo no estudo do Livro das primaveras e Outonos.19

Uma Conclusão Como bem expressa o fragmento citado, o Chunqiu buscava proporcionar imagens do passado, capazes de estimular a construção de uma consciência histórica habilitada a emitir juízos e avaliar contextos. A expressão direta do pensamento, calcada na sabedoria, induzia a um sistema de escrita sintético, capaz de articular a terminologia com sentidos específicos. Criava-se, assim, a “analogia perfeita” com o passado. Mais que inspiradores, os antigos seriam, pois, verossimilares com a atualidade, e suas ações nos serviriam de exemplo. Essa conquista transformaria, doravante, a escrita histórica chinesa, tornando-se uma referência em termos metodológicos e literários. Depois de Confúcio e os primeiros comentadores, foram várias as publicações cujos títulos continham “Chunqiu”, e que utilizaram o método do velho mestre para orientar a escrita de seus textos. Notável é o fato de que a escrita do Chunqiu ganhou uma conotação vidêntica na história chinesa. Kang Youwei (1858 +1927), eminente historiador e pensador do fim do império chinês, pressupunha que Confúcio teria compreendido a lógica da formulação das imagens históricas, conciliando de maneira profunda o pensamento correlativo do Yijing com a lógica histórica. Como ele mesmo cita, elucubrando sobre o futuro da História: O significado das “Primaveras e Outonos” consiste na evolução de três eras: a era da desordem, a era da ordem e a era da grande paz. O caminho de Confúcio abarca as três seqüências e estas três eras. As três seqüências são usadas para ilustrar as três eras, e como isso pode ser estendido por cem gerações. O tempo dos Xia, dos Shang e dos Zhou representa a sucessão das três seqüências, na qual podemos observar suas mudanças e acréscimos. Pela observação da mudança destes tempos, podemos saber como as mudanças operarão nas cem gerações seguintes. Como muitas das coisas foram feitas para o povo no passado, os reis seguintes não podem governar da mesma maneira que a dinastia anterior; alguns dos defeitos existentes no sistema anterior se desenvolvem e persistem, e cada dinastia tem, então, que efetuar as modificações necessárias para expurgar os erros antigos e criar um sistema novo. O curso da humanidade progride de acordo com esta seqüência fixa. Aqueles que um dia foram clãs, depois tribos, transformaram-se em nações. E das nações nasceu, então, a grande unidade. Do mesmo modo, antigamente, surgiram os indivíduos que se tornaram chefes tribais; depois, gradualmente se estabeleceram as regras pelas quais estes podiam governar seu povo; ou seja, da autocracia se evolui para o constitucionalismo; depois, do constitucionalismo se evolui para o republicanismo. Do mesmo modo, as relações entre marido e esposa, e entre pai e filho foram gradualmente reguladas e definidas. Quando elas estão presentes, as pessoas cuidam com cuidado e amor de sua sociedade, e voltam gradualmente para o que se chama grande unidade. O reverso disso conduz as pessoas ao individualismo egoísta e a desordem. Se há então a evolução da desordem

259

para ordem, evoluiremos da ordem para a grande paz. A evolução acontecerá gradualmente, e as mudanças têm suas origens definidas. (...) quando Confúcio redigiu as Primaveras e Outonos, ele analisou a três eras. Durante a era da desordem, ele considerou o seu Estado como centro, e os outros estados feudais como estrangeiros. Na era da ordem ele considerou a China como o centro, e os bárbaros de fora como estando fora do sistema. Na era da grande paz, tudo e todos serão considerados parte do sistema; quem está longe ou perto, grande ou pequeno, todos serão um. Assim se pode aplicar o principio da evolução. Confúcio nasceu na época da desordem. Agora, as comunicações se estendem através do mundo todo, da Europa a América, e o mundo se envolve na era da grande ordem. Irá chegar o dia quando em toda terra, o pequeno e o grande, o perto e o longe, serão apenas um. Não existirão mais nações, distinções raciais, e os costumes serão sempre os mesmos. Esta uniformidade é a era da grande paz. Confúcio sabia de tudo isso com antecedência.20

Mais uma vez, os chineses explicavam-se pelo seu passado, mostrando o sucesso da concepção confucionista.

Notas 1

André da Silva Bueno, Dr. Filosofia UGF, 2005 e Pós-Dr. em História UNIRIO, 2012. Prof. Adjunto de História Antiga da UERJ. Mail: [email protected] 2 De acordo com um uso comum na Sinologia, as datas AEC são indicadas pelo sinal – , e as datas EC pelo sinal +. 3 Na primeira aparição de um nome ou termo chinês, apresentaremos igualmente a sua forma logográfica. 4 Confúcio, Lunyu , 15:24. Trad. Lin Yutang. Disponível em: http://chines-classico.blogspot.com.br 5 Data especulada pela tradição chinesa, podendo ser o texto ainda mais antigo. 6 Laozi, Daodejing, 42. Trad. Lin Yutang. Disponível em: http://chines-classico.blogspot.com.br 7 GRAHAM, A. Yin-Yang and the Nature of Correlative Thinking. Cingapura: Institute of East Asian Philosophies, 1986. 8 ALLETON, Viviane. Escrita Chinesa. Porto Alegre: L&PM, 2010. 9 O Pavilhão do Tigre Branco (Baihutong) é uma coleção de textos sobre variados temas, como História, Astronomia, Ecologia e Filosofia. Sua autoria é de Bangu 班固 (32+92), e embora se trate de um texto bem mais recente, ele resgataria a visão antiga do Yijing sobre a história da sociedade chinesa em seus períodos primevos. 10 Confúcio. I Ching- o livro das mutações. Trad. de Richard Wilhelm. São Paulo: Pensamento, 1986, p.251-2. 11 LEVI, Jean. Los Funcionarios Divinos. Trad. Maria Pradera. Madrid: Alianza, 1991. 12 Lunyu, 2:11. Trad. Lau Din Cheuk. Disponível em: http://chines-classico.blogspot.com.br 13 Idem, 2:11. 14 “Não invento, apenas transmito”, Idem, 7:1. 15 Idem, 3:14. 16 A única versão disponível desse texto, em português, é a de GUERRA, Pr. Joaquim. Quadras de Lu e Relação Auxiliar. Macau: Jesuítas Portugueses de Macau, 1981. Cinco volumes. 17 Chunqiu, livro 3. Trad. André Bueno. Disponível em: http://asiantiga.blogspot.com.br/p/a-cienciade-registrar-o-passado.html 18 SCHABERG, David. A Patterned Past: Form and Thought in Early Chinese Historiography. Harvard: Harvard University Press, 2001. 19 Liji, cap. 26. Trad. Lin Yutang. Disponível em: http://chines-classico.blogspot.com.br 20 Kang Youwei – uma teoria sobre o futuro da história. Trad. André Bueno. Disponível em: http://chinologia.blogspot.com.br/2009/08/historia.html

260

O Partido do Brasil: o PMDB e a política brasileira (1980-2010) Andre Franklin Palmeira1

Resumo: Este trabalho tem por objetivo analisar a atuação do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) nos principais acontecimentos políticos do Brasil recente, desde a fundação do partido em 1980 até o pleito eleitoral realizado em 2010. Nesse sentido, visamos avaliar a participação do PMDB no cenário político nacional, buscando elucidar os fatores internos e externos que contribuíram para torná-lo o maior partido político do Brasil. Palavras-chave: Partidos Políticos; Brasil recente; PMDB.

Abstract: This article aims to analyze the party´s performance of the Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) in the major political events of the recent Brazil, since the party´s founding in the 1980 until the general elections held in 2010. In this sense, we aim to evaluate the role of the PMDB national political scene, seeking to elucidate the internal and external factors that contributed to make it the largest political party in Brazil. Keywords: Political Parties; Brazil; PMDB

O processo de transição democrática no Brasil teve passo importante com o fim do bipartidarismo, pela reformulação da Lei de Segurança Nacional, pela libertação dos presos políticos e, enfim, pela anistia política. Estas mudanças impactaram fortemente o MDB. Se por um lado, a anistia trouxe de volta para o Brasil diversos quadros políticos que ingressariam no MDB, por outro lado, o fim do bipartidarismo e a instituição do pluripartidarismo levariam alguns de seus militantes a abandonar as fileiras do partido. Em um primeiro momento, parecia que o partido caminhava para uma esquerdização, pela chegada de ex-exilados políticos com o passado recente oriundo de lutas pelas reformas de base no governo João Goulart (1961-1964), quadros políticos opositores ao regime ditatorial, e ainda pelo fato do MDB, desde o início da década de 1970, possuir em suas fileiras comunistas originários do PCB e do PCdoB.2 Porém, o que se viu foi justamente o contrário; ocorreu uma guinada à direita no MDB-PMDB nos anos seguintes. Os principais quadros e lideranças do MDB interpretaram o fim do bipartidarismo como mais um golpe do regime para enfraquecer e fragmentar as oposições à ditadura. Acusavam ser mais um casuísmo a “cassação do MDB”. No dia 21 de novembro de 1979, foi

261

aprovado o Projeto de Lei nº37 que dava um prazo de 180 para a reorganização de novos partidos políticos3 e no dia 20 de dezembro do mesmo ano o ditador general João Batista Figueiredo sancionou a lei nº 6.767 determinando o fim do bipartidarismo.4 No dia 15 de janeiro de 1980, nasceu na Câmara dos Deputados o Partido do Movimento Democrático Brasileiro, tendo no dia 09 de junho de 1980 seu registro aprovado pelo Tribunal Superior Eleitoral.5 O pluripartidarismo e a liberdade partidária no país geraram, inevitavelmente, a fragmentação dos opositores à ditadura, tanto à direita como à esquerda no espectro político. Novos partidos políticos foram sendo criados e recriados e setores da ARENA desgastados com o governo buscaram refúgio em outros partidos, inclusive no recém-criado PMDB.

Os demais partidos surgidos com a reforma partidária de 1979 foram: PDS (Partido Democrático Social), sucessor da ARENA; PTB (Partido Trabalhista Brasileiro); PDT (Partido Democrático Trabalhista); PT (Partido dos Trabalhadores). Algumas lideranças dissidentes da ARENA e do MDB fundaram o PP (Partido Popular), que teve uma curta existência, pois logo se incorporou ao PMDB. Os partidos comunistas (PCB e PCdoB) permaneceram na ilegalidade até 1985, quando foi restabelecida a liberdade de organização partidária por meio de emenda constitucional.1

Sobre a fusão do PP com o PMDB ocorrida em 1982, Denise Paiva Ferreira em sua tese sobre o PMDB e o Partido da Frente Liberal (PFL) aponta: O fato que originou a fusão PP-PMDB foi o chamado Pacote de Novembro [1981], editado pelo governo federal, em novembro de 1981, para diminuir as chances das oposições no pleito de 1982 que se avizinhava. Este pacote continha uma série de medidas, tais como proibição de coligações partidárias, obrigatoriedade de os partidos lançarem candidatos em todos os níveis (de governador a vereador) e voto vinculado. O PP se abrigou no PMDB porque, após o Pacote de Novembro, sua fraca estrutura organizacional e implantação tornavam suas chances nulas naquelas eleições.2

Essa fusão chegou a criar mal estar dentro do PMDB uma vez que diversos quadros do PP eram oriundos da antiga ARENA, o que tornava evidente o avanço de setores conservadores dentro da heterogenia marcante durante toda a história do MDB-PMDB. Contudo, mesmo após essa fusão e com a entrada no partido de outros quadros políticos conservadores, concomitante à saída de esquerdistas para o PT e o PDT, o PMDB continuou sendo o maior partido de oposição ao regime militar, que, por sua vez, chegava aos seus estertores na primeira metade da década de 1980. Nas eleições gerais de 1982, apesar do Pacote de Novembro que o regime ditatorial impôs para beneficiar diretamente seu partido político de sustentação (PDS) e dificultar os

1 2

FERREIRA, Denise Paiva. op.cit. p. 176. Idem. p.177.

262

partidos de oposição, o PMDB conseguiu eleger alguns governadores em estados como: São Paulo (Franco Montoro), Minas Gerais (Tancredo Neves), Paraná (José Richa), Espírito Santo (Gerson Camata), Goiás (Íris Rezende), Mato Grosso do Sul (Wilson Barbosa Martins), Pará (Jader Barbalho), Amazonas (Gilberto Mestrinho) e Acre (Nabor Júnior); além disso, o PDT sagrou-se vitorioso no estado do Rio de Janeiro, com Leonel Brizola. Nos demais estados, os eleitos foram do PDS.6 O Brasil vivia o auge da crise econômica; o Produto Interno Bruto em 1981 atingiu o saldo negativo de 4,25%.7 Eram os reflexos da segunda alta brusca do petróleo em 1979 e o aumento dos juros nos EUA que acarretou uma fuga de capitais dos países periféricos. Em 1982, o México deu calote no FMI e o governo antecipou inúmeras das conhecidas medidas ortodoxas impostas pelo Fundo. No dia 02 de março de 1983, o então deputado federal Dante de Oliveira (PMDBMT), apresentou uma proposta de emenda constitucional que determinava a eleição por voto direto para Presidente da República em 1984, tendo 169 assinaturas de deputados e de 23 senadores.8 Durante os debates públicos no Congresso que antecederam a votação, o clamor popular pela sua aprovação tomou conta do Brasil – era a campanha das Diretas Já! Inúmeras manifestações públicas ocorreram no país com a participação de diversos setores da sociedade brasileira. Artistas, jogadores de futebol, jornalistas, políticos, ex-exilados, militantes políticos e principalmente a população comum sem vínculos partidários tomaram as ruas lutando por eleições diretas para a Presidência. Porém, o regime ditatorial que agonizava ainda mantinha o controle político da situação e detinha uma ampla maioria no Congresso. Com isso, a emenda das “diretas-já” foi derrotada fragorosamente (na sessão do Congresso do dia 25 de abril de 1984) 9 para a tristeza da população, demonstrando que o regime possuía um Legislativo apenas para maquiar as decisões que vinham da cúpula ditatorial, civil-militar.10 Uma vez derrotada a “emenda Dante de Oliveira” restava a eleição via Colégio Eleitoral, dessa vez sem a presença de militares. Imediatamente após a derrota das “diretas já” começaram as negociações para a escolha dos candidatos. Dentre os possíveis candidatos do PMDB, após longo impasse acerca da validade da participação na eleição no Colégio Eleitoral de maioria de sustentação do regime, estavam o seu principal líder Ulysses Guimarães e o mineiro Tancredo Neves. Este último era conhecido por sua habilidade política em costurar acordos de bastidores, sempre baseados em consensos e saídas políticas negociadas, como, por exemplo, sua eleição para 1º Ministro no governo de João Goulart quando militares e

263

setores mais reacionários da sociedade brasileira não aceitavam a presença de Jango como chefe do Executivo Federal, em 1961. No lado dos apoiadores do regime do arbítrio, o PDS junto com os militares, indicava um fiel escudeiro da ditadura, ex-governador biônico e senador por São Paulo, o “empresário” Paulo Salim Maluf. Este nome não era unanimidade nem mesmo dentro do PDS, pois quando seu nome foi confirmado, um grupo dentro do partido anunciou sua saída da legenda. Este grupo era conhecido como Frente Liberal, notadamente composto basicamente por empresários, banqueiros e latifundiários de diversos estados da federação, mas, principalmente, do Nordeste do país. Essa Frente Liberal se uniu a setores dentro do PMDB que apoiavam a candidatura de Tancredo Neves. Procurando manter a ideia de consenso nacional, o vice na chapa de Tancredo foi o maranhense José Sarney, que ingressou no PMDB em 1983, embora tenha sido, até então, senador e presidente do PDS (antiga ARENA), partido de sustentação da ditadura, e de grande serviço prestado ao regime. A chapa batizada de “Aliança Democrática” foi anunciada no dia 11 de agosto de 1984. No dia 14 de agosto, Tancredo deixou o posto de governador de Minas Gerais para se lançar na campanha com apoio do PMDB e da dissidência do PDS, a Frente Liberal, que se transformara em um partido: o Partido da Frente Liberal (PFL). Pouco antes da votação no Colégio Eleitoral, a “Aliança Democrática” junto com o PMDB lançou o plano de governo intitulado Nova República (termo criado por Tancredo) que previa eleições diretas nas capitais e cidades até então consideradas áreas de Segurança Nacional pela ditadura e eleições para a Assembleia Nacional Constituinte, em 1986.11 No dia 15 de janeiro de 1985, o Colégio Eleitoral elegeu por 480 votos a chapa encabeçada por Tancredo Neves contra 180 votos para Paulo Maluf e 26 abstenções. 12 Após 21 anos o país voltaria a ter um Presidente da República civil, embora eleito por voto indireto. Porém, por ironia da História, pouco antes de tomar posse como presidente, Tancredo Neves, então com 75 anos adoeceu gravemente e ficou impedido de assumir a Presidência. Diante da nação estupefata e receosa do possível retorno dos militares, o vice de Tancredo, bastião civil de 21 anos de ditadura, José Sarney, tomou posse no dia 15 de março; em 21 de abril de 1985, Tancredo Neves morreu vítima de diverticulite.13 Depois de assumir interinamente a Presidência da República, enquanto o país acompanhava estupefato os últimos dias de Tancredo Neves com vida, José Sarney assumiu o posto máximo do Poder Executivo sem muita legitimidade. Eram recentes e evidentes sua proximidade e aliança política com os militares. Responsável por conduzir o país ao regime democrático, em seu governo ainda era nítida a forte presença militar, como apontou René

264

Dreifuss em sua pesquisa sobre a Constituinte e a “Nova República” publicada na obra O Jogo da Direita.14 Além de sete Ministérios Militares (Marinha, Exército, Aeronáutica, Estado-Maior das Forças Armadas, Casa Militar, Serviço Nacional de Informações e a Secretaria de Assessoramento da Defesa Nacional), dos 1900 funcionários da Presidência da República, 250 eram militares da ativa.15 O governo Sarney e do PMDB também foi marcado pela presença de setores agrários e empresariais oriundos de uma ampla rearticulação feita no período, que minou qualquer “áurea” de centro-esquerda que o partido procurava manter.16 O Ministério da Fazenda foi ocupado por Francisco Dornelles, sobrinho de Tancredo Neves. Ficou seis meses no cargo (de março a agosto de 1985) e foi substituído pelo industrial paulista Dílson Funaro. Com a inflação batendo a casa dos 235% no ano de 1985, em fevereiro de 1986, foi lançado o Plano Cruzado. Tinha como objetivo: combater a inflação sem reduzir a taxa de crescimento. Era um plano econômico que amalgamava medidas ortodoxas e heterodoxas. Suas principais medidas eram: 1) criação de uma nova moeda (o cruzado); 2) ORTN (Novo título Obrigação do Tesouro Nacional); 3) Redução da correção monetária; 4) congelamento de preços; 5) congelamento dos salários (média de 6 meses como base para conversões); 6) fixação do salário mínimo mensal (U$ 58); 7) criação do seguro desemprego; 8) reajuste automático dos salários caso a inflação atingisse 20%. 17 Durante os poucos meses de sucesso do plano ocorreram as eleições para os governos estaduais. O PMDB de Sarney ganhou em 21 Estados da Federação. Mas após as eleições, foi anunciado o Plano Cruzado II que reajustava os preços e tarifas públicas, além da carga tributária. Era o fracasso do plano econômico concedido dentro dos gabinetes18 e uma consequente dissociação dos empresários com a linha econômica heterodoxa. Após as eleições de 1986, o partido se tornou o maior do país com o maior número de prefeitos e governadores. E a relação com a Presidência da República atravessou momentos problemáticos. Muito diferente, por exemplo, em relação ao PFL e outros partidos da base aliada do governo Sarney, como o PTB, PDC e o PL. É inegável que o apoio do PMDB, devido sua força eleitoral (adquirida durante a ditadura e reforçada nas eleições de 1982) em importantes estados da Federação, somado à sua força nos municípios, foi importante para a vitória da chapa Tancredo-Sarney no Colégio Eleitoral, porém sua relação com o governo Sarney não foi sempre harmônica, principalmente depois das eleições de 1986. Durante a Constituinte (1986-1988), o PMDB se mostrou dividido em diversas frentes. Alguns se aliaram às frentes que defendiam os interesses empresariais dentro da linha de reorganização de suas vanguardas de atuação ligados ao Instituto Liberal, União Brasileira de Empresários, entre outros.19 Outros constituintes estavam ligados a União Democrática

265

Ruralista (UDR) e outros grupos de defesa dos interesses dos agricultores, pecuaristas e grupos de latifundiários que buscavam barrar qualquer linha constitucional que abordasse o termo “reforma agrária”.20 Além disso, haviam parlamentares ligados aos emedebistas históricos como Ulysses Guimarães, mas a maioria, como assinalou René Dreifuss, fazia parte do que ele batizou de conserviológico (conservadores e fisiológicos).21 Um dos grupos mais emblemáticos na Constituinte que promulgou a Constituição de 1988 foi o chamado Centrão que conseguiu barrar diversas demandas de cunho popular e sindical, do qual o PMDB e diversos partidos de direita faziam parte. Estes fatos, como a entrada explícita e efetiva de 43 parlamentares no centrão, somados à ascensão do grupo político do então governador Orestes Quércia em São Paulo, e à dificuldade de concretizar a candidatura de Mário Covas à Presidência pelo PMDB, culminaram com a saída de diversos parlamentares do partido – mais precisamente 37 deputados federais e 8 senadores – e a formação do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), em junho de 1988, que nascia já com a terceira maior bancada do país no Congresso Nacional. Em junho de 1989, em Convenção Nacional foi aprovado o nome de Ulysses Guimarães como candidato do PMDB às eleições presidenciais do mesmo ano. Apresentandose como o “partido comprometido com os chamados compromissos históricos”22 da redemocratização, o PMDB com Ulysses obteve pífios 4,7% dos votos. Assim, o partido assistiu ao segundo turno entre Fernando Collor de Mello (Partido da Renovação Nacional – PRN) e Luís Inácio Lula da Silva (PT), no entanto, o apoio do PMDB ao candidato petista foi renegado pelo Partido dos Trabalhadores. Ao mesmo tempo, muitos dos parlamentares e filiados do PMDB votaram no candidato vencedor do pleito, Fernando Collor,23 que no final foi o candidato consolação para burguesia brasileira, que encarnou o discurso de abertura econômica e o fim do patrimonialismo no serviço público, crítica mantraniana das classes dominantes brasileiras. Ou seja, Collor havia nascido da crise de hegemonia, “o chefe carismático que se colocava acima das classes e de suas organizações e a personificação de um programa de refundação do Estado capaz de unificar as diferentes frações da burguesia”.24 A Ministra da Fazenda Zélia Cardoso de Mello (prima do presidente e professora de História Econômica da USP)25 logo no primeiro mês de governo anunciou o Plano Brasil Novo, apelidado de Plano Collor, com pacotes econômicos para combater a inflação de forma rápida, eliminando barreiras tarifárias e assumindo o programa de desestatização e uma política anti-inflacionária baseada no estrito controle monetário e confisco salarial. O governo procurava reorganizar o capitalismo brasileiro e nem todos os industriais brasileiros eram

266

favoráveis à abertura irrestrita da economia brasileira, pois muitos setores poderiam quebrar, como quebraram. No dia 31 de janeiro de 1991, o governo lançou um novo pacote, o Plano Collor II. Dentre suas medidas: congelava salários e preços e reajustava tarifas públicas, ações que Collor criticou durante a campanha de 1989 e que desagradou o setor industrial, que em 1991 possuía cerca de 48% da capacidade instalada ociosa.26 Após outro fracasso, Zélia Cardoso de Mello foi substituída por Marcílio Marques Moreira. Durante o governo Collor (1990-1992), no âmbito político partidário, o PMDB declarou-se oposição ao governo, que tinha como base de sustentação o PRN, PFL, PTB e o PDS. O partido não participou de nenhum gabinete ministerial, porém votou a favor do Plano Collor e da abertura do país à economia de mercado e às privatizações de grandes estatais. Porém, logo quando começaram a surgir as denúncias de corrupção no governo Collor, o partido esteve na linha de frente dos que defendiam o impeachment do presidente. Agosto de 1992 foi o ápice das mobilizações contra o governo Collor, denunciado pelo irmão, com uma CPMI para investigar seu tesoureiro de campanha, Paulo César Farias. Sem apoio de setores industriais, financeiros e midiáticos, sua imagem foi aniquilada e desmoralizada perante a opinião pública. Com o impeachment de Collor em 1992, a presidência da República foi assumida pelo ex-emedebista Itamar Franco. Nesta nova conjuntura, o PMDB participou ativamente da ampla coalizão de apoio a Itamar, formada por PFL-PMDB-PTB-PSB-PSDB. Fernando Henrique Cardoso se tornou Ministro da Fazenda; ele e alguns economistas projetaram um novo plano econômico buscando estabilizar a economia brasileira, sem mexer nas mudanças liberalizantes de seus antecessores. Para a sucessão de Itamar Franco, o PMDB estava dividido entre o grupo que defendia a candidatura própria e o grupo que almejava manter a aliança que começou a ser costurada no governo Itamar com o PSDB-PFL-PTB. Em maio de 1995, o partido, então presidido pelo deputado Luiz Henrique da Silveira (SC), optou pela candidatura própria e decidiu entre Orestes Quércia e Roberto Requião, sendo o primeiro vencedor por ampla maioria de votos.27 A invasão de produtos importados de baixíssimo custo e a estabilidade monetária fizeram disparar o consumo; nas eleições de 1995, o ex-ministro FHC venceu com folgas Lula da Silva do PT. Durante o primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso (19951998), de ampliação e consolidação da política neoliberal no país, com hegemonia da fração burguesa financeira, novamente o PMDB esteve dividido em relação ao governo. Após a também pífia votação de Quércia nas eleições presidenciais, ganhou força a corrente que defendia o apoio ao governo. Mesmo dividido, o partido esteve sempre com os mesmos

267

índices de fidelidade ao governo que outros partidos da base aliada e nas votações cruciais rumo à abertura ao livre mercado e reestruturação produtiva dos setores público e privado, a grande maioria do partido se mostrava amplamente seduzida pela ideologia neoliberal.28 No fim do primeiro mandato, quando FHC conseguiu via Congresso Nacional a aprovação da lei que permitiu a reeleição para o Executivo, a Executiva Nacional do PMDB indicou aos seus congressistas a não aprovação da emenda, mas 87,5% deles votaram a favor da reeleição.29 No ano eleitoral de 1998, enquanto a maioria da Executiva Nacional era opositora ao governo, a bancada no Congresso desrespeitava-a continuamente. “Caciques” políticos como Jader Barbalho, Itamar Franco, Roberto Requião e Orestes Quércia defendiam candidatura própria para a Presidência da República. Na Convenção Nacional ocorrida no dia 03 de março de 1998, os convencionais chegaram a se agredir fisicamente em plenário e o resultado foi bastante dividido: 303 votos pela candidatura própria do partido, 389 pela não candidatura e 5 votos em branco. No fim de junho, uma nova Convenção ocorreu, agora sem a presença de Requião, Quércia e Itamar. Sem forças, Jader Barbalho foi facilmente derrotado pelas forças pró-governo.30 No mesmo ano, mais precisamente em setembro de 1998, uma nova direção foi eleita no PMDB. Sua cúpula foi composta pelo então presidente da Câmara dos Deputados Michel Temer (SP), Geddel Vieira Lima (BA) e Eliseu Padilha (RS), um trio amplamente favorável a uma aliança com o governo FHC. No segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso (1999-2002), a presença do PMDB no governo se manteve. Em 2002, o partido foi aliado de primeira hora do PSDB na candidatura de José Serra a sucessão de FHC, com a indicação de Rita Camata (ES) como vice na chapa. Com a derrota do PSDB nas eleições presidenciais de 2002 e a eleição de Luís Inácio Lula da Silva do PT, a posição do PMDB permaneceu como no primeiro governo de FHC, com duas correntes, uma apoiando o governo e outra assumindo forte oposição ao governo do PT. Em 2003, Anthony Garotinho, que já havia deixado o PDT e o PSB (quando concorreu à eleição presidencial de 2002), filiou-se ao PMDB buscando consolidar sua candidatura para presidência em 2006. Tudo caminhava neste sentido, quando o mesmo foi alvo de denúncias de desvio de recursos públicos para organizações não governamentais de empresários que estariam repassando esses recursos para sua pré-campanha presidencial. Com isso, a candidatura própria do PMDB em 2006 não ocorreu e novamente o partido não participou da eleição presidencial. No segundo mandato do presidente Lula (2007-2010), o mesmo buscou se aproximar do PMDB, principalmente após o escândalo do mensalão (2005) para ter uma maioria (sólida)

268

no Congresso Nacional e assim não ser preciso buscar apoio em partidos pequenos, puramente fisiológicos, para ter maioria na casa legislativa e também costurar uma aliança sólida para seu candidato à sucessão presidencial. De fato, as eleições presidenciais de 2010 consagraram a aliança do PMDB com o PT, através da vitória da dobradinha Dilma Rousseff (PT) como presidente e Michel Temer (PMDB) como vice. Perpassado esses últimos 27 anos, da chamada de “Nova República” no Brasil, o que podemos perceber é a consolidação da dominação burguesa no Brasil, notadamente as frações burguesas financeiras e do agrobusiness, somadas à emergência de grandes grupos empresariais, frutos de fusões incentivadas e financiadas pelo próprio Estado brasileiro. Nesse período, a relação do Estado com as frações burguesas do país se aprofundou e diversos canais de interlocução foram gestados. O Estado e a economia se modernizaram com forte aparato midiático e tecnológico. A principal forma política (PT), que durante a década de 1980 ocupava o espaço político contra-hegemônico, se transformou ao longo do período no partido da ordem estabelecida do capital. O partido que até a década o início da década de 1980 era a maior entidade representativa de setores democráticos nacionais passou, desde a década de 1990, a hegemonizar a pequena política no parlamento brasileiro e, ao mesmo tempo, também passou a dominar a política regional, com tudo aquilo que permanece de mais conservador na política nacional. A aliança PT-PMDB, somada aos anos de governos tucanos da década de 1990, reforça um projeto hegemônico que maximiza tanto as formas de coerção (manutenção dos aparatos repressões, criminalização da pobreza e dos movimentos sociais independentes e contestatórios com a conivência criminosa da mídia empresarial) como as de consenso.

1

Doutorando em História Social pela Universidade Federal Fluminense. Orientador: Prof.Dr. Norberto Ferreras. Bolsista da Capes. Email: [email protected]. 2 Sobre os candidatos ligados ao PCB e ao PCdoB: “Seus candidatos eram escolhidos por decisão do PCB, mas se curvavam à dinâmica do MDB nas eleições e no legislativo, uma vez que para eles a luta pelo retorno da democracia era prioritária, tendo o MDB como seu principal condutor. Apresentavam comunhão de ideias e interesses entre si como comunistas, mas apenas parcialmente em relação ao MDB, seja pela rigidez ideológica de suas concepções, seja porque também atuavam em outros setores políticos, como área sindical, universitária e de associações profissionais. Seus quadros emedebistas eram eminentemente universitários e acadêmicos, com fraca presença da área sindical. Esta era mais acionada para votar no partido. Dada a vigência de um regime anticomunista, foram inscritos no MDB comunistas até então pouco conhecidos para evitar prisões e cassações. Assim, eram na maioria quadros jovens universitários e com pouca experiência de vida dentro do MDB. (...) Os comunistas trabalhavam sempre com a possibilidade de seus parlamentares serem cassados a qualquer momento (e alguns o foram), razão pela qual frequentemente incluíam um “estepe” do candidato prioritário do PCB na lista do MDB. (...) O PCdoB também atuou no MDB-PMDB paulista, mas com pouca influência na organização partidária. O MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro) também ingressou no PMDB e acabou praticamente a serviço do quercismo. Nunca teve peso marcante no partido”. MELHEM, Célia Soibelmann. op.cit. p.147-148. Para saber mais: FIGUEIREDO, César Alessandro Sagrillo. A relação dos PC´s com o MDBPMDB no cenário da transição e as eleições de 1982 no RS. – Dissertação de Mestrado – Instituto de Filosofia e

269

Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009 e CAMURÇA, Marcelo Ayres. Os “melhores filhos do povo”: um estudo do ritual e do simbólico numa organização comunista – o caso MR-8. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1994. 3 FERREIRA, Denise Paiva. PFL x PMDB: marchas e contramarchas (1982-2000). 1ª edição. Goiânia: Editora Alternativa, 2002. p.136. 4 DELGADO, Tarcísio. A História de uma Rebelde: 40 anos, 1966-2006. 1ª edição. Brasília: Fundação Ulysses Guimarães, 2006. p. 203. 5 DELGADO, Tarcísio. op.cit. p. 209. As duas primeiras comissões executivas do PMDB foram assim compostas: Ulysses Guimarães, Presidente; o Senador Teotônio Vilela, Vice-Presidente; e o Senador Pedro Simon, Secretário Geral. Idem. p. 210. 6 FERREIRA, Denise Paiva. op.cit. p. 177. 7 Dados disponíveis em: . Acessado em 17/08/2013. 8 DELGADO, Tarcísio. op.cit. p. 256. 9 Foram 298 votos a favor, 65 contra e 113 abstenções, faltando 22 votos para a sua aprovação. 10 “Papel decisivo nessa derrota coube ao PMDB, que tornou pública antes da votação sua decisão de participar na eleição indireta a ser realizada pelo Colégio Eleitoral, fosse qual fosse o resultado, afastando o perigo de crise institucional. O episódio mostrou que a elite política, optando pela frustração da mobilização cívica, preferia a prática das negociações de cúpula.” In: MARINI, Rui Mauro. Brasil: da Ditadura à Democracia. (1964-1990). p.05. 11 DELGADO, Tarcísio. op.cit. p. 308. 12 Idem. p. 309. 13 Diverticulite é uma inflamação dos divertículos presentes no intestino grosso. 14 DREIFUSS, René. O Jogo da Direita. 1ª edição. Petrópolis: Vozes, 1989. 15 Idem. p.39. 16 DREIFUS, René. op.cit. 1989. p.38-39. 17 BIANCHI, Álvaro. Um Ministério dos Industriais: a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo e a crise das décadas de 1980 e 1990. 1ª edição. Campinas, EdUnicamp, 2010. p.182. 18 A equipe econômica que formulou o Plano Cruzado era composta pelos economistas André Lara Resende, João Sayad, Pérsio Arida e Edmar Bacha. Além, claro, do Ministro da Fazenda, Dílson Funaro. 19 Para saber mais: DREIFUSS, René. op.cit. p.198. 20 Idem. 21 Idem. p. 103. 22 FERREIRA, Denise Paiva. op.cit. p. 145. 23 Idem. p. 146. 24 BIANCHI, Álvaro. op.cit. p.189. 25 Idem. p.191. 26 Idem. p.206. 27 “As eleições prévias foram realizadas no dia 18/5/1995. Orestes Quércia obteve 8.555 votos e Requião 1.952; votos nulos somaram 213 e brancos 114. O número de votantes foi de 10.834 e as abstenções chegaram a 1.195.” FERREIRA, Denise Paiva. op.cit. p. 182-183. 28 O partido apoiou e participou ativamente do governo de Fernando Henrique Cardoso: “O PMDB ocupou as seguintes pastas: Ministério dos Transportes, cujos titulares foram Odacir Klein e Eliseu Padilha, ambos do PMDB gaúcho. O primeiro deixou o cargo por problemas de ordem pessoal, tendo sido substituído por Eliseu Padilha. O outro ministério destinado ao PMDB foi o Ministério da Justiça, cujo titular Nelson Jobim (RS), deixou o cargo após ser nomeado para o Supremo Tribunal Federal. Este foi substituído pelo senador Íris Rezende (GO). A Secretaria de Políticas regionais também foi ocupada pelo PMDB: seu primeiro ocupante foi Fernando Catão (PB), posteriormente substituído por Ovídio de Angelis (GO). Além desses cargos, vários outros do segundo e terceiro escalões do governo foram ocupados pelo PMDB”. FERREIRA, Denise Paiva. op.cit. p. 183. Ainda citando o trabalho da cientista política Denise Paiva Ferreira, os índices de fidelidade aos projetos do governo (Executivo) foram os seguintes: PMDB – 61,25%, PTB – 67,85%, PFL – 67,84%, PSDB – 67,84% e PPB – 6,18%. As emendas constitucionais foram as seguintes: quebra do monopólio estatal das comunicações, quebra do monopólio estatal do petróleo, reeleição pra cargos do poder executivo, reforma administrativa/quebra da estabilidade dos servidores públicos. FERREIRA, Denise Paiva. op.cit. p. 152 e 183. 29 FERREIRA, Denise Paiva. op.cit. p. 153. 30 Idem. p.185.

270

O sujeito instável e o sentido bifurcado: uma hipótese a partir de dois trechos de Minha formação André Jobim Martins*

Resumo: Este trabalho integra uma pesquisa que procura analisar a autobiografia de Joaquim Nabuco, Minha formação (1900), em suas dimensões retóricas. Entendemos que o autor quer produzir com o livro um ideal de Brasil e uma imagem de si como figura exemplar, acompanhadas de visões da política, da história, da experiência humana. Tomamos aqui uma passagem do texto onde o narrador fala de sua “instabilidade”, e outra, onde a escravidão é descrita de forma aparentemente ambígua, tentando compreender seus possíveis significados. Palavras-chave: Joaquim Nabuco, literatura, autobiografia Abstract: This work is part of a broader effort to analyze Joaquim Nabuco’s autobiography, My formative years (1900) through its rhetorical dimensions. We assume that the author’s intention is to present a vision of his country and an image of himself as an exemplary character. He also lays out his views on politics, history, and human experience. Two passages of the book are considered, one, where the narrator talks of his “instability”, and another, where slavery is described in apparently ambiguous terms, trying to grasp what they might mean. Keywords: Joaquim Nabuco, literature, autobiography I. Em 1900, Joaquim Nabuco lançava sua autobiografia, Minha formação,

narrativa

vagamente cronológica focada em seu desenvolvimento intelectual e espiritual, plena de imagens desenhadas com apurado refino estilístico. Atravessa o livro uma forte inclinação romântica (no sentido lato da palavra) e nostálgica – como seria apropriado esperar das memórias de um monarquista em meio ao turbulento contexto da primeira década republicana. Encontramos aqui muitos lamentos de uma infância perdida, de uma juventude exaltada e, sobretudo, de um Brasil que não era mais. Minha formação não se resume, entretanto, a uma história bem contada: trata-se de uma obra publicada num momento específico da trajetória de Nabuco, transbordando um pronunciado desejo de conciliação

1

entre momentos passados e os imperativos do momento-

perspectiva. Essas circunstâncias ecoam disfarçadas no tortuoso caminhar das linhas do livro, que além de cronologicamente truncado é em toda a sua extensão povoado de aparentes ambiguidades. Este trabalho analisa

tematicamente dois trechos da obra, propondo que certos impasses que ali

*

Mestrando do Programa de pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense, sob orientação da professora Renata Torres Schittino. E-mail: [email protected]

271

encontramos podem ser compreendidos como contendo um significado que transpõe o ambíguo, desde que observemos atentamente a economia retórica do texto. A narrativa desenrola-se a partir da meninice tardia do Colégio Pedro II e da Academia (aqui referindo-se às faculdades de direito de São Paulo e do Recife), passa pela primeira viagem à Europa, pelo primeiro período americano (quando foi adido de legação em Washington), faz em seguida uma descrição entusiasmada de Londres; volta-se o relógio, comentando mais detidamente as impressões dos Estados Unidos (em contraste negativo com a Inglaterra), traça-se então um retrato afetivo do pai (o retrato político extensivo se faz no muito mais longo Um Estadista do Império), chegando à sua primeira eleição para a Assembleia Geral em 1879, obtida através de compadrio. No momento em que a expectativa dos desavisados seria a de um relato da abolição, Nabuco emprega uma ruptura narrativa radical que é o maior êxito estético da obra, e nos leva à sua primeira infância em Massangana, onde situa-se o clímax da narrativa: a descoberta da perversidade da escravidão. A partir daí encontramos sua visão (que na verdade são duas) da abolição, das promessas e frustrações do 13 de maio, sua idealização lamentosa do Império, um relato (tedioso se comparado ao resto do livro) da sua visita ao Papa, finalmente, um melancólico retrato do Barão de Tautphoeus, seu preceptor alemão, contado a partir dos seus últimos meses. O capítulo final faz as vezes de epílogo, tratando dos “Últimos dez anos”. A crítica da biografia e da autobiografia como gêneros tributários de uma “teoria do relato”2 que busca dar coerência a “uma sequência de acontecimentos com significado e direção [atribuídos]”, em suma, de uma “ilusão retórica”3, feita por Pierre Bourdieu, basta para afastar esse equívoco metodológico. O próprio Nabuco parece rejeitar a ideia do relato inteiramente coerente, observando em seu prefácio à primeira edição: “A data do livro para leitura deve assim ser 1893-99, havendo nele ideias, modos de ver, estados de espírito, de cada um desses anos” 4. Georges Gusdorf, embora mais metafísico e menos sociológico do que Bourdieu em suas reflexões, chega a conclusões semelhantes, tratando exclusivamente do gênero autobiográfico. A autobiografia, diz Gusdorf, é em primeiro lugar um empreendimento de salvação pessoal

5

disfarçado de relato

desinteressado: There is, then, a considerable gap between the avowed plan of autobiography, which is simply to retrace the history of a life, and its deepest intentions, which are directed toward a kind of apologetics or theodicy of the individual being. This gap explains the puzzlement and the ambivalence of the literary genre.6

Cabe, antes de efetuar propriamente a análise do texto, estabelecer uma distinção importante: o narrador de Minha formação não equivale à pessoa de Joaquim Nabuco. Isto pode ser estabelecido de maneira algo primária pela constatação de que 1) Minha formação

272

tem um acentuado caráter literário, de forma que certas passagens não refletem exatamente a experiência do indivíduo que escreveu o livro, seja por intenção, seja pelo caráter seletivo da memória, ou ainda pelo papel racionalizador que a (in)consciência humana tem na elaboração dela e 2) desenvolvimentos posteriores na vida de Nabuco (e mesmo escritos seus) chocam-se com enunciados contidos no livro. Com maior sofisticação conceitual, Roland Barthes expõe a identificação narrador-autor como impossibilidade ontológica, de cujas constatações que elenquei não são senão sintomas: Contrariamente à ilusão corrente das autobiografias e dos romances tradicionais, o sujeito da enunciação nunca pode ser aquele que agiu ontem: o eu do discurso já não pode ser o lugar onde se restitui inocentemente uma pessoa previamente guardada.7

Isto se explica pela assimetria subjetiva entre o enunciador e o interlocutor. Se a subjetividade do primeiro é sempre uma obra em progresso, o segundo absorve a enunciação do “eu” vinculando-a a um signo estável.8 O problema é permeado por ainda outra dimensão: a do efeito do ato de escrever sobre a construção do sujeito escritor. Se, num passado não especificado por Barthes (possivelmente pré-renascentista), o verbo escrever aparece sempre como transitivo, dotado de objeto (escrever um livro, um texto), na modernidade

ele

aparecerá também na forma intransitiva (escrever, simplesmente). Na linguística moderna, diz Barthes, a diátese (voz gramatical, ou seja, a posição do sujeito em relação à ação do verbo), não é exatamente uma distinção entre atividade e passividade, mas entre atividade e mediação9 (se algo ou alguém age sobre mim, estou mediando um determinado ato cujo fim, ainda que me diga respeito, está além do objeto como tal, no caso, eu). O “escrever” intransitivo, para Barthes, teria um aspecto de mediação, porque não seria um escrever puro e simples como um “nascer”, “acordar” ou “chegar”, mas um ato de tornar-se o centro do processo da escrita (de um livro, um texto).10 No ato narrativo moderno, produz-se um “eu” interno ao texto, diferente do “eu” que escreve, pré-textual, de sorte que a identificação entre um e outro não passa de uma “procuração indevida”, levada ao paroxismo pelo/no narrador de Em busca do tempo perdido, ente que só existe na condição de produtor de um texto.11 II. O narrador de Minha formação (se quisermos, o eu que nos acompanha ao longo do texto) é, admitidamente, um ser constantemente confrontado com o dilema entre “a pátria”, “fôrma em que cada um de nós foi vazado ao nascer”12 e a “atração do mundo”13. Por esta confissão, Nabuco mereceu o descrédito do modernismo brasileiro, cujo expoente maior, Mário de Andrade, chegou a alcunhar a euromania da elite brasileira de “a moléstia de Nabuco”14. Ricardo Benzaquen de Araújo propõe uma compreensão mais nuançada dessa

273

dualidade, ressaltando que sua exposição inicial como “a mais terrível das instabilidades” 15 está ligada a uma melancolia juvenil errática do “homem das multidões” de Edgar Allan Poe16 vivenciada na primeira viagem à Europa, durante a qual o narrador tem uma subjetividade “horizontal”17 incapaz da plena fruição das realizações estéticas do Ocidente, que se lhe afiguram como uma “infernal sucessão de impactos”18. Esta instabilidade obsta igualmente o desenvolvimento do juízo político – que, para Nabuco, tento demonstrar adiante, é tributário do juízo estético. A estada prolongada em Londres, por contraste, oferece ao narrador o desenvolvimento “vertical”19 por meio da tranquilidade idílica de uma “Arcádia moderna”20, menos confortável e espetacular do que Paris, mas acolhedora em sua “solidez eterna, egipcíaca”21. A erudita análise de Araújo, contudo, não desautoriza a persistência da dualidade transatlântica na maturidade de Nabuco, na forma daquilo que Maria Alice Rezende de Carvalho denomina um “esboço de sociologia da intelectualidade periférica”

22

e Evaldo

Cabral de Mello, em constatação semelhante, chama de articulação do “dilema do mazombo”, o descendente de europeus na América com um pé de cada lado do oceano 23. A oposição entre um Novo Mundo inculto pela civilização e uma Europa plena de monumentos do espírito humano é aspecto recorrente das memórias, e manifesta-se ainda num segundo vetor – Estados Unidos-Inglaterra. Carvalho nota que “parte considerável da coletânea autobiográfica dedica-se à confirmação dos efeitos que o legado civilizacional do Ocidente produziu sobre ele [Nabuco]”24. Os Estados Unidos de Minha Formação, em evidente contraste com aqueles que aparecerão nos escritos do Nabuco embaixador, estão muito longe da Arcádia anglo-saxã de Londres. Aqui, os anos de adido de legação oferecem um aprendizado das falhas do presidencialismo americano, evidenciadas pela corrupção generalizada e pela polarização partidária, ilustradas pelo caótico cenário pós-eleitoral de 187725. A “atmosfera moral” do país era “viciada”26, a “lei de Lynch (...) lhe está no sangue” e, aqui o narrador vê o pecado maior, há “uma população de 7 milhões, toda a raça de cor, para a qual a igualdade civil, a proteção da lei, os direitos constitucionais são contínuas e perigosas ciladas”

27

. Não tão

distante é o retrato da França, marcada pela instabilidade institucional, representada como a “casa de Ulisses” com vários “pretendentes”28, “um país e um país livre, mas sem espírito de liberdade arraigado, sujeito sempre às crises das revoluções e da glória” 29. A ojeriza à política americana é sobretudo uma ojeriza à política exaltada, contraposta à serenidade e parcimônia com que são conduzidos os negócios públicos na Inglaterra.

274

O já exposto estranhamento da política em moldes não-ingleses será

ainda

manifestado com relação ao Brasil. O narrador de Minha formação, cuja “imaginação europeia” é contraposta a um “sentimento brasileiro”, será marcado por uma percepção de não-pertencimento à maneira de fazer política do Brasil bragantino, ilustrado sinteticamente neste trecho: Com efeito, quando entro para a Câmara, estou tão inteiramente sob a influência do liberalismo inglês, como se militasse às ordens de Gladstone; esse é em substância o resultado de minha educação política: sou um liberal inglês — com afinidades radicais, mas com aderências whigs — no Parlamento brasileiro30

O narrador não era, é um “liberal inglês” – e não brasileiro, mantendo distância do próprio partido – “com afinidades radicais e aderências whigs” – prefere usar o vocabulário político inglês a encontrar um análogo brasileiro. Essa alteridade, que é dupla, se remetermos a sua caracterização dos homens do novo mundo na Europa como “squatters” “derribando a mata virgem”31 reafirma o dilema do mazombo. A excentricidade, a dualidade, a constante confrontação entre um estado d’alma e o real e o imediato é a marca da construção do sujeito em Minha Formação – e aqui parece haver uma persistente correspondência com a vida de Joaquim Nabuco. Conciliando esta proposição com o trabalho de Araújo32, chega-se a uma solução que mantém a dupla alteridade: a instabilidade juvenil é pacificada no espírito através da construção assertiva, vertical, de uma subjetividade transatlântica. Nabuco trilha um caminho próprio: seguirá no, parlamento brasileiro, um liberal inglês e um squatter na Europa. Compreendemos que o pano de fundo dessa instabilidade é a precedência, no pensamento de Nabuco, do juízo estético sobre outras formas de juízo. Trata-se de um traço subjetivo com múltiplas ocorrências no livro, sintetizado exemplarmente neste trecho: Há também pontos, ideias, modo de sentir que o escritor desejaria expressar por um outro Usted me entiende? levantando apenas a ponta do véu a seu pensamento, sem nada precisar, de fato, sem nada dizer. Cada um de nós é só o raio estético que há no interior do seu pensamento, e, enquanto não se conhece a natureza desse raio, não se tem ideia do que o homem realmente é. Nesta confissão da minha formação política, devo, para não deixar ver somente a máscara, o personagem, dar uma espécie de fotografia dos símbolos que se imprimiram e reproduziram mais profundamente no meu cérebro. Assim se reconhecerá que a política não foi senão uma refração daquele filete luminoso que todos temos no espírito.33

O trecho acima não é somente uma “confissão” de que a “formação política” do narrador se dá através de uma apreciação estética do mundo, mas revela, numa confidência

275

menos explícita, que o mosaico de imagens contido em Minha formação não é uma exposição extensiva do seu pensamento, mas uma série de instantes em que levanta a ponta do véu que o cobre – aqui há uma quase celebração da ambiguidade. A alusão à revelação fotográfica é especialmente feliz: a política é a impressão resultante do “raio estético” sobre o papel em branco e os grãos de prata de uma personalidade em formação. A ideia de juízo estético como elemento central da experiência humana certamente não é uma idiossincrasia de Nabuco. Ideia bastante similar aparece no ensaio intitulado Beauty da coletânea de ensaios The Conduct of Life, de Ralph Waldo Emerson, onde o autor afirma que “a beleza é a forma sob a qual o intelecto humano prefere estudar o mundo”34. Não há muita dúvida de que Nabuco foi um leitor entusiasmado de Emerson: um ensaio publicado posteriormente, Education, é citado no começo de Massangana35. A similitude entre esta proposição de Emerson e a redução de “cada um de nós” a um “raio estético”, combinada com diversos trechos da obra onde o narrador demonstra observar a política a partir do prisma da estética, sugere que essa leitura teria contribuído para enraizar sua crença na supremacia da estética sobre todas as dimensões da experiência. Ela esclarece, também, muito da instabilidade transatlântica de Nabuco: a atração pela Europa é também uma atração estética por uma política mais “bela” porque menos amesquinhada e oligárquica do que aquela que se vê no Brasil, e também por uma paisagem plena das realizações da civilização. O narrador explicita este último ponto quando diz que o Novo Mundo para tudo o que é imaginação estética ou histórica é uma verdadeira solidão, em que aquele espírito se sente tão longe das suas reminiscências, das suas associações de ideias, como se o passado todo da raça humana se lhe tivesse apagado da lembrança e ele devesse balbuciar de novo, soletrar outra vez, como criança, tudo o que aprendeu sobre o céu da Ática...36

III. Vimos que o Nabuco de Minha formação é um personagem atravessado

por

“instabilidades”. Ama o Brasil, mas sente uma irresistível atração pela Europa. É um político, mas sente uma abjeção pelo caráter mesquinho da atividade, em especial como ela é praticada em sua terra natal. Isso se reflete numa constante cisão subjetiva, que terá ainda outras ocorrências no texto. No capítulo mais famoso do livro, Massangana, Nabuco relata um acontecimento de sua infância a título de esclarecer seu posterior envolvimento com o movimento abolicionista. O evento propriamente dito é relatado com parcimônia:

276

Eu estava uma tarde sentado no patamar da escada exterior da casa, quando vejo precipitar-se para mim um jovem negro desconhecido, de cerca de dezoito anos, o qual se abraça aos meus pés suplicando-me pelo amor de Deus que o fizesse comprar por minha madrinha, para me servir. Ele vinha das vizinhanças, procurando mudar de senhor, porque o dele, dizia-me, o castigava, e ele tinha fugido com risco de vida... Foi este o traço inesperado que me descobriu a natureza da instituição, com a qual eu vivera até então familiarmente, sem suspeitar a dor que ela ocultava.37

Não obstante o horror que o evento lhe causa, o narrador não se furta de descrever a propriedade escravista onde passou sua primeira infância como um paraíso perdido, onde a escravidão era um “jugo suave”38, pelo qual ele diz sentir uma “singular nostalgia, (...) a saudade do escravo”39. Alguns leitores de Minha formação identificam nessas declarações uma confissão inadvertida de cumplicidade com a instituição servil 40. Podemos, adotando uma terminologia marxista, interpretar que Nabuco se encontrava sob os efeitos ideológicos do sistema produtivo escravista. O curioso, entretanto, é que o próprio Nabuco parece identificar os efeitos do escravismo sobre a consciência, como demonstra uma famosa passagem: É que tanto a parte do senhor era inscientemente egoísta, tanto a do escravo era inscientemente generosa. A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil. Ela espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade; seu contato foi a primeira forma que recebeu a natureza virgem do país, e foi a que ele guardou; ele povoou-o, como se fosse uma religião natural e viva, com os seus mitos, suas legendas, seus encantamentos; insuflou-lhe sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágrimas sem amargor, seu silêncio sem concentração, suas alegrias sem causa, sua felicidade sem dia seguinte... É ela o suspiro indefinível que exalam ao luar as nossas noites do Norte.41

Analisando detidamente a passagem, vemos que o efeito da escravidão aqui descrito é precisamente ideológico, especialmente poderoso por ter acompanhado o desenvolvimento da nação, que é vista como uma criança, desde o primeiro momento. Encontramos, portanto, mais uma “instabilidade” em Nabuco: entre a nostalgia da infância, que leva a uma idealização das relações servis, e o horror à escravidão por princípio. Isto pode ser melhor compreendido se levarmos em conta que atravessa o capítulo uma linguagem narrativa teológica, que opõe uma infância num paraíso onde reina a ignorância a uma consciência adquirida ao longo dos anos. Há um claro paralelismo com o episódio da queda. Massangana é antes de tudo o tempo da inocência, o tempo do egoísmo “insciente” do senhorzinho protegido pela insciente e doce generosidade do escravo, mas sobretudo pelos

277

encantamentos da escravidão. É a infância do narrador, mas também a infância do Brasil, algo não inteiramente terminado. Persiste, mesmo após a abolição, a “alma infantil” do país, que é dotado de emoções semanticamente associadas à alienação autocentrada (egoísmo insciente) das crianças: “tristezas sem pesar”, “lágrimas sem amargor”, “felicidade sem dia seguinte”. Massangana é o éden, mas o é sobretudo no sentido de um momento-lugar de ignorância, encapsulando o pano de fundo ideológico (os mitos, legendas e encantamentos) do Brasil escravista. Sucedem-se três momentos: paraíso/encantamento-conhecimento-queda. O abolicionismo é o pecado original do Brasil, no sentido de tomada de conhecimento da torpeza da escravidão. A expulsão do éden escravista se concretiza, de maneira a reforçar o paralelismo, com a imagem da deposição do rei-menino de Massangana. A madrinha morre, legando o engenho a um parente desconhecido: “Ainda hoje vejo chegar, quase no dia seguinte à morte, os carros de bois do novo proprietário... Era a minha deposição... Eu tinha oito anos.”42 A tomada de conhecimento estará completa quando, mais velho, o narrador volta ao engenho: O engenho apresentava do lado do “porto” o aspecto de uma colônia; da casa velha não ficara vestígio... O sacrifício dos pobres negros que haviam incorporado as suas vidas ao futuro daquela propriedade, não existia mais talvez senão na minha lembrança... Debaixo dos meus pés estava tudo o que restava deles, defronte dos columbaria onde dormiam na estreita capela aqueles que eles haviam amado e livremente servido, ali, invoquei todas as minhas reminiscências, chamei-os a muitos pelos nomes, aspirei no ar carregado de aromas agrestes, que entretém a vegetação sobre suas covas, o sopro que lhes dilatava o coração e lhes inspirava a sua alegria perpétua. Foi assim que o problema moral da escravidão se desenhou pela primeira vez aos meus olhos em sua nitidez perfeita e com sua solução obrigatória. Não só esses escravos não se tinham queixado de sua senhora, como a tinham até o fim abençoado...43

“Da casa velha não ficara vestígio”. O paraíso não é mais, resta dele apenas a lembrança e a constatação do sacrifício análogo ao de Cristo a que se submeteram os escravos de sua infância. A frustração em reencontrar o cenário da infância destruído resulta em catarse. O narrador conclui que o caminho de sua salvação é entregar-se à compensação pelo sacrifício dos “Santos pretos”44: a luta abolicionista. IV. Procuramos, nas últimas seções, analisar passagens de Minha formação onde identificamos um grau de dualismo. Compreendemos que este é um traço recorrente da prosa de Nabuco. De um lado, a ideia de uma cisão do sujeito narrativo pode dizer respeito à

278

própria compreensão de Nabuco sobre si mesmo e sobre o mundo. De outro, essa cisão enseja um efeito retórico que não é propriamente ambíguo, mas opera uma bifurcação de sentido. No caso da “instabilidade” transatlântica, a cisão é interna ao sujeito e tem como solução a produção de uma subjetividade cujo “sentimento” é brasileiro, mas cuja “imaginação” é europeia45. No segundo caso, observamos uma interpretação dual da escravidão: se, por uma lado, ela é uma abominação, uma mácula sobre o caráter nacional (e parte integrante dele), por outro, o narrador não deixa de sentir por ela uma “singular nostalgia”. Essa nostalgia pode ser interpretada como um desejo de retorno da escravidão, ou mesmo como uma avaliação de que a escravidão no engenho Massangana não seria tão ruim quanto em outras partes do país. Poderíamos ainda, sendo mais benevolentes com Nabuco, compreender que trata-se puramente de uma nostalgia da infância. Nossa avaliação é que, mais que isso, a nostalgia da escravidão é sintoma de um aspecto mais geral da interpretação que o livro contém sobre a instituição. A narrativa apresenta o Brasil escravista como um lugar pré-lapsariano, onde reina uma ignorância que obsta a consciência da perversidade do real. O fim da escravidão é representado como a queda, uma experiência dolorosa, a partir da qual a nação terá de lidar com as consequências de seu livre arbítrio, de seus pecados. Mais adiante no texto, Nabuco narra o episódio da Abolição de aparentemente confusa. Primeiro, no capíluto “A abolição”

46

maneira

trata-se de um processo

histórico, resultado da ação de segmentos socialmente enraizados. No capítulo seguinte, “Caráter do movimento – A parte da dinastia”47, a abolição é um “sacrifício” e a “assunção” da Princesa Imperial, que por seu grande gesto (a responsabilidade agora é atribuída inteiramente à dinastia) troca o trono pela emancipação dos escravos. Novamente, nota-se a inserção do acontecimento numa narrativa teológica. Uma leitura cética do texto, que certamente tem sua razão de ser, poderia identificar nessa estranha sucessão de narrativas que apontam em diferentes direções uma tentativa de Nabuco conciliar seu mérito no movimento abolicionista sem que isso signifique uma responsabilidade na queda da monarquia – afinal, ele vê um claro encadeamento entre a abolição e a queda do trono. Partilhamos em certa medida dessa interpretação, mas compreendemos que há algo mais a se extrair do texto. Esse movimento, onde um mesmo fato ou objeto é descrito e explicado no plano do real juntamente com sua representação num plano simbólico, cada um inserido numa diferente cadeia de causalidades, nos leva à hipótese de que, em Nabuco, o mundo é apreendido em duas partes, uma real, outra, transcendente, às quais correspondem diferentes mecanismos de produção de sentido.

279

1

Nabuco anotou em seu diário do dia 7 de janeiro de 1899, dois anos antes da publicação de Minha formação: “Grande discussão na casa de D. Marocas. Estão me achando muito mudado – quando o que muda não é o barômetro, é o tempo.” D. Marocas, prima de Nabuco, mantinha em casa, durante os primeiros anos da República, um salão frequentado por monarquistas. Evaldo Cabral de Mello, editor dos diários, observa em nota que a discussão teria sido ocasionada pelo mal-estar dos correligionários com sua volta ao serviço diplomático. NABUCO, Joaquim. Diários. 2ª ed. Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2006, p. 400. 2 BOURDIEU, Pierre. “A ilusão biográfica”. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína. Usos & abusos da história oral. Trad. Luiz Alberto Monjardim, 2ª ed. Rio de Janeiro: FGV Editora, 1996, p. 184. 3 Ibid., p. 185. 4 NABUCO, Joaquim. Minha Formação. 13ª ed. São Paulo: Editora 34, 2012, p. 37. Doravante, MF. 5 GUSDORF, Georges. “Conditions and limits of autobiography”. In: OLNEY, James (org.). Autobiography: Essays Theoretical and Critical. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 1980, p. 38. 6 Ibid., p. 39. 7 BARTHES, Roland. O rumor da língua. Trad. Leyla Perrone-Moisés, 2ª ed.. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 20. 8 Ibid., p. 20-21. 9 “[…] o que a diátese realmente opõe não é o ativo ao passivo, mas, sim, o ativo ao médio”, Ibid., p. 22. 10 Ibid., p. 22-23. 11 Ibid., p. 23. 12 MF, p. 70. 13 MF, p. 65. 14 Apud ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. “Através do espelho: subjetividade em Minha formação, de Joaquim Nabuco”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 19, n. 56, out. 2004, p. 6. 15 MF, p. 70. 16 ARAÚJO, op. cit., p. 8. 17 Ibid., p. 7. 18 Loc. Cit. 19 Ibid., p. 12 20 Ibid., p. 10. 21 Loc. cit. 22 CARVALHO, Maria Alice Rezende de. “Joaquim Nabuco: Minha formação”. In: Mota, Lourenço Dantas (org.). Introdução ao Brasil: Um banquete no trópico. 1ª ed. São Paulo: Editora SENAC, 2001, p. 228. 23 MELLO, Evaldo Cabral de. Um imenso Portugal: História e historiografia. 1ªa ed. São Paulo: Editora 34, 2002, p. 235. 24 CARVALHO, op. cit., p. 227. 25 MF, p. 150. 26 MF, p. 152. 27 MF, p. 122. 28 MF, p. 141. 29 MF, p. 122 30 MF, p. 185. 31 MF, p. 70. 32 ARAÚJO, op. cit. 33 MF, p. 72 34 EMERSON, Ralph Waldo. Essays and Lectures. Nova York: The Library of America, 1983, p-14. Tradução nossa. 35 MF, p. 188. 36 MF, p. 71. 37 MF, p. 190. 38 MF, p. 191. 39 MF, p. 190. 40 Cf. MORICONI, Ítalo. “Um estadista sensitivo: A noção de formação e o papel literário em Minha formação, de Joaquim Nabuco”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 16, n. 46, jun 2001, P. 171 e Azevedo, Célia Maria Marinho de. Quem precisa de São Nabuco? Estudos Afro-Asiáticos, v. 23, n. 1, jan-jun 2001, p. 85-97. 41 MF, p. 190-1. 42 MF, p. 194 43 MF, p. 195. 44 MF, p. 196. 45 MF, p. 70.

280

46 47

MF, p. 197-211. MF, p. 213-217.

281

O Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES) como câmara de gestão da crise para o capital (2008-2009) ANDRÉ PEREIRA GUIOTi Resumo: O trabalho objetiva revelar a importância assumida pelo Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), entre 2008 e 2009, como câmara de gestão dos efeitos da crise econômica internacional no Brasil. O CDES tornou-se palco privilegiado de avaliações e propostas entre altas autoridades do governo e conselheiros sobre formas de apaziguamento dos efeitos da crise econômica internacional. As estratégias de combate à crise advogadas pelo Conselho foram pensadas e articuladas sob hegemonia do grande capital, como formas de impulsionar a ampliação da reprodução das relações capitalistas de produção. Palavras-chaves: CDES – crise econômica – empresariado

Abstract The study aims to reveal the importance taken by the Council for Economic and Social Development (CESD), between 2008 and 2009, as effects of management chamber of the international economic crisis in Brazil. The CESD has become a privileged stage assessments and proposals between senior government officials and advisers on ways of calming the effects of the international economic crisis. Strategies to combat crisis advocated by the Council were conceived and articulated under the hegemony of big business, as ways to boost the expansion of the reproduction of capitalist relations of production. Keywords: CESD – economic crisis - business community 1.0 - Introdução: É inequívoco considerar que o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES) dedicou boa parte de suas atividades, debates e produção documental ao tema da crise econômica internacional durante os anos 2008 e 2009. No decorrer desses anos, o Conselho, através do Grupo de Acompanhamento de Conjuntura Econômica (GACE) – Monitoramento da Crise Econômica Internacional,ii e como apoio da SEDES, criou espaços de monitoramento e avaliação da crise econômica e promoveu eventos nacionais e internacionais, os quais participaram analistas econômicos estrangeiros, brasileiros e os próprios conselheiros, criando condições para que o tema fosse debatido mais aprofundadamente. Além disso, o CDES (conselheiros e governo) abrigou nas suas reuniões

282

plenárias a pauta da crise econômica internacional com a presença constante de ministros, da cúpula do BNDES e da Petrobrás. As autoridades governamentais e os conselheiros analisavam e discutiam os instrumentos interventivos acionados a fim de afastar e abrandar os efeitos nocivos que a crise trouxera na escalada crescente de lucros que vários setores econômicos vinham obtendo e esforçando-se na desobstrução na realização de mais-valor e sua apropriação pelo conjunto dos capitais instalados no país. Durante esse processo, do Conselho emanaram documentos cujas recomendações intentavam ingerir na administração da crise junto às autoridades, em especial ao Presidente da República e aos ministros de Estado, mas que também possibilitaram uma visão intra corporis mais bem elaborada sobre a nova realidade que se impunha: emitiu um parecer sobre a crise, uma moção com sugestões de ações a serem tomadas pelo Executivo, um documento sobre a rede de proteção social brasileira e outro sobre os impactos sociais da crise e os desafios postos por ela frente à continuidade do “crescimento com inclusão social”. As pautas inseridas nas discussões plenárias sobre a crise econômica buscavam atender, prioritariamente, os interesses de frações do capital instaladas no Conselho, reforçando-se como mais uma das casamatas da burguesia brasileira na gestão e saídas da crise, concomitante a abertura de novas frentes de atuação do capital pela via das políticas públicas e das linhas de ação frente à classe trabalhadora. 2.1 - A crise e o grande capital no CDES: expectativas, demandas e consagrações A primeira intervenção promovida pelo CDES com o intuito de compreender a crise econômica internacional e seus desdobramentos sobre a economia brasileira foi a realização, em 13 de março de 2008, do “1º Colóquio Perspectiva de Crescimento da Economia Brasileira e a Crise Internacional”. Nesse evento, os conselheiros emitiram um Pareceriii que foi apresentado ao Presidente Lula da Silva na 25ª reunião plenária, em 1º de abril de 2008. Nele, os conselheiros avaliaram que a crise do subprime era grave, que já havia se espalhado para outros mercados financeiros e identificavam a desregulamentação desses mercados como um problema a ser equacionado. Para o plano interno, diagnosticaram que o Brasil encontrava-se numa conjuntura confortável (reservas internacionais elevadas, entrada de volumosos investimentos externos, consecutivos superávits na balança de pagamentos, condição de credor líquido externo e taxa de inflação próxima ao centro da meta (4,5%). iv Alertaram ainda que “o medo exagerado da inflação pode nos levar a cometer o mesmo erro cometido em 2004”, em alusão à elevação da taxa de juros pelo Banco Central naquela ocasião, o que havia abortado “uma recuperação incipiente da economia”.v Por fim, o Parecer

283

recomendava, em síntese: a) incentivos às exportações, ampliação de crédito, desonerações de impostos sobre o setor produtivo; b) buscar formas de regulação dos mercados financeiros; c) impedir que a deterioração da balança comercial recolocasse a economia na trajetória da vulnerabilidade externa; d) intensificar as relações econômicas com o Mercosul e a América do Sul, incluindo “os outros BRICs”.vi Quando da apresentação do Parecer na 25ª Reunião Plenária, o conselheiro Antoninho Trevisan (FIESP/MBC), falando ao Presidente Lula da Silva, lembrou que não se cometesse “o mesmo erro que cometemos em 2004 [em que] se instalou uma política monetária (...) que jogou por terra um processo de crescimento que estava ali sendo iniciado com grande vigor”. Logo depois, insistiu no lembrete, afirmando que: Neste Colóquio, Presidente, nós discutimos profundamente o tema e ficamos tranquilos em vir e aconselhá-lo para que o senhor não nos decepcione nesse aspecto. O Brasil está numa rota formidável. Nós não estamos enxergando nenhum ponto de ruptura. A economia está sólida, o mercado financeiro está sólido, as empresas estão bem, as centras sindicais estão felizes (Ata da 25ª Reunião Plenária, 01/04/08, p. 33 – grifos meus).

Percebe-se que, nesse cenário inicial de discussão sobre a crise no CDES, os conselheiros envolvidos não previam nenhuma expectativa, ao menos a curto prazo, de conturbações econômica e política no país. O fato de “não enxergar nenhum ponto de ruptura” significava que as lideranças empresariais e sindicais – aliás, é sintomática a absoluta desconsideração das organizações e movimentos sociais presentes vii – expressavam satisfação quanto à manutenção do ritmo de crescimento econômico e seus rebatimentos na contenção da luta social, principalmente por meio da expansão do consumo das classes subalternas, instável e precariamente remediadas pela facilitação ao endividamento creditício (via crédito consignado e/ou via crediário comercial), pelas políticas de transferências de renda e pelos ganhos reais salariais, ainda que bastante modestos, mas que ofereceu certo “suspiro” às classes trabalhadoras mais pauperizadas. Deve-se levar em conta que a crise (econômica), para amplos setores burgueses, define-se por qualquer possibilidade ou ameaça de rebaixamento da taxa de lucros e de investimentos. Apesar do hibridismo dos segmentos sociais que constituíam o CDES, (ou, por isto mesmo, diante da configuração a qual foi constituído) quem diagnosticava e definia o que era a crise, ou seja, quem conduzia a produção da imagem da crise, seus requisitos e formas de enfrentamento, eram os setores do capital e/ou seus intelectuais. É necessário alertar o que estava em jogo: os conselheiros participantes do 1º Colóquio sobre a crise econômica, por meio do representante da FIESP/MBC (Trevisan), expuseram para o presidente Lula da Silva na 25ª Reunião Plenária que o Brasil estava inserido numa “rota formidável”, ao mesmo

284

tempo em que definiam ações contra a crise preventivamente. Ou seja, inaugurou-se uma retórica da crise dentro do Conselho: para impedir ou reduzir os impactos da crise era preciso fortes realocações dos recursos públicos para o capital de forma preventiva e urgente. Diante o aprofundamento da crise, em outubro de 2008 o GACE do CDES promoveu o “2º Colóquio Perspectivas de Crescimento da Economia Brasileira e a Crise Internacional” com a participação de Luiz Gonzaga Belluzzo.viii Desaceleração de alguns setores exportadores, represamento da liquidez e do crédito e a desvalorização do real foram fatores que, aos olhos dos conselheiros, mostravam o impacto da crise no Brasil. Davam como importantes as medidas até então adotadas pelo governo, embora não as considerassem suficientes. Propuseram, diante disso, a elaboração de uma moção a ser encaminhada ao Presidente da República a fim de apresentar os principais pontos analisados e as recomendações do CDES, demandando a manutenção do debate sobre o tema no Conselho.ix A entrega da moção do Comitê Gestor do CDES ao Presidente Lula da Silva foi realizada em audiência no dia 24 de outubro de 2008 quando o próprio Presidente definiu a conjuntura econômica internacional como tema a ser debatido na 28ª reunião plenária.x No conteúdo, a moção entregue ao Presidente dizia que o objetivo era oferecer recomendações para o enfrentamento aos efeitos da crise, ressaltando a capacidade das condições econômicas criadas desde 2003 de “agir e proteger o desenvolvimento com distribuição de renda”, alertando que os “vasos comunicantes entre as economias nacionais” poderiam causar consequências danosas para o Brasil e que os impactos da crise já se faziam presentes. Solicitava também a adaptabilidade das políticas monetárias e fiscal ante a situação de crise e a ação imediata do Estado. As recomendações eram as seguintes: 1.

2.

3. 4.

Intensificar a ação do Banco Central visando à estabilização do câmbio, num nível de equilíbrio, variável fundamental para restaurar o comércio internacional e a previsibilidade para os investimentos privados de médio e longo prazo. Restabelecimento do crédito para as atividades produtivas e o comércio, o que exige uma intervenção mais ativa da autoridade monetária com relação aos bancos públicos e privados. Suspensão do processo de aumento da taxa de juros (SELIC) a partir da próxima reunião do Copom. Manutenção da taxa de crescimento dos investimentos públicos, do compromisso com o Programa de Aceleração de Crescimento, com a Política de Desenvolvimento Produtivo e com os Programas Sociais.xi

Na 28ª reunião plenária, ocorrida em 06 de novembro de 2008, os ministros Guido Mantega, Henrique Meireles e Dilma Rousseff pareciam estar munidos de dados e argumentos suficientes para acalmar os ânimos e dissipar preocupações, legitimando as ações do governo por meio da abordagem de todos os pontos contidos nas recomendações dos conselheiros apresentadas pela moção.

285

Guido Mantega afirmou que o pior da crise econômica internacional já havia passado e que se estava saindo da fase mais aguda. Após rápida exposição das dificuldades da economia internacional naquele momento (falta de crédito, saída de capitais e

de

investimentos nas economias emergentes, desvalorização cambial, queda das bolsas de valores), apresentou algumas “medidas emergenciais importantes” tomadas pelo governo que, bastante sumariamente, podem ser elencadas: Liberação do compulsório bancário (maior volume de recursos disponibilizados pelo BACEN aos bancos para concessão de empréstimos, créditos, etc); Venda de dólares do governo no mercado futuro (swap) – importante na oferta de liquidez de dólares, beneficiando setores exportadores (R$ 14 bilhões); Oferecimento de melhores condições para linhas de financiamento de exportações; Financiamento da produção: R$ 90 bilhões para investimentos via BNDES para vários setores: para expansão de projetos de petróleo e gás e projetos navais; para o Revitaliza (incremento no capital de giro das empresas) e para a construção civil na realização de projetos habitacionais, via CEF (R$ 3 bilhões) com recursos da poupança habitacional; Financiamento da Agricultura: antecipação de desembolsos do BB; recursos adicionais de vários fundos (R$ 5 bilhões); aumento do crédito direcionado; garantia de preço mínimo para comercialização dos produtos agrícolas; Com a MP 443, ficaram autorizados o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal adquirirem participação acionária nos bancos privados. Criação da Caixa Banco Investimento para adquirir participações minoritárias no setor de habitação, oferecendo capital de giro às empresas do setor; Para o setor automobilístico: o BACEN disponibilizou parte a mais do compulsório dos grandes bancos privados para ser direcionado à irrigação dos bancos do setor automotivo; Disponibilização de mais R$ 5 bilhões para pequenas e médias empresas via BB e mais R$ 10 bilhões, via BNDES, para capital de giro de grandes e médias empresas para préembarque de exportações; Prorrogação de prazo para pagamento de tributos (IPI, PIS e COFINS); Aceleração da devolução do crédito tributário às empresas; Manutenção dos investimentos no PAC, no Pré-Sal e nos programas sociais; Contenção do crescimento dos gastos de custeio.

286

Após o relato das medidas que vinham sendo adotadas pelo governo, Mantega esforçou-se em apresentar dados que convencessem os conselheiros de quanto o país estava preparado para enfrentar a crise. Procurou ressaltar indicadores econômicos que os tranquilizassem, tais como crescimento do PIB, redução do déficit fiscal e da dívida líquida do setor público, aumento do superávit primário, elevação do consumo, a criação da “nova classe média”, manutenção de elevadas reservas internacionais, controle inflacionário, aumento dos investimentos do governo, principalmente em infraestrutura, manutenção do nível de emprego e da renda. Contra o encolhimento do comércio internacional, Mantega ressaltou sua substituição pelo mercado interno e frisou o aumento das exportações para os países emergentes. Sobre a redução da volatilidade cambial e da bolsa de valores, Mantega enfatizou que a situação de crise ainda perdurara, mas que estava se estabilizando aos poucos. Foi Henrique Meirelles quem, sobre esse assunto, mais claramente respondeu às demandas empresariais no Conselho, ressaltando a venda de dólares futura (swaps cambiais) no valor de 24,5 bilhões de dólares e o anúncio de que o BACEN estava preparado para vender até 50 bilhões de dólares, permitindo reduzir a volatilidade do mercado de câmbio sem comprometer reservas internacionais. A então ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, diz ser a continuidade de execução do PAC “a forma diferencial com que como enfrentamos essa crise”, em comparação à gestão do governo FHC. Ressaltou o “caráter anticíclico” do programa, posto que sustentava “patamar elevado de investimento público e privado”, já que “assegura a manutenção desse ciclo de crescimento econômico, principalmente porque há essa decisão do governo do PAC não ter cortes, do PAC ter como sustentação essa capacidade do governo de organizar essa demanda e assegurar crédito de longo prazo”.xii As exposições dos ministros satisfizeram boa parte dos conselheiros, ao menos dos que se manifestaram na reunião. Os mais empolgados foram Paulo Godoy (presidente da ABDIB), Armando Monteiro Neto (presidente da CNI), Fábio Barbosa (presidente da Febraban) e Abílio Diniz (presidente do Grupo Pão de Açúcar), ou seja, algumas das mais destacadas lideranças empresariais e de suas entidades no país. O conselheiro Paulo Godoy reconheceu que alguns pontos da moção entregue à Presidência foram levados em consideração nas medidas adotadas pelos ministros (questão do câmbio, do crédito e da proteção ao mercado financeiro), e de que era preciso avançar na reforma tributária (ponto recorrente no CDES) e na concessão de portos e aeroportos para iniciativa privada.xiii

287

O empresário Armando Monteiro Neto, por sua vez, elogiou o esforço do governo na adoção das medidas anunciadas: Nós não podemos deixar de reconhecer que nesse contexto, o repertório de medidas que vêm sendo adotadas pelo Governo, sem nenhuma dúvida, representam medidas adequadas no seu conjunto, e que têm sido adotadas de maneira razoavelmente tempestivas (...) e quero saudar nesse momento, a notícia que o Ministro Guido Mantega nos anuncia de medidas relacionadas com a ampliação de prazo de recolhimento de tributos (...) (Ata da 28ª reunião plenária, 06/11/08, p. 16 – grifos meus).

O conselheiro Fábio Barbosa, igualmente, ressaltou que “diversas medidas já foram implementadas pelo Governo, boa parte fruto de diálogo com o setor privado” (grifos meus), destacando que a “irrigação do sistema”, fruto da liberação de compulsório, “tem ajudado muito a aumentar a liquidez e a restabelecer o equilíbrio do mercado”. Na mesma reunião, o Presidente Lula da Silva validou a observação de Fábio Barbosa sobre o fortalecimento e/ou abertura de pontes e fluxos entre Estado e empresários para o gerenciamento da crise: Uma coisa importante e que faz diferença é consultar os setores envolvidos antes de a gente tomar uma decisão, porque muitas vezes, na pressa de acertar, a gente dá um tiro no pé ou dá um tiro onde não deveria dar. Então, nós sempre tomamos o cuidado de conversar com os setores econômicos. Quase todos os setores aqui já foram ouvidos pelo governo (Presidente Lula da Silva, Ata da 28ª Reunião Plenária, 06/11/08, p. 23, grifos meus).

Claro está que os conselheiros não se limitavam a monitorar ou a acompanhar a evolução da crise econômica e seus reflexos no Brasil. Detinham papéis muito mais complexos e visualizavam o contexto de ameaça de profunda instabilidade e de real desaquecimento econômico (em 2009, principalmente) para recuperar, reforçar e ampliar o conjunto de medidas que estavam sendo demandadas por seus setores bem antes da deflagração da crise. Como espécie de “vigia-noturno” (o Conselho trabalhava com pouca inserção e aparição nos grandes meios de comunicação), as recomendações colocadas em 2008 seriam repostas e reforçadas em 2009, cobrando das autoridades dos altos escalões ministeriais e da Presidência da República a celeridade, a execução e/ou a ampliação das medidas que, apresentadas como “sugestão”, se colocavam, naquela conjuntura, cada vez mais como roteiros e rumos inevitáveis ou inescapáveis. Para os conselheiros nada estava garantido e era preciso estar à espreita, acompanhando o movimento e, ao mesmo tempo, direcionando-o. Tampouco os encaminhamentos propostos eram congruentes e sem tensões. Nos debates para a construção da Agenda para um Novo Ciclo de Desenvolvimento (ANC), por exemplo, durante o ano de 2010, apareceram importantes divergências de fundo entre o

288

segmento empresarial e as lideranças das centrais sindicais no que tange, principalmente, a quatro temáticas: redução da jornada de trabalho para 40 horas semanais, xiv implementação da resolução 158 da OIT,xv regulamentação do imposto sobre grandes fortunasxvi e desoneração da folha de pagamento.xvii Um sumário acompanhamento da evolução desses temas no primeiro governo de Dilma Rousseff demonstra que apenas a última proposta (empresarial) foi implementada, aprimorada e ampliada. Importa-nos destacar que no Conselho, especialmente a partir da crise econômica internacional em 2008, predominavam as demandas empresariais que marcavam a pauta empresarial anterior e que se exponenciaram a partir de intensa, ampliada e exigente vocalização e recorrente presença nos documentos internos do CDES sobre a crise. Não seria o caso – prolixo e improdutivo – de esmiuçar a gama de reivindicações, demandas, recomendações, enfim, presente em cada documento produzido pelo Conselho na administração (diagnóstico, prevenção e encaminhamentos) da crise. Na 31ª reunião plenária do CDES, em agosto de 2009, o conselheiro Antoninho Trevisan, discursando diretamente ao presidente Lula da Silva, na condição de membro do Comitê Gestor, assinalava a satisfação dos conselheiros quanto ao atendimento, pelo governo, de algumas medidas consideradas essenciais para o combate à crise, um ano depois da entrega da moção ao presidente: (...) eu quero enfatizar que o momento histórico desse Conselho foi quando no dia 14 de outubro de 2008, o Comitê Gestor, de posse desse documento aprovado neste plenário, se reuniu com o Presidente Lula para apresentar a ele as conclusões deste Conselho acerca da crise que estava se instalando e já se instalara nos Estados Unidos e na Europa e na Ásia. Aí apresentamos ao Presidente quatro pontos: juros - deveriam ser compatíveis com a rentabilidade do setor produtivo. A gente descobre que se os juros cobrados no setor produtivo são maiores do que a rentabilidade do setor produtivo ele só tem um resultado, a empresa vai quebrar, como 2 e 2 são 4. E o Presidente Lula incorporou essa visão. Segunda visão, o crédito. O Conselho de Desenvolvimento afirmou para o Presidente que era a hora de manter a economia aquecida e o Presidente decidiu não aderir a crise, como muita gente fez. Como é que você faz a adesão a crise? Fácil. Suspende o crédito e aumenta os juros e suspende os investimentos. (...) O terceiro ponto, o câmbio. O câmbio não podia ficar solto e o Presidente também incorporou essa visão. (...). E, finalmente, a questão do emprego. O Presidente incorporou esses quatro pontos e transformou isso em ação. E aí, então, vai a minha saudação aos bancos públicos brasileiros, na pessoa do Presidente do Banco do Brasil, que seguramente deu uma aula de como é que se faz uma gestão na crise, graças a esse Conselho, Ministro (Conselheiro Antoninho Trevisan, ATA da 31ª reunião plenária, 27/08/2009, p. 8, grifos meus).

Na 32ª reunião plenária, de dezembro de 2009, os ministros Guido Mantega e Luciano Coutinho anunciaram mais medidas econômicas que iam ao encontro das solicitações dos empresários no Conselho, principalmente no que se refere à oferta de crédito e outros

289

incentivos governamentais como desonerações e suspensões tributárias e criação de novas linhas de desembolsos do BNDES em prol de setores do capital. A direção e o teor destas e de outras medidas anunciadas pelas autoridades responsáveis pelas políticas fiscais, monetárias e de investimentos do Estado e de combate à crise econômica sobrevinham na esteira de ações de incentivo ou de impulso ao desenvolvimento do capitalismo nos governos Lula da Silva. Contudo, pelo até aqui exposto, muitas das principais demandas do grande empresariado presente no CDES foram não apenas atendidas, como também ampliadas. Todos os setores representados no CDES foram contemplados pelas medidas governamentais, inclusive do setor bancário-financeiro, o que não podia ser diferente no atual estágio de monopolização financeira (união entre capital funcionante e monetário) do capitalismo, não importando seu esvaziamento no CDES a partir de 2007. Não houve fração do capital preterida pelas políticas públicas de inibição da crise econômica anunciadas pelos ministros no CDES. Vários setores do capital produtor de valor foram mais atendidos: a indústria de bens de capital, a indústria de infraestrutura, a indústria petroquímica, a agroindústria e a indústria automobilística. Também foram atendidas demandas empresariais para incentivos as médias e pequenas empresas. O afinamento da interlocução governo/empresários era um requisito fundamental para o funcionamento da hegemonia no período. 3.0 - Conclusão: As soluções para a crise econômica no CDES (conselheiros e governo) passava necessariamente à indução de políticas para o capital (denominadas de “anti-cíclicas”) e requisitava o aprofundamento da trajetória de crescimento econômico e não propriamente de “desenvolvimento social sustentado”. A crise, entretanto, foi capaz de propiciar uma alavancagem muito mais célere e ampliada no acolhimento das demandas empresariais. É evidente que a “opção brasileira para o enfrentamento da crise” intencionava universalizar o programa do capital para o conjunto das forças políticas e sociais do país, buscando não apenas adesão de um programa particular, mas apelando ao reconhecimento de que a todos pertencem. De profícuo poder de síntese, lançamos mão do parágrafo constante no documento “Impactos sociais da crise econômica internacional e os desafios do desenvolvimento: o papel do Estado e da Sociedade Civil”, produzido na ocasião da “Primeira Reunião da MesaRedonda Brasil-União Europeia da Sociedade Civil”, em julho de 2009: A opção brasileira para o enfrentamento da crise foi pela dinamização da economia pela base, com ampliação do crédito e desoneração de tributos para incentivar os investimentos produtivos; e fortalecimento do mercado interno. No conjunto, a distribuição de renda, o crédito produtivo e a construção de infraestrutura respondem

290

claramente a demandas prioritárias do País e, ao mesmo tempo, atenuam sua vulnerabilidade frente à crise.xviii

Contudo, gostaria de chamar a atenção que, embora bastante conciso e objetivo, esta mensagem toca em apenas uma e somente uma reivindicação de caráter originalmente popular: a distribuição de renda. As demais “demandas prioritárias do País” vinculavam-se diretamente aos anseios do capital. Trata-se de um trecho exemplar e significativo do entendimento e do papel do CDES como câmara de gestão da crise para o capital e, em nenhum momento, se contradiz ou se afasta, assim como as demais demandas até aqui apresentadas, das medidas anunciadas pelos ministros nas reuniões plenárias. i

Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF), sob a orientação da Prof. Dra. Virgínia Fontes. E-mail: [email protected]. Pesquisa financiada pela CAPES. ii Consta no site do CDES que o GACE - Monitoramento da Crise Econômica Internacional era constituído por 66 conselheiros. Verificamos que 39 deles eram empresários, ou seja, 60% do total. iii O Parecer foi elaborado pelos conselheiros João Paulo dos Reis Velloso (INAE/Fórum Nacional), Antoninho Trevisan (FIESP/MBC) e Laerte Teixeira da Costa (vice-presidente da UGT) a partir do exame dos conferencistas sobre a crise econômica internacional e a conjuntura econômica brasileira. iv SEDES. Trajetória do Debate no CDES sobre a Crise Econômica Internacional, 2ª ed. 2013, p. 25. v Idem, p. 26. vi Idem. vii Das lideranças dos movimentos sociais populares no CDES, a partir de 2007, restaram os seguintes conselheiros: Joênia Batista Carvalho (Conselho Indigenista de Roraima), Júlio Aquino (Conselho Nacional de Seringueiros) e Manoel da Cunha (Conselho Nacional das Populações Extrativistas). Importante ressaltar que esse último entrou em 2009 quando os dois primeiros saíram, isto é, ficou isolado diante de representantes de outras organizações sociais. viii Secretaria de Relações Institucionais (2008b). CDES e a crise financeira internacional. p. 01. ix Idem, p. 02. x SEDES. Trajetória do Debate no CDES sobre a Crise Econômica Internacional, 2ª ed. 2013, p. 16. xi SEDES. Relatório de gestão 2008. Brasília: 2009b, p. 72-73. xii Cf. Ata da 28ª Reunião Plenária, 06/11/2008, pp. 03-13. Disponível em . Acesso em 12/01/2015. xiii O Programa de concessões de portos, aeroportos e outras rodovias foi realizado em 2013, sob o governo de Dilma Rousseff. xiv A proposta de redução da jornada de trabalho prevista, dentre outras medidas, pela PEC 393/01, continua em espera de votação no Congresso Nacional. Os sindicalistas do CDES argumentavam que o aumento da produtividade em vários setores da economia não havia sido acompanhado da contrapartida distributiva destes ganhos através da redução da jornada de trabalho no país. xv Trata-se da garantia contra dispensa imotivada do trabalhador. Em 12/08/2011, foi rejeitada pela Comissão do Trabalho da Câmara dos Deputados a Mensagem 59 que, enviada pelo Presidente da República ao Congresso Nacional, objetivava ratificar a Convenção 158 da OIT. xvi A proposta do Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF) aparecia nos debates do CDES principalmente por meio do GT Reforma Tributária. A respeito do Imposto sobre Grandes Fortunas e Heranças (IGF) dizia o relatório do GT: “O CDES considera importante regulamentar o dispositivo constitucional que trata da tributação sobre grandes fortunas e sobre heranças, entendendo que deve ser feito de forma que não desestimule a poupança e o investimento” (SEDES. Relatório do Grupo de Trabalho Reforma Tributária. Brasília, Presidência da República, CDES, 2007, p. 05). xvii Em 2011, sob a vigência do Plano Brasil Maior, foi implementada a desoneração da folha de pagamento apenas a quatro setores: confecções, produção de calçados, móveis e software. Atualmente beneficia 56 setores da economia e, a partir da lei 13.043 de novembro de 2014, tornou-se permanente. xviii SEDES. Trajetória do Debate no CDES sobre a Crise Econômica Internacional, 2ª ed. 2013, p. 42.

291

O ESTADO BARROCO: A MUDANÇA NA GESTÃO POLÍTICA DO XVII ANDRÉ RICARDO DE OLIVEIRA BARBOSA* RESUMO: O XVII europeu, também denominado como século barroco, é marcado por uma profunda crise nas esferas econômica, monetária e social. Visando um melhor controle nesta época turbulenta e de desordem, os Estados modificam a sua forma de governar os territórios – inclusive nas suas próprias colônias ultramarinas – e suas respectivas populações, cada vez mais propícias a revoltas neste clima de instabilidade. Apesar das novidades na direção estatal, que se torna dinâmica e inovadora, sua finalidade conservadora por excelência se mantém. Palavras-chave: Barroco; século XVII; gestão política. ABSTRACT: The 17th european, also known as baroque century, is marked by a deep crisis in the economic, monetary and social spheres. For better control in these turbulent times and disorder, the States modify their form of governing the territories - also including its own overseas colonies - and their populations increasingly, prone to revolts in this climate of instability. Despite the new direction in the state, which becomes dynamic and innovative, its conservative purpose forr excellence remains. Keywords: Baroque; 17th century; political management.

O XVII europeu é marcado por uma consciência social de crise devido a um somatório de fatores: desordem econômica – com safras ruins, há o abandono de propriedades –, monetária – intensa inflação, gerando preços excessivos – e social – quatro grandes pestes, fome e miséria acabam por acarretar uma exponencial quantidade de óbitos, dizimando em torno de um quarto da população europeia. É o Barroco, pois, o documento cultural desta circunstância de instabilidade, desconcerto, desordem, pessimismo, desencanto e desilusão. Nesta conjuntura caótica do Barroco, o mundo passa a ser visto tal qual um teatro1. Esta analogia ocorre devido ao caráter transitório do papel social designado a cada um neste desconcertante XVII: com os fatores de desordem apontados acima, há a possibilidade de que, da noite para o dia, um indivíduo com privilégios acabe perdendo boa parte de seu prestígio ou, ao contrário, que outro, de poucos recursos, acabe ascendendo neste momento de instabilidade. Assim sendo, de acordo com o historiador espanhol José Antonio Maravall, ecoa, nesta sociedade, um sentimento de liberdade, ou seja, uma sensação de ausência de prédeterminação social. Os homens não se viam mais como o resultado de um fato previamente feito, acabado, mas sim, ao contrário, do processo de um contínuo fazer-se, no qual sentiam

292

que podiam conduzir-se de acordo com a decisão da sua vontade própria. Por conseguinte, por conta de tais características de afirmação da independência de suas determinadas ações, surge a possibilidade de severas críticas e desobediência às condutas dos dominantes – tanto os senhores, quanto, sobretudo, os governantes –, gerando um gravíssimo problema para estes últimos. É, pois, a tensão viva entre a autoridade e esse sentimento de liberdade a grande questão do Barroco: aquela tenta reduzir este através de transformações nas estruturas internas dos seus governados2, a fim de conquistarem mais eficazmente tal objeto – e, nas palavras do próprio Maravall, “não há cultura barroca sem o triunfo, temporalmente, da autoridade”3. Sendo assim, estas forças liberadas são consideradas ameaçadoras para o Estado, o qual busca, de toda maneira, contê-las. Isto é que é o cerne da concepção do Barroco maravalliano. Nas palavras de Rosário Villari, cuja abordagem é similar, esta singular conjuntura do XVII nada mais tratar-se-ia do que “uma resposta, promovida pelas classes dirigentes e pelos governos, à ameaça da rebelião e do protesto social” 4, através de “maneiras de conter o povo com o objetivo específico de obviar aos rumores e aos levantamentos”5. Para tal finalidade de contenção dos seus ânimos, é necessária, pois, a “manipulação de opiniões e sentimentos de um amplo público”6 – obra de uma astuta engenharia política, nas palavras de José Antonio Maravall, a qual visa “impedir o andamento das mudanças sociais e políticas e manter energicamente os quadros estamentais da sociedade”7. Pode-se dizer, então, que o centro da discussão do Barroco maravalliano não é o estilo barroco nas artes ou na literatura, mas sim o Estado moderno – o Estado barroco: é nele – ou, melhor abordando, na “relação do seu poder político (...) com a massa dos súditos 8”9 – que se baseia sua análise desta referida conjuntura. É através deste vínculo que surgem as características principais desta singular cultura: “a cidade, como cenário privilegiado; o dinheiro, como veículo de consumo ostentatório; as classes ociosas e seus serviçais também ociosos; a emergência de uma mentalidade calculista e de comportamentos pragmáticos; e o individualismo”10. Cabe, porém, para além destas características resultantes do elo governantegovernados, ressaltar o elemento central e que determina a especificidade da visão analítica de José Antonio Maravall. Para este autor espanhol, a questão do Barroco não se resolve no plano da história das artes ou das letras, não podendo ser tratado meramente como sinônimo de um dado estilo artístico. Em contraposição, deve ultrapassar estes aspectos formais de referência arquitetônica, envolvendo, então, na sua carga semântica, abordagens dos aspectos culturais, sociais e políticos, fornecendo-lhe uma amplitude conceitual.

293

Visualizado sob esta ótica, a conjuntura do século XVII, na análise singular do autor de A cultura do Barroco, não teria mais uma reles concepção de estilo, mas sim seria um conceito de época – ou, conforme o próprio subtítulo do mesmo, uma estrutura histórica – que diz respeito a uma fase da evolução processual do Estado moderno, estendendo-se a todas as manifestações culturais e sendo um fenômeno exclusivamente europeu – ao menos na sua gênese, uma vez que se expandiu às possessões ultramarinas destes países. Visando melhor compreender a análise maravalliana, é necessário definir o que seria um conceito de época em um tripé caracterizador. Primeiramente, ao contrário do conceito de estilo, ele não pode ser repetido fora de sua temporalidade histórica, ou seja, é um fato histórico único. Em consonância a esta marca singular, um dos elementos que caracteriza tal conceituação é justamente uma definição concreta e determinada de conjuntura temporal no qual unicamente ocorre11. Por fim, somada à demarcação no quesito tempo, um conceito de época também possui uma delimitação específica na questão espacial12. É precisamente a articulação entre estes três elementos – impossibilidade de repetição, delimitação temporal e determinação espacial – aquilo que possibilita nomear uma ocorrência histórica de conceito de época. O Barroco apresenta, por conta disso, uma “relativa homogeneidade nas mentes e nos comportamentos dos homens”13, fruto apenas de “condições similares ou conexas de uma situação histórica e não de outros fatores” 14, como estéticos, por exemplo. Portanto, é esta referida similitude de uma conjuntura histórica que dá forma ao que é ser barroco, bem sintetizado por José Antonio Maravall: a economia em crise, as alterações monetárias, a insegurança do crédito, as guerras econômicas e, ainda, o fortalecimento da propriedade agrária senhorial e o crescente empobrecimento das massas criam um sentimento de ameaça e de instabilidade na vida social e pessoal, dominado por forças de imposição repressora que estão na base da gesticulação dramática do homem barroco e que nos permitem denominá-lo desse modo. 15

Este sentimento de ameaça e de instabilidade que reina no XVII dá fruto a uma série de caracterizações adjetivas dos próprios homens do barroco à conjuntura que vivenciavam. De acordo com Rosário Villari, Os europeus do século XVII tiveram também uma ideia particularmente dramática do período em que viveram e conseguiram transmiti-la aos seus sucessores: século de ferro, mundus furiosus, época de tumultos e agitações, opressões e intrigas, em que “os homens transformados em lobos se comem uns aos outros”, tempo de desordem, de destruição, de subversão de hierarquia, de fantasias; época de grandes tensões, em suma, muitas vezes consideradas mais como negativas do que como etapa necessária para se atingir um maior equilíbrio social e político e uma mais profunda e abrangente capacidade criativa. 16

294

Quatro são os pilares essenciais que o autor de A cultura do Barroco pauta como as características sociais desta diferenciada cultura do XVII – as quais, por conseguinte, acabam por delinear e orientar o modo de agir do próprio Estado perante esta diferenciada sociedade, transformada e sob novos moldes: a supradita conjuntura é dirigida, massiva, urbana e conservadora, de acordo com a ordem de sua análise. Destas características, as principais e determinantes para se obter uma melhor elucidação sobre a singular conduta dos Estados barrocos são as de ser dirigida e conservadora. Por conta da tensão entre a autoridade e um sentimento – próprio do século barroco – de liberdade da população, conforme já exposto anteriormente, a principal das quatro características que formatam esta específica conjuntura – apesar do mencionado autor não efetuar tal destaque hierárquico – é a de ser uma cultura dirigida. Conforme a própria nomenclatura já infere, esta adjetivação refere-se ao fato de que os governantes barrocos agem na busca de dirigirem sua população, ou seja, objetivam controlar, da melhor forma possível, a conduta desta. Assim sendo, esta prática do condutismo nada mais é do que um instrumento operativo, de fins pragmáticos e baseada na prudência de um governo que teme o caos de prováveis revoltas daqueles que, como já dito, sentem-se livres para agir por conta própria e questionar as autoridades17. Devido a este temor a generalizadas rebeliões e perda do comando da gestão, a população devia ter a adesão ao governo conquistada, por meio de aparatos estratégicos que não fossem aqueles de outrora, da imposição coercitiva da autoridade. A grande questão dos governantes barrocos era, pois, “mantê-la sob controle, estudá-la e aperfeiçoá-la, prevenindose contra seus usos perturbadores, revolucionários”18 e, para isso, era preciso conduzir – ou dirigir – os seus comportamentos, penetrando nos mecanismos internos dos impulsos que os moviam. Explicando melhor, este dirigismo tratava-se menos de esperar reações a estímulos ou fazer aflorar questões individuais do que de preparar respostas a questionamentos ou descobrir condutas responsivas comuns a todos os indivíduos. Sobre esta engenharia política do barroco, o escritor e diplomata espanhol Saavedra Fajardo (1584–1648) afirma que “estes enganos e artimanhas políticas não se podem conhecer se não se conhece bem a natureza do homem, cujo conhecimento é precisamente necessário ao governo para saber regê-lo e dele proteger-se”19. Já para seu conterrâneo, o filósofo Baltasar Gracián (1601–1658), o grande e verdadeiro saber prático deste pragmatismo da época barroca, regido pela prudência, era “saber viver (...) [e] viver é viver cautelosamente entre os outros”20, tornando o governante barroco, nas palavras do próprio Gracián, uma espécie de negociante ou um homem do agível21, uma vez que adequava os meios aos fins.

295

Há uma alteração no agir político no XVII que resume tudo já dito. O dirigismo estático, regido apenas pela presença – ou seja, pela mera existência física da autoridade –, passa a não ser efetivo diante da conjuntura já apresentada. Os governos sentem, então, a necessidade de se alterarem para se adaptarem ao novo contexto social. Assim, passam a adotar um dirigismo dinâmico, efetuado não mais pela simplória passividade de estar presente, mas sim pela participação, pela busca ativa da adesão e colaboração, pela ação de “suscitar e sensibilizar maravilhosamente os afetos de cada um” 22, uma vez que “persuadir é agora mais importante do que demonstrar”23. Em relação a esta técnica da persuasão, Giulio Carlo Argan, historiador e teórico da arte italiana, revela seu papel de suma essencialidade na ação dirigista dos Estados barrocos. Uma vez que, no século XVII, “a política não depende mais das decisões dos poderosos, mas envolve a todos, (...) a persuasão ideológica se torna o modo essencial do exercício da autoridade: o seu instrumento ainda é a propaganda 24 (...)”25, uma vez que “toda a arte do século XVII é animada por um espírito de propaganda”26. Conforme já foi salientado, a questão essencial para o Estado do XVII é quanto ao comportamento humano, uma problemática de cunho social. A própria persuasão – ou, como chama Blaise Pascal, a “arte de persuadir” – é a ferramenta funcional que os governantes barrocos lançaram mão para atingir em cheio seu objetivo de direção, uma vez que (...) tem uma relação necessária com a maneira pela qual os homens consentem naquilo que lhes é proposto, e com as condições das coisas que se quer fazer acreditar. (...) a arte de persuadir consiste tanto na arte de agradar, quanto na de convencer, visto que os homens se conduzem mais pelo capricho do que pela razão. 27

A fim de conseguir exercitar tal ação de forma bem-sucedida, era necessário, pois, operar com a comoção dos afetos dos governados. Para isso, a estratégia estatal tinha que ser bem estudada, cuidadosa, havendo dois passos iniciais primordiais para Argan: se, antes de mais nada, era de extrema necessidade uma prévia avaliação da disposição sentimental do público a que se dirige tal arte de persuadir, após esta fundamental apreciação analítica era necessário escolher o terreno mais propício daqueles que tocariam, direta e positivamente, na afeição e, por conseguinte, ação das pessoas28. Todavia, o caminho mais adequado para direcionar e guiar seu dirigismo persuasivo não seria escolhido ao acaso, dentre os demais: ao contrário, seria eleita a melhor opção aquela que soubesse “despertar os mais diferentes afetos e de formar com eles um coro harmônico e polifônico”29, principal desafio do Estado, que visava que “esses diferentes modos de ser (...) [pudessem] convergir a um fim comum”30.

296

Para alcançar tal tarefa nada simplória, era necessário que os governantes efetuassem uma bem-sucedida comunicação com seus governados. Tal ato comunicativo é o elemento que decidiria se o persuadir foi bem-sucedido ou falho, uma vez que ele é o seu meio de aplicação – valendo frisar que este não tem uma única direção, de cima para baixo, mas sim se dá em uma via de mão-dupla, pré-requisito essencial para que haja uma comunicação e não somente uma anunciação. Para conseguir esta reciprocidade comunicativa, visando “que à sua autoridade corresponda a obediência dos subordinados, deve comunicá-las, mas de forma que sejam acessíveis para quem, não estando iluminado pela graça, não conhece a não ser o que é captável pelos sentidos”31. Por conta desta existência indispensável de uma via de mão-dupla, é elementar aferir que a carga semântica no ato persuasivo não é a de ser uma ação de cima para baixo, mas sim, em contraposição, possui uma essência dialógica, havendo um caráter mais ativo daqueles que estão recebendo tal agir, uma vez que considera a posição dos governados, outrora excluídos na relação de poder. De forma mais precisa e concisa: esta via de mão-dupla refere-se ao fato de que “a vontade de persuadir deve ser correspondida por uma disponibilidade para ser persuadido”32; “à técnica de persuasão própria do artista corresponde no público a uma técnica igualmente complicada e trabalhada de deixar-se persuadir”33, de acordo com seus interesses. Para finalizar esta apreciação essencial sobre a arte de persuadir, ferramenta primordial para o dirigismo dos Estados barrocos, cabe sintetizar em uma única frase: “persuadir agora é bem mais importante que demonstrar”34. Esta prática persuasiva dirige-se, então, no continente europeu “a homens aos quais é preciso convencer, e fora da Europa 35 a homens aos quais é preciso converter”36. Retornando à elucidação sobre o aspecto dirigista da cultura do barroco, exibir um saber de verdades não é mais suficiente, por si só, para exercer a autoridade, como o foi em tempos passados – embora possuí-lo ainda seja deveras necessário –, já que, no Barroco, o questionamento aos mandatários surge exponencialmente. Em contraposição a essa conduta de donos da verdade, era preciso – para um exímio governar – inclinar, mover e atrair os governados para seus objetivos – ou seja, persuadi-los. Para o governante barroco, nas palavras do historiador espanhol já aqui citado, José Antonio Maravall, Não bastavam os meios de controle puramente materiais, fundados na repressão física. Não se pretendia apenas calar, mas também atrair. Mais do que destruir algumas reservas de energia combativa, era preciso sujeitá-las e canalizá-las, inclinando-as, definitiva e radicalmente, para a própria defesa e conservação. 37

297

Para atrair a inclinação e, por conseguinte, conseguir, exitosamente, o assujeitamento dos governados, a cultura do Barroco procura comover e impressionar, recorrendo a uma intervenção eficaz sobre o recurso das paixões: “É preciso tocar o homem, atuando calculadamente sobre os motores extra-racionais de suas forças afetivas. (...) Comover o homem, não o convencendo de forma demonstrativa, mas afetando-o, de modo que sua vontade seja acionada”.38 Comparando com a teoria do imaginário social do historiador polonês Bronislaw Baczko, o Barroco obedeceria à lógica de que “(...) todo o poder tem de se impor não só como poderoso, mas também como legítimo”39. O governante busca, então, atrair os governados a seu favor, não através do uso intensivo da força física e autoritária, mas sim utilizando mecanismos de persuasão que vão de encontro aos desejos e afetos extra-racionais da população. Todavia, esta conduta não se dá por uma preocupação verdadeira com os interesses e necessidades da grande massa, mas sim como estratégia política, que visa ao diálogo apenas para alcançar a conservação do poder. Assim, tais governos barrocos, apesar da aparência de uma administração em prol dos governados, não possuem finalidades progressistas, mas sim conservadoras – a outra crucial característica da cultura do Barroco. O homem do barroco, conforme foi explicado, vive uma conjuntura de instabilidade e de caos – crise econômica, safras ruins, fome, miséria, peste negra, etc. – e, por conta disso, sua grande preocupação é não ser atingido em cheio por este furacão que transforma, a todo o momento, a sociedade. Por isso, seu maior objetivo é conservar-se. Dentre os homens do barroco, aquele que mais busca a conservação da sua situação são os monarcas, temerosos que tal momento caótico gere insatisfação e caos, acarretando em perda de legitimidade política e até mesmo revoltas violentas da população contra a sua autoridade40. Segundo José Antonio Maravall, também existia no século XVII um “mito de movimento natural do auge e declínio dos impérios” 41, os quais envelhecem como qualquer outra coisa. Logo, era sempre necessária uma atualização própria para conservar seu Estado nos momentos de glória, impedindo que se desmanchasse tal qual um castelo de cartas. Em consonância a esta crença, estava a prática econômica do mercantilismo. Nesta, havia a convicção de que a riqueza do mundo era inalterável, já estava dada e não podia ser alargada. Assim, não tinha como um Estado adquirir uma maior riqueza senão fosse tirando de outro próprio42. Logo, se os recursos do mundo eram estáveis e só se podia enriquecer à custa de outro Estado43, era natural e imutável que um declinasse enquanto o outro crescesse44. Somado ao mito do natural declínio dos impérios, a prática mercantilista, então, só veio a potencializar a preocupação dos governos barrocos em conservar sua riqueza e seu

298

poder político legítimo. “A função por antonomásia da prudência é conservar”45: esta é a razão conservatriz do Estado. Os já aqui anteriormente mencionados Baltasar Gracián e Saavedra Fajardo corroboram tal pensamento. Se para aquele a preocupação e atitude dos governos barrocos “é muito mais o conservar que o conquistar”46, este afirmará que, por conseguinte, “o principal ofício do príncipe é conservar seus Estados”47. Logo, a pretensão era conservar a ordem e o sistema de interesses. Porém, ao mesmo tempo em que permanece sendo – e, sobretudo, pretendendo ser – uma cultura autoritária, ela é “precisamente reorganizada ou reelaborada em novos moldes, que atendem aos conflitos e possibilidades”48. Com a possibilidade de insatisfações, caos e revoltas da população em todo o território governado, são necessárias alterações no modo de governar – conforme já bem salientado no item do aspecto dirigista da cultura do barroco –, precavendo-se de possíveis contestações e futura perda de legitimidade política. Para isso, “o Barroco, para ser conservador, declara-se muitas vezes inovador”49, pondo em prática novidades outrora jamais vistas. Todavia, é de suma necessidade frisar novamente que “aquilo que se altera ocorre para apoiar grupos de interesses conservadores e como manutenção de uma ordem estabelecida”50. Sendo assim, tais inovações não são em prol da população governada, mas sim podem ser consideradas meros paliativos. Apesar de parecer paradoxal – tão somente na aparência –, é esta a ação dos governos barrocos: “justamente para obter resultados eficazes de signo conservador sobre a mentalidade da multidão que se agita nas cidades, [é] necessário contar com a atração do novo” 51. Porém, se para consolidar um sistema estabelecido é preciso servir-se da força da novidade, são tão somente de inovações que não representem, contudo, perigo para a conservação futura. O temor e preocupação cuidadosa em se utilizar do recurso da novidade para a conservação do poder se justifica pelo fato de que, inicialmente, toda novidade é perigosa, uma vez que pode iniciar o pavio da pólvora das forças de emulação e de oposição. Apesar de instituírem novidades inovadoras, os Estados barrocos se mantém contrários ao espírito inovador, contra o qual não deixam de fazer campanha ativa. Sintetizando, a novidade em si e, sobretudo, o espírito inovador que ela costuma carregar na sua carga semântica são corrosivos ao Estado, a menos que satisfaçam as massas, mas sem causar perigo – presente e futuro – para a ordem. Cumprindo estes pressupostos, as novidades apresentam-se como exímios recursos eficazes para a conservação do poder, atraindo o afeto, a legitimidade e os desejos da população. Porém, no menor deslize no pôr em prática tal estratégia, a ameaça se apresenta ao sistema estabelecido na forma

299

de

transtornos, revoltas, desejos de mudança, etc. É o que alerta Rosário Villari, citando Giovanni Botero: como o Povo é por natureza instável e desejoso de novidade, acontece que, se não é contido de várias formas pelo seu Príncipe, procura essa novidade por si mesmo, mudando o Estado e o governo; por isso, todos os Príncipes avisados introduziram alguns entretenimentos populares, que, quanto mais servirem para se exercer a vontade do espírito e do corpo, mais adequadamente serão (...). 52

Para finalizar e melhor conectar todo o exposto aqui neste item, cabe a transcrição da síntese do próprio José Antonio Maravall sobre esta atitude estatal, que nada mais passaria do que uma (...) atitude basicamente conservadora da cultura barroca (...), decisivamente antiinovadora (...). Através da novidade que atrai o gosto, penetra o enérgico constituinte dos interesses tradicionais (...), em conexão com as técnicas de domínio e direção da vontade (...) em prol de um sistema de reforço da tradição monárquicosenhorial. 53

*

Mestrando pelo Programa de Pós–Graduação em História Política, na linha de pesquisa Política e Cultura, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Orientado pela Profª Drª Márcia de Almeida Gonçalves. Contato: [email protected] 1 MARAVALL, José Antonio. A cultura do Barroco. Análise de uma estrutura histórica. Tradução de Silvana Garcia, 1ª Ed., 2ª Reimpr. São Paulo: EDUSP, 2009, p. 255. 2 O “individualismo é libertado e simultaneamente aprisionado” (Ibid., p. 19). 3 Ibid., p. 279. 4 VILLARI, Rosário. “O Rebelde”. In: O Homem Barroco. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo, 1ª Ed. Lisboa: Presença, 1995, p. 98. 5 Ibid., idem. 6 MARAVALL, José Antonio. Op. cit., p. 27. 7 Ibid., p. 25. 8 Termo maravalliano com o qual não concordo muito, preferindo o vocábulo “governados” a este, uma vez que “súditos” carrega, em sua acepção semântica, uma ideia de subordinação a este sistema político. Todavia, dado o caráter ativo e questionador da população no século XVII, conforme já salientado, há muito mais conflito e negociação nestas relações políticas do que uma simplória aceitação passiva da autoridade do governo, como o termo empregado por José Antonio Maravall leva a crer. 9 Ibid., p. 58. 10 Ibid., p. 18. 11 No caso específico da conjuntura barroca maravalliana, este intervalo temporal encontra-se nos três primeiros quartos do XVII – de 1600 a 1670/1680 –, sendo o período de maior intensidade aquele que vai de 1605 a 1650. 12 Apesar da localização espacial do Barroco referir-se, inicialmente, ao continente europeu, este novo sistema de civilização novo não ficou restrito à Europa, mas sim estendeu suas fronteiras, uma vez que “o advento do Barroco coincide com a descoberta e conquista, por parte das potências europeias, de novos países e continentes inteiros, todos situados na zona dos trópicos e equador, e com o contato com civilizações antes mal conhecidas ou ignoradas de todo (...)” (AVERINI, Ricardo. “Tropicalidade do Barroco”. In: ÁVILA, Affonso (Org). Barroco: teoria e análise. Tradução de Eldécio Mostaço. São Paulo: Perspectiva; Belo Horizonte: Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração, 1997, p. 24) – regiões estas que passam a estar na “condição de zona receptora relacionada e dependente dos centros de influência cultural europeus” (GASPARINI, Graziano. “A arquitetura barroca latino-americana: uma persuasiva retórica provincial”. In: Ibid., p.43.), ou seja, receptoras da cultura do Barroco. 13 MARAVALL, José Antonio. Op. cit., p. 49. 14 Ibid., p. 54. 15 Ibid., p. 45. 16 VILLARI, Rosário. “Introdução”. In: Op. cit., p. 8.

300

“O homem sentia-se capaz de intervir no mecanismo da economia e alterá-lo. Certos grupos mais evoluídos se dirigem aos governantes exigindo determinadas mudanças nas condições que vinham suportando há muito tempo, bem como reivindicando novas conquistas” (MARAVALL, José Antonio. Op. cit., p. 120). 18 FAJARDO, Saavedra apud MARAVALL, José Antonio. Op. cit., p. 120. 19 GRACIÁN, Baltasar apud Ibid., p. 133. 20 Ibid., p. 123. 21 “a prudência não permite nada de tão ousado que faça correr o risco de se colher o grão ao mesmo tempo que a erva daninha” (KAMEN, Henry. “O Estadista”. In: VILLARI, Rosário. Op. cit., p. 31). 22 MARAVALL, José Antonio. Op. cit., p. 135. 23 Ibid., p. 145. 24 A propaganda, que “não demonstra, mas persuade – e persuade a devoção” (ARGAN, Giulio Carlo. “Europa das capitais”. In: Imagem e persuasão: ensaios sobre o barroco. Tradução de Maurício Santana Dias, 1ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 59), efetuada pelos Estados Barrocos, poderia ser de dois tipos distintos, com finalidades diferenciadas: propaganda direta – aquela que visa a um fim imediato – e a propaganda indireta – a que prepara os ânimos para os compromissos futuros. 25 Ibid., p. 60. 26 Ibid., idem. 27 PASCAL, Blaise. A arte de persuadir. Tradução de Rosemary Costhek Abílio, 2ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 101, 106. 28 ARGAN, Giulio Carlo. Op. cit., p. 37. 29 Ibid., idem. 30 Ibid., p. 58. 31 ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como história da cidade. Tradução de Maurício Santana Dias, 5ª Ed. São Paulo, Martins Fontes, 2005, p. 39. 32 ARGAN, Giulio Carlo. “Europa das capitais”. In: Op. cit., p. 62. 33 Ibid., p. 38. 34 Ibid., p. 49. 35 Nas respectivas possessões ultramarinas das potências europeias. 36 BAZIN, Germain. “O Barroco – Um Estado de Consciência”. In: ÁVILA, Affonso (Org). Op. cit., p. 20. 37 MARAVALL, José Antonio. Op. Cit., p. 144. 38 Ibid., p. 147, 149. 39 BACZKO, Bronislaw. “A imaginação social”. In: LEACH, Edmundo [et al.]. Anthropos-homem. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985, p. 310. 40 Uma bem-sucedida exemplificação do dirigismo conservador dos Estados barrocos é dada por Lewis Mumford. Este intelectual destaca que, com a transformação na gestão dos mesmos, veio a supressão da liberdade acadêmica nas universidades. As universidades europeias, transformadas, passaram a ser instrumentos “servis perante os novos déspotas, impermeáveis a ‘pensamentos perigosos’, presas por juramentos de fidelidade” (MUMFORD, Lewis. “A estrutura do poder barroco”. In: A cidade na história: suas origens, transformações e perspectivas. Tradução de Neil R. da Silva, 3ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 377). 41 MARAVALL, José Antonio. Op. cit., p. 220. 42 Em uma analogia com o tradicional jogo de tabuleiro War, havia a crença de que a riqueza natural de todo o mundo já estivesse distribuída por entre os países, não restando nenhuma fonte de riqueza que ainda não estivesse sendo explorada pelos mesmos. 43 “(...) os mercantilistas perseguiam objetivos dinâmicos. Mas a coisa importante é que esta concepção se conjugava com uma teoria estática dos recursos econômicos globais do mundo; daí nasceu a contradição fundamental que provocou lutas comerciais sem fim. A posição de um país particular podia mudar, progredir, mas somente a expensas de outros países” (HECKSCHER apud DEYON, Pierre. O Mercantilismo. Tradução de Teresa Cristina Silveira da Mota, 1ª Ed. São Paulo: Perspectiva, 1973, p. 106). 44 “Qual o firme Estado que não declina enquanto outro cresce?” (CALDERÓN apud MARAVALL, José Antonio. Op. cit., p. 220). 45 Ibid., p. 221. 46 GRACIÁN, Baltasar apud Ibid., p. 221. 47 FAJARDO, Saavedra apud Ibid., p. 222. 48 Ibid., p. 231. 49 Ibid., p. 233. 50 Ibid., p. 230. 51 Ibid., p. 218. 52 Ibid., p. 255. 53 Ibid., p. 356 – 358. 17

301

A BIOGRAFIA POLÍTICA DE DOMINGOS DE ANDRADE FIGUEIRA André Rocha Carneiroi RESUMO Esse trabalho pretende apresentar uma biografia primária de Domingos de Andrade Figueira, importante político que tentou combater as propostas do governo imperial para a abolição do trabalho servil no Brasil. Domingos de Andrade Figueira foi representante político do Partido Conservador do vale do Paraíba fluminense na Assembleia Geral Legislativa durante o período entre 1869 a 1889. Esse momento foi marcado pela realização de debates e votações das leis de emancipação do trabalho escravo, questão de grande importância para o Império Brasileiro, já que tinha como sua principal base política os senhores escravagistas e era fundamental para a sobrevivência da classe senhorial daquela região.

ABSTRACT Domingos de Andrade Figueira was the political representative of the Rio Paraíba Valley’s Conservative Party in the Legislative General Assembly during the period from 1869 to 1889. That time was marked by debates and votes of emancipation laws of slave labor, an issue of great importance to the Brazilian Empire, as it had as its main political base the slave masters and it was essential for the survival of the planter class of that region. This paper intends to present a provisional biography of Andrade Figueira, politician who tried to fight the proposals of the imperial government for the abolition of bonded labor in Brazil.

Introdução O processo da abolição da escravidão no Brasil foi um caminho longo e tortuoso. Depois de três séculos de escravidão colonial, que introduziram uma cultura arraigada do escravismo entre a população brasileira, quando o ideal era ser dono de homens e terras, a crise do sistema colonial2como um todo também provocou a crise do escravismo. A história do Brasil independente já nasceu sob o signo da crise da mão de obra escrava3. O rompimento dos laços coloniais ocorrera simultaneamente à demanda pelo café nos mercados consumidores. O incremento da produção do café levara, então, ao

302

revigoramento da escravidão, agora em um contexto em que os rumos do país eram nacionalmente controlados. Entretanto, a permanência da escravidão não encontrava respaldo em um contexto em que predominava o liberalismo, já que este considerava que os “homens nascem livres e iguais”4. No vale do Paraíba fluminense a necessidade de trabalhadores para as diversas atividades a serem desenvolvidas nas fazendas de café, como o plantio, a colheita, o beneficiamento, o conserto de estradas, pontes e cercas, o cuidado com as tropas de mulas que transportavam o café etc., exigia uma demanda cada vez maior por mão de obra escrava. Entretanto, além da contínua pressão inglesa, um novo problema para a manutenção da escravidão surgira no horizonte dos escravocratas do sudeste cafeicultor: a grande concentração da população escrava5, o que provocou o haitianismo, ou seja, o terror de revoltas escravas como ocorrera no Haiti, em 1791, que levaram à morte violenta diversos escravocratas daquela colônia francesa. Os boatos de levantes escravos no vale do Paraíba causavam verdadeiro pânico e os fazendeiros logo se apressavam em reprimir quando as revoltas de fato ocorriam. Combinando esses dois fatores, a pressão inglesa pelo fim definitivo do tráfico6 e o haitianismo, resultaram na aprovação da Lei Eusébio de Queirós, em 1850, que proibia o tráfico internacional de escravos. Essa lei que, desta vez, foi levada a sério7 devido aos problemas que o Brasil e os escravocratas poderiam enfrentar diante dos ingleses, apontava um primeiro limite temporal à subsistência dessa forma de trabalho no país. A década de 1870 marcou o início do fim do escravismo no Brasil. A participação do Brasil na Guerra do Paraguai, na década de 1860, demonstrou os limites de uma sociedade escravista em uma guerra. Sem ter soldados suficientes, o governo liberou os seus próprios escravos e apelou para que os fazendeiros liberassem os seus para a guerra. A grande quantidade de escravos em meio ao exército brasileiro constrangeu o governo imperial e seus generais junto a seus aliados. Além disso, a derrota dos confederados na Guerra de Secessão americana e a abolição da escravidão naquele país, em 1865, colocavam o Brasil em uma posição isolada na América, já que era o único país independente a manter a escravidão (secundado apenas pela possessão espanhola de Cuba)8. A Coroa brasileira temia que as potências estrangeiras, principalmente Inglaterra e EUA, aumentassem a pressão sobre o país e o nosso constrangimento. Assim, o passo seguinte foi a Lei do Ventre Livre, de 1871, que colocou o governo imperial em rota de colisão com sua principal base de sustentação política, os cafeicultores do vale do Paraíba. A partir de então, a escravidão e a monarquia brasileiras pareciam estar com seus dias contados.

303

O projeto acerca da libertação dos nascituros tivera origem no Poder Executivo, em reuniões do Conselho de Estado e entre os membros do governo, assim como também no Senado, o que provocou a resistência da Câmara dos Deputados, que não estava de acordo com tal proposta9. Foi em meio à discussão sobre a crise do trabalho escravo que se passou a discutir também o papel do Parlamento e sua representatividade, colocando em xeque o sistema eleitoral. O objetivo dos debates era fortalecer o Parlamento de modo a torná-lo um órgão de Estado verdadeiramente representativo dos interesses da nação. Durante o decênio de 1870, a Câmara dos Deputados fora palco de debates acerca do seu papel como órgão de governo e sua representatividade nacional. A Câmara procurava meios de se tornar mais representativa para fazer face ao Poder Moderador. Após a aprovação da Lei do Ventre Livre, os deputados do Partido Conservador se recusavam a avançar nas propostas de emancipação dos escravos e, entre os do Partido Liberal, não havia unanimidade quanto a este tema10. Todavia, os ventos estavam mudando. A partir de 1879, o tema da abolição ganhou significativos adeptos na Câmara dos Deputados, apesar da resistência da maioria, com proposição feita pelo deputado Jerônimo Sodré, e se espalhou pelos principais centros urbanos do império11. Mesmo com um novo limite temporal tendo sido estabelecido para o fim da escravatura com a Lei do Ventre Livre, posto que libertaria os filhos dos escravos, o governo se apressou em aprovar a Lei dos Sexagenários, em 1885, o que, na verdade, aliviou os custos dos escravistas com os escravos idosos. O movimento abolicionista, ainda incipiente nas décadas anteriores, estava a pleno vapor na década de 1880. Vários setores sociais não dependiam mais do trabalho escravo e, aos poucos, aqueles que ainda o utilizavam, começaram a se desfazer de seus escravos. Fazendeiros paulistas começavam a se utilizar da mão de obra do imigrante europeu. Clubes abolicionistas foram criados, como também fundos para a compra e libertação dos cativos. Os fazendeiros que resistiam se viam ameaçados pelas constantes revoltas e fugas de seus plantéis, agora com apoio popular. A imprensa abolicionista expandia-se, criticando a desumanidade do tratamento dado aos escravos e a falta de nossa sintonia com os países civilizados e o restante da América (até mesmo Cuba extinguira o trabalho escravo em 1880). Entretanto, apesar dos sinais dos tempos apontarem para o término não muito distante da escravidão, muitos escravocratas mantiveram-se apegados a esse patrimônio. Isso ocorrera principalmente com os fazendeiros do vale do Paraíba fluminense, pois os das demais regiões já vinham fazendo a transição ao trabalho livre há décadas e os paulistas estavam substituindo

304

o trabalho escravo pelo do imigrante, mais rentável. A Lei Áurea veio pegar muitos desses escravagistas fluminenses em uma situação já de fragilidade, pois o café também estava em decadência nesta província devido, principalmente, ao esgotamento dos solos. A crise desses setores afetou também a monarquia, que acabou não resistindo por muito tempo12. Domingos de Andrade Figueira foi um dos maiores representantes políticos dos escravocratas do vale do Paraíba fluminense e um dos principais porta-vozes dos conservadores dessa região. A pesquisa acerca da biografia de Andrade Figueira pretende analisar sua trajetória política e sua luta contra os projetos da Coroa de emancipação da mão de obra escrava. Para isso, nos aproximaremos de uma abordagem biográfica deste personagem. Entretanto, não trataremos de sua vida como um todo, apenas de suas atividades políticas. Nosso objetivo será pesquisar as articulações sociais que estabeleceu para se firmar enquanto político de destaque não apenas em Barra Mansa e na região do vale do Paraíba fluminense, mas também na Corte e em meio ao seu partido, o Conservador, durante o Segundo Reinado. Também nos debruçaremos sobre as relações políticas e as estratégias que estabeleceu para enfrentar as mudanças políticas que vivenciou. Esse momento foi o do renascimento liberal, na década de 1860, proporcionado pela reforma eleitoral empreendida pelo saquarema Marques de Paraná, Honório Hermeto Carneiro Leão. Além disso, Andrade Figueira vivenciou também a decadência da produção do café, o movimento abolicionista, o enfraquecimento do Império e o crescimento do movimento e das ideias republicanas, fatores que ajudaram a destruir os pilares não somente do mundo material, como também cultural em que vivia e tentava “conservar”. Por isso, será importante também observar sua trajetória enquanto representante da classe senhorial saquarema, o que nos permitirá ter uma noção mais aproximada da situação vivenciada por essa mesma classe social em um momento tão crítico para ela. A Biografia Política de Domingos de Andrade Figueira O vale do Paraíba fluminense, especialmente a região correspondente aos municípios de Resende, São João Marcos, Barra Mansa, Vassouras, Valença, Piraí e Paraíba do Sul, foi o grande centro produtor de café do Império, chegando a produzir, por volta de 1865, ¾ de todo o café que se exportava13. Essa produção se estendeu para as regiões contíguas das províncias de Minas e São Paulo que, segundo Ilmar de Mattos, constituiu-se em um “único bloco” de hegemonia cafeicultora14. Esta região foi por décadas a mais rica do Brasil devido à produção do café. Além disso, teve papel destacado como um dos suportes econômicos e políticos, durante a Regência e o Segundo Reinado, ajudando a construção do Estado

305

Imperial

brasileiro. Entretanto, a partir da década de 1870, começou a entrar em decadência, entre outros fatores, devido ao esgotamento dos solos, ao enfraquecimento do trabalho escravo com a campanha abolicionista, às leis restritivas desse tipo de trabalho e, por fim, à própria abolição da escravidão e, ainda, à maior pujança da cafeicultura da região paulista. Domingos de Andrade Figueira foi um dos maiores representantes políticos dos escravocratas do vale do Paraíba fluminense, escolhido por Ricardo Salles15 como exemplo entre o grupo dos cafeicultores fluminenses de voz discordante da política de restrição do trabalho escravo do Partido da Coroa. Nasceu em Itaguaí, na província do Rio de Janeiro, filho de pais portugueses, José Luís Figueira e Josefa de Andrade Baena 16. Segundo algumas fontes, pode ter nascido em 6 de outubro de 183317 ou em 24 de junho de 183418. Estudou o primário e o secundário nos colégios do padre Januário e do professor Vitorino da Costa, no Rio de Janeiro. Cursou a faculdade de Direito em São Paulo, entre 1852 e 1857, onde foi um aluno de destaque19. Figueira foi colega de Paulino José Soares de Sousa Filho na Faculdade de São Paulo, como também do então futuro Conselheiro Lafayette Rodrigues Pereira, com quem chegou a montar um escritório de advocacia, em 1866, na Corte 20. Logo depois de formado, foi secretário do presidente da província de Minas Gerais, Diogo Luiz Pereira de Vasconcelos, ainda em 185721. Podemos observar que desde cedo teria cumprido uma trajetória orientada a criar uma rede de sociabilidades que o ligava à classe senhorial. Transferiu-se para Barra Mansa, na década de 186022, onde foi fazer carreira profissional como advogado até 1864 23, e depois como político. Barra Mansa era uma área em expansão da produção de café, chegando a ser o município maior produtor de café no Brasil no ano de 186024 e, portanto, uma cidade atraente para profissionais que queriam fazer uma carreira profissional e mesmo política promissoras. Nessa cidade, Andrade Figueira casou-se com Theodora Marcondes dos Reis, com quem teve doze filhos25. Seus filhos estudaram em um internato, de propriedade do Dr. Francisco Moreira da Rocha. O importante estabelecimento de instrução completa, educação moral e religiosa em família, tinha como seus alunos filhos de ricos e poderosos senhores da Corte, tais como o Visconde do Rio Branco, Barão do Rio Negro, Domingos Alves da Silva Porto (gerente do Banco do Brasil), Comendadores Joaquim Vidal Leite Ribeiro, João Diogo Wartley e João Evangelista Teixeira Leite, os quais ali confiaram a educação de seus filhos como alunos pensionistas internos; assim como de muitos outros importantes pais de família e comissários da corte26. Theodora era filha do capitão Manoel Antônio da Silva Reis. O capitão Manoel Reis, além de vereador do município

306

de Barra Mansa entre 1857 a 1861, era

grande proprietário de terras e escravos, fazendeiro de café tanto na freguesia de São Sebastião, na cidade, quanto na freguesia de Nossa Senhora do Rosário dos Quatis27. A mãe de Theodora, Luísa Augusta Marcondes do Amaral, era filha do capitão Antônio Marcondes do Amaral28, um dos fundadores de Barra Mansa, juntamente com Manoel Marcondes do Amaral, que foi coronel da Guarda de Honra de D. Pedro I29. Antônio construiu, além do prédio da cadeia, a Igreja Matriz nas terras deixadas por Manoel para sua construção, de onde se originou o centro da cidade de Barra Mansa. Os Marcondes do Amaral eram uma família abastada, de origem em Pindamonhangaba, na província de São Paulo. Em Barra Mansa, os populares diziam que “quem tem dinheiro, casa com as fias de Maricondes”30, em alusão ao casamento entre as famílias ricas do município. Andrade Figueira entrou para a política na restauração saquarema de 1868. Fora Paulino de Sousa Filho quem o indicara para a presidência de Minas, da qual tomou posse em 25 de agosto daquele ano. Foi eleito deputado provincial fluminense entre 1870 e 1872 31. Depois foi vereador à Câmara Municipal da Corte entre 1877 e 188032. Foi eleito deputado geral em 1869, eleito pelo 11º Distrito Eleitoral em cinco legislaturas, chegando a ser presidente da Câmara dos deputados em 1886, durante a 20ª legislatura, entre 5 de maio de 1886 a 4 de maio de 1887 . Participou do Terceiro Conselho de Estado do Império entre 1880 e 1884. Por quatro vezes constou da lista tríplice para concorrer a uma vaga no Senado, embora tenha sido preterido em todas elas pelo imperador, provavelmente devido a sua luta contra o processo abolicionista33. Herdeiro político da geração saquarema de 1830, ao lado de Paulino de Sousa Filho e João Maurício Wanderley, o Barão de Cotegipe, Andrade Figueira lutou com unhas e dentes pelos interesses de proprietários escravistas de províncias como Minas Gerais, Rio de Janeiro, Bahia, e outros lugares do Norte que, ao contrário de São Paulo, não haviam desenvolvido alternativas à mão de obra cativa34. Tratava-se, sem dúvida para ele, de encaminhar a questão com o menor prejuízo da classe senhorial. Nesse ponto, considerava a atitude dos dois principais líderes abolicionistas dentro do Partido Conservador, Antônio Prado e João Alfredo, como perigosa e prejudicial para a força do partido. Entretanto, segundo Silvio Meira, apesar de ser contra a abolição da escravidão, “deu exemplo pessoal de ser contrário à servidão humana, concedendo alforria a todos os escravos que então possuía”35. Andrade Figueira foi também presidente da instituição beneficente do Montepio Geral, sediado na rua da Quitanda nº 119. Devido ao agravamento da situação desta instituição,

307

Figueira, em 1884, deu início à liquidação definitiva da referida instituição, com prejuízo para todos os seus associados, o que lhe valeu atritos com Benjamin Constant, de quem se tornou desafeto político. Apesar de ter montado domicílio na Corte do Rio de Janeiro, Andrade Figueira sempre voltava à Barra Mansa, seu reduto eleitoral. Entre fevereiro e junho de 1886 uma epidemia de febre amarela grassou por Barra Mansa. Figueira voltou à cidade, no dia 13 de abril, para ajudar os infectados pela febre, em companhia do médico dr. José Pinto Ribeiro36. À frente de 30 ajudantes, gastou mais de 40 dias para deixar a cidade em melhores condições higiênicas durante a epidemia, tamanha a sujeira reinante, na direção dos serviços de limpeza dos quintais, esgotos e do Lazareto (onde eram internados os doentes mais pobres), dentre outros lugares37. Figueira foi o delegado representante do Império do Brasil na I Conferência Interamericana de Montevidéu, em fevereiro de 1889. Esse congresso de Direito Internacional Privado foi uma iniciativa de uniformização da legislação civil feita pela Argentina e pelo Uruguai, na qual o Brasil também compareceu, além das delegações da Bolívia, Chile, Paraguai e Peru, e que resultou em oito tratados de diversas áreas, principalmente quanto ao direito civil internacional. Em 1896 assinou, juntamente com o Visconde de Ouro Preto, Lafayette Rodrigues Pereira e outros monarquistas, o Manifesto à Nação, publicado no Jornal do Commercio em 12 de janeiro. Entusiasmados com a iniciativa dos correligionários de São Paulo, os restauradores da capital federal criaram o Diretório Monarquista do Rio de Janeiro, enviaram uma carta de saudação ao diretório paulista e lançaram esse manifesto. Estava dada a partida para a organização política e propagandista dos monarquistas da capital da República. Entretanto, o que se formou de verdade foi um Diretório Monárquico sem preencher as necessárias formalidades, como o interlocutor preferido no Brasil para tratar

questões

políticas e uma possível restauração do império recém derrubado38. Monarquista convicto e opositor da República, Figueira apoiou a Revolta da Armada, liderada pelo almirante Custódio de Melo contra o governo de Floriano Peixoto. Ameaçado de prisão, fugiu de Barra Mansa, onde se escondera, passando por Salvador até se exilar em Portugal. Voltou posteriormente, já durante o governo de Prudente de Morais 39. Mas, em 1900, foi acusado de participar de uma conspiração contra o governo de Campos Salles, juntamente com o conselheiro João Alfredo, chegando a quase 30 pessoas entre civis e militares. Foi a chamada Conspiração Monarquista. Passara cinco meses na prisão, mas foi

308

absolvido no julgamento40. Em sua defesa escreveu um libelo que se encontra na obra A Década Republicana41. Não satisfeito, voltou-se contra o governo de Rodrigues Alves. Figueira, juntamente com outros monarquistas, tais como o Visconde de Ouro Preto, teria participado, através de financiamento, de uma tentativa de golpe de estado contra o governo Rodrigues Alves, liderada pela oposição formada por republicanos florianistas e jacobinos. Aproveitando-se da insatisfação popular criada com a vacina obrigatória, a oposição atacava o presidente acusado de privilegiar os fazendeiros e cafeicultores paulistas. O objetivo de Figueira era abalar a confiança da população na República42. Figueira chegou ainda a trabalhar na comissão revisora do projeto do Código Civil, juntamente com Clóvis Bevilácqua, de quem muito discordava, devido às suas posições mais conservadoras. A data de sua morte ainda é imprecisa. Teria falecido a 14 de agosto de 1910 de ataque cardíaco43, ou em 191944. Conclusão Analisar a experiência de um indivíduo pode revelar as tensões existentes nas sociedades em determinado tempo e lugar; tensões estas que ajudaram no “fazer-se” de um indivíduo e da classe social a qual pertence, bem como pela tensão desse indivíduo nas relações enfrentadas em meio à própria classe. Dessa forma, estarão colocadas em questão as forças individuais e coletivas que delimitavam, mas também possibilitavam suas ações, em meio às tensões “entre o personagem e os constrangimentos/possibilidades de sua época”45. A relevância desta pesquisa encontra-se no fato de contribuir para os estudos em biografia, ao se destacar a vida política de Domingos de Andrade Figueira, importante político do Império, que esteve empenhado em uma luta contra deterioração do mundo em que vivia, ou seja, a monarquia, a escravidão e a civilização saquarema. Para tal, destacamos sua trajetória em meio às suas relações político-partidárias, à importante classe senhorial do vale do Paraíba fluminense, base de sustentação política e social do império, e às instituições do regime monárquico no Brasil das quais participou, ou seja, seus campos de ação política que, ao mesmo tempo que a determinavam, também possibilitavam algum tipo de mudança nos rumos da política. Acreditamos, ainda, que o estudo proposto sobre as relações políticas entre o grupo dos cafeicultores desta região e o governo imperial no momento de crise do escravismo trará uma importante contribuição tanto para a história local, como para a história nacional.

309

i

Doutorando pelo PPGH – UERJ.

2

NOVAIS, Fernando A. e MOTA, Carlos G. A Independência Política do Brasil. 2ª ed. São Paulo: Hucitec, 1996,p. 28. 3 Antes mesmo, a pressão inglesa para o fim do tráfico já se fizera notar nos tratados de 1810 com Portugal, quando D. João procurou ganhar tempo e restringiu a ação do império português apenas aos territórios africanos dominados por Portugal. 4 Segundo a professora Lúcia Bastos, nesse mundo que tem o liberalismo como pano de fundo, a palavra liberdade surgia como definidora de uma nova ordem política, seja com o significado de liberdade política em relação a Portugal, seja como liberdade civil e individual em que o indivíduo teria o direito à liberdade de pensar e de se comunicar. O termo livre expressava o direito de não se sujeitar a constrangimentos ou privilégios que se transformassem em obstáculos para ascensão na vida cotidiana. Em termos políticos significava rejeição ao governo despótico. Liberal, termo surgido na Espanha, era o termo utilizado para identificar o grupo que utilizava constantemente a palavra liberdade e que apelidava o grupo oposto com o termo pejorativo de servis. Aquele que acreditava que a opinião era livre e que, por isso, tinha o direito de influir no governo. Igualdade aparecia como igualdade perante a lei, sendo a única distinção admissível o mérito do cidadão. Entretanto, no Brasil, a igualdade era comedida e não significava a liquidação das antigas camadas sociais da nobreza e do clero. Como se pode notar, o liberalismo brasileiro era adaptado ao interesse da classe dominante local e excluía completamente uma parte da sociedade brasileira, os escravizados, de seus pressupostos ideológicos. Cf. NEVES, Lúcia M. B. Pereira das. Corcundas e constitucionais. A Cultura Política da Independência (18201822). Rio de Janeiro: Revan: FAPERJ, 2003, p. 142, 143, 145, 146, 156 e 157. 5

De acordo com o Relatório do Presidente de Província, de 1856, no ano de 1840, Barra Mansa contava com uma população cativa de 56,36%. São João Príncipe tinha 55,80% de cativos entre sua população. Valença, de 70,63% de cativos. Vassouras, de 69,61% de cativos. Piraí, de 64,91% de cativos. Como se pode observar, a maioria da população desses municípios era composta de escravos, sendo uma grande quantidade de africanos. 6 O que levara à aprovação do Bill Aberdeen em 1845, em que os ingleses, na prática, não reconheciam mais a soberania brasileira em nosso próprio território, pois apreendiam cargas mesmo em águas nacionais, sendo seus executores julgados por pirataria pelos tribunais do almirantado inglês. 7 A lei antitráfico de 1831 não fora levada a efeito com o devido empenho pelo governo brasileiro. 8 SALLES, Ricardo. As Águas do Niágara, 1871: a crise da escravidão e o ocaso saquarema, in GRINBERG, Keila e SALLES, Ricardo. O Brasil Imperial, Vol. III. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. 9 PRADO, Maria E. Memorial das Desigualdades. Rio de Janeiro: Revan, 2005, p. 65. De acordo com Maria Emília Prado, “no limiar do decênio de 1880, o Legislativo imperial, através de sua casa de maior representatividade, assumia posição contrária ao avanço da questão abolicionista”. PRADO, Maria E., op. cit.,p. 114 e 115. 11 Idem, p 130 e 149. 12 “[...] feita a abolição, ressoaram mais fortemente as insatisfações frente à ordem monárquica”, idem, p. 157. 10

13

MATTOS, Ilmar. R. de. O Tempo Saquarema. A Formação do Estado Imperial. Rio de Janeiro: ACCESS, 1994, p. 73. 14

Idem ibdem, p. 78. SALLES, Ricardo. E o Vale era o escravo. Vassouras, século XIX. Senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, cap. 3. 16 ATHAYDE, José B. A Igreja Matriz de São Sebastião da Barra Mansa. Rio de Janeiro: Gráfica Laemmert, 1960, p. 111. 17 MEIRA, Silvio. O Conselheiro Andrade Figueira e o Fim do Império,in RIHGB, Rio de Janeiro, n. 376, ano 153, jul/set, 1992, p. 3. 18 Verbete sobre Domingos de Andrade Figueira in BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento, Diccionariobibliographicobrazileiro, vol. 2, Rio de Janeiro, Conselho Federal de Cultura, 1970, edição facsimilar da edição de 1883-1902, Rio de Janeiro, Typ. Nacional. 19 Defendeu a seguinte tese de doutoramento: A divisão das pessoas em nobres de diversas hierarquias e plebeus, consagrada pelo direito português nas Ordenações, subsiste entre nós? No caso afirmativo quais as leis que adotaram e seus efeitos jurídicos. As exceções ou privilégios de que gosam os nobres são justificáveis pela pública utilidade e conciliáveis com o art. 179, § 2 e 16 da Constituição? Cf. Contribuição para o catálogo 15

310

bibliográfico dos antigos alunos da Faculdade de Direito de São Paulo, p. 357 in http://www.revistas.usp.br/rfdsp/article/viewFile/65333/67938. Acesso em 10 de julho de 2014. 20 http://bibliotecalafaiete.blogspot.com.br/p/conselheiro-lafayette-rodrigues-pereira.html. Acesso em 10 de julho de 2014. 21 MEIRA, Silvio. op. cit., p. 4. 22 Figura no AlmanackLaemmert já como advogado na cidade desde 1859. 23 SALLES, Ricardo. E o Vale era o escravo. Vassouras, século XIX. Senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 121. 24 ALMEIDA, Antônio. F.. Barra Mansa: Memória Comemorativa do 1º Centenário. 2 ed. Volta Redonda: Gazetinha, 1992. 25 http://www.arvore.net.br/Paulistana/TolPizas_3.htm. Acesso em 10 de julho de 2014. 26 CARDOSO, José Antonio dos Santos. Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de Janeiro inclusive a cidade de Santos, da Província de S. Paulo para o ano de 1877. Rio de Janeiro: Typographia E. & H. Laemmert, 34º ano, 1877, p. 634. 27 Almanak administrativo, mercantil e industrial da côrte e provincia do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: E. & H. Laemmert, 1859, p. 235 e 242. 28

http://www.geni.com/people/Lu%C3%ADsa-Augusta-Marcondes-do-Amaral/6000000018490811708. Acesso em 10 de julho de 2014. 29 http://www.oocities.org/~ancestrais/manoeldoamaral.html. Acesso em 10 de julho de 2014. 30 ALMEIDA, Antônio. F.. Barra Mansa: Memória Comemorativa do 1º Centenário. 2 ed. Volta Redonda: Gazetinha, 1992, p. 36. 31

NEEDELL, Jeffre. The Party of Order.The Conservatives. The State, and Slavery in the Brazilian Monarchy, 1831-1871. Stanford: Stanford University Press, 2006, p. 294. 32

ATHAYDE, José. B., op. cit., p. 111. MEIRA, Silvio., op. cit., p. 4. 34 NASCIMENTO, Carla Silva do. Uma escrita pessoal da crise: o barão de Cotegipe e a queda do império, in Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH, São Paulo, julho 2011, p. 11. 35 MEIRA, Silvio., op. cit., p. 8. 36 Jornal Aurora Barramansense, edição de 18 de abril de 1886. Cf. também ATHAYDE, José. B., op. cit., p. 114. 37 Discurso Proferido pelo Dr, Urias Antônio da Silveira, em sessão da Câmara Municipal, a 8 de janeiro de 1887, sobre o saneamento de Barra Mansa, in Aurora Barramansense, edição de 9 de janeiro de 1887. Cf. também ATHAYDE, José. B., op. cit., p. 114. 38 Cf. COSTA, Antônio Carlos Figueira. A República na Praça. São Paulo: Baraúna, 2010, p. 190 e GOMES, Amanda Muzzi. Monarquistas restauradores e jacobinos: ativismo político, in Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 21, nº 42, julho-dezembro de 2008, p. 298. 39 MEIRA, Silvio., op. cit., p. 10. 40 Jornal do Commércio, edição de 21 de novembro de 1900. 33

41

FIGUEIREDO, Affonso Celso de Assis (Visconde de Ouro Preto) e AMARAL, Angelo do. A Década Republicana, v. VI, VII e VIII. Rio de Janeiro: Companhia typográphica do Brazil, 1901. 42

1904 - Revolta da Vacina. A maior batalha do Rio. Cadernos de Comunicação: Série Memória. Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, Secretaria de Comunicação Social, 2006, p. 34. 43 MEIRA, Silvio., op. cit., p. 10. 44 SALLES, Ricardo. E o Vale era o escravo. Vassouras, século XIX. Senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 121. 45 SCHMIDT, Benito B. Grafia da vida: reflexões sobre a narrativa biográfica, Revista História Unisinos, vol. 8, nº 10, jul/dez, 2004, p. 131-142, p. 137.

311

Pelas mãos de Alice: A trajetória de uma filantropa comunista na primeira metade do século XX Andréa Ledig de Carvalho Pereira Doutoranda Programa de Estudos Pós Graduados em Política Social-UFF Orientadora: Profª Drª Suely Gomes Costa [email protected]

Resumo: Neste artigo discutiremos a trajetória de Alice Tibiriçá. Inicialmente uma mulher da elite que, à frente da Sociedade de Assistência e Prevenção à Lepra da cidade de São Paulo, irá estender as mãos aos lázaros, depois a feminista e comunista. Intentando analisar as implicações do seu devir filantrópico pelas suas itinerâncias na vida doméstica e no cenário político, buscamos compreender o significado da filantropia nos embates por direitos sociais e de gênero na montagem dos sistema de proteção social. Palavras Chaves: Gênero. Filantropia. Proteção Social Resume: We will discuss the trajectory of Alice Tibiriçá . Initially a woman of the elite who , at the head of the Society of Assistance and Prevention of Leprosy of São Paulo, will reach out to Lazarus , after feminist and communist . Attempting to analyze the implications of his philanthropic becoming by their itinerant in domestic life and in the political arena , we seek to understand the meaning of philanthropy in struggles for social rights and gender in the assembly of the social protection system . Key Words : Gender . Philanthropy. Social protection

1-

PELAS MÃOS DE ALICE Em 29 de setembro de 1949, Alice Toledo Tibiriçá, aos 63 anos de idade, uma

reconhecida filantropa brasileira, era detida pela Delegacia de Ordem Social para prestar esclarecimentos, quando pretendia tomar parte em uma reunião de mulheres no nº 102 da Rua

312

Vergueiro, na cidade de São Paulo. A prisão, nesses tempos, fora motivada pelo fato de a referida senhora manter “estreito contato com líderes do PCB, por intermédio do Instituto Feminino do Serviço Construtivo, entidade de caráter eminentemente marxista, da qual é presidente”.1 Essa filantropa, conhecida apenas como Alice Tibiriçá, uma das mulheres mais atuantes na montagem de uma vasta rede de proteção social aos portadores de hanseníase e tuberculose, era também líder feminista e fundadora e professora do Instituto de Serviços Sociais da Instituição Carlos Chagas, localizado na capital da República. Alice tinha propósitos de vida que também figuraram na trajetória de outras mulheres de seu tempo, como o da certeza da relevância feminina na construção de um novo Brasil, em ações singulares fundamentais na criação da rede de proteção social. Trata-se, ainda, de um protagonismo voltado para a criação de novos espaços de atuação feminina. Alice era a segunda filha do general do Exército José Florêncio Toledo Ribas e de Maria Augusta Rangel Ribas. Alice Toledo Ribas nasceu em 09 de janeiro de 1886 em Ouro Preto, na época capital do Estado de Minas Gerais, onde viveu os primeiros anos de sua infância. Era chamada pela mãe de bugrinha. Em seu caderno de memórias, escrito em 1941, a pedido de sua filha, Alice relata que as bonecas nunca a seduziram e os afazeres domésticos nunca a atraíram. Gostava mesmo era de apreciar a natureza e de brincar no trapézio, presente do pai. Foi nessa época, por volta dos dez anos, quando sua irmã estudava no colégio Sion, em Petrópolis, que a escola primária entrou em cena. Alice já sabia ler e escrever e achava a escola monótona: “Não gostava mesmo da escola, quase sem ar e repleta de alunos”.2 Diante disso, a mãe lhe propôs estudar com um professor particular, prática bastante comum entre as famílias mais abastadas, o que a deixou radiante. Descobriu aí, com o professor Sr. Pessanha, o amor pelos livros e o fascínio pelos estudos. Nesse ambiente familiar, pela primeira vez Alice travou contato com a compaixão pelos corpos sofredores3. Em suas memórias Alice relata com saudades, as práticas de ajuda ao próximo desenvolvidas por sua mãe: “Vi aquelas lindas mãos lavando chagas de doentes. Augusta acolhia sempre os que dela necessitavam”.4 E, as visitas que fazia aos presos da cadeia pública na companhia de seu primo Lourival: “Foi nessa cadeia que aprendi, singularmente, a essência humana que há em toda criatura. Lá os detentos faziam, para mim e meu primo, banquinhos envernizados, brinquedos etc. Em troca, dávamos a eles lápis, tinta e o conforto de nossa presença”.5

313

Em 1898, a mãe de Alice, em mais um ato de solidariedade se muda com as filhas para o Rio de Janeiro, a fim de cuidar de uma irmã doente. Sua casa em Laranjeiras passou, então, a ser uma parada obrigatória dos estudantes de Medicina vindos de Ouro Preto. A Alice “bugrinha” havia ficado em Ouro Preto, cidade para a qual sua família não mais retornaria. Com a morte dos pais no ano de 1899,6 a irmã Marieta se casa com o então médico recémformado, Abraão Glasser. Alice, então com 14 anos, foi residir na cidade de São Paulo com “vó Margarida”, sua tia-avó paterna, e com suas duas filhas viúvas, Margarida e Mimie, além do “tio” Max, responsável pela mãe e pelas irmãs. Informa ela: “As tias eram ótimas criaturas, embora antigas na maneira de pensar e de viver [...] O enorme carinho para com Alice – e vice-versa – fazia com que fosse superada a visível diferença de personalidades”.7 É, assim, provável que, sendo esta uma família tradicional, nem sempre ofereceria um espaço para novos vôos. Certa vez, Alice declinou de um convite feito por um professor para cursar o ensino superior na Escola de Ouro Preto. “Muitas vezes falava nisso, depois lamentando um pouco não haver seguido o conselho do mestre” (MIRANDA, 2005, p. 21). A tão desejada formação profissional só veio anos mais tarde, em 1922, no curso regular do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. O ingresso nessa instituição pode ter significado, e certamente foi, um relacionamento mais próximo e cotidiano com o mundo cultural. Nesse espaço de sociabilidades, Alice se torna a aluna “dileta de Mario de Andrade”, um dos líderes do movimento modernista e ícone da Semana de Arte Moderna de 1922. A ausência de curso superior não a impediu de, anos mais tarde, circular pelos meios acadêmicos e políticos. Suas atividades filantrópicas junto aos lázaros a puseram em contato com o mundo, consolidando um vasto capital social e moral. Foi esse ambiente que a capacitou, num sentido amplo, para o exercício de suas atividades intelectuais.8 O primeiro olhar de Alice para a questão da lepra ocorreu em 1913. Já era casada com o jovem engenheiro João Tibiriçá Neto, filho de uma tradicional família de políticos paulistas e mãe de seu filho Jorge, nascido em abril desse mesmo ano. Mudara-se a família para a cidade de São Luís do Maranhão. Durante sua permanência na cidade, costumava observar que “passavam seguidamente leprosos, a cavalo, mendigando. Numa época em que ainda pesava sobre os hansenianos um terror bíblico, Alice via as esmolas lhes serem atiradas à distância. Impressionou-se vivamente” (MIRANDA, 2005, p. 14). Nesse período, o filho de dois anos adoeceu. Coberta de furúnculos, a criança [...] não tinha posição para sentar-se ou deitar-se. Certa vez, ao almoço, fez um uf! de alívio. Conseguira uma posição mais confortável [...] deitando-se de barriga sobre elas (uma fila de almofadas), comendo como um bichinho. Todos se comoveram e os olhos de Alice se encheram de lágrimas.9

314

Residiria aí, a mensagem explicita quanto à motivação de Alice para suas ações filantrópicas em direção àqueles corpos descarnados pela “lepra” e pela miséria. Acredito que sim. Pois como afirmar Laqueur “as grandes causas parecem originar-se do poder que tem um dorso dilacerado, uma fisionomia doentia, uma morte prematura de estimular a imaginação moral” 10 Anos mais tarde, em 1921, quando a família já residia em São Paulo, o filho Jorge foi novamente acometido de uma doença que lhe causou feridas pelo corpo, dessa vez tifo exantemático. Alice vivenciará um novo encontro com a dor e o sofrimento de um corpo dilacerado por feridas. Daí a observação de que a experiência antes descrita possa ter lhe suscitado a compaixão capaz de mobilizá-la: “[...] quando estendia a mão a um enfermo, declarava estar praticando um dever, que cumpria com todo o calor da solidariedade humana”. Nesses registros, há muito daquilo que Laqueur (1992) chamará de “narrativas humanitárias”.11Ao transpor o abismo entre fatos, compaixão e ação, Alice se move das ações caritativas vinculadas à benemerência cristã, realizadas por sua mãe no espaço doméstico para o campo de ações filantrópicas sistemáticas que lhes deram reconhecimento nacional e internacional, na primeira metade do século XX.12 Para Alice, bastava um pequeno passo para levá-la da vocação humanitária à ação (LAQUEUR, 1992). Assim, no dia 21 de fevereiro de 1926 realizava-se, na residência da Rua Tamandaré a reunião de fundação da primeira Sociedade de Assistência às Creanças Lázaras de São Paulo que, em março do mesmo ano, passou a se chamar Sociedade de Assistência aos Lázaros e Defesa Contra a Lepra de São Paulo. Inicialmente, suas atividades contaram com o apoio e os aplausos dos setores masculinos em posição de autoridade familiar: o sogro, que cedeu o espaço de sua residência para que se realizasse a reunião da qual participaram homens e mulheres da elite paulistana, e do esposo que, ao lado de Alice, iria participar de diversas ações desenvolvidas junto ao poder público e à sociedade civil para debater a questão da “lepra” no Brasil.13A saúde pública era colocada no debate nacional como elemento-chave para que o Brasil deixasse de ser “um imenso hospital” e se tornasse efetivamente uma nação moderna. Em 1927, Alice se muda com a família para uma grande casa em Perdizes. Ali, instala o Instituto de Ciências e Artes Santa Augusta, nome que se configura como mais uma homenagem à sua mãe. Como muitas mulheres de seu tempo, Alice tornara-se filantropa e professora. Nesse ambiente, em que a casa e o colégio estão sediados no mesmo espaço geográfico, a ideologia das esferas separadas torna-se uma fantasia. Movida talvez pela

315

imagem ideal de boa mãe, que perpassa o imaginário feminino, Alice − como muitas mulheres ainda hoje – procurava se equilibrar entre os dois domínios. Na trajetória de Alice, as atividades profissionais desenvolvidas no campo da educação feminina também lhe abriram novos caminhos no mundo público. Sua larga campanha pela educação especializada de moças da zona rural era realizada por meio de conferências. Suas publicações de matérias de interesse de jornais e revistas sobre as ações desenvolvidas nessa área lhe deram visibilidade e, possivelmente, aproximaram-na das lutas feministas.14Anos depois, as ações médico-sociais desenvolvidas à frente da campanha contra a hanseníase já lhe tomavam a maior parte do tempo e reclamavam sua dedicação. Era preciso escolher que caminho seguir: a filantropia ou a educação. Em 1933 encerraram-se as atividades do Instituto. Dando continuidade ao Programa da Sociedade de Assistência aos Lázaros e Defesa Contra a Lepra de São Paulo, de criar em outros Estados grêmios de igual finalidade, Alice escreveria ao Dr. Belmiro Valverde, organizador e secretário geral da primeira das “Jornadas Médicas” da América Latina, realizada em 1928 na cidade do Rio de Janeiro, para solicitar que fosse incluída no programa das conferências a “questão-lepra”, num claro indício da aliança estabelecida entre mulheres e médicos nessas primeiras décadas do século XX15. Alice profere, no dia 19 de julho de 1928, no salão da Academia Nacional de Medicina, a conferência intitulada: O Feminismo e o Combate à Lepra. Dois anos depois da realização e da publicação dessa conferência, Alice é eleita a feminista mais expressiva do Estado de São Paulo. Em plebiscito realizado pelo jornal São Paulo para escolha das 12 personalidades mais expressivas do Estado nos setores político, artístico, esportivo etc.. De fato, se Alice, já era conhecida no meio social paulista por suas ações filantrópicas e educacionais, agora seria também (re) conhecida como feminista. A década de 1930 chega à sociedade brasileira trazendo grandes mudanças no cenário político. Na tentativa de reafirmar junto ao novo governo as aspirações feministas, além de atrair novas adeptas, a FBPF realiza, em junho do mesmo ano, na cidade do Rio de Janeiro, o II Congresso Internacional Feminista. Na trajetória de Alice é possível perceber o quanto “na saída em direção à vida pública as mulheres vivenciam ganhos e dilemas políticos. Ganham espaços diversos e tomam consciência de si e do outro”16 Porém, nela também localizamos os impasses decorrentes de suas tradicionais responsabilidades domésticas. Assim, ao mesmo tempo em que participava do II Congresso Internacional Feminista, como responsável pelo tema A mulher como fator

316

social, Alice vivia a angústia da mulher-filantropa e professora para conciliar as atividades domésticas e extradomésticas. Tal dilema se torna perceptível na Assembléia da Sociedade de Assistência aos Lázaros e Combate à Lepra de São Paulo, realizada em 16 de junho de 1931,em que Alice anunciava: [...] a necessidade de deixar a presidência dessa agremiação, a fim de desenvolver atividades proprias, pois encargos de familia tinham ficado enormemente – irreparavelmente, quase – prejudicados coma minha permanência naquelle posto, cujos trabalhos augmentando sempre, reclamavam um tempo que não podia dispor.17

Em 30 de junho de 1931, Alice finalmente apresentaria em reunião convocada pela Sociedade de Assistência aos Lázaros do Rio de Janeiro o esboço do Estatuto da nova Federação, que deveria ter sua sede naquela cidade. Finalmente, no dia 24 de fevereiro de 1932, na sede da Sociedade em São Paulo, Alice seria eleita presidente da Federação das Sociedades de Assistência aos Lázaros e Defesa contra a Lepra. Como presidente da Federação, Alice ampliava seu poder político. E foi como presidente da Federação das Sociedades de Assistência aos Lázaros e Defesa contra a Lepra que em 03 de maio de 1932 Alice reiterava, através de oficio ao Presidente Getúlio Vargas, a moção solicitando que o segundo domingo de maio fosse consagrado para homenagear as Mães, já apresentada por ela e aprovada por aclamação no II Congresso Internacional Feminista. Ao exaltar a maternidade como função social e, portanto, pilar da cidadania feminina, Alice e as feministas de seu tempo se vinculam ao “maternalismo feminista” ou “feminismo maternalista”. As mulheres não eram cidadãs apesar de serem mães; elas eram cidadãs por serem mães.18 As ações filantrópicas desenvolvidas por Alice a tornam uma importante interlocutora política no cenário das ações médico-sociais de combate à lepra. Se, inicialmente, seu prestigio político estava vinculado ao nome da tradicional família de políticos paulista, os Tibiriçá. Na tessitura de uma rede nacional de proteção aos portadores do Mal de Hansen, seu nome ganha cada vez mais reconhecimento. O ano de 1932 foi intenso para Alice. Como várias mulheres das classes média e alta de São Paulo, ela iria participar ativamente na campanha constitucionalista. Mineira de nascimento, tornara-se uma “Mulher Paulista”19. As origens da insurreição podem ser encontradas na velha oligarquia paulista – a que a família Tibiriçá estava ligada – pretendendo retomaras posições perdidas. Mas, para Alice, foi na ação contra a ditadura que todo o Estado com seus vários segmentos se mobilizou. Anos mais tarde, ao comentar sobre esse episódio, Alice perguntava: “Se tivesse sido vitoriosa a Revolução Constitucionalista de 1932, ocorreria

317

o Estado Novo em 1937?” (MIRANDA, 2005, p. 91). Talvez resida em seu espírito libertário, nesse que jamais aceitaria um regime autoritário, uma das motivações para sua inserção nessa luta. Enquanto o filho e o esposo lutavam nos campos de batalha, Alice abria as portas de sua casa em Perdizes, onde funcionava o colégio que a todo custo tentava reerguer, para ser a sede da Liga Feminina de Defesa Nacional. No local instalara, sob a orientação do Dr. Pedral, um curso de enfermagem de guerra. No térreo do casarão, funcionava “uma seção de costura para os combatentes e uma seção de cozinha que fornecia almoço às famílias necessitadas dos que partiam. As nossas portas permaneciam abertas”. Mas isso não bastava para Alice. Com uma personalidade que “não via obstáculos intransponíveis quando um imperativo mais forte se apresentava à sua consciência” (MIRANDA, 2005, p. 119) decide, então, viajar para sua terra natal, Minas Gerais e para a Capital Federal. O trânsito de Alice pelas esferas do poder político– em Minas Gerais e na Capital da República – durante sua viagem revela as possibilidades efetivas de uma filantropa nas primeiras décadas do século XX, numa clara conexão entre filantropia e política, assim como entre o público e o privado nas trajetórias femininas. Na viagem, de volta para São Paulo, a senhora Tibiriçá se encontra no trem com Maria Lacerda Moura e a convida para que se hospede em sua casa antes de seguir a viagem que a levaria a Guararema. Feministas e intelectuais de uma mesma geração é provável que suas trajetórias tenham se cruzado por diversas vezes em inúmeros momentos e espaços, construindo, apesar das diferenças políticas, laços afetivos. Se o encontro com Maria Lacerda Moura a aproximou do pensamento de esquerda, não sabemos! Mas, no ano seguinte, Alice participa ao lado de outras feministas do movimento pró-libertação de Obdulio Barthe, líder do Partido Comunista Paraguaio, conforme noticiava o jornal Folha da Noite de São Paulo, de 13 de fevereiro de 1933: Diante de uma Alice com uma sensibilidade política muito mais complexa, o fim do Movimento de 1932 não trará de volta a harmonia entre ela e o Governo Paulista. Mas às vezes mudar é preciso! Se até 1930, diante de uma intervenção estatal esparsa e frágil quanto à questão da lepra, coubera à filantropia assumir e viabilizar o atendimento aos “desvalidos”, tendo o Estado como mero parceiro dessas ações – principalmente através do repasse de verbas - a

318

partir da chegada de Vargas ao poder a montagem de um modelo intervencionista de Estado não se fez sem conflitos e tensões entre as instituições filantrópicas e o poder público. Nuvens carregadas cobriam os céus paulistas, silenciando as atividades desenvolvidas por Alice à frente da Sociedade de Assistência aos Lázaros de São Paulo.Em busca de dias mais ensolarados, Alice, estrategicamente, desloca sua atuação na S.A.L. de São Paulo, de onde durante seis anos irradiou suas ações para todo o Brasil, para o espaço da Federação das Sociedades de Assistência aos Lázaros e Defesa Contra a Lepra na cidade do Rio de Janeiro. Com a Federação submetida ao projeto centralizador do governo Vargas não havia mais espaço para os questionamentos políticos de Alice. Ela então decide se afastar definitivamente da Federação e da campanha de combate à lepra. E, assim, em março de 1938, Alice iniciava uma nova fase, fundando na capital da República a Instituição Carlos Chagas, por ela dirigida até o seu falecimento. No intuito de fazer em relação à tuberculose o mesmo que conseguira na luta contra a lepra, “coubera à instituição Carlos Chagas, para melhor êxito das iniciativas, esforçar-se pela unidade de ação das entidades congêneres, procurando estabelecer pontos de contato e elos entre as já constituídas”. Em 25 de julho de 1944, com a adesão das principais entidades do Rio de Janeiro e das de outros Estados, fundava-se, na Capital da República, a Federação das Associações de Combate à Tuberculose. À medida que Alice se aproxima progressivamente do discurso de esquerda, apaga de suas bandeiras as lutas por questões específicas, lançando-se, exclusivamente, às lutas gerais das reinvindicações econômicas e políticas. Dizia ela: “Perdi 20 anos de minha vida em lutas parciais. Só quando o Brasil for emancipado econômica e politicamente, todas essas causas serão resolvidas”. E era em torno das chamadas “lutas gerais” como a carestia, que se fazia sentir nos lares brasileiros, que mulheres de diferentes classes sociais se mobilizavam nas Uniões Femininas.20 E, foi com o objetivo de congregar as atividades femininas que, em 1946, o Instituto Carlos Chagas fundava o Instituto Feminino de Serviço Construtivo que, sob a direção de Alice Tibiriçá, funcionou como elo entre numerosas Uniões e outras entidades femininas no Rio de Janeiro. No ano seguinte, o novo Instituto é convidado para participar em Praga na então chamada Tchecolosváquia da reunião do Conselho da Federação Democrática Internacional de Mulheres – instituição com sede em Paris vinculada às feministas socialistas da Europa. Alice é eleita por unanimidade para representar o Brasil. Em Praga, certamente ouviu falar do

319

marxismo e travou contato com experiências socialistas. Ali, provavelmente, não se discutiam questões referentes à condição das mulheres, mas sim de que forma as mulheres poderiam atuar no processo revolucionário. O impacto dessa experiência deve ter sido complexo para Alice. Embora Alice não proclame a tutela das organizações de esquerda e do Partido Comunista Brasileiro sob suas atividades, tal influência pode ser claramente sentida, não somente por sua filiação à Federação Democrática Internacional de Mulheres, mas principalmente a partir de “palavras de ordem” e táticas utilizadas por Alice em suas ações. A vinculação de Alice ao Partido Comunista ganhava a opinião pública. Na luta pela emancipação econômica do país e ao lado de outros movimentos sociais, Alice adere à campanha “o Petróleo é Nosso”. Maria Augusta participa ativamente da campanha ao lado de sua mãe.21 A luta nacionalista era agora uma luta familiar. A intensidade da campanha, contudo, muitas vezes exigia que fossem para lugares diferentes. Em 1949 o país já contava com instituições femininas atuantes e organizadas em inúmeras entidades pelos Estados brasileiros; elas demandavam uma estruturação mais eficiente. Para atender a essa demanda, funda-se na capital federal a Federação de Mulheres do Brasil, tendo como sua presidente Alice Tibiriçá. Entretanto, acirrava-se a violência. Alice já se encontrava adoentada quando, no dia primeiro de agosto, sua casa, juntamente com outras casas da cidade, foi cercada pela polícia e muitas prisões se fizeram. Diante da intimação para comparecer à delegacia, sem mandado judicial, “Alice recusou-se a atender à arbitrariedade”. E disse que só iria se fosse à força. Diante de tal negativa, a intimação transformou-se em um convite para que Alice comparecesse à Delegacia.. Após prestar esclarecimentos, Alice foi liberada. No mês seguinte, sua irmã Maneta comemoraria bodas de casamento e Alice resolveu ir a São Paulo tirar uns dias de descanso. Chegando à capital paulista, recebeu o convite de Amigos da Federação de Mulher para uma reunião na sede situada em um prédio comercial no centro da cidade. Como Alice não resistia a um convite de trabalho, mesmo adoentada decidiu comparecer. Ao chegar ao local, foi presa. Segundo a Delegacia de Ordem Social, sua prisão se justificava, pois [...] cedeu, como diretora da Instituição Carlos Chagas, dependências dessa organização para um dos cursos de alfabetização do “Comitê Democrático Progressista” do Flamengo, entidade subordinada ao ext. Partido Comunista. Representou o Brasil (delegado do P.C.B) no Congresso Internacional de Mulheres, quando de sua instalação em Praga, na Tchecoslovaquia. Mantém estreito contato com líderes do PCB, por intermédio do Instituto Feminino do Serviço Construtivo, entidade de carácter eminentemente marxista, da qual é presidente. Foi eleita vice-presidente do C.E.D de

320

Petrópolis. Fez parte da Comissão Brasileira do II Congresso Internacional de Mulheres, realizado em Budapeste – Hungria.22

Após intensa mobilização de familiares e amigos, Alice finalmente é libertada. Seu estado de saúde, porém, se agravara. No dia 8 de junho de 1950, após uma árdua luta contra um retículo-sarcoma, Alice falecia. 1

Disponível em: < www.arquivoestado.sp.gov.br/memoriapolitica/fichaseprontuarios>. Acesso em: 12 fev. 2015 2 MIRANDA, Maria Augusta Tibiriçá. Alice Tibiriçá: Lutas e ideiais. 2. ed. Rev ampliada e atualizada, Rio de Janeiro: Funpaconhan, 2005 p. 8. 3 LAQUEUR, Thomas W. Corpos, detalhes e narrativa humanitária. A nova história cultural, São Paulo: Martins fontes, 1992. p. 239-277 4 MIRANDA, op. cit., p. 5. 5 Ibid., p. 10. 6 “Após uma cirurgia realizada em sua própria residência Augusta, com 39 anos, falecia em 11 de fevereiro de 1899 . Em dezembro do mesmo ano de 1899, faleceu no Hospital Central do Exército no Rio de Janeiro o seu pai, o general José Florêncio de Toledo Ribas, que já vinha doente. (MIRANDA, 2005, p. 11). 7 MIRANDA, op. cit., p. 12. 8 SIRINELLI, Jean François. Os Intelectuais. In: REMOND, René. Por uma história política. 2. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2003a. cap. 8. 9 MIRANDA, 2005, p. 14. 10 LAQUEUR,1992, p. 242). 11 Ibid, p. 240 . 12 SANGLARD, Gisele Laços de sociabilidade, filantropia e o Hospital do Câncer do RJ (1922-1936). História, ciências, saúde - Manguinhos. Rio de Janeiro, n. 17 supl. 1, p 127-147, 2010. p. 128). 13 No relatório da Sociedade de Assistência aos Lázaros e Defesa contra Lepra de 1926-1927, localizamos a participação de seu esposo em várias atividades realizadas no ano de 1926.. Cf. RELATÓRIO... 1926/1927. 14 Folha da Manhã, 24 jan. 1931. Disponível em: . Acesso em: 08 fev. 2015. Em 08 de maio de 1931 Alice Tibiriçá proferiu, no Centro do Professorado Paulista, conferência sob o título “O valor da Cooperação da Mulher na Agricultura” e, em agosto de 1931, na Sede da Sociedade Rural Brasileira de São Paulo, sob o título “A mulher na Agricultura”. Também publicou artigos sobre a educação feminina no jornal Folha da Noite de 29 de abril de 1930, no jornal Correio Paulistano em 20 de maio de 1930, no Jornal a Folha da Manhã de São Paulo em 12 de janeiro de 1932, e na revista trimestral Lavoura de abril, maio e junho de 1931. (MIRANDA, 2005, p. 22). 15 FREIRE, Maria M. L. Mulheres, mães e Médicos: Discursos maternalistas no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009. 16 COSTA, Suely Gomes Proteção social, maternidade proteção social, maternidade transferida e lutas pela saúde reprodutiva. Estudos feministas, v. 301, p. 2, 2002. p. 304. 17 TIBIRIÇÁ, Alice de Toledo Ribas. Como eu vejo o problema da lepra: e como me vêem os que o querem manter São Paulo. Rio de Janeiro: Biblioteca Casa de Oswaldo Cruz/FIOCRUZ, 1934.p 21 18 BOCK, Gisela; DUBY, Georges; PERROT, Michelle. Pobreza feminina, maternidade e direitos das mães na ascensão dos Estados-providência (1890-1950). História das mulheres no ocidente, Porto, v. 5, p. 185-320, 1991. 19 Sobre as representações da “Mulher Paulista” ver Weinstein (2004) 20 As Uniões Femininas foram criadas para atender a política de “frente popular” estabelecida pela 3ª Internacional de 1935. Ver; COSTA, Ana Célia Alcantâra; SARDENBERG, Cecilia Maria B (Org.). O feminismo do Brasil: reflexões teóricas e perspetivas. Salvador: UFBA / Núcleo de Estudos interdisciplinares sobre a mulher, 2008. 21 Ver MIRANDA, Maria Augusta Tibiriçá. O Petróleo É Nosso! A luta contra o Entreguismo, pelo Monopólio Estatal. 1983. Rio de Janeiro: Petrobrás/Ipsis e entrevista de Maria Augusta Tibiriçá (1983), 2005 (CPDOC). 22 Informações prestadas pela Polícia Política do D.F – of. 2.129/S/I, de 1/12/49. Disponível em: . Acesso em: 20 ago. 2014.

321

MÍDIA E POLÍTICA NA AMÉRICA LATINA: UM ESTUDO SOBRE A OPERAÇÃO LAVA JATO (BRASIL) E O CASO NISMAN (ARGENTINA) Ângela Carrato Palavras-chave: Práticas midiáticas; conservadorismo; regulação. Resumo: A partir de dois recentes escândalos - Lava Jato, no Brasil, e Caso Nisman, na Argentina -, o objetivo deste artigo é discutir a atuação histórica da mídia nestes dois países, mostrando como em ambos os casos, ela tem agido com parcialidade e em defesa de interesses conservadores e próprios. Key Words: Midia practice; conservadorism; media regulation. Abstract: From the viewpoint of two recent scandals, the so-called “Lava jato” in Brazil and “Caso Nisman” in Argentina, the objective of this paper is to discuss the historical role of the media in these two countries. It is shown that in both cases, the media has acted with partiality and in defense of conservative interests in a hidden agenda.

INTRODUÇÃO As histórias do Brasil e da Argentina possuem mais pontos em comum do que singularidades, especialmente nas últimas décadas. O objetivo desta pesquisa é analisar duas situações bastante recentes que receberam enorme cobertura da mídia - a chamada Operação Lava Jato (Brasil) e o Caso Nisman (Argentina). Em que pese a diferença entre elas, ambas foram transformados em verdadeiros espetáculos midiáticos visando a desestabilização dos respectivos governos. Razão pela qual são analisadas as práticas e as estratégias jornalísticas utilizadas, em especial pela revista Veja, pelas Organizações Globo e pelo Grupo El Clarín, ao “cobrirem” estes episódios. (Sousa, 2000; Mouillaud, 2012; Eco, 2015). A menos de 72 horas das eleições presidenciais no Brasil, em outubro de 2014, Veja, a revista semanal de maior circulação no país, antecipou sua edição e publicou uma capa na qual, valendo-se de vazamento seletivo da delação premiada do doleiro preso Alberto Youssef, acusou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a presidente e candidata à reeleição Dilma Rousseff de terem conhecimento de corrupção existente na maior empresa estatal brasileira, a Petrobras. Os dois sequer foram ouvidos pela reportagem.

322

Em 20 de janeiro de 2015, o promotor federal argentino Alberto Nisman foi encontrado morto em seu apartamento em Buenos Aires. A sua estranha morte (suicídio? assassinato?) aconteceu às vésperas da entrega do relatório que estava concluindo sobre o atentado à Associação Mutual Israelita Argentina (AMIA), ocorrido 20 anos antes. Sem quaisquer evidências sobre a questão, a mídia argentina passa a responsabilizar o governo de Cristina Kirchner, pela morte, a ponto do jornal El Clarím, o mais influente no país, sentenciar, poucas semanas depois, que a presidente era “uma assassina”. A pesquisa está dividida em três partes. Na primeira parte é feita a contextualização dos dois países no que diz respeito ao papel da mídia durante o regime autoritário e sua atuação na luta em prol do retorno à democracia. Na segunda parte são mostrados os diferentes caminhos trilhados pelos governos brasileiros e argentinos no que diz respeito à regulação democrática da mídia. As ações e omissões destes governos terão consequências da maior importância em se tratando dos casos em estudo e do futuro da própria democracia nestes países. Na terceira parte é analisada a atuação da mídia em se tratando da cobertura das ações da Operação Lava Jato e do Caso Nisman. PRIMEIRA PARTE A chamada grande mídia brasileira participou da articulação, apoiou e aplaudiu o golpe civil-militar de 1964. Mesmo que alguns desses veículos tenham rapidamente se desiludidos com os rumos do novo regime1, é certo que seus proprietários sempre estiveram do lado oposto de governos nacionalistas e mais à esquerda como os de Getúlio Vargas (1950-1954) e João Goulart (1961-1964). Até 12 de dezembro de 1968, não houve censura prévia à imprensa brasileira, indicando o grau de coesão existente entre mídia e novo regime. A edição do Ato Institucional nº 5 veio alterar esta situação, revelando a existência de tensões entre empresários da mídia, jornalistas, artistas, intelectuais e o novo governo. As Organizações Globo atravessassem a década de 1970 sem sofrer

qualquer

hostilidade por parte da chamada opinião pública. Ao contrário: a influência, poder e prestígio da TV Globo, carro-chefe da organização, atingiu patamares únicos em termos de audiência. A partir da segunda metade dos anos 1970, com o desgaste do regime acentuando-se, começou a ter lugar uma importante alteração de forças. Setores que

1

Foi o caso dos jornais Correio da Manhã e Estado de S. Paulo.

323

apoiavam o regime passam a migrar para o campo das oposições. O jornal Folha de S. Paulo, na contramão dos demais veículos da grande mídia, passou a cobrir e dar destaque às manifestações em prol das eleições diretas para presidente da República. No que diz respeito à Argentina, o golpe militar ocorrido em 24 de março de 1976 culmina um longo processo de controle e repressão contra a esquerda peronista e a esquerda tradicional que teve início com a queda do governo do general Juan Domingo Perón, em 1955. Desde então, as forças armadas transformaram-se em sujeitos de poder com alta margem de autonomia institucional, consolidando-se como ator principal no cenário político, uma vez que a liderança civil estava debilitada. Quando a Junta Militar compostas pelos comandantes das Forças Armadas - o general Jorge Rafael Videla, o almirante Emílio Eduardo Massera e o brigadeiro Orlando Ramón Agosti - tomou o poder e dissolveu o Congresso, iniciou-se a ditadura militar “mais violenta e transformadora da história argentina” (SAIN, 2000, p. 22). De acordo com SAIN (2000, p.22), ela implicou uma fissura na ação do poder militar, não só pela tendência auto definida e autossustentada da interferência castrense no sistema político, mas particularmente, pela capacidade de reconstituição das condições de dominação social, pela redefinição do papel do Estado e pela reestruturação social e política provocada por essa ação, no quadro da mais cruel experiência de terrorismo de Estado observada no Cone Sul. Como no Brasil, os principais grupos de mídia na Argentina, El Clarín à frente, deram apoio ao golpe contra Isabelita Perón. Ao longo de sua trajetória, o jornal refletiu sempre o pragmatismo de seu diretor e fundador, Roberto Noble, que tanto pode ser comparado ao milionário da mídia norte-americana William Randolph Hearst, quanto aos magnatas brasileiros do setor Assis Chateaubriand e Roberto Marinho. Em 1945, Clarín fez campanha contra Perón. A partir do fim de 1946, aderiu com entusiasmo ao peronismo e só durante os dias que precederam à derrocada do presidente se reconverteu ao mais furioso antiperonismo. Como Chateaubriand, Noble chegou a alimentar sonhos de ser presidente, mas a exemplo de Marinho, acabou, como assinala SIVAK (2013), percebendo que não teria chances e que poderia desempenhar papel ainda maior ao “fazer” presidentes, segundo suas próprias palavras. Graças ao estímulo que deu à seção de esportes e à capacidade que possuía para ajustarse às circunstâncias, o Clarín duplicou suas vendas. Como frisa SIVAK (2013), o jornal

324

não só defendeu a ordem, como ignorou os crimes da ditadura. Aliás, a direção de El Clarín, ela própria, estava envolvida nestes crimes. Durante a ditadura, a viúva de Noble, Ernestina Herrera de Noble, usou seus contatos com o ditador Videla, para pedir-lhe para tirar de cena as empresas que lhe faziam concorrência. Juan Graivers de Papaleo, sua esposa Lidia Papaleo e seus filhos pequenos foram levados para o centro de detenção clandestino conhecido como o poço de Banfield. Alguns deles continuam ainda como desaparecidos e outros morreram devido à tortura. Meses mais tarde, após a tortura e assassinato de seu marido, Lidia Papaleo foi forçada a vender sua empresa ao jornal Clarím. Desde o governo de Néstor Kirchner, no entanto, que a Argentina vem questionando as leis que privilegiaram os representantes do governo autoritário. Kirchner, ao contrário do que defendia e pretendia parte da mídia, iniciou uma série de mudanças na legislação através de anulações de decretos que impediam a extradição de militares acusados de violação de direitos humanos, declarando inconstitucionais as leis do Ponto Final e da Obediência Devida. Em síntese, após o fim da ditadura, os governos argentinos sempre enfrentaram problemas e estiveram, a maior parte do tempo, em confronto com a mídia. SEGUNDA PARTE Fernando Collor, o primeiro presidente brasileiro eleito pelo voto direto desde a década de 1960, não pretendia e nem teve tempo de fazer qualquer alteração em se tratando da mídia. Foi obrigado a renunciou ao cargo para não ser alvo de impeachment devido às denúncias de esquemas de corrupção em que estaria envolvido. Os oito anos de gestão de Fernando Henrique Cardoso - o primeiro presidente brasileiro a viabilizar a própria reeleição - podem ser considerados como de parceria em relação à mídia brasileira. Em linhas gerais, a parceria funcionava assim: as propostas e ações do presidente contemplavam a agenda neoliberal, igualmente defendida pelos empresários da mídia, e a mídia não incomodava o presidente que colocou seu partido, o PSDB, a serviço dos interesses desta mídia e da elite brasileira, bem como de seus parceiros internacionais. Mais de 5000 processos envolvendo corrupção foram “engavetados” pelo procuradorgeral da República, Nelson Brindeiro, neste período, inclusive o envolvendo a compra de votos para a reeleição de Fernando Henrique, sem que a mídia visse nada de errado 325

ou que valesse a pena investigar. Data de 1986, por exemplo, as denúncias formuladas pelo jornalista Paulo Francis, um dos mais destacados na época, que atuava na TV Globo e na Folha de S. Paulo, dando conta de que diretores da Petrobras possuíam contas secretas na Suíça, um indício e tanto de corrupção. A direção da Petrobras moveu um processo milionário contra o jornalista que o levou à morte e a mídia, apesar de todos os indícios de verdade nas denúncias, deu o caso como encerrado. Some-se a isso que foi também neste período que Fernando Henrique Cardoso não só privatizou por valores irrisórios várias empresas estatais brasileiras, como, através de decreto, autorizou a Petrobras a dispensar licitações para a contratação e aquisição de equipamentos e serviços, uma porta aberta para a corrupção. Em uma espécie de retribuição pela vista grossa da mídia, Fernando Henrique solicitou e foi atendido pelo então presidente da Câmara dos Deputados, Aécio Neves, que fosse colocado em votação e aprovado, em regime de urgência, o projeto de emenda constitucional que permitia a presença de até 30% de capital externo na mídia brasileira. A reivindicação do setor não era nova, mas constituía-se em tabu no país, tendo em vista a importância estratégica do setor para a opinião pública nacional. Naquele momento, a maior parte das empresas de mídia brasileiras enfrentava graves problemas financeiros, em especial as Organizações Globo e a Editora Abril que, em anos anteriores, haviam abusado de empréstimos externos para diversificar seus negócios. A grande mídia brasileira, por outro lado, nunca escondeu sua aversão aos governos desenvolvimentistas e a qualquer proposta política que pudesse ser sinônimo de reforma, mudança ou inclusão social. Razão pela qual não é surpresa a forma negativa com que sempre cobriu e se referiu à esquerda no país. Como indicam diversos estudos sobre o assunto, depois de três derrotas e apesar da oposição ferrenha da mídia, o metalúrgico e líder sindical, Luiz Inácio Lula da Silva chegou ao Palácio do Planalto iniciando um ciclo de poder para o Partido dos Trabalhadores (PT) que já dura mais de 12 anos. Inconformada com a fragilidade e incapacidade da oposição para confrontar-se, no jogo político, com o PT, a mídia brasileira, assumiu, gradativamente, nos últimos anos, a posição de ator político de oposição, como deixou nítida a declaração da dirigente da

326

Associação Nacional de Jornais (ANJ) Judith Brito, executiva da Folha de S. Paulo 2. As marcas desta decisão não demoraram a acontecer. Em 2005, a mídia brasileira, tendo à frente as Organizações Globo e a revista Veja, fizeram uma cobertura completamente amplificada do Mensalão Petista3, abafando que prática semelhante e mais antiga já havia sido adotada pelos tucanos, como são conhecidos os integrantes do PSDB, o principal partido de oposição. Mesmo assim, o presidente Lula foi reeleito e conseguiu fazer sua sucessora, a ex-ministra Dilma Rousseff. Dispostos a tudo fazerem para vincular Dilma e Lula ao Mensalão Petista e sem obterem sucesso, setores da mídia partiram para um ataque frontal às vésperas do segundo turno da eleição de 2014. Sem qualquer prova ou depoimento que pudesse embasar a manchete, a revista Veja antecipou a circulação de sua edição semanal com uma capa em que afirmava que Lula e Dilma sabiam da existência de corrupção na Petrobras. Essa capa foi transformada em panfleto e distribuída nas principais capitais brasileiras, sem que a candidata oficial e o PT tivessem tempo hábil para reagir. Na época, já estava em curso, a partir das investigações de um juiz do estado do Paraná, Sérgio Moro, a chamada Operação Lava Jato, que buscava verificar possíveis desvios de recursos na estatal por parte de políticos e partidos, mas ela estava longe das proporções que veio tomar nos meses seguintes. Mesmo assim, este desgaste, ao contrário do que previam os oposicionistas e os dirigentes da própria mídia, não foi suficiente para impedir que Dilma Rousseff fosse reeleita. Com uma diferença de três milhões de votos em relação ao candidato da oposição, Aécio Neves, ela saiu vitoriosa para um novo mandato, desconcertando seus adversários que tinham apostado todas as fichas na sua derrota ou no que preferiram chamar de pós-lulismo. Na Argentina, a relação entre governos democráticos e a mídia nunca foi tranquila. A frase “ganhamos da imprensa!”, proferida pelo candidato peronista Carlos Menem ao comemorar sua reeleição à presidência, em 1995, deixa isto claro. O que era, no passado, uma tensão, acabou evoluindo para uma guerra aberta. Movimentos populares foram às ruas reivindicando regulação democrática da mídia e o governo de Cristina Kirchner acabou assumindo esta bandeira. Em 2009, o Congresso aprovava a Ley dos 2 3

Entrevista de Judith Brito. O Globo, 18/03/2010. Política Para um aprofundamento sobre o assunto ver: Haas, João Francisco. O verdadeiro processo do mensalão. Brasília, Ed. Verbena, 2015.

327

Medios que, devido a ações na Justiça por parte de donos da mídia, ficou quase paralisada até 2014, quando foi ratificada pela Suprema Corte. Por essa legislação, o grupo Clarím terá que se desfazer de mais de 200 licenças de emissoras de TV por cabo e mais 19 canais abertos, pois a legislação destina um terço destas licenças à mídia comercial, com as outras duas partes cabendo, respectivamente, à mídia comunitária e à mídia de interesse público. A resposta do grupo Clarín a estas determinações tem sido manchetes agressivas e reportagens com denúncias de escândalos contra o governo e seus integrantes em seus canais de notícias, rádios e programas televisivos. Os governos de Néstor Kirchner e os de Lula inicialmente buscaram a convivência pacífica com os grandes grupos de mídia. Foi só no final de seu segundo mandato que Lula, cedendo à pressão de vários movimentos sociais em prol da democratização da mídia, criou, por decreto, a Empresa Brasil de Comunicação (EBC), que tem como um dos seus braços a TV Pública, convocou uma Conferência Nacional para discutir a comunicação no país, a primeira envolvendo governo, empresários e profissionais da área, e ainda entregou, à sua sucessora, um projeto praticamente concluído sobre democratização da mídia. Não se sabe o motivo, mas Dilma Rousseff, até o momento, não quis implementar este projeto e sequer se dispôs a colocar em pauta o tema da regulação democrática da mídia. Uma de suas raras declarações sobre o assunto, não poderia ter sido mais infeliz. A pressão da oposição brasileira, mídia à frente, chegou a um ponto tal que passou a hostilizar, através de panelaços, quaisquer aparições da presidente Dilma na TV. Sua decisão, para enfrentar o problema, foi passar a valer-se das redes sociais para se dirigir à população. Postura que, para muitos de seus apoiadores, significou uma solução inteligente para enfrentar a mídia tradicional, mas que na visão de outros, demonstrou apenas timidez e falta de pulso. No essencial, no entanto, estes dois grupos concordam: Dilma Rousseff está longe de possuir o carisma e o talento político de Lula, Néstor ou de Cristina Kirchner. TERCEIRA PARTE Aparentemente, não há nada em comum entre a Operação Lava Jato, no Brasil, e o chamado Caso Nisman, na Argentina. Um trata de denúncias de corrupção na Petrobras,

328

a estatal petroleira, e o outro envolve a morte de um procurador federal. Em comum, no entanto, os dois têm servido, não para denunciar irregularidades e possíveis desmandos, mas para que a maior parte da mídia comercial nestes dois países deixe de lado o compromisso com a informação e o esclarecimento da opinião pública e assuma o papel de oposição ou, como preferem alguns, de golpismo midiático, contra os governos de

A forma com que a mídia brasileira tem “coberto” a Operação Lava Jato, jogando apenas nas costas de políticos do PT e da chamada “base aliada” a responsabilidade por corrupção na Petrobras, deixa visível que informar não é o interesse maior. É sabido que a corrupção na Petrobras não começou agora e muito menos é “privilégio” dos governos petistas. Também na Argentina, quando as investigações sobre a morte do fiscal Alberto Nisman ainda estavam no começo, a mídia comercial “antecipou-se” e jogou no colo de Cristina Kirchner este cadáver. Segundo a mídia comercial argentina, partindo do tosco pressuposto de que se ele iria denunciá-la e ao chanceler de seu governo, Alberto Timerman, como pessoas que estavam tentando encobrir os responsáveis pelo atentado terrorista que, em 1994, matou 85 pessoas na entidade judaica Amia, em Buenos Aires, esta morte só ao governo interessaria. Em ambos os casos, é nítido o interesse da mídia em confundir a opinião pública, levando-a à percepção de que os dois países vivem à beira do caos. Percepção que poderia ter como consequência colocar as massas populares permanentemente nas ruas exigindo o fim dos “desmandos” e, por tabela, o fim desses governos. Caso contrário, como explicar as cotidianas manchetes catastróficas ligadas à Petrobras, em meio à chamada crise hídrica, à inflação e ao aumento da criminalidade que, ao invés de informarem, acabam infundindo medo e desespero à população? Como explicar, por outro lado, manchetes alarmistas como as da mídia argentina, insinuando que trabalhadores orientais poderiam ocupar o mercado de trabalho no país, após a visita de Cristina Kirchner à China e à assinatura de vários acordos de cooperação? É curioso que esta mesma mídia que dá tanto espaço aos problemas no Brasil e na Argentina ignore, por exemplo, a rede do narcotráfico que tomou conta do vizinho Paraguai após o golpe jurídico-midiático que derrubou o presidente democraticamente eleito, Fernando Lugo.

Ao contrário do Brasil, a Argentina deu, nos últimos anos, passos significativos em direção a uma efetiva democratização da mídia. O país possui um diário de circulação 329

nacional, Página 12, de esquerda, que tem cumprido o papel de desafinar o coro da oposição midiática. Some-se a isto que a Argentina conta com uma televisão pública de qualidade que cobre todo o seu território e, o mais importante, já aprovou e está implementando a Ley de Medios, como se tornou conhecida a Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual. Acusado pelos veículos da mídia comercial de ser “chapa branca”, Página 12 está longe disso. O diário tem se caracterizado por procurar contextualizar as questões, evitando as leituras simplistas e distorcidas da realidade. A título de exemplo, no chamado Caso Nisman, Página 12 tem levantado aspectos que convenientemente não foram mencionados pela mídia comercial. Este diário foi o primeiro a identificar o técnico em informática e auxiliar de Nisman, Lagomarsino, última pessoa que o viu com vida, como integrante do serviço de inteligência argentino. Nesta mesma linha de contextualização dos fatos tem atuado a TV Pública argentina, através de seus telejornais e também de debates e discussões envolvendo políticos, jornalistas, cientistas políticos e especialistas em direito e mídia. Ao contrário de tentar minimizar ou desconhecer as denúncias e críticas que estão sendo formuladas, a TV Pública tem colocado o dedo na ferida, contribuindo para desmontar o circo midiático em torno da morte do fiscal Nisman. Mais ainda, de forma didática, tem mostrado as falácias, incongruências e inconsequências da oposição midiática. O grupo Clarín, entre outras coisas, já comparou o Caso Nisman a um novo Watergate. Recentemente, o jornal Folha de S. Paulo e o portal UOL, de propriedade da mesma empresa, protagonizaram um dos exemplos mais lamentáveis de anti-jornalismo já registados no Brasil. Na quinta-feira, 25/6, ao noticiar, na sua edição digital, que o expresidente Luiz Inácio Lula da Silva havia ingressado com pedido de habeas corpus preventivo, na Justiça do Paraná, para não ser preso como acusado na Operação Lava-Jato, o jornal extrapolou todos os limites do que possa ser denominado de jornalismo sério. A matéria constituía uma espécie de desdobramento do que havia sido publicado, no fim de semana, pelas revistas Veja e Época que, com textos sem fontes e valendo-se de informações “privilegiadas” insinuaram ao limite uma possível prisão de Lula.

330

Como é do conhecimento de qualquer estudante de primeiro ano de Jornalismo, jamais uma informação pode ser publicada sem que os dois lados envolvidos sejam ouvidos. Portanto, se alguém informava, não importa quem, que Lula havia entrado com um pedido de habeas corpus preventivo, o mínimo que um jornalismo sério deveria ter feito é ouvir o expresidente. Se ele não fosse encontrado e se mesmo encontrado se recusasse a falar não importa, seria notícia. O que não poderia jamais ter acontecido é a informação ser publicada sem ouvir o ex-presidente. O único paralelo que se tem para a atuação da mídia brasileira e argentina, diante desses casos, é com o jornal imaginário descrito por Umberto Eco, em seu mais recente livro de ficção.4 Como nos últimos anos as mídias brasileira e argentina deixaram de lado o compromisso com a informação e assumiram o papel de partido político de oposição, não é fácil acreditar que erros de tamanhas proporções sejam apenas responsabilidade de jornalistas incompetentes. Mais uma vez, os ensinamentos dos editores do diário Amanhã servem para seus colegas brasileiros e argentinos. Ao justificar que todos os artigos ou assuntos de maior impacto da edição deveriam levar em conta os interesses do dono da empresa, um dos redatores do fictício diário italiano põe o dedo na ferida:

De volta à mídia brasileira, a Folha de S. Paulo deixou tão nítido o empenho da publicação em tentar criminalizar o ex-presidente Lula, que começou a irritar até conceituados juristas que se sentem incomodados com as afrontas à lei em se tratando dos rumos da Operação Lava Jato. Daí ser difícil aceitar que uma informação como esta, com o impacto que se poderia imaginar, teria sido publicada sem que o dono da empresa fosse consultado. Detalhe importante: a família Frias, proprietária do jornal, como quase todos os empresários da autointitulada grande mídia brasileira, foram flagrados com contas secretas na agência Suíça do banco HSBC. Ao contrário da mídia na Inglaterra, França ou mesmo na Argentina que publicou a relação de todos os correntistas de seus países, no Brasil o jornalista, Fernando Rodrigues, que teve acesso à relação das 6.606 contas de brasileiros, não divulgou a lista sob o argumento que não tinha como apurar a legalidade delas (se estavam devidamente declaradas ao Imposto de Renda e em conforme ao que determina o Banco Central). Ter contas no exterior não é crime no Brasil. Mas muitos correntistas utilizam-se delas para esconder dinheiro e pagar menos impostos. Em valores de 2006/2007, os brasileiros tinham US$ 7 bilhões nestas contas.

4

Eco, Umberto, Número Zero. São Paulo, Record, 2015.

331

CONSIDERAÇÕES FINAIS O que está acontecendo na cobertura da Operação Lava Jato e no Caso Nisman não pode ser considerado circunstancial, especialmente levando-se em conta as semelhanças na história recente do Brasil e da Argentina. As manipulações, distorções e omissões presentes nestas coberturas fazem parte de um contexto mais amplo, no qual a mídia tradicional, diante da fragilidade dos partidos de oposição, assumiu para si o papel de principal agremiação contrária a governos desenvolvimentistas e progressistas. As consequências deste posicionamento para a informação, o interesse público e o futuro da democracia tanto no Brasil quanto na Argentina são enormes. Setores que apoiam o governo Dilma têm cobrado, cada vez de forma mais incisiva, que ela “trave a batalha da comunicação”. Não existe, na democracia, nenhuma outra maneira de se enfrentar situações assim. Razão pela qual observar o que está acontecendo na Argentina, onde esta batalha vem sendo travada pelos governos Kirchner há mais de uma década chega a ser didático. Ao contrário do acreditam alguns desses setores, a Lei dos Meios, adotada na Argentina, não é uma panaceia. O país vizinho mostra que sua própria adoção e, sobretudo, sua implementação consistem em desafios a serem enfrentados. Desafios ampliados após a vitória de Eduardo Cunha para a presidência da Câmara dos Deputados no Brasil, ao declarar que não coloca uma legislação deste tipo em votação. Na Argentina, a luta em prol da implementação da Lei dos Meios, depois de aprovada, durou cinco anos e ainda promete mais longe longe, sem falar no risco de voltar à estaca zero ou ser revogada caso seus adversários vençam as eleições de outubro próximo. Nenhum candidato de oposição defende abertamente a revogação desta lei, que tem forte apoio popular, mas muitos falam em necessidade de “liberdade de imprensa” com a mesma velha conotação de “liberdade de empresa” que vigora no Brasil. O PT e as esquerdas brasileiras não deram a devida importância à comunicação e estão pagando caro por isso. Não é válido o argumento que em momento de crise não se deve enfrentar a mídia por mais que ela tenha posicionamentos golpistas. Mais uma vez, a Argentina tem lições a dar ao Brasil. Se não fosse esse enfrentamento, o governo de

332

Cristina Kirchner não estaria completando seu segundo mandato e com chances efetivas de fazer seu sucessor.

333

Bagdá nas obras de Benjamin de Tudela e Ibn Jubayr Anna Carla Monteiro de Castro1

Resumo Neste artigo, pretende-se abordar como dois viajantes medievais de origens e culturas distintas representaram em seus relatos de viagem a cidade de Bagdá no século XII. Trabalharemos com o livro de Benjamin de Tudela, viajante judeu, e de Ibn Jubayr, muçulmano, secretário do governante de Granada. Este trabalho busca mostrar as formas como ambos os viajantes conceberam e representaram a capital do Califado Abássida e grande centro urbano e cultural da Idade Média. Palavras-chave: Livros de viagem; Idade Média; Bagdá Abstract In this article, we intend to address how two medieval travelers from different backgrounds and cultures represented in their travel accounts the city of Baghdad during the 12th century. We’ll use the travel narratives of Benjamin of Tudela, a Jewish traveler, and Ibn Jubayr, a Muslim secretary of Granada’s ruler. This work aims to show the ways which both travelers conceived and represented the capital of the Abbasid Caliphate and major urban and cultural center of the Middle Ages. Key Words: Travel books; Middle Ages; Baghdad Introdução Bagdá, cidade fundada para ser a sede do califado abássida no século VIII, foi um grandioso e importante centro cultural e urbano durante a Idade Média. Com proporções consideráveis, logo se tornou um centro de atração para intelectuais islâmicos e de outras religiões, bem como centro de poder, luxo e riqueza. Era a grande referência de unidade, da umma medieval. Sendo este importante centro político, intelectual, econômico e cultural sede de importante califado, atraía a vinda de pessoas de diversas partes do mundo, com objetivos diversos. No século X, no entanto, já vemos uma série de mudanças que teriam impacto na configuração das forças políticas do mundo islâmico. Em primeiro lugar, a unidade pretendida sob o Califado Abássida de Bagdá se esfacela diante da emergência de novos califados e potências: o Califado de Córdoba, de dinastia Omíada e o Califado Fatímida no Egito. Somese a isso ainda a perda de autonomia na condução da administração e da política do califado, a partir do domínio dos Buwayhids e dos turcos seldjúcidas, que tomam o poder em 1055. Estas forças e estes conflitos passam então a estar presentes no interior do Califado Abássida e nos

334

traz um cenário, no século XII, de uma Bagdá repleta de tensões e conflitos, mas ainda um importante centro.

Bagdá nos relatos de Benjamin de Tudela e Ibn Jubayr Ambos os viajantes partem da Península Ibérica, em períodos relativamente próximos, visitam locais muitas vezes coincidentes, mas o fato de terem características culturais (e mesmo motivações) distintas, legam-nos olhares próprios sobre a sede do Califado Abássida.2 Pretendemos, a seguir, demonstrar como ambos perceberam a cidade, que características julgaram relevantes destacar. Ao fazê-lo, nossa pretensão é ter em mente a representação que cada um faz dela, mais que uma reconstituição da mesma. Em ambos os relatos, percebemos nos viajantes uma preocupação em dimensionar a grandeza da capital Abássida para seus leitores. Os autores nos permitem perceber que não se trata de um lugar qualquer. Assim, por exemplo, Benjamin dos Tudela nos informa que “a cidade de Bagdá tem vinte milhas em comprimento, situando-se numa terra de palmeiras, jardins e plantações, do tipo que não se encontra em toda a terra de Shinar”. 3 Sobre o palácio do califa, informa-nos, ainda: “ele tem um palácio em Bagdá com extensão de três milhas, onde há um grande parque com toda sorte de árvores, frutíferas e de outros tipos, e toda sorte de animais. O conjunto é todo cercado por muralha e, no parque, há um lago alimentado pelas águas do rio Hiddekel”.4 Ibn Jubayr, por sua vez, também nos traz algumas informações importantes em termos dos aspectos físicos e arquitetônicos de Bagdá. Menciona sua divisão entre um lado oeste, de povoação mais antiga e que estaria em ruinas, e de uma parte leste, mais rica e onde se concentraria, quando de sua viagem, boa parte da população. Fala da importância do rio Tigre para a cidade, informa-nos sobre suas diversas regiões, seus portões, seus mercados, suas pontes, seus palácios, suas casas de banho, suas mesquitas, seus centros de estudo. No entanto, a visão do autor se mostra bastante pessimista com relação à cidade. Reconhece tratar-se de uma cidade grandiosa: “é mais grandiosa do que se pode descrever”; mas insiste que perdera grande parte do que havia sido no passado: “Bagdá é uma cidade antiga e embora nunca tenha deixado de ser a capital do Califado Abássida e pivô das reivindicações dos hachemitas coraixitas, a maior parte de seus traços se foi, deixando apenas um nome de fama”.5 Outro aspecto comum que chama a atenção de ambos os autores, que julgam importante mencionar em seu relato, é a presença dos hospitais. Ibn Jubayr nos informa, assim, que “toda segunda e quinta-feira os médicos visitam o hospital e examinam os doentes, prescrevendo o que eles possam precisar. Têm à sua disposição pessoas encarregadas de preparar comida e

335

remédio”.6 Trata-se, menciona, de uma estrutura grandiosa, digna de um palácio real. Benjamin menciona, por sua vez, tratar-se de um amplo complexo para receber os doentes pobres, que ali iriam se curar. Menciona haver no complexo “sessenta lojas de médicos, abastecidas de remédios e do que mais precisarem pela casa califal. Todo doente que dá entrada é mantido às custas do califa e tratado medicamente”.7 Benjamin destaca, entre as instalações, uma que chama sua atenção, que seria aquela onde manteriam pessoas que teriam enlouquecido, sobretudo devido ao forte calor da cidade, e que lá seriam mantidas presas em correntes até recuperarem a razão no inverno.8 Certamente uma estrutura deste porte não era algo ordinário e não surpreende que ambos os autores se mostrassem bastante impressionados a ponto de mencioná-la. Tratava-se de um dos principais, se não o principal, hospital e escola médica da época.9 Ressalte-se que ao decidirem o que merecia ser mencionado, operam uma seleção. Os critérios desta seleção passam por aquilo que, de alguma forma, pareça relevante de ser mencionado, seja por conseguirem estabelecer algum vínculo com o que era visto, seja por considerarem de interesse para seu leitor, seja por ser algo que de alguma maneira se destaque pelo contraste, pela grandeza, pelo estranhamento. Não é à toa que essa estrutura mereça ser documentada por ambos os viajantes. No entanto, nem tudo que julgam digno de nota coincide. Temos dois autores com visões de mundo, cultura e experiências distintas falando de uma mesma cidade, o que se reflete na maneira como relatam aquilo que vivenciam nela. Embora alguns elementos comuns apareçam no relato de ambos, como mencionamos acima, o que notamos é que, aquilo que chama a atenção do viajante judeu certamente difere do que chama a atenção do viajante muçulmano. Comecemos pelo relato de Benjamin de Tudela. Em primeiro lugar, o viajante tenta caracterizar não apenas os aspectos físicos e arquitetônicos de Bagdá, mas também o poder do califa. Para isso faz aproximações que possam, de alguma forma, fazer sentido para quem venha a lê-lo. Neste ponto, é importante insistir que seu público alvo é de judeus (embora a obra tenha tido repercussão posterior, com traduções para outros idiomas já na Idade Moderna). Assim, para situar diante de que contexto e que governo se encontra, o viajante logo faz questão de caracterizar que “ele [o califa] é o líder da religião muçulmana e todos os governantes do Islã o obedecem; ele ocupa uma posição similar à ocupada pelo papa com relação aos cristãos”. 10 Esta passagem nos traz alguns pontos importantes. Em primeiro lugar, uma certa miopia do viajante diante da realidade política do Califado Abássida, que certamente não representava mais uma grande autoridade central sob a qual todos os islâmicos se submetiam. Mais que isso, uma deformação ao fazer a aproximação, o que, no entanto, é algo que não devemos desprezar

336

ao ter seu relato em conta, porque o autor se vale de referências das quais dispõe para tentar tornar inteligível a seus leitores a realidade que verifica. Assim, para Benjamin de Tudela, parece óbvio fazer a comparação do califa com o papa. A este respeito, Adler, inclusive, chama a atenção para o fato de não ser uma comparação assim tão descabida, uma vez que Benjamin se refere ao papel de guia espiritual que o califa assumiria, para além de seu papel político e administrativo, o de “emir al-muminin”.11 As observações de Benjamin de Tudela, com relação ao califa, são bastante positivas, sobretudo porque, conforme o viajante descreve, a comunidade judaica seria bastante próspera e gozaria de bastante prestígio em Bagdá. É assim que o autor privilegia, em seu relato, uma série de aspectos que serão completamente ignorados por Ibn Jubayr no seu texto. Isto não faz um relato mais “verdadeiro” que o outro. Ambos os autores, ao escreverem, realizam seleções que são guiadas por seu lugar de fala, por sua cultura, pelos objetivos do texto etc. Assim, uma vez que uma das preocupações de Benjamin de Tudela é relatar a condição das comunidades judaicas pelas quais passa, o autor mostra-se bastante interessado pela de Bagdá e, consequentemente, favorável ao califa: “e ele é bom com Israel, e muitos do povo de Israel são seus funcionários; ele conhece todas as línguas, e é bem instruído nas leis de Israel. Ele lê e escreve na língua sagrada”.12 O autor então vai se ocupar de descrever a comunidade judaica, indicando suas principais lideranças intelectuais, a presença de dez academias, vinte e oito sinagogas. Comportaria quarenta mil judeus “vivendo em segurança, prosperidade e honra”. 13 Por fim, no que se refere à comunidade judaica, Benjamin dedica boa parte de seu relato a falar do exilarca de Bagdá, Daniel, filho de Hasdai. O autor destaca uma posição de grande proeminência gozada por esta figura, que contaria com bastante prestígio junto ao califa e ajudaria a garantir esta condição favorável aos judeus. No que se refere às atividades da cidade, Benjamin menciona o comércio que atrairia pessoas de todas as partes, mas, diferente do que faz em outras passagens de seu livro, não se dedica de maneira mais pormenorizada a falar sobre que comércio era esse, quais produtos etc. Menciona, ainda, no que se refere aos habitantes de Bagdá, que ali viveriam homens sábios, filósofos, conhecedores de magia. A Bagdá que Benjamin de Tudela nos mostra condiz com o objetivo de seu livro, que é trazer informações para outros judeus sobre comunidades judaicas no mundo, de maneira que poderiam conhecê-las e, caso resolvessem empreender viagens, seja por quais motivos fossem, tivessem conhecimento de onde poderiam encontrar laços de sociabilidade (e mesmo de

337

solidariedade). Traz ainda aspectos que considera importante mencionar, fazendo adaptações necessárias para tornar o texto acessível ao leitor. O relato de Ibn Jubayr, por sua vez, tem uma característica bastante distinta da de Benjamin de Tudela. Sua viagem é sobretudo uma peregrinação a Meca e uma expiação de pecados. Quando nos fala sobre Bagdá, o viajante já cumpriu sua hajj, mas ainda assim resolve dar continuidade ao périplo. Os aspectos que ressalta diferem bastante daqueles que Benjamin julga importantes mencionar. Sua narrativa parece trazer uma certa decepção por parte do autor. Antes de sua chegada, parece ter grandes expectativas. Ao chegar, no entanto, seu relato se torna mais duro com relação à cidade, mencionando a decadência da mesma e o quanto se distanciava daquilo que fora no auge do Califado Abássida: “em comparação com seu estado anterior, antes da desgraça cair sobre ela e os olhos da adversidade se voltarem em sua direção, ela é uma ruína apagada, um vestígio esmaecido, a estátua de um fantasma”.14 É igualmente negativa sua representação dos habitantes de Bagdá. O autor os acusa de vaidade e orgulho, de desprezo pelo estrangeiro e um desdém pelos inferiores. 15 Critica a maneira como os habitantes usam suas vestes, arrastando pelo chão, com vaidade, sem seguir esquecendo que tudo aquilo um dia viraria chamas. Note-se que, ao reprovar os habitantes da cidade, Ibn Jubayr não contempla pessoas humildes, que inexistem em seu relato. Aquilo que reprova é o luxo e só pode se referir, portanto, àqueles que tinham condições para tal. Novamente, para entender isso, é preciso compreender quem nos escreve, que círculo frequenta. Ibn Jubayr era um intelectual, um poeta, um homem pio. Durante sua passagem por Bagdá, é acompanhado por princesas, cada uma com seus séquitos de soldados para protegêlas das tribos beduínas.16 O autor menciona que o califa chega a designar um exército para acompanhá-los. Os contatos que trava provavelmente passam por pessoas de posição elevada e seu silêncio sobre os demais demonstra desinteresse em retratar: não havia por que retratar, para seu público. Não era este seu objetivo. Ibn Jubayr não parece gostar do que vê em Bagdá. Sabemos que tinha uma preocupação em seguir de maneira rigorosa os preceitos do Islã, e o que encontra ali é uma população que estaria afundada em pecados como vaidade, orgulho. Tendo sua viagem este objetivo mais espiritual, de expiação de pecados e de peregrinação, não é à toa que isto choque o autor. Da mesma forma que chama sua atenção a ruína da cidade, estes aspectos igualmente chamam sua atenção. É importante mencionar, ainda, que, diferentemente de Benjamin de Tudela, que não presta maior atenção à população islâmica local, é a ela que Ibn Jubayr dedica boa parte de seu relato (ignorando, por sua vez, a presença judaica).

338

Diferentemente do povo, não critica o califa, que aparece como um homem mais contido, que busca disfarçar sua condição quando sai a público para caçar ou nas raras aparições que faz. Não que o faça sem luxo, pois suas vestes têm ouro e sobre a cabeça traz pele de alto custo e que seria apenas usada por reis, mas busca a discrição de sua condição, o que faria em vão: “o sol não pode ser escondido com um véu”.17 Seu relato não traz reprovação no uso deste ouro e dessas peles, portanto. Além disso, se em certo momento é mencionada esta maneira de vestir, em outro o viajante alude ao fato de que o califa buscava sempre sair de maneira modesta, novamente na tentativa de esconder sua condição. Insiste ainda que em seu tempo o povo teria encontrado tranquilidade, justiça e bem-estar.18 Sendo um homem pio, um intelectual e um poeta, outro aspecto que encontra e será alvo de sua observação e registro são as preces, sobretudo de sexta-feira, às quais assiste durante seu período na cidade. O viajante mostra grande reverência pelos faqihs e pelos pregadores, que com suas pregações e admoestações estariam “em uma posição na qual poderiam pedir a compaixão divina que poderia livrar esse povo de muitos pecados”.19 O autor descreve então diversas pregações das quais participa e exalta a qualidade das mesmas: “nos maravilhamos com a excelência deles em comparação com os pregadores que conhecemos no oeste”.20 Enquanto Benjamin de Tudela nos traz informações preciosas sobre a comunidade judaica, Ibn Jubayr nos traz sobre os muçulmanos. Menciona, assim, a presença de três grandes mesquitas, para além de outras menores que seriam incontáveis, de tão numerosas. Uma série de casas de banho e fontes nestas mesquitas, o que é fundamental numa sociedade onde as abluções rituais são parte fundamental da religião. Descreve templos, lugares de sepultamento, mercados, os palácios califais e centros de estudo.

Conclusão No momento dos relatos de viagem que selecionamos, Bagdá já não era o poderoso centro que dava unidade ao Islã, tampouco o seu califa era uma grande figura central da vida política. Muita mudança ocorrera desde então. Viu a emergência (e depois a derrocada) de califados novos, viu a emergências dos sultanatos que em grande medida usurparam seu poder. Seria errado, no entanto, pensar que este processo de decadência do poderio do Califado Abássida é um processo linear e progressivo: houve momentos de recuperação do poderio destes califas, como seria o caso com al-Nasir, no poder quando da passagem de Ibn Jubayr, embora naquele momento ainda fosse um jovem califa e longe de realizar suas pretensões. Nunca deixou, no entanto, de ser um centro de atração de viajantes, intelectuais, homens de negócios, filósofos, poetas. Não perdeu seu caráter atrativo e, mesmo que Ibn Jubayr se

339

mostre decepcionado, certamente não perdeu todo o seu esplendor e todo o seu caráter cosmopolita. Após um breve esforço de recuperação de poder, o califado finalmente ruiria em 1258 com a invasão mongol. Era o fim de séculos de poder daquela dinastia. Nossa intenção é compreender, neste cenário do Califado Abássida no século XII, como dois viajantes de origens distintas perceberam e representaram Bagdá: Benjamin de Tudela, viajante judeu que deixa a Península Ibérica para percorrer uma série de lugares e registrar suas impressões sobre povos, cidades, governantes cristãos e muçulmanos e a situação das comunidades judaicas; e Ibn Jubayr, secretário do governante de Granada, que se lança numa hajj, isto é, uma viagem de peregrinação a Meca, buscando não apenas cumprir com seu dever como muçulmanos mas também expiar seus pecados.21 Ambos os viajantes que selecionamos, partindo de visões de mundo, legaram olhares específicos sobre a sede do Califado Abássida. Estudar o que eles relatam sobre estes lugares nos permite perceber menos como aquele lugar era e mais sobre o que foi possível para eles verem. Seus relatos se inserem neste contexto do século XII, marcado por disputas, tensões, desastres naturais e guerras que deixaram suas marcas na paisagem e na maneira como os homens daquele tempo viram e vivenciaram a cidade, mas sobretudo nos informam de seus universos de origem, suas visões de mundo. A este respeito, achamos fundamental remeter às considerações de Susani Silveira Lemos França a respeito de como os viajantes que analisa, homens cristãos do século XIII ao XV, ao falarem das mulheres das terras distantes, permitem ao historiador apreender menos sobre estas mulheres e muito mais sobre os referenciais que conduziam o olhar destes viajantes. Da mesma forma, é preciso termos sempre em consideração, ao lidar com narrativas de viagens, que estes estão completamente informados pelas visões de mundo daqueles viajantes, seu lugar de fala, seu universo cultural etc. Ao lidarmos com os relatos de Benjamin de Tudela e de Ibn Jubayr sobre Bagdá ou sobre qualquer outro lugar, é preciso termos em conta como seus referenciais permitem ver esta cidade e seus aspectos de determinada maneira, revelando muito mais sobre estes viajantes e seus universos culturais que sobre o lugar em si.22 É preciso levar isto em consideração para compreendermos como dois viajantes, que visitaram Bagdá com uma distância temporal que não ultrapassa duas décadas, puderam perceber uma cidade tão diferente. Benjamin de Tudela nos traz uma Bagdá próspera, com uma comunidade judaica grande e ativa, contribuindo nesta prosperidade, gozando de prestígio e segurança, com um califa justo e benevolente, com riquezas suntuosas e um grande complexo de palácios. Sua Bagdá é a da riqueza, das academias judaicas, sinagogas. A Bagdá de Ibn Jubayr, por sua vez, é uma cidade em ruínas, uma sombra do que fora no passado, com um povo

340

imerso em pecado como vaidade, orgulho. Somente faqihs, imames, bem como o próprio califa, parecem portadores de características positivas; capazes de trazer alguma paz, justiça e tranquilidade (no caso dos califas), ou mesmo de estender as benesses divinas sobre os demais, conseguindo sua salvação. Não foi nossa pretensão esgotar os relatos, nem buscar uma reconstituição da capital do Califado Abássida. Buscamos, sim, demonstrar como ambos a perceberam, que características julgaram relevantes destacar. Como atuam como intermediários entre aquilo que vivenciam ou ouvem e seu público, e as operações diversas operadas para tornar inteligível a este público tais experiências. Mais que um retrato fiel desta cidade, o que temos é uma representação da mesma a partir de seus filtros culturais específicos.

Notas 1

Doutoranda em História Social no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (PPGH/UFF). Orientadora: Vânia Leite Fróes. E-mail: [email protected]. 2 Deve-se ter em conta, ainda, que, embora as viagens tenham ocorrido num espaço temporal próximo, há diferenças entre ambas. Assim, se a viagem de Benjamin de Tudela teria se dado entre 1165-1171, de acordo com a maior parte dos especialistas, a de Ibn Jubayr ocorre entre 1183-1185. Não há grande mudança no contexto geral, mas as figuras envolvidas variam e é importante considerar o impacto que as pessoas da cidade teriam sobre a forma como os viajantes a perceberam. 3 ADLER, Marcus Nathan. The Itinerary of Benjamin of Tudela. Londres: Oxford University Press, 1907. p. 42. 4 Ibid. p. 35. 5 BROADHURST, Ronald. Travels of Ibn Jubayr. Nova Déli: Goodword Books, 2004. p. 226. 6 Ibid. pp. 234-235. 7 ADLER, Marcus Nathan. op. cit. p. 38. 8 Ibid. p. 38 9 Cf. MAROZZI, Justin. Baghdad: City of Peace, City of Blood. Boston: Da Capo Press, 2014. 10 ADLER, Marcus Nathan. op. cit. p. 25. 11 Não pretendemos discutir de forma aprofundada, neste breve relato, toda a complexidade da questão do califado durante o final do Império Abássida. No entanto, cremos ser pertinente apontar que o papel do califa ia muito além de sua atuação política e administrativa, que de fato acaba se concentrando nas mãos de sultões turcos nesta última fase. O califa reunia também funções outras e não será apenas uma marionete controlada por estes sultões. Tinham papel como legitimadores do poder, mas também estão envolvidos em disputas pelo controle militar e para recuperar o poder. Como nos informa, mais que a função de liderança política e militar, o califa era investido também de papel espiritual, ao qual Benjamin remete e parece ser o que possibilita que faça a ponte com o papa dos cristãos. Cf. HANNE, Eric J. Putting the Caliph in His Place: Power, Authority and the Late Abassid Caliphate. Teaneck: Fairleigh Dickinson University Press, 2007. pp. 21-22. 12 ADLER, Marcus Nathan. op. cit. p. 35. 13 Ibid. p. 39. 341

14

BROADHURST, Ronald. op. cit. p. 226 Ibid. p. 227. 16 A filha de Mas’ud e a mãe de Mu’izz al-Din, senhor de Mosul. 17 Ibid. p. 237. 18 Durante a viagem de Ibn Jubayr, o califa que se encontrava no poder, al-Nasir, assumira há poucos anos, em 1180. Era um jovem de 25 anos e no relato de Ibn Jubayr aparece como esta figura que busca caçar, que gosta de barcos e caçar no deserto. Seria um califa que estaria sempre tentando disfarçar sua condição, saindo de maneira modesta muitas vezes, mas que demonstraria grande afeição por seu povo. Este califa, que teria um longo governo, posteriormente tentaria reivindicar de volta o poder de fato para os abássidas e mesmo expandilo, entrando em enfrentamentos com o sultão turco da Pérsia. Estamos, no entanto, ainda longe disso e o relato de Ibn Jubayr nos mostra um califa bem pouco envolvido em questões deste tipo. 19 BROADHURST, Ronald. op. cit. p. 228. 20 Ibid. p. 233. 21 O prólogo de seu relato nos apresenta, assim, que a grande motivação de sua viagem se dá com objetivo de se livrar do pecado, ao consumir, forçado pelo governante de Granada, sete taças de vinho, o que é interditado pelo Islã como haran. 22 FRANÇA, Susani Silveira Lemos França. Mulheres dos outros: os viajantes cristãos nas terras a Oriente. São Paulo: Unesp, 2015. 15

342

Poder das elites locais na capitania do Espírito Santo no período da Monarquia Espanhola (1580-1640). Anna Karoline da Silva Fernandes1 Resumo: Neste trabalho, se estabelece um diálogo com os novos caminhos do poder, em curso a partir do surgimento da “Nova” História Política, na década de 1980, fundamental na introdução de novas abordagens historiográficas no campo político, contrastando da História Política Tradicional. As novas perspectivas teóricas compreendem o poder de forma plural, diferentemente da análise em torno do poder numa visão centralizada e institucionalizada, perspectiva predominante na História Política Tradicional. Assim, propomos compreender o poder das elites locais na capitania do Espírito Santo no período Colonial como contraponto ao poder central do monarca e da Metrópole. Palavras-chave: Espírito Santo: capitania, fiscalidade, redes de aliança, poderes locais. Introdução O presente trabalho buscará estabelecer um diálogo entre o projeto de pesquisa “A administração espanhola no Brasil durante a monarquia dual (1580-1640): o caso do Espírito Santo” e a bibliografia brasileira dedicada ao estudo do político. Para tal selecionamos autores relevantes na discussão da constituição da “Nova História Política”, são eles, FALCON (1995), FERREIRA (1992) e CARDOSO (2012). Estes teóricos são importantes para a compreensão dos rumos tomados pela história política nas últimas décadas, visto que abordam toda a sua trajetória, desde a sua ascensão, apogeu, crise e o surgimento de uma nova história política. O diálogo se tornou possível na medida em que o projeto de pesquisa supracitado aborda novos objetos, problemas e abordagens que entraram em cena com a renovação do estatuto do Político, diante da crise da História Política Tradicional (CARDOSO, 1997). A nova proposta ampliou o que se pode entender por ação política, negou a concentração do poder no Estado, percebeu outros poderes, introduziu novos atores políticos e alterou

Mestranda do curso de História da Universidade Federal do Espírito Santo; com o projeto “A administração espanhola no Brasil durante a monarquia dual (1580-1640): o caso do Espírito Santo” . Contatos: [email protected] 1

343

o modo de pensar das relações de dominação entre Metrópole/Colônia, introduzindo novas abordagens no campo da história política e do poder (GOUVÊA, 2005). Apresentação e discussão do problema O projeto de pesquisa “A administração espanhola no Brasil durante a monarquia dual (1580-1640): o caso do Espírito Santo” busca ampliar os olhares do contexto social, político e econômico da capitania do Espírito Santo em um momento importante da história do Brasil, período da União das Coroas Ibéricas (1580-1640), quando os reis Habsburgo da Espanha sucederam o rei dom Sebastião em 1578 e governaram Portugal, depois da crise de sucessão do trono português2. A partir deste momento o rei espanhol Felipe II tornou-se Felipe I de Portugal. Seu reinado permaneceu até o ano de 1598, momento da sua morte. O patrimônio dos Habsburgo passou para as mãos de seu filho, Felipe III da Espanha (Felipe II de Portugal), que governou de 1598-1621 (SCHWARTZ, 1979). Assim, daremos evidência ao governo de Felipe II de Portugal, momento em que o Brasil se integrou inteiramente ao Império, suscitando interesse maior por parte da Coroa (MARQUES, 2002). Historiadores dedicados ao período dos Habsburgos argumentam que a análise dos reinados espanhóis é importante para aprofundar o entendimento da história de Portugal e do Brasil, pois tratou-se de um período de realização de várias reformas em Portugal e também nos seus espaços coloniais (MARQUES, 2002), que introduziram transformações no âmbito da administração e da justiça. Sobre esse assunto SCHWARTZ (1979) argumentou: O período entre 1581 e 1590 foi de intensa atividade na reforma das estruturas judicial e administrativa portuguesas. Estas reformas teriam importante efeito não só em Portugal como também em suas colônias (SCHWARTZ, 1979:41). Em diálogo com estes historiadores propomos neste projeto de pesquisa que as reformas espanholas, que afetaram o Brasil, também alcançaram a capitania do Espírito Santo. Tal construção é possível na medida em que a fonte primária3 utilizada neste projeto: uma

2

A Coroa de Portugal e, com ela, as colônias portuguesas espalhadas pelo mundo, tornaram-se possessão dos Habsburgo depois de dois curiosos e turbulentos anos (SCHWARTZ, 1979). 3 As 42 fontes manuscritas inéditas dentre as demais existentes no Arquivo Histórico Ultramarino (Lisboa) que foram disponibilizadas pelo Projeto Resgate foram transcritas através do projeto Estado, comércio e navegação: um estudo da capitania do Espírito Santo, coordenada pelo prof. Dr. Luiz Cláudio M. Ribeiro entre 2008-2010, com o apoio da Fund. Amparo à Pesquisa do E. Santo (Fapes)-PIBIC/UFES.

344

carta do rei Felipe II ao capitão-mor da capitania do Espírito Santo, Gaspar Alves de Siqueira, de 13 de agosto de 1617, ordenou um processo investigativo para apurar possíveis fraudes e que ao final da investigação enviasse o processo ao Tribunal da Relação do Brasil4 para que este procedesse contra os culpados como fosse justo, cobrando deles tudo que descaminhavam da capitania, de modo que sua atividade colaborasse com a aplicação da justiça, como se verifica no excerto da carta: [...] vos mando que logo com diligencia tireis devasa de cada hu dos particulares referidos e depois de fexada a emviareis a relação desse estado emtregar ao Chanceler della ao gual mando a faça logo pernunciar e avendo culpados proceda contra elles como for justa [...]5

O acesso a este documento ocorreu por meio do Projeto Resgate da Biblioteca Nacional e Arquivo Histórico Ultramarino de Portugal. Este projeto foi criado institucionalmente em 1995 com o objetivo de resgatar toda a documentação relativa ao Brasil existente em arquivos de outros países, sobretudo no Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa (AHU) - o maior acervo de documentação colonial brasileira no exterior. Depois de reunida a documentação, os arquivos estaduais receberam cópia microfilmada das fontes pertinentes ao passado colonial de seus respectivos territórios. A análise desta documentação revelou a existência de descaminhos 6 praticados pelos oficiais7 da Coroa envolvidos com a administração da capitania do Espírito Santo, acusados de desviarem mais de 20 mil cruzados por ano num período de cerca de 10 anos. Estas e outras acusações ficaram evidentes nos testemunhos de várias pessoas que moravam na capitania do Espírito Santo, todos eles homens com idade variável entre 30 e 70 anos, sendo que alguns ocupavam cargos de nomeação régia8, inqueridas a prestar

4

O Tribunal da Relação da Bahia foi criado em 1588 no reinado de Felipe I (1581-1598), mas só começou a funcionar em 1609 durante a administração de Felipe II (1598-1621)4. Depois de 1609, a presença de dez desembargadores no Brasil não só aumentou a probabilidade de um desempenho judicial melhor como também multiplicou as oportunidades de contatos sociais. (Schwartz, Stuart, 1979). 5 CTA:AHU- ESPÍRITO SANTO, cx. O1, doc. 04. 6 O descaminho é uma forma de burlar o recolhimento de imposto de importação ou exportação dentro do sistema fiscal de um país. No caso que analisamos, burlava a Fazenda Real portuguesa. Portanto, descaminhar era desviar parte do que cabia ao erário régio permitindo que interesses particulares se sobrepusessem aos do rei (CAVALCANTE, 2006). 7 Marcos de Azeredo e Jorge Pinto, oficiais ligados à provedoria e ao almoxarifado da capitania, como os principais responsáveis pelas fraudes e corrupções apuradas na investigação. 8

André Gomes, 52, meirinho da Ouvidoria; Bernaldo da Fonseca, 45, provedor de defuntos e ausentes; Estevão Machado, 34, meirinho da Alfândega; Gaspar Carneiro Rangel, 48, escrivão da Alfândega.

345

depoimento para apurar as possíveis ilegalidades praticadas pelos oficiais da Coroa. Além dos descaminhos, os testemunhados relataram ter conhecimento de outras práticas ilícitas, tais como, a despesa que a Coroa tinha com a manutenção predial da Alfândega sem que ela existisse; não cobrança de impostos das fazendas que chegavam à capitania, o repasse dos dízimos do açúcar à Coroa em valores inferiores àqueles recolhidos pelo almoxarifado da capitania. Todas essas práticas envolviam primeiramente os funcionários dos cargos de almoxarife e provedor; pois estavam diretamente ligados e se relacionavam com a arrecadação e fiscalização das rendas régias. No entanto, foram os ocupantes desses mesmos cargos os acusados pelas ilegalidades nos recebimentos e pagamentos de impostos. Isso pode ser verificado no excerto da carta: Eu eu Rey faço saber a vos Gaspar Alves de Siqueira capitão mor na capitania do spirito santo das parttes do Brasil que eu sou confirmado que na ditta capitania de muitos annos a esta parte se tem desemcaminhado muita a minha fazenda causado pellos oficiaes a cujo cargo estava a administração e recebimento della [...]9.

A partir da análise desta fonte buscamos associar a devassa ordenada no Espírito Santo com as reformas espanholas nos domínios portugueses durante a União Ibérica (15811640), pois elas traduziram-se em ações para fiscalização dos bens da Coroa (criação de novos órgãos de modo a fiscalizar e controlar a circulação de riquezas e melhor atuação da justiça, inaugurando um novo modelo administrativo durante a monarquia dual (MARQUES, 2002). Na medida que este modelo expresso nas reformas administrativas e judiciais em Portugal e seus domínios, buscava controlar a fazenda portuguesa, por meio de maior domínio administrativo e imposição da justiça, teve um forte impacto na administração fiscal porque com os novos mecanismos de controle fiscal10, criados no período Filipino, a Fazenda recebeu especial atenção da Coroa, que a qualificou para inspecionar as contas dos oficiais das finanças e apurar as ilicitudes cometidas na cobrança dos direitos sobre o

9

CTA:AHU- ESPÍRITO SANTO, cx. O1, doc. 04. Durante os dois primeiros reinados da União Ibérica foram criados vários órgãos institucionais, que ampliaram o aparelho político-administrativo, entre eles, o Conselho da Fazenda (1591), o Conselho da Índia (1604), o Conselho de Portugal (1582), a Relação do Brasil (1609) e as Juntas da Fazenda, constituindo um aparelho de Estado mais moderno e eficaz. 10

346

açúcar buscando melhorar a arrecadação e aumentar os rendimentos régios (MARQUES, 2002). Logo, aumentou a possibilidade de investigações, entre elas, argumentamos a devassa ordenada no Espírito Santo, inserida no contexto da excessiva preocupação de Castela com a arrecadação do Reino, traduzindo-se no esforço de expandir os mecanismos de controle contábil do aparato institucional11, fiscalização do contrabando, fraudes e sonegação fiscal, buscando acompanhar o recolhimento de impostos e dízimos, fiscalizando diretamente os almoxarifes e tesoureiros nas capitanias (SCHWARTZ, 1979). Sabe-se que os espaços coloniais geravam receitas que contribuíam para o orçamento do Reino com quantitativos notáveis (MATOS, 1995), motivo que justifica o controle da arrecadação por parte da Metrópole, mas buscamos justificar o controle fiscal com a existência de uma política administrativa específica dos Habsburgo que levou a realização de várias reformas nos domínios portugueses durante a União Ibérica (1581-1640) e principalmente a determinação da devassa no Espírito Santo. A “nova” História Política na historiografia colonial capixaba Aliaremos-nos a “Nova” História Política, de modo que o centro de nossa análise não será o Império Espanhol ou Português, nem a Monarquia, muito menos o Estado, mas a Cultura Política da época moderna, o clientelismo, as biografias coletivas (grupos sociais), agentes políticos, ou seja, novos temas, perspectivas teóricas e abordagens oferecidos aos historiadores a partir do retorno do político diante da contestação da História Política Tradicional no início do século XX (FALCON, 1995). As mudanças historiográficas surgiram nas décadas de 1970 e 1980, no cenário internacional introduzindo novas abordagens no campo da história política e do poder.

11

A Junta da Fazenda e as estruturas comissariais: ambos foram criados para operar na comunicação administrativa e fiscal entre a Coroa e as atividades produtivas locais. A Junta da Fazenda, criada em 1612, era uma instituição diretamente relacionada com a fiscalização do contrabando, fraudes e sonegação fiscal, também atuava produzindo relatórios sobre as fontes de receitas, como cobrança dos dízimos sobre a produção agrícola, direitos de entrada e saída de mercadorias pagos nas Alfândegas e buscava acompanhar o recolhimento de tais impostos e dízimos, fiscalizando diretamente os almoxarifes e tesoureiros nas capitanias (SCHWARTZ, 1979). Já as estruturas comissariais, criadas em 1605, representavam o envio de um magistrado português com a missão de averiguar fraudes e verificar o cumprimento do regulamento do pau-brasil.

347

Durante muito tempo a análise em torno do poder concentrou-se numa visão centralizada e institucionalizada, perspectiva predominante na História Política Tradicional. Quando esta perspectiva teórica entrou em crise e surgiu a “Nova” História Política, surgiram também novos caminhos para o poder, caracterizando-se por poderes plurais. O período em que a História Política Tradicional assumiu uma posição hegemônica no campo historiográfico (1870-1930), as monarquias nacionais do Estados Absolutistas constituíram temas centrais tanto da investigação quanto da narrativa histórica. Desse modo, o Estado era por excelência o principal objeto da produção historiográfica, no qual, poder era poder do Estado (FALCON, 1995). Diversas correntes interpretativas, tais como o marxismo, a sociologia durkheimiana, a geografia humana, a psicologia social, estruturalismo, quantitativismo, questionaram a predominância do político nas narrativas históricas. No entanto, as críticas lançadas por estes pressupostos teóricos não foram suficientes para desestabilizar a posição central ocupada pela história política, somente na década de 1929/1930, críticas mais fortes e mais consistentes empreendidas pelos Annales12 afetaram a supremacia do político nas narrativas históricas e abriram novas perspectivas ao estudo histórico da política e do poder (FALCON, 1995). A historiografia dos Annales transferiu uma série de críticas à História Política, caracterizando-a como factual, de curta duração, psicologizante, elitista, particular (ignora as massas), narrativa, linear e idealista. Ao contrário, os Annales propunham o foco dos historiadores nas conjunturas de longa duração, privilegiando as abordagens estruturais e os comportamentos coletivos (FERREIRA, 1992). As críticas dos Annales foram necessárias para introduzir transformações no conhecimento histórico à medida que os historiadores do político buscaram rebater as acusações. Nesse sentido, novos temas e abordagens foram propostos, promovendo uma renovação epistemológica do campo. Tal renovação esteve vinculada à reflexões críticas13, que 12

Escola dos Annales é um movimento historiográfico, também conhecido como Nova História. E que segundo José Carlos Reis (2000, p.58) divide-se, geralmente em três fases: de 1929 a 1946, onde caracteriza-se, essencialmente, pela abordagem estrutural qualitativa da história. Os homens no tempo são o objeto principal do historiador; A segunda fase vai de 1946 a 1968, caracterizada pela história das mentalidades coletivas, a revista (dos Annales) privilegiará os aspectos econômico e demográfico; A terceira fase, de 1968 em diante, reduz-se a importância do econômico. Sensível às interrogações do presente, a História se aliou à antropologia e se interessou pelos aspectos simbólicos e culturais da sociedade. 13 Rémond, na verdade, aponta que a renovação da história política é uma prática constante desde o início do século XX, encontrava-se em seu próprio passado alguns exemplos daquilo que deveria se tornar. A

348

promoveram há algum tempo a rediscussão dos conceitos clássicos e das práticas tradicionais de pesquisa e à relação interdisciplinar com as Ciências Sociais, as Ciências Políticas e disciplinas como sociologia, direito público, psicologia social, matemática, lingüística, psicanálise, que ofereceram suporte aos historiadores do poder e da política na construção de novas técnicas de pesquisa, conceitos, vocabulário e problemáticas. A partir da interdisciplinaridade, a História Política hoje supera todos os ataques que recebeu ao longo do século XX, e se renova (RÉMOND, 1996). Os anos 1970 e 1980 foram marcados pela discussão acerca das possibilidades, natureza e perspectivas dessa “Nova” História Política. Assim buscou-se formular os pressupostos teórico-metodológicos, os conceitos, propor abordagens e métodos no campo da história política e do poder. Aqui interessa-nos o alcance destas mudanças na linha de pesquisa dedicada à Monarquia Hispânica14, importante para o conhecimento da América do Sul sob os Habsburgo (CARDIM, 2004) e o impacto das novas tendências renovadoras na historiografia do Brasil. O campo de estudos dedicado à historiografia colonial do Brasil tem se desenvolvido muito nos últimos anos, hoje dispomos de uma imagem verdadeiramente renovada do período compreendido entre o século XVI e XVII. Assim buscamos dialogar com autores que propõem um novo paradigma interpretativo do período colonial brasileiro15 de acordo com as revisões em curso nos modos de pensar e compreender a História empreendidas a partir da renovação do estudo do político diante da crise da História Tradicional. A partir destas perspectivas inovadoras a análise das relações de poder comtemplam sobretudo a capacidade de articulação e negociação da periferia, portanto, se afasta do viés interpretativo baseado na dependência e submissão desta em relação ao centro, no qual o olhar em torno do poder absoluto, central e hegemônico da metrópole se desloca em direção a periferia, permitindo perceber a complexidade das relações e interesses das elites locais, em contraponto ao poder central do monarca. Desse modo, buscou-se relativizar a influência, até então determinante e exclusiva do papel político e econômico

contribuição de intelectuais como Charles Seignobos, André Silgfried, George Weill, Marcel Prelot, Jean Jacques Chevalier, redescobriu a história política, mas nem sempre os contemporâneos perceberam que esses pioneiros abriram caminho para o futuro. Para o autor, os nomes citados foram decisivos para a renovação da História Política, devido a pluridisciplinaridade, que aparece como elemento fundamental de sua renovação. Suas obras contribuíram para o renascimento da história política. 14 O maior expoente dessa linha de pesquisa é o historiador Antônio Manoel Hespanha. 15 João Fragoso, (2010); Maria F. Bicalho (2005); Maria de Fátima Gouvêa (2005); Ângela Maria de Castro Gomes (2005); Vera Lúcia Amaral Ferlini (2005).

349

desempenhado pela Metrópole, na perspectiva de que não havia uma concepção absolutista de poder (RIBEIRO, 2013). Logo, questionou-se o clássico esquema bipolar de um relacionamento entre Metrópole/Colônia centrado na oposição, para dar espaço à multiplicidade de interesses regionais coexistentes, que negociavam com o rei, materializando-se em pactos políticos. Por este caminho propomos um outro viés para análise da história política colonial do Espírito Santo, reconhecendo a pluralidade e a flexibilidade dos poderes e das redes de relações políticas situados no interior da sociedade colonial da capitania. A construção deste modelo interpretativo se tornou possível na medida que se percebeu a incapacidade da Coroa Portuguesa de exercer a sua soberania em territórios tão distantes, colocando em xeque a imagem centralizada do Império. Esta interpretação possibilitou pensar que os representantes da Coroa gozavam de uma significativa parcela de autonomia no que diz respeito aos assuntos administrativos e constituíam poderes locais com formas singulares de exercício da soberania nas Américas (CARDIM, 2004). Logo, o poder não é um monopólio do dominante, existindo também no espaço dos dominados, mas não diminui as desigualdades entre eles (GOUVÊA, 2005). A autonomia que gozavam as autoridades locais muitas vezes afetava os interesses da Coroa, pois representavam grupos políticos com interesses próprios, que conflitavam com os interesses reais (CARDIM, 2004). Assim, as autoridades locais, sejam elas, funcionários régios, senhores de engenhos, homens de negócios, representavam um pólo de poder considerável no período colonial. De modo que suas articulações levaram os historiadores da renovação historiográfica das Américas a repensarem o modo dual da relação metrópole/Colônia. De acordo com esses historiadores, a relação entre a Coroa e os reinos sul-americanos era muito

mais

complexa,

pois

na

prática

a

realidade

não

correspondia

à

dominação/submissão, mas que a parte sul-americana, ao contrário de ser um agente passivo e obediente, respondia ativamente a imposição de modelos europeus. Tal posição contestadora dava-se de diversas maneiras, entre elas, fraudes fiscais, contrabando de mercadorias, revoltas e outras formas de se beneficiar dos recursos disponibilizados pela Coroa, conforme evidenciamos na carta que ordenou a devassa sobre a provedoria e o almoxarifado da capitania no curso do governo do donatário Francisco de Aguiar Coutinho (1609-1627).

350

Esta investigação tinha a intenção de apurar os descaminhos, cujos suspeitos de praticálos eram os funcionários reais, Marcos de Azeredo e Jorge Pinto, responsáveis pela fiscalização dos bens da Coroa e principais acusados pelas fraudes e corrupções apuradas na devassa: “[...] eu sou confirmado que na ditta capitania de muitos annos a esta parte se tem desemcaminhado muita a minha fazenda [...]”16.Nesse sentido, nem todas as ordens emanadas do Reino eram cumpridas, resultado da rejeição ao que era imposto. Ambos os oficiais se relacionavam com os assuntos das finanças da administração local, compunham o quadro político-administrativo que assegurava a gestão da capitania, portanto, servidores do rei que se ligavam a ele por meio do sistema de mercês. As mercês eram formas de remuneração de serviços na forma de cargos públicos, terras, títulos honoríficos e privilégios oferecidos pelo monarca como recompensa de serviços prestados à Coroa ou reconhecimento de suas posições sociais ou relações de parentela com as quais o monarca mantinha interesse político ou comercial (FRAGOSO, 2010). Para compreender o Sistema de Mercês, torna-se necessário atentar para conceito de Cultura Política, fundamental para entender o processo de organização social no mundo Ibérico (GOUVÊA, 2005). Diante da Cultura Política do Antigo Regime, a prestação de serviços ao rei era acompanhada da expectativa de benefícios que deveriam ser retribuídos de forma considerada justa, pois o rei tinha a obrigação moral de remunerar os préstimos de seus vassalos. Uma vez recompensados os funcionários régios tinham a obrigação de servirem ao rei cada vez mais e melhor, pois ao retribuir os feitos dos seus vassalos17, a Coroa reafirmava o pacto político que unia os súditos a si própria (BICALHO, 2005). O ato de dar, virtude própria dos reis, criava uma cadeia de obrigações recíprocas: dar, receber e retribuir. Assim, a concessão de mercês contribuiu para o reforço dos laços de submissão, lealdade e vassalagem (BICALHO, 2005). No entanto, os acusados pelas ilicitudes reais, Marcos de Azeredo e Jorge Pinto, ocupantes de cargos na administração régia, provavelmente privilégios conquistados pela prestação de serviços à Coroa, foram acusados de serem delinquentes no cumprimento de suas funções públicas e consequentemente descumpriram o compromisso de lealdade e vassalagem.

16

CTA:AHU- ESPÍRITO SANTO, cx. O1, doc. 04. No século XVII a condição de vassalo significava uma declaração política na qual todo indivíduo era sujeito a um senhor natural em virtude da origem ou da residência (MARANHO, 2009). 17

351

Diante de tais acusações, ficou evidente que os interesses dos servidores reais sobressaiam aos do rei, e apesar de se vincularem ao monarca por meio das mercês, formavam uma elite local com interesses próprios e contestavam a sujeição a qual eram submetidos (FRAGOSO, 2010). Isso implicou a existência de interesses regionais aproveitando-se de uma significativa parcela de autogoverno na administração colonial. Desse modo, buscaremos compreender a formação da elite colonial da capitania do Espírito Santo a partir do Sistema de Mercês e da apropriação das rendas do Estado, mesmo inseridos na lógica da mercê remuneratória18, que implicava uma retribuição por parte do beneficiado que recebia as benesses reais. As noções de trocas, retribuição dos feitos dos vassalos, eram valores, noções e práticas típicas da Cultura Política do Antigo Regime, presente no imaginário político, fundamentado na concepção contratual ou pactícia (BICALHO, 2005) que cimentava não só as relações políticas, mas as sociais. Dessa maneira, buscaremos analisar tais relações a luz de práticas e representações da Cultura Política da Época Moderna, de modo que explicaremos a existência de redes de alianças econômicas, políticas e clientelísticas na capitania do Espírito Santo, formada por homens pertencentes da elite colonial para assegurar cargos políticos, privilégios econômicos e ascensão social. Neste estudo de caso sobre a capitania do Espírito Santo, destacaremos as redes de alianças como exemplo de práticas presentes no Reino e nos territórios ultramarinos. As alianças se constituíam por meios de casamentos, amizades e apadrinhamentos, fundamentadas na lógica clientelar, ou seja, pressupunham um conjunto de obrigações morais recíprocas entre os homens da elite local como meio de obtenção de informações diferenciadas, oportunidades materiais e sociais, compondo um sistema de redistribuição de tais recursos, intentando interesses econômicos e políticos, sejam eles, individuais ou comuns (RIBEIRO, 2013). A partir dessas alianças configuravam-se redes de poder, o mesmo que, união de um grupo de indivíduos ligados por relações clientelares, para obtenção de alguma benesse19. Logo, torna-se necessário uma análise dos grupos sociais inseridos na sociedade colonial, tais como, mercadores, homens de negócios, funcionários régios, senhores de engenho, a fim de identificar os atores sociais pertencentes da elite política e econômica local,

18

O ato de dar integrava uma tríade de obrigações: dar, receber e retribuir (BICALHO, 20005). A formação de redes tinha um uso prático, como o envolvimento na arrematação de impostos, a escolhas de oficiais ultramarinos e a concessão de monopólio e privilégios comerciais (GOUVÊA, 2004). 19

352

considerando-os como uma parcela da sociedade com interesses próprios definidos dentro do processo político, econômico e administrativo do período colonial. Desse modo, abordaremos o indivíduo nas suas relações com o conjunto, envolvendo a totalidade da sociedade a qual faziam parte, buscando traçar as suas redes de relacionamento ao longo do tempo, verificando a sua relação com o contexto que se vivia. Conclusão Diante do que foi exposto, verifica-se que durante a administração dos reis espanhóis Portugal e suas colônias passaram por um processo de transformação que alterou suas estruturas administrativas e judiciais, qualificando a Fazenda para inspecionar as atividades fiscais. Assim, era de interesse da Coroa superar a desordem que se configurava no descumprimento das obrigações dos seus oficiais, na existência de sonegação fiscal e na ausência de instituições para controle fiscal como a Alfândega. Esta interpretação se desenvolveu através do conhecimento da carta que ordenou uma investigação nos descaminhos da capitania do Espírito Santo no século XVI, expressão da vontade de Felipe II. Este documento se tornou acessível a nós por meio da transcrição paleográfica e evidenciou ilegalidades nas rendas régias, no qual os acusados eram os funcionários ligados ao almoxarifado e a provedoria e comerciantes de Portugal e do lugar. Este trabalho dialoga com a renovação historiográfica do político realizada no estudo das Américas e, sobretudo no Brasil Colonial, a partir do surgimento da “Nova” História Política desde a década de 1980, na medida que tem como principais focos de análise os novos temas e abordagens teórico-metodológicas, entre eles, a existência de poderes plurais conflitantes com a Coroa com a qual dividiam o espaço político da capitania, grupos políticos e sociais formadores da elite local, as suas relações clientelares para obtenção de benefícios políticos, privilégios econômicos e ascensão social e a Cultura Política da Época Moderna que tecia as relações sociais no mundo Ibérico.

353

Referências Bibliográficas BICALHO, Maria Fernanda; FERLINI, Vera Lúcia Amaral. Modos de governar. Idéias e práticas políticas no Império Português. SP: Alameda, 2005. 2ed.

CARDIM, Pedro. O Governo e a Administração do Brasil sob os Habsburgo e os Primeiros de Bragança. Revista Hispania, Lisboa, nº 216, p.117-156, 2004. CARDOSO, Ciro Flamarion. História e poder: uma nova história política? In: _. & VAINFAS, Ronaldo (orgs). Novos domínios da História. Rio de Janeiro: Campus. 2012. CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (orgs). Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. CAVALCANTE, Paulo. Negócios de Trapaça: Caminhos e descaminhos na América Portuguesa (1700-1750). São Paulo: Hucitec, 2007. FALCON, Francisco C. História e Poder. In. CARDOSO, Ciro F. & VAINFAS, Ronaldo (org). Domínios da história. Rio de Janeiro: Campus, 1995. FERREIRA, Marieta de Moraes. A nova “velha história”: o retorno da história política. Estudos históricos, n.10, 1992. FRAGOSO, João; BICALHO, Maria F.; GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs). O antigo regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). 2ed. RJ: Civilização Brasileira, 2010. GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. Diálogos Historiográficos e Cultura Política na Formação da América Ibérica. In: SOIHET, Rachel; BICALHO, M.F.B; GOUVÊA, M.F.S (Orgs). Culturas Políticas: Ensaios de História Cultural, História Política e Ensino de História. RJ: Mauad, 2005, p. 67-84. HESPANHA, Antônio Manuel. As vésperas do Leviathan: instituições e poder político Portugal- séc. XVII. Coimbra: Livraria Almedina, 1994. HESPANHA, Antônio Manuel. O Governo dos Áustria e a Modernização da Constituição Política Portuguesa. Revista Penélope, Lisboa, nº 2, p. 50-73, 1989. MARQUES, Guida. O Estado do Brasil da União Ibérica: Dinâmicas políticas no Brasil no tempo de Felipe II de Portugal. Revista Penélope, Lisboa, n. 27, p. 7-35, 2002.

354

MATOS, Artur Teodoro de. O Império Colonial Português no início do século XVII: Elementos para um estudo comparativo das suas estruturas econômicas e administrativas. Arquipélago, Lisboa, nº 1, p. 181-223, 1995. RÉMOND, René. Uma História Presente. In: RÉMOND, René. Por uma história política: Rio de Janeiro: Ed. UFRJ/Ed. FGV, 1996.

RIBEIRO, Luiz Cláudio; QUINTAO, L. C.; FOLLADOR, K. J.. Território e territorialidade no império das redes: o Espírito Santo nos séculos XVI e XVII. Dimensões: Revista de História da UFES , v. 01, p. 27-55, 2013. SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e sociedade no Brasil colonial: a suprema corte da Bahia e seus juízes. 1609-1751. São Paulo: Perspectiva, 1979. Fontes Impressas: Carta de Lei (treslado) do Rei Felipe II, ao Capitão-Mor da Capitania do Espírito Santo, Gaspar Alves de Siqueira, a ordenar a devassa nos descaminhos da Alfândega. Anexo: auto de testemunhas (01 doc. 60 fls). (CTA: AHU- ESPÍRITO SANTO, cx. 01, doc. 04).

355

Das Gazetas aos Jornais Arthur Ferreira Reis* Resumo: Os primeiros anos do Primeiro Reinado do Brasil foram marcados pela chegada da modernidade. Atentos a isso, esse trabalho pretende, através da análise dos jornais Correio Braziliense, Gazeta do Rio de Janeiro e Idade D’Ouro2, perceber alguns sinais dessa mudança através de mudanças conceituais. Para isso, uma pequena descrição da situação da imprensa antes da Regeneração Vintista e da dinâmica dos espaços públicos no Brasil também se torna essencial para entendermos a chegada da modernidade no Brasil. Palavras Chave: Modernidade, Imprensa, Jornais Abstract: The early years of the First Empire of Brazil were marked by the arrival of modernity. Aware of this, this paper aims, through the analysis of newspapers Correio Braziliense, Gazeta do Rio de Janeiro and Idade D'Ouro, see some signs of this change through some conceptual changes. For this, a short description of the press situation before Vintista regeneration and dynamics of public spaces in Brazil also becomes essential to understand the arrival of modernity in Brazil Keywords: Modernity, Media, Newspapers. Em 10 de setembro de 1808 o primeiro número da Gazeta do Rio de Janeiro veio a público. Composta basicamente por cartas e notícias estrangeiras, a Gazeta anunciava em sua última página que também faria anúncios e imprimiria notícias em nome do governo. No decorrer de sua existência, as cartas de particulares multiplicaram-se no periódico como se fossem repórteres enviando notícias para os telejornais atuais3. O segundo jornal a surgir em terras tupiniquins foi a Idade D’Ouro. Criado na Bahia, esse periódico em muito se assemelhava ao seu conterrâneo fluminense. Também formado por notícias, proclamações oficiais e anúncios, ao fim do primeiro número levava o selo de “Com permissão do Governo”. O que essas considerações iniciais, e provavelmente já conhecida pelos leitores, nos mostram, é que a existência de periódicos no Brasil remete ao fim do ano de 1808. A existência de uma cena pública pode ser percebida, dessa maneira, já no período joanino. Por cena pública queremos dizer algo abstrato e sem implicações políticas diretas. A existência de periódicos oficiosos que circulavam pela Corte, podendo ser comprados por qualquer um, implica em um espaço de circulação de notícias e ideias, mesmo que controlado pelo governo. A paralela presença de periódicos especializados em fazer análises de obras literárias e cientificas, também confirma a existência de uma esfera literária. Segundo Habermas 4, será 356

dentro da esfera literária que a esfera pública burguesa irá se formar5, o que não será diferente no Brasil. Com isso, nos dispomos a fazer uma viagem aos primeiros periódicos para encontrarmos singelos vestígios da trajetória das novas ideias em terras luso-brasileiras. Nossa hipótese é que a modernidade chegou de maneira gradual e, assim como a independência, foi tomando forma através das discussões em torno da Regeneração do Porto. Mas não podemos cair em uma teleologia ou em um exagero da abrangência dos espaços públicos 6. Além da exclusão dos atores mais populares do início desse processo de modernização da sociedade, também devemos estar atentos ao desenvolvimento gradual dos espaços públicos, muitas vezes indesejado por homens como José da Silva Lisboa. Dessa maneira, pretendemos mostrar que já existia, antes de 1820, uma cena pública formada pela esfera literária e pelas sociedades secretas, mas os espaços públicos modernos só se concretizaram a partir de 18207. Como já exposto por Marco Morel, parece ser sugestivo compreender que a primeira geração da imprensa periódica no Brasil não surge do vazio, nem veio apenas ‘de fora’, numa espécie de gestação espontânea ou extemporânea, mas baseou-se em experiências perceptíveis. Além da já citada cena pública complexa, na qual ela se inseria, havia uma tradição de atividades impressas da nação portuguesa, à qual o Brasil pertencia, e a possibilidade de os primeiros redatores propriamente brasileiros terem aprendido e convivido, ainda que informalmente, com a imprensa de outros países8.

O desenvolvimento do Brasil causado pela sua elevação a Reino Unido e a abertura dos portos causou o descontentamento de grande parte da elite que permaneceu em Lisboa. Se, de um lado, a abertura dos portos impediu o desenvolvimento da incipiente indústria portuguesa9, a situação política também causava descontentamento, pois os portugueses entendiam-se esquecidos pelo rei10. Descontentes com essa situação, declararam ser urgente a restauração das antigas instituições representativas do reino e o retorno da Corte para Portugal, pretendendo recuperar um passado histórico11 de sucesso. Uma das primeiras atitudes do movimento foi instaurar a liberdade de imprensa. Com isso, a Regeneração do Porto pode ser entendida como um turnning point12, ou seja, um evento que acarretou significativas consequências para um contexto, que “set in motion an extraordinary chain of actions and reactions with profound effects on all elements of society and virtually every corner of the nation” 13. Como se as comportas de uma represa fossem abertas, uma série de jornais surgiram em ambos os lados do Atlântico. Não só os impressos ganharam importância, como os próprios espaços de sociabilidade tornaram-se locais de discussão e manifestação política. Além da existência de sociedades

357

secretas desde antes de 180814, as ruas também foram tomadas por manifestações populares, onde, o povo, “pela força de suas vozes, gestos e palavras de ordem, tornava-se ator político, sujeito histórico.”15. Segundo Hendrik Kraay, era através das festas e das reuniões populares nesses locais que o povo tentava demonstrar seus descontentamentos e o Estado tentava “inculcar” a lealdade na cabeça dos cidadãos16, pois o que estava em jogo era o controle sobre os símbolos do Estado e da nação17. Nas palavras de Morel, o processo de independência marcou também o início da afirmação da opinião pública fundada na razão crítica ou vontade da maioria, mas em ambos os casos aparecendo na cena pública como instrumento de legitimidade política, distinguindo-se da soberania absolutista monárquica e portanto inserida na perspectiva de instituição destas novas ideias brasileiras18

Concluindo, chegavam as novas ideias. Não que elas não estivessem em circulação através de livros contrabandeados que os censores não conseguiam ter controle completo19, mas agora elas se tornavam públicas. O que ocorrera foi uma transformação gradual e fundada em bases já existentes, que, acelerada por acontecimentos internos ao Império português, mas externos territorialmente, acabou por consolidar os espaços públicos modernos no Brasil. Com a instauração da liberdade de imprensa as novas ideias começavam a ser percebidas nos espaços públicos através dos impressos e das palavras. Paralelo a isso, novos conceitos circulavam, e um novo tempo era anunciado por nossos jornalistas. E será a tentativa de captar a percepção desse novo tempo que nos guiará no próximo tópico. Nesse momento nos propomos a analisar como era tratada ou percebida a modernidade nos periódicos brasileiros do período joanino e do processo de independência. Nossa hipótese é que a modernidade só foi percebida – ou ao menos exteriorizada – após a Regeneração do Porto, onde, nos jornais, começou a aparecer um significado diferente para palavras que se relacionavam com a modernidade, como “moderno” e “novo sistema”. Dessa maneira, e sem querer praticar uma história conceitual ortodoxa, utilizaremos as indicações de Reinhart Koselleck, especialmente sobre a importância da percepção da mutação dos significados conceituais para o meio social20 e a novidade que a “modernidade” representava para os homens dos oitocentos21. A modernidade, nas palavras de Koselleck, é caracterizada por uma profunda aceleração do tempo histórico22. A aceleração do tempo histórico causa o distanciamento do espaço de experiência do horizonte de expectativa, tornando a distância entre ambos cada vez maior e fazendo com que a modernidade seja compreendida, por seus contemporâneos, como algo novo, totalmente diferente do que conheciam, pois a muito se afastaram de seu espaço

358

de

experiência23. Fortemente influenciado por Koselleck, François-Xavier Guerra afirmou que, para os homens do início dos oitocentos na América, o tempo que viviam era um período de ruptura, de novidade, de invenção, que deixa para trás o imaginário de uma época antiga para criar um novo24, o que se caracterizou, nos jornais brasileiros, como um “novo systema”. Como bem afirmado por Guillermo Zermeño Padilla, a mutação semântica está situada no vocabulário desses homens25 Para Guerra, um dos pontos chaves da chegada da modernidade é a mudança da concepção da nação antiga para a nação moderna26. A nação antiga se caracterizava por ligações ao passado histórico, formada por uma série de referências tradicionais, como a fidelidade ao rei, seus costumes e tradições27. Já a nação moderna era vista como uma comunidade composta por indivíduos autônomos e iguais, uma construção livre que depende da união da vontade dos indivíduos, simbolizada pela Constituição28. Essa mudança não tem, na visão de Padilla, uma relação com o tempo em si, mas sim com a percepção de uma experiência inédita29, o que fazia da mudança algo subentendido. Era como se o passado se distanciasse cada vez mais, e o tempo histórico se acelerasse até descolar presente e passado30. Através dessa mudança – gradual e que mistura conceitos de ambas as concepções – podemos perceber também que o indivíduo se torna o centro da sociedade 31, ou, como diz Koselleck, o futuro passa a depender do indivíduo, e não da providência32. Nesse momento, a modernidade se instaura, e novos conceitos são percebidos na boca dos novos cidadãos que formam a nova sociedade. A nova sociedade trouxe consigo a função da opinião pública como local de legitimação. Os impressos e as novas formas de sociabilidade desempenharam um papel importantíssimo. Junto com eles nasce, segundo Guerra, a opinião pública moderna33 ou o que Habermas chama de esfera política34. Produto do círculo literário, a esfera política se formou independente do Estado, como local de discussão em nome da razão das ações políticas do governo 35. Dessa maneira, os periódicos discutiam abertamente as decisões do governo, e os homens, reunidos em locais de sociabilidade tais como cafés, livrarias e boticas, discutiam livros, leis, política e economia, tudo em tom de igualdade36. Dentro desses espaços públicos formou-se uma consciência política que ia contra o absolutismo, e, de maneira paralela, se postava como local de legitimação37. Nisso ocorre um movimento duplo. Se a nova sociedade demanda os espaços públicos, os espaços públicos, por sua vez, agem no sentido de fortalecer a modernidade. Como bem

359

destacado por Valdei Lopes de Araújo, não podemos subestimar a força da circulação conceitual no interior da república das letras de catalisar as transformações sócio-políticas38. Era um caminho sem volta, a opinião pública já havia tomado os espaços públicos e era vista como “rainha do mundo”. Com o surgimento da opinião pública, as forças políticas que queriam influenciar as decisões do governo deviam apelar para o público como meio de legitimar suas reivindicações39. Daí a explosão dos jornais políticos no ano de 1821. Tudo passa a ser discutido e criticado nos espaços públicos40, e os periódicos tornam-se o meio por excelência desse debate. Feitas as indicações iniciais sobre o que entendemos por modernidade e quais são suas consequências, podemos agora passar para a análise dos jornais. Analisaremos aqui, como já foi dito, os significados atribuídos à palavra “moderno” e à expressão “novo sistema”. Através da mudança de seus significados durante o período que vai de 1808 à 1822, tentaremos perceber as mutações na percepção política e social de nossos jornalistas do período. O que podemos perceber nos jornais do período de 1808-1820, é que ambas as expressões não continham conteúdo político. A expressão “moderno”, por exemplo, remetia a algo novo no sentido temporal, em oposição com o antigo, o anterior. Por isso, a Gazeta do Rio de Janeiro, ao falar de uma invenção cientifica dizia que “Hum Chimico desta Cidade descobrio o meio de tirar das pinturas restituidas pela França o verniz moderno, e deixar o antigo, sob o qual a pintura tomo seu antigo esplendor.”41. Também o Correio Braziliense, fazia oposição entre o antigo e o moderno quando fez o anuncio de um livro da escola mercantil, dizendo que se trata de um livro “sobre o commercio assim antigo como moderno”42. Já o jornal literário O Patriota anunciava as três viagens do inglês Cook como as que determinaram, “por assim dizer, a extensão do mundo antigo e moderno.”43. A expressão também remetia aos gostos artísticos mais requintados e era muito utilizada em anúncios de moveis. A Gazeta frequentemente fazia anúncios como “quadros de gravuras em todo o gênero, e do gosto mais moderno”44 ou como no caso de “hum sortimento de vasos, e de aparelhos de porcelana para chá e caffé, do gosto mais moderno”45. A Idade D’Ouro também fazia largo uso da expressão em seus anúncios, e em 1814 anunciou “huma dúzia de cadeiras com seu ganapé, hum espelho com sua banca, e huma Guarda ropa, tudo feito em Lisboa ao gosto moderno.”46. Além dos gostos e da oposição entre antigo e moderno, a expressão também remetia a coisas contemporâneas aos jornais. Dessa maneira, a Gazeta do Rio de Janeiro, ao analisar as relações

360

entre Estados Unidos e a França, anunciava que “o único acontecimento moderno, que podia formar a base da disputa entre os dois paizes, he o ultimo acto do Congresso, que impõe um direito de 18 dollars por tonelada em todos os navios da França.” 47. Também a Idade D’Ouro anunciava um “systema moderno de Economia”48 e O Patriota falava de Mr. Biot e “seu moderno tratado de Astronomia Fizica.”49. Já a expressão “novo sistema” ligava-se a questões administrativas. A Gazeta do Rio de Janeiro dizia que, para suprir as necessidades do Brasil sobre o comercio e a pescaria, “deve-se recorrer a hum novo systema”50. Também noticiava que a “nossa Camara das Finanças está constantemente occupada com hum novo systema de finança”51. A Idade D’Ouro anunciava um “novo systema militar” empreendido na Espanha 52 e também anunciava o “novo systema de finanças” proposto pela Câmara53. O jornal que mais se aproximava do sentido político quando falava de “novo sistema” era o Correio Braziliense. Redigido em Londres e tendo um redator afinado aos novos tempos, tal periódico acabava, ao menos nessas expressões, não se adiantando muito em relação aos seus concorrentes brasileiros. Bom orador e formado em retórica, provavelmente estava ciente das características de seu auditório e a ele se adaptava54. Entretanto, será o primeiro, como veremos, a trazer o sentido político tanto da expressão “moderno” quanto do “novo sistema”. Porém, antes de 1820, basicamente vai se restringir a utilizar essas palavras da maneira mais próxima possível dos outros periódicos brasileiros. Sendo assim, também utilizava a expressão para designar questões administrativas, como quando anunciava o “Projecto de um novo Systema de Finanças”55 da Russia ou o “novo systema judicial nas províncias do Rheno”56. O sentido político utilizado pelo Correio remetia a uma mudança política, de um velho sistema para um novo, mas sem entrar em maiores detalhes. Ao falar da América hispânica, por exemplo, dizia que poderia ser instituído “um novo systema, que a prudência e sabedoria escolherem, para edificar sobre ella.”57. Falando sobre os conflitos que ocorriam na Espanha, afirmou que os habitantes da Cadiz “organizaram um novo systema de Governo com o titulo de regência”58. Também citava o novo governo Francês pós queda de Napoleão, que formulara um novo sistema que, “pelo que respeita a ley da liberdade de imprensa; ou para melhor dizer contra a liberdade de imprensa, o novo sistema de legislação será mais oppresivo.”59. A chegada da modernidade e a concepção de algo novo surgindo no contexto, como já afirmamos, ocorreu após a Regeneração do Porto. Como destacado por Neves, inúmeros conceitos foram inseridos ou modificados no período. Em nossa visão, essa mutação no ideário

361

da elite brasileira torna a Regeneração do Porto um acontecimento importantíssimo para a modernização da sociedade brasileira. Essa rápida mutação ilustra a perda de controle do governo joanino sob a sociedade brasileira e a falha de um sistema de isolamento intelectual levado a frente pelo governo Português. Como destacado por Luiz Carlos Villalta, nem a inquisição60, nem a censura61 e nem as autoridades foram capazes de conter a entrada das novas ideias em terras luso-brasileiras62. O significado do termo “moderno” teve poucas mutações. Apenas o Correio Braziliense expôs de maneira mais clara a nova concepção, enquanto a Gazeta e a Idade D’Ouro continuaram atreladas aos significados antigos. Já em 1819 o jornal anunciava que “os Príncipes da Alemanha nunca desejaram, nem nunca prometteram dar ao seu povo uma representação no sentido moderno da palavra”, que seria a mesma coisa que introduzir a “democracia na monarchia”63. Em 1821 reforçava a ligação entre o “moderno”, a representação e uma “Monarchia Democratica”, quando dizia que “o próprio nome, que se deve dar ao Governo de Portugal, que se vai estabelecendo pela practica, e se indica formar na Constituição, he o de uma Monarchia Democratica, e ésta, segundo o invento moderno, por via de Representação.”64. Já a expressão “novo sistema” teve seu significado mudado drasticamente nos três periódicos. Em 1821, ao publicar os debates da Corte, a Gazeta do Rio de Janeiro já demonstrava as mudanças nos significados na boca dos deputados. Em 1822 o jornal anunciava um discurso do deputado Borges Carneiro que anunciava o “espírito do novo systema”65. Também anunciava a fala do “Sr. Vergueiro” que, durante a reunião extraordinária dos Vereadores e Procuradores do Senado da Camara em 10 de junho de 1822, dizia que “desejando os Povos do Brazil unirse à causa de Portugal, he necessário que as Cortes lhes indiquem quaes são as vantagens que lhe resultão do novo systema”66. Com o Brasil já independente, a Gazeta anunciava um discurso de Antônio de Azevedo Mello e Carvalho que dizia Quando, Senhor, os Povos sentem a necessidade de huma reforma política, e assiduamente trabalhão para consolidarem um novo systema, do qual esperão todas as vantagens, jamais obstáculos alguns suspenderão as forças desta impulsão67.

A Gazeta acabava, mesmo que por meio de discursos de terceiros, demonstrando que o termo “novo sistema” adquiria um novo significado, um significado propriamente político e moderno. Coube à “Hum Constitucional Liberal”, leitor da Idade D’Ouro dar um tom mais claro ao novo sistema. Em mensagem ao editor do jornal, julgava ser do meu dever o fazer esta pequena advertência a fim de mostrar a todos os nossos irmãos Europeus, e Brasileiros verdadeiramente Constitucionaes que he de nossa particular obrigação cada vez mais sermos mais aferrados e amantes do novo Systema.68

362

No periódico Correio do Rio de Janeiro a mutação foi ainda mais nítida. Na edição de setembro de 1820 anunciava os sucessos da Regeneração do Porto, dizendo que ao primeiro romper da commoção se acharam já pessoas obrando como representantes das três províncias do Minho, Traz-os-Montes e Beira, e o novo systema seguido logo depois, por cidades e villas dessas três províncias69.

Diante desses acontecimentos em Portugal, Hipólito questionava as contradições e a indecisão que o governo joanino se envolvia, e, pedindo que os Ministros pensassem na situação que se instalava, afirmava que, se analisassem racionalmente, “conhecerão a necessidade de adoptar desde já um novo systema, se não quizerem ver todos dias compromettida a authoridade de seu soberano”70. E, por fim, em setembro de 1822, no mês da declaração de independência, o Correio já externalizava o descontentamento crescente com o “novo sistema” português. Afirmava que Quanto as diversas provincias do Brazil declararám sua vontade de obrar de concerto com as de Portugal na obra da regeneração commum, não tiveram jamais em vista o serem excluídas das vantagens, que se se podiam derivar do novo systema constitucional71

A consequência desse descontentamento nós já conhecemos. No mesmo mês em que o jornal foi publicado, D. Pedro I anunciou a ruptura com Portugal. A partir de então, o Brasil se tornava independente. Com a independência novos assuntos se colocavam em pauta, pois a formação do novo pacto devia ser feito tendo em vistas os desejos expressos pela opinião pública. Nesse contexto, diversos grupos políticos buscaram utilizar os espaços públicos para legitimar seus projetos, e os jornais foram um dos principais veículos para se alcançar tal fim. Mas esse é um outro capítulo da história da imprensa.

*

Mestrando em História pela Universidade Federal do Espírito Santo. Orientado pela profª Adriana Pereira Campos e co-orientado pela profº Fernanda Cláudia Pandolfi. Financiado pela CAPES. Email: [email protected] 2 A Gazeta do Rio de Janeiro teve vários redatores durante sua existência, todos eles ligados diretamente ao governo. Já o periódico Idade D’Ouro foi redigido, inicialmente, pelo português emigrado Manuel Antônio da Silva serva com a autorização do conde dos Arcos. O periódico Correio Braziliense foi redigido pelo brasileiro formado em Coimbra Hipólito José da Costa diretamente de Lisboa. 3 Habermas percebeu tendência semelhante nos jornais europeus. Cf: HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Tradução: Flávio R. Kothe. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p.29. 4 Para Pablo Piccato, alguns historiadores tendem a utilizar o conceito de esfera pública cunhado por Habermas como um tipo ideal weberiano. Atentos a isso, faremos algumas considerações sobre as conclusões de Habermas, algumas vezes concordando com ela, outras vezes discordando. Cf: PICCATO, Pablo. Public sphere in Latin America: A map of the historiography. In: Social History, 35:2, Maio, 2010. 5 HABERMAS, Jürgen. Op. cit., p.46. 6 PICCATO, Pablo. Op. cit., p.173. 7 Existe uma discussão sobre o termo. Enquanto François-Xavier Guerra prefere utilizar o termo “espacios públicos” para designar os locais em que a opinião pública se desenvolve, Habermas, seguido por uma leva de historiadores e sociólogos, prefere chamar de “esfera pública”. Não queremos nos ater nessa discussão, mas, concordamos com Guerra sobre a inadequação da concepção “burguesa” dada por Habermas à esfera pública

363

quando falamos do início do século XIX. Por isso, sem querer levantar maiores discussões, preferimos utilizar o termo “espaços públicos”. Para comentários mais detalhados sobre o tema, pode-se consultar a introdução da obra GUERRA, François-Xavier; LEMPÉRIÉRE, Annick et al. Los Espacios Públicos en Iberoamérica: ambigüedades y problemas. Siglos XVII-XIX. México: Fondo de Cultura Económica- Centro Francés de Estudios Mexicanos y Centroamericanos, 1998. 8 MOREL, Marco. Da gazeta tradicional aos impressos de opinião: metamorfoses da imprensa periódica no Brasil. In: NEVES, Lúcia Maria Bastos P. das (org.). Livros e Impressos: retratos do setecentos e do oitocentos. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2009, p.164. 9 DIAS, Maria Odila Leite da Silva. A Interiorização de Metrópole. In: DIAS, Maria Odila Leite da Silva. A Interiorização da Metrópole e outros estudos. São Paulo: Alameda, 2005, p.13. 10 NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Corcundas e constitucionais: a cultura política da Independência (1820-1822). Rio de Janeiro: Revan / FAPERJ, 2003, p.233. 11 Ibidem, p.235. 12 Timothy Tackett afirmou que a fuga do rei de Paris mudou totalmente os rumos da Revolução Francesa. Para ele, tal ação causou uma série de mudanças, ramificações e reverberações, que, provavelmente, não teriam ocorrido caso o rei permanecesse em Paris. Em nossa opinião, não faz parte do oficio de um historiador ficar fazendo prognósticos sobre as possibilidades históricas, mas também achamos que a importância de fatos centrais ao contexto, tais como a fuga do rei e a Regeneração do Porto devem ser reconhecidas. Cf: TACKETT, Timothy. When the king took flight. Cambridge: Harvard University Press, 2003. 13 Ibidem, p.2. 14 BARATA, Alexandre Mansur. Maçonaria, Sociabilidade Ilustrada & Independência do Brasil (1790-1822). Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2006, p.73. 15 MOREL, Marco. Op. cit., p.233. 16 KRAAY, Hendrik. “Definindo nação e Estado: rituais cívicos na Bahia pós-Independência (1823-1850). In: Topoi: revista de História, nº 3. Rio de Janeiro: 7 Letras, setembro de 2001, p.73. 17 Ibidem, p.80. 18 MOREL, Marco. Op. cit., p.217. 19 VILLALTA, Luiz Carlos. Os livreiros, os “livros proibidos” e as livrarias em Portugal sob o olhar do Antigo Regime (1753-1807). In: NEVES, Lúcia Maria Bastos P. das (org.). Livros e Impressos: retratos do setecentos e do oitocentos. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2009, p.229. 20 KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuições à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed. PUC-Rio, 2006, p.117. 21 Ibidem, p.314. 22 Ibidem, p.23. 23 Ibidem, p.314 24 GUERRA, François-Xavier; LEMPÉRIÉRE, Annick et al. Los Espacios Públicos en Iberoamérica: ambigüedades y problemas. Siglos XVII-XIX. México: Fondo de Cultura Económica- Centro Francés de Estudios Mexicanos y Centroamericanos, 1998, p.12 25 PADILLA, Guillermo Zermeño. História, experiência e modernidade na América ibérica, 1750-1850. In: Almanack Brasiliense. n. 7. Maio, 2008, p.7. 26 GUERRA, François-Xavier. Modernidad e Independencias: Ensayos sobre las revoluciones hispánicas. México: Mapfre, 2001, p.319. 27 Ibidem, p.322. 28 Ibidem, p.327. 29 PADILLA, Guillermo Zermeño. Op. cit., p.7. 30 PIMENTA, J. P. G. História dos conceitos e história comparada: elementos para um debate. In: Almanak Braziliense, n. 7, maio 2008, p. 60. 31 Ibidem, p.85. 32 KOSELLECK, Reinhart. Op. cit., p.31. 33 GUERRA, François-Xavier. Op. cit., p.228. 34 HABERMAS, Jürgen. Op. cit., p.44. 35 GUERRA, François-Xavier. Op. cit. p.228. 36 HABERMAS, Jürgen. Op. cit., p.49. 37 Ibidem, p.71. 38 ARAÚJO, V. L. de. História dos conceitos: problemas e desafios para uma releitura da modernidade ibérica. In: Almanack Braziliense, v.7, p.47-55, mai. 2008, p.54. 39 HABERMAS, Jürgen. Op. cit. p.75. 40 Ibidem, p.59. 41 Gazeta do Rio de Janeiro, nº19, 06 de Novembro de 1816. 42 Correio Braziliense, Maio, 1817.

364

43

O Patriota, Jan-Fev, nº 1, 1814. Gazeta do Rio de Janeiro, nº94, 23 de Novembro de 1816. 45 Gazeta do Rio de Janeiro, nº71, 3 de Setembro de 1817. 46 Idade D’Ouro, nº61, 20 de Dezembro de 1814. 47 Gazeta do Rio de Janeiro, nº84, 18 de Outubro de 1820. 48 Idade d’Ouro, nº95, 2 de Dezembro de 1817. 49 O Patriota, nº1, Janeiro, 1813. 50 Gazeta do Rio de Janeiro, nº31, 17 de Abril de 1811. 51 Gazeta do Rio de Janeiro, nº22, 18 de Março de 1815. 52 Idade D’Ouro, nº30, 13 de Abril de 1813. 53 Idade D’Ouro nº39, 20 de Maio de 1817. 54 PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da Argumentação: a nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p.173. 55 Correio braziliense, Dezembro de 1814, p.775. 56 Correio Braziliense, Fevereiro de 1819, p.224. 57 Correio Braziliense, Junho de 1809, p.571. 58 Correio Braziliense, Julho de 1810, p.571. 59 Correio Braziliense, Março de 1819, p.331. 60 VILLALTA, Luiz Carlos. Os livreiros, os “livros proibidos” e as livrarias em Portugal sob o olhar do Antigo Regime (1753-1807). In: NEVES, Lúcia Maria Bastos P. das (org.). Livros e Impressos: retratos do setecentos e do oitocentos. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2009, p.227. 61 Ibidem, p.229. 62 Ibidem, p.259. 63 Correio Braziliense, Novembro de 1819, p.519. 64 Correio Braziliense, Dezembro de 1821, p.527. 65 Gazeta do Rio de Janeiro, nº51, 27 de abril de 1822. 66 Gazeta do Rio de Janeiro, nº76, 25 de junho de 1822. 67 Gazeta do Rio de Janeiro, nº142, 26 de fevereiro de 1822. 68 Idade D’Ouro, nº5, 17 de janeiro de 1823. 69 Correio Braziliense, Setembro de 1820, p.340. 70 Correio Braziliense, Novembro de 1820, p.547. 71 Correio Braziliense, Setembro de 1822, p.392. 44

365

Mundo do Trabalho Rural – políticas de Estado e produção de refugo humano Beatriz dos Santos de Oliveira Feitosa [email protected] Doutoranda em História – Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal de Mato Grosso – PPGHIS/UFMT Professora Assistente no Departamento de História da UFMT – Campus Rondonópolis Orientador: Vitale Joanoni Neto [email protected]

A proposta deste trabalho é dar contribuições ao estudo das condições legadas ao trabalhador como consequência dos novos arranjos produtivos do campo brasileiro, para tanto dialogamos com questões referentes ao “Antigo” e o “Moderno” no desenvolvimento de Mato Grosso. A década de 1970 significou uma nova era para o processo de modernização do território mato-grossense, não podemos perder de vista o cenário que se apresentava ao Brasil, governado por presidentes militares que impuseram políticas de desenvolvimento econômico amparadas em um projeto de estabilização da economia e das finanças, a meta era alterar o quadro econômico com inflação em torno de 80% ao ano. A aposta em exportação e abertura para o capital internacional promoveu a modernização, marcada pelo terror do AI-5 e por uma teia de relações entre ditadura e sociedade civil, assim se produziu o Milagre Econômico dos anos 1970, para além do período em que o Brasil esteve sob vigência do Regime Civil Militar, ressalta-se que a constituição territorial brasileira foi marcada por inúmeras narrativas de negação de territorialidades que tiveram grande influência do poder estatal, há significativo número de pesquisa que se dedicaram a refletir sobre esta questão, propomo-nos dialogar com a produção historiográfica acerca da ocupação de Mato Grosso, buscando em períodos anteriores ao que é a preocupação deste artigo a dinâmica de configuração espacial, cuja orientação via Estado nos anos de 1970 deu o tom final para a constituição da grande propriedade na região. Importante contribuição as análises da ocupação territorial mato-grossense foi dada por Volpato1 que se propõe derrubar dois mitos no que diz respeito à

historiografia

tradicional que trata do período colonial mato-grossense, o primeiro aquele que aponta o passado vivido por essa colônia como algo faustoso. A outra abordagem explica os problemas enfrentados pela colônia devido ao isolamento vivido pela mesma, o que impedia que Mato

366

Grosso acompanhasse o ritmo de desenvolvimento de outras regiões do país e que segundo Borges (1991) negava participação de Mato Grosso na divisão internacional do trabalho. A “tese de isolamento”, vem sofrendo reinterpretações, tendo sido estudada por Garcia2, em trabalho intitulado “Mato Grosso (1800-1840): crise e estagnação do projeto colonial”, para o autor, ao defender o “não isolamento” de Mato Grosso, Lenharo estaria corroborando um novo mito, [...] mesmo que não fosse intenção de Lenharo, essa tese também atendia a interesses de grupos sociais surgido do desenvolvimento que Mato Grosso teve na segunda metade do século XIX. Eles que queriam dar uma nova imagem ao Estado. Ou seja, a tese do “não isolamento”, corrobora um certo mito da integração de Mato Grosso com o restante do país. [...] (GARCIA, 2003, p.41).

Do debate entre as duas teses “isolamento” e “não isolamento”, Garcia deduz, levando em conta as peculiaridades regionais do estado de Mato Grosso, que o tornam diferente de outras regiões brasileiras, ressaltando que: [...] quero deixar registrado que descarto qualquer ideia de isolamento de Mato Grosso, mesmo para os difíceis anos de 1720 e 1730. É impossível pensar em isolamento para uma capitania ou província que tinha um comércio externo tão expressivo, maior até que muitas províncias litorâneas. Aliás, pelas características das regiões mineradoras, quase todas as mercadorias que circulavam em Mato Grosso eram de origem estrangeira. Por outro lado, não concordo com a idéia (sic.) extrema de “não isolamento”, e integração completa de Mato Grosso ao restante do país, visto que as distâncias que separavam esse estado dos centros de abastecimento exerciam forças poderosas sobre a economia e sociedade. (GARCIA, 2003, p. 42)

Para além do debate em torno do “isolamento” ou “não isolamento”, consideramos propício considerações acerca da ocupação em momentos mais remotos da história matogrossense, a partir da segunda metade do século XVIII, a mineração entrou em decadência, isto obrigou a capitania a promover uma “substituição de exportações”. Este foi o momento em que surgiram as fazendas de gado e os engenho de cana-de-açúcar. O que aconteceu, resultante de um longo processo, foi o reordenamento das forças produtivas e, nesse processo, tendeu-se a uma produção agropastoril de auto abastecimento, o que fez com que a produção se tornasse mercantilizada, contando com o mercado disponível. Ressalta-se que, não se formou de imediato neste setor uma economia de exportação, que ainda se via presa à agonizante produção aurífera. Fora o ouro, a prata contrabandeada das províncias espanholas e o diamante com curto período de extração e esgotamento rápido e irreversível, eram quase que os únicos produtos a serem exportados, pois ainda de forma bastante tímida, havia o açúcar e tecidos de algodão. Volpato (1987)3 mostrou que mesmo com a produção agrícola e o desenvolvimento do pastoreio, a capitania continuou importando o gado e os gêneros de primeira necessidade. Esse 367

relativo desprezo com a agricultura, principalmente a de subsistência se deu exatamente pela sua forma de povoamento, que teve início com a descoberta do ouro. Sem contar a condição de pobreza vivida pela população mato-grossense no período, outro problema se colocou, a necessidade de garantir o domínio português nestas terras, visto ser Mato Grosso uma Capitania de Fronteira, o que levou a lutas constantes contra o espanhol, e que, por sua vez, exigiu o aparelhamento de milícias,

[...] a sociedade mato-grossense caracterizou-se desde os seus primórdios, de maneira praticamente generalizada, por relações de violência. Isso se explicou em função de uma série de fatores que envolveram todo o seu processo de ocupação desde os primeiros contatos com a terra (implicando na luta contra uma natureza indômita, com os seus primitivos habitantes e com os súditos espanhóis), até a exploração e o povoamento dos seus núcleos mineradores. A violência como um componente inerente às bases dessa sociedade, refletiu-se também de maneira clara e intensa na esfera da política mato-grosssense como uma herança da estrutura de dominação colonial que se estendeu até meados do século XIX. (CORRÊA, 2006, p. 29)4.

A exigência de um aparelhamento de milícias teve pesado ônus e com isso os investimentos na agricultura diminuíram, levando a fome uma parcela da população. Esse quadro de dificuldades contrasta com a acumulação conseguida por negociantes paulistas e cariocas que operaram comercialmente com a capitania. A partir do século XIX, com as mudanças na economia europeia, ocorreu uma nova divisão internacional do trabalho, cabendo às colônias portuguesas, garantia do consumo dos manufaturados, o abastecimento daqueles mercados de gêneros agrícolas e demais matérias primas. O século XIX assistiu ainda à substituição do poder do comerciante e das casas comerciais que passaram por um progressivo processo de endividamento, e pelo aumento do poder dos proprietários de terras. E essa tendência se acentuou à medida que se proliferaram os núcleos açucareiros na província. A produção da agroindústria canavieira no estado de Mato Grosso é uma das mais antigas do Brasil, entretanto, de modo geral a produção dessa atividade no estado foi bastante pequena, servindo apenas ao mercado local, “O açúcar produzido por Mato Grosso, de 1925 a 1931, representou cerca de 0,30% do total produzido nos estados brasileiros no mesmo período. No ano de 1932, o Brasil contou com 336 agroindústrias canavieiras, das quais, 11 pertenceram a Mato Grosso.” (BORGES, 2010, p.93)5. Quanto às relações de trabalho Borges (2010) assim se referiu: O trabalho escravo foi estabelecido na atividade mineratória ao longo do século XVIII. O declínio das minas teria provocado a evasão de parte dessa mão-deobra para outros lugares fora dos limites mato-grossenses. A mão-de-obra

368

escrava que permaneceu em Mato Grosso tendeu a se concentrar nos engenhos de açúcar, organizados na tradicional forma escravista (BORGES, 2010, p.101).

No tocante a mão-de-obra livre, ainda de acordo com Borges, Paralelamente ao trabalho escravo, antes de 1888, já haviam se desenvolvido em Mato grosso, outras formas de trabalho, formalmente livre. Índios, homens livres nativos de Mato Grosso e do Paraguai, constituíram a força de trabalho presente nas atividades extrativas (borracha, erva-mate, ipeca etc.), na pecuária, na produção da agroindústria canavieira. As condições peculiares do trabalho em cada uma delas variavam, mas, em nenhuma, o trabalho livre alcançava sua forma mais acabada, qual seja, a do trabalho assalariado. Prosseguindo algumas características particulares (BORGES, 2010, p.102-103)6.

No período posterior a 1930 teve início em Mato Grosso, a intervenção do Estado na produção açucareira. Para a região mato-grossense essa intervenção não se traduziu em benefícios sequer para os grandes proprietários, pois com a criação do IAA (Instituto do Açúcar e do Álcool) em 1933 surgiu mais um fator que contribuiu para a decadência das usinas, ainda que de forma indireta. A partir dos anos de 1940, influenciados pela propaganda promovida pelo governo, camponeses de regiões como Nordeste, Sul e Sudeste, que não possuíam terras em sua região de origem foram atraídos pela “Marcha para o Oeste”, com a intenção de adquirirem sua própria terra, segundo Nascimento7, A partir dos anos de 1940, camponeses pobres, das regiões tradicionais do Brasil foram atraídos pelo programa ‘Marcha para o Oeste’, que se mostrou uma grande falácia, visto que com as expectativas da continuidade da marcha, empresários e fazendeiros passaram a adquirir enormes lotes de terra em boa parte destinados à especulação. (NASCIMENTO, 1997, p. 17)

Concomitantemente à colonização pública de pequenos lotes, grupos econômicos e políticos, acabaram aproveitando-se das facilidades que lhes eram concedidas pelo Estado, convertendo em riqueza os extensos territórios virgens, que foram obtidos a baixos preços, que em seguida foram loteados ou estocados para gerar riqueza sem trabalho. (LENHARO,1986)8. Em artigo publicado na Revista Brasileira de História da Anpuh, intitulado “A terra para quem nela não trabalha: a especulação com a terra no Oeste brasileiro nos anos 50”, Alcir Lenharo9 mostrou como se deu a ocupação de terras na região Centro-Oeste do Brasil, mais especificamente no estado de Mato Grosso, houve especulação com a terra por grandes grupos econômicos enquanto a maioria pobre que vinha para a região em busca de terras tinha que se contentar com o trabalho nas fazendas.

369

A propaganda da Marcha, incentivava um retorno ao campo, alardeado pelo presidente Getúlio Vargas, que já em 1933 tratava a questão de forma tal que deixava qualquer militante de Esquerda, ou trabalhador rural sem terra, maravilhado com a proposta. Segue discurso proferido por Getúlio Vargas no Jornal “A República”10 em 1931:

Para alcançarmos tal benefício que nos está reservado, pois somos, em face do Velho Mundo gasto, Novo Mundo a explorar, precisamos de firmeza de direção, tranqüilidade (sic.) e equilíbrio. Só assim se dirigirão a nossa terra, com sólidas garantias de estabilidade, os capitais indispensáveis à sua fartura e opulência, acelerando o nosso progresso e impulsionando o nosso desenvolvimento. A obra de reconstrução que se espera é de extensos horizontes. Na sua amplitude e profundidade ela requer o esforço inteligente e contínuo de várias gerações. (A REPÚBLICA, 1931, p.1)

A política de colonização de Getúlio Vargas, apregoava a necessidade de distribuir as populações migrantes e deslocá-las para as zonas mais férteis e produtivas. O objetivo a ser alcançado era o aumento da produtividade, o Estado Novo propunha-se aumentar ou ampliar a diversidade produtiva. Neste sentido surgiram críticas ao “latifúndio improdutivo”, portanto o latifúndio era tolerado, desde que gerasse produção e o assunto a respeito da acumulação de terras muito pouco foi mencionado, na interpretação de Lenharo11, A política desenvolvida pelo Estado Novo desembocou nos acontecimentos de 1950, quando o ‘Estado de Mato Grosso’ já denuncia especulação com terras devolutas. O jornal ‘O Estado de Mato Grosso’ notificava freqüentemente (sic.) a especulação de terras, mostrando que o governo estadual firmou vários contratos para concessão de terras. (LENHARO, 1986, p.26).

O resultado dessa política de distribuição de terras foi a formação gigantescas propriedades agrícolas, dessa forma, na sociedade brasileira, a terra também se tornou mercadoria. Outra forma de capitalização da terra se deu quando o capital se apropriou de grandes territoriais, com objetivo de promover reserva de valor (especulação), sendo esse o propósito dos grupos econômicos, que se apropriaram de enormes módulos agrários, contando com apoio quase que irrestrito do Estado. Ao escrever a carta pastoral intitulada “Uma Igreja da Amazônia em Conflito com o Latifúndio e a Marginalização Social”, Casaldáliga 12 aponta a forma como o Estado atuou na região, Esses empreendimentos latifundiários surgiram graças ao incentivo dado pelo Governo, através da SUDAM. É a provação oficial e financiada de grande latifúndio, com todas as consequências que dele advém. Somas fabulosas são investidas na região pelas pessoas jurídicas legalmente estabelecidas no Brasil. (CASALDÁLIGA, 1971, p. 09)

As especificidades apresentadas por Casaldáliga em relação ao Nordeste de Mato Grosso, onde está situada a prelazia de São Félix do Araguaia, não ficam restritas àquela região

370

do estado, o Noroeste Mato-grossense foi objeto de pesquisas que apresentam relações com o território em que ocorreu a atuação de Dom Pedro. Ao estudar o município de Juína, tratando do projeto de colonização do município, analisando os mecanismos de exclusão, os veículos de propaganda que estimularam a ida de migrantes para aquela região, bem como os incentivos governamentais que culminaram em uma série de irregularidades, Joanoni Neto 13 nos apresenta, pautado na documentação consultada, inúmeras denúncias de irregularidades por parte

do

INCRA (Instituto de Colonização e Reforma Agrária), “(...) em São José do Povo foram liberados R$165.000,00 para a construção de 15 Km de estradas e dois poços artesiano. Nada foi feito. Há uma placa indicando a construção de um único poço no valor de R$320.00,00, que não foi construído.” (JOANONI NETO, 2007, p.25). Problemáticas como as apontadas pelo autor, parecem fazer parte de um quadro geral na de ocupação territorial de Mato Grosso pós 1970, questões pertinentes a má gestão do dinheiro público, além de outras referentes à ocupação da terra que neste contexto, tornou-se capitalizada e acabaram se constituindo em espaços para produção em larga escala, por meio do agronegócio, e em muitos casos, transformou-se em reserva de valor, terras para especulação, momento este em que deixou de ser terra de trabalho e se constituiu em terra de negócio. A ação do Estado como financiador das grandes propriedades rurais foi tratada por Souza (2008)14 em estudo intitulado “História de Sinop: sociedade imobiliária Noroeste do Paraná”, um dos vários textos que vieram a compor o livro” Mato Grosso: do sonho à utopia da terra”, organizado por Barrozo (2008). Neste estudo Souza aponta que: A expansão das empresas capitalistas na Amazônia (latifundiários, fazendeiros e empresários), a partir de 1974, exerceu enorme pressão sobre os órgãos federais responsáveis pela política agrária brasileira. Entre estes destacavam-se a Superintendência para o Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), o Banco da Amazônia (BASA), a Fundação Nacional do índio (FUNAI), o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e outros. Esses órgãos atuaram no sentido de propiciar as condições de expansão do capital na região. O INCRA, ‘aprovando’ os projetos fundiários; a FUNAI, deslocando grupos indígenas de uma área para outra,. A SUDAM analisava e aprovava os projetos, liberando crédito e incentivos fiscais através do BASA e Banco do Brasil, para os projetos privados e para os programas governamentais na Amazônia. (SOUZA, in: BARROZO, 2008, P.27-28)

No livro “Incertezas no Araguaia: a enxada enfrenta o trator”, Barrozo (2007)15 aponta as concepções diferenciadas do espaço que constitui a partir dos financiamentos citados: [...] de um lado estão os empresários que se apropriaram da terra com fins especulativos mantendo grandes áreas como reserva de valor (...). De outro lado, os produtores familiares (posseiros), para os quais a terra é um meio de reprodução da agricultura camponesa. Na sua concepção a terra é para viver e trabalhar. (BARROZO, 2007, p, 37).

371

A formação territorial de Mato Grosso deve ser entendida por meio de sua relação com as políticas públicas que configuraram o campo a partir de 1970. As pequenas propriedades que não tiveram acesso aos incentivos da política agrícola não ficaram sem condições de se manter, devido a discriminação creditícia, principalmente as que foram minifundizadas devido à exploração do capital mercantil, e foram incorporadas às propriedades maiores, visto que os grandes proprietários se beneficiaram com estímulos governamentais. No período posterior a 1970, o Estado que já havia promovido a distribuição de terras, nas colonizações públicas nas décadas de 1940 e 1950 do século XX, promoveu

a

“modernização do campo” e incentivou a produção resultante das grandes propriedades tais como soja e cana-de-açúcar. Nesse contexto foi criado o Proálcool, definido em 1975, e acelerado a partir de julho de 1979, com a garantia da produção de álcool para suprir a deficiência dos derivados do petróleo. A agricultura, naquele momento era vista pelas autoridades governamentais, como a solução da crise econômica, e desta forma, se fazia necessário aumentar a produção

de

alimentos, com o objetivo de combater a crescente inflação, aumentar a produção exportável (soja) para amortizar a dívida externa e aumentar a produção de agro energéticos (cana-deaçúcar) para se efetuar uma substituição parcial do petróleo importado . A crise do petróleo do final de 1973, levou ao aumento exorbitante do preço deste produto. O Proálcool foi criado nesse contexto, a partir da intenção de substituir as importações, e como resultado das políticas adotadas, visando driblar a crise foram tomadas medidas, noticiadas nos jornais que circulavam pelo estado durante o período. Acerca da utilização de álcool em motores de carros, ainda no ano de 1978, investia-se em propagandas que valorizaram o investimento em biocombustível, sobretudo daqueles derivados do cultivo da

cana-de-açúcar.

Segundo o jornal Folha de Rondonópolis,16 [...] já passamos da fase da mistura para o uso exclusivo do álcool etílico. São 500 veículos testados há quase um ano nas mais diferentes condições de trânsito, de utilização ou de forma de condução. E os resultados são estes: mesmo desempenho dos motores a gasolina; mesma potência; e no mínimo mesmo consumo dos motores a gasolina. (FOLHA DE RONDONÓPOLIS, 1978, p. 9).

Ainda em 1979, jornais noticiavam a mistura de álcool como uma alternativa energética, considerando a adesão da imprensa escrita ao Proálcool a reportagem publicada no jornal Correio do Estado17, é bastante elucidativa:

372

Segundo uma fonte do primeiro escalão do governo, o Centro Tecnológico da Aeronáutica aprovou a mistura de 25% de álcool na gasolina, assim como as novas misturas de gasolina com óleo diesel e de óleo diesel com óleo combustível. (CORREIO DO ESTADO, 1979, p.7)

Também em 1979, foi notícia, a falta de óleo diesel nos postos de combustível, Cuiabá- Informação circulava ontem nesta capital, partindo de motorista que utilizam a rodovia Cuiabá-Porto Velho, dando conta que cerca de mil veículos estavam paralisados naquela rodovia, por falta de óleo diesel. Essa situação era prevista há cerca de um mês, com a redução das quotas de óleo diesel para o Estado de Mato Grosso. ( CORREIO DO ESTADO, 1979, p. 3).

Entretanto, o investimento do governo via Proálcool, não atingiu de forma homogênea todas as regiões do país como assegura Carrijo e Carvalho (2007)18: (...) o PROÁLCOOL contribuiu para consolidar a hegemonia do Sudeste no cenário nacional, mais especificamente do estado de São Paulo, em detrimento de outras regiões. Dos projetos enquadrados no PROÁLCOOL até 1984, 60,1% pertenciam à região Sudeste, 19,3 à região Nordeste, 12,3% ao Centro-Oeste, 7,3 ao Sul e 1,1 ao Norte.

Os debates em torno dos efeitos positivos e negativos do Proálcool são intensos, o maior argumento utilizado pelos idealizadores do programa, era a geração de emprego, portanto, ressaltava-se os aspectos sociais para além dos econômicos que adviriam com a implantação do programa. Em estudo intitulado “A produção de álcool: do Proálcool ao contexto atual”, Carrijo e Carvalho (2007), analisaram as opiniões de diversos autores acerca da problemática de geração de emprego durante o período áureo do Proálcool, os autores ressaltam nas interpretações que o programa teve alta capacidade de geração de empregos, porém trouxe como efeitos ao mercado de trabalho agrícola a sazonalidade do emprego na cultura de cana-de-açúcar, com concentração de trabalho na fase de colheita, e com outro agravante que diz respeito a grande desvantagem de flutuação da renda familiar, além da necessidade de migração durante o ano. Isso aliado a precárias condições de habitações e de reprodução dos trabalhadores, com dificuldade ainda de frequentar escolas dentre outras problemática. O problema maior que se colocou aos “benefícios” resultantes do Proálcool foi que estes foram aplicados para a satisfação de poucos, para tanto o governo concedeu créditos subsidiados, para serem investidos em infra estrutura e para a produção de cana-de-açúcar, que ao exigir terras férteis para sua produção acabou tomando o lugar de produtos que poderiam ser destinados à alimentação da população brasileira, e dentre outros motivos esse pode ser apontado como um dos que contribuiu para que esse tipo de cultura perdesse espaço agrário nas melhores

373

terras. O resultado foi a elevação do custo de vida tornando cada vez mais penosa a sobrevivência do trabalhador. Essa situação foi apontada por Magalhães et al19 (1991) que, utilizando-se de dados do IBGE, demonstraram que a área colhida com culturas alimentares, entre 1960-85, aumentou, em termos percentuais, praticamente iguais ao incremento da população, que foi de 93%. Porém os resultados para as culturas energéticas foram bem mais substanciais, apresentando incremento de 123%. A expansão da agropecuária em Mato Grosso, teve como protagonista a grande propriedade rural que pôde contar com os projetos da política agrícola, concedendo incentivo fiscal e crédito rural. Tarsitano20 (1990), realizou um estudo acerca dos estados de Mato Grosso do Sul e de Mato Grosso, apontando que entre os anos de 1970 e 1985, houve uma redução no número de estabelecimentos rurais, enquanto a área ocupada apresentou crescimento contínuo. Para Tarsitano, No estado de Mato Grosso do Sul, as áreas ocupadas com o cultivo da arroz sofreram acentuada redução, no seu lugar se implantou a soja, que a partir de 1980 se tornou o principal produto de exportação do estado. (...) Todas as microrregiões destes dois estados apresentaram um grau de modernização da agricultura, nas regiões em que foi maior o emprego do uso de tratores e onde houve maior utilização de força mecânica nos trabalhos agrários, o uso da mãode-obra dos trabalhadores decresceu. (TARSITANO, 1990).

Constata-se aí uma mudança no perfil da agricultura e da pecuária que resultou em alto grau de concentração da terra e de renda. Neste contexto coube aos trabalhadores um caminho que os deixou às margens da cultura econômica da sociedade contemporânea, que ao privilegiar uma minoria relega a maioria à exclusão, onde não lhe resta trabalho, a não ser nos períodos de maior exigência de mão-de-obra (colheita), sendo que este trabalho é oferecido sazonalmente e não possibilita ao trabalhador a manutenção sequer de sua subsistência e de sua família, “(...) É nessa situação que o bóia-fria, o cortador de cana, é levado a exaurir diariamente as suas forças (e, muitas vezes, as de membros da sua família: mulheres, velhos, menores, doentes etc.) a fim de garantir um quantum de trabalho necessário à reprodução da sua família.” (IANNI, 2004, p.80)21.

1

VOLPATO, Luiza Rios Ricci. A conquista da terra no universo da pobreza. São Paulo: Hucitec, 1987. 2 GARCIA, Romyr Conde. Mato Grosso (1800-1840): crise e estagnação do projeto colonial. Tese de doutorado. São Paulo: USP, 2003. (mimeo). 3

VOLPATO, Luiza Rios Ricci. Idem.

374

4

CORRÊA, Valmir Batista. Coronéis e Banido em Mato Grosso (1889-1930).2.ed. Campo Grande-MS: EdUFMS, 2006. 5 BORGES, Fernando Tadeu de Miranda. Esperando o Trem: sonhos e esperanças de Cuiabá. São Paulo: Scortecci, 2005. 6

BORGES, Fernando Tadeu de Miranda. Idem. NASCIMENTO, Flávio Antônio da Silva. Aceleração Temporal na Fronteira:estudo do caso de Rondonópolis-MT. Tese de doutorado, São Paulo: História/FFSCH/USP, 1997. Mimeo. 88 LENHARO, Alcir. Crise e mudança na frente de colonização. Cuiabá-MT: NDIHRUFMT, 1982 9 LENHARO, Alcir. A terra para quem nela não trabalha.Vol. 5, n. 12, 1986. 10 Progresso nas regiões de fronteira. A República. Campo Grande – MS, Ano I, 02/08/1931, n. 03, p.2. 7

11

LENHARO, Alcir. Op.Cit. CASALDÁLIGA, Pedro. Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social. Carta Pastoral. São Félix do Araguaia, 1971. 12

13

JOANONI NETO, Vitale. Fronteiras da Crença: ocupação do Norte de Mato Grosso após 1970. Cuiabá: EdUFMT, 2007. 14 SOUZA, Edson Antonio de. História de Sinop: sociedade imobiliária Noroeste do Paraná. In: BARROZO, João Carlos (Org.). Mato Grosso. Do sonho a utopia da terra. Cuiabá: EdUFMT/Carlini Caniato, 2008. 15

BARROZO, João Carlos. Op. Cit. 500 veículos andam apenas com álcool. Folha de Rondonópolis. Rondonópolis-MT, ano III, 04/06/1978, n. 207, p.09. 17 Gasolina vai ter 25% de mistura de álcool. Correio do Estado. Campo Grande-MS, ano XXVI, 09/07/1976, n. 7888, p.7. 16

18

CARRIJO, Ed Licys de Oliveira; CARVALHO, Simone Pereira de. A produção de álcool: do Proálcool ao contexto atual. Revista da Sociedade Brasileira de Economia, Administração e Sociologia Rural. Londrina, 2007. 19

MAGALHÃES, J.P. de A., KUPERMAN, N., MACHADO, R.C. Proálcool: uma avaliação global. Rio de Janeiro: ASTEL, 1991. 20 TARSITANO, Maria Aparecida Anselmo. Análise da agricultura mato-grossense 19701985: modernização, desconcentração da terra e mão-de-obra. São Paulo: EAESP/FGV, 1990. (Tese de Doutorado). Mimeo. 21 IANNI, Octavio. Origens agrárias do Estado brasileiro. São Paulo: Brasiliense, 2004.

375

A ARTE VAI A LUTA: RESISTENCIA ARTÍSTICA NA ITÁLIA FASCISTA Beatriz Nascimento Teles1 RESUMO O objetivo deste artigo é propor a análise e discussão a respeito da representação da Itália no cinema e na literatura, durante o regime fascista, através das obras do cineasta Luchino Visconti e do escritor Carlo Levi, e identificar de que forma suas obras fizeram resistência ao regime. A partir da análise de tais obras em contraste com a propaganda fascista, feita também através do cinema, em obras como La nave bianca, de Roberto Rossellini, será analisada a diferença entre os discursos. Palavras-chave: Cinema – Fascismo – Itália

ABSTRACT The aim of this paper is to analyze and discuss the representation of Italy in cinema and literature during the fascist regime through the work of the film-maker Luchino Visconti and the writer Carlo Levi, and to establish how these works expressed resistance to the regime. From the analysis about these works in contrast to the fascist propaganda, represented in cinema by films such as La nave bianca, by Roberto Rossellini, we consider the differences between the approaches. Keywords: Cinema – Fascism – Italy

INTRODUÇÃO A arte é importante meio de representação da realidade e enquanto tal pode ser instrumento de resistência na sociedade. Enquanto fonte e objeto de pesquisa, a arte vem sendo abordada no estudo da história desde a escola dos Annales, mas seu lugar foi garantido a partir da defesa da interdisciplinaridade por René Rémond2 e a partir do enfoque dado ao cinema nas obras de Marc Ferro3. Considerando que o conflito na sociedade não se dá apenas entre movimentos sociais e Estado, e sabendo que este último e as instâncias administrativas do governo não são os únicos espaços onde o poder é exercido, acredita-se por isso que a arte é importante instrumento para a resistência. Considerando também que, não só em regimes autoritários, mas de forma especial nestes, a coerção se dá de forma difusa, no sentido em que cada instancia da sociedade é utilizada na propagação de valores morais, o cinema, por exemplo, pode ser um importante meio na representação de formas alternativas de sociedade.

376

Nesse sentido, a literatura e o cinema, assim como o estudo das imagens em geral, quando inseridas no contexto em que foram produzidos e com ciência da importância desse contexto para sua interpretação, podem proporcionar a imersão do estudioso desse tipo de objeto em lugares da história que os documentos escritos não poderiam alcançar. Além disso, também é possível a partir daí recuperar experiências do passado, de uma forma que os documentos escritos não conseguem com tanta eficácia. Obviamente, a análise de imagens também deve ser seguida de seus devidos cuidados e de uma análise conjunta com a historiografia e com os documentos escritos. Imagens são traiçoeiras porque a arte tem suas próprias convenções, segue uma curva de desenvolvimento interno bem como de reação ao mundo exterior. Por outro lado, o testemunho de imagens é essencial para historiadores de mentalidade, porque uma imagem é necessariamente explícita em questões que podem ser mais facilmente evitadas em textos. Imagens podem testemunhar o que não pode ser colocado em palavras4

É nesse sentido que Peter Burke cunha seu conceito das imagens enquanto testemunhas oculares, pois transmitem para a posteridade algo que apenas poderia ter sido visto por quem estava presente no momento do acontecimento. Burke conceitua ainda as imagens subversivas que são definidas mediante sua função de subverter o status quo. Essas imagens e os artistas que as produzem mantem o que Tzvetan Todorov chama de humanismo crítico5. Diante de um século XX trágico, é importante lembrar daqueles que, apesar dos pesares, conseguiram não se paralisar diante da realidade que poderia lhes resignar, mas que, pelo contrário, conseguiram produzir a partir do sofrimento, resistência. Por fim, é importante ressaltar que o estudo da política e das relações de poder respondem em grande parte a um anseio de respostas por parte do historiador ou do cientista politico, e mesmo da sociedade de forma geral. Entender como se dão no presente as relações de poder, no caso da história do tempo presente, ou como se deram no passado, além da tentativa de estabelecer continuidades ou tentar explicar o presente a partir do passado, atendem também a questionamentos sobre aquilo que não conseguimos entender e, consequentemente, nos angustia. Nesse sentido, recorrer a outros campos do conhecimento, como psicologia, ciências sociais e a arte, por parte do historiador é valioso, na busca de respostas. No caso específico do estudo do regime fascista na Itália, que é a que se refere a pesquisa em questão, ainda em andamento, a pergunta a ser respondida é: quais ferramentas foram utilizadas pelo regime para que a sujeição da sociedade italiana fosse possível? Que

377

contexto foi necessário também para que tal situação ocorresse? E finalmente como algumas dessas mesmas ferramentas foram utilizadas por quem tentava resistir? No tópico a seguir será feita uma breve contextualização histórica do período entre 1922 e 1945 na Itália no que diz respeito ao regime fascista sob a liderança do Duce Benito Mussolini. Serão pontuadas as principais questões levantadas pela propaganda fascista italiana através dos jornais, principalmente Corriere della sera e Il popolo d’Italia, e do cinema. E por fim serão analisadas as principais características das obras cinematográficas de Luchino Visconti no cinema e do livro Cristo si è fermato a Eboli, de Carlo Levi, em contraste com a propaganda do regime.

BREVE CONTEXTO HISTÓRICO O período a ser contextualizado brevemente nesse artigo vai de 1922 a 1945, na Itália. A escolha do período abordado se justifica pelo início e fim da existência de um regime fascista, sobre o qual falaremos a seguir, sendo então importante para a pesquisa entender o processo de como o regime se iniciou, se consolidou e como agia no campo das ideias. Por outro lado, a pesquisa ainda em andamento tem como foco o período de 1935 a 1945, porque as fontes analisadas foram idealizadas e criadas nesse período. Aquele momento da história italiana é marcado, no contexto político, pela presença do regime fascista de partido único, o Partido Nacional Fascista, com Benito Mussolini como líder do partido (Duce) e chefe de Estado desde outubro de 1922. Nesse ano aconteceu a Marcha sobre Roma e o rei Vittorio Emmanule III nomeou Mussolini a Primeiro Ministro, que então liderava o partido mais forte do país, força que se traduzia já no início em violência contra seus opositores. No contexto europeu a partir da Marcha sobre Roma de Mussolini, até o início da Segunda Guerra Mundial, dá-se uma retirada em massa das instituições políticas liberais. Após Adolf Hitler se tornar chanceler da Alemanha, em 1933, a tendência antidemocrática se acelerou. A ameaça aos governos liberais e democráticos vinha da extrema direita. Diante da crise do sistema político liberal, da incapacidade dos governos democráticos de solucionarem os problemas advindos da guerra, e do crescimento da esquerda, a extrema direita apontou soluções para os problemas de uma sociedade movida pelo medo. Os acontecimentos que culminaram nos regimes fascistas do século XX foram continuação de uma política que já estava sendo desenhada anteriormente, sendo que no final do século XIX “aconteceram os primeiros sinais de uma ‘política num novo tom’, com a 378

“criação dos primeiros movimentos populares voltados para a reafirmação da primazia da nação sobre todas as formas de internacionalismo ou de cosmopolitismo”6. Vários são os motivos, de forma ampla, para a criação, no momento histórico em questão, de uma conjuntura política e social propícia para o advento de movimentos e governos tirânicos, ditatoriais ou totalitários. Eric Hobsbawn aponta o colapso dos velhos regimes como um dos principais fatores para a crise do liberalismo (1995). Regimes fascistas se instalaram onde os governos estavam fracos demais, onde o maquinário de poder não mais funcionava. A insatisfação com as determinações dos tratados pós-guerra levou um sentimento de vitimização a alguns países da Europa, dentre eles Itália e Alemanha. Juntaram-se a isso questões que já vinham germinando desde o fim do século XIX como a descrença na liberdade individual, na razão e no progresso, aliados ao nacionalismo, racismo e um elogio à violência7. Além disso, alguns dos que participaram da Primeira Guerra tinham a certeza de que justo seria se eles próprios governassem, já que eles lutaram por seu país e não aqueles que os mandaram para a frente de batalha. Essa era a certeza de Mussolini que afirmou, durante a reunião inaugural dos Fasci di Combattimento, associação que antecedeu a fundação do Partido Fascista, que “o direito à sucessão política pertence a nós, porque fomos nós que empurramos o país para a guerra e o levamos à vitória”8, se referindo aos ex-combatentes italianos da Primeira Guerra. Além disso, o medo foi um importante ingrediente para o desespero dessas populações que procuraram soluções extremas através de movimentos extremistas. O medo da decadência, através do seu próprio comodismo, o medo de inimigos externos e internos, principalmente através do comunismo, mas também do modo de vida burguês, e o medo do fim da comunidade, através do individualismo social e econômico. A imigração foi outro fator que gerou medo, mas também ódio, estampado através da xenofobia e do racismo. Na tentativa de tentar entender o tipo de relação que se estabeleceu na Itália entre sociedade, Estado e partido, podemos recorrer a Pierre Bourdieu quando levanta a questão da problemática da representação política e, mais especificamente, da censura que o campo politico exerce sobre esse universo. Este, no caso, é limitado a tal ponto ao universo dos profissionais da política, que as suas formas de percepção e de expressão são limitadas ao campo político. É nesse sentido que o partido tem importância fundamental nesse jogo, já que, ao invés de fornecer aos seus partidários instrumentos materiais e culturais para a participação na política, lhes dá um programa de pensamento. O risco é que o grupo majoritário de eleitores, numa situação limite como é o caso de regimes totalitários ou

379

autoritários, perca o controle sobre o aparelho político e sua capacidade de ação a partir da atividade intelectual individual seja convertida em passividade ou resignação9. No caso da Itália fascista, a coerção obviamente não se deu apenas por meio das instituições burocráticas do Estado e do Partido. A coerção era exercida desde a indústria até as associações de lazer, da escola à academia de ginástica, estas com um papel central na fabricação dos corpos do novo homem italiano à imagem e semelhança do Duce. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). (...). Se a exploração econômica separa a força e o produto do trabalho, digamos que a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada10.

Além disso, a coerção se dava também através da propaganda da mídia, nos jornais e na rádio, e do cinema, em filmes como La nave bianca, de Roberto Rossellini. Serão pontuadas a seguir as principais questões levantadas pela propaganda nestes meios e de que forma o regime buscava a coesão social através da ideia de pertencimento nacional.

PROPAGANDA E PERTENCIMENTO A ideia de nação na Itália, país que teve sua unificação territorial completa em 1870, quando da anexação de Roma, após o movimento do Risorgimento, foi uma das principais bandeiras de Mussolini. A ideia de nação dava sentido e conforto, ao mesmo tempo que mantinha juntas sob seu teto diferenças culturais, étnicas e também econômicas. A nação é entendida nesta pesquisa como uma comunidade inventada, como produto criado no final do século XVIII de acordo com uma convergência de forças históricas, mas que se tornou modular, de forma que pode ser encaixado em diversos contextos diferentes. É entendido enquanto conceito mais próximo à religião do que a uma ideologia11. Além do regime fascista pretender dar continuidade à unificação italiana, através do discurso da construção do novo homem, fisicamente restaurado, com a primazia da unidade em detrimento do individualismo, o fascismo dava um novo sentido de futuro e presente para os italianos. Mussolini pregava um tipo alternativo de modernidade, com influência do movimento futurista, e um papel de protagonismo da Itália no mundo, através do intervencionismo bélico na Etiópia e Albânia, por exemplo. Além disso, assumiu características de religião laica, integralista e intolerante, que tinha como dogma fundamental o primado da nação12. Esse contexto resultou na vida privada sendo engolida pela esfera pública. Em três palavras, o historiador e cientista político Robert Paxton define a relação fascismo\sociedade

380

em acomodação, entusiasmo e terror. Emilio Gentile acredita no poder religioso do regime, com seus ritos expressos nas comemorações e no poder carismático do líder. A propaganda, nesse sentido, tinha a função de disseminar os valores morais do regime fascista que, pelo menos até o ano de 1943, obteve grande identificação e aceitação de grande parte dos italianos. Esse cenário só começa a ser alterado de forma ampla quando a participação da Itália na Segunda Guerra Mundial estava caminhando para a derrota. Até então a propaganda feita pelos jornais italianos ditava a forma como a população se sentia pertencente ao país, o que pensavam a respeito do resto do mundo, principalmente sobre os países inimigos durante a guerra, e o que pensavam sobre sua própria realidade. Enfim, a propaganda foi uma importante ferramenta de coerção no sentido em que marcava as coordenadas de uma existência coletiva alimentada por uma forma comum de ver a realidade e de se comportar. Nesse sentido, o historiador Pietro Cavallo, professor da Universidade de Salerno, em sua obra Italiani in guerra: sentimenti e immagini dal 1940 al 1945 13, analisa comparativamente como eram as representações simbólicas da guerra nos jornais italianos mais populares, nas correspondências, na Itália e fora dela, no cinema e na rádio. É interessante constatar nesse trabalho como a imprensa repetia as palavras de ordem ditas por Mussolini em seus discursos. Em 10 de junho de 1942, Mussolini anunciava aos italianos em Roma a declaração de guerra à França e Grã-Bretanha, e afirmava que essa luta gigantesca não é mais do que uma fase do desenvolvimento lógico da nossa revolução; é a luta dos povos pobres e de braços numerosos contra os ávidos que detêm ferozmente o monopólio de todas as riquezas e de todo o ouro da terra; é a luta dos povos fecundos e jovens contra os povos estéreis e decadentes; é a luta entre dois séculos e duas ideias14

Nessa passagem estão presentes alguns dos principais valores exaltados por Mussolini durante seu governo e que sempre estiveram presentes intrinsecamente conectados também na propaganda do regime: pobreza, fertilidade e juventude. Algo como uma receita para o sucesso da Itália fascista. Da mesma forma, Aldo Valori, radialista italiano, comentava em seu programa Commenti ai fatti del giorno, em 3 de julho de 1940, que a “modesta estrutura econômica” italiana havia evitado que no país se desenvolvesse uma classe de “burgueses gordos”, como aconteceu na França e Grã-Bretanha, resultando num baixo nível moral nesses

381

países,

enquanto na Itália a sociedade se manteve coesa e unida o suficiente resultando em que “a diferença de gostos, de hábitos, de costumes, entre as várias classes sempre foi mínima” 15. Essa especulação tanto não poderia ser provada quanto poderia ser desmentida diante das diferenças tanto econômicas, quanto culturais, especialmente entre regiões diferentes, tema recorrente nas obras neorrealistas do cinema e da literatura, como mais adiante será demonstrado. Pobreza, juventude e fé, enquanto “coletividade religiosamente sentida”16. Desse conjunto, o slogan da guerra surgia: sangue contra ouro. O sangue dos italianos, então superiores, contra o ouro que França e Grã-Bretanha acumulavam em detrimento do resto do mundo. Para os muitos italianos, essa era uma guerra justa. Era a partir dessa concepção da guerra e desse esquema simbólico que a imprensa sustentava a imagem dos países adversários franceses e ingleses, enquanto estéreis, superficiais, ambiciosos e bárbaros. Imagem que se sustentou pelo menos até 1942, quando, como foi dito anteriormente, o cenário interno e externo à Itália começou a mudar. Mario Appelius, afirmava no jornal “Il popolo d’Italia”, em julho de 1940, que a guerra contra a Inglaterra deveria assumir o caráter de uma verdadeira Cruzada (...). Se mais tarde a humanidade quiser resolver, racionalmente, a questão inglesa, será preciso esterilizar pelo menos 2 milhões de britânicos, que irá reduzir cientificamente o volume de sangue bárbaro que ainda circula nas veias da raça branca17.

Sobre a União Soviética, Luigi Barzini, do jornal Il popolo d’Italia, afirmava em julho de 1941 que a família, “refugio de tradição e de fé”, estava destruída naquela sociedade. E que por essa e outras razões, o povo italiano, enquanto fascistas, não podiam aceitar um país onde a imoralidade tomou forma de governo. Da mesma forma, a partir desse esquema de oposição entre civilidade/barbaridade, pobreza/riqueza, sangue e ouro, a propaganda sustentava a imagem dos italianos sobre si mesmos. Diante da escassez de armas e ferramentas para os soldados no front, a propaganda colocava em destaque justamente a inferioridade dos meios e recursos para exaltar os valores, a inteligência, o ardor, a capacidade de resistir e de sofrer. No filme La nave bianca, produção de 1941, dirigida por Roberto Rossellini, a última cena mostra um grupo de soldados que se recuperam num navio hospital, após serem feridos durante uma batalha naval. Quando o navio que estavam quando foram atingidos volta a ancorar no porto, onde estavam então, todos os soldados, mesmo imobilizados, se levantam com o intuito de ver o navio passar, como prova de superação e dedicação, os principais valores, afinal, que um soldado italiano deveria carregar.

382

Apesar da importância evidente da propaganda para o regime fascista italiano, ela não poderia ser onipotente. Para um amplo acolhimento das palavras do emitente, os ouvintes devem se identificar com aquilo que é dito. E essa relação entre emissão e recepção deixou de ser amplamente harmônica quando a realidade vivida pelos italianos no cotidiano divergia em grande medida daquela realidade informada pela imprensa. Após uma série de bombardeios aéreos em Torino, em fevereiro de 1943, um cabo da polícia escrevia em carta, referindo-se à rádio como “o papagaio”, Meu caro irmão, você ouviu na rádio o que aconteceu enquanto estávamos na casa daquele brigadeiro, que Torino era bombardeada, que foram os ingleses, e também dessa vez fizeram danos graves mesmo nas vilas vizinhas da cidade com vários mortos e feridos, não como diz o papagaio, poucas vítimas, poucos danos18.

Além da descrença da vitória na guerra, em cartas se percebe a crescente denúncia a respeito da falta de bens básicos para a sobrevivência, como alimentos, remédios e roupas, devido ao racionamento feito pelo governo, devido à incapacidade deste de controlar a chegada desses bens para todos italianos, independente da região e da classe social, e devido a isso, o crescimento do mercado negro, realizado, especialmente em Napoli e na Sicília, pela máfia Camorra. Sobre isso, em carta enviada de Agrigento, na Sicília, um homem dizia que ali “só a camorra, nesta feia Sicília, só ladrões e porcos e falsos e camorra, em tudo uma vergonha” 19. Sobre a situação na Sicília, uma carta enviada a Mussolini pela sua filha Edda, é esclarecedora: Aqui, além da desordem e do bombardeamento, tem a fome, verdadeira, crônica há meses. Penso que seja hora de encontrar um remédio para isso, de considerar a Sicília e especialmente as áreas afetadas, como terras de terremoto nas quais não sobrou nada (...). Eu estive na Albânia e na Rússia, nunca vi tanto sofrimento e tanta dor. E eu mesma tenho a impressão de estar em não sei onde, longe, a mil milhas de distância da Pátria e da civilização. Por agora ainda se diz, o Duce não sabe, agora sabe20

Essa situação observada no sul da Itália de forma geral, agravada em grande escala pela guerra, vinha sendo o pano de fundo para as obras neorrealistas do cinema e da literatura que foram produzidas no início dos anos 1940. E é nesse sentido que a análise dessas obras proporciona um material sólido para o estudo da representação que a arte fez dos italianos sob o regime fascista. Nesse sentido, para finalizar esse artigo, serão pontuadas algumas características de duas obras neorrealistas, uma no cinema e uma na literatura, de forma a chamar a atenção e se iniciar a discussão sobre como o discurso dessas obras e de seus criadores se colocava na contramão da propaganda fascista, representando resistência enquanto denunciavam uma realidade de pobreza, menos nobre do que aquela sobre a qual Mussolini discursava e parecia

383

se orgulhar. Realidade essa que se agravou, com a guerra, o suficiente para que a propaganda não mais se sustentasse.

RESISTENCIA ARTISTICA NA ITÁLIA FASCISTA O neorrealismo italiano, movimento artístico que surgiu na década de 1940, tanto no cinema como na literatura, teve a importância de mostrar uma realidade social conflituosa, de mostrar os mais recônditos lugares da Itália, afinal, de mostrar uma realidade não de unidade nacional, mas de diversidade cultural e econômica. E nesse sentido foi subversivo, tinha significado diferente do esperado, questionava o status quo. Dois dos expoentes desse estilo e desse movimento, que inovava afinal na estética mas também no discurso, foram Luchino Visconti e Carlo Levi, aquele é considerado um dos fundadores do neorrealismo no cinema. Luchino Visconti, nascido em 2 de novembro de 1906 em Milão, pertencia a uma família rica da Lombardia. Em 1936, vivendo em Paris, trabalhou com Jean Renoir, quando foi introduzido no ambiente cinematográfico. Em 1940, de volta à Itália, se junta à revista Cinema, juntamente com Vittorio De Sicca, Roberto Rossellini, Giuseppe De Santis e Michelangelo Antonioni. Ligou-se ao Partido Comunista Italiano logo que voltou da França, o que acabou lhe rendendo a prisão por 3 meses em 1943. Seu primeiro filme, Ossessione, de 1942, inovou tanto na linguagem quanto na estética, introduzindo então alguns dos principais elementos do neorrealismo cinematográfico, mesclou atores profissionais e amadores, filmou em ambientes abertos. Carlo Levi, nascido também em 1902, em Torino, era pintor, médico e escritor, pertencia a uma família de classe média alta. Em 1931 se une ao grupo antifascista Giustizia e libertà, fundado 3 anos antes por Carlo Rosselli. Por suspeito de envolvimento em atividades políticas antifascistas, em março de 1934, Carlo Levi foi preso. Em 15 de maio de 1935 foi preso uma segunda vez, sendo assim condenado ao confinamento na região da Basilicata, primeiro em Grassano, depois em Aliano, até ser liberto em 1936, quando vai para França. Dessa experiência, Carlo Levi escreve a obra Cristo si è fermato a Eboli, onde descreve a vida vivida pelos camponeses das vilas onde pagou sua pena. Nas duas obras, tanto de Carlo Levi quanto de Luchino Visconti, o que se percebe é uma análise alternativa da realidade social. Em Cristo si è fermato a Eboli, as queixas que se tornaram amplamente disseminadas a respeito da fome e da falta de bens básicos para vida das pessoas durante a guerra, já estavam presentes, porém o tipo de abandono ao qual os

384

camponeses de Aliano estavam sujeitos tinha o efeito paralisador da resignação e da indiferença com um governo que, não importa quem fosse seu líder, nunca esteve ali.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A proposta desde artigo foi pontuar algumas características da propaganda fascista italiana de forma a delinear qual era o seu papel no regime, tanto dos jornais, quanto da rádio e do cinema de propaganda. A partir disso, serão analisadas futuramente na pesquisa ainda em andamento algumas características das obras neorrealista no geral, de duas obras específicas e apontadas algumas questões da vida de seus criadores, de forma a evidenciar as diferenças de abordagem entre propaganda e obra de arte, nesse caso específico. A pesquisa em questão parte dos pressupostos teóricos propostos por Marc Ferro, segundo o qual o filme é uma contra-análise da sociedade, e Peter Burke, segundo o qual é fundamental a análise das fontes imagéticas e da literatura no contexto em que foram produzidas. Foi o objetivo então apresentar algumas questões iniciais da pesquisa que está sendo realizada.

NOTAS: 1

Mestranda do programa de pós-graduação em História Social das Relações Políticas da Universidade

Federal do Espírito Santo, bolsista pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), orientada pelo professor doutor Geraldo Antônio Soares; e-mail: [email protected] 2

REMOND, R. (orgs.). Por uma história politica. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.

3

FERRO, M. Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

4

BURKE, P. Testemunha Ocular: História e imagem. Bauru: Edusc, 2004, p. 38.

5

TODOROV, T. Memória do mal, tentação do bem: indagações sobre o século XX. São Paulo: Arx,

2002, p. 13. 6

PAXTON, R. O. A anatomia do fascismo. São Paulo: Paz e Terra, 2007. p. 84.

7

Idem, p. 64.

8

Apud, PAXTON, op. cit., p. 58.

9

BOURDIEU, P. A representação política. In: O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1999, p. 166.

10

FOUCAULT, M. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 119.

11

ANDERSON, B. Comunidades imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 30.

12

GENTILE, E. Fascismo: storia e interpretazione. Bari: Laterza, 2008, p.14.

13

CAVALLO, P. Italiani in guerra: sentimenti e immagini dal 1940 al 1943. Bologna: il Muligno, 1997.

14

Idem, p.113.

15

Apud, CAVALLO, op.cit., p. 117.

16

Idem, p. 124.

17

Apud, CAVALLO, op. cit., p. 157.

18

Apud, CAVALLO, op.cit., p.298.

385

19

Apud, CAVALLO, op. cit., p.303.

20

DE FELICE, R. Mussolini: L'alleato: La guerra civile, 1943-1945. Torino: Einaudi, 1990.

386

A Associação Comercial de Pernambuco e os grupos de interesse, 1839 – 1849 Bruna Iglezias Motta Dourado ([email protected]) Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (PPGH/UFF) Orientador: Prof. Dr. Carlos Gabriel Guimarães (PPGH/UFF) O artigo estuda a atuação dos grupos de interesse ligados à Associação Comercial de Pernambuco (ACP). A ACP foi a segunda associação comercial instituída no Brasil, criada por iniciativa dos negociantes de grosso trato que atuavam na praça comercial do Recife. A partir da análise de documentos produzidos pela própria instituição, pretende-se compreender a configuração dos interesses que prevaleceram nos primeiros tempos da entidade, assim como as relações existentes entre a instituição e o poder político provincial e central. Palavras-chave: Associação Comercial de Pernambuco; grupos de interesse; negociantes de grosso trato. The article examines the role of interest groups linked to the Commercial Association of Pernambuco (ACP). The ACP was the second trade association established in Brazil, created on the initiative of businessmen who worked in the commercial center of Recife. From the analysis of documents produced by the institution itself, the aim is to understand the configuration of interests that prevailed in the first entity of the times as well as the relationship between the institution and the provincial and central political power. Key-words: Associação Comercial de Pernambuco; interest groups; businessmen.

1. Grupos de interesse no Brasil Oitocentista: conceptualização e organização Na obra Economia e Sociedade, Max Weber afirma que a ação econômica é uma ação econômica social, uma vez que o comportamento humano é orientado por interesses ideais e materiais, que não são desassociados, mas que impulsionam as ações individuais e coletivas. Para esse autor, as relações sociais que formam a totalidade socia “baseiamse no ajustamento de interesses por motivos racionais (de caráter axiológico ou teleológico), ou também numa união de interesses por motivos idênticos”. 1 Desse modo, na perspectiva weberiana ligada à sociologia das organizações, o conceito de grupo de interesses refere-se aos interesses emergentes num grupo de indivíduos que se organizam e atuam com o objetivo de obterem vantagens e benefícios de acordo com a natureza do grupo. Os grupos de interesse podem ser profissionais, econômicos, religiosos ou vinculados a qualquer outra função social. Para o referido autor, a especialização das estruturas de mercado e da economia mercantil, orientada a partir da intensificação das trocas econômicas em larga escala, assim como a separação definitiva entre o comércio atacadista e varejista, foram fatores determinantes para a diferenciação entre os grupos de interesses,

387

principalmente

econômicos, tipo mais importante da influência recíproca da ação dos indivíduos pela situação de interesse, tal como ela é característica da economia moderna. 2 No século XIX, os grupos de interesse econômico organizaram-se em torno de associações comerciais nas principais praças de comércio do Brasil, para, através destas instituições, ampliarem sua capacidade de influência em relação a outros grupos de interesse. Tal afirmação pode ser inferida pelo conteúdo de um ofício remetido pela Associação Comercial de Pernambuco à Câmara de Comércio do Rio de Janeiro, duas das principais associações comerciais brasileiras no período. O oficio encaminhado ao secretário da Câmara de Comércio do Rio de Janeiro comunicava: A vossa senhoria a instalação, nesta praça, de uma sociedade que tem por título Associação Comercial de Pernambuco, tendo por fim organizar o Corpo de Comercio desta Praça para melhor indagar os seus interesses [...], leva esta nossa participação ao conhecimento de Câmara Comercial de quem esperamos toda a cooperação nos nossos trabalhos e rogamos a Vossa Senhoria que haja a nos transmitir qualquer informação ou notícia que sejam de interesse geral do Comércio. 3(grifos meus)

O conteúdo do documento manifesta a intencionalidade presente no ato de criação da referida instituição, que teria por fim organizar o Corpo de Comércio desta Praça para melhor indagar os seus interesses. A questão da necessidade de reconhecimento por parte de outros grupos de interesses mercantis organizados no país foi também evidenciada pela leitura do fragmento documental, uma vez que nele está explícita a intenção da Associação Comercial de Pernambuco de ter o reconhecimento e a cooperação nas trocas de informação ou notícia que sejam de interesse geral do Comércio, em relação à Câmara de Comércio do Rio de Janeiro.4 A criação das praças comerciais, nos espaços atlânticos de colonização ibérica, pode ser considerada uma típica manifestação da tradição corporativa no período colonial.5 Tal corporativismo emanava, por sua vez, da premissa de que a totalidade social se organizava como um corpo político. 6 Como poder ser lido no Dicionario Universal de Commercio de Alberto Salles (1813), em seu verbete corpo, é elaborada uma definição do termo a partir de sua relação com o comércio: Companhia ou sociedade de muitas pessoas da mesma profissão ou de diferentes profissões. Na sociedade civil há várias espécies de corpos instituídos para a conservação, o adiantamento, ou a execução das respectivas cousas que fazem o objeto da sua ereção. 7

A definição acima realça o caráter corporativo da organização social nos Estados modernos europeus, uma vez que na sociedade civil há várias espécies de corpos instituídos, sendo estes últimos, formas de companhias ou sociedades de muitas pessoas da mesma profissão ou de diferentes profissões. Há ainda uma intenção, ou funcionalidade, que perpassa o sentido semântico do referido vocábulo, visto que seriam 388

os corpos instituídos para a conservação, o adiantamento, ou a execução das respectivas cousas que fazem. Os grupos de interesse mercantil congregavam em suas pautas reivindicatórias, algumas questões que não se relacionavam diretamente com suas prerrogativas sócio profissionais. Surpreendentemente, ao longo do século XIX, “havia poucos grupos de interesse que representassem diretamente a atividade econômica mais elementar desenvolvida no Brasil, a agricultura”.8 Por conseguinte, através das associações comerciais locais, os grupos de interesse econômico eram porta-vozes dos anseios que predominavam nos complexos agrário-comerciais.9 Tais associações, ligadas aos grupos de interesse econômico das mais importantes praças comerciais, amparadas pelo caráter institucional do qual estas entidades usufruíam, agiram “como intermediárias nas relações entre os diversos grupos de interesse econômico e as autoridades políticas imperiais”. 10

2. A Associação Comercial de Pernambuco e os primeiros tempos da entidade (1839 – 1849) No dia dezoito de junho de 1839 foram dados os primeiros passos concretos para o estabelecimento de uma associação comercial em Pernambuco. Entre os seus fundadores, ao todo, contava-se cerca de vinte e seis pessoas; José Ramos de Oliveira, João Pinto de Lemos, Bento José Alves, Manoel Alves Guerra, Gaudino Agostinho de Barros, Nuno Maria de Seixas, Joaquim José de Amorim, João Vieira Lima, José Jeronymo Monteiro, E. Comber, Jacob Herlich. S. Berry, A. S. Colbert, A. Hibbert, S.Schram, João Matheus, F. Saunders, Duprat, Miguel de O. Fenton, Luttreus, J. M. Gun, H. Christophers, José Lazary, G. T. Snow, Luís Gomes Ferreira & Mansfield.11

Reunidos no estabelecimento mercantil dos dois últimos negociantes, na praça de Comércio do Recife, o grupo acima destacado foi constituído, majoritariamente, por estrangeiros, muitos lusitanos, ingleses, norte americanos e franceses. Na ocasião em que se reuniram para firmarem tal compromisso, um dos negociantes, G. T. Snow, negociante norte-americano, tomou a iniciativa de propor que fossem eleitos presidente e secretário na sessão preparatória para a criação da entidade, sendo eleitos, respectivamente, José Ramos de Oliveira e José Jeronymo Monteiro. 12 Além do presidente e secretário, os convenentes escolheram uma diretoria composta por cinco membros, destacados no quadro 1, que ficou encarregada da redação dos estatutos. Assim, a instituição apresentou, desde os primeiros tempos de sua formação, uma organização fortemente hierarquizada, na qual a gestão era resguardada a um grupo restrito de indivíduos – notadamente, os membros de sua diretoria.13 389

QUADRO 1 - Membros da diretoria da associação comercial de Pernambuco (1839-1846). CARGO

Presidente

NOME (PESSOA FÍSICA OU JURÍDICA José Ramos de Oliveira

ENDEREÇO COMERCIAL

ATIVIDADES

Rua da Velha

- Negociante grosso trato - Presidente Associação - Negociante grosso trato

de

de

Portugal, naturalizado

- Negociante grosso trato

de

Brasil

- Negociante grosso trato

de

Brasil

Cadeia

Vicepresidente

João Pinto de Lemos

Rua do Torres

Secretário

José Jeronymo Monteiro

Rua do Trapiche

Diretores

Bento Alves

José

NATURALIDADES

Brasil

da

Gaudino Agostinho de Barros Harrison Lathan & .Hilbbert

Atrás do Corpo Santo

- Negociante grosso trato

de

Portugal, naturalizado

Rua da Alfândega

- Negociante grosso trato

de

Inglaterra

Jacob Herlich

Rua da Cruz

- Negociante grosso trato

de

Prússia

Brasileiro

Brasileiro

- Negociante de Estados Unidos grosso trato dos Cônsul Estados Unidos Fonte: ACP. Atas das Sessões da Diretoria, 1839-1851, f.2-6; IAHGP. Fundo Inventários: João Pinto de Lemos (1871), Bento José Alves (1842); HEMEROTECA BRASILEIRA, Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro, 1844, p. 27; Diario Novo: 08/07/1843, n. 141, p.2; 18/03/1845, n° 74, p.3 G.T. Snow

Rua da Cadeia

No dia vinte quatro de julho de 1839, foram discutidos e aprovados os estatutos e designou-se o dia 1° de agosto daquele ano para ter lugar a instalação da Associação Comercial de Pernambuco. 14 Na data previamente marcada, numa “casa do Largo do Comércio que foi das Diversas Rendas”,15 reuniram-se os negociantes para a instalação da Associação Comercial de Pernambuco, a segunda associação comercial organizada no Brasil.16 Na reunião mencionada, participaram outros negociantes inclusive aqueles que estiveram presentes nas reuniões preparatórias, os quais decidiram promover uma votação para que fossem eleitos os cargos de presidente, vice-presidente, secretário e tesoureiro da instituição. Para Ridings, de modo geral, o conselho de direção das organizações dos grupos de interesse econômico, no Brasil do século XIX, era “ocupado por capitalistas, banqueiros e industriais”.17 No caso específico dos grupos mercantis representados pelas 390

associações comerciais, esse autor afirmou ainda que “os líderes das casas de comércio exterior foram a espinha dorsal dos conselhos das associações, dando aos grupos de interesse mercantil a feição de instituições oligárquica”. 18 Conforme consta nos Quadro 1 e 2, entre os anos de 1839 a 1849, todos os membros da mesa diretora da Associação Comercial de Pernambuco (ACP) eram negociantes de grosso trato. Essa constatação, verificada a partir da observação dos referidos quadros, reforça o argumento aqui defendido de que os líderes das casas de comércio exterior foram a espinha dorsal dos conselhos das associações.

QUADRO 2 - Membros da diretoria da associação comercial de Pernambuco (ACP) c. 1846-c. 1849. CARGO

NOME (PESSOA FÍSICA OU JURÍDICA) João Pinto de Lemos & Filho

ENDEREÇO COMERCIAL

ATIVIDADES

NATURALIDADE

- Negociante de grosso Portugal, Brasileiro trato naturalizado - Vice-diretor da Cia do Beberibe Manoel Gonçalves da - Negociante de grosso Portugal. ViceRua da Cadeia Brasileiro Silva trato naturalizado Presidente - Caixa da Cia do Beberibe José Jeronymo Rua do Trapiche - Negociante de grosso Brasil Secretário Monteiro trato Gaudino Agostinho de Praça do Corpo - Negociante de grosso Portugal, Brasileiro Diretores Barros Santo trato naturalizado - Cônsul da Rússia Manoel Joaquim Rua da Cadeia - Negociante de grosso Portugal, Brasileiro Ramos e Silva trato naturalizado N. O. Bieber & cia Rua da Cruz - Negociante de grosso Alemanha trato - Vice cônsul de Hamburgo e Áustria Ernesto Schramm Rua do Trapiche - Negociante de grosso Alemanha trato - Cônsul de Hanover e da Sardenha - Negociante de grosso Portugal, Elias Baptista da Silva Rua do Sol Brasileiro trato naturalizado - Cônsul dos Estados Pontifícios - Negociante de grosso James Crabtree & cia Rua da Cruz Inglaterra trato Fonte: ACP. Atas das Sessões da Diretoria, 1839-1851, p.55-56; IAHGPE. Fundo Inventários – Manoel Gonçalves da Silva (1862), João Pinto de Lemos (1871), Manoel Joaquim Ramos e Silva (1877); APEJE. Folhinha de Almanak, 1849. Presidente

Rua do Torres

A força da influência estrangeira nestes espaços ficou demonstrada a partir da verificação das nacionalidades presentes entre os membros das diretorias das mesmas associações.

19

A maior parte dos membros da diretoria da ACP era composta por

indivíduos estrangeiros, ingleses, “alemães” 20, norte-americanos e portugueses.21 No 391

caso dos lusitanos, constatou-se que todos os membros diretores dessa nacionalidade haviam adotado a cidadania brasileira, principalmente no Quadro 2, relativo aos anos de 1846 a 1849, período de forte sentimento antilusitano em todo o país e, principalmente na Província de Pernambuco – palco da Insurreição Praieira. Outrossim, alguns dos membros da diretoria da Associação Comercial de Pernambuco exerciam, simultaneamente, atividades consulares na província, como demonstra, principalmente, o quadro 1.

22

Entre eles, destacam-se no exercício das

referidas atividades os diretores G. T. Snow, cônsul dos Estados Unidos23; Elias Baptista da Silva, cônsul dos Estados Pontifícios24; Gaudino Agostinho de Barros, cônsul da Rússia25, todos negociantes de grosso trato da praça de comércio do Recife. A relação de proximidade existente entre o grupo de interesse mercantil representado pela ACP - e os agentes consulares estabelecidos na província de Pernambuco foi percebida desde a instalação da referida associação, quando alguns agentes que atuavam na cidade do Recife foram convidados para serem membros honorários da ACP, entre eles “os senhores E. Watz, cônsul da Grã-Bretanha, Joshua Goring, vice-cônsul da Grã-Bretanha, Joaquim Baptista Moreira, cônsul de Portugal e Alphonse Barrère, cônsul da França”26. A prática de concessão de honrarias a membros da classe política, como a cessão do título de “membro honorário”, foi um estratagema desenvolvido pelas associações comerciais, a fim de obter meios para conseguir favores das lideranças do governo. Uma das primeiras medidas tomadas pela Associação Comercial de Pernambuco foi o convite dirigido a diversas autoridades locais, para que aceitassem o encômio de sócio honorário da referida associação. Entre essas autoridades, destacam-se os senhores Francisco do Rego Barros, o Conde da Boa Vista27; José Thomas Nabuco de Araújo Filho28, juiz da segunda vara cível da cidade do Recife; João Gonçalves da Silva, inspetor da Tesouraria da Fazenda; Vicente Thomaz Pires de Figueiredo Camargo, inspetor da Alfândega e Miguel Arcanjo Monteiro de Andrade, administrador da Mesa do Consulado de Pernambuco.29 Os membros honorários das associações comerciais brasileiras “simbolized a special relationship of mutual respect and support between the business interest group and the person honored”.30 Ainda nas primeiras sessões promovidas pela diretoria da Associação Comercial de Pernambuco resoluções foram tomadas no sentido de melhor organizar o funcionamento da instituição. Os sócios concordaram que deviam ser contratados os serviços de um advogado, que ficaria responsável pelo auxílio jurídico à instituição.31 Além disso, ficou acertado que a Alfandega de Pernambuco, por meio seus funcionários, 392

forneceria regularmente informações sobre as entradas e saídas de navios do porto do Recife, em relação aos nomes, origens e destinos das embarcações, tempo de viagem, carga e consignatários. 32 Na leitura dos documentos correspondentes aos primeiros anos de existência da associação, percebe-se que havia uma problemática que parecia se sobrepor as demais. Esse era o problema das obras, do movimento e dos serviços relacionados ao porto do Recife. Em setembro de 1841, sua diretoria solicitava que o inspetor da Alfândega elaborasse um projeto a fim de organizar os trabalhos de pilotagem marítima. 33 Foi ainda a Associação Comercial que solicitou ao governo provincial providências para “a realização de obras de drenagem da barra do porto para melhorar as condições dos ancoradouros internos”.34 Para promover melhorias na organização da estrutura portuária da praça de comércio do Recife, a Associação Comercial tomou outras iniciativas com esse mesmo objetivo. Nas atas das sessões dos membros da diretoria, foi relatado que a instituição tratou de traduzir para a língua francesa e britânica o regulamento portuário local. 35 Nesse sentido, a ACP promoveu a fixação dos pontos de desembarque no Cais do Apolo, estrutura adjunta ao Cais do Porto, além de mandar lembrar ao Inspetor da Alfândega “da proibição da passagem de embarcações pela Barreta das Jangadas”. 36 Podemos salientar também que a Associação solicitou ao governo da província de Pernambuco a “abertura do portão da Caldeira-Sul, a fim de tornar mais fácil o desembarque dos viajantes chegados ao Recife”.37 Na década de 1840, em diversas sessões, foram discutidas as tabelas dos fretes de carga e descarga do porto, tendo inclusive, ACP representado um oficio ao presidente da Província reclamando a ausência de armazéns cobertos, o mau estado do Cais da Alfândega e contra o rigor das medidas de quarentena para as embarcações ancoradas no porto. De modo geral, pode-se dizer que parte da preocupação demonstrada pela Associação Comercial de Pernambuco, em relação à estrutura portuária da cidade, referiu-se ao fato de que a maioria dos membros de sua diretoria desempenhavam também atividades comerciais vinculadas ao transporte de produtos e mercadorias pelo Porto do Recife. Os membros da diretoria da ACP participavam também de outros empreendimentos comerciais na província de Pernambuco. De acordo com o quadro 2, os negociantes João Pinto de Lemos & Filho e Manuel Gonçalves da Silva atuaram, respectivamente, como vice-diretor e caixa da Companhia do Beberibe (1838), responsável pelo abastecimento de água da cidade do Recife. 38 Destarte, a atuação dos 393

indivíduos ligados aos grupos de interesses econômicos, além de ter importância nos empreendimentos

comerciais

nacionais,

pode

ser

relacionada

também

ao

desenvolvimento de infraestrutura nas áreas urbanas. 39 A existência de práticas de cooperação no relacionamento entre os membros dos grupos de interesse mercantil, foi ainda uma generalização passível de ser feita. Na documentação da Associação Comercial de Pernambuco, conta-se mais de um caso em que foi encampada a defesa de pautas relacionadas aos interesses agrários, por parte dos membros da associação. Em ofício endereçado ao administrador da Mesa do Consulado da Alfândega de Pernambuco, os diretores da ACP informam sobre a ocorrência de “falsificação nas taras das caixas de açúcar, como também na classificação das qualidades do nosso açúcar”.40 Em outro ofício, dessa vez remetido ao presidente da Província, pedem-se “providências a fim de que não se falsifiquem as taras e as qualidades da caixa de açúcar e da saca de algodão”.41 Ainda há outro ofício, também remetido ao administrador da Mesa do Consulado, no qual: “A Associação Commercial de Pernambuco faz-lhe pedir, a bem de seu direito, que Vossa Senhoria lhe mande passar por certidão a quantidade dos volumes classificados e exportados de caixas, feixos, barricas e sacos de açúcar no ano findouro de 1839-1840, de modo que faça fé”.42

Os interesses defendidos pelo grupo mercantil representado pela ACP eram distintos e, no caso da reivindicação de pautas pertinentes a questões da agricultura, relacionavam-se aos aspectos da circulação e comercialização dos principais produtos de exportação da província pernambucana ao longo do século XIX: o açúcar e o algodão. 43 O comércio de exportação, e principalmente, o que tratava da comercialização de gêneros agrícolas de grande importância para a receita das exportações nacionais, pode ser inserido no bojo dos interesses comuns aos grupos mercantis brasileiros.44 A defesa dos interesses de grupos econômicos específicos encontrou nas pautas de reivindicação das associações comerciais, um canal de acesso ao poder de interferência junto às autoridades políticas. Como foi ressaltado anteriormente, os membros das diretorias das organizações de grupos mercantis gozavam de privilégios de reivindicação não disponíveis aos membros comuns. No caso acima discutido, a Associação Comercial de Pernambuco era utilizada, por um de seus sócios diretores, como espaço de disputa econômica para a defesa de interesses econômicos particular

394

WEBER, Max. “Conceitos sociológicos fundamentais ”. In: Economia e Sociedade. Tradução Artur Morão, 1ª edição, vol.1, Covilhã, LosoSofia Press, 2010, p. 77. 2 WEBER, Max. A gênese do capitalismo moderno. Org: Jessé Souza; tradução Rainer Domschke. São Paulo: Ática, 2006, p.33-37. 3 ACP. Livro de Ofícios (1839-1851), 01/08/1839, f.1v. 4 Sobre a Câmara de Comércio do Rio de Janeiro, que somente em 1867 se tornou na Associação Comercial do Rio de Janeiro, conferir: PIÑERO, Théo L. Os simples comissários (Negociantes e Política no Brasil Império). Niterói, Tese (Doutorado em História), PPGH/UFF, 2002. 5 Eugene. Business interest groups in nineteenth-century Brazil. Cambridge: University Press, 1994, p. 13. 6 LUCENA, Manuel de. Uma leitura americana do corporativismo português. Análise Social, Segunda Série, vol. XVII, n° 66 (1981), (pp. 415-543), p. 423 7 Alberto Jaqueri de. Dicionario Universal de Commercio. Trad. e adaptação manuscrita do Dictionnaire Universel de Commerce, de Jaques Savary des Brulons, tomo II, 1813, p. 220. 8 RIDINGS, op. cit., p. 55, (tradução nossa). Somente no final do século XIX surgem tais grupos na agricultura, como a Sociedade Nacional de Agricultura (SNA). Cf.: MENDONÇA, Sonia Regina de. O ruralismo brasileiro: (1888-1931). São Paulo: Hucitec, 1997. 9 Para Mello (1999), não havia uma clara dicotomia entre os interesses dos grupos mercantis e dos setores agrários, e sim, complexos agrário-comerciais “montados em torno dos principais produtos de exportação”. Cf.: Evaldo Cabral de. O Norte Agrário e o Império (1871-1889). 2.ed. Rio de Janeiro: TOPLIVROS, p. 25. Ainda sobre a temática da indistinção entre os interesses dos setores agrários e mercantis no Brasil Oitocentista, cf. MATTOS. Ilmar R. O Tempo Saquarema, 1. ed. São Paulo: HUCITEC, [Brasília, DF], 1987, p. 57; GUIMARÃES, Carlos Gabriel. A presença inglesa nas Finanças e no Comércio no Brasil Imperial: os casos da Sociedade Bancária Mauá, MacGregor & Co. (1854-1866) e da firma inglesa Samuel Phillips & Co. (1808-1840). São Paulo: Editora Alameda, 2012. p. 64. 10 RIDINGS, op. cit., p. 301, (tradução nossa). 11 ACP. Livro de Atas, Ata da sessão preparatória da Associação Comercial de Pernambuco, 18/06/1839, v.1, f.1. 12 ACP. Livro de Atas, Ata da sessão preparatória da Associação Comercial de Pernambuco, 18/06/1839, v.1, f.1. 13 Sobre a hierarquia existente dentro das associações comerciais brasileiras oitocentistas, cf.: RIDINGS, op. cit., p. 44-46. 14 ACP. Livro de Atas, Ata da sessão preparatória da Associação Comercial de Pernambuco, v.1, f. 3 15 ACP. Livro de Atas (1839-1851), v.1, fl.6 16 RIDINGS, op. cit., p. 11. 17 Ibidem, p. 49, tradução nossa. 18 Ibidem, p. 30, tradução nossa. 19 Indivíduos portugueses, britânicos, franceses e alemães eram particularmente numerosos nos conselhos administrativos das associações comerciais das principais praças de comércio brasileiras. Cf.: RIDINGS, op. cit., p. 36. 20 A respeito dos negociantes alemães no Brasil do século XIX cf. LENZ, Sylvia Ewel. Alemães no Rio de Janeiro (1815-1866). Bauru, SP: EDUSC, 2008. 21 Os portugueses foram os membros mais numerosos nas diretorias das associações comerciais brasileiras ao longo do Oitocentos. O grande contingente de indivíduos portugueses na direção das associações comerciais brasileiras conferiu a elas o . EDWARDS, C. D. Associações Comerciais Brasileiras, in: A Missão Cooke no Brasil, Rio de Janeiro: FGV, 1949, p. 350 apud RIDINGS, op. cit., p. 37 22 Alguns autores ressaltaram que o trabalho consular de negociantes era interessante para o Ministério das Relações Exteriores de várias nações, pois dessa forma dispensavam-se os custos de instalação e manutenção de funcionários de Estado específicos para esse fim. Sobre esse tema, cf. TAKEYA, Denise M. Europa, França e Ceará: origem do capital estrangeiro no Brasil, EDUFRN/HUCITEC, Natal, - RN, 1995; MONTEIRO, Denise M. Casas comerciais Francesas no Brasil e na América Latina: fontes para a pesquisa histórica. América Latina en la História Económica, 5 (9), 1998, pp. 53-63. 23 G. T. Snow atuou como negociante de grosso trato na praça comercial do Recife. Foi tesoureiro da ACP entre 1839 e 1840. Em 1843, foi nomeado cônsul dos Estados Unidos em Pernambuco. Fontes ACP. Atas da Associação Comercial de Pernambuco, Livro I (1839-1851), 01/08/1839 e 03/08/1840; BN, Diario de Pernambuco, 31/03/1843, n. 72, p. 3. 24 O negociante de grosso trato Elias Baptista da Silva atuava na província de Pernambuco desde a década de 1820, quando é mencionado na documentação como consignatário da escuna Feiticeira, empregada no 1

395

comércio atlântico de escravos. Em 1821, esta escuna desembarcou cerca de 220 africanos no litoral pernambucano, embarcados na cidade de Luanda, em Angola. Na década de 1830, o referido negociante é mencionado como eleitor votado pela freguesia de São Pedro do Recife, sendo, ainda neste período proprietário dos brigues Mariana e União. Em 1848, toma posse do cargo de cônsul dos Estados Pontifícios da província de Pernambuco. Fontes: Voyage 40525, Feiticeira (1821), disponível em: http://www.slavevoyages.org/; CRL/UFLAC, Diario de Pernambuco, 12/01/1835, n° 8, p. 2 ;06/02/1835, n° 30, p.4; 05/12/1835, n° 297, p. 4; APEJE, Diversos Cônsules, lv.5, 18/08/1848, fl. 216. 25 O negociante de grosso trato Gaudino Agostinho de Barros aparece como consignatário de diversas embarcações ancoradas no porto do Recife, entre elas as sumacas Palma e Novo Mundo, o patacho Bom Jesus e o brigue Maria Umbelina, alguma delas empregadas na importação de carne seca oriunda das províncias do Sul e da região da Bacia do Prata. Faleceu em 31 de março de 1850 quando atuava como cônsul da Rússia na cidade do Recife. Fontes: CRL/UFLAC, Diario de Pernambuco, 22/07/1835, n° 169, p.4; 02/09/1835, n° 188, p.4; 07/03/1836, n°115, p.4; 18/01/1839, n° 14, p.4; APEJE, Diversos Cônsules, lv.6, 02/04/1850, p.138. 26 ACP. Livro de Ofícios (1839-1851), 01/08/1839, f.1. 27 Na ocasião, Rego Barros exercia o cargo de presidente da província de Pernambuco. Sobre o governo de Francisco do Rego Barros, cf.: A respeito da família Cavalcanti de Albuquerque cf. CADENA, Paulo Henrique Fontes. Ou há de ser Cavalcanti, Ou há de ser cavalgado: trajetórias políticas dos Cavalcanti de Albuquerque (Pernambuco, 1801-1844). Recife. Ed. UFPE, 2014 28 José Thomaz Nabuco de Araújo Filho (1813-1878) acumulou vários cargos em sua trajetória como magistrado e político brasileiro, exercendo a deputação geral na Assembleia Legislativa, foi também ministro da Justiça e senador do Império. Ingressou na faculdade de Direito de Olinda em 1831, período em que também eram estudantes seus futuros companheiros na política, Bernardo de Souza Franco, Eusébio de Queiroz, Zacarias de Góis e Vasconcelos, Francisco de Paula Batista, João Lins Vieira Cansanção de Sinimbu e Teixeira Bastos, que devia ser seu grande emulo na jurisprudência. Em 1836 Nabuco é nomeado para o lugar de promotor público da cidade do Recife, e em 1842, ganha sua primeira eleição para a Assembleia Legislativa, quando já era juiz cível no Recife. Sobre Nabuco de Araújo Filho, Cf.: MOMESSO, Beatriz Piva. Letras, ideias e culturas políticas: os escritos de Nabuco de Araújo (1843-1876) Rio de Janeiro, Tese (Doutorado em História), UERJ, 2015; NABUCO, Joaquim. Um Estadista do Império: Nabuco de Araújo, sua vida, suas opiniões, sua época. Rio de Janeiro, tomo I (1813-1857), H. Garnier, Livreiro – Editor, 1899. 29 ACP. Livro de Atas (1839-1851), f. 5. 30 RIDINGS, op. cit., p. 67 31 ACP. Livro de Atas (1839-1851), f. 7. 32 ACP. Livro de Atas (1839-1851), f. 8. 33 ACP. Livro de Ofícios (1839-1851), f. 32. 34 ACP. Livro de Ofícios (1839-1851), f. 28. 35 ACP. Livro de Atas (1839-1851), f. 15 36 ACP. Livro de Ofícios (1839-1851), f.37 37 ACP. Livro de Ofícios (1839-1851), f. 41. 38 A lei provincial nº 46, de 14 de junho de 1837, autorizou a contratação de uma empresa para fornecer água potável aos habitantes da cidade do Recife. Um ano depois, em junho de 1838, foi assinado um contrato entre a Companhia do Beberibe e o Governo da Província para dotar o Recife de um serviço de água encanada, mediante à construção de chafarizes públicos e pontos de distribuição. Cf. ABREU E LIMA. Ignácio de. Synopsis ou dedução chronologica dos fatos mais notáveis da história do Brasil. Pernambuco: Tipografia de M. F. de Faria, 1845. Disponível em: https://play.google.com/books/reader?id=J2sxAQAAMAAJ&printsec=frontcover&output=reader&authus er=0&hl=pt_BR&pg=GBS.PA14. 39 RIDINGS, op. cit. p. 4. 40 ACP. Livro de Ofícios (1839-1851), 21/02/1840, f. 21 41 ACP. Livro de Ofícios (1839-1851), 17/09/1840, f. 32 42 ACP. Livro de Ofícios (1839-1851), 08/11/1840, f. 59. 43 No decênio 1831-40, os produtos de exportação que se mostraram mais incidentes na receita da Exportação Nacional, foram: Café (43,8 %), Açúcar (24,4%), Algodão (10,6%). Cf. Nogueira, Denis, Raízes de uma Nação. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988, p. 342 apud GUIMARÃES, op. cit., p. 60 44 Os grupos de interesse mercantil tentaram desenvolver a agricultura nacional, “melhorando a qualidade das exportações, buscando a expansão dos mercados de exportação, reduzindo os impostos sobre as exportações, organizando crédito e garantindo mão de obra para as unidades agrícolas”. Cf. RIDINGS, op. cit., p. 93, tradução nossa.

396

AS MISSÕES ESTRANGEIRAS NA USP: ELEMENTOS DIVULGADORES DA ALTA CULTURA (1934 – 1945). Bruno César Nascimento1

RESUMO Esse trabalho visa discorrer sobre as denominadas “missões estrangeiras” e motivações que levaram os chamados “pais fundadores” da Universidade de São Paulo a optarem pela contratação de professores estrangeiros em detrimento dos brasileiros, mais especificamente franceses, para ocupar as cadeiras da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP entre os anos de 1934 a 1945. Palavras-chave: USP. Missões Estrangeiras. Franceses.

ABSTRACT This work aims to discuss the so-called "foreign missions" and motivations that led the so-called "founding fathers" of the University of São Paulo to opt for hiring foreign teachers at the expense of Brazilians, more specifically French, to occupy the chairs of Philosophy , Sciences and Letters of USP between the years 1934-1945. Keywords: USP. Foreign missions. French.

As chamadas missões francesas se difundiram fortemente por toda a América Latina durante a década de 1920 e 1930, tendo, em alguns casos, permanecida ativa até o fim da primeira metade do século XX. Fortalecidas principalmente após a guerra Franco-Prussiana em 1870 as missões técnico-científicas buscaram não somente a difusão cultural francesa, que havia ganhado força após a Revolução Francesa, mas também estreitar relações com outras nações por todo mundo, para Patrick Petitjean (1996,

91)

esses

intercâmbios

franceses

possuíam

duas

características

fundamentais, a primeira era o de tirar proveito mais rapidamente dos últimos progressos das ciências e de suas aplicações; a segunda característica era o de tecer rede de aliados políticos.

397

Nesse contexto de expansão das atividades científicas francesas as antigas viagens dos séculos XVII e XVIII, patrocinadas para a obtenção de amostras visando a construção de grandes museus e panoramas político-sociais das diversas sociedades espalhas pelo globo, foram sendo gradativamente substituídas pelas expedições diplomáticas multidisciplinares do século XIX e posteriormente pelas chamadas missões científicas e culturais no século XX. Para Amélia Hamburguer e Maria Amélia Dantes Enquanto, no período anterior [século XIX], a presença francesa era muito forte na organização institucional (museus, escolas de engenharia e medicina, Observatório Nacional), nas concepções curriculares, livros didáticos e práticas científicas, por ocasião da implantação das universidades houve um deslocamento dessa presença para as áreas de ciências humanas e filosofia, principalmente na USP. Para essa universidade, para a área das ciências exatas foram contratados, sobretudo, professores italianos e alemães.2

No caso da América Latina as relações da França se estreitaram com países como Argentina, Brasil (tendo foco no Rio de Janeiro e São Paulo, porém houve também ações em estados como Pará e Recife), México, Chile, Venezuela, Paraguai, Guatemala, Costa Rica, El Salvador, Peru e Colômbia. Durante grande parte desse processo de expansão houve a presença marcante da figura de George Dumas, professor de Filosofia da Sorbonne, como coordenador das atividades dos chamados Institutos de Alta Cultura que foram espalhados nos diversos países em que os franceses se fizeram presentes. No caso brasileiro, avaliando o papel das chamadas missões francesas na constituição da USP, Fernando de Novais em entrevista a Revista Estudos Avançados (1994, p. 161)3, destaca que fora fundamental a presença dos franceses no Brasil, mais especialmente na Universidade de São Paulo, entretanto critica essa ideia de “missão”, ele afirma que “a palavra missão, que era oficial, é muito significativa. [...] A palavra missão, evidentemente, mostra que éramos vistos como uma terra de índios que deviam ser catequizados. Não há outra explicação.” Se na visão de Novais a perspectiva de missão girava em torno da ideia de uma nova colonização, para Patrick Petitjean essa modalidade é realizada devido a uma mudança na natureza do trabalho científico francês (1996, p. 29). Para Petitjean Não se trata mais, somente, de coletar amostras, para o proveito dos responsáveis pelos museus, que centralizam e organizam sua classificação; os museus estimulam, à distância, sistemas de coletas. Com o século XIX (vide Humboldt), desenvolve-se a ideia de que é preciso estudar as plantas em seu contexto, em seu nicho. Não basta mais coletar, é preciso enviar grupos de

398

cientistas mais profissionais, capazes de descrever e de compreender o que eles veem. As missões científicas, progressivamente, adquirem aspectos mais interdisciplinares e compreendem, às vezes, as ciências humanas, particularmente nos países com civilizações antigas, trata-se de estudar o meio natural, físico, social, a história, etc.4

Ainda para Petitjean a ideia de missão está mais centrada na ideia de intercâmbio que de neo-colonialismo como defende Fernando de Novais, principalmente dado ao fato que missões francesas se fizeram presentes em países como Estados Unidos, Alemanha, Portugal, Espanha e Inglaterra. Outro ponto que rebateria a perspectiva de Novais é o intercâmbio institucional, onde brasileiros passaram a frequentar e ocupar cadeiras de visitantes em universidades francesas, estabelecendo longos períodos de estadia naquele país. Para Petitjean (1996, p. 38) o que de fato acontece é que “as missões universitárias de longa duração substituem os ciclos de curtas conferências no Brasil e as estadas prolongadas de cientistas brasileiros na França começam a se desenvolver.” Ainda Segundo Patrick Petitjean Professores estrangeiros [atente para o fato do autor utilizar estrangeiros e não franceses] constituíram a maior parte do corpo docente da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letra (FFCL) durante os primeiros anos da USP. [...] Sua influencia foi, pois, considerável, mesmo sendo necessária uma outra leitura, não mais apologética, de seu papel. Tanto mais que essas missões universitárias estrangeiras ocorreram em meios às turbulências políticas dos anos 1934 – 1940, e a acusação de colonialismo cultural se faz presente ainda hoje.5

Dado o passo primordial de criação da Universidade de São Paulo, inicia-se o processo de recrutamento e contratação de professores que irão compor o quadro de docentes da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, tendo em vista que as demais unidades de ensino agregadas à Universidade mantiveram o seu quadro de catedráticos já existentes. Amparada pelo decreto de criação da universidade, a contratação de estrangeiros para ocupar cadeiras na USP era vista como fundamental para o processo de construção de uma alta cultura, no entanto, inúmeros foram os contrários a essa proposta de contratação de professores estrangeiros, entretanto tal contratação fazia parte do projeto de elaboração da universidade, e inclusive era visto como vital. Esse desgastante momento de debate e busca por concessões é relatado por Júlio de Mesquita Filho da seguinte maneira: Logo após a publicação do decreto, tivemos que lutar contra uma verdadeira calamidade: uma chusma de professores se candidata aos cargos do corpo docente da nova universidade, uma chusma difícil de ser afastada. Foi um Deus nos acuda a intervenção de políticos para pedir a Armando que transigisse em mandar buscar a totalidade dos professores de fora. Mas vencemos esta partida e encarregamos Theodoro Ramos, uma das maiores

399

inteligências que me foi dado conhecer, a ir a Europa escolher os docentes das cadeiras que iriam ser ministradas no Brasil. Entrei em contato com George Dumas. Estávamos em pleno fastígio do fascismo e havíamos decidido cuidar de não dar aos Fascistas cadeiras de caráter político. Nossa solução foi dar aos franceses todas essas cadeiras. Mas como a poderosa colônia italiana fazia questão de que também fossem contratados professores italianos, contratamos na Itália professores para as cadeiras de geologia, mineralogia, física, matemática, etc. Contratamos ainda um grupo de judeus, formado por elementos dos mais destacados e que acabavam de ser atirados fora da cultura alemã. E assim constituímos o grupo de professores que tão alto elevaram o nome da nova faculdade.6

Caracterizando muito bem os motivos pelos quais os chamados “pais fundadores” prezavam a presença estrangeira nas cátedras da FFCL em detrimento dos docentes brasileiros, Ana Beatriz Feltran Maia afirma que na visão dos idealizadores, Os cientistas estrangeiros gozavam de uma posição específica no campo científico nacional, e sua posição pode ser demarcada pelas falas de outros agentes do campo, no caso dos idealizadores e administradores da FFCL. Aos professores estrangeiros era creditado um capital científico superior aos da maior parte dos professores nacionais, que no geral se caracterizavam pelo autodidatismo e pela formação apenas secundária. Os estrangeiros seriam, neste discurso, mais preparados, pois estudaram e se formaram em escolas superiores de alta cultura. Eles eram capacitados a realizar um ensino satisfatório, mas principalmente, a orientar e formar a elite intelectual brasileira por meio do desenvolvimento de pesquisas “desinteressadas”.7

A presença dos professores estrangeiros proporcionaria a USP uma maior volatilidade em seus quadros docentes o que levaria, inegavelmente, a um maior aventamento do ensino, proporcionando assim uma melhoria significativa no sistema de educacional por meio de contatos culturais múltiplos, então, Nesses primeiro tempos, o rígido regime de cátedras foi, em grande parte, colocado de lado com a efetivação do sistema de contrato de mestres estrangeiros. Ao contrário do que ocorria nas demais escolas, que possuíam professores catedráticos – vitalícios e inamovíveis – a nova Faculdade pode dispor, durante muito tempo, de um corpo de professores, relativamente jovens, sem intenção de perpetuações nas funções para as quais haviam sido contratados, porém com profundas ambições de natureza intelectual. Isto redundou, sem dúvida, num arejamento do sistema e, ao mesmo tempo que levantou críticas e objeções, trouxe a universidade um novo espírito, marcado por um certo “cosmopolitismo”, bem como por um intenso dinamismo e pela produtividade intelectual. Na verdade, a intenção dos fundadores da USP era a de fazer com que a influência da missão estrangeira ultrapassasse os limites da própria Faculdade de Filosofia, desbordando para as outras escolas, contribuindo assim para reformar a Universidade como um todo.8

Apesar de se constituir como uma necessidade do momento da criação da USP, o contato que levará as missões estrangeiras às cátedras da Universidade de São Paulo tem início em um processo longínquo a sua data de fundação. A presença de 400

italianos nos quadros docentes da USP é fruto da pressão da influente comunidade italiana que desde o período migratório no final do século XIX ganhou volume e significativo poder econômico, a ponto de se fazer ouvir algumas de suas exigências, entre elas estava a contratação de professores de origem italiana para ocupar algumas das cadeiras na FFCL. Já os alemães fora um caso de momento e oportunidade, ao contrário dos italianos e dos franceses. Os germânicos se fizeram presentes pela capacidade técnica e intelectual, no entanto a contratação desses docentes acabou sendo facilitada pelo momento político que passava a Alemanha na década de 1930, onde o novo regime político dispensou de suas universidades professores por possuírem afinidades ideológicas contrastantes com o do regime hitlerista ou por ser de origem judaica. E no caso da França, com o fortalecimento da influência francesa na cidade de São Paulo, estreitam-se os laços entre a elite intelectual paulista, principalmente com o “Grupo do Estado”, e os grandes intelectuais das universidades francesas. Segundo Patrick Petitjean: Essa participação francesa na criação da USP não saiu do nada, mas se situa em continuidade com uma influência cultural antiga (desde a missão artística de Debret no início do século XIX) e uma cooperação universitária, intensa desde o começo do século XX, sob a égide do Groupment des Universités et Grandes ècoles de France pour les Relations avec l’Amérique Latine. Em São Paulo, sucessivamente, a União Escolar Franco-paulista antes da Primeira Guerra e o Liceu Franco-paulista nos anos 20 foram os frutos dessa cooperação. Laços pessoais formaram-se entre George Dumas (além de Robert Garric, Paul Fauconnet, etc.) e Júlio de Mesquita Filho (com seu grupo de amigos do Jornal O Estado de S. Paulo) e com professores das escolas profissionais superiores da cidade (médicos, engenheiros, etc.).9

Entre as principais ligações de intelectuais franceses e brasileiros, descrita por Patrick Petitjean, estava a de Júlio de Mesquita Filho e George Dumas, professor de filosofia da Sorbonne. Esse vinha periodicamente ao Brasil e realizava amplas palestras na redação do jornal “O Estado de S. Paulo”, o que acabou por estreitar ainda mais os laços intelectuais entre essas duas personalidades. Sobre as conversas entre ambos, Júlio de Mesquita Filho deixa o seguinte relato, onde debatem a questão do ensino e da fundação de uma universidade em São Paulo: Sempre que podia eu encaminhava a prosa parra assuntos relacionados com o ensino superior. Era um prazer extraordinário discutir com George Dumas sobre esse sedutor tema. Era ele de opinião que seria um erro começarmos pela fundação de uma universidade propriamente dita. Estava ele perfeitamente a par das lacunas de nosso ensino secundário que preparasse os alunos de forma a torna-los capazes de adquirir os ensinamentos a lhes serem ministrados na universidade. A solução seria mandar vir os melhores professores da Europa cuja missão seria a preparação dos rapazes que mais

401

tarde iriam lecionar nos cursos secundários. Ele se entusiasmou pela ideia, e vendo o interesse que tínhamos em procurar resolver o problema do ensino no Brasil se propôs a trabalhar conosco na criação, em São Paulo, de um ginásio, um liceu, em que se pudesse preparar os futuros professores. Foi daí que se originou o Liceu Franco-Brasileiro, hoje Liceu Pasteur. Na ideia dele, como na nossa, os professores deveriam ser contratados na Europa, pois a verdade – a verdadeira verdade- era que não havia ninguém no Brasil capacitado a ensinar qualquer uma das matérias do ginásio. Os que se dedicavam a esta função eram os que haviam fracassado em suas profissões: o engenheiro que não tinha construções para fazer lecionava na cadeira de matemática, de física ou de química; os médicos sem clínica procuravam soi-disant lecionar biologia ou o diabo a quatorze. Não havia especialistas em qualquer destes ramos capazes de incutir nos alunos os princípios da cultura, de contribuir para a formação de cientistas. Não havia ninguém.10

No entanto, se a relação entre a França e São Paulo é fortalecida com o elo de amizade entre os intelectuais da década de 1920, o relacionamento da França com o Brasil data de tempos bem mais antigos. Petitjean (1996, p. 34) divide essa longeva presença cultural francesa no Brasil em, principalmente, cinco etapas, sendo elas: o tempo dos naturalistas (XVII –XIX), segundo reinado e início da república, anos 1907 a 1934 (Groupement e Academia Brasileira de Ciências), das missões universitárias ao Cnpq (1934 – 1953) e por fim a contemporaneidade. Assim, não se pode justificar a presença predominantemente de franceses nas chamadas missões estrangeiras somente pelo fato de já existir um relacionamento harmonioso e de relativa camaradagem já previamente existente como o descrito por Patrick Petitjean, há entre essas duas nações um longo histórico de intercâmbios culturais. Então, cientes do grande potencial dos intelectuais e universidades francesas, mas também reconhecendo as significativas contribuições de professores de outras nacionalidades, como alemães, italianos, ingleses e ibéricos, um dos fatores que de certa forma predominou no momento da escolha daqueles que iram ocupar as cátedras da universidade paulista fora o quesito ideológico. A busca de professores que seguissem a perspectiva liberal do grupo fundador da USP pesou significativamente naquele momento, principalmente devido ao fato de que na Europa estava ocorrendo uma grande escalada de regimes políticos de caráter totalitário. Essa defesa pode ser vista em diversas publicações e discursos. Júlio de Mesquita Filho em discurso na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto afirma que: Ora, éramos irredutivelmente liberais. Tão convictamente liberais, que nos julgávamos na obrigação de tudo fazer para que o espírito em que se inspirasse a organização da Universidade se mantivesse exacerbadamente liberal. [...] Essa nossa posição obrigava-nos a evitar que as cátedras da Faculdade de Filosofia pudessem cair nas mãos dos adeptos do credo italiano, sobretudo aquelas que mais aptas se mostravam influir na formação moral da

402

nossa juventude. [...] Contornamos a dificuldade oferecendo à Itália algumas das cadeiras de ciência pura – análise matemática, geometria, estatística, geologia, mineralogia e língua e literatura italiana. Conservávamos para a França, líder da liberal democracia, aquelas de que dependia diretamente a formação espiritual dos futuros alunos: filosofia, sociologia, economia política, política, geografia humana, letras clássicas e língua e literatura francesa. As demais – química e história natural – seriam preenchidas por alemães expulsos ou em vésperas do o ser de sua pátria pelo hitlerismo. Assim, evitava-se a quebra do sentido liberal da evolução brasileira.11

Com esse mesmo olhar cauteloso sobre as perspectivas ideológicas Paulo Duarte afirma em matéria do Estado de S. Paulo que: Teodoro Ramos partiu para uma longa viagem à Europa e aos Estados Unidos à cata dos professores. A Itália mandou matemáticos, geólogos e mineralogistas. A Alemanha mandou zoólogos e químicos. Os Estados Unidos mandaram um professor de Civilização Americana. A França foi reservada como veio de professores que ensinassem a pensar. Não era possível deixar essa missão melindrosíssima aos países totalitários.12

Por fim Teodoro Ramos, diretor da FFCL, inicia uma peregrinação pela Europa com a finalidade de contratar professores estrangeiros que hão de compor parte do quadro docente. Ele inicia suas atividades pela Itália em março de 1934. Nesse país ele recrutou um matemático (Fantappié), um físico (Gleb Wataghin), um professor de literatura italiana (Piccolo) e um mineralogista (Ettore Honorato). Dessa forma totaliza, inicialmente, quatro professores de origem italiana,

sendo

nenhum

destinado às cadeiras de cunho político-ideológico. O destino de sua segunda visita na Europa é a França. Nesse país serão assinados seis contratos, sendo eles para as seguintes cadeiras: história da civilização (Émilie Coornaert), literatura francesa (Robert Garric), geografia (Pierre Deffontaines), sociologia (Paul Arbousse-Bastide), filosofia e psicologia (Étienne Borne) e literatura Greco-latina (Michel Berveiller). Finalizadas as atividades na França o diretor da FFCL segue para a Alemanha e recruta três novos professores: Reinboldt para a cadeira de química, Ravitscher para a botânica e por fim Breslau para a cátedra de zoologia. Finalizadas as primeiras contratações, totalizou-se treze professores estrangeiros que iriam compor a quadro docente da USP. A esses iriam se juntar os brasileiros André Dreyfus (biologia), Plínio de Ayrosa (etnologia e língua tupi-guarani) e Antônio S. Romeo (física). Com o avançar do desenvolvimento universitário uspiano avança também o recrutamento de novos estrangeiros e no ano de 1936, segundo Patrick Petitjean (1996, p. 280), “o corpo docente da FFCL compõe-se de oito

403

franceses,

seis italianos, seis brasileiros, três alemães, um português e um norte-americano” o que representaria o dobro de professores que iniciou as atividades da referida Faculdade (25 docentes). Entre os professores estrangeiros que ministraram aulas FFCL-USP a partir do ano de 1935 estão Roger Bastide e Paul-Arbousse Bastide (Sociólogos), Fernand Braudel (Historiador), Claude Levi-Strauss (Antropólogo), Pierre Monbeig e Pierre Deffontaine (Geógrafos) e L. Garric (Filólogo). Todos considerados, hoje, grandes mestres e especialistas proeminentes em sua respectiva área de atuação. A grande decisão tomada naqueles anos foi a de que todos os professores da nova Faculdade de Filosofia deveriam vir do exterior. Graças às incertezas econômicas e políticas na Europa daqueles anos e aos recursos disponíveis por parte do governo de São Paulo, foi possível enviar uma missão de recrutamento para a Europa e atrair jovens professores da Itália, da Alemanha e da França. Um deles foi Claude Lévi-Strauss, que aproveitou a oportunidade para visitar os índios bororos e coletar material para seus escritos subsequentes, sem deixar muitas marcas no Brasil. Outros, menos conhecidos, tiveram influência bem mais duradoura: o antropólogo Roger Bastide, que formou uma geração inteira de renomados cientistas sociais brasileiros, incluindo Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e Octávio Ianni; Gleb Wathagin, um russo branco que morava na Itália e trabalhava com física das partículas, e formou um vigoroso grupo de discípulos; Gustav Brieger, que trouxe a genética moderna para a Escola de Agricultura Luiz de Queiroz; e Heinrich Reinboldt e Henrich Hauptman, que introduziram a tradição alemã de pesquisa em química.13

Dado essa gama de informações sobre a constituição da USP, da FFCL e das missões estrangeiras, é possível afirmar que vários cursos foram alvos dessas intervenções e miscigenações de fatos, inclusive, o curso de História e Geografia (inicialmente os cursos eram unificados) onde o carro da modernização do ensino não passou ao largo, pelo contrário. Imediatamente verificou o Prof. Gagé as enormes e, pelo menos de momento, insuperáveis dificuldades que se encontravam no seu caminho: falta de conhecimentos básicos dos estudantes, que não dominavam as línguas clássicas, indispensáveis para que pudessem ser acompanhados os cursos de um professor que, como Gagé, era especialista em estudos romanos, e – como já acentuamos acima, falta de familiaridade com os traços fundamentais da história geral, em virtude da situação do ensino da matéria no curso secundário. Acrescentava-se ainda a isto a nossa falta de aparelhamento para que pudéssemos aproveitar realmente um professor como o que se nos apresentava: nossas bibliotecas públicas ou pertencentes à Universidade eram paupérrimas e, além disto, não era possível contar-se com livros de publicação alemã, uma vez que, excluindo-se aqueles que possuíam ascendentes alemães, raríssimos eram os que dominavam a língua.14

Assim, tornou-se notória a presença maciça de professores estrangeiros exercendo atividades em todos os cursos da Faculdade de Filosofia, alguns desses

404

compartilhavam cadeiras em cursos da FFCL e da Escola Politécnica ou em outras Escolas, Institutos ou Faculdades. As chamadas “Missões Estrangeiras” terão uma duração significativa nos alicerces da USP e hão de ecoar de maneira perene em seus corredores. Paulo Eduardo Arantes, que cursara Filosofia na USP em 1965, 30 anos após a fundação da Universidade e vários anos após a saída dos últimos integrantes do intercambio internacional, já declara saudosista, A geração de segunda mão a que pertenço já tomou andando o bonde da Maria Antônia, e bem perto do fim da linha. Confesso de saída uma falha grave de formação: chegando atrasado em 1965, perdi o bonde da Filosofia (...). Explico-me: aqui ainda fala um pouco o aluno siderado pelo espetáculo do funcionamento da Filosofia Francesa em São Paulo.15

Por fim, se a missão estrangeira cooptou os professores a vir lecionar no Brasil em um período de extrema instabilidade política, social, intelectual e econômica na Europa, o fim da guerra em 1945 e a necessidade de reconstrução de suas respectivas nações os levaram de volta ao lar. Alguns professores ainda permanecerão no Brasil mesmo após a esse período, resistindo a críticas e até mesmo a traços de um sentimento xenofóbico, segundo Mirian Leite, Entre os professores estrangeiros, contratados inicialmente como visitantes, alguns permaneceram e constituíram família no Brasil. Outros voltaram para seus países de origem depois do fim da guerra de 1939-1945; tinham preparado, entre seus alunos, os assistentes que deveriam assumir os encargos após sua retirada. Muitos desses assistentes fizeram suas carreiras na Faculdade e alguns chegaram a formar dinastia, quando filhos ou assistentes e auxiliares de ensino percorriam as pegadas do mestre.16

As missões estrangeiras na USP irão seguir até o ano de 1953. Tendo cumprido o papel a que eles fora destinado, os professores deixaram inúmeros discípulos que com a saída dos titulares estrangeiros passaram a ocupar as respectivas cadeiras, além desse ponto, supriram a necessidade de uma elite intelectual letrada dotada de uma alta cultura e acima de tudo contribuíram para criação do campo, no sentido proposto por Pierre Bourdieu, que até 1930 estava adormecido na sociedade brasileira, o campo científico. Vale a pena resaltar que existia sim no Brasil daquele período pessoas focadas em pesquisas de fôlego e cientificamente fundamentadas, no entanto, não era suficiente o número de participantes dessa área que pudesse de alguma forma estruturar, fortalecer e legitimar esse campo.

1 Graduado

em História pela Universidade Federal do Espírito Santo, Mestrando do Programa de Pós Graduação da Universidade Federal do Espírito Santo, Bolsista do Fundo de Amparo a Pesquisa do

405

Estado do Espírito Santo (FAPES) e membro efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo. 2 DANTES, Maria Amélia M; HAMBURGUER, Amélia Império. A ciência, os intercâmbios e a história da ciência: reflexões sobre a atividade científica no Brasil. In: HAMBURGUER, Amélia Império (Org) [et al]. A ciência nas relações Brasil – França (1850 – 1950). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo/ FAPESP, 1996, p. 21. 3 NOVAIS, Fernando. Fernando Novais: Braudel e a “missão francesa”. Estudos Avançados, São Paulo, v. 8, n. 22, p. 161 – 166, 1994. Entrevista concedida a Revista Estudos Avançados. 4 PETITJEAN, Patrick. Ciências, Impérios, relações científicas franco-brasileiras. In: HAMBURGUER, Amélia Império (Org) [et al]. A ciência nas relações Brasil – França (1850 – 1950). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo/ FAPESP, 1996, p. 29. 5 PETITJEAN, Patrick. As missões universitárias francesas na criação da Universidade de São Paulo (1934 – 1940). In: HAMBURGUER, Amélia Império (Org) [et al]. A ciência nas relações Brasil – França (1850 – 1950). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo/ FAPESP, 1996, p. 259. 6 PONTES, José Alfredo Vidigal. Júlio de Mesquita Filho. Recife: Fundação Joaquim Nabuco/ Editora Massagana, 2010, p. 152. 7 MAIA, Ana Beatriz Feltran. As missões francesas na criação da Universidade de São Paulo: uma análise dos relatos e seus significados nos anuários da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (1934 – 1949). In: Simpósio Nacional de História – ANPUH, XXVI, 2011, São Paulo. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História São Paulo: [s.n.], 2011, p. 7, grifo nosso. 8 FILHO, Macioniro Celeste. A constituição da Universidade de São Paulo e a reforma universitária da década de 1960. São Paulo: Editora Unesp, 2013, p. 17. 9 PETITJEAN, 1996, p. 260. 10 MESQUITA FILHO apud PONTES, 2010, p. 152. 11 MESQUITA FILHO, Júlio de. Política e cultura. São Paulo: Gráfica da Revista dos Tribunais, 1969, p. 192. 12 DUARTE, Paulo. A Universidade e os professores estrangeiros. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 25 de janeiro de 1947, p. 4. 13 SCHWARZTMAN, Simon. A universidade primeira do Brasil: entre intelligentsia, padrão internacional e inclusão social. Estudos Avançados, São Paulo, n. 56, p 161 – 189, 2006, p. 165. 14 CAMPOS, Pedro Moacyr. O estudo da História na faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. Revista de História, n. 18, p. 491 – 503, 1954, p. 497. 15 ARANTES, P.E. Um departamento francês de ultramar: estudos sobre a formação da cultura filosófica uspiana (uma experiência nos anos 60). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994, p. 13. 16 LEITE, Mirian L. Moreira. Memória da Faculdade de Filosofia (1934-1994). Estudos Avançados, São Paulo, n. 22, p. 167 – 177, 1994, 173.

406

Conflito, escrita e poder nas missões jesuíticas do Paraguai (século XVII)i Bruno Oliveira Castelo Brancoii RESUMO: Com o início da atividade jesuítica no Paraguai colonial, os membros da Companhia de Jesus reuniram índios para serem reduzidos, onde coabitaram no espaço das missões. A partir da análise das imagens documentadas pelos letrados da época envolvidos nas disputas pelo controle do trabalho indígena pretende-se discutir a função sociocultural do domínio dos códigos escritos, problematizando como o uso da escrita representava maiores possibilidades de negociação para os nativos e, simultaneamente, fortalecia o discurso de dominação jesuítico no período moderno. Palavras-chave: Índios do Paraguai - Jesuítas - cultura escrita

ABSTRACT: With the onset of Jesuit activity in colonial Paraguay, members of the Society of Jesus gathered Indians to be reduced where cohabited in space of missions. From the analysis of the images documented by scholars of the time involved in disputes over control of the indigenous work intends to discuss the socio-cultural function of the field of written codes, questioning how the use of writing represented greater trading opportunities for native and simultaneously strengthened the speech Jesuit domination in the modern period. Keywords: Indians from Paraguay - Jesuits - written culture

No princípio do século XVII, os membros da Companhia de Jesus foram encarregados da transmissão do catolicismo pelas populações nativas do Paraguai. Por sua vez, os índios que passaram para a administração dos jesuítas, foram destinados a habitarem no interior do espaço das reduções, onde tiveram seu lugar de atuação restrito, conforme previa a legislação da época.iii Na defesa da permanência dos índios dentro das missões, os jesuítas entraram em conflito aberto com os colonos de Assunção. Como forma de garantir a adesão indígena ao sistema missioneiro e, consequentemente, o fim das encomiendasiv, os inacianos se apresentaram como uma opção viável para os nativos quando demostraram interesse nos quereres dos índios que se encontravam sob tutela dos colonos. Na lógica social do Antigo Regime, a condição jurídica dos índios era constituída a partir de direitos e deveres próprios atribuídos a eles. Uma de suas obrigações era

407

o

pagamento da encomienda, tributo devido ao monarca, que poderia ser feito de diversas maneiras; em espécie, em forma de trabalho ou com o envio de produtos. No contexto do Paraguai a mão de obra era insuficiente para cobrir os contingentes necessários ao trabalho colonial que pudessem garantir a expansão da colonização espanhola na fronteira. Com a intervenção dos jesuítas, os colonos pressionaram o monarca espanhol, invocando seus direitos adquiridos como conquistadores, argumentando a favor da repartição dos braços indígenas no sistema das encomiendas. Porém, conforme previsto pela legislação espanhola vigente nas Índias, os nativos deveriam conviver em espaços separados dos espanhóis. À época da conquista, as guerras praticadas contra os índios e as doenças trazidas pelos europeus para o continente americano foram responsáveis por uma queda demográfica expressiva da população indígena. Neste sentido, os filósofos e teólogos do período moderno acreditavam que os nativos desapareceriam progressivamente. Assim, a monarquia tratou de criar uma estrutura organizativa dividida em duas repúblicas separadas, uma de espanhóis, outra de índios. Posteriormente, os missionários se aproveitariam deste modelo para estruturar as reduções, espaços que mantinham a regra de serem vetados à circulação de espanhóis, de acordo com a lei indigenista. A alternativa de vida no interior das reduções assumiu diversos significados para os índios, inclusive o de representar um afastamento do trabalho compulsório, e principalmente, do cativeiro. A historiografia demonstrou em diversas regiões as prováveis garantias que os nativos procuravam ao se vincular às reduções espanholas ou aos aldeamentos portugueses: a manutenção de suas terras e a proteção contra a exploração dos colonos eram suas aspirações mais comuns quando adentravam nas missões.v Este trabalho tem como objetivo central expor e desconstruir a ideia simplista e genérica dos índios e outros grupos em conflito, presente nos documentos deixados pelos missionários, funcionários régios e colonos durante a primeira etapa de expansão da atividade missionária no Paraguai. Nessa direção, busca ainda analisar os mecanismos de afirmação de poder através dos quais os índios eram subalternizados, nos quais o domínio dos códigos escritos possuía um papel capital na afirmação dos discursos em disputa. Como vêm sublinhando as novas pesquisas que se vinculam aos estudos da escrita no período moderno, o ato de escrever é carregado de intencionalidades, sendo revelador de valores e costumes de determinado tempo.vi Assim, a observação do perfil indígena apresentado pelos letrados nas fontes permite uma apreensão cuidadosa da lógica da sociedade colonial que ali se estabeleceu. Na totalidade do império espanhol a cultura escrita

408

possuía uma função fundamental, atestada pela existência de uma variedade considerável de documentos produzidos nos inúmeros órgãos administrativos, instâncias de poder e jurisdições de governo do ultramar.vii Os documentos produzidos pelos missionários permanecem atualmente como as principais fontes de informações sobre os índios, possuindo conteúdos mais completos e preservados. Com a intenção de ampliar as discussões neste trabalho, contrapondo as descrições dos índios e abordando as múltiplas faces do conflito, foram analisadas algumas cartas ânuas escritas pelos jesuítas em anos decisivos para as reduções, uma reclamação redigida pelo procurador de Assunção ligado aos setores encomendeiros e, por fim, uma denúncia contra os jesuítas escrita por um franciscano egresso da ordem inaciana. Diversas denominações genéricas foram empregadas pelos jesuítas na descrição dos nativos. No geral, havia uma distinção básica entre os aliados - os que auxiliaram os espanhóis na edificação da colonização e que viviam em contato com o mundo colonial - e os infiéis - índios não reduzidos das regiões de fronteira, que periodicamente mobilizavam guerras contra os núcleos coloniais. Nos escritos teológicos da época “as representações pictóricas do índio ressaltam os aspectos do barbarismo e reafirmam o estereótipo, servindo aos colonizadores como princípio moral para a intervenção na América”.viii Os protótipos acentuadamente antagônicos que os índios assumiram quando descritos pelos colonizadores (“bárbaros/civilizados”, “cristãos/infiéis”), que há muito moldaram as interpretações do discurso sobre nativos, abriram espaço para estudos coevos que valorizam o diálogo profícuo entre a história e a antropologia, ou seja, que posicionam os índios enquanto sujeitos históricos e ativos na construção do mundo colonial. Como lembrou Karen Spalding, em sua obra sobre a colonização no Peru, o vocábulo “índio” estava distante de corresponder à complexa composição étnica dos Andes na época anterior à conquista. Partindo deste pressuposto, a condição indígena teria surgido como resultado direto dos

contatos

provenientes da conquista da América, e por isso, só pode ser entendida imersa no contexto colonial.ix *** Um dos maiores desafios para o historiador que se debruça sobre a temática indígena é desvendar as motivações nativas em meio aos registros elaborados pelos letrados da época: missionários, funcionários régios e colonos. Por não terem desenvolvido uma cultura escrita, os índios não registraram situações históricas vivenciadas por eles, salvo em contextos muito específicos, o que explica a escassez de fontes que privilegiem a história colonial através da

409

sua perspectiva.x Porém, a dificuldade de encontrar fontes documentais produzidas pelos nativos não impede os estudiosos do tema de desvendarem suas aspirações coletivas ou individuais. No contato com os documentos fica evidente a construção de diferentes arquétipos do índio, ou seja, ora estes aparecem descritos como frágeis e instáveis, ora são vistos como combatentes feroses. Neste sentido, a análise dos estereótipos construídos nas fontes pela retórica inaciana pode auxiliar na percepção dos discursos, e, com isso, evidenciar intenções e motivações ocultas por trás da imagem indígena propagada pelos jesuítas, revelando o índio de maneira mais concreta.xi Os índios da região do Itatimxii - os itatines (itatins) - são descritos nas fontes jesuíticas como possuidores de costumes culturais e sociais semelhantes aos do restante da população nativa do Paraguai, o que leva os padres nos primeiros contatos a deduzirem que se tratavam de índios guaranis. Entretanto, na carta ânua de 1633 do padre Diego Ferrer para o provincial do Paraguai, documento que contém informes preciosos sobre a localidade, o inaciano acreditava que os itatins poderiam ser teminimós, uma vez que possuíam características também próximas dos tupis, como eles próprios haviam lhe informado: Todos estos Itatines son de buen natural, y no difieren de los demás guaranis, sino que tienen mas trato y policia de cuantosGuaranis avernos visto hasta agora, y también en la lengua tienen alguna diferencia de los demás Guaranis aunque poca acercándose algo al lenguaje Tupi, de suerte que algunos dicen que non son verdaderos Guaranis ni Tupis tampoco, sino que es una nación entremedia entre los Guaranis y Tupis que llaman Temiminosxiii

Neste fragmento parece clara a dificuldade do jesuíta em definir o grupo étnico ao qual pertenciam os itatins, que foram incluídos previamente dentre os guaranis pelo padre por terem se mostrado simpáticos aos inacianos. Os itatins não se compreendiam desta maneira, uma vez que possuíam relações com grupos de índios infiéis, os paiaguás e guaicurus. Por outro lado, a Companhia de Jesus era constituída por uma série de membros organizados hierarquicamente.xiv Todos os integrantes da ordem, principalmente os padres missioneiros, produziam cartas ânuas de circulação interna. Porém, os documentos mais importantes, destinados às autoridades metropolitanas e à sede da igreja em Roma, eram redigidos pelos padres provinciais, que prestavam votos de obediência direta ao papa e interviam na defesa dos índios perante o monarca. No entanto, as informações contidas nos documentos dos provinciais eram provenientes dos relatos oriundos das ânuas dos padres missioneiros. Nessa direção, é possível questionar a validade do conteúdo exposto, uma vez

410

que a imagem dos índios contida nestes informes era “terceirizada” pela própria hierarquia da ordem. Este não era o caso da carta do padre Ferrer, mas de outros documentos.xv No documento escrito pelo padre superior Ruiz Montoya e assinado por outros vários jesuítas, os padres fortaleceram a veracidade de suas informações para o monarca colocando o conteúdo textual em língua guarani.xvi Nesse sentido se pode refletir sobre o sentido reverso do fenômeno da mestiçagem: um texto em guarani poderia reforçar a autoridade do argumento jesuítico ao se apropriar das vozes indígenas. Além disso, os jesuítas precisavam ter o domínio das línguas indígenas para estabelecerem qualquer tipo de comunicação com a população nativa, o que aumentava ainda mais a importância dos índios na construção desses espaços, onde a autoridade era negociada e não necessariamente imposta.

Protetores dos índios Em 1618 Filipe III promulgou ordenanças que liberavam os índios missioneiros da encomienda, medida que contou com amplo apoio da Companhia de Jesus. Anos depois, os jesuítas seriam alçados à tarefa de protetores dos índios pela monarquia, conseguindo mais isenções na prestação do trabalho compulsório pelos nativos. De grande incentivo para a efetivação dessas medidas foram as ações inacianas que se posicionaram a favor dos índios. Dentre elas, repercutiram as viagens que os padres Ruiz Montoya e Diaz Taño fizeram até a Europa, onde se reportaram diretamente à coroa e ao papado, justificando a proteção dos guaranis dos colonizadores ibéricos. Como protetores, os inacianos conseguiram inclusive a legalidade para o uso de armas de fogo na organização da defesa das missões em 1640 contra os ataques dos “impios maloqueros de S. Pablo”xvii, situação excepcional no restante da América espanhola. Os jesuítas se declaravam em diversas situações como os únicos protetores dos índios, inclusive quando escreveram para a coroa denunciando o estado precário das reduções, que haviam sido invadidas pelos paulistas. Contudo, essa função atribuída a eles pelo monarca não era inquestionável, como é descrita nos documentos. Setores da sociedade colonial denunciavam o crescente acúmulo de poder e bases materiais da Companhia de Jesus no Paraguai como um problema e a tutela dos padres sobre os índios representava um entrave real ao direcionamento da mão de obra indígena para o trabalho compulsório. Em 1657, o franciscano Gabriel de Valencia, que havia sido membro da Companhia de Jesus no Paraguai durante quinze anos, escreveu uma carta tecendo diversas críticas ao comportamento autônomo dos jesuítas. Um dos assuntos que ele destacou foi a polêmica em

411

torno do uso de armas de fogo dentro das missões. Dentre outras razões ligadas aos jesuítas, segundo o frei, a necessidade do emprego de armas também era infundada por conta da instabilidade dos índios: Los riesgos de estas armas de fuego (..) es cosa que no pide discursos, sino remedios. lo primero porque sin culpa de la compania, a lo menos actual, pueden los mismos indios alzarse no más que por ser indios fáciles, mudables, inquietos y medrosos y dando muerte a los Padres Doctrinantesxviii

Segundo o franciscano, os índios não deveriam em hipótese alguma portar armas de fogo porque eram “inconstantes, inquietos e medrosos”. Na visão dele, ainda que estivessem sobre o comando dos inacianos poderiam facilmente se voltar contra os padres missioneiros devido a sua inconstância natural. De qualquer forma, os índios em interação com a sociedade envolvente assimilavam estrategicamente determinados códigos do mundo colonial e utilizavam em seu benefício. No pueblo denominado Itapua da província do Itatim, o procurador de Assunção Baltasar de Pucheta, descreveu alguns costumes aprendidos pelos índios em convívio com os colonos: En uno de los pueblos de la da provincia, llamado Pirapo, donde esta van los indios tanbien doctrinados y tan políticos que todos los caciques e indios principales así del do pueblo como de todos los demás vestían al uso español camisa, ropilla, calzón y capa y muchos teñian espada todo aprendido y adquirido por la enseñanza de los dos sus encomenderosxix

O procurador afirmou que os índios eram “doutrinados” e “políticos” porque utilizavam vestimentas à maneira espanhola: camisa, calção, capa e espada. Segundo ele os nativos haviam sido ensinados a se trajarem conforme os espanhóis, não pelos padres, mas pelos encomendeiros. Com intenção no prevalecimento de seus interesses sobre a retirada da tutela indígena dos jesuítas, Pucheta acreditava ser necessário frisar os bons costumes cristãos aprendidos pelos índios com os colonos, como por exemplo, o uso das vestes europeias, como forma de sustentar seu argumento sobre os direitos de exploração do trabalho missioneiro. Nessa direção, este documento é importante para relativizar a oposição simplória entre índios e colonos. No trecho eles aparentam terem relações bem próximas. Como destacou Rodrigo Bentes, deve-se atentar para as diversas finalidades da escrita. Se traduz como um problema privilegiar apenas a dimensão conflituosa em questão, “compondo assim uma imagem também distorcida da história, e nesse âmbito, da colonização”.xx Por outro lado, os trajes também serviam para segregar as camadas sociais do Antigo Regime. A preocupação de Baltasar de Pucheta em enfatizar a descrição da indumentária dos índios não era sem fundamento. Ao interpretar pela ótica aculturativa o uso da roupa espanhola pelo índio, situação onde o mesmo teria perdido seus costumes “puros” 412

e

“originais” ao se adequar ao estilo de vida europeu, perde-se de vista o caráter político atribuído a eles, que está presente na descrição do procurador. Nessa direção, através de processos complexos de mestiçagem social, os índios se apropriavam de signos sociais, como um corte de cabelo específico ou a utilização de determinada roupa com a finalidade de obter acessos diferenciados segundo a lógica social ibérica vigente, como apontou Jacques PoloniSimard.xxi Os nativos metamorfoseavam sua condição jurídica real manejando estratégias políticas e identitárias próprias, porém construídas nos contatos. Os relatos do frei e do procurador, em contraposição á documentação jesuítica, atestam que mesmo com as tentativas dos padres em garantir a manutenção da tutela dos nativos, eles sofriam oposição de outros grupos da sociedade que questionavam abertamente o seu direito sobre a administração indígena, argumentando os comportamentos desviantes dos padres que também se aproveitavam do trabalho indígena de acordo com suas vontades. Todavia, alguns nativos evadiam as reduções e adentravam nos núcleos coloniais. Um dos principais motivos eram os pesados castigos que os jesuítas aplicavam à população missioneira. No memorial que contém instruções do provincial Lupércio Zurbano para os missionários do Itatim, o padre expõe suas preocupações com o aumento dos castigos: “en lo que toca a castigo deseo que sea con moderación y mucha prudencia”, solicitando que os jesuítas “para haber de castigar consultenlo los dos padres provinciales es si convendrá, y que castigo sera justo para que se haga con mas prudencia y acierto”.xxii Os castigos eram um dos fatores explicativos dos casos de evasão dos índios das reduções.xxiii O perfil jesuítico de catequização era bastante punitivo. Contudo, nas ânuas dos padres missioneiros, quando há relatos sobre castigos impostos aos índios, os inacianos os descrevem de forma metafórica, utilizando figuras de linguagem de cunho religioso, para relatar a situação. Una India mal contenta con la ley de Cristo despreciaba insolente los consejos del padre y cerraba los ojos a los cristianos ejemplos de los suyos, anulando por volverse a su libertad gentílica. Viendo el padre frustrados otros medios, para hacerla volver en si, acogió se a la oración, pidiendo al Senior fervoroso el sosiego de aquella alma. Inclinó se benigno Dios a sus ruegos, y luego despachó una enfermedad tan penosa, q afligió el cuerpo de la India puesta en un grito, hasta q reconocida de su yerro, se redujo a verdadera penitenciaxxiv

Segundo o relato, o padre teria tentado convencer a índia a aceitar o catolicismo. Não encontrando sucesso, moveu-lhe um poder “divino”, através de suas orações, que “afligiu o corpo da índia”. Na realidade, o inaciano se utilizou de alegorias e metáforas para narrar a imposição do castigo corpóreo real à índia “que se reduziu a verdadeira penitência” após o ocorrido. Essa forma narrativa é constante nos relatos sobre a vida nas missões. Ainda que os

413

jesuítas precisassem afirmar constantemente sua autoridade, havia uma preocupação com a divulgação dos castigos, assunto polêmico para a Ordem. A narrativa do caso da índia poderia indicar a existência de um rígido controle sobre os comportamentos dos índios missioneiros, não fosse pelo conteúdo edificante e alegórico bastante expressivo da narrativa jesuítica, o que contribui para relativizar esse poder. No final, tendo sido castigada, a índia aceitou permanecer na missão. Conclusões Na análise dos documentos produzidos no Paraguai no século XVII pelos letrados da época, os setores da sociedade colonial - índios, colonos, jesuítas - são apresentados de forma pitoresca, refletindo os interesses conflitantes em jogo. Os indivíduos letrados da época utilizaram a cultura escrita como ferramenta de afirmação do poder sobre as populações nativas, com destaque para os jesuítas, ordem que fortaleceu sua posição com o discurso próindígena, prevalecendo suas visões de mundo sobre as populações indígenas que não correspondiam à realidade dos índios. Informações contidas nas fontes eram omitidas ou distorcidas dependendo dos interlocutores envolvidos na mensagem e da natureza do documento. xxv As ânuas da Companhia trocadas entre os padres missioneiros e os provinciais, por serem uma documentação de divulgação interna, revelavam preocupações distintas das que os provinciais escreviam para as autoridades coloniais, onde era necessário demonstrar o caráter religioso da missionação, reforçando simultaneamente argumento político da ordem. Outras informações estavam imbuídas de um espírito edificante, enfatizando a grandeza do trabalho missionário e as habilidades que os padres possuíam no trato com os índios.xxvi Ainda que acreditassem que os índios não sobreviveriam em longo prazo à crescente exploração dos colonos, o objetivo dos padres era fortalecer a posição da Companhia de Jesus nas reduções, evitando ameaças à sua dominação de cunho interno, caso dos encomendeiros e também externo, provenientes das incursões dos bandeirantes paulistas ou ainda dos ataques de índios infiéis no território da monarquia castelhana na América. Nesse sentido, usaram a escrita para afirmarem a ideia de que seu objetivo era a proteção dos “frágeis” missioneiros. Como apontou Federico Palomo, “sujeta a inevitables formas de control, la actividad escritora constituiría el principal instrumento empleado por los religiosos ignacianos para difundir sus acciones apostólicas, afirmarse en el campo de los saberes y, en general, aumentar su proyección.xxvii

414

Por outro lado, os índios em situação colonial experimentaram processos múltiplos de etnogênese, etnificação e mestiçagens, onde foram limitados a agir de acordo com o estatuto metropolitano. Ainda sim organizaram estratégias sociais, reformulando suas identidades coletivas ou individuais nos contatos. Além disso, índios de origens diferentes se mesclavam no interior do espaço missioneiro e ainda mantinham relações com outros grupos indígenas não reduzidos, considerados “infiéis”, caso dos itatins. Embora determinadas referências a estas situações apareçam, tais relações estavam longe de serem homogêneas e prontas como são apresentadas nas fontes, na qual a dimensão social nativa é colocada em um plano secundário ou não é contemplada.

NOTAS i

Pesquisa financiada através da concessão de uma bolsa nível mestrado pelo CNPq e pelo PPGH-UFF. Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (PPGH-UFF), sob orientação da professora e doutora Elisa Frühauf Garcia. E-mail: [email protected]. iii O termo “missão” se traduz aqui como o espaço onde os índios de procedências distintas eram reduzidos a um território circunscrito pela administração jesuítica. Ainda que a historiografia tenha tratado as missões e reduções como tendo o mesmo significado, na realidade existiam diferenças sutis entre elas. As missões jesuíticas aproveitaram a legislação indigenista espanhola que previa a existência das reduções (ou pueblo de índios) como lugares de circulação reservados aos nativos. Sobre a questão, ver: ELLIOTT, J. H. “A Espanha e a América nos Séculos XVI e XVII”. In: BETHELL, Leslie (org.). História da América Latina: a América Latina Colonial 1. Vol. 1. São Paulo: Edusp ; Brasília: Fundação Alexandre Gusmão, 1997. Além disso, alguns trabalhos também discutem a afinidade entre a estrutura das reduções espanholas com os aldeamentos portugueses. Sobre os aldeamentos, ver: ALMEIDA, M. R. C. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003. iv Alguns autores tem destacado a questão da mão de obra como uma discussão essencial para entender as relações sociais que se estabeleceram no Paraguai colonial. No limite, como salientaram Regina Gadelha e posteriormente, John Monteiro, as disputas que se desdobraram ao longo dos seiscentos, envolveram o controle das populações nativas. Ver: GADELHA, Regina Maria A. F. As Missões jesuíticas do Itatim: um estudo das estruturas sócio-econômicas coloniais do Paraguai, séculos XVI e XVII. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980 ; MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra. Índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras. 1995. v Conjunturas semelhantes foram compartilhadas por outros índios nas demais regiões de fronteira entre as possessões luso-espanholas. Veja-se: CARVALHO JÚNIOR, Almir Diniz de. Índios cristãos: a conversão dos gentios na Amazônia portuguesa (1653-1769). Tese de doutorado, Campinas: Unicamp, 2005 ; GARCIA, E. F. As diversas formas de ser índio: políticas indígenas e políticas indigenistas no extremo sul da América portuguesa. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2009. vi CHARTIER, Roger. História Cultural – Entre práticas e representações. Lisboa/Rio de Janeiro: Difel/Bertrand Brasil, 1990. vii Sobre a importância da cultura escrita para a monarquia espanhola cita-se como referência: BOUZA, Fernando. El libro y el cetro. Madrid: IHLL, 2005. viii RAMINELLI, R. J. Imagens da colonização. A representação do índio de Caminha a Vieira. São Paulo/Rio de Janeiro: Edusp/Fapesp/Jorge Zahar, 1996, p.79. ix SPALDING, Karen. “¿Quiénes son los indios?”, In: ., De indio a campesino, Lima: Instituto de Estudios Peruanos, 1974, pp. 147-193. x Contudo, determinadas pesquisas conseguiram tomar como ponto de partida documentos escritos pelos guaranis no contexto das disputas territoriais entre as monarquias ibéricas, nas quais os nativos tiveram participação ativa. Ver, por exemplo, MELIÁ, B. “Escritos guaraníes como fuentes documentales de la historia rioplatense”. In: PAGE, C. A. (ed), Educación y Evangelizacion, la experiencia de un mundo mejor, X jornadas internacionales sobre misiones jesuiticas, Cordoba: UCC, 2005 ; NEUMANN, E. Práticas letradas guarani: ii

415

produção e usos da escrita indígena (séculos XVII e XVIII). Tese de doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em História da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005. xi Com o intuito de facilitar a leitura dos trechos citados fora do corpo do texto, foi realizada uma atualização ortográfica do espanhol. xii No século XVII o Itatim era parte da província jesuítica do Paraguai. Sendo assim, era circunscrito às possessões espanholas da América meridional, uma vez que ficava a oeste do limite estabelecido pelo tratado de Tordesilhas. Porém, as fronteiras ibéricas na América nunca foram bem definidas, sobretudo no período da união das duas monarquias (1580-1640). Atualmente, a região se localiza no Brasil, onde corresponde, grosso modo, ao território do estado do Mato Grosso do Sul. xiii FERRER, Diogo. “Doc: VII - Ânua do Padre Diogo Ferrer para o provincial sobre a geografia e etnografia dos indígenas do Itatim. (21/08/1633)”. In: CORTESÃO, op.cit, p.30. xiv Maxime Haubert destacou a manutenção da hierarquia pelos inacianos nas reduções: destaca a mudança no critério de eleição do cacicado guarani. Anteriormente aos contatos, os índios principais era eleitos pelo seu mérito na proteção da comunidade guarani (o que explica a valorização da guerra como elemento comum nesta sociedade). Nas reduções, o critério para a eleição dos caciques que ocupariam os cabildos passou a ser a linhagem. Veja-se: HAUBERT, M. Índios e jesuítas no tempo das missões, séculos XVII-XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 1990 [1967]. xv Sobre os limites e possibilidades do projeto jesuítico, ver: CASTELNAU-L’ESTOILE, C. Operários de uma vinha estéril: os jesuítas e a conversão dos índios no Brasil, 1580-1620. Bauru: Edusc, 2006. xvi Ver: “Doc: XLIX - Resposta que os índios de Santo Inácio deram aos padres Joseph Cataldino e Cristoval de Mendiola, quando estes lhes comunicaram as provisões reais em que manda aos índios das reduções não sirvam mais que dois meses, nem sejam levados à Maracaju na estação doentia. Acompanhado de testemunho de vários padres da Companhia. Santo Inácio, (14/08/1630).” In: CORTESÃO, Jaime (Org.). Manuscritos da Coleção De Angelis - Jesuítas e Bandeirantes no Guairá... pp. 353-55. xvii ALTAMIRANO, Diego Francisco de. “Doc: XXIV - Ânuas dos anos de 1653 ao fim de 1654 sobre o colégio de Salta, as missões do Chaco, do vale do Calchaqui; colégios de S. Miguel, Santiago del Estero, Córdoba, Buenos Aires, Santa Fé e Rioja, Assunção; missões do Itatim, Vila Rica; reduções do Paraná e Uruguai, Nossa Senhora de Encarnação de Itapuá, Santo Inácio do Paraguai, Nossa senhora de Loreto, Santo Inácio do Guairá, Conceição e outras reduções.” In: CORTESÃO, op.cit, p.197. xviii VALENCIA, Gabriel de. ”Doc: XV - Cópia de uma carta do governador de Tucumã para Frei Gabriel de Valencia, franciscano, mas egresso da Companhia de Jesus, pedindo notícias sobre esta, com a respectiva resposta, contendo informes muito particulares sobre toda a província jesuítica do Paraguai e as atividades de seus membros (20/03 a 08/05 de 1657)”. In: CORTESÃO, op.cit, p.265. xix PUCHETA, Baltasar de. “Doc: VIII - Petição apresentada ao governador do Paraguai pelo procurador geral de Assunção na qual acusa os jesuítas e suplica que os índios do Itatim voltem a prestar serviço pessoal (10/051637)”. In: CORTESÃO, op.cit, p.52. xx MONTEIRO, R. B. “Aparente e essencial: sobre a representação do poder na época moderna”. In: SOUZA, Laura de Mello e; BICALHO, Maria Fernanda & FURTADO, Júnia (org.). O governo dos povos. São Paulo: Alameda, no prelo, 2005. xxi Não cabe neste trabalho discutir as mudanças em torno da ideia de mestiçagem, que vinha sendo estudada sob os prismas biológico e cultural. Atualmente, têm sido incorporada aos debates a perspectiva social da mestiçagem, que permite compreender a dinâmica fluida dos índios em situação colonial. Ver: POLONISIMARD, Jacques. “Historia de los indios en los Andes, los indígenas en la historiografía andina: análisis y propuestas”, Nuevo Mundo Mundos Nuevos [Online], Biblioteca dos Autores do Centro, 2005. Disponível no endereço: http://nuevomundo.revues.org/651 xxii ZURBANO, Francisco Lupercio de. “Doc: XI - Instrução do padre provincial Lupércio de Zurbano para os missionários do Itatim (20/09/1643).” In: CORTESÃO, op.cit, p.66. xxiii Vide: NEUMANN. E, O trabalho guarani missioneiro no Rio da Prata colonial, 1640-1750. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1996. [dissertação de mestrado], p.67-68. xxiv ALTAMIRANO, Diego Francisco de. “Doc: XXIV... “ In: CORTESÃO, op.cit, p.207. xxv MAEDER. E. J. “Las fuentes de información sobre las misiones jesuiticas de guaranies”. In: Teologia: revista de la Facultad de Teología de la Pontificia Universidad Católica Argentina, nº50, 1987, pp.143-63. xxvi Para um exemplo de descrições edificantes do trabalho missionário, ver: PASTELLS, Pablo. Historia de la Compañia de Jesús en la provincia del Paraguay (Argentina, Paraguay, Uruguay, Perú, Bolivia y Brasil). Madri: V.Suárez, 1912-49. xxvii PALOMO, Federico. “La memoria del mundo: clero, erudición y cultura escrita en los imperios ibéricos de la Edad Moderna”, Monográfico de Cuadernos de Historia Moderna. Madri: Anejos, 13, 2014. pp.11-26, [introdução], p.16.

416

Antígone de Sófocles: a semântica das perguntas e lugar da política

Bruno Paniz Botelho1

Resumo O presente artigo tem por interesse explorar uma possibilidade de interpretação da tragédia Antígone de Sófocles. Parte-se das perguntas com as quais Sófocles preenche o diálogo entre Creon e Hemon, dois personagens que ocupam o terceiro episódio da peça. Nota-se a presença da temática da política representada através das perguntas que Sófocles coloca na fala dos personagens. Palavras-chave: Tragédia - Política - Perguntas Abstract This article intends to explore an interpretation possibility for Sophocle´s Antigone. The starting point are the questions that Sophocles puts over the dialogue between Creon and Hemon, the two characters from the third episode of the play. It´s possible to notice the thematics of politics reveled through the questions that Sophocles puts within the speeches of the characters. Key-words: Tragedy - Politics - Questions

1. Introdução

Este breve artigo tem por intenção sugerir uma aproximação interpretativa com o texto da tragédia Antígone (442 a. C) de Sófocles. Parte-se do princípio de que a tragédia grega se constituiu enquanto uma forma de "arte política", conforme noção de Christian Meier2, inserida em um processo de crise de valores e profundas transformações nos planos sociais, políticos e culturais da pólis Ateniense do séc. V a. C. Segundo Vernant, as mudanças que a tragédia operou no horizonte da cultura grega podem ser exemplificadas por três movimentos: primeiramente, no plano das instituições sociais, com a instauração dos concursos trágicos, a tragédia passa a ocupar, em termos de organização e de normas, o mesmo plano de outras instituições da pólis como as assembleias e os tribunais democráticos. 3 Num segundo plano, a tragédia destaca-se no plano das formas literárias, por constituir-se enquanto um gênero poético singular, voltado para o espetáculo, para ser visto, ouvido, gesticulado e representado

417

no palco do teatro.4 Por fim, pelo advento da chamada "consciência trágica", a tragédia se prefigura enquanto uma "criação" capaz de promover profundas mudanças no plano da experiência humana. O composição da figura do homem tragicamente vinculado a sua ação, bem como dos efeitos desta para si e para o mundo configura a dinâmica dos problemas, enigmas e ambiguidades que passam a dar forma ao horizonte das questões que emergem no convívio dos homens na cidade.5 As mudanças produzidas pela tragédia no seio da cultura grega distribuem-se sobre esses três planos cujo fundo de experiência constitui o próprio processo histórico da pólis clássica do séc. V.6 A historicidade da tragédia nos é apreendida, em grande medida, pela presença de um texto trágico estabelecido a partir de uma relação de nexo com seu contexto, pois, como aponta Vernant, "é em função deste contexto que se estabelece a comunicação entre o autor e seu público do século V e que a obra pode reencontrar, para o leitor de hoje, sua plena autenticidade e todo seu peso de significações". 7 Logo, a interpretação de um texto de mais de dois mil anos oscila, como um pêndulo, entre o "ali e então" e o "aqui e agora". Trata-se, portanto, de lançar-se a um horizonte de análise no qual o interprete do presente se desloca sobre um eixo no qual um universo - uma condição histórica de experiência humana é simbolizada por um texto que habita um lugar semântico do passado - do que está acabado e, ao mesmo tempo, daquilo que resiste ao tempo, cujo conteúdo se mantém pertinente e cujas questões permanecem sendo repensadas e revisitadas. Há um procedimento historiográfico, que chegou a ser denominado enquanto elemento central de identidade do movimento proposto pela chamada "Escola dos Annales" 8, e que constitui, até hoje, um modelo das atividades de análise dos historiadores. Trata-se da perspectiva da chamada "história problema", apresentada como um contraponto ao modelo da "história factual", da "narrativa linear" e da "história política tradicional".9 Parte-se de um princípio: a compreensão de que os documentos e fatos históricos "não falam por si" e de que, logo, torna-se preciso "reconstruir" os seus sentidos possíveis a partir de um determinado contexto de interpretação ao qual o historiador pertence. Em outras palavras, todas as questões e problemáticas lançadas para o passado são concebidas em um presente historiográfico específico, de forma que o historiador precisa lançar perguntas do presente às suas fontes do passado.10 Neste sentido, esse modelo encabeçado pelos Annales admitia, inevitavelmente, a presença subjetiva do historiador no processo de ativação dos significados "encontrados" nas suas fontes de análise. Reitera-se a participação ativa e constante do historiador no processo de reconhecimento e valorização dos discursos, significados

418

e

conteúdos presentes nas fontes. Esta condição resulta que "tudo na história-problema deve ser explícito: também as fontes, os métodos, e mesmo o lugar de onde o historiador se pronuncia."11 Produzir o nascimento da problemática de pesquisa a partir de perguntas coloca o historiador e sua pesquisa em função de um compromisso, ou pretensão, de preenchimento de uma suposta lacuna que, inicialmente, é sustentada por perguntas valorativas que norteiam não só a pesquisa, como as aspirações do próprio pesquisador, inserido em uma "vertente" teórica/metodológica de um determinado presente historiográfico. Esta condição poderia significar uma postura plenipotenciária do presente em relação ao passado? É no limiar desta questão que os historiadores dos Annales chamavam atenção para os "falsos problemas", marcados por anacronismos e falhas de análise sobre as condições próprias de existência de cada sociedade na história. No movimento de lançar-se à interpretação e problematização de um documento, o historiador, buscando escapar à armadilha dos "falsos problemas" e de seus sintomas, pode pautar-se no contexto histórico ao qual pertence tal documento e reconstruir um complexo das experiências sócio/culturais que permitiram que aquela "fonte" tivesse sido produzida da maneira pela qual ela se apresenta em termos de sua temática predominante, de sua autoria quem a produziu -, bem como da difusão dela mesma em seu "contexto original". Toma-se o texto da tragédia Antigone, escrita por Sófocles, cuja data de encenação não se sabe ao certo, mas convencionou-se atribuir ao ano de 442. Trata-se de um texto marcado por características estruturais próprias do gênero dramático e altamente polissêmico no que se refere às suas temáticas. Encontra-se nele a presença latente da temática da família, da religião, do destino, da cidade, da natureza do poder e da política, dentre tantos outros. Em termos de comunicabilidade, é amplamente aceita a afirmação de que a tragédia estabelecia um diálogo direto com o público de Atenas. A tragédia não é apenas uma forma de arte, é uma instituição social que, pela fundação dos concursos trágicos, a cidade coloca ao lado de seus órgãos políticos [...] a cidade se faz teatro, ela se toma, de certo modo, como objeto de representação e se desempenha a si própria diante do público. Mas, se a tragédia parece assim, mais que outro gênero qualquer, enraizada na realidade social, isso não significa que seja um reflexo dela. Não reflete essa realidade, questiona-a. Apresentando-a dilacerada, dividida contra ela própria, torna-a inteira problemática. 12

Embora seja impossível saber os sentidos "reais" que a tragédia constituía para seu público original, algumas tentativas historiográficas de reconstrução das categorias sociais, políticas e mentais presentes no contexto do séc. V foram elaboradas por historiadores ligados

419

a determinadas correntes teóricas da historiografia. O modelo de procedimento interpretativo proposto pela "psicologia história" e "antropologia histórica", tal como a denominam JeanPierre Vernant e Pierre Vidal-Naquet13, parte de uma abordagem baseada em um tipo específico de interpretação. Tem-se em mente as diversas categorias do pensamento social grego que emergem na pólis de Atenas no contexto do séc. V e que a tragédia é capaz de representar para o público no teatro:

Mas o que entendemos por contexto? Em que plano da realidade o situaremos? Como veremos suas relações com o texto? Trata-se, em nossa opinião, de um contexto mental, de um universo humano de significações que é, consequentemente, homólogo ao próprio texto ao qual o referimos: conjunto de instrumentos verbais e intelectuais, categorias de pensamentos, tipos de raciocínios, sistemas de representação, de crenças, de valores, formas de sensibilidade, modalidade de ação e do agente. 14

É em função desta compreensão que o presente texto busca propor sua perspectiva de análise sobre a tragédia Antígone. Os historiadores, ao lançarem-se para a interpretação de textos clássicos como as tragédias gregas reconhecem, em princípio, que as suas questões devem reverberar num horizonte contextual que leve em consideração a conjuntura histórica na qual esse texto foi produzido, para que se possa evitar falhas de interpretação como os produzidos pelos "falsos problemas". Porém, como advertia Marc Bloch, os documentos "não falam senão quando sabemos interrogá-los".15 Parece claro que Bloch se referia a qualquer fonte histórica tomada segundo o critério de pertencimento a um contexto do passado e passível de ser interpretada pelo historiador a partir de suas referências teóricas e metodológicas de seu presente historiográfico. No entanto, tomando como fonte uma tragédia grega, inserida na tradição dos gêneros literários, é possível perceber as características singulares que a constituem e que impõem para o seu interprete limites e possibilidades de análise que somente o texto trágico, em sua estrutura e forma, podem comportar. Isto significa que existem certas características estruturais intrínsecas ao texto que, de alguma forma, ajudam a plasmar as análises que se faz dele. Um exemplo da relação entre estrutura do texto trágico e as possibilidades semânticas extraídas dele é a construção formal do texto marcada pela presença de personagens individualizadas que dialogam entre si e com a figura coletiva do coro, expondo a condição de ambiguidade e tensão entre as diferentes posturas e valores que cada personagem carrega em seu discurso, exprimindo os debates que a cidade trava com seus cânones do passado e os "valores coletivos impostos pela nova cidade democrática". Sobre esse aspecto, Vernant ressalta que:

420

16

Esse debate com um passado ainda vivo cava no interior de cada obra trágica uma primeira distância que o intérprete deve levar em conta. Ela se exprime, na própria forma do drama, pela tensão entre os dois elementos que ocupam a cena trágica: de um lado, o coro, personagem coletiva e anônima encarnada por um colégio oficial de cidadãos cujo papel é exprimir em seus temores, em suas esperanças, em suas interrogações e julgamentos, os sentimentos dos espectadores que compõem a comunidade cívica; de outro lado, vivida por um ator profissional, a personagem individualizada cuja ação constitui o centro do drama e que tem a figura de um herói de uma outra época, sempre mais ou menos estranho à condição comum do cidadão.17

O debate que a tragédia estabelece entre o passado da cidade, com seus modelos e cânones antigos, e o presente da cidade democrática, ao qual a tragédia pertence, pode ser uma interessante alternativa para abordar a temática da política presente no texto. A política apareceria no entrecruzamento de temporalidades e experiências políticas do passado e do presente da pólis. Esse entrecruzamento constitui-se enquanto um "lugar de encontro" entre duas posturas, ou princípios, representados por dois personagens colocados em oposição. É interessante observar que Sófocles opta por construir o diálogo entre Creon e Hemon preenchido por questionamentos que evocam o tema da política sustentada por essa relação conflituosa de temporalidade entre passado e presente. O presente texto constitui uma tentativa de análise do diálogo entre Creon e Hemon partindo da seguinte inquietação: e se a atividade de investigação acerca das noções e conteúdos políticos presentes no texto trágico estivesse pautada no reconhecimento das perguntas que o próprio Sófocles coloca na boca de seus personagens? Que implicações sofreria a análise se o pesquisador se colocar enquanto um interprete dos questionamentos que o autor lançou para seu público, em seu próprio tempo? Em grego, o sinal denotativo das perguntas equivale ao "ponto e virgula" ( ; ) em português e é possível perceber no texto os momentos de pertinência nos quais colocar uma pergunta na fala de um determinado personagem tende a significar a representação de um impasse constitutivo e amplificador do drama que opera em um movimento duplo: por um lado, de exposição das tensões e conflitos quase sempre insolúveis, e, por outro, de marcar as distâncias entre os personagens. É nesta direção que a proposta do artigo se desenvolve.

421

2. O diálogo de Creon e Hemon Primeiramente, propõe-se uma entrada específica no texto trágico da Antígone18. Temse por foco o diálogo estabelecido entre Creon e Hemon, que ocupa o terceiro episódio da peça. O diálogo tem início com a introdução de Hemon pelo Coro: "Mas hei-lo, Hemon, teu filho, caçula da família. Chora a moira da noiva, Antígone" (vv. 626-29). Hemon é inserido em um momento de profunda tensão para o drama, pois Creon havia acabado de decretar a punição de Antígone. Pelo ato transgressor de sepultamento do corpo de Polinice, Antígone seria levada para uma gruta distante da cidade, onde ficaria trancafiada até a morte. O primeiro movimento de Creon é verificar se seu filho concorda com seu decreto: "Sabes da sentença contra a noiva e vens querer brigar comigo, ou, acima de tudo, amas teu pai?" Creon exige que Hemon se submeta aos princípios de ordem impostos pela hierarquia da casa (vv. 639-44). Sua concepção de autoridade manifesta-se na máxima: "O virtuoso condutor do lar revela-se correto na urbe" (vv. 660-61). A estratégia retórica de Hemon caracteriza-se, inicialmente, por tirar o foco de sua condição de filho submisso à hierarquia do lar e buscar uma abertura analítica acerca da ação de Antígone. Hemon informa Creon sobre a existência de outras vozes que se manifestam sobre o caso de Antígone (vv. 687-89). Ele afirma "escutar" (kloun) pela penumbra o pranto da pólis em favor de Antígone (vv. 692-95). O apelo que Hemon faz ao pensamento ponderado (phrenas) exige de Creon uma postura menos centralizada19 e mais voltada para a consideração do pensamento dos outros e faz uma advertência: "Não insistas muito na ideia de que ninguém mais conhece o certo, pois quem imagina ser o dono da razão, ter língua e ânima acima dos demais, quando o examinam, acham o que? Vazio!" (vv. 704-09). Para Hemon, o efeito prático de usar o pensamento ponderado (phrenas) consiste em permitir a "metamorfose", a mudança na forma de pensar. Após ouvir a fala de Hemon, o Coro se dirige a Creon: "Se faz sentido o que ele diz, escuta-o, rei, e ele a ti, pois ambos falam bem." (vv. 724-25). É após receber as palavras do Coro que Creon lançará ao filho uma sequência de perguntas fundamentais para a análise proposta neste artigo:

CREON: E desde quando um rapazote ensina o que é pensar a alguém entrado em anos? HEMON: Tão só que é correto. Se sou novo, deixa de lado a idade e vê meus méritos.

422

CREON: Existe mérito em louvar rebeldes? HEMON: Não é do meu feitio louvar o vil. CREON: Mas ela não padece de ser vil? HEMON: Não, na opinião unânime da pólis. CREON: E a pólis dita meu comportamento? HEMON: Pareces um novato no palanque. CREON: Devo ceder meu cetro a outro ser? HEMON: Não há cidade que pertença a um único! CREON: A pólis não pertence ao mandatário? HEMON: Reinarias sozinho no deserto.

Que sentidos podemos acrescentar ou extrair dessas perguntas, tomadas tanto singularmente quanto em conjunto? Singularmente, cada uma delas evoca um sentido próprio que interage tanto com o ritmo e movimento do drama geral do texto, quanto com o sentido amplo do diálogo entre Creon e Hemon. Porém, tomadas em conjunto, elas parecem expor uma temática maior e mais constante nos textos trágicos em geral: a temática da política e dos conflitos a partir dos quais ela se constitui no interior do convívio na pólis. Considerando que a tragédia estabelecia um diálogo com seu público, em que medida as perguntas que Sófocles coloca na fala de Creon e, por conseguinte, as respostas oferecidas por Hemon poderiam representar as oposições e problemáticas vivenciadas pela pólis democrática? De que forma esse diálogo pode ser constitutivo de um "conceito de pólis" evocado em oposição à postura tirânica? Além de repulsa, Creon parece demonstrar um grande "estranhamento" pelas ideias defendidas por Hemon. O tirano parece falar de um outro tempo, insistindo em um discurso desgastado que não se coaduna com a ordem isonômica defendida por Hemon. É interessante a escolha que Sófocles faz da figura de Hemon para produzir uma defesa dos valores democráticos. Esse traço político de Hemon parece estar ligado a leitura

423

que Sófocles fez dos poemas Homéricos. No livro IV da Ilíada de Homero, Hemon é definido como "poimena laon" (ILÍADA, IV, vv. 296).20 A definição "pastor do povo" parece sugestiva considerando que representa aquele que realiza a função de proteger, ou cuidar de uma comunidade. Parte da estratégia retórica de Hemon consiste em informar seu pai de que o suposto "crime de Antígone" é visto como um "ato nobre" 21 defendido pelos cidadãos da pólis. É interessante, ainda, perceber que é pelas perguntas de Creon que os valores da política democrática surgem na fala de Hemon, como acionados por uma ruptura drástica com as convicções políticas de seu pai, que a cada movimento se revela um líder decrépito e incapaz de lidar com as demandas da esfera pública. Considerando a tragédia enquanto uma forma de "arte política" capaz de colocar publicamente as grandes questões que dividem o mundo social da pólis, uma análise incipiente acerca do sentido das perguntas que Sófocles coloca na fala de seus personagens pode resultar em uma reflexão acerca dos diversos usos do texto trágico, além de indicar uma possibilidade de perceber a representação das questões que o próprio poeta em seu tempo oferecia para seu público, tendo em vista o papel central da tragédia para o desenvolvimento e cultivos dos valores democráticos. Nesta direção, as perguntas lançadas pelos personagens parecem constituírem-se enquanto um momento revelador das zonas cegas de entendimento, das lacunas e dúvidas que cada personagem, representante de um mundo, é incapaz de preencher pelo seu próprio sistema de valores e que, na intersecção simbólica criada pelo diálogo, evocam perguntas demarcadoras das tentativas, quase sempre frustradas, de compreensão dos valores que compõem e habitam o outro.

Notas

1

Mestrando do Programa de Pós-graduação em História Política da Universidade Estadual do Rio de janeiro UERJ, bolsista Capes. Sob orientação da Profª Drª Maria Regina Cândido. E-mail: [email protected] 2 MEIER, Christian. De la tragédie grecque comme art politique. Paris: Les Belles Lettres, 2004. 3 VERNANT, Jean-Pierre. "O deus da ficção trágica". IN: VERNANT, Jean-Pierre & VIDAL-NAQUET, Pierre. Mito e tragédia na Grécia antiga. São Paulo: Perspectiva, 2014. (p. 160). 4 Idem. (p. 161). 5 Idem. (p. 161). 6 As datas se referem ao período antes de Cristo (a. C). 7 VERNANT, Jean-Pierre. "Tensões e ambiguidades na tragédia grega". IN: VERNANT, Jean-Pierre & VIDALNAQUET, Pierre. Mito e tragédia na Grécia antiga. São Paulo: Perspectiva, 2014. (p. 8).

424

BARROS, José D´Assunção. "Os Annales e a história-problema – considerações sobre a importância da noção de “história-problema” para a identidade da Escola dos Annales". História: Debates e Tendências – v. 12, n. 2, jul./dez. p. 305-325, 2012. 9 Idem. (p. 317). 10 Idem. (p. 317). 11 Idem. (p. 317). 12 VERNANT, Jean-Pierre. "Tensões e ambiguidades na tragédia grega" IN: Op. cit. (p. 10). 13 Os autores foram muito influenciados por Ignace Meyerson, considerado um dos precursores da "psicologia histórica". 14 VERNANT, Jean-Pierre. "Tensões e ambiguidades na tragédia grega" IN: Op. cit. (p. 8). 15 BLOCH, Marc. Apologia da História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. (p. 79). 16 VERNANT; VIDAL-NAQUET. "Prefácio". IN: Op. Cit. (p. 22). 17 VERNANT, Jean-Pierre. "Tensões e ambiguidades na tragédia grega". IN: Op. Cit. (p. 12). 18 Utiliza-se a edição bilíngue grego-português publicada pela editora Perspectiva (2009), com tradução de Trajano Vieira. 19 Corrobora com sua postura centralizada o fato de Creon ser definido como tirano (τύραννος) em três momentos na tragédia: por Antígone (vv. 506), pelo vate Tirésias (vv. 1056) e pelo Mensageiro (vv. 1169). 20 Utiliza-se a edição bilíngue grego-português em dois volumes publicada pela editora Mandarim (vol. I) e pela editora Arx (vol. II), com tradução de Haroldo de Campos. 21 "Um prêmio em ouro não merece Antígone? é a fala obscura que em silêncio alastra-se" (vv. 699-700). 8

425

Os intelectuais e a República na imprensa Camila de Freitas Silva Bogéa* Resumo: Nosso objetivo nesta comunicação é analisar o papel dos intelectuais na Campanha Republicana (1870-1889) a partir de sua atuação na imprensa. Instrumento de construção da opinião pública, a imprensa se configurou em espaço de luta, polêmica, e reivindicações. Detentores do domínio das letras e produtores de discursos diretamente relacionados às discussões públicas da cidade e do Estado, os jornalistas constituíam um grupo de intelectuais cujas opiniões ecoavam na sociedade. Nosso interesse é destacar a importância desses intelectuais na divulgação da ideia de república via imprensa nos jornais: O Paiz, A Provincia de São Paulo e A Federação. Palavras-Chave: Intelectuais, Imprensa, República Resume: Our goal in this paper is to analyze the role of intellectuals in the Republican Campaign (18701889) from their performance in the press. Instrument for the building of public opinion, the press has configured itself as a space of dispute, controversy, and claims. Holders of the domain of letters and producers of speeches directly related to public discussions of the city and the state, the journalists were a group of intellectuals whose views echoed in society. Our interest is to highlight the importance of these intellectuals in spreading the idea of republic through press in the papers: O Paiz, A Provincia de São Paulo and A Federação. Keywords: Intellectuals, Press, Republic O tema dos intelectuais tem se tornado nas últimas décadas muito caro aos historiadores. Porém, como observa Sirinelli em capítulo no livro Por uma História Política, organizado por René Rémond1, tal interesse é um fenômeno recente. Segundo o autor, diversas tendências historiográficas impossibilitaram, por muito tempo, o desenvolvimento deste campo de investigação como: o descrédito da história política, o interesse pelas “massas” e, como causa mais específica, a dificuldade de contorno de um grupo vago e, por muito tempo, de tamanho reduzido, em período de domínio da história serial. Para Sirinelli,

a partir da segunda metade da década de 1970 que a história dos intelectuais começou a superar sua indignidade e que pesquisas em andamento ou já publicadas adquiriram legitimidade científica e aos poucos mereceram o interesse da corporação dos historiadores2

Explicando as causas que levaram ao nascimento deste campo o autor expõe que o renascimento do político e a respeitabilidade da história recente tiveram grande influência,

426

porém, o fator essencial foi a mudança de status do grupo dos intelectuais. Não só houve um crescimento do grupo social como a própria figura do intelectual foi dessacralizada, possibilitando questionamentos que impulsionaram pesquisas históricas. Com o interesse voltado para esse novo campo de possibilidades de pesquisa surge outro desafio que diz respeito à compreensão do termo “intelectual”. Sirinelli aponta duas acepções do intelectual: “uma ampla e sociocultural, englobando os criadores e ‘mediadores’ culturais, a outra mais estreita, baseada na noção de engajamento”.3 Ressaltando essa dualidade, o autor aponta que as discussões em torno de tais acepções configuram um falso problema, uma vez que o engajamento do intelectual é dependente, de certa forma, da utilização de seu reconhecimento por parte da sociedade, seja ele eventual ou não, para participação no debate – ao menos para que suas opiniões tenham eco. Sendo assim, “o historiador do político deve partir da definição ampla, sob a condição de, em determinados momentos, fechar a lente, no sentido fotográfico do termo”.4 Incorporando as discussões metodológicas apontadas pelo Sirinelli trataremos neste artigo de um grupo social específico cujo discurso tinha um alcance considerável e estavam diretamente relacionados com as discussões políticas e sociais de sua época: os jornalistas que na virada do século XIX para o XX escreviam para jornais de grande circulação no Brasil focando especialmente em seu aspecto de mediador. Detentores das letras e produtores de discursos diretamente relacionados às discussões públicas da cidade e do Estado, os jornalistas constituíam um grupo de intelectuais cujas opiniões ecoavam na sociedade. Conscientes de seus papéis, buscavam guiar a opinião pública através de artigos e editoriais. Em momentos de mudanças eram os informantes da situação à população. Era nas portas das edições que se reuniam grandes parcelas da população para descobrir ou se informar do que estava ocorrendo. Estes intelectuais fazem parte do que Angela Alonso vai chamar de geração de 1870. Atores que "vivenciaram uma mesma situação ao serem expostos aos sintomas sociais e intelectuais de um processo de desestabilização (...) compartilhando um destino comum sobre si, configurando uma ação coletiva".5 Dentre os intelectuais dessa geração, Alonso identifica os republicanos, que constituíam parte da dissidência liberal radical que, exacerbando as bandeiras levantadas por este último, passou a exigir um sistema político representativo federalizado. Apesar de constituir um grupo socialmente heterogêneo, eles compartilhavam uma experiência comum: marginalização política. Seus membros não estavam dentro do quadro de poder do Império. Sendo assim, o agir desse grupo se dava fora das instituições formais. A produção intelectual de 1870 era ainda de contestação política. Combatia as instituições e

427

valores essenciais da ordem imperial, mas não com intenção de revolucionar o sistema, mas sim de fazer uma reforma na mesma. Utilizando os conceitos de Charles Tilly sobre movimentos sociais - repertório, estruturas de oportunidades políticas e comunidades de experiência. - a Alonso aponta para a relação entre os "agentes sociais" e suas ações, que fariam parte de um repertório - padrões, noções, argumentos, conceitos, teorias, que emergem na luta e configuram também formas de agir. "O repertório político-intelectual europeu auxiliou o movimento da geração de 1870 a exprimir de maneira sistemática e organizada suas críticas (...) [a] elite imperial”. 6 Já a própria existência do movimento estaria relacionada com a existência de estruturas de oportunidades políticas, ou seja, "quando processos de crise dilatam as 'dimensões consistentes (...) do ambiente político que fornece incentivos para pessoas se engajarem em ações coletivas". 7 Por fim, os integrantes do movimento não partilhavam a mesma origem social, mas uma "comunidade de experiência".8 Os membros da geração de 1870 "vivenciaram uma mesma situação ao serem expostos aos sintomas sociais e intelectuais de um processo de desestabilização (...) compartilhando um destino comum sobre si, configurando uma ação coletiva".9 Ao abordar o tema dos movimentos sociais novamente em outro trabalho, sobre o movimento abolicionista, Angela Alonso aponta que Movimentos surgem tipicamente quando cisão ou enfraquecimento da coalizão que dirige o regime afeta a interação política entre o estado e a sociedade, ao gerar elites dissidentes e reduzir a capacidade estatal de reprimir protestos, assim propiciando aos desafiantes aliados potenciais e possibilidade de exprimir reivindicações.10

As constantes eleições fraudulentas, a resistência à implantação de reformas, a doença do imperador e a possibilidade de governo do Brasil passar a um estrangeiro – uma vez que pela linha de sucessão a princesa Isabel, casada com o Conde D’Eu, receberia a coroa – fomentou um cenário mais favorável ao retorno das ideias associadas à república. A Guerra do Paraguai e as reivindicações dos militares assim como também a abolição da escravidão foram outros fatores que colaboraram com o desprestígio do império. Para além das questões políticas e econômicas, outro fator teve grande importância no processo de desestabilização da monarquia, um movimento intelectual impulsionado por uma nova cultura democrática e científica, passou a desqualificá-lo, atacando suas bases de sustentação, levantando polêmicas e provocando a “deslegitimação simbólica e teórica do regime”.11 A circulação das ideias evolucionistas de Spencer, e positivistas de Comte mexeram com a categoria de tempo ao introduzir a noção de progresso e “alcançar o progresso exigia o embarque no trem da evolução rumo à estação

428

‘civilização’”.12 A introdução dessas ideias levou também a um culto à ciência, figurando-a como elemento explicador e legitimador de fenômenos naturais e sociais. A imprensa, lugar de publicização por excelência, era então a arena de debate da maior parte dos intelectuais. Também Alonso aponta esta questão. Segundo a autora, o repertório mobilizado pelo movimento incorporou principalmente esquemas explicativos do cientificismo francês da III República e da geração de 1870 portuguesa. Essa incorporação era feita a partir da filiação política dos grupos e absorveu recursos teóricos e retóricos para gerar uma interpretação do contexto de crise politica e mudança social no qual estava imersa. Não faziam uma leitura aleatória. Eram mobilizados dois elementos: incorporação de teorias estrangeiras da reforma social e reinterpretação da tradição nacional. Cada um constitui uma explicação histórico-genetica conforme acentua uma dimensão da sociedade imperial. (...) As interpretações desembocam num diagnóstico da contemporaneidade como período de crise e na proposição de um programa de reformas que varia também.13

Nesse sentido, as críticas apresentadas nos textos variavam de acordo com o tipo de marginalização política. Novos Liberais e positivistas abolicionistas eram partidários antes de tudo de uma reforma social, queriam com isso completar a formação de uma nova sociedade. Federalistas científicos e liberais republicanos se empenhavam fundamentalmente numa reforma política, apontando para um regime democrático.14

A geração de 70 ressignificou a tradição e reelaborou a identidade nacional. Era um movimento com caráter contestador e não revolucionário. Com o repertório da política científica formulou uma teoria da história e uma explicação estrutural do Brasil e criou projetos de reformas. Nestas estavam em pauta reformas estruturais: um novo regime de regulação de trabalho; a secularização das instituições; a dilatação da cidadania, com a extensão de direitos civis e da participação política; a reforma das instituições políticas; descentralização política administrativa e tributária; a modernização econômica [...] o federalismo e o abolicionismo foram suas respostas mais gerais à conjuntura de crise do Império.15

Em artigo publicado sobre a modernização republicana, Mello analisa a operacionalidade do conceito de república nas décadas finais do império. Segundo a autora, nesse período “o vocábulo república expandiu seu campo semântico incorporando as ideias de liberdade, progresso, ciência, democracia, termos que apontavam, todos, para um futuro desejado”.16 Parte do repertório dos republicanos era a atuação via imprensa, seu principal meio de propaganda de um novo regime para angariar novos adeptos. Como aponta Cláudia Viscardi em trabalho sobre o movimento republicano,

429

um dos principais instrumentos da propaganda republicana era a publicação de manifestos e sua ampla divulgação através da imprensa. Os jornais republicanos serviam de mecanismo para expansão das novas ideias, na tentativa de se construir uma opinião pública crítica ao regime monárquico, com vistas a sua superação.17

Detentores do domínio das letras e produtores de discursos diretamente relacionados às discussões públicas da cidade e do Estado, os jornalistas constituíam um grupo de intelectuais cujas opiniões ecoavam na sociedade. Conscientes de seus papéis, buscavam guiar a opinião pública, como aponta Siqueira, através de artigos e editoriais. Era nas portas das redações que se reuniam grandes parcelas da população, em busca de notícias e informações atualizadas sobre os eventos. A imprensa mediava então a discussão política, era ponte entre o sistema político oficial e as ruas, promovendo as principais discussões e os principais assuntos do momento. Considerando-se importantes periódicos do período em algumas das principais províncias do país: Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul, citamos alguns jornais que tiveram importante papel no movimento republicano: O Paiz, A Provincia de São Paulo e A Federação. Paiz começou a circular no dia 1˚ de outubro de 1884 e tinha como diretor e redator chefe Quintino Bocaiúva, sendo seu proprietário João José dos Reis Júnior, o Conde São Salvador de Matosinhos, figura ligada ao comércio de importação de secos e molhados. Sobre as ideias políticas de Bocaiúva “podemos dizer que embora se identificasse com o evolucionismo filosófico pregado pelos positivistas (...), Quintino afastava-se deste ao opor-se à ideia da ditadura. Defendeu, mesmo antes de tornar-se republicano, os ideais liberaisdemocráticos”.

18

Bocaiúva fora portanto figura de destaque da propaganda republicana,

associado ao republicanismo “histórico” do Manifesto de 1870, documento do qual foi signatário e um dos principais autores. Apesar dos vínculos notórios de O Paiz com a causa republicana, afirmava-se em seus textos sempre a neutralidade do jornal, no qual “podia-se ler, numa mesma edição, as colunas ‘Campo Neutro’, redigida por Joaquim Nabuco – que movera batalha contra o crescimento do republicanismo – e ‘Boletim republicano’, dirigida por Aristides Lobo”.19 Segundo Andréa Santos da Silva Pessanha, “apresentar-se como jornal neutro, imparcial era ponto nevrálgico nos primeiros exemplares”.20 A autora considera que a insistência em apresentar-se como uma folha neutra, o que nunca teria convencido os seus leitores, estava relacionada ao público que queriam alcançar. A busca de convencer ao leitor que O Paiz era isento foi um indício do público alvejado. A folha não se apresentava como órgão dos reconhecidamente republicanos. O importante era ter a simpatia daqueles que poderiam ser convencidos das vantagens da república e de todo o malefício gerado pela dinastia de Bragança e pela centralização do poder ao país.21

430

Já A Província de São Paulo, propriedade de uma sociedade, tinha por redator-chefe Rangel Pestana, que se tornaria um dos membros do governo provisório do estado de São Paulo, após a proclamação. O jornal foi fundado a partir de proposta levantada na Convenção de Itu 22 para criação de um veículo “próprio e inteiramente dedicado ao partido republicano e à divulgação de seus programas”23, e era financiado exclusivamente pelos republicanos. Os dois maiores contribuidores, Rangel Pestana e Américo de Campos, ficaram responsáveis pela direção do jornal. Tendo começado a circular em 1875, inicialmente, no entanto, não se comprometeu explicitamente à causa republicana. Segundo Schwarcz, “apesar das recorrentes afirmações de simpatia, só em 1884 o jornal assumiu uma postura oficialmente republicana”. 24 Esta atitude estaria ligada à tentativa de evitar um choque com outros setores e a ampliação do possível público leitor, podendo ser comparada àquela assumida no Rio de Janeiro por O Paiz. A Província caracterizava-se ainda como um jornal vinculado às novas teorias científicas e à divulgação dos valores do progresso e da civilização. Por fim, A Federação – Órgão do Partido Republicano, editado em Porto Alegre, em circulação desde 1884. Teve por fundadores Júlio de Castilhos, Ramiro Barcellos, Ernesto Alves, Barros Cassal, Borges de Medeiros, Fernando Abott, Carlos Barbosa, Germano Hasslocher, Venâncio Ayres, Joaquim Francisco de Assis Brasil e Pinheiro Machado, “um grupo de gaúchos (...) [que] se reuniu em congresso para organizar um veículo de propagação das ideias que defendiam”.25 Júlio de Castilhos ficara responsável pela redação do jornal. Apresentava-se como “órgão do partido republicano”, constando esta informação como subtítulo do jornal. Segundo Duarte: O partido Republicano ganhava uma tribuna com A Federação. Antão de Farias, Assis Brasil e Julio de Castilhos elaboraram um programa bastante específico para o jornal, motivados pela ideia de “discutir e sustentar a legitimidade e a oportunidade do sistema de governo republicano do Brasil”, conforme expresso em sua edição número um.26

No periódico, a base das críticas à monarquia vinha da teoria positivista. Seus redatores reivindicavam a República Federativa, considerando que “a crise imperial apontava a incapacidade do sistema político em processar demandas dos que, como eles, estavam fora das instituições centrais”.27 Estas províncias apresentam focos de efervescência do movimento republicano. Tanto as províncias de São Paulo como a do Rio Grande do Sul tiveram grande importância no movimento republicano. A primeira foi fundamental por reunir em seu meio grande parte dos cafeicultores que não só criticavam o sistema monárquico, como posteriormente viriam a

431

assumir o poder do país. Além disso, junto com a corte, constituíam os núcleos mais importantes do movimento republicano, participando ativamente de um debate intenso sobre o tipo de república a ser instaurada e a forma de governo a ser seguida. Já o Rio Grande do Sul, a partir do eixo positivista também teve grande participação nas discussões acerca do rumo a se tomar para instaurar a República e a forma como esta deveria atuar. Analisando o movimento republicano a partir dos manifestos publicados via imprensa, Claudia Viscardi aponta que para além do discurso explícito das publicações, o que estava implícito era também muito importante. É preciso identificar o que se encontra implícito ou subentendido nas escolhas do autor ao referenciar um fato passado, ao dialogar com um filósofo ou com um personagem de nossa história. Através da análise de tais escolhas, do significado dos conceitos inseridos nos textos e das figuras de linguagem trazidas para o discurso, torna-se possível identificar as intenções dos autores dos manifestos.28

Não é de nosso interesse, no limite deste artigo, analisar as publicações e manifestos publicados ao longo da campanha republicana, mas vale ressaltar esta dimensão. Ainda que muitas vezes o movimento republicano tenha sido considerado omisso em relação a questões polêmicas do período, como a abolição e laicização do Estado, Viscardi destaca que essas omissões têm explicação e fazem parte de uma lógica para conquistar o maior número de simpatizantes. Segundo a autora, dos 18 políticos mencionados no Manifesto de 1870 – considerado o ato inaugural da campanha republicana – 15 tinham alguma ligação com o movimento abolicionista. Sendo assim, “levantamos a hipótese de que esta escolha não tinha sido aleatória, mas subliminarmente seus autores – não necessariamente seus signatários – tinham a intenção de se vincular ao projeto abolicionista”. 29 Este exemplo ilustra bem ao que nos referimos. Em sua tese de doutorado, Barbosa estuda a imprensa do Rio de Janeiro no período de 1880 a 1920 e caracteriza as décadas de 1870-80 como sendo de grandes mudanças para os jornais. Barbosa aponta as diversas transformações que afetaram a forma de se fazer o jornal e a relação deste com o público. Posteriormente, no livro História Cultural da Imprensa (18001900), a autora amplia sua análise sobre a imprensa no século XIX para além da cidade do Rio de Janeiro, buscando compreender o fazer jornalístico do período e suas transformações. os jornais diários possuíam a função indispensável de disseminar normas e comportamentos padronizados junto às camadas letradas e também junto às não letradas da população. Como uma teia, a palavra impressa traçava suas ramificações, formando conceitos, difundindo-os, normatizando, enfim, a própria sociedade.30

Neste período, o espaço público se tornava, por excelência, o local de propagação e discussão das notícias veiculadas pela imprensa.

432

Traçando um perfil das pessoas que trabalhavam nos jornais, Barbosa pode verificar que mais de 90% tinham curso superior e que, dentro dessa porcentagem, a maioria absoluta havia estudado em uma das Faculdades de Direito existentes no país. Mais especificamente sobre a composição social da imprensa republicana, segundo Siqueira, tratava-se de uma expressão da classe média urbana, embora não lhe falte o apoio da nascente burguesia e de setores da classe rural sensibilizados pela necessidade de reformas indispensáveis à consolidação e ampliação do progresso econômico. É basicamente na classe média urbana, sobretudo entre os profissionais liberais, que a imprensa republicana busca seus dirigentes e colaboradores.31

Segundo Barbosa, a imprensa ganhava, no entanto, para o público leitor, uma imagem mitificada, o que fazia com que a profissão de jornalista se transformasse em um verdadeiro mito social. Através de construções frequentemente referendadas e cristalizadas, a população compunha uma imagem da imprensa que, na verdade, era construída pelos próprios periódicos. (...) Nesse contexto, também o jornalista adquire uma imagem mitificada.32

Ou seja, o jornalista assumia um lugar também privilegiado, a partir de uma imagem construída principalmente pela própria imprensa, que se via como “instrumento direto e imediato de ação educativa (...) intérprete dos sentimentos populares, formadora de opinião coletiva, analista dos negócios públicos (...) um braço da ilustração brasileira”.33 Ao analisar periódicos e outros modos da ação propagandista republicana, Mello, na comparação entre Monarquia e República aponta que: à monarquia vão se colando termos tais como: tirania, soberania de um, chefe hereditário, sagrado e inimputável, privilégio, súditos, apatia, atraso, centralização, teologia. Em contraposição, à república são associadas as ideias de liberdade, soberania popular, chefe eleito e responsável, talento ou mérito, cidadania, energia, progresso, federalismo, ciência. Enfim, de um lado, o passado; de outro, o futuro. Frente ao despotismo, a ‘democracia pura’.34

Sendo assim, podemos verificar como a atuação de uma imprensa republicana era de grande importância na divulgação de um novo regime. O que os jornalistas republicanos buscaram fazer durante o período da Campanha Republicana foi introjetar uma ideia de crise do sistema monárquico e, ao fazer isso, oferecer uma diferente opção para organização do Estado. O regime republicano no Brasil acabará por ser introduzido a partir de um golpe de Estado, ainda assim, a Campanha Republicana e os intelectuais que dela fizeram parte tiveram uma importante atuação no desmantelamento do antigo regime, ao alimentar importantes discussões, principalmente via imprensa. Os jornalistas republicanos mediaram as discussões, apontaram questões, sugeriram soluções, buscaram novos adeptos para o regime. *

Doutoranda em História pela UNIRIO. Orientadora: Profa. Dra. Angela de Castro Gomes. E-mail: [email protected]

433

1

REMOND, René (org.). Por uma história política. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003. SIRINELLI, Jean-François. Os intelectuais In: REMOND, René (org.). Por uma história política. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003. p.237 3 Ibidem, p.242 4 Ibidem, p. 243 5 ALONSO, Angela. Ideias em movimento: a geração de 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002, p.43 6 Ibidem, p.40 7 Ibidem, p.41 8 Ibidem, p.43 9 Idem 10 ALONSO, Angela. Flores, votos e balas: o movimento pela abolição da escravidão no Brasil. Tese (LivreDocência) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012, , p. 18-19 11 MELLO, Maria Tereza Chaves de. A República Consentida. Rio de Janeiro: Editora FGV; Edur, 2007, p.13 12 MELLO, Maria Tereza Chaves de. A modernidade republicana”. Tempo – Revista do Departamento de História da UFF, v.13, n.26, p.15-31, 2009, p. 18 13 ALONSO, Angela. Ideias em movimento: a geração de 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002, p.178 14 Ibidem, p.257 15 Ibidem, p.252 16 MELLO, Maria Tereza Chaves de. A República Consentida. Rio de Janeiro: Editora FGV; Edur, 2007, p.16 17 VISCARDI, Claudia Maria Ribeiro. As muitas faces da República: O ideal republicano e a montagem do federalismo oligárquico (1870-1902). Tese (Livre-Docência) - Universidade Federal de Juiz de Fora. 2015, p.13 18 SILVA, Eduardo.Introdução. In: Idéias políticas de Quintino Bocaiúva. Brasília: Senado Federal, 1986, p.54 19 MELLO, Maria Tereza Chaves de. A República Consentida. Rio de Janeiro: Editora FGV; Edur, 2007, p.77 20 PESSANHA, Andréa Santos da Silva. O Paiz e a Gazeta Nacional: Imprensa republicana e Abolição. Rio de Janeiro, 1884-1888. Tese de Doutorado. UFF, Niterói, 2006, p.93 21 Ibidem, p.96 22 A Convenção de Itu foi realizada em 1873 com intuito de reunir os republicanos paulistas. Contou com 133 participantes e a partir dela iniciou-se o processo de organização do Partido Republicano Paulista. 23 SCHWARCZ, Lilia Moritz. Retrato em branco e negro: jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p.73 24 Ibidem, p.77 25 DUARTE, Luiz Antônio Farias. Imprensa e Poder no Brasil – 1901/1915. Estudo da Construção da Personagem Pinheiro Machado pelos jornais Correio da Manhã (RJ) e A Federação (RS). Dissertação de Mestrado – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2007, p.59 26 Ibidem, p.60 27 ALONSO, Angela. Ideias em movimento: a geração de 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002, p.158) 28 VISCARDI, Claudia Maria Ribeiro. As muitas faces da República: O ideal republicano e a montagem do federalismo oligárquico (1870-1902). Tese (Livre-Docência) - Universidade Federal de Juiz de Fora. 2015, p.17 29 Ibidem, p.36 30 BARBOSA, Marialva Carlos. Imprensa, poder e público: os diários do Rio de Janeiro (1880- 1920). Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1996, p.31 31 SIQUEIRA, Carla. A imprensa comemora a República:o 15 de novembro nos jornais cariocas – 1890/1922. Dissertação de Mestrado, PUC-Rio, 1995, p.25 32 BARBOSA, Marialva Carlos. Imprensa, poder e público: os diários do Rio de Janeiro (1880- 1920). Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1996, p.85 33 SIQUEIRA, Carla. A imprensa comemora a República:o 15 de novembro nos jornais cariocas – 1890/1922. Dissertação de Mestrado, PUC-Rio, 1995, p. 32-34) 34 MELLO, Maria Tereza Chaves de. A República Consentida. Rio de Janeiro: Editora FGV; Edur, 2007, p.16 2

434

"Trabalhadores e comunistas: uni-vos!" Um estudo sobre as greves em Belo Horizonte no ano de 1950 Camila Gonçalves Silva Figueiredoi Resumo: Esta comunicação analisa a participação dos comunistas nas greves empreendidas pelos trabalhadores das empresas: "Companhia de Força e Luz" e "Carris Urbanos", sediadas em Belo Horizonte/MG em 1950. Examinaremos a luta dos trabalhadores para obter o pagamento do abono de natal. Membros do Partido Comunista Brasileiro/PCB articularam ações junto aos trabalhadores a fim de angariar novos filiados e, simultaneamente, participar da organização de suas demandas. Utilizaremos como fontes documentos do Departamento de Ordem Política e Social/DOPS de Minas Gerais. Palavras Chave: Comunistas, trabalhadores, Minas Gerais. Abstract: This paper examines the participation of the Communists in the strikes undertaken by employees of the companies: "Power and Light Company" and "Urban Rails", headquartered in Belo Horizonte / MG in 1950. We will examine the struggle of workers for payment of allowance from Christmas. Members of the Brazilian Communist Party/PCB articulated actions with workers in order to bring in new members and simultaneously participate in the organization of their demands. We will use as sources documents of the Department of Political and Social Order / DOPS of Minas Gerais. Keywords: Communist, workers, Minas Gerais.

***

Em razão da participação ativa do Partido Comunista Brasileiro/PCB na trajetória operária brasileira nos deparamos com significativos trabalhos que detém análises sobre a contribuição dos pecebistas para a criação de sindicatos e para o estímulo a realização de greves em variados períodos da história. Estas produções se dedicam ora a compreensão da trajetória histórica da agremiação no Brasil, ora enfocam as análises sobre a influência do partido em distintos movimentos de esquerda, como as ligas camponesas, os sindicatos ou as associações. Assim, localizamos alguns trabalhos que dialogam com esta pesquisa no que se refere ao estudo do ano de 1945 e aos primeiros anos da década de 1950. O historiador Augusto César Buonicore em "Sindicalismo vermelho: a política sindical do PCB entre 1948 a 1952ii demonstra em sua pesquisa que houve a continuidade do trabalho dos comunistas entre a classe trabalhadora, não apenas participando da criação de organizações paralelas aos sindicatos oficiais, mas simultaneamente introduzindo elementos na direção dos sindicatos.

435

Para ele, algumas pesquisas utilizam do argumento da ilegalidade política e da repressão para afirmar que a agremiação não teve um bom desempenho e visibilidade no país, mas, mediante um exame apurado a respeito da dinâmica cotidiana de atuação do PCB o autor identificou algumas estratégias que foram traçadas para que o partido pudesse sobreviver apesar de uma conjuntura desfavorável. Para Buonicore apesar dos problemas conjunturais vivenciados pelo PCB no decurso da sua trajetória, sobretudo o limitado período em que esteve na ilegalidade, não resultou na mera inércia de sua atuação. Nesta perspectiva temos no trabalho de Francisco Weffort a principal referência de estudos que consideram o papel do PCB entre as classes trabalhadoras nas décadas de 1940 e 1950 como insipientes. Em sua concepção o movimento sindicalista na década de 1940 é recente na história do Brasil e apenas adquire maior relevo a partir de meados da década de 1950. Ainda sim, o autor expõe que, apesar de alçar em alguns momentos experiências mais expressivas entre os trabalhadores o PCB não conseguiu obter relevância contínua ao longo da sua trajetória de interação entre os trabalhadoresiii. O presente estudo não corrobora das concepções de Weffort acerca do desempenho do PCB entre as classes trabalhadoras urbanas no período correspondente aos anos de 1945 a 1964. Para nós, o autor apresenta conclusões generalizadas acerca da influência dos comunistas entre os trabalhadores ao não considerar a heterogeneidade das relações do cotidiano como fundamentais para o entendimento das interações de ambos os segmentos. A nossa pesquisa segue a perspectiva analítica adotada pelo pesquisador Marco Aurélio Santana em "Homens partidos: comunistas e sindicatos no Brasil". Esta obra analisa a articulação e atuação do Partido Comunista Brasileiro com o movimento sindical no período de 1945 a 1992. O autor parte da premissa de que o PCB munido do interesse em adentrar no cenário político brasileiro, atuou ativamente no meio sindical, muito embora tenha vivenciado ao longo da sua trajetória partidária períodos de ilegalidade e perseguição política.iv Nesta comunicação, examinaremos as greves realizadas pelos trabalhadores da Companhia de Força e Luz de Minas Gerais, que contaram com a participação de indivíduos ligados ao PCB. A referida companhia foi criada em 1946, com a finalidade de fornecer energia para as empresas de bondes das cidades de Belo Horizonte, Santa Bárbara e Itabirito. Discorremos, paralelamente, a respeito da interação dos comunistas com os funcionários da empresa Carris Urbanosv, responsável pelo funcionamento dos bondes em Belo Horizonte. Os comunistas objetivaram introduzir elementos no setor que interferia diretamente nas questões econômicas da capital, haja vista a relevância dos bondes para o deslocamento da população. Ademais, a Companhia de Força e Luz e a Carris Urbanos

436

operaram em consonância, em virtude de a primeira ser responsável pelo fornecimento de energia para o funcionamento da segunda. Em Minas Gerais, nos anos 1950 a infiltração comunista entre os ferroviários do estado foi relevante para organizar e estimular a realização das greves em prol da conquista do abono de natal. Em 1949 a União passou a garantir o abono de natal aos funcionários públicos. De acordo com os registros consultados, cresceu vertiginosamente o anseio para que este benefício se estendesse a todos os trabalhadores do estado. Os comunistas incorporaram esta demanda em seu discurso de ações e concederam apoio a esta causa, como uma oportunidade estratégica para impulsionar a efetivação da articulação junto aos trabalhadores. Ao mesmo tempo, era conveniente em razão da aspiração pelo aumento quantitativo de filiados ao partido. Alcançar o benefício do abono de natal foi, igualmente, a demanda central das greves dos funcionários de ambas as empresas Companhia de Força e Luz de Minas Gerais e a Carris Urbanos vi. Nos registros analisados, também encontramos indicações sobre o interesse em torno do aumento do salário, todavia, como demanda complementar. De todo modo, houve articulação entre os empregados de ambas as empresas no transcorrer da greve. Uma das formas utilizadas para estabelecer o intercâmbio de informações entre os membros do PCB e os eletricitários da Companhia de Força e Luz foi a distribuição de boletins e panfletos. A identificação destes registros torna-se significativa para compreender as razões pelas quais a greve foi iniciada, bem como o desenrolar dos fatos relacionados ao movimento. Este é o caso do boletim veiculado entre os trabalhadores da Companhia de Força e Luz de Minas Gerais, em maio de 1950, em que verificamos a incitação à adesão a greve que estava sendo realizada pelos ferroviários para reivindicar o abono de natal. O discurso do texto do boletim insufla os trabalhadores da Companhia Força e Luz a solidarizarem ao movimento, aderindo à greve, a fim de fortalecê-lo. Os eletricitários, igualmente, vêem nesta ação a possibilidade de influenciar outras categorias, conforme destacamos no fragmento a seguir: Companheiros da Força e Luz Os trabalhadores da Estrada de Ferro Central do Brasil entraram hoje em greve! Apelam para essa poderosa arma de luta depois de sofrerem toda a sorte de traições por parte do governo Dutra, do Ministro do Trabalho e dos "pelêgos" que estão à testa dos sindicatos. O motivo dessa greve é a negativa por parte da Estrada do pagamento do ABONO DE NATAL que aqueles trabalhadores contavam como certo a fim de com esse dinheiro comprar gêneros de primeira necessidade. (...) Companheiros da Força e Luz! A luta dos grevista da Estrada de Ferro Central do Brasil é a mesma luta de vocês. É em resumo a luta de toda a classe operária que não quer morrer de fome e viver ludibriada e

437

explorada impiedosamente pela camarilha de patrões gananciosos de super-lucros. Por isto, é um dever de vocês, ajudá-los nessa luta grevista contra a forma e a miséria. (...) O exemplo de vocês poderá ser imitado por trabalhadores de outras empresas deste ou de outros municípios ou Estados, que em solidariedade desencadearão ao mesmo tempo em que lutarão pelo ABONO DE NATAL! (...) PARA FRENTE COMPANHEIROS! PELA CONQUISTA DO ABONO DE NATAL! PELA SOLIDARIEDADE AOS VOSSOS IRMÃOS FERROVIÁRIOS! PELA UNIÃO DA CLASSE OPERÁRIA! TODOS À GREVE!vii (grifo nosso)

O movimento realizado pelos funcionários da Companhia Força e Luz teve seu início no começo de 1950, quando foram criadas comissões para organização de greves. Estas comissões foram constituídas no sentido de promover reivindicações pelo abono de natal. Nesse sentido, o estímulo à união das classes possibilitaria a robustez do movimento. Em panfleto veiculado em janeiro do referido ano, identificamos que esta pauta esteve presente nos objetivos dos eletricitários, conforme podemos verificar: Manifesto dos Trabalhadores da Força e Luz Nós os trabalhadores da Força e Luz estamos empenhados na luta por ABONO DE NATAL que é um direito nosso, o pagamento do abono, já discutimos o abono no sindicato e o mesmo foi aprovado por todos nós, e dessa assembléia deliberamos que o sindicato tomasse providencias para o pagamento do abono em 15 dias. Até hoje não recebemos reposta nem do sindicato nem dos patrões, porque confiamos no sindicato enves de termos organizados e unido em comissões e subcomissões indo exigir dos patrões o pagamento do abono para melhorar um pouco nosso padrão de vida. (...) Todo apoio a greve dos ferroviários da central. Viva os heróicos ferroviários. (...) A comissãoviii

Neste panfleto, que foi distribuído entre os funcionários da Força e luz averiguamos o anseio pelo pagamento do abono em caráter retroativo, ou seja, o valor que não foi pago no final de 1949. Os trabalhadores apresentaram em seu discurso a concepção de que o abono é um direito de todos, e não fizeram menção ao fato de que, em termos legais, a União apenas ter conferido a obrigatoriedade quanto ao pagamento aos funcionários públicos: "Mas, queremos o abono porque é um direito nosso. Direito nosso e de todos os trabalhadores de Belo Horizonte."ix Assim como no caso dos ferroviários, a interferência dos comunistas em meio aos trabalhadores da Companhia de Força e Luz teve seu início a partir de meados de dos anos 40, juntamente com a fundação da empresa. Compreendemos que a inserção dos comunistas nestas categorias profissionais cumpriu a aplicabilidade das concepções teóricas e ideológicas definidas no processo reestruturação orgânica do PCB iniciadas neste mesmo período. A orientação para expandir as ações em vários segmentos no estado foi cumprida e, verificamos

438

que, ao longo do decurso da década de 1950 o papel dos comunistas nas ações com vistas na mobilização de várias categorias foi significativo para o fortalecimento das demandas dos trabalhadores de vários segmentos. Identificamos dezenas de documentos que comprovam a participação dos comunistas na condução de várias greves dos trabalhadores da Companhia desde 1946, e, inclusive inquéritos policiais instaurados com o intuito de identificar quais funcionários eram filiados ao PCB, mesmo após a ilegalidade política do partido. Para exemplificar, podemos fazer menção ao inquérito instaurado pela Chefia de Polícia do estado de Minas Gerais, em 1946, que ao interrogar engenheiro Celso Cardão, que confirmou a existências de funcionários filiados ao PCB e que, estes eram os principais responsáveis pela incitação a realização de greves. A meta era alcançar melhorias salariais: (...) vem o perguntado notando, no seio dos operários da organisação de que é funcionário, um ambiente de descontentamento; não tendo, entretanto, elemento para informar à autoridade as rasões desse descontentamento; que entre os referidos funcionários, há elementos declaradamente comunistas, pelo menos, tem chegado ao conhecimento dos diretores da Cia Força e Luz que algum funcionários comentam na Praça Sete, pertencerem ao Partido Comunista (...) que por ouvir dizer, o respondende comunica a autoridade que alguns elementos da mencionada companhia estão a fazer irromper uma greve na empresa em que trabalham, visando a majoração dos vencimentos (...).x

As informações obtidas durante o interrogatório feito com o engenheiro Celso Cardão foram confirmadas. Ao longo de 1946 os funcionários da Companhia realizaram várias greves com a finalidade de conquistar aumento salarial. Nesse sentido, a participação do PCB nas greves da referida empresa em 1950 são consequência de um processo paulatino de introdução de membros do partido enquanto funcionários desde meados da década de 1940. Em 1946 as reivindicações pelo aumento dos salários foram alcançadas. Todavia, outras paralisações foram realizadas nos anos seguintes com vistas ao recebimento de salários atrasados, bem como pela reposição das perdas salariais. Não obstante, as greves de 1950 tiveram como cerne o recebimento do abono de natal. A repercussão do movimento dos ferroviários mineiros que era também era realizado neste período impulsionou os funcionários da Força e Luz a reivindicarem este benefício. Em consonância, farta parcela dos panfletos e boletins comunistas distribuídos entre os trabalhadores fazem menção a necessidade de unificar a demanda pelo abono juntamente com outras classes, no sentido de fortalecer os movimentos e fazer uma maior pressão junto ao empresariado. A cobrança pelo recebimento do abono de natal também foi uma requisição dos trabalhadores da empresa Carris Urbanos da capital em 1950. Cabe salientar que, de certa 439

maneira, a Companhia de Força e Luz e a Companhia de Bondes da capital eram empresas que possuíam relações contíguas. Isso porque, a Companhia Força e Luz foi criada, sobretudo, para fornecer energia elétrica para a empresa de bondes da capital. Além de possuírem sede na mesma cidade, as demandas de ambas as categorias, eletricitários e carris, eram semelhantes. Os registros examinados indicam que a greve em ambas as empresas eclodiu no mês de janeiro. Outras paralisações foram realizadas em fevereiro e março. Todavia, não localizamos informações sobre o período de duração. Para organização do movimento grevista dos trabalhadores de bondes da capital foi criado um jornal intitulado "Carris Urbano". O impresso teve seu primeiro exemplar veiculado em janeiro de 1950, conforme informações emitidas pelo investigador da Delegacia Especializada de Ordem Pública, Thieri João Batista de Paula: Serviço Público do Estado de Minas Gerais Delegacia Especializada de Ordem Pública ORDEM DE SERVIÇO VERBAL Apurar a procedência de boletins e jornal "Carris Urbano", que foram jogados na sede do Sindicato de Empregados em Carris Urbanos desta capital. Senhor Dr. Delegado: Os boletins e o jornal "Carrís Urbanos", que teve seu primeiro número de 3 de janeiro, anivérsários de Prestes, são de caráter subversivo, comunista, concitam à greve os funcionários do Departamento de Bondes e Ônibus, atacam o Govêrno Central e fomentam a greve na Estrada de Ferro Central do Brasil. Nota-se no "Carris Urbanos" o retrato de Prestes idêntico ao do recorte anexo da edição do "Jornal do Povo" impressa na gráfica de Mario Cursinho de Castro em 16-5-948. Fui informado do de que o rapaz que em janeiro distribuiu êste jornal se parecia com o comunista Carlos Olavo da Cunha Pereira. Belo Horizonte, 16 de fevereiro de 1950. Thieri João Batista de Paula. - Inv. 205.xi (grifo nosso)

Nesse sentido, o impresso "Carris Urbanos" surge em um período em que outras classes trabalhadoras aderem a demanda do abono de natal, e, em sua primeira edição afirma ter como finalidade orientar os trabalhadores acerca das demandas da classe: "O aparecimento de 'Carris Urbanos' dá-se em boa hora, no raiar do ano de 1950, no instante mesmo que os trabalhadores do tráfego e das oficinas mais necessitam de um órgão capaz de orientá-los."xii Os exemplares dos quais nós tivemos acesso para o desenvolvimento desta pesquisa, possuem, além do uso de palavras e expressões que são comumente utilizadas pelos comunistas,xiii ilustrações que retratam a figura de Luiz Carlos Prestes. A figura de Prestes é utilizada para respaldar e legitimar o trabalho realizado pelos responsáveis pela divulgação do jornal. A imagem dele foi utilizada na primeira edição, veiculada em 03 de janeiro de 1950, data do seu aniversário.

440

Figura: 1º exemplar do jornal Carris Urbanos. Fonte: Pasta 5132, imagem 14 e 16. Primeiro exemplar do jornal "Carris Urbanos". Belo Horizonte, 3 de janeiro de 1950. Companhia de Força e Luz de Minas Gerais - infiltração comunista. Fundo documental: Departamento de Ordem Política e Social - DOPS. Arquivo Público Mineiro. Disponível em: < http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/dops/brtacervo.php?cid=5132 >

O jornal "Carris Urbano" foi instrumento importante para a luta pelo abono de natal entre os carris urbanos da capital, haja vista que eram distribuídos entre os trabalhadores, como veículo que serviu tanto para instruir quanto para informar o desenrolar do movimento. Na greve de 1950, além do uso do impresso citado, comunistas, que atuavam como trabalhadores de bondes na capital, também distribuíram vários panfletos que, assim com era realizado entre ferroviários e dos eletricitários da Companhia de Força e Luz, tinham a função de orientar, informar e estimular a realização de greves. Identificamos alguns panfletos que, além de trazer informações sobre a situação do movimento, fazem menção a forte repressão a que os funcionários dos bondes sofreram em represália as reivindicações. O texto do panfleto, que apresentamos adiante, contém informações sobre a ocorrência de agressões aos trabalhadores de bondes por soldados do exército, que não aceitavam pagar o valor das passagens. Naquele período, apenas dois soldados por bonde eram liberados do pagamento passagens. Embora o fato não tenha relação direta com o movimento grevista, a violência praticada pelos soldados era vista pelos grevistas como uma forma de pressionar os trabalhadores, em razão do descontentamento diante da paralisação dos bondes. O episódio ocorreu em meio às greves pelo abono de natal em 1950. Companheiros, Todos nós ficamos indignados com a agressão e companheiros nossos por soldados do exército. Todos concordamos imediatamente em suspender o tráfego de bondes em sinal

441

de protesto. Tudo estava bem claro: era nosso dever protestar contra os abusos cometidos pelos soldados. (...) de modo que há mais de uma semana repetiam-se diariamente fatos revoltantes nos bondes principalmente os das linhas que passam perto dos quartéis, pois os militares se negavam a pagar as passagens exigidas. (...) A atitude revoltante de alguns soldados indisciplinados, agredindo covardemente nossos companheiros, não reflete, de forma alguma, as tradições do PCB. Dada a brutalidade com que se deu o incidente, devemos nos solidarizar com os agredidos e tomar enérgicas providências para a punição dos culpados (...)xiv

Em meio a luta pela conquista do abono de natal o jornal "Carris Urbanos" também foi significativo para a exposição do andamento do movimento. Isto é, tanto a diretoria da Companhia de Força e Luz quanto a Companhia de Bondes não eram favoráveis ao aumento de salário, nem tão pouco pela concessão do abono de natal, principal demanda do movimento grevista. Diretores da Companhia de Bondes da capital divulgaram notas à imprensa ressaltando que, caso fosse concedido o aumento, as passagens sofreriam reajustes. Dessa maneira, indiretamente, os empresários colocariam a população contra o movimento. Foi uma manobra calculada. A repercussão sobre a possibilidade de aumento das passagens causou descontentamento da população. No começo da década de 1950 o transporte público de Belo Horizonte já contava com o uso de ônibus, todavia, ainda era comum o uso de bondes em vários bairros da cidade, tido ainda como um importante meio de transporte na capital. O jornal "Carris Urbanos" condenou a manobra dos empresários de ambas às empresas. Ademais, alguns boletins comunistas veiculados fizeram menção ao fato de que, na constituição dos sindicatos dos trabalhadores de bondes, havia indivíduos atrelados a empresa que não eram favoráveis a realização do movimento, estes receberam a alcunha de pelegos. Em virtude desse aspecto, tanto os boletins quanto o jornal "Carris" foram veículos que estimularam a criação de comissões de representação dos grevistas desvinculados às ingerências do sindicato oficial. Não localizamos registros que comprovem que o sindicato era constituído por indivíduos atrelados a empresa, todavia, a formação dessas comissões independentes do aparato sindical oficial foi essencial para organizar as greves e mobilizar os trabalhadores. Muito embora as greves não tenham sido almejadas apenas pelos indivíduos ligados ao PCB mineiro, mas também por todos os trabalhadores desejosos pelo reajuste de salário e pelo abono de natal, através da análise das fontes podemos afirmar que a participação dos comunistas foi expressiva para que o movimento fosse fortalecido. O uso de recursos possibilitou o intercâmbio de informações, houve a influência dos comunistas na constituição das comissões e na organização do movimento grevista. Este panorama revela que

442

os

pecebistas cumpriram com as diretrizes estabelecidas pelo partido em seu intento de ampliar as áreas de extensão, participar e estimular ações entre as diversas classes trabalhadoras. Os registros identificados e coletados para esta pesquisa não nos permitem precisar se os trabalhadores da Companhia de Força e Luz e da Carris Urbanos obtiveram êxito em sua reivindicação pelo abono, dada a fragmentação e incompletude do acervo. Apenas podemos afirmar que, as ações em prol da luta por este benefício prosseguiu no decurso do ano. Não obstante, ao apresentar os casos de greves dos trabalhadores de ambas as empresas, não objetivamos concentrar nossas análises no êxito ou no fracasso do movimento. Muito pelo contrário, o nosso propósito consistiu no entendimento dos métodos e táticas utilizadas pelos comunistas para integrarem ao movimento e articularem junto as categorias de trabalhadores.

i

Doutoranda em História, Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Juiz de Fora. Orientadora Dr. Valéria Marques Lobo. E-mail: [email protected] ii BUONICORE, Augusto César.Sindicalismo vermelho: a política sindical do PCB entre 1948 a 1952. Dissertação (mestrado). Departamento de Ciência Política do IFCH-UNICAMP. São Paulo, 1996. iii WEFFORT, Francisco. Origens do sindicalismo populista no Brasil. Comunicação apresentada ao Seminário sobre 'Movimentos Laboraes en América Latina". México, 1972. iv SANTANA, Marco Aurélio. Homens partidos: comunistas e sindicatos no Brasil. São Paulo, 2001. v No transcorrer da pesquisa não identificamos, nos registros disponíveis, dados sobre origem da empresa Carris Urbanos em Belo Horizonte. vi A documentação consultada para desenvolvimento dessas análises aglutina documentos de ambas as empresas em uma mesma pasta, sobretudo, em razão da articulação do funcionamento entre ambas as empresas. vii Pasta 5132, imagem 13. Companhia de Força e Luz de Minas Gerais - infiltração comunista. Fundo documental: Departamento de Ordem Política e Social - DOPS. Arquivo Público Mineiro. Disponível em: < http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/dops/brtacervo.php?cid=5132 > viii Pasta 5132, imagem 28. Companhia de Força e Luz de Minas Gerais - infiltração comunista. Fundo documental: Departamento de Ordem Política e Social - DOPS. Arquivo Público Mineiro. Disponível em: < http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/dops/brtacervo.php?cid=5132 ix Idem. x Pasta 5132, imagens 130 e 131. Companhia de Força e Luz de Minas Gerais - infiltração comunista. Fundo documental: Departamento de Ordem Política e Social - DOPS. Arquivo Público Mineiro. Disponível em: < http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/dops/brtacervo.php?cid=5132 > xi Pasta 5132, imagem 18. Boletim de monitoramento. Companhia de Força e Luz de Minas Gerais - infiltração comunista. Fundo documental: Departamento de Ordem Política e Social - DOPS. Arquivo Público Mineiro. Disponível em: < http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/dops/brtacervo.php?cid=5132 > xii Pasta 5132, imagem 14. Jornal Carris Urbano, 3 de janeiro de 1950. Companhia de Força e Luz de Minas Gerais - infiltração comunista. Fundo documental: Departamento de Ordem Política e Social - DOPS. Arquivo Público Mineiro. Disponível em: < http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/dops/brtacervo.php?cid=5132 > xiii Uso de expressões tais como: companheiros, comunismo, política do partido. xiv Pasta 5132, imagem 154. Panfleto comunista de apoio ao movimento dos trabalhadores dos bondes da capital. 1950. Companhia de Força e Luz de Minas Gerais - infiltração comunista. Fundo documental: Departamento de Ordem Política e Social DOPS. Arquivo Público Mineiro. Disponível em: < http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/dops/brtacervo.php?cid=5132 >

443

REFLEXÕES EM TORNO DO MODELO REPRESSIVO DA PRIMEIRA REPÚBLICA BRASILEIRA CAMILA SIMILHANA OLIVEIRA DE SOUSA*

RESUMO O presente artigo se dedica a analisar o Higienismo como política de intervenção social nos centros urbanos brasileiros junto ao contexto da Primeira República. Para tanto, será feita uma breve incursão histórica com o objetivo de delimitar as transformações do espaço citadino brasileiro em fins do século XIX e início do século XX, bem como confrontar as transformações sociais às alterações da legislação penal de modo a ressaltar o autoritarismo das elites urbanas predominantes. Palavras-chave: Primeira República, Higienismo, lei penal. ABSTRACT This article is dedicated to analyze the Hygienism as social intervention policy in Brazil's urban centers by the context of the First Republic. To this end, a brief historical incursion in order to define the transformation of the Brazilian city space in the late nineteenth century and early twentieth century , as well as confronting social change to changes in criminal law in order to highlight the authoritarian elites will be made predominant urban . Keywords: First Republic , Hygienism , criminal law. CONSIDERAÇÕES INICIAIS A república brasileira recém - proclamada em fins dos oitocentos se via dividida entre abrir espaço nas principais cidades brasileiras para investimentos econômicos e garantir a segurança das elites por meio da manutenção da ordem vigente. Por trás disso estava a nascente burguesia urbano-industrial brasileira, que buscava abrir caminhos para a obtenção de lucros e por conta disso apoiava um projeto de modernização urbana de caráter excludente capaz de ampliar a prosperidade daquela classe e ao mesmo tempo conter o temor de possíveis reações populares. Assim como a independência brasileira, a república não foi articulada para levar a grandes modificações, pois as elites temiam a emergência de conflitos e a perda de *

Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), orientada por Heloísa Maria Murgel Starling. E-mail: [email protected] .

444

controle caso o fim da monarquia fosse interpretado pelas camadas populares como um vazio de poder, tal como se deu nas Regências, período esse que seguiu à abdicação de Dom Pedro I e antecedeu a maioridade de Dom Pedro II. No Brasil, mesmo que a república tenha se mostrado uma articulação política viável à permanência do poder concentrado em latifundiários aliados à burguesia urbana - industrial em ascensão e não um grau avançado de rupturas, mantinha-se o temor da perda de controle dos populares nos centros urbanos em ascensão. Maria José de Rezende (2000) elucida essa análise com argumentos bastante esclarecedores, a começar pelo fato de que as elites brasileiras tanto do Império quanto do período republicano arregimentavam seus interesses tendo como base o passado de dominação escravocrata, mesmo quando articulavam modernizações. Atuavam, por isso, de forma profundamente conservadora, seguindo padrões fixos de valores, culturas e organizações sociais que pensavam as camadas populares como indivíduos a serem controlados e não como sujeitos de sua própria história. Assim sendo, Rezende (2000) coloca que mudanças como a independência, as Regências, a passagem da mão de obra escrava para a mão de obra livre e a república foram traçadas pelas elites sob o prisma do controle, evitando, desse modo, possíveis radicalizações. Rosemberg (2012) ressalta que diante do contexto mencionado, a república trouxe uma aproximação ainda maior do Estado com a questão criminal, seja por meio de novas leis dessa natureza, pela rearticulação dos aparatos policiais ou pela reorganização das prisões estaduais12 . Observa-se, portanto, que o período responsável pela formação do Estado republicano brasileiro esteve profundamente enredado com o desenvolvimento das políticas criminais empreendidas no Brasil, já que essas se mostraram profundamente relevantes para a alocação e legitimação das forças políticas e econômicas dominantes, deixando cicatrizes que até hoje mostram resquícios. Frente a esse contexto, foi articulada uma nova codificação de natureza criminal e punitiva que chegou até 1940, quando foi aprovado um novo Código Penal brasileiro que sinalizava um novo contexto social e político. Nota-se, portanto, que a análise da legislação penal da Primeira República constitui um caminho essencial para a compreensão do período descrito, já que revela as práticas de controle a serem aplicadas sobre os grupos sociais rotulados como uma ameaça à manutenção do poder das elites em meio à emergência do governo republicano. O âmbito legislativo penal, todavia, não é um fenômeno isolado, mas constitui produto de contextos socioculturais13.

Nesse caso, está diretamente relacionado

445

à

resistência da burguesia urbana e industrial em lidar com uma multidão de explorados, famintos e marginalizados de outro modo que não fosse a exclusão e a repressão. Por meio de tais ações, o poder republicano procurava cumprir as promessas de modernização política, econômica e urbana que o auxiliaram na derrubada do poder monárquico sem, contudo, abrir espaço para convulsões populares. Para tanto, além de uma nova codificação de leis penais, dedicou-se à compreensão do ambiente urbano, sua história e suas características, bem como se buscou entender a exclusão e os excluídos que neles se concentravam. Os estudiosos do tema se perguntavam como se articulava a distância entre aqueles que pertenciam às instâncias mais destacadas da sociedade e os que permaneciam à margem do progresso. Às pesquisas científicas caberia, assim, decifrar, por meio de argumentos racionais, aquilo que na época era considerado como inferioridade social, o que era aproveitado de forma seletiva para justificar o caráter discriminatório das leis penais emergentes. Com base nesses conhecimentos, a burguesia industrial urbana europeia não desejava transformar a dura realidade que grassava nos redutos populares, mas estava interessada em compreender para controlar, daí a preciosa utilidade dos estudos psíquicos, biológicos e criminológicos desenvolvidos no decorrer dos oitocentos. O PROCESSO DE EXCLUSÃO NOS GRANDES CENTROS URBANOS BRASILEIROS DA PRIMEIRA REPÚBLICA Com base no exposto, observa-se que nas cidades brasileiras pairava uma questão: como desenvolver o crescimento de poucos em detrimento da exploração de muitos sem que fossem ocorressem convulsões sociais? No Brasil, uma das respostas encontradas foi submeter a cidade à lógica higienista: urbanização para poucos; sanitarização repressora e criminalização moral daqueles que fossem rotulados como agentes da desordem. A justificativa então era que os populares seriam incapazes de compreender o projeto modernizador em voga, devendo restringir-lhes o trânsito urbano e submeter-lhes às intervenções médicas de cunho autoritário1. As elites, com isso, procuravam evitar possíveis revoltas populares nos centros urbanos, garantindo que a república fosse um instrumento de poder para atender estritamente às demandas das classes dirigentes e não à expressão das vontades populares. Continuam, dessa maneira, as disparidades sociais, elos do “desacordo entre uma cultura de fachada e as práticas efetivas [...], a coexistência da ideologia liberal com um comportamento oligárquico – tradicional.” (LISBOA, 1988, p.

446

141). Concebia-se, portanto, limitações para o que se entendia então como progresso, isto é, benesses que atenderiam continuamente apenas parte do corpo social, mantendo de outro lado o persistente abismo político, econômico e cultural que separava os “eleitos” dos marginalizados. Entre a modernização pretendida pela burguesia industrial brasileira e a manutenção dos abismos que conservavam os privilégios das camadas dirigentes em detrimento dos diferentes tipos de restrição aos populares, havia um hiato que foi preenchido por meio das teorias em voga na Europa oitocentista, que se mostraram então adequadas para embasar e justificar o processo de modernização urbana conservadora no Brasil. Na ausência de instrumentos de controle que se mostrassem efetivos para a sociedade de ex-escravos e imigrantes que se formava, era necessário desenhar um novo projeto de exclusão de forma a evitar um suposto caos social, moral e epidêmico que pusesse em risco os lucros da alta burguesia urbana e industrial. Procedeu-se então a necessidade de se dedicar ao planejamento de políticas de intervenção higienistas nos centros urbanos brasileiros, vistos como os meios mais eficazes para promover o que era visto pelas elites como desinfecção dos centros urbanos. Roberto Machado (1978) acrescenta que o contexto atendia à constatação vigente na época de que a cidade seria um perigo possível de ser sanado pelo apoio da Medicina. As medidas de controle social propostas pela Medicina Higienista assinalaram a necessidade de coexistirem múltiplos focos de poder homogêneos ao projeto médico, para que pudessem concretizar os ideais civilizatórios preconizados pelas camadas dominantes. Para tanto, estreitaram-se as relações entre Medicina e Estado, sendo a primeira auxiliada pelo segundo, na medida em que a necessidade de vigilância constante era assegurada pela manutenção da ordem pública. Assim sendo, o Estado se organizaria para garantir a difusão das práticas higiênicas por todo o tecido social. A Medicina, por sua vez, também ajudava o Estado, apresentando conhecimentos específicos capazes de compreender as doenças, as condições em que essas se produziam e se disseminavam no ambiente urbano, colaborando para o que as elites supunham ser o alastramento da desordem. Desse modo, o saber médico tornou-se vital para a ação sobre o espaço urbano, elevando-o à exclusividade do saber sobre a saúde urbana. A partir desse contexto o espaço urbano foi examinado e categorizado, indicando os espaços vistos como perigo de desordem. Por meio desse

447

discurso, se procurava demonstrar a urgência em impor uma nova lógica urbana, calcada pela relação entre ordem, moral e saúde1. Everardo Nunes (2006) explicita que, a partir do enlace entre Medicina e Estado, foi apresentado um amplo programa que se estendia da higiene à medicina legal, o que incluía educação física das crianças, normas para os enterros, denúncia da carência de hospitais, estabelecimento dos regulamentos para as farmácias, medidas para melhorar a assistência aos doentes mentais, denúncia das casas insalubres e disseminação das normas sanitárias. Impunha-se, assim, um novo estilo de medicina marcado pela promoção da defesa e do controle de tudo o que dizia respeito direta ou indiretamente à saúde da cidade e da população em busca da fabricação de uma nova sociedade, que seria guiada pelos princípios apregoados pela burguesia urbano- industrial brasileira com base nos moldes europeus oitocentistas vistos então como civilizatórios e progressistas. No período em questão, os preceitos médicos europeus se dedicavam a explicar os males que as diferenças sociais representavam para o progresso, visto à época como a tônica do conhecimento e da ciência nos oitocentos, mas apenas a poucos. Assim sendo, o aprimoramento tecnológico, científico e cultural oitocentista era defendido como um privilégio destinado a uma minoria. Aqueles que não integrassem o seleto grupo descrito seriam direcionados para os meandros da marginalização sob o ponto de vista espacial, econômico e social. Deslocou-se, dessa forma, o objeto da medicina da repressão da doença para a manutenção da saúde. Diante disso, era essencial tratar não só o doente, mas supervisionar a saúde da população geral em nome do bem-estar e da prosperidade das elites2. A Medicina Higienista no Brasil refletia, dessa forma, aquilo que nos oitocentos era uma nova proposta de organização social europeia, levando em consideração os preceitos sociais elitistas impregnados por temores e estereótipos que vigoravam na Europa Ocidental. Um dos resultados foi em solo brasileiro foi a emergência de um conflito entre o projeto urbano das camadas dirigentes e a desconfiança em relação às camadas populares. Pairava um forte receio quanto à intensa proximidade entre tantos comportamentos desviantes e tantas culturas diferentes dentro dos limites do espaço urbano, que, por sua vez, era permeado por graves problemas como moradia, atendimento hospitalar, proteção social e outros aspectos claramente deficientes. Alastrava-se o temor de que a fusão entre condições urbanas precárias e criminalidade potencializada pela heterogeneidade tanto de “raças” quanto das culturas das cidades brasileiras resultasse não apenas em convulsões sociais, mas também no alastramento das doenças associadas até

448

então associadas aos marginalizados (tuberculose, sífilis, alcoolismo, transtornos mentais, entre outras). As elites receavam o desencadeamento do que na época era tido como degeneração social, isto é, um suposto quadro de multiplicação de tipos biológicos e culturais de marginalizados, cuja disseminação se julgava ser capaz de levar à ampla decadência social. Diante dos preceitos expostos, os centros urbanos deveriam ser submetidos à ordem, o que incluía criar meios de restringir, muitas vezes mediante o uso da violência, os grupos considerados indesejados para que o poder republicano emergente se consolidasse. Aqueles que entre os populares fossem úteis aos projetos econômicos da burguesia urbano-industrial brasileira deveriam ser medicados, já que eram vistos de forma pré-concebida como potenciais portadores de anomalias biológicas de alcance social. De posse das diferenças descritas, observa-se a existência de um abismo entre dominantes e dominados, espaço preenchido por um projeto autoritário de intervenção, repressão e expulsão calcado na Medicina Social, que se converteu em um movimento guiado pela ideia de que os diferentes grupos humanos tinham valores variáveis, rotulando certas parcelas do corpo social como elementos a serem corrigidos. Estava em curso, dessa forma, uma nova proposta de organização social edificada por estereótipos legitimados pelo saber médico.3 As políticas higienistas brasileiras compreendiam, de forma análoga às suas antecessoras europeias, que a preservação da saúde pública passava pela normalização dos espaços e da vida social urbana4 por meio de orientações específicas para homens, mulheres e famílias com base nas orientações do saber médico-científico vigente. Apenas seriam admitidos, portanto, indivíduos que pudessem ser adequados aos ditames fundamentados na razão e na ciência5. Espelhavam, portanto, a resposta autoritária, moralista e preconceituosa em relação ao medo das insurreições populares6, temor esse que no Brasil existia desde o período escravocrata e na Europa passou a ser mais presente com a expansão da Revolução Industrial, essa última capaz de concentrar nas cidades uma grande massa de despossuídos profundamente explorados pela burguesia proprietária dos meios de produção. Para a tríade elites-Estado-Medicina, o povo não dispunha da capacidade necessária para compreender os objetivos e as ações relacionadas ao projeto sanitário pensado para os centros urbanos. Justificava-se, assim, o uso de tipos diversos de violência, o

449

que

desencadeou um confronto entre as classes dirigentes que atuavam de forma autoritária, e as camadas populares, que não compreendiam o combate aos seus modos de vida. Por meio dos saberes médicos e científicos, justificou-se a violenta expulsão dos tipos considerados desviantes, a exemplo dos mestiços, capoeiras, criminosos, vadios e ciganos nômades. O resultado foi um conflito desigual, que fez uso da polícia como elemento de legitimação naquela que era considerada uma limpeza física e moral do espaço urbano. Diante desse contexto, a polícia figurava, assim, como um eficiente instrumento disciplinador, tornando-se responsável por vigiar usos e costumes, aplicar multas, promover despejos e dar voz de prisão àqueles que se opunham à nova lógica sanitária. As elites se dedicavam a adequar os centros urbanos em lugares considerados por eles como mais apropriados à lógica europeia de civilidade não apenas sob o ponto de vista arquitetônico e sanitário, mas também sob o ponto de vista social. Tal cenário era a vitrine das elites republicanas, que buscavam exibir o que consideravam à época ser um modelo progressista e sintonizado com os ideais europeus de modernidade para pautar uma nova articulação do poder econômico, social e cultural. Na prática, tratava-se de um discurso dedicado a justificar de forma considerada então como legítima a restrição dos atores sociais marginalizados, vistos como incômodo no período, o que permitiria corroborar uma modernidade legitimada pelos interesses das classes dominantes, refletindo o forte viés autoritário presente nos diferentes âmbitos da Primeira República. CODIFICAÇÕES PENAIS BRASILEIRAS OITOCENTISTAS CONFRONTADAS À LÓGICA HIGIENISTA No decorrer dos oitocentos, a burguesia urbano-industrial brasileira acreditava, inspirada por seus contemporâneos europeus, ser o progresso um benefício a ser desfrutado pelos indivíduos que estivessem em harmonia com o coletivo, excluindo, desse modo, as camadas populares, vistas então como potencialmente conflitivas e por conta disso, ameaçadoras. Tal perspectiva colaborava para a continuação de 0estereótipos tecidos ao longo da história brasileira e que resistiam mesmo em meio a uma sociedade livre regida por uma república. Os populares, desse modo, continuavam a ser rotulados como elementos sociais potencialmente ameaçadores8. Somado a esse contexto estava a diversificação sociocultural dos centros urbanos, processo esse visto com temor e resistência pelas elites, que acreditavam ser a presença de tipos cada vez mais diversos ─ somados aos graves problemas como moradia, atendimento hospitalar e proteção social ─ um motor de possíveis convulsões sociais, desencadeando um suposto quadro

450

de

multiplicação dos marginalizados e suposta ampliação dos problemas urbanos. Temia-se que a população urbana, cada vez maior e mais diversificada, pudesse estabelecer um quadro de violência descontrolada, o que levou a um interesse cada vez maior por parte das camadas dominantes pela da manutenção da ordem tanto pelos órgãos públicos como pela sociedade em geral. Para responder a esse quadro, procurou-se articular um quadro repressivo mais detalhado por parte das autoridades policiais e judiciárias, o que por sua vez desencadeou uma nova concepção penal visando ao gerenciamento da criminalidade na primeira fase do período republicano. As elites políticas e econômicas passaram, assim, a traçar um novo projeto para os centros urbanos calcado na articulação de meios aparentemente legítimos de restrição à permanência dos grupos considerados indesejados. Com isso, visava-se à disseminação do que se definia na época como o espírito da civilização e do progresso nos moldes europeus ─ isto é, o progresso como uma rede de privilégios destinados a poucos ─ . Diante dos fatos expostos, o Código Criminal do Império de 1830, aprovado pouco antes da renúncia de Dom Pedro I, era visto com certa desconfiança pelas elites, que influenciadas pelos vieses dos modelos de enquadramento criminal de origem lombrosiana1, o Código de 1830 era tido como incapaz de classificar os “tipos criminosos” aos olhos do que se supunha ser a corrente penal mais avançada do período. Para os penalistas favoráveis à redação de um novo código criminal, adotar leis segundo modelos lombrosianos permitiria que a repressão policial se mostrasse mais eficaz, já que haveria orientação mais clara acerca dos criminosos a serem autuados e detidos. Julgavam ainda que sob o viés lombrosiano fosse possível calcular de forma mais racional a relação entre os atos ilícitos e a punição. Como parte desse esforço, investiu-se na compreensão científica dos atos criminosos por meio de estudos criminológicos. Para o Estado republicano, aprovar um novo código de leis criminais de inspiração lombrosiana favoreceria a imagem de modernidade que o regime republicano procurava refletir, dando a impressão de que leis mais adequadas ao espírito do progresso dos oitocentos estavam sendo aprovadas para garantir a segurança e a ordem. Julgava-se também que a legislação penal de orientações lombrosianas configurava um dos instrumentos relevantes para diferenciar aqueles que seriam considerados normais e os que seriam vistos como excluídos. Aqueles que não se submetessem a tais determinações, obrigatoriamente teriam de

451

se curvar, cedo ou tarde, à desconfiança das autoridades locais, absorvendo a figura daquele mantém os demais em eminente perigo e que por isso deve ser evitado, de forma análoga a uma doença cujo contágio devesse ser impedido. Tendo em vista as discussões acerca de uma nova codificação de natureza criminal que atendesse às lacunas apontadas pelos especialistas à serviço das camadas dominantes em relação ao Código Criminal de 1830, foi então promulgado um novo conjunto de leis – o Código Penal de 1890 − que aos olhos daqueles que ocupavam o poder, estaria à altura do nascimento do republicanismo brasileiro. A análise geral do Código Penal de 1890 mostra que esse se preocupava em criminalizar as ações tidas como ameaçadoras por parte dos imigrantes que chegavam para atuar nas lavouras cafeeiras, as influências anarcossindicalistas que cresciam junto ao movimento operário e a circulação de ex-escravos pelo perímetro urbano. A partir de uma possível mistura entre direito positivo e aspectos morais, o Código Penal de

1890,

portanto, parece agregar uma noção de crime e de criminoso permeadas por estigmas, o que facilitaria a repressão a grupos considerados inadequados no período. Em meio ao capítulo VIII do Código Penal de 1890, são descritas nitidamente as figuras sociais que deveriam ser duramente reprimidas, escolhidas por espelharem tipos não aceitos de trabalho e que em razão disso deveriam ser submetidos aos rigores das leis e das penalidades. Eram considerados elementos que se dedicavam a ganhos ilícitos, desordem pública, vida desregrada e vícios e por conta disso, julgava-se que deveriam ser expurgados do seio social, para que assim fosse extirpada aquela que era considerada a base dos comportamentos desviantes. Nesse aspecto, o Código Penal de 1890 corroborava a noção de que não usufruir de inserção laboral seria uma patologia em que um dos sintomas era o ganho de fonte ilícita ou a ausência de domicílio certo. Ganhavam força, dessa forma, os valores condenados por uma sociedade cujas elites, após procurar desatar os entraves herdados do passado monárquico, ansiavam por reinventar as camadas populares sob o ponto de vista econômico, social e cultural, visando a concretizar o ideal de progresso em seu âmbito mais conservador. Diante desse cenário, a introdução da Criminologia2 no país representava a implementação das estratégias específicas de controle social e a adoção de formas diferenciadas de tratamento jurídico-penal para determinados segmentos da população. (ALVAREZ, 2005; TERRA, 2010). Uma das formas de aferição encontradas foi

452

a

conferência do grau de instrução escolar, tido na época como grau de civilidade do espírito do indivíduo (PIMENTEL FILHO, 2005), bem como a ausência de determinados aspectos morais, como maior ou menor presença de preceitos como bondade, maldade, piedade, entre outros. Diante dessas premissas, verifica-se uma incoerência: como era possível quantificar de forma inequívoca os atributos morais? As Ciências Humanas procuravam, para tanto, enquadrar aspectos morais a categorias analíticas, em moldes semelhantes aos das Ciências Naturais, mas tendo como reflexo o corpo de atribuições espelhadas pelas elites. Essas se viam como o ápice material, social e cultural, minuciosamente construído à imagem e à semelhança das elites europeias, vistas então como relevantes referenciais. Acreditava-se ainda no contexto brasileiro que a tendência ao crime não só era em função da ausência de aspectos morais, como também se devia à influência da miscigenação. Para as elites brasileiras de fins do século XIX, misturar grupos dentro e fora dos padrões desejados tornava o mestiço um elemento social potencialmente criminoso. Ora, mestiços eram a maioria dos brasileiros excluídos em fins dos oitocentos: assim sendo, essa linha de pensamento criminalizava a grande maioria dos habitantes dos centros urbanos brasileiros de fins do século XIX. Tendo em vista os motivos expostos, deveriam ser severamente combatidos aqueles que se mostrassem distantes de se inserirem na lógica de progresso das elites republicanas. Via-se com urgência a necessidade de amparar a repressão policial por meio de um código de leis penais que regulamentasse, entre outros aspectos, os elementos sociais cuja coerção seria enfatizada em nome dos projetos reformistas e excludentes das elites republicanas. Nesse ínterim, a legislação penal, seguindo as orientações lombrosianas, tornava-se um dos instrumentos relevantes para diferenciar aqueles que seriam considerados normais e os que seriam vistos como excluídos. Estado, Medicina e legislação penal se dedicavam continuamente “à conveniência, à vontade e à posição de poder vigentes” (BECKER, 1997, p. 192), articulando-os na mesma direção dos jogos de poder das camadas dominantes. Levando em consideração esse viés, foram erigidos os modelos criminológicos do código penal brasileiro de 1890, aspecto esse que norteou os referenciais de delinquência da época. Por meio dessa repressão, esperava ser possível abrandar a ocorrência dos gêneros de vida tidos na época como ameaçadores.

453

O discurso criminológico agia, portanto, como reflexo de um poder que atuava do centro para a periferia, delimitando, dessa forma, o perfil criminal a partir do que as camadas dominantes entendiam como sendo ameaçador. Por meio dos sistemas repressivos, consolidavam-se as ferramentas tidas então como necessárias ao controle social e à perpetuação do poder dominante. Compreende-se, assim, que o tratamento empreendido pela legislação criminal passava por padrões de estereótipos que atendiam às demandas políticas e econômicas da burguesia urbana emergente, herdeira dos abismos legados pela antiga aristocracia rural em queda, e maior interessada no controle dos populares do ambiente urbano de modo a garantir o percurso adequado para ampliar seus domínios.

REFERÊNCIAS CHOAY, F.. Destinos da cidade europeia: séculos XIX e XX. Revista de Urbanismo e Arquitetura, América do Norte, 4, set. 2008, p. 8 - 21. Disponível em: http://www.portalseer.ufba.br/index.php/rua/article/view/3110/2227 Acesso em 6 de Julho de 2015. CUSTÓDIO, Vanderli. Dos surtos urbanísticos do final do século XIX ao uso das várzeas pelo Plano de Avenidas. Geosul, v.19, n.38, p. 77- 98, jul-dez/2004. Disponível em https://periodicos.ufsc.br/index.php/geosul/article/viewFile/13433/12330 Acesso em 5 de Julho de 2015. FRISBY, David. Paisajes urbanos de la modernidad: exploraciones críticas. - 1ª ed. – Bernal: Univ. Nacional de Quilmes; Buenos Aires, Prometeo Libros, 2007, p. 13- 120. HANNERZ, Ulf. Exploración de la ciudad ─ Hacia una antropología urbana. México: Fondo de Cultura Económica, 1986, p. 29 - 135. HENRIQUES, Rita de Cássia Chagas. A razão moldando o cidadão: estratégias de política higienista e espaço urbano disciplinar – Belo Horizonte (1907-1908). Cadernos de História, Puc Minas, Vol. 2, No 3 (1997). LISBOA, Armando de Mello. A mediação entre a economia e apolítica na produção teórica sobre o Estado contemporâneo latino-americano: um balanço. Revista de Textos de Economia. Lisboa, v.2, n.1, 1987. MACHADO, Roberto et al. Danação da norma: a medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1978. Biblioteca de Estudos humanos: Série Saber e Sociedade; v. n, p. 195-379. NUNES, Everardo Duarte. Saúde coletiva: uma história recente de um passado remoto. In.: Tratado de saúde coletiva. Hucitec: São Paulo, 2006, p. 295 - 315.

454

PATTO, Maria Helena Souza. Estado, ciência e política na Primeira República: a desqualificação dos pobres. Estud. av. [online]. 1999, vol.13, n.35, pp. 167-198. PENNA, Lincoln de Abreu. A derrota da República. Lutas sociais, PUC-SP, 19/20, junho/2008, p. 53-65. Disponível em http://www4.pucsp.br/neils/downloads/pdf_19_20/5.pdf . Acesso em 20 de julho de 2013 PIMENTEL FILHO, José Ernesto. Incultura e criminalidade: estereótipos sobre a educação da criança, do jovem e do camponês no século XIX. História, São Paulo, v.24, n.1, 2005, p.227-246. SCHORSKE, Carl E. Pensando com a história: indagações na passagem para o modernismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 54 - 70.

1

MACHADO, Roberto et al. Danação da norma: a medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1978. Biblioteca de Estudos humanos: Série Saber e Sociedade; v. n, p. 195-379. 2 MACHADO, Roberto et al. Danação da norma: a medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1978. Biblioteca de Estudos humanos: Série Saber e Sociedade; v. n, p. 195-379. 3 MACHADO, Roberto et al. Danação da norma: a medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1978. Biblioteca de Estudos humanos: Série Saber e Sociedade; v. n, p. 195-379. PIMENTEL FILHO, José Ernesto. Incultura e criminalidade: estereótipos sobre a educação da criança, do jovem e do camponês no século XIX. História, São Paulo, v.24, n.1, 2005, p.227-246. 4 MACHADO, Roberto et al. Danação da norma: a medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1978. Biblioteca de Estudos humanos: Série Saber e Sociedade; v. n, p. 195-379. 5 HENRIQUES, Rita de Cássia Chagas. A razão moldando o cidadão: estratégias de política higienista e espaço urbano disciplinar – Belo Horizonte (1907-1908). Cadernos de História, Puc Minas, Vol. 2, No 3 (1997). 6 PATTO, Maria Helena Souza. Estado, ciência e política na Primeira República: a desqualificação dos pobres. Estud. av. [online]. 1999, vol.13, n.35, pp. 167-198.

455

Os PCN e o lugar da tradição: tensões sobre a escolha da narrativa histórica Carine de Oliveira Vieira Mestranda em Ensino de História Universidade do Estado do Rio de Janeiro Orientadora: Dr ª. Maria Aparecida da Silva Cabral Email: [email protected]

RESUMO A pesquisa a ser empreendida tem por objetivo investigar os motivos pelos quais a proposta de abordagem por eixos temáticos dos Parâmetros Curriculares Nacionais relativos à disciplina História é muito pouco desenvolvida pela grande maioria dos professores, escolas, Secretarias de Educação e livros didáticos. Serão então apresentadas neste trabalho, algumas discussões sobre a reformulação curricular da disciplina história com o processo de redemocratização, concepções sobre currículo e hipóteses sobre essa não utilização dos Parâmetros Curriculares Nacionais de História na Educação Básica.

Palavras chaves: parâmetros curriculares nacionais, história temática, história cronológica.

ABSTRACT The research undertaken aims to investigate the reasons why the proposed approach themes of National Curriculum Standards concerning discipline history is largely undeveloped by most teachers, schools, departments of education and textbooks. Will then be presented in this paper, some discussions on the reformulation of discipline history with the democratization process, conceptions of curriculum and hypotheses about this non-use of the History of National Curriculum Standards in Basic Education.

Keywords: National Curriculum Standards, History thematic, chronological history.

456

Caracterização dos PCN A proposta curricular de história dos Parâmetros Curriculares Nacionais é constituída por meio de eixos geradores ou eixos temáticos. Sua estratégia didática é um ensino baseado em habilidades e competências estabelecendo a partir dos temas transversais a concepção de interdisciplinaridade. Os PCN a que me refiro neste trabalho são os de quinta a oitava séries do Ensino Fundamental, destinados à disciplina história, que foram publicados em 1998, quando esse ciclo de ensino ainda era de oito anos. Atualmente, esta etapa de escolarização vai do sexto ao nono anos. Os eixos temáticos propostos no documento são: 1-história das relações sociais da cultura e do trabalho, para o terceiro ciclo do Ensino Fundamental e 2-história das representações e das relações de poder, para o quarto ciclo. Os PCN de todas as disciplinas contam com uma mesma equipe de coordenação, de elaboração e de assessoria, buscando oferecer uma uniformidade pedagógica. A equipe de consultoria é específica para cada disciplina que obviamente, possui as suas singularidades. Segundo o Ministro da Educação da época, Paulo Renato Souza, Os Parâmetros Curriculares Nacionais foram elaborados procurando, de um lado, respeitar diversidades regionais, culturais, políticas existentes no país e, de outro, considerar a necessidade de construir referências nacionais comuns ao processo educativo em todas as regiões brasileiras. Com isso, pretende-se criar condições, nas escolas, que permitam aos nossos jovens ter acesso ao conjunto de conhecimentos socialmente elaborados e reconhecidos como necessários ao exercício da cidadania (1998: apresentação dos PCN aos professores). i

Currículo cronológico X currículo temático Marca da institucionalização da história como ciência e disciplina escolar em finais do século XIX, o modelo quadripartite desenvolvido na França sobrevive no ensino universitário e escolar brasileiro com alguns leves arranhões. A divisão clássica: História Antiga, História Medieval, História Moderna e História Contemporânea, tem a cronologia como fator principal de organização dos conteúdos. É a este tipo de currículo que denomino como “tradicional”, a partir da noção apreendida por Ivor Goodsonii baseada no que o historiador Eric Hobsbawn chamou de “tradição inventada”. Identificar um currículo como “invenção de uma tradição”, pressupõe compreendê-lo como um objeto historicamente construído. Na definição de Hobsbawn, Tradição inventada significa um conjunto de práticas e ritos: práticas normalmente regidas por normas expressas ou tacitamente aceitas; ritos – ou natureza simbólica – que procuram fazer circular certos valores e normas de comportamento mediante repetição,

457

que automaticamente implica em continuidade com o passado. De fato, onde é possível, o que tais práticas e ritos buscam é estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado. iii

Desse modo, entendo que o currículo que privilegia a cronologia se estabeleceu como tradicional por sua longa e ampla utilização e pouca contestação. Entretanto, como salienta Goodson o currículo, “Não é, porém, como acontece com toda tradição, algo pronto de uma vez por todas; é, antes, algo a ser defendido onde, com o tempo, as mistificações tendem a se construir e reconstruir”. iv Se faz mister salientar que designo de tradicional, o currículo que opera com a noção cronológica, mas que não é necessariamente positivista. Esse esclarecimento é necessário, pois existem abordagens que não são positivistas, mas que, contudo, ainda optam por um recorte cronológico, demonstrando que esta dimensão da sequência temporal é predominante e característica da disciplina. Flávia E. Caimiv, discute as escolhas dos professores entre história convencional, história integrada e história temática. De acordo com ela, a primeira definição está alinhada à historiografia positivista. A seguinte está referenciada na matriz marxista e a história temática se atrela aos pressupostos da história-problema dos Annales. A segunda tendência historiográfica escolar (a história integrada) é a que se identifica no PNLD e no trabalho cotidiano das escolas, como a tendência esmagadora do ensino de história. Segundo Caimi, busca integrar os acontecimentos/conhecimentos históricos de diferentes sociedades, consubstanciados num mesmo tempo cronológico, demonstrando como responderam às demandas colocadas pelo seu tempo e como operaram as transformações necessárias. vi

Para Margarida M. D. de Oliveiravii apesar de na bibliografia dos PCN constar referências dos historiadores dos Annales, muitos deles não eram a favor da História temática no Ensino, como Jacques Le Goff e Fernand Braudel. Para esses autores, a história a ser ensinada nas escolas deveria ser a tradicional, pois entendiam que a história temática exigiria conhecimentos muito específicos dos alunos, além de oferecer uma visão fatiada da história que se acaba no tema sem uma problematização mais profunda do processo histórico. O que percebe-se no texto de Oliveira sobre os PCN, através de citações dos referidos autores sobre o ensino de História na França, é que a história temática seria mais adequada aos adultos, enquanto a tradicional às crianças. Para a autora, os PCN estão em conflito com seus embasamentos teóricos e metodológicos.

458

A periodização clássica da história em quatro períodos foi estabelecida na III República Francesa1, tendo a Escola Metódica2 como a maior expoente no campo historiográfico francês. De acordo com Arlette M. Gasparello (2011), historiadores determinantes para essa vertente da historiografia são Charles Seignobos e Charles-Victor Langlois, autores de diversas obras que se tornaram referência no ensino universitário e escolar na Europa. Autores como Circe Bittencourtviii, Marcelo Magalhãesix e Ana Maria Monteirox, demonstram que no Brasil, a História se institui como disciplina escolar com a criação do Colégio Pedro II em 1837. A organização dos conteúdos e os manuais didáticos eram inspirados no modelo de ensino francês. A história do Brasil era vista em conexão à história da civilização cristã europeia. A perspectiva de ensino de história sob a ótica cronológica é hegemônica desde a criação do colégio Pedro II em 1837 até os dias de hoje. Em algumas análises sobre o debate entre história temática e história cronológica, encontramos referências à cronologia como sinônimo de história-narrativa, em contraposição à história-problema inaugurada pelo movimento dos Annales. Esta é uma questão terminológica que merece esclarecimentos. Para Ana Maria Monteiroxi, é necessário fazer uma distinção entre história-narrativa e narrativa histórica. O uso da primeira remete à historiografia positivista do século XIX, que evidenciava os fatos e as grandes personagens políticas. Essa corrente historiográfica foi duramente combatida pelos annalistas da primeira geração. Pela incisiva oposição à história política e factual, o movimento dos Annales escamoteou a narrativa. Será que a história-problema não apresenta uma narrativa sobre os

processos

históricos que investiga? Sobre esse assunto, Paul Ricouerxii nos deu uma importante contribuição, quando analisou O Mediterrâneo de Fernand Braudel, argumentando que “todas as obras históricas são narrativas”

xiii

. Para Ricouer, os Annales não combatiam a narrativa,

mas sim uma narrativa específica, baseada nos fatos, o que os franceses chamam de história événementielle. De acordo com o exposto, pode-se afirmar que é impossível contar uma história sem utilizar-se do recurso narrativo, logo, se conclui que uma abordagem por eixos temáticos também apresenta uma narrativa.

1

Período compreendido entre 1870 a 1940. De acordo com Glaydson José da Silva (2006), a escola metódica “resume as preocupações de uma escola intelectual que atribui ao rigor do método a única maneira de se chegar ao conhecimento histórico” (p. 10). 2

459

Segundo Selva Guimarãesxiv, com o processo de abertura política do fim do Regime Militar, a área do Ensino de História necessitava de uma reformulação, que foi alvo de reflexão de vários setores como a ANPUH, associações sindicais ligadas ao magistério e também da mídia. Maria do Carmo Martinsxv e a já citada Selva Guimarães traçam um panorama sobre o processo de por fim aos “Estudos Sociais”. Destacam o papel de professores e Secretarias de Educação de São Paulo e Minas Gerais para elaborarem novas propostas para o ensino da disciplina. No estado de São Paulo as discussões para uma revisão do currículo de história se iniciaram em 1983, e em 1986 foi apresentada uma versão preliminar da nova proposta curricular. Reuniões realizadas pela Coordenação de Normas Pedagógicas (CENP) entre professores de várias delegacias e ensino e uma equipe técnica de história propuseram a reformulação do currículo de história através dos eixos temáticos. No mesmo período, em Minas Gerais, os questionamentos sobre o ensino de história também ganharam impulso. No entanto, a iniciativa de revisão parte primeiro dos professores da rede que se reuniram no Primeiro Congresso Mineiro de Educação realizado em 1983. Somente em 1986 foi que a Secretaria de Educação deu início à revisão institucional dos conteúdos. Em seis meses, a nova matriz curricular já estava pronta para ser efetivada nas escolas. O processo de reformulação mineiro foi muito criticado pelos professores, que reivindicavam maior participação docente nas discussões. A mudança no currículo de Minas estava mais centrada na inclusão de conteúdos de história local e regional no Primeiro Ciclo do Ensino Fundamental e na ressignificação de conteúdos conceituais e marcos temporais, todavia, mantendo-se a perspectiva cronológica. A proposta dos professores de São Paulo foi duramente criticada pelos principais jornais do estado3, e foi então posta de lado. Porém, anos mais tarde, em 1998, na elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais, a proposta de estudo da história por eixos temáticos despontou como sugestão de âmbito nacional para o ensino da disciplina. Contudo, dezessete anos depois, grande parte das secretarias municipais e estaduais de educação, a maioria dos livros didáticos e os professores trabalham com a noção de história cronológica. No PNLD de 2014, das 20 coleções aprovadas, 17 são de história cronológica, e somente 3 são de história temática. Nota-se com isto, que a perspectiva elaborada pelos PCN

3

Discussão apresentada por Rinaldo José Varussa no trabalho, livro didático público e história temática: algumas reflexões a partir da temática “relações de trabalho”, apresentado no I simpósio Nacional de Educação XX Semana de Pedagogia em Cascavel, realizado em 2008.

460

não teve uma grande recepção no ensino escolar de história. É esta, justamente, a problematização deste projeto: por que uma proposta de âmbito nacional, que provavelmente exigiu uma grande mobilização do MEC, de especialistas do campo educacional e da área do Ensino de História não é posta em prática? É importante identificar quais forças sociais estão envolvidas neste projeto que logrou êxito e as causas pelos quais ele não é implementado e nem discutido nas escolas.

Concepções sobre currículo De acordo com Tomaz Tadeu Silvaxvi, falar em teoria do currículo pressupõe uma ruptura com uma visão pedagógica tradicional, que concebe a teoria como algo apartado do objeto que investiga e descreve. Essa noção trata o currículo separado da teoria, e esta serviria somente para “descrevê-lo, explicá-lo” xvii. Para Silva a visão pós-estruturalista é hoje a perspectiva dominante de análise social e cultural. Dentro desta concepção o objeto de investigação e teoria são inseparáveis: “De acordo com essa visão, é impossível separar descrição simbólica, linguística da realidade – isto é, a teoria – de seus “efeitos de realidade”. A teoria estaria irremediavelmente implicada na sua produção. Ao descrever um “objeto”, a teoria de certo modo, inventa-o. O objeto que a teoria supostamente descreve é, efetivamente um produto de sua criação”.xviii

Para as teorias tradicionais, o currículo é o conjunto de saberes, matérias ou disciplinas, que os alunos devem estudar ao decorrer de um determinado curso. Para este projeto de pesquisa, essa é uma visão incompleta, uma vez que considera os conteúdos escolhidos como uma seleção desprovida relações de poder, sem interesses sociais e econômicos, além de deixar de lado a perspectiva da prática dos currículos, pois é sabido que eles são elaborados para serem “aplicados”, mas cada escola, cada professor e cada sala de aula o apreendem de uma forma diferenciada, muitas vezes ressignificando-o ou, até mesmo o ignorando. Para Gimeno Sacristánxix o currículo é, sobretudo, prática. Concebê-lo somente como uma prescrição de conteúdos que são prontamente executados em sala de aula e que se limitam ao espaço escolar é um equívoco. O currículo é uma práxis antes que um objeto estático emanado de um modelo coerente de pensar a educação ou as aprendizagens necessárias das crianças e dos jovens, que tampouco se esgota na parte explícita do projeto de socialização cultural das escolas. É uma prática, expressão, da função socializadora e cultural que determinada instituição tem, que reagrupa em torno dele uma série de subsistemas ou práticas diversas, entre as quais se encontra a prática pedagógica desenvolvida em instituições escolares que comumente chamamos de ensino.xx

461

Logo, para o referido autor, uma análise curricular que leve apenas em conta os saberes que são escolhidos por determinadas instâncias e que passam então, a organizar o currículo é um estudo parcial deste complexo objeto cultural. Para Sacristán, quando se estuda o currículo deve-se levar em consideração não somente os interesses e relações de poder que estão em jogo, mas também como de certa forma são articulados mecanismos para que o currículo formal seja “concretizado”. Outra dimensão importante apresentada por esse mesmo autor é a de currículo oculto, que se refere às experiências proporcionadas e vividas pelos alunos na escola. A proposta curricular, a escola e os professores têm objetivos definidos sobre os conteúdos que se desejam ensinar, mas as elaborações e conexões que o aluno fará dos saberes que a escola transmite, não podem ser totalmente controladas pelos docentes e pela escola. Com relação às experiências proporcionadas pela prática curricular, também é importante ter em mente as escolhas feitas pelos professores. Sabemos que a teoria pedagógica crítica, foi bastante incisiva sobre as dimensões de poder que envolvem a escolha de determinado tipo de currículo e seus conteúdos. Obviamente, esta é uma noção importantíssima, uma vez que deve-se ter consciência de que a seleção feita por instâncias fora da escola não possui uma neutralidade. Escolhe-se um tipo específico de noção curricular para atender determinadas finalidades, que nem sempre vão ao encontro da prática pedagógica da escola e dos professores. Assim, a partir do que os currículos oficiais propõem, vários recortes e metodologias podem ser feitos para atender às necessidades específicas de cada ambiente escolar. Este ponto sobre o poder das escolhas dos professores e escolas é fator importante para esta pesquisa. Se pensarmos que os PCN são apenas como a própria nomenclatura diz, “parâmetros” e que não tem a obrigatoriedade de serem aplicados, percebemos que eles não foram realmente escolhidos pelos professores e nem por instâncias hierarquicamente superiores a eles como as secretarias de educação. Notamos que nem sempre as propostas oficiais – e no caso dos PCN de abrangência nacional – e com uma perspectiva diferenciada são bem recepcionadas pelos diversos atores envolvidos na elaboração e implementação do currículo. Os possíveis motivos desta recusa serão apresentados nos apontamentos do tópico relativo às hipóteses. A partir da conexão entre teoria e prática curricular, me aproprio da noção desenvolvida por Ivor Goodson de construção social do currículoxxi Para este autor, tanto a prescrição dos conteúdos quanto os usos que se fazem dela, devem ser objetos de análise. Estudar apenas uma dimensão deste objeto, que é alvo de muitas disputas nos levará a uma

462

visão parcial. A dimensão prescrita nos dá indícios sobre quais valores, conhecimentos, tradições e intenções uma sociedade possui e deseja transmitir através da escolarização, porém, nem sempre o que se prescreve é o que se efetiva nas aulas. Para Goodson, o que está escrito não é necessariamente o que é apreendido, e o que acontece. Todavia, (...) isto não implica que devamos abandonar nossos estudos sobre prescrição como formulação social e adotar de forma única o prático. Pelo contrário, devemos procurar estudar a construção social do currículo tanto em nível de prescrição como em nível de interaçãoxxii.

Como Goodson argumenta, o enfoque somente na prescrição é uma visão incompleta. A dinâmica das escolas, os saberes e interesses dos professores e o próprio desenvolvimento de suas aulas são elementos importantes na efetivação ou não dos currículos e merecem, portanto, ser objeto de análise. No que tange a este projeto de pesquisa, esta é uma referência fundamental, uma vez que, percebo que a prescrição dos PCN de História não é hegemônica, e mais do que isso, é fortemente rechaçada pelos professores.

Possíveis motivos de recusa Os professores de história atualmente saem de sua graduação com uma vaga informação sobre o que são os PCN e em menor medida do que é a proposta por eixos temáticos. Quando começam a trabalhar, muito pouco ou nada se houve falar ou discutir sobre tal tema. Com estas informações podem ser elaboradas algumas suposições: •

A formação do docente durante sua graduação é feita sob a organização de cátedras baseadas na matriz cronológica. Os cursos começam pela Antiguidade e terminam na Contemporaneidade. Essa sequência de estudos é naturalizada tanto dentro das universidades, quanto nas escolas;



Durante os períodos que se tem contato com disciplinas que trabalham o ensino de história, a história temática e os PCN são apresentados de maneira ainda superficial;



A forma como os PCN foram elaborados - sem contar com a contribuição dos professores da Educação Básica - que encaram a proposta como algo autoritário feito fora da escola e “pelo alto”;



O contexto governamental neoliberal no qual os PCN são construídos é encarado de forma negativa pelos docentes.

463

Considerações finais A título de conclusão, nota-se que a dinâmica das escolas e salas de aula, e que tanto a experiência discente e docente dos professores, faz com que na maioria das vezes o currículo imposto ou proposto (existem os dois casos) seja adaptado ou simplesmente não seja seguido, como no caso dos PCN, por questões pragmáticas, político-ideológicas ou por concepções distintas sobre os objetivos de se ensinar história. A carga da tradição cronológica no ensino de história é bastante forte, fazendo com que essa vertente curricular se sobreponha as recomendações dos Parâmetros Curriculares Nacionais. Não é o objetivo da pesquisa a ser encaminhada, identificar qual o melhor currículo de história a ser “seguido”, mas sim compreender as razões de a proposta do MEC não ser bem recebida pelos professores e tentar identificar as concepções de história dos professores da Educação Básica.

Notas

i

BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: História. Brasília, MEC / SEF. 1998, p. 04. GOODSON, Ivor. Currículo: teoria e história, 14ª Edição, Petrópolis, Editora Vozes, 2013. iii Idem. p 27. iv Idem 3. v Idem 3 e 4. vi CAIMI, Flávia Eloisa. História convencional, integrada, temática: uma opção necessária ou um falso debate? Trabalho apresentado no Simpósio Nacional da ANPUH DE 2009. Disponível em http://anpuh.org/anais/?p=15327. vii Idem 6, p. 4. viii OLIVEIRA, Margarida Dias de. Parâmetros Curriculares Nacionais: suas ideias sobre História. In , Maria Inês Sucupira Stamatte (orgs). O livro didático de história: políticas educacionais, pesquisas e ensino. Natal, EDURFN, 2007, p. 9-18. ix BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História fundamentos e métodos, 3ª ed. São Paulo, Cortez, 2009. x MAGALHAES, Marcelo de S. História e cidadania: por que ensinar história hoje? In Martha Abreu; Rachel Soihet. (orgs). Ensino de História: conceitos, temáticas e metodologia. 1ª edição, Rio de janeiro, Casa da Palavra, 2003, p. 168-184. xi MONTEIRO, Ana Maria. Professores de História – Entre saberes e práticas, 2ª Ed. Rio de Janeiro, Mauad X, 2010. ii

xii

Apud BURKE, Peter. A Escola dos Annales, 1929-1989. A Revolução Francesa na Historiografia, São Paulo, Editora UNESP, 1997. xiii Idem 12, p.104. xiv GUIMARÃES, Selva. Caminhos da História Ensinada, 13ª Edição, Campinas, Papirus Editora, 2013.

464

xv

MARTINS, Maria do Carmo. A história prescrita e disciplinada nos currículos escolares: quem legitima esses saberes. Tese de doutorado do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade de Campinas, 2000. Orientadora Profª. Drª. Ernesta Zamboni. xvi SILVA, Thomaz Tadeu. Documentos de identidade. Uma introdução às teorias do currículo, 3ª Edição, Belo Horizonte, Autentica, 2010. xvii Idem 16, p.11 xviii Idem 16 e 17. xix SACRISTÁN, J. Gimeno. O currículo. Uma reflexão sobre a prática, 3ª Edição, Porto Alegre, Artmed, 2000. xx Idem, p.15. xxi Idem, 04. xxii Idem, 04, p.78

465

Cartografia e Itinerário: um caminhar para a “Perdição” na Feira Moderna (1940-1960) Carlos Alberto Alves Lima Mestre em História PGH-UEFS SEC-Bahia [email protected]

Resumo Buscaremos analisar o discurso de modernização e progresso que circulara na cidade de Feira de Santana, desde os fins da década de 1920. Esse discurso proferido por leitores privilegiados guiaram as transformações físico-estruturais, amparadas pelo interesse estético e pela implementação de um novo código de sociabilidade. É justamente nesse processo de mudanças, principalmente aqueles que viviam ou circulavam no centro urbano, que o “Complexo da Rua do Meio” surge enquanto a rua torta, antítese ao que era idealizado. Portanto, esse artigo busca apreender que, junto ao desenvolvimento da urbe moderna, civilizada e progressista, existiam espaços que se constituíam enquanto lugar da diferença, antítese ao que fora idealizado, enfim, resistência pelo menos por algum momento ao projeto imposto. Palavras-chaves: Feira de Santana, Cartografias, Complexo Rua do Meio

Abstract We will seek to analyze the discourse of modernization and progress that circulated in the city of Feira de Santana, since the late 1920s This speech by privileged readers have guided the physical and structural changes, supported by aesthetic interest and the implementation of a new code sociability. It is precisely this process of change, especially those who lived or circulated in the inner city, the "complex of Middle Street" comes as the crooked street, antithesis to what was intended. Therefore, this article attempts to grasp that, with the development of modern metropolis, civilized and progressive, there were spaces that are constituted as a place of difference, antithesis to what was idealized, finally, resistance at least for a moment to tax project. Key words: Feira de Santana, cartografy, Middle Street Complex

Meados da década de 1940, mês e dia quaisquer, cidade interiorana com grande movimento de pessoas atraídas principalmente pelo protagonismo do comércio local. Ruas largas, iluminadas e asseadas, com destaque para: a Conselheiro Franco, a Desembargador Filinto Bastos, a Marechal Deodoro da Fonseca, e as Avenidas: Senhor dos Passos, e Getúlio Vargas. Também merecem lembranças as praças públicas, com realce para: Praça João Pedreira e Praça da Bandeira ou do Comércio, com a interação de pessoas e mercadorias dos quatros cantos desse Brasil que, a cada semana, desembarcavam na cidade, quase sempre guiadas pela fama da feira semanal, que ocorria nesses espaços. E o Parque Bernadino Bahia com suas árvores, bancos, inclusive, conforme pedido da população, com mictórios públicos – algo singular. Não podemos esquecer os palacetes, construídos pela aristocracia local, que ajudavam a consolidar a estética da urbe.

466

Mas isso não era tudo, havia a preocupação também com a formação escolar e intelectual da juventude, para tanto fora criada ainda em 1927 a Escola Normal, uma das poucas do interior do estado, e o Colégio Santanopólis, fundado pelo professor Áureo Filho, que se notabilizou por formar, na educação básica, os filhos das elites de toda uma região. E o lazer? Esse era marcado por uma grande diversidade, qual cidade do interior nordestino contava com cinco cinemas (Cine Teatro Santana, Cine Íris, Cine Santanopolis Cine O Madri, Cine Plaza e Cine Brasil)? E as Filarmônicas? Ah, essas davam verdadeiros shows nas festas religiosas ou em suas apresentações dominicais, principalmente nas retretas e disputas que ocorriam nos famosos coretos. Existiam três: Filarmônica 25 de Março; Filarmônica Vitória e Filarmônica Euterpe Feirense. Até um clube social já se encontrava nessas terras, no início da década ergueu-se o Feira Tênis Clube, que passara a abrilhantar as festas sociais. Paremos por aqui, senão nos arrastaríamos por páginas e páginas citando construções e fundações que ajudaram consolidar a imagem de Feira de Santana enquanto uma cidade moderna e progressista, assumindo de uma vez por todas a alcunha de “Princesa do Sertão”. Para nos ajudar na compreensão desse processo constitutivo, vejamos o comentário feito por um visitante que por aqui passou:

Sabíamos de antemão que Feira era bela, grande e moderna. Sabendo também ser uma cidade populosa e movimentada. E sabíamos ser uma cidade culta, progressista e hospitaleira. Tudo, porém excede nossa expectativa. Vimos em Feira, nas ruas amplas e pavimentadas avenidas, nos prédios modernos, na vida social intensa e na sua posição privilegiada de cidade tronco de todo comércio interno bahiano. A hospitalidade de seu povo é transcendente e inconfundível; não percebemos diferença de classe na simpatia com que todos procuram agradar seus visitantes. (...) Sintetizando as suas qualidades: imagem de mulher, sedutora, bela, forte e boa.1

No momento que esse comentário fora feito, ou seja, meados do século XX, por mais que a urbe se caracterizasse esteticamente aos olhos dos feirenses e dos visitantes fortuitos por arroubos civilizatórios e de modernização, a cidade ainda ressentia a influência de sua origem rural e sertaneja. Assim, podemos afirmar que entre as décadas de 1940-1960 – temporalidade dessa pesquisa – Feira de Santana convivia com uma identidade ambígua, uma espécie de esquizofrenia histriônica: de um lado, um discurso modernizante, declamado como um mantra por parte de uma elite progressiva e que guiou atos responsáveis por transformações pelo menos do ponto de vista urbanístico, do outro lado, comportamentos e práticas mantidos e reproduzidos por variados sujeitos vistos como inimigos do progresso. A existência destes

467

incomodava deveras aqueles, particularmente na consolidação do projeto no qual tanta energia, palavra, dinheiro e articulação já haviam sido gastos. Para Ana Maria Oliveira (2008), por mais que os resquícios rurais permanecessem em Feira de Santana na forma de práticas e atos de alguns entes, não se pode negar que na década de 1950: “Esta foi constantemente identificada como uma cidade progresso. Constituindo-se no polo de atração regional pelo signo do moderno que possuía e que almejava alcançar” 2. Conforme a mesma autora, esse processo de grandes transformações urbanística, gestado na urbe ao longo de todo século XX, tivera a “vocação comercial” histórica e, durante o recorte temporal da pesquisa, mais precisamente a década de 1950, o processo nacional de consolidação da interiorização do país implantado pelo governo Juscelino Kubistchek (1956-1961) como grandes financiadores. Nesse decurso, o município ganhou destaque, pois se tornou um grande entroncamento rodoviário radial, responsável por interligar as regiões, especialmente o norte e o sul brasileiros. Dessa forma, essa dita integração nacional impulsionou de uma vez por todas os ventos do progresso para as terras feirenses. Segundo Clóvis Ramaiana Oliveira (2011), a chegada dessa ventania de novidades, principalmente aquelas de teor tecnológico e também as de cunho comportamental, realçou conflitos na sociedade da Feira. Assim, a eleição de novos padrões de comportamento e o desenvolvimento de um novo sistema de sensibilidade tornaram-se trincheiras a serem disputadas. Dessa forma, resume-se:

No caso de Feira de Santana, cidade situada a meio caminho entre o sertão baiano e a capital do estado (cerca de 100 km da última) a recepção das inovações tecnológicas foi acompanhada do desejo de uma parte da intectualidade e dos gestores públicos de transformar a urbe em uma espécie de capital sertaneja. Era um modelo que deveria ser seguido e centro dirigente da construção cultural de um mundo civilizado no sertão (...)3

Essas inovações tecnológicas, às quais se refere o autor, podem ser representadas por uma variedade de objetos ou imagens. Elas iriam desde o sobrevôo de um avião, até a implantação de escolas, construções de prédios públicos, ampliação da transmissão de rádio ou ainda a circulação de automóveis e caminhões. Faziam parte também dessa série de imagens reluzentes, serviços que garantissem o ideal de higienização. Assim, tivera repercussão positiva, a implantação do encanamento da água. Símbolo de uma sociedade avançada e com preocupação voltada à salubridade, a água vinda dos canos e torneiras era, há muito, desejada pela sociedade feirense, principalmente pelas famílias mais abastadas. Uma primeira tentativa para tal empreendimento ocorreu em 1936, na

468

primeira gestão do prefeito Heráclito Dias de Carvalho (1935-1937). Diz assim o ofício encaminhado do executivo municipal para a Câmara dos edis: Estando essa prefeitura seriamente empenhada em dotar a cidade dos serviços de água e exgoto(sic), tendo já providenciado no sentido da vinda do machinismo apropriado para a sondagem de mananciais em estudos no gabinete techinico do Dr. Saturnino de Britto, venho solicitar dessa ilibada câmara autorização para abrir crédito especial de até 20:000000 para despesas com o serviço de exploração, estudos e desapropriação.4

Esse empreendimento infraestrutural seria um dos desejos mais prementes das elites, pois além de facilitar a vida, especialmente na higienização e asseamento dos costumes, esse encanamento afastaria de uma vez por todas a existência dos aguadeiros, homens montados em carroças com trajes e linguagem que contrastavam com o que seria sonhado pelo projeto de civilidade. De toda sorte, esse projeto ensaiado pelo executivo local não foi posto em prática e Feira de Santana só viria inaugurar esse serviço na gestão de João Marinho Falcão (1955-1959), que contou com o apoio e a presença do Presidente da República Juscelino Kubistchek 5. Para Oliveira (2008), só foi possível a implantação desse projeto a partir da pressão feita pelo executivo e legislativo local, contando com o apoio massivo dos grandes comerciantes. Inclusive uma comissão viajara até o Rio de Janeiro em 1953, para cobrar do então presidente Getúlio Vargas o compromisso assegurado em campanha. É válido acrescentar que conjuntamente ao encanamento d’água, era cobrado o esgotamento sanitário. A falta deste, mais do que nunca, seria uma questão de saúde coletiva e representava um limite ao ideário do progresso almejado. Assim, conclui-se que a água e a rede de esgoto: “tornavam-se uma questão associada ao desenvolvimento e ao progresso, influenciando na dinâmica das vendas, uma vez que o comércio necessitava de uma urbe saneada e de boa aparência para atrair os clientes e vender os produtos”6 Outra imagem símbolo fortemente associada à modernização e, da mesma maneira, desejada pela sociedade feirense fora a energia elétrica. A cada poste erguido e fiação ligada ocorriam comemorações efusivas e loas eram tecidas em face do chefe político responsável por tais atos. Coube ao então intendente Arnold Silva (1924-1927), em 1926, investir num motor alimentado a Óleo Diesel, com o objetivo de produzir eletricidade para as ruas centrais da urbe. Esse sistema de produção viria a substituir os lampiões à querosene alocados nos postes, mas que pouco ou quase nada iluminava as artérias. Para Oliveira (2011), a iluminação artificial

469

mexeu no código de sociabilidade da urbe, nesse momento – década de 1920 – ainda predominantemente sertaneja e ruralizada. Na visão do historiador: A energia e o consequente alongamento do dia tornavam sem efeito os mistérios dos contos levado a cabo a luz de candeeiro, tirava destes o contexto de sombras escuras ativador de medos e práticas sociais. As lâmpadas postadas sobre as ruas revogavam os contos de terror, na medida em que bloqueavam o tom misterioso que poderiam possuir com a expansão da iluminação pública.7

A energia, mesmo produzida por motor e restrita a poucas ruas, servira metaforicamente como um totem, responsável por afastar maus espíritos, almas penadas ou assombrações típicas das lendas rurais que permeavam a cultura sertaneja. Como garantia de certa forma a segurança, a iluminação também tinha, e tem, a capacidade de afastar os inimigos do progresso e do patrimônio alheio, esses de carne e ossos, os famosos gatunos, vadios que teimavam, tais quais cadáveres insepultos, em atormentar as noites feirenses. Duas reportagens do Jornal “O coruja” nos confirmam tais afirmações:

Iluminada a Estrada Nova: O prefeito sempre atende as necessidades do povo, acaba de estender à rede de iluminação elétrica da cidade a famosa Estrada Nova, trecho asfaltado da Bahia-Feira, local que vinha sendo cenário de toda espécie de crimes e de agressão, devido à falta de iluminação uma vez que a via pública completamente às escuras é bastante transitada e abriga grande número de malfeitores8.

A Estrada Nova, atual Avenida Presidente Dutra, era considerada como um dos grandes monumentos do crescimento de Feira de Santana, pois se convertia na via responsável por interligar a Princesa do Sertão à capital do estado, trazendo para essas plagas mercadorias e pessoas que ajudariam a engradecer o comércio e a economia como um todo. Iluminada, reluzia ainda mais, sendo outra obra para o cabedal do prefeito João Marinho Falcão. A segunda reportagem assevera:

Notamos que Feira de Santana ultimamente tem adquirido um aspecto de cidade civilizada, já possuem luz em alguns bairros: Kalilândia, Sobradinho, Olhos D’Agua e outros, pois nestes, há oito anos passados não havia sequer um pirilampo para nos guiar e nos livrar dos buracos que tantas vezes deram preguiça aos transeuntes9.

Essa reportagem é esclarecedora em vários aspectos: primeiro, ao estabelecer que a luz originada da eletricidade10 metonimicamente representava os desígnios de progresso e civilidade. O segundo aspecto fica por conta da crítica explícita feita à administração municipal

470

da gestão anterior, sob o comando de Almaquio Alves Boaventura (1951-1955), diga-se de passagem, adversário político de Arnold Silva, proprietário da Folha do Norte, intrinsecamente ligado ao Semanário “O Coruja”, criado no grêmio estudantil do Colégio Santanopólis e que era impresso no próprio parque gráfico da Folha do Norte. O terceiro aspecto que salta aos olhos é a referência feita ao prefeito João Marinho Falcão como o chefe político responsável por grandes obras e que teve a virtude de ouvir os anseios da população. Mas esse processo de transformação urbanística, modernização dos espaços e civilização dos costumes na Feira de Santana do século XX não ocorreu de uma maneira simples e tampouco adocicada. Pelo contrário, o desenvolvimento desse processo gerou alguns confrontos trincheirados por sujeitos que historicamente compunham o cotidiano feirense e que foram silenciados em alguns momentos. É válido acrescentar que dessas transformações e, por conseguinte, dessas disputas, houve a constituição de um novo código de sociabilidade. A implantação desse novo código, que tinha a valorização da urbanicidade como centro, foi acompanhada pela produção dos espaços urbanos, construídos e tutelados pelas elites11, que buscavam a todo custo eleger padrões de segregação e fissura espacial, mas estendendo esses seus interesses também aos grupos sociais considerados perigosos. No entanto, estes últimos, através ora de ações sub-reptícias12, ora de negociação tacitamente acertada, criavam e recriavam tanto os territórios, quanto um cotidiano que lhes fossem, pelo menos momentaneamente, mais aprazível. Assim afirmamos que: “dentro de uma sociabilidade, resultante do seu uso diferenciado, a cidade é também um campo privilegiado de lutas de classes e movimentos sociais de toda espécie, que questiona a normatização da cidade e da vida urbana.”13. Com efeito, a História de Feira de Santana marcou-se por inúmeras lutas, sejam no campo simbólico ou na vida material. Para Oliveira (2000), em seu estudo que busca analisar a destruição da ordem rural que deu origem à cidade, as primeiras transformações urbanísticas, isso por volta da última década do século XIX, fomentaram um confronto entre o arcaico, passado rural, e o novo, incremento do comércio e da urbanização. Colocando em evidência de um lado a elite letrada, formada por jornalistas, médicos, advogados intelectuais, e de outro, o grupo formado por vaqueiros, negros e sertanejos, considerados incautos. Nessa complexa teia de relações, imbricamento e construção da modernidade na urbe feirense, materializada nas construções e reformas urbanísticas, bem como na implantação de novos hábitos, impostos por um novo código de conduta, reconhecemos a existência de pelo menos, para fins analíticos, duas fases ou vagas de modernização: a primeira compreende dos finais do século XIX até meados da década de 1930, momento marcado pelas primeiras

471

intenções de civilidade e progresso, como também de investimentos infraestruturais; a segunda, entre as décadas de 1930 e 1960, fase de grandes reformas na imagem da cidade, tais como alargamento e higienização das ruas, investimento em iluminação pública e em construção de prédios, e decorrente disso, o aumento nas taxas de urbanização. Essas duas fases agiram na produção de territórios, multifacetando o espaço feirense. Nesse processo de reconfiguração da Feira de Santana moderna, observamos o quanto o perímetro urbano, cada vez maior, sofria a manipulação dos agentes sociais, levando a cidade a fracionar seus espaços, tendo como princípio o uso por função. Dessa forma, fica explícito uma interação entre sujeitos que constroem o cotidiano e o espaço em si. A resultante dessa junção é o que definimos como território. Segundo Ana Maria Oliveira (2008): “Mais que uma unidade, uma medida ou uma forma de delimitação de um espaço geográfico, o território é definido pela apropriação que deles fazem seus habitantes. Assim, o território ganha contornos a partir das múltiplas experiências vivenciadas e através das representações construídas sobre ele.”14 Pesavento (1999), ao analisar os lugares malditos no processo de modernização da Porto Alegre republicana, reconhece a existência dessa interação entre sujeito e território, alcunhado por ela como metonímia social. Esse imbricamento faz-se de uma maneira tão marcante e intensa que indivíduo e espaço se confundem, num processo de construção mútua. No desenrolar da produção dos territórios nas cidades brasileiras foi comum, além da construção daqueles bem quistos e socialmente aceitos pelo projeto burguês, o aparecimento de lugares que, na via inversa, representavam uma contraimagem do que era estabelecido. Será justamente um desses territórios, o “Complexo da Rua do Meio”, formado pelas atuais Ruas Marechal Deodoro da Fonseca e Sales Barbosa e seus respectivos Becos e Ruelas, local que concentrava práticas sociais ilícitas e moralmente condenáveis, dentre as quais a prostituição, a jogatina e a vadiagem, que farão parte da problemática desta pesquisa. Assim, buscaremos compreender a construção do ideário de maldição e proibição desenvolvido pelo discurso da elite dominante a partir da relação dos sujeitos com a Rua do Meio, no cotidiano da Feira. O novo ideário citadino e urbano impôs-se como protagonista de um novo modo de agir, pensar e sentir, que incorporou para si a liderança não apenas econômica, política e social, mas antes de tudo cultural. O indivíduo urbano que estava sendo forjado é convidado a introjetar um novo modus vivendi, que deveria diferenciar-se a todo custo do passado, que se supunha atrasado e de fortes resquícios rurais. Os projetos de modernização e de intervenção, impostos às cidades brasileiras no período Republicano, principalmente nas primeiras décadas do século XX, visavam um ideal

472

de urbanização, guiado não apenas pelo desejo de funcionabilidade e facilidades que o ambiente citadino poderia vir a propiciar, mas amparado também pelo viés do “Belo” ou pela vontade e necessidade de se criar uma estética para esses ambientes que estavam sendo formados ou remodelados15. Assim, buscava-se a todo custo promover melhoramentos nas urbes, com fortes destaques nas áreas de: iluminação pública, construção de estradas, alargamentos e limpeza das ruas, aberturas de praças e zonas de lazer, entre outros. Todos esses elementos considerados, na época, como propagadores de urbanicidade. As mudanças eram feitas buscando dar infraestrutura a esses núcleos citadinos, comumente eram percebidas políticas urbanas que se destinavam para solucionar determinados problemas, como: epidemias, crescimento demográfico, carência de moradia, deficiências no abastecimento de água, captação de esgotos, proliferação de lixo. Tudo isto, na visão dos agentes transformadores, fossem eles governantes, urbanistas, higienistas, sanitaristas ou intelectuais, representava barreiras intransponíveis para o progresso que se queria ter. Dessa forma, percebe-se que nos três primeiros decênios do século XX, o que se buscava eram condições mínimas de infraestrutura. Mas as mudanças promovidas não ficavam apenas no que tange a parte física e estrutural – ou pelo menos não apontavam apenas para ela – e sim pari passu a esse processo, com igual importância, buscava-se intervir nos hábitos e costumes da população, com destaque para os grupos considerados “perigosos” e reconhecidos como inimigos da ordem e dos bons costumes. Assim as camadas populares – aí abarcam capoeiras, prostitutas, jogadores, bruxos – sofreram medidas políticas, pautadas na normatização e na busca de uma harmonização e coesão do tecido social. Sabe-se, portanto, que foram marcantes, durante a primeira República, as preocupações com intervenções públicas nas cidades, sejam essas de cunho infraestrutural, paisagístico ou moral e estético. Quais foram os motivadores dessas intervenções e, consequentemente, a construção de um modelo de urbanicidade? Segundo Oliveira (2000), o crescimento populacional e a sublevação das cidades no contexto social e principalmente político são pressupostos que não podem ser desprezados no entendimento do processo de valorização, soerguimento e protagonismo do urbano. Não se pode ou não se deve pensar o processo de urbanização de quaisquer cidades, regiões ou países, sem relacionar a sua dinâmica com o desenvolvimento populacional. Essa relação chega ao limite – lugar de preponderância – quando um país, cidade ou região só é considerado urbanizado completamente quando atinge 51% da sua população vivendo no ambiente citadino. Então como explicar essa relação? Especificamente tratando-se do Brasil, 473

inferimos que as políticas públicas republicanas tinham um caráter imanente de valorização do urbano em detrimento do rural. Dessa forma, torna-se perceptível a tutela que o Estado assumiu para si, imbuído de levar a cabo a tão sonhada urbanização. Dessas políticas, percebeu-se o crescimento das populações nas cidades brasileiras, fenômeno que se baseou em sua quase totalidade: no êxodo rural e/ou nas migrações internas, particularmente encaminhadas para o centro-sul – São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte –, para as capitais dos seus respectivos estados, ou ainda para cidades de maior porte, como fora o caso de Feira de Santana.16 Faz-se necessário acrescentar que, para além das políticas públicas – que buscavam dar subsídios infraestruturais para o processo de urbanização e, por conseguinte, para um imaginário social pautado nos ideais de modernidade, ordem e progresso – o crescimento populacional estava integrado, também, ao chamado “modelo de substituição das importações” empreendido, principalmente, após a revolução de 30 pelo governo Vargas. Esse modelo econômico privilegiava a construção de parques industriais e, por consequência, a valorização da indústria nacional. Isso contribuiu para a hegemonia do setor industrial no sistema produtivo brasileiro. Destarte, infere-se que o aumento populacional nas grandes cidades brasileiras esteve relacionado ao desenvolvimentismo industrial e à respectiva abertura de novos postos de emprego ou, pelo menos, a esperança de tal feita. Em relação ao aumento de importância dos centros urbanos no período republicano, isso se deve principalmente às atribuições dadas às cidades a partir da segunda metade do século XIX. Se outrora os núcleos urbanos eram meras extensões do campo ou, numa alusão freyriana, das casas-grandes, e que tinham a sua importância restrita apenas às atividades políticoadministrativas; daquele momento em diante, além de aumentar o seu poderio políticoadministrativo, a cidades transformaram-se em lócus privilegiado de atividades comerciais e financeiras, de alocação das instituições burocráticas, e tiveram o papel de subsidiar o aparecimento de um mercado de bens culturais e serviços. Tais fatos paulatinamente proporcionariam uma reestruturação nas formas de sociabilidades e no aparecimento de novos grupos sociais, consumidores em potencial desses produtos, a chamada classe média urbana. A elite brasileira, embevecida de certo liberalismo econômico e político, buscou a todo custo o “progresso” do país, dotando-lhe de uma nova concepção de civilidade e modernização de suas intuições, como também de seus cidadãos. Em Feira de Santana, a exemplo do que ocorreu nos principais centros do país, a virada do século e o advento do novo sistema republicano levaram a sociedade a se engajar na busca por um novo ideário de civilidade. Não podemos considerar que o projeto republicano de modernidade17 atingiu de maneira indistinta todas as cidades e redutos no território brasileiro e que tampouco temporalmente isso foi dado

474

numa mesma trajetória. Colocar Feira de Santana, ou quaisquer outras urbes interioranas na experiência de modernização e vivenciadas por capitais como Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre ou até mesmo Salvador – dada a sua proximidade geográfica – é correr o risco, diga-se de passagem, desnecessário de perder as especificidades e as peculiaridades dos fatos, ou até mesmo de negar a dinâmica das singularidades, característica tão cara a uma História que não se quer mais total e que tenta de todas as formas fugir dos ditos modelos explicativos. Portanto, comungamos com a ideia de que os ventos do progresso e da modernização sopraram para os lados do altiplano feirense a partir da virada do século XIX para o XX. No entanto, as características bem como os resultados desse processo estão aliados às especificidades locais, construindo de certa forma o progresso, mas um progresso com a cara e as particularidades possíveis de uma urbe do interior baiano. Serão justamente essas particularidades e especificidades que procuramos compreender em Feira de Santana, tendo como ponto de partida suas experiências republicanas. É válido acrescentar que o recorte temporal dessa pesquisa terá como limite a década de 1960, pois compreendo que a partir desse momento a cidade adentrou numa nova vaga da modernização, tendo agora, do mesmo modo que em outros centros, a industrialização como protagonista. De acordo com Alane Santos (2001), para compreender essa fase, que se deu a partir da implantação do Centro Industrial do Subaé (CIS), faz-se necessário recorrer ao Plano de Desenvolvimento Local e Integrado (PDLI), no governo do então prefeito João Durval Carneiro, pois o PDLI representou e legitimou a estrutura de uma industrialização moderna e organizada no município e serviria de articulador dos novos tempos. Para isso, esse plano ancorou-se em três aspectos: Dispor a cidade de uma infra-estrutura mais moderna, proporcionando uma melhoria física e um maior aproveitamento do espaço urbano; desenvolver e integrar os três setores da economia; e ainda por meio de incentivos de crédito e isenção de impostos, por parte do poder público e órgãos financiadores, integrar a cidade nos caminhos da modernidade. Esses requisitos foram cruciais para a instalação de um centro industrial na cidade.18

Portanto, a urbe feirense vivenciou ao longo do século XX, principalmente nas seis primeiras décadas, grandes transformações, tanto de cunho infraestrutural e paisagístico – alargamento e asseamento de ruas, construção de praças, encanamento da agua, dotação de energia elétrica – quanto as que buscavam estabelecer comportamentos e práticas condizentes com o surto de modernização urbana. Uma nova sociabilidade fora erigida, pelo menos esse era o desejo e projeto das elites dirigentes.

475

1

Jornal Folha do Norte, 02/12/1950. OLIVEIRA, Ana Maria Carvalho dos Santos. Feira em tempos de Modernidade: Olhares, Imagens e Práticas do cotidiano (1950-1960). Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 2008. p. 20. 3 OLIVEIRA, Clóvis Frederico Ramaiana Morais. “Canções da cidade Amanhecente”: urbanização, memórias e silenciamentos em Feira de Santana, 1920-1960. (Tese de Doutorado) Brasília: Universidade de Brasília, 2011. p. 20. 4 Correspondência do Executivo Municipal. Documento de 26/07/1936. Arquivo Público Municipal de Feira de Santana, 1936. 5 O Projeto de Encanamento de Água apenas foi realizado em meados de 1957. E estava restrito ao centro da cidade. O líquido precioso era haurido na Lagoa Grande, região suburbana. A água só viera a chegar a bairros no governo de João Durval Carneiro (1967-1971). A cidade passou então a ser abastecida com água da Barragem de Pedra do Cavalo. 6 OLIVEIRA, Ana Maria Carvalho. Op. cit. P. 46. 7 OLIVEIRA, Clóvis Ramaiana. Op. cit. P. 219. 8 Jornal O Coruja, 23/09/1956. 9 Jornal O Coruja, 15/10/1956. 10 A luz elétrica produzida por usina hidrelétrica e ligada por grandes redes só chegara à urbe feirense no ano de 1935, na gestão do Prefeito Elpídio Nova. Definivamente a partir desse momento, a sociabilidade noturna sofrera mudanças bruscas, o anoitecer ganhara uma nova conotação. 11 SANTOS, Cátia. Visões de uma Cidade: Imagens Urbanas de Feira de Santana (1929-1940). (Monografia de Especialização). Feira de Santana: UEFS, 2004. 12 Para compreender essas estratégias, ver: CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano: 1. Artes de Fazer. Petrópolis: Vozes, 1994. 13 SANTOS, Cátia. op. Cit. P. 10. 14 OLIVEIRA, Ana Maria Carvalho dos Santos. Op. Cit. P. 151. 15 Ver: OLIVEIRA, Clóvis Frederico Ramaiana Moraes. “Canções da cidade amanhecente”: memórias urbanas, silêncios e esquecimentos, Feira de Santana, 1920-1960. (Tese de Doutorado). Brasília: UNB, 2011; SEVCENKO, Nicolau. Orfeu Extático na Metrópole: São Paulo, Sociedade e Cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Cia da Letras, 2000.; LEITE, Rinaldo César Nascimento. E a Bahia civiliza-se...: ideais de civilização e cenas de anticivilidade em um contexto de modernização urbana Salvador, 1912 – 1916. (Dissertação de mestrado). Salvador, 1996.; FOLLIS, Fransergio. Modernização Urbana na Belle Époque Paulista. São Paulo: Ed Unesp, 2012.; REZENDE, Antonio Paulo. (Des)Encantos Modernos: Histórias da cidade do Recife na Década de 1920. Recife: FUNDARPE, 1997. 16 Ver: BOAVENTURA, Eurico Alves. A Paisagem Urbana e o Homem: Memórias de Feira de Santana. Organização e Notas de Maria Eugênia Boaventura. Feira de Santana: UEFS, 2006. P. 84-89. 17 Modernidade entendida como uma experiência histórica, pessoal e coletiva de sentir-se num mundo em transformação e mudar com ele. Ver: BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da Modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. 18 SANTOS, Alane Carvalho. Industrialização, Desenvolvimento e Modernidade na Princesa do Sertão. (Monografia). Feira de Santana: UEFS, 2001. P. 27 2

476

África: O Regresso em Busca da ancestralidade Yorùbá

Carlos Alberto Ivanir dos Santos1

Resumo: Pensa em Áfricas2 no Brasil, hoje, é colocar em análise os múltiplos processos socio-históricos aos quais foram submetidos os africanos e seus descendentes, durante e depois dos processos de estratificação dos negros do continente. E, dentre estes a segregação sócio-cultural foi o demarcado dos processos de dominação, estigmatizarão e ocutamentanto da memória ancestral3, elo que nos uni a um sistema cultural distinto. O presente artigo tem por objetivo fazer uma pequena analise dos laços afetivos, não parentais, a partir das narrativas de afrobrasileiros em busca de sua ancestralidade Yorùbá.

Palavras- chave: memória, regresso, ancestralidade Yoruba Key words : memory, return , Yoruba ancestry

1. Memória Viva: Relação inter continentais A história sempre será frutos de interesses e sempre irá servir a um sistema de memórias selecionadas, seja ela de uma forma direta ou indireta. Nas palavras e Pollak (1989) ‘a referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos e das instituições que compõem uma sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua complementariedade, mas também as oposições irredutíveis’, destarte ao analisarmos as construções da história da Nação brasileira percebemos que tal processo servia, e ainda servi, a um grupo racial bem definido dentro da sociedade brasileira, grupo, este, detentor da memória oficial. Destarte tomar como evidência apenas um lado da narrativa é correr o risco de uma história única, que prioriza apenas uma versão dos fatos (GINO, 2014). Chimamanda Adichie (2013, p.3) enfatiza que “(...) é impossível falar sobre uma única história sem falar sobre poder”. E tratando especificamente do caso dos africanos em diáspora o poder sobre continente estava muito mais fragmento do que solidificado assim como a sua história devido aos processos de dominação social, tais como a colonização e a escravidão (GINO, 2014), logo a construção e reconstrução de suas histórias dos africanos e seus descendentes (afro-

477

brasilieiros) no Brasil, estava relegada as interpretações e construções a partir dos detentores da memória (poder), estes por sua vez a tornavam oficial e coletiva. O tráfico escravo africano iniciado no alvorecer do século XVI no Novo Mundo foi dividido em três clássicos ciclos. Foram eles: o ciclo da Guiné, que ocorreu durante a segunda metade o século XVI; o ciclo de Angola e do Congo, no século XVII; o ciclo da Costa a Mina, durante os três primeiros quartos do século XVII. (NASCIMENTO, 2010, p. 21)

Não sendo permito aos grupos “minoritários4” qualquer tipo de revivificação direta de suas histórias quando aqui chegaram. Pois, Tendo sido queimados os documentos e arquivos referentes ao tráfico dos escravos e seno interditam nos recenseamentos oficiais discriminação segundo a cor da pele, é difícil proceder à apreciação exata da evolução e da importância a população e ascendência africana no Brasil (ELBEIN DOS SANTOS, 2012, p. 26).

Tal pretensioso apagamento foi um dos dificultadores para qualquer possibilidade de reconstruções de laços históricos, diretos, entre os negros africanos em diáspora e seus entes que lá ficaram, mas o mesmo não conseguiu ultrapassar as memórias individuais e coletivas desses grupos étnicos, que a partir de diferentes pontos de referencias - tais como: personagens históricas, tradições e costumes, certas regras de interação, a música, as tradições culinárias e a religião – que conseguiram reestruturaram suas memórias que por sai vez passou a ser inserida na memória da coletividade a que pertencemos. Essa população preservou grande parte de sua cultura de origem, em diferentes graus de aculturação, dependendo da maior ou menor retenção dos modelos e raízes africanas e das circunstâncias sócio-históricas das diversas regiões onde se estabeleceram os vários grupos étnicos. (ELBEIN DOS SANTOS, 2012, p. 27).

E, as religiões entre os negros em diáspora foi um fator de união principalmente nos lugares onde a tradição oral indica, no Brasil, relacionamento direto com as heranças cultural africana, principalmente com a cultura Yorùbá5- Nigéria- revivificada e reinterpretada, aqui, através de suas ramificações, tal como o Candomblé Ketu. E, é justamente a inserção neste seguimento religioso que tem instigado vários adeptos a se predisporem a um regresso em busca de seus laços com esta cultura. A oralidade não é apenas uma fonte que se aceita por falta de outra melhor e à qual nos resignamos por desespero de causa. É uma fonte integral, cuja metodologia já se encontra bem estabelecida e que se confere à história do continente africano uma notável originalidade” (J. KI-ZERBO, 2010, p. 35) .

A cultura Yorùbá, tal como em boa parte das culturas africanas, é fortemente marcada pela tradição oral. E por ser uma cultura ágrafa muito se perdeu nos processos de diáspora, quando

478

os negros africanos chegaram ao Brasil como escravos. Sem dominar o código lingüístico do dominador e sem que pudessem livremente professar sua fé.

2. O regresso e o revivamento mnemônico:

“Na África, quando morre um velho é uma biblioteca que arde” (HAMPÂTE BÁ, 2003, p. 10). É impossível falar sobre as ressignificações africanas no Brasil e seu estimulo para o regresso sem falar sobre a África, um continente rico e diverso, que freqüentemente é considerado como um espaço homogêneo, associado à pobreza e miséria, na imagética social. A idéia que a grande maioria das pessoas tem sobre o continente africano é de um ambiente totalmente hostil dominado pela natureza. O que é uma distorção! Mas, infelizmente, serviu de base para justificar a dominação colonial do continente entre o fim do século XIX e o terceiro quarto do século, e disseminar um processo de estigmatizarão e preconceito sobre o continente, sobre os africanos e sobre os afro-brasileiros. Contudo o olha sobre a África e seus estados, hoje, não são homogêneo tal como outrora, a possibilidade de emissão dos adeptos das religiões de matrizes africanos (cada qual em sua configuração cultural especifica) em busca dos fico condutor entre religiosidade afrobrasileira e a sua origem, vem contribuindo significativamente para a reconstrução e ligação mnemônica, não afetiva, entre este (Cá) e aquela (Lá) cultura. O depoimento de alguns adpetos do Candomblé, aqui especificadamente da nação Nágò, em busca de suas ligações com a África, aqui especificadamente com a Nigéria, nos elucida claramente como a busca por uma elo ancestral lhe proporcionaram uma visão totalmente dicotômica da que veiculada de forma negativa. Adepto do Candomblé, raspado há 32 anos para Oxáguian6, na Bahia em janeiro 1981, nos conta que : Quem tem família italiana vai à Itália. Descendentes e portugueses, a Portugal. Os negros não tiveram esses direito de voltar para se identificar como o seu povo, sua cultura (Oxáguian esteve na Nigéria em 2005).

479

Adepto do Candomblé há , raspado há10 anos para Orunmila7, na Nigéria em Fevereiro de 2005, nos conta que : Se você for à Nigéria som olhar ocidental, ficará em choque. As pessoas têm dificuldade de ler aquela riqueza. A simplicidade material não quer dizer miséria. Quando você se abre para compreender aquele universo, vê que maldade fizeram conosco, os descendentes de africanos. Tiraram a nossa identidade. Fomos afastados de uma sociedade que valoriza a sabedoria, o reverenciado por esta mais próximo os ancestrais. (Orunmila esteve na Nigéria em 2005)

Adepto do Candomblé, raspado há 5 anos para Obatalá8, na Nigéria em fevereiro de 2010, nos conta que : Reencontrei Bankole em 2004, seis anos depois e conhecê-lo em uma reunião, quando eu era subsecretário e Direitos Humanos e Cidadania. Ele me disse que eu tinha de ser / que ser iniciado na Nigéria, por 20 Babalawosque chegou a hesitar viajar até ouvir de uma

amiga

próxima:

“O

desígnio

de

Ifá

ACONTECE

INDEPENDENTE DA SUA VONTADE. Você tem de ir. Vai resgatar algo que um ancestre deixou lá para você e que só você pode pegar. (Obatal esteve na Nigéria em2010 )

Estas narrativas nos mostram a sobrevivência durante dezenas de anos, de lembranças, lembranças que esperam o momento propício para serem expressas através das experiências de rememoração ou indução. Nas palavras e Pollak. Essas lembranças durante tanto tempo confinadas ao silêncio e transmitidas de uma geração a outra oralmente, e não através de publicações, permanecem vivas. O longo silêncio sobre o passado, aquele que outrora fora destruído, longe de conduzir ao esquecimento, é a resistência que uma sociedade civil impotente opõe ao excesso de discursos oficiais. Ao mesmo tempo, ela transmite cuidadosamente as lembranças dissidentes nas redes familiares e de amizades, esperando a hora da verdade e da redistribuição das cartas políticas e ideológicas. (POLLAK, 1989, p. 7).

480

Em suas viagens à Nigéria, nossos entrevistados puderam conhecer cidades de Ogbomosho, Ibadan e Koso, no estado Oyo, Oshogbo e Ejigbo, no Estado e Osun, e Lagos, além de Ifé, algo que, segundo os mesmo, lhes proporcionaram uma reconstrução religiosa e uma releitura daquela sociedade tradicional. Tradicional, na media em que se entende este sistema cultural como uma continuidade ou permanência de uma doutrina, transmissões de visões de mundo, costumes e valores, saberes e vivencias.

3. Considerações Finais Destarte, através das narrativas os nossos entrevistos e o entrelaçamento com as fontes bibliográficas tendamos, na medida do possível, assinar a tênue linha invisível que esta sendo recosturando as relações entre os adeptos dos Camdomblé Ket, aqui no Brasil, e a cultura Yorùbá no sudoeste da Nigéria através de suas inserções direta ou indiretamente. Tais relatos nos especifica, também, o caráter essencial das tidas religiões tradicionais, a oralidade, e o que de fato pode unir até certo ponto os adeptos destas tradições duas culturas. Sobre esta perspectiva o malinês Amadou Hampâte Bâ nos lembra que; o que esta em ‘jogo’

É o próprio valor do homem que faz o testemunho, o valor da cadeia e transmissão as qual ele faz parte a fidedignidade das memórias individuais e coletivas e o valor atribuído à verdade em uma determinada sociedade. Em suma a ligação entre o homem e a palavras. (HAMPÂTÉ BÂ, 2010, p. 222).

E é este valor sobre o homem e suas inserções culturais e possibilita o estabelecimento dos elos culturais e religiosos. As análises sobre as tentativas de reconstruir os laços mnemônicos não parentais entre os adeptos do Candomblé Ketu e as cultura Yorùbá, nãoo se fundam neste trabalho. Entendemos que o assunto é amplo e com múltiplas possibilidades de leituras. Entendemos que como “historiadores, na maior parte dos casos, não analisando suficientemente a lógica dessas fontes orais elas próprias como outro discurso histórico que teria sido transmitido com objetivo bastante preciso de contar a história”. (BARRY, 2000, p 25).

481

Bibliografia de referência

BARRY, Boubacar. Senegâmbia: O desafio da História Regional. Amsterdan/Rio de Janeiro: SEPHIS/CEAA, 2000. BURKE, Peter. A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992 CHAM, Mbye.História oficial, memória popular: reconfiguração do passado africano nos filmes de Ousmane Sembène. Projeto História. N° 44, jun. 2012, p. 295-303 FAGE, J. D. Evolução da historiografia da África. História Geral da África: Metodologia e Pré-História da África. Vol. I. Brasília: Unesco, 2010, p. 2-23. HAMA; Boubu & KI-ZERBO, Joseph. O lugar da história na sociedade africana In: História Geral da África: Metodologia e Pré-História da África. Vol. I. Brasília: Unesco, 2010. HAMPÂTÉ BÂ, Amadou. Tradição Viva. In: História Geral da África: Metodologia e PréHistória da África. Vol. I. Brasília: Unesco, 2010, p. 167-212. HEGEL, J. G. F. Lecciones sobre la filosofia de la historia universal. Tomo I. 3ª ed. Buenos Aires: Revista de Occidente, 1946, p. 183-203. GINO, Mariana. A escrita da história Oral africana: O Mali sobre a escrita. In ”. In: Cadernos de resumo do XI Encontro de História Oral. Niterói, Jul de 2015, p. 3-15, 1989. LANGER, Johnni. Civilizações perdidas no continente Negro: o imaginário arqueológico sobre a África. In: Mneme: revista de humanidades. Vol. 7, nº 14, 2005, p. 1-19. NASCIMENTO, Luis Carlos. Bitedô, onde moram os nagôs. São Paulo: Editora CEAP, 2010. POLLAK, Michael. “Memória, Esquecimento, Silêncio”. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, p. 3-15, 1989. OBENGA. T. Fontes e técnicas específicas da história da África – Panorama Geral In: História Geral da África: Metodologia e Pré-História da África. Vol. I. Brasília: Unesco, 2010, pp 59-75. SANTOS, Juana Elbein dos. Os Nàgô e a morte: Páde. Ásésé e o culto Egun na Bahia; traduzido pela Universidade Federal da Bahia. 14. Ed.- Petrópolis, Vizes, 2012. THORNTON, John. A África e os africanos na formação do mundo atlântico, 1400-1800. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003. VANSINA, J. A tradição oral e sua metodologia. In: História Geral da África: Metodologia e Pré-História da África. Vol. I. Brasília: Unesco, 2010, p. 139-16.

482

Notas 1

Mestrando em História Comparada pelo Programa de Pós-graduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, membro dos seguintes grupos e pesquisa LHER-UFRJ (Laboratório de História das Experiências Religiosas) e LEHA-UFRJ (Laboratório de Estudos de História Atlântica das sociedades coloniais e póscoloniais), membro do Conselho executivo do Centro e Articulações das Populações Marginalizadas (CEAP) 2 Áfricas, quando estamos falando de um sistema multi e pluri - cultural entro do continente. 3 Entendida aqui como memória. 4 Os negros e seus descendentes são até hoje minoria quando falamos de presença nos setores econômicos, representação social e política. 5 Também chamado de Nàgó. ELBEIN DOS SANTOS ( 2012), em nota explicativa, salienta que o termo Yoùbá é de uso relativamente recente, no Brasil, sendo os eruditos que descobriram nos texto estrangeiros e o fizeram conhecidos. Não é utilizado pela população. O termo designa um grupo étnico. 6 Optamos em substituir o nome dos nossos entrevistados pelo nome de seus respectivos Orixás. Oxáguian na mitologia yorubá é um jovem guerreiro, um Oxalá jovem, representado materialmente e imaterial pelo candomblé, através do assentamento sagrado denominado igba oxaguian. 7 Optamos em substituir o nome dos nossos entrevistados pelo nome de seus respectivos Orixás. Orunmilá também é às vezes chamado Ifá que é de fato a incorporação do conhecimento e sabedoria e a forma mais alta da prática de adivinhação entre os Yorubas. 8 Optamos em substituir o nome dos nossos entrevistados pelo nome de seus respectivos Orixás. Obatalá é o criador do mundo, dos homens, animais e plantas. Foi o primeiro Orixá criado por Olodumare e é considerado o maior de todos os Orixás

483

O cinema como agente legitimador: permanências da Guerra Fria no cinema estadunidense. Carlos Cesar de Lima Veras1 Resumo O presente ensaio tem por objetivo discutir a continuidade de práticas do cinema estadunidense durante o período da Guerra Fria até a atualidade. Apesar de a Guerra Fria ter chegado ao fim, é possível identificar que modelos e instrumentos característicos do uso político do cinema estadunidense na época ainda são constantes e

determinantes

em

produções dos grandes estúdios cinematográficos do país.

Palavras-chave: Cinema, Guerra Fria, Ideologia

Abstract

This essay aims to discuss the continuation of the US film practices during the Cold War to the present. Although the Cold War came to an end, its possible identify which models and instruments characteristic of the political use of American cinema in the era are still constant and decisive in productions of the major film studios of the country.

Keywords: Cinema, Cold War, Ideology.

Introdução

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, estabeleceu-se a divisão de influência pelo globo dos dois grandes vencedores do conflito: Estados Unidos e União Soviética. Cada um tentando provar sua supremacia em seu bloco de influência, as duas grandes potências passaram a disputar a superioridade em diversos setores, dentre os quais o bélico, tecnológico e econômico. Conhecido como Guerra Fria, este período que se estendeu até a dissolução da União Soviética foi palco dos mais variados usos e tipos de propagandas. E o cinema foi um destes meios de propaganda. Mídia que desde o início do século vinha conquistando grande parte da população pelo globo e sobreviveu à grande crise, o 484

cinema também se mostrou um ótimo instrumento de propaganda, que não necessariamente está velada como tal, já que mesmo a partir do divertimento os valores desejados podem ser propagados para milhares de espectadores, tornando assim o ato do divertimento um bom ensejador de propagação ideológica2. E se tratando do cinema estadunidense, a dimensão do impacto de sua produção é um caso à parte, já que esta indústria cinematográfica é a principal do mundo, posição estabelecida desde o fim da Primeira Guerra Mundial 3, o que garante uma ampla divulgação dos elementos contidos nos filmes em diversos cantos do globo 4. No mais, os estadunidenses há muito sabiam do poder, tanto econômico quanto político, que o cinema possuía, e desde a primeira metade do século XX dedicaram recursos para impulsionar as exportações de seus filmes5, além de a produção de diversos filmes (principalmente os destinados a retratar conflitos reais) ser pautada sob a influência das relações entre Hollywood e o Pentágono6. A Guerra Fria tornou o cinema estadunidense palco de uma assumida luta contra os valores inerentes à União Soviética ou àqueles que a ela poderiam ser atribuídos. Essa produção cinematográfica, inserida em um período quase paranoico de luta “contra o inimigo próximo”, não necessariamente era em sua totalidade elogiosa à postura política estadunidense ou necessariamente um instrumento de ataque ao socialismo: como exemplo, temos diversos filmes de sucesso que criticavam, através de analogias ou da representação direta, a “corrida armamentista e nuclear” em voga, como é o caso de Dr. Fantástico (Dr. Strangelove, 1964), de Stanley Kubrick, ou necessariamente não faziam referência ao conflito, preferindo centrar suas críticas em outros problemas presentes na sociedade estadunidense, como é o caso de A Noite dos Mortos Vivos (Night of the Living Dead, 1968), de George Romero, e sua contundente crítica ao racismo. Contudo, nos anos iniciais de Guerra Fria, o cinema foi de fato palco de uma exacerbação aos valores tidos como estadunidenses e, refletindo o clima de tensão imposto pelo Macartismo, também sofreu com a restrição de abordagens possíveis. Conforme Marc Ferro aponta: Esse período imediatamente posterior à Segunda Guerra, que coincide com o início da Guerra Fria, caracteriza-se pela existência de uma ideologia oficial, obrigatória. É o único momento da história do cinema americano em que todo e qualquer questionamento foi identificado a uma traição. Em condições assim, compreende-se que os cineastas tenham sido obrigados a migrar para campos que lhes proporcionavam um “abrigo”: as comédias musicais, o western, bem como tenham se voltado novamente para os filmes de gângsteres do tipo “o crime não compensa”, ou ainda para filmes sobre a Bíblia, a Antiguidade ou aqueles que glorificavam o Império Romano – arquétipo do “Império Americano”.7

Compreendendo que tais eventos foram significativos não somente em seus contextos, como também foram responsáveis por estabelecer modelos e práticas que permaneceram

485

sendo executados nas seguintes décadas de produção cinematográfica, serão analisados adiante filmes em três recortes distintos: a década de 1950, a década de 1980 e o início do século XXI.

Ficção científica e a monstruosidade socialista Um gênero cinematográfico que alcançou grande popularidade na década de 50 foi a ficção científica. Graças a licença poética de não ter a obrigatoriedade de praticar a verossimilhança, o leque de possibilidades de tais obras era muito variado: muitas vezes as ameaças eram seres extraterrestres ou formas de vida alteradas que colocavam a civilização humana em risco. Apesar de em algumas vezes as causas geradoras dessas ameaças fosse o cataclismo ocasionado pela corrida desenfreada rumo à superioridade bélica e o domínio atômico (o que claramente poderia mesmo ser interpretado como um engajamento contrário à ostentação e “glorificação” da bomba atômica por parte da propaganda estadunidense 8), uma das justificativas mais recorrentes das adaptações de sucessos da literatura fantástica ou das fantasiosas ficções científicas era “dotar” as ameaças de características que os tornassem uma alusão à “grande ameaça comunista”. E neste contexto (em plena vigência do Macartismo) filmes hoje clássicos como Invasores de Marte (Invaders from Mars, 1953) e Vampiros de Almas (Invasion of the Body Snatchers, 1956) foram produzidos. No primeiro, uma criança testemunha a aterrissagem de um disco voador em uma colina. Na sequência dos acontecimentos seu pai e outras pessoas, após se aproximarem do local do pouso, passam a se comportar de forma estranha. O exército então descobre que a causa de tais eventos é a presença de extraterrestres há um tempo estabelecidos no local, no intuito de impedir a construção de um foguete nuclear. Ao fim, revela-se que tais eventos foram fruto de um pesadelo da criança. No entanto, após não conseguir mais dormir, a criança testemunha a chegada de um disco voador, desta vez de verdade. Já Vampiros de Almas aborda como a chegada de formas de vida extraterrestres a uma pequena e pacata cidade do interior dos Estados Unidos põe em risco os valores e segurança da civilização: como os alienígenas são capazes de tomar a forma das pessoas, desconfiar de todos, mesmo os entes queridos, se mostra como a única alternativa válida, visto que nenhuma pessoa estaria isenta de ser “dominada” pelos seres extraterrestres (ou, na direta alusão, corrompidos pelos conceitos comunistas).

486

Nos dois casos, alguns pontos são extremamente recorrentes: o conceito da ameaça e como esta pode dominar todos a sua volta, a possibilidade de esta ameaça estar escondida na sociedade, apenas aguardando o momento propício de se revelar, a oposição entre os conceitos de civilidade, bondade e justiça inerente às populações estadunidense abordadas e a vileza, o horror e a destruição de valores característica às ameaças externas, dentre outros. Tais filmes refletem a ampliação de uma tendência que havia inicialmente sido utilizada na Segunda Guerra Mundial: a demonização do inimigo9. Contudo, desta vez o inimigo a ser retratado como um monstro não estava diretamente em um conflito bélico, e sim presente nas paranoias e temores que o risco dos avanço de suas ideias causavam.

Os Estados Unidos vão enfrentar o inimigo

Marc Ferro aponta que o filme Spartacus (Spartacus, 1960), de Stanley Kubrick, foi significativo ao romper o momento de restrição de abordagens que pudessem ser consideradas comunistas no cinema estadunidense durante a Guerra Fria. Contudo, a maior liberdade de criação para as obras cinematográficas não significou que os clichês e estruturas explorados na década de 1950 tenham sido deixados de lado; pelo contrário, a propaganda anticomunista tornou-se cada vez mais frequente mesmo nos grandes blockbusters que preenchiam os circuitos estadunidenses e das demais nações que por eles eram abarrotadas. Mas após a década de 1960 o conceito do inimigo interno perde um pouco de espaço para o combate fora da nação. Um dos casos mais significativos desse tipo de abordagem são alguns dos filmes que contam com o ator (e eventual diretor) Silvester Stallone. Dois de seus maiores personagens, Rocky e Rambo, apesar de terem sido em suas origens personagens caracterizados não necessariamente no padrão ideológico antissocialista (sendo até mesmo o personagem Rambo no filme “Rambo – First Blood”, de 1982, uma crítica ao descaso do governo estadunidense com os veteranos enviados à Guerra do Vietnã), tornaram-se não somente instrumentos de constante exaltação ideológica ocidental durante a Guerra Fria, como também passaram a ser vistos como justificativas de legitimação da interferência estadunidense no mundo10. Em Rocky IV (Rocky IV, 1985), o pugilista que dá nome ao filme enfrenta o soviético Ivan Drago, que guarda muitos dos estereótipos enfatizados pelo cinema estadunidense aos soviéticos na Guerra Fria e aos russos após a dissolução da URSS. Drago é retratado como um sujeito frio e perverso, quase desprovido de qualquer sentimento de compaixão ou

487

respeito. Em oposição ao lado “mau”, há Apollo Creed, antigo antagonista de Rocky, que se torna vítima da perversidade soviética após morrer na luta contra Drago, fazendo com que Rocky se torne então o herói no dever de vingar a morte de seu amigo, em uma luta contra Drago, realizada em Moscou e com direito a uma torcida soviética que decide torcer para Rocky, em um espetáculo de violência realizado em pleno dia de Natal. Ainda de Sylvester Stallone, o filme Rambo III (Rambo III, 1988) é icônico ao apontar uma prática muito recorrente no auge da Guerra Fria: a inserção dos dois polos em conflitos localizados. O enredo é situado durante a Guerra Afegã-Soviética (1979 – 1989): John Rambo, após se isolar em um mosteiro budista, se vê envolvido no resgate de seu antigo chefe Coronel Trautman, capturado pelos soviéticos durante o conflito no Afeganistão. Cabe então ao veterano de guerra lutar ao lado das tropas rebeldes afegãs para salvar Trautman e a população do país do controle soviético. Apesar de a análise dos estereótipos presentes no decorrer da obra possibilitar a identificação de seu caráter propagandístico, é a mensagem exibida pouco antes dos créditos finais que deve ser tratada como o momento mais significativo do filme, tanto pela exposição do caráter ideológico do filme, quanto também pela observação nos dias de hoje de como é relevante problematizar o quanto as grandes potências estão envolvidas diretamente na ascensão de conflitos e grupos hoje tidos como terroristas na conjuntura do Oriente Médio. Nas exibições originais, a mensagem exposta era a seguinte: “Este filme é dedicado aos bravos guerreiros Mujahadin do Afeganistão”. Com os ataques ao World Trade Center em 11 de setembro de 2001, os relançamentos do filme em mídias físicas trouxeram a alteração desta mensagem final para “Este filme é dedicado ao valente povo do Afeganistão”11, ironicamente evidenciando o quanto a política intervencionista da Era Reagan se voltaria mais tarde contra os próprios Estados Unidos.

O “iminente inimigo” nos dias de hoje

O fim da existência da União Soviética no início da década de 1990 poderia indicar o fim das práticas características da Guerra Fria. Contudo, muitas posturas da maior economia e maior força bélica do mundo permanecem semelhantes às praticadas no período de tensões com a União Soviética. Se tratando da produção cinematográfica dos Estados Unidos, é possível observarmos que diversas práticas e clichês permanecem sendo utilizados exaustivamente.

488

Como nos recortes anteriores, não seria possível elencar um grande leque de obras a serem debatidas; portanto, para debater sobre esta hipótese, serão selecionados seis filmes recentes, de ampla distribuição mundial e que possuem características muito comuns aos filmes que retratavam a “ameaça interna” e glorificavam a imposição dos Estados Unidos como “portador da liberdade” em outros cantos do mundo. Com argumentos muito semelhantes, Amanhecer Violento (Red Dawn, 2012), Invasão à Casa Branca (Olympus Has Fallen, 2013) e A Entrevista (The Interview, 2014) reciclam a fórmula de demonizar e ridicularizar antes aplicada às representações de soviéticos na telona . É provável que o primeiro exemplo escolhido seja o mais adequado para a hipótese aqui levantada: Red Dawn é uma refilmagem (remake) de um filme estadunidense de 1984. Na trama do filme original, um grupo de estudantes combate a invasão dos Estados Unidos pelo exército soviético. Já na refilmagem, os estudantes são substituídos por um fuzileiro naval e seus amigos e os soviéticos dão lugar a tropas norte-coreanas que conseguem invadir a Casa Branca. Antes de tecer comentários sobre este filme, passemos à análise da trama de Invasão à Casa Branca, lançado pouco mais de um ano após Amanhecer Violento. Neste filme, um agente do serviço secreto estadunidense busca impedir um ataque à Casa Branca promovido por um grupo de guerrilheiros norte-coreanos infiltrados na sede do governo. Por fim, a comédia A Entrevista traz dois repórteres incumbidos de realizar uma entrevista com o líder norte-coreano Kim Jong-Un, que na verdade é uma armação da CIA para conseguir executálo. Logo, basicamente temos uma exaustiva repetição de conceitos em dois filmes em menos de dois anos, além de no caso dos três haver um mesmo bode expiatório. Como todo blockbuster, a profusão de tiros, explosões, atos de heroísmo e humor barato (no caso de A Entrevista) é um convite para a imposição de conceitos que escapam à problematização, seja em relação a abordagem do outro ou aos atos dos mocinhos estadunidenses que não estão sujeitos a julgamentos morais por mais absurdos que se mostrem. Mesmo em casos nos quais as intenções não estão tão evidentes em uma primeira vista, a simbologia presente em grande parte dos blockbusters estadunidenses evidencia que o caráter propagandístico está fortemente inserido no filme. Peguemos mais três exemplos de filmes de grande sucesso em diversas partes do globo: Independence Day (Independence Day, 1994), Falcão Negro em Perigo (Black Hawk Down, 2001) e Transformers (Transformers, 2007). Se há uma semelhança evidente em uma breve análise de suas sinopses, podemos apontar para como a “glorificação” da destruição fica evidente. Outra semelhança sem dúvidas é a profusão exacerbada de símbolos estadunidenses, como as bandeiras e o culto ao

489

onipresente poder de suas forças armadas. E a associação do conceito de liberdade, justiça e defesa de valores para justificar a “existência” dos Estados Unidos no panorama global também é constante nos três exemplos citados. E se, diante das semelhanças podemos identificar alguns elementos de propagação ideológica, nas diferenças isso também fica evidente. No caso de Independence Day, há a outrora recorrente ameaça da invasão alienígena, desta vez espreitando o melhor momento para se revelarem e atacarem a humanidade sem piedade, para então no dia 4 de julho, data da Independência dos Estados Unidos, serem destruídos pelas forças armadas do país, que ao desfecho do filme são ovacionadas pela população mundial. Em Transformers, um típico adolescente estadunidense entrega-se avidamente ao recrutamento pela luta ao lado dos robôs extraterrestres Autobots, uma classe dos robôs que dão título ao filme, contra os malignos Decepticons, classe de robôs que tem por objetivo dominar o universo, através de um instrumento que foi enviado à Terra e que no momento está em posse do serviço secreto estadunidense. Os Decepticons iniciam uma luta contra as forças especiais dos Estados Unidos, os Autobots e o protagonista, após terem conseguido se infiltrar no país graças às suas habilidades de assumirem o “disfarce de veículos automotivos”. Por fim, os robôs antagonistas são derrotados, num desfecho no qual as forças armadas estadunidenses não são somente responsáveis por salvar a Terra, como também por estender sua luta pela liberdade além do planeta. Claramente esses dois casos, apesar de se tratarem de filmes com argumentos de certa forma diferentes, trazem gritantes elementos comuns: o conceito de liberdade claramente atribuído como uma função das forças armadas estadunidenses, como também o resgate da ideia de ameaça infiltrada. Caso ainda mais sintomático é o de Falcão Negro em Perigo. Baseado nos eventos ocorridos na chamada Batalha de Mogadíscio, ocorrida no período concebido como Guerra Civil da Somália (que perdura até hoje), o filme heroiciza uma missão de resgate de uma força de elite do exército estadunidense em território somali, em uma quase caricata representação da mal sucedida tentativa de intervenção estadunidense (sob égide da ONU) no conflito do país. Como resultado final, temos uma obra na qual uma avalanche de estereótipos confere aos estadunidenses todas as qualificações elogiáveis possíveis e que relega à Somália uma imagem de local bárbaro, desprovido de características com as quais o espectador possa estabelecer alguma compaixão e que sequer problematiza ou mesmo tenta explicar a motivação daqueles que caracterizam como inimigos. É demonstração bélica per si, travestida de heroísmo, cuja conveniência política torna-se considerável, principalmente diante da posição estratégica do país e suas possíveis reservas de petróleo12. 490

Conclusão Apesar de findada, a Guerra Fria foi determinante em redefinir a presença dos Estados Unidos em suas zonas de influência política e/ ou econômica. Mesmo com a dissolução da União Soviética e encerramento da Guerra Fria, é possível apontar que práticas fortemente adotadas pelos Estados Unidos ao longo do período citado continuam sendo frequentes, dentre as quais a forte utilização do cinema como instrumento de legitimação de sua política e de propagação de suas concepções ideológicas, o que torna seu poder de interferência muito amplo, considerando a hegemonia que este país exerce nos circuitos cinematográficos da maior parte do globo13. Diante das exigências de extensão deste ensaio, os três recortes anteriormente expostos foram escolhidos para tentar salientar, ao menos minimamente, quão direcionados a objetivos além do entretenimento podem ser os produtos cinematográficos: deve-se entender que não há a pretensão de limitar o escopo da utilização do cinema para tais fins às ficções científicas da década de 50, aos filmes protagonizados por Sylvester Stallone na década de 80 ou às representações sobre os norte-coreanos e as epopeias de elogio bélico mencionadas do início do século XXI. O leque de possibilidades de identificação de elementos característicos da Guerra Fria nos filmes produzidos pelos grandes estúdios durante e após o período é bastante amplo, sendo possível inclusive identificarmos a permanência do recorrente costume de caracterizar russos como vilões e ameaças, a despeito do fim da União Soviética. Levando-se em consideração a abordagem da semiótica proposta por Pierre Sorlin14, a leitura destes filmes torna válida a discussão sobre como o interesse de propagação de valores e costumes é uma constante nos filmes dos grandes estúdios estadunidenses, através de obras cujos amplos retornos financeiros (em grande parte dos casos lucrando mais que o dobro de seus custos) tornam evidente não somente a hegemonia que tal indústria detém ao redor do globo, como também demonstra que é muito vasto o público sujeito a receber as influências de tais obras. E diante da percepção da produção cinematográfica estadunidense como instrumento de exacerbação de seus valores nacionais, fazendo com que o campo cinematográfico seja influenciado até mesmo pelo Pentágono, vale a reflexão sobre os conceitos que a partir dos filmes são impostos aos vastos nichos de distribuição de tais filmes e até que há influência destes elementos nas mentalidades da população alvo destas obras. Afinal o cinema, além de poder ser analisado como fonte histórica, também é

491

agente

histórico, graças a sua capacidade de difusão ideológica e a multiplicidade de suas possíveis relações com o poder15. 1

VERAS, Carlos Cesar de Lima. Mestrando em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História

Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHIS – UFRJ), sob orientação da Professora Doutora Andréa Casa Nova Maia. Bolsista Capes. Endereço eletrônico: [email protected]. O sentido do termo “ideológico” aqui adotado é baseado no conceito de “Ideologia” abordado por Terry

2

Eagleton, que aponta a existência de uma série de significados possíveis ao termo, dentre os quais como sendo “o processo material geral de produção de ideias, crenças e valores na vida social”, assemelhando-se ao conceito de cultura e a “promoção e legitimação dos interesses de grupos sociais em face de interesses opostos”. EAGLETON, Terry. Ideologia: uma introdução. São Paulo: Editora Unesp, Boitempo, 1997, p. 38-39. 3

Com o fim da Primeira Guerra e a crise econômica que acometeu diversos pontos da Europa, os Estados

Unidos chegaram a produzir 85% dos filmes exibidos em todo o mundo. Ver SKLAR, R. Movie-Made America: A Cultural History of American Movies. 2nd. ed.. New York: Vintage Books, 1994, p. 47. Da mesma forma, a Segunda Guerra Mundial determinou a afirmação da soberania estadunidense na distribuição de filmes pelo mundo, diante de um novo momento de dificuldades econômicas para o sustento das produções cinematográficas dos demais países. Ver MELEIRO, A. et. al.. Cinema no mundo: indústria, política e mercado (Vol. IV: Estados Unidos). São Paulo: Escrituras, 2007. p. 38. 4

Contudo, vale salientar que ao fim da década de 1930, por consequência do início da Segunda Guerra Mundial,

os mercados cinematográficos da Europa deixaram de ser um nicho fértil para Hollywood. Para compensar essa perda, o mercado latino-americano tornou-se prioridade para Hollywood. Ver KINDERN, Gordon. The International Movie Industry. Illinois: Southern Illinois University, 2000, p. 321. 5

Uma das medidas mais significativas deste período foi a criação do Birô Americano, em 1940, que consistia no

planejamento de “medidas de curto e longo alcance para recuperar as economias combalidas dos vizinhos latinoamericanos (...) bem como estabelecer um vigoroso programa educacional, de relações culturais, de informação e de propaganda”, contando com, dentre outras, uma seção dedicada ao cinema. Evento significativo deste período foi a criação do personagem Zé Carioca, pelos estúdios de Walt Disney. SIMIS, Anita. Estado e Cinema no Brasil. São Paulo; Editora Unesp, 2015, p. 102. 6

Sobre como o Pentágono influencia a produção de filmes em Hollywood, ver MOOERS, Colin. The New

Imperialists: Ideologies of Empire. Oxford: Oneworld Publications, 2006. 7

FERRO, Marc. Cinema e Consciência da História nos Estados Unidos. In: Cinema e História. 2ª edição. São

Paulo; Paz e Terra, 2010. 8

Como por exemplo é o caso do filme O Dia em que a Terra Parou (The Day The Earth Stood Still, 1951), no

qual a trama alerta para o risco de uma iminente guerra atômica colocar em risco toda a vida na Terra. 9

Ver Cinema de ficção científica e guerra. MAYNARD, Dilton Cândido. In: SILVA, Francisco (org.).

Enciclopédia das guerras e revoluções – vol III: 1945 – 2014: a época da Guerra Fria (1945-1991) e da nova ordem mundial. Rio de Janeiro: Elsevier, 2015. 10

Como visto também no antecessor Rambo II (Rambo: First Blood Part II, 1985) e o sucessor Rambo IV

(Rambo, 2008). Vale conferir sobre este aspecto que os três últimos filmes da série Rambo podem ser interpretados como portadores de uma “função ideológica central de perpetuar essa peculiar

492

mitologia

americana”. BOGGS, Carl. The Imperial System in Media Culture. In: FRYMER, Benjamin, et. al.. Hollywood Exploited: Public Pedagogy, Corporate Movies and Cultural Crisis. New York: Palgrave MacMillian, 2010, p. 18. “This movie is dedicated to the brave Mujahideen fighters of Afghanistan” e “This movie is dedicated to

11

gallant people of Afghanistan”, respectivamente. 12

http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Movimentos-Sociais/A-guerra-na-Somalia-e-os-interesses-dos-Estados-

Unidos/2/12368. Acesso em 10/10/2015. 13

Hegemonia essa que se tornou ainda mais consolidada com a crise no fim do século XX das cinematografias

europeias e latino-americanas, que chegaram a pôr em cheque o amplo poderio dos filmes estadunidenses nos demais circuitos nacionais. Ver NAPOLITANO, Marcos. A escrita fílmica da história e a monumentalização do passado: uma análise comparada de Amistad e Danton. In: CAPELATO, Maria Helena, MORETTIN, Eduardo, NAPOLITANO, Marcos, SALIBA, Elias Thomé (orgs.). História e

cinema:

dimensões

históricas

do

audiovisual. São Paulo: Alameda, 2007, p. 69. 14

Para Sorlin, a contribuição da semiótica à análise historiográfica do cinema se dá pela possibilidade de leitura

do filme que o resgate de seus signos pode possibilitar, com a ressalva de que se deve atentar ao fato de que nem toda a série de elementos visuais de um filme estão orientados para estabelecer determinada comunicação. Ver KORNIS, Mônica A.. História e cinema: um debate metodológico. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, p. 237 - 250, 1992. 15

Para mais sobre o cinema como agente histórico, ver BARROS, José D’Assunção. Cinema e história: entre

expressões e representações. In. BARROS, José D’Assunção e NÓVOA, Jorge. (orgs.). Cinema- História: teoria e representações sociais no cinema. 3ª edição. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008, p. 63.

493

A CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA HISTÓRICA DE 1930 EM JURACY MAGALHÃES Carlos Nássaro Araújo da Paixão1 RESUMO: Este artigo busca compreender o processo de construção de uma memória histórica sobre a Revolução de 1930 a partir das memórias de Juracy Magalhães. O personagem evocou este evento como um marco fundador fundamental, a partir do qual, justificou suas ações e construiu sua trajetória política. Para tanto, será analisada a maneira pela qual ele pensou o processo político, representou o quadro da correlação de forças dos atores envolvidos e qual o sentido atribuído ao movimento do qual participou ativamente. Esta pesquisa conta com o financiamento da FAPESB. PALAVRAS-CHAVE: Memória, História, Revolução de 1930. ABSCTRACT: This article searches to comprehend the process of construction of a historical memory about the Revolução de 1930 starting from Juracy Magalhães' memoirs. The character evoked this event as a mark fundamental founder, starting from which he justified your actions and built your political path. For so much, the way will be analyzed by the which he thought the political process, it represented the picture of the correlation of the involved actors' forces and which the sense attributed to the movement of which participated actively. This research bill with the financing of FAPESB. KEY-WORDS: Memory, History, Revolução de 1930.

As memórias de Juracy Magalhães foram construídas tomando como eixo central os eventos relacionados à chamada Revolução de 1930. Nos três livros 2 que registraram a rememoração de sua atuação pública, este tema surge como “um movimento fundador da imagética histórica”3, a partir do qual o “vê como um longo futuro, na realidade como mito de origem, o tempo da história, que marca o início dos acontecimentos” 4, e que organizou toda sua narrativa de Brasil. Antes de definir os significados do movimento de 1930, Juracy descreveu com detalhes os momentos, personagens e intrigas da fase conspiratória. Julgou, e de alguma maneira, expôs as divergências e contradições dos grupos que estavam tentando articular a derrubada do governo de Washington Luís. Seus parceiros de tenentismo foram descritos como homens obstinados que conspiravam contra o presidente Washington Luís, através de um grande levante nacional. Segundo De Decca, o tema do tenentismo ganhou legitimidade a partir do lugar privilegiado que a ideia da revolução assumiu na historiografia brasileira. Neste caso, o processo histórico dos anos de 1920 passou a ser lido a partir da oposição: tenentes x oligarquias. O mesmo

494

dispositivo ideológico que elevou a revolução de trinta à categoria de fato histórico fundamental, também elegeu seu inimigo, o fantasma da oligarquia, e os seus agentes políticos, os fantasmas dos tenentes, ora denominados de revolucionários5. Um dos primeiros esforços explicativos sobre o sentido do tenentismo e da Revolução de 1930 foi produzido quase que no calor dos acontecimentos por Virginio Santa Rosa. Ele estabeleceu alguns pressupostos que se tornaram paradigmáticos na descrição e análise destes eventos. Tais quais a identidade de interesses políticos entre os tenentes e a nascente classe média, sendo os primeiros os representantes políticos dessa. A oposição entre esta e o sistema oligárquico, sustentado pela exploração das massas rurais pelos mandatários locais. Desse modo, a revolução de 1930 seria o episódio que teria permitido a esses setores médios da sociedade, a partir de sua representação pelos tenentes, de conquistarem um lugar no jogo político, o que anteriormente era impossibilitado pelo peso das massas rurais ignorantes manipuladas pela oligarquia6. Este esquema interpretativo foi retomado por uma serie de outros estudos7, tornandose fundante de uma maneira de se explicar as crises sócio-políticas que se estabeleceram no país entre as décadas de 1920 e 1930. Com variações, os temas voltaram-se sempre para as mesmas explicações, como a questão das classes médias, a participação dos militares oficiais de baixa patente, a oposição à oligarquia, trinta como um marco inicial de transformação profunda na sociedade brasileira, a partir da industrialização, leis trabalhistas, entre outros. O que se percebe nas memórias de Juracy sobre 1930 e também sobre o tenentismo, posto que, em sua interpretação estes eventos estão necessariamente interligados, é que estes esquemas se repetem numa relação dialética entre memória e história. A construção de sua memória sobre este período é informada por dada versão sobre o passado que se estabeleceu, ao tempo em que também contribui para o fortalecimento desta narrativa repetindo e reforçando seus pressupostos básicos. Suas análises sobre o período, em muito coincidem com aquelas estabelecidas por estas produções historiográficas. Conspirando e lutando junto a nomes como Oswaldo Aranha, Getúlio Vargas, Miguel Costa, João Alberto Lins de Barros, Pedro Aurélio de Góis Monteiro; além dos tenentes Juarez Távora e Eduardo Gomes, estava imbuído do propósito de “ver meu país governado por legítimos representantes do povo, sem conchavos ou atas falsas, eu estava agora pronto para receber meu batismo de fogo”8. Os motivos que levaram à ruptura das oligarquias hegemônicas de Minas Gerais e São Paulo e a consequente formação da Aliança Liberal são temas mais que conhecidos e recorrentes na historiografia, e Juracy faz questão de repeti-los. De maneira que a repetição

495

destes fatos não interessa para o problema em questão, destaque-se a interpretação que ele construiu sobre aquele grupo:

A Aliança Liberal, embora fosse dirigida por velhos políticos de conservadoras origens e mostrasse o feitio de um partido, representava, para nós, antes de tudo, uma espécie de crença renovadora a refletir as aspirações da classe média brasileira que começava a aparecer. Era um novo contingente lutando por um lugar ao sol. O povo e o chamado lumpenproletariat estavam ainda muito longe do poder decisório. Se os remediados não conseguiam representação, muito menos eles, os trabalhadores e despossuídos daquele tempo. (...), a oficialidade jovem e os rebeldes do Sul e do Norte queriam unir-se aos mineiros para um movimento decisivo, capaz de libertar o país do velho sistema corrupto 9 (grifo nosso).

Aqui, Juracy busca construir um sentido para a aliança entre os velhos políticos que há muito pertenciam às oligarquias, acostumados às armadilhas da política, muitos dos quais tinham perseguido os jovens tenentes na década de 1920, e o “nós”, quer dizer, os oficiais de baixa patente que buscavam uma renovação política, entre os quais ele fez questão, em muitas passagens de suas memórias, de se identificar. Esta aliança significava uma esperança que representava as aspirações dos setores médios da sociedade brasileira. A representação das classes médias mais uma vez voltando à tona na análise que Juracy constrói sobre este momento, que é encarado como de transformação, no qual, a emergência e a necessidade de participação política, a busca por um “lugar ao sol” destes setores sociais é o principal sintoma. Ao tempo em que as classes médias emergindo em sua condição de grupo social que buscava satisfazer suas necessidades políticas e econômicas, através de uma representação política que harmonizasse com seus ideais e que tinham no exército esta possibilidade, os grupos mais subalternos, o “povo”, os “despossuídos”, os trabalhadores não contavam com a mínima possibilidade de lograr sua participação política naquele sistema corrupto. Daí a necessidade da aliança dos jovens oficiais rebeldes com os políticos profissionais, no sentido de construir um movimento que pusesse fim a este estado de coisas. A campanha para as eleições continuaram marcadas pela intransigência de Washington Luís, tais como: retaliações ao Rio Grande do Sul, alistamentos fraudulentos em São Paulo e restrições ao crédito para o Banco gaúcho. Além de perseguições e intrigas 10. Juracy caracterizou este processo como “a lei do braço forte, da madeira, do autoritarismo até então invencível de Washington Luís contra uma oposição que ainda não conseguira arregimentar-se decisivamente”11 (grifo do autor). Vargas teria ficado assustado com as retaliações em caso de derrota e procurou o presidente para retirar sua candidatura e costurar um acordo, mas foi repelido por Washington

496

Luís, que se achava invencível. Diante desta atitude, Vargas não teve como relutar e cedeu aos seus correligionários12. A plataforma composta pelas ideias liberais de aliados como Oswaldo Aranha e Lindolfo Collor, “prometia anistia, revogação das leis opressoras da liberdade de pensamento, voto secreto, reforma do ensino, legislação social e medidas para o desenvolvimento econômico”13. Apesar de toda a repressão empreendida pela situação, Juracy destacou que a acolhida da plataforma da oposição foi bastante entusiasmada por parte da população, uma reação positiva, pois “todos queriam se ver livres, afinal, do sistema carcomido”14, até no reduto político do presidente parecia que teriam sucesso, pois, “o lançamento do candidato da Aliança, em São Paulo, teve acolhida triunfal”15. Nas eleições, Júlio Prestes venceu com mais de um milhão de votos, mas, de acordo com a constatação de Juracy, as evidências de fraudes, as violências e as pressões políticas levadas a cabo pela maquina acionada pelo presidente para conseguir este resultado levaram inevitavelmente a Aliança Liberal ao caminho da Revolução.16 Neste caso, Juracy destacou a importância e as ações de Oswaldo Aranha, que já havia advertido seus partidários para a possibilidade de uma revolução muito tempo antes. A guisa de ponto de partida, “seriam retomadas as velhas conspirações que já se tinham processado nos anos anteriores. A questão crucial era, como sempre, a arrecadação de fundos para comprar armas e organizar o levante”.17 Juracy, no O Último Tenente, aponta para a centralidade da figura de Aranha como aquele responsável por articular as ações, buscar os contatos, aglutinar as forças e encaminhar os desdobramentos do movimento, já que no Minhas Memórias Provisórias, o papel de destaque coube a Juarez Távora, seu chefe imediato e a José Américo, a quem o descreveu como o verdadeiro chefe civil da revolução18. Pois bem, em 1929, Aranha teria se dedicado ao trabalho de conquistar os “tenentes”, aqueles que lideraram as revoltas de 22, 24 e da Coluna Prestes, tarefa considerada delicada por conta das disputas entre estas lideranças. No entanto, o trabalho de conspiração estava em processo de desenvolvimento e “Oswaldo foi, assim, o aglutinador, o homem que sabia tecer essas lealdades entre os que se dispunham a lutar contra o governo opressor”.19 Oswaldo buscava o apoio de Luís Carlos Prestes, considerado o homem mais popular do Brasil àquela altura e que estava refugiado em Buenos Aires. Com a intensificação das atividades conspiratórias envolvendo Aranha, Távora, Siqueira Campos e João Alberto. “A conspiração político-militar de Oswaldo Aranha ia lançando uma teia de colaboradores através de todo o país”20.

497

O contato entre Aranha e Prestes continuava com as constantes viagens do primeiro a Buenos Aires, onde ouvia do exilado constantes reprimendas com relação aos pendores políticos de alguns nomes que compunham a Aliança Liberal, além de constantes pedidos de recursos para organizar o levante21. Para Juracy, o temperamento radical de Prestes, incompatível com os ideais da Aliança, foi decisivo para que os líderes da conspiração, principalmente Oswaldo Aranha, o afastassem das tratativas para o levante buscando outro nome para a liderança militar. A oportunidade para a troca foi a transferência do coronel Pedro Aurélio de Góes Monteiro para o Rio Grande do Sul, que a principio não concordou com o levante22. Em geral, os chefes e integrantes das oligarquias dissidentes, como João Pessoa, Antônio Carlos e Getúlio não estavam seguros em aderir à “revolução”, apenas os tenentes “Juarez Távora, João Alberto, Siqueira Campos e Cordeiro de Farias, adversários marcados do regime, empenhavam-se diretamente na preparação do movimento. José Américo ainda estava calado”23. Além disso, Prestes não escondia o seu desagravo em relação aos seus novos aliados de ocasião como Arthur Bernardes, contra o qual levantou sua coluna em 1924 e Epitácio Pessoa, posto que fossem comprometidos com sistema oligárquico que ele se dedicara a combater. Mas, mesmo assim, ele era o escolhido para assumir o comando militar do movimento. Acontece que, “depois, foi o que se viu. Prestes lançou seu manifesto ligando-se ao comunismo internacional e definindo-se contra a revolução”24. Segundo Juracy, a definitiva recusa de Prestes em fazer parte da revolução, gerou a necessidade de uma reorganização entre os conspiradores, além disso, era preciso definir o que cada um dos líderes deveria fazer para quando estourasse o levante: Mesmo com estas definições, Juracy apontou para uma desmobilização e um período de incertezas, devido às duvidas do presidente Antonio Carlos de Minas Gerais, que supostamente foi informado de seguidas desistências entre os conspiradores gaúchos. Getúlio Vargas novamente ameaçou desistir, enquanto outros líderes como Aranha e João Alberto e Estilac Leal também arrefeceram os ânimos. Mas um fato novo viria reacender a articulação, qual seja: o assassinato de João Pessoa, evento que, segundo Juracy, funcionou como catalisador do movimento que estava em processo de desarticulação25. Sobre o sentido do movimento ocorrido em 1930, as memórias de Juracy, trazem percepções distintas. Em Minha Vida Pública na Bahia, diz que a Revolução de Trinta não foi um movimento popular, não passou de um movimento militar. Havia certo sentimento de desencanto no povo com os rumos tomados pela República de desvirtuamento da democracia.

498

Mas a massa não estava politizada. Havia um alheamento pela coisa pública, por parte do proletariado e classe média26. O povo estava afastado das deliberações e não participava das escolhas. “Preterido, relegado, afastado, o conservadorismo nacional ainda mais acomodava o homem simples brasileiro no ‘que for, foi’”27. A campanha da Aliança Liberal conseguiu sensibilizar parte dos habitantes das grandes cidades e capitais, mas sem muito alcance. A comunicação ainda era muito deficitária, pois os jornais com os discursos dos revolucionários demoram a chegar ao interior e o rádio não era facilmente encontrado28. Este quadro teria justificado o porquê do movimento ter ocorrido da maneira que ocorreu. Ou seja, ter sido uma revolução militar. Com a exceção de Minas, Paraíba e Rio Grande do Sul, onde tinha o apoio oficial dos governos estaduais, no resto do Brasil não passou de um movimento de quartel29. Mas, deflagrado o movimento, o povo viveu a expectativa da vitória. “Quem não ajudou, não hostilizou. Hostilidade mesmo, somente daqueles, mas poucos, que, por legalismo ou dinheiro, tomaram o fuzil a favor do governo”30. Para tanto era necessária uma mudança da mentalidade nacional. O povo precisava ser educado e convencido de seus erros do passado e que eles aceitassem as reformas anunciadas no presente. As novas armas da revolução deveriam ser agora o pensamento político, as ideias políticas e a renovação política. Após a conclusão da ação militar e consolidada a vitória das armas havia muito a ser feito. Ou seja, era preciso não perder a oportunidade e fazer a verdadeira revolução31. Desta explicação para a chamada revolução, pode-se inferir certa indiferença e imprecisão quanto à categoria povo. A justificativa para o movimento foi o fato de que o povo era ignorante e não possuía suficientemente desenvolvida, a consciência dos jogos e tramas da política e por isso mesmo era facilmente manipulado. Esta percepção sobre a categoria povo foi utilizada para protelar ao máximo a participação popular mais efetiva e principalmente o fortalecimento das posturas autoritárias. Na luta política, a oposição e os pedidos de reconstitucionalização eram vistos como prematuros, pois os revolucionários consideravam que o povo ainda não estava pronto para decidir seus próprios caminhos. Em Juracy Magalhães: o último Tenente segue a tendência explicativa produzida no Minhas Memórias provisórias32 no sentido de dar conta do caráter da dita revolução de 1930. Passadas mais de seis décadas dos acontecimentos, e aproximadamente quarenta anos da primeira narrativa, Juracy ampliou o processo de ressignificação do fato. Nesta versão, como naquela produzida na década de 1980, ele afirmou que a Revolução de 1930 não foi feita pelo Exército33. Ela teria nascido dos anseios do povo e contou com a participação e o apoio de

499

três governadores civis, do Rio Grande do Sul, de Minas Gerais e da Paraíba. Estes aceitaram entrar na luta, apesar das hesitações iniciais. Neste caso, a Revolução de 30 teria sido um desdobramento necessário dos movimentos militares ocorridos na década de 1920: o levante do Forte de Copacabana de 1922, o movimento em 1924 em São Paulo, e a Coluna Prestes, dissolvida em 192734. As classes sociais foram empolgadas pelo movimento, que contou com a crise de 29 para ajudar na sua rápida deflagração. Esta gerou grave situação econômica no país, com a queda dos salários, desemprego e o fechamento de empresas. Enquanto isso, o presidente se mostrava irredutível em sua política de tentar se perpetuar no poder, buscando fazer seu sucessor, em detrimento dos acordos realizados anteriormente com Minas Gerais35. Eles possuíam conspiradores nos estados dissidentes, mas faltavam-lhes forças militares suficientes para ganhar a guerra. O que foi compensado com o apoio do povo e dos líderes civis que ficaram ao seu lado. Eles teriam conquistado os corações e as mentes daqueles que foram injustiçados pelo regime decaído. O apoio teria vindo de todas s classes sociais, independentemente se fossem ricos ou pobres36. Percebe-se nesta explicação uma mudança quanto à narrativa dos fatos, no primeiro, os militares foram os protagonistas, aqui a sociedade, o povo, os políticos civis. Mas, ao fim e ao cabo, a ação e a libertação do país ficaram a cargo dos tenentes, neste caso, novamente, homens imbuídos de espírito democrático e revolucionário que deram tudo pela causa da revolução e da reconstrução da república. Após a descrição e a interpretação dos sentidos da revolução, Juracy também avaliou os rumos tomados pelo movimento, bem como seus principais personagens. Terminada a revolução, ele continuaria na posição de lugar-tenente de Juarez Távora. Destacou que havia identidade de pensamento e a mesma determinação entre o chefe e o ajudante. Relatou o convencimento geral entre os “próceres revolucionários” de que a segunda parte da revolução não teve seu prosseguimento porque faltou em seu chefe civil, Getúlio Vargas, o espírito revolucionário, pois ele entrou na revolução no último momento quase à pulso. O seu pé atrás com os militares não o deixou completar a obra de outubro: “o adiar para amanhã, o dar tempo ao tempo, tão da psicologia do sr. Getúlio Vargas, foi cedo, decepcionando o povo que, embora apenas com as mãos das almas, aplaudira a arrancada revolucionária”37. Os setores de oposição aos governos estaduais da Primeira República viram na revolução uma oportunidade para assumirem o poder, acharam que a revolução foi feita em favor deles. Em muitos estados, a oposição se sentiu acrescida de oportunistas. “Nunca se viu tanto pescoço envolto em lenço vermelho”38.

500

Juracy parte para as conjecturas, tratando das possibilidades e dos possíveis destinos e desdobramentos da revolução de 30, até desembocar na ditadura do Estado Novo. Cita as figuras de Siqueira Campos e Luís Carlos Prestes como líderes que poderiam ter dado outro encaminhamento ao movimento, o primeiro teria costurado o apoio com os revolucionários de São Paulo e o segundo teria mantido uma liderança com a jovem oficialidade do sul o que teria impedido a ascensão de Góis Monteiro, que limitou a influência política dos tenentes39: Mais tarde, porém, quando Góis percebeu que Vargas havia utilizado a jovem oficialidade para criar uma força própria, resolveu afastar os tenentes da vida política, aproveitando a Revolução de São Paulo como pretexto para unir o Exército em torno da bandeira do restabelecimento da hierarquia. Isto é, resolveu botar os tenentes no seu devido lugar, numa jogada política inteligente, que transferiu para a alta oficialidade a influência dos tenentes, que eram os que realmente haviam participado da Revolução de 3040.

Outro ponto levantado é que nem todos os tenentes se mantiveram fiéis ao programa revolucionário, aos ideais que os imbuíram à luta. Ao ter que dividir o poder com os políticos da Aliança Liberal se viram diante das dificuldades e armadilhas da política: “esses jovens idealistas, inexperientes, viram o quanto era difícil instaurar a República dos seus sonhos. Alguns foram seduzidos pelos novos cargos, afastaram-se dos antigos companheiros, sucumbiram à rotina burguesa”41. Depois de lutar contra Bernardes em 22 e 24 tiveram que ser seu aliado em 30. Vargas havia sido ministro de Washington Luís. Ficou a lembrança do alerta de Prestes no sentido de evitar alianças que não eram compatíveis com as aspirações revolucionárias42. a verdade é que, apesar desse carinhoso apoio do povo, os tenentes no governo mal sabiam que medidas tomar. Não tinham, a rigor, um programa para mudar a sociedade. Assim, acabariam tendo de adaptar-se à práxis conservadora dos velhos próceres da Aliança Liberal. Um belo sonho revolucionário transformou-se então em um rearranjo oligárquico. No fim de tudo, os homens que dominaram o novo regime vinham das mesmas famílias que haviam consolidado a República Velha43.

A avaliação de Juracy sobre o movimento de 1930 e sua posterior situação política expõe uma fratura no grupo que chegou ao poder. O que deveria ser a apoteose de uma trajetória marcada por ações lendárias e heroicas demonstrou a ineficiência dos ideais, visto que inconsistentes e que não se transformaram em um programa aplicável no sentido de transformação efetiva da sociedade, aliado a uma imaturidade para lidar com os experientes membros da Aliança Liberal. Há nesta passagem algo como uma frustração por perceber que o sonho revolucionário não gerou a tão sonhada reforma da sociedade, apenas possibilitou a

501

uma reorganização das forças representadas pelas oligarquias, representado pela permanência dos mesmos sobrenomes a dominar a politica no novo regime. Mesmo com a frustração ele destacou o que mudou com a instalação do novo regime: o fim das atas falsas, o voto secreto, o voto feminino, a Justiça do Eleitoral, o Ministério do Trabalho e o fato de que a questão social deixou de ser questão de polícia, e do ponto de vista político legou a Constituição de 1934, apesar de sua curta duração devido a instalação do regime do Estado Novo44. Segundo ele, a revolução instituiu uma “cruzada moralizadora”, a partir da qual ocorreu uma mudança de mentalidade no país, e o principal legado desse movimento no início dos anos 1930 foi o banimento da “sórdida política dos governadores e o sistema do café-com-leite”45. Neste caso, Juracy Magalhães fez parte da conspiração que derrubou o presidente Washington Luís e como integrante do grupo vencedor passou a construir suas memórias sob essa ideia de revolução. Ou seja, uma memória construída a partir de um dispositivo ideológico acionado no sentido de ocultar a luta de classes e silenciar as vozes dissonantes daqueles que foram afastados do processo histórico pelos vencedores de 193046. Enquanto membro do aparelho do Estado, seja como militar, seja como alguém que ocupou postos em cargos eletivos no executivo e no legislativo, as memórias de Juracy estão marcadas por uma tendência à repetição de esquemas representativos do passado que sejam fundamentais à perpetuação do poder das classes dirigentes deste mesmo Estado, entre as quais ele se identificava como pertencente. A memória histórica produzida por Juracy se enquadrou em uma espécie de uma memória nacional oficial. Grande parte de sua rememoração está informada por versões já cristalizada de temas recorrente na historiografia nacional. Em geral a produção desta memória não é espontânea, pois sua articulação pertence às classes dominantes e sua contestação é algo raro de ocorrer. Além de serem grandes vetores de construção de uma identidade nacional são também objetos constantes de análise e reanálise por parte daqueles que são responsáveis por gerar uma imagem específica para o passado da nação47.

Professor do IFBAIANO – Campus Guanambi. Doutorando em Memória: Linguagem e Sociedade pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB. Sob a orientação do Profº Dr. José Rubens Mascarenhas e co-orientado pelo Profº Dr. José Alves Dias. Mestre em História Regional e Local pela UNEB – Campus V. Licenciado em História pela UNEB – Campus II. Pesquisador do Grupo de Pesquisa Política e Sociedade no Brasil – GEPS, vinculado ao Museu Pedagógico da UESB e do Grupo de Pesquisa Cultura, Memória e Desenvolvimento – CMD. 1

502

2

Juracy Magalhães registrou suas memórias em três livros. Minha Vida Pública na Bahia, publicado em 1957; Minhas Memórias Provisórias, publicado em 1982 e Juracy Magalhães: o último tenente, de 1996. 3 FENTRESS, James & WICKHAM, Chris. Memória Social: novas perspectivas sobre o passado. Lisboa: Editorial Teorema, 1994. p. 158. 4 Idem.Ibdem. 5 DE DECCA, Edgar Salvadori. 1930: o silêncio dos vencidos – memória, história e revolução. São Paulo: brasiliense, 1992. p. 82. 6

SANTA ROSA, Virginio. O sentido do tenentismo: prefácio de Nelson Werneck Sodré. 3ª ed. São Paulo: AlfaÔmega, 1976. 7 Autores que se colocaram nesta proposta explicativa: Maria Cecília Forjaz, Eurico de Lima Figueiredo, Nelson Werneck Sodré, Edgar Carone, entre outros. 8 GUEIROS, José Alberto. O Último Tenente. Rio de Janeiro: Record, 1996. p. 69. 9 Idem. p. 71. 10 11 12 13 14

Idem. p. 71-73. Idem. p. 73-74. Idem. 74. Idem. Ibdem. GUEIROS, José Alberto. Op. Cit.. p. 74.

15

Idem. Ibdem. Idem. Ibdem. 17 Idem. Ibdem. 18 MAGALHÃES, Juraci. Juracy Magalhães: minhas memórias provisórias: depoimento prestado ao CPDOC/coordenação de Alzira Alves de Abreu, Eduardo Raposo Vasconcelos e Paulo César Farah. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982. p. 52. 19 GUEIROS, José Alberto. Op. Cit.. p. 75. 16

20 21

22 23 24 25 26

Idem. Ibdem. Idem. p. 76. Idem. Ibdem. Idem. p. 77. Idem. Ibdem. Idem. p. 78. MAGALHÃES, Juracy. Minha Vida Pública na Bahia. Rio de Janeiro: José Olímpia Editora, 1957. p. 45-46.

27

Idem. p. 46. Idem. Ibem. 29 Idem. Ibdem. 30 Idem. Ibdem. 31 Idem. p. 47. 32 MAGALHÃES, Juracy. Minhas Memórias Provisórias ... p.52. 33 GUEIROS, José Alberto. Op. Cit.. p. 76. 34 Idem. Ibdem. 35 Idem. Idbem. 36 Idem. p. 76-77. 37 MAGALHÃES, Juracy. Minha Vida Pública.... p. 47. 38 Idem. p. 47-48. 39 MAGALHÃES, Juracy. Minhas Memórias Provisórias ... p. 91. 40 Idem. p. 91-92. 41 GUEIROS, José Alberto. Op. Cit.. p.46. 42 Idem. Ibdem. 43 Idem. Ibdem. 44 MAGALHÃES, Juracy. Minhas Memórias Provisórias ... p. 91. 45 GUEIROS, José Alberto. Op. Cit.. p.47. 46 TRONCA, Ítalo. Revolução de 1930: a dominação oculta. São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 60-61. 28

47

FENTRESS, James & WICKHAM, Chris. Op. Cit. p. 156-157.

503

Religiões de matriz africana no Museu da Maré: um convite para discutir a intolerância religiosa Carolina Barcellos Ferreira Professora da Rede Municipal do Rio de Janeiro, mestranda no curso de Mestrado Profissional em Ensino de História (ProfHistória) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Orientadora: Carina Martins Costa. E-mail: [email protected] Resumo A proposta de trabalho aqui apresentada visa tratar das questões referentes à patrimonialização de artefatos produzidos no interior dos cultos e rituais das religiões afro-brasileiras em museus comunitários e seus usos pedagógicos. Nesta apresentação específica trabalharemos a partir do acervo do Museu da Maré, localizado na zona norte da cidade do Rio de Janeiro, especialmente a sala expositiva “ Tempo da Fé”. Palavras Chaves: Patrimônio - Educação - Religiões de matriz africana Abstract The proposed work presented here aims to address the issues of patrimony artifacts produced within the cults and rituals of african-brazilian religions in community museums and their educational uses. In this particular presentation work from Museu da Maré’s collection, located in the north of the city of Rio de Janeiro, especially the exhibition room "Tempo da Fé". Keywords: Patrimony – Education – African-brasilian religions Assistimos nos debates teóricos, nas discussões sobre os conteúdos escolares e até mesmo a partir da demanda dos alunos da Educação Básica, um movimento que discute e luta pela efetiva implementação da Lei 11.645/08, que no âmbito das escolas de nível fundamental e médio, estipula a obrigatoriedade do ensino das histórias e das culturas afro-brasileiras e indígenas nos currículos. Por outro lado, professores, especialmente de literatura e história, os quais tentam trabalhar os aspectos culturais e históricos das religiões de matriz africanas são muitas vezes rechaçados pela comunidade escolar, acusados de praticar proselitismo religioso. Neste sentido, Pereira e Roza i(2012) apontam que,

504

“ Há reações diversas no contexto escolar contemporâneo a essa introdução nos currículos das dimensões da história e da cultura afro-brasileira, também com evidenciação de conflitos históricos que sabemos, estão na agenda. Uma das mais fortes tensões deste período pode ser visualizada por meio da negativa de comunidades de pais e responsáveis, que se posicionam contrárias a conteúdos de história e cultura africana e afro-brasileiras nos currículos escolares. Motivada por pressupostos morais e religiosos, essas comunidades expressam receio de que crianças e jovens estejam expostos ao proselitismo religioso ao estudarem ou entrarem em contato com manifestações tradicionais africanas e afro-brasileiras” (Pereira e Roza, 2012 p.92).

Em meio a essas polêmicas, os professores de história muitas vezes se veem de “ mãos atadas”, querendo não silenciar sobre medos, preconceitos e estigmas que vivem alunos que são assumidamente umbandistas e candomblecistas e o perigo de serem encarados como alguém que deseja converter ou desrespeitar as crenças de alunos de outras matrizes religiosas. É dentro desse dilema que este trabalho se insere, unindo uma discussão entre a patrimonialização de artefatos religiosos em museus comunitários e seus possíveis usos pedagógicos. A partir desta proposta, abordaremos o Museu da Maré, localizado na Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro, e especificamente o espaço expositivo “ Tempo da Fé”. Museu da Maré Segundo nos contam Mário Chagas e Regina Abreuii, o Museu da Maré nasceu do desejo de alguns jovens universitários da Maré de tentarem modificar a realidade da localidade a partir de ações que traziam uma possibilidade de ascensão social e reflexão sobre a história da comunidade. A partir de uma associação sem fins lucrativos, a CEASM – Centro de Estudo e Ações Solidárias da Maré – foi inaugurado em 1998 um curso pré-vestibular em um espaço cedido por uma igreja do Morro do Timbau. Aos poucos outros projetos foram se integrando, incluindo dança, moda e um núcleo sobre a história da comunidade – a Rede de Memórias da Maré. A partir dos encontros promovidos pela Rede de Memória, dos objetos doados pelos moradores e da parceria com profissionais da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), foram montadas exposições em vários espaços públicos sobre a História da Maré, incluindo o Museu da República, em 2004. E em 2006, a partir da cessão pela Companhia Libra de Navegação de um amplo galpão localizado na Av. Maxwell, foi idealizada e montada uma exposição permanente que pretendia refletir e debater a história da comunidade a partir do ponto de vista de seus moradores, para além do senso comum, o qual projeta na Maré apenas uma história de miséria e violência.

505

A atual exposição, dividida em 12 tempos – tempo da água, tempo da casa, tempo da migração, tempo da resistência, tempo do trabalho, tempo da festa, tempo da feira, tempo da fé, tempo do cotidiano, tempo da criança, tempo do medo e tempo do futuro – dialoga com as memórias e histórias da população que contribuiu para a formação da Maré, seja através de suas diversas construções, como a réplica de uma casa de palafitas ou a reconstrução das vielas da Maré; ou de seus diversos objetos, como a imagem de São Pedro em um barco ou a vitrine contendo diversos cartuchos de balas de armas de fogo. Para os fins do presente trabalho, privilegiaremos a sala expositiva “ Tempo da Fé”, a qual podemos dividir em dois espaços. No primeiro, em primeiro plano vemos um barco, uma rede de pescar e uma imagem do padroeiro dos pescadores, São Pedro, remontando dessa forma a uma das atividades econômicas da região em seus primórdios e mostrando a interconexão entre o tempo da casa, da água e da fé. Ao fundo, na parede, uma série de prateleiras guardam os mais diversos símbolos religiosos, como partes do corpo produzidas em cera, muletas, imagens de santos católicos, crucifixos ornamentados, sapatinhos de bebês, Bíblias, uma escultura de buda e outras simbolizando anjos, além de um quadro escrito em árabe, placas de carro e diversos adesivos religiosos que fazem referência a Deus e Jesus Cristo. Na parede ao lado, observa-se ainda fotografias que fazem referência à religião, como um culto, uma Bíblia, uma novena, um quadro da Santa Ceia. Atrás de uma cortina de pano vemos uma espécie de altar que simboliza o espaço dedicado às religiões de matriz africana como o candomblé e a umbanda. Neste espaço, vemos esculturas reproduzindo imagens de diversos ícones católicos, comuns nos centros espíritas umbandistas, como Santa Bárbara, São Francisco, São Jorge e o próprio Cristo, além de esculturas que remetem diretamente às crenças simbólicas dessas religiões, como é o caso da vovó Baiana e do Pai Joaquim, Iansã, Xangô, Ogum e Iemanjá. Em uma mesa colocada abaixo do altar estão em uma cesta diversos pacotes de defumadores, um círculo formado por colares de contas de diversas cores, um recipiente para incenso e diversas vasilhas, além de uma escultura intitulada Nanã. Formação e exposição do acervo Os objetos que compõem o acervo do Museu da Maré são em sua maioria objetos do cotidiano, mas reunidos na casa de palafita ou expostos no altar do Tempo da Fé, eles ganham uma força simbólica e passam a dialogar com as vivências e lutas das pessoas que habitaram e habitam

506

as periferias urbanas no Brasil. Qualquer um pode relacionar a casa à avó, a mala a uma história de migração na família, mesmo que nunca tenha vivido na Maré, posto que a memória despertada pelo museu, ainda que remeta à processos históricos conhecidos, como as migrações do Nordeste para o Sudeste durante o século XX e as remoções das casas populares no contexto da Ditadura militar, suscita uma experiência íntima e familiar. Os cenários provocam a ideia de que adentramos a casa de alguém, alguém conhecido. Quando o museu foi pensado, privilegiou-se uma visão não cronológica do tempo, mas sim um olhar que abarcasse a diversidade de experiências e sentimentos que envolvem o lugar, como os medos do início do processo de ocupação, os quais envolviam o próprio movimento das marés, e os medos atuais, focados na questão da violência urbana. Da mesma forma, a questão da fé foi considerada em suas diversas matrizes religiosas e temporais. A série de prateleiras que compõe o primeiro plano da exposição, na qual estão reunidos diversos símbolos religiosos, pretende mostrar a própria diversidade religiosa da Maré, marcada em suas diversas ruas, por altares com santos e bíblias. O cenógrafo Marcelo Pinto Vieiraiii, um dos responsáveis pela expografia do Museu da Maré, aponta que não há como falar da migração, da resistência, dos medos da população da Maré e não falar de suas crenças religiosas, pois estas também fazem parte de sua história e identidade. A partir da fala de Marcelo, podemos perceber que a exposição dos objetos religiosos reunidos no “Tempo da Fé” pretende recriar a emoção e até mesmo a comoção de uma criança que pela primeira vez entra em contato com objetos religiosos, num misto de admiração, medo e dúvidas. Especialmente os objetos ligados às religiões de matriz africana na sala “Tempo da Fé” pretendem simular a atmosfera e a emoção de uma pessoa que descobre um altar ou um espaço religioso dentro da casa de uma outra pessoa. A ideia é aguçar a curiosidade do visitante, instigálo a entrar e descobrir o que há dentro, exatamente como se fosse a casa de uma outra pessoa. Este espaço da exposição pretende dialogar não apenas com o passado da Maré, marcado pela vasta presença de terreiros de umbanda e candomblé nas décadas de 1970 e 1980, mas também com o presente, no qual a intolerância religiosa promovida por líderes religiosos e traficantes de droga de orientação evangélica, inibe e amedronta os adeptos destas religiões em comunidades cariocas. Este ambiente do museu foi montado pela primeira vez em 2006 e reformulado em 2013, a partir do financiamento conseguido pelo Museu junto ao Edital da Petrobrás Cultural. Para construir este espaço os responsáveis pelo museu recorreram a inúmeras estratégias. A primeira

507

delas foi a sensibilização dos moradores para a doação de objetos pessoais em geral, inclusive religiosos. Nas palavras de Marcelo Vieira este processo pode ser demorado, como aponta na fala abaixo: “Agora para aquisição de mais coisas, [...] porque é um processo, ninguém dá nada de uma hora para a outra, a gente pode achar uma coisa interessante que aquela pessoa lá ela vai chorar ”não, não vou dar, não quero dar”, aí para você pegar aquela peça, ou ela doar a peça, tem todo um processo por trás, todo um... aí você tem que conversar muito, entendeu? [...]não é de um dia para o outro. É um processo que dura semanas, que dirá meses. Ou você vai se desgastar, ela não vai doar e daqui a um ano ela vai vir aqui e [dizer] “ toma”, entendeu? Tem esse processo. ”

Várias foram as estratégias utilizadas para que essa sensibilização ocorresse e objetos pudessem ser doados ao acervo do museu. Uma das mais valiosas aquisições foram as fotografias e a guia de Delei Pobel, destaque de carnaval no bloco “Mataram meu gato”, originário da Maré, e famoso pai de santo do candomblé na Nova Holanda, morto em meados da década de 1990. Sobre a negociação que envolveu a doação desses objetos, Marcelo pontua: “[...]a Marilene foi lá na família dele, que a Marilene, trabalha na biblioteca, é contadora de história, é uma pessoa super importante para o Museu e para a montagem da exposição, ela foi lá na família dele, na Dona Maria Pobel, que a Dona Maria Pobel é a mãe dele [...]aí ela doou os objetos, a Marilene foi pedir à mãe dele e a mãe dele doou os objetos, doou a guia e doou aquela foto que ficava no centro de candomblé dele, que o centro dele era de candomblé e ficava lá na Nova Holanda”.

Além das doações envolvendo os objetos de cunho religioso, o Museu da Maré também conta com doações de trabalho voluntário prestados por moradores da região e colaboradores do Museu. Para setembro de 2015 estava programado um evento para comemorar a volta e a restauração de uma imagem de Nossa Senhora das Graças, a qual foi encontrada na rua e recolhida por um dos responsáveis pelo museu. Este trabalho de restauração foi uma doação de um morador da Maré, o senhor João Lancelot, que também já havia colaborado com a restauração das imagens de São Jorge e São Pedro. Outros objetos – como as esculturas dos orixás Xangô, Iansã, Ogum e Oxum – foram comprados em estabelecimentos comerciais especializados em artigos religiosos nas localidades do Mercadão de Madureira ou no centro da cidade de Duque de Caxias. As esculturas, especificamente, foram compradas no gesso puro, sem nenhum tipo de pintura. E para que as cores das tintas das esculturas ficassem de acordo com o que foi orientado por pessoas ligadas ao museu e adeptas da umbanda e candomblé, foi montada uma oficina de pintura com as crianças oriundas do projeto de leitura da Biblioteca do Museu.

508

A montagem do espaço, segundo Marcelo, atendendo ao imperativo de simular o altar de um terreiro de umbanda, está organizada de acordo com as regras e rituais desta religião, como ele mesmo nos diz no trecho a seguir: “[...]tudo aquilo ali tem uma orientação, [...] se o Xangô tá do lado esquerdo, do lado direito tem que ficar o Ogum, a Iansã pode ficar do lado do Xangô, o preto velho tem que estar numa outra prateleira diferente da prateleira que ele [ Xangô] tá. Então tudo tem... a parte do povo de rua, ela tem que estar abaixo de tudo do galpão, da mesa, uma parte escondida. Então teve toda essa orientação. Orientado conforme as pessoas, as pessoas fazem numa casa de santo, numa umbanda. Os caboclos têm o lado certo de ficar, os pretos velhos têm o lado certo de ficar. Então, ela tem toda a orientação correta. Não foi feita assim, ah, aqui eu ponho do jeito que eu quero, não. ”

James Clifford, comentando sobre o papel dos objetos religiosos de origem africana, aponta que ao serem transferidos para os museus, “estes objetos não têm poder individual ou mistério – qualidades um dia possuídos pelos fetiches antes que eles fossem reclassificados no sistema moderno como arte primitiva ou artefato cultural [...] Seu poder específico ou sua sacralidade se transferem para um domínio estético geral”iv. Nesta avaliação, os objetos ligados às religiões de matriz africana perderiam seus laços com as comunidades herdeiras de tais tradições e seriam expostas ao público puramente a partir de critério ligados à noção de arte e cultura. Em outra direção, Roger Sansi, comentando sobre as disputas envolvendo o acervo do Museu de Medicina Legal da Bahia/ Museu Estácio de Limav, expõe a delicada hierarquia e dilemas que envolvem a exposição deste tipo de objetos em museus históricos e etnográficos. Estes objetos devem fazer parte de acervos museológicos? Quais pressupostos obedecer na exposição: os técnicos ou os religiosos? A luta jurídica envolvendo membros do movimento negro baiano e membros do Museu Estácio de Lima, na década de 1990, pelo destino dos objetos de cunho religioso do acervo do dito museu deixou claro que há uma disputa, pelo menos no Brasil, pela forma como estes objetos podem e devem ser expostos envolvendo não só suas dimensões históricas, mas também espirituais. Para os movimentos negros, tais objetos poderiam ser expostos ao lado de objetos de arte ocidentais, reconhecidos por sua técnica e beleza, mas não como artefatos de um “ museu policial”. E mais do que isso, quando expostos, deveriam o fazer da “ forma certa”, isto é, respeitando as regras próprias das religiões em destaque. O Museu da Maré, ao organizar o espaço dedicado às religiões afro-brasileiras, optou por respeitar as regras próprias destas religiões, pois na sua confecção contou com membros do próprio

509

museu que são adeptos da umbanda e ainda convidou uma filha de santo do Pai de Santo Delei para observar e conferir se a organização dos objetos estava de acordo com a pretendida em um terreiro real. Possibilidades pedagógicas Manoel Salgadovi, comentando sobre a falência do que ele chama de projeto escriturário para história, em que o historiador possuía a ilusão de que poderia abarcar todo o passado, aponta como as relações que a sociedade estabelece com a história – em suas diversas possibilidades narrativas – são pontuadas pelas demandas e questionamentos do presente. Não seria o passado que nos alcança, mas o presente que busca, de forma inalcançável, o passado, para justificar suas “carências de orientação”, sua busca por identidade e pertencimento. A partir desta noção, em um contexto social, político e cultural em que há hipervalorização da memória e do testemunho oral, o autor exalta a necessidade de investigar e relacionar à história produzida pelos meios acadêmicos “ as diferentes possibilidades de construções narrativas sobre o passado” (SALGADO, 2007:36), incluindo aí a história escolar e as narrativas produzidas pelos demais centros de produção de saber, como os meios de comunicação de massa e os museus, como uma forma de perceber como os homens e mulheres lidam com este passado e o utilizam politicamente. De forma geral, Manoel Salgado justifica ainda que o estudo da história, na academia ou nas escolas do Ensino Básico, não pode estar preso ao passado pelo passado, deve estar ligado às reivindicações do presente e, principalmente, investigar a forma como este passado é acionado para compreender estas reivindicações, como esclarece neste trecho: “ Revisitar o passado não pode ser desvinculado das demandas e exigências do presente e, nesse sentido, sua compreensão é também parte da inteligibilidade de uma cultura histórica que aciona experiências, imagens e atores do passado para uma contemporaneidade que busca nesse tempo que ficou para trás referências para imaginar o mundo em que se vive”. (SALGADO, 2007:39)

A partir deste pressuposto de que a história acadêmica deve aprender a lidar e a desconstruir os usos políticos que se fazem do passado, é que nos interrogamos sobre quais devem ser os objetivos do ensino da história escolar e os recursos metodológicos que podemos empregar. A este respeito Flávia Caimi

vii

enumera as diferenças entre memória e história, apontando que o ensino

da história não deve preocupar-se somente com a “ manutenção das lembranças herdadas” (CAIMI,

510

2009:73), mas principalmente, com as “lembranças esquecidas”, os processos históricos sobre os quais preferimos silenciar, como uma forma de “evitar as naturalizações” referentes ao passado e aos costumes. A mesma autora, trabalhando com os pressupostos metodológicos do ensino de História, assinala, a partir dos estudos de Joaquín Prats, como podemos desnaturalizar não só os conteúdos históricos, mas a própria construção da história apontando que uma das formas de aproximação entre a disciplina e os estudantes poderia ser a introdução do método histórico em sala de aula, a partir da formulação de hipóteses e análise de fontes históricas pelos alunos, sem abrir mão da narrativa que contextualiza e insere o estudante no tema a ser discutido. Assim, acreditamos que a análise de objetos expostos em museus tem muito a oferecer neste processo de transformação do ensino de história, pois proporciona ao aluno o contato direto com fontes históricas e seu uso em espaços de memória. Diante deste quadro, caberia a nós, professores de História, valorizar e repensar o uso destes objetos oriundos das religiões afro-brasileira em museus, sejam tradicionais ou comunitários, afim de que possamos aproveitar seu potencial para discutir os principais debates envolvendo os processos identitários e ao direito à diferença na escola e, consequentemente na sociedade. A partir deste entendimento, o discurso do Museu da Maré, calcado na lembrança de solidariedade e diversidade de religiões em suas vielas ao longo da segunda metade do século XX, pode ser, em uma visita ao museu com alunos da Educação Básica, o início de uma discussão sobre o espaço e a perseguição a grupos religiosos minoritários na cidade do Rio de Janeiro atualmente. Notas

iPEREIRA,

Júnia Sales, ROZA, Luciano Magela. O ensino de história entre o dever de memória e o direito à história. In. Revista História Hoje, v.1 nº1, 2012 p. 89-110. ii CHAGAS, Mario de S. e ABREU, Regina. Museu da Maré: memórias e narrativas a favor da dignidade social. Musas. Revista Brasileira de Museus e Museologia. 2007 pp. 129-152. iii Entrevista concedida à autora do presente artigo em 27 de agosto de 2015. iv CLIFFORD, James. Colecionando arte e cultura. Musas. Revista Brasileira de Museus e Museologia. 2007 p. 77 v SANSI, Roger. A vida oculta das pedras: Historicidade e Materialidade dos objetos do candomblé. In: A alma das coisas. 1º edição, Rio de Janeiro, Editora Mauad X, 2013, p. 105-122. vi GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. O presente do passado: as artes de Clio em tempos de memória . In. ABREU, Marta; SOIHET, Rachel e GONTIJO, Rebecca (orgs.). Cultura política e leituras do passado. RJ, Civilização Brasileira, 2007, p. 23-41.

511

vii CAIMI,

Flávia Eloísa. História escolar e memória coletiva: Como se ensina? Como se aprender? In. ROCHA, Helenice Aparecida Bastos. MAGALHÃES, Marcelo de Souza. GONTIJO, Rebecca (orgs.). A escrita da história escolar. Memória e historiografia. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2009, p. 65-79.

512

A IMPORTÂNCIA DA GESTÃO DE RENATO SOEIRO NA DIREÇÃO DO IPHAN PARA O DESENVOLVIMENTO DA POLÍTICA FEDERAL DE PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO NO BRASIL (1967-1969). CAROLINA MARTINS SAPORETTI* RESUMO: O presente trabalho propõe dissertar sobre uma pesquisa introdutória sobre a atuação de Renato Soeiro enquanto diretor do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) (1967-1979). Pretende-se entender a importância de Soeiro no desenvolvimento da política de preservação do patrimônio neste período, contexto o qual estava vigente o Regime Militar

Brasileiro. Objetiva-se demarcar as especificidades desta administração perante a outras mais

valorizadas pelos pesquisadores do assunto como aquelas de Rodrigo Melo de Andrade e do gestor Aloísio Magalhães. Palavras chaves: Rodrigo Soeiro, Iphan, patrimônio. ABSTRACT: This paper proposes an introductory lecture on research into the work of Renato Soeiro as director of the Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) (19671979). It is intended to understand the importance of Soeiro in the development of heritage * Graduada em licenciatura e bacharelado em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Aluna do mestrado do Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. Orientanda do Prof. Dr. Marcos Olender. E mail: [email protected] ** No decorrer da trajetória do IPHAN ocorreram grandes mudanças na instituição. Algumas destas transformações alteraram o nome da instituição, devido à divisão em secretarias ou/e diretorias. Em alguns períodos o IPHAN deu origem a outras instituições. Assim, iremos utilizar a sigla IPHAN como uma forma de padronizar o projeto, ao menos quando for preciso identificar grandes alterações na instituição e assim qual mudança no nome ou na estrutura geral do órgão foi feita. Atualmente esta instituição é denominada IPHAN. A seguir as datas dessas alterações: em 30 de novembro de 1937, o Decreto-lei de n° 25 organiza a “proteção do patrimônio histórico e artístico nacional”. No ano de 1946, o SPHAN passa a denominar-se Departamento do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (DPHAN). Em 1970, o DPHAN se transforma em IPHAN. Em 1979, o IPHAN se divide em SPHAN – órgão normativo - e Fundação Nacional Pró-memória (FNpM) – órgão executivo. Já em 1990 houve a extinção do SPHAN e da FNpM e criação do Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural (IBPC), e em 06 de dezembro de 1994 na Medida Provisória de n° 752 determina que o Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural – IBPC e o Instituto Brasileiro de Arte e Cultura – IBA passem a denominar-se, respectivamente, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e Fundação de Artes – FUNARTE.

513

preservation policy in this period, the context which was in effect the Brazilian military regime. The objective is to demarcate the specifics of this administration before the other most valued by the subject of researchers like those of Rodrigo Melo de Andrade and Aloisio Magalhães manager. Key words: Rodrigo Soeiro, Iphan, heritage.

INTRODUÇÃO Renato de Azevedo Duarte Soeiro foi presidente do IPHAN entre 1967-1979. Ele trabalhou durante 41 anos na instituição dos quais 21 anos como chefe da Divisão de Conservação e Restauro. Soeiro sucedeu Rodrigo M. F. de Andrade que foi o fundador, em 1937, e primeiro presidente do IPHAN.** Rodrigo governou

até

1967

quando

se

aposentou. A fase de Rodrigo na instituição é conhecida como “fase heróica”. O sucessor de Soeiro foi Aloísio Magalhães que permaneceu na direção do IPHAN até junho de 1982 quando faleceu. E mesmo tendo governado por menos tempo que Soeiro observa-se nas bibliografias utilizadas que a gestão de Magalhães é mais estudada e mais reconhecida do que a de Renato Soeiro. Soeiro dirigiu a instituição por 12 anos, em plena ditadura militar, mais especificamente, durante os governos de Arthur Costa e Silva (15/3/1967 a 31/8/1969), da Junta governativa provisória (31/08/1969 a 30/10/1969), de Emílio Garrastazu Médici (30/10/1969 a 15/3/1974), e de Ernesto Geisel (15/03/1974 a 15/03/1979). Durante a sua gestão Soeiro houve a descentralização da fiscalização e

da

preservação do patrimônio estabelecendo autonomia aos estados e municípios para que gestassem sobre o assunto. Além disso, ele organizou a Conferência de Brasília e a Conferência de Salvador que trouxeram avanços para a gestão patrimonial. Renato Soeiro foi responsável por uma direção de grandes mudanças no IPHAN e na política de patrimônio federal.

514

UM BREVE HISTÓRICO DA GESTÃO DE RENATO SOEIRO Ao analisar as bibliografias que dissertam sobre gestão patrimonial, observa-se que as bibliografias levantadas não retratam a importância da gestão de Soeiro, vendo-o como um seguidor das idéias de Rodrigo M. F de Andrade ou como uma gestão secundária na trajetória da instituição. Pode-se exemplificar esta posição em uma das poucas referências existentes (no trecho seguinte da) na obra “A retórica da perda: Os discursos do patrimônio cultural no Brasil” de José Reginaldo Gonçalves, sobre Renato Soeiro:

De acordo com a historiografia oficial do SPHAN, o “período heróico” da instituição corresponde àquele que se estende desde a sua criação em 1937 até a morte de Rodrigo, em 1969. Um segundo período é identificado por essa historiografia, de 1969 a 1979, tempo em que a direção esteve a cargo de Renato Soeiro, próximo colaborador de Rodrigo, mas que não foi marcada por quaisquer mudanças significativas em termos da política oficial de patrimônio. Em 1979, Aloísio Magalhães assume a direção do SPHAN e dá início a uma nova política para o patrimônio cultural brasileiro. Na historiografia oficial do SPHAN, começa, então, o terceiro período da história daquela instituição. (grifo meu)1

Maria Cecília Londres Fonseca salienta que Soeiro é visto como legítimo sucessor de Rodrigo M. F. de Andrade no Departamento do Patrimônio

Histórico

e

Artístico Nacional (DPHAN), mas que não teve o mesmo prestígio. 2 Assim, a gestão de Soeiro é considerada uma continuidade dos princípios defendidos por Andrade não provocando grandes mudanças na política federal de patrimônio. Por outro lado o arquiteto Paulo Ormindo de Azevedo, membro do Conselho Consultivo do IPHAN desde 2003 e profissional atuante na preservação do patrimônio cultural desde 1959, tendo sido o idealizador do Inventário de Proteção do Acervo Cultural (IPAC) da Bahia, em 1973, modelo utilizado depois pelo próprio IPHAN, reconhece a importância da gestão Soeiro. Em seu discurso de homenagem a Renato Soeiro, proferida em uma reunião do Conselho Consultivo do IPHAN, em 11 de agosto de 2005, ele cita algumas ações realizadas na gestão de Soeiro e o apresenta como um representante importante para a gestão patrimonial. Assim, Azevedo aponta a importância de estudar a gestão de Renato Soeiro e as transformações que ocorreram neste período na política federal de preservação de patrimônio, visto que faltam estudos sobre Soeiro historiografia atinente ao patrimônio.

515

na

Alguns dados apontam para a importância da gestão de Renato Soeiro à frente do órgão: Ele transformou a antiga DPHAN, com duas diretorias e quatro distritos, para IPHAN com Regimento Interno (aprovado pela Portaria nº 230 de 26 de março de 1976), seis diretorias técnicas, assessoria jurídica e nove diretorias regionais. O IPHAN foi efetivado através do decreto-lei nº 66.967 de 27 de julho de 1970.3 Nesse decreto, o IPHAN foi vinculado ao Departamento de Assuntos Culturais do Ministério da Educação e Cultura (MEC) como órgão autônomo. Assim, o MEC assegura a autonomia administrativa e financeira da instituição Brasil (Decreto-lei nº 66.967 de 27 de julho de1970). O que foi muito importante para a gestão de Soeiro que pleiteava a proteção de conjuntos, visando compatibilizar o crescimento econômico com a preservação.4 No período da sua administração foi criado o Programa das Cidades Históricas (PCH) a partir de uma parceria do MEC com a Secretaria do Planejamento da Presidência da República. O PCH pode ser considerado um programa pioneiro do governo federal em termos de grande investimento na preservação do patrimônio cultural urbano relacionando estas questões com o desenvolvimento urbano e regional. O que foi fundamental para o desenvolvimento das práticas de preservação realizadas pelo IPHAN. 5 De acordo com Sandra Rafaela Magalhães Correa, um dos principais objetivos do PCH era utilizar os monumentos tombados para atividades turísticas, que gerasse renda para os municípios integrados ao programa. Assim, este PCH pode ser visto como uma das várias medidas realizadas pelo governo para retomar o desenvolvimento econômico depois de uma intensa crise nos anos de 1962 a 1964.6 O PCH tinha como método uma mudança na maneira de abordar a degradação das cidades históricas. A cidade era vista como produtora de capital e bem de consumo e o patrimônio como um fator de desenvolvimento econômico por meio do turismo, possibilitando a criação dos recursos necessários para autoconservação da cidade. Assim, esse programa auxiliou o IPHAN a relacionar o desenvolvimento das cidades históricas com a preservação destes locais. Por sua iniciativa foi realizada uma reunião com os

governadores

estaduais,

realizada em abril de 1970, produziu um documento nomeado de “Compromisso de Brasília” que foi complementado em 1971 com o “Compromisso de Salvador”.

516

No “Compromisso de Brasília” pode-se destacar que o documento aponta a necessidade dos governos estaduais e municipais atuarem conjuntamente com o IPHAN auxiliando-o na fiscalização e na intervenção para a preservação do patrimônio cultural, a importância de criar cursos no Brasil para a capacitação de profissionais da área de patrimônio, entre outros apontamentos de grande relevância.7 Assim, Soeiro instituiu no país cursos de especialização de técnicos em preservação de monumentos e obras de arte, descentralizou o poder do IPHAN para as regiões e municípios a fim de solucionar os problemas da industrialização nas cidades históricas. Para Roberto Sabino a partir dessa descentralização, o patrimônio passou a ser visto pelo regime militar como um elemento de integração de todas as regiões do Brasil e dos cidadãos brasileiros.8 O "Compromisso de Salvador" além de reafirmar o que foi proposto no "Compromisso de Brasília", faz algumas recomendações, tais como: a criação de uma legislação complementar para ampliar o conceito de tombamento; quando possível, utilizarse de bens tombados como pousadas, entre outras recomendações importantes.9 Em 1975, no governo de Geisel, na gestão de Nei Braga como ministro da Educação e Cultura, aprovou a primeira Política Nacional de Cultura (PNC), depois de várias tentativas nos governos anteriores, conseguiu-se aprovar a primeira PNC no Brasil. Para Paula Félix dos Reis, o principal objetivo da ação do MEC nesta PNC era apoiar e incentivar as iniciativas culturais de indivíduos e grupos e proteger o patrimônio cultural da Nação, sem intervenção do Estado, para dirigir a cultura.10 Assim, o PNC proporcionou as diretrizes básicas para que o poder público pudesse incentivar as ações particulares e uma maior integração da população com a preservação do patrimônio e assim com o IPHAN. Para que essa descentralização da preservação de patrimônio fosse possível o PNC continha a participação de alguns órgãos, tais como: o Conselho Federal de Cultura, o Departamento de Assuntos Culturais, as universidades e algumas unidades federadas (Estados, Territórios, Distrito Federal e Municípios), e através de seus órgãos de atividades culturais (Conselhos Estaduais de Cultura, Secretarias de Cultura, Departamentos e Fundações Culturais).11

517

Em junho de 1975 iniciou as atividades o Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC), que foi criado a partir de conversas entre Aloísio Magalhães (grande designer), o ministro da Indústria e Comércio da época, Severo Gomes, e o embaixador Vladimir Murtinho, então Secretário da Educação e Cultura do Distrito Federal. Assim, iniciou um período de decadência da gestão de Renato Soeiro e de maior visibilidade de Magalhães. O principal objetivo do CNRC era traçar um sistema referencial básico para a descrição e análise da dinâmica cultural brasileira contemporânea. Tinha como principais características: adequar às condições específicas do contexto cultural do país; abranger e flexibilizar a descrição dos fenômenos que se processam em tal situação e vinculálos as raízes culturais do Brasil; explicitar do vínculo entre o embasamento cultural brasileiro e a prática das diferentes artes, ciências e tecnologias, objetivando a percepção e o estímulo, nessas áreas, de adequadas maneiras regionais.12 Os projetos do CNRC desenvolveram-se segundo quatro Programas de Estudos: o do Artesanato, os dos Levantamentos Sócio-Culturais; o da História da Ciência e da Tecnologia no Brasil e os dos Levantamentos de Documentação sobre o Brasil.13 A partir da criação do CNRC Aloísio Magalhães se destaca devido um novo pensamento sobre patrimônio que estava começando a se desenvolver. Introduz-se um pensamento voltado também para o imaterial, para o modo de fazer, para as tradições. Em 1979, quando Aloísio Magalhães assumiu a diretoria do IPHAN, o CNRC foi integrado a esta instituição. Para Fonseca essa união permitiu que se reunisse “o prestígio e a competência técnica do IPHAN e a visão moderna e renovadora do CNRC”.14 Portanto, ao analisar esse breve histórico de algumas ações realizadas por Soeiro, mesmo que alguns autores o critiquem ou ignorem a sua atuação no IPHAN, tais como José Reginaldo Gonçalves, Maria Cecília Londres Fonseca, Roberto Sabino entre outros, e dêem ênfase em estudar o período em que Rodrigo M. F. de Andrade e depois Aloísio Magalhães gestaram o IPHAN, acredito que Soeiro teve grande importância para as políticas patrimoniais.

518

METODOLOGIA Para alcançar o objetivo desta pesquisa será realizado um levantamento e uma análise crítica das produções bibliográficas na área de patrimônio em relação ao tema proposto. Como por exemplo, estudos desenvolvidos por: José

Reginaldo

Santos

Gonçalves, Márcia Chuva, Maria Cecília Londres Fonseca, Sonia Rabello, entre outros. Além dessas bibliografias serão analisados leis e decretos sobre preservação de patrimônio que foram outorgadas em nível federal no período da gestão de Renato Soeiro. Muitos destes estão disponibilizados no portal online do IPHAN. Também serão levantados documentos pessoais do Soeiro e documentos administrativos do IPHAN. Ademais, serão realizadas entrevistas com pessoas que conviveram com Renato Soeiro durante a sua gestão no IPHAN, como Paulo Ormindo de Azevedo, que nesse período era arquiteto e conselheiro da instituição, e atualmente é professor titular da Universidade Federal da Bahia, e Dora Monteiro e Silva de consultora do IPHAN na gestão de Soeiro e atual professora

Alcântara, titular

arquiteta

aposentada

e da

Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Para a realização dessas entrevistas será utilizada a metodologia de História Oral. Atualmente, percebe-se que o uso de depoimentos vem sendo empregados cada vez mais por historiadores. Estudos sobre o “tempo presente” e “a história vista de baixo” são incorporados aos institutos do mundo inteiro. A História Oral estabeleceu um forte diálogo com questões do tempo presente e da história política. Houve um crescimento em trabalhos que resgatam episódios históricos do século XX.15 Nesse sentido, o corpus documental também abarcará a memória das pessoas que relacionaram com Soeiro neste período. O objetivo é problematizar as memórias obtidas com as referências bibliográficas e as outras documentações. Além disso, será utilizado alguns documentos pessoais de Renato Soeiro que se referem a sua gestão no IPHAN, como cartas, convites, fotos, discursos, publicações, diplomas, certificados, recortes de jornais, e documentos administrativos desta instituição no período de 1967-1979, tais como atas de reuniões, comunicados, extratos, recibos, pedidos, entre outros documentos de cunho administrativo. Estes documentos estão disponíveis para consulta no Arquivo Central do IPHAN do Rio de Janeiro.

519

Ademais, serão utilizados leis

e

decretos

relacionados

à

preservação

do

patrimônio outorgados no espaço de tempo delimitado e depoimentos de pessoas que se relacionaram com Renato Soeiro.

CONCLUSÃO Através do levantamento de fontes e da análise preliminar que foi realizada, observase que a gestão de Renato Soeiro no IPHAN é pouco estudada, possuindo documentos que quase não foram explorados o que viabiliza esta pesquisa. Assim, a partir da continuação desta pesquisa será possível analisar a importância da gestão de Soeiro para o desenvolvimento da política de patrimônio nacional.

NOTAS 1

GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A retórica da perda: Os discursos do patrimônio cultural no Brasil. Rio de Janeiro, Editora UFRJ/ IPHAN, 1996, p. 51. 2

FONSECA, Maria Cecília Londres . O patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no Brasil. 2ª edição. Rio de Janeiro, Editora UFRJ/ MinC-IPHAN, 2005, p. 141. 3

SOEIRO, Renato. MEC- Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. IPHAN/ COPEDOC/-Rio de Janeiro, Arquivo Personalidades 0419/ Caixa 129. Rio de Janeiro. 4

DANTAS, Fabiana Santos. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan): um estudo de caso em direito administrativo. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 264, p. 223-243, set/dez. 2013, p. 227 5

CORREA, Sandra Rafaela; FARIA, Rodrigo Santos de. O Plano de Cidades Históricas (PCH) no planejamento governamental brasileiro e o desenvolvimento urbano e regional (1973-1979). Risco, São Paulo, 14, 2º semestre de 2011, p. 20. 6

CORREA, Sandra Rafaela Magalhães. O Programa de Cidades Históricas (PCH): por uma política integrada de preservação do patrimônio cultural – 1973/1979. 2012. 343 folhas. Dissertação – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília. Brasília, 2012, p. 121. 7

Idem, p. 96.

520

8

SABINO, Roberto. As disputas pela representação do patrimônio nacional (1967-1984). In: III Seminário Internacional de Políticas Culturais, 2012, Rio de Janeiro, p. 10. 9

CORREA, Sandra Rafaela Magalhães. O Programa de Cidades Históricas (PCH): por uma política integrada de preservação do patrimônio cultural – 1973/1979. 2012. 343 folhas. Dissertação – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília. Brasília, 2012. 10

REIS, Paula Félix dos. Políticas nacionais de cultura: o documento de 1975 e a proposta do governo Lula/Gil. In: V ENECULT - Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura, 2009, UFBa, Salvador-BA, p. 8. 11

Idem, p. 10.

12

Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Proteção e revitalização do Patrimônio Cultural no Brasil: Uma trajetória. Brasília, Editora Sphan/ Pró Memória, Nº 31, 1980. Disponível em: portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=531. Acesso em: 28/07/2014 às 09 horas e 30 minutos, p. 24. 13

Idem, p. 25.

14

FONSECA, Maria Cecília Londres. Da modernização à participação: A política federal de preservação nos anos 70 e 80. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, n. 24, 1996, p. 154. 15

ARAÚJO, Maria Paula & FERNANDES, Tania Maria. O Diálogo da História Oral com a Historiografia Contemporânea. In: História Oral: teoria, educação e sociedade. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2006, p. 13-32.

521

PERSEGUIÇÃO POLÍTICA NO GOVERNO CONSTITUCIONAL DE GETÚLIO VARGAS: O CASO DE NAURICIO MACIEL MENDES Caroline Antunes Martins Alamino 1 Resumo Este artigo objetiva retratar a perseguição política no período do Governo Constitucional de Getúlio Vargas, através do caso do preso político Naurício Maciel Mendes. Analisando a estrutura e funcionamento do presídio onde Naurício Maciel Mendes foi detido e assassinado, o Presídio Político Maria Zélia, que funcionou de 1935 a 1937, usando como fontes prontuários do DEOPS-SP. Construindo assim considerações sobre a repressão política no governo Vargas anterior ao período ditatorial do Estado Novo. Palavras-chave: Repressão, preso político, Getúlio Vargas. Abstract This article aims to portray the political persecution in the Constitutional Government of Getúlio Vargas, through the case of political prisoner Naurício Mendes Maciel. Analyzing the structure and functioning of the prison where Naurício Maciel Mendes was arrested and murdered, the Political Prison Maria Zélia, which operating from 1935 to 1937, using records as sources of DEOPS-SP. Making considerations about political repression in the before Vargas government to the dictatorial period of the Estado Novo. Keywords: Repression, political prisoner, Getúlio Vargas. Após os levantes de novembro de 1935, em todo Brasil, houve um forte movimento de repressão e perseguição política, sobretudo aos comunistas, por todo o país. Para sustentar a situação o Congresso vota a suspensão das imunidades parlamentares e instala-se o Tribunal de Segurança Nacional (TSN) que durante seu funcionamento até 1945 possibilitou diversas prisões sem julgamento. Com essa nova ordem instaurada surge a necessidade de novos locais para atenderem a demanda de tantas prisões, assim em São Paulo uma antiga fábrica de tecidos é usada como presídio. Chamado de presídio Maria Zélia, este novo órgão de repressão estava situado dentro de uma antiga fábrica têxtil no bairro do Belenzinho. A fábrica fundada em 1912 por Jorge Street recebia o nome de Companhia Nacional de Tecido de Juta e anexa à fábrica foi construída uma vila operária que recebeu o nome de Maria Zélia para homenagear a filha de Jorge Street que faleceu ainda na adolescência. O nome ganhou expressão, sendo a vila e a fábrica chamadas de Maria Zélia e, posteriormente, o presídio. Jorge Street administrou a fábrica até 1924 quando a vendeu para a família Scarpa. Nas mãos da família Scarpa a fábrica funcionou até 1931

1

Doutoranda do Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Orientanda do professor Dr. Adriano Luiz Duarte. Bolsista CAPES. Email: [email protected]

522

quando, devido às dívidas, foi tomada pelo IAPI atual INSS e desativada até 1935, quando foi utilizada como presídio político até 1937. Abrigou nesse período cerca de 700 presos, dentre eles muitos intelectuais reconhecidos como: Caio Prado Jr., Quirino Pucca, Abdon Prado Lima, Fúlvio Abramo, Paulo Emilio Salles Gomes, entre outros. No curto período de existência do presídio Maria Zélia, ocorreram diversas atrocidades, além das condições subumanas de instalação dos presos que por ali passaram, há relatos de torturas, abusos e assassinatos. Mas foi a morte de quatro detentos do presídio que o tornou famoso na década de 1930, ganhando repercussão em diversos meios de comunicação, apesar da censura instalada, especialmente devido às cartas enviadas ao Ministério da Justiça pela mãe de um dos jovens assassinados. Um dos pontos interessantes na história do presídio são as iniciativas de organização dos presos como a “Universidade Maria Zélia”, proposta coletiva de educação dentro do presídio, em que eram distribuídas atividades conforme as aptidões e formação dos presos. Para ilustrar o funcionamento dessa instituição prisional temos os relatos coletados por Antônio Vieira (1957)1, em que descreve que as atividades da “Universidade Maria Zélia” eram divididas inicialmente com atividades físicas através da prática de esportes e torneios organizados por ex-sargentos, ex-cabos e ex-soldados do Exército e da Guarda Civil de São Paulo, pois quase todos eram diplomados em Educação Física. Acreditava-se que a prática de atividades físicas estimulava os presos à prática de teorias, e na passagem de uma atividade para outra havia aulas intermediárias de higiene e anatomia, ministradas pelos médicos ali presos, que ensinavam desde asseio até como utilizar os banheiros. A universidade organizava atividades durante todo o dia, iniciando às sete horas da manhã, após a leitura dos jornais e encerrando suas atividades apenas à noite. As atividades intelectuais fomentadas pela universidade eram tão intensas que em abril de 1937 foi criada a biblioteca Maria Zélia, para resguardar e dispor para consultas as redações e revistas manuscritas produzidas no presídio. A universidade também incentivou propostas artísticas e culturais que resultaram no “Teatro Popular Maria Zélia”. As peças teatrais eram tão populares que compareciam quase todos os presos para assisti-las, inclusive presos que não participavam de outras atividades do presídio. Produzido por artistas profissionais como o preso que era diretor de arte, Roberto Silva, o teatro era tão organizado e bem elaborado que causou curiosidade e interesse das autoridades, levando os diretores do presídio Plínio de Sousa Morais, Adrião Monteiro e Renato Junqueira Franco a assistirem algumas peças. O teatro tomou tamanha repercussão nas conversas internas dos órgãos de repressão que em uma exibição esteve presente, Artur Leite de Barros Junior, secretário de Segurança Pública e Eusébio Egas

523

Botelho, superintendente da Ordem Política e Social. Visitas essas que culminaram na apreensão das peças manuscritas e dos jornais e revistas produzidos dentro do presídio. Obviamente que toda essa produção era um incômodo para a Secretaria de Segurança, que sempre buscava os autores dos manuscritos. Por outro lado, para os materiais não serem identificados, eram feitas diversas cópias com diferentes caligrafias, assim quando investigados, os presos diziam ser uma produção coletiva sem um autor em específico. O meio encontrado para tentar controlar e descobrir quem eram os dirigentes dos movimentos dentro do presídio, foi infiltrando policiais como presos, que muitas vezes roubavam os materiais ainda em produção debaixo dos colchões ou dentro dos travesseiros e entregavam aos carcereiros. A alimentação no presídio também foi uma ferramenta de opressão, tanto pela insuficiência, quanto pela sua qualidade. Os presos recebiam pão e café pela manhã e arroz feijão e carne no almoço e janta. O cardápio não supria nem as necessidades calóricas dos presos, muito menos a de nutrientes e vitaminas. Não bastasse esse racionamento de comida, ela ainda vinha em péssimas condições de consumo, sobretudo a carne, que quase sempre vinha estragada. As famílias tinham liberdade para enviar alimentos aos presos diariamente, mas eram poucos presos que podiam contar com esses recursos e ainda assim, uma prática que se tornou cotidiana, foi a contaminação das marmitas enviadas pelas famílias com cuspes dos carcereiros. Um paliativo encontrado pelos médicos ali presos, como forma de melhorar a alimentação, foi reunir o arroz e o feijão, separar os grãos que se mostravam estragados, lavarem e cozinharem novamente os alimentos em suas tendas improvisadas e a carne, somente quando estava em reais condições salubres, era consumida. Dentro do presídio Maria Zélia alguns presos foram alfabetizados e receberam instrução política e só então compreenderam do que estavam sendo acusados. A opressão do regime e a prisão foram incentivos para esses presos, até então apolíticos, se tornarem simpatizantes do comunismo. Há casos escandalosos em que, na tentativa de mostrar eficiência, os policiais investigativos criaram ligações entre pessoas que jamais tiveram conversa com algum comunista e, no entanto, foram estabelecidos inquéritos para essas pessoas como participantes de movimentos subversivos e que, por este motivo passaram pela Delegacia de Ordem Política, onde foram espancados e fichados como criminosos comunistas, alguns inclusive foram condenados pelo TSN. É o caso de Manoel Dias Veloso, citado por Vieira2 (1957), que quando preso era analfabeto e não compreendia se quer os termos pelos quais foi acusado, mas dentro do presídio não só recebeu instrução como se tornou muito interessado pela movimentação política comunista; acabou se tornando um dos dirigentes dos movimentos dentro do presídio participando avidamente das discussões de textos do Marx e Lênin. O declínio que culminou

524

no fechamento do presídio, se deu na noite de 21 de abril de 1937, quando, após uma tentativa frustrada de fuga, os presos foram apanhados e colocados em fileiras no pátio, cada fileira passava por uma sessão de espancamento e era encaminhada para a cela, sendo que os últimos prisioneiros, além de espancados, foram brutalmente assassinados, entre eles: Augusto Pinto, João Varlota, José Constâncio da Costa e Naurício Maciel Mendes, o carrasco era Gregório Kovalenko. Esse grupo de pessoas com vidas, profissões, origens e por que não, ideais tão distintos, viram suas vidas se cruzarem na ferramenta de opressão criada durante o governo de Armando de Sales Oliveira em São Paulo, no ideal de corresponder aos padrões de perseguição aos comunistas do país Naurício era Cearense, natural de Baturité, nascido em 28 de outubro de 1916, foi fichado aos 20 anos, era solteiro, militar da 2ª Formação Internacional, ex-cabo, com estudo secundário, tinha olhos e cabelos castanhos, pele branca e media 1,66 metros de altura. Segundo Mario Mendes3 (2009), Naurício era filho de Francisco Mendes, coletor estadual em Baturité, que foi exonerado pelo interventor do Ceará, Fernandes Távora, e se mudou com seus sete filhos para Fortaleza, lá Naurício estudou no Colégio Militar e com a ajuda de um ex-professor major , arrumou emprego como desenhista no Instituto Federal de Obras Contra as Secas, empregado nas obras para os flagelados da seca de 1932 que construíam a rodovia Fortaleza-Russas, onde montou uma célula da Juventude Comunista, entidade atrelada à Secção de Fortaleza da Juventude Internacional Comunista de Moscou, também, fundada por ele juntamente com seus primos. Naurício Mendes se alistou, como voluntário, no Batalhão Ferroviário de Mato Grosso. No final de 1933, embarcou para São Paulo, em busca de conexão para Cuiabá. Ao desembarcar no porto de Santos, Naurício, se encontrou com outro ex-professor do Colégio Militar, o capitão Silva Barros que o convence a desistir da ida ao Mato Grosso, e se torna praça como soldado raso na Segunda Formação de Intendência Divisionária de São Paulo, no bairro da Barra Funda, onde, dentro de pouco tempo é promovido a cabo. Foi detido em 01 de dezembro de 1936, em 5 de dezembro de 1936 foi intimado a comparecer na DOP4 de São Paulo para depoimento em que nada declarou, e por fim foi transferido para o Presidio Político Maria Zélia em 21 de dezembro de 1936. Em seu prontuário no DEOPS-SP5 há um Boletim de Informações do Oficio 1083, de 4 de março de 1937 no qual consta que Naurício foi identificado em 25 de abril de 1935 solicitando identidade através do 2˚ Regimento Militar como Cabo Militar, que foi cooptado para a ação comunista por seu colega de quarto Jose Constâncio, e que auxiliou pecuniariamente ao Partido Comunista emprestando 500 mil réis a João Raimondi, e escreveu um manifesto de

525

propaganda subversiva dirigido aos colegas da 2ᵃ Formação de Intendência.. Também consta a informação de que na residência em que Naurício Maciel e Jose Constâncio viviam foram encontrados muitos boletins subversivos e livros de marxismo como A conquista do pão e Extremismo, doença infantil do comunismo. Naurício Maciel foi descrito como um elemento perigoso por ser considerado cooptador e divulgador de ideias comunistas. Naurício negou que tenha dado seu apoio à articulação comunista existente, mas, entretanto, confessou que o manifesto subversivo era de seu próprio punho. Aliás isso não adiantaria negar, de vez que a perícia gráfica também constatou ser de sua autoria esse documento. Na noite de 21 de abril de 1937, Naurício estava na fila dos fuzilados no Presidio Maria Zélia, mas apesar dos tiros não morreu na hora, ao notar que ainda respirava os guardas lhe deram tantas coronhadas que mutilaram sua face, e lhe arrancaram uma orelha, ainda assim foi levado ao Hospital da Força Pública. A DOS6 em nome da subchefia dos inspetores expediu em 23 de abril de 1937, para o Delegado de Ordem Social o comunicado sobre o falecimento de Naurício Maciel três horas da manhã do dia 23 de abril de 1937, que se achava internado na enfermaria presidio do Hospital Militar da Força Pública, procedente do Presídio Maria Zélia, em um dos bolsos da roupa de Naurício, foram encontrados dois esboços de propaganda consideradas subversivas, com os títulos A situação dos operários nos países capitalistas é inferior à dos cães e Alto lá senhores nazistas do Brasil. Seus pais souberam de seu falecimento meses depois, por uma carta anônima enviada com o recorte de um jornal que noticiava a tragédia. Segundo Mendes (2009) em junho de 1937, a mãe de Naurício recebe uma outra carta, informando o local da sepultura de seu filho, assinada por Dona Sebastiana, a carta informava que a senhora e uma moça que namorava Naurício iam sempre a sua sepultura e levavam flores. Os textos encontrados em seu bolso após sua morte, não eram assinados, e não há nos relatórios nenhuma confirmação se eram de autoria de Naurício. O A situação do operariado nos países capitalistas é inferior à dos cães, tratava-se de um protesto contra donos de fabricas e empresas alegando que os mesmos queriam matar os operários de fome, e quando os operários reclamavam eram taxados de comunistas e jogados ao cárcere e até mesmo fuzilados, esse trecho se torna sombrio com a coincidência nefasta de sua morte após um fuzilamento. O texto prosseguia justificando seu título, com dados sobre o quanto era gasto com alimentação, salão de beleza e hospital de cães norte-americanos, concluindo que os operários dos países capitalistas estavam morrendo de fome, sem hospitais, sem diversões, sem escolas, enquanto os animais recebem conforto, sendo a única solução uma revolução. 526

No texto Alto lá senhores nazistas do Brasil sobre uma olimpiada infantil no Clube Germania, realizada por um clube que o autor diz ser nazista, que embora a pratica esportiva em si não tenha problema, a contrariedade estava na propaganda do hitlerismo, ao propagar as vantagens da disciplina e organização alemã. E pelo fato de não terem aceito a inscrição de vários nadadores do Tietê, que estavam dentro do regulamento, e que a motivação seria para que caso esses nadadores vencessem a competição ia contradizer a “superioridade” alemã alegada pelos membros do clube. Terminando o texto alegando que o governo popular não permitiria tais abusos, atuando no sentido de paz e cultura e não de guerra e destruição como os fascistas. Após sua morte, o inquérito contra Naurício prosseguiu na DOP e em 22 de julho de 1938, foi proferida sua pena, em 26 de julho de 1938 foi expedido um mandado de prisão a Naurício Maciel Mendes, pelo juiz do TSN Antônio Pereira Braga, condenado as penas de um ano e nove meses de prisão celular em grau submédio do art. 10 da lei n.38 de 4 de abril de 1935. E em 22 de agosto de 1938 foi expedido outro mandado de prisão pelo desembargador Frederico de Barros Barreto, do TSN, pela mesma pena. E a burocracia do aparato jurídico prosseguiu sem a informação da morte de Naurício, em 24 de agosto de 1938 a secretaria do TSN expediu um comunicado ao Secretário de Segurança Pública de São Paulo, confirmando a sentença de um ano e nove meses de Naurício Maciel, assinado pelo presidente do TSN Frederico de Barros Barreto.

Considerações Finais A partir deste ensaio podemos refletir sobre o funcionamento de um presídio político durante o período do governo constitucional de Vargas, mostrando-se tão violento e com práticas de tortura e assassinatos que foram uma das marcas de seu primeiro governo no Brasil. A abertura do presídio Maria Zélia ocorre como uma solução imediata para conter possíveis continuidades de revoltas contra o governo a partir dos levantes de novembro de 1935. Segundo Alamino7 (2015): Com isso se formará todo um aparato de repressão política violento que culminará em casos extremados como os assassinatos dentro do Maria Zélia. Apesar dos relatos da rotina do presídio demonstrar a persistência dos presos em manter sua humanidade, esperança e disseminar suas crenças políticas para os leigos que ali adentravam, a brutalidade como eram tratados tornavam a simples sobrevivência dentro do presídio um desafio diário que muitos não conseguiram superar.

Além do massacre ocasionado pelo fuzilamento, houve diversas mortes dentro do presídio por doenças devido à situação de insalubridade do presídio. “Só ingenuamente

527

interessaria ter um presídio higiênico e moderno transformado em prioridade governamental. A própria ideia de se ter uma instituição total deve ser a condutora crítica dos estudos e da intervenção sobre os indivíduos”8. (CANCELLI, 2005:155). Podemos concluir portanto queo Presídio Maria Zélia foi uma ferramenta de repressão do governo Vargas que se utilizou de práticas de tortura num período que antecedeu a ditadura do Estado Novo. Notas 1

VIEIRA, Antônio. Maria Zélia. São Paulo: Editora Cupôlo, 1957. Ibidem. 3 MENDES, Jr. Mario. Um certo cabo Naurício. Disponível em: http://www.maninhodo baturite.com.br/?tag=o-presidio-maria-zelia-em-sao-paulo. Acesso em: 15 de abril de 2014. 4 DOP – Delegacia de Ordem Política. 5 ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Prontuário: 00004656. Naurício Maciel Mendes. 6 DOS- Delegacia de Ordem Social 7 ALAMINO, Caroline. ” Repressão e assassinato no Governo Constitucional de Getúlio Vargas: O caso de José Constâncio Costa”. Revista Semina. Passo Fundo. V.14, n.1, p.67-83, 2015. 8 CANCELLI, Elizabeth. “Repressão e controle prisional no Brasil: prisões comparadas”. História: Questões & Debates, Curitiba, n. 42, p. 141-156, 2005. 2

528

Primeira República: música popular e questões do seu tempo1

Caroline Moreira Vieira Dantas Doutoranda em História Social - UERJ/FFP Orientadora: Profª Drª Joana Bahia Bolsista Capes Email:[email protected] Resumo Este trabalho analisa letras de música gravadas em disco nas primeiras décadas do século XX. Nosso foco é refletir sobre as possibilidades de músicos negros e populares expressarem questões do cotidiano, visões políticas, da vida social, subjetividades, identidades e afroreligiosidades, caracterizando-os como sujeitos que interagiam com as questões do seu tempo. Assim a música pode ser encarada como um veículo para os populares se expressarem politicamente em meio às práticas excludentes e hierarquizadas da Primeira República.

Palavras-chave: primeira república; músicos populares; participação política.

Abstract

This paper analizes the lyrics of songs recorded in the early decades of the twentieth century. Our main focus is to reflect on the possibilities of how black and popular musicians express their daily questions, political views, social life, subjectivities, identities and afro-religiosity, which characterizes their interaction with issues related to their time. Therefore, music can be seen as a vehicle in which they were capable of expressing themselves critically in confront to exclusivist and hierarchical practices of the first republic.

Palavras-chave: first republic; popular musicians; political participation

A gravação em disco, iniciada em 1902 com a Casa Edison, foi uma forma de comunicação de músicos das camadas populares com a sociedade num momento em que estavam sendo processadas mudanças importantes. As letras das músicas expressavam suas visões políticas e sociais e elementos da sua identidade afro-brasileira, indicando uma participação dos músicos nas questões do seu tempo.

529

O contexto de proclamação da República e os primeiros anos republicanos geraram importantes discussões historiográficas sobre a participação política e o exercício da cidadania. A discussão, em geral, tem início com a citação de trecho da famosa carta de Aristides Lobo, “o povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava. Muitos acreditavam sinceramente estar vendo uma parada”.2 José Murilo de Carvalho, na década de 1980, atribuiria um sentido particular ao termo “bestializado”. Segundo ele, os mecanismos político-institucionais da República originaram muitos cidadãos inativos, por causa do caráter excludente de sua legislação eleitoral, pela prática de fraudes, pela violência nas eleições, pelo alto índice de abstenções dentre os que estavam habilitados a votar. Contudo, para ele isso não significaria que a população era caracterizada pela passividade ou pela indiferença. Haveria, na verdade, uma espécie de acordo tácito entre o Estado e as camadas pobres da cidade, em que aquele não teria ingerências sobre a vida destas. Caso não fosse respeitado, a população poderia reagir até de forma violenta como no caso da Revolta da Vacina em 1904. Portanto, a não participação fora uma opção devido ao distanciamento da política institucional da vida dos populares. Conclui que o povo não era bestializado, mas sim bilontra, esperto, pois entendia que se a política não era coisa séria, deveria fazer tribofe, trapaça dela. Nessa análise não haveria uma relação direta da população com os canais da política institucional, atitude atrelada à estadania, onde haveria contatos diretos e pessoais da população com a máquina governamental a partir de favorecimentos pessoais. Os populares só se organizariam como expressão do exercício da cidadania em momentos de festividade. Portanto, os populares passariam ao largo da política institucional da Primeira República.3 Nessa mesma linha de análise, para Mônica Pimenta Velloso, os projetos republicanos não incorporariam a “Pequena África”, região associada à população pobre e descendente de escravos do Rio de Janeiro. A república teria sido inflexível com as práticas culturais negras, excluindo-as ou marginalizando-as. Por isso, os grupos que a habitavam criaram canais marginais de comunicação, fora da vida político-institucional.4 Velloso afasta a idéia de passividade das camadas populares frente às investidas modernizantes da cidade, apontando para um arcabouço analítico que aborda as redes de sociabilidade tecidas no interior do grupo como ranchos, cordões e terreiros, como alternativas onde concentrariam suas energias, já que nunca estiveram presentes no aparato estatal. Assim, teria sido “fora da esfera do Estado que o grupo constrói sua rede de relações, reunindo os elementos de uma cultura dispersa pela experiência da escravidão.” 5

530

Na mesma perspectiva analítica, Roberto Moura sustenta que os negros e brancos pobres, por estarem fora do mercado de trabalho e fora da vida política, estavam “alheios às grandes cenas da ‘vida nacional’ e ausentes de sua história oficial”. Uma vez que o Estado não implementava soluções para seus problemas, eles mesmos construíram suas alternativas, através de revoltas ou de festas profanas e religiosas6. Estas interpretações se afiliam com as idéias de Carvalho expostas acima, uma vez que ele considera a não participação popular dentro dos mecanismos formais políticos na República. Caracteriza o povo como bilontra, pois teria deixado de participar não por passividade, mas por escolha, porque sabia que o canal político-institucional havia sido fechado pela elite republicana. O próprio povo teria optado por não participar, pois sabia que a República não abriria espaço para a participação popular, adotando um comportamento participativo em outras esferas, como na religião, nas entidades de ajuda mútua, em grandes festas.7 Em artigo publicado na década de 1990, Carvalho indicou a necessidade de se repensar a questão da cidadania, percebendo avanços nos estudos teóricos e históricos sobre o assunto. Postulou a existência de outras formas de cidadania, haja vista a diversidade de experiências de países com tradições culturais particulares. Ressaltou a necessidade de trabalhos que aprofundem análises sobre as revoltas no sentido de decifrar a natureza da “cultura política popular”, pois a concepção de “cidadania ativa” seria mais do que o “direito de votar e ser votado.” 8 Cabe mencionar o processo de construção da idéia e da experiência de cidadania no Brasil republicano.9 No Brasil, “ocorreu uma espécie de superposição de demandas por direitos, especialmente após a proclamação da República, o que deu ao processo de construção da cidadania grande complexidade.”10 Um dos grandes obstáculos ao desenvolvimento da cidadania teria sido a escravidão, por ter sido uma instituição arraigada na sociedade brasileira, negando igualdade aos homens e sendo compartilhada por todas as camadas sociais. Na Constituição de 1824 para ser cidadão portador de direitos civis deveria ser “livre nascido no Brasil”, mesmo que “de cor”, como ex-escravos ou com ascendência africana. Portanto, a população “de cor” nascida no Brasil (liberta ou nascida livre) teria acesso aos direitos civis, sendo inconstitucional negar tal direito, nas primeiras décadas do século XIX.11 Quanto aos direitos políticos era mais difícil para os “livres de cor”. Porém, essa dificuldade não vinha das restrições de renda mínima para votar e ser votado, mas da condição de ser “ingênuo”, pois para ser eleitor o indivíduo tinha que nascer livre, “os descendentes de escravos libertos – com renda adequada naturalmente” (o que

531

era

perfeitamente possível) – “podiam exercer direitos políticos, mas os escravos nascidos no Brasil, mesmo que conseguissem sua alforria, não podiam reivindicar tais direitos”. 12 A escravidão se baseava na desigualdade natural entre os homens e no direito liberal de propriedade privada, sendo assim, a “igualdade dos cidadãos perante à lei ficava circunscrita àqueles que fossem livres.” 13 Só com a abolição da escravidão que passou a existir igualdade jurídica dos homens perante a lei. Seguida pela República que a tornou realidade jurídica, “o princípio de que todos os homens são iguais perante a lei, podendo, potencialmente, exercer sua cidadania”.14 Certamente que estas postulações representaram formalismos, mas não se devem minimizar os efeitos subseqüentes desses formalismos. Apesar de não ter desencadeado mudanças efetivas para a população negra e de não ter gerado práticas representativas muito diferenciadas em relação ao Império; a Abolição e a República foram momentos importantes de inflexão histórica.15 Refletindo sobre essas questões, pesquisas recentes vêm apontando na direção de uma vida política na capital da República. Marcelo Magalhães avança nessa reflexão no sentido de apontar outros canais institucionais em que os populares pudessem se manifestar, focalizando reivindicações das camadas populares aos intendentes do Conselho Municipal, afastando, desta forma, a perspectiva de esvaziamento político em relação aos mecanismos formais de representação política. Assim,

A análise da documentação produzida pelo Poder Legislativo Municipal permite supor que o povo, além de ter atuado nas várias repúblicas (festas religiosas, entrudo etc.), também atuava no campo político-institucional, apesar do regime republicano ter-se configurado segundo um modelo excludente restritivo de cidadania. 16

Num mesmo sentido de apontar o caráter de participação dos populares e do exercício de cidadania por eles praticados no âmbito da República, devemos destacar pesquisas sobre o universo musical e teatral da cidade do Rio de Janeiro na virada do século XIX para o século XX. Nesse universo, artistas populares construíram estratégias próprias para a participação política. Se alargarmos o sentido da política para além de sua forma eleitoral, perceberemos que artistas podiam fazer política por meio de sua arte, defendendo direitos, liberdade de pensamento e transformações sociais. Francisco Corrêa Vasques (1839-1892) e Eduardo Sebastião das Neves (1874-1919) são dois exemplos de artistas populares, respectivamente do teatro e da música que demonstraram possibilidades de exercício da cidadania através de sua arte. Vasques através de

532

suas cenas cômicas referia-se de forma direta ou indireta a assuntos políticos sob a forma de deboche e mesmo negando a política, talvez como pretexto para abordá-la. Desta forma, demonstrou até mesmo dedicação à causa abolicionista. Eduardo das Neves, conhecido como “crioulo” Dudu, cantava a cidade, a história do país, seus heróis, sua política, seu cotidiano e enfocava a história dos afro-descendentes. Sua arte tinha uma dimensão política defendendo direitos e lutando por transformações sociais, como a Abolição.17 Desta forma, sob à luz da produção de músicos populares que vivenciaram conflitos e tensões dos primeiros anos republicanos, concordamos com a idéia de que há possibilidades de encontros entre política e cultura, haja vista as novas perspectivas em torno da História Política e da História Cultural, permitindo reflexões sobre sentidos políticos nos comportamentos populares e no caso, específico dos músicos, nas suas produções musicais. De acordo com estas novas abordagens, as ações políticas dos sujeitos e as suas percepções sobre a sociedade em que vivem demonstram uma forma de participação popular, encarada como expressões da cidadania18. As festas e os centros religiosos, ambientes em que vivenciaram muitas experiências culturais, se configuravam em espaços em que os populares se confraternizavam, reafirmando e reelaborando suas identidades. Portanto, o ambiente festivo pode ser pensado como campo privilegiado para pensar conflitos e tensões sociais, sejam elas religiosas ou profanas. Considerar a festa uma válvula de escape para tensões ou recurso para manipular e reforçar a ordem vigente encobre atitudes, valores e comportamentos dos grupos sociais19. Assim, através da gravação de suas composições, expressavam suas percepções da realidade política e social. Por isso, acreditamos que os músicos populares construíam novas possibilidades de exercer a sua cidadania. Se alargarmos os sentidos deste conceito para além das representações políticas e do voto, outros caminhos para a participação política poderiam ser possíveis, para tanto, o importante é não se fixar nos modelos de cidadania desenvolvidas em outras experiências históricas e focar as experiências internas. Desta forma, as possibilidades de exercício da cidadania a partir da música, por exemplo, podem ser abertas20. Na música Não se ganha para comer, classificada como um maxixe composta por Caninha, se ressaltam as diferenças sociais em tom de crítica:

Não se pode mais viver / Não se ganha pra comer / Não se pode mais viver / Com os tais de senhorios / Que nos levam o cobre todo, / E nos deixam a ver navios / Não se pode mais falar / Nem tão pouco reclama/ Quem tem cachorro e crianças / Não tem mais onde morar / Por mais que o pobre trabalhe / Por mais que o dinheiro ganhe, / Tudo que tem se transforma / Numa taça de champagne / É assim que o pobre sofre / Em silêncio a sua mágoa/ Vendo alguém beber champagne/ Enquanto ele bebe água 21

533

Ao abordar problemas cotidianos e particulares como o pagamento de aluguéis, a falta de dinheiro e de alimentação, a música se configura numa crítica às desigualdades sociais e econômicas e contrasta camadas sociais privilegiadas e segmentos pobres, colocando em oposição expressões como “champagne” e “água”. Quanto à referência a um suposto “destino” do pobre de sofrer em “silêncio” suas mágoas, não parece o que evidencia a letra da própria composição que verbaliza as agruras da vida. É recorrente nas composições essa temática sócio-econômica que sinaliza críticas à condição das camadas menos favorecidas, expressando desigualdades sociais e a impossibilidade de arcar com as despesas do cotidiano, como no samba também de autoria de Caninha Onde está o dinheiro: Onde é que está o dinheiro/ Berra o Pita e o povo inteiro/ O tio Pita desconsolado/ Tem afinal feito berreiro/ Porque tem andado quebrado/ A cata do dinheiro/ Mas não é só ele a sofrer/ Pois também sofre o povo inteiro/ Que anda enfim tão pasmado a ver/ Onde está o dinheiro/ De manhã vem o senhorio/ E vem o maldito padeiro/ Mando-os a casa do meu tio/ Em busca do dinheiro/ O meu grande amigo Lacerda,/ O meu querido quitandeiro/ Por minha morte afinal herda/ Um pouco de dinheiro22

Além das muitas músicas com temáticas amorosas, abordando relacionamentos e conflitos, percepções da figura masculina e feminina, intrigas de variadas razões (como indica os títulos de composições: Vou me vingar, Não quero saber mais deles), malandragem, idealizações do sertão, figuras de caboclo, de mulatas, de iaiás, de senhores; outra temática freqüente eram brincadeiras em torno de hierarquias sociais e patentes militares, ironizando essas classificações rígidas e revelando contatos entre pessoas de diferentes camadas sociais: Isto não é vida/ Oh! Seu Miguel/ Rapazes como nós/ Não bancamos/ O coronel / Indo eu a uma festa/ Encontrei o seu Miguel/ Junto de umas mocinhas/ A bancar o coronel/ Esta festa era tão boa/ Que levei seu Rafael/ Pra fazer o par constante/ Com o tal de coronel23

A letra da composição revela que apesar de “rapazes” como o eu-lírico da composição, não poderem se passar por “coronel”, por supostamente não compartilharem aquele universo social, eles podiam freqüentar festas tal como os que podem se passar por “coronel” e, ainda por cima, levam consigo seus conhecidos como o seu “Rafael” para fazer “par constante com o tal de coronel”. E ainda reclama de não poder se passar por “coronel” e usufruir das oportunidades que isso lhe traria, por exemplo, a possibilidade de conquistar “mocinhas”. Revela, assim, interações possíveis entre esses universos sociais e ainda a possibilidade de fazer graça dessas hierarquias sociais.

534

Assim como as letras podiam servir para ridicularizar autoridades e subverter hierarquias sociais, muitas músicas expressavam nacionalismos, idealizações da pátria e seus vínculos de pertencimento, como facilmente percebemos nos títulos das seguintes composições: Eu sou brasileiro, Condor Brasileiro (oferecida a Santos Dumont, o “pai da aviação”), Quando o jahú chegar e Campeões dos ares (a primeira, um maxixe oferecido aos tripulantes do Jahú e a segunda, aos aviadores portugueses Gago Coutinho e Sacadura Cabral).24 A composição Kaiser em fuga é um exemplo da expressão da nacionalidade por parte dos músicos populares. É um tango carnavalesco em homenagem aos aliados na Primeira Guerra Mundial:

Ai! Ai! Ai!/ A guerra já terminou/ Com a direção de Foch/ Até o fogo cessou/ Ai! Ai! Ai!/ Que grande satisfação/ Do kaiser ter disparado/ E abandonado a nação/ Monsieur,/ Que dê ele?/ O kaiser já fugiu/ Já sumiu-se pra bem longe/ Que o inimigo não viu / Viva, Viva,/ Sempre os nossos aliados/ Que venceram esta guerra/ E prenderam os culpados25

A letra expressa que o compositor estava afinado com os acontecimentos externos e com as ligações do país com o evento da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Faz referência aos aliados, cujos principais eram Rússia, França, Inglaterra, Itália (a partir de 1915) e Estados Unidos (a partir de 1917). É significativa a demostração de compreensão desse fato histórico, citando personagens como “Foch” e “Kaiser”, e ainda usar a expressão “monsieur” em francês, justamente porque foi em território francês a vitória mais importante da frente ocidental na guerra. 26 Algumas composições também imprimiam suas percepções sobre a figura dos negros e dos brancos na sociedade, como Festa de branco, cuja letra descrita abaixo, aborda os conflitos do cotidiano, diferenciando o que é de branco e o que é de negro, com tom de humor tentando denegrir a imagem da “festa de branco”, associando-a à avareza, possivelmente em contraste com um Samba de nêgo em que “só tem cachaça pra gente se embriagar”, “vinhos e licores, acaçá e aberém”, e ainda “nos pés do Santo, tava um monte de vintém”.27

Festa de branco/ Sempre acaba em arrelia/ Se vai de barriga cheia/ E sai com ele vazia/ Eu não me passo/ Pra estas festas de chique/ Por causa de uma branca/ Já quiseram me prender/ Fui numa festa/ Na casa de um capitão/ Vi um gato com fome/ Dormindo lá no fogão/ De madrugada/ Quando a festa se acabou/ O dono da casa/ Foi chorar quanto gastou28

535

Analisando a letra da música Dona Clara, um samba de Donga e João da Baiana, cantado por Patrício Teixeira em meados da década de 1920, podemos perceber uma série de elementos dos cultos afro-brasileiros: Fui em Dona Clara / Numa macumba/ Com Exu falar / Fazer um feitiço/ Pra cima de ti / Pra você me deixar/ Mas tu mulher/ Tens o santo forte/ Não quer me largar / É filha de Ogum/ Sobrinha de Xangô / Neta de Oxalá/ Se o feitiço não te pegar / Meus santos vão te amarrar/ Uma negra velha / De cachimbo torto/ Que tinha na boca / Me chamou num canto/ Me disse baixinho / Esta mulher está louca/ Pegou três pauzinhos / Jogou para o alto/ Na encruzilhada / Nhonhô vai embora/ Me disse em segredo / A mulher está amarrada/ Você me despreza / Você me abandona/ Não sei por que / Vou pedir vingança/ A meu anjo da guarda / Pra você sofrer / Imploro a Deus / Ao meio dia em ponto/ Com as mãos para o céu / Hei de te ver na rua/ Com o saco nas costas / Apanhando papel1

Nesta música, estão explícitos elementos dos rituais afro-brasileiros, abordando entidades a quem se recorreria para o auxílio de problemas particulares. Exu aparece na linha de frente como mediador e comunicador tanto para fazer o feitiço, como mensageiro de outras divindades. O feitiço nessa canção, como na maioria das analisadas, está associado a relações amorosas. Nesse caso, se refere à ação de fazer um feitiço para se ver livre da mulher que, por sua vez, também fez um feitiço para amarrar o homem amado. Chamadas de negras velhas ou de feiticeiras, as mães-de-santo também são muito ressaltadas nas canções como veículo de orientação e de proximidade com as entidades. Seriam as dirigentes femininas de terreiros afro-brasileiros, cuja palavra seria indiscutível e a quem se devia respeito e obediência. Capazes de viabilizar a comunicação com o transcendental para a realização de feitos mágicos extraordinários, fossem negativos ou positivos. Por todos esses exemplos, acreditamos na construção de outros caminhos em que os populares poderiam se expressar politicamente, como por exemplo, por meio da música. Expressavam suas identidades, suas críticas, seus amores, seus conflitos, sua malandragem, sua nacionalidade, sua religiosidade, e se socializavam mesmo diante das práticas excludentes da República. Esta perspectiva só é possível se compreendermos o alargamento da idéia de participação política das camadas populares, para além do voto, afirmando, através das suas músicas seus direitos, suas reivindicações e suas convicções. Tratando assuntos sérios e complexos a partir da linguagem musical, ora com emprego de ironias, metáforas, pilhérias, inversões, jocosidades, galhofas, ora com acatos e desacatos, demonstrando uma leitura particularizada da realidade social e interações sociais. 1

Dona Clara/Não quero mais, samba, intérprete Patrício Teixeira, compositores Donga e João da Baiana, Odeon nº10084-a, 1927. Partitura nº6860, coleção Almirante, Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro.

536

Bakhtin imprime à palavra um caráter indissociável do seu contexto histórico, sendo assim, as palavras podem ser compreendidas como resultados de uma leitura particularizada da própria realidade social, política e étnica. Cabe lembrar a importância dos estudos sobre linguagem de Todorov, analisando alguns aspectos particulares do discurso, como o “chiste” e o “jogo de palavras”. Estão associados ao chiste, o ato de ridicularizar, de fazer caricatura, de ironizar, de incitar o riso, o humor, o gracejo, fazer duplo sentido, por intermédio de metáforas, imagens e alegorias.29 Nesse sentido, as letras das composições do repertório popular carioca das primeiras décadas do século XX podem ser compreendidas a partir dos usos e dos significados dos recursos lingüísticos e metafóricos. Podem ser vistas como expressões de cidadania de um grupo de músicos populares, demonstrando sua participação política, no sentido alargado do termo. Encontram-se também atreladas à sua identidade enquanto músico popular num novo cenário cultural que estava sendo construído a partir dos diálogos com o mundo da fonografia. Enfim, revelam os caminhos possíveis de manifestação de suas identidades e percepções, não sem conflitos, ampliando o seu raio de alcance e buscando ampliação do espaço social e político por meio da música.

1

Este artigo é parte da minha dissertação de mestrado em História social, defendida em 2010 pelo Programa de Pós-graduação em História Social da UERJ/FFP. 2

Trecho da carta de Aristides Lobo, propagandista da República, publicada no Diário Popular em 15 de novembro de 1889 apud Magalhães, Marcelo. “Repensando política e cultura no início da República: existe uma cultura política carioca?” In: Soihet, R.; Bicalho, M.F.B.; e Gouvêa, M.F.S. (orgs.). Culturas políticas: ensaios de história cultural, história política e ensino de história. Rio de Janeiro: Mauad, 2005, p. 290. 3 Carvalho, José Murilo de. Os bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi. 3º Edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, pp.140-160. 4 Velloso, Mônica Pimenta. “As Tias Baianas tomam conta do pedaço. Espaço e identidade cultural no Rio de Janeiro”. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.3, n.6, 1990, pp.207-228. 5 Ibidem, p. 210 6 Moura, Roberto. MOURA, Roberto.Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro. 2ª Edição.Rio de Janeiro: Coleção Biblioteca Carioca,1995, pp.16-17 7 Carvalho, José Murilo de. Op. cit., pp.140-160. 8 Carvalho, José Murilo. “Cidadania: tipos e percursos”. In: Estudos Históricos, n.18, 1996, pp.1-21. Neste artigo, indicou a prevalência dos estudos no que toca à participação eleitoral e a existência de poucos trabalhos sobre a relação do Estado com as camadas populares, além da necessidade de se investigar uma “cultura política popular”. Afirma ser necessário também valorizar o judiciário (ser jurado e juiz de paz), o serviço militar, a imprensa política e os instrumentos de comunicação da população com o Estado (manifestos, cartas). Permanece defendendo a idéia de que as camadas populares apenas reagiriam às ações do governo, lançando mão da expressão “cidadania em negativo” para representar esta concepção. 9 Para esta definição segue a análise clássica do caso inglês feitas por T.H. Marshall, na qual a construção da idéia de cidadania estaria vinculada aos direitos definidos como sociais, políticos e civis. Os direitos civis, surgidos a partir do século XVIII estariam associados à liberdade individual, à vida, às manifestações de pensamentos e à movimentação das pessoas. Os direitos políticos dizem a respeito à participação dos cidadãos no governo, elaboração de leis e inclusive protegendo-os do Estado. O voto e a representação política seriam os instrumentos principais de exercício dos direitos políticos, surgidos no âmbito do século XIX. O estabelecimento destes direitos se configura numa construção de limites à atuação do Estado. Os direitos sociais, oriundos do século XX, garantiriam a vida, o trabalho, a educação e a saúde aos cidadãos, certa segurança e participação no bem-estar coletivos, pois os custos da “incerteza social” passam a ser muito nesse período. Assim, os direitos sociais passam a ser uma espécie de continuidade dos direitos civis. Para Ângela de Castro Gomes, há uma dinâmica diferenciada na experiência de países com relação à conquista desses direitos. No caso inglês, a sequência do processo seria representada pelos direitos civis, políticos e depois sociais. Contudo, essa sequência não seria um modelo rígido. Gomes,

537

Ângela de Castro. “Venturas e desventuras de uma república de cidadãos”. In: Soihet, Raquel. (org). Ensino de História. Conceitos, temáticas e metodologia. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, Faperj, 2003, pp. 152-154. 10 Ibidem, p.154. 11 Ibidem, p.156. 12 Ibidem, p.156. 13 Ibidem, p.157. 14 Ibidem, p.157. 15 Os direitos políticos na República não representaram um crescimento no número de eleitores até metade do século XX. Mesmo com o fim do voto censitário, a manutenção da exigência de ser alfabetizado e a corrupção eleitoral (que também existia no Império), não permitiram a expansão desse direito de cidadania. Mas é importante não desprezar a prática das eleições, mesmo com os problemas de fraude. A Primeira República foi palco de lutas importantes como o voto feminino, o voto secreto, a justiça eleitoral, adotados no Código Eleitoral de 1932. Portanto, este é um período-chave para a constituição de atores políticos coletivos no Brasil, como o próprio Estado e sua burocracia. Ibidem, pp.157-159. 16 Magalhães, Marcelo. Op. cit., p.295. 17 Marzano, Andréa; Abreu, Martha. “Entre palcos e músicas: caminhos de cidadania no início da República”. No prelo. 18 Abreu, Martha. “Cultura política, música popular e cultura afro-brasileira: algumas questões para a pesquisa e o ensino de História”. In: Soihet, R.; Bicalho, M.F. e Gouvêa, M.F. (orgs.). Culturas políticas. Ensaios de história cultural, história política e ensino de história. Rio de Janeiro: Faperj/ Mauad, 2005, pp. 409-423. 19 Soihet, Raquel. A Subversão pelo Riso. Estudos sobre o carnaval carioca da Belle Époque ao tempo de Vargas. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998, pp. 35-37. 20 Cf: Marzano, Andréa; Abreu, Martha. “Entre palcos e músicas: caminhos de cidadania no início da República”. No prelo. Abreu, Martha. “Cultura política, música popular e cultura afro-brasileira: algumas questões para a pesquisa e o ensino de História”. In: Soihet, Raquel et al. Culturas políticas. Ensaios de história cultural, história política e ensino de história. Rio de Janeiro: Faperj/ Mauad, 2005, pp. 409- 423. 21 Partitura número 21554, coleção Almirante, Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro. 22 Composição gravada pelo intérprete Baiano em 1922 pela Odeon, cujo número de registro é 122.135. 23 O título da composição é Isto não é vida, de Caninha, gravado em 1924 pela Odeon, número de registro 122.613. 24 Jahu foi um hidroavião que se destacou por ser a aeronave que fez a terceira travessia aérea do Atlântico Sul, a primeira da história sem escalas em 1927. A primeira travessia do Oceano Atlântico foi realizada pela dupla John Alcock e Arthur Whitten Brown em 1919 e a primeira do Atlântico Sul foi realizada pelos portugueses Gago Coutinho e Sacadura Cabral, em 1922, no contexto das comemorações pelo Centenário da Independência do Brasil. Todas estas composições são de autoria de Caninha, número das partituras, respectivamente, 16032, 4129, 4952, 2904, coleção Almirante, Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro. 25 Composição de Caninha, partitura número 2115, coleção Almirante, Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro. 26 Ferdinand Foch foi um militar francês que dirigiu importantes operações durante a guerra e conquistou importantes vitórias. Em 1917 assumiu o cargo de chefe do Estado-Maior do Exército Francês e em 1918 conseguiu ganhar a segunda batalha do Marne ou Batalha de Reims (15 de julho a 5 de agosto de 1918), a última importante ofensiva alemã na Frente Ocidental, contra-atacada pelos aliados liderados pelas forças francesas. “Kaiser” é um título que significa "imperador". Costuma ser associado ao Império Alemão unificado (1871-1918), cujo território correspondia ao centro do antigo SacroImpério. O Império Alemão teve três “kaiser”, que governavam também a Prússia. O último deles foi Guilherme II (18881918), a quem a música faz referência. O Império Alemão chegou ao fim depois da Primeira Gurerra Mundial. 27 A composição Samba de Nego, com letra de Baiano e música de Pixinguinha foi gravada pela Odeon, registro número 10.111-a em 1928. A palavra samba nesse contexto assume um sentido de festa e não de gênero musical, o que é muito recorrente nesse período. Acaçá é uma comida afro-baiana, “uma pasta de farinha de arroz ou de milho, com água e sal, cozida em ponto de gelatina, envolta, ainda quente, em porções grandes, em folhas verdes de bananeira da preferência de vários orixás, como Oxalá (de arroz e sem sal), Nana, Ibêji, Yemanjá e também Exu (feita de milho)”. Aberém “é um bolo de massa de milho ou arroz, amolecido na água e moído na pedra, misturado com açúcar e ligeiramente aquecido, é enrolado em folhas de bananeira, atado com fibras do tronco, sendo então cozido no vapor”. É comida votiva de Omolu e Oxumarê. Cacciotore, Olga Gudolle. Op. cit.,p.34-36. As conotações afro-religiosas desta e de outras composições serão analisadas no terceiro capítulo. 28 Música de autoria de Pixinguinha e Baiano. Cantada por Francisco Alves. Odeon, nº10.130-a,1928. 29 Todorov, Tzvetan. Os gêneros do discurso. São Paulo: Martins Fontes, 1980, pp. 279-278.

538

O pictorialismo na fotografia brasileira: a revista Photogramma e o debate sobre a fotografia artística no Brasil

Catia Silva Herzog Mestre em História/PUC-Rio Email: [email protected]

Resumo: A questão da fotografia como arte se manifestou de forma explícita na produção fotoclubista, que podemos observar através da revista Photogramma, publicação oficial do Photo Club Brasileiro, editada no Rio de Janeiro entre 1926 e 1931, completando um total de 44 números. Na revista é possível acompanhar o debate crítico sobre o pictorialismo em suas primeiras manifestações no Brasil. Os artigos e críticas publicados tratavam exclusivamente da prática da fotografia artística, isto é, desvinculada dos propósitos utilitários da fotografia profissional. Palavras-chave: fotografia, arte, pictorialismo Abstract: The question about the photography as a fine art appear on the photoclubist production, that we can observe by their official publication, the Photogramma magazine, published at Rio de Janeiro, between 1926 and 1931, completing 44 editions. In this magazine we can follow the critical debate about the pictorialism on its first’s apparitions in Brasil. The articles and reviews published there were exclusively about the artistic photography, apart from the utilitarian goals of the professional photography. Key words: photography, art, pictoriality

O tema deste trabalho é o pictorialismo na memória da fotografia brasileira e sua ressonância na atualidade, mais especificamente no debate artístico que envolve a prática da fotografia. Isto significa que, ainda que o estudo deste tema suponha uma investigação sobre o pictorialismo como movimento próprio do século XIX na Europa, e este seja o ponto de partida desta proposta de

539

investigação, o nosso propósito é colaborar na construção da memória da fotografia brasileira (em cuja tradição podem permanecer vestígios do movimento pictorialista europeu) e obsevar sua permanência e/ou ausência na prática fotográfica contemporânea. Portanto, ainda que o pictorialismo como movimento histórico esteja encerrado, permaneceria na prática fotográfica contemporânea, certa valorização dos aspectos pictóricos que a fotografia pode apresentar. A valorização destes aspectos pictóricos na fotografia fundamenta este trabalho, calcado na construção da memória do primeiro veículo de mídia impressa dedicado exclusivamente à fotografia artística no Brasil. Poderíamos nos esquivar do termo pictorialismo, adotando seu correlato pictorialidade. Contudo, pictorialidade admite a ideia de uma possibilidade intrínseca a uma linguagem e não contempla a intenção do artista de alcançar determinados efeitos e mensagens estéticas. O pictorialismo se apresenta mais como um sintoma do que como uma qualidade inerente à fotografia. É exatamente o marco pictorialista na fotografia brasileira que, com raras exceções, a história da fotografia esquece ou ignora. O movimento pictorialista, de orientação academicista, ocorreu no século XIX, inicialmente na França e Inglaterra, como reação ao barateamento da produção fotográfica e ao auge de sua industrialização1. Seus adeptos eram, em geral, oriundos de associações, grupos e clubes de amadores da fotografia que, através de processos e técnicas pré-industriais como o bromóleo, o uso intenso do flou ou a simples viragem, procuravam dotar a fotografia de um caráter artesanal ou artístico, revestindo sua prática de valores da pintura e transformando a cópia fotográfica em obra única. Logo, o pictorialismo se estendeu aos Estados Unidos e, tardiamente, ao Brasil. Pode-se dizer que o pictorialismo atravessa a história da fotografia e se confunde com a questão da fotografia como arte2. Sua origem está associada ao trabalho do fotógrafo Oscar Reijlander (1813-1875), que combinava os negativos de modo a obter fotomontagens de caráter moralista, como “Os dois caminhos da vida”, de 1857, onde procura figurar a dicotomia entre prazer e dever, representando, de um lado da imagem, a vida para aquele que se entrega aos prazeres e, do outro, a vida para aquele que cumpre seu dever. Além do trabalho pioneiro de Reijlander, Henry Peach Robinson (1830-1901) e Peter Henry Emerson (1856-1936) contribuíram na configuração do movimento pictorialista: Robinson, à moda de Reijlander, combinava negativos e recorria a qualquer artifício para acentuar a expressividade do 2

540

fotógrafo. Já Emerson, rejeitava qualquer intervenção que não fosse considerada fotográfica, na cópia ou no negativo. Nos Estados Unidos da América, o pictorialismo derivou para a busca das qualidades propriamente “fotográficas” da fotografia, enaltecendo sua modernidade e objetividade3. O movimento pictorialista norte-americano, capitaneado por Stieglitz a partir de 1902, sofreu, segundo Amar, em 1907, um desvio de sua orientação inicial: seus principais membros adotaram a prática da “fotografia direta” ou “straight photography”, que promoveu uma ruptura com os padrões convencionais da fotografia pictorialista, exaltando as características próprias do meio fotográfico. Pode-se considerar que na modernidade da straight photography é possível antever a relação de proximidade que a arte contemporânea estabelece com a realidade, distanciando-se dos cânones mais idealistas do modernismo4. A imagem mais representativa da Straight Photography é provavelmente uma fotografia de Edward Weston5: Pimentão Nº 30, 1930. Aproveitando ao máximo a objetividade da câmera fotográfica, Weston apresenta uma imagem sensual, que mais parece um corpo retorcido ou um casal, provocando surpresa quando se reconhece ali um simples legume. Weston procedeu da mesma forma com alcachofras, abobrinhas e repolhos. Suas imagens despertaram tal interesse que, a partir daqui, podemos falar de um cânone estabelecido pela fotografia moderna: aproveitar a proximidade e nitidez da câmera fotográfica para revelar a beleza própria das coisas, explorando o quase abstracionismo dessas imagens, que se tornam tão clichês quanto aquelas pertencentes à tradição pictórica mais academicista. Segundo Amar, A utilização da fotografia para criar formas abstratas a partir da natureza – grandes planos da casca das árvores, líquenes nas rochas, chapas oxidadas, paredes e muros decrépitos, fendas no macadame – favoreceu a eclosão de uma certa forma de abstração pictórica.

No Brasil, o pictorialismo está estreitamente associado à atividade dos membros dos fotoclubes, em especial o Photo Club Brasileiro (Rio de Janeiro, 1910) e, posteriormente, o Foto Clube Bandeirante (São Paulo, 1939). De acordo com Helouise Costa, (...) na virada do século, formou-se uma vasta camada de aficionados, socialmente definida, que se constituiu num novo e promissor mercado de consumo. Afirmou-se o fotoamadorismo e a fotografia deixou de ser uma atividade de iniciados para se alçar como uma prática realmente democrática. Ela passa a circular em toda parte e sua

541

onipresença satura a sociedade moderna. O movimento fotoclubista surgiu como uma reação amadorista à massificação da produção fotográfica predominante6.

Segundo Iatã Canabrava7, no início do século XX no Brasil, criou-se uma rede de intensa colaboração entre amadores da fotografia, com a troca de correspondências, realização de exposições, conferências, encontros fotográficos e a publicação de periódicos voltados para a prática fotográfica. Reproduzindo a polêmica que acontecia nos Estados Unidos e na Europa, no Brasil a questão da fotografia como arte se manifestou de forma explícita na produção fotoclubista, que podemos acompanhar através da revista Photogramma, editada no Rio de Janeiro entre 1926 e 1931, objeto desta investigação. Para Bandeira de Mello, “ao longo de sua existência a Revista Photogramma deixa entrever tensões, contradições e rupturas no interior do movimento pictorialista” 8 brasileiro. Desta forma, na revista é possível acompanhar o debate crítico sobre o estatuto artístico da fotografia em suas primeiras manifestações no Brasil. No Photo Club Brasileiro, a discussão inicialmente se polarizou entre os adeptos de uma intervenção na cópia fotográfica à maneira dos pintores e do pictorialismo europeu, e os que advogavam pela consolidação de um vocabulário próprio da fotografia, mais próximos do ideário da fotografia direta, como os norte-americanos. Os defensores desta compreensão da fotografia eram contrários, por exemplo, ao retoque fotográfico, que falsearia a verdade da arte fotográfica9. Os adeptos desta visão eram chamados de “puristas”. Aqueles que defendiam para a fotografia o mesmo tratamento dado à pintura, ficaram conhecidos como “intervencionistas”10. Maria Teresa Bandeira de Mello, entretanto, observa que a atitude dos “intervencionistas”, visava menos a igualdade entre fotografia e pintura do que a negação de um idealismo purista, próprio do modernismo nas artes: a questão não seria “a associação entre fotografia e pintura, mas a negação de uma verdade artística única e absoluta”.11 Na revista Photogramma, a solução do embate entre puristas e intervencionistas se dá provisoriamente nos números 23 e 24, do ano de 1928: uma mudança da linha editorial expande o alcance da revista, que passa a dedicar matérias a todo o universo da prática fotográfica, da indústria e comércio à cinematografia e fotojornalismo12. No número 25, entretanto, a revista retoma a linha editorial anterior, voltando a dedicar-se apenas a produção fotográfica considerada “artística”.

542

Ainda que o movimento pictorialista tenha circunscrito a discussão acerca do estatuto da fotografia a cânones estéticos provenientes da pintura, é inegável seu papel na configuração do campo de reflexões sobre a fotografia como uma arte visual específica. Assim, o pictorialismo pode ser considerado o ponto de partida para a construção da memória da fotografia artística brasileira e os debates originados na revista Photogramma como momento inaugural das relações entre fotografia e arte contemporânea. Atualmente, quando a fotografia pode ser considerada plenamente estabelecida como arte e sua sofisticada tecnologia é acessível a milhares de pessoas, surpreende a utilização de técnicas préfotográficas ou artesanais por artistas e fotógrafos contemporâneos: Sebastião Barbosa fotografa com câmeras construídas por ele mesmo13, artistas do coletivo Filé de Peixe realizam uma série de experiências com goma bicromatada e cianotipia14. Também é conhecido o trabalho de Paula Troppe com câmeras pinhole15. O fotógrafo francês Bernard Plossu, utiliza extensamente o flou em suas imagens. Mesmo a fotorreportagem comprometida com causas políticas, como no caso de Sebastião Salgado, revela uma acentuada predileção por imagens construídas como belas imagens de situações e eventos abomináveis. Vale ainda ressaltar, neste cenário, a importância que a câmera pinhole e o trabalho em laboratórios analógicos adquirem nos planos de estudos de cursos do ensino médio, dentro das disciplinas de Artes16. Neste contexto, pode-se observar uma retomada de práticas e debates que aproximam a fotografia de suas práticas pictóricas e pré-fotográficas. Esta retomada pode se apresentar como um sintoma da reação aos novos meios de produção tecnológica da fotografia, que inclusive repete, em seus programas e filtros, as formas da fotografia artesanal e artística. Isso demanda um aprofundamento da investigação sobre o pictorialismo, sua assimilação pela sociedade brasileira e sua reverberação na atualidade. A discussão sobre o pictorialismo na fotografia e o caráter pictorialista de algumas fotografias, é dificultada por uma abordagem que tradicionalmente entende o pictorialismo como um academicismo superficial e edulcorado. A maioria das referências na história da fotografia o coloca como um movimento estético reacionário e elitista que procura subjugar a fotografia aos movimentos pictóricos do século XIX - como o impressionismo, o realismo, o romantismo e o neoclassicismo. O prefácio de Ângela Magalhães ao livro Arte e Fotografia: o movimento pictorialista no Brasil, qualifica o pictorialismo como um movimento “pré-moderno”17. Vale ressaltar que, para a

543

autora, Bandeira de Mello, a consolidação da República no Brasil supôs uma importação de “formas artificiais do cosmopolitismo” europeu e americano, e a cidade do Rio de Janeiro foi o “centro de recepção e difusão destes valores cosmopolitas”. Contudo, ainda segundo Bandeira de Mello, “é nessa ambiência que o desenvolvimento de novas visões sobre a arte se torna possível”18. Assim, este seu raro estudo talvez seja o primeiro a considerar a ambivalência inerente à fotografia e à própria modernidade, mesmo que para elucidar o lugar e a permanência do pictorialismo na fotografia brasileira seja necessário ainda muito trabalho. Frequentemente, o papel da cidade do Rio de Janeiro no contexto do movimento modernista brasileiro é visto como secundário. Esta visão diminui a importância da capital no contexto do modernismo, assim como a contribuição carioca em áreas como a caricatura, o cinema, a publicação de periódicos e a fotografia. Segundo Antonio Edmilson, A fotografia é outra expressão desse movimento que mostra como o Rio associava às novas atitudes uma combinação de ciência e técnica. Prova disso está no número de fotógrafos e estabelecimentos fotográficos: na década de 1890, eram 54. A iniciativa deu origem a um dos produtos mais interessantes da inquietude modernista na cidade, o Photo Club Brasileiro, que serviu de canal de divulgação da estética e da visualidade por meio de sua revista Photograma e de Guerra Duval, um dos seus líderes19.

É neste contexto de modernidade específico ao Rio de Janeiro que devemos considerar a atuação dos membros do Photo Club Brasileiro e, portanto, é também sob este ponto de vista que devemos analisar sua publicação oficial. Bandeira de Mello observa que “a fotografia é a marca do novo tempo e um dos símbolos dessa modernidade” e que o pictorialismo internacional, adotado pelos fotoclubistas brasileiros, é o que possibilita a “concepção artística da fotografia”20. Entretanto, Helouise Costa e Renato Rodrigues, em seu livro “A fotografia moderna no Brasil”21, ressaltam o caráter conservador e elitista da fotografia pictorialista: Toda a tradição burguesa se fazia presente: a honra ultrajada, o desafio, a igualdade de condições e o vencedor. Em suma, essa estrutura refletia a mentalidade arrivista de uma camada social que em pleno século XX discutia a fotografia segundo os ideais românticos da ‘arte pela arte’ e cuja produção ocupava o lugar do lazer, do hobby de fim de semana.

Da mesma forma, Pierre-Jean Amar menciona como “estas fotografias xaroposas contribuíram muito para darem uma má imagem ao picturalismo”22.

544

A concepção do pictorialismo como um movimento, mais que retrógrado, ridículo, obscurece a compreensão da fotografia artística contemporânea, uma vez que a maioria de seus pensadores tende a desprezar ou mesmo omitir seu caráter pictórico. Maria Teresa Bandeira de Mello observa que, (...) a importância de trazer o pictorialismo para o presente se dá pela necessidade de facultar àqueles que lidam com a fotografia, a apreensão das características de um movimento artístico que ainda hoje influencia diversos artistas. Assim é que passado e presente se misturam nas atuais práticas artísticas, sendo fundamental localizá-las no passado para o entendimento de suas consecutivas inserções nas discussões contemporâneas23.

Segundo Ana Maria Mauad, se pode constatar a partir da fotografia, “a construção de uma comunidade de imagens em torno de determinados temas, acontecimentos, pessoas ou lugares (...). Tais imagens corroboram o processo de construção de identidades sociais, raciais, políticas, étnicas, nacionais etc.”24. Neste sentido, Mauad aponta “a capacidade da linguagem fotográfica em agenciar um discurso político que tanto elabora uma opinião pública sobre o que registra como cria um imaginário social sobre seus objetos de registro”25. Assim, a autora reafirma a importância da fotografia no processo de constituição da identidade de uma cultura: não apenas através do registro de bens, tradições e personalidades emblemáticos na história, mas também através dos discursos induzidos e traduzidos pelas imagens. Boris Kossoy atenta para que “as imagens são sustentáculos da memória; e podem ao mesmo tempo, constituírem instrumento de manipulação política e ideológica” 26. A partir

desta

observação, podemos pensar também em termos de construção e ou imposição de um padrão artístico na fotografia deste período na capital do país, induzido pela elite que formava o corpo editorial da revista. O pictorialismo, no caso da fotografia brasileira, possibilitou a consolidação da fotografia moderna e foi um dos momentos mais emblemáticos de sua história. Contudo, a importância da investigação sobre o pictorialismo brasileiro não se reduz ao debate estético no período em que a revista Photogramma foi publicada. Quando a revista se extinguiu, em 1936, as atividades e concursos do Photo Club Brasileiro passaram a ser publicados na imprensa local, fortalecendo a colaboração entre fotoamadores e fotojornalistas: (...) o noticiário do fotoclube passou a ser veiculado em diferentes jornais e revistas do Rio de Janeiro, tais como: O Globo, Beira-Mar, Revista da Semana, Careta, O Cruzeiro

545

e Revista de Copacabana. Além da divulgação das atividades do Photo Club Brasileiro, esses órgãos da imprensa contavam com a colaboração de vários associados do fotoclube para a ilustração de suas páginas27

Esta colaboração se estabeleceu especialmente na revista O Cruzeiro, veículo fundador da história da fotografia de imprensa no Brasil28 e, de acordo com Mauad, fundamental no processo de constituição da identidade cultural brasileira29. Assim, a importância da revista transborda o âmbito da arte e se situa no cruzamento da história da fotografia e da memória da cidade do Rio de Janeiro e dos principais atores deste debate. Além disso, a revista revela a condição da fotografia como artefato industrial e próprio da modernidade, traduzindo para a realidade brasileira as principais questões que formavam o debate sobre a arte moderna: a dualidade entre representação e expressão. Anunciada ao público francês como registro preciso da realidade, desde o início de sua história a fotografia ultrapassou seu caráter documental para se lançar à busca pela beleza. Walter Benjamin ressalta que o “apogeu da fotografia” data dos anos 1840, “primeiro decênio da nova descoberta” e que “precede a sua industrialização”30. Para Benjamin, a reprodutibilidade técnica, que subverte conceitos tradicionais como “criatividade e gênio, validade eterna e estilo, forma e conteúdo” 31, determina uma mudança definitiva na percepção da arte: a industrialização da fotografia possibilita a aproximação das massas da obra de arte, abalando o valor de culto que tradicionalmente lhe conferia sua aura:

Fazer as coisas ficarem próximas é uma preocupação tão apaixonada das massas modernas como sua tendência a superar o caráter único de todos os fatos através de sua reprodutibilidade técnica.32

Pode-se observar que o momento de industrialização da fotografia (e de abalo da aura da obra de arte) corresponde ao pictorialismo. Portanto, da mesma forma que o movimento pictorialista do século XIX se constituiu como reação ao desenvolvimento técnico da fotografia, talvez seja possível observar na prática fotográfica contemporânea uma reação à disseminação massificada da fotografia digital. Na prática artística contemporânea se delinearam novas configurações estéticas acerca da função do espectador diante da obra de arte, assim como novas formas potenciais de expressão no espaço urbano, que conduzem a prática fotográfica para a busca de terrenos mais estáveis, como por exemplo, o terreno da pintura. A fotografia hoje reproduz, no mercado de arte, as

546

mesmas

preocupações em relação à “originalidade”, tema e assinatura e introduz, à moda da gravura, a tiragem da obra. A popularização de programas informáticos que conferem às fotografias digitais a aparência de imagens antigas, em preto e branco ou em tons de sépia, de pinhole, de arte pop, ou mesmo de gravuras e relevos, mostra que a técnica empregada na realização da imagem fotográfica interessa mais ao especialista ou ao artista do que ao público - para este importa o resultado, o efeito – e revela também que este se refugia em posições já estabelecidas da arte, no mesmo movimento realizado pelo pictorialismo do século XIX.

1

MELLO, Maria Teresa Bandeira de. Arte e fotografia: o movimento pictorialista no Brasil. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1988. p. 80. 2 Segundo Susan Sontag, a história da fotografia se desenvolve entre sua busca pela beleza e/ou pela veracidade. In: SONTAG, Susan. Sobre la fotografia. Barcelona: Edhasa, 1996. p. 95. 3 Ibid., p. 81. 4 AMAR, Pierre-Jean. História da fotografia. Lisboa: Edições 70, 2011, p. 89. 5 Ibid., p. 94. 6

COSTA, Helouise e RODRIGUES, Renato. A Fotografia Moderna no Brasil. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ: IPHAN: FUNARTE, 1995. 7 Catálogo da exposição “Fragmentos: modernismo na fotografia brasileira” 8 MELLO, Op. Cit., p. 75. 9 Ibid., p. 78. 10 Ibid,. p. 80 11 Ibid., p. 79. 12 Ibid., p. 81. 13 Entrevista concedida pelo fotógrafo. In: http://www.petropolis.rj.gov.br/fct/index.php/servicos/guiaspetropolis-categoria/214-perguntas-inquietantes-exposicao-de-fotografia-de-sebastiao-barbosa.html. Acesso em 18/03/2015. 14 Ver relatos do coletivo sobre a Residência em Processos Artísticos/2015. In: http://www.labclube.com/#!ACIANOTIPIA-NA-ERA-DA-REPRODUTIBILIDADE-FOTOGRÁFICA/c4my/A58D31E7-16EB-4F23-A951AA631CF21C6A. Acesso em 15/02/2015. 15 Ver referência sobre o trabalho da artista in: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo3862/fotografiaburaco-de-agulha . 16 O Colégio de Aplicação da UERJ, oferece a disciplina “Tópicos Especiais em Fotografia”, onde se prevê a construção de pinholes e o uso de laboratório analógico. In: http://www.cap.uerj.br/site/images/stories/ementarios_nivel_superior/artes/tipicos%20especiais%20em%20f oto.pdf . Acesso em 02/04/2015. 17 MELLO, Op. Cit., p. 11. 18 Ibid., p.65. 19 RODRIGUES, Antonio Edmilson Martins. “Que 22, que nada...”. In: Revista de História, 01/02/2012. Disponível em: http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos-revista/que-22-que-nada. Acesso: 20/08/2014. 20 MELLO, Op. Cit., p. 66. 21 COSTA, Helouise e RODRIGUES, Renato. A Fotografia Moderna no Brasil. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ: IPHAN: FUNARTE, 1995. p. 30. 22 AMAR, Op. Cit., p. 88. 23 MELLO, Op. Cit., p.11.

547

24

MAUAD, Ana Maria. O Olhar engajado: fotografia contemporânea e as dimensões políticas da cultura visual. In: ArtCultura, V. 10, Nº 16, Jan.- Jun. 2008. P. 37. 25 Idem. 26 KOSSOY, Boris. Os tempos da fotografia: o efêmero e o perpétuo. Cotia,SP: Ateliê Editorial, 2014. P. 105. 27

MELLO, Op. Cit., p. 72. No início da década de 60 a tiragem da revista O Cruzeiro alcançou a tiragem de 720.000 exemplares. In: PEREGRINO, Nadja. “O Cruzeiro”: a revolução da fotorreportagem. Rio de Janeiro: Dazibao, 1991. 29 Bandeira de Mello observa o papel da cidade do Rio de Janeiro, então capital federal, tem na construção da própria ideia de nação brasileira. In: MELLO, Op. Cit., p. 66. 30 BENJAMIN, Walter. “Pequena história da fotografia”. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 91. 31 Idem, “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”. p. 166. 32 Idem, p. 170. 28

548

De Berlim a Washington: o papel da FEB na aliança militar Brasil-EUA. César Alves da Silva Filho Mestrando em História do Brasil – UNIVERSO Especialização em História e cultura afrodescendente – PUC-RIO Orientador (a): Prof. Dra. Angélica Muller Co-orientador (a): Prof. Dra. Maud Chirio [email protected] Resumo O presente artigo tem como objetivo demonstrar como a campanha da FEB ajudou a influenciar grande parte do alto escalão das forças armadas e do poder político no Brasil. A atuação direta dos militares na política brasileira, principalmente a partir da segunda metade do século XX, tem um papel fundamental nos rumos tomados pelo país. Tentar compreender como este grupo pensava e quais influências políticas receberam é a proposta principal deste trabalho. Palavras- chave: Exército, EUA, Brasil. Abstract This article aims to demonstrate how the campaign FEB helped influence much of the high-ranking military and political power in Brazil. The direct involvement of the military in Brazilian politics, especially from the second half of the twentieth century, has a key role in the direction taken by the country. Trying to understand how this group thought and what political influences received is the main purpose of this work Key- words: Army, USA, Brazil. Os anos 1940 foram muito conturbados na história política brasileira, mas para entendermos esse momento, precisamos voltar ao ano de 1937, ano em que o então presidente Getúlio Vargas instituiu o Estado Novo. Segundo a Historiadora Eli Diniz, esse período se caracteriza por um Estado forte, centralizado e apartidário1. Coube ao chefe do Estado-Maior, General Góis Monteiro preparar a falsa conspiração que daria início ao golpe: o Plano Cohen. Como era de praxe, o Plano Cohen foi enviado ao Ministro da Justiça, que averiguou as informações, acrescentando umas novas e preparou uma mensagem que mais tarde seria enviada do Executivo para o Legislativo, decretando estado de guerra em todo o País. Os deputados, ao aceitarem tal mensagem, decretaram seu próprio fim e dessa maneira, em 10 de novembro de 1937, o governo envia uma equipe militar para fechar as duas casas do Congresso. 549

É interessante o depoimento da imprensa internacional sobre o governo. Roland Hall Sharp, um correspondeste especializado em assuntos latino-americanos, jornalista da revista Editor & Publisher, escreve em 27 de maio de 1944 sobre o caráter fascista do governo no que diz respeito à censura da imprensa, pelo menos esse era o sentimento da época: Brasil, Paiz (sic) sem liberdade Suntuosas instalações para a imprensa, abarrotadas de poltronas e dotadas de todas as facilidades para o seu trabalho, estão sendo montadas, visando com isso, te-la sempre à vista, sob vigilância permanente. [...] O DIP, dirigido

pelo

melífluo e geitoso Amílcar Dutra, é o órgão encarregado da prostituição da imprensa. É tudo quanto um ditador fascista poderia exigir. Qualquer redator de um jornal independente sentir-se-ia enojado no seu recinto.2

Se por um lado existia um forte autoritarismo no governo, por outro também se percebe o nacionalismo intervencionista. Nota-se então que os interesses dos militares e da burguesia industrial se estreitariam de maneira íntima, tendo em vista que a cúpula militar passa a ver na industrialização do Brasil uma ferramenta básica para aumentar o poderio bélico. Dessa forma, a questão siderúrgica tornou-se tema principal na pauta do Governo. Parece evidentemente claro, que a participação dos militares na gênese da ditadura varguista e uma confluência de interesses entre o capital industrial e o EstadoMaior levaria o país a um caminho que desembocaria no desenvolvimento industrial. A historiadora Ângela de Castro Gomes nos oferece uma importante visão sobre o recuo de governos constitucionais nos anos de 1920 e 1930. Nesse sentido, chega a citar Hobsbawm para lembrar esse foi um fenômeno global e não somente do Brasil. Nos anos de 1920 eram 35 governos com tais características, em 1938 este número se reduz para 17 e em 1944, apenas 12 governos.3 No plano internacional, Getúlio Vargas aproximava-se cada vez mais do Eixo, e internamente, o aperto ideológico era facilmente percebido. Na academia militar e nas escolas preparatórias, o exame de admissão tinha rigorosos padrões. Do Gabinete do Ministro, foi elaborado um documento que em seguida foi baixado aos comandantes, que determinava a mais severa proibição de inscrição e matrícula aos filhos de judeus, às pessoas de cor, aos de origem humilde e aos filhos de casais separados por qualquer motivo.

550

O historiador Fernando da Silva Rodrigues é bastante elucidativo neste ponto. Sua pesquisa aponta claramente que o concurso de admissão para o corpo de oficiais do Exército se tornava cada vez mais rigoroso. No período de 1937 a 1945 a restrição de negros, judeus e mulçumanos na escola de formação de oficiais era uma prática comum4. Ficava na responsabilidade do comando, junto com as autoridades policiais, investigar as informações sobre os candidatos e repassar aos superiores para que, depois de averiguadas todas as exigências, e inclusive, o posicionamento ideológico dos mesmos, fossem aceitos nas escolas. Os anos posteriores à ascensão de Hitler ao poder, a Alemanha passa a ser o maior parceiro do Brasil comercialmente, sendo seguido pelos alemães em 1938 o princípio da política de compensação, ou seja, o perfeito equilíbrio entre as exportações e as importações. O que era exportado era pago com marcos de exportação, o que possibilitava a importação. Essa política alertava cada vez mais os EUA por terem o principal país da América do Sul flertando com Berlim. No interior da alta cúpula militar, as vitórias alemãs eram comemoradas de uma maneira intensa. As mais altas patentes das Forças Armadas eram condecoradas por nazistas. No episódio em que uma esquadra inglesa interceptou um barco alemão que carregava armamentos destinados ao Exército brasileiro, o então Ministro da Guerra, Eurico Gaspar Dutra propôs que o Brasil declarasse guerra à Inglaterra. Em 1937, o Brasil fazia intenso comércio com a Alemanha. Já em 1934, ou seja, um ano depois de Adolf Hitler subir ao poder, os alemães adotaram políticas de controle sobre as importações, adotando a política de marcos de compensação, ou seja, politicas especiais destinadas a limitar ao mínimo seus gastos em divisas conversíveis5, o que dava à Alemanha total controle sobre as importações, sendo o ano de 1938 o auge desta política. Segundo Marcelo Paiva de Abreu: Ao se examinar a estrutura do comércio entre Brasil e Alemanha nos anos que precederam os esquemas compensatórios, observa-se claramente que o saldo comercial tendia a ser favorável ao Brasil. Desse ponto de vista, portanto, o acordo de compensação que a Alemanha logo proporia seria mais favorável à Alemanha que ao Brasil6

De 1937 a 1941, o Ministério da Guerra firma uma série de contratos secretos com empresas alemãs, dentre elas a Matra-Werke G.M.B.H., Krupp e Carl Zeiss, os 551

mesmos fornecedores do Exército nazista, para compra de materiais bélicos 7. Em outro contrato, o Governo brasileiro confirma a compra de aparelhagens ópticas com a empresa alemã Carl Zeiss: A importância a ser paga em libras esterlinas será convertida em

marcos

allemaes (sic) conforme a cotação do marco em Londres do dia útil anterior do dia do pagamento, e remetida a Carl Zeiss8.

Muitos destes contratos eram redigidos em francês, pois era o idioma que os oficiais brasileiros compreendiam com uma maior facilidade, sobretudo pela influência da missão francesa. O General Dutra, quando tomou posse no Ministério da Guerra em 1936 era conhecido por seus esforços em proporcionar o mais moderno material bélico para a tropa9. Os alemães pareciam ser os mais capazes de fornecer este material bélico tão desejado pelo Exército brasileiro. Mais que isso, o projeto siderúrgico nacional, que também era uma preocupação militar, era totalmente apoiado pelos nazistas tão logo a guerra na Europa acabasse.10 Dessa maneira, poderemos observar que o comércio com o Estado Novo era intenso e que a Alemanha obtinha várias vantagens com esse acordo. Vários militares do alto escalão eram claramente favoráveis ao Eixo, como o General Góis Monteiro e o Ministro da Guerra Eurico Gaspar Dutra. A própria estrutura organizacional militar do Exército era copiada do modelo francês, ou seja, a influência dos EUA, do ponto de vista militar, era muito pequena até o final dos anos 1930. Também é importante lembrar que muitos oficiais, durante esta década, eram enviados para estagiar na França. É o caso do Marechal Floriano de Lima Brayner, um militar importante dentro do Exército brasileiro, entrou para as forças armadas em 1918 e já em 1937, quando era major, fez um curso no Exército francês, no 106º RI aprendendo os ensinamentos da missão militar francesa11. Em 5 de julho de 1943, portanto em uma época em que o Brasil se aproxima militarmente dos estadunidenses, Brayner foi estagiar nos EUA, por um período de dez semanas. Já em 30 de outubro de 1945, este oficial foi adido militar do Brasil em Roma, recebendo elogios do embaixador sobre seu ótimo relacionamento com os norteamericanos. Em 30 de julho de 1956 foi designado para exercer a função de assessor militar na missão do Brasil junto às nações unidas e no fim de sua carreira, quando era General

552

de Exército, foi convidado pelo chefe da delegação americana da comissão militar mista Brasil-Estados Unidos e pelo chefe do Estado-Maior de Portugal para ir ao Panamá assistir manobras do Exército. Talvez um dos mais importantes personagens brasileiros do pós-guerra seja o Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco, sua vida militar e política são muito relevantes. Quando ainda era 1º Tenente, matriculou-se na Escola de aperfeiçoamento de oficiais em 1924 se formando com uma das maiores notas um ano depois. No ano de 1929 o jovem oficial inicia o curso de Estado-Maior, se formando em 1932 com a maior nota da turma. Ao atingir o posto de capitão, foi matriculado na Escola Superior de Guerra em Paris. Castelo Branco se revelava um distinto oficial, mas a influência norte-americana ainda não era percebida, pelo menos por enquanto. Atuando como professor da Escola de Estado-Maior, ministrava aulas de tática geral quando foi convocado para ser um dos responsáveis pela organização da FEB, sendo durante a campanha de guerra, chefe da 3ª seção do Estado- Maior. No entanto, em 1943 que é designado para estagiar por um período de 10 semanas nos Exército americano. Esse período foi um momento chave para a história política brasileira. Castelo Branco estagiou na 85ª divisão de infantaria americana em 1944. A aproximação com os americanos parecia ser cada vez maior, fato esse que em 6 de julho de 1945, em uma cerimônia militar realizada em Alexandria, o comandante do V Exército americano, General Truscott, além de elogiá-lo pessoalmente por seu desempenho na 3ª seção, lhe entrega a condecoração Bronze Star12. Após a Guerra, agora como coronel, foi nomeado diretor de ensino do EstadoMaior do Exército brasileiro e certamente aplicou seus conhecimentos adquiridos junto aos EUA para o aperfeiçoamento da instituição. Em 19 de setembro de 1946, quando Eisenhower era o presidente estadunidense, sua atuação como diretor foi elogiada com veemência pelo chefe de Estado. A influência francesa na educação doutrinária do Exército brasileiro pode ser percebida inclusive, após a criação da ESG13. Segundo o cientista político João Roberto Martins Filho14, em 1959, portanto, três anos antes do presidente estadunidense John Kennedy promulgar o Memorando de Ação de Segurança Nacional 124, que inaugura a era da contra- insurreição nos EUA, os militares brasileiros, recebendo influência da Escola Superior de Guerra de Paris, já falavam em combater a guerra revolucionária e subversiva.

553

Desta forma, o autor deixa claro que quando os estadunidenses começaram a falar em combater a subversão no continente, os militares brasileiros, por meio da ESG, já recebiam este tipo de ensinamento dos franceses, isso porque o Exército francês tivera uma experiência com este tipo de guerra na Argélia e na Indochina. Portanto, mesmo recebendo grande influência doutrinária dos EUA, os ensinamentos dos franceses não foram completamente deixados de lado. Esta aproximação militar com Washington se intensifica de fato no início dos anos de 1940. O posicionamento do Brasil em sua política Internacional começa a mudar a partir de 1941, ano chave para história da Segunda Guerra. Na manhã de sete de dezembro deste ano, a base naval de Pearl Harbor, situada no Havaí foi atacada pela Marinha

Imperial

Japonesa, danificando uma série

de

navios e

matando

aproximadamente 2300 pessoas. As bases militares no nordeste brasileiro, pela sua proximidade com o norte da África, seriam importantes para o início da operação TORCH15 e para a própria segurança do hemisfério sul, já que submarinos alemães eram percebidos com frequência naquela região, por isso, a posição estratégica que o Brasil tinha era muito cobiçada pelos estadunidenses. De fato, o Brasil se tornava um aliado de valor, pelo menos naquele momento para os EUA, e por esse motivo, a diplomacia norte-americana tinha que fazer o possível para se aproximar politicamente do Estado Novo, que tinha figuras do alto escalão do governo declaradamente favoráveis ao Eixo. A partir do início dos anos de 1940, isso de fato acontece. Com a entrada dos EUA na guerra, Washington passa a enxergar o Brasil com outros olhos e a participação da FEB lutando ao lado da tropa americana deu uma enorme contribuição para a consolidação da aliança militar Brasil- EUA. Em seu estudo sobre a participação dos militares na política, Hélio Silva afirma: Em seu trabalho, Alfred Stepan acentua que a influência que teve a permanência da FEB de oficiais que de lá voltaram trazendo uma outra concepção política, notadamente em relação aos Estados Unidos. Um deles, o então comandante da artilharia Gen. Osvaldo Cordeiro de Farias, organiza e dirige a Escola Superior de Guerra que vai formar a doutrina, segundo a qual, aquele autor conclui que os militares se preparam para a conquista e exercício do poder16.

Tendo em mente que o governo de Getúlio Vargas flertava com o Eixo e a partir de certo período a influência dos Aliados, leia-se EUA, se tornava cada vez maior,

554

o alto oficialato do Exército brasileiro cada vez mais recebia a influência norte – americana, tanto militarmente, quanto ideologicamente. Ângela de Castro Gomes é bastante elucidativa no que se trata da guinada do governo de Getúlio Vargas a partir de 1942: O período de 1939 a 1941 foi de franco endurecimento do regime; porém, já em 1942, o projeto político do Estado Novo começava a sofrer transformações. Nessa perspectiva, pode-se dizer que, durante os anos que vão de 1937 a 1941, o estado Novo se configura como um certo perfil e, a partir de 1942, tora-se um “novo” Estado Novo. A dinâmica e o sentido dessa transformação são fundamentais, pois suas ambiguidades marcam não só o período do pós 1942como toda a vida política brasileira do pós-4517.

A posição do Brasil em relação à política internacional preocupava a Casa Branca desde 1940. A ditadura brasileira estava conhecendo um impasse, pois no ano seguinte, ficava cada vez mais claro a participação dos EUA na Guerra e pressões vindas desse país começaram a acontecer no sentido de fazer o Brasil se posicionasse de maneira favorável aos Aliados. Dentro desta perspectiva, o governo estadunidense aprova uma série de acordos com os militares brasileiros, dentre eles o mais importante é o acordo de Leand Lease, que previa inicialmente financiamentos na casa dos $ 200, 000,000 para compra de equipamentos militares18. Nesse sentido, em janeiro de 1942 realizou-se a III Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores das Repúblicas Americanas, realizada no Palácio Tiradentes, no Rio de Janeiro. Convocada por Washington, seu principal objetivo era a total aprovação do rompimento das relações diplomáticas e comerciais dos países americanos com o Eixo. Argentina e Chile se recusaram a romper tais relações. Por fim, os países participantes se comprometeram a cooperar com os esforços de guerra dos Estados Unidos. O governo americano estava disposto a não medir esforços para contar com a ajuda de Getúlio Vargas, comprometendo-se em ajudar o Brasil no seu desenvolvimento econômico em 1940. Foram colocados à disposição do governo empréstimos a logo prazo pelo Export-Import Bank, em troca da cooperação militar brasileira. Após a já citada reunião de Chanceleres americanos na cidade do Rio de Janeiro, em 1942, o Brasil resolveu adotar a linha diplomática dos Estados Unidos. Essa opção causou desconforto e reações por parte dos alemães. O embaixador alemão emitiu

555

uma nota ao Itamarati, datada de 16 de janeiro de 1942, deixando claro que a posição escolhida pelo Brasil, poderia acarretar a eclosão de uma guerra efetiva. Sendo assim, o mês de agosto de 1942 é de extrema importância para se entender os rumos que levaram o Brasil para a Itália. Submarinos alemães torpedearam navios brasileiros em nossa costa e com a conivência de espiões nacionais. Esse episódio foi fundamental para a tomada de decisão do governo brasileiro em entrar na guerra. Esta decisão merece aqui ser analisada, os acordos militares acertados entre Brasil e EUA não foram totalmente cumpridos por estes últimos. Um ano antes da declaração de guerra do Brasil aos países do Eixo, ou seja, em 1941, os EUA oferecem um crédito de 12 milhões de dólares ao Brasil. Dessa forma, os militares brasileiros efetuam uma compra de 6 milhões de dólares em material bélico19. Segundo o historiador Dennison de Oliveira, a lista de pedidos foi: [...] - 75 carros de combates leves - 25 de combate médio - 29 carros blindados de reconhecimento - 40 caminhões de 1 ½ tonelada 4x4 - 50 caminhões de ½ toneladas 4x4 - 235 caminhões de 2 ½ toneladas 4 x4 - 36 caminhões de 4 toneladas de 6x6 - 10 tratores de rodas 6x6 - 20 motocicletas - 100 viaturas triciclo [...]20

Somente uma parte do material encomendado foi entregue em agosto de 1941, gerando uma profunda irritação no general Dutra. A alta cúpula do Exército brasileiro ficou profundamente frustrada com a incapacidade dos EUA em fornecer armamentos necessários para a defesa do Brasil. O mesmo autor aponta que os seguintes materiais foram entregues: - 10 carros de combate leves - 10 carros blindados de reconhecimento Scout car - 35 carros de comando de ¼ de tonelada 4x4 “Bantam” - 50 caminhões Chevrolet de 1 ½ toneladas 4x4 - 10 caminhões Diamond de 4 toneladas 4x4 - 20 caminhonetes Dodge de ½ tonelada 4x421

A partir desta perspectiva, podemos entender o voto contrário do General Eurico Dutra em uma reunião ministerial, em agosto de 1942, convocada pelo presidente

556

Vargas para decidir sobre o rompimento das relações diplomáticas com o Eixo22. A historiografia, por muito tempo, atribuiu esse fato a uma inclinação ideológica por parte de Dutra, mas ao que parece, esta é a explicação mais plausível para essa sua tomada de decisão. Sendo assim, o General Leitão de Carvalho, representante do Brasil na JBUSDC23 em Washington, ficou responsável por tratar com os militares norteamericanos o envio de uma força expedicionária brasileira para lutar na Europa. O governo brasileiro estava sendo pressionado por todos os lados para tomar uma decisão o mais rápido possível. E isso de fato acontece, pois o que se observa é que a partir de 1942 inicia-se um processo, ainda que não formalizado, de missão militar estadunidense no Exército brasileiro, de igual ou até mesmo de maior importância do que a missão militar francesa. Embora este processo não tenha ocorrido sem muitos conflitos internos, tanto no Exército quanto no governo. A formação de uma Força Expedicionária para atuar ao lado dos estadunidenses já se mostra conflituosa. Inicialmente, ficara acertado na reunião do dia 15 de agosto de 1943 na JBUSDC o envio de um corpo expedicionário composto de três divisões de infantaria. No entanto, os EUA mais uma vez não se esforçaram em cumprir os acordos de equipar o Exército brasileiro e esta ideia foi gradativamente sendo posta de lado, sobretudo pela falta de entendimentos entre os generais Leitão de Carvalho, chefe brasileiro na JBUSCD e Dutra, ministro da Guerra. Desta forma, o General Eurico Dutra pede pessoalmente a Marshall tanques mais modernos para equipar o Exército, pois os enviados ao Brasil por parte dos estadunidenses não agradaram o General brasileiro. O mesmo desagrado foi percebido quando os EUA enviaram para o Brasil canhões com calibre inferior ao solicitado.24 O pedido somente não foi atendido como também o governo estadunidense não tinham o menor interesse que os brasileiros tivessem seu próprio parque industrial bélico. Isso significaria que o Brasil não mais precisaria do armamento dos EUA. O historiador Dennison de Oliveira é enfático ao afirmar que o projeto de Washington era monopolizar o fornecimento de armamentos militares para toda a América do Sul.25 De fato, os EUA buscavam tirar o melhor proveito político da FEB, ao colocar brasileiros e estadunidenses lutando lado a lado, Washington se colocava como liderança nas Américas. Por parte dos brasileiros, o interesse era melhorar o posicionamento do Brasil internacionalmente. O governo Vargas pretendia participar

557

das negociações no pós- guerra e o envio da Força Expedicionária Brasileira poderia atender muito bem este propósito. O que parece evidente, é que esta aliança militar iniciou, mesmo que de uma maneira não oficial, uma verdadeira missão militar dos EUA no Brasil, onde os resultados podem ser observados nos anos posteriores ao conflito. 1

DINIZ, E. O Estado Novo: estrutura de poder; relações de classes. In: Boris Fausto (org.), História geral da civilização brasileira. Tomo III: O Brasil Republicano, 3o Vol. Sociedade e Política (1930-1964). 5a ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1991. 2 CPDOC – GV-c 1944.05.27 3 ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, Samantha Viz (ORGS.). A construção social dos regimes autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. P 42. 4 RODRIGUES, FERNANDO. Indesejáveis: instituição, pensamento político e formação profissional dos oficiais do Exército brasileiro (1905-1946). São Paulo: Paco Editorial, 2010. P 155 5 ABREU, Marcelo de Paiva. O Brasil e a economia mundial, 1930-1945. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1999. 6 Ibidem. P 15 7 Fundo de missão de compra de material bélico na Europa- AHEX 8 Idem 9 Pasta coleção de presidentes militares/Dutra- AHEX. 10 FERRAZ, Francisco César. Os brasileiros e a Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. P. 18. 11 Fé de ofício. Pasta XVI-10-7AEB – AHEX 12 Pasta coleção de presidentes militares/ Castelo Branco- AHEX 13 Escola Superior de Guerra 14 FILHO, João Roberto Martins. A influência doutrinária francesa sobre os militares brasileiros nos anos de 1960. Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol. 23, nº 67. Junho/2008. 15 Operação militar realizada pelos EUA de invasão do norte da África como meio de se chegar à Itália. 16 SILVA, Hélio. O poder militar. Porto Alegre: L&PM editores, 1984. P 98 17 ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, Samantha Viz (ORGS.). A construção social dos regimes autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. P 57 18 OLIVEIRA, Dennison. Aliança Brasil- EUA: nova história do Brasil na Segunda Guerra Mundial. Curitiba: Juruá, 2015. 19 Ibidem. P 152. 20 Ibidem. P. 153. 21 Idem. 22 Idem. 23 Joint Brazil United States Defense Commission. Comissão com sede em Washington responsável pelos entendimentos militares entre Brasil e EUA. 24 OLIVEIRA, Dennison. Aliança Brasil- EUA: nova história do Brasil na Segunda Guerra Mundial. Curitiba: Juruá, 2015. 25 Ibidem. P 113.

558

O empreendimento histórico na historiografia americana: a criação da American Historical Association no final do século XIX. César Haueisen Zimerer Perpétuo1 Resumo: O objetivo deste trabalho consiste em mostrar quais foram as principais mudanças no cenário historiográfico estadunidense a partir da criação e do desenvolvimento da American Historical Association e da American Historical Review, no final do século XIX, formando um empreendimento histórico responsável por agir como agente unificador das instituições e profissionais da área de história, tornando-se importante para todo o contexto da historiografia dos Estados Unidos no século XIX e XX. Palavras-chave: Empreendimento Historico, historiografia americana, American Historical Association.

Abstract: The objective of this article is to demonstrate which were the changes in american historiography scenery that came after the creation and development of the American Historical Association and The American Historical Review, in the late 19th century, creating a historical enterprise responsible for de unification of the institutions and professionals of the historical field, becoming important for the context of the United States’s historiography in the 19th and 20th century. Keywords: Historical Enterprise, american historiography, American Historical Association.

A formação do empreendimento histórico norte-americano O historiador Robert B. Townsend em sua obra intitulada History’s

Babel:

scholarship, professionalization and the historical enterprise in the United States, 188019402, utiliza o termo “empreendimento histórico” para caracterizar a forma como a historiografia americana se organizou a partir do final do século XIX e início do XX. O termo já havia sido usado anteriormente por Pierre Caron3 e Charles M. Andrews4 em artigos publicados na American Historical Review, importante revista de história criada neste mesmo período, mas Townsend reforça-o buscando demonstrar como se realizou a criação desse grande e cooperativo projeto histórico. Para ele, no inicio do século XX as várias formas de trabalho que existiram em torno da disciplina histórica no século XIX começaram a se

559

organizar e se unir, principalmente sob a liderança da American Historical Association, criada em 1884, o que causou a interdependência dessas formas de trabalho. As associações nacionais foram espécies de fóruns neutros onde o projeto da profissionalização acadêmica foi desenvolvido, além disso, exerceram um importante papel na definição e delimitação de narrativas, pois o seu estabelecimento e o status que os seus oficiais eletivos adquiriram os tornaram marcos essenciais no desenvolvimento das disciplinas históricas.5 Townsend divide o empreendimento histórico norte-americano em três períodos6: o primeiro (1880 a 1910) seria marcado pela rápida expansão da profissionalização do historiador e do grande crescimento no número de acadêmicos e instituições da área de História. O segundo período (1911 a 1925) seria marcado pelas microprofissionalizações que se tornaram possíveis pela disponibilização de recursos e oportunidades dadas pela American Historical Association. Durante o terceiro período (1926 a 1940) as atividades que surgiram das microprofissionalizações acabam por se separar formalmente da esfera da História se desvinculando da AHA e tornando-se independentes. O objetivo principal desse trabalho será o de analisar o primeiro período desse empreendimento histórico proposto por Townsend, tentando mostrar as principais modificações na historiografia e no trabalho do historiador americano durante o período. Para isso partiremos de um estudo sobre a história da criação da American Historical Association e da American Historical Review7 por acreditar que foram marcos no estabelecimento e manutenção desse empreendimento histórico, e mostraremos a relação dessa idéia apresentada por Townsend com vários conceitos propostos por Pierre Bourdieu em suas obras, utilizando os seus conceitos de habitus8, campo9 e capital10 para descrever as relações profissionais e institucionais que ocorreram no período destacado, ressaltando que tais conceitos devem ser entendidos dentro da sua interdependência, pois sua ligação é tão estreita que tentar considerálos separadamente seria um equivoco.

A criação da American Historical Review e da American Historical Association Em seu livro History and Historians in the Nineteenth Century11, George Peabody Gooch diz que a historiografia americana provavelmente surgiu com Jared Sparks 12, onde este iniciou sérios estudos sobre os escritos de Washington que resultaram na criação de doze volumes que nasceram entre 1834 e 1838. Sparks graduou-se na Universidade de Harvard em 1815 onde, posteriormente, veio a se tornar o presidente entre os anos de 1849 e 1853. Apesar da historiografia americana provavelmente ter surgido com Sparks, os primeiros escritos

560

sobre a História dos Estados Unidos vieram apenas com George Bancroft13 que se graduou em Harvard e viveu na Europa por algum tempo, sofrendo influência de nomes como Hegel e Goethe. Bancroft escrevia de forma romântica, acreditando que os Estados Unidos eram uma sociedade escolhida por Deus e que as colônias possuíam ideais de liberdade desde o seu início. Escreveu uma história da América cujo primeiro volume surgiu, também, em 1834. Até a criação da American Historical Association em 1884, pode-se dizer que a historiografia americana permaneceu deveras estagnada. Como nos diz Jameson 14, em 1884 não existiam departamentos estaduais responsáveis pelo estudo de história, o número de associações regionais e seus membros eram menos da metade do que veio a ser 10 anos depois e o único periódico existente em que se podia publicar trabalhos de História era o “The Magazine of American History”, que ficou em circulação de 1877 a 1893, mas não era publicada em larga escala e se mostrou insuficiente para atender as demandas dos historiadores norte-americanos. Além disso, em todas as universidades americanas existiam apenas quinze professores titulares e cinco professores assistentes que se dedicavam exclusivamente à pesquisa de história. Em 1909 dos sete mil universitários existentes nos Estados Unidos, pelo menos trezentos estudavam história. Em 1884 esse número não passava de trinta. Existia um pessimismo vigente sobre a profissão de historiador na época anterior à AHA, sendo que várias instituições se perguntavam se valia a pena ou não criar cursos de história nas universidades. Jameson chega a dizer que ainda se lembra do sentimento triste de ter ouvido da boca do presidente de Harvard, Charles William Elliot (Presidente de 1869 a 1909) que durante uma entrevista com dois alunos perguntando se ele aconselhava os estudos na área de história, respondeu que nas atuais circunstâncias, seria extremamente imprudente15. O campo da História como disciplina e profissão estava em uma situação terrível e os próprios historiadores americanos sabiam disso, era necessário fazer algo para mudar este cenário e foi então que, a partir de eventos e reuniões de associações de outras áreas como a American Social Science Association (fundada em 1865), a American Philosophical Association (1869), a American Chemical Society (1876) e a Modern Language Association (1883), surgiu a ideia de criar uma associação nacional exclusiva para os historiadores norteamericanos. A reunião na qual foi decidida a criação da AHA foi organizada pelo presidente e pelo secretário da ASSA, John Eaton e Frank B. Sanborn, respectivamente e teve a participação de vários nomes de peso para a historiografia da época, como Charles Kendall Adams, Moses Coit Tyler e Herbert Baxter Adams. Este último talvez tenha sido o principal responsável pela criação da AHA, pois ainda em 1883 apresentou um trabalho na ASSA no

561

qual ele ressaltava a vontade de reunir aqueles interessados em história sob uma associação geral que serviria para promover os trabalhos e projetos dos historiadores. Assim, já no dia 09 de Setembro de 1884, em Saratoga próximo à data da reunião anual da ASSA, aqueles que se interessaram pela ideia de criar uma associação de história foram convocados a uma reunião. Aproximadamente 40 pessoas apareceram, e esses seriam os primeiros membros da AHA em sua fundação. Nem todos os intelectuais da época ficaram satisfeitos com a decisão da criação da AHA. O presidente da ASSA, John Eaton, rapidamente se posicionou contra, acreditando que especialização demais era algo ruim, seria mais interessante continuar como um dos braços da ASSA. Entretanto a independência era desejada pela maioria, e assim a organização foi criada com decisão unânime entre os 40 membros convocados para a reunião. O primeiro presidente da AHA escolhido foi Andrew D. White, os vice-presidentes eram Justin Winstor e C. K. Adams, o secretário era Herbert Baxter Adams e o tesoureiro era Clarence W. Bowen. Durante a mesma reunião foi estipulada também uma constituição, que apesar de bem simples e direta, ainda segue até os dias atuais quase que intocada: I. O nome dessa sociedade será “The American Historical Association”. II. Seu objetivo será o incentivo e apoio aos estudos históricos. III. Qualquer pessoa aprovada pelo Conselho Executivo poderá se tornar um membro bastando pagar o equivalente a $3; e depois do primeiro ano, poderá continuar como membro pagando uma anuidade de $3. Ao pagar um valor equivalente a $25, a pessoa poderá se tornar um membro vitalício isento de qualquer taxa subsequente. Pessoas não residentes nos EUA podem ser aceitas como membros honorários e estas serão isentas de qualquer taxa monetária IV. Os oficiais deverão ser um Presidente, dois Vice-Presidentes, um secretário, um tesoureiro e um conselho executivo composto pelos oficiais eleitos e mais quarto membros eleitos pela associação. Esses oficiais serão eleitos através de votação em cada reunião anual da Associação. V. O Conselho Executivo deverá ficar responsável por realizar os principais interesses da Associação, incluindo as eleições, as realizações das reuniões, a seleção dos papers que serão lidos nas reuniões e a determinação de quais papers serão publicados. VI. Essa constituição poderá ser alterada em qualquer reunião anual, desde que a proposta para a alteração tenha sido realizada na reunião anterior ou aprovada pelo Conselho Executivo.

tenha

sido

16

A respeito dos membros honorários, o primeiro deles foi escolhido ainda na primeira reunião: Leopold Von Ranke. Convidado por Bancroft, Ranke aceitou com alegria e elogios à

562

AHA, mas veio a falecer um ano depois com 90 anos Até 1909 os outros membros honorários que foram convidados eram: William Stubbs, Samuel Rawson Gardiner, Theodor Mommsen e James Bryce. A AHA foi recebida muito bem pelos historiadores, americanos, o que é demonstrado pelo seu rápido crescimento: de início, como já dito, eram 41 membros. Na segunda reunião esse número já alcançava 287 membros (que incluíam um ex-presidente dos EUA, Rutherford B. Hayes (1877-1881) e um futuro presidente, Thomas Woodwrow Wilson (1912 – 1921)). Na terceira reunião esse número ultrapassava a marca de 400 membros e já em 1890 esse número havia atingido a marca de 620 membros. Vinte e cinco anos após a criação da revista, em 1909, o número de membros da AHA já ultrapassava a marca de 2500 membros. Se tornando a maior e mais ativa organização sobre história do mundo17. As atas das reuniões eram publicadas em conjunto dos papers escolhidos no que eram chamados de Annual Reports. As publicações eram então distribuídas para todos os membros da AHA. Os fundos para financiar essas publicações vinham das anuidades pagas pelos membros. Para se ter uma ideia em 1889 a Associação arrecadava em cofre cerca de $4600 e quase todo esse dinheiro era utilizado para publicar os Annual Reports. Um desejo que existia desde a criação da AHA era o de aproximação com o Governo americano. Uma possível incorporação ao congresso era vista como vantajosa pelos membros, pois permitiram a eles expandir o seu campo de atuação e angariar mais recursos através de financiamentos do governo. Assim, as reuniões anuais começaram a

acontecer

em

Washington logo a partir da segunda reunião e em 1888 foi realizado um pedido formal de incorporação da AHA ao governo americano. O mesmo foi assinado em 1889 pelo presidente Grover Cleveland. Essa incorporação ao governo é o ponto chave para entendermos o porquê da Historiografia americana e o seu principal periódico, a AHR, serem tão “universalistas” no sentido de aceitar diversos tipos de temas e recortes temporais e espaciais diferentes em um mesmo número. A partir da incorporação a AHA sofreu diversas mudanças que influenciariam diretamente na forma como a historiografia americana se desenvolveria a partir de então. A associação teria agora a sua sede em Washington, receberia financiamento do governo americano para a publicação dos artigos, mas ao mesmo tempo teria que se reportar ao secretário do Instituto Smithsonian com relatórios sobre os trabalhos e resultados adquiridos, e tal secretário responderia ao congresso com seu parecer sobre a qualidade e sobre o corpo dos trabalhos.

563

Essa espécie de “censura” imposta pelo governo americano foi vista com desgosto pelos membros da AHA, mas as vantagens acabaram por eclipsar este problema o que permitiu que as exigências do governo passassem sem protesto. O fato é que, com o financiamento do governo, os fundos da AHA que antes eram gastos quase que inteiramente para tornar possível a publicação dos Annual Reports, agora poderiam ser gastos com outras coisas. Parece pouco, mas foi esse dinheiro extra que permitiu a AHA expandir o seu campo de atuação, investir em novos eventos, criar comitês especializados para buscar e estudar documentos que antes não se encontrava, etc. Ou seja, esse dinheiro permitiu uma expansão extremamente veloz da associação e de suas estruturas, fazendo com que em apenas 25 anos ela já se tornasse a maior associação do mundo, como dito anteriormente. Porém, a censura imposta pelo governo americano não pode ser ignorada, pois foi justamente ela que causou mudanças nas publicações dos Annual Reports, fazendo periódicos como a AHR surgirem. Na maioria das vezes, como nos diz Jameson 18, o secretário do Instituto Smithsonian não se intrometia muito nos papers que eram publicados. O mesmo não era historiador e, reconhecendo suas limitações, preferia deixar aqueles que entendiam do assunto decidir o que poderia ou não ser publicado. Mas havia dois casos particulares que se tornaram alvos de censura a partir da incorporação. O primeiro deles foram os trabalhos relacionados ao governo americano, ao congresso, e seu funcionamento. Qualquer trabalho, seja para realizar criticas ou não, que tentasse falar a respeito do congresso americano era impedido de ser publicado nos Annual Reports. O segundo seria trabalhos relacionados à religião cristã. O congresso americano, por tradição, não via os trabalhos que eram realizados sobre as igrejas e sobre a religião em si, com bons olhos. Assim, todos os trabalhos que tinham como objeto de estudo a religião ou as igrejas cristãs, eram censurados também. As áreas de História Medieval e Antiga sofreram especialmente com essa censura, pois eram as que mais trabalhavam com tal objeto de estudo. Em 1895, sete anos após a criação da AHA dois acontecimentos marcariam novamente a história da instituição. O primeiro deles foi a decisão de variar os locais onde as reuniões aconteciam. A partir desse ano ficou estabelecido que uma reunião aconteceria no leste dos EUA, outra no oeste, e a terceira sempre em Washington (até para manter as relações com o governo americano). Isso causou novamente um aumento imediato no número de membros da AHA, pois permitiu que aqueles historiadores que moravam longe de Washington começassem a participar mais ativamente das reuniões da AHA. O segundo acontecimento importante foi a criação da AHR. A American Historical Review surgiu como um periódico completamente independente da AHA e nos seus três

564

primeiros anos de vida fora financiada por um grupo separado de pessoas. Por ser independente da AHA a AHR não sofria com a censura imposta pelo governo americano, e logo foi se tornando a principal fonte de publicação dos historiadores americanos. Em seu livro, The Origin and Development of Scholarly Historical Periodicals, Margaret Stieg19 afirma que, devido ao caráter do trabalho histórico, era necessária a criação de uma rede de comunicações adaptada para as necessidades do ramo, visando um trabalho que seria efetuado de maneira cada vez mais eficaz e é neste pensamento que ela considera a criação das revistas históricas no século XIX como um marco na institucionalização da História. A primeira publicação da revista ocorreu em Outubro de 1895, tendo como editor chefe John Franklin Jameson, importante historiador da época, especialista em historiografia e um dos fundadores da American Historial Association pela qual veio a se tornar presidente em 1907. A revista, criada nos Estados Unidos em 1894, conta com cinco publicações por volume, sendo que em cada uma delas, são publicados diversos artigos autorais, notas e um número significativo de resenhas. A revista americana funcionou, em seus anos iniciais, como a principal forma dos historiadores americanos de publicar os seus trabalhos. Sendo assim era muito comum encontrar artigos de temas e recortes temporais e espaciais completamente diferentes em um mesmo número, um exemplo são as publicações do segundo número do terceiro volume da revista, publicado em Abril de 1897, onde juntos estavam um artigo escrito por John W. Burgess, “Political Science and History”20, um trabalho sobre a relação entre a História e a Ciência Política nos Estados Unidos, e outro artigo escrito por William Woodville Rockhill chamado “Diplomatic Missions to the Court of China: The Kotow Question I” 21, onde é analisada, entre outras coisas, a relação da Corte Chinesa com as embaixadas existentes no país. Assim, diferentemente de outras revistas como a inglesa English Historical Review ou a alemã Historische Zeitschrift, a revista americana aceitou em seus anos iniciais praticamente qualquer tipo de publicação. Em 1897 e 1898 foi realizado um acordo em que a AHA iria financiar a publicação da AHR e distribuí-la para todos os membros da associação. Esse acordo não tirava a liberdade da AHR, que ainda permanecia livre da censura imposta pelo governo americano. Este então é o ponto chave para entendermos o porquê dos trabalhos publicados na AHR nos seus primeiros anos eram tão variados. Percebe-se agora que a revista foi usada como uma forma de fugir dessas limitações que eram impostas pelo governo americano. Para se ter uma ideia, o autor que mais publicou na revista nos seus primeiros 20 anos de existência foi Henry Charles Lea, especialista em História Medieval e História da Igreja. Antes do

565

surgimento da AHR seus trabalhos possivelmente não poderiam ser publicados pela AHA, já que o governo proibia quaisquer tipos de publicações cujo tema envolvia a religião cristã. Outra explicação bastante aceitável foi proposta por Arthur S. Link em 1884. Para ele, essa tentativa de tentar cobrir todos os campos da história é algo bastante comum entre os historiadores americanos principalmente no final do século XIX, pois os primeiros “líderes” da historiografia americana e da AHA foram bastante influenciados por historiadores alemães (sendo que boa parte deles, inclusive havia estudado na Alemanha), que defendiam essa ideias de “universalidade da história”22. E como essa tradição foi amplamente divulgada nos EUA, parecia inevitável que a AHA se tornasse uma associação dedicada ao incentivo do estudo de todos os campos da história.

A relação entre empreendimento histórico e capital simbólico

Como já ressaltado por Townsend, no final do século XIX e início do XX viu-se a formação de um grande empreendimento histórico cuja figura central foi a presença da American Historical Review que, através de forte incentivo e controle sobre todos os âmbitos da historiografia da época, foi capaz de organizar e desenvolver um campo propício para o trabalho dos historiadores americanos. O desenvolvimento da historiografia americana não se deu apenas em forma de novas instituições, meios de produção, recursos ou aumento no número de profissionais da área, uma das grandes mudanças foi o estabelecimento de uma rede de relações mais ampla e participativa, já que agora praticamente todos os historiadores tinham meios e eram incentivados a discutir e conversar sobre os seus trabalhos através de um sistema de produção e circulação de bens simbólicos.

O sistema de produção e circulação de bens simbólicos define-se como sistema de relações objetivas entre diferentes instâncias definidas pela função que cumprem na divisão do trabalho de produção, de reprodução e de difusão de bens simbólicos. O campo de produção propriamente dito deriva sua estrutura específica da oposição – mais ou menos marcada conforme as esferas da vida intelectual e artística – que se estabelece entre, de um lado, o campo de produção erudita enquanto sistema que produz bens culturais (e os instrumentos de apropriação destes bens) objetivamente destinados (ao menos em curto prazo) a um público de produtores de bens culturais e, de outro, o campo da indústria

566

cultural especificamente organizado com vistas à produção de bens culturais destinados a não-produtores de bens culturais (“o grande publico”) que podem ser recrutados tanto nas frações não-intelectuais das classes dominantes (“o público cultivado”) como nas demais classes sociais.23

Pierre Bourdieu define o capital simbólico como todo o recurso ou poder que se manifesta em uma atividade social, ou seja, podemos falar em um capital cultural, capital social ou capital político, cuja "moeda de troca" poderiam ser, por exemplo, conhecimentos, prestígio ou certas relações sociais. Tal capital simbólico é a principal moeda de troca dentro do campo da historiografia americana no final do século XIX. Através da relação entre as idéias de Bourdieu e Townsend torna-se mais fácil compreender como ocorreu a rápida transformação do cenário historiográfico norteamericano. O estreitamento da relação entre os historiadores e as instituições da área após a criação da AHA permitiu o desenvolvimento desse sistema de trocas simbólicas criando um grande empreendimento histórico que se ergueu através da associação americana de história e teve o seu ápice no período entre 1880 e 1910. Um possível próximo passo nessa pesquisa pode ser tentar entender o que aconteceu nos estágios seguintes do empreendimento histórico americano com o campo histórico e a economia das trocas simbólicas desenvolvidas ainda no primeiro estágio.

1

Mestrando em História do Programa de Pós-graduação em História Social das Relações Políticas da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). É vinculado ao Laboratório de Estudos de Teoria da História e História da Historiografia (Lethis) desta mesma Universidade. Pesquisa sob a orientação do prof. Julio Cesar Bentivoglio (PPGHis-Ufes). É bolsista CAPES de mestrado. E-mail: [email protected]. 2 TOWNSEND, Robert B. Hisory’s Babel: scholarship, professionalization and the historical enterprise in the United States, 1880-1940. Chicago: The University of Chicago Press, 2013. Versão Kindle. 3 CARON, Pierre. A French Co-operative Historical Enterprise. Chicago: The American Historical Review, Vol. 13, 1908. Pp. 501-509. 4 ANDREWS, Charles M. These Forty Years. Chicago: The American Historical Review, Vol. 30, 1925. Pp. 249. 5 TOWNSEND, op. cit., p. 6. Versão Kindle. 6 TOWNSEND, op. cit., p. 8. Versão Kindle. 7 A partir de agora tentarei abreviar certos nomes que, de outra forma, tornaria a sua repetição cansativa para os leitores do texto. São eles: American Historical Review (AHR), American Historical Association (AHA) e American Social Science Association (ASSA). 8 Ver BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clinica do campo científico. Tradução Denice Barbara Catani. São Paulo: Editora UNESP, 2004. p. 20-35. 9 Ver BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. 7.ed. São Paulo: Perspectiva, 2011. p.99 – 116. 10 Ver BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução Fernando Tomaz. Rio de Janeiro:Bertrand Brasil, 1989. p. 61-73. 11 GOOCH, George P. History and Historian in the Nineteenth Century. New York: Longmans, Green, 1913.

567

12

ADAMS, Henry Baxter. The Life and Writings of Jared Sparks, 2 Vols. Houghton: Mifflin and Company, 1893. 13 HOWE, M. A. De Wolfe; STRIPPEL, Henry C. Life and Letters of George Bancroft, 2 Vols. New York: Scribner's Sons, 1908. 14 JAMESON, J. Franklin. The American Historical Association. 1884-1909. In: The American Historical Review, Vol. 15, No. 1, Outubro, 1909. 15 JAMESON, op. cit., p.2. 16 Papers of the American Historical Association, 1 (New York, 1886). Acesso em: https://archive.org/details/cu31924088428440. 17 LINK, Arthur S. The American Historical Association. 1884-1984: Retrospect and Prospect. In: The American Historical Review, Vol. 90, No. 1, Fevereiro, 1985. p. 3. 18 JAMESON, op. cit., p. 14. 19 STIEG, Margaret F. The Origin and Development of Scholarly Historical Periodicals. Alabama: The University of Alabama Press, 1986. 20 BURGESS, John W. Political Science and History. Chicago: The American Historical Review, Vol. 2, n.3, 1897. Pp. 401-408. 21 ROCKHILL, William Woodville. Diplomatic Missions to the Court of China: The Kotow Question I. Chicago: The American Historical Review, Vol. 2, n.3, 1897. Pp. 427-442. 22 LINK, op. cit., p. 8. 23 BOURDIEU, 2011, op. cit., p.105.

568

De trás para frente: nossos mesmos problemas desde os tempos de Sílvio Romero. Cícero João da Costa Filho E-mail: [email protected] Pós Doutorando da FFLCH/USP sob a supervisão do professor Dr. Marcos Silva Resumo: Na segunda metade do século XIX, especificamente, em meados de 1860/70, como desdobramento da entrada das ideias do determinismo racial e climático, floresceu o debate em torno das principais questões nacionais, que eram a escravidão e a república, e de outros problemas pertinentes ao progresso do país. O Brasil foi interpretado pelas correntes do positivismo, do evolucionismo e do determinismo. Todo esse debate toma sentido para solucionar o problema da mãode-obra escrava, originando a discussão imigracionista de pensar um novo Brasil, um dos temas tratados de maneira pormenorizada por Sílvio Romero. Palavras-chave: Determinismo, negro, raça. Abstract: In the second half of the 19th century, specifically, in mid- 1860/70, as a deployment of the entrance of racial determinism and climatic ideas, flourished the debate around the main national questions, the slavery and the republic, and other relevant problems for the country progress. Brazil was interpretated by the currents of positivism, evolutionism and determinism. All this discussion takes sense to solve unfree labour problem, originating an pro-immigration an discussion of thinling about a new Brazil, onde of the topics discussed in detailed way by Silvio. Keywords: Determinism. Black. Race.

Toda a conjuntura social, cultural e política em que se encontrava a sociedade brasileira atormentava Sílvio Romero. Na obra O Brasil Social, publicada em 1908, encontramos de forma minuciosa a descrição da situação brasileira de um país onde a maioria da população era pobre e analfabeta, governada por oligarquias presentes de norte a sul do Brasil. Estudando e classificando os diversos tipos brasileiros, Sílvio Romero afirma que é indispensável conhecer a sociedade brasileira para viabilizar o progresso do país, “Sob o aspecto social, direi, de modo geral, pelo que toca às nossas classes puramente populares, no restrito sentido que impropriamente se costuma dar a este qualificativo, que elas, nas zonas rurais, quase por toda a parte, se distinguem pelo analfabetismo, atraso, pobreza vizinha da miséria em grandíssimo número de casos, caráter dispersivo, falta completa de iniciativa, marasmo radical”.1 (ROMERO, 1908, 136)

Pensando a conjuntura brasileira de maneira organicista influenciado por Spencer, utilizava-se da metodologia divulgada pela Escola de Le Play e de seus seguidores, como Demolins, Paul de Rousiers, A. de Preville, Henri de Tourville, se inspirando nos “melhores trabalhos sobre a índole das nações”

2

(ROMERO, 1908, 33). Uma vez identificado o tipo de sociedade brasileira, o escritor

buscou em primeiro lugar apontar os reais problemas do país não mencionados pela classe dirigente,

569

para só então propor os caminhos de superação de nosso atraso nos mais variados campos. Portanto, para conhecer a estrutura social brasileira, “seria indispensável estudar o país, zona por zona, porque existiam diferenciações várias a notar aqui e ali, exigidoras de diagnósticos divergentes e terapêuticas especiais” 3. (ROMERO, 1908, 87) Num país constituído por uma população de 12 a 15 milhões de habitantes, salientava o crítico, o panorama de extrema ignorância, pauperismo, miséria e opressão. Dessa população, um milhão era de índios, considerados inúteis, um milhão de escravos tidos como quase inúteis, distribuídos em povoados e situados raramente nas antigas fazendas e engenhos, restando nove milhões que, por sua vez, compunham-se de 500 mil pertencentes a antigas famílias de escravos, fazendeiros, médicos, engenheiros, empregados administrativos, negociantes, restando desse contingente “6 milhões (atualmente mais) de habitantes, pelo menos, nascem vegetam e morrem, sem ter quase servido a sua pátria. No campo serão agregados de fazendas, caipiras, matutos, caboclos; nas cidades serão capangas, capoeiras, ou simplesmente vadios e ébrios” 4. (ROMERO, 1908, 94) Para agravar ainda mais este quadro, a distância entre a reduzida classe dirigente e os setores pobres se perdia de vista. Seis milhões de habitantes estavam distribuídos nas vilas e cidades, constituindo nas primeiras caipiras, matutos, caboclos; e nas outras os vadios e ébrios. Toda essa situação social era senão consequência da formação comunária brasileira, “O estado funcional das gentes brasileiras pode-se resumir numa palavra: o Brasil não tem povo! Dos seus doze milhões de habitantes (hoje serão talvez quinze, o que não altera o raciocínio) um milhão é de índios inúteis ou quase, um milhão é de escravos (hoje os exescravos e seus descendentes andam quase inúteis, esparsos nos povo ados e raros nas antigas fazendas e engenhos). Ficam nove milhões (serão talvez agora doze) mais ou menos. Destes, 500 mil pertencem a famílias proletárias de escravos; são fazendeiros, advogados, médicos, engenheiros, empregados, administradores, negociantes. Acontece, porém, que o largo espaço compreendido entre a alta classe dirigente e os escravos (agora criados e empregados de toda ordem) por ela utilizados não se acha suficientemente preenchido. Seis milhões (atualmente mais) de habitantes, pelo menos, nascem, vegetam e morrem sem ter quase servido a sua pátria. No campo serão capangas, capoeiras, ou simplesmente vadios e ébrios.” 5 (ROMERO, 1908, 94)

Em carta endereçada a José Oiticica, denominada A Escola de Le Play no Brasil, admite Sílvio ser adepto fervoroso dessa linha de análise e que se encarregava de descrever sua província, utilizando-se do método do escritor francês. Como afirma em seus estudos de política social, sua maneira de analisar o país já embutia os preceitos da nova doutrina. Prefaciou Sílvio a obra de seu discípulo Artur Guimarães, Questões Econômicas Nacionais, em 1904. Criticava Romero os verdadeiros intelectuais brasileiros, médicos, engenheiros, magistrados, advogados, oficiais de curso de terra e mar pelo conhecimento apenas de correntes como as do Positivismo, Evolucionismo e Socialismo, mas desconheceram os belos trabalhos da Escola de Le Play, doutrina existente há vinte

570

anos. Alertava que no Brasil, quando alguma doutrina tornava-se conhecida, esquecia a Crítica de seus reais divulgadores, chamando para si a responsabilidade na dianteira desse ou daquele movimento. Ressentia-se Sílvio mais uma vez da falta de reconhecimento por parte da Crítica brasileira, da importância de seu nome como divulgador de ideias ou teorias em que se dizia ser sempre o inaugurador. É a partir do conhecimento da Escola de Le Play e de seu divulgador maior, Ed. Demolins, que o professor da Faculdade de Direito vai traçar o quadro social brasileiro, viabilizando a partir dos problemas identificados uma solução que possa superar o atraso brasileiro. Em Introdução a Doutrina contra Doutrina (1894), acerca da viabilidade da formação de um partido operário no Brasil, Silvio mostrava a pobreza do nosso país, “uma nação embrionária, cuja mais importante indústria é ainda uma lavoura rudimentar, extensiva, servida ontem por dois milhões de escravos e hoje por trabalhadores nacionais e algumas dezenas de milhões de colonos de procedência europeia, cem vezes mais felizes do que na mãe pátria”

6

(ROMERO, 2001, 84-85), concluindo que “não conseguimos

formar ainda um povo devidamente organizado de cima a baixo” 7. (ROMERO, 1908, 90) Sílvio só reforçava o que havia escrito em Provocações e Debates. Classificava a sociedade brasileira em sete classes, sendo a mais pobre composta pela “turbamulta, indistinta, viciosa, que possuímos em larga escala, que vivem ao deus-dará, ou de suas agências, como eles dizem”

8

(ROMERO, 2001, 90). O resultado geral da sociedade brasileira imersa nesse profundo pauperismo e extrema barbárie não era nada promissor. Somente O Brasil Social deveria atrair todos os esforços na busca pela descrição do verdadeiro Brasil, mostrando a situação e as condições reais do povo, sem ilusionismo e sem o traço verborrágico dos dirigentes da nação predominante ao longo da História do país. Brasil Social era o que Sílvio denominava a nova maneira de ver o Brasil, conforme o método utilizado pela Escola de Le Play. Diante do quadro de pobreza, corrupção e extremo analfabetismo só existia um meio para solucionar todo este quadro, qual seja: fazia-se necessária a Nova Educação, responsável pela formação de um caráter diferente. Os problemas brasileiros eram inúmeros e admitia Sílvio que alguns eram insolúveis. Todo o quadro nacional de pobreza material e mental brasileira, refletida nas inumeráveis formas de corrupção política, na apatia de nosso povo, na falta de interesse deste pelas verdadeiras questões políticas, macaqueando ideias e instituições internacionais, sem amor pelas coisas nacionais, na Educação Retórica que não despertava o amor à pátria correspondente ao caráter apático da alma nacional, era decorrente da colonização da raça ibérica e ao tempo dessa colonização encontrava-se em estágio de degeneração. Sílvio entendia que o Brasil ligava-se ao primeiro modelo de sociedade, justificando assim a apatia da índole brasileira responsável pela situação de pobreza e miséria de nosso país.

571

O parâmetro para dividir cada sociedade estava intrinsecamente ligado à raça. Todos os problemas do país ligavam-se à formação comunária, “Se queremos continuar a ser gente de comunários, vivendo da política alimentaria, o ideal em matéria de Ensino é exatamente o que temos; se queremos, porém, mudar de rumo, no sentido das grandes iniciativas, é seguir o que fazem os ingleses e aconselha Demolins”

9

(ROMERO, 2001, 75). Presenciava-se à formação comunária

reinando “quase exclusivamente” nas sociedades do Oriente Asiático, ao passo que as sociedades de formação particularista localizavam-se no norte ocidental da Europa e na América do Norte, sendo a raça anglo-saxã o modelo tomado por Sílvio Romero para aludir ao caráter de iniciativa em contraposição ao viés apático do brasileiro, formado sob uma educação comunária. Países como a Inglaterra e os Estados Unidos tinham atingido seu desenvolvimento não apenas econômico, mas político e moral, em função do tipo de educação que adotaram, estimuladora de um espírito de iniciativa que preparava o homem para a luta pela vida. Percebemos que Sílvio justifica toda a situação do atraso brasileiro em função do caráter apático do brasileiro, herdeiro da Educação comunária que não propiciou a iniciativa pelas lutas da existência. Com isso, não podemos afirmar que Sílvio desprezasse a influência da cultura: para o autor, o meio social tinha vital importância na alteração das bases sociais, tanto no plano cultural quanto no político, no econômico. Sintonizado com as últimas doutrinas da época, recorria a todo instante às obras de Demolins, como Les Routes de L’Antiquité, e criticava os intelectuais brasileiros pelo desconhecimento das ideias do pensador francês, “Recomendamos aos brasileiros, libertos das literatices baratas dos desocupados, que leiam, dizemos mal, que estudem os livros do autor de que damos agora pálida notícia e peculiarmente em Lês Routes de l’Antiquité - as páginas relativas ao chamado Povo-Rei”

10

.

(ROMERO, 2001, 79-80) Por ser o Brasil um país de formação comunária, propiciadora de um caráter apático ou sem iniciativa, resultava uma sociedade atrasada coberta por diversas ambiguidades, sendo a primeira dessas “a disparidade entre uma pequena elite de possuidores e proprietários e o avultadíssimo número dos que nada tem nada possuem, principalmente nas populações rurais” 11 (ROMERO, 2001, 89). Pensava Sílvio Romero, com sua visão organicista inspirada por Spencer e nos teóricos integrantes da Escola de Le Play, que as causas dos males brasileiros ligavam-se à falta de harmonia entre os inúmeros elementos considerados pelo mesmo como indispensáveis, fazendo com que buscasse o ponto de partida ou a raiz dos males brasileiros, “urge enfrentar a situação nacional como ela é, em si mesma, no seu caráter, na sua índole, na sua estrutura interna, na substância íntima de seu ser, na trama fundamental da sua organização, nos seus elementos formativos, na essência intrínseca que a constitui” 12. (ROMERO, 2001, 108)

572

Encontrava-se o Brasil numa situação de miséria social e profundo atraso econômico na época do carvão, do vapor e da eletricidade. Outro problema era a contradição entre uma pequena elite de intelectuais, composta por políticos, jornalistas e literatos, e a maioria da população analfabeta, caracterizando uma sociedade bárbara. As inúmeras mazelas que arrolavam, derivavam dessa ordem de coisas que só aumentavam quando o Brasil era visto pela elite brasileira como um país desenvolvido, criando um ilusionismo responsável pelo maior mal brasileiro que era a mania de passar por aquilo que não somos. À medida que Sílvio Romero traça a conjuntura social brasileira, critica a macaqueação e a pura imitação das ideias e instituições estrangeiras, principalmente francesas, mas lembremos que o escritor utilizava-se, dentre tantas ideias assimiladas, da literatura francesa, para validar sua posição. Em sua perspectiva, de nada adiantava mostrar no exterior a imagem de um Brasil que na realidade não correspondia ao Brasil real. O Brasil não era um país desenvolvido, capaz de absorver ideias estrangeiras ou imitar as instituições liberais ou parlamentares de outros países. A elite brasileira desejava mostrar um Brasil que aos olhos de Sílvio não existia, e paradoxalmente, o escritor dava bastante importância às raças consideradas inferiores, como negros e índios. Mais importante do que salientar a vergonha que a elite brasileira tinha em relação ao que considerava sub-raças, trazendo com isso a imagem daquilo que não éramos – expressão de Sílvio –, é lembrar a importância que o escritor sergipano atribuía à cultura do povo e às heranças indígena e africana. A pobreza mental causada pelo desconhecimento da crítica por nossa classe dirigente causava a megalomania, sendo indispensável descrever o verdadeiro brasil. Na recepção à Euclides da Cunha na Academia Brasileira de Letras em 1906, respondia ao autor de Os Sertões, no qual acusava o escritor sergipano de pretender uma reforma pelas cimalhas, ou seja, de querer reformar o quadro social brasileiro de maneira superficial. Em revide, o autor de História da Literatura Brasileira arrolava que para ele seriam os reais problemas do país. Os males brasileiros não seriam resolvidos com a abertura de ruas e avenidas à beira mar, com a criação de academias de luxo diante de uma sociedade analfabeta, com a construção de palácios e teatros monumentais que ficarão fechados enquanto a maioria da população mora em cortiços e sofre de uma miséria geral. De que adiantava sediar o Brasil um Congresso Pan-Americano para sedimentar e fazer crer sua ilustração quando se presenciava assassinatos de deputados e senadores à luz do dia? “Não consta em todo o correr da História de mais de dez mil anos, que alargamentos de ruas e aberturas de avenidas numa cidade qualquer, mero luxo a que nações se entregam quando, cansadas da riqueza, entram a caducar, tivessem sido meio de solver os fundos males sociais, as gravíssimas inquietações de um povo! Despediu-se e deixou-me triste” 13 (ROMERO, 2001, 101)

573

Sílvio criticava toda e qualquer postura por parte da elite brasileira que, segundo ele, não tocava nos males brasileiros. Esses problemas só se agravavam porque os dirigentes da nação não levavam a política a sério e o povo analfabeto só reforçava tal estado de coisas. Nem a maioria do povo nem os políticos se interessavam pelos verdadeiros problemas brasileiros. Para reforçar toda essa situação alarmante, os literatos eram os grandes responsáveis pela vigência deste triste cenário por desconhecerem os livros dos escritores constituintes da Escola de Le Play. Discordando da elite intelectual brasileira, pontua Sílvio, ora nossos críticos creditavam o atraso brasileiro ao fato de não ser o imperador Pedro I ou seu sucessor, Pedro II, a raiz dos problemas nacionais, ora depositava no elemento servil o mau brasileiro. Mas, para Sílvio as causas desses problemas reduziam-se à falta de amor ao país que, como consequência, gerava o desconhecimento e o desinteresse pelos verdadeiros assuntos políticos que, mesmo com a instauração da república, não foram sanados: “No caminho da disciplina intelectual e moral, da consciência de um alto destino a realizar nobres Direitos a reivindicar e de grandes deveres a cumprir, a nação não tem dado um passo. Acabou-se a escravidão, desapareceu o Império; mas não findou a nossa incurável leviandade, a nossa clássica covardia, a nossa falta de ideal, a ausência em que temos vivido do senso do que é ousado e grande, do que é justo e nobilitante. A alma brasileira depois de um ano e meio de República tem a mesma forma e conserva a antiga atitude. Nenhum instinto novo revelou, nenhuma aspiração nova abriu para o lado do porvir. Um só vezo, que andava oculto, despertou rapace e furibundo: - o vejo do jogo, a ânsia mórbida do ganho barato e rapidíssimo.Foi a aquisição única feita pela Psicologia nacional!..” 14 (ROMERO, 2002, 359)

Pensava Romero que os problemas brasileiros eram decorrentes de uma ordem bem maior, “a teima de julgar política, e sanável por meios políticos, uma questão orgânica, étnica, de Psicologia popular, uma questão profundamente, essencialmente, unicamente da estrutura social do povo”.15 (ROMERO, 2002, 109). Num país onde se fazia politiquice e não política, a única maneira de sobrevivência era buscar emprego público ou fazer da política meio de vida, em que os políticos se perdiam em sua própria vaidade, o povo sequer se interessava pelas reais questões nacionais por falta de amor a pátria, a própria imprensa jornalística reduzia-se a meras disputas partidárias, os intelectuais sofriam de cegueira frente à presença de doutrinas novas e imparciais como rezava a Crítica, os cernes dos problemas nacionais eram de ordem estrutural orgânica ligada à raça, ao meio, e à Educação, formadora do caráter nacional brasileiro. Crente na existência de uma índole dos povos, explicava Romero às causas do atraso brasileiro atinando para os aspectos sociais, econômicos e políticos, somente com as ideias do Evolucionismo e da escola de Ciência Social francesa, seria possível a formação de um caráter enérgico para alterar toda a estrutura social, cultural, e política brasileira:

574

“É assim ainda hoje e sê-lo-á por todo o sempre, enquanto por seguros meios de seleção sociológica, de Educação moral e, até certo ponto, de instrução científica, devidamente generalizados, se não modificar - para melhor - a índole, o caráter intrínseco de nossas gentes. Já por diversas vezes tenho chamado a atenção para esse fato de fundamental alcance no estudo de nossos destemperos políticos, no intuito de mostrar onde se encontrava a verdadeira raiz do mal”.16 (ROMERO, 2002, 106)

Toda a série de corrupção política por parte dos dirigentes nacionais ao longo da história brasileira, as promessas sempre anunciadas e nunca cumpridas, os discursos políticos em que predominava a verborragia demagógica dos dirigentes da nação eram os principais problemas causadores do atraso do país, mas os brasileiros eram assim por formação - vinha das raízes, da herança dos povos ibéricos. A ilusão dos dirigentes da nação em sempre representarem um Brasil inventado, bem conformada com a mania de grandeza, não possibilitava conhecer os reais problemas nacionais, dando lugar à vaidade política e às exposições baratas, custeando viagens de escritores brasileiros para fora do país. Mesmo com a implantação da República no Brasil, o país sequer avançou ou alterou sua estrutura social e econômica instituída ao longo dos quatrocentos anos de sua história. Com a instauração da República, o Brasil só “teve a vantagem de revelar este grande querido povo brasileiro tal qual é, entregue a si próprio ou a seus naturais diretores, o que vem a ser a mesma coisa”

17

(ROMERO, 2002, 33). Os problemas nacionais eram decorrentes da formação comunária responsável pela apatia do brasileiro, sem iniciativa para o progresso. Sílvio justificava o atraso brasileiro sempre remetendo à índole nacional, responsável pelo afrouxamento do caráter, pela tendência ilusionista, pela megalomania, pelo mal do funcionalismo público e por toda a sorte de corrupção política do Brasil, reinando de norte a sul e de leste a oeste as oligarquias estaduais. Todo comportamento social e político das classes era equivalente a sua índole e aqui reside o cerne da visão de Sílvio no que tange aos problemas nacionais: “o maior defeito de nossa Psicologia nacional, tenho-o dito milhares de vezes e não canso de o repetir, é não querermos ir ao fundo das questões políticas e sociais em que nos debatemos, não queremos ter a coragem de reconhecer que a raiz do mal está em nós mesmos, na inconsistência de nossa índole, na nossa pelo menos atual, incapacidade para as grandes organizações, as conquistas reais e duradouras. Julgamo-nos aptos para tudo, sem o preliminar preparo de nós mesmos. Pensamos que basta copiar as instituições alheias. A Alemanha, a Inglaterra, a França, os Estados Unidos, possuem belas instituições políticas e sociais....Por que não havemos de tê-las também? É copiar as leis desses países e basta”. 18 (ROMERO, 2002, 139)

Era Sílvio Romero um ardoroso seguidor do Evolucionismo orgânico do mestre Spencer, desdobramento de seu culturalismo sociológico iniciado com Tobias Barreto. A Ciência Social francesa foi sua grande inspiração e modelo para interpretar o país, somado à crença no arianismo de

575

Ammom, Lapouge e seu grande mestre Gobineau. Mesmo preterindo o Positivismo, Romero aceitou a lei dos três estágios, admitindo ser este o grande feito de Comte. Os problemas brasileiros caminhavam da barbárie à civilização, sentido de seu Evolucionismo em que os órgãos progridem do mais simples ao mais complexo. Quando analisa os problemas nacionais, descreve as diversas áreas do país, não esquecendo os esquemas explicativos de Buckle e Taine, embora tenha divergido destes dois teóricos em alguns aspectos. Outro problema, segundo Sílvio, era a ausência durante os quatro séculos como colônia portuguesa de movimentos sociais afirmando a existência no Brasil, “senão revoluções e movimentos políticos que longe de facilitarem a constituição social do povo, embaraçam-na ao invés consideravelmente”

19

(ROMERO, 2002, 95). Em nada contribuiu para a consciência nacional ter o

país abolido a escravidão, seguindo-se imediatamente a proclamação da república, abortando uma possível formação da consciência nacional. Os escravos deveriam ter sido preparados para serem proprietários ou operários agrícolas. Lembremos que, para Romero, era preciso ordenar hierarquicamente cada classe social para só então ser possível uma possível revolução, acarretando uma mudança de estrutura. Democrata, privilegia Sílvio uma forma de representação que fale a língua do povo, e somente classificando hierarquicamente as classes sociais no Brasil seria possível se pensar em futuras mudanças políticas. Tinha conhecimento das ideias de Marx e Engels, afirmara que o socialismo ou a formação de um partido proletário no Brasil era inviável, mais importante seria classificar a população a par das estatísticas demográficas do país. Outro problema brasileiro e que muito preocupava Sílvio era a vinda de imigrantes justamente no momento de formação da identidade nacional. O Brasil dispunha de mão de obra suficiente e possuía natureza riquíssima, mas nunca teve uma economia assegurada, a não serem ciclos econômicos, tornando o país sempre dependente do capital estrangeiro, contraindo empréstimos e mais empréstimos. Não fazia sentido a dupla corrente de imigrantes composta de frades e anarquistas, que só aumentava a ilusão brasileira, uma vez que estes participavam de greves num Brasil sem indústrias e eram desprovidos das condições necessárias para formação de um partido operário. Era de fundamental importância receber povos estrangeiros sim, mas de maneira racional e distribuídos não apenas em regiões específicas, como o sul do Brasil. Os povos alemães não poderiam se instalar somente numa região, era essencial o contato com o brasileiro para que este processo de imigração se tornasse benéfico a ambos os povos. No fundo, almejava Sílvio sedimentar os pilares da identidade nacional brasileira, defendendo a língua e as tradições como ponto central para a formação da identidade do país. Chamava atenção para a imigração alemã, “De vinte e cinco a trinta anos a esta parte, não perco o ensejo de despertar dos brasileiros e dos poderes públicos da nação para esse gravíssimo assunto”

576

20

(ROMERO, 2002, 40). Preocupado com o futuro do Brasil, mesmo adepto da cultura germânica por valorizar o critério etnográfico e acreditar na superioridade da raça ariana, entendia que a imigração no Brasil precisava se processar de forma racional até porque os alemães seriam indiferentes às questões brasileiras indispensáveis à formação nacional “Existem em cerca de 380.000 pessoas de origem germânica residentes no Brasil, seis ou oito que para confirmar a regra de abstenção de seus patrícios em tudo que é puramente brasileiro, se metem nas lutas partidárias locais. São raros moços, filhos das cidades, ordinariamente nascidos dos raríssimos consórcios de alemães com brasileiras, desviados em parte do pensar genuinamente germânico, que se deixam atrair por ambição política. É exceção singular, que nada vale” 21

Preocupado com o futuro do Brasil e almejando ver seu país como uma verdadeira nação moderna, salientava os aspectos culturais, dentre estes, a importância da língua e das tradições do país: “Destarte, o erro gravíssimo, o erro inexpiável dos governos brasileiros, o erro que nos há de trazer a perda das belíssimas regiões do sul, foi haver-se consentido na formação lenta, por oitenta dilatados anos, de fortes grupos de população que ficou irredutivelmente germânica, sem a menor fusão com as populações brasileiras” 22 (ROMERO, 2002, 156-157) Com relação aos aspectos econômicos, sustentava que a elite brasileira havia perdido os ciclos do açúcar, do minério, do café, fazendo do Brasil um país dependente do capital estrangeiro. A vinda de imigrantes, sobretudo dos alemães localizados na região sul, causara um desequilíbrio entre as regiões norte e sul, dificultando o despertar de um sentimento nacional. Era necessário dividir tais imigrantes de forma igualitária para que os costumes brasileiros não se perdessem. Mesmo com o advento da ordem republicana, “a alma brasileira depois de um ano e meio de republica tem a mesma forma e conserva a antiga atitude. Nenhum instinto novo revelou, nenhuma inspiração nova abriu para o lado do porvir” 23 (ROMERO, 2002, 360). A esperança de Sílvio por uma ordem que falasse a voz do povo ao longo da História não sofreu mudanças com o regime republicano, que, em seu entendimento, só consolidara o atraso do país, uma vez que “a nação não tem dado um passo”. Os problemas brasileiros e as estratégias políticas de homens que pretenderam a instalação da república sem sequer esboçarem qualquer forma de projeto político comprovavam a tentativa de traiçoeiros sebastianistas de reconquistarem o poder. Assevera os inúmeros disparates políticos datados desde a proclamação da república até o governo provisório, salientando as manobras política do Barão de Lucena, que pôs fim às poucas conquistas dos tempos imperiais, resultando um cenário brasileiro com “as mesmas questiúnculas, os mesmos vícios, os mesmos interesses pessoais, as

577

mesmas chicanas, as mesmas pepineiras e, para tudo dizer numa só palavra, a mesma desengraçada comédia representada quase pelos mesmos atores” 24 (ROMERO, 2002, 371) Nessa perspectiva, a ordem republicana em nada alterou a conjuntura social, só agravou os problemas brasileiros de outrora. Traçando um paralelo entre a nova ordem republicana e a política brasileira dos tempos imperiais, alertava Sílvio para a volta do Sebastianismo, afirmando que “a República não está feita desde que não está plenamente constituída e consolidada”. Combatia o perigo do Sebastianismo, salientando que o país “precisa de ideais, de doutrinas, de opiniões firmes, de boa fé, de patriotismo, de todas as qualidades intelectuais e morais que possam vir em auxílio das instituições combatidas pela propaganda vulpiana do Sebastianismo”.25 (ROMERO, 2002, 374)

1

ROMERO, Sílvio. O Brasil social e outros estudos sociológicos: Senado Federal, Conselho Editorial, 2001. A primeira edição da obra se denomina O Brasil Social, publicada em 1908. Por questões didáticas, utilizaremos a primeira edição. p.136 2 Ibidem. p.33 3 Ibidem. p.87 4 Ibidem. p.94 5 Ibidem. p.94. 6 ROMERO, Sílvio. Introdução à doutrina contra doutrina. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. pp. 84- 85 7 ROMERO, Sílvio. O Brasil Social. Op. Cit.p.90 8 ROMERO, Sílvio. Introdução à doutrina contra doutrina. Op.Cit.p. 90 9 ROMERO, Sílvio. O Brasil social. Op.Cit.p.75 10 Ibidem. p.79-80 11 Ibidem. p.89 12 Ibidem. p.108 13 Ibidem. p.101 14 ROMERO, Sílvio. Estudos de Literatura contemporânea. Op.Cit.p.359. 15 Ibidem. p.109 16 Ibidem. p.106 17 Ibidem. p.33 18 Ibidem. p.139 19 Ibidem. p.95 20 Ibidem. p. 40 21 Ibidem. p.148 22 Ibidem. pp.156-157 23 Ibidem. p.360 24 Ibidem. p.371 25 Ibidem. p.374

578

“A serviço da ciência”: a fotografia como instrumento da pesquisa científica no Brasil imperial (1865-1877). Clarissa Franco de Miranda* Resumo: O presente trabalho busca compreender as apropriações da técnica fotográfica pelo método empirista a partir da experiência de duas expedições científicas no Brasil, a Expedição Thayer e a Comissão Geológica do Império, entre os anos de 1865 a 1876. Palavras-chave: Ciência – Fotografia – Expedições Científicas Abstract: This paper seeks to understand the appropriation of photographic technique by the empiricist method from the experience of two scientific expeditions in Brazil, the Thayer Expedition and the Geological Commission of the Empire, between the years 1865-1876. Key-words: Science - Photography - Scientific Expeditions

No ano de 1839 a invenção da fotografia, sua confiabilidade e precisão técnica foram anunciadas pela Academia de Ciências e Belas Artes de Paris. Experimentos envolvendo a captura de imagens vinham sendo desenvolvidos fortemente na primeira metade do século XIX. Louis-Jacques Daguerre apresentou, na capital francesa, sua invenção - o daguerreótipo. Esse aparelho consistia em uma caixa preta, na qual era colocada uma chapa de cobre prateada e polida que, submetida a vapores de iodo, formava sobre si uma camada de iodeto de prata. Essa placa era exposta à luz dentro de uma câmara escura por 4 a 10 minutos. Depois, era revelada em vapor de mercúrio aquecido, que aderia ao material nas partes onde ele havia sido sensibilizado pela luz, formando a imagem1. Em pouco tempo a novidade se expandiu pelo mundo. Em 1840 a fotografia chega ao Brasil, os mais variados grupos sociais atrelaram a nova técnica diversos valores e significados. O seu alcance, no entanto, não foi tão hegemônico como se poderia pensar. Ainda deveras custosa, portanto utilizada por determinados grupos e instituições, tornara-se um importante elemento de distinção social2. Fotografias de família, cartes de visite3, cartões-postais, dentre os muitos usos, a técnica “vestiu-se” de arte4 e propunha um diálogo entre a fotografia e a pintura, por outro lado foi enormemente utilizada como um instrumento da ciência. A fotografia foi considerada a partir daí, um objeto preciso de análise. Os naturalistas trouxeram para suas pesquisas a

579

fotografia como parte do método científico. Em sociedades que ansiavam pelo maquinário, pelo inovador, pelo progresso, a fotografia é absorvida rapidamente, sendo ela própria um grande experimento. Considerada o reflexo da realidade impresso em papel, viria para dar à ciência maior confiabilidade e precisão. Entre os séculos XVIII e XIX as chamadas expedições científicas atreladas ao sentido cosmopolita do imperialismo europeu, se espalhavam por todo o mundo. Seguindo um padrão sistemático de estudo e pesquisa, os naturalistas visavam analisar e classificar os lugares visitados, sua natureza, sua cultura e seus nativos. Os registros dessas experiências, relações e estranhamentos compõem um vasto acervo

de

fotografias, ilustrações e relatos de viagem. Em meio às discussões sobre uma Teologia Natural5 e sobre os princípios da teoria evolutiva de Darwin6, vários cientistas vieram ao Brasil, trazendo consigo aprendizes, especialistas, curiosos, e um outro profissional, o fotógrafo, este agora indispensável nos trabalhos de desbravamento e levantamento de dados das expedições. A idéia de um paraíso tropical selvagem e exótico, e as imagens pré-estabelecidas sobre o Império brasileiro foram reproduzidas largamente e estavam presentes tanto nos relatos dos viajantes, como nas ilustrações e fotografias. É na atuação das comissões científicas lideradas por Louis Agassiz, a Expedição Thayer, e Charles Frederick Hartt, a Comissão Geológica do Império, entre os anos de 1865 e 1877 no Brasil, que busco compreender a produção de imagens fotográficas a serviço da ciência e as apropriações da técnica pelo método empirista. Entendendo como o Brasil foi inserido no debate científico e como os cientistas se utilizaram dos registros de casos locais para compor um entendimento da ciência universal. Embora a concepção automática da fotografia tenha criado a ilusão de espelho, de materialização do real, os planos, os focos e a luz escolhidos por quem a produz revela que a fotografia está dentro de um jogo de escolhas e exclusões. Tratando-se de uma representação de mundo, que varia de acordo com os códigos culturais de quem produz. Como comenta o historiador de cinema Siegfried Kracauer, comparando Leopold Von Ranke, símbolo da história objetiva, com Louis Daguerre, inventor do daguerreótipo, historiadores, da mesma forma que fotógrafos, selecionam que aspectos do mundo real vão retratar7. Compreendendo tal perspectiva, o presente trabalho trata a *

Clarissa Franco de Miranda. e-mail: [email protected] - Mestranda em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Ceará. Orientador: Dr. Almir Leal de Oliveira.

580

fotografia como uma representação do real, um instrumento cercado de escolhas e interesses, permeado por relações de poder. Pensar a fotografia e sua inserção no meio científico é refletir sobre as motivações, os anseios e os conflitos da sociedade que a produz, a recebe e como se dá sua circulação e significação em determinado recorte temporal. As historiadoras Solange Ferraz de Lima e Vânia Carneiro de Carvalho, afirmam que “Apesar de ser símbolo de modernidade, a fotografia foi absorvida por sociedades tradicionais, que a transformaram em instrumento de atualização ‘moderna’ de antigos valores, normas e costumes”8. A técnica havia mudado, mas as poses, as vestimentas, as paisagens, os objetos e as práticas eram as mesmas que apareciam nas pinturas e desenhos. As imagens paisagísticas da pintura romântica 9 dos séculos XVIII e XIX são trazidas com recorrência também nas fotografias deste período. As densas folhagens, as formações rochosas, a amplidão do território e o exotismo das espécies exprimindo a exuberância dos trópicos, são elementos comuns às duas categorias. “Eram fortes os laços a ligar ciências naturais e paisagismo no interior da cultura americana da metade do século XIX” 10. Subordinada à ciência, porém não menos importante, a arte se fazia presente nos livros, nas exposições e nos museus. Nas viagens exploratórias, os ilustradores eram encarregados de registrar tudo o que interessasse à ciência, adornadas pelos motivos românticos, as ilustrações técnicas tinham grande valor estético. Com a inserção da fotografia neste meio, a nova técnica adquiria praticamente os mesmos objetivos, por isso talvez, imagens tão parecidas. Uma prática não suplanta a outra, estas coexistem nas expedições, ilustradores e fotógrafos faziam parte do corpo das comissões. A fotografia, no entanto, processualmente ganha mais espaço na prática científica como elemento de prova. A relação entre homem e máquina se torna cada vez mais estreita, com o auxílio da máquina o olho do homem pode agora materializar aquilo que vê. Tenhamos isso sempre em mente, por traz da máquina há um sujeito e a visão de mundo de quem a aciona, condicionando o recorte do objeto real. Como teoriza Maria Eliza Borges em História e Fotografia, a fotografia apresenta-se como uma linguagem que não é nem verdadeira nem falsa, esta é uma representação de mundo que varia de acordo com os códigos culturais de quem produz. Há de se considerar seu sentido polissêmico, seus usos e significados. Segundo Ulpiano Bezerra de Menezes a fotografia não se faz importante para os questionamentos históricos apenas pela imagem impressa. Não se trata de um conjunto

581

de códigos abstratos, sua percepção pode ocorrer a partir do seu corpo e de suas especificidades. O estudo que trabalha a análise morfológica do documento visual atenta-se aos atributos formais, compositivos e icônicos das imagens, tratando da potencialidade dos documentos. Menezes aponta para a importância dos contextos de consumo e da utilização midiática, além de propor colocar a fotografia em sua situação de uso e de apropriação, não apenas como um “emissor semiótico”, mas como um artefato. “Analisar a fotografia como um artefato significa considerá-la um objeto que é produzido e circula entre grupos sociais, sendo reapropriado, resignificado, m odificado materialmente (p.ex., a fotografia sai da carteira, vai para o portaretrato, depois para um álbum, depois para um antiquário que a vende sem o álbum, depois para um museu, é publicada etc.)” 11

Os principais documentos utilizados na pesquisa são relatos de viajantes, a literatura científica do período, e principalmente as séries fotográficas construídas ou adotadas pelos cientistas para compor quadros ilustrativos e comprobatórios de suas pesquisas. As séries fotográficas produzidas na Expedição Thayer propunham uma confirmação de teorias pré-estabelecidas. O professor Louis Agassiz e seus assistentes contavam com o auxílio de três fotógrafos. Augusto Stahl, italiano que residia no Rio de Janeiro e obtivera do imperador D. Pedro II o título de Photographo da Casa Imperial, Walter Hunnewell12, estudante de Harvard e membro voluntário da expedição e George Leuzinger13, fotógrafo suíço proprietário da Casa Leuzinger no Rio de Janeiro, que teria fornecido um conjunto de fotografias paisagísticas especialmente para a expedição. Stahl e Hunnewel foram os responsáveis pelas séries fotográficas “Raça Pura” e “Raça Mista”, respectivamente. A primeira, registrando etnias africanas diversas no Rio de Janeiro e a outra para compor um quadro comparativo, registrando os tipos “mistos” ou híbridos da Amazônia. Louis Agassiz, naturalista mentor da expedição, esperava construir um grande acervo visual para ilustrar suas idéias sobre as diferenças entre as raças humanas e as conseqüências da degeneração racial. As imagens produzidas na Comissão Geológica do Império tiveram ainda um incentivo mais enfático, pois os materiais coletados na expedição seriam mostrados no estande brasileiro da Exposição Universal da Filadélfia14, em 1876. Tal mostra ganhara mais ênfase ainda com a participação de Marc Ferrez15, fotógrafo da expedição que conseguira registrar um conjunto grandioso de imagens panorâmicas principalmente de paisagens, da geomorfologia e do cotidiano de “tipos humanos” do Brasil.

582

Antes que se volte para aqueles aspectos morais e mentais da matéria que apresentam maior dificuldade, permita-se ao investigador começar dominando problemas mais elementares. Que aprenda, ao conhecer um semelhante, a distinguir num relance a historia do homem, e o ofício ou profissão que exerce. Por pueril que possa parecer, onde olhar e o que procurar. Pelas unhas de um homem, pela manga de seu paletó, por suas botinas, pelos joelhos de suas calças, pelas calosidades de seu dedo indicador e polegar, por sua expressão, pelos punhos da camisa – por cada uma dessas coisas a profissão de um homem é claramente revelada. Que tudo isso somado não chegue a iluminar o investigador competente é, em qualquer circunstância, quase inconcebível. 16

A partir desses documentos que trazem homens e mulheres apenas como corpos desprovidos de identidade, referidas apenas pelas suas características físicas ou pela “raça” que eram enquadrados, pensar esses corpos como sujeitos ativos dentro da sociedade, que pensam, se posicionam, se indignam. Procuro alcançar, portanto, a partir desses documentos turvos, a experiência dos sujeitos (tanto os cientistas como as pessoas comuns que estavam sendo pesquisadas) em relação a fotografia científica. As fotografias produzidas para análises, corporais e frenológicas 17, apesar de seu caráter improvisado, a empanada ao fundo e as posições dos corpos pré-estabelecidas, nos fazem perceber que o indivíduo aparente na imagem, perde sua condição de sujeito e, deslocado de seu meio social e cultural, passa a ser basicamente um instrumento da pesquisa científica. Edward Palmer Thompson em suas obras Costumes em Comum e As Peculiaridades do Ingleses e outros Artigos, atenta para a noção de superioridade do observador, que enquadra, analisa e classifica determinada cultura como inferior, ou remanescente do passado. Todavia, o costume e o ritual foram forma frequentemente encarados pelo cavalheiro paternal – e estrangeiro (no caso da índia) – a partir de cima e por cima de uma fronteira de classe, sendo ainda divorciados de sua situação ou contexto. As perguntas dos folcloristas raramente procuram saber da sua função ou uso corrente. Antes, os costumes eram vistos como relíquias de uma antiguidade remota e perdida, como ruínas desmoronadas de fortificações e povoados antigos. 18

Esses sujeitos, porém, não recebiam tudo isso de forma passiva. Não podemos considerar somente uma imposição cultural de cima para baixo, as trocas culturais transitam nos diversos níveis da sociedade, uma cultura é também um conjunto de diferentes recursos em que há sempre uma troca entre o escrito e o oral, o dominante e o subordinado, a aldeia e a metrópole. Como a fotografia chegava aos fotografados? Em que medida a cultura deles interferia na fruição dos projetos dos naturalistas, modificando- os, remodelando-os, chegando mesmo a alterar sua natureza? Os documentos que chegam até nós sobre os sujeitos comuns, são geralmente produzidas por letrados ligados as classes dominantes. Os registros são repletos de 583

valorações, juízos e classificações. Resta-nos como sugeria Walter Benjamin, ouvir as vozes silenciadas nos documentos oficiais, analisar os documentos a contrapelo distante dos interesses de quem os produziu. Em alguns registros do período (os relatos de aprendizes da expedição) fica sugerido que os naturalistas se utilizavam de suas posições sociais para persuadir mulheres a se despirem, construindo uma série fotográfica mais erótica do que científica, essa perspectiva nos ajuda a entender o lado obscuro das expedições, a subjugação e o aliciamento de nativos. A resistência dos nativos em “ser fotografado” ganha um outro sentido, não ligado apenas a “mitos” gerados em torno da técnica, como registra Elizabeth Agassiz. Nosso antigo acampamento pitoresco na Tesouraria [...] serve agora de ‘atelier’ fotográfico. Agassiz passa ali metade dos dias em companhia de Hunnewell [...]. O grande obstáculo, porém, são os preconceitos populares. Entre os índios e os negros reina a superstição de que um retrato absorve alguma coisa da vitalidade do indivíduo nele representado e que está em grande perigo de morte próxima quem se deixa retratar. Tal idéia está tão profundamente arraigada que não tem sido fácil vencer as resistências. Aos poucos, porém, o desejo deles se verem na imagem vai dominando; o exemplo de alguns mais corajosos anima os tímidos e os modelos vão se tornando muito mais fáceis de conseguir do que a princípio.19

Mesmo com o boato e os medos de uma máquina até então completamente estranha para muitos dos fotografados, estes deixavam transbordar suas condições de sujeitos, demonstrando interesse ou recusa em serem fotografados. Como traz Thompson em Costumes em comum, se a muitos desses pobres se negava o acesso à educação, ao que mais eles podiam recorrer senão à transmissão oral, com sua pesada carga de costume. A transmissão oral era geralmente o poder que estava ao seu alcance. Podemos compreender a partir de tal perspectiva que as pessoas fotografadas não eram meros espectadores, sujeitos passivos ou simplesmente objetos de pesquisa. Estas pessoas cujas identidades eram ocultadas pela identificação racial, mostravam seus estranhamentos, opiniões, recuos e posicionamentos. As diferenças entre as duas séries fotográficas da Expedição Thayer é enorme, enquanto as fotografias de Stahl seguem um padrão de análise corporal, poses préestabelecidas e refinamento técnico, as fotos de Hunnewell ressaltam a falta de recursos e um caráter amador. O fundo da precária instalação se faz sempre aparente, as imagens não seguem o padrão frenológico, e o que se tem de registro até hoje revela que apenas mulheres foram fotografadas despidas, gerando em torno da produção da série Raça Mista uma desconfiança e um caráter duvidoso. Segundo Maria Helena P. T. Machado em O Brasil no olhar de William James, a literatura de viagem da época fomentava o receituário da exotização-erotização do “outro”, o nativo, que parecia se apresentar em 584

estado de disponibilidade nas situações dos encontros assimétricos das viagens coloniais. É neste entrelaçamento entre ciência e fotografia que busco entender a experiência dos sujeitos atreladas as expedições científicas na segunda metade do século XIX. Além da intenção do produtor, as significações, os usos atribuídos e a materialidade da fotografia, deve-se ressaltar a capacidade desta de difundir idéias e construir perfis socioculturais20.

1

A fotografia foi inventada no século XIX a partir de experiências e cientistas diversos. A primeira fotografia reconhecida data de 1826. A primeira patente para um processo fotográfico data de 1835 e a divulgação oficial do método fotográfico se dá em 1839. O invento tornou-se conhecido como obra de Joseph Nicéphore Niépce e mais ainda de Louis Jacques Mandé Daguerre, o criador do daguerreótipo. (BORGES, 2011. p. 115-120). Ver: http://www.museuimperial.gov.br/exposicoes-virtuais/3023.html 2 Ana Maria Mauad analisa em três séries fotográficas o caráter tipicamente burguês das representações sociais e dos comportamentos da classe dominante no Rio de Janeiro, durante a primeira metade do século XX. Ver: MAUAD, Ana Maria. Sob o signo da imagem: A Produção da Fotografia e o Controle dos Códigos de representação Social da Classe Dominante, no Rio de Janeiro, na Primeira Metade do Século XX. 1990. 340f.: Dissertação (mestrado) em História UFF. 3 A carte de visite era uma modalidade fotográfica feita a partir de um aparelho que permitia fazer de seis a oito clichês em uma mesma placa fotográfica, impressas em tamanho pequenos (5,7x10,8cm). Foi inventada pelo fotógrafo francês André A. Eugène Disdéri e tornou-se modismo mundial durante a década de 1860, provocando o barateamento e a popularização da fotografia. A carte de visite era geralmente trocada entre parentes e amigos. 4 A dimensão artística da fotografia, principalmente no período do reconhecimento oficial da técnica, foi encarada com resistência e até negação por muitos artistas e conhecedores de arte, a discussão sobre a natureza artística da fotografia é suscitada até hoje. Este tipo de rejeição explica, pelo menos parcialmente, porque tantos fotógrafos daquela época passaram a produzir imagens fotográficas a partir de critérios que norteavam o universo da pintura. Dialogar com a tradição era, talvez, o caminho mais seguro para validar a nova forma de olhar e dar a ver o mundo. (BORGES, 2005.p.40-50). 5 Refiro-me aqui à Teologia Natural, como o pensamento científico que tenta explicar a origem orgânica e a ocorrência de fenômenos naturais por meio da ação de Deus, procurando conciliar ciência e religião. Ver: FARIA, Felipe. Georges Cuvier: do estudo dos fósseis à paleontologia. São Paulo: Editora 34, 2012. 6 Charles Darwin em seu livro “A Origem das Espécies” de 1859, toma o processo da evolução pela teoria da seleção natural para explicar a adaptação e a especialização dos seres vivos, onde as características hereditárias favoráveis tornam-se mais comuns em gerações sucessivas de uma população de organismos que se reproduzem, portanto características desfavoráveis tornam-se menos comuns. 7 BURKE, Peter. Testemunha Ocular: história e imagem. Bauru, SP: Edusc, 2004. P.27. 8 LIMA, Solange Ferraz de; CARVALHO, Vânia Carneiro de. “Fotografias: Usos sociais e historiográficos”. In: PINSKY, Carla Bassanezi; LUCA, Tânia Regina de (Orgs.). O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009. P.31. 9 A arte romântica enfatiza os estudos mentais e subjetivos, tais como sentimento, disposição de espírito e intuição. Valorizava o sublime, o encontro com a imensidão da natureza, no qual o homem reconhecia sua efemeridade e seu caráter moral. A pintura de paisagens se desenvolveu muito por causa da fascinação com o meio natural. Ver: LITTLE, Stephen. Ismos: para entender a arte. São Paulo, editora Globo, 2010. 10 FREITAS, Marcus Vinicius de. Hartt: Expedições pelo Brasil Imperial 1865-1878. São Paulo: Metalivros, 2001. P.178. 11 LIMA, Solange Ferraz de; CARVALHO, Vânia Carneiro de. “Fotografias: Usos sociais e historiográficos”. In: PINSKY, Carla Bassanezi; LUCA, Tânia Regina de (Orgs.). O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009. P.60 12 Hunnewell, chegando ao Rio de Janeiro foi enviado por Agassiz para aprender os rudimentos da fotografia em um dos estabelecimentos fotográficos da cidade, provavelmente de Leuzinger ou mesmo de Augusto Stahl.

585

13

George Leuzinger pertencia a família proprietária da Casa Leuzinger, pioneira no ramo iconográfico no Brasil. Além de ter produzido uma grande quantidade de litografias da cidade do Rio de Janeiro em meados de 1840, no início dos anos 1860 instala em seus aposentos uma oficina fotográfica. 14 As exposições universais movimentavam vários aspectos da vida social, econômica e cultural, eram grandes “espetáculos da modernidade” e tinham o caráter de publicisar os inventos e mercadorias como em uma vitrine. Demonstravam além dos produtos disponíveis pelo sistema de fábrica, as crenças e virtudes do “progresso”, da disciplina do trabalho, do tempo útil e das possibilidades redentoras da técnica. Promoviam os avanços tecnológicos e científicos, e por outro lado serviam como uma grande mostra de excentricidades de diversas civilizações do mundo, dando ênfase no caráter cosmopolita e imperialista do evento. Ver: PESAVENTO, Sandra Jatahy. Exposições universais; espetáculos da modernidade do século XIX. São Paulo: Editora Hucitec, 1997. A Exposição da Filadélfia, realizada em 1876, comemorou oficialmente a passagem do centenário da independência norte-americana, foi a feira que obteve maior número de expositores e visitantes até então, sendo ultrapassada dois anos depois pela Exposição de Paris. Dentre os produtos mostrados pela primeira vez ao grande público, estava o telefone de Alexander Gram Bell. Doze nações possuíam estandes de exibição, o Brasil estava entre elas. Ver: HARDMAN, Francisco Foot. Trem fantasma: a modernidade na selva. São Paulo: Companhia das Letras, 1988 e SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 15 Marc Ferrez nasceu no Rio de Janeiro em 1843. Seu pai Zepherin Ferrez, e seu tio, Marc, escultores franceses formados pela École dês Beaux-Arts de Paris, haviam chegado ao Rio de Janeiro em 1817, passando a integrar a Missão Artística Francesa. Marc Ferrez, trabalhou na Casa Leuzinger e ficou famoso pelo seu ateliê na Rua do Ouvidor e sua vasta atuação compõe ainda hoje um dos maiores acervos de fotografias do Brasil oitocentista. 16 DOYLE, Arthur Conan. Um estudo em vermelho. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.P.32. 17 Frenologia é uma teoria que reivindica ser capaz de conhecer as faculdades intelectuais e morais (caráter, características da personalidade, grau de criminalidade) através do estudo do crânio humano. 18 THOMPSON, Edward Palmer. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2012. P.231 19 AGASSIZ, Louis e Elizabeth Cary Agassiz. Viagem ao Brasil: 1865-1866. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1975. P.171 20 Ver BORGES, Maria Elisa Linhares. História & fotografia. 2.ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.

586

Justiniano José da Rocha: imprensa e política (1836-1840) Claudia A. A. Caldeira1

A imprensa, além de sua importância na construção de uma esfera pública de debates, também foi uma via de acesso ao campo político. O presente comunicado busca refletir sobre este último aspecto a partir dos primeiros passos na imprensa daquele que seria considerado um dos maiores jornalistas do Segundo Reinado: Justiniano José da Rocha. Com esse intuito, destaca-se sua atuação nos jornais O Atlante e O Chronista, que faziam oposição ao Regente Feijó, e a rede de relações que estabeleceu a partir de sua atuação nestas folhas. Palavras-chave: imprensa, política e Justiniano José da Rocha

Abstract

The press, as well as it´s importance in the construction of a public sphere, was also a gateway to the political field. This article shows the first steps in the press that it would be considered one of the greatest journalists of the Second Empire: Justiniano José da Rocha. To that, we seek highliht its performance in the papers: O Atlante and O Chronista, and the network of political relationships which formed from the press.

Key words: press, political, Justiniano José da Rocha

1. Introdução

A trajetória de Justiniano José da Rocha foi marcada por sua atuação no jornalismo político, ao qual se dedicou por cerca de vinte anos. Embora seja comum se recorrer aos jornais no qual atuou como fontes que informam sobre as questões políticas discutidas durante parte da Regência e o Segundo Reinado, o presente trabalho busca a partir de experiência assinalar a importância da imprensa como uma possível via de acesso ao campo político, capaz de conferir aos desprovidos de boas relações neste espaço a visibilidade necessária para chamar atenção de políticos mais experientes que já haviam conquistado um espaço nas facções ou partidos.

587

2. O Atlante

Ao deixar o curso de Direito, Justiniano, que não nascera em uma família ligada à política ou à magistratura, encontraria dificuldades para ingressar nesta última e daí possivelmente seguir a carreira política. Sem contar com a proteção de um político mais experiente que pudesse lhe franquear as portas no início de sua trajetória, atuava como advogado, adquirindo experiência, em um modesto escritório na Rua de Traz do Hospício, nº. 1. 2 Convém assinalar que Rocha já fizera parte da Sociedade Defensora da Liberdade e Independência Nacional, associação que teve destacado papel político, constituindo-se em um importante apoio da facção moderada até meados da década de 1830, chegando a fazer parte de sua diretoria, em 1835, ao lado de Evaristo da Veiga, momento em que a Defensora deixaria de existir. Além disso, ao contrário de outros alunos do curso de Ciências Jurídicas e Sociais que faziam da imprensa campo de treinamento, e no exercício dessa atividade também ganhavam visibilidade, atraindo a atenção de políticos mais experientes. Não raro essa aproximação resultava na ampliação ou formação de uma rede de relações que poderia facilitar seu acesso à carreira política. Neste sentido, a experiência de Paulino Soares de Sousa, o Visconde do Uruguai, é bastante significativa. Nos tempos de estudante da Faculdade de Direito de São Paulo, teria colaborado em um jornal, chamando a atenção de dois políticos de tendências opostas, Antônio Carlos Ribeiro de Andrada e José da Costa Carvalho, com os quais manteria contato3. Outro a engajar-se na imprensa nos tempos de estudante foi Thomaz Nabuco, que ensaiou seus primeiros passos na política fundando, ao lado de dois companheiros, Ferraz e Sinimbu, O Eco de Olinda, na década de 1830, quando estudava Direito na faculdade de Olinda. Nesta publicação, Thomaz Nabuco se mostrava inclinado ao federalismo, contudo não tardaria a rever sua posição. Em sua segunda folha, O Velho de 1817, defendeu ideias mais próximas ao chamado Regresso. Segundo José Nabuco, a fase federalista seria apontada, mais tarde, como uma tentativa de fazer-se eleger deputado logo que completasse o curso de Direito 4. O ingresso de Justiniano no jornalismo político ocorreu em 1836, um ano após a dissolução da Sociedade Defensora e de lançar o opúsculo Considerações sobre a administração da justiça criminal no Brasil, e especialmente sobre o júri, obra na qual

588

criticava algumas das ideias defendidas por esta associação e pela facção moderada. Nota-se aqui a coincidência entre o encerramento de um espaço de debate político, do qual Justiniano fizera parte, com o lançamento de seu opúsculo e sua estreia na imprensa, indicando a possível busca por outro canal de discussão que lhe rendesse, talvez, maior notoriedade. O opúsculo não passaria despercebido, pois, segundo palavras do próprio Rocha, teria sido convidado a escrever em dois periódicos: um contrário à política do governo de Feijó e à Regência da princesa D. Januária, e o outro avesso somente a esta última. Optaria pelo primeiro, passando a escrever para um grupo de políticos pernambucanos, ficando Sebastião do Rego Barros como intermediário entre o grupo e Justiniano José da Rocha, recebendo seus artigos para publicação5. O Atlante seria impresso na tipografia de Francisco de Paula Brito, composto por quatro páginas e circulou duas vezes na semana: às terças e sextas-feiras. Contudo, sua passagem pela folha seria breve, pois não tardaria a discordar do posicionamento dos mantenedores da folha. Ainda em 1836, iria se lançar em uma nova experiência ao lado de dois companheiros do curso de Direito.

3. O Chronista ...um amigo meu de todos os dias... Josino Nascimento Silva convidou-me para escrever um periódico onde ele, moço e sem relações, e eu, moço sem e relações, lançássemos as nossas ideias, disséssemos o que nos parecia verdadeiro6

Assim começava o lançamento d’O Chronista, que objetivava não só manifestar as opiniões de seus redatores, mas também abrir algumas portas para os dois jovens sem relações, saídos do curso de Direito e que também foram seus companheiros na Sociedade Phillomática. O jornal iniciou suas atividades no final de maio de 1836, circulando às segundasfeiras, passando, após seu sexto número, a sair igualmente aos sábados. Em seu primeiro semestre, chegou a contar com oito páginas, passando em seguida para quatro 7. A impressão e a venda das assinaturas eram efetuadas no estabelecimento pertencente à família de Josino Nascimento Silva: a Tipografia Comercial de Silva e Irmão, fator que deve ter influenciado na criação da folha. Aos dois jovens amigos, juntar-se-ia o mineiro Firmino Rodrigues Silva. Este último, o mais jovem do trio de redatores, ao

589

contrário de seus dois companheiros, ainda estudava no curso de Direito da Faculdade de São Paulo, quando aceitou colaborar na folha, obtendo o grau de bacharel somente em 1837. Como os outros dois redatores, não nascera em família de boa posição social e política, era mais um jovem sem relações em busca de uma colocação. O convite para participar d'O Chronista partira de Rocha e inaugurava uma parceria que se estenderia também nas páginas do jornal O Brasil na década de 1840. Ao contrário de Firmino, Josino Nascimento Silva contava com alguma experiência na imprensa, tendo publicado, ainda no curso de Direito, o jornal O Amigo das Letras, que apesar de seu título não tratava somente de assuntos pertinentes ao universo literário, mas também de política. A folha é considerada a primeira publicação de um discente do curso de Ciências Jurídicas de São Paulo, e circulou apenas seis meses, de abril a setembro de 1830. Além dos artigos produzidos por seu criador, o jornal contava com a colaboração dos alunos que contribuíam com poesias e traduções. Ao encerrar suas atividades deixava um legado de trinta e dois números ou 288 páginas. Da soma das experiências e expectativas de seus três redatores nasceria O Chronista, precursor da publicação do folhetim no Brasil, pioneiro na crítica teatral, mas principalmente uma folha política, cujo posicionamento iria se aproximar das ideias defendidas pelo Regresso, que teve no político Bernardo Pereira de Vasconcelos um de seus líderes. Deste movimento, aproximavam-se na crítica às mudanças introduzidas no setor judiciário, a partir da criação do Código de Processo Criminal e do Ato Adicional de 1834, principalmente os cargos elegíveis, que passaram a concentrar em suas mãos funções antes pertinentes aos magistrados. Apesar de O Chronista reconhecer possíveis abusos desses profissionais, não via nos jurados ou juízes de paz maior retidão. Para o jovem advogado e redator os cargos elegíveis estavam sujeitos a ser corrompidos da mesma forma que os magistrados, porém somava-se a isso a falta de entendimento

das

leis, posição essa que Justiniano também defendeu em seu opúsculo. Todavia, a folha divergia da opinião de Vasconcellos em relação à lei de extinção ao tráfico, posição essa que mudaria em setembro de 1837, um mês antes de Justiniano José da Rocha ser convidado pelo político a assumir a direção do Correio Official. Passava O Chronista a atenuar seu discurso em relação ao tráfico de escravos, pois até então defendia a necessidade de fazer-se cumprir a lei estabelecida em 1831. Embora a folha não se dissesse contrária à sua aplicação, destacava, no entanto, a sua ineficácia.

590

...Já fomos mais, do que hoje somos, hostis ao tráfico de escravos (grifo meu), nosso coração entusiasta da liberdade política, não podia conceber como homens houvessem capazes de por outros homens em cativeiro, de privá-los de seu direito, de sua liberdade; agora porém que mais frios pensamos sobre essa grave questão, não sabemos se houve, se houve mesmo humanidade quando se celebrou o tratado com a Inglaterra abolindo o tráfico, e quando se fez a lei de 7 de novembro de 1831.8

Na década de 1850, Rocha recordaria a aproximação do jornal com o partido que se formava, destacando que o contato entre Vasconcelos e a folha fora direcionado unicamente a ele, excluindo os demais:

...apareceu O Chronista, e inclinou-se para o partido, reação monárquica que ia aparecendo. Já então o partido das nossas ideias, o partido reator, se juntava, se reunia e tinha no Parlamento os seus representantes; mas nós não conhecíamos nem de vista a nenhum deles. Veio para esse partido o dia do triunfo, e então uma causalidade me pôs a mim só, e não a meus colegas d'O Chronista, em relação direta com o ministro, uma causalidade singular para um homem público, o projeto da fundação do Colégio Pedro II, e a sustentação do Correio Oficial...9

Como responsável pela folha ministerial, receberia o salário de 3:600$000 anuais. Deveria, além de defender os atos do novo Ministério, pôr em prática as críticas que tecera à organização da folha, apontando melhorias que poderiam ser introduzidas com o intuito de levar ao público informações sobre o tesouro público, a polícia entre outros, e também por não comentar os atos ministeriais e publicá-los com atraso.10 Sua nomeação para a direção da folha lhe renderia críticas na imprensa, que o acusava de se ter vendido ao governo, provavelmente por Rocha divergir, pelo menos inicialmente, em algumas questões, como já foi mencionado, passando a atrelar-se ao partido regressista, defendendo oficialmente os atos do Ministério que se formara com políticos dessa tendência. Contudo, Justiniano não tardaria a se decepcionar com aquele que julgava ser seu padrinho político, revelando em sua correspondência suas dificuldades diante da forma como a folha era conduzida, e que implicava em seu próprio obscurecimento:

Recebi da tipografia Nacional, para onde tinham levado uma carta de V. Excª, que me ordenava que respondesse ao correspondente do Diário, que havia caluniado a V. Excª. Ignorando o sentido da resposta, que V. Excª queria, apressado arranjei essa, que ontem mesmo foi publicada, e que muito estimarei tenha satisfeito aos desejos de V. Excª...

591

V. Excª há de estar lembrado que na conversação com que me honrou no dia 16 de abril, expus o quanto me era desagradável estar encarregado de um periódico, cuja importância era inteiramente nula e em que não podia escrever um artigo de política, entrar em uma discussão qualquer, por não saber se as doutrinas, que ia expender, eram do agrado ministerial. Nessa ocasião confessei a V. Excª que se tinha continuado com essa sinecura era porque não podia, atentais as minhas circunstâncias e as de meu mísero pai, prescindia dessas patacas... (grifo meu) No entanto a não ser em alguns artigos que V. Excª me tem recomendado, e que eu de pronto tenho procurado publicar nada tem sido comunicado para poder escrever, e receando sempre avançar opiniões ou ideias, que não sejam as do ministério, nada tenho escrito, de modo que, a falar com franqueza, envergonhome de mim mesmo, quando me lembro que estou sendo pago para ter os braços cruzados, embora em outros ramos do serviço público tenha muito trabalho, e nem um lucro. 11

A experiência à frente d’O Correio deixaria uma profunda impressão negativa em Justiniano, que seria exposta ao negociar, com Paulino José Soares de Sousa, a direção de uma nova folha que deveria se chamar O Brasil. Ao tratar com Paulino, Rocha deixava claro que não desejava ser tratado como mera peça descartável no jogo político, diante da difícil tarefa que iria tomar para si ao assumir o novo jornal. Não queria ser laranja de que se aproveita o caldo e deita-se fora a casca,12 referindo-se à atitude do Ministério de 19 de setembro de 1837, ou melhor, de Bernardo Pereira de Vasconcellos:

...vamos de novo escrever um periódico ministerial, não nos acontecera ficar como no Chr., prejudicado em nossas algibeiras: mas num país cuja moralidade tudo explica por contratos de compra e venda não comprometeremos nós o nosso futuro? ...O que só queremos é não perdermos de todo o nosso futuro, é que as pessoas do ministério, a quem vamos servir, nos considerem dignos de sua aliança, e não instrumentos comprados com alguns mil réis, e no ministério, ou fora do ministério, nos deem a consideração, e proteção correspondente a nossa dedicação... 13

Não perder de todo o seu futuro poderia significar uma oportunidade melhor do que até então alcançara. Na verdade Rocha pedia o reconhecimento de sua atividade como parte importante no jogo político, homens dignos de aliança e não meros instrumentos comprados, em que o compromisso findava mediante a quantia estipulada, pois ele considerava a imprensa como peça fundamental do sistema representativo, como parte do partido pelo qual se colocaria em campo. Para conduzir a nova folha, chamaria o amigo Firmino Rodrigues Silva, que dava seus primeiros passos na magistratura. Deixando de fora, porém, Josino Nascimento Silva, que se tornaria redator do Diário do Rio de Janeiro e, segundo 592

Rocha,

colaborador secreto d'O Sete de Abril, folha ligada a Vasconcellos. Este último, assim como Justiniano, seria indicado a deputado na eleição de 1843. O primeiro, contando com o apoio de Paulino, que passara a integrar o Ministério formado em 1841, concorreria pela província de Minas Gerais. O segundo contou com o apoio d'O Sete de Abril, que o indicava em suas páginas, podendo ser interpretado como aprovação de Vasconcellos; contudo, ao contrário de Rocha, fracassaria nessa primeira tentativa. Cumpre ainda indicar que a imprensa, como via de acesso à política, também pode ser observada em outras trajetórias de Francisco Salles de Torres Homem, Francisco Otaviano e José da Silva Paranhos, entre outros. Ainda corrobora essa ideia o fato de mesmo aqueles que já contavam com alguma notoriedade, como Joaquim Manuel de Macedo, famoso por seus folhetins, que para ingressar na política recorreu à criação da folha liberal A Nação, podendo assim se apresentar devidamente a este círculo.

1

Doutoranda em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. AURORA FLUMINENSE, 1835:1081 3 SOUSA, José Antônio Soares de. A Vida do Visconde de Uruguai. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1944, p.31. 4 NABUCO, JOAQUIM. Um estadista do império. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. vol.1: p. 48 5 CARDIM, Elmano. José Justiniano da Rocha. São Paulo: Companhia e Editora Nacional, 1964,p.15. 6 Idem,Ibidem. p.104 7 No acervo da Biblioteca Nacional não há exemplar de seu 1º. número. O segundo número da folha data de 23 de maio de 1836. 8 O CHRONISTA , 1837:94 9 CARDIM, Elmano. José Justiniano da Rocha. São Paulo: Companhia e Editora Nacional, 1964,p.105 10 O CHRONISTA, 1836,n. 11 11 ROCHA, Justiniano José da Rocha. Carta a destinatário desconhecido pedindo orientação sobre as matéria a que deve ser publicada em favor do ministério, criticando todos os outros diários oposicionistas. 2 doc. Rio de Janeiro, 17 de junho de 1839. 12 SOUSA, José Antônio Soares de. Cartas de Justiniano José da Rocha ao Visconde de Uruguai. In. RIHGB.Rio de Janeiro,1953, vol. 220, p.343. 13 Idem, Ibidem. 2

593

As Ordens Terceiras e a configuração urbana da Cidade do Rio de Janeiro

Claudia Barbosa Teixeira*

Resumo: As Ordens Terceiras são associações religiosas ligadas à Igreja Católica que nasceram do desejo dos leigos de usufruir da espiritualidade de uma determinada Ordem Religiosa. Este artigo visa apresentar as principais Ordens Terceiras que se instalaram na cidade do Rio de Janeiro entre os séculos XVII e XVIII e apontar o papel desempenhado por cada uma delas na configuração urbana da cidade. Palavras-chave: Rio de Janeiro; Ordens Terceiras; Espaço urbano. Abstract: The Third Orders are religious associations connected to the Catholic Church that had been born of the desire of the laypeople to usufruct the spirituality of one determined Religious Order. This article aims to present the Third Orders that were installed in the city of Rio de Janeiro between centuries XVII and XVIII and to point the role played for each one of them in the urban configuration of the city. Keywords: Rio de Janeiro; Third Orders; Urban space.

Introdução Como parte da pesquisa sobre a territorialidade da Igreja Católica na cidade do Rio de Janeiro identificou-se o importante papel das Ordens Terceiras como colaboradoras no processo de ocupação inicial do território carioca. O objetivo desse artigo é apresentar as três primeiras Ordens Terceiras que foram instituídas na cidade – a de São Francisco da Penitência, de Nossa Senhora do Monte do Carmo e a dos Mínimos de São Francisco de Paula - e apontar o papel desempenhado por cada uma delas na sua configuração urbana até o final do século XVIII.

*Arquiteta e Urbanista. Doutora em História Política pelo PPGH da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Mestre em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal Fluminense. Email: [email protected]

594

1. As Ordens Terceiras

As Ordens Terceiras1 são associações que surgiram do desejo dos leigos, de ambos os sexos, de usufruir da espiritualidade da vida religiosa e/ou monástica de uma determinada Ordem Religiosa. Os fiéis leigos organizavam-se em torno dela colaborando financeiramente com a construção, ornamentação e manutenção das igrejas. A aprovação para a criação de uma Ordem Terceira dependia dos gerais ou dos provinciais da Ordem Religiosa correspondente: os únicos que gozam de privilégio concedido pela Santa Sé para tal fim. Por outro lado, essa filiação possibilita aos terceiros seculares gozarem de numerosas graças e indulgências concedidas por Roma às ordens primeiras. A admissão é extremamente mais seletiva que nas irmandades, tanto no que respeita aos requisitos para a candidatura, quanto ao processo de sindicância, para não mencionar o ritual de profissão. Via de regra, as ordens terceiras se caracterizavam por serem associações das camadas mais elevadas, sendo a composição de seu quadro social mais sofisticada.2

Portanto, verificou-se que a admissão nas Ordens Terceiras era seletiva, constituindose de fiéis de camadas sociais mais elevadas. “Ser membro de uma ordem terceira significava ter acesso ao interior da nata da sociedade e trânsito facilitado nela. Significava status.” 3 Na maioria das vezes a estrutura organizacional dessas instituições contava com uma Mesa Diretora composta por Irmãos que eram eleitos anualmente, cada um para um cargo hierárquico específico, que além de exercer sua função, eram responsáveis pela decisão de permitir ou não a entrada de um novo membro. A relação do fiel da Ordem Terceira era de devoção e serviço ao orago, o que compreendia o culto a ele através de missas, procissões, doação de esmolas. As festas, além do caráter religioso, tinham um importante papel social, pois consolidavam ainda mais a comunidade de Irmãos, fortalecendo os laços de amizade e solidariedade. A essas práticas somavam-se mais e mais fiéis que alimentavam o ciclo de manifestações públicas da crença católica. Em contrapartida, a Ordem Terceira ou Irmandade era a segurança dos Irmãos com relação a doenças, ao auxílio às viúvas e aos órfãos, e à morte. Ressalta-se que as Ordens Terceiras, assim como as Irmandades eram órgãos vivos, com intensa atividade social e religiosa, funcionando muitas vezes como um órgão de registro civil. Eram em seus livros onde unicamente se registravam batizados, casamentos e óbitos. Portanto, a construção das igrejas das Ordens Terceiras, principalmente a partir de meados dos setecentos passou a obedecer a um projeto mais elaborado para corresponder à

595

necessidade funcional das mesmas. Os espaços secundários, de apoio ao culto e à organização da instituição como a sacristia, o consistório, o coro, as tribunas, os corredores, as galerias e as capelas fora do espaço da nave, aumentaram em número e tamanho. Tal fato materializava a evolução da sociedade e da religiosidade da população carioca, sendo as igrejas das Ordens Terceiras, por sua imponência na paisagem da cidade, facilmente identificadas.

2.

A Ordem Terceira de São Francisco da Penitência Analisando a história da Igreja Católica verificou-se que a primeira Ordem Terceira a

ser instituída foi a de São Francisco da Penitência, por iniciativa do próprio São Francisco de Assis, fundador da Ordem dos Frades Menores. O objetivo era reunir os fiéis leigos desejosos de viver a espiritualidade franciscana, que buscavam alcançar a perfeição cristã, sem deserção da própria família e sem renunciar as suas propriedades, trabalho e vida quotidiana. A primeira Regra para conduzir a vivência dos irmãos terceiros foi aprovada pelo papa Nicolau IV em 1289. Daí por diante em todos os países onde se instalou a Ordem dos Frades Menores, logo em seguida se constituía a Ordem Terceira. Os frades franciscanos chegaram ao Rio de Janeiro em 1592, tendo permanecido por 15 anos na capelinha de Santa Luzia, construída por uma irmandade de pescadores. Em 1607 receberam as terras no Morro de Santo Antônio onde, em 1608, iniciaram a construção do Convento e da Igreja de Santo Antônio. A Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência foi instaurada no Rio de Janeiro em 1619 pelo português Luís de Figueiredo e sua mulher. Os freis franciscanos lhes cederam o direito de construir uma capela, em anexo à igreja conventual. Em 1622 já se encontrava concluída a Capela da Imaculada Conceição. Com o passar do tempo os Irmãos acharam que a capela era pequena e adquiriram da Ordem Regular uma área de terras ao lado do convento, onde iniciaram a construção da nova igreja no ano de 1657. Por causa de desavenças entre a Ordem Terceira e os freis, houve paralisação das obras entre 1716 e 1726. Somente no ano de 1772 a igreja de São Francisco da Penitência foi considerada concluída. A construção do templo simbolizava o patrimônio que a Ordem Terceira adquiriu ao longo dos anos. Esta igreja se caracteriza por ser uma das mais ricas da cidade, sendo considerada por Alvimi uma das composições mais elaboradas da arquitetura luso-brasileira, pela riqueza e coesão formal de seu interior. Além do templo, no mesmo período, os Irmãos da Ordem construíram um hospital em área contígua à igreja. No início do século XX, devido ao projeto de alargamento de diversas ruas do Centro da cidade, o hospital foi desapropriado, tendo sido transferido para uma chácara no bairro da Tijuca, onde funciona até hoje.

596

Até o

final do século XVIII, somavam-se ao patrimônio da Ordem, cento e setenta prédios no centro da cidade e um trapiche próximo ao mar. Cabe salientar que a localização da igreja da Penitência não era das mais nobres à época em que foi construída. Porém, a instituição sempre contou com homens e mulheres de prestígio e com alto poder aquisitivo e certamente foi uma das que mais prosperou na cidade. Ao lado da igreja conventual, através de suas práticas religiosas como procissões, missas e festas dedicadas a São Francisco de Assis, cortejos fúnebres, ladainhas e orações do terço, a Ordem Terceira da Penitência manteve seu território e até hoje atrai milhares de fiéis.

3.

A Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte do Carmo A Ordem dos Irmãos da Bem-Aventurada Virgem Maria do Monte Carmelo, ou

Ordem do Carmo, foi uma das ordens mendicantes surgida na Idade Média, provavelmente entre os anos de 1153 a 1159, formada por cruzados leigos que chegaram ao Monte Carmelo, em Israel, onde acreditavam ser o local de habitação do profeta Elias. Procuraram, a partir daí, viver uma vida de eremitas, aos moldes do profeta do Antigo Testamento. A Regra da Ordem foi ditada por Alberto de Jerusalém e só no ano de 1216 foi reconhecida pelo papa Honório IV. A Venerável Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte do Carmo, ou Ordem Terceira do Carmo, teve sua criação aprovada pelo Papa Nicolau V, em 1452. Três anos depois a Regra dos Terceiros foi aprovada. Os principais objetivos da Ordem Terceira eram a busca da perfeição cristã, a difusão do culto à Nossa Senhora do Carmo , a propagação da fé católica e o exercício da caridade. Tempos depois, acrescentou-se o caráter assistencial da instituição. Os frades carmelitas chegaram à cidade do Rio de Janeiro, vindos da cidade de Santos no ano de 1590, e lhes foi oferecido o Morro de Santo Antônio, onde já existia uma ermida com o nome do santo. Preferiram ocupar uma antiga ermida na várzea na região conhecida como Nossa Senhora do Ó (atual praça XV), onde posteriormente foram construídas a igreja e o convento. A Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte do Carmo, fundada em 1648 e com estatuto datado de 1649, também estabeleceu seu território em terreno contíguo ao da Ordem do Carmo, na rua Direita (atual rua Primeiro de Março). Por muito tempo se reuniram na igreja do convento. Em 1669 inauguraram a Capela da Paixão, dentro do terreno dos carmelitas. Conflitos ocorridos entre os frades e os irmãos durante quase noventa anos geraram uma divisão territorial entre as duas instituições. Em 1755, a Ordem Terceira, através de recursos próprios, adquiriu lotes junto às casas que já possuíam na rua Direita e deram início à construção da sua própria Igreja de Nossa Senhora do Carmo, ao lado da que era 597

conventual. Antes mesmo da construção da igreja, os Irmãos já possuíam um hospital na atual rua do Carmo, que posteriormente daria lugar à Biblioteca Real. Em 1850, a Ordem Terceira, proibida de executar os sepultamentos de seus membros dentro do templo, implantou um cemitério na Ponta do Caju, junto ao da Misericórdia. No mesmo local, atualmente, são proprietários do primeiro cemitério vertical da cidade, o Memorial do Carmo.

4.

A Ordem Terceira dos Mínimos de São Francisco de Paula Em algumas localidades a Ordem Terceira se constituiu antes da Ordem Religiosa

correspondente se instalar. Foi o caso da Ordem Terceira de São Domingos na Bahia, em 17235 e a Ordem Terceira dos Mínimos de São Francisco de Paula, na cidade do Rio de Janeiro. A Ordem dos Mínimos de São Francisco de Paula à qual está vinculada a Ordem Terceira foi fundada no final do século XV por Francesco Martolilla que nasceu na cidade de Paola, no sul da Itália, e recebeu esse nome por devoção dos pais a são Francisco de Assis. De acordo com a tradição da Ordem se conservou a lembrança do ano 1435 como data possível do inicio da vida em comum, mesmo não tendo nenhuma confirmação documental. Francisco com seus companheiros teriam começado a construção de um eremitério por volta do ano 1450 e a aprovação pontifícia seria concedida no ano de 1474. A espiritualidade dos Mínimos é marcada por 3 aspectos evangélicos: a humildade, a penitência e a caridade. A Ordem Terceira dos Mínimos é uma associação de leigos que se destina a viver o Evangelho de acordo com o modelo de São Francisco de Paula, compartilhando o carisma penitencial. Sua origem remonta a 1501, por iniciativa do próprio Francisco, a pedido dos leigos desejosos de viver sua espiritualidade sem abandonar suas famílias. Em 1743, foi promovida na cidade do Rio de Janeiro a devoção a São Francisco de Paula, pelo capuchinho frei Anselmo de Castelvrano. No ano de 1754, por iniciativa de Dom Frei Antônio do Desterro Malheiros, bispo da diocese do Rio de Janeiro (1745 - 1773) e devoto de são Francisco de Paula, foi instituída a Venerável Ordem Terceira dos Mínimos de São Francisco de Paula. A licença e a respectiva provisão foi concedida pelo geral da Ordem em Roma e publicada pelo bispo Malheiros em 9 de julho de 1756. O bispo foi considerado o primeiro Irmão da Ordem Terceira e revestido do hábito de são Francisco, ao lado de outros devotos presentes no alto do morro da Conceição: saem em procissão da capela de Nossa Senhora da Conceição do Palácio Episcopal para depositar a imagem do santo padroeiro em um altar na igreja da Cruz (hoje dos Militares), situada na rua Direita, atualmente Primeiro de Março. Tal cortejo era um modo de tornar visível e apresentar à cidade a nova confraria. A imagem de São

598

Francisco de Paula permaneceria naquele templo até o término da construção ermida.6

da

Iniciou-se a construção da ermida no ano de 1757, em terreno doado pelo bispo e pelo seu irmão, o mestre de campo João Malheiros Romão. O sítio escolhido era próximo ao local da construção da nova Sé Catedral, na região conhecida como Largo da Sé Nova, atual largo de São Francisco de Paula, no centro da cidade. Em dezembro do mesmo ano concluiu-se a ermida para onde foi transladada a imagem do padroeiro em procissão pelas ruas da cidade. No dia 5 de janeiro de 1759 lançou-se a primeira pedra para a construção da igreja na presença de Dom Frei Antônio do Desterro, do cabido, das Ordens Regulares, do governador interino José Antônio Freire de Andrade, entre outros. Em 2 de setembro de 1779, o papa Pio VI aprovou a instituição da Ordem Terceira dos Mínimos na cidade e o respectivo beneplácito régio foi expedido no aviso de 13 de outubro de 1779. No ano de 1801 a igreja encontrava-se parcialmente construída, sendo trasladada a imagem do santo para suas dependências. Moreira Azevedo7 relata que os Irmãos receosos de que a presença constante do bispo culminasse com a transformação de sua igreja em catedral, requereram ao Conselho Ultramarino uma deliberação que evitasse tal infortúnio. A Ordem Terceira foi atendida pela provisão de 30 de janeiro de 1806, que declarava que o templo edificado pelos terceiros de São Francisco de Paula não poderia ter, sem seu consentimento, destino diverso daquele para que fora construído. Assim permaneceu a Ordem Terceira dos Mínimos cuja composição da Mesa Diretora estabelecida no seu estatuto era a seguinte: A irmandade era administrada pela intitulada “Mesa Definitória”, composta de 21 irmãos definidores, dos quais 19 eram anualmente escolhidos. O “irmão corretor” ocuparia o cargo mais importante da confraria e os demais irmãos da “Mesa Definitória” teriam outros lugares na hierarquia da administração da irmandade, como o de vice-corretor, secretário e síndico.8

A construção da igreja de São Francisco de Paula naquela localidade, ainda sem um número significativo de edificações, deu nome ao Largo em frente ao templo, bem como a um pequeno logradouro contíguo. Desde 1757, as práticas religiosas eram exercidas no largo, atraindo um número crescente de fiéis que iam aderindo à recém-criada Ordem Terceira dos Mínimos de São Francisco de Paula. A ininterrupta vivência da fé no local colaborou para a manutenção do poder religioso na urbe carioca. Essa Ordem Terceira foi a primeira a fundar um cemitério fora de suas dependências, cuja licença foi obtida em 1849. O sítio escolhido era uma chácara no bairro do Catumbi, onde hoje se encontra instalado o cemitério São Francisco de Paula. Em 1813, por iniciativa de um dos Irmãos da Ordem Terceira se iniciou a construção de um hospital para os membros

599

mais necessitados da confraria. O edifício, construído à custa de doações e esmolas em terreno contíguo à igreja, foi inaugurado em 1828. A igreja de São Francisco de Paula foi palco de algumas celebrações litúrgicas históricas como a ação de graças pela elevação do Brasil a Reino Unido ao de Portugal e Algarves e solene ofício em sufrágio das vítimas das lutas pela independência na capital baiana, no ano de 1822. Também se celebrou nesse templo o Te Deum em comemoração ao aniversário do juramento da Constituição do Brasil, em 1831, contando com a presença do Imperador D. Pedro I. Cabe ressaltar que apenas em 1955 chegaram ao Brasil os primeiros religiosos Mínimos – pe. Giuliano Accardo, pe. Luigi Allevato e frei Natale Ravasio, aportando na cidade do Rio de Janeiro, então capital do país. Por orientação do Cardeal Arcebispo da cidade D. Jaime de Barros Câmara, estabeleceram-se na Barra da Tijuca – bairro que naquela época ainda não era urbanizado - onde iniciariam suas atividades apostólicas. Instituíram no mesmo local a paróquia São Francisco de Paula, criada por decreto do arcebispo D. Jaime em 2 de abril de 1959. As três Ordens Terceiras mencionadas acima se encontram indicadas no Mapa 1, relativo à configuração urbana do centro da cidade do Rio de Janeiro até o fim do século XVIII.

600

Mapa 1 – Localização das Ordens Terceiras na cidade do Rio de Janeiro Até o século XVIII

Elaborado por Teixeira, C. a partir da base cartográfica de Barreiros.9

601

Considerações finais Como foi visto anteriormente, nas Ordens Terceiras, a aglomeração de fiéis sob uma mesma devoção a um santo padroeiro e ao carisma da Ordem Religiosa ao qual estava vinculada foi fundamental na apropriação dos espaços na cidade transformando-os em territórios religiosos. A estes a população se dirigia com frequência, particularmente na época das festas, onde a Ordem Terceira manifestava toda a sua força vital em torno da imagem do padroeiro ou da padroeira. Pelo estudo das Ordens Terceiras revelou-se que essas associações tiveram um papel fundamental no aumento e manutenção da rede de territórios religiosos da Igreja Católica. No exercício de sua territorialidade, cada Ordem Terceira foi envolvendo e cativando um número maior de fiéis, atraindo a atenção do poder público que, por sua vez, investiu recursos em melhoramentos para a região. Percebeu-se que a partir dessa dinâmica de atuação das Ordens Leigas, a Igreja Católica se manteve presente na formação da sociedade cristã carioca. Todas as Ordens Terceiras apresentadas se consubstanciaram em um importante espaço de vivência religiosa, social e política que viria a ultrapassar os limites do seu território religioso. Nos bairros da Tijuca, Caju, Catumbi e em outros diversos pontos da cidade encontram-se edificações vinculadas a essas instituições. Tal fato contribuiu para a expansão territorial da Igreja Católica e da própria cidade do Rio de Janeiro. Estas iniciativas se agregavam as demais ações da instituição para exercer de forma mais eficiente sua territorialidade.

Notas 1

As Ordens Religiosas, em sua maioria, são compostas por sacerdotes e religiosos que constituem a chamada Ordem Primeira. A Ordem Segunda é composta pelo ramo feminino e a Ordem Terceira é composta por leigos de ambos os sexos. 2 BOSCHI, Caio César. Os Leigos e o Poder. Irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais. São Paulo: Ática, 1986. p.p. 19-20. 3 Ibid. p. 20. 4 ALVIM, Sandra. Arquitetura Religiosa Colonial no Rio de Janeiro: plantas, fachadas e volumes. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; IPHAN; Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 1999. 5 HOORNAERT, Eduardo et al. História da Igreja no Brasil. Ensaio de Interpretação a partir do povo. Primeira Época. Petrópolis: Vozes, 1979. p.240. 6 BATISTA, Henrique Sergio de Araujo. Jardim regado com lágrimas de saudade: morte e cultura visível na Venerável Ordem Terceira dos Mínimos de São Francisco de Paula. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2011. p.37. 7 AZEVEDO, Moreira de. O Rio de Janeiro – Sua História, Monumentos, Homens Notáveis, Usos e Curiosidades. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1877, vol. 1. p.231. 8 BATISTA, Henrique Sergio de Araujo. Jardim regado com lágrimas de saudade: morte e cultura visível na Venerável Ordem Terceira dos Mínimos de São Francisco de Paula. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2011. p.38. 9 BARREIROS, Eduardo Canabrava. Atlas da evolução urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IHGB,1965.

602

Queimados, cidade emancipada: historiografia e ensino de história

Claudia Patrícia de Oliveira Costa1

Resumo: Ao considerarmos o local como um campo de reflexões instigantes, objetivamos problematizar as lacunas verificadas na produção historiográfica sobre Queimados enquanto cidade emancipada e da não existência de lugares públicos dedicados à guarda, pesquisa e difusão do conhecimento sobre a cidade. Outrossim, nos propomos a abordar as tensões estabelecidas entre um currículo escolar, que prevê conteúdos relacionados à história do município no 4º ano do Ensino Fundamental, e as práticas de docentes atuantes junto a esse segmento e ano. Palavras-chaves: Baixada Fluminense, Historiografia, Ensino de História

Abstract: By considering the local as a field of instigating reflections, we aim to make problematic the verified blanks in the historiography production about Queimados as emancipated city and the inexistence of public places dedicated to store, research and diffusion of knowledge about the city. Otherwise, we propose to approach the settled pressure by a school curriculum that provides contents related to the municipality History in the 4th year of Elementary school and the practices of active teachers along with this segment and year. Keywords: Baixada Fuminense, Historiography, History Teaching

A grande lacuna interposta, durante muitas décadas, entre a escrita e o ensino da história vem ocupando espaço nos recentes debates dentro e fora do ambiente acadêmico. Animados pela possibilidade do estreitamento de laços entre a pesquisa histórica e suas mobilizações em sala de aula, mediada por saberes de professores e alunos, pesquisadores têm se debruçado com vigor sobre o campo do ensino de história. Segundo Jörn Rüsen, a manutenção dessa lacuna “limita ideologicamente a perspectiva dos historiadores em sua prática e nos princípios de sua disciplina”2. Ao refletirmos sobre tal afirmativa, propomos, nesse artigo, empreender uma análise preliminar do currículo de história do Primeiro Segmento do Ensino Fundamental da rede municipal de Queimados, município da Baixada Fluminense. No esforço por delinear um caminho de pesquisa e dando continuidade a alguns aspectos explorados pela pesquisa de mestrado, fazemos uma ancoragem na pouca

603

produção

historiográfica sobre os jovens municípios da Baixada Fluminense, dentre esses, Queimados. Esses municípios conquistaram sua autonomia política no contexto permeado por grandes mudanças no cenário político nacional e local: o processo de reabertura política brasileira e o reordenamento da dinâmica político-partidária no país, com a extinção do bipartidarismo e o fim do período ditatorial. Tal dinâmica abriu espaço para a emergência de reivindicações de outras reformas e debates sobre o funcionamento do sistema federativo, em especial as relações entre municipalidades e instâncias estaduais e nacionais. Este é um assunto bastante abordado por juristas.3 Também pontuamos algumas pesquisas inscritas no campo da geografia, tomando o território como referencial teórico para empreender estudos sobre as emancipações políticas ocorridas no Brasil a partir da década de 19804 e, em específico, na Baixada Fluminense.5 Em contrapartida, a historiografia sobre as emancipações ocorridas na Baixada Fluminense ainda é marcada pelas obras memorialistas, com abordagens mais descritivas e uma concepção linear de tempo que, além de abarcar um recorte cronológico muito extenso, introduz uma narrativa orientada para o progresso local. Dentre essas produções que propõem a escrita da história de Queimados, destacamos o volume lançado recentemente, de autoria de Vilson Freitas Teixeira. O autor, ainda na apresentação de seu trabalho, explicita a proposta do mesmo, ao afirmar que: Este não é livro de historiador. Esse fato o priva das virtudes do rigor e do método. Não compulsou documentos originais, não foi aos lugares verificar in locum os sítios que foram palco dos acontecimentos, não se debruçou sobre empoeirados arquivos de cartórios e sacristias, “inçados de quilos” de lembranças, de alegrias e tragédias. Não foram utilizadas teorias informadoras do estudo. Tentou, antes, ser um modesto trabalho de professor. Professores não têm tempo para se dedicar a pesquisas e raramente escrevem. Limita-se a reunir informações dispersas nas mais diferentes fontes e disponibilizá-las de forma organizada e facilitada aos alunos. Não foi outra a perspectiva: permitir que as poucas efemérides registradas de Queimados chegassem a quem venha a se dedicar a conhecê-las. Não é, porém, um livro didático. Gostaria o autor que esse livro chegasse a quantos se interessam pela história de Queimados, mas já se sentirá gratificado se um estudante queimadense sobre ele se debruçar para aprontar seus trabalhos escolares.6

Tal afirmativa nos conduz a algumas reflexões, não somente sobre a produção historiográfica atinente à história local, como suas imbricações com o ensino da história. Ao admitir que seu trabalho não dispôs de nenhum arcabouço teórico ou critério metodológico para construir uma narrativa sobre “a história da formação de Queimados”, Vilson Teixeira ancora a justificativa dessa opção no fato de não ser historiador, mas sim professor. “Professores não têm tempo para se dedicar a pesquisas e raramente escrevem. Limita-se a reunir informações dispersas nas mais diferentes fontes e disponibilizá-las de

604

forma

organizada e facilitada aos alunos”, afirma o autor. Retomamos Rüsen e questionamos tal argumentação, na medida em que, a partir dela, o autor evidencia a dicotomia entre pesquisa e ensino, principalmente no que tange à Educação Básica. Também aponta para a simplificação do processo de produção do conhecimento histórico dentro da sala de aula, ao enfatizar o professor como compilador e organizador de dados, de forma torná-los de algum modo acessível aos alunos, sem levar em conta experiências e/ou memórias compartilhadas por esses últimos. Entretanto, Teixeira deposita a expectativa de que o material reunido no livro alcance professores e alunos. Paradoxalmente, nega o potencial didático do seu livro. Segundo o autor, esse trabalho foi solicitado há cerca de 10 anos, pelo então secretário municipal de educação, embora a edição final tenha sido iniciativa própria. O lançamento foi amplamente divulgado pelas mídias locais, tendo merecido destaque no site da prefeitura da cidade, sob o título “Queimados tem o primeiro livro que conta a história de sua formação”. O mesmo texto informava, ainda, que a Secretaria Municipal de Educação seria responsável pela compra e distribuição do livro às escolas da rede pública municipal de ensino e será “referência de pesquisa sobre a história do município.”7 A partir dessas informações, procuramos investigar o potencial desse material como, efetivamente, discurso a ser mobilizado por professores e alunos do município. Desse modo, observamos que produções como essas têm sido confrontadas com pesquisas recentes. Ainda que tratem, majoritariamente, dos municípios de emancipação política mais antiga, esses trabalhos buscam alternativas interpretativas mais críticas ou abrangentes, mobilizando variada tipologia documental e desenvolvendo análises com aporte teórico-metodológico que apontam para o diálogo entre áreas como história e antropologia, ou ainda com a geografia. Tais obras se inserem em recentes debates historiográficos que perpassam o momento de desconstrução e reconstrução das ciências sociais, abrindo possibilidade para o questionamento de paradigmas que defendiam as continuidades e a perspectiva de uma unidade global, como no caso das obras memorialistas. Esse processo, segundo Revel, é carreado pelo fenômeno da globalização, o “estilhaçar da história” ou do surgimento da “história em migalhas”, que procurou destacar as limitações que caracterizações estruturadas ainda mantêm. Para Revel, as descontinuidades, desvios e rupturas, que colocam em xeque a unidade global devem ser tomados pela historiografia como objeto de estudo, buscando situalos em uma abordagem crítica.8 Assim, ainda de acordo com Revel, buscamos em nossa pesquisa, a ancoragem no conceito de escala de observação. Tal conceito traz fôlego ao campo da História Social, na

605

medida em que relativiza o foco nas macroabordagens, nas estruturas ou na longa duração. Segundo os jogos de escala, propostos por Revel, as esferas de observação, sejam elas macro ou micro, não devem apresentar preponderância uma sobre a outra.9 Ou ainda, como propõe Márcia Gonçalves, torna-se “relevante ao enfocar as análises sobre as relações entre o local e o nacional como um dos caminhos de esquadrinhamento, e talvez de outra cartografia das identidades sociais.”10 Nesse sentido, o local emerge como um campo de reflexões instigantes, ao possibilitar a pesquisa de recortes temáticos e da própria escala de observação, construídos pelo próprio historiador.11 Assim, entendemos que a análise do local não está atrelada, obrigatoriamente, aos estudos sobre uma cidade. Essa perspectiva nos interessa, na medida em que apreendemos Queimados como comunidade integrada por laços de sociabilidade e pertencimento que são compartilhados e reconhecidos pelos sujeitos que dela fazem parte, para além das mobilizações em torno da conquista da emancipação política. Esses laços se conformam nas evocações das memórias desses sujeitos, estabelecendo nexos que lhes permitam identificarse em uma continuidade histórica dotada de sentido. Portanto, buscamos avaliar os impactos da municipalização de Queimados, anteriormente Segundo Distrito de Nova Iguaçu, para a escrita e o ensino de história local. Isto posto, nos colocamos diante de questionamentos que dizem respeito ao processo de construção de identidades, em um município de recente criação, como de outros tantos, surgidos no boom das emancipações municipais da década de 1990. Referendado na concepção de história local anteriormente esboçada, ressaltamos que não mais se trata de legitimar um passado, no intuito de forjar uma identidade nacional, única e homogeneizante, como foi perspectiva predominante na historiografia da segunda metade do século XIX e boa parte do século seguinte. Trata-se de contribuir para a construção e compreensão de múltiplas identidades. No caso queimadense, para aqueles que estavam nas salas de aula da Educação Básica na década de 1990, tanto discentes como docentes, certamente se deparavam com questões atinentes ao “ser iguaçuano”, em oposição ao “ser queimadense”. Por um lado, uma identidade que conformava referenciais que se desejava superar. Por outro lado, a difícil tarefa de construir uma identidade queimadense a partir de narrativas referenciais que fossem, de algum modo, registradas como repertório de memórias comuns à cidade. Dito de outra forma: torna-se relevante investigar as apreensões dessas mudanças por meio da memória histórica que pode ser revelada por tais sujeitos.

606

Assim, nos debruçamos sobre as problematizações advindas das lacunas verificadas na produção historiográfica sobre Queimados enquanto cidade emancipada e da não existência de lugares públicos dedicados à guarda, pesquisa e difusão do conhecimento sobre a cidade. Com base na obra anteriormente mencionada, distribuída nas escolas da rede municipal local, também nos propomos a abordar as tensões estabelecidas entre um currículo escolar que prevê conteúdos relacionados à história do município no 4º ano do Ensino Fundamental e as práticas de docentes atuantes junto a esse segmento e ano. Ao nos concentrarmos na relação dialética entre historiografia e ensino de história, o primeiro passo dado passa pela avaliação das propostas difundidas pelos documentos que visam estabelecer parâmetros curriculares para a disciplina de história em esferas local e nacional. A tônica presente em documentos como os Parâmetros Curriculares Nacionais, as Diretrizes Curriculares Gerais da Educação Básica e no próprio currículo da disciplina de História, elaborado pela rede municipal de Queimados, ressalta a importância das relações entre essas esferas. Dentre os conteúdos previstos pelo currículo do 4º ano do Ensino Fundamental dessa rede, destacamos tópicos como “o Município de Queimados: população total e distribuição e condições de vida por áreas necessidades desta população – abastecimento, água, esgoto, luz, transportes, identificação das condições” ou ainda “cidadania: direitos e deveres.” Dentre as habilidades a ser desenvolvidas pelos discentes desse ano e segmento, a relevância dada à compreensão do local enquanto história da cidade é ainda mais enfatizada: “reconhecer as diferenças entre grupos sociais, bem como o conhecimento do Município de Queimados e sua história”, “analisar elementos culturais, tradições, acontecimentos, épocas e períodos da história de sua cidade presentes em diferentes épocas”, “fazer levantamento de diferenças e semelhanças das ascendências e descendências entre os indivíduos que pertencem à localidade, quanto à localidade, etnia, língua, religião e costumes” e ainda, “reconhecer algumas semelhanças e diferenças que a localidade estabelece com tempos e espaço nos aspectos sociais, econômicos, administrativos e culturais.”12 Os conteúdos e habilidades destacados norteiam nossas indagações, na medida em que colocam em evidência a proposta de um currículo que visa à sensibilização de professores e alunos em relação ao reconhecimento do local enquanto a cidade em que vivem e/ou trabalham. Mais uma vez, de acordo com Marcia Gonçalves:

o desafio maior da história local hoje é o de produzir outra pedagogia da história, em especial, uma historiografia didática que incorpore o local, parta dele e nisso valorize um caminho de sensibilização que configure a consciência histórica, na sua

607

materialidade historiográfica, como possibilidade de “reconhecer a identidade pelo caminho da insignificância”. Crianças, jovens e adultos, sensibilizados, por intermédio de uma reflexão sobre o local, unidade próxima e contígua, historicizando e problematizando o sentido de suas identidades, relacionando-se com o mundo de forma crítica, mudando, ou não, enquanto sujeitos, a própria vida.13

A partir do exposto, um próximo passo da pesquisa será dado ao circunscrevermos um grupo de docentes dispostos a compartilhar suas práticas em sala de aula no sentido de abordar tais conteúdos junto às turmas do ano e segmento citados. Objetivamos discutir as apropriações das prescrições curriculares por parte desses docentes e como elas são abordadas e discutidas nas salas de aula. Acreditamos que tal proposta pode jogar luz sobre iniciativas que nos permitam discutir as aproximações e discrepâncias entre a produção historiográfica acadêmica e aquela didática no campo da história local, pensando a cidade enquanto objeto de análise.

1

Doutoranda junto ao Programa de Pós-Graduação em História Social da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGHS/FFP/UERJ), bolsista CAPES, sob a orientação da Profª. Drª. Marcia de Almeida Gonçalves. E-mail: [email protected]. RÜSEN, Jorn. “Didática da História: passado, presente e perspectivas a partir do caso alemão.” In Jörn Rüsen e o ensino de história. Trad.: Marcos Roberto Kusnick. Curitiba: Ed. UFPR, 2011, p.: 23-40. 2

Sobre essa discussão, ver: BRANDT, Cristina Thedim. “A criação de municípios após a Constituição de 1988”. In Revista de Informação Legislativa, n. 187, jul/set 2010, p. 59-75. FAVERO, Edson. Desmembramento territorial: o processo de criação de municípios. Avaliação a partir de indicadores econômicos e sociais. Tese de Doutorado. Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. USP, 2004. FREIRE, Américo. Sinais trocados: o Rio de Janeiro e a República Brasileira. Rio de Janeiro: Sete Letras, 2012. MOHN, Paulo Fernando. “Autonomia municipal, centralização e liberdade”. In Revista de Informação Legislativa. Brasília, n. 171, jul/set 2006, p. 199-209. NUNES, Jorge C. P.. Criação de municípios no novo estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: ALERJ, 1992. PIRES, Maria Coeli Simões. “Autonomia municipal no Estado brasileiro”. In Revista de Informação Legislativa. Brasília, n. 142, abr/jun 1999, p. 143-165. SARMENTO, Carlos Eduardo. O espelho partido da metrópole - Chagas Freitas e o campo político carioca (1950-1983): liderança, voto e estruturas clientelistas. Rio de Janeiro: Folha Seca: Faperj, 2008. 3

CIGOLINI, Adilar Antônio e CACHATORI, Thiago Luiz. “Análise do processo de criação dos municípios no Brasil” In XII Colóquio Internacional de Geocrítica. Bogotá, 2012, p.; 1-12. 4

5

Como exemplos dessa produção, citamos: SIMÕES, Manoel Ricardo. A cidade estilhaçada: Reestruturação Econômica e Emancipações Municipais na Baixada Fluminense. Tese de Doutorado. PPGG/UFF. Niterói: 2006 e SOARES, Marcus Rosa. Ordens, desordens e contra ordens territoriais em Queimados – RJ. Dissertação de Mestrado. Niterói: UFF/PPG, 2000.

608

TEIXEIRA, Vilson F. História da formação de Queimados. Queimados: Edição do Autor, 2014. – p: 5 (grifos do autor). 6

7

Disponível em: http://www.queimados.rj.gov.br/noticias_publicacao.asp?idArea=5&idn=1032. Acesso em 24/09/2015. 8

REVEL, Jacques. A invenção da sociedade. Trad. Vanda Anastácio. Lisboa: Difel, 1989.

. “Micro-história, macro-história: o que as variações de escala ajudam a pensar em um mundo globalizado” In Revista Brasileira de Educação. vol. 15 nº. 45: set./dez. 2010. – p: 434-444. 9

10

GONÇALVES, Marcia de Almeida. Próximos distantes: notas sobre História Local. Conferência de Encerramento proferida no II Seminário de Memória e Patrimônio Histórico de Queimados. Queimados, 21 de setembro de 2013. REZNIK, Luís. “Qual o lugar da história local?” In História de São Gonçalo: memória e identidade. Disponível em http://www.historiadesaogoncalo.pro.br/hp_hsg_lista_artigos.htm. Acessado em 26/01/2014. – p: 1-5. 11

ORIENTAÇÃO CURRICULAR: História – anos finais do Ensino Fundamental I. Secretaria Municipal de Educação. Queimados: SEMED-Queimados, 2012 - grifos nossos. 12

13

GONÇALVES, Marcia de Almeida. Próximos distantes: notas sobre História Local. Conferência de Encerramento proferida no II Seminário de Memória e Patrimônio Histórico de Queimados. Queimados, 21 de setembro de 2013 – grifos da autora.

609

INTERESSES E ESCRITA DA HISTÓRIA Autor: Cláudio Kuczkowski Título: Doutorando Instituições: Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS) Orientador: Carlos Henrique Armani E-mail: [email protected] Interesses e escrita da história Na concepção de Germán Carrera Damas a América Latina pode ser historiada como totalidade. Nessa acedência, a historiografia latino-americanista compreende essa região geocultural de diferentes formas, algumas vezes fragmentando-a, outras, generalizando-a. Qualquer que seja a concepção, parte daquilo que Jörn Rüsen denomina “interesses”. Daí a pertinência da reflexão sobre as carências de orientação no tempo que movem as Teses sobre a América Latina nos Programas de Pós-Graduação em História no Rio Grande do Sul. Refletir a propósito dos interesses cognitivos explicitados em tais Teses é a ocupação da presente pesquisa. Palavras-chave: Teoria da história, América Latina, Interesses cognitivos. Interests and writing of history In the designe of Germán Carrera Damas Latin America can be historiated as a whole. From that acceding, it has to be the Latin Americanist historiography seeks to understand this geocultural region in different ways, sometimes fragmenting, other generalizing it. Whatever the design, begins of what Jörn Rüsen called "interests". Hence the relevance of reflection on the guidance needs time which driving the Theses on Latin America in the Posgraduate Programs in History in Rio Grande do Sul. Reflect on the subject of cognitive interests explained in such thesis is the occupation of this search. Keywords: Theory of History, Latin America, Cognitive interests. O historiador alemão Jörn Rüsen, em meio à concepções como a de meta-história e/ou ainda a de razão histórica, visando compreender como se constitui a História, desenvolve o conceito de “matriz disciplinar”. Nesse desígnio, matriz disciplinar significa “o conjunto sistemático dos fatores ou princípios do pensamento histórico determinantes da ciência da história como disciplina especializada”1. Assim, a teoria da história teria de apreender os fatores determinantes da pesquisa histórica e da historiografia, identificando-os e demonstrando a interdependência sistemática entre os mesmos. O conceito remete aos cinco tópicos de análise propostos pelo autor: 1. Os interesses – as carências de orientação no tempo; 2. As ideias – perspectivas orientadoras da experiência do passado; 3. Os métodos – regras da pesquisa empírica; 4. As formas – de apresentação e, 5. As funções – de orientação existencial. Como escreve o próprio Rüsen, “a interdependência dos cinco fatores do pensamento histórico é patente: em conjunto, eles constituem um sistema dinâmico, no qual um fator leva ao outro, até que, do quinto, volta-se ao primeiro” (2001, p.

610

35). Articulados, tais fatores podem auxiliar na análise das atividades científico-historiográficas desenvolvidas nas Teses dos Cursos de Doutorado em História no Rio Grande do Sul com relação à América Latina. O tema “Interesses e Escrita da História” propõe refletir sobre os interesses cognitivos explícitos nas Teses sobre a América Latina desenvolvidas nos Programas de Pós-Graduação em História – nível de Doutorado - no Rio Grande do Sul, entre os anos de 1986 e 2015. Retrocede cronologicamente ao início das atividades do Curso de Doutorado em História na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1986) – o mais antigo dos três Programas - e se estende até os dias atuais, perpassando a criação dos Cursos de Doutorado na mesma área na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1995) e da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (1999). Nesse sentido, estabelece-se como norteador o ponto 1 - Os interesses – as carências de orientação no tempo - indicado pelos trabalhos de Jörn Rüsen em sua proposta de matriz disciplinar. Inserida na concepção de razão histórica rüseniana, a discusão aponta para a compreensão de qual é o tratamento dado pelas Teses produzidas nos Programas de PósGraduação em nível de Doutorado em História no Rio Grande do Sul à temática latinoamericana. No sentido de que “razão”, conforme indica Rüsen, designa “o que caracteriza o pensamento histórico que se processa na forma de um debate movido pela força do melhor argumento” (2001, p. 21), se infunde que o historiador não se contente em afirmar algo sobre o passado sem que isto esteja acompanhado das razões pelas quais assim o faz. Trata-se de explicar porque se deveria aceitar determiandas constatações e porque aquelas que demonstrem outra coisa não satisfariam. Nessas bases, surge a pergunta: em que medida os estudos latinoamericanistas realizados nas Teses dos Cursos de Doutorado em História no Rio Grande do Sul evidenciam uma racionalidade capaz de suprir o fator de interesse cognitivo no passado estabelecido na matriz disciplinar rüseniana? Ressalte-se o empenho de maior compreensão da produção historiográfica regional, enquanto movimento de autoanálise. Trata-se de conhecer até que ponto a História se constitui de maneira refletida por parte dos historiadores; se são os interesses existenciais ou os momentos políticos, sociais, econômicos e culturais exógenos que a determinam. Pois, conforme observa Júlio Aróstegui, “refletir teoricamente sobre a História já equivale a uma primeira ‘pesquisa’ a respeito dela, equivale a se propor averiguar o que é e como se manifesta o histórico frente à nossa experiência”2. A delimitação de tal forma se justifica por dois fatores: o primeiro, pelos limites cronológicos dos próprios cursos em análise e, o segundo, pela existência atual de três

611

Programas de Pós-Graduação com Doutorado em História, no Rio Grande do Sul, com Teses já defendidas3. Nos três Programas em questão existem espaços de pesquisa ocupados com estudos sobre a América Latina4, seja pela existência de linhas de pesquisa especificamente criadas com tal finalidade seja pela atuação de alguns docentes em projetos especializados. Paralelamente, são limitadas as abordagens que tentem compreender os resultados da pesquisa nesse campo, o que corrobora à implementação de investigações no sentido de analisar essa produção. Estabelece-se a necessidade de constituir um pensamento historiográfico que considere os “lugares” a partir dos quais se escreve. Na ausência da teoria corre-se o risco de não haver avanço do conhecimento. Ou como diria Eric Hobsbawn, ao discutir a relação empiria versus teoria da e na História, “nadamos no passado como o peixe na água, e não podemos fugir disso. Mas nossas maneiras de viver e de nos mover nesse meio requerem análise e discussão”5. A partir da ideia de que ocorrem trocas – ainda que simbólicas – entre a produção histórica e a sociedade na qual está inserida, permite-se à última interpelar constantemente sobre como é produzida sua história. Os Programas stricto senso se estabelecem de maneira processual, são os resultados dos seus próprios tempos. A revisitação periódica aos seus arranjos básicos – áreas de concentração, linhas de pesquisa, projetos, corpos docentes e estruturas curriculares, permite ponderar sobre as mudanças já implementadas e pensar temporalmente as transformações de forma estrutural e/ou sistêmica. No viés conceitual, caberia pesquisa exclusiva sobre os usos da expressão América Latina e/ou latino-americanismo6. Ao mesmo tempo, de acordo com o que propunha Andrzej Dembicz7 poder-se-ia, pelo fato de vivermos em um momento de transformações, de busca de caminhos alternativos, sugerir constantemente uma revisão no próprio conceito de América Latina, a partir de distintas dimensões8: a) político-cultural clássica (da Terra do Fogo até o Rio Bravo); b) interamericana (que se estende muito ao norte da fronteira do México, cujos efeitos culturais e sociais são cada vez mais visíveis); c) ibero-americana e europeia (que combina as heranças culturais e a atualidade político-econômica dos vínculos euro-latino-americanos) e, d) pacífica (ainda não tão visível como a transatlântica), demonstrando-se, dessa forma, certa flexibilidade conceitual referente aos diferentes ângulos culturais de onde se constrói os conceitos. Entretanto, como a presente conceituação visa apenas ser o delimitador físico-espacial da temática, opta-se por definir primariamente América Latina a partir do pragmatismo das palavras de Leslie Bethell9:

612

[...] a América Latina abrange as regiões da América continental ao sul dos Estados Unidos que falam predominantemente o espanhol e o português – México, América Central e América do Sul – juntamente com as ilhas do mar dos Caraíbas de língua espanhola e, por convenção, o Haiti [...].

Corroborando a imagem político-cultural clássica apontada por Dembicz, excluem-se em sua maioria os vastos territórios da América do Norte que, durante a primeira metade do século XIX, a Espanha e, mais tarde, o México perderam para os Estados Unidos por obra de tratados e de guerras. Abrange-se, contrariando a proposta original de Bethell, as ilhas britânicas, francesas e holandesas do mar das caraíbas, independentemente de certos aspectos históricos como no caso dos antecedentes hispânicos da Jamaica e Trinidad, por exemplo. No caso do Brasil, apesar do pertencimento físico-geográfico ao subcontinente americano, somente são considerados como estudos desse campo aqueles que tratem, no mínimo, da relação entre este e outra nação latino-americana, considerados ademais os elementos compositores do conceito de estudos latino-americanistas. A princípio, é uma definição simplificada, utilitária. Pautada em critérios físicogeográficos e político-diplomáticos serve para o alvitre inicial dessa proposta de trabalho. Como a intenção é considerar como estudos latino-americanos todas as Teses que tenham como temática principal aspectos históricos sobre a América Latina, conforme acima conceituada, ficam englobados os trabalhos desenvolvidos nos respectivos Programas visando características sobre um único país (exceto se este for o Brasil) e os que estabeleçam relações entre duas ou mais regiões enquadradas na acepção anterior, bem como independem os graus de especificidade apresentados nessas pesquisas. Na concepção de latino-americanismo, aqui equiparado a estudos latino-americanos, leva-se em conta primeiramente a postura teórica adotada frente ao significado anteriormente construído da expressão América Latina. A diversidade presente na visão dos pesquisadores latino-americanistas reflete a própria natureza não uniforme da América Latina. Mesmo na apresentação dos Programas das duas universidades que possuem concentração em estudos latino-americanos indica-se caminhos conceituais bastantes abertos. Na Universidade do Vale dos Sinos (UNISINOS) anuncia-se que “[...] o foco do programa está na execução de pesquisas sobre a vocação transnacional, como fronteira, imigração, circulação de ideias, religiosidade e populações indígenas” [...] 10, enquanto na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul11, de forma ainda mais geral, lê-se que sob a denominação de História das Sociedades Ibéricas e Americanas articulam-se suas quatro linhas de pesquisa: "Sociedade Política e Relações Internacionais", que privilegia os aspectos sociais de formação, de desenvolvimento, de organização e de práticas políticas, bem como as relações entre Estados e entre grupos sociais inseridos no contexto histórico do mundo

613

ibero-americano; "Sociedade Ciência e Arte", que destaca a análise da modernidade nos campos do conhecimento, da ciência e das artes (visuais, literatura, música etc), considerando as instituições sociais a eles relacionadas, bem como a história das ideias nas sociedades ibéricas e americanas; "Sociedade Cultura Material e Povoamento", que enfatiza os estudos sobre a história da cultura material e a reconstituição dos processos históricos das sociedades platinas, bem como as múltiplas interações culturais decorrentes, por meio de perspectivas arqueológicas e etno-históricas e "Sociedade Urbanização e Imigração", que destaca as múltiplas formas de ocupação e de vivência social do espaço no que tange aos processos de urbanização e de imigração, envolvendo regiões e países do mundo ibero-americano.

Assim, se estabelece como parâmetro inicial que, estudos latino-americanos são as atividades de pesquisa envolvendo temas voltados para a América Latina, conquanto nem todos contemplem aspectos gerais do subcontinente e possam estar limitados a um único país e/ou região. Por convenção, fica excluído o Brasil nos casos em que é objeto de estudo individualizado

e,

permanece

contemplado,

quando

envolvido

em

estudos

comparativos/relacionais, independente da amplitude dos mesmos, ou seja, da especificidade temática. Ressalta-se que, pela especialização do estudo, estão abrangidas todas as Teses que, de uma forma ou de outra, possam ser enquadradas nesta definição, independentemente da autoidentificação dos respectivos autores como latino-americanistas. A partir da noção de Teoria da História, acompanhando Júlio Aróstegui, como “reflexão teórico-metodológica sobre a pesquisa histórica” e Historiografia como sendo “a escrita da história, não história dos modos de pesquisar e escrever a História” (2006, p. 35-36), em um levantamento preliminar, respeitada a especificidade temático-cronológica, encontram-se diversos trabalhos de relevância acadêmica que corroboram para a discussão aqui proposta, embora contenham estruturas bastante distintas e, por vezes, discordantes em aspectos específicos12. Os interesses como primeiro pilar da matriz disciplinar histórica de Rüsen resumem-se na necessidade que os homens têm de orientar-se no fluxo do tempo. Servem de base para explicar o significado de pensar e porque pensar historicamente. Considerado o fato de o ser humano prescindir (na vida prática) da orientação no tempo, busca no passado, através de uma leitura no presente, tais explicações. Ocorre uma espécie de despertar da consciência histórica. As ações cotidianas instauram o imperativo do questionamento sobre o e no tempo e estas carências de orientação “se articulam na forma de interesse cognitivo pelo passado” (RÜSEN, 2001, p. 30). Paul Veyne13, a partir de um olhar posteriormente considerado reducionista, indicava que os fins do conhecimento histórico seriam basicamente dois: em primeiro, estariam relacionados à nossa pertença a qualquer forma de grupo, nacional, social, familiar, o que poderia fazer com que o passado desse grupo tivesse para nós certo atrativo particular e, em 614

segundo, destacar-se-ia a curiosidade, quer fosse anedótica quer acompanhada de uma “exigência de inteligibilidade”. Nesse sentido, ainda que pudesse ser ampliada, essa tipologia, explica parcialmente os interesses presentes na maioria das tendências de pesquisa histórica nos programas em exame. No conjunto, as mais de 360 Teses defendidas nos três Programas em questão, não apresentam padrões que permitam falar em unidades temáticas e/ou qualquer forma de generalização. Considerando a existência de um programa específico com área de concentração em História das Sociedades Ibéricas e Americanas (PUC-RS) e outro em Estudos Históricos Latino-Americanos (UNISINOS), no primeiro, de aproximadamente 210 trabalhos defendidos entre 1991 e 2015/1, 38 podem ser compreendidos no conceito de América Latina acima apresentado. No segundo, das 47 Teses defendidas entre 1999 e 2015/1, apenas 4 podem ser definidas como pertencentes à esse escopo. Entretanto, no caso da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com uma abrangência temática ampla em suas linhas de pesquisa, das 104 Teses defendidas entre 1995 e 2013, pelo menos 21 tem foco em América Latina. Os temas variam bastante e apontam como determinante a relação direta com as possibilidades de orientação. Em outros termos, a estrutura dos próprios Programas parece estar condicionada, em grande medida, pela formação do corpo docente. Independentemente dessa qualidade, a UFRGS, a título exemplificativo, estrutura o Programa em quatro grandes linhas de pesquisa, a constar: relações sociais de dominação e resistência; relações de poder políticoinstitucionais; cultura e representações e, teoria da História e historiografia. Contando com um corpo docente de aproximadamente 26 professores no quadro permanente, permite um leque variado de objetos de estudos. Em um levantamento prévio dos trabalhos de pesquisa (Teses) junto à UFRGS, entre os principais tópicos, ao menos no que tange ao mérito da discussão aqui proposta, estão: - O federalismo no espaço fronteiriço platino. A Revolução Farroupilha (1835-1945); - Crescimento Econômico e Crise na Argentina de 1870 a 1930: a Belle Époque; - Fronteras Étnicas en el corazón de América del Sur (1776-1820); - A pré-história do Mercosul: cooperação entre Brasil-Argentina (1979-1991); - Os institutos de estudos econômicos de organizações empresariais e sua relação com o Estado em perspectiva comparada: Argentina e Brasil (1961-1996); - Como el Uruguay no hay... Terror de Estado e Segurança Nacional. Uruguai (1968-1985): do Pachecato à Ditadura Civil-Militar; - Representações das identidades nacionais Argentina e brasileira nas canções interpretadas por Carlos Gardel e Carmen Miranda (1917-1940); - Participação política nos discursos oposicionistas a Getúlio Vargas e Gabriel Terra; - As Bienais de Artes Visuais do Mercosul: utopias & protagonismos em Porto Alegre -1997-2003; - América Latina entre inclusões e exclusões: escolas, ensino de história e identidade em tempos de ditadura militar; - O encontro entre os guaranis e os jesuítas na Província Jesuítica do Paraguai e o glorioso martírio do venerável padre Roque González; - Trincheiras ideológicas: o debate entre os jornais peruanos El Comercio e La Tribuna;

615

- Um estudo comparativo das práticas d desaparecimento nas ditaduras civil-militares argentina e brasileira e a elaboração de políticas de memória em ambos os países; - A teoria do subimperialismo em Ruy Mauro Marini: contradições do capitalismo dependente e a questão do padrão de reprodução do capital; - Atividades Mercantis do Rio Grande de São Pedro: Negócios, Mercadorias e Agentes Mercantis (1808-1850); - Anclaos en Brasil: a presença argentina no Rio Grande do Sul (1966-1989); - A Classe Trabalhadora no Processo Bolivariano da Venezuela. Contradições e Conflitos do Capitalismo Dependente Petroleiro-Rentista (1989-2010); - Intelectuais e exílios: confronto de resistências em revistas culturais: Encontros com a civilização brasileira, cuardernos de Marcha e Controversía (1978 – 1984); - Índios Fronteiriços: A política indigenista de fronteira e políticas indígenas na Província de Mato Grosso entre a Bolívia e o Paraguai (1837-1873); - Compatriotas franceses ocupam a fronteira: imigração e comércio na Fronteira Oeste do Rio Grande do Sul (segunda metade do século XIX); - Capítulos Sobre A História Do Século XX.

Já, na PUC-RS, o programa conta com aproximadamente 15 professores permanentes, 38 trabalhos específicos, atendendo temáticas como: - Guerra Irregular en Espacios Andinos y en la Pampa Gaucha: El Caso de La Banda Oriental del Uruguay (18081820); - Antecedentes da Organização do Espaço Colonial da América Ibérica; - Historiografia Sul-Riograndense: O Lugar das Missões Jesuítico-Guaranis na formação Histórica do Rio Grande do Sul (1819-1975); - A Diplomacia Marginal. Vinculações Políticas Entre o Rio Grande do Sul e o Uruguai (1893-1904); - Comissão Econômica para América Latina (CEPAL): Uma visão Crítica do seu pensamento – O Caso Brasileiro; - El Liberalismo en Iberoamérica. Un Pensamiento; - “Fuera” de Lugar: El Caso de la Constitución Política del Imperio de Brasil; - A Festa Guarani nas Reduções: perdas, permanências e recriação; - Sentir, Adoecer e Morrer – sensibilidade e devoção no discurso Missionário Jesuítico do século XVII; - O Málon de 1801: A Guerra das Laranjas e suas Implicações na América Meridional; - As Ações Geopolíticas do Barão do Rio Branco e seus Reflexos na Argentina; - Joaquim Nabuco e Oliveira Lima: Faces de um Paradigma Ideológico da Americanização nas Relações Internacionais do Brasil; - A Fronteira Brasil-Uruguai: Estado e movimentos espontâneos na fixação dos limites do Rio Grande do Sul; A Guerra do Paraguai e as Relações Luso-Brasileiras na Década de 1860-1870; - Uma análise da construção do pensamento neoestruturalista cepalino: as contribuições da crise e do pensamento liberal à redefinição do papel do Estado na América Latina; - A importância do negro na formação da sociedade portenha, 1703-1860; - Redes de Cidades: Cooperação, estratégias de desenvolvimento, limitações constitucionais e divergências – o Caso da Rede Mercocidades. - De volta a fronteira – uma incursão aos fundamentos da cultura política sul-rio-grandense referente ao século XIX: A infiltração rio-grandense no estado oriental e a formação da identidade política regional; - A Pecuária no Processo de Ocupação e Desenvolvimento Econômico do Pantanal Sul-Mato-Grossense (18301910); - As Políticas Externas do Brasil e da Argentina: O Paraguai em Jogo (1939-1954); - Ditadura e Resistência Democrática: República Oriental Del Uruguay: 1968-1985; - A Trama da Integração: Soberania e Identidade do Cone Sul; - Reflexão Sobre a Historiografia Platina (Discursos do Século XIX Sobre D. João); - América Latina periférica: O desenvolvimento latino-americano na concepção de Prebisch/CEPAL (1948-1981); - O mergulho no seculum: exploração, conquista e organização espacial jesuítica na América espanhola colonial; - Sítios arqueológicos de assentamentos fortificados ibero-americanos na Região Platina Oriental; - Fomes, pestes e guerras: dinâmicas dos povoados missionais em tempos de crise (1610-1750); - Atividades da Brazil Railway Company no Sul do Brasil: a instalação da Lumber e a Guerra na Região do Contestado (1906-1916); - “... bajo su Real Protección”: o Império Português rumo à Banda Oriental (1808-1812); - Memorias de la diáspora: narrativas identitarias de los uruguayos en Brasil (1960-2010); - A internacionalização da empresa brasileira de 1980 aos anos 2000: a atuação do aparelho de estado no processo de inserção internacional;

616

- Representações Culturais na Bienal de Artes Visuais do Mercosul: o estatuto da fotografia e a expressão do sujeito social; - Crimes de Fronteira: a criminalidade na fronteira meridional do Brasil (1845-1889); - O Discurso Jornalístico e o Processo de Marginalização Social do Exército Zapatista de Libertação Nacional e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra; - Estátuas Andarilhas. As Miniaturas na Imaginária Missioneira: Sentidos e Remanescências; - Brasil e Argentina no Oriente Médio: do Pós-Segunda Guerra Mundial ao Final da Guerra Fria; - Em tudo semelhante, em nada parecido: Uma análise comparativa dos planos urbanos das missões jesuíticas de Mojos Chiquitos, Guarani e Maynas (1607 – 1767); - Democracia e Concerto Americano: a visão de O Cruzeiro sobre a Argentina nas relações interamericanas (19461966); - Catolicismo e cruzada. Revistas católicas e o imaginário anticomunista no Brasil e Argentina (1960 – 1967).

Finalmente, a UNISINOS, com um quadro docente permanente de 11 professores, organizada em três linhas temáticas – Sociedades indígenas, cultura e memória, Migrações, territórios e grupos étnicos e, Poder, ideias e instituições - conta com o reduzido quadro de 4 trabalhos diretamente direcionados à temática em pauta, de um total de 47 Teses averiguadas. - Trajetória Político-Ideológica da esquerda Uruguaia:1964-2004; - A Construção da Memória: Os Monumentos a Bento Gonçalves e José Artigas; - Guerra do Paraguai: Um Conflito Anunciado (1852 A 1864); - Dos levantes de Castela às revoluções comuneras do Paraguai: apropriações e ressignificações de um conceito em três atos.

De forma geral, há uma concentração dos estudos em certas regiões da América Latina. As páginas ocupadas pelas atuais territórios do Paraguai, Uruguai e Argentina, se computados os trabalhos que variam desde os processos coloniais até os pautas integracionistas como Mercosul, perpassando pelos estudos envolvendo os povos das missões, os conflitos de limites e fronteiras e os períodos marcados por eventos comuns à esses espaços – Guerra do Paraguai, teoria da dependência/CEPAL e Regimes Militares – abrangem mais de 70% do total de 63 Teses dedicadas aos estudos latino-americanistas. A expressão América Latina é comumente utilizada nas Teses. Do total mencionado de trabalhos, pelo menos 50 deles utilizam essa acepção, embora somente 2 se preocupem em desenvolver o conceito. Considerando o caráter embrionário desta investigação, uma das observações possíveis, no que diz respeito à produção historiográfica originada pelas Teses em História no Rio Grande do Sul, é a de que sabemos pouco em matéria de América Latina, principalmente, se esta for considerada como totalidade geoespacial. Nesse sentido, são 12 os trabalhos aos quais se poderia atribuir a característica de síntese. Entre as 63 teses recorridas pelo menos 38 apresentam debates em torno de problemáticas sul-americanas. Excetuados os casos em que a América Latina é considerada em sua integralidade, conforme descrito acima, apenas um texto foge à esse preceito, desenvolvendo análise comparativa sobre o Exército Zapatista de Libertação Nacional e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Os projetos de pesquisa implementados nos Programas

617

porventura revelarão algo singular? Eventualmente os periódicos? Quiçá as estruturas curriculares? Com base nesses dados, pode-se ressaltar, observadas as escusas da posição físicogeográfica do Estado (RS) enquanto ente federativo, a atitude predominantemente regionalista da historiografia no Rio Grande do Sul. Cabe refletir se esse predicado é originário daquilo que Paul Veyne denominara “curiosidade”, se depende dos interesses de pesquisa dos Programas – o que, a priori, ao considerarmos as linhas de pesquisa, não se confirma -, se, a constituição dos referentes corpos docentes imporia tais caminhos (a maioria dos professores dos três Programas obtiveram a titulação de pós-graduação fora do espaço regional) ou, afinal, se existem carências de orientação no tempo presente, não obstante atribuído de globalizado, as quais remetem para alguma forma de resistência através da regionalização dos estudos. Resta saber em que medida essas escolhas ocorrem de forma consciente por parte dos pesquisadores, isto é, em qual proporção os historiadores estão dispostos à explicitar as razões pelas quais afiançam o passado sobre o qual conjecturam. Na medida em que progredirmos, talvez seja coerente ponderarmos em torno da existência de “fronteiras do pensamento”. Ao perguntar-se sobre o que a História tem a dizernos sobre a sociedade contemporânea, Hobsbawn assinala a inevitabilidade de situar-nos a própria existência no “continuum” (passado, presente e futuro) da família e do grupo ao qual pertençamos. Na ordem prática da vida, aponta duas respostas à sua própria pergunta: “a história é uma advertência útil contra a confusão entre moda e progresso” e ela pode “descobrir os padrões e mecanismos da mudança histórica em geral, e mais particularmente das transformações das sociedades humanas durante os últimos séculos de mudança radicalmente aceleradas e abrangentes” (HOBSBAWN, 1998, p. 42-43). Orientação no tempo, pertença à diferentes grupos sociais, significação/resignificação da experiência, compreensão dos padrões nas transformações, curiosidade, consciência, condição de inteligibilidade e/ou carências de orientação são questões que, em se tratando dos sujeitos históricos – agentes do e no tempo – mobilizam os seres humanos em direção ao reconhecimento de sua temporalidade. Trata-se, como diria Jacques Le Goff14, de “esclarecer o presente pelo passado e o passado pelo presente” (1999, p. 93).

618

1

RÜSEN, Jörn. Razão histórica. Teoria da História: os fundamentos da ciência histórica. Trad. Estevão de Rezende Martins. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2001, p. 29. 2 ARÓSTEGUI, Julio. A pesquisa histórica. Teoria e Método. Trad. Andréa Dore. Bauru, São Paulo: Edusc, 2006, p. 88. (coleção história) 3 A Universidade de Passo Fundo (UPF) e a Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) iniciaram a oferta de cursos nos anos de 2014 e 2015 respectivamente e, portanto, ainda não possuem Teses concluídas. 4 A Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) não possui uma Linha de Pesquisa específica para a temática da América Latina, entretanto, no que tange ao objeto deste trabalho, encerra uma Linha intitulada Teoria da História e Historiografia. 5 HOBSBAWN, Eric John Ernest. Sobre história – Ensaios. Trad. Cid Knipel Moreira. São Paulo: Cia das Letras, 1998, p. 35. 6 Para uma leitura mais completa vide: BETHELL, Leslie. O Brasil e a ideia de “América Latina” em perspectiva histórica. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 22, n. 44, p. 289321, julho-dezembro de 2009. Pode-se consultar ainda, ROUQUIÉ, Alain. O ExtremoOcidente: introdução à América Latina. São Paulo: EDUSP, 1991, p. 22-29 passim. (Coleção Base – v.1) 7 DEMBICZ, Andrzej. Estudos Latino-Americanos: projeções difíceis. In: Projeções – Revista de Estudos Polono-Brasileiros. Curitiba-PR: BRASPOL/Sociedade de Cristo/CESLA, ano III, 2/2001. Semestral. p. 11-17. 8 A América Latina do Rio Bravo a Terra do Fogo, ou talvez a América Latina que se estende de Los Angeles, Buffalo e Nova York, ao sul e a leste, até Madri, Paris, Londres, Estocolmo e Berlin e, por que não, até Varsóvia? Ibid., p. 14. 9 BETHELL, Leslie (org.). História da América Latina: América Latina Colonial, volume 1. Trad. Maria Clara Cescato. 2ª. Ed.2 reimpr. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Brasília, DF: Fundação Alexandre de Gusmão, 2008, p. 14. 10 UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS. UNISINOS – Programa de PósGraduação em História. São Leopoldo, 2015. Disponível em: . Acesso em: 22 de janeiro de 2015. 11 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL. PUCRS Programa de Pós-Graduação em História. Porto Alegre, 2015. Disponível em: . Acesso em: 22 de janeiro de 2015. 12 Nesse sentido nos amparamos em Ciro Flamarion Cardoso (1997, p.23) ao afirmar que “as ciências sociais, entre elas a história, não estão condenadas a escolher entre teorias deterministas da estrutura e teorias voluntaristas da consciência, sobretudo considerando tais posturas em suas modalidades unilaterais e polares (...)”. História e paradigmas rivais. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da História. Ensaios de Teoria e Metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 1-23. 13 VEYNE, Paul. Como se escreve a História. Trad. Antônio José da Silva Moreira. Lisboa: Edições 70, 1971, p. 95. 14 LE GOFF, Jacques. A visão dos outros: um medievalista diante do presente. In: CHAUVEAU, Agnès (org.). Questões para a história do presente. Trad. Ilka Stern Cohen. Bauru, São Paulo: EDUSC, 1999, p. 93-102.

619

Moda brasileira: Identidade, estereótipos e relações de poder Cristiana Katagiri1 Resumo Este artigo é baseado em uma análise histórica e discursiva do conteúdo produzido pelo jornal Folha de São Paulo e pela plataforma digital FFW , no período de 2001 à 2015, tendo como ponto de partida os termos “moda brasileira” e “identidade de moda”. Pretende-se discutir a complexidade da ideia de “identidade visual” ou a “falta dela”, bem como a estreita relação entre identidades e estereótipos no desenvolvimento da moda nacional.

Palavras chave: identidade, moda brasileira, estereótipos.

Abstract: This paper is based on a historical and discursive analysis of the content produced by the newspaper Folha de São Paulo and the digital platform FFW, in the period of 2001 to 2015, having as main triggers the expressions “Brazilian fashion” and “fashion identity”. It aims to problematize the complexities towards the idea of a visual identity or its absence, as well as, the thin line between identities and stereotypes within the development of Brazilian fashion.

Introdução No decorrer deste artigo, a moda é contextualizada como parte de uma indústria criativa cuja produção deriva da circulação de commodities e da reprodução de informações (HESMONDHALGH, 2007; FLEW, 2011), que dependem de criatividade e da inovação para criar “diferença” (LASH e LURY, 2007)2. Nesse sentido, não há a pretensão de aspirar a um caráter essencial da moda brasileira, pois como afirma Hélio Oiticica “a pureza é um mito”. 3 Entretanto, a linha que separa reprodução de informações e relações desiguais de poder – inegavelmente estruturadas por fatos históricos como a colonização e, subsequente, pela dependência cultural e econômica brasileira – ainda é muito tênue no âmbito da indústria da moda no Brasil. O fluxo hegemônico de informação ainda é irradiado de países como Itália, França, Inglaterra onde os maiores produtores de moda estão estabelecidos. Assim, este artigo é baseado em uma análise histórica e discursiva do arquivo online produzido pelo Jornal Folha de São Paulo e a plataforma digital FFW, no período de 2001 a 2015, tendo como ponto de partida os termos “identidade de moda” e “moda brasileira”. Este recorte temporal tem sua razão pautada no estabelecimento da São Paulo Fashion Week, a maior semana de moda do Brasil, em 2001, que torna recorrente discussões sobre 620

a

“identidade” ou a “falta dela” à cada edição do evento. E, devido à complexidade que esta discussão engendra, esta pesquisa busca um aporte teórico transdisciplinar nos campos da História da moda, dos Estudos Culturais e dos estudos Pós-Coloniais. O objetivo é problematizar a recorrente questão identitária na moda brasileira e as práticas ambivalentes envolvidas nesse processo. O olhar para a moda sob o viés da indústria criativa, deve-se à sua integração à Secretaria de Economia Criativa, em 2011

4

e, por

conseguinte, à necessidade de aprofundar estudos sobre o funcionamento, as potencialidades e deficiências da moda brasileira neste contexto. Deste modo, este artigo é dividido em duas partes. A primeira, uma breve análise do desenvolvimento do projeto identitário da moda francesa, que ainda exerce grande influência na moda global e principalmente na moda nacional. Apresenta-se ainda, um relato sobre advento da indústria criativa em sociedades pós-industriais e uma comparação desses eventos com o atual contexto onde se desenvolve a moda brasileira. A segunda parte, refere-se à problematização da idéia de “identidade moda”, à ambivalente relação entre busca de identidade e a reiteração de estereótipos. E por fim, uma reflexão sobre o processo indispensável ao desenvolvimento da moda nacional, a prática da cópia.

Breve histórico sobre o contemporânea

“Made in France” e suas relações com a indústria criativa

Segundo Kawamura (2004)5, moda é sinônimo de moda francesa. De acordo com a autora, o processo de construção da hegemonia da moda francesa teve início em meados do século XVII sob reinado de Louis XIV, que fez da corte francesa a mais magnificente na história do mundo ocidental. Para Roche (1994:48)6, o poder e prestígio da corte são cruciais também ao desenvolvimento de políticas pautadas em uma economia do luxo que estimulava a ostentação e a imitação. Assim, é através do “afrancesamento” ou frenchification da moda que Louis XIV tenta promover a supremacia da França não só em âmbito político, mas também na questão do gosto. Contudo, é válido ressaltar que a moda inicia-se na Itália no decorrer do século XIV, associada ao surgimento da classe média e da vida urbana (STEELE, 1998; KAWAMURA, 2004). De acordo com Mukerji (1997, p.101)7 , nesse período, eram os produtos italianos que definiam o gosto e a estética no campo da moda e design na Europa.

621

Assim, Jean Baptiste Colbert8 - ministro das finanças de Louis XIV - com o intuito de alavancar o desenvolvimento da moda local, substituir o consumo dos produtos italianos que vinham sendo consumidos pela aristocracia francesa, resolve lançar mão das seguintes medidas: a) centralização da manufatura de produtos de luxo em Paris; b) criação do desejo por produtos franceses, não só na França, mas em toda a elite européia; c) importação de artesãos italianos objetivando o treinamento de trabalhadores franceses, que combinariam novas técnicas com o gosto, materiais e tradição francesas; d) políticas para regulamentação tanto da produção – condição de trabalho e sistemas produtivos, quanto do consumo que era limitado de acordo com o poder aquisitivo e classe de cada indivíduo (KAWAMURA, 2004). Deste modo, no decorrer do século XIX, Paris torna-se o centro cultural da Europa e do mundo consagrando-se como a capital da modernidade no que se refere à política, ciências, artes. De acordo com Rocamora (2009, p.28)9, o século XIX “foi também o século que a moda como conhecemos hoje realmente surgiu” : Em um âmbito global da moda, a moda francesa ainda vive à sombra da alta-costura e o potencial de seu capital simbólico. [...] Paris continua a ser a cidade francesa mais ligada à moda, não só pela presença da alta costura e de prêt-a-porter de grandes designers. A aura que a alta-costura continua a emanar, funciona como uma poderosa arma promocional tanto para linhas “ready-to-wear”, como para outros segmentos que vão de cosméticos, acessórios e ainda, pela movimentação do mercado de moda mais acessível que se beneficia do prestígio ‘Paris’ que as grandes marcas francesas sustentam. (ROCAMORA, 2009, p.33. tradução nossa)

Assim, o status alcançado por Paris de “capital da moda” – apesar de nos dias de hoje ser ofuscada por outras capitais globais como Nova Iorque ou Londres, Paris – ainda mantém-se (ROCAMORA, 2009). É na cidade de Paris que os maiores conglomerados de moda como os grupos Kering10 e LVMH11 estão localizados, lugar onde é realizada a mais prestigiada semana de moda do mundo. Deste modo, embora pareça óbvio, é importante pontuar que essa posição não foi fruto do acaso, mas de um projeto longo e de investimentos altíssimos, como Dejean (2005, p.3)

12

afirma: “No século XVI a França não era considerada a mais sofisticada ou elegante das nações européias. Entretanto, no início do século XVIII, já era conhecida pelo seu estilo”. Nesse sentido, Reinach (2009) e Miquetti (2015) afirmam que a construção de uma “identidade nacional” é fundamental para o sucesso de marcas de moda em um contexto global. Assim, para competir mundialmente, marcas de moda contemporâneas tem buscado cada vez mais explorar aspectos culturais alinhados à tecnologia, capital simbólico e criatividade, fato que insere a moda na categoria de indústria criativa.

622

O termo indústria criativa13 começou a ser difundido em 1998, pelo Departamento de Cultura, Mídia e Esportes do governo britânico, o DCMS. Este setor, foi responsável pelo mapeamento de áreas criativas - música, arquitetura e moda, dentre outras - com o objetivo de estimular desenvolvimento econômico através da produção de capital simbólico, através da criatividade. Em 2011, seguindo o modelo britânico14, um mapeamento local foi realizado pelo governo federal brasileiro através do Departamento de Economia Criativa. De acordo com O’Connor (2010, p.18)15, o desenvolvimento da indústria criativa foi possivel devido à uma conjuntura que perpassa, educação em massa, tempo livre para lazer e avanços tecnológicos. O autor afirma ainda que o século XX foi marcado pelo surgimento de novas formas de produção e consumo cultural e “ uma evidente necessidade por produtos novos e diferenciados”. Assim, a indústria criativa tem seu desenvolvimento possível nos países desenvolvidos em virtude de avanços econômicos e sociais que possibilitaram o avanço do capitalismo, e novas circunstâncias como pós-Fordismo, pós-industrialismo, e pós-modernismo (AMIN, 1994, p. 2)16. Deste modo, Kawamura (2004, p.36, tradução nossa) afirma, que “a moda não pode ser compreendida sem considerações e observações de seu contexto organizacional”. Posto isto, é importante ressaltar, que a indústria criativa local, bem como a moda nacional, se desenvolve em um contexto muito distinto do supracitado. A América Latina por ter sido submetida à um processo de modernização tardio (CANCLINI, 1995) e, atualmente, devido à uma globalização lenta e desigual (HALL, 2000), propicia a coexistência de sistemas de produção flexíveis (pós-Fordismo) com sistemas de produção antiquados como Taylorismo e Fordismo17 (MOLLONA, 2009; LARRY e LURY, 2007). Identidades, estereótipos e o entre-lugar da moda brasileira “Não somos europeus ou americanos do norte, mas, destituídos de cultura original, nada nos é estrangeiro, pois tudo o é. A penosa construção de nós mesmo se desenvolve na dialética rarefeita entre o não ser e o ser outro”.18 "O sexy pertence ao Brasil, como os sapatos são "made in Italy".19

A maior semana de moda brasileira teve até sua nona edição o nome de MorumbiFashion, devido ao patrocínio do MorumbiShopping. Entretanto, visando atingir mercados estrangeiros e se desvincular da “cultura shopping center”, em sua décima edição, mudou de nome, para São Paulo Fashion Week, e de local, para a Fundação Bienal.20

623

Com o foco voltado às exportações, a organização da semana de moda afirma que a “identidade nacional será a marca da São Paulo Fashion Week”21. Deste modo, nos anos seguintes, observa-se a continuidade na ideia de o evento conferir uma “marca Brasil” à moda nacional. Portanto, investe-se na construção de uma narrativa visual, a começar pelo espaço físico onde é realizado o evento, um projeto de Oscar Niemeyer, marco do modernismo nacional. Além disso, cada estação é inspirada em temas “nacionais” como “A cara brasileira” (Verão-2003) , Os 'brasileirismos'' e a "Felicidade brasileira" (Inverno -2009)22. Segundo Kontic (2007), a criação da São Paulo Fashion Week é essencial na sistematização da moda nacional, pois consolidou um terreno para o desenvolvimento e disseminação de conceitos, ideias e comportamentos sobre moda, estilo e design. Além disso, expandiu o conteúdo de moda em circulação na mídia, fato essencial ao funcionamento da moda, como indústria criativa. Entretanto, pode-se dizer que após duas décadas de existência, a SPFW, ainda possui um caráter experimental. No período de 2001 a 2015, houve um trânsito de 127 marcas diferentes. Contudo, somente 4 marcas estiveram presentes em todos os eventos e 24 marcas em metade deles.23. Além disso, apesar da insistência dos organizadores do evento, na questão da identidade nacional e em uma suposta “brasilidade”, o discurso de dois dos maiores estilistas brasileiros, que participaram de todas as edições da SPFW, Alexandre Herchcovitch e Ronaldo Fraga, respectivamente, à respeito desse assunto, é divergente, como nota-se à seguir: A brasilidade do meu trabalho existe apenas pelo fato de eu ter nascido aqui. Tudo o que produzo já vem com a característica de ser o trabalho de um homem, judeu, descendente de poloneses e brasileiro, sem precisar que eu busque expressar isso ou aquilo.” (Alexandre Herchcovitch 24 ) O desafio de minha geração de estilistas é a reinvenção da memória iconográfica brasileira. Tanto tem se falado de uma identidade brasileira, a moda pode tirar muito daí", formula, “defendendo que o que faz quer distância de uma "moda típíca" ou "folclórica". (Ronaldo Fraga25)

Portanto, baseado nos relatos acima, pode-se observar: a) a “brasilidade” funciona como um produtor de elementos simbólicos, tanto como outras culturas e não um fator inerente à produção da moda nacional. Ou seja, “A escolha da identidade nacional ou da “brasilidade” como estofo simbólico da moda criada no país não é unânime.” (MIQUETTI, 2015, p. 199)26; b) o desejo por uma moda desterritoriliazada e sem representações fixas; c) a necessidade de expandir e deslocar símbolos culturais nacionais para além dos usuais clichés ou folclores.

624

Entretanto, como pensar essa “brasilidade” deslocada de suas representações imediatas como exotismo, sensualidade e o corpo brasileiro propriamente dito, se a mídia em geral e os responsáveis pela produção de moda vivem em constante e contraditória negociação identitária, negando ao mesmo tempo que apropriam-se desses símbolos, dependendo da conjuntura que está inserida? Ademais, em “Identidade Cultural na pós-modernidade”, Stuart Hall (2000, p.11), afirma que “o centro do “eu” era a identidade de uma pessoa, entretanto, o sujeito contemporâneo – pós-moderno – é composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas. Ou ainda: “Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cômoda história sobre nós mesmos” (HALL, 1990, p.11) Neste contexto, nota-se ainda, a complexidade e a ambivalência em torno da questão identitária na moda brasileira. De um lado, a moda, como uma indústria criativa, necessita de uma “identidade cultural” que forneça símbolos para serem manipulados e recriados, para que assim sejam incutidos em produtos – roupas e imagens. De outro, um conjunto fixo e simplificado de símbolos culturais, que embora algumas vezes incômodos, na falta de uma ‘identidade”, opera como “um ponto seguro de identificação” (BHABHA, 1998, p.110).

27

Para Bhabha (1998, p.117) o estereótipo não é simplificação porque é uma falsa representação de uma dada realidade, mas sim porque é uma forma presa de representação. Além disso, vale ainda ressaltar que da mesma maneira que a identidade foi uma invenção moderna ( BAUMAN, 1997; HALL, 2000) , a moda francesa, um projeto de Louis XIV e Jean Baptiste Colbert (KAWAMURA, 2005), o caráter exótico do Brasil também foi uma construção da época colonial, à partir de uma perspectiva fantástica de viajantes e missionários estrangeiros (BONADIO, 2014). Assim, o exotismo – em conjunto com outros estereótipos ligados à pobreza e ao futebol, por exemplo – continua sendo infinitamente explorado e fixado à identidade brasileira, através de diferentes mídias como a indústria da moda e seus atores, até os dias de hoje, como observa-se nos casos abaixo. A primeira tentativa de disseminar uma idéia de moda brasileira é em 1952, através de um desfile repleto de exotismos organizado pelo italiano Pietro Maria Bo Bardi. Conforme Bonadio (2014, p.58)28, a coleção teve como inspiração a cultura indígena e afro-brasileira e por isso algumas peças receberam nomes como “Caraguatá” “Jacaré”, “Macumba” e “Mãe de Santo”. Um outro exemplo, do ano de 2004, deriva da exposição denominada “Fashion Passion”, realizada com o objetivo de celebrar o centenário da moda global. A curadoria foi 625

dividida entre brasileiros e franceses e a predominância do conteúdo exposto, européia. Segundo a reportagem, o conteúdo relacionado ao Brasil resumiu-se a explorar clichés ligados ao futebol, sexo e o verde-amarelo da bandeira brasileira, além de imagens de favelas e escravas negras, que no lugar de roupas, teriam como função representar “aspectos da cultura brasileira brasileira”. Sobre este fato, as curadoras alegaram: “Nós não temos esse peso e nem esse tempo de moda para nos colocarmos diante da moda européia”29. E por final, em 2014 um episódio onde Li Edelkoort30, à respeito da edição especial da revista Bloom, sobre o Brasil, declara: Acho que as pessoas não deveriam se inspirar nas coisas de outros países. Meu conselho à cultura do Brasil seria considerar de onde vocês vem. Porque o mundo está se tornando muito global e o próximo passo no mercado mundial é conquistar a América do Sul e a África. Então a indústria e os designers do Brasil deverão expressar o que os motiva intimamente, e não que está acontecendo em outro lugar. 31 (2014)

Nas imagens abaixo, mais uma vez, a “brasilidade” vem representada em

sua

diferença e em seu lugar seguro:

Fig.132

Fig, 2.33

Fig.4 34

Tais eventos evidenciam, portanto, a condição subalterna da moda brasileira diante da moda internacional e relações de poder desiquilibradas entre o “Ocidente e o Resto” (HALL 1996, p. 215 tradução nossa )35 – onde o “Ocidente” continua a difundir não só tendências, mas também uma perspectiva fixa do que seria a “brasilidade”. Como Bonadio (2014b)36 pontua, a moda brasileira deve apresentar-se como “uma outra moda” , a que não é a produzida pelo centro, mas que está à margem”. Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.37

Amplamente difundida na indústria da moda, a prática da cópia pode ser considerada um fator indispensável ao processo de negociação e construção da identidade da moda

626

brasileira. Popularizada na década de 1950 por boutiques de luxo como Casa Canadá, Imperial e Casa Vogue ( SEIXAS e PORTINARI, 2001; BRAGA e PRADO, 2009;

LOPES,

2014) a cópia permanece até os dias atuais presente nos processos produtivos e criativos da moda brasileira. É interessante notar que além de ter colaborado para a sistematização da moda nacional, as fashion weeks também evidenciaram, através da produção e circulação de imagens, o conflito entre “tendências globais” e cópias. Ainda, observa-se que a definição de cópia é relativa : “Eu não copio. No começo da carreira, olhei o avesso de algumas roupas para aprender modelagem e reproduzir. Mas cópia é outra coisa", diz Reinaldo Lourenço. Ou ainda, para Karen Fuke, estilista da Triton, “é comum em grandes marcas, o “alinhamento" com tendências estrangeiras. Há algumas temporadas, a moda olhava para o trabalho da Isabel Marant."38 De acordo com o advogado especializado em direitos autorais Luiz Fernando Plastino, “não há legislação que especifique o que é cópia de moda no Brasil, uma série de elementos como a história da marca e os detalhes 'copiados' são levados em conta. Juridicamente, ser original não é criar a partir do zero.” 39 Assim, considerando que o ato de copiar e a construção das marcas de moda nacionais são processos extremamente conectados, a reflexão sobre um “DNA brasileiro,” precisa ser direcionada para processos que possibilitem alianças entre as práticas de produção existentes (cópia) e conjunturas locais (Brasil), pois a moda “não pode ser compreendida sem a consideração e a observação de seu caráter organizacional”. (KAWAMURA, 2005, p.36. tradução nossa)

Considerações finais Através deste artigo procurou-se discutir a moda, contextualizada como indústria criativa e a importância da questão identitária para o seu desenvolvimento. Como indústria criativa, a moda se desenvolve e se sustenta com a reprodução e circulação de produtos – vestuário e imagens – fruto da manipulação de símbolos engendrado pela hibridização de “identidades culturais” e “tendências” globais – que através da criatividade, recriam o novo e reinventam a necessidade de consumo do indivíduo. Nesse sentido, observou-se o caráter ambivalente da “brasilidade” como aporte simbólico da moda nacional, que, de um lado, oferece campo seguro na falta de uma identidade, e de outro, aprisiona o desenvolvimento da moda à estereótipos. Além disso,

627

constatou-se que ao contrário do que aconteceu com a moda francesa, a moda brasileira nunca foi um projeto coeso e construído a longo prazo e em torno de uma única lógica ou representação. A ideia da “brasilidade” não é inerente à indústria da moda. Seus agentes, até agora, não conseguiram prover um discurso e uma imagem unânimes à moda brasileira. Pelo contrário, o processo da identificação se dá de maneira contingente, mas nunca fixada em uma única referência: “Há algumas temporadas, a moda olhava para o trabalho da Isabel Marant”. Ou ainda, de um modo antropofágico: A gênese do modo de subjetivação antropofágica se faz por alianças e contágios, um rizoma infinito que muda de natureza e rumo ao sabor das mestiçarias que se operam na grande usina de nossa antropofagia cultural […] por jamais aderir absolutamente a qualquer sistema de referência, por uma plasticidade para misturar à vontade toda espécie de repertório e por uma liberdade de improvisação de linguagem a partir de tais misturas (ROLNIK, 1998, p.10,)40

Deste modo, ficam algumas questões: a) Para Gabriel Tarde (1902), a imitação é um ato social e por conseguinte, todas as invenções e descoberta são produzidas por imitações anteriores. Portanto, todos esses compostos são, eles próprios, imitações e estão destinadas a tornar-se elementos de combinações mais complexas. Como pensar a produção de moda a partir de devires como a cópia? b) Se a moda brasileira não foi construída através dos processos unificadores da modernidade, de que maneira conceber processos de identificação em tempos flutuantes, “onde a globalização torna as identidades desalojadas de tempos e lugares específicos”? (Hall, 2000 p.43)41 c) Em um sentido mais amplo, de que maneiras a moda nacional, como uma indústria criativa, contextualizada em um país em desenvolvimento como o Brasil, pode pensar o deslocamento de estereótipos, ou como disse Ronaldo Fraga, “a reinvenção da memória iconográfica brasileira” se a circulação e reprodução desses símbolos, depende do consumo de produtos que são constantemente aprisionados em representações estereotipadas, pela moda e também por outras mídias? 1

Master of Arts - Culture Industry/Centre for Cultural Studies, Goldsmiths, University of London London- UK. Ano de obtenção: [email protected] 2 LASH, S., and LURY, C., (2007) The global culture industry: the mediation of things, Cambridge: Polity Press. 3 OITICICA, Helio. Tropicália, PN2 1967. 4 Plano da Secretaria da Economia, diretrizes e ações, 2001-2001. Brasilia, Ministerio da Cultura, 2011 5 KAWAMURA, Yunyia. The Japanese Revolution in Paris Fashion, Oxford: Berg, 2004. 6 ROCHE, Daniel. The Culture of Clothing: dress and fashion in the ancien regime, translated by Jean Birrell, Cambridge: Cambridge University Presss, 1994. 7 MUKERJI, Chandra (1997), Territorial Ambitions and the Gardens of Versailles, Cambridge: Cambridge Univresity Press. 8 France’s position as the leading historic fashion center owes much not only to the ambitious monarch of Louis XIV, but also his minister of finance, Jean Baptiste Colbert (1619–83) 9 ROCAMORA, Agnès. Fashionising the city, Paris, Fashion and the media. I.B. London: Tauris & Co

628

Ltd, 2009. 10 www.kering.com 11 www.lvmh.com 12 DEJEAN, J. (2005) The essence of style. New York : Free Press 13 . In Britain at least, one basis for the adoption of the term ‘creative industries’ was that it allowed cultural policy makers (whether concerned with arts, crafts, or film production) to legitimize their concerns at the national level. […]By the late 1990s, the term ‘creativity’ had spread to the national policy level in the UK. Creative industries is a concept that has since been widely adopted in the spheres of cultural policy and higher education. (Hesmondhalgh. David. In: Bennett & Frow, 2008:560). 14 Some governments have followed the ‘British model’ – ‘ those activities which have their origin in individual creativity, skill and talent and which have the potential for wealth and job creation through the generation and exploitation of intellectual property’ (DCMS, 1998) – of creative industries in terms of definition and policy orientation. (Hesmondhalgh. David. In: Bennett & Frow, 2008:560). 15 O’CONNOR J., (2010) The cultural and creative industries review 2nded. Newcastle Upon Tyne: HPM 16 AMIN, Ash Post- Fordism. Boston: Blackwell Publishers, 1994 17 O Fordismo como meio de “estandardização de produção e consumo”, tornou-se o principal sistema produtivo depois década de 1940 no Japão e na Europa. Harvey (1989:135) 18 GOMES, Paulo, S. 1973 In: SANTIAGO, Silviano. Vale quanto pesa. Paz e Terra, 1980: Apesar de dependente, universal 19 Giovani Bianco. http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u9825.shtml 20 http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u9825.shtml 21 http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u20786.shtml 22 http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2009/01/491041-sp-fashion-week-comeca-hoje-celebrandofelicidade-brasileira.shtml 23 Dados analisados do site www.ffw.com.br 24 http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u56922.shtml 25 http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u45404.shtml 26 MIQUETTI, M .Moda brasileira e mundialização. São Paulo Annablume, 1ª ed Fapesp, 2015 27 BHABHA, Homi., O Local da Cultura. Belo Horizonte. Ed. UFMG, 1998. 28 BONADIO, Maria C. Anais do Museu Paulista. v. 22. n.2. Jul.- Dez. 2014. 29 http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u47245.shtml 30 Li Edelkoort é uma das maiores pesquisadoras de tendências do mundo e editora da revista Bloom. Em 2014, foi lançada uma edição especial, um livro , Bloom Brasil, em parceria com a loja de departamentos brasileira, Renner. 31 http://ffw.com.br/noticias/gente/referencia-mundial-pesquisadora-de-tendencias-li-edelkoort-faz-previsoessobre-moda-brasileira/ 32 http://ffw.com.br/noticias/files/2014/04/li-edelkoort-bloom-brasil-livro-4.jpg 33 http://www.ffw.com.br/models/wp-content/uploads/2014/05/bloom-magazine-editorial-brasil-5.jpg 34 https://www.appletizer.nl/media/catalog/product/cache/2/image/9df78eab33525d08d6e5fb8d27136e95/w/e/ welcome3klein.jpg 35 HALL, Stuart. The West and the Rest: Discourse and Power . In: Modernity an Introduction to Modern Societies. Oxford. Blackwell Publishers, 1996. 36 BONADIO, Maria, C. Brazilian fashion and the exotic. In International Journal of fashion studies. 1:1, pp-57-74 37 ANDRADE. Oswald. Manifesto antropofágico. Revista deAntropofagia, 1:1, 1928. 38 http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2013/12/1378709-grifes-defendem-criacao-com-referencias.shtml 39 (ibid) 40 Publicado em: Subjetividade Antropofágica/ Anthropophagic Subjectivity. In: HERKENHOFF, Paulo e PEDROSA, Adriano (Edit.) Arte Contemporânea Brasileira: Um e/ entre Outro/s, XXXIVª Bienal International de São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1998, p 128-147 41 HALL, Stuart . A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro, 12º ed. Rio de Janeiro, Lamparina 2015.

629

Duarte da Ponte Ribeiro na Confederação Peru–Boliviana (1837-1839) Cristiane Maria Marcelo1 Resumo: Busca-se problematizar os discursos elaborados por Duarte da Ponte Ribeiro enquanto representante do Império do Brasil junto às repúblicas do Peru e da Bolívia no período supracitado. O foco da análise recairá sobre as opiniões do diplomata acerca da atuação política do general Andrés de Santa Cruz, responsável pela criação de uma confederação entre aqueles governos nos anos de 1837 e 1839. Objetiva-se também discutir as vantagens que na visão do diplomata o Brasil poderia tirar daquele conturbado momento político. Palavras-chave: Século XIX – Diplomacia – Duarte da Ponte Ribeiro Nas primeira década após a independência, as relações externas do Brasil moviam-se em duas direções principais, uma voltada para a Europa e outra para a conflituosa região platina. A instabilidade daquelas relações e as próprias exigências trazidas pelo movimento de emancipação fizeram com que a monarquia voltasse seus olhos para regiões outrora ignoradas no campo das relações internacionais do Império. É neste contexto que se insere a iniciativa de estreitar laços com aqueles Estados da América hispânica localizados no subsistema do Pacífico, mais precisamente Peru, Bolívia e Chile, principal área de atuação de Duarte da Ponte Ribeiro. No relatório referente ao ano de 1830, apresentado à assembleia legislativa em 22 de abril de 1831 (apenas quinze dias depois da abdicação de D. Pedro I), o ministro explicitou a inclinação do governo em reduzir suas missões na Europa para melhor dotar as da América, a fim de não só promover as relações comerciais, mas também assumir uma posição de liderança e aprofundar os vínculos políticos entre os governos recém-independentes, como fica evidente na passagem seguinte: Partes componentes deste grande todo, aonde a natureza tudo fez grande, tudo estupendo; só poderemos ser pequenos, débeis e pouco respeitados, enquanto divididos. Talvez uma nova era se aproxima, em que as potências da América, pejando-se de suas divisões intestinas à vista do exemplo de concórdia, que nós lhe oferecemos, formem uma extensa família, e saibam com vigor próprio da liga robusta de tantos povos livres repelir com toda dignidade o orgulho, e pretensões injustas das mais enfatuadas nações estranhas. 2

Um primeiro movimento nesta direção já tinha sido dado em 1829 quando o Império encaminhou seus primeiros representantes diplomáticos aos governos do Peru e da GrãColômbia, encabeçadas, respectivamente, por Duarte da Ponte Ribeiro e Luís de Sousa Dias. Em 1831, Antônio Gonçalves da Cruz era enviado à Bolívia. Além do estreitamento de laços de amizade, aquelas missões tiveram por objetivo estabelecer algum tratado de comércio e desconstruir a visão negativa daqueles governos sobre o sistema monárquico.

630

Em meados da década de 1830 uma nova leva de missões foi encaminhada àquela região. Em 1836, Duarte da Ponte Ribeiro voltou a atuar na América do Sul como encarregado de negócios nas repúblicas do Peru e da Bolívia e ali permaneceu por quase cinco anos. Naquela mesma oportunidade, Manoel Cerqueira Lima foi encarregado de inaugurar as relações diplomáticas da monarquia com a república chilena, que até então só contava com um cônsul-geral. Nas instruções por ele recebidas estavam bastante claras o desejo de “desvanecer quaisquer impressões sinistras” sobre a Monarquia, estreitar os laços de amizade e aprofundar as relações comerciais entre aqueles governos 3, cuja necessidade Ponte Ribeiro já tinha destacado em relatórios anteriores. Importante ressaltar que o quadro político do Império após a abdicação de D. Pedro I não era nada favorável. As disputas políticas, especialmente entre os grupos exaltado e moderado, nos quase dez anos de vacância do trono, mergulharam o Império em uma conturbada onda de rebeliões provinciais com perigos reais de desintegração territorial. Os diferentes projetos de nação defendidos por aquelas facções acabaram se refletindo nas intensas relações de força entre o legislativo e o executivo que ora implementou reformas de caráter liberal, ora apresentou tendências mais conservadoras4. Foi somente com a antecipação da maioridade de D. Pedro II e com as mudanças institucionais daí advindas que tais relações começaram a se estabilizar e dar contornos mais sólidos à jovem nação brasileira. Mesmo com todas estas dificuldades, o Império não ignorou a necessidade de ampliação do diálogo diplomático com seus vizinhos americanos. Na segunda missão ao Peru e à Bolívia, uma série de demandas exigiu que Ponte Ribeiro fosse além de uma atuação de cordialidade e partisse para ações mais incisivas a fim de contestar alguns direitos de cidadãos brasileiros que vinham sendo usurpados por aqueles governos. Ao mesmo tempo, no entanto, o diplomata não mediu esforços em desenvolver estratégias para aproximar aquelas nações, fosse por meio das iniciativas para a assinatura de um tratado de comércio – conforme orientavam as instruções recebidas do ministro Antônio Paulino Limpo de Abreu5 – ,fosse pelas tentativas de celebração de um acordo fronteiriço, constantemente ignorado pelas autoridades brasileiras que ainda não tinham chegado a um consenso sobre as perspectivas a serem adotadas naquele conturbado diálogo. Nos dois primeiros anos de seu retorno com o encarregado de negócios à região do Pacífico, Duarte da Ponte ribeiro testemunhou uma das mais graves crises políticas protagonizada por aquelas nações o que levou o diplomata a produzir excelentes análises “dos lances políticos e guerreiros, que se desdobravam rapidamente nas repúblicas do Peru, Bolívia e Chile”6 muito pouco explorados pela historiografia brasileira.

631

Em 1836, o general boliviano Andrés de Santa Cruz, depois de muitas articulações e esforços, tinha finalmente conseguido reunir os territórios do Peru e da Bolívia em uma confederação. A nomeação do general como Supremo Protetor da Confederação PeruBoliviana, em 28 de outubro daquele ano está intimamente relacionada ao estado de desordem que dominou a política interna do Peru em meados da década de 1830. O movimento revolucionário do general Felipe Santiago Salaverry7 que resultou na deposição do presidente peruano Luis José de Orbegoso8, em fevereiro de 1835, foi a oportunidade encontrada por Santa Cruz para levar à frente o seu velho projeto de unificar os dois países. Em troca da ajuda militar, imposta a Orbegoso, para restaurar a paz no Peru, o presidente boliviano exigiu que fossem convocadas duas assembleias, uma ao norte e outra ao sul daquele país, para decidir sobre a melhor forma de governo a ser adotada9. O resultado daquelas assembleias, ocorridas em março e agosto de 1836, sob forte poder de persuasão de Santa Cruz, foi a declaração de independência dos estados do Norte e do Sul peruanos rapidamente unificados à região altiplana sob a tutela do caudilho boliviano. Aquela ação provocou o agravamento das desavenças com a organização de forças restauradoras internas encabeçadas por líderes militares que lutaram juntos no exército independentista como Agustin Gamarra10 e Gutiérrez de La Fuente11. Estes homens encontraram abrigo junto ao governo chileno que declarou guerra à confederação em dezembro de 1836. Em maio de 1837, a confederação também foi atacada por tropas do governador de Buenos Aires, Juan Manuel de Rosas, rapidamente derrotadas. Em ofício de 7 de outubro de 1836, quando ainda estava em Buenos Aires rumo à Chuquisaca, Ponte Ribeiro já apresentava ao Império as suas impressões iniciais sobre as origens das discordâncias entre o Chile e Santa Cruz que, no entendimento dele, tinha motivações basicamente comerciais. Um dos motivos principais da indisposição de Chile contra Santa Cruz é ter aquele presidente declarado Arica porto de depósito, medida que vai deixar deserta a baía de Valparaíso, porque proporciona vantagem aos comerciantes e um ancoradouro seguro em todas as estações do ano12.

O diplomata estava bastante entendido em suas ponderações. De fato, o estabelecimento do porto franco de Arica, mais bem localizado que o de Valparaíso, tiraria deste último o monopólio sobre o comércio do mar do pacífico com a Europa, principal fonte de renda do grupo estanqueros, chefiados por Diego Portales, ministro das Relações Exteriores. O porto de Valparaíso também passou a sofrer a concorrência direta dos portos peruanos de Callao e Paita. A disposição do código comercial de Santa Cruz de cobrar

632

direitos adicionais das mercadorias, que antes de chegar ao Peru, tivessem tocado em outros portos, foi encarado como medida de hostilidade contra o principal porto chileno13. A destruição da confederação era condição necessária para a sobrevivência comercial do Chile que foi encarada por muitos como uma segunda guerra de independência do país. A redução dos impostos para incentivar a entrada de produtos estrangeiros praticada por Santa Cruz afetava diretamente a economia chilena que, entre outras perdas, observou com receio a entrada maciça do trigo dos Estados Unidos no Peru, mercado em que até então exercia um certo monopólio14. As expectativas de Duarte da Ponte Ribeiro quanto à sobrevivência da confederação não eram muito animadoras. Em seu ofício de 2 de maio de 1837 quando, de Tacna, enviou ao governo brasileiro uma cópia do tratado que estabelecia formalmente a criação da confederação e a legitimação de Santa Cruz como supremo protetor daquela organização, Ponte Ribeiro fez uma avaliação dos prováveis resultados do acordo. Afirmava: Segundo as minhas observações, calculo que o tratado federal não há de contentar a maioria dos três Estados: em Bolívia está mui generalizada a ideia de que vai perder a categoria de nação e ficar reduzida à província, o que assusta a multidão de empregados de todas [as] classes. Os peruanos, vendo aplicar toda a renda das alfândegas aos gastos gerais da federação, julgam-se lesados, por lhes pertencerem os portos de mar aonde se recebem. Também receiam que Santa Cruz continue dando aos bolivianos todos os empregos, como sucede atualmente15.

Estes temores, de fato, eram bastante reais, pois no mesmo ofício de 2 de maio, o representante brasileiro informou que, por conta da preparação de tropas do exército para uma nova guerra que se anunciava, contra Chile ou Confederação Argentina, os salários de todos os funcionários públicos foram reduzidos à metade. A maioria destes gastos era custeada pelo Peru que tinha uma economia mais dinâmica e variada com portos mais acessíveis e melhor equipados. O porto de Cobija, único da Bolívia, era pouco estratégico, pois ficava muito distante da zona de comércio, e passava por sérios problemas de abastecimento de água para beber, como Ponte Ribeiro já tinha observado em sua primeira viagem ao Peru16. É também preciso considerar, conforme já destacamos, que entre as províncias do centro-norte do Peru se formou uma forte oposição à confederação liderada pela província de Trujillo e, especialmente, de Lima que era contra a divisão do país e não estava disposta a perder o controle do aparato central do Estado peruano, nem tampouco aderir à causa federalista e livre-cambista como pressupunham os departamentos do sul, mais favoráveis à causa de Santa Cruz17. Até mesmo a elite mineiro-burocrática de Chuquisaca temia a perda de poder sobre a Bolívia18.

633

Ao longo de toda a sua atuação, Duarte da Ponte Ribeiro também procurou mostrar às autoridades brasileiras que as avaliações sobre a conduta de Santa Cruz eram bastante controversas. Observa-se, entretanto, que, embora tenha se esforçado em construir uma análise imparcial, a fixação do diplomata em Lima 19, acabou comprometendo as análises dele que, influenciado pelo clima político, pelas opiniões e jornais da época, tendeu a defender a causa das províncias do norte e, de uma maneira geral, mostrou-se bastante negativo quanto à reputação de Santa Cruz. Poucos foram os momentos em que o diplomata se dedicou a analisar a recepção daquela liderança entre as províncias do sul do Peru. Assim, por exemplo, em seu longo ofício de 2 de julho de 1837, o encarregado de negócios procurou mostrar que o autoritarismo praticado pelo general no Peru depois de sua vitória sobre Salaverry tinha-lhe granjeado muitos inimigos. Segundo o diplomata, a decisão do general de dividir o Peru por meio de assembleias regionais, de reservar os postos de maior consideração aos bolivianos, de demitir os oficiais e empregados que serviram com Salaverry e de hostilizar o povo peruano, ignorando seus velhos amigos, “despertou o orgulho nacional e converteu em inimigos seus, muitos dos que antes eram indiferentes”20. Concluía afirmando que Santa Cruz só não tinha sido expulso do Peru porque o país carecia de uma liderança de prestígio que pudesse fazer frente às perspectivas de invasão chilena. Desse modo, o apoio ao protetor devia-se “mais por convicção de que é o único que pode salvar o país dos males que o ameaçam , do que por afeto” 21. Mesmo assim, acreditava Ponte Ribeiro que a confederação não se sustentaria por muito tempo, isso porque o descontentamento com o protetor estava se tornando geral, como evidenciado na seguinte passagem do ofício de 3 de agosto de 1837: Ele conhece que a maioria da nação lhe é desafeta e cuida de firmar-se pela força. Cada vez estou mais persuadido que, a não ser a guerra de Chile, já o teriam lançado do país. Por outro lado, também os bolivianos estão desgostados com ele, acreditando que por ambição os abandonou e quer governá-los de longe por meio da federação. As últimas eleições para o Congresso de Bolívia recaíram sobre indivíduos em quem Santa Cruz confia pouco e, para evitar que seja reprovado o Tratado de Tacna e outras consequências, mandou suspender a abertura das câmaras até segunda ordem e pretende voltar ali logo que se componham com Chile, como espera e continua a solicitar22.

Em nenhum momento Ponte Ribeiro percebeu em Santa Cruz um administrador que, apesar de seu autoritarismo, forjou algumas instituições permanentes e buscou, não obstante as discordâncias internas, promover a economia da confederação como reconhecem atualmente alguns historiadores peruanos. A estudiosa Laura Sánchez Príncipe assinala que os interesses regionais e pessoais cegaram os inimigos locais da confederação para os benefícios que aquela associação poderia trazer à economia nacional peruana a ponto de ignorarem

634

os

reais interesses do Chile em apoiá-los na causa contra Santa Cruz, quer dizer, o temor da perda de prestígio político e econômico na balança de poder que começava a se configurar na região do Pacífico. A autora sustenta que “por parte de los caudillos militares, les resultaba difícil reconocer los méritos de otro caudillo, tenían que ser ellos quienes realizaran esta labor” 23. Na visão do diplomata, o general Santa Cruz era também um péssimo estrategista político, pois em busca de apoio para o projeto da confederação acabou assinando com a Inglaterra, em 5 de junho de 1837, um tratado de comércio, amizade e navegação extremamente desvantajoso para a economia nacional pois, dentre outras

cláusulas,

estabelecia que “os navios ingleses pagarão, nos portos da confederação, os mesmos direitos de tonelada, ancoragem, etc. que pagarem os nacionais”, e concluía: “o general Santa Cruz está persuadido que, agradando à Inglaterra e à França, será apoiado por estas duas nações para conseguir os fins que ambiciona. O astuto inglês trata de iludi-lo a este respeito e obteve um tratado que jamais alcançaria se não fossem as atuais circunstâncias” 24. Dentro da perspectiva de ampliação das relações econômicas da confederação, um tratado de igual envergadura já tinha sido assinado com os Estados Unidos a 10 de janeiro de 1837. O apoio militar destas potências, tão esperado por Santa Cruz, nunca se concretizou. Foi exatamente no momento de maior distúrbio político que o diplomata percebeu a conveniência de uma aproximação entre Santa Cruz e seus inimigos. Em 24 de agosto de 1838, quando informou sobre a desastrosa conseqüência do desembarque das tropas chilenas e dos exilados peruanos na capital limenha, ocorrido no dia 6 daquele mês, Duarte da Ponte Ribeiro revelou que “os estragos da batalha são uma verdadeira vitória para o general Santa Cruz, que hoje é desejado até por aqueles que antes eram seus inimigos”25. De acordo com o representante do Império, aquele desembarque, que deu início à segunda expedição restauradora chilena, liderada pelo general Manuel Bulnes e acompanhada por Agustín Gamarra, deixou o saldo de 180 mortos e 70 feridos entre as tropas peruanas que apoiavam Santa Cruz e horrorizou o povo da capital “cujo ódio contra os expedicionários cresceu quando viram cento e tantos dos seus compatriotas conduzidos em triunfo no meio das filas vencedoras”26. Para manter viva a chama da confederação, o general Santa Cruz chegou a recorrer à ajuda do Império. De acordo com Ponte Ribeiro, entre os meses de novembro e dezembro de 1838 ele e o protetor da confederação sentaram-se por quatro vezes à mesa para discutirem algumas problemáticas de mútuo interesse27. Desde que chegou ao Peru, aquela era a primeira grande oportunidade de diálogo que o diplomata teve com o protetor da confederação.

635

Foram destas reuniões que surgiu a proposta do general de ambos os Estados formarem “uma liga ofensiva e defensiva para sustentar os governos e sistemas estabelecidos”28. Na visão de Ponte Ribeiro, o objetivo de Santa Cruz com esta proposta era justamente convencê-lo de que havia uma semelhança entre aquelas duas formas de governo e, portanto, deviam se unir na luta contra as repúblicas, consideradas inimigas naturais, tanto da monarquia quanto do projeto de confederação. Embora reconhecesse a veracidade daquelas inimizades, o diplomata buscou argumentar que o estabelecimento de uma liga daquela envergadura ia contra o princípio de neutralidade adotado pela monarquia e poderia comprometer o relacionamento da mesma com os demais Estados americanos. Por outro lado, sabia Ponte Ribeiro que o principal interesse de Santa Cruz com aquela aproximação era conseguir do Império a compra de duas embarcações de guerra com as quais “poderia destruir a marinha chilena e impedir a mobilidade que ela apoia e dá ao exército, para que se transporte de um a outro ponto da costa sem [a] fadiga de longas marchas e outros riscos”29. Tal era esta necessidade e o desespero que o general estava disposto a abrir mão das pretensões territoriais da confederação e assinar um tratado de limites com o Império, sem a exigência de um prévio exame da fronteira por uma comissão mista, “se acaso lhe forem outorgadas uma fragata e uma corveta” 30. Ponte Ribeiro sabia que aquela era uma excelente oportunidade para tentar resolver algumas problemáticas graves para as quais tinha sido instruído como era a devolução de escravos e de criminosos que tinham fugido para o território boliviano e também o fim da concessão de sesmarias em território brasileiro por autoridades bolivianas31. Considerando que não tinha liberdade para discutir um acordo fronteiriço, embora tivesse solicitado insistentemente ao Império, o diplomata propôs inicialmente a Santa Cruz a discussão de um tratado de comércio, para o qual estava apto, e tentou incluir ali uma cláusula referente à devolução de escravos e criminosos baseado no princípio da reciprocidade. Santa Cruz contestou aquele princípio por considerar que não era compensatório “porquanto Bolívia, além de ter mui poucos escravos, era constante que os brasileiros tratam os seus com rigor e, decerto, nenhum fugiria para lá”32. Santa Cruz insistiu, então, que a devolução fosse reconhecida como um favor em troca do fornecimento das duas embarcações, o que não foi aceito pelo diplomata que tinha argumentos jurídicos bastante fortes. Muito embora aquela discussão não tivesse seguido à frente, Santa Cruz prometeu encaminhar a proposta de tratado ao vice-presidente da Bolívia, “visto que interessa essencialmente àquela república”, a fim de ser apreciado pelo Conselho de Estado.

636

Ponte Ribeiro, por sua vez, tinha ciência que a assinatura de um acordo econômico com a confederação colocaria em risco um tratado de igual natureza que estava sendo negociado em Chile por Manoel Cerqueira Lima, com quem o Império tinha relações comerciais mais consistentes, e por isso postergou o quanto pôde as discussões sobre o mesmo em Peru e Bolívia. Quanto à proposta do tratado de limites com a possibilidade de concessão de territórios, embora parecesse, a princípio, vantajosa, Ponte Ribeiro não tinha liberdade para negociá-lo e, mesmo assim, estava convicto de que o governo brasileiro não iria vender as embarcações que Santa Cruz necessitava, pois o mesmo significaria o apoio a um governo que estava prestes a desmoronar e a conquista da inimizade do governo chileno e dos peruanos contrários à confederação. À revelia da monarquia, o diplomata propôs que as vantagens cedidas no tratado de limites fossem compensadas em dinheiro. Argumento não aceito pelo protetor da confederação, pois aqueles recursos chegariam tarde demais. Por fim, acabou propondo o convencionamento de um tratado ad referendum, tendo as embarcações como garantia, que seria encaminhado ao Brasil já ratificado por Santa Cruz e entraria logo em vigor, caso o Império concordasse com os termos do mesmo. Depois de alguma hesitação, o general acabou aceitando. Em sua justificativa, o diplomata reconheceu que se excedeu em suas negociações, mas tinha plena certeza de que: A confederação acaba antes do termo fixado para a ratificação e que, não expressando o destino das embarcações, poderia já então o Governo Imperial adotá-lo sem comprometer-se com Chile, dando-as como compensação de algumas porções de terrenos, cedidas a benefício de uma demarcação mais natural e clara; ou rejeitá-lo, em qualquer época, reprovando a minha conduta de haver entrado em semelhante ajuste, ainda mesmo com a cláusula ad referendum33.

O tratado preliminar de limites redigido pelo representante brasileiro não chegou sequer a ser analisado pelo general, pois ao chegar para a última reunião ocorrida no dia 18 de dezembro de 1838 recebeu a notícia que Santa Cruz tinha aceitado a proposta de alguns franceses de armar corsários e destruir os navios chilenos , estes corsários receberiam “um tanto por cada peça de artilharia e tonelada dos barcos que tomassem, ou destruíssem, e 500 mil pesos pela total ruína da esquadra chilena, se tanto pudessem conseguir”34 . Aquela ação foi um verdadeiro fracasso e contribuiu ainda mais para a queda do general que, depois de uma quantidade significativa de batalhas, acabou sendo derrotado na batalha de Yungay, ocorrida a 20 de janeiro de 1839.

637

Apesar das limitações causadas pelo conturbado governo de Santa Cruz, Ponte Ribeiro encontrou espaço para levar à frente algumas propostas com o objetivo de facilitar a comunicação do Império com os governos vizinhos. É digno de nota, por exemplo, o empenho dele para o estabelecimento de um sistema de correio entre as localidades de Santa Anna de Chiquitos, do lado boliviano, e de Casalvasco, pertencente à província de Mato Grosso. Na proposta enviada de Lima ao presidente da Bolívia, Mariano Enrique Calvo, em 7 de outubro de 1837, o diplomata justificou-se afirmando que aquele sistema iria aumentar e favorecer a prosperidade do comércio entre os dois governos. Argumentou ainda que Casalvasco tinha um correio regular com Rio de Janeiro, o mesmo acontecia entre Santa Anna de Chiquitos e Chuquisaca e por isso lamentava a interrupção da comunicação naquele curto intervalo já que poderia dar “mais independência à república, facilitando as suas relações exteriores”35. A ausência daquele correio fazia com que o contato entre Bolívia e Brasil ocorresse por via do Cabo de Horn ou de Buenos Aires que, embora parecesse mais seguro, era bastante custoso. É bem verdade que Ponte Ribeiro não estava sozinho naquela empreitada, pois encaminhou ofícios de igual natureza aos governos de Mato Grosso e Santa Cruz de la Sierra, os principais interessados na consecução daquele projeto, para que também agissem em consonância com ele. As constantes mudanças na administração da Bolívia e a própria morosidade da rede de comunicações fizeram com que somente em 18 de março de 1838 conseguisse remeter ao Império uma notícia recebida do governador de Mato Grosso de que já se achava “em prática o proposto correio e regulando-se por regulamento provisório”36. O conhecimento daquele regulamento, que devia ser ratificado pelo Império, só ocorreu em 8 de junho de 1838 quando Ponte Ribeiro, finalmente, recebeu a resposta de Bolívia que encontrava-se administrada por Andrés Maria Torrico. A maior preocupação de

Ponte

Ribeiro era que o estabelecimento daquele correio desse margem à reivindicações territoriais por parte de Bolívia, por isso mesmo ele buscou não se comprometer e deixou que o governo imperial deliberasse sobre o mesmo. De qualquer maneira, sabemos que até 17 de janeiro de 1839, aquele regulamento ainda não tinha sido ratificado, pois, segundo o representante brasileiro, o correio ainda funcionava com o documento provisório37. A derrota de Santa Cruz e o retorno de Agustín Gamarra ao poder, apesar de toda instabilidade gerada, fizeram com que Ponte Ribeiro conseguisse privilegiar em seus ofícios as notícias referentes à defesa dos interesses do Império na região em detrimento das análises dos lances políticos que ocorriam em Peru e Bolívia, como vinha ocorrendo até então. Desse modo, para além das problemáticas relacionadas à usurpação de terrenos em províncias

638

fronteiriças e à devolução de escravos fugidos, a péssima situação financeira em que se encontrava, as discussões em torno da validade de suas credenciais, as críticas à lei de naturalização forçada de estrangeiros e as providências tomadas para contestar a cobrança indevida de um empréstimo de guerra ao comerciante brasileiro José Antônio do Carmo foram os principais temas que dominaram os dois últimos anos daquela missão. O empenho do diplomata em ver solucionada este último desagravo causou-lhe alguns desentendimentos que quase anteciparam o encerramento da missão, mas isso é uma outra história...

1

Doutoranda em História Política pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro sob orientação da Prof.ª Dr.ª Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves. Bolsista FAPERJ. 2 RRNE (RELATÓRIO DA REPARTIÇÃO DOS NEGÓCIOS ESTRANGEIROS), 1830, p.23. 3 CHDD (CENTRO DE HISTÓRIA E DOCUMENTAÇÃO DIPLOMÁTICA). Santiago do Chile: a primeira missão (1836-1838). In Cadernos do CHDD, Brasília: FUNAG, ano 13, n. 24, primeiro semestre de 2014, p. 1719. 4 BASILE, Marcello. O laboratório da nação: a era regencial (1831-1840). In GRINBERG, Keila e SALLES, Ricardo (orgs). O Brasil Imperial. Vol II: 1831-1870. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p.53-119. 5 CHDD. Despacho de 22 de julho de 1836. Instruções de Antônio Paulino Limpo de Abreu, ministro dos negócios estrangeiros, a Duarte da Ponte Ribeiro, encarregado de negócios nas repúblicas do Peru e da Bolívia. Cadernos do CHDD, Brasília: FUNAG, ano 7, n. 12, primeiro semestre de 2008, p. 178-180. 6 SOUZA, José Antônio Soares de. Um diplomata do Império (Barão da Ponte Ribeiro. São Paulo: Cia Editora Nacional. Biblioteca Pedagógica Brasileira, série V, vol. 273, 1952, p. 68. 7 Jovem militar que atuou no exército libertador. Foi subprefeito da província de Tacna, no governo de Gamarra. Sublevou-se contra Orbegoso em fins de fevereiro de 1835, proclamando-se chefe supremo da República do Peru. Foi derrotado na batalha de Socayaba, em 7 de fevereiro de 1836 e no dia 18 do mesmo mês foi fuzilado na praça das armas de Arequipa. 8 Militar e político peruano que assumiu a presidência do Peru em fins 1833 vencendo as eleições contra Pedro Pablo Bermúdez, ex-Ministro da Guerra de Agustín Gamarra. 9 A Convención de auxílios y subsídios foi assinada entre os dois governos na cidade de La Paz no dia 15 de junho de 1835. 10 Foi governador da província de Cusco e presidente da república entre 1829 e 1833. 11 Foi governador da província de Arequipa e vice-presidente da república entre 1829 e 1833. 12 CHDD. Ofício de 7 de outubro de 1836. Missão brasileira a Peru e Bolívia: Duarte da Ponte Ribeiro (18361839). In Cadernos do CHDD, Brasília: FUNAG, ano 10, n. 18, primeiro semestre de 2011, p.186. 13 PEREYRA, Hugo Plasencia. Una relectura del proceso de La Confeferación Perú-boliviana a la luz de fuentes de los anos 1837 a 1839. In . Trabajos sobre la guerra del Pacífico y otros estudios de História e historiografias peruanas. Lima: Instituto Riva Aguero, 2010, p.313. 14 CONTRERAS, Carlos; CUETO, Marcos. Historia del Perú contemporáneo. Lima: Instituto de Estudios Peruanos, 2013, p.106. 15 CHDD. Ofício de 2 de maio de 1837. Primeira missão brasileira ao Peru: Duarte da Ponte Ribeiro (18291832). In Cadernos do CHDD. Brasília: FUNAG, ano 9, n.17, segundo semestre de 2010, p.241. 16 Ofício de 29 de novembro de 1829, ibid., p. 336. 17 CASTILLO, Francisco Betancourt. Norte versus sur. De notícias, desengaños y entusiasmos en la defensa de la confederación Perú-Boliviana. Revista Histórica, Lima: Instituto Histórico del Perú, tomo XLV, 2011/2012, p. 279-304. 18 PEREYRA, Hugo Plasencia. Op.cit., p.324. 19 O governo itinerante de Santa Cruz fez com que o diplomata se deslocasse bastante entre o Peru e a Bolívia, mas em fins de maio de 1837 estabeleceu residência em Lima de onde sairia somente em 1841, com o fim da sua missão diplomática. 20 CHDD. Ofício de 2 de julho 1837. Missão brasileira a Peru e Bolívia: Duarte da Ponte Ribeiro (1836-1839). In Cadernos do CHDD, Brasília: FUNAG, ano 10, n. 18, primeiro semestre de 2011, p.254. 21 Ibid., p.255.

639

22

CHDD. Ofício de 3 de agosto 1837. Missão brasileira a Peru e Bolívia: Duarte da Ponte Ribeiro (1836-1839). Ibid., p.259. 23 PRÍNCIPE, Laura Sánchez. Adversarios políticos de la Confederación Perú-Boliviana, desde la distancia. Revista Histórica. Lima: Instituto Histórico del Perú, tomo XLV, 2011/2012, p.135-136. 24 ofício de 3 de agosto de 1837. Op. Cit., p.259. 25 CHDD. Ofício de 24 de agosto de 1838. Missão brasileira a Peru e Bolívia: Duarte da Ponte Ribeiro (18361839). Op.cit., p. 372. 26 CHDD. Ofício de 24 de agosto de 1838. Missão brasileira a Peru e Bolívia: Duarte da Ponte Ribeiro (18361839). Op.cit., p. 372. 27 Estas reuniões ocorreram nos dias 15, 23 e 30 de novembro e a última no dia 18 de dezembro de 1838, mas só foram informadas ao governo brasileiro em ofício de 19 de janeiro de 1839. 28 CHDD. Ofício de 19 de janeiro de 1839. Missão brasileira a Peru e Bolívia: Duarte da Ponte Ribeiro (18361839). Op.cit., p. 454. 29 CHDD. Ofício de 19 de janeiro de 1839. Missão brasileira a Peru e Bolívia: Duarte da Ponte Ribeiro (18361839). Op. Cit., p. 455. 30 CHDD. Ofício de 19 de janeiro de 1839. Missão brasileira a Peru e Bolívia: Duarte da Ponte Ribeiro (18361839). Op. Cit., p.457. 31 Os pormenores destas problemáticas serão aprofundados no cap. 5 quando discutiremos as contribuições de Duarte da Ponte Ribeiro para o estabelecimento de uma política fronteiriça para o Império. 32 Ofício de 19 de janeiro de 1839. Missão brasileira a Peru e Bolívia: Duarte da Ponte Ribeiro (1836-1839). Op.cit., p.457. 33 Ofício de 19 de janeiro de 1839. Missão brasileira a Peru e Bolívia: Duarte da Ponte Ribeiro (1836-1839). Op.cit., p. 458. 34 Ofício de 19 de janeiro de 1839. Missão brasileira a Peru e Bolívia: Duarte da Ponte Ribeiro (1836-1839). Op.cit., p.458. 35 A carta de 7 de outubro de 1837 encontra-se anexada ao ofício de 21 de novembro de 1837. Cf. CHDD. Ofício de 21 de novembro de 1837. Missão brasileira a Peru e Bolívia: Duarte da Ponte Ribeiro (1836-1839). Op.cit., p.277. 36 Ofício de 18 de março de 1838. Missão brasileira a Peru e Bolívia: Duarte da Ponte Ribeiro (1836-1839). Op.cit., p.326. 37 Ofício de 17 de janeiro de 1839. Missão brasileira a Peru e Bolívia: Duarte da Ponte Ribeiro (1836-1839). Op.cit., p.436.

640

PENSANDO COM IMAGENS NA/DA DIFERENÇA NO/COM O COTIDIANO ESCOLAR Cristiano Sant’Anna de Medeiros Doutorando PROPED/UERJ- Professor SEEDUC/RJ Orientadora: Profª. Drª. Maria da Conceição Silva Soares

RESUMO Este trabalho parte da reflexões da minha pesquisa de doutoramento em educação. Vivenciamos um mundo permeado pelas imagens, elas fazem parte da nossa vida e do nosso contexto histórico e social. Como não pensar em imagens e com imagens no cotidiano? Como não acessá-las ou discutí-las? A intenção deste trabalho é apresentar uma problematização da pesquisa que pretende articular as noções de diferença e o uso de imagens imbricadas no cotidiano escolar nos seus usos, interações e implicações na educação. Palavras-chaves: Imagens, diferença, cotidianos escolares RESUME This work of the reflections of my doctoral research in education . We experience a world permeated by images, they are part of our life and our historical and social context . How not to think in images and pictures in everyday life ? How not access them or discuss them ? The intention of this work is to present a questioning of the research that articulates the notions of difference and the use of overlapping images in everyday school life in their uses, interactions and implications for education . Keywords: Images , difference , school daily

“O caráter mágico das imagens é essencial para a compreensão das suas mensagens. Imagens são códigos que traduzem eventos em situações, processos em cenas. Não que as imagens eternalizem eventos; elas substituem eventos por cenas. E tal poder mágico, inerente à estruturação plana da imagem, domina a dialética interna da imagem, própria a toda mediação, e nela se manifesta de forma incomparável.”. Vilém Flusser

Vivenciamos um mundo permeado pelas imagens. Para Médola, Araujo e Bruno (2007), a “cultura contemporânea é, em muitos aspectos, uma cultura da imagem”. Elas estão presentes todo tempo em todos os lugares, fazem parte da nossa vida e do nosso contexto histórico e social. Contudo, para estas mesmas autoras na apresentação do livro Imagem, Visibilidade e Cultura Midiáticai, livro da COMPÓSii 2006/2007, nossa vida com as imagens não é algo novo. Alguns estudos apontam para uma crítica ao uso das imagens em detrimento da escrita, embora não percebamos isso de forma contundente, ou seja, não reflete uma realidade estrutural

641

na nossa sociedade. Percebemos que tanto as imagens quanto a escrita possuem sua importância e o seu papel. As imagens, muito utilizadas ao longo dos séculos, já foram criticadas e proibidas no que chamamos de Iconoclasmoiii. Para Arlindo Machadoiv, as críticas ao uso de imagens

na

sociedade “pós moderna”, encontram-se no que ele denomina “O Quarto Iconoclasmo”. Não me vejo num mundo onde as imagens não poderiam ser utilizadas, onde só as palavras tivessem valor, como em tempos passados com as proibições que as imagens sofreram. As imagens fazem-nos compreender a vida, o mundo em si. Seu uso cresce a cada dia, mas não podemos radicalizar e afirmar que as mesmas promovem a morte das palavras. Flusser (2011), autor de Filosofia da Caixa Pretav e outros livros sobre imagem, nos aponta que as imagens são utilizadas para representar o mundo como também para nos orientar no mundo. As imagens tradicionais (pintura, escultura) e as imagens técnicas (fotografia, vídeo) têm algo em comum e cada uma tem seu impacto, que pode mudar conforme o tempo. Assim, para este autor, “o significado das imagens é o contexto mágico das relações reversíveis” (p. 23). Ele também aponta:

Imagens são mediações entre o homem e o mundo. O homem “existe”, isto é, o mundo não lhe é acessível imediatamente. Imagens têm o propósito de lhe representar o mundo. Mas, ao fazê-lo, entrepõem-se entre mundo e homem. Seu propósito é serem mapas do mundo, mas passam a ser biombos. O homem ao invés de se servir das imagens em função do mundo, passa a viver em função de imagens. Não mais decifra as cenas da imagem como significados do mundo, mas o próprio mundo vai sendo vivenciado em conjunto de cenas. (FLUSSER, 2011, p.23)

Entendemos assim, com Flusser (2011), a ideia de imagem como um conceito. Pois imagem cria conhecimento, ela traz o conhecimento nela, sem necessariamente estar atrelada à linguagem escrita. A imagem não é somente uma prova de alguma coisa que foi escrita por alguém, ela possui sua independência, daí também sua grande importância, por si mesma, na produção de saberes e de subjetividades. Não podemos deixar de observar que toda imagem pode nos afetar, fazer pensar sobre um determinado assunto, tecer novas ideias. Entretanto, cada indivíduo também pode criar as suas próprias interpretações acerca de uma mesma imagem, pois, como sempre diz Nilda Alves em suas aulas, vemos uma imagem com as nossas redes de saberes, fazeres e afetos.

642

Caminhamos também com as contribuições de Etienne Samain, no seu livro “Como pensam as imagens”vi, entendendo que as imagens, as milhares que estão a nossa volta, sem dúvida, fazem com que o nossas ideias se voltem para um pensamento acerca do mundo em que vivemos, das questões sociais, das guerras, dos preconceitos, da vida em geral, do nosso passado, do nosso presente, quiçá até do nosso futuro. Assim: Nesse horizonte, diria que a imagem é uma “forma que pensa”, na medida em que as ideias por ela veiculadas e que ela faz nascer dentro de nós – quando as olhamos – são ideias que somente se tornaram possíveis porque ela, a imagem, participa de histórias e de memórias que a precedem, das quais se alimenta antes de renascer um dia, de reaparecer agora no meu hic et nunc e, provavelmente, num tempo futuro, ao (re) formular-se ainda em outras singulares direções e formas. (Samain,2012, p.33)

Com a pesquisa que estamos realizando nos/com os cotidianos de duas escolas públicas do Estado do Rio de Janeiro, buscamos mapear e problematizar com os alunos as imagens da diferença tecidas dentrofora das ecolas. Para isso, estamos atuando nos espaços-tempos das escolas em questão, ou seja, nas salas de aula, e também no Facebook, em páginas criadas especificamente em função desse estudo.

Pensando nas/com as diferenças As diferenças estão por toda parte, estão presentes no nosso cotidiano. Pensamos e vivenciamos com as elas, como processo de expansão da vida e de criação de nossa existência individual e coletiva, ainda que esse processo muitas vezes seja negado, deslegitimado ou contido pelas práticas sociais que se propõem a formatizar a vida, a padronizar os modos de estar no mundo, a disciplinar e normalizar as subjetividades. Por que classificar, por que rotular, por que determinar pessoas nas suas condições, nas suas escolhas, nas suas interpretações de vida? Como diz a música de Arnaldo Antunes - “Inclassificáveis”, “não tem um tem dois, não tem cor tem cores, não tem deus tem deuses...” somos plurais, multifacetados, híbridos, múltiplos em nossas cores, sabores, crenças, prazeres, fazeres e saberes. Somos também mutantes e em terno processo de diferenciação. Tentamos provar que somos iguais, afinal, somos seres humanos, somos inteligentes, temos raciocínio... Somos os caras nesse mundo. Aí nós somos a força, nós somos o poder. O poder e a força para transformar, para crescer, para desenvolver. Será?

643

Se somos tudo isso, se somos tão iguais por sermos humanos, dotados de raciocínio e com uma grande inteligência, por que tantas diferenças? Essa pergunta tem me impulsionado a pesquisar, a pensar, a discutir e tentar dialogar um pouco com aspectos dessa “igualdade” ou será “mesmidade” socialmente e culturalmente produzida. Por que essa “igualdade” produz desigualdades, produz discriminação, destrói, mata, exclui e sufoca quem não se enquadra em seu metro-padrão? A oposição criada no contexto das relações de poder que organizam nossa sociedade entre a diferença e a igualdade nos acompanha cotidianamente, corroborando para mostrar as faces da desigualdade. Por tudo isso, essa diferença com valor negativo, como tudo aquilo que se opõe à identidade hegemônica, ao metro-padrão socialmente criado, deve ser problematizada e desnaturalizada. A diferença que importa é afirmativa, não remete ao negativo da identidade e sim à expansão da vida, aos modos como o novo entra no mundo. Vivemos em uma sociedade que produz machismo, racismo, sexismo, homofobia... que classifica os indivíduos por sua aparência, pela cor da sua pele, por sua condição sexual, pelo que veste, pelo que fala, por onde vive, pelo que faz e até por seu pacto ou não com o sagrado, com o divino. Esse é o retrato de uma sociedade que vem classificando as pessoas, de acordo com seus interesses e com as diferentes estratégias de poder que se configuram e que estão imbricados para manter uma hegemonia segregacionista. Por estratégias de poder e de dominação muitos países foram colonizados por uma visão eurocêntrica e com forte dominação da Igreja Católica ao longo dos anos. Esse reflexo se dá em várias sociedades, não só as dominadas ou colonizadas, mas também nas próprias sociedades europeias principalmente nos séculos passados, na Modernidade. Hoje, na contemporaneidade, os reflexos ainda estão presentes. Temos os meios de comunicação e as redes sociais da internet como protagonistas de um mundo globalizado, mas que também continuam nos mostrando tais atitudes classificatórias, demonstrando o reflexo que essa sociedade quer impor, quer criar, quer manter, onde muitas das diferenças não são toleráveis, não são aceitas e são ferozmente discriminadas. Entendemos que a sociedade contemporânea, muitas vezes, mostra o reflexo do que foi construído ao longo dos séculos com todas as subordinações ou insubordinações, as dominações, as inquietações, as quais passamos e continuamos a passar. Embora falar de diferença pareça ser estar se falando do “outro”, e esse “outro” carregando o aspecto do negativo, podemos olhar e procurar nas diferenças, um outro viés, 644

não de antagonista da sociedade, mas como produtora de positividades. E aí sem classificações, rotulações, discriminações, binarismos e dicotomias. Negros, ricos, gays, brancos, índios, favelados, mamelucos, cristão, lésbicas, humanos, macacos, macumbeiros, altos, magros, evangélicos, homens, orientais, transexuais, bissexuais, mulheres, ocidentais, bananas... juntos e misturados, e por aí vai... As diferenças estão aí, são constitutivas do nosso cotidiano. No grupo de pesquisa que atuo como doutorando elas fazem parte do contexto e das investigações. Desta forma, a diferença é de suma importância para as questões ligadas aos estudos pós-estruturalistas. Segundo Petersvii (2000, p. 42), “se existe um elemento que distingue o pós-estruturalismo é a noção de différence [diferença], que vários pensadores utilizam, desenvolvem e aplicam de formas variadas”. Com isso podemos destacar os estudos de Jacques Derrida, Jean-François Lyotard e Gilles Deleuze, expoente da filosofia da diferença. A diferença é um modo de pensar, de ver o mundo, das relações que vivemos no nosso dia a dia. Para Deleuzeviii (2000, p.36), “A tarefa da vida é fazer com que existam todas as repetições num espaço que se distribui a diferença.”. O conceito de diferença proposto por esta filosofia como crítica da filosofia da representação é o termo central que se propõe como afirmativo e criativo ao invés de negativo e conservador. Assim, Deleuze (2000) apresenta na sua filosofia um anti-hegelismo e faz um trocadilho no próprio título de seu livro utilizando diferença e repetição ao invés identidade e contradição. Quando Deleuze apresenta o conceito de diferença sem negação, fica muito próximo ao empirismo, “mas, precisamente, ele trata o conceito como o objeto de um encontro, como um aqui-agora, como um Erewhon de onde saem, inesgotáveis, os e os sempre novos, diversamente distribuídos” (2000,p.37) Na forma de seus conceitos, Deleuze tem na filosofia da diferença, o questionamento da representação que valoriza o negativo em detrimento da afirmação, se apropriando principalmente dos conceitos de repetição, diferença e eterno retorno, caracterizando-se pela multiplicidade ao invés da mesmidade.

Apontamentos Iniciais da Pesquisa

645

Entendendo a relação escola – tecnologia – imagem – diferença, nas redes que se cruzam e entrecruzam (ALVES,2008)ix, buscamos nossa aproximação a duas escolas públicas do estado do Rio de Janeiro, para o desenvolvimento desta futura tese de doutorado, baseados na metodologia das pesquisas nos/com os cotidianos e seus cinco movimentos em pesquisa (Sentimento do mundo, Virar de ponta-cabeça, Beber em todas as fontes, Narrar a vida e literaturizar a ciência e Ecce femina), que, de certa forma, convidam ao questionamento dos métodos tradicionais de produzir e pensar ciência e conhecimento, como a separação de sujeito e objeto, a busca da ciência moderna pela neutralidade e objetividade, o discurso científico distante da prática e/ou dos praticantes e sujeitos da educação. Assim, buscaremos compreender e problematizar os modos pelos quais como as imagens da diferença são produzidas dentrofora das escolas, especialmente os modos relacionados ao consumo e a produção de imagens. Para uma aproximação inicial, alunos do terceiro ano do Ensino Médio, da turma 3001, do Colégio Estadual Abdias Nascimento, situado em Nova Iguaçu na Baixada Fluminense, foram convidados a responder um questionário com as seguintes perguntas: 1“Pra você o que é diferença/”, 2-“Que tipos de diferenças vivenciadas no cotidiano escolar, você poderia citar?”, 3-“Para você as diferenças são positivas ou negativas, por quê?”. Em se tratando de pesquisa, o sociólogo Pierre Bourdieu (1979)x, defende a combinação de técnicas de recolha de dados e de análise ao se construir o tema pesquisado e nos ensina a desconfiar de escolas e tradições que se constituem em torno de uma única técnica de recolha de dados. Após essa aproximação inicial foram convidados a postar uma imagem numa página do Facebook, criada para este fim, chamada #DIFERENÇA. A turma foi dividida em sete grupos e assim #Diferença G1 a G7 (grupo 1 até o grupo 7). Cada aluno, em separado, deveria postar a imagem e dizer por que aquela imagem representa a “diferença” para ele, assim como comentar a imagem do outro colega do grupo. Entendemos que as redes sociais da internet estão presentes no nosso cotidiano seja por visibilidade ou vigilância, como também para entretenimento e prazer (BRUNO,2013)xi. Assim como celulares e suas câmeras são considerados “artefatos pedagógicos” (SOARES e SANTOS, 2012)xii as redes sociais da internet também tem exercido esse papel de diálogo com o fazer pedagógico de alunos e alunas no cotidiano escolar.

646

E foi através deste diálogo que a rede social da internet (Facebook), uma das mais acessadas ultimamente, foi utilizada como apoio metodológico para realização da pesquisa e contato virtual com os estudantes além dos encontros presenciais. A imagem abaixo foi postada pela aluna Axiii, com o seguinte comentário: “Para mim a diferença é quando você deixa de ser ou seguir aos outros para ser você mesmo, afinal somos todos diferentes e às vezes as pessoas não entendem/aceitam isso. Porque você sendo você mesmo, não sendo igual aos outros, você aprende a se amar e a ser feliz”

Outras comentários para esta imagem: Aluno B: Achei interessante a imagem , primeira coisa que me veio a mente foi " Se todos estão pensando a mesma coisa, ninguém está pensando" . Aí então um ser pensante ali.” Aluno C: “Na minha opniao a diferença somos nós que fazemos , no caso da imagem demonstra uma carinha feliz amarela e um grupo de carinhas tristes ao seu redor , isso me fez lembrar uma forma de se vestir o preconceito , de se arrumar diferente, se vc usa ou não usa roupa da moda isso é uma grande diferença na sociedade e seu julgamento mesquinho !” Outra imagem que iremos mostrar foi postada pelo aluno D, com o

seguinte

comentário, após ter sido perguntado Por que escolheu esta imagem?: “Porque mostra que somos diferentes um do outro, e mesmo assim ainda tem pessoas que se acolhem sem importar com a diferença.”

647

O aluno E postou a figura abaixo com o seguinte comentário: “Um menino e uma menina... a diferença de um sexo para o outro.. mesmo sendo todos seres humanos, sonos diferentes.. menino tem a "chavinha" e menina tem a "casinha" rs

As imagens operam como um dispositivo de pesquisa e intervenção para discutirmos o que é apontado/comprovado/produzido como “diferença” por alunos e professores. Nessas imagens podemos observar que a relação da diferença sempre está atrelada a uma identidade, muitas das vezes vista como norma na nossa sociedade, seja através da raça, do sexo, da personalidade, dentre outros.

648

Entendemos que a educação e assim a escola deve pensar um currículo que privilegie e pense a produção das diferenças como positivas, para que os preconceitos sejam dirimidos e não sintetizados como anormais numa sociedade que tende ao controle (FOUCAULT, 2013)xiv Assim, estaremos discutindo e problematizando as imagens, ao longo da pesquisa, que ora apresento algumas considerações iniciais, buscando desnaturalizar as imagens que aprisionam a diferença no negativo da identidade, pensando na diferença como afirmação (DELEUZE, 2000) e mapeando também, através das imagens, as ideias da diferença produzidas nos cotidianos escolares. i

MÉDOLA, Ana Sílvia, ARAUJO, Denize, BRUNO, Fernanda (Orgs). Imagem Visibilidade e Cultura

Midiática, Porto Alegre: Sulina, 2007. ii

Encontro Anual da Associação Nacional de Programas de Pós-Graduação em Comunicação

iii

Iconoclasmo é uma doutrina de pensamento oposta ao culto a ícones e símbolos religiosos e políticos; toda pessoa que não venera imagem é um iconoclasta.

iv

MACHADO, Arlindo, O Quarto Iconoclasmo e Outros Ensaios Hereges, Rio de Janeiro: Marca D’Água,

2001.

v

FLUSSER, Vilém, Filosofia da Caixa Preta. São Paulo: ANNABLUME, 2011.

vi

SAMAIN, Etienne, Como pensam as imagens. São Paulo: Editora Unicamp, 2012.

vii

PETERS, Michel. Pós-estruturalismo e filosofia da diferença. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.

viii

DELEUZE, Gilles, Diferença e Repetição. Portugal: Relógio D’Água, 2000.

ix

ALVES, Nilda, OLIVEIRA, Inês B. de (Org.). Pesquisa nos/dos/com os cotidianos das escolas. 3. ed.

Petrópolis: DP. 2008. x

BOURDIEU, Pierre, O poder simbólico, Lisboa/RJ: Difel/Bertrand Brasil, 1979

xi

BRUNO, Fernanda, Modos de Ser: vigilância, tecnologia e subjetividade, Porto Alegre: Editora Sulina, 2013

649

xii

SOARES, Conceição, SANTOS, Edméa, Artefatos tecnoculturais nos processos pedagógicos: usos e

implicações para os currículos, In ALVES, Nilda, LIBÂNEO, José Carlos (orgs), Temas de Pedagogia diálogos entre didática e currículo, São Paulo, Cortez Editora, 2012 xiii

Os nomes dos alunos foram preservados

xiv

FOUCAULT, Michel. Os Anormais. 2ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2013.

650

Um Viajante Intelectual: Paul Groussac e a literatura de viagens Daiana Pereira Neto1 Resumo O presente trabalho tem como objetivo realizar uma breve análise da obra do autor franco-argentino Paul Groussac, em especial seus principais textos de viagem, Del Plata al Niágara e Un Viaje Intelectual, entendendo-os como importantes fontes para se compreender o autor e a conjuntura histórica na qual escreveu e viajou, tendo como pano de fundo a questão da literatura de viagem como um importante gênero literário na América Latina.

:

Palavras-chave Literatura de viagem, Paul Groussac, Del Plata al Niágara. Abstract This paper aims to conduct a brief analysis from Paul Groussac's major travel works, Del Plata al Niagara and Un Viaje Intellectual, assuming that both texts are important sources for the understanding of Groussac's thought and from the historical context of his travels and writing, having as a backdrop the issue of travel literature as an important literary genre in Latin America. Keywords: Travel literature, Paul Groussac, Del Plata al Niágara. Introdução2 A literatura de viagens constitui um importante gênero literário para a América Latina, consistindo em valiosas fontes também para os historiadores. Como afirma Mary Anne Junqueira, hoje mais do que aceitar os relatos como fiéis retrados da realidade dos lugares visitados, os historiadores passaram a privilegiar em suas análises o universo cultural, no qual esses relatos foram feitos. Considerando que esses textos fornecem mais informações sobre seus escritores do que propriamente dos lugares que buscaram descrever.3 Neste trabalho analisarei brevemente a obra de Paul Groussac, um intelectual de destaque na Argentina no século XIX, principalmente textos provindos de duas de suas obras de viagem, Del Plata al Niágara de 1897, e El Viaje Intelectual publicado primeiramente em 1904 e posteriormente reeditado pelo autor em 1920. Quando falamos em literatura de viagem, geralmente nos referimos ao relato de autores europeus acerca do Novo Mundo. Segundo Stella M. Scatena Franco, isso se deve a concepção da América como um espaço a ser estudado e transformado, o que se relaciona a ideia de imaturidade desse continente. De acordo com Franco, o contato dos europeus com os americanos acontecia de forma verticalizada, sendo que a Europa constituía o centro e a

651

América a periferia.4 Dessa maneira, existe um maior interesse pelos autores europeus do que por latino-americanos. Muitos intelectuais argentinos produziram relatos de suas viagens a Europa, relatos que segundo Franco, permanecem sem um estudo sistemático, enquanto que viajantes ingleses na Argentina contam com grande prestígio. Neste sentido, a obra de Paul Groussac nos oferece a possibilidade de analisar a percepção de alguém nascido na Europa, mas que a partir de seus 18 anos viveu em solo latino-americano e produziu relatos acerca de suas experiências de viagem. Groussac, autor franco-argentino, é pouco conhecido entre nós brasileiros, sua obra embora volumosa e respeitável, sobretudo pela erudição do autor, permanece pouco trabalhada. Minha atenção neste trabalho se deterá, em uma pequena parte de sua produção provinda de experiências de viagens, tendo em vista a análise das percepções de Groussac sobre os Estados Unidos e alguns dos países latino-americanos, especialmente o Uruguai, Chile e o Peru.

O Viajante: Paul Groussac A trajetória de Groussac é interessante, pois nos permite vislumbrar as peculiaridades de um autor que já muito jovem se decidiu pelo exílio e adotou a Argentina como pátria, mesmo que não abandonasse as vantagens que ser francês, em solo argentino, lhe propiciavam. Paul Groussac nasceu em Toulouse, França, em 15 de fevereiro de 1848. Findados os estudos, aos 17 anos embarcou em uma viagem que deveria levá-lo ao redor do mundo. Todavia, ficou sem recursos já em Paris, tendo de escolher entre voltar para casa, ou mudar de estratégia. Foi nesse momento que adquiriu a passagem de navio com destino a Buenos Aires.5 Desembarcou em solo argentino em fevereiro de 1866, aos 18 anos. Seu primeiro trabalho foi como cuidador de gado. Somente em 1867, atendendo ao pedido do pai, deslocou-se para a cidade, tendo por finalidade aprender adequadamente o castelhano e também sobre a região do Rio da Prata. No mesmo ano, conseguiu o cargo de professor no Colegio Modelo Del Sur, ao qual renunciou rapidamente por não se adaptar ao trabalho letivo exigido pela instituição. Até 1870 pouco se sabe de sua trajetória, além do fato de trabalhar como professor particular. Em 1871 publicou seu primeiro artigo de destaque, Ensayo Histórico Sobre El Tucumán, que chegou às mãos do secretário de instrução pública Domingo F. Sarmiento e de Nicolás Avellaneda. Este último ficou muito impressionado com o texto e ofereceu-lhe

652

duas

cátedras do Colégio Nacional. Mais tarde, foi nomeado inspetor nacional de educação, cargo que lhe permitiu viajar por várias províncias da Argentina.6 Em seus relatos de viagem, visitas à instituições de ensino são freqüentes, mesmo que estes deslocamentos sejam feitos de forma não oficial, a preocupação com a educação também é frequente em seus outros trabalhos, sobretudo no que se refere a Argentina.7 Em 1885 ocupou o cargo que lhe pertenceu até sua morte, em 1929: O de diretor da Biblioteca Nacional. Ocupar tal posição deu a Groussac um maior destaque dentre os círculos intelectuais argentinos. Atividades do autor, além da modernização, aquisição de obras e catalogação do acervo, foi a publicação de dois periódicos La Biblioteca e Annales de la Biblioteca, tais publicações foram palcos para várias de suas polêmicas e consideradas por seus contemporâneos como civilizadoras e europeizantes.8 Groussac foi um grande explorador, empreendendo longas viagens. Já muito jovem, como mencionado, deslocou-se para a Argentina, viveu por muito tempo em Tucumán, uma das menores províncias do país e relativamente distante da capital. Em seus relatos, expedições a outras partes do território são recorrentes. Outros destinos foram Chile, Uruguai, Peru, Estados Unidos, França e Espanha.

Del Plata al Niágara e El Viaje Intelectual

No século XIX era comum na Argentina a publicação de textos frutos de viagens ao exterior, sobretudo a Europa. Segundo Paula Bruno, Sarmiento inaugurou a tradição de narrar estas expedições, com seu Viajes de 1845,9 a peculiaridade da obra de Sarmiento, de acordo com Mary Louise Pratt, seria a publicação das impressões de um latino-americano em relação à Europa e não o contrário.10 Meio século mais tarde, Groussac deu continuidade a esta tradição, narrando suas impressões não somente acerca da Europa, mas de uma variedade de destinos americanos. Publicado em 1897 Del Plata al Niágara, ganhou muita notoriedade no contexto da Guerra Hispano-americana. A conjuntura do período nos permite visualizar melhor fatores que contribuíram para tal reconhecimento. Em 1898 eclodiu o conflito entre Espanha e Estados Unidos. A crescente intervenção norte-americana no continente fez com que surgisse na América Latina, um sentimento pró-Espanha e uma maior negação aos valores provindos do norte.11 Houve então, uma grande crítica, sobretudo por parte dos intelectuais, a massificação cultural e ao intervencionismo norte-americano no continente.12 Embora, tenham

653

sido as referências aos Estados Unidos as responsáveis pela notoriedade do livro no final do século XIX, há outras questões e temáticas presentes em suas páginas. El Viaje Intelectual foi publicado como uma coletânea de textos provenientes de viagens empreendidas em diferentes momentos da vida do autor, desta forma é possível vislumbrarmos diferentes fases do mesmo. Este livro reúne relatos de viagens que se estendem de 1883 a 1917, reunidos de forma cronológica.13 Muitos apontamentos feitos em Del Plata al Niágara foram retomados neste trabalho, no qual o autor confessa até mesmo ter cometido certos exageros quando de sua primeira viagem ao Chile, justificando-se pelos apelos da arte. No início de Del Plata al Niágara o autor afirma: “En estas páginas, por consiguiente, no encontrará el lector la naturaleza y las gentes americanas, sino tal cual se han revelado al observador, al través de su idiosincracia y su humor variable. Cualquier otro observador, igualmente sincero, haría un cuadro muy distinto”.14 Ou seja, as percepções presentes no livro são exclusivamente dele, percepções que por vezes podem mostrar-se contraditórias no decorrer das páginas. Outro alerta é a questão de muitas de suas percepções serem opostas a autores clássicos, ao tomar essa posição, embora sem referências precisas, o autor pode estar se referindo a um de seus predecessores viajantes argentinos aos EUA, Domingo F. Sarmiento, já que apresenta uma visão bem dissonante deste. Outra questão importante é que ao escrever suas linhas ele não tem em mente sua terra natal, mas sua pátria adotiva, e é a Argentina o alvo de suas palavras, afirmando que se estivesse escrevendo para leitores europeus seus métodos15 seriam outros.16 A primeira parte da obra se dedica a sua primeira parada, o Chile. País que, assim como a Argentina, teria no clima um fator de favorecimento ao desenvolvimento intelectual, segundo Groussac. Durante sua breve estadia, o autor fez algumas considerações de destaque: primeiramente, ao falar do espaço chileno e da condição humana perante esta vastidão, compreende que os países devem organizar-se nacionalmente, o que explica, Ahora bien, en el sentido americano, lo que significa la expresión organizarse nacionalmente, es, ocupar realmente el suelo bajo el triple aspecto demográfico, político y económico : abreviando las distancias despobladas y reduciendo los desiertos baldíos, multiplicando, por fin, las agrupaciones urbanas, ganglios sociológicos depositarios de la riqueza y transmisores de la civilización.17

Assim, não haveria tanta diferença à noção de civilização oferecida por Sarmiento quase cinquenta anos antes, em Facundo18, ou seja, a necessidade de ocupação do território, na qual a cidade se torna um meio de transmissão da civilização. Em segundo lugar, outro fator que o conecta a Sarmiento é a questão da imigração europeia:

654

Durante el solo año de 1884, por ejemplo, la Argentina se anexaba por la pacífica inmigración un número de agricultores europeos mayor que el de los peruanos y bolivianos amarrados á Chile por los resultados de la guerra. Admitiendo que ambos grupos anexos se hayan reproducido en proporción igual : ved ahí, por una parte, un contingente de chileno-peruanos, y por otra, un grupo igual de argentino-europeos, agregados al núcleo nacional respectivo : la consecuencia no ha de ser idéntica.19

Assim, a imigração europeia faria com que o país que a recebesse prosperasse, no caso mencionado por Groussac, a Argentina. Sendo assim, o franco-argentino convidava os jovens intelectuais argentinos, a realizarem um estudo comparativo entre Chile e Argentina, compreendendo este estudo como algo de considerável importância para se compreender o desenvolvimento de ambos os países. Em outros momentos do texto Groussac mostra-se preocupado com os avanços da próxima geração de intelectuais argentinos, sendo assim, em diferentes passagens existem motivações para esses jovens escritores. Ainda no Chile, Groussac apresenta críticas à cidade de Valparaíso: “El ‘paraíso’ de Chile está en otra parte : en el rico valle de Aconcagua, ó, hacia el sud, en las encantadoras florestas de Coacepción y Arauco.”20 Não escapa ao autor comparações com a Europa, sua terra natal, como no momento que compara a inferioridade das paisagens americanas às europeias: En general, la inferioridad de los paisajes americanos, comparados con los europeos, proviene de estar desnudos de esas huellas humanas, que orientan y llaman hacia lo pasado nuestra imaginación. Aquí la historia es de ayer, pero tan patética, que no requiere perspectiva para ostentar grandeza.21

Essas declarações induzem o pensamento de que ainda era necessária a ocupação dos territórios e a consequente fundação de cidades. Ideia que se complementa com sua passagem por Lima, a cidade nobre, que em suas palavras, é caso único na América: Las capitales seculares que alcanzan originalidad son las que condensan los rasgos dispersos de su pueblo. Entonces, esos montones de piedras y ladrillos se impregnan de humanidad, hasta el grado de ser casi personas : y lo son para mí, simbólica á par que sociológicamente. París, en verdad, es un artista; Berlín, un soldado; Liverpool, un marino; Genova, un mercader. Y esto, sin calcular ó pesar al pronto laimportancia positiva del íntimo carácter : Genova, por ejemplo, tiene menos comercio que París. — Lima es la ciudadmujer. (Oh ! por favor : reprimid esa sonrisa intempestiva!) — Es una mujer, en su porte exterior, en sus primores y achaques arquitectónicos, en su índole toda política y social, en su alma, por fin, ó sea en su historia entera, femenina y felina, infantil y cruel.22

Porém, não só com elogios ele descreve Lima. Assim como grande parte da América, a cidade “mulher” sofria com a decadência, resultante da entrada de diversas raças julgadas por ele inferiores, como o caso da incursão chinesa. Como sabemos, as publicações dos trabalhos científicos de Spencer e Darwin influenciaram, em grande medida as percepções destes autores de fim do século XIX. Para Groussac, aquelas pessoas e sua cultura eram

655

exageradamente exóticos e destruidores de costumes. Em uma de suas passagens, ao afirmar que as mulheres naturais da terra não se importavam e se casavam com os asiáticos, sua estupefação é a de que os filhos decorrentes dessas uniões se mostravam mais inteligentes que as crianças “puras”, fruto da união de naturais do país. No decorrer do texto, a mulher não é uma personagem de destaque, poucas despertaram a atenção do autor, como o caso de duas irmãs que durante a passagem do México para os EUA oferecem-no aulas de inglês e mostram-se boas companheiras de viagem, embora “não fossem belas”. No Peru, especialmente, um fator que o incomoda é a superioridade da mulher em relação a seus companheiros. A percepção clara de que as mulheres governam a casa e a maioria dos costumes, implicava na percepção do autor, na diminuição da virilidade do homem e, consequentemente do seu papel perante a sociedade. Ou seja, esses textos de viagem permitem-nos, entre outras coisas, questionar o papel das mulheres nas localidades visitadas, levando ao questionamento do porquê da ausência de grandes discussões no que se refere ao papel feminino na sociedade.23 Em El Viaje Intelectual escrito anos depois e com textos que se aproximam mais da velhice do autor, muitos dos posicionamentos em relação ao papel feminino se modificam, um exemplo marcante são os elogios dirigidos a Senhora Vitoria, quando de sua viagem ao Iguaçu. Antes de chegar a seu destino o autor, já um famoso personagem no país, foi acolhido na casa desta senhora, imigrante francesa, como ele, e que construiu junto à família um próspero negócio. Ao narrar o período de hospedagem, Groussac afirma que a alma daquele lugar era a senhora, não se recordando nem mesmo o nome de seu marido. Em outras passagens em terras argentinas e uruguaias a força da mulher é destacada não como sobreposta ao homem, mas com caráter positivo, o que vai além da beleza física. No Panamá, em 1893, outra temática se intensifica em seu discurso: a política e a consequente influência norte-americana na região. Não que o autor não tenha feito análises políticas dos destinos anteriores, mas aqui eles se tornam mais incisivos. Groussac julga a participação francesa na construção do Canal do Panamá perdida24, uma vez que tudo que se lê ou se ouve está em inglês. Em conversa com engenheiros que afirmam que a obra se concretizará, ele duvida: En cuatro ó cinco horas, he recorrido la parte del canal definitivamente cavada; agregad un trecho doble ó triple por la vertiente atlántica, y tendréis concluida una tercera parte del trayecto en longitud, entrando en la cuenta las bocas naturales utilizadas; pero en absoluto y como proporción de la obra por realizar, apenas una fracción centesimal. Todo lo difícil y problemático queda en pie, sin haberse decentado más que de trecho en trecho y por vía de ensayo. El ingeniero en jefe que me acompaña no cree, naturalmente, que la partida esté perdida. Está en su papel profesional.25

656

No México, a questão política reacende ao criticar a ditadura de Porfírio Diaz. Para Groussac, naquela terra reinava o silencio dos sepulcros, não havia uma oposição viva ao regime, como demonstra na seguinte passagem: “El gobierno de Porfirio Díaz es azteca como el de Rosas fuera americano y criollo”.26Porém, a diferença é que durante o período rosista a oposição manteve-se viva, mesmo que fora da Argentina, como foi o caso da chamada geração de 1837. Para o autor haveria no México um momento no qual ocorreria uma ruptura do regime de forma brusca e violenta, o que de fato aconteceu na Revolução de 1910. Evitando incorrer em anacronismo, tal referência representou naquele momento a percepção do estrangeiro frente ao pesado clima político que se estabelecia no México, fato que o fez conjecturar naquele instante sobre a possibilidade de um conflito futuro, o que de fato ocorreu vinte anos depois. Cabe também salientar a grande preocupação comparativa que o acompanha a todo momento ao escrever tendo em mente a Argentina, é a ela que recorre para tornar suas observações mais inteligíveis ao leitor. As questões políticas continuaram presentes em seus textos, mesmo que Groussac evitasse envolver-se nesta esfera. Em El Viaje Intelectual, o autor discute, sobretudo política argentina, preocupando-se com a história do país e a função, por exemplo, do Congresso de Tucumán de 1816, ao qual dedica um dos capítulos do livro. Ao tratar dessa esfera o autor desloca-se para a história, aproveitando-se de seu retorno a província após quase vinte anos, discorre longamente sobre as mudanças físicas e culturais da mesma, bem como sobre a importância de Tucumán para a nação, aproveitando-se para discutir sobre a reunião do Congresso, no início do século, no qual declarou-se oficialmente a independência do país. Suas percepções sobre os Estados Unidos são as mais famosas dentre seus estudiosos, especialmente por conta do impacto que produziram em 1898. Lá ele viajou por diversas cidades, dedicando especial atenção a Chicago (destino principal, devido a feira de 1893, na qual representou a Argentina), Whashington, Nova York, Salt Lake City e as Cataratas do Niágara. Em geral, Groussac não se adaptou àquele ambiente, fornecendo suas opiniões sobre vários aspectos como: a economia, a política, a educação, a arquitetura e os costumes. Um exemplo dessas passagens, que reflete até mesmo uma comicidade diante de sua aflição, é o seguinte: No por eso pretendo que sea todo malo en la reserva europea, ni todo bueno en la ‘francachela’ americana. Cuando, por ejemplo, el sirviente negro bebe en nuestros vasos, se zabulle en nuestro lavabo y concluye su horripilante toilette á nuestra vista y paciencia, siento en mi epidermis el roce brutal de tanta democracia. [...] Al lado mío, en el fumadero, se sienta el coronel L.; enfrente, el señor W., senador de California; por fin, Mr. Ch., un millonario, superintendente de las dos grandes compañías mineras del

657

Utah, y chiquear infatigable. Sin abandonar su cigarro, el coronel se saca los botines, estira sus medias grises y alarga delicadamente sus extremidades en el asiento opuesto, entre el millonario y el senador, quienes siguen mascando, fumando y conversando con serenidad.27

Nesse sentido, Paula Bruno afirma que grande parte dessa aversão devia-se principalmente ao fato de não localizar dentre os grupos intelectuais pelos quais circulou uma aristocracia, pessoas capazes de reger os hábitos de uma sociedade refinada, indivíduos que pudessem transmitir os valores necessários ao desenvolvimento de uma verdadeira intelectualidade.28 Concebendo que, na verdade, essa democracia tão falada e defendida gerava uma ditadura da maioria, a qual o autor encarava com obstinada resistência. Sendo assim, quando essa democracia alcançava a esfera da educação pública, mesmo que ensinasse as pessoas a ler e a escrever, não favorecia o surgimento de gênios, uma vez que massificava as pessoas e os condenava a mediocridade. Um ponto que ilustra bem essa aversão pode ser lido quando visitou a Universidade de Harvard, onde assistiu às aulas durante uma semana. Sobre essa experiência escreveu:

Faltando la fuerte disciplina secundaria, la enseñanza superior se desploma en el vacío: no pasa de conferencias y programas extraordinariamente variados, que los estudiantes « curiosean » entre una función teatral y una larga sesión en el gimnasio.— « No hay (escribía J. de Maistre) métodos fáciles para aprender cosas difíciles» ... Aun en el apogeo déla «Academia» bostoniense, la característica del pensamiento americano ha sido siempre la ausencia de originalidad.29

Entretanto, reconheceu em Benjamin Franklin um filósofo original e afirmou que da sua filosofia fluiu toda a civilização norte-americana, sendo esta filosofia resumida pela seguinte sentença: “O homem é um animal que produz ferramentas”. E é somente a criação de bens utilitários que a humanidade lhes deve, nada mais, a grandeza que assombra o visitante é apenas a material, as construções gigantescas, as cidades desenvolvidas. Para Groussac, a influência norte-americana acabou por vulgarizar as esferas sociais sob sua ingerência.

Considerações finais

Groussac, inegavelmente, foi um homem de seu tempo. Porém, seus escritos nos trazem certas peculiaridades do autor, permitindo-nos observar através de seus apontamentos suas percepções acerca de um mundo em constante transformação. Seus textos nos ajudam a observar através de um olhar estrangeiro, a sociedade argentina do século XIX, muito influenciada pela cultura francesa. Mesmo que tenha vivido mais tempo em solo argentino, 63 anos, este intelectual não abandonou sua origem francesa, e esta condição permitiu-lhe galgar

658

vários degraus na terra que adotou. Seus trabalhos constituem valiosas fontes para compreendermos o período no qual foram produzidos, discutindo política, economia, educação e arte. A obra de Groussac permite-nos ainda traçar comparações com seus predecessores argentinos, aqui destaco Domingo Faustino Sarmiento, que nas palavras de Paula Bruno, en “El libro Viajes, [...] inauguró en la cultura argentina una tradición en la narración de travesías”.30 Ao contrário deste, o franco-argentino não encontrou modelos a serem seguidos pela Argentina, muito menos no que se refere aos Estados Unidos, que na percepção do autor não consistia em modelo nenhum para o avanço latino-americano, muito pelo contrário, representava uma ameaça. Ao mesmo tempo, ao criticar tantos aspectos dos países latinos pelos quais passou, sobretudo, os sul-americanos, muitas de suas percepções se assemelham as do argentino, que cinquenta anos antes descrevia aquelas paragens. Por fim, gostaria de salientar que essas breves páginas não esgotam e nem mesmo tiveram a pretensão de abarcar toda a grandeza da obra de Groussac, mas de apontar questões levantadas pelo autor, podendo de alguma forma contribuir para um diálogo e um enriquecimento acerca da literatura de viagem produzida na América Latina no século XIX.

1

Doutoranda em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora, mestre e graduada em história pela mesma instituição. Orientada pela professora Drª Beatriz Helena Domingues. Bolsista Capes. Email: [email protected] 2 Este texto consiste em uma versão estendida de trabalho anterior apresentado no 4º Encontro de Pesquisa e História da UFMG. 3 JUNQUEIRA, Mary Anne. Elementos para uma discussão metodológica dos relatos de viagem como fonte para o historiador. In: JUNQUEIRA, Mary Anne; FRANCO, Stella Maris Scatena. Cadernos de Seminários de Pesquisa. Vol.2. São Paulo: Editora Humanitas, 2006. 4 FRANCO, Stella Maris Scatena. Peregrinas de outrora: viajantes latino-americanas no século XIX. Florianópolis: Ed. Mulheres; Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2008. 5 BRUNO, Paula. Paul Groussac. Un estratega intelectual. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica/UdeSA, 2005. 6 BRUNO, Paula. Paul Groussac. Un estratega intelectual. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica/UdeSA, 2005. 7 Neste sentido Groussac se aproxima muito de Domingo F. Sarmiento, considerado o pai da educação pública no país. 8 BRUNO, Paula. Pioneros culturales de la Argentina: Biografías de una época 1860-1910. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2011.

659

9

BRUNO, Paula. Estados Unidos como caleidoscopio. Ensayo sobre las observaciones de viajeros diplomáticos argentinos del fin de siglo. In: Revista Complutense de Historia de América. vol. 39, p. 23-38. 2013. 10 PRATT, Mary Louise. Os olhos do Império: relatos de viagem e transculturação. Bauru, SP: EDUSC, 1999. 11 A bibliografia sofre isso é considerável. 12 NETO, Daiana Pereira. (2013). De Paul Groussac a Richard Morse: Apropriações e releituras de A Tempestade de Shakespeare. Dissertação de mestrado (129 p.). Programa de Pós Graduação em História, Universidade Federal de Juiz de Fora. 13 GROUSSAC, Paul. El Viaje intelectual. Buenos Aires: Jesús Menéndez, Librero Editor 186, 1920. 14 GROUSSAC. Paul. Del Plata al Niágara. Buenos Aires: Administración de la Biblioteca, 1897. p. 16. 15 O autor não detalha quais seriam essas modificações. 16 GROUSSAC. Paul. Del Plata al Niágara. Buenos Aires: Administración de la Biblioteca, 1897. 17 GROUSSAC. Del Plata al Niágara. Buenos Aires: Administración de la Biblioteca, 1897.p. 41. 18 SARMIENTO, Domingo Faustino. Facundo ou civilização e barbárie. São Paulo: Cosac Naify, 2010. 19 GROUSSAC. Paul. Del Plata al Niágara. Buenos Aires: Administración de la Biblioteca, 1897. p. 43. 20 GROUSSAC. Paul. Del Plata al Niágara. Buenos Aires: Administración de la Biblioteca, 1897. p. 34. 21 GROUSSAC. Paul. Del Plata al Niágara. Buenos Aires: Administración de la Biblioteca, 1897.p. 74. 22 GROUSSAC. Paul. Del Plata al Niágara. Buenos Aires: Administración de la Biblioteca, 1897. p. 81. 23 Após deixar o Peru, o autor afirma estar mesmo começando sua viagem, uma vez que deixa as casas amigas e seus contatos. Tanto no Chile, quanto no Peru, Groussac se hospedou entre amigos, em sua grande parte homens representantes da Argentina. 24 O Canal do Panamá começou a ser construído, em 1881, por empreiteiros franceses, porém o empreendimento foi abandonado por problemas de engenharia e grande número de mortes, entre os trabalhadores. 25 GROUSSAC. Paul. Del Plata al Niágara. Buenos Aires: Administración de la Biblioteca, 1897. p. 43. 26 GROUSSAC. Paul. Del Plata al Niágara. Buenos Aires: Administración de la Biblioteca, 1897.p. 183. 27 GROUSSAC. Paul. Del Plata al Niágara. Buenos Aires: Administración de la Biblioteca, 1897.p. 251. 28 BRUNO, Paula. Paul Groussac. Un estratega intelectual. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica/UdeSA, 2005. 29 GROUSSAC. Paul. Del Plata al Niágara. Buenos Aires: Administración de la Biblioteca, 1897. p. 419. 30 BRUNO, Paula. Estados Unidos como caleidoscopio. Ensayo sobre las observaciones de viajeros diplomáticos argentinos del fin de siglo. In: Revista Complutense de Historia de América. 2013, vol. 39, p. 23-38.

660

Jogo de palavras: o discurso político dos republicanos liberais pela queda da Monarquia no Brasil (1870-1891) Daiane Lopes Elias*

Resumo Com a escolha do repertório da política científica pelos republicanos liberais para contestar a Monarquia brasileira no Oitocentos, estabeleceu-se um embate discursivo que construiu imagens opostas entre os regimes de governo. Assim, a Monarquia foi lida como regime “atrasado”, de “privilégios” e “corrupto”, enquanto que por oposição, a República era apresentada como o “progresso”, o “governo de si” e a “plena soberania popular”. Desse modo, busca-se apresentar como a construção discursiva dos republicanos liberais venceu a disputa política.

Palavras-chave: discurso, opostos, regimes.

Abstract

As the Liberal Republicans opted for the vocabulary of scientific politics to call the Brazilian monarchy in question in the 1800s, a discursive conflict was stablished; one which build opposing images of the two governmental systems. Therefore, Monarchy was read as a "backward", "corrupt" and "privilege-based" regime; while the Republic, by contrast, was presented as "progress", "self-government" and "complete popular sovereignty". Thus, we seek to show how the Liberal republicans discursive construction has won the political dispute.

Key-words: discourse, opposites, regimes.

*

Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGHUERJ), onde desenvolve pesquisa intitulada “A guerra das palavras: o discurso político dos republicanos liberais e a queda do Brasil-Império (1870-1891)”, orientada pela Professora Doutora Tânia Bessone e co-orientada pela Professora Doutora Lúcia Bastos. E-mail: [email protected]

661

A partir de 1870 surge no cenário político do país uma nova representação partidária de oposição ao Império, a dos republicanos liberais. Sendo o Manifesto Republicano o documento de caráter emblemático do recente grupo político, publicado, primeiramente, no jornal A República, em 03 de dezembro do referido ano. O grupo republicano-liberal possuía como principal objetivo deslegitimar a Monarquia brasileira, bem como criar as possibilidades para assumir os postos de comando do país como nova elite política. Para isso, buscaram construir, pela via do discurso, críticas à Monarquia. O embate discursivo instaurou um ambiente hostil à permanência do Império, que ruiu em 1889. Instalado o recente regime, implementa-se uma república de viés liberal, cujo texto constitucional de 1891 permite a constatação da vitória republicana-liberal, em detrimento de outras propostas contestadoras do período e também republicanas, como, por exemplo, a dos positivistas e jacobinos. Desse modo, o presente texto almeja apresentar brevemente as estratégias discursivas adotadas pelos republicanos liberais quando da construção de seu discurso combativo às velhas práticas, valores e instituições imperiais. Para isso, foram escolhidos três dos seus agentes históricos para serem abordados, com o intuito de lançar luz ao cenário político compreendido entre o período de 1870 a 1891. São eles: Alberto Sales, em São Paulo, Quintino Bocaiúva, na Corte, e Assis Brasil, no Rio Grande do Sul. Optou-se por estudar a atuação dos principais expoentes republicanos de viés liberal não apenas porque eram importantes representantes do grupo político vencedor, haja vista a tamanha recorrência de seus nomes nos textos à época, mas também devido ao êxito na construção de um discurso unificador e coeso. O que contribuiu, em alguma medida, para que a ideia de república se propagasse de forma mais uniforme e, consequentemente, mais eficaz na crítica ao Império. Essa uniformidade na proposta de república que propagavam se deu, sobretudo, porque possuíam as mesmas leituras dos autores oitocentistas em voga, interpretavam-os de modo semelhante e tinham como intuito primeiro a derrubada da Monarquia para a implantação da república liberal. Por isso, a partir desse momento, iniciarse-á a análise da ação do trio republicano tendo como base o entendimento de quais autores foram escolhidos para construírem o discurso combativo à Monarquia, como os argumentos foram utilizados e com qual finalidade vendiam a ideia de república liberal. Interpretando-os como agentes de seu tempo e não como meros espectadores alheios a prática política, tornam-se teóricos da política para fins de ação, visto que no século XIX não

662

se tinha a separação entre os campos político e intelectual. Apenas para tomar como exemplo uma passagem da obra datada de 1891, escrita por Alberto Sales, e intitulada Sciencia política, na qual o autor critica a política conduzida pelo grupo vencedor, do qual fazia parte, durante os anos inicias da República: “Não é necessario grande esforço especulativo para verse que uma boa practica só póde nascer de uma boa theoria”. 1 Fica evidente a importância dada à teoria como justificativa à ação. Para Alberto Sales, o embasamento teórico era necessário como chave de leitura do mundo. Teoria e prática caminhavam juntas na política que realizava. Mas, obviamente, não teorias aleatórias, ao contrário disso, aquelas que permitiam a construção discursiva para gerar a ação desejada: tomada do poder político pelo grupo do qual era expoente e efetivação das propostas apresentadas pelo grupo ainda antes da proclamação da República. Fora desse modo que para realizar o intuito de intervenção e condução no campo político, as palavras foram utilizadas pelo grupo republicano liberal como ferramentas de ação, como arma contra a Monarquia e, por isso mesmo, os discursos eram entendidos como meios de ação a serem construídos para intervir e promover a mudança em um cenário político do qual, até então, não se sentiam partícipes. O descontentamento gerado pelo sentimento de marginalização política compartilhado pelos contestadores, fez com que o grupo republicano liberal buscasse atribuir ao conceito de república um significado próprio, capaz de ser eficaz no combate à Monarquia. A busca pela singularidade discursiva deveria garantir-lhes não apenas a diferenciação em relação aos outros contestadores do regime vigente, mas também a eficácia de transformar-se em prática, ou seja, o discurso político a ser construído deveria “cair no real” e vencer a disputa pelos principais cargos de mando do país, mesmo que depois disso se constatasse o desencanto vivido nos anos iniciais do recente regime. Sendo assim, o trio republicano selecionou no repertório de autores em voga durante o século XIX apenas aqueles que eram capazes de oferta-lhes as teorias capazes de serem articuladas para promover a mudança almejada. Não por acaso, as teorias de reforma social foram amplamente utilizadas quando da construção discursiva, pois apresentavam a necessidade de mudança do rumo político ao justificarem novos valores, práticas e instituições. Os republicanos liberais não faziam uso de teóricos aleatórios durante sua construção discursiva, eram, sim, escolhidos e/ou adaptados àqueles que serviam para ler as condições do país de forma a justificar o “novo” como um horizonte a ser alcançado de

663

maneira progressiva. Os autores, suas teorias e a forma de apresentá-las no discurso foram feitas conscientemente e com critério para se chegar a um determinado resultado. As palavras serviriam então de arma na batalha pela cena política do país. Não à toa, instaurou-se a partir, sobretudo, de 1870 uma verdadeira “guerra de palavras”, no qual o Manifesto Republicano tornara-se emblemático. Não por concordar que fora nos anos 70 que se constatou um “bando de ideias novas”, como afirmou Sílvio Romero, mas por adotar aqui a interpretação histórica de que as questões propostas na pauta das reformas foram, sim, anteriores ao ano de 1870, haja vista a apresentação das mesmas pelos Liberais ter ocorrido há tempos. 2 Contudo, foi na segunda metade do século XIX que o acirramento do debate em torno de qual forma de governo seria mais adequada às circunstâncias do país, monarquia versus república, se deu, principalmente devido ao aumento das críticas por parte dos contestadores, que instauraram um ambiente de descontentamento, o que, posteriormente, inviabilizou a manutenção do Império no Brasil. Apenas como forma de demonstrar que a escolha dos teóricos feita pelos republicanos liberais para se instrumentalizarem contra o Império era consciente, na busca de quem liam e então se utilizavam, é que se tem, por exemplo, a não adoção dos escritos de Karl Marx. O socialismo não fora utilizado pelos contestadores do período, pois tinham consciência que a referida teoria não faria sentido no Brasil oitocentista. Algo que Sílvio Romero apontou em sua obra Doutrina contra doutrina.3 Neste texto, afirmou a incoerência de se adotar os escritos de Karl Marx para o Brasil da segunda metade do XIX, pois era inviável propor um sistema socialista ao país que, segundo o próprio autor, ainda possuía estruturas incipientes para sua instalação. De modo que “esse é o problema do nosso futuro. No presente, affirmamol-o convictamente, em zona alguma do paiz existem ainda as condições que fazem brotar o socialismo em suas diversas manifestações”.4 O que significa dizer que, embora conhecessem as principais doutrinas da época, os contestadores do período selecionavam os teóricos que melhor se adequavam aos seus interesses. Estratégia que não seria diferente em relação ao trio dos republicanos liberais. Tanto Alberto Sales, quanto Quintino Bocaiúva e Assis Brasil fizeram uso dos mesmos teóricos da reforma social, contudo os teóricos foram escolhidos para possibilitar a criação de um discurso combativo em relação à Monarquia, que passaria a ser lida como forma de regime decadente, atrasado, corrupto e de concessão de privilégios, ou seja, ressaltavam existir a inadequação da forma de governo vigente com o mundo moderno. Assim, entende-se

664

a adoção consciente feita pelo repertório da política científica, que serviu de arma teórica para justificar a oposição ao Império. As inúmeras citações e menções feitas a Spencer, Darwin, Haeckel e Comte, 5 por exemplo, eram recorrentes nas obras do trio republicano, tanto de forma direta, quanto indireta. Os empréstimos feitos do vocabulário da política científica eram constitutivos do discurso contestador, por isso a grande repetição de expressões como “evolução”, “leis científicas”, “ciência política”, “ordem e progresso”, “passagem do homogêneo para o heterogêneo”, “organismo social”, “anarquia mental”, “marcha geral da civilização”, “estados da humanidade”, “evolução mental”, “regime científico de governo”, entre outras tantas. Em uma das principais obras de Alberto Sales6 já se tem, na parte inicial de seu texto intitulada “Observações Preliminares”, longas citações de Augusto Comte, bem como há menção a Pierre Laffite e Émile Littré. Os representantes máximos do positivismo estão presentes inúmeras vezes na escrita, perpassando toda a obra. Alberto Sales os utiliza como argumentos de autoridade durante sua construção discursiva e como embasamento teórico à ação política. Faz-se necessário ressaltar que houve a adoção por parte dos republicanos liberais de um ecletismo filosófico, escolha que permitia mesclar e adaptar as correntes de pensamentos ligados à evolução e à ciência no século XIX, de modo a buscar o convencimento de seus leitores à causa que defendiam. O uso do repertório da política científica servia então de arma para fundamentar a oposição ao Império. Assim, a adaptação da “lei da evolução” à realidade brasileira, permitiu a construção de uma nova visão de mundo, cujo Brasil submetia-se aos “estágios civilizatórios” pelos quais a modernidade caminhava. Desse modo, a ideia de “marcha do progresso” demonstrava ser indispensável às mudanças nas esferas política, econômica e cultural. Dever-se-ia propiciar as transformações oportunas para permitir ao país seu desvelar no mundo moderno. Assim, a partir dessa nova visão de mundo teleológica apresentada pelos republicanos contestadores da tradição imperial, cujos liberais também faziam parte, é que Ângela Alonso contribui ao destacar que fora o repertório político-intelectual de fins do oitocentos [que] deu ao movimento intelectual instrumentos para interpretar sua conjuntura como crise de um padrão de sociedade e de um regime político, incompatíveis com o ritmo e a direção da história mundial. E como decadência: desagregação da ordem sociopolítica legada pela colonização.7

Era assim que os contestadores construíam seus textos com o “explícito intuito de contradizer a narrativa oficial”.8 E para tal, os empréstimos feitos do vocabulário da política 665

científica servia-lhes de fonte para chegarem ao resultado esperado: criar duas imagens mentais opostas entre monarquia e república. A monarquia brasileira passou a ser associada ao decadentismo, ou seja, ao movimento contrário a “marcha geral da civilização”, pois era um regime de governo com “estruturas artificiais”, que por equívoco se manteve ao longo do tempo. A modernidade trouxera consigo o signo do progresso e para permitir o seu pleno desvelar seria necessário banir as “estruturas artificiais” anacrônicas. A tradição imperial, seus valores e práticas tinham que desaparecer para dar lugar ao novo.9 Desse modo, a estratégia discursiva dos republicanos liberais, assim como a dos demais contestadores, também entendia a Monarquia como uma estrutura arcaica a ser suplantada pela República do progresso. A transição de regime deveria ocorrer de forma evolutiva, muito embora não fosse descartada a opção pela revolução em última instância. Porém, o grupo era, sim, adepto da postura propagada por Quintino Bocaiúva, 10 um dos seus principais expoentes, de evolução e não revolução. A visão de mundo pautada na política científica permitiu a adoção do decadentismo como forma de interpretar o campo político do período e no oportunismo que garantiria uma transição pacífica à república do progresso. Assim, a deslegitimação do status quo imperial ocorreu através da inversão discursiva, tudo que se referia à Monarquia encontrava seu contrário no vocabulário do grupo contestador. A criação das imagens opostas de monarquia e república propiciam o ambiente favorável para que o discurso político republicano-liberal instaure, ele próprio, um novo real, a partir de 1889. Como ressaltou Maria Tereza Chaves de Mello em relação aos ataque discursivo contra o regime monárquico:

recebeu um tratamento crítico bipolar pela propaganda republicana. Pôs-se, então, em confrontação um par antitético: monarquia versus república, onde o último elemento apresenta o primeiro de maneira que aquele não se reconhece.11

O jogo de palavras no discurso político dos republicanos liberais contra o Império fez uso do recurso de pares de conceitos antitéticos.12 A Monarquia passava a ser apresentada como: “regime de privilégios”, “corrupção”, “despótico”, “irresponsabilidade” e “atraso”. Já seu par, a República, era lida como: “autogoverno”, “plena soberania popular”, “progresso”, “mérito”, “bem comum” e “talento”. A construção discursiva baseada na deslegitimação do status quo imperial, ao mesmo tempo em que legitimava a república liberal, através da escolha do recurso de pares de antônimos, foi amplamente utilizada como estratégia retórica para possibilitar a criação das imagens opostas de monarquia versus república.

666

Isso foi possível porque, de acordo com Reinhart Koselleck, houve um esgarçamento entre as categorias históricas de “espaço de experiência” e “horizonte de expectativas” quando do evento singular da Revolução Francesa, o que propiciou o surgimento do tempo histórico. O que significa dizer que ocorreu o descolamento entre passado e futuro. Se antes a 1789 passado e futuro permaneciam unidos, com o advento da Revolução Francesa, “que parecia ultrapassar e reorganizar toda a experiência anterior”,13 inaugura-se uma nova forma de experimentação temporal, na qual o futuro mostra-se inédito, surge a “história em si”. O porvir não mais sendo conhecido, permitiu uma infinidade de possibilidades, despontam-se no cenário mundial as mais variadas filosofias da história e seus respectivos horizontes utópicos. Desse modo, “o 'progresso' é o primeiro conceito genuinamente histórico que apreendeu, em um conceito único, a diferença temporal entre experiência e expectativa”. 14 Não à toa, despontam no Oitocentos as várias teorias científicas de reforma social como, por exemplo, o positivismo, evolucionismo, cientificismo e o darwinismo social. A leitura feita pelos republicanos liberais dessas teorias da reforma social possibilitou entender a república brasileira como o regime de governo do progresso, como último estágio da evolução social, ou ainda, como o desvelar do estado positivo. Por isso, segundo destaca Maria Tereza Chaves de Mello, em relação à visão de mundo construída pelos grupos republicanos contestadores do período, “o regime republicano passou a ser percebido como uma fatalidade histórica”.15 Era assim que o intenso debate político criava um vocabulário combativo com o intuito de transformar o contexto político-social do país. Cada grupo republicano contestador da Monarquia desenvolveu um significado próprio para a república que almejava implantar, o que demonstrou a grande mobilização de recursos semânticos, não apenas para mudar a realidade histórica do Brasil, mas para que, ao se alterar essa realidade, se garantisse os postos de comando aos vencedores da disputa. A busca pela inserção no campo político fora o elo comum dos opositores do Império. No caso dos republicanos liberais, a imprensa foi o espaço por excelência do debate de ideias e, consequentemente, da propaganda que forneceu visibilidade e legitimação enquanto novo grupo político à frente do país. Para isso, fizeram uso das técnicas de mobilização de “lugares-comuns”, pois a mesma formação de base retórica que compartilhavam instrumentalizou-os na arte do convencimento para mover à ação.16 Os argumentos retóricos utilizados na construção discursiva, existentes nos textos de Alberto Sales, Quintino Bocaiúva e Assis Brasil, pautavam-se, sobretudo, em repetidos exemplos políticos e históricos, em autoridades ilustres e na criação de imagens mentais

667

opostas entre monarquia e república, que permitiam “ver” o encadeamento

“lógico”

construído no intuito de mover à ação seus leitores. Sendo assim,

Meetings, imagens, efeitos de retórica, formações discursivas, ilustrações e até mesmo a repressão policial foram elementos ótimos para afetar os olhos, os ouvidos e a emoção, sendo, por isso, fatores eficazes na desintegração do regime, graças à instauração de um novo clima, que impregnou as mentes num simbolismo renovado.17

Fora desse modo que os seus discursos se tornaram arma contra o Império e instrumento de caráter pedagógico na disputa pela organização do país. Assim, explica-se a importância dada à propaganda,18 primordial na intervenção do debate político contestatório à época. Isso fora possível porque, dentre os grupos que disputaram o poder político, os republicanos liberais, além de observar a sociedade e escolher o momento oportuno de agir, construíram um discurso coeso para ir de encontro ao status quo imperial. Não houve disputas internas capazes de os ramificar, assim atingiram uma coesão discursiva que os tornou ainda mais eficazes na ação. A Constituição de 1891 e a ocupação dos principais cargos políticos pelos republicanos liberais após 1889 demonstram a vitória desse grupo específico de opositores. Assim, é importante destacar que uma das principais marcas dessa mesma sociedade era a inexistência do sentimento de comunidade, incapaz de construir a nação, de criar elos sociais eficazes para sustentar uma gestão política comprometida com o bom governo. Essa ausência de sentimento de pertencimento coletivo não apenas propiciou a volta da corrupção e das negociatas no recente regime, como também, talvez, seja uma das principais razões da república liberal se instalar no poder em detrimento dos outros ideais republicanos - jacobino e positivista. Esses dois últimos, respectivamente, atribuíam à república, ou um ideal ligado à liberdade dos antigos, com ampla participação popular na busca da instauração de um regime voltado ao bem comum, o que exigia a constituição da nação, ou então, afirmavam seu oposto, instaurar uma república ditatorial, a partir de um Estado forte e intervencionista. Pois bem, se não havia sentimento de pertencimento comum, se a nação não existia, como falar em participação popular, por outro lado, um regime que prega a falta de liberdade, também não poderia ser interessante àqueles que não fariam parte do círculo de poder político. A república liberal, embora também fosse composta por uma elite que almejava estar à frente no campo político, tinha embutido em seu discurso a necessidade dos indivíduos de buscarem a satisfação pessoal, o “público” entendido como o somatório de interesses 668

particulares

facilitaria sua aceitação pelos insatisfeitos com a monarquia, afinal abria-se uma brecha à ação, pois todos enquanto indivíduos poderiam ser contemplados. Talvez, por ser a sociedade brasileira oitocentista fragmentada, o discurso construído pelo grupo republicano liberal tenha sido aquele que melhor se adequou às suas características, sobretudo porque o coletivo era entendido como o somatório dos interesses particulares. O uso de termos combativos promovendo a guerra discursiva para instaurar uma imagem de monarquia opressora e atrasada em oposição a uma república de autogoverno e de progresso foi eficaz. Como os dois conceitos de monarquia e república passaram a ser interpretados como oposição um do outro, o grupo republicano construiu não apenas o significado de república liberal, mas também ressignificou o conceito de monarquia constitucional, visto que a instauração do novo regime político só pode se dar com a destruição da imagem monárquica concomitantemente. Para isso, utilizaram-se da imprensa. Também nesse contexto de tensão propiciado pela disputa entre a nova e a antiga linguagem do período, pode-se então afirmar que a literatura combativa usada “foi eficaz porque encontrou um terreno já pronto para se transformar”.19 Afinal, a performance dos republicanos liberais construída durante o embate discursivo surgido com a instauração de um ambiente entendido como de “crise monárquica” garantiu aos mesmos a inserção no campo político como nova elite, haja vista que seus esforços, durante o jogo de palavras, ao usar, transformar e adaptar vocabulários e teorias existentes para justificar e legitimar as novas práticas, valores e instituições foram eficazes. Conclui-se que o estudo do jogo de palavras ocorrido na disputa pelo campo políticosocial do país, torna-se importante para uma melhor compreensão do grupo dos republicanos liberais, entendidos enquanto agentes de seu tempo (não meros teóricos) e vencedores da disputa pelos postos de comando político. Apenas quando se tornam inteligíveis as ações do referido grupo, a partir do entendimento das ideias escolhidas, de suas adaptações e modificações para a intervenção política nesse contexto histórico é que se pode conferir sentido aos seus textos no ambiente de contestação da monarquia do Brasil.

1

Ver SALLES, João Alberto. Sciencia política. São Paulo: Teixeira & Irmão, 1891. Edição fac-similar: Brasília: Senado Federal, 1997. p.04. 2 Ver CARVALHO, José Murilo de; NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das (Orgs.). Repensando o Brasil do Oitocentos: cidadania, política e liberdade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. 3 Ver ROMERO, Sílvio. Doutrina contra doutrina. O evolucionismo e o positivismo na Republica do Brasil. Rio de Janeiro: Editor - J.B. Nunes, 1894. 4 Ibidem, p. 36. 5 Ver FERREIRA, Tânia Maria Tavares Bessone da Cruz. Palácios de destinos cruzados: bibliotecas, homens e

669

livros no Rio de Janeiro (1870-1920). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1999. p. 142. 6 Ver Salles, João Alberto. Op. Cit. p. 03-54. 7 Ver ALONSO, Angela. Idéias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002. p. 240. 8 Ver MELLO, Maria Tereza Chaves de. “A República e o Sonho”. In: Varia História. Belo Horizonte: UFMG, vol. 27, n°45, jan-jun 2011. p. 133. 9 O repertório da política científica possibilitou a adoção da versão científica de “decadentismo” pelos contestadores, proveniente da geração portuguesa de 1870, que de acordo com Angela Alonso, era um grupo constituído em sua maioria pela defesa da postura “anticlerical, anti-romântico, republicano e federalista”, temas ligados às reformas sociais almejadas pelos contestadores brasileiros da monarquia. Por isso, mais esta escolha consciente pela versão portuguesa do decadentismo foi feita na construção do discurso político combativo ao Império. Afinal, se esta forma de governo vigente permanecera no tempo como uma herança que já deveria ter sido superada por uma nova fase na “marcha geral da civilização”, suas estruturas arcaicas estavam em decadência e deveriam ser substituídas, no momento oportuno, pelas dos novos tempos trazidas com as demandas típicas da Modernidade. Ver ALONSO, Angela. Op. Cit., p. 174. 10 Ver SILVA, Eduardo. (Org.). Idéias políticas de Quintino Bocaiúva. Senado Federal/Fundação Casa de Rui Barbosa, 1986, 2 vols. 11 Ver MELLO, Maria Tereza Chaves de. A república consentida: cultura democrática e científica do final do Império. Rio de Janeiro: Editora FGV: Editora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (Edur), 2007. p. 174. 12 Sobre a construção discursiva baseada no recurso retórico dos conceitos antitéticos assimétricos para a semântica histórico-política ver KOSELLECK, Reinhart. “A semântica histórico-política dos conceitos antitéticos assimétricos”. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006. 13 Ibidem, p. 55. 14 Ibidem, p. 320. 15 Ver MELLO, Maria Tereza Chaves de. “A República e o Sonho”. In: Varia História. Belo Horizonte: UFMG, vol. 27, n°45, jan-jun 2011. p. 124. 16 Sobre o ensino de retórica, bem como a utilização da retórica como chave de leitura para acessar os textos do século XIX entendidos como forma discursiva de pensamento, ou ainda a manutenção pela geração de 70 do discurso ornado para defender a mudança no ensino da retórica à ênfase nas ciências físicas e naturais. Ver, respectivamente, HÉBRARD, Jean. “Três figuras de jovens leitores: alfabetização e escolarização do ponto de vista da história cultural”. In: ABREU, Márcia (Org.). Leitura, História e História da Leitura. Campinas: Mercado das Letras: Associação de Leitura do Brasil: São Paulo: FAPESP, 1999. p. 33-78.; CARVALHO, José Murilo de.“História intelectual no Brasil: a retórica como chave de leitura”. In: Topoi, Rio de Janeiro, setembro de 2000. p. 123-152.; VERGARA, Moema de Rezende. “Reflexões acerca da educação em periódicos científicoliterários do século XIX no Rio de Janeiro: os ideais da geração de 1870”. In: Revista Ágora. Vitória: número 8, 2008. p. 1-13. 17 Ver MELLO, Maria Tereza Chaves de. A república consentida: cultura democrática e científica do final do Império. Rio de Janeiro: Editora FGV: Editora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (Edur), 2007. p. 11. 18 A propaganda era feita, sobretudo, via imprensa que, nesse momento, fins do Oitocentos, foi mais um espaço possível para a batalha discursiva entre os ideais republicanos contra a monarquia, afinal a imprensa muitas vezes ao longo da história serviu “como um dos meios de transformação, de incitamento à transformação”. Ver PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia. As muitas faces da história: nove entrevistas. São Paulo: Editora Unesp, 2000. p. 170-171. 19 Ibidem, p. 171.

670

O rock errou? Rock brasileiro e a Nova República Daniel Cantinelli Sevillano Doutorando – Departamento de História – USP [email protected]

Resumo Este artigo busca compreender, pela análise de algumas letras do rock brasileiro da década de 1980, de que forma a juventude brasileira colocou-se frente aos desafios políticos e culturais impostos pelo retorno da democracia no Brasil durante os primeiros anos do período da Nova República.

Abstract This article tries to understand, through the analysis of some lyrics of the Brazilian rock of the 1980’s, the position Brazilian youth assumed when facing the political and cultural challenges imposed by the return of democracy in Brazil during the first years of the “Nova República” period.

Palavras-chave – Rock brasileiro; Nova República; juventude. Keywords – Brazilian rock and roll; “Nova República”; youth.

Se a eleição de Tancredo Neves representou o ápice do projeto utópico, com todas as contradições que este processo trouxe em si, a posterior posse de José Sarney como Presidente da República significou os termos reais deste projeto. Toda a euforia em relação ao fim da ditadura teve um fim, em certa medida, trágico, que já se havia anunciado quando, em 1984, após as manifestações das Diretas Já, a Emenda Constitucional proposta pelo deputado Dante de Oliveira fora derrotada em votação na Câmara dos Deputados. Sarney, político intimamente ligado à antiga ARENA, surgia no cenário político nacional como imagem da

671

Nova República, representante de uma tragédia histórica que se descortinava perante a sociedade brasileira. Para um país que havia vivenciado as arbitrariedades de uma ditadura por mais de 20 anos, a eleição de Tancredo como Presidente representava não apenas o retorno à democracia, mas uma nova atitude por parte de grupos da sociedade frente à realidade política do país. Se, por um lado, os partidos políticos e a volta das eleições representavam, para alguns, os instrumentos possíveis de contestação e afirmação política, por outro havia uma série de indivíduos que viam no processo de queda do regime civil-militar algo incompleto, que configurava, no fundo, uma solução negociada. As incertezas provenientes da morte do candidato eleito e da posse de Sarney mostravam que a democracia no país encontrava-se em processo de reconstrução ainda lenta e gradual, e que a representação desejada podia (e devia), em muitos casos, ser acessada por outros meios. No caso dos jovens, um caminho possível para essa representação era vislumbrado através das bandas que surgiam através do novo estilo musical adotado pelo público e pelas gravadoras. Se o rock, em suas origens, encarnava um espírito de revolta e busca por um espaço próprio da juventude, no caso brasileiro ele teria que ser adaptado a uma geração que buscava compreender o que se passava em seu país, e que queria encontrar uma forma que representasse seus próprios desejos e vontades. Para muitos dos novos artistas que tinham tal visão do rock, a mudança de comportamento dava-se em duas frentes: primeiro, a questão fundamental, lutar contra quê?; e, segundo, de que maneira empreender essa luta? O período compreendido entre o fim da ditadura e as eleições diretas para Presidente da República no ano de 1989, com a promulgação de uma nova Constituição em 1988, representa um momento de crítica e decepção em relação à democracia que aos poucos se instalava na realidade brasileira, e será através de sua inserção neste período histórico que as bandas do BROCK construirão parte importante de seu repertório; se os primeiros anos da década de 1980 traziam consigo um estado de excitação e esperança em relação às mudanças que se projetavam em um futuro não muito distante, a construção da experiência democrática através da Nova República traria consigo a decepção e, em certa medida, o fim da esperança em relação ao país que, após a ditadura, parecia estagnado em suas próprias desigualdades sociais e econômicas, frutos não dos militares, mas das relações econômicas que se mantinham mesmo em tempos democráticos. Frente a esta realidade, nota-se uma reconfiguração do papel social da juventude brasileira, pelo menos daquela parcela que se via

672

retratada nas canções das bandas de rock deste período, que toma para si parte do sentimento de distopia em relação ao que acontecia na sociedade; este sentimento era, ao mesmo tempo, um repúdio aos rumos da “nova” democracia brasileira, mas também um sentimento de incapacidade frente ao cenário de estagnação econômica, política e social vivenciado cotidianamente. Se o cotidiano apresentava-se, anteriormente, como espaço que possibilitaria a mudança geral, em muitos casos fruto da mudança tanto do indivíduo como do grupo do qual fazia parte, agora ele apenas era o reflexo de uma sociedade que, mesmo através da mudança política, permanecia como sempre fora: local da desigualdade e da falta de esperança em relação à mudança das estruturas econômicas e sociais que eram a base de sustentação de um país, ao mesmo tempo, moderno e arcaico. Mudança de comportamento é o nome do primeiro disco da banda paulistana IRA, lançado em 1985, e tal álbum pode ser utilizado como ponto de partida para se entender de que maneira a juventude brasileira passou a utilizar o rock como forma de expressão em relação à realidade pós-ditadura; o título pode ser lido como uma referência à mudança de comportamento necessária naquele momento histórico: o ciclo autoritário dos militares havia terminado, o que não deixava claro, em um primeiro momento, contra quem, ou o quê, deverse-ia lutar. Surge a necessidade de busca por um sentido, algo que fosse capaz de criar as condições para se estabelecer uma nova identidade ou mesmo um novo sentido de união entre aqueles jovens. De certa maneira, a ideia de esperança e de utopia em relação ao futuro não podia mais ser utilizada como parâmetro, dadas as mudanças pelas quais passava a sociedade brasileira; o presente, carregado de incertezas e indefinições e, ao mesmo tempo, reflexo da impossibilidade da mudança, coloca-se como local de luta e de uma posição crítica em relação às estruturas da sociedade. O sentimento de incerteza que é, ao mesmo tempo, indício do fracasso da mudança, pode ser observado na canção “Sonhar com quê?”:

Quando escurece os jovens se encontram, conversam sobre o dia; tristezas, bebidas, noites em vão, voltam pra casa e não tentam fugir, a TV está alta na conseguem dormir trabalho, cansaço, o fim-do-mês

673

revistas, modelos, sonhar com quê? quando amanhece os jovens dispersam, conversam sobre a noite; saudades, momentos, horas sem fim1

O próprio título traz a marca da incerteza que passara a marcar aquela geração, desprovida de objetivos claros que guiassem suas ações; a análise da letra ressalta esse sentimento: a noite, que deveria ser o tempo de diversão, transforma-se em momento de lamúria e tristeza, pois representa o fim de um dia no qual nada foi feito ou alcançado. As noites são em vão porque são apenas a continuidade de um dia, ou uma vida, em vão, daí a ideia de ciclo: à noite, os jovens conversam sobre o dia, e de dia, conversam sobre a noite, sendo que nenhum dos dois períodos é capaz de fornecer aquilo que eles querem. O tempo se apresenta como uma espécie de prisão, conjunto de ações cotidianas que só levam à repetição, no dia seguinte, de tudo que já havia sido feito. Nota-se na canção uma série de ações que refletem o cotidiano sem sentido do narrador; o “sonhar com quê?” do título representa não apenas o sentimento de perda da esperança em relação ao futuro, mas também de descrença em relação ao presente, que se coloca como uma sucessão de fatos que, em seu conjunto, impedem qualquer possibilidade de alteração deste mesmo presente. A reação do artista frente a essa situação é mostrar-se deslocado em relação a seu papel enquanto possível agente da mudança que gostaria de ver em prática; o questionamento feito não se dá em relação ao que ele pode fazer para modificar sua realidade, mas em relação ao que esperar desta realidade, que permanece a mesma. Há uma falta de sentido em relação ao que cerca o artista, como se ele não conseguisse explicar ou mesmo entender seu próprio tempo histórico. Esse sentimento de incompreensão é também visível na canção “Não vou me adaptar”, da banda paulistana Titãs:

Será que eu falei o que ninguém ouvia? Será que eu escutei o que ninguém dizia? Eu não vou me adaptar (...)2

1

Música “Sonhar com quê?”, lançada no disco Mudança de Comportamento, pela gravadora WEA em 1985.

674

A comunicação parece ser falha em muitos momentos, pois o artista não consegue se fazer ouvir e tampouco escutar o que estão lhe dizendo, se é que estão dizendo algo, sendo tudo isso fruto da impossibilidade de comunicação entre o indivíduo e os que o cercam. A atitude daquele não será mais de adaptação ao que se passa a seu redor, mas de inconformismo, buscando seus próprios meios de expressão e seus próprios conteúdos, daí a confusão entre os interlocutores. O descompasso entre as novas atitudes da juventude e o que era esperado dela criou um verdadeiro abismo entre esse grupo e a sociedade na qual estava inserido. De certa forma, trata-se de uma autocrítica em relação à própria condição do artista enquanto indivíduo inserido em um contexto social e histórico, e sobre sua incapacidade de utilizar sua arte de maneira a modificar este mesmo contexto. O cantor Lobão deixou isso claro na canção “O Rock Errou”, lançado em 1986, no qual faz uma crítica ácida não apenas aos artistas e bandas surgidas nos anos anteriores, mas em especial ao rock, que parecia não ter cumprido suas promessas de rebeldia e transformação:

Dizem que o Rock andou errando Não valia nada, alienado E eu aqui na maior das inocências O que fazer da minha santa inteligência Será que esse é o meu pecado, porque Errou, errou, errou, errou Eu sei que o rock errou Acho que é melhor passar a borracha Ninguém é perfeito você não acha? Nem mesmo o bruxo da vassoura Música do Planeta Terra Cantiga de guerra Canto, espanto e fico rouco E ainda acham pouco porque

2

Música “Não vou me adaptar”, lançada no disco Televisão, pela gravadora WEA em 1985.

675

Errou, errou, errou, errou Eu sei que o rock errou Vivemos num país bem revistado3

O refrão da música é uma construção bem feita que trata da análise que o cantor faz sobre o estilo: o rock ’n’ roll, marcado por uma trajetória de contestação e rebeldia, transforma-se em o rock errou, uma constatação sobre a perda de seu caráter de revolta. Essa noção é logo escancarada nos primeiros versos da canção, quando o artista afirma que dizem que “o rock andou errando, não valia nada, alienado”: ao utilizar uma caracterização que é normalmente feita por quem deseja atacar ou descaracterizar o rock, Lobão transmite sua opinião que, de fato, o estilo havia se tornado algo alienado, distante da realidade que o cercava e de sua função de servir como instrumento de crítica desta mesma realidade. O artista, inocentemente, tomava o estilo como algo libertador, e tentava se utilizar dele como este instrumento de reflexão social, sendo que, na verdade, ele já não podia lhe oferecer esta oportunidade. Seu pecado, então, seria o de acreditar que o rock ainda era uma forma artística que possibilitava a transformação quando, na verdade, ele havia errado há muito tempo, transformando-se em mais um bem de consumo nas prateleiras das lojas de discos. Para o artista, então, o melhor talvez fosse “passar a borracha”, tentar recomeçar a partir desta constatação de que o rock errou ao não assumir todo seu potencial de revolta e crítica social; ao mesmo tempo, no entanto, em que ele propõe que os erros sejam apagados, há a ideia de que a sociedade voltava-se para o passado recente através de sua repetição. Ao afirmar que “vivemos num país bem revistado”, o artista traz à tona o caráter opressor que permanecia mesmo após o fim da ditadura e que refletia este sentimento de que a sociedade brasileira encontrava-se ainda refém deste passado que insistia em continuar existindo; existia, porém, de outra forma e com outra imagem, como ele deixa claro quando canta que “muito louco anda solto de colarinho, é claro”. A imagem podia ter mudado, mas o conteúdo permanecia o mesmo; a farda havia se transformado no terno e gravata, mas quem utilizava a roupa representava os mesmos grupos que oprimiam e reprimiam os indivíduos. Frente a este cenário, o que poderia o artista fazer para provar que o rock, mesmo tendo errado, ainda era instrumento que podia dar voz àquela geração? Uma possível resposta é dada quando o artista canta “cantiga de guerra / canto, espanto e fico rouco”, uma lembrança 3

Música “O Rock Errou”, lançada no álbum O Rock Errou, pela gravadora RCA em 1986.

676

de que o estilo podia ser utilizado como forma de anunciar a insatisfação daquela juventude frente ao que acontecia ao seu redor. Mas o que talvez melhor caracterize a atitude que devia ser posta em prática é algo que não aparece na letra da canção, mas que é gritado pelo cantor no final da música: enquanto uma espécie de coro fica repetindo “errou, errou, errou, errou”, Lobão diz, de forma raivosa, uma série de frases que refletem ataques ao que de fato acontecia ao seu redor: “A ditadura continua”, “O Santo papa, o Vaticano”, “A África do Sul, o apartheid”, “A Casa Branca, Ronaldo [sic] Reagan e todos os seus capitólios”, “Margareth, de ferro, de aço e de podridão”. O errou cantado após cada frase reflete sua constatação de que seu momento histórico estava errado, e que também o rock estava errado ao não confrontar essa realidade. Nesse sentido, cabia ao artista utilizar sua forma de arte como negação dessa realidade que se colocava como normal quando, na verdade, ela refletia toda a anormalidade daquela situação. Ao deixar claro quais eram, dentre tantas outros, os verdadeiros erros, o artista ressaltava uma posição clara de ataque à sua realidade, mostrando que cabia a ele, através de sua música, desnudar seu tempo histórico. A banda Os Paralamas do Sucesso transformaria seu terceiro álbum de estúdio, "Selvagem?", em um ataque direto às desigualdades sociais do Brasil. A canção que abre o disco, "Alagados", mostrava que aquela geração de jovens tinha conhecimento do que se passava em seu país, e não tinha medo em mostrar os erros e procurar os culpados pelo caos social que se instalara em sua sociedade:

Todo dia O sol da manhã vem e lhes desafia Traz do sonho pro mundo quem já não queria Palafitas, trapiches, barracos Filhos da mesma agonia E a cidade Que tem braços abertos num cartão-postal Com os punhos fechados da vida real Lhes nega oportunidades Mostra a face dura do mal4

4

Música “Alagados”, lançada no disco Selvagem?, pela gravadora EMI em 1986.

677

A menção ao Rio de Janeiro, que ao mesmo tempo acolhe os turistas com os braços abertos do Cristo Redentor e mostra aos pobres que sua realidade é outra, é sintomática de uma sociedade baseada na desigualdade econômica e social; a “cidade maravilhosa” é o exemplo mais cristalino dessa ideia, pois distintos grupos sociais convivem no mesmo espaço, numa relação que procura mostrar-se natural, escondendo todos os conflitos e tensões gerados por essas desigualdades. Uma sociedade desprovida de conflitos e sem qualquer tipo de ideologia parece esconder sua própria História, e nesse sentido o sujeito histórico deixa de existir. O cantor Cazuza deixaria isso claro naquela que pode ser considerada a canção tema de sua geração, "Ideologia"5:

Meu partido É um coração partido E as ilusões Estão todas perdidas Os meus sonhos Foram todos vendidos Tão barato que eu nem acredito Ah, eu nem acredito Que aquele garoto Que ia mudar o mundo Mudar o mundo Frequenta agora As festas do "Grand Monde"6

As duas primeiras frases da música escancaram a ideia de que a noção de união parece não mais existir: o partido que diz algo ao artista não é a agremiação política, um dos símbolos da democracia, mas sim seu coração partido, algo individual que diz respeito 5

Disco Ideologia, lançado pela Polygram em 1988. A capa do disco é um retrato fiel de seu próprio tempo: a palavra Ideologia escrita com os mais variados símbolos (suástica, ironicamente colocada dentro de uma imagem da Estrela de Davi, símbolo hippie, foice e martelo, entre outros), uma colcha de retalhos ideológica que mostrava a face de uma geração que parecia querer tudo, mas que se contentava com nada. 6 Música “Ideologia”, lançada no disco Ideologia, pela gravadora Polygram em 1988.

678

somente a ele. Esse encerramento no "eu" nada mais é do que o resultado das ilusões perdidas de toda uma geração, cujos sonhos haviam sido vendidos a qualquer preço. Não havia, portanto, mais espaço para sentimentos e ações de mudança, o que levava cada um a procurar a própria satisfação em coisas banais e prazeres individuais, como festas chiques da alta classe carioca. O sentimento de perda dos ideais é realçado quando Cazuza diz que seus "heróis morreram de overdose" e que seus "inimigos estão no poder": a realidade mostrava-se inclemente com qualquer tipo de desejo de mudança; a figura do herói, aquele que faria o bem e salvaria a todos – papel que, de certa forma, era imaginado pela juventude em relação aos seus ídolos roqueiros -, é destruída pela banalidade do excesso individual, abrindo espaço para o triunfo dos inimigos. O presente impossibilita a concretização do futuro, e é justamente esta impossibilidade que leva o artista a negar qualquer esperança em relação ao que poderia vir a ser. Mesmo que exista um resquício de esperança em relação ao futuro do país e da sociedade, ela apresenta-se como uma farsa, uma negação de si própria, como pode ser observado na canção “1965 (Duas Tribos)”, da banda Legião Urbana:

É o bem contra o mal E você de que lado está? Estou do lado do bem E você de que lado está? Estou do lado do bem Com a luz e com os anjos (...) Eu tenho autorama Eu tenho Hanna-Barbera Eu tenho pera, uva e maçã Eu tenho Guanabara E modelos Revell O Brasil é o país do futuro (3x)7

7

Música “1965 (Duas Tribos)” lançada no disco As Quatro Estações pela gravadora EMI em 1989.

679

Percebe-se

que a utopia cantada é descaracterizada pela própria canção, no momento

em que o narrador volta-se para o passado para buscar a esperança em relação ao futuro que ele não consegue encontrar no presente; o passado torna-se o elo de ligação com o futuro, como se a esperança utópica que se busca não pudesse se desenvolver a partir do presente. Ao cantar que o “Brasil é o país do futuro”, o narrador na verdade traz elementos de sua infância como base para seu discurso, e isso ficar claro quando cita fatos que o remetem a esta etapa de sua vida: o autorama, os desenhos de Hanna-Barbera, a brincadeira “pera, uva e maçã” e os brinquedos da empresa Revell. A esperança de que o Brasil era o país do futuro não estava ligada ao presente, mas sim ao passado, uma recordação do que o país poderia ter sido, e não uma certeza em relação ao que ele poderia ser. A utopia, então, transforma-se em esperança vazia em relação ao futuro, já que este futuro almejado não tinha meios de se transformar em realidade, uma confirmação de que o presente estava imerso em um discurso distópico que negava a esperança de tempos melhores. Ao artista, bem como à sociedade, restava sonhar com um país imaginário e irreal, fruto da realidade que o impossibilitava de existir. Mais do que uma profecia do passado, a ideia de que o sonho acabou havia se transformado em uma perversa realidade.

680

A América do Sul no relato da viagem de volta ao mundo de Abel Dupetit-Thouars (1836-1840): notas de pesquisa Daniel Dutra Coelho Braga1 Resumo: Entre 1836 e 1839, sob auspícios da Marinha francesa, Abel Dupetit-Thouars comandou sua expedição de volta ao mundo, corroborando a retomada de um modelo de viagens caro ao Estado francês desde a segunda metade do século XVIII. Este trabalho analisa o vocabulário político mobilizado pelo viajante conforme contempla, em seu relatório de 1840, países da América do Sul. Tendo em vista as conjunturas locais encontradas, seus registros evidenciam seu posicionamento enquanto um agente comprometido com diretrizes institucionais, políticas e comerciais francesas. Palavras-chave: Literatura de viagem, imperialismo, América do Sul Abstract: This article analyses how South South American countries were depicted and represented by the French Navy officer Abel Dupetit-Thouars, who traveled around the world between 1836 and 1839 and published his travel account in 1840. The political concepts and vocabulary used by Dupetit-Thouars are analysed in order to understand which points of view he would endorse concerning political changes taking place in America at the time. Keywords: Travel writing, imperialism, América do Sul

Em 1814, após a instauração do regime monárquico constitucional, por meio do retorno da dinastia Bourbon ao poder, o campo político francês foi intensamente transformado e, em decorrência disso, esferas do Estado francês foram reformuladas. Dentre estas, a Marinha francesa atravessou diversas mudanças, retomando antigas tradições e práticas abandonadas ao longo dos turbulentos anos posteriores a 1789. Uma das práticas recuperadas com maior intensidade foi o empreendimento de grandes expedições de volta ao mundo, semelhantes às organizadas na segunda metade do século XVIII por Bougainville e La Pérouse. Após o êxito do oficial Louis de Freycinet, que realizou uma viagem de volta ao mundo entre 1817 e 1820, foram várias as expedições organizadas pelo Ministério da Marinha, muitas vezes junto a outras instituições como a Academia Real de Ciências e o Muséum National d’Histoire Naturelle. A continuidade de tal política de retomada de grandes viagens chegou mesmo a atravessar o período da Restauração Bourbon, mantendo-se até mesmo após a Revolução de 1830, mediante a qual se instaurou a Monarquia de Julho.2 Um exemplo de viagem bem-sucedida empreendida na década de 1830 foi a de Abel Dupetit-Thoaurs. Diferentemente de expedições anteriores, como a de Louis de Freycinet, esta viagem foi primordialmente político comercial. Ainda assim, foi certamente um empreendimento híbrido, no qual as formulações científicas ocuparam lugar de destaque,

681

justamente ao se entremearem às diretrizes propriamente político-comerciais. O caráter ostensivamente diplomático e comercial da viagem revela uma diferenciação em relação à época imediatamente posterior à queda do governo de Napoleão, quando a França ainda encarava, perante outras nações e territórios, o constrangimento decorrente das ambições expansionistas do Primeiro Império – constrangimento que, certamente, orientou

a

divulgação de expedições como a de Freycinet enquanto empreendimentos apenas científicos e de modo algum comerciais. Após 1830, ao contrário, é possível identificar uma nova inserção francesa no concerto internacional, de modo que as estratégias para garantir a presença francesa em diversos pontos do globo pudessem ser divulgadas ostensivamente e, assim, reconfigurar o horizonte de possibilidades francês. O objetivo deste trabalho é, portanto, analisar de que modo o vocabulário político empregado por Abel Dupetit-Thouars em seus relatos de viagem exprime essa reconfiguração de possibilidades de atuação francesa, mediante a qual âmbitos como a ciência e o comércio puderam ser articulados de forma a nortear as diretrizes de um dos principais alicerces do Estado francês, a Marinha. Abel Dupetit-Thouars deixou a França no comando de sua expedição em dezembro de 1936. Diferentemente das expedições de Louis de Freycinet e Duperrey, que retomaram a tradição francesa de grandes viagens científicas de volta ao mundo, a viagem de DupetitThoaurs foi concebida como uma empreitada primordialmente comercial. Na introdução do primeiro tomo do relato da viagem, o comandante reconheceu sua viagem como uma resposta às demandas feitas pelo setor comercial à Marinha francesa, sobretudo no tocante à presença francesa no ultramar, como na costa ocidental do México.3 As diretrizes da expedição podem ser parcialmente explicadas tendo-se em vista a própria trajetória de Abel Dupetit-Thouars dentro do campo da Marinha francesa. DupetitThouars ingressou na instituição em 1804. Entre 1817 e 1819, participou de expedições hidrográficas no litoral da França e da Argélia. Contudo, nos anos seguintes sua atuação afastou-se do campo propriamente científico e hidrográfico da Marinha, na medida em que comandou estações navais francesas no Pacífico, justamente no intuito de proteger o comércio francês, principalmente na América do Sul. Após comandar sua própria expedição, tornou-se contra-almirante em 1841, vice-almirante em 1846 e, finalmente, foi eleito para a Academia de Ciências em 1855.4 Esta breve menção a pontos-chave de sua trajetória demonstra que se, por um lado, Dupetit-Thouars efetivamente investiu no aprimoramento de

682

um capital científico que possibilitou até mesmo sua eleição para a mais importante instituição do campo científico francês, por outro lado o comandante da Vénus esteve intimamente atrelado à manutenção das atividades mercantis da Marinha francesa, contribuindo para uma efetiva territorialização do comércio francês, posto que as estações navais eram a forma mediante a qual a França poderia garantir sua presença em territórios sobre os quais pouco poder exercia. A concepção e realização da expedição Vénus, portanto, estiveram condicionadas pela então recente atividade do comandante no sentido de garantir tal expansão do comércio francês. No entanto, reconhecer a natureza comercial da expedição não significa afirmar que as formulações e práticas científicas dela decorrentes foram elementos superficiais. Elemento que ressalta tal dimensão da viagem é a publicação realizada em 1864 por Joseph Decaisne, exclusivamente dedicada a divulgar as novas espécies vegetais catalogadas em função dos trabalhos da expedição.5 Além disso, a própria publicação principal, referente à narrativa da viagem, apresenta diversas formulações hidrográficas acerca das costas visitadas ao longo da viagem. A contribuição política da expedição, por sua vez, não se deu apenas no nível da reiteração discursiva das possibilidades de expansão do modelo de civilização francês, ou do papel que a França teria no campo de relações comerciais mundiais. Após realizar a viagem, Dupetit-Thouars defendeu o estabelecimento de uma estação naval permanente na Nova Zelândia, medida que foi efetivamente adotada pela Marinha francesa após sua sugestão.6 No entanto, foi ao reiterara, mediante suas textualizações, determinadas concepções e interpretações acerca das transformações sociais e políticas ocorridas nas Américas, assim como concepções e interpretações relacionadas à natureza dos elementos biofísicos e formações sociais encontrados no continente, que a expedição de Dupetit-Thouars pode ter desempenhado de modo mais eficaz um significado político. Um dos países que mais se destaca no relato de viagem de Dupetit-Thouars é o Brasil. As descrições sobre o Brasil ocupam um espaço considerável da publicação, tanto em função do potencial de elementos naturais disponível para classificação e inventário, como também em função da conjuntura política local que se mostrava muito peculiar para os interesses franceses da época. De um modo geral, as descrições referentes ao Rio de Janeiro são positivas, assemelhando-se às formuladas por outros viajantes franceses e, curiosamente, diferenciando-se das promovidas por homens do campo científico-luso brasileiro,

683

que

eventualmente retrataram a realidade tropical fluminense como incompatível com a possibilidade de instauração plena da civilização. 7 O clima do Rio de Janeiro foi descrito como “agradável e sadio”8, e a cidade do Rio de Janeiro como uma “bela capital” simultaneamente “grandiosa e pitoresca”9. Todavia, embora não tenha aderido a formulações científicas que terminassem por reconhecer como inviável a instauração da civilização na região tropical brasileira, DupetitThouars aderiu a um modelo de compreensão da diversidade da espécie humana mediante o qual a mistura das diferentes raças poderia ter consequências negativas, a ponto de o viajante afirmar que “o cruzamento das raças não parece aqui ter sido favorável às espécies”, posto que os costumes decorrentes dos primeiros habitantes do Rio de Janeiro, provenientes de Portugal, teriam sido “desnaturados” devido à “mistura das raças de indígenas e africanos”.10 O contraponto identificado no Brasil entre o potencial oferecido pelo clima e, por outro lado, o aspecto tido como negativo da mistura de raças, torna mais complexo ainda o significado atribuído pelo viajante à opção pelo sistema monárquico e, em decorrência disso, ao papel a ser exercido pela família real no rumo da história brasileira e, portanto, na instauração da civilização nos trópicos: A separação do Brasil, esta vasta e rica colônia portuguesa, de sua metrópole, ainda que carregada de choques e revoluções sucessivas e parciais, não deixa de ser, hoje em dia, um fato concluído, e tão irrevogável como a mais brusca separação das colônias espanholas de sua pátria-mãe. No entanto, junto a tal diferença, vantajosa para o Brasil, há o fato de tal Império ter a herança de uma família real que o adotou e que o elevou cercando-o de amor e respeito. Esta família, com efeito, parece ter sido enviada do céu para conter a anarquia pronta a se estabelecer sobre o Brasil, colocando um freio às ambições secundárias e rivais que, como nas repúblicas da América meridional, teriam incessantemente disputado o poder, sacrificando os interesses do país em prol de interesses pessoais.11

Ao descrever o Chile, o viajante aderiu a um processo de análise semelhante, enaltecendo primordialmente aspectos do território e seus potenciais. O Chile é não apenas um dos melhores países da América, mas até mesmo do mundo, tanto pela bondade do clima como pela rara fertilidade local, que produz abundantemente grãos de todo tipo: vinhos, óleos, cânhamos de duas espécies; todos os frutos da Europa e uma parte daqueles dos trópicos. Lá o calor jamais é excessivo, tampouco o frio é rigoroso; ao longo do verão, os grandes períodos de calor são amenizados pelas brisas do mar e as costas; e, no interior, elas são moderadas em função da maior ou menor elevação do solo.12

684

Assim como na textualização referente ao Brasil, o viajante estabelece

um

contraponto entre os potenciais climáticos regionais e os grupos sociais na região estabelecidos. Isso fica evidente quando Dupetit-Thouars começa a descrever a província de Chiloë, cuja descrição seria, em suas palavras, “melhor que aquela de qualquer outra província” no sentido de servir como “ponto de partida à escala da civilização chilena”. 13 A partir de então, o relato da viagem de Abel Dupetit-Thouars assume um registro de inventário das atividades econômicas e comerciais estabelecidas na província, de modo a fornecer um quadro da organização interior da região. O viajante reconhece aspectos predominantes não só na província como em todo o território chileno, tanto no tocante a elementos propriamente biofísicos como a aspectos culturais e humanos. Ao descrever grupos indígenas como os “Araucaniens”, o viajante ressaltou como eles teriam sido hostis em relação a grupos descendentes de espanhóis, reconhecendo em tais embates elementos que teriam prejudicado a posição do governo chileno.14 Finalmente, o relato termina por criticar a forma como se desenrolaram muitas relações comerciais na região, sobretudo em relação ao comércio e pesca da baleia, a ponto de o viajante francês identificar a emergência de um “comércio fraudulento” que não só teria disseminado em meio aos chilenos “princípios de desmoralização” como teria, também, semeado “entre eles os primeiros germes da independência”.15 Percebe-se, assim, que Dupetit-Thouars aderiu a um teor textual que criticava o desenrolar das transformações políticas chilenas, valendo-se de um vocabulário e de formulações que em muito diferiam daquelas empregadas para descrever, por exemplo, os rumos políticos do Brasil. Embora tenha identificado na sociedade do Chile “rápidos progressos desde a independência”16, o que Abel Dupetit-Thouars parece deixar claro é que faltaria ao Chile uma instituição que, tal como no Brasil, resguardasse o país de subversões. De um modo geral, as descrições referentes à Bolívia e ao Peru também ressaltam aspectos negativos da administração pública e dos rumos adotados principalmente na agricultura e demais atividades17. É curioso ver como, nesse quadro que compõe o campo de países descritos por Dupetit-Thouars, o Brasil figura como aquele que “tende com sucesso a se colocar ao nível das sociedades da Europa que marcham ao cume da civilização” 18. Mediante essa constatação, torna-se plausível supor que a variável do regime monárquico foi um elemento crucial para orientar a representação do país no relato do viajante francês.

685

Do exposto, é possível afirmar que, no relato de viagem de Dupetit-Thouars, corroborou-se um modelo de interpretação das transformações políticas ocorridas na América do Sul mediante o qual reforçava-se a necessidade de alteração dos rumos políticos adotados. As análises científicas elencadas pelo viajante serviram de modo ou a ressaltar a ineficácia dos usos da natureza identificados nos locais. A ideia de civilização, em seu sentido mais amplo, foi continuamente elencada de modo a compor, nos alicerces de sua formulação, tanto aspectos decorrentes da cultura científica como, também, símbolos e debates decorrentes do campo da cultura política francesa da época. A empreitada de Dupetit-Thouars, sendo concebida integralmente, ou seja, levando-se em consideração a articulação entre as práticas da viagem e a publicação decorrente desta, é, portanto, um exemplo de como os campos da ciência e da política se articularam na França de modo a reiterar uma agenda de reorganização de relações comerciais e políticas em nível global, o que pressupunha a crítica das formações sociais nas Américas.

1

Doutorando pelo Programa de Pós-graduação em História Social da UFRJ, sob orientação do prof. Dr. José Augusto Pádua. E-mail: [email protected] 2

O caráter das expedições científicas organizadas a partir da Restauração Bourbon não é consensualmente caracterizado em trabalhos historiográficos. O clássico trabalho de Bertier de Sauvigny acerca do período as descreve como empreitadas comerciais, assim como o trabalho de Maurice Crosland, o qual, embora reconheça as interações institucionais do campo científico francês na concepção das viagens, também reitera a dimensão comercial destas. Bertrand Daugeron, em trabalho mais recente, embora analise apenas as grandes viagens do final do século XVIII, afasta-se de uma caracterização que privilegie uma ou outra dimensão das empreitadas, enaltecendo justamente como a construção de vínculos administrativos e propriamente imperiais entremeava-se ao processo de formulações científicas. Para detalhes, ver: DAUGERON, Bertrand. Collections naturalistes entre science et empires (1763-1804). Paris: Publications Scientifiques du MNHN, 2009; CROSLAND, Maurice. Science Under Control. The French Academy of Sciences 1795-1914. Cambridge: Cambridge Univ. Press, 2002 [1992]; BERTIER DE SAUVIGNY, G. de. La Restauration. Paris: Flammarion, 1955. 3

DUPETIT-THOAURS, Abel. Voyage autour du monde sur la frégate La Vénus, pendant les années 18361839, publié par ordre du Roi, sous les auspices du Ministre de la Marine. Tome Premier. Paris: Gide, 1840, p. III. 4

TAILLEMITE, Étienne. Dictionnaire de la Marine. Paris: Éditions Seghers, 1962, pp. 87-88.

5

DECAISNE, Joseph.Voyage autour du monde sur la frégate La Vénus, commandée par Abel Du PetitThouarus. Botanique. Paris: Théodore Morgand, éditeur, 1864. TAILLEMITE, Étienne. Marins français à la découverte du monde. De Jacques Cartier à Dumont d’Urville. Paris: Fayard, 1999, p. 587. 6

Para exemplos, ver:D’EGMONT, Andrea Fraga (Ed.). A Saúde pública no Rio de Dom João. Textos de Manoel Vieira da Silva e Domingos Ribeiro dos Guimarães Peixoto. Rio de Janeiro: Editora Senac Rio, 2008. 7

686

8

DUPETIT-THOUARS, Abel. Op.cit., p.47.

9

DUPETIT-THOUARS, Abel. Op.cit., p.55.

10

DUPETIT-THOUARS, Abel. Op.cit., p. 59.

11

DUPETIT-THOUARS, Abel. Op.cit., p.73.

12

DUPETIT-THOUARS, Abel. Op.cit., p.115.

13

DUPETIT-THOUARS, Abel. Op.cit., p.137.

14

DUPETIT-THOUARS, Abel. Op.cit., pp. 153-155.

15

DUPETIT-THOUARS, Abel. Op.cit., p. 169.

16

DUPETIT-THOUARS, Abel. Op.cit., p. 213.

17

DUPETIT-THOUARS, Abel. Op.cit., pp. 265-8.

18

DUPETIT-THOUARS, Abel. Op.cit., p.60.

687

O “Trono Altar” na França da Restauração e a escrita de Stendhal: percepção de uma crítica política religiosa. Daniel Eveling da Silva* RESUMO: Stendhal em seus dois principais romances - “A Cartuxa de Parma” e “O vermelho e o negro” – deixou registrada uma crítica à chamada política “Trono Altar”. Esta consistiu em uma estreita vinculação entre a monarquia e a Igreja Católica, desde 1660 até 1789, foi suprimida no período revolucionário e Napoleônico e retomada com a Restauração dos Bourbons, em 1814. Pretendo apresentar pela análise dos sinais nos romances, contrapondo com algumas passagens biográficas e memoriais de Stendhal, como essa crítica sútil, porém contundente pode ser entendida na constituição social e política da França de 1814-1830. PALAVRAS CHAVE: Stendhal; Trono-Altar; Interdisciplinaridade.

ABSTRACT: Stendhal in his two major novels - "The Charterhouse of Parma" and "Red and black" - left registered a criticism of the policy called "Throne Altar". This consisted of a close connection between the monarchy and the Catholic Church from 1660 until 1789, it was suppressed in the revolutionary and Napoleonic period and taken up with the restoration of the Bourbons, in 1814. I intend to present the analysis of the signals in the novels, in contrast with some passages biographical and memorials of Stendhal, as this subtle criticism, however blunt can be understood in the social and political constitution of France from 1814 to 1830. Keywords: Stendhal; Throne Altar; interdisciplinarity.

Stendhal vivendo em um período bastante conturbado da história francesa exprimiu em algumas de suas obras uma profunda crítica a questão da ligação “Trono-Altar”. Esta se constituiu como a aproximação da Monarquia Francesa com a Igreja Católica, amparando-se mutuamente para a manutenção de seus poderes e interesses. Em um momento no qual a Igreja Católica se restabelecia como poderosa estrutura de poder: a França da Restauração Bourbônica. Com o regresso da dinastia, afastada no período revolucionário, os irmãos mais novos de Luís XVI permitiram o restabelecimento de determinadas características da Igreja de Roma e, consequentemente, resvalavam nos poderes políticos. Dessa maneira o literato deixou em suas obras, através de uma crítica sutil, um severo posicionamento contrário a essa articulação. Um primeiro momento da crítica de Stendhal aparece em “Vie de Henri Brulard” quando definiu o seu pai como integrante do jesuitismo e, consequentemente, do partido “ultra”. Isso significava, para o autor, uma ligação próxima entre “monarquia e Igreja”. *

O

Doutorando em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora, bolsista CAPES, orientado pela Professora Doutora Beatriz Helena Domingues. Graduado e Mestre em História pela UFJF. Email: [email protected] . As principais ideias e partes desse texto compõem um subcapítulo de minha tese de doutorado, intitulada, até o presente momento como: “Pelo prisma de Stendhal: a reconstrução de alguns aspectos da França oitocentista em seus romances e memórias (1796-1842)”.

688

jesuitismo no debate político do período constituiu-se como um “resquício” do Antigo Regime retornando, afinal após mais de quarenta anos após a Supressão da Ordem ela poderia novamente aparecer em territórios franceses e significava, a meu ver, o posicionamento político conservador de Luís XVIII e, principalmente, Carlos X. Como exemplo de tal posicionamento posso destacar os capítulos XXI e XXII, do Livro II, de “O vermelho e o negro” que tem, como títulos: “A Nota Secreta” e “A discussão”. Nestes Julien Sorel, protagonista de uma das “obras primas de Stendhal” está juntamente com seu novo patrão, o poderoso Marquês de La Mole, em uma reunião que tem como personagens, um bispo, um militar e posteriormente um duque, neles inexiste qualquer identificação, excetuando-se a aparência e algumas falas. Não há nomes e nem títulos dados a esses integrantes desse grupo, com exceção do bispo, identificado como sobrinho do marquês e já apresentado no Capítulo “Um rei em Vèrrières”, do Livro I. Os acontecimentos dos dois capítulos XXI e XXII constituem uma linearidade textual e de enredo e apontam para um intenso debate entre os membros desse círculo. Aparentemente reunidos para algum assunto grave à medida que vamos avançando as páginas as intenções ficam mais claras e o enredo se torna mais nítido: trata-se de uma provável reunião do partido ultrai, com apoio da Igreja. Não somente isso, mas há uma intensa fala do Marquês sobre as posições políticas: -Afinal, é preciso que haja dois partidos na França – continuou o Marquês de La Mole – , mas dois partidos bem nítidos, bem distintos. Temos de saber a quem é preciso esmagar. De um lado os jornalistas, os eleitores, a opinião; numa palavra a juventude e todos a que admiram, Enquanto ela se atordoa com o ruído de suas palavras vãs, nós temos a vantagem certa de consumir o orçamento. [...] O trono, o altar, a nobreza podem perecer amanhã, senhores enquanto não tiveres criado em cada departamento uma força de quinhentos homens devotados; mas digo devotados, não somente com toda a bravura francesa mas também com a constância espanhola. A metade dessa tropa deverá ser constituída por nossos filhos, nossos sobrinhos, enfim, por verdadeiros cavalheiros. Cada um deles terá a seu lado, não um pequeno burguês falastrão, pronto para arvorar a insígnia tricolor se 1815 se apresentar novamente, mas um bom camponês simples e fraco como Cathelineau; nosso cavalheiro deverá doutrinalo, pode ser até seu irmão de leite...ii

Surge nessa citação personagens religiosos e uma aproximação com a figura do Marquês e seu partido os ultras com a questão religiosa. Esses, conforme já dito, eram caracterizados como o partido conservador e royalista. A sua ligação com a Igreja demonstrase nessa passagem de Stendhal e, além disso, no enredo de “O vermelho e o negro” o nobre patrão de Julien é um dos ministros mais poderosos do monarca, integrante desse grupamento

689

político.iii Como sabemos a Revolução Francesa estabeleceu o fim da Religião Católica como a oficial do Estado, primeiro com a Constituição Civil do Clero (1789) e depois com o “Culto a Razão” (1793). Somente com a Concordata de 1801 os padres católicos puderam voltar ao território francês. Todavia, após esse a assinatura desse acordo entre o Papa e Napoleão o catolicismo pode tornar-se a “religião da maioria dos franceses”. Demarcava-se assim a perspectiva de uma aceitação da Igreja Católica nos territórios de domínio francês, sem, entretanto, a designar como a governamental e vinculada ao Estado. Porém a partir de 1814 com o regresso dos Bourbons ao trono da França essa postura de afastamento da Igreja do “centro de poder” começou a se alterar e iniciou-se uma série de concessões permitindo a ela readquirir partes de seu antigo poder. Sobre a proteção de Luís XVIII, por exemplo, trinta novas dioceses foram criadas, restabeleceu-se a determinação da Igreja ser responsável pela educação primária e, em certa medida, de institutos superiores. Em outro ponto desse processo estabeleceu-se um processo de “aristocratização” da cúria romana na França havendo a nomeação de setenta e cinco bispos oriundos da classe aristocrática, do total de noventa e seis.iv Essas medidas tomadas pelo monarca, com o apoio de seu ministério, caracterizam a retomada de antigos princípios contestados durante o período revolucionário e ocasionaram a insatisfação do “partido dos liberais”, que merecia ser “esmagado”, na fala de La Mole. Aliando-se clero e Igreja grupamentos poderiam, conforme a fala do marquês, conseguir a força necessária para “formar seus batalhões”. Para Francis Démier

A força do partido ultra está em grande parte na confusão que se estabelece entre a causa da Igreja e a da monarquia. Do seu lado, uma Igreja enfraquecida pela Revolução e longe das pessoas conta com uma monarquia reacionária para recuperar sua posição . v

Pela citação, acima, percebo a necessidade desses grupos se articularem na tentativa de restabelecerem seus antigos privilégios e isso foi exposto por Stendhal em seu romance de forma a retratar na figura de La Mole e seu sobrinho a vinculação de tais questões, não somente isso na sua memória Stendhal caracterizou seu pai como integrante do partido ultra. vi Não somente a força do partido ultra poderia se encontrar nessa confusão entre sua causa e da monarquia. A força da Igreja estava também no reverso, pois, mesmo tendo passado por um período de contestação da Monarquia e as estruturas aristocráticas a figura do rei simbolizaria o regresso de determinadas benfeitorias do período dinástico. Monarquia, aristocracia e Igreja teriam em sua vinculação próxima e

690

estreita

garantindo os seus “interesses” em assuntos estatais e era esse o aspecto criticado por Stendhal dentro de suas obras. Ao colocar Julien Sorel, de influências napoleônicas, no interior da reunião de um grupo aristocrático religioso usava a literatura para criticar a formulação dessa aliança e indicava a seus leitores a existência das manobras de submissão impostas por esses dois grupos e o restabelecimento de seus antigos privilégios. Assim, Stendhal chamava a atenção para a necessidade de serem percebidas as ligações entre o Trono e Altar, com apoio de uma aristocracia conservadora e desejosa de readquirir seu antigo poder. E isso torna-se claro, quando examinados os sinais deixados por Stendhal, em sua obra. Uma das formas de impedir, provavelmente, essa reaproximação seria com o apelo de denúncias ao povo e ele se unindo, como na Revolução, para contestar tais pressupostos. Nessa perspectiva de utilizar a carreira eclesiástica para garantir os próprios interesses, sejam financeiros, sociais ou políticos, Julien Sorel, durante parte do romance, tem como intuito se tornar padre. Para Bertrand Goujon isso se deve

a melhora dos tratamentos, as honras que foram acordadas e promoções para a categoria dos notáveis locais, a influência notória desfrutada pela Igreja dentro dos meios de poder local contribuíram assim para lançar dentro da carreira eclesiástica alguns jovens ambiciosos, mas desprovidos de vocação espiritual e disso que Stendhal tirou a figura romanesca de Julien Sorel, de O vermelho e o negro.vii

Mas ao compararmos o desenrolar do romance percebo que o arrivismo de Julien vem acompanhando de uma denúncia das práticas exercidas, tanto pela aristocracia, quanto pelo clero e o episódio da fala do marquês é emblemático nessa percepção. Não ignoro, contudo nesse momento do romance Julien já ter enviado para “as calendas gregas” sua vontade de se tornar padre. Mas a influência da Igreja é algo ainda a seduzi-lo e a ser visualizado dentro de uma relação de poder envolvendo vários círculos da sociedade francesa. Nesse sentido Stendhal buscava denunciar e criticar essa forma de vinculação política existente nas páginas do romance. Concordo em parte com Goujon, a questão de uma juventude buscando uma posição social, independente de sua vocação espiritual, é flagrante em Julien Sorel e foi representante da sua geração. Porém essa perspectiva pode ser ampliada para Fabrício Del Dongo, pois, apresenta a mesma questão de não ter vocação para a carreira eclesiástica. O que difere os dois personagens, Julien e Fabrício, são suas origens: o primeiro vindo de uma família pequeno burguesa, da província, e o segundo da alta aristocracia de Milão. Ao mesmo tempo em que há o “oportunismo” de personagens existe o caráter de denúncia desse comportamento e vinculação da política e religião. Ao inserir a sua segunda

691

personagem em terras da Península Itálica demonstra a possível recorrência dessa postura em outras nações. Stendhal carregava em sua perspectiva, de francês, a crítica dessa manutenção do poder eclesiástico, mesmo estando no período da Monarquia de Julho, quando da escrita de seu segundo romance. Sabemos, entretanto que o enredo de “A Cartuxa de Parma” é passado em meados da década de 10-20, do século XIX.viii, As personagens carregam, dessa maneira, em sua composição a perspectiva da existência da voz aristocrática e dos preconceitos e intentos vividos por elas. A fala do Marquês de La Mole, citada mais acima, ocasiona um desconforto no protagonista de “O vermelho o negro”, pois insere-se dentro das classes a serem aproximadas e “manobradas”. Já Fabrício tem ciência dessas questões desde sua entrada no círculo de convivência do Conde Mosca, poderoso ministro do reino de Parma, pois a ele é destinado um cargo nas fileiras eclesiais, com grande possibilidades de “crescimento”, afinal alguns antepassados haviam sido cardeais, claro que seguindo uma lógica do Antigo Regime a carreira na Igreja poderia ser uma saída para um filho segundo. Mosca ao realiza as manobras para garantir a Fabrício seu lugar nas fileiras do clero de Parma, demonstra sua influência nos assuntos. Stendhal demonstra, assim, em outro de seus romances a sua crítica a forma como a Igreja constituiu suas “redes” com a aristocracia. Pelo viés de composição literária Stendhal posicionou-se contrário as esses arranjos e deixou registrado em suas obras. Stendhal regressando a Paris nos anos de 1820, pós sua estadia em Milão, aproximouse do pensamento de Paul Louis Courier um dos expoentes da crítica ao Trono Altar. Compartilhando o sentimento “irreligioso”, no sentido de não aceitação da interferência da Igreja Católica inseriu dentro de “O vermelho e o negro” e “A Cartuxa de Parma” a perspectiva de uma vinculação de poder prejudicial para a população, pois transparece a busca pelos próprios interesses sem se importar com os princípios “republicanos”, na visão de Stendhal isso seria o liberalismo, com a separação de poderes temporais e espirituais. Para Michel Winock em começos do século XIX Courier se tornou o grande liberal comparado a Voltaire, sendo conhecido e temido.ix Se em cinquenta anos poderiam existir apenas presidentes de repúblicas, na Europa, a nobreza deveria usar artifícios “militares” e religiosos para manter seu status e classe, da mesma maneira a Igreja se beneficiava de tal aliança. Essa postura dos dois antigos estamentos superiores da França era o ponto de crítica que aproximava Stendhal e Courier. Isso deveria ser questionado e, se possível, extirpado da sociedade francesa, pois, conduzia-se a retrocessos dos direitos conquistados no período revolucionário e napoleônico.

692

Um dos temas favoritos de Courier

é o poder dos padres, o conluio entre Trono e o Altar, o papel oculto da Congregação, os tumultos causados pelas Missões que, desde 1816, percorrem a França toda para reconduzir os franceses ao caminho da Igreja e do confessional. Ataca o governo que se julga capaz de propiciar a volta da religião.x

Outra das possíveis influências de Stendhal foi Béranger a princípio escreveu pequenas obras de “esperança” para com o regime, devido ao cansaço do povo dos conflitos e instabilidade dos anos revolucionários e napoleônicos. Além disso, inserido dentro do ambiente universitário de Paris, como professor, há, a meu ver, a própria questão de aparente neutralidade para manutenção de seu cargo público. Porém com o desenrolar dos acontecimentos monárquicos e supressão de determinados direitos estabelecidos pela Carta, responsáveis pelas insatisfações populares e de parte dos liberais, como a censura, a dissolução de gabinetes ministeriais e a própria “caçada” aos liberais torna-se um contrário ao governo bourbônico e seu regime. A grande popularidade dos escritos contestadores de Béranger se deveu a forma de propagação por meio de canções

É preciso lembrar que, na época da Restauração, a maioria dos conscritos não sabe ler e nem escrever. É, pois, na canção, mais que nos jornais, que as opiniões se propagam. Como existem tantos cançonetistas monarquistas quanto da oposição, em certos cafés das grandes cidades os estribilhos e as estrofes reagem mutuamente, os vendedores ambulantes divulgam as letras por toda a França. Esses cafés tornam-se o alvo do chefe de Polícia e inquietam o governo.xi

Compartilhando dessa perspectiva, de perseguição, aos opositores ao governo a figura do Marquês tinha noção dos opositores da aliança entre o seu grupo, a nobreza, e o clero. Não somente essa perspectiva demonstra a ligação dos dois grupos, em um dos capítulos iniciais de “O vermelho e o negro” (Um Rei em Vèrrières) Stendhal caracteriza um jovem bispo. Um dos detalhes postos na percepção de Julien, além da idade é ser sobrinho do Marquês, garantindo essa posição para seu parente, o que demonstra a “(re)aristocratização” da estrutura eclesiástica.xii Aqui pode ser feito o paralelo com a questão de Fabrício, mencionado mais acima, com a vinculação dos antigos nobres no interior da estrutura da Igreja, independente da vocação. Isso pode ser percebido na seguinte passagem, quando Mosca está debatendo com Gina o futuro de Fabrício,

693

- Seria capaz de aconselhar a um soberano que confiasse um posto que, num determinado dia, pode ter certa importância, a um moço que, em primeiro lugar, é suscetível de entusiasmo e, em segundo, que mostrou entusiasmo por Napoleão a ponto de ir ter com ele em Waterloo? Lembre-se do que seríamos todos nós se Napoleão tivesse vencido Waterloo! Não teríamos de temos os liberais, é verdade, mas os soberanos das antigas famílias não poderiam reinar senão desposando as filhas dos seus marechais. Assim, pois, a carreira militar pra Fabrício é a vida do esquilo movendo-se na gaiola: muito movimento sem avançar um passo. Ele terá o pesar de se ver preteri por todos os devotamentos plebeus. A primeira qualidade de um rapaz, hoje, e provavelmente durante cinquenta anos, isto é, enquanto tivermos medo e a religião não for restaurada, é não ser suscetível de entusiasmos e não ter espírito. Pensei numa coisa, mas que vai fazer a senhora gritar a bom gritar, pelo que me dará pesares infinitos e por mais de um dia; é uma loucura que quero fazer por sua causa.. Mas diga-me se sabe, que loucura eu não faria para obter um sorriso seu. - E então? Disse a duquesa. - E então! Nós tivemos como arcebispos de Parma três membros de sua família: Ascânio del Dongo, que escreveu em 16**, Fabrício em 1699 e um segundo Ascânio em 1740. Se Fabrício quiser entrar na prelazia e fazer-se notado por virtudes de primeira ordem, faça-o bispo em qualquer lugar, depois arcebispo aqui, se minha influência ainda estiver de pé. A real objeção é a seguinte: permanecerei ministro tempo o suficiente para realizar esse belo plano, que exige vários anos? O príncipe pode morrer, pode ter o mau gosto de me dispensar. Mas afinal é o único meio que tenho de fazer a Fabrício alguma coisa digna da senhora..xiii

Nessa longa citação percebo as mesmas características em Julien e Fabrício, dois jovens que ansiavam pela posição militar. Mas ao não conseguir a carreira eclesiástica é escolhida. Mas após essa breve digressão voltando ao debate sobre a questão Trono-Altar, podendo ser notado na escrita de Stendhal. Mesmo em sua segunda obra prima, escrita em meados da década de 1830 Stendhal continuava a denunciar a vinculação entre o monarca e a Igreja e, como lembrado por Bertrand Goujon, o partido royalista/monárquico

era

fundamental para isso. Mosca inserindo-se dentro dele conseguia não somente o trânsito de influências intra-aristocrático, mas também com o príncipe de Parma e, por conseguinte, na Igreja estabelecendo designações e espaços de influência política e religiosa. Ou ainda podemos visualizar a questão da ligação do ministério/partido com a Igreja definindo pessoas a serem nomeadas, de acordo com o interesse a ser obtido. Nesse “jogo” é possível compreender a dinâmica do “dar e receber”, ou seja, o Conde Mosca poderia conseguir um cargo para Fabrício nas carreiras eclesiásticas e, possivelmente, algum favor seria cobrado posteriormente desse poderoso ministro. Essa lógica de vinculação de favores e aproximações era o aspecto a ser combatido pelos liberais da década de 1820, a quem Stendhal se vinculava. Obviamente aqui Literatura e História, com o posicionamento político do autor, se misturam para efetuar uma denúncia de tal prática e expor essa prática. Para Bertrand Goujon Stendhal tem um forte caráter psicológico na composição de Julien Sorel, mas isso pode ser ampliado para a maioria de suas personagens. Estruturando em um processo interiorizado e nas questões de observação da sociedade e comportamentos

694

Stendhal apontava para os mesmos aspectos criticados por Courier e Béranger sobre a interferência e vinculação da Igreja e Monarquia em suas obras

Sob Carlos X, a aliança Trono e Altar, as manobras ocultas da Congregação (que Stendhal, à sua maneira, descreve em O vermelho e o negro, lançado poucos meses depois da revolução de julho) , o poder dos jesuítas cuja Companhia fora restabelecida em 1814, tudo associa o regime deposto dos Bourbons a Igreja Católica. Combater os Bourbon era combater num mesmo impulso, o poder de uma Igreja em que se apoiava o trono restaurado; ser liberal era ser, geralmente, anticlerical, como Courier e Béranger.xiv

Nessa perspectiva ainda é importante destacar que essa proximidade entre monarca e Igreja não se acabou com os “Três Gloriosos”.xv Em Lucien Leuwen, conforme já dito mais acima, ela persiste e foi capaz de manipular as eleições em Caen. Retratando as manobras políticas de Lucien, a serviço do ministro do interior. Se ele recorre ao Abade de Disjonval para ter o resultado favorável na eleição isso se desdobrou na seguinte fala da personagem principal: - Permita-me senhor, interrompê-lo. Eu ficaria desolado se tivesse de dar epítetos pouco agradáveis. Quanto a mim, senhor, meu ofício é respeitar todas as opiniões professadas por um homem de bem, e é a este título que me sinto disposto a honrar as suas. Permitame, senhor, observar-lhe que não farei nenhuma tentativa direta ou indiretamente, para mudar ou alterar em nada suas maneiras de ver essas questões. Uma tal tentativa não conviria à minha missão, e menos ainda à minha idade, senhor, e ao meu respeito pessoal pelo senhor. Mas é meu dever suplicar-lhe que esqueça minha idade e toda a respeitosa atenção que eu estaria disposto a dar à suas sábias opiniões. Venho muito simplesmente, Sr. Abade, propor-lhe o que julgo ser vantajoso ao meu senhor e ao seu: os senhores têm poucos deputados na Câmara, uma voz a mais não me parece de desdenhar em sua opinião. Quanto à nossa, receamos que o Sr. Mairobert proponha medidas extremas, entre outras a de deixar aos fiéis o cuidado de pagar o médico da alma, como pagam ao médico do corpo. Nós conseguimos, nesta legislatura, repelir essa medida, mas se ela reunisse uma minoria ativa, talvez fosse preciso, em compensação, reduzir a sés episcopais, ou pelo menos fazê-lo por um tratado, para que a Câmara não fizesse por uma lei.xvi

Algumas páginas depois, com o apoio de um antigo militar Lucien dirigia-se a prefeitura de Caen com uma “lista” eleitoral em mãos com a contagem provável de votos e como isso daria a vitória para o partido “governamental”. Como sabe-se apesar de Luís Felipe ter sido conduzido ao trono pelas classes burguesas e vinculando-se a figura de um “Monarca Burguês” houve uma virada conservadora, principalmente a partir de 1840, em seu governo e os gabinetes ministeriais continuaram exercendo uma forte influência nas decisões políticas. Stendhal chamava a atenção para a persistência dessa mesma questão na monarquia de Luís Felipe. Não esqueço, contudo, a maior crítica do livro: a vinculação entre as altas finanças e a politica, marcando na França o caráter especulativo. Porém mesmo no seu romance inacabado Stendhal colocou esse ponto de sua percepção, nas páginas de seus livros de romance, utilizando de despistes e jogos de linguagem para poder dissimular as críticas mais amplas.xvii 695

Para encerrar essa crítica de Stendhal a vinculação da Igreja e Estado é interessante entender o processo de coroação de Luís XVIII e Carlos X, ocorridos nos períodos retratados por Stendhal em suas duas “obras primas”. Momento profundamente simbólico do poder político a religião, tradicionalmente, se fazia presente quando da sagração do monarca. No governo de Luís XVIII a cerimônia de coroamento do monarca foi realizada em Paris, porém sem os antigos rituais marcantes da cerimônia de Reims, como o toque de escrófulasxviii e a unção sagrada, ritualizada e teatralizada. Para essa mudança de postura simbólica, religiosa e política, alegou-se motivos de saúde do monarca e ele foi conduzido ao Trono Francês em Paris. Além de definir a postura simbólica de uma afastamento para as velhas estruturas de poder e, portanto, a Igreja, de certa maneira, o antigo Conde de Provença estabeleceu um princípio de afastamento das questões do Antigo Regime. Porém como já mencionado posteriormente, a esse primeiro momento, a proximidade com a Sé de Roma começou a ser refeita, com autorizações e restabelecimento de antigos privilégios para os círculos aristocráticos como : a retomada da Igreja sobre a educação primária, a criação de novas paróquias e a tentativa do regresso do ensino superior para os domínios da Igreja demonstram a reestruturação da influência eclesiástica e, consequentemente, uma tentativa de interferência política e socialxix. Mas a chegada do irmão mais novo de Luís XVI, o antigo Conde de Artois, ao trono e sua sagração em Reims consolidou o imaginário para uma parcela da população da volta dos privilégios do Antigo Regime. Claro que a vinculação não se reinicia, como já apontado, em 1825 com a Coroação de Carlos X e sim com o governo de Luís XVIII. Mas uma diferença considerável foi feita na condução ao trono desse monarca e demarcou a extrema vinculação do Trono e Altar: a opção por ser coroado em Reims. Ungido pelo “Santo Óleo” o rei tocou as escrófulas e “dentro de uma catedral decorada de maneira teatral, a maneira medieval, ele recebeu as sete tradicionais unções”.xx Ao reviver esse ritual o monarca demonstrava a sociedade do período a sua estreita vinculação com a Igreja Católica. E reinseria na sociedade de seu tempo os intensos debates vividos no período da Revolução sobre a presença da Igreja nessa cerimônia, para Michel Vovelle A França era inteiramente cristã em 1789? Tinha a aparência de ser, reforçada pelo monopólio da religião católica e pela associação íntima da Igreja com o estado monárquico. Sagrado em Reims, , o rei era o protetor da “primogênita igreja”, e o clero era a primeira ordem privilegiada na hierarquia das honras.xxi

Ao ser sagrado em Reims Carlos X trazia novamente a ideia da vinculação Trono Altar, estreita e íntima, como havia sido combatida na Revolução e sinalizava para os literatos 696

a volta dos princípios absolutistas. Afinal os reis eram monarcas absolutos “consagrado na catedral de Reims. Em meio aos cortesãos do Palácio de Versalhes, ele era a encarnação da lei, e os ministros só obedeciam a sua vontade. A Igreja Católica estava associada a seu poder.”xxii Para Stendhal, formado com determinados princípios republicanos e próximo de pensadores como Courier e Béranger, isso representava um retrocesso nas conquistas. A Igreja ao recuperar seu poder e o monarca se posicionar ao lado dela restabelecia os pontos a serem combatidos politica e religiosamente. i

O partido ultra conforme se caracteriza pela proximidade com a figura do monarca e de princípios do Antigo Regime. ii STENDHAL. O vermelho e o negro (b).Op.cit. p.406 a 408 iii Cf.: LADURIE, Emmanuel Le Roy. Saint Simon ou o sistema da Corte. Tradução de Sérgio Guimarães. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004 iv Cf.: GOUJON, Bertrand. Monarchies postrévolutionnaires: 1814-1848. Paris: Editions du Seuil, 2012. v DÉMIER, Francis. La France du XIXe siècle. Paris: Editions du Seuil, 2012. p.97. vi STENDHAL. Vie de Henry Brulard. Op.cit. vii GOUJON, Bertrand. Monarchies postrévolutionnaires. Op.cit.p..135 viii Isso pode ser aferido pela idade do protagonista. Quando da segunda Campanha da Itália (1800) Fabrício tem dois, anos, portanto nascido em 1798. No episódio de Waterloo ele está com cerca de 17 anos. Portanto quando se torna padre tem por volta de 19 a 20 anos, ou seja, 1817-1818. ix WINOCK, Michel. As Vozes da Liberdade: os escritores engajados do século XIX. Tradução de: Elóa Jacobina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. Idem. p.102 xi WINOCK, Michel. As vozes da liberdade.Op.cit.p. 108 xii Cf.: GOUJON, Bertrand. Monarchies postrévolutionnaires. Op.cit. xiii Na edição francesa há uma divisão no parágrafo e pode assim ser traduzido“ Eu pensei em uma coisa, que te fará grita primeiro alto, e que dará a mim pesares infinitos, por mais de um dia é uma loucura que farei por você. Mas me diz que loucura não faria para ver um sorriso seu?” Nesse parágrafo residiria uma das constatações de Carlo Ginzburg para a obra de Stendhal. A inserção de determinadas vírgulas e modificações de edição que possibilitaria um “acabamento” do texto e mudança de uma perspectiva. Como sabemos a trajetória de Fabrício nas fileiras eclesiásticas acaba gerando uma série de problemas culminando com seu retiro para a Cartuxa e o isolamento do mundo, até sua morte. Nessa parte percebo a questão de Mosca poder ter sofrimentos pela opção dada a Fabrício e suas desventuras ele acaba falecendo e afastando Gina de Parma e, tempo depois, também falecer. Cf.: STENDHAL. La Charthuese de Parme. Op.cit.STENDHAL. A Cartuxa de Parma. Rio de Janeiro: Globo, 2008, p. 137-139. xiv WINOCK, Michel. As vozes da liberdade. Op.cit. p.174. xv Os Três Gloriosos são os dias 28, 29 e 30 de Julho, quando por meio da revolta popular em Paris a Dinastia Bourbônica foi retirada do Trono Francês e se conduziu o Duque de Orléans, Luís Felipe, ao trono. xvi STENDHAL. Lucien Leuwen. Op.cit.p. 539. xvii EVELING, Daniel.“O vermelho e o negro”, crônica e romance: Uma leitura dos aspectos grotescos em Stendhal. 2010. 141 f. Dissertação (Mestrado em História). Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2010. xviii Para Marc Bloch o toque das escrófulas pelos reis franceses e ingleses constituía-se no imaginário medieval como possibilidade de cura para as feridas. O toque taumatúrgico constituía-se, dessa maneira, como uma característica atribuída ao reis pelo seu caráter de escolha divina. Cf.: BLOCH, Marc. Os reis taumaturgos: o caráter sobrenatural do poder régio, França e Inglaterra. São Paulo:Cia das Letras, 1999. xix Cf.: DÉMIER, Francis. La France du XIXe siècle xx Idem. p.98 xxi VOVELLE, Michel. A Revolução Francesa. Op.cit.p. 219. Michel Vovelle discute essa questão para o impacto produzido na Revolução Francesa de questões políticas e culturais modificadas na França entre 17891799. Reconhece ainda a participação, na maior parte do tempo, de membros católicos “sazonais”, nas palavras do autor, frequentando os ambientes eclesiásticos nos ritos fundamentais, sobretudo (batismo, eucaristia, casamento). xxii Idem.p. 21-22

697

A dualidade do discurso: conhecimento e dominação através do Códice Florentino – Bernardino de Sahagún, México, 1588. Daniella Fraga (PPGHIS – FAPERJ)1

Resumo: Analisar a construção do discurso religioso na América do século XVI é compreender que a produção literária, os sermões e catecismos possuíam uma dupla condição de servir como referencial de conhecimento sobre as culturas e também como instrumentos que facilitavam o processo de dominação cultural durante a colonização. O presente artigo, visa analisar a construção do discurso do franciscano Sahagún, particularmente no Códice Florentino (1588), através da compreensão de sua trajetória e sua inserção geracional no franciscanismo mexicano. Palavras- chave: Discurso; B. Sahagún; México.

Abstract: To analyze the construction of religious discourse in the sixteenth century America you should understand how the literature, sermons and catechisms serve as a benchmark for knowledge about cultures as well as instruments that facilitated the process of cultural domination during colonization. This article aims to analyze the construction of Sahagún Franciscan speech, particularly in the Florentine Codex (1588), by understanding its history and its generational insertion in the Mexican Franciscan. Keywords: Speech; B. Sahagún; México.

A construção do discurso religioso na América do século XVI está inserida na compreensão da produção literária, das epístolas, dos sermões e catecismos que possuíam uma dupla condição de servir como referencial de conhecimento sobre as diferentes culturas e também como instrumentos que facilitavam o processo de dominação cultural durante a colonização. Desse modo, a presente comunicação visa problematizar a construção do discurso do franciscano Bernardino de Sahagún (1499- 1590) através do estudo da sua mais famosa obra: O Códice Florentino (1588). Também conhecida como Historia General de las cosas dela Nueva España, a obra reúne os mais variados temas acerca da organização social, cultural e política das populações astecas anteriores à conquista espanhola, em 1521. Além do objetivo informativo, segundo o próprio franciscano, serviria como um dicionário que facilitaria a comunicação entre as 698

diferentes composições linguísticas presentes na sociedade colonial mexicana2. Dividido em doze livros repartidos em quatro volumes e, depois disso, encadernados em três volumes, a estrutura escolhida é o registro feito em colunas. A coluna da direita é escrita em espanhol e da esquerda, em náhuatl, além de uma terceira coluna, contendo um glossário e intervenções de Sahagún. É observada uma ordem hierárquica nos temas abordados estruturados em: Assuntos Divinos, Assuntos Humanos e Assuntos da Natureza e dos Animais. No último livro, o tema da Conquista, a partir da visão indígena, também é abordado. No prólogo, Sahagún definiu que os objetivos do recolhimento destas informações deveriam ser a construção de um acervo indígena que serviria como base para a organização de um vocabulário e para o reconhecimento das antigas práticas culturais, à medida que, segundo o franciscano, a cristianização estaria sendo feita de maneira superficial. Era necessário conhecer para dominar. O texto foi composto através do recolhimento de informações dadas pelos informantes de Sahagún. Geralmente, parte da nobreza indígena, alunos de Sahagún, caciques e anciãos conhecidos como principales que respondiam aos questionários elaborados por ele com a ajuda de seus alunos. A obra, composta por três vertentes de conteúdo, continha o texto em náhuatl e em espanhol, além de imagens e intervenções de Sahagún através de prólogos e comentários. A estrutura escolhida foi justificada por Sahagún como forma de garantir uma suposta fidelidade destas informações.3 O conquistador Hernán Costés reconhecia a importância do trabalho evangelizador das ordens religiosas no México que deveriam, segundo sua concepção, promover entre os nativos, através da catequização, lealdade à Coroa bem como a legitimação do território conquistado. Nesse sentido, a construção de um modelo de Igreja que contribuísse para a dominação dos nativos deveria ser norteada pelos princípios políticos elaborados por ele. A possível não interferência dos franciscanos nos planos políticos do conquistador, nem tão pouco, um interesse tão direto no acesso às riquezas, segundo os votos de pobreza da ordem, fez com que Cortés desse preferência à vinda de missionários franciscanos em detrimento dos seculares4. É neste cenário de conquista, seja ela bélica e/ou simbólica que se faz necessária a análise de nosso principal personagem: o franciscano Bernardino de Sahagún (1499-1590). Reconhecido por muitos estudiosos como primeiro etnógrafo da América, o franciscano representou um dos mais atuantes religiosos que contribuíram no processo de conquista territorial e cultural empreendido pelos espanhóis nos séculos XVI e XVII no México. A ação evangelizadora de Sahagún, bem como sua produção demonstraram uma estratégia distinta da tradicional vertente do processo, empreendido nos anos inicias de

699

conquista militar e espiritual. A diretriz original de destruição de todo o material proveniente das culturas ameríndias produziu o que Sahagún denominou de “cristianização equivocada” 5, que provocaria erros de interpretação acerca dos rituais de adoração, os festejos e as interpretações sobre os sentidos práticos da cristianização católica. “El médico no puede acertadamente aplicar las medicinas al enfermo sin que primero conozca de qué humor o de qué causa procede la enfermedad. De manera que el buen médico conviene sea docto en el conocimiento de las medicinas y en el de las enfermedades, para aplicar conveniblemente a cada enfermedad la medicina contraria. Los predicadores y confesores, médicos son de las ánimas; para curar las enfermedades”6

Observamos na citação acima, a comparação feita por Sahagún em relação aos esforços evangelizadores dos religiosos com o trabalho de um médico. Para que se aplicasse a cura de doenças, o médico deveria conhecer a suposta enfermidade, caso contrário, a cura não se estabeleceria. Desse modo, podemos perceber que as práticas culturais nativas são compreendidas pelo franciscano como uma enfermidade, algo que deveria ser conhecido e reconhecido para, então, efetivar o processo de evangelização a partir da pedagogia cristã franciscana. Reconhecer o “outro” como um agente cultural seria inadmissível a partir do olhar etnocêntrico que norteou o processo de conquista mexicana, a partir de 1521. Contudo, era necessário aproximar-se e reconhecer essas estruturas para eliminar as possíveis idolatrias, resultantes de interpretações equivocadas acerca da fé católica. Segundo os relatos, o ingresso de Bernardino de Sahagún na ordem franciscana ocorre em torno de 1524. Tornou-se professor do Convento de Franciscanos de Salamanca e partiu, cinco anos mais tarde, em 1529, para o recém conquistado México em missão com outros dezenove religiosos encabeçados por Frei Antônio de Ciudad Rodrigo 7, permanecendo no México até sua morte em 1590. Dedicou quase toda a sua vida aos estudos linguísticos e culturais ameríndios e, por isso, é considerado um dos fundadores do estudo de linguística náhuatl e da Etnologia moderna, através de seus métodos de investigação e recolhimento de informações utilizados pelos pesquisadores para a emersão de uma cultura distinta. Apesar de não defendermos uma matriz semântica homogênea sobre a atuação dos franciscanos, a inserção de Bernardino de Sahagún em sua geração nos fornece o panorama vivenciado e compartilhado por ele na missão religiosa na Nova Espanha. Pouco se sabe sobre os anos de juventude de Bernardino de Sahagún. Sabe-se que a data provável de seu nascimento gire em torno de 1499, na vila de San Facundo, na Província Espanhola de Sahagún, reino de

700

León. Esta vila teve seu esplendor graças ao desenvolvimento da célebre Abadia Beneditina dos Santos Facundo y Primitivo. Desconhecem-se o nome de seus pais, contudo estima-se que eram abastados se considerarmos a trajetória de Bernardio de Riveira, que mais tarde, como de costume, incorporaria o nome do local de seu nascimento ao seu nome. Em 1529, Bernardino de Sahagún chegou ao território mexicano. Os seus primeiros anos no Novo Mundo transcorreram em Tlalmanalco – atual município de Tlamanalco de Velásquez, no México - (1529-1532), para depois ser guardião (e provavelmente fundador) do convento de Xochimilco – atual município pertencente a Cancún, no México Central (1535). Sahagún residiu inicialmente em Tlalmanalco e seu primeiro contato com os indigenas é dado no Vale de Puebla entre 1529 e 1533. Entre 1533 e 1536, atuou e Xochimilco e México- Tenochtitlan e, finalmente a partir de 1536 em Tlatelolco onde viria a lecionar no Colégio de Santa Cruz de Tlatelolco. Sua formação em Salamanca pôde ter inspirado também o modelo de ensino do Colégio de Santa Cruz de Tlatelolco, onde Sahagún participou diretamente da formação dos métodos pedagógicos, tornando-se professor na instituição a partir de 1536 e permanecendo, com algumas interrupções, até sua morte em 1590. Em 1536, com a autorização de Carlos V e do vice-rei Don António de Mendoza, o arcebispo do México Juan de Zumárraga fundou o Imperial Colégio da Santa Cruz de Tlatelolco, e Bernardino de Sahagún passou a lecionar latim na instituição. O Colégio instruía acadêmica e religiosamente os jovens da nobreza indígena conhecidos pelos espanhóis pelo termo principales - geralmente indivíduos pertencentes às famílias formadoras, grandes proprietários de terras e comerciantes. Com algumas interrupções, frei Bernardino estaria ligado ao Colégio até a sua morte. Ali formou alunos que logo seriam os seus colaboradores nas pesquisas sobre a língua e a cultura náuatles. Antonio Valeriano de Azcapotzalco8, por exemplo, foi o responsável pela organização do primeiro relato em língua náhuatl sobre da aparição de Nossa Senhora de Guadalupe O Colégio de Santa Cruz Tlatelolco, de maneira sistemática e prolongada, com um intenso programa pedagógico, uma vasta biblioteca e uma intensa rotina de estudos, traduzia o conhecimento cristão europeu às práticas ameríndias e vice-versa, portanto compreender a instituição como um pólo de diálogos e negociações entre dois universos culturais distintos torna-se importante para analisarmos as ações pedagógicas de Bernardino de Sahagún e sua ideologia missionária. O estudo cuidadoso das metáforas das tradições espanholas e indígenas, e a busca por expressões que dialogassem com as interpretações indígenas e espanholas, ou seja, sua preocupação era traduzir histórias cristãs em termos compreensíveis pelos indígenas.

701

Era necessário, portanto, traduzir os dois mundos para ambos imaginários, segundo a concepção de Sahagún A formação de padres nativos e de uma nobreza indígena letrada foi importante para os esforços de Sahagún em relação ao conhecimento do passado pré-colombiano. A adaptação que gerou uma maior facilidade na circulação dos diálogos culturais contribuiu diretamente para a formação da sociedade mexicana, resultado da interação entre os povos. Jovens indígenas letrados teriam livre acesso às comunidades mais distantes, prontos para auxiliar os religiosos no processo de conhecimento e, posteriormente evangelização. A aplicabilidade dos preceitos religiosos e ideológicos são importantes reflexões para compreendermos o projeto de ocidentalização do imaginário europeu. Como os missionários, que tão números vieram para a América, entenderam o sentido da missão religiosa? É possível encontrar um denominador comum e descrever uma suposta autocompreensão da evangelização pelos que vieram para o Novo Mundo? O Concílio de Trento não especificou nenhuma diretriz particular à evangelização no Novo Mundo. Era necessário, adaptar as teorias cristãs às demandas americanas. Com especificidades particulares, a América, foi palco de instabilidades no que diz respeito aos instrumentos de evangelização. Desse modo, a análise dos textos produzidos por Sahagún deverão vir acompanhadas das reflexões a respeito dos interesses do franciscano na produção desses documentos. Logo, ao analisar a obra produzida por Sahagún deve-se levar em conta que grande parte dos textos, que foram produzidos no período colonial americano, participa de uma dupla condição documental e narrativa, bem como uma dupla utilidade descritiva que diz respeito à sua circulação, recepção, usos e expectativas. Analisar o discurso de Sahagún, como um franciscano, coloca a circulação não apenas nas fronteiras dos discursos em si, mas também pelas interseções entre a oralidade e a escrita, entre o náhuatl, o espanhol e o latim. As múltiplas transformações percebidas, nesse momento, são resultados dos processos de adaptação às demandas americanas, cuja ordem franciscana estaria imersa na produção de seus discursos, catecismos e doutrinários cristãos. Ser franciscano na América significou a responsabilidade de extirpar as heresias, através do desmantelamento das chamadas idolatrias, como destaca Ronald Raminelli na seguinte passagem: Se conquistar o imaginário indígena através da imposição dos preceitos Católicos era o objetivo dos franciscanos, é necessário problematizarmos também a distinção entre esse tipo de discurso e a vivência ou experiência dele. Desta forma, podemos perceber que o discurso de

702

evangelização é compreendido pelos missionários dentro de uma característica própria, enquanto a vivência escapa frequentemente aos quadros regulares, não atingindo, assim, um denominador comum. A adaptação percebida variava de ordem para ordem, de local para local, de religioso para religioso. Por isso, a construção dos textos de Sahagún deverá passar por essa reflexão mais adiante. Antes disso, cabe problematizarmos o sentido da evangelização como um discurso. As obras de cunho evangelizador devem ser compreendidas como discursos que possuem, de uma forma geral, os seguintes trajetos: a questão universalista, o aspecto doutrinário, o discurso combativo, além da visão de paraíso americano. A “descoberta” do Novo Mundo e a possibilidade de conquistar novos fiéis fortaleceu a prática missionária católica, em um contexto de perda significativa de fiéis, graças à Reforma Protestante na Europa9. O aspecto universalista tem como objetivo a expansão do cristianismo católico. Segundo os relatos bíblicos, Jesus Cristo teria ordenado aos seus discípulos “Ide e pregai o evangelho! ” (Marcos 16:15) e, assim, os missionários teriam essa responsabilidade na conquista de novos territórios. Não poderia haver fronteiras ou limites para evangelização, assim, considerar as especificidades culturais não estava nos planos e ações das ordens religiosas. O aspecto doutrinário insere-se nos mecanismos para atingir a universalização cristãcatólica. Era necessário pregar com força, com fé e principalmente em voz alta. Os sermões, tanto na América Espanhola, quanto na América Portuguesa devem ser entendidos para além de seus textos (enquanto fontes históricas), levando-se em consideração a impostação da voz, os gestos bem como as entonações narrativas. Era necessário desarticular tudo aquilo que fosse proveniente das culturas nativas e inaugurar uma nova era.10 Assim, o tom guerreiro e combativo aparecia também com frequência. A desarticulação das fronteiras culturais ameríndias deveria ser dada a partir da formulação de epístolas, sermões e todo o tipo de material didático, contudo, se fosse necessária uma guerra contra a idolatria, esta seria considerada justa. É importante ressaltarmos, além disso, o aparecimento de descrições paradisíacas acerca da América. O ambiente favorável às práticas pecaminosas e as tentações demoníacas eram encaradas como desafios constantes dos evangelizadores. Assim, as missões eram instrumentos que garantiriam a finalidade do projeto colonizador11. A crença de que as palavras seriam capazes de evangelizar fortaleceram a produção de obras religiosas. Os vocábulos deveriam transmitir quase que automaticamente as mensagens religiosas e seus ensinamentos. Por isso, evangelização e doutrinação devem ser analisados como processos intrínsecos, como percebemos nas seguintes palavras do franciscano Jaboatão em meados de 1500 no Brasil.

703

“Cuidar em se aplicar à doutrina dos índios, sair à pregação e doutrina dos índios, zelar pela salvação daqueles povos gentios, trazer os gentios ao conhecimento de nossa santíssima fé católica, instruir em a santa fé aos índios, instruir nos rudimentos da fé, intrometer no rebanho da igreja, converter o gentio.”12

O aprendizado da língua e o conhecimento das articulações sociais, culturais e econômicas seriam necessários, segundo a concepção de Sahagún, para efetivar o processo de evangelização. Segundo ele, o simples processo de substituições de elementos culturais traria a proliferação de interpretações equivocadas sobre o cristianismo gerando, assim, a chamada idolatria. A gradativa troca de experiências culturais, percebidas a partir do choque entre indígenas e espanhóis, foi analisada por Serge Gruzinski nas suas diversas obras. Para o autor, o choque cultural não deve ser analisado por um único viés, como se o estranhamento somente tivesse reflexos para os indígenas que seriam aculturados pelos europeus. Assim, o processo de aculturação13pressupõe as iniciativas de trocas culturais entre os nativos e europeus, à medida que as dificuldades de adaptação e remodelação afligiam não somente as populações indígenas, mas também os espanhóis que se depararam com modos de viver completamente distintos com o que estavam acostumados na Europa. Os europeus possuíam, portanto, objetivos de imposição da cultura europeia para os nativos, contudo este choque foi sentido por ambos os lados. Esperava-se um transplante das instituições e valores europeus, o que Gruzinski denominou de projeto de ocidentalização do imaginário14, porém o que a colonização produziu foi uma mescla de elementos culturais précolombianos aliados às práticas espanholas. “Isso não deve, contudo, nos levar à dedução de que as reações indígenas foram negativas. De um lado, os índios simplesmente não tinham escolha quanto à atitude adequada, mas, sobretudo, sua concepção do divino não era regida pelo princípio de um monoteísmo exclusivo. Assim, em geral limitava-se a acrescentar os ícones cristãos a suas próprias efígies, pintando um crucificado no meio de suas divindades ou, mais prudentemente ocultando as antigas imagens. (...) Era preciso não somente que os índios pudessem decifrar as imagens, mas que elas se tornassem, para eles, portadores de uma parcela de divindade”

15

Podemos perceber que o europeu esperava que o indígena não só compreendesse o significado daquela representação, como também tivesse a experiência do imaginário cristão,

704

por isso as consequências deste processo tornavam-se palco de disputas de diferentes pensamentos entre os religiosos, onde Sahagún é localizado. Sahagún compreendera que a doutrina cristã evangelizadora, pensada no México, dependeria de uma política linguística que fosse capaz de se adaptar aos modelos presentes naquela região. Seria necessário articular equivalências e conhecimentos mútuos dentro de um sistema complexo de inúmeras interrogações acerca dos métodos mais propícios ou eficazes de evangelização. A passagem do náhuatl tradicional e pictórico, presente nas civilizações astecas anteriormente a chegada de espanhóis, para o náhuatl letrado, introduzido pelos espanhóis nas chamadas escolas evangelizadoras, como no caso do Colégio de Santa Cruz de Tlatelolco, deverá ser percebida como um processo de ressignificação entre franciscanos e a nobreza indígena letrada que se ocupavam no aprendizado do passado e dos saberes astecas através do aprendizado do castelhano, do latim e, claro do náhuatl. A implementação das estruturas e organismos colonias foram efetuadas a partir do viés europeu e ressignificado às demandas americanas. Nesse sentido, há de se considerar o papel da violência semiótica, através da manipulação de símbolos e adaptações de práticas para compreendermos os discursos produzidos por Sahagún e o desejo de extirpação de idolatrias, resultado das adaptações tanto por parte de espanhóis quanto pelos indígenas no processo de formação da sociedade mexicana.

NOTAS: 1

Mestranda em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHIS- UFRJ); Bolsista FAPERJ. Trabalho sob orientação da Profa. Dra. Juliana Beatriz Almeida de Souza. E-mail: [email protected] 2 Segundo Sahagún, o “Historia General de las cosas de la Nueva España” possuía o objetivo de esclarecer quais eram as possíveis condutas que poderiam confundir os religiosos e esconder as práticas pagãs que, sem um conhecimento prévio, mascarariam a adoração aos ídolos astecas. 3 LEÓN-PORTILLA, Miguel. De la oralidad y los códices a la Historia General; transvase y estructuración de los textos alegados por Fray Bernardino de Sahagún. Estúdios de Cultura Náhuatl. México, p.65-141, 1999. 4 HOONAERT, Eduardo. História da Igreja no Brasil – primeira época. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1977. 5 Segundo, Serge Gruzinski o conceito de “cristianização equivocada” é pautada na visão eurocêntrica que esperava uma completa transposição dos valores europeus e a destruição de toda organização pré-hispânica. Nesse sentido, a acumulação das imagens católicas e ídolos astecas nos mesmos espaços e os sincretismos seriam, para os espanhóis, exemplos de práticas equivocadas sobre o cristianismo, o que gerava a idolatria, que, portanto, deveria

705

ser combatida. (GRUZINSKI, 2003). 6 SAHAGÚN, Bernardino. Historia General de las cosas de Nueva España- Manuscritos IMP/16, 2,22-23Biblioteca Nacional- Livro I, Prólogo. 7 Frei Antonio de Ciudad Rodrigo fez parte da comitiva dos doze primeiros franciscanos, conhecidos como os apóstolos do Novo Mundo, que desembarcam no México em 1524, incentivados por Hernán Cortés. Mais tarde viria se tornar chefe da Intendência dos franciscanos, no qual Bernardino de Sahagún possuía estreitas relações. 8 Antonio Valeriano, nobre letrado indígena, estudou e foi professor no Colégio de Santa Cruz de Tlatelolco dirigido pelos franciscanos. Segundo o próprio Sahagún, Valeriano seria considerado um dos seus alunos mais sábios. Contribuiu diretamente para o fornecimento das informações para a produção do “Historia General de las cosas de la Nueva Espanã”, demostrando, assim a importância dada por Sahagún às negociações com parte dos setores da nobreza indígena. Autor do relato intitulado Nican Mopohua, o primeiro registro em língua indígena acerca da aparição de Nossa Senhora de Guadalupe foi marco dos anos iniciais do culto mariano do México, produzido aproximadamente entre 1552 e 1560. 9 ALBERRO, Solange. La aculturación de los españoles em la América colonial. In: BERNARD, Carmen (org.) Descubrimiento, conquista y colononización a quinientos años. México: Fondo de Cultura Económica. p.249-265. 10 Idem 40. 11 HORNAERT, Eduardo. História da Igreja no Brasil: primeira época, Período Colonial – Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. 12 WILLEKE, V. Missões Franciscanas no Brasil. Petropolis, Vozes, 1974. 13 WACHTEL, Nathan. A aculturação. In: LE GOFF, P.&NORA, P. (org.). História novos problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976.p.113-119 14 GRUZINSKI, Serge. A colonização do imaginário: sociedades indígenas e ocidentalização no México espanhol. Séculos XVI/XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 15 VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos Pecados: Moral, Sexualidade e Inquisição no Brasil. Nova Fronteira, 1997, p. 8

706

Cultura e Emancipação em Amilcar Cabral Culture and Emancipation in Amilcar Cabral

Danilo Ferreira da Fonseca1 Doutor em História Social Professor Adjunto da Unioeste

Resumo: O comprometimento de Amilcar Cabral com a emancipação da África e o seu refinamento intelectual são brilhantes e necessários em tempos de barbárie como o nosso. O pensador de Guiné-Bissau e o seu denso pensamento político, nos ajuda a refletir acerca do modo que o mundo contemporâneo e a África se constituíram e a necessidade de se construir uma sociedade baseada no multiculturalismo, aproximando dialeticamente as especificidades do local com questões da universalidade humana. Desta forma, a presente comunicação visa refletir acerca da relação entre Cultura e Política na obra de Amilcar Cabral.

Palavras-chave: Amilcar Cabral; Cultura; Emancipação.

Abstract: The commitment of Amilcar Cabral with the emancipation of Africa and its intellectual refinement are bright and needed in times of barbarism like ours. The GuineaBissau thinker and its dense political thinking helps us to reflect on the way the contemporary world and Africa constituted and the need to build a society based on multiculturalism, dialectically approaching the specifics of the site with questions of human universality. Thus, this Communication aims to reflect on the relationship between Culture and Politics in the work of Amilcar Cabral.

Keys-words: Amilcar Cabral; Culture; Emancipation.

707

A elaboração teórica de Amilcar Cabral se constitui enquanto um rico caminho para problematizarmos as relações entre a cultura e a política, ainda mais em um contexto globalizado, em que povos de diferentes regiões periféricas do mundo possuem os seus modos de vida marginalizados e até criminalizados. As imposições ocidentais, que são sustentadas por um imperialismo brutal, buscaram impor modos de vida hegemônicos atrelados à valores e práticas das sociedades europeias (ocidentais), de modo a desumanizar a própria pluralidade do homem. Em tempos que enfrentamos uma gigantesca crise humanitária atrelada às migrações em massa do continente africano e do Oriente Médio para a Europa, Amilcar Cabral se faz um intelectual necessário, ainda mais quando os governos europeus fecham às suas portas para milhares de refugiados que arriscaram suas próprias vidas ao cruzar o mar Mediterrâneo e chegar ao continente europeu com o destino incerto, e muitos fecham os olhos para as imensas perdas humanitárias sofridas no decorrer de tal percurso. O pensamento de Cabral nos permite enxergar o mundo de uma maneira mais ampla, refletindo como o mundo deve realizar uma colaboração mais produtiva, garantindo a liberdade e o direito de todos os homens ser o que eles são. Tal colaboração só é possível a partir de uma prática de luta emancipatória que permita a construção de pontes entre diferentes sociedades para serem realizadas trocas culturais de modo positivo, ampliando a própria humanidade. Desta forma, o presente texto visa iniciar uma reflexão acerca dos pensamentos de Amilcar Cabral, valorizando o modo que este brilhante intelectual pensa as relações dialéticas entre a cultura e a emancipação de um determinado povo, e como esta relação se constrói com toda a humanidade. Para realizarmos tal entendimento é fundamental analisarmos conjuntamente os caminhos traçados por Amilcar Cabral em sua trajetória de vida, vendo como seu pensamento surge de modo orgânico da sua experiência de vida, valorizando desde a sua formação escolar, como a sua inserção na política africana e a subsequente luta contra o colonialismo português.

708

Amical Cabral e a emancipação de Guiné Bissau e Cabo Verde

Amilcar Lopes Cabral nasceu na cidade de Bafatá localizada em Guiné Bissau no ano 1924, quando seu país, seus familiares, amigos e compatriotas estavam sob o jugo do colonialismo português. A obra de sua vida, tanto no âmbito prático, como no reflexivo (elementos que são indissociáveis para Amilcar Cabral) foi pela busca da libertação de seu povo. Apesar de estar muitas vezes associado à territorialidade de Guiné Bissau, Cabral teve em sua infância experiências decisivas em Cabo Verde, para onde se mudou quando tinha apenas oito anos. Nos anos de 1940, durante a sua adolescência, enfrentou com a sua família graves problemas decorrentes de uma severa seca, que acabou vitimando mais de cinquenta mil cabo-verdianos.2 Seus estudos e sua inteligência impar renderam a oportunidade de ir até Lisboa cursar uma graduação, trajetória relativamente comum entre alguns jovens africanos não só de Guiné Bissau e Cabo Verde, mas também de toda a África. Durante a colonização promovida pela Europa na África, jovens africanos de múltiplas regiões iam para as suas respectivas metrópoles para estudar e, a partir de tal conhecimento, voltavam para a sua terra natal com o intuito de utilizar o que aprenderam em sua formação para ajudar no desenvolvimento da Colônia. Este processo, na grande maioria dos casos, ao invés de ajudar efetivamente no desenvolvimento das territorialidades africanas, acabava aumentando e facilitando a dominação ocidental na África, já que tais jovens voltavam “mentalmente colonizados” (no termo de Frantz Fanon). Ao se formarem na Europa, os africanos graduados na Europa retornavam para a África pregando um desenvolvimento africano no âmbito econômico, político e social aos moldes da experiência europeia, tornando a sociedade ocidental um modelo paradigmático o qual a África deveria possuir como meta, sendo que para tal os africanos deveriam abandonar seus hábitos, costumes e tradições e se comportarem cada vez mais como europeus. É evidente que esta colonização no âmbito mental foi um dos fatores determinantes para a estabilidade do domínio europeu, inclusive mesmo após a independência de alguns países africanos que passaram por uma descolonização conduzida pela Europa e pela sua elite

709

local europeizada, o que manteve muitos países africanos submissos à antiga metrópole mesmo com a sua independência. Assim como tais jovens, Amilcar Cabral foi para a Europa buscar soluções para o desenvolvimento de seu povo e sua região, e não foi por acaso que decidiu estudar agronomia no Instituto Superior de Agronomia de Lisboa no ano de 1945, já que frente aos problemas atrelados à seca e a fome enfrentados pelo próprio jovem Amilcar o impulsionaram a buscar soluções que garantissem a segurança alimentar e o acesso à comida do povo guineense e cabo-verdiano (mais para frente em sua trajetória, Cabral percebe que o acesso à comida é mais uma questão política do que técnica). Porém, Amilcar Cabral não foi mais um africano que se deixou colonizar mentalmente na Europa, pois percebeu que a fome de seu povo se dava devido à própria dominação europeia, e a solução para tais questões não estaria em seguir o modelo proposto pela Europa, que condenaria a África a uma eterna servidão, mas sim buscar uma emancipação do continente africano. Mais do que estudar agronomia em Lisboa, Amilcar Cabral entrou em contato com diversos grupos políticos que colaboraram significativamente com a sua formação política. Cabral participou de grupos antifascistas que questionavam a ditadura de Salazar em Portugal e, ainda mais importante, conheceu outros jovens africanos que também buscavam uma libertação de suas territorialidades, como é o caso dos angolanos Mário de Andrade e Agostinho Neto.3 Porém, um contato determinante na formação política de Amilcar Cabral foi com o movimento da negritude de Senghor4 que trazia a necessidade de uma reafirmação cultural dos povos africanos frente à Europa. Assim, ao contrário de muitos jovens africanos que voltavam da Europa querendo (e até tentando) ser europeus e subsumir seu povo, Cabral volta de Lisboa buscando uma reafirmação cultural guineense e africana na busca de emancipar seu povo. Ao retornar à Guiné Bissau em 1952 como funcionário do Ministério do Ultramar com o cargo de adjunto dos Serviços Agrícolas e Florestais da Guiné, Amilcar Cabral mergulha na realidade social do povo guineense, já que em sua nova função conheceu o seu país de “porta em porta”, já que em seu cargo precisava realizar uma série de levantamentos detalhados, principalmente devido ao Recenseamento Agrícola de 1953.5

710

Frente a tal conhecimento e capacidade de articulação, na busca de uma reafirmação cultural capaz de questionar os domínios coloniais, Amilcar Cabral formulou a primeira Associação Recreativa, Esportiva e Cultural da Guiné. Mais do que um espaço voltado para o lazer, esta Associação se tornou um espaço voltado também para o debate político por um viés cultural. Sua força política era tamanha que o poder Colonial passa a perseguir Amilcar Cabral, o forçando a se autoexilar em Angola. Aqui é interessante pensarmos na trajetória de Cabral que antes de participar ou fundar um grupo ou partido com fins políticos diretos, ele busca uma ação política por um viés mais cultural, o que, conforme veremos, vai ser marcante em sua trajetória. A sua experiência durante o exílio em Angola colaborou de modo decisivo para a sua percepção acerca da luta contra o colonialismo. Em território angolano, Amilcar Cabral entra em contato com o Movimento Popular pela Libertação de Angola (MPLA), no qual aprende táticas de organização política partidária e também da luta armada enquanto uma forma de libertação. É a partir de tal processo que Amilcar Cabral funda junto de seu meio irmão Luis Cabral em 1956 o Partido Africano para a Libertação de Guiné Bissau e Cabo Verde (PAIGC). Na sua fundação já podemos ver elementos tanto locais, como também panafricanos, característica do pensamento de Amilcar Cabral. A organicidade do movimento liderado por Amilcar Cabral e a sua interação com os anseios de parte da população de GuinéBissau e Cabo Verde fica evidente no processo grevista dos trabalhadores do Porto de Pidjiguiti em 1959, já que o movimento teve uma participação fundamental na sua organização pelo PAIGC. Todavia, tal processo grevista que possuía um caráter de uma manifestação pacífica acaba sendo duramente reprimido pelas forças policiais coloniais portuguesas, resultando em um episódio bárbaro em que a polícia abriu fogo contra os manifestantes, matando 50 grevistas.6 A partir de tal processo, Amilcar Cabral e o PAIGC começam a abrir mão da tática de resistência pacífica (conduzida na Índia por Gandhi contra o colonialismo inglês) e percebem que a libertação de Guiné Bissau e Cabo Verde só poderia vir a partir de uma ampla articulação de uma luta armada. A partir da luta de libertação de Guiné Bissau e Cabo Verde, Amilcar Cabral refina cada vez mais as suas percepções teóricas e práticas, realizando um 711

caminho dialético entre a sua própria experiência no conflito armado e em seus escritos e pensamentos. A Guerra de Libertação de Guiné-Bissau e Cabo Verde contra as forças coloniais portuguesas dura entre 1963 e 1973, em um processo que vitimiza milhares de pessoas, inclusive o próprio Amical Cabral que é morto meses antes da proclamação de independência do país. Tragicamente, Amilcar Cabral foi assassinado por membros de seu próprio partido (PAICG), dada divergências internas que a organização possuía próximo de se tornar independente.

Cultura e Emancipação em Amical Cabral

Para refletirmos acerca das percepções teóricas de Amilcar Cabral, principalmente no que tange o lugar da cultura na sociedade e a forma que podemos entender a emancipação de um povo, precisamos compreender primeiro o modo que ele compreendia as relações historicamente postas entre a África e o continente europeu. De modo mais específico, e mais diretamente atrelado à própria experiência de Cabral, precisamos entender como se constituíam as relações entre Portugal e Guiné Bissau e Cabo Verde. Em sua obra “A arma da teoria”, Cabral nos deixa claro a sua percepção acerca do que era o colonialismo, questionando a postura colonialista de Portugal no território africano, conforme podemos ver no trecho abaixo:

Perguntar-nos-ão se o colonialismo português não teve uma ação positiva na África. A justiça é sempre relativa. Para os africanos, que durante cinco séculos se opuseram à dominação colonial portuguesa, o colonialismo português é o inferno; e onde reina o mal, não há lugar para o bem”7

No trecho acima, Amilcar Cabral nos aponta que a concepção de que o colonialismo supostamente poderia trazer algum benefício ao continente africano não possui qualquer base para os povos africanos. Tal concepção de que existiria um lado positivo no colonialismo, comum à temporalidade de Cabral, entendia que o papel da Europa na África era de desenvolver e até civilizar o continente e que os abusos cometidos pelos europeus seriam poucos perto dos benefícios que o colonialismo traria. Amilcar Cabral se mostra categoricamente contra tal postura, já que “para os africanos [...] o colonialismo português é

712

o inferno”, já que “o colonialismo português explorou o nosso povo da maneira mais bárbara e mais criminosa”.8 A dureza de seus termos encontra base sólida na concretude da barbárie imposta pelo colonialismo português. A falta de liberdade não só frente ao presente, mas também ao futuro e o passado, assim como a inexistência de igualdade frente ao colonizador português – o que fazia o africano ser entendida como um cidadão de segunda categoria – faz coro aos termos de Cabral, e demonstram um cotidiano infernal submetido à uma dominação violenta e impositiva. Porém, mesmo com a falta de igualdade entre portugueses e africanos, Cabral não considerava os europeus como inimigos (ao contrário de Frantz Fanon 9), já que realizava uma cisão entre os portugueses e o Estado português, conforme podemos observar no trecho abaixo: Mas nós nunca confundimos o "colonialismo português" com o "povo de Portugal", e temos feito tudo, na medida das nossas possibilidades, para preservar, apesar dos crimes cometidos pelos colonialistas portugueses, as possibilidades de uma cooperação eficaz com o povo de Portugal, numa base de independência, de igualdade de direitos e de reciprocidade de vantagens seja para o progresso da nossa terra, seja para o progresso do povo português. [...] O povo português está submetido há cerca de meio século a um regime que, pelas suas características, não pode ser deixado de ser chamado fascista. [...] A nossa luta é contra o colonialismo português. Nós somos povos africanos, ou um povo africano, lutando contra o colonialismo português, contra a dominação colonial portuguesa, mas não deixamos de ver a ligação que existe entre a luta antifascista e a luta anticolonialista.10

O trecho citado nos indica que para Amilcar Cabral existe uma aproximação entre o povo português e o povo africano, já que ambos lutam contra formas de dominações perversas que flertam com a barbárie, pois enquanto os povos africanos lutam contra o colonialismo, o povo português luta contra o fascismo de Salazar, por isso, existe uma luta entre o antifascismo e o anticolonialismo. Em termos mais diretos, o antifascismo em Portugal colaborava com a luta anticolonial das colônias portuguesas, já que o enfraquecimento do Estado português era necessariamente o enfraquecimento do poder colonial ultramar – não é por menos que a Revolução dos Cravos foi um fator importante para dar fim ao colonialismo português. Para Cabral, as colaborações entre portugueses e africanos poderiam ser muito produtiva para ambos, caso se fundassem “numa base de independência, de igualdade de direitos e de reciprocidade de vantagens”. Desta forma, a luta não é contra os portugueses, ou

713

uma necessidade imperativa de romper ligações com Portugal e o povo português, o que é evidente nas próprias palavras de Cabral:

"Como sabe, nós temos uma longa caminhada juntamente com o povo português. Não foi decidido por nós, não foi decidido pelo povo português, foi decidido pelas circunstâncias históricas do tempo da Europa das Descobertas e pela classe de "antanho", como se diz em português antigo; mas é verdade, é isso! Há essa realidade concreta! Eu estou aqui falando português, como qualquer outro português, e infelizmente melhor do que centenas de milhares de portugueses que o Estado português tem deixado na ignorância e na miséria. [...] Nós marchamos juntos e, além disso, no nosso povo, seja em Cabo Verde seja na Guiné, existe toda uma ligação de sangue, não só de história, mas também de sangue, e fundamentalmente de cultura, como o povo de Portugal. [...] Essa nossa cultura também está influenciada pela cultura portuguesa e nós estamos prontos a aceitar todo o aspecto positivo da cultura dos outros.11

No trecho acima, podemos observar que Amilcar Cabral realiza uma aproximação entre os africanos e os portugueses, colocando-os como dois povos que estão intimamente interligados dado uma série de circunstâncias históricas. As proximidades entre tais povos se dão em múltiplos níveis, conforme Cabral quer salientar, sendo um dos pontos destacados a questão linguística, ou seja, a fala da língua portuguesa. A adoção de uma língua nacional para os países africanos foi por diversas vezes debatida, já que a única língua que acabou se tornando comum em algumas territorialidades africanas foi a língua do colonizador, ou seja, uma língua de matriz estrangeira. Isto fez com que alguns estudiosos e nacionalistas africanos buscassem negar essa influência europeia e procurar outra língua nacional de matriz africana, porém, em muitos casos, diversas línguas eram faladas no território africano, tornando necessária a adoção da língua do colonizador como uma língua nacional. Para Cabral, essa questão da influência linguística estrangeira do português pode e deve ser um fator de união não apenas nacional, mas também transnacional, levando à união do povo português com os guineenses e cabo verdianos, assim como com os povos que falam português, já que seu intuito é pensar a humanidade sempre de uma maneira mais ampla. Para Cabral, não só a língua, mas também toda a cultura deve ser pensada enquanto um meio de trocas e aproximações dos povos, em que os “aspectos positivos” das diferentes culturas devem influenciar umas às outros de modo a colaborar positivamente com toda a humanidade.

714

Essa integração entre povos se constituiria principalmente na unidade existe de problemas sociais causados pelos setores dominantes das sociedades e o modo que este conduz o Estado. Amical Cabral entende que questões como a falta de acesso à educação (que resulta na ignorância do povo), ou a miséria, são problemas recorrentes tanto na África como na Europa, que devem ser igualmente combatidos. Neste sentido, uma luta emancipatória se tornaria não só uma luta dos povos do continente africano, mas também de toda a humanidade. É neste cenário que Amilcar Cabral deslumbra a emancipação do povo de Guiné Bissau e Cabo Verde, ou seja, uma emancipação que caminhe junto com toda a África e com o restante do mundo. Uma emancipação em que todos os povos seriam independentes e teriam respeitado, nas palavras de Amilcar Cabral, “o direito de ser gente, nós mesmos, de sermos homens, parte da humanidade, (...), num quadro humano muito mais largo e talvez muito mais eficaz do ponto de vista da História”.12

Doutor em História social pela PUC-SP com a tese: “Etnicidade e Luta de classes na África contemporânea: África do sul (1948 – 1994) e Ruanda (19959 – 1994)” e Professor Adjunto do colegiado de História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste). Email para contato: [email protected] 2 VILLEN, Patricia. A crítica de Amílcar Cabral ao colonialismo: Entre a harmonia e a contradição. São Paulo: Expressão Popular, 2013. 3 Agostinho Neto foi presidente do Movimento Popular pela Libertação de Angola (MPLA) e primeiro presidente de Angola entre 1973 – 1979). Mario Coelho Pinto de Andrade foi fundador e primeiro presidente do MPLA. 4 Leopold Senghor foi um fundamental ativista político senegalês, sendo o primeiro presidente de Senegal e um dos formuladores do movimento da Negritude junto de Aimé Césaire. A percepção da Negritude formulado por tais intelectuais visava principalmente a valorização da cultura negra na África. 5 VARELA, Bartolomeu. "A Educação, o Conhecimento e a Cultura na Práxis de Libertação Nacional de Amílcar Cabral." (2011). 6 VILLEN, Patricia. A crítica de Amílcar Cabral ao colonialismo: Entre a harmonia e a contradição. São Paulo: Expressão Popular, 2013. 7 CABRAL, Amílcar. A arma de teoria. Vol. 1. Seara Nova, 1976. 8 Trecho de entrevista concedida por Amilcar Cabral à Revista Anticolonialismo no dia 27 de outubro de 1971. 9 Dentro das reflexões de Frantz Fanon existia uma percepção de que o colonizador e o homem nativo colonizado eram figuras incongruentes, que não poderiam viver juntos e não existiria uma forma de atingir um meio termo para a conciliação entre ambos. Desta forma, um processo de descolonização do continente africano deveria passar necessariamente pela completa expulsão do europeu do território africano. 1

715

10

. CABRAL, Amilcar. Guiné-Bissau, nação africana forjada na luta. Lisboa: Editora Nova Aurora, 1974. 11 Trecho de entrevista concedida por Amilcar Cabral à Revista Anticolonialismo no dia 27 de outubro de 1971. 12 Trecho de entrevista concedida por Amilcar Cabral à Revista Anticolonialismo no dia 27 de outubro de 1971.

716

O Fazendeiro do Brazil: Páginas de um pensamento diretivo no renovado Sistema Colonial do Atlântico português do século XVIII DANNYLO DE AZEVEDO*

RESUMO Publicados em Lisboa, entre 1798 e 1806, os livros da coleção O Fazendeiro do Brazil, de autoria do frei Mariano Veloso (1742-1811), materializavam o desejo das autoridades coloniais de oferecer aos fazendeiros brasileiros os meios necessários para o aprimoramento técnico e diversificação de sua produção. Detentores de uma linguagem didática, estes livros técnicocientíficos, além de expressão de uma esfera cultural agitada pelo pensamento ilustrado, também podem ser concebidos como instrumentos de ingerência do Estado na realidade econômica do Brasil. PALAVRAS-CHAVE: livros técnico-científicos, O Fazendeiro do Brazil, frei Mariano Veloso.

ABSTRACT Published in Lisbon, between 1798 and 1806, the books of the collection O Fazendeiro do Brazil, by fr. Mariano Veloso (1742-1811), materialized the colonial authoritys’ desire to provide to brazilians farmers a device to technical improvement and diversification of their production. With a didactic language, theese technical and scientific books, beyond to be a cultural expression of the enlihgtenment, also can be considered an instrument of inteference of State in the economic reality of Brazil. KEYWORDS: technical and scientific books, O Fazendeiro do Brazil, Fr. Mariano Veloso.

Na virada do século XVIII para o XIX, José Veloso Xavier (1742-1811), mais conhecido pela posteridade como frei José Mariano da Conceição Veloso, engajou-se na publicação de diversos livros de teor prático. Da vasta lista de obras que resultaram direta ou indiretamente de seu trabalho, destaca-se a coleção de livros O Fazendeiro do Brazil. Publicados entre 1798 e 1806 em Lisboa, seus onze volumes, divididos em cinco tomos, tratam *

Aluno de mestrado do Programa de Pós-Graduação em História Econômica da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Título da pesquisa: O Fazendeiro do Brazil: Páginas de um pensamento diretivo no renovado Sistema Colonial do Atlântico português do século XVIII. Orientadores: Prof. Dr. Dante Luiz Martins Teixeira; e Prof. Dr. Rodrigo M. Ricupero. Agradecemos à CAPES o apoio financeiro concedido à nossa pesquisa. E-mail: [email protected].

717

das melhores formas, segundo critérios científicos e técnicos da época, de se produzir determinados gêneros agrícolas, alguns velhos conhecidos dos fazendeiros brasileiros, outros nem tanto. Ao longo de suas numerosas páginas foram abordadas questões referentes à produção da cana-de-açúcar, à pecuária, ao índigo (o mesmo que anil, substância corante de azul, extraída das folhas da anileira), ao urucu ou urucum (árvore de cuja semente se produz corantes vermelhos ou amarelos), ao cateiro (variedade de planta com espinhos habitada pela cochonilha), à cochonilha (variedade de inseto do qual se extrai um corante carmim), ao café, ao cacau, ao girofeiro (do francês girofle ou clou de girofle, cravo-da-índia), à moscadeira (árvore cujo fruto é a moscada ou noz-moscada) e ao algodão. Cada volume tem início com seu respectivo prefácio, onde o autor apresenta ao leitor as expectativas que justificavam a obra. Para frei Mariano Veloso, seus livros:

devem ser como Cartilhas, ou Manuaes, que cada Fazendeiro respectivo deve ter continuamente nas mãos dia e noute, meditando, e conferindo as suas antigas, e desnaturalisadas práticas com as novas, e illuminadas, como deduzidas de principios scientificos, e abonadas por experiecias repetidas, que eles propõem, para poderem desbastardar, e legitimar os seus generos, de sorte que hajão, por consequencia, de poder concorrer nos mercados da Europa, a par do dos estranhos. Isto quer e manda, V. A. R., e para isto lhes administra os seus subsidios necessarios, de que até agora os tinha privado a inercia. Sem livros não há instrucção. 1

Basicamente, o autor esperava ou acreditava que seus livros funcionariam como uma fonte de conhecimentos úteis aos agricultores do Brasil. A obra deveria oferecer orientações técnicas para que o produtor, além de conhecê-las, aplicasse suas sugestões, os ditos “princípios científicos”, em suas práticas rotineiras de produção. A comparação dos livros com “cartilhas” ou “manuais”, sem os quais não haveria “instrução”, destaca a função pedagógica da coleção, que deveria suscitar no leitor o interesse, a reflexão, a dedicação, a inquietude, pelo aperfeiçoamento de suas práticas, na maior parte das vezes “desnaturalizadas”. Com efeito, o baixo nível técnico da agricultura desenvolvida no Brasil ao longo de seu passado colonial, além de ter suscitado a preocupação de alguns coevos, não é um fato ignorado pelos pesquisadores que, em nossos dias, se debruçam sobre o período. Desse modo, o cenário reconstruído por eles é, geralmente, desanimador. Caio Prado Júnior, por exemplo, ao tratar do intervalo de tempo que classificou como o apogeu da colônia, 1770 a 1808, não hesita em observar que, apesar do acentuado fortalecimento das atividades agrícolas, “no terreno do aperfeiçoamento técnico, o progresso da agricultura brasileira é naquele período praticamente nulo.”. 2 Este é, em suma, o quadro geral de uma agricultura tecnicamente estagnada, avessa a novidades e que utilizava com mãos pródigas os recursos naturais da colônia, obedecendo,

718

sobremaneira, aos desígnios do lucro fácil e imediato. Todavia, no que diz respeito as possibilidades de uma pesquisa historiográfica cujo objeto de análise seja o Fazendeiro do Brazil, tal visão, ao nosso ver correta, não deve nos limitar tão somente à verificação dos resultados provavelmente discretos de obras destinadas ao adiantamento da agricultura colonial. Semelhante conclusão, apesar de não corresponder a uma inverdade, está muito longe de esgotar a problemática dos livros técnicos destinados aos fazendeiros brasileiros. A existência humana é marcada pela indelével diversidade de esferas que orienta e, até certo ponto, determina sua sorte. O reconhecimento dessa variedade é imprescindível para adensar nossa percepção sobre os fenômenos e a atmosfera de outras épocas. Há sempre algo mais a dizer. Por isso, é preciso evidenciar de que forma a obra técnico-científica do frei Mariano Veloso mediou, conciliou, interesses políticos, econômicos, sociais, culturais, entre outros. A renovação das tendências teórico-metodológicas apresentadas nas últimas décadas pelas áreas da história das ciências e das técnicas tem oferecido, grosso modo, uma abertura interessante e necessária para o estudo de objetos que, num primeiro momento, pertenceriam única e exclusivamente ao seu campo de interesse. 3 A construção de uma história social das ciências lança luz sobre uma série de práticas que, mediadas tanto por interesses propriamente científicos quanto por outras demandas sociais, colaboram ativamente para a construção do conhecimento científico. 4 Desta forma, a ciência deixa de possuir um status epistemológico superior ou autônomo em relação a outros elementos constitutivos da sociedade, o que nos permite inclusive observar as particularidades que cada localidade lhe imprime. Neste sentido, como defende Silvia Fernanda de Mendonça Figuerôa, devemos:

resistir à divisão entre a estrutura social da atividade científica, de um lado, e a estrutura conceitual e lógica do conhecimento científico, de outro. Em outras palavras, tratar-se-ia de fazer uma ecologia da ciência, isto é, estudar e conceber a ciência em suas relações com o meio ambiente no qual nasce, cresce, se desenvolve e morre, pois as proposições científicas não são estáveis em significação, mas são reinterpretadas à medida que se movem de um contexto social para o outro. 5

Esse modelo interpretativo permite, entre outras coisas, conceber a condição colonial do Brasil como um contexto social que propiciou formas específicas de produção e circulação de conhecimentos. 6 Uma relação pertinente que pode ser estabelecida para a compreensão do significado histórico dos livros práticos diz respeito ao enlace entre a ciência, a técnica e a política econômica no império ultramarino português da virada do século XVIII para o XIX. Em uma correspondência de 17 de junho de 1783, cujo interlocutor era o então secretário de estado da Marinha e dos Domínios Ultramarinos Martinho de Melo e Castro

719

(1716-1795), D. Luís de Vasconcelos e Sousa (1740-1807), vice-rei do Brasil entre 1779 e 1790, esclarece as circunstâncias dos trabalhos de história natural feitos na colônia.

7

Na

ocasião, apresenta frei Mariano Veloso como o grande responsável pelo envio de plantas para Portugal, além de elogiar a sua capacidade de descrição e desenho. 8 É assim, como naturalista envolvido no desenvolvimento de viagens filosóficas pelos sertões do Brasil e no posterior envio de espécies para a metrópole, que os trabalhos do frei adquiriram notoriedade e, mais ainda, apoio do Estado. Ao longo do século XVIII, as viagens filosóficas, ou melhor, a produção intelectual resultante de suas atividades passou a contribuir para a implementação de medidas políticoeconômicas. Além de alimentar a curiosidade, o inventário da natureza colonial começou a ser encarado como a oportunidade de se produzir uma descrição econômica dos recursos naturais do império português. 9 Em 1790, frei Mariano Veloso, a convite do então vice-rei cessante D. Luís de Vasconcelos e Sousa, desembarcou em Lisboa com a esperança de publicar a sua monumental Florae Fluminensis – livro que apresentava o resultado de quase dez anos de pesquisa, catalogação e desenho de espécies de plantas observadas, algumas coletadas, no interior do Rio de Janeiro e parte de São Paulo. 10 Uma vez estabelecido na metrópole, foi ainda na área da história natural que o frei desenvolveu seus trabalhos, nomeadamente no complexo do Palácio da Ajuda (Museu de História Natural, Jardim Botânico, Casa do Risco e laboratório de química). Não obstante, gradativamente, outra área passa a lhe chamar a atenção: a agricultura. 11 Concebida como um conhecimento aplicado da botânica, a agricultura, em finais do século XVIII, era amplamente valorizada por intelectuais que por toda a Europa se reuniam em torno de academias científicas e sociedades agrícolas. Na França deste período, como destaca Lorelai Kury, ganhou força a ideia de complementaridade entre civilização e natureza. Se a história natural, com seu enquadramento científico da realidade, despontava enquanto área do conhecimento capaz de promover o reconhecimento do mundo natural, à agricultura, enquanto um dos valores basilares da civilização, instrumento de intervenção na natureza, coube a tarefa de aplicar tais conhecimentos em prol do bem comum, promovendo, por exemplo, o desenvolvimento dos meios de subsistência da sociedade. Contribuindo, em última instância, para a construção de um conceito de natureza civilizada que estivesse em completa harmonia com as necessidades humanas. 12 As repercussões destas questões em Portugal não tardaram. Para Domingos Vandelli (1735-1816), naturalista paduano que residia em Portugal desde o período pombalino, e a quem coube, entre outros, o trabalho de orientação de uma parte das viagens filosóficas feitas pelos

720

rincões do império português, bem como a montagem do Jardim Botânico da Ajuda, os benefícios do incentivo às atividades de história natural – área que abrange a mineralogia, a botânica e a zoologia – eram múltiplos, especialmente para a agricultura:

A ciência da Agricultura consiste principalmente no conhecimento dos vegetais, da sua natureza, e do clima, e terreno em que nascem; na causa da fertilidade da terra, na influência do ar sobre os vegetais, e nas regras práticas necessárias para a boa cultura. O primeiro conhecimento adquiri-se com o estudo da Botânica, o segundo com experiências, e reflexões físicas, o terceiro e quarto com um Jardim Botânico, no qual é necessário cultivar os vegetais de todos os climas e terrenos. 13

A apropriação desses ideais de aplicação dos conhecimentos científicos a favor do desenvolvimento da sociedade extrapolou o nível da intelligentsia para encontrar defensores na esfera administrativa do Estado; o próprio trabalho de Domingos Vandelli, vale lembrar, encontrou guarida nesta defesa. Neste contexto, a ciência e a técnica eram apreciadas, sobretudo, por sua capacidade de promover o desenvolvimento material da sociedade. Dos estadistas portugueses influenciados por esta forma específica de percepção da realidade, destaca-se o ilustrado D. Rodrigo de Sousa Coutinho (1755-1812). Como secretário de estado da Marinha e Domínios Ultramarinos, ele cumpriu um importante papel na formulação de projetos direcionados ao vasto império colonial português, especialmente ao Brasil, nos quais o valor da agricultura foi largamente celebrado. São suas as famosas palavras que sentenciavam o seguinte:

Que artes pode o Brasil desejar por muitos séculos, quando as suas minas de oiro, diamantes, etc., as suas matas e arvoredos para madeiras de construção, as culturas já existentes e que muito podem aperfeiçoar-se, quais o açúcar, o cacau, o café, o índigo, o arroz, o linho-cânhamo, as carnes salgadas, etc., e as novas culturas de canela, do cravo da Índia, da noz moscada, da árvore do pão, etc., lhe prometem com a extensão da sua navegação muito superior ao que jamais poderiam esperar das manufacturas e artes, que muito mais em conta por uma política bem entendida podem tirar da metrópole. 14

Como bem destacou Luís Miguel Carolino, o programa político de D. Rodrigo de Sousa Coutinho valorizava especialmente o caráter aplicado das ciências com vistas ao desenvolvimento dos setores produtivos, de circulação e domínio do espaço.

15

O que se

manifestou em termos práticos na defesa da agricultura no Brasil, das manufaturas em Portugal, do comércio como intermediação entre metrópole e colônia e, consequentemente, da manutenção da complementaridade que, para o secretário, mantinha a coesão do império ultramarino português.

721

Foi, pois, no interior de uma política econômica de indução ao desenvolvimento da agricultura do Brasil, e patrocinado por ela, que a publicação de livros técnico-científicos tomou forma. Entre 1796 e 1798, frei Mariano Veloso passou a se dedicar à divulgação de técnicas agrícolas por meio da publicação de livros. Inicialmente, seus trabalhos foram impressos de forma fragmentada e simultânea em várias tipografias particulares de Lisboa – dentre elas: Antônio Rodrigues Galhardo, impressor da casa do Infantado; Procópio Ferreira da Silva, impressor da Santa Igreja Patriarcal; e a oficina Simão Thaddeo Ferreira. Compilador, tradutor e editor de livros, era com essas prerrogativas que frei Mariano Veloso se apresentava nos prelos lisboetas. Fortes indícios apontam para uma relação estreita entre as orientações políticoeconômicas de D. Rodrigo de Sousa Coutinho e a publicação de livros técnicos úteis ao agricultor brasileiro. Dos temas tratados pelos livros do Fazendeiro do Brazil, seis deles coincidem com a lista de gêneros levantada em sua supracitada reflexão sobre os domínios portugueses da América – quais sejam, o açúcar, o cacau, o café, o índigo, o cravo-da-índia e a noz-moscada. Sua influência, enquanto representante do Estado, na definição dos conteúdos a serem publicados em livros técnico-científicos provavelmente não parou por aí. Os desdobramentos dos trabalhos do frei Mariano Veloso o conduziram ao comando da Casa Literária do Arco do Cego que, entre 1799 e 1801, foi a responsável pela publicação de diversos títulos do gênero, inclusive do volume do Fazendeiro do Brazil dedicado à pecuária. Essa tipografia, uma das expressões do “programa científico” de D. Rodrigo de Sousa Coutinho,

16

tinha no Erário Régio – por meio da Secretaria de Estado da Marinha e Domínios Ultramarinos – a sua principal fonte de recursos financeiros. 17 A publicação de livros foi a materialização dos ajustes de diferentes demandas. Assim, é preciso encarar o centro gráfico editorial do Arco do Cego 18 enquanto um espaço institucional onde os interesses técnico-científicos, culturais, sociais, políticos e econômicos ao interagirem se ajustaram. Situação que, até certo ponto, repetiu-se nas outras tipografias que continuaram a receber as demandas do frei Mariano Veloso que, com seu esforço, construiu uma rede de colaboradores capaz de imprimir e publicar simultaneamente diversos títulos. A consideração desses ajustes, desses arranjos, é de crucial importância para o alicerçamento de uma história dos livros técnico-científicos em Portugal e Brasil da virada do século XVIII para o XIX, pois, como nas palavras de Miguel M. Faria, ela envolve “horizontes mais abrangentes da História Social, Econômica e Política do período”. 19 A interação entre economia, ciência e técnica ocorreu, entre outros níveis, no interior de uma política ilustrada de Estado cujo objetivo era induzir o desenvolvimento da agricultura do

722

Brasil. Neste contexto, os livros técnico-científicos possuíam a missão de promover tanto o aprimoramento técnico quanto a diversificação da produção agrícola colonial, divulgando métodos mais científicos e novos gêneros a serem explorados. Foi com estas intenções que frei Mariano Veloso promoveu a tradução e compilação de artigos, na maior parte provenientes de academias científicas e sociedades agrícolas europeias, que deram origem a publicações como as da coleção O Fazendeiro do Brazil, que conciliava aos textos o uso didático de imagens, tudo para facilitar a transmissão de informações. Como defende José Luís Cardoso, o pensamento econômico português de finais do século XVIII passava por um momento de mudanças significativas. Em instituições como a Academia Real das Ciências de Lisboa, ambiente largamente favorável aos influxos da Ilustração em Portugal, era crescente o sentimento de “antimercantilismo”.

20

Este estado de

espírito, longe de causar o abandono dos princípios mercantilistas na prática da economia política, foi suficiente, porém, para favorecer em Portugal certa permeabilidade a algumas componentes teóricas do liberalismo econômico. Neste sentido, os intelectuais e políticos sócios da academia esboçavam, por exemplo, uma ampla e heterogênea defesa de um novo papel para o Estado no governo da vida econômica: ao Estado caberia, entre outras coisas, promover a ação individual. É o que podemos observar nas palavras de Lourenço José dos Guimarães Moreira, sócio da academia que, em 1781, expressou o seguinte:

Não sei como entre nós se naturalizou o espírito da restrição e do constrangimento. Parece que todas as nossas providências económicas tinham até aqui por divisa estas palavras: obrigar e constranger. Os maus efeitos que daqui se têm seguido advertem que precisamos daquelas que tenham outra muito diferente. Dirigir, favorecer e, se necessário for, premiar, são quanto a mim as noções que devem ter parte em todos os nossos estatutos económicos, e que devem praticar os ministros encarregados de sua execução. 21

Em suma, o pensamento ilustrado, ao longo do século XVIII, colaborou para o desenvolvimento de renovadas formas de se conceber a economia, que, gradativamente, passou a ser encarada enquanto um conjunto de elementos cujo funcionamento dependeria essencialmente de mecanismos internos de regulação e equilíbrio. Nestes termos, sua legalidade lhe seria intrínseca. Por conseguinte, o bom andamento da esfera econômica dependeria principalmente do respeito à sua dinâmica interna, o que seria conquistado, entre outras formas, através de sua autonomia em relação ao universo da moral e da política. Apropriadas, sobretudo, de forma pragmática, as componentes teóricas do liberalismo econômico em Portugal e Brasil, ao promoverem formas renovadas de se conceber a esfera econômica, contribuíram paralelamente para formulação de novas formas de intervenção do Estado na vida material. Um

723

dos meios, idealizados pelos intelectuais ligados às políticas de Estado, para favorecer a iniciativa particular era o de oferecer, através da educação, as condições necessárias para o seu desenvolvimento.

22

Assim, publicações como livros técnico-científicos ganharam espaço.

Basicamente, a ideia era inculcar na cabeça do maior número de pessoas possível a pertinência da ciência para a prática do seu trabalho cotidiano. Em última instância, O Fazendeiro do Brazil pode ser considerado como uma das manifestações do reformismo ilustrado destinado aos domínios coloniais portugueses, que, em seus traços gerais, foi marcado pelo progressivo abandono da ortodoxia mercantilista em detrimento de uma espécie de “mercantilismo ilustrado”, como defende Fernando A. Novais. 23

Dessa maneira, torna-se compreensível o uso conjugado de leis e alvarás (de

cariz

mercantilista) e livros técnico-científicos (recurso de feição ilustrada) para o governo e orientação da vida econômica da colônia. O uso pragmático do conhecimento científico, dessa forma, adquire especificidade histórica, posto que inserido no interior do processo de formulação de um pensamento diretivo – aqui entendido como uma formulação mais próxima da realidade, oferecendo uma diretriz para a ação, isto é, instrução cuja finalidade é orientar a prática – que funcionava como mais um meio de ingerência do Estado na economia. Uma política ilustrada que investia na formação do fazendeiro brasileiro para que este tivesse plenas condições para tratar de seus interesses particulares, o que promoveria, em última instância, a prosperidade pública. Fazia-se, portanto, uma aposta na iniciativa particular. Contudo, sugerir aos fazendeiros brasileiros as melhores técnicas para o aperfeiçoamento de suas práticas produtivas não seria uma tarefa tão simples, pois as mudanças propostas pelo reformismo ilustrado, no que diz respeito ao aprimoramento da realidade produtiva colonial, chocavam-se com séculos de um uso imediatista, pródigo e, portanto, predatório dos recursos naturais do Brasil. A inércia dos agricultores, há séculos inseridos numa determinada lógica de exploração, foi, sem dúvidas, um dos maiores desafios enfrentados pelos livros do frei Mariano Veloso. E certamente colaborou para a sua discreta atuação no Brasil. Porém, se esses livros, enquanto instrumentos de intervenção do poder metropolitano na esfera material da colônia, não alcançaram o êxito esperado, o mesmo não pode ser dito da ampla política reformista que lhes deu sentido. O incentivo ao desenvolvimento da agricultura do Brasil colheu bons frutos, pelo menos no que diz respeito à diversificação da produção. É o que demonstra o significativo crescimento do movimento global das exportações no período que vai de 1796 a 1807. Como demonstra José Jobson A. Arruda, houve uma diversificação da produção agrícola neste período. A pauta de produtos exportados pela colônia saltou de 35, em meados do século XVIII, para 125 produtos no supracitado período.

724

24

Para o autor, graças à

diversificação da agricultura colonial, a metrópole se abastecia de matérias-primas essenciais para o desenvolvimento de suas manufaturas. Estas, por sua vez, encontravam no mercado exclusivo do Brasil um destino garantido para o escoamento de seus produtos. Matérias-primas e mercado exclusivo, estímulos econômicos imprescindíveis para o desenvolvimento da economia metropolitana. Agricultura e manufatura, um arranjo que promoveu uma mudança qualitativa das relações coloniais, a qual José Jobson de A. Arruda denomina como: novo padrão de colonização do século XVIII. 25 Finalmente, no ocaso do século XVIII, os usos político-econômicos de livros técnicocientíficos como os do Fazendeiro do Brazil apontam para um contexto específico de produção e circulação de conhecimentos, profundamente marcado pelo estatuto colonial. Grosso modo, aos olhos das autoridades metropolitanas e coloniais, o desenvolvimento agrícola do Brasil dependia de um amplo incentivo ao aprimoramento técnico e à diversificação da produção. Assim, investir na instrução dos fazendeiros por meio de livros técnico-científicos possibilitaria a mobilização de forças individuais que, em sua conjugação espontânea, promoveriam as mudanças almejadas. Nestes termos, o Estado encontrava no discurso técnico e científico da obra do frei Mariano Veloso mais um instrumento de intervenção na realidade econômica da colônia.

Notas. VELOSO, Frei José Mariano da Conceição. “Prefácio”. In: O Fazendeiro do Brazil, Cultivador [...] T. II, Parte II, Lisboa, Na Of. de Simão Thaddeo Ferreira, 1800, pp. s/n-iv. 2 PRADO JÚNIOR, Caio. História econômica do Brasil. São Paulo: Editora Brasiliense, 2011, p. 87. 3 Cf. PESTRE, Dominique. “Por uma nova história social e cultural das ciências: novas definições, novos objetos, novas abordagens”. Cadernos IG-UNICAMP. Vol. 6, n. 1, pp. 3-56, 1996. Cf. SALDAÑA, Juan José. “Ciência e identidade cultural: História da Ciência na América Latina”. In: FIGUEIRÔA, Silvia (Org.). Um olhar sobre o passado. História das Ciências na América Latina. Campinas: Ed. da UNICAMP, 2000, pp. 11-32. 4 FIGUEIRÔA, Silvia. “Marcos para uma História das Ciências no Brasil”. In: As ciências geológicas no Brasil: uma história social e institucional. 1875-1834. São Paulo: Ed. HUCITEC, 1997, pp. 15-32. 5 Idem, Ibidem, p. 21. 6 Para mais exemplos de como o “estatuto colonial” colaborou para construção de formas específicas de conhecimentos, bem como sua circulação e usos, Cf. GESTEIRA, Heloisa e KURY, Lorelai (Orgs.). Ensaios de História das Ciências no Brasil: das Luzes à nação independente. Rio de Janeiro: Ed. UERJ/FAPERJ, 2012. 7 Para uma consideração acerca do governo ilustrado de D. Luís de Vasconcelos e Sousa Cf. LOPES, Maria Margaret. “Os antecedentes, a constituição e os primeiros anos do Museu Nacional do Rio de Janeiro”. In: O Brasil descobre a pesquisa científica: os museus e as ciências naturais no século XIX. São Paulo: Editora HUCITEC e Editora Universidade de Brasília, 2009. 8 Carta de Luís de Vasconcelos, vice-rei do Brasil, a Martinho de Melo e Castro, Secretário de Estado da Marinha e dos Domínios Ultramarinos. 17 de junho de 1783. Correspondência com a Corte, ativa e passiva. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, Seção de Manuscritos. Códices 4, 4, 4, nº 16. Cit. in. CUNHA, Lygia da Fonseca Fernandes da. Notícia histórica da Oficina Tipográfica, Calcográfica e Literária do Arco do Cego, Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1976, p. 17. 1

725

9

Sobre o papel estratégico das viagens filosóficas no império ultramarino português do século XVIII Cf. HEYNEMANN, Cláudia Beatriz e VALE Renata William Santos do. (Orgs.). Temas Luso-Brasileiros no Arquivo Nacional. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2010, p. 106. Cf. RAMINELLI, Ronald. Viagens Ultramarinas: Monarcas, vassalos e governo a distância. São Paulo: Alameda, 2008, 101. 10 Esse livro é uma obra póstuma resgatada e publicada após a independência do Brasil. Em 1825, com o patrocínio do governo imperial brasileiro, foi publicada grande parte de seu texto latino na Tipografia Nacional do Rio de Janeiro. Entre 1827 e 1831, o mesmo fez imprimir em Paris onze volumes in folio com as gravuras (1640 estampas).

BRIGOLA, João Carlos e NUNES, Maria de Fátima. “José Mariano da Conceição Veloso (17421811) – Um frade no Universo da Natureza”. In: CAMPOS, Fernanda Maria Guedes de (org.). A Casa Literária do Arco do Cego (1799-1801) – bicentenário: “Sem livros não há instrução”. Lisboa: Biblioteca Nacional e Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1999, pp. 64. 11

KURY, Lorelai. Histoire naturelle et voyages scientifiques (1780-1830). France: L’ Harmattan, 2001, p. 9. Domingos Vandelli. Memória sobre a utilidade dos jardins botânicos a respeito da agricultura, e principalmente da cultivação das charnecas, 1770. Publicado por: SERRÃO, José Vicente (Dir.). Domingos Vandelli: aritmética política, economia e finanças. 1770-1804. Lisboa: Banco de Portugal, 1994, p. 3. 14 D. Rodrigo de Sousa Coutinho. Memória sobre o melhoramento dos domínios de sua majestade na América, 1797. A.H.U., Papéis Avulsos, Rio de Janeiro 1797. Publicado por: SILVA, Andrée Mansuy Diniz (Dir.). Textos políticos, económicos e financeiros 1783-1811, Tomo II. Lisboa: Banco de Portugal, 1993, p. 54. 15 CAROLINO, Luís Miguel. “Dom Rodrigo de Sousa Coutinho, a ciência e a construção do império luso brasileiro: a arqueologia de um programa científico”. In: GESTEIRA, Heloisa Meireles; CAROLINO, Luís Miguel e MARINHO, Pedro (Orgs.). Formas do Império: Ciência, tecnologia e política em Portugal e no Brasil. Séculos XVI ao XIX. São Paulo: Ed. Paz & Terra, 2014, pp. 207-208. 16 CAROLINO, Luís Miguel. op. cit., 2014, pp. 191-194. 17 DOMINGOS, Manuela D.. “Mecenato Político e Economia da Edição nas Oficinas do Arco do Cego”. In: CAMPOS, Fernanda Maria Guedes de (org.). A Casa Literária do Arco do Cego (1799-1801) – bicentenário: “Sem livros não há instrução”. Lisboa: Biblioteca Nacional e Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1999, pp. 91106. 18 A caracterização da Casa Literária do Arco do Cego como centro gráfico editorial foi proposta por CUNHA, Lygia da Fonseca Fernandes da. op. cit., 1976, p. 11. 19 FARIA, Miguel F.. “Da Facilitação e Ornamentação: A Imagem nas Edições do Arco do Cego”. In: CAMPOS, Fernanda Maria Guedes de (org.). A Casa Literária do Arco do Cego (1799-1801) – bicentenário: “Sem livros não há instrução”. Lisboa: Biblioteca Nacional e Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1999, p. 137. 20 CARDOSO, José Luís. O pensamento económico em Portugal nos finais do século XVIII 1780-1808. Lisboa: Estampa Editorial, 1989, p. 68. 21 Lourenço José dos Guimarães Moreira. O espírito da Economia Política naturalizado em Portugal (...), 1781. Apud CARDOSO, José Luís. O pensamento económico em Portugal nos finais do século XVIII 1780-1808. Lisboa: Estampa Editorial, 1989, p. 84. 22 Algumas reflexões de Domingos Vandelli abordam essa questão. Cf. Domingos Vandelli. Memória sobre a pública instrução agrária, c. 1788. Publicada por: SERRÃO, José Vicente (Dir.). ob.cit., 1994. 23 O autor, inclusive, chega a ressaltar o papel da Academia Real das Ciências de Lisboa nesse processo, bem como sua estreita relação com os estadistas portugueses. NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808). São Paulo: Editora HUCITEC, 8ª Edição, 1995, pp. 224-225; 230; e 239-240. 24 ARRUDA, José Jobson de A. O Brasil no comércio colonial. São Paulo: Editora Ática, 1980, pp. 612-621. 25 Idem. Decadência ou crise do Império Luso-Brasileiro: o novo padrão de colonização do século XVIII. Revista USP, 46, pp. 66-79., 2000. 12 13

726

Mercado das habilitações o uso da Familiatura colonial do Santo Ofício num movimento mais amplo na busca pelo reconhecimento social no Recife setecentista (c. 1700- c.1750)

Davi Celestino da Silva* Jeannie da Silva Menezes* Resumo: O artigo pretende examinar a inserção dos homens de negócios do Pernambuco colonial na Familiatura portuguesa Inquisitorial na primeira metade do século XVIII. Nosso estudo envolve o setor mercantil e aquela instituição entre o período de 1693 a 1739. Procuramos entender a estreita relação que se formou em Pernambuco entre os homens do comércio e a Familiatura Inquisitorial. Também observamos na vida daqueles homens o reconhecimento do status social, alcançado por meio da inserção aos órgãos de poderes locais. Palavras- chaves: Homens de negócios, Pernambuco colonial, Familiares do Santo Ofício.

Resume: The paper examines the integration of the colonial Pernambuco businessmen in Portuguese Familiatura Inquisitorial in the first half of the eighteenth century. Our study involves the commercial sector and that institution between the period 1693 to 1739. We seek to understand the close relationship that has formed in Pernambuco among men of trade and Familiatura Inquisitorial. We also observed the lives of those men the recognition of social status, achieved by inserting the bodies of local authorities. Keywords: Businessmen, colonial Pernambuco, the Holy Office Family.

*

Mestrando pela Universidade [email protected]

*

Professora/ doutora pela [email protected]

Federal

Universidade

Rural

Federal

727

de

Rural

Pernambuco

de

Pernambuco

(UFRPE).

(UFRPE).

e-mail:

e-mail:

Recife: um “espaço” destinado aos homens de negócios

No começo do século XVIII a América portuguesa enfrentava uma

estagnada

produção açucareira dentro do contexto de uma crise mundial que assolava à Europa. Do ponto de vista interno, iniciava- se desde o final do século XVII à exploração do ouro na Minas colonial. Contudo, mesmo após a perda do dinamismo do setor açucareiro, este continuou a figurar como principal produto agrícola do Brasil, só perdendo esta posição nos fins do século XIX com o início do chamado “ciclo” do café. O setor comercial em Pernambuco, sobretudo com o açúcar, projetou à região como destaque nas principais rotas comerciais do Atlântico. José Gonsalves de Mello já apontava para o fato de que durante a segunda metade do século XVI “Do Reino muitos cristãos- novos enviavam seus filhos ou parentes para o Brasil da área açucareira, para aqui não só representálos como ganhar experiência no trato com o produto” 1. Entretanto, não só do açúcar se consolidou a economia da região de Pernambuco na primeira metade do setecentos, o setor mercantil em sua composição abrangia distintos setores e gêneros. Com isso, a Capitania de Pernambuco continuava a atrair gente das quatro partes do mundo que procuravam fazer fortunas para depois retornar à sua terra natal, como bem destacou Brandônio: Muitos homens têm adquirido grande quantidade de dinheiro amoedado e de fazenda no Brasil pela mercancia, pôsto que os que mais se avantajam nela são os mercadores que vêm do Reino para êsse efeito, os quais comerciam por dois modos, de que um dêles é que vêm de ida por vinda, e assim depois de venderem as suas mercadorias fazem o seu emprêgo em açúcares, algodões e ainda âmbar e gris. E se tornam para o Reino nas mesmas naus em que vieram, ou noutras. O segundo modo de mercadores são os que estão assistentes na terra com loja aberta 2.

A própria vila de Santo Antônio que deu origem ao bairro do Recife é exemplo daquilo

que podemos chamar de um bairro que não surgiu da consequência da construção de engenhos de açúcar, mas sim, em função da comercialização dos seus próprios produtos 3. No âmbito do setor comercial e sua importância no contexto das relações comerciais do Império português, ressalta Caio Prado Júnior que a colonização tinha como principal característica o plano comercial: “A expansão marítima dos países da Europa, depois do séc. XV expansão de que o desenvolvimento e colonização da América [...] se origina de simples empresas comerciais levadas a efeito pelos navegadores daqueles países” 4. A região litorânea de Pernambuco, sobretudo a vila do Recife e seu porto, foi um espaço considerável no âmbito dos negócios tanto no âmbito interno, quanto ao externo, ou seja, abrangendo o circuito do Império lusitano. Diante de tal afirmação vale aqui ilustrar de 728

forma mais objetiva aquele cenário, isto é, apontar que: “Lisboa, Cidade do Porto, Rio de Janeiro, Bahia, Angolla, Costa da Mina, Ilhas, Camocy, Ciará, Mondaú, Iagoaribe, Asú, Parnaguá” 5, fizeram parte da relação dos portos que se mantiveram inseridos no lucrativo comércio marítimo do Império português. Neste sentido, vale lembrar algumas das principais mercadorias que circularam por aqueles portos, como panos de algodão, aguardentes da terra, toda a casta de obras de ferro, tabaco, farinha, feijão, melaço, assucar, arroz, e toda casta de fazenda da Europa. Ao se referirmos à dita vila do Recife como espaço “destinado às oportunidades”, (leia- se oportunidades aos homens de negócios) partimos da própria contextualização que a referida vila foi forjada, ou seja, plasmada na tessitura de uma “teia” de operações e mecanismos que proporcionaram a exemplo da significativa importância do seu porto dentro das operações de exportação e importação na América portuguesa, como também ao próprio Império lusitano. O setor mercantil em Pernambuco percebendo sua valorização procurou beneficiar- se do momento, como já advertia José Antônio Gonsalves de Mello com relação à Europa e nas Américas inglesa e espanhola aquele setor buscava empenha- se para alcançar o poder, afastando a classe senhorial, e recorrendo às vezes a meios brutais atingir seus objetivos. No caso da Capitania de Pernambuco o setor mercantil em ascensão encontrou apoio na Coroa levando à classe senhorial a recorrer às armas, para conservar seus privilégios 6. Pertencer a uma sociedade onde o viver à lei da nobreza significava aos membros das camadas intermediárias a busca por prestígio e reconhecimento social, condição bastante almejada, sobretudo por homens do comércio. Na prática essa condição se revestia no acúmulo de recursos simbólicos, ou seja, integrar-se no estrato superior da sociedade escravista colonial. A esse respeito António Manuel Hespanha aponta que homem que não tenha estado não é pessoa. Pois há pessoas que por serem desprovidas de qualidades juridicamente atendíveis, não possuem qualquer status, logo, carecem de personalidade 7. Evidentemente, o século XVIII representou um novo desafio à monarquia. O fortalecimento dos homens de negócio em Pernambuco como parte da elite colonial pôs em xeque os equilíbrios sociais cuidadosamente costurados nos séculos anteriores. Ou seja, a hierarquia social firmada no poder econômico e politico dos senhores de engenho, que outrora contava com apoio da Coroa portuguesa, começava sofrer então o embate de uma categoria em ascensão, os homens de negócios de Pernambuco. Segundo José Antônio Gonsalves de Mello, para a ascendência daquela categoria, a própria Coroa dava inicio ao desligamento da velha aliança com os plantadores de 729

cana aqui

em Pernambuco. Prática politica que vinha sendo adotada, sobretudo, devido os ensinamentos que o mercantilismo divulgara em toda a Europa. Ainda de acordo com aquele historiador, não que a Coroa se desinteresse da economia açucareira, que seria ainda por muitos anos o mais importante produto agrícola da América portuguesa. Mas o simples fato dos senhores de engenho deixarem de dominar sem contraste a politica de governo da metrópole em relação ao Brasil, já indicava o inicio de uma nova época 8. Verificamos que em Pernambuco, sobretudo na zona litorânea para o período em apreço, foi grande a procura pelo hábito de Familiar do Santo Ofício pelos homens de negócios. Como também, uma significativa transitoriedade em outras instituições como a Câmara de Recife, ou em cargos da administração colonial. Um exemplo acerca dessa observação se dá com José Ribeiro Ribas. Este em sua solicitação ao Conselho Geral do Santo Ofício declarou- se como homem de negócio, solteiro, natural da freguesia de São Miguel de via Franca, termo de Barcellos. Teve sua provisão de Familiar em 27 de outubro de 1700 ao tempo morador em Pernambuco 9. Um bom exemplo para ilustrar o panorama da significativa presença de homens de negócios na Familiatura colonial da Capitania de Pernambuco, se dá por meio da seguinte tabela: TABELA I Atividade Profissional dos Familiares do Santo Ofício habilitados em Pernambuco no século XVIII (1700- 1750)

Recife

Olinda

Outras

Total

%

localidades Comércio e negócios

54

2

9

65

61, 32

Corpo Militar

9

1

3

13

12, 26

Profissional liberal

7

2

9

8, 49

Senhor de engenho

1

1

0, 94

Vive de sua fazenda

2

4

6

5, 66

Sem informação

2

7

9

8, 49

Total

75

28

106

100

Igreja

3

Arquivo pessoal: documentação obtida nas Provisões de Nomeação e Termos de Juramento / ANTT

730

A busca pelo reconhecimento social dos agentes da Familiatura colonial do Santo Ofício no Pernambuco setecentista

O reconhecimento social no Antigo Regime foi na temporalidade daquelas sociedades europeias um significativo mecanismo no qual o ser humano era inserido numa estrutura estamental, baseada na honra e no privilégio como bem definiu Max Weber. Na Europa pré- industrial um dos principais caminhos da mobilidade social, isto é o primeiro passo para que indivíduos menos afortunados alcançassem reconhecimento social encontrava-se nos quadros pertencentes à Igreja católica. A este respeito o historiador Peter Burke nos faz um interessante comentário, ao destacar o fato de que o filho de um camponês talvez pudesse terminar sua carreira eclesiástica como papa, como ocorrido com Sisto V no fim do século VI 10. Com relação à realidade social no além- mar a conjuntura não foi diferente. Apesar da distância proporcionada pela imensidão do Atlântico separando mundos opostos, como também a própria temporalidade daquelas sociedades, que ao mesmo tempo era um misto de proximidade, quanto distintas acerca da circularidade cultural. No entanto, não é incorreto afirmar que os súditos da colônia portuguesa buscaram viver à luz dos valores morais e simbólicos da distante metrópole lusitana; almejavam “viver à lei da nobreza” e com isso alcançarem cargos e títulos. Em linhas gerais, os homens de negócios tanto do reino quanto no Ultramar se projetaram na tentativa de alcançarem reconhecimento social nas sociedades do então imenso Império português. Com relação ao nosso corte espacial, isto é, a Capitania de Pernambuco, num primeiro momento o que nos chamou atenção para o caso de Pernambuco após consulta documental foi à estreita relação dos postulantes ao cargo de Familiar do Santo Ofício com o setor mercantil como já notificado. Neste sentido, procuramos discutir as possibilidades de promoção social que a Familiatura colonial daquela capitania proporcionou aos mais variados personagens que adquiriram o referido hábito na região de Pernambuco ainda na primeira metade do século XVIII. Na composição dos indivíduos que fizeram parte da Familiatura colonial de Pernambuco encontramos: senhores de engenhos, militares, boticários, eclesiásticos e principalmente homens de negócios. Neste sentido, todos em busca da inserção na elite local buscavam alcançar sempre mais na hierarquia social.

731

Logo, aquela busca nos espaços de sociabilidades em Pernambuco, se revestia em Pernambuco para os homens de negócios o ingresso, como por exemplo, na Familiatura do Santo Ofício, como bem definiu Evaldo Cabral de Mello: O primeiro degrau na ascensão social do mascate era o ingresso nas irmandades e confrarias do Recife, criadas e dotadas pela comunidade mercantil. A partir daí, as portas estreitavam- se. A Santa Casa de Misericórdia de Olinda, clube nobiliárquico gerido pelo clero da cidade, não via com bons olhos a presença de mercadores, a menos que se contentassem com a posição de irmãos de “menor” ou de “segunda condição”, no mesmo pé dos artesãos e da gente da plebe. [...] Outro degrau a galgar era o de familiar do Santo Oficio, titulo concedido pelo Conselho Geral em Lisboa com base em investigação rigorosa do candidato, da sua mulher e da ascendência de ambos. No século XVIII, ser familiar compensou a dificuldade da obtenção de hábitos das ordens militares, vedados à grande maioria dos mascates, de vez que El Rei só excepcionalmente relevava os “defeitos mecânicos”, isto é, as incompatibilidades oriundas do exercício do trabalho manual11.

A significativa presença de Familiares do Santo Ofício na região de Pernambuco, sobretudo no espaço urbano da então vila do Recife de Pernambuco, foi significativa. Neste sentido, alguns aspectos a este respeito é interesse destacarmos. Primeiro, o grande quantitativo de Familiares do Santo Ofício, não foi proporcional com os demais cargos existentes em Pernambuco daquela instituição, sobretudo devido o enorme espaço territorial do bispado de Pernambuco. Vejamos o quadro abaixo:

QUADRO 1

Cartas expedidas na região de Pernambuco 1700- 1750

Familiares do Santo Ofício

106

Comissários

7

Notários

5

Qualificadores

2

Total

120

Arquivo pessoal: documentação obtida nas Provisões de Nomeação e Termos de Juramento / ANTT

Em seguida, acreditamos que os Familiares do Santo Ofício, que se habilitaram a atuarem no Brasil obedeceram a uma lógica própria voltada à distribuição regional, ou seja,

732

privilegiaram espaços de maior concentração econômica nas demais Capitanias da América portuguesa, como podemos verificar na tabela abaixo:

TABELA 2 Familiaturas expedidas no século XVIII na América portuguesa 1701-

1721-

1741-

1761-

1781-

20

40

60

80

1800

TOTAL

%

BA

112

85

72

109

73

451

29,2

RJ

31

79

130

113

29

382

24,7

PE

35

23

41

112

156

367

23,7

MG

2

36

125

57

9

229

14,8

PA

1

10

9

9

6

35

2,3

SP

5

3

11

2

11

32

2,0

3

6

11

0,7

5

4

10

0,6

1

5

8

0,5

7

0,4

4

0,3

3

0,2

2

0,1

MA

2

MT

1

PB

2

CS

1

3

GO

3 3

SE

1

1

2

ES

2

CE

0,1

AL

1

PR

1

TOTAL

188

1

242

392

422

302

2

0,1

1

0,1

1546

100

Fonte: ANTT, Livro das habilitações do Santo Ofício, V.I a 25. In: CALAINHO, Daniela Buono. Agentes da Fé: Familiares da Inquisição Portuguesa no Brasil Colonial. p. 178.

Na complementariedade da lógica acima apontada, ou seja, a incessante busca pelo reconhecimento social por pessoas das camadas intermediarias, dito de outra forma, os homens de negócios do Recife setecentista, encontramos no historiador português José Veiga Torres, um argumento que bem traduz nossa concepção a respeito daqueles funcionários inquisitoriais:

733

O prestígio social crescente da Inquisição e os particulares privilégios conferidos aos portadores da Carta de Familiar do Santo Ofício, faziam desta uma espécie de Carta de Nobilitação, até porque, para além de constituir o documento mais seguro e prestigiado de compreensão da limpeza linhagística, alguns privilégios a que dava acesso, pela carga simbólica de distinção nobre que possuíam aproximavam os Familiares das gentes nobres das localidades, sem que fossem nobres, nem por origem, nem por estatuto profissional 12 .

Os estudos acerca dos Familiares do Santo ofício vêm revelando fortes indícios que possibilitam uma análise daquela categoria sob a perspectiva da promoção social. Ou seja, o que ocorreu na região de Pernambuco, sobretudo no espaço litorâneo do século XVIII foi um verdadeiro mercado de habilitações. Talvez a significativa procura pelo hábito de Familiar do Santo Ofício em Pernambuco se revele em sua essência no relato de uma carta patente assinada pelo monarca Dom João V, e endereçada ao Familiar do Santo Ofício Cristóvão de Freitas Guimarães ainda na primeira metade do século XVIII morador em Pernambuco. Tivemos conhecimento do teor daquela carta por meio de um documento encontrado no Arquivo Histórico Ultramarino, avulsos de Pernambuco. O enredo é o seguinte, em 1770 Antônio Francisco Monteiro faz um requerimento ao rei D. José I, pedindo a confirmação de carta patente do posto de Capitão da Companhia dos Familiares do Santo Ofício do Recife, que vagou por substituição de João Correia da Cunha, pois apesar de te sido nomeado pelo então governador da capitania de Pernambuco Antônio de Souza Manoel e Menezes, também conhecido pela alcunha de Conde de Villa Flôr, era necessário a confirmação do monarca Dom José I 13. No desdobramento dos fatos, o Familiar do Santo Ofício Antônio Francisco Monteiro, em seu requerimento ao dito monarca, ressalta que a ele é necessário que Dom José I, passe certidão da carta patente do posto de Capitão da Companhia dos Familiares do Santo Ofício do Recife, companhia esta que contou com quarenta Familiares do Santo Ofício. Ainda segundo, Antônio Francisco Monteiro a companhia teve como primeiro capitão Cristóvão de Freitas Guimarães, que aio falecer assumiu o posto Roque Antunes Correa, ambos Familiares do Santo Ofício

14

. O relato documental nos relata de forma clara e objetiva o quanto ser

Familiares do Santo Ofício em Pernambuco foi um privilegiado: A folha 223 do livro 27 de officios da secretária do Conselho Ultramarino se acha registada a Carta Pattente mencionada em petição do Suplicante da qual o seu theor hé o seguinte // Dom joão por graças de Deos Rey de Portugal e dos Algarves de quem e dalem mar he Africa e Senhor da guiné e da Conquista navegação, Comércio de Ethiopia, Árabia. Persia e da India, faço saber aos que esta minha Carta Patente levam que todo Respeito a me representar a Christóvão de Freitas guimarães estar, provido por Duarte Silva Pereira Tibão governador e Capitão general da Capitania de Pernambuco com posto de Capitão da Companhia dos Familiares do Santo Oficio de

734

Pernambuco da Cidade Olinda e praça do Recife; o qual posto provera por lhe por lhe parecer conveniente a meu serviço por evitar desordens pellos ditos Familiares Repugnando obedecer aos coronéis das ordenanças por Razão dos seos privilégios e haver na Cidade da Bahia Companhia de Familiares; atendendo ao dito Christóvão de Freitas guimarães, ser tambem Familiar do Santo Oficio e concorrerem nelle as partes e Requezitos necessários para bem ocupar o dito posto tanto pela qualidade de sua pessoa, e bem procedimento, como por me haver Servido de Capitão da ordenança na provisão de Pernaguá distrito de Figueira do Rio grande do Sul e havendo prestado no Refferido posto com boa Satisfação, (?) contando as ordens de que fora encarregado e (?) nelle inteligência, e actividade para qualquer emprego, e porque para de lhe daqui em diante se haverá com a mesma satisfação em tudo o de que for encarregado de meu serviço comforme a confiança que faço de sua pessoa: Hey por bem de o confirmar ( como por esta confirmo) com o dito posto de Capitão da Companhia dos Familiares do Santo Officio da Cidade Olinda e Praça do Recife, sem subordinação aos Coronéis do distrito e havendo ocasião de pegar com Armas, ou Rebate o dito Capitão com a sua Companhia para seguidas ordens que pelo governador lhe foram mandadas; com o qual posto não haverá soldo algum de minha fazenda, mas gozará de todas as honras, privilégios, liberdade, izenções, e franquias 14.

Ao historicizar a conjuntura acima, fica claro o quanto ser Familiar do Santo Ofício em Pernambuco representou a posse de status, e reconhecimento social. Sobretudo, quando se trata de uma região bastante referendada pela arte do mercadejar. No entanto, o que buscamos com o nosso trabalho foi mostrar nomes e rostos de alguns dos vários indivíduos que tornaram-se Familiares do Santo Ofício em Pernambuco, e, sobretudo, deixar claro que diante do quadro montado pela Inquisição em Pernambuco, longe estava àquela instituição em querer uma atuação eficaz por parte de seus funcionários. No entanto, seus homens tiraram proveito da prestigiosa imagem que o santo ofício possuía, e procuraram inserir-se em seus cargos e ofícios. Ou seja, talvez em suas atuações todos igualmente buscaram teoricamente a manutenção da fé, mas sobretudo almejaram direta ou indiretamente por meio do santo tribunal recorrerem a outras necessidades, a exemplo da mobilidade e reconhecimento social.

REFERÊNCIAS

1. MELLO, José Antônio Gonsalves de. Gente da Nação: Cristãos- Novos e Judeus em Pernambuco 1542- 1654. Recife: Fundaj. Ed. Massangana, 1996. p. 10. 2 MELLO, José Antônio Gonçalves de. Diálogos das Grandezas do Brasil. Documentos para a História do Nordeste. Edição integral, segundo o apógrafo de Leiden, aumentada por José Antônio Gonçalves de Mello. Imprensa universitária, 1966. p. 90. 3. CAVALCANTI, Vanildo Bezerra. Recife do Corpo Santo. 2 edição, revista e ampliadaRecife: Bagaço, 2009. p. 62. 735

4. JÚNIOR, Caio Prado. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo. Editora brasiliense. 1987. p. 21. 5. “Informação Geral da Capitania de Pernambuco 1749”. In: Annaes da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, 1906, volume XXVIII. p. 482. 6. MELLO, José Antônio Gonsalves de. “Nobres e Mascates na Câmara do Recife, 17131738”. In: Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, Vol. LIII. Recife- 1981. p. 117. 7. HESPANHA, Antonio Manuel. Imbellicitas. As bem- aventuranças da inferioridade nas sociedades de Antigo Regime. São Paulo: Annablume, 2010. (Coleção Olhares). p. 60. 8. MELLO, José Antônio Gonsalves de. “Nobres e Mascates na Câmara do Recife, 17131738”. In: Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, Vol. LIII. Recife- 1981. p. 113. 9. “Provisões de Nomeação e Termos de Juramento”. In: Arquivo Nacional Torre do Tombo. Livro 7; fólio 231. 10. BURKE, Peter. História e teoria social. 3ª edição. São Paulo: Editora Unesp, 2012. p. 106. 11. MELLO, Evaldo Cabral de. A Fronda dos mazombos: nobres contra mascates, Pernambuco, 1666- 1715/ São Paulo: Editora 34, 2012 (3ª edição). p. 143. 12. TORRES, José Veiga. “Da Repressão Religiosa Para a Promoção Social- A Inquisição como instância legitimadora da promoção social da burguesia mercantil” Revista Crítica de Ciências Sociais. Coimbra, outubro de 1994, edição

nº 40

. Artigo disponível em:

https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/11594/1/Da%20Repress%C3%A3o%20Religios a%20para%20a%20Promo%C3%A7%C3%A3o%20Social.pdf 12. Requerimento do Capitão da Companhia dos Familiares do Santo Ofício do Recife, Antônio Francisco Monteiro ao Rei D. José I, pedindo confirmação de carta patente. AHU_ ACL_ CU_ 015. Cx.109, D. 8471 13. Requerimento do Capitão da Companhia dos Familiares do Santo Ofício do Recife, Antônio Francisco Monteiro ao Rei D. José I, pedindo confirmação de carta patente. AHU_ ACL_ CU_ 015. Cx.109, D. 8471 14. Requerimento do Capitão da Companhia dos Familiares do Santo Ofício do Recife, Antônio Francisco Monteiro ao Rei D. José I, pedindo confirmação de carta patente. AHU_ ACL_ CU_ 015. Cx.109, D. 8471

736

PUBLICIDADE E PROPAGANDA EM FAVOR DA GUERRA: O SIMBOLISMO DOS ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS DURANTE A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL (1939-1945)

Autora: Daviana Granjeiro da Silva –mestranda no PPGH da UFPB E-mail: [email protected]

RESUMO Este trabalho traz reflexões sobre os ícones publicitários, veiculados através do jornal A União, que traziam como enredo a temática da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Utilizando o conceito de representação, a intenção é perceber como esses ícones foram utilizados pelo governo brasileiro em sua política nacionalista, crucial para a conjuntura de guerra. Mais especificamente, será analisado o simbolismo que esses ícones publicitários detiveram e a força que exerceram sobre o imaginário da população paraibana durante o estado de beligerância.

Palavras-Chave: Segunda Guerra Mundial; Anúncios Publicitários; Nacionalismo.

ABSTRACT This work brings reflections about the advertising icons conveyed through the newspaper A União, wich brought the theme of the second world war(1939-1945). Using the concept of representation, the intention is to see how these icons have been used by the brazilian government in its nationalist policy, crucial to the war situation. More especifically, will be analised the symbolism that these advertising icons arrested and the force exerted on the imagination of Paraiba population during the state of war.

Keywords: Second World War; Advertising; Nationalism.

737

INTRODUÇÃO

A Segunda Guerra Mundial (1939-1945) marcou o século XX de maneira intensa e irreversível, tendo em vista os desdobramentos políticos, sociais, econômicos e culturais que se delinearam neste “breve século1”, como nos alertaria Eric Hobsbawm2. Este confronto mundial culminou em perdas incalculáveis, tanto no setor material como no humano. O clima de tensão vinha desde a Primeira Guerra, com a sucessão de acontecimentos que acarretaram uma instabilidade política e econômica muito grande. Isso significa dizer que a “paz” era muito difícil de ser sustentada e a eclosão de um novo conflito era iminente. O desenrolar do confronto foi marcado pela organização e estratégias que vão para além do campo militar. Às nações envolvidas cabia fomentar as condições necessárias para o estado de beligerância, que inclui de forma significativa a construção de um ideal comum em favor da guerra. Neste sentido, o fenômeno do nacionalismo3 foi forte aliado para os países beligerantes, pois serviu de base para a construção de um projeto de nacionalidade, afim de que as pessoas de um determinado país estabelecessem relações de sentido com a causa e as fizessem apoiar a sua nação neste momento crucial pelo qual passavam. Dessa forma, é possível perceber que a utilização da publicidade e propaganda foi elemento fundamental para a política nacionalista implementada pelos países durante a Segunda Guerra Mundial, tendo em vista que anúncios foram pensados intencionalmente como um discurso a ser propagado no cotidiano das pessoas, revelando as diferentes ideologias de uma sociedade e de um determinado contexto, no caso, o contexto da guerra. Ícones publicitários dos mais diversos foram disseminados em muitos países, especialmente nos Estados Unidos, como nos apontam os estudos de Kátia Iracema Krause4. Para o caso específico o Brasil, que entrou na guerra no ano de 1942 após o atentado aos navios brasileiros pelos alemães e sob a pressão e influências das relações 5 com os Estados Unidos, pode-se perceber que a política nacionalista de Getúlio Vargas, intensificada no contexto da guerra, estabeleceu pilares fortes de ações patrióticas que atingiriam boa parte a população brasileira, onde a propaganda política foi instrumento fundamental para a construção desse projeto de nacionalidade. Segundo Flailda Gabboggini e Adagilsa Caruso “As ideias presentes na publicidade são relevantes para o estudo, por refletirem tendências e influenciarem na formação da opinião pública e, em especial, a respeito de um produto, instituição ou serviço”6.

738

Para efeito dos estudos deste artigo, optamos por analisar alguns anúncios e elementos de propaganda no contexto de um estado brasileiro específico, a Paraíba, tendo em vista as particularidades deste estado no período da guerra, bem como as relações da interventoria local com a esfera federal, onde a publicidade e a propaganda eram veiculadas especialmente através do jornal oficial do Estado, o A União. A análise desses anúncios irão nos mostrar o papel preponderante da propaganda na formulação de ideias e na materialização da política nacionalista e patriótica varguista através da linguagem publicitária e de que forma essas representações contribuíram para o processo de organização brasileira para a guerra, onde: As representações apresentam múltiplas configurações e pode-se dizer que o mundo é construído de forma contraditória e variada pelos diferentes grupos do social. Aquele que tem o poder simbólico de dizer e fazer crer sobre o mundo, tem o controle da vida social e expressa a supremacia conquistada em uma relação histórica de forças. Indica que esse grupo vai impor a sua maneira de dar a ver o mundo, de estabelecer classificações e divisões, de propor valores e normas, que orientam o gosto e a percepção, que definem limites e autorizam comportamentos e papeis sociais7.

Partindo dessa perspectiva de conceituação de Sandra Jatahy Pesavento para o campo das representações, é possível compreender os múltiplos sentidos suscitados pela linguagem publicitária, especialmente no que tange ao campo do simbólico, quando nos deparamos com os diversos ícones utilizados no período em questão para evidenciar um projeto de nacionalidade pensado e executado pelos grupos políticos que protagonizavam o cenário brasileiro durante o governo Vargas.

O IDEAL DE NAÇÃO ATRAVÉS DA PROPAGANDA

Como já foi enfatizado anteriormente, durante a Segunda Guerra Mundial, muitos foram os esforços de diversos países beligerantes em veicular informações e mobilizar a população para o esforço de guerra. Alguns ícones publicitários, inclusive, tornaram-se famosos no mundo inteiro e até hoje figuram no imaginário coletivo. A figura do personagem cinematográfico da Walt Disney, Michey Mouse, por exemplo, foi amplamente utilizada pelos Estados Unidos nos anos 1930 para propagar um ideal de nacionalidade americana, como nos apontam os estudos de Kátia Iracema Krause (2011). Para a autora de O rato vai à guerra: como o Michey Mouse se tornou uma imagem de poder dos EUA, 1928-1946 é possível perceber: Como [...] os desenhos da Disney, e mais especificamente o Michey Mouse, podem ter produzidos discursos e funcionado ativamente na propagação de uma imagem da América ideal e na reafirmação de uma nacionalidade e de um patriotismo que se desejava projetar interna e externamente, firmando-se como mais uma representação da nação. 8

739

O ícone do Michey Mouse popularizou-se não apenas nos Estados Unidos, mas em diversos países do continente americano, sendo transmitido como um símbolo da América. No entanto, além deste, muitos outros ícones publicitários foram disseminados durante a guerra e por vezes adaptados ao contexto de cada país. É importante ressaltar ainda que não somente o cinema foi veículo de comunicação propagandística, pois no campo das comunicações, os jornais e o rádio também tiveram papel preponderante nesta empreitada, tendo em vista que eram meios de comunicação de grande alcance popular. No Brasil, os anúncios de propagandas nos jornais também se ajustaram no enredo da Guerra e faziam parte da coluna diária do jornal de circulação do estado da Paraíba, o A União. O exemplo mais notório é o anúncio de combustíveis e pneus, em virtude da racionalização desses produtos. O apelo era economizar e se preparar com marcas que estavam lutando

em

prol

da

vitória

das

nações

unidas.

Figura 01. Anúncio da Texaco, (Posto de combustíveis e lubrificantes norte-americano) presente no Jornal A União; 9 de julho de 1944, p.3). Foto: Autora.

Como é possível perceber na imagem, o título do anúncio enfatiza a preocupação da marca com a causa da Guerra. Ainda mais fortemente é o apelo dirigido aos leitores chegando a declarar que a Texaco está ajudando a vencer a Guerra: Presente em muitas fontes de combate, alimentando tanks, aviões e uma série enorme de veículos motorizados. Texaco está ajudando a vencer a guerra. Apêsar desse esforço, seus produtos continuam chegando para abastecer as nossas forças armadas, indústrias e transportes. Não obstante, Texaco continuará a fazer todos os suprimentos destinados a atender as mais urgentes necessidades civis.9

O texto para o anúncio sugere uma sensibilidade de quem se preocupa com os destinos do país. Mais uma vez, o apelo é feito com o intuito de angariar credibilidade. Comprar os combustíveis Texaco10 seria estar colaborando para a vitória. Importante atentar também para o uso dos símbolos nacionais para intensificar o patriotismo do país durante o Estado Novo, pois ele vai ser ainda mais evidenciado durante a

740

guerra. Em agosto de 1942 foi assinado um decreto-lei que estabelecia o uso da bandeira e a execução do hino nacional: Haverá nos Estados Maiores das forças armadas federais, na Casa da Moeda, na Escola Nacional de música, nas embaixadas, legações e consulados do Brasil, nos museus históricos oficiais, nos quartéis-generais das Regiões Militares, nos comandos de unidades de terra, mar e ar, capitanias de portos e alfândegas, e nas prefeituras municipais uma coleção de exemplares padrões de símbolos nacionais a fim de servirem de modelo obrigatório para a respectiva feitura, constituindo um instrumento de confronto para a comprovação dos exemplares destinados à apresentação, procedam ou não da iniciativa particular.11

Para a construção de uma imagem positiva de encorajamento aos pracinhas brasileiros também foram criados símbolos próprios, característicos da participação na Guerra: os slogans A cobra vai fumar e Senta a Pua! marcaram a participação da Força Expedicionária Brasileira (FEB) e da força Aérea Brasileira (FAB), respectivamente:

Figura 03: Slogan Senta a Pua! Era o grito de guerra da FAB. Foto extraída do livro Trinta anos após a volta e adaptada pela autora.

Figura 02: Slogan “A cobra vai fumar” que simbolizava os soldados da FEB. Foto extraída do livro Trinta anos após a volta12 e adaptada pela autora.

741

A utilização desses símbolos serviu de incentivo e de caracterização à força militar brasileira. Os soldados da Força Expedicionária eram reconhecidos pelo distintivo de “A cobra vai fumar”, fazendo menção à ida do Brasil à Guerra e “Senta a Pua!” era o grito de guerra dos aviadores brasileiros: a imagem de um avestruz faz referência à velocidade e estômago dos pilotos brasileiros, que tinham que adaptar-se à comida estrangeira; a cor vermelha faz menção ao céu de guerra; a nuvem simboliza o “chão” do avião e o escudo representa o Brasil 13. Esses ícones eram fortemente propagados no período para transmitir confiança e enaltecer a participação dos soldados e aviadores que se preparavam para a ida aos campos de batalha, e até hoje figuram no imaginário social da população brasileira.

A PROPAGAÇÃO PATRIÓTICA PELAS LINHAS DE A UNIÃO

No período da Segunda Guerra Mundial governava a Paraíba o interventor Ruy Carneiro (1906-1977), que atuou de 1940 a 1945. Seu governo possuiu características bem peculiares, com uma política assistencialista e a tentativa de se mostrar um governante preocupado com os destinos do povo. O interventor era porta-voz do presidente Getúlio Vargas e demonstrava um espírito conciliador singular. Nesse sentido, o Jornal A União apresentou por diversas vezes essa imagem de governante das massas. Acerca disso, a historiadora Ana Beatriz Ribeiro Barros Silva enfatiza em seu artigo “O Salvador, o realizador e o democrata: a construção do mito político do interventor Ruy Carneiro (1940-1945)”:

Ao mesmo tempo em que A União, utilizando-se não apenas do texto escrito, mas também de ampla iconografia constrói a imagem de Ruy Carneiro como a de um homem devotado a sua terra, grande realizador, comprometido com o Estado Novo, bem relacionado na capital da República, amigo pessoal do presidente Vargas, preocupado com as questões sociais e excelente administrador, outra imagem desponta no jornal oficial: a de democrata. A Paraíba viveria então em perfeita paz e bem-estar, traço do espírito humanitário e democrático que caracterizavam Ruy Carneiro.14

Com esse perfil, o estado da Paraíba se via entre um regime autoritário em contrapartida com fortes marcas da política assistencialista, característica do governo de Ruy Carneiro nesse período. E como é possível perceber, as estratégias para a construção da imagem do interventor paraibano como o homem preocupado com sua nação e convocando à população paraibana para lutar pelas causas do seu país podem ser confirmadas se atentarmos para os diversos momentos em que aparecem os discursos proferidos pelo interventor que iam ao encontro

742

dos

pronunciamento do presidente Getúlio Vargas, como o seu pronunciamento após os atentados aos navios brasileiros, quando noticiado o desaparecimento dos três paraibanos que estavam a bordo em 18 de agosto de 1942: Agora – continua o interventor paraibano, - quando a suprema covardia dos piratas eixistas levou a morte a centenas de patrícios, envolvendo em luto inúmeros lares brasileiros, outro não podia ser o caminho a seguir. Nunca quizemos a guerra, e sempre nos colocamos distantes dos países em luta. Mas, dentro do conflito, todos nós brasileiros, saberemos ser dignos dos exemplos que nos legaram os nossos maiores. De que vale a vida si para usufruí-la tivermos que abdicar os nossos sentimentos de honra, liberdade e justiça? Antes a morte honrosa nos campos de batalha que a vida miserável de escravos. Mas, venceremos. E com a vitória das forças democráticas contra as potências do mal o mundo verá abrir-se uma nova era, um novo ambiente em que não mais medrarão as doutrinas fascistas15.

Os discursos proferidos por Ruy Carneiro podem ser interpretados como uma forma de propagação patriótica e propaganda política, se percebermos as intencionalidades de seus discursos: sensibilizar a população paraibana e influenciar a opinião pública em favor da democracia (representados pelos países do bloco Aliado) e contra as forças do Eixo. Além dos discursos e dos anúncios publicitários, A União também procurava sensibilizar a população com as fotografias dos paraibanos que viajavam a bordo nos navios torpedeados e estavam desaparecidos. Uma secção era reservada para apresentar os paraibanos desaparecidos e narrarem, inclusive, suas trajetórias de vida, como fez com Jaime, João Dias Júnior e Gilberto Costa:

Figura 04: Retirada e adaptada do jornal A União.

743

No dia seguinte à entrada do país no confronto mundial, o discurso proferido pelo Jornal era em tom de pesar, suscitando a comoção popular, em face da desumanidade com que os alemães atingiram os navios brasileiros: “O covarde torpedeamento dos nossos navios pelos agressores do ‘eixo’ trouxe o luto a inúmeros lares brasileiros, contando-se entre as vítimas do ignominioso atentado vários paraibanos.16” O jornal ainda fazia questão de relatar os nomes dos familiares das vítimas, bem com suas atividades profissionais, o que transparecia uma apelação, na tentativa de sensibilizar a população. A ideia do luto pela perda dos paraibanos é a estratégia utilizada pelo governo, na tentativa de induzir o povo ao patriotismo. Em 22 de agosto, quatro dias após o torpedeamento, o governo declara estado de guerra e a partir de então se sucedem várias manchetes de apelo popular, com discursos do próprio presidente e de outras figuras influentes no cenário político e intelectual brasileiro. Na Paraíba, o grande destaque será o interventor Ruy Carneiro que externará por diversas vezes seu sentimento de apoio à pátria. Os anos seguintes a 1942 serão palcos de articulações e estratégias em prol de manter a imagem de um país dentro da “ordem e do progresso”, lema da nação, durante esse momento de tensão. A economia brasileira passou por mudanças, com os tabelamentos de preços de alimentos e produtos de outras necessidades; os setores de exportação e importação também sofreram alterações; houve racionamento de combustíveis e diminuição no consumo de carne no país. Acompanhando essas alterações, o Jornal A União enfatizava dia-a-dia as medidas tomadas pelo governo e relatava as palavras de conforto dadas aos brasileiros, justificando como sendo necessária essa cooperação para o futuro do país. Nesse sentido, torna-se destaque a atuação do Banco do Brasil no campo econômico brasileiro. Após pouco mais de um ano da entrada do Brasil no confronto A União apresenta o relatório do presidente do banco Marques Reis com o título “O Banco do Brasil e o esforço de guerra nacional”:

O Banco do Brasil desempenha um papel excepcional na articulação das forças produtoras do país, assume uma importância cada vez maior em face dos grandes problemas de ordem econômico-financeira que o estado de beligerância veio acarretar. Perfeitamente aparelhado e em condições de enfrentar galhardamente por intermédio de suas carteiras, os diversos problemas precipitados ou agravados pela Guerra, o Banco do Brasil está cooperando eficientemente junto ao governo federal no esforço ingente pela vitória da grande causa em que nos empenhamos.17

744

Esse discurso parte da atuação do Banco do Brasil no âmbito nacional. Todavia, ainda resta ao jornal relatar a situação do estado da Paraíba, enfatizando a sua honrosa participação nos destinos nacionais: Na Paraíba, como em todos os Estados, a ação do Banco do Brasil tem sido de maneira a merecer os melhores aplausos. Deve-se à presidência do Sr. Marques dos Reis a instalação de diversas filiais no interior do Estado, proporcionando assim, maiores possibilidades ao progresso de nossa terra.18

O que se pode perceber a partir desses discursos é a preocupação do governo em se utilizar dos meios de comunicação para externar uma situação de controle e de estabilidade apesar da efervescência de estado de beligerância em que se preparava o país. Outro ponto interessante a destacar é a forma como o jornal apresenta as notícias, sendo extremante superficial (o relatório não apresenta efetivamente as medidas de ordem econômico-financeira), buscando emocionar o público leitor, com discursos patrióticos e genéricos.

CONSIDERAÇÕES

Através das análises da propaganda patriótica disseminada nas linhas do jornal oficial do Estado, o A União, durante o contexto da Segunda Guerra Mundial, foi possível perceber de que forma os ícones publicitários foram utilizados pelo governo brasileiro com a intenção de sensibilizar a população para o estado de beligerância. No caso específico do estado da Paraíba, destaca-se a ação sistemática do interventor Ruy Carneiro nesse intento e seus diálogos com o presidente Getúlio Vargas que compunham a conjuntura política do Estado Novo. Interessante atentar para o simbolismo de que detém esses ícones publicitários e a força que exercem sobre o imaginário coletivo, onde sutilmente penetram no cotidiano da sociedade e estabelecem relações de sentido e valores múltiplos, tornando possível a construção de valores nacionalistas e patrióticos, como os estudos deste trabalho nos apontam. Diante disso, pode-se concluir que as formas de publicidade e propaganda foram muito além dos clássicos anúncios publicitários de produtos com o enredo de guerra. A propaganda era feita dia a dia pelas páginas do A União, desde a utilização iconográfica como meio de apelo e comoção popular até os mais diversos símbolos imagéticos e discursivos que tão fortemente compuseram o cenário político e sociocultural do Brasil durante esse momento ímpar da história da humanidade.

745

Eric Hobsbawm chama de “breve século” o período que vai de 1914 a 1991 e o considera como a “Era dos Extremos”, onde se por um lado, houve crescimento econômico e grandes avanços tecnológicos, por outro, ocorreu a maior catástrofe da humanidade: A Segunda Guerra Mundial. E a intensidade com que se sucederam diversos acontecimentos desde o início do século até os desdobramentos pós Segunda Guerra que culminaram na Guerra Fria, denotam um tempo histórico maior que o cronológico vivido. 2 HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: O breve século XX – 1914-1991. Tradução de Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 3 Usamos o conceito de nacionalismo a partir de Eric Hobsbawm que o aborda como um conceito complexo e heterogêneo. O autor defende a ideia do fenômeno do nacionalismo como uma construção a partir da relações de poder e sociais que se configuram em cada contexto. Aborda as formas de afirmação do sentimento de nacionalismo com este antecedendo e formulando a ideia de Nação. Ver mais: HOBSBAWM, Eric. Nações e Nacionalismo desde 1780. Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra; 1998. 4 KRAUSE, Kátia Iracema. O rato vai à guerra: como o Michey Mouse se tornou uma imagem de poder dos EUA, 1928-1946. Dissertação, Universidade Federal Fluminense, Instituto de História: Rio de Janeiro, 2011. p.16. 1

5

O governo brasileiro estava inserido no contexto da chamada “Política da Boa Vizinhança”, que segundo Sandro Heleno Morais Zapelão, se configurou em medidas de boas relações com os demais países da América Latina, diferentemente do que ocorria até então. A partir do governo norte-americano de Franklin Delano Roosevelt, essa política foi posta em prática e a imagem dos Estados Unidos como um país democrático e se intensificou durante a Segunda Guerra Mundial. Ver mais em: ZAPELÃO, Sandro Heleno de Morais. A política externa dos Estados Unidos. Paraná: Universidade Estadual de Maringá (UEM), 2008. 6

GARBOGGINI, Flailda; CARUSO, Adagilsa. História da Propaganda brasileira em revista no período da Segunda Guerra Mundial. Um estudo exploratório. V Congresso Nacional de História da mídia; São Paulo: Intercom, 2007. p.6. 7

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e História Cultural. Belo Horizonte: Autentica, 2004. p.41.

8

A autora traz uma importante contribuição para o campo da história, no que concerne às representações, tendo em vista que seu trabalho aborda a figura central do “Mickey Mouse” em diversos âmbitos, desde os efeitos didáticos até os valores patrióticos, através da propaganda política que se delineou durante a Segunda Guerra Mundial. (2011, p.21). 9 A União, 9 de julho de 1944, p.3 10 Empresa de combustíveis e óleos lubrificantes, fundada no início do século XX, no Texas (EUA) e que teve destaque durante a Segunda Guerra Mundial na venda e exportação de combustíveis. 11 A União, 02 de agosto de 1942, p.4. 12 COSTA, Octávio. Trinta anos depois da volta: O Brasil na II Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1976. p.36. 13

Segundo documentários A cobra vai fumar (2000) e Senta a Pua! (1999), de direção de Erick de Castro, que apresentam relatos de veteranos da FEB e pilotos da FAB. 14

SILVA, Ana Beatriz Ribeiro Barros. O salvador, o realizador e o democrata: a construção do mito político do interventor Ruy Carneiro (1940-1945). In: CAVALCANTE NETO, Faustino Teatrino; SANTOS NETO, Martinho Guedes dos & GUEDES, Paulo Henrique M. de Queiroz (orgs.) Cultura e poder político: historiografia, imaginário social e representações da política na Paraíba republicana. João Pessoa: Editora Universitária – UEPB, 2011. p.193/194. 15 A União – 18 de Agosto de 1942, p.1. 16 A União, 23 de ago. de 1942, p.5. 17 A União, 18 de Outubro de 1943, p.8. 18 A União, 18 de Outubro de 1942, p.8.

746

“Bacharéis devassados”: leituras de bacharéis dos juízes de fora de Vila do Carmo (séc. XVIII) Débora Cazelato de Souza Doutoranda em História Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Orientadora: Profª. Drª. Adriana Romeiro [email protected] Agência de fomento: CAPES/PROEx Resumo: A leitura de bacharéis era requisito obrigatório ao aluno recém-formado que desejava adentrar na carreira da magistratura portuguesa. Assim, cabia ao Desembargo do Paço proceder a uma rigorosa pesquisa acerca dos antepassados do candidato, a fim de averiguar, inclusive, a ‘limpeza de mãos’ de parentes mais próximos. As leituras eram mais um mecanismo de controle da Coroa postos em prática para regulamentação da sua estrutura burocrática. Nessa comunicação focaremos nas leituras de alguns juízes de fora de Vila do Carmo (Mariana). Essa pesquisa tem financiamento da CAPES/Proex. Palavras-chave: Minas colonial, leitura de bacharéis e juízes de fora. Abstract: The ‘leitura de bacharéis’ was a mandatory requirement to the newly formed student who hoped to enter the portuguese magistracy career. Thereby, it was up to the ‘Desembargo do Paço’ to proceed to a rigid research concerning the candidate’s forebears in order to ascertain, inclusively, that closer relatives had “clean hands”. The readings were more a Portuguese Crown controlling mechanism put into practice to regulate its bureaucratic structure. In this communication we will focus on the reading of some ‘juízes de fora’ Vila do Carmo (Mariana). This research is financed by CAPES/Proex. Keywords: Colonial Minas, ‘leitura de bacharéis’ and ‘juízes de fora’. A leitura de bacharéis era requisito obrigatório ao aluno recém-formado que desejava adentrar na carreira da magistratura portuguesa. Ao formar em Leis ou Cânones na Universidade de Coimbra, o aluno que pleiteava um cargo na estrutura burocrática portuguesa deveria passar pela leitura de bacharéis. Ele era, por assim dizer, nas palavras de José Subtil, “um instrumento de controlo e disciplina da magistratura territorial por se

tornar

indispensável no acesso à carreira”i. Grosso modo, as leituras funcionavam da seguinte maneira. Depois de oito anos na Universidade de Coimbra, o aluno obteria o diploma da formatura. A Universidade remeteria

747

ao Desembargo as listas dos diplomas, em que constava a avaliação qualitativa de ‘muito bom’, ‘bom’, ‘suficiente’, ‘medíocre’ ou ‘reprovado’ii. Baseado nisso é que se seguia a seleção dos candidatos à leitura. Para continuar no processo de seleção, o aluno formado deveria ainda apresentar uma prova de prática forense, em que tivesse servido como assistente nas audiências públicas de um lugar de letras ou tivesse residido por no mínimo dois anos na Universidade de Coimbra depois de formadoiii. Segundo Subtil, “o Desembargo do Paço retirava à Universidade de Coimbra a capacidade da legitimação acadêmica e transferia-a, inteiramente, para a sua sede”iv. Observa-se, que nesse sentido, a leitura de bacharéis foi uma forma que a Coroa utilizou no intento de selecionar melhor o seu corpo burocrático e, obviamente, de ter um domínio maior sobre eles. No entanto, Subtil ainda nos explica que por um decreto de agosto de 1723v, ficou determinado que mesmo os alunos com designativo de “muito bom” ou “bom” deveriam apresentar a certidão do estágiovi nos Auditório da Corte, Porto ou da correição da Comarca de naturalidade. Se fossem formados em Leis, deveriam constar ao menos um ano de assistência, entretanto, se a formação fosse em Cânones a assistência subia para dois. Contudo, se além da formatura apresentasse também um exame privado, o tempo de assistência reduziria pela metade em ambos os casos, ou seja, seis meses para os bacharéis em Leis e um ano para os bacharéis em Cânones. Por fim, Subtil ainda explica que “depois da satisfação destes requisitos o bacharel, para ser consultado, isto é, para ser proposto ao monarca para provimento, tinha de ser aprovado no exame da ‘leitura’ com a classificação de “Bem” ou “Muito bem” por todos ou, por maioria, dos membros do júrivii.” Nesse ponto faz-se necessário esclarecer, que a pesquisa de doutorado em andamento pelo Programa de Pós-Graduação em História da UFMG busca compreender a atuação dos juízes de fora que estiveram presentes na Vila de Ribeirão do Carmo, atual Mariana/ Minas Gerais. Em um recorte que se estende de 1730 a 1777, o Rei nomeou sete juízes. Evidente que todos eles passaram pelas chamadas Leituras de Bacharéis e tiveram posteriormente, suas nomeações tanto no Reino quanto no Ultramar. Todos os juízes de fora que estiveram em Mariana passaram pela tal exame de leitura e tiveram a classificação/resultado de “bem por todos” ou “bem”. Na leitura do bacharel Antônio de Gouvea Araújo Coutinho há a observação de que ele “leu bem” por dois do júri e “muito bem” por outro juizviii. Além disso, em algumas leituras há também trechos a margem em que citam os alunos como “considerado bom estudante” ix. Esse indicativo de bom estudante eram as informações dadas pela Universidade de Coimbra referida anteriormente. No entanto, depois da reforma dos Estatutos da Universidade em 1772, ficou estabelecido que

748

os alunos ficariam automaticamente habilitados aos lugares das letras, desde que apresentassem a Carta de Aprovação. Interessante notar, que novamente esse novo estatuto habilitava e restituía a Universidade o poder de decisão exclusivo sobre a qualidade do magistrado, retirando do Desembargo a capacidade de se pronunciar acerca desse merecimentox. Esse decreto durou muito pouco tempo, sendo revogado no Reinado de D. Maria I, devolvendo assim, ao Tribunal, suas atribuições anteriores. Segundo os desembargadores do Paço São estes exames tão antigos como os Romanos, entre os quaes, os que aspiravão aos cargos da Magistratura erão examinados (...) a simples approvação da Universidade não he a que qualifica os Bachareis (...) devem fazer-lhe no ponto as perguntas, que forem precisas, para se formar juízo do seu talento, e passar-se depois às perguntas praticas, de duvidas do mesmo ponto, as que mais conduzirem, para fixar-lhe o juizo, e formar-lhe hum Espirito de Decizão, que he o que faz o bom Magistrado.xi

Por fim, esse jogo entre a Universidade e o Desembargo tinha um objetivo único: averiguar qualidades e merecimentos dos candidatos a fim de servirem aos lugares de letras da magistratura portuguesa. Analisaremos agora a forma como se procedia ao inquérito sobre a vida pregressa dos candidatos.

*** As leituras de bacharéis implicavam a apresentação daqueles que se candidatavam aos ofícios públicos; eram acompanhadas de inquirição de testemunhas capazes de atestar se os candidatos viviam “à Lei da Nobreza”xii. Já se referiu anteriormente ao significado das leituras de bacharéisxiii. Com o objetivo de verificar a vida pregressa e a pureza de sangue do habilitando e de seus antepassados, o Desembargo do Paço “enviava um questionário ao juiz real da cidade ou distrito em que moravam os pais e avós do candidato.”xiv Diversas testemunhas eram inquiridas e, por fim, se todos os pareceres fossem favoráveis, o candidato era chamado para ‘ler’ perante o Desembargo do Paço. Segundo Stuart Schwartz, todo esse processo (...) assegurava para a Coroa magistrados profissionais competentes de origem social relativamente homogênea e cuja ortodoxia religiosa e política era digna de confiança. [Porém] como qualquer outro processo similar, nunca atingiu seus objetivos plenamente.xv

Havia um questionário modelo a ser seguido pelos magistrados da comarca do habilitando. Ele procederia à inquirição com pelo menos sete testemunhas. Geralmente se iniciava perguntando se a testemunha sabia o motivo pelo qual era chamada e se conhecia os

749

avós e pais maternos e paternos do habilitando e se eram “cristão velho, limpo e sem raça alguma de Mouro, judeu, mulato ou de qualquer outra infecta nação”. Além disso, no questionário havia perguntas que atestavam se o habilitando era solteiro ou casado e de boa vida e costume. De maneira geral, todos os juízes de fora que passaram por Minas Gerais no período que se estende de 1730 a 1777, não sofreram grandes problemas para ler no Desembargo. O primeiro juiz de fora de Vila do Carmo era o senhor Dr. Antônio Freire da Afonseca Ozório, ele passou por doisxvi cargos antes de criar de novo o cargo de juiz de fora na capitania mineira. Atuou entre os anos de 1731 a 1734. Fez sua leitura no ano de 1718, tendo 38 anos de idade na época do exame e lido “bem” por todosxvii. A avaliação qualitativa da Universidade consta como “suficiente”xviii e dispensando nas informações que tinhaxix. Deixaremos para o final a averiguação sobre o segundo juiz em atuação nas Minas Gerais, o senhor José Pereira de Moura. O terceiro juiz de fora de Minas, o senhor Francisco Galvão de Andrade leu no Desembargo no ano de 1735, com 30 anos de idade e tendo lido “bem” por todos. Francisco Ângelo Leitão era bacharel formado em Cânones, cavaleiro professo na Ordem de Cristo. Em sua leitura, foram inquiridas diversas pessoas entre 52 e 85 anos, que atestaram a limpeza de sangue de sua família. Era ele “solteiro e de boa vida e costumes (...)”. O provedor da Comarca de Tomar, Pedro da Costa Freire, ficou responsável pela inquirição sobre o avô materno de Francisco Ângelo Leitão,xx e concluiu ser um homem “(...) inteiro e legítimo cristão velho (...) pessoa da melhor qualidade e nobreza (...) pelo que tudo se faz digno o habilitante de ser admitido ao Real Serviço nos Lugares de Letras, como pretende.” Além disso, tanto o corregedor do cível, quanto o do crime da Casa da Suplicação atestaram que Leitão havia praticado naqueles juízos. Por fim, há um mandado de averiguação de culpa na Casa da Suplicação, datado de 28 de abril de 1736, em que se atestou que Leitão era morador em Lisboa, na Freguesia da Encarnação, e tinha 26 anos xxi. Leu no Desembargo do Paço no ano de 1736. Também leu ‘bem por todos”xxii. Silvério Teixeira era bacharel graduado pela Universidade de Coimbra. Natural de Lisboa, à época da habilitação contava com 19 anos e era “solteiro e bem procedido”. Na leitura de bacharéis, foram inquiridas cerca de 14 pessoas entre 59 e 87 anos, que atestaram a limpeza de sangue de sua família. Ao que parece, o avô paterno de Silvério era francês; segundo se apurou, ele “(...) tinha vindo a este Reino no serviço da Augustíssima Senhora Rainha d. Maria Sofia, conservando-se sempre, por si e seus filhos, no serviço da Casa Real (...)”. O corregedor do Cível de Lisboa ficou responsável pela inquirição na cidade de Lisboa.

750

O corregedor da Comarca de Santarém ficou com a função de inquirir sobre o avô materno na vila de Azambuja. Ao corregedor de Lisboa pareceu que “(...) sem nenhum escrúpulo se podia conceder ao suplicante a graça que pedia (...)”xxiii. Na documentação há notável preocupação de algum ministro que leu as inquirições, de verificar se o avô de nação francesa era de fato cristão velho, pois todas as partes que mencionavam o nome de Jacques Pilon estavam grifadas. Além disso, anotou a margem do documento a idade das testemunhas na medida em que ia lendo. José Antônio Pinto Donas Boto, por sua vez, era natural e morador de Ervedoza do Douro, Comarca de Pinhel, e tinha 26 anos à época da habilitação. O provedor da Comarca de Lamego, que realizou inquirições na Vila de Freixo Numão, afirmou que “(...) seus pais e avós não exercitaram em tempo algum ofício mecânico, antes eram pessoas nobres e como tais se tratavam, e que sempre serviram os cargos de honra (...)”. Além disso, Donas Boto, segundo testemunhas, tinha parentes nas melhores famílias dos concelhos vizinhos, bem como irmãos e parentes clérigos e familiares do Santo Ofício. O corregedor da Comarca de Pinhel atestou, em 15 de fevereiro de 1753, que o habilitando advogou naquele juízo por mais de dois anos, defendo causas e tendo bom procedimento. Em 13 de fevereiro de 1753, o juiz dos órfãos e de fora das Vilas de Freixo de Numão, Horta e seus termos atestou que Donas Boto “(...) tomou prática neste meu auditório, assistindo às audiências dele, patrocinando as causa de que era procurador e fazendo requerimentos (...)”xxiv. Segundo o capitão major da vila de Freixo Numão, Donas Boto tinha em sua família “pessoas das principais da governança daquela Vila (...) e sua mãe era irmã do Pároco da mesma freguesia (Sabadelhe), é solteiro e pessoa de boa vida e costumes, e de exemplar procedimento, e muito inclinado a seguir as Letras”. Já o senhor Antônio de Gouvêa Araujo Coutinho era da Vila de Barcos, Comarca de Lamego. Em 1771, habilitou-se para os lugares de letras. O provedor da mesma comarca fez suas inquirições sobre o avô materno. As testemunhas disseram serem os pais e avós do habilitando pessoas “(...) muito distintas não só desta Comarca, mas da província, que sempre se trataram à Lei da Nobreza (...)”xxv. Tinha 26 anos à época da leitura. Por fim, reatamos agora o caso do segundo juiz de fora de Vila do Carmo, José Pereira de Moura, pois alguns elementos encontrados em seu processo de habilitação merecem destaque. No Códice Costa Matoso, consta que José Pereira Moura, cavaleiro professo na Ordem de Cristo, fez sua leitura no Desembargo do Paço em 1727, tinha 27 anos à época de leitura e lido “bem por todos”. No ano de 1725, José Pereira de Moura se habilita no

751

Desembargo para que se possa proceder as costumadas diligências para entrada no serviço real. No processo de habilitação, há uma carta em consta uma ordem real para que (...) examinando as inquirições inclusas que tirou o ouvidor de Barcellos, pergunte mais testemunhas de maior exceção a respeito da fama de cristão novice do habilitando José Pereira de Moura procedida de uma sua parenta que da Vila das Caldas da Rainha foi para o lugar de Ruyvãens [sic] procurando saber lhe o nome e a razão de parentesco que tinha com o habilitando (...)xxvi

A carta continua com a informação de que oito testemunhas de “maior idade e exceção” foram perguntadas a respeito da questão acima mencionada. Constou que o habilitando é neto pela parte paterna de Bras Antonio e de Ana Pereira, naturais e moradores de Ruivãens. Contrariamente ao que o ouvidor de Barcellos atestou, não foi o avô (Bras Antônio) quem sofreu com a fama de cristão novice, e sim sua mulher Ana Pereira quem sofreu com o murmurinho e rumor. Segundo se apurou Ana Pereira, avó materna do habilitando, era neta ou bisneta de uma senhora chamada Eulália Francisca, que tinha ido para a dita freguesia de Ruivãens com a irmã Anna Francisca e em companhia do irmão clérigo. Chegando à Vila, Eulália Francisca por (...) ser formosa a solicitara um abade que nela houve chamado João Pas Monteiro; e por não conferir nos seus intentos a perseguiu e lhe chamou de judia. Porém, é fama constante que na hora da morte, confessara o dito abade ser falso e que antes desta fora convencido de menos verdadeiro por sentença que a dita Eulália Francisca alcançara demandando-o pela sobredita injúria, de que resultou desvanecer-se a dita fama (...)xxvii

Desta maneira, ficou patente que as futuras gerações não mais padeceriam dessa fama, incluindo aí a avó paterna do habilitando. É interessante o caso, pois mostra que houve uma grande preocupação em (re)apurar os fatos, incluindo mais testemunhas. As inquirições serão trabalhadas em comunicação posterior. *** Feitas todas as diligências e inquéritos da vida pregressa do candidato, era finalmente marcado o dia para a leitura. Os candidatos se dirigiam ao Desembargo do Paço e diante do júri, discorriam acerca de um assunto escolhido/sorteado. O tema era escolhido de véspera e tirado a sorte. Nuno Camarinhas, explica que o “exame compreendia uma prova sobre um tema de direito romano (...) depois da reforma da universidade e da legislação que valorizava o direito nacional, o exame continuava a centrar-se no direito romano”xxviii. Segundo o Regimento do Desembargo, o júri deveria ser composto de seis membros, mas na prática, isso nem sempre era respeitado, podendo haver mais ou menos membros do que era estabelecido pelo Regimento.

752

Dos setes juízes trabalhados nessa comunicação, dois deles tiveram um júri composto por sete membros (Antônio Freire da Afonseca Ozório e José Pereira de Moura), um por cinco membros (Silvério Teixeira), outros três leram perante três membros do júri (José Caetano Galvão de Andrade, Francisco Ângelo Leitão, Antônio de Gouvêa Araújo Coutinho) e outro juiz leu para dois membros do júri (José Antônio Pinto Donas Boto). Importante frisar que nem todos que passavam pelas leituras eram nomeados para cargos no Reino ou Ultramar. Segundo análise do professor Nuno Camarinhas, alguns poucos eram reprovados, outros que foram aprovados resolveram seguir outro tipo de carreira, seja como padre ou com professor, por exemplo. Existiram aqueles que preferiram advogar, ou mesmo servir somente um cargo na magistratura, ficando posteriormente exercendo apenas a advocacia. Alguns desistiam da nomeação, pois poderia demorar muito para serem nomeados ao primeiro cargo. Não é o caso dos juízes estudados, todos eles foram nomeados e tiveram progressão na carreira. Dos juízes aqui trabalhados, todos eles esperaram ao menos um ano para a primeira nomeação, com exceção para Antônio Pinto Donas Boto que foi nomeado no mesmo ano em que fez a leituraxxix. Seis deles tiveram como primeira nomeação o cargo de juízes de fora, e o outro como juiz do crime. Quatro dessas primeiras nomeações ocorreram para atuarem em cargos no Reino e outras duas já para atuarem enquanto juízes de fora de Mariana. De forma geral, pode-se perceber que os magistrados que atuaram como juízes de fora em Vila do Carmo provinham de famílias distintas de diferentes localidades do Reino. O processo das leituras de bacharéis nunca atingiu seus objetivos plenamente, tal como referido anteriormente por Stuart Schwartz, no entanto o mesmo autor sugere que todo “esse processo de recrutamento teve certo êxito em assegurar pelo menos que um padrão mínimo de competência fosse mantido”xxx. Os bacharéis que serviram como juízes em Mariana tiveram sua vida e de seus parentes ‘devassadas’, porém sem nenhum problema foram nomeados para cargos no Reino e Ultramar e continuaram ascendendo na magistratura portuguesa. As leituras funcionaram mesmo apenas como um instrumento necessário para o acesso. i

SUBTIL, José Manuel Louzada Lopes. O Desembargo do Paço. Lisboa: Universidade Autônoma de Lisboa. Departamento de Ciências Humanas, 1996. (tese de doutoramento). p. 298. ii Segundo Subtil, essa avaliação qualitativa de ‘muito bom’, ‘bom’ (...) eram chamadas de “Informações Gerais”. Além das informações gerais, Subtil ainda relata que os alunos deveriam passar por mais dois níveis. “‘o de procedimento e costumes’ (condições sociais de recrutamento); e o da ‘prudência, probidade e desinteresse’. O conjunto destas qualidades acadêmicas constituía a chamada Carta de Aprovação.” SUBTIL, José Manuel Louzada Lopes. op. cit., 1996. p. 299. iii Trata-se de um decreto de 19 de junho de 1649 . Para mais informações, conferir SUBTIL, José Manuel Louzada Lopes. op. cit., 1996. p. 299-300. iv SUBTIL, José Manuel Louzada Lopes. op. cit., 1996. p. 299.

753

v

Essa comunicação focará em um recorte temporal posterior a essa data, por esse motivo esse decreto valeu para os magistrados aqui trabalhados.Dos setes juízes de fora de Mariana que estiveram presentes entre os anos de 1730-1777, apenas o primeiro nomeado para a Capitania, o senhor Antônio Freire da Afonseca Osório, é quem leu no Desembargo na data de 13 de junho de 1718, isto é, antes do decreto citado. Leituras de Bacharéis. Biblioteca Nacional de Lisboa (posteriormente, BNL), códice 10856. Fólio. 249. vi “Essas cartas deveriam ser autenticadas pelos corregedores do cível ou crime (se tiradas na Corte ou na comarca do Porto) e pelos corregedores ou ouvidores ou juízes de fora de segunda instância, no caso de serem tiradas na comarca de naturalidade.” SUBTIL, José Manuel Louzada Lopes. op. cit., 1996. p. 300. vii Conferir todas essas informações em SUBTIL, José Manuel Louzada Lopes. op. cit., 1996. p. 298-304. viii Leitura de Bacharéis. BNL. Códice 10858. Fólio. 85v. ix Conferir leituras dos bacharéis José Caetano Galvão de Andrade, Francisco Ângelo Leitão e Silvério Teixeira. Leitura de Bacharéis. Arquivo Nacional da Torre do Tombo (posteriormente, ANTT). Desembargo do Paço. Repartição da Justiça e Despacho da Mesa, Livro 132. p. 192v; Livro 131. p.75 e livro 131. p. 179; respectivamente. x SUBTIL, José Manuel Louzada Lopes. op. cit., 1996. p. 302. xi Justificativa de desaprovação dos Desembargadores do Paço, de 10 de abril de 1777. AN/TT, DP., MR, liv. 249, PP. 182-183v. apud SUBTIL, José Manuel Louzada Lopes. op. cit., 1996. p. 303. xii ANTT. Leitura de Bacharéis. maço 04 – doc. 32 – 1735; maço 30 – doc. 25 – 1783 [1770]. xiii Segundo Subtil, esse “procedimento administrativo, da responsabilidade da Repartição das Justiças e do Despacho da Mesa, consistia numa indagação e inquérito sigiloso à vida e aos antecedentes do bacharel a cargo dos corregedores ou, na ausência, aos provedores”. SUBTIL, José Manuel Louzada Lopes. op. cit., 1996. p. 301. xiv SCHWARTZ, Stuart. Burocracia e Sociedade no Brasil Colonial: A suprema corte da Bahia e seus juízes (1609-1751). São Paulo: Editora Perspectiva. Estudos n.50, 1979. p. 61. Subtil também fala sobre esse questionário. Segundo ele, deveriam ser inquiridas pelo menos sete testemunhas: “estas diligências eram feitas, pessoalmente, pelo magistrado comarcal no mais absoluto segredo, tomando os testemunhos da inquirição, também sob juramento sigiloso. O resultado final do processo constituía um ato de averiguação remetido ao Desembargo.” SUBTIL, José Manuel Louzada Lopes. op. cit., 1996. p. 301. xv SCHWARTZ, Stuart B. op. cit. 1979. p. 62. xvi Foi juiz de fora da Vila de Guarda, auditor geral da Beira. xvii Agradeço ao professor Nuno Camarinhas pelas informações sobre os juízes aqui trabalhados. BNL, códice 10856. Fólio 249. xviii Agradeço ao professor Marco Antônio Silveira pelas informações sobre os juízes aqui trabalhados. ANTT, leitura de bacharéis, maço 1, doc. 20. xix BNL, cod. 10856. xx Certidão tirada em Certã, 13 de março de 1736. ANTT, maço 04, doc. 32, 1735. xxi ANTT. Leitura de Bacharéis. Maço 04. doc. 32. 1735. xxii BNL, cod. 10856. xxiii ANTT. Leitura de Bacharéis. Maço 04. doc. 16. 1748. xxiv ANTT. Leitura de Bacharéis. Maço 23. doc. 05. 1752. xxv ANTT. Leitura de Bacharéis. Maço 30. doc. 25. 1770 e 1783. xxvi ANTT. Leitura de Bacharéis. Maço 18, doc. 33. xxvii ANTT. Leitura de Bacharéis. Maço 18, doc. 33 xxviii Camarinhas, N. Juízes e administração da justiça no Antigo Regime. Portugal e o império colonial, séculos XVII e XVIII. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian / FCT, 2010. p. 258. xxix Antônio Freire da Afonseca Ozório leu em 1718 e foi nomeado em 1720. José Pereira de Moura leu em 1727 e foi nomeado em 1728. José Caetano Galvão de Andrade leu 1735 e foi nomeado em 1737. Francisco Ângelo Leitão leu 1736 e foi nomeado 1739. Silvério Teixeira leu em 1749 e foi nomeado em 1750. José Antônio Pinto Donas Boto leu em 1753 e foi nomeado no mesmo ano. Antônio de Gouvêa Araújo Coutinho leu em 1771 e foi nomeado em 1773. xxx SCHWARTZ, Stuart B. op. cit. 1979. p. 62.

754

Cultura (s) Política(s) em Paulo de Tarso e suas implicações no Império Romano. Débora Rodrigues de Souza1

Este trabalho tem por objetivo apontar algumas das características presentes nas epistolas paulinas de Romanos e 1 Coríntios que nos ajudem a compreender a caráter político das primeiras comunidades cristãs localizadas na região da Ásia Menor. Palavras Chaves: apóstolo Paulo – império romano – cultura política. This paper aims to point out some of the features present in the pauline epistles of Romans and 1 Corinthians that help us to understand the political character of the early Christian communities located in the Asia Minor. Key Words: Apostle Paul, Roman Empire, political culture.

O cristianismo, a partir de Constantino, tornou-se a religião do Império Romano. Mas aquilo que se tornou a religião estabelecida do império começou conhecido como um movimento antiimperial. A dimensão política do cristianismo perdeu-se em meio às revoluções burguesas do século XVIII. A Igreja e o Estado não só se desassociaram, mas optaram ao menos em teoria em não se envolverem na jurisprudência um do outro. Este fator reflete nos estudos teológicos e das ciências sociais no geral que possuem pesquisas que utilizem como fonte de análise o material bíblico. Richard Horsley, na introdução do livro por ele organizado intitulado Paulo e o Império: Religião e Poder na Sociedade Imperial Romana faz a seguinte afirmação sobre este assunto:

Baseados em seus alicerces novecentistas, os estudos do Novo Testamento, especialmente o de Paulo, concentraram-se na emergência do cristianismo, como religião universal e puramente espiritual, a partir da religião paroquial e abertamente política do judaísmo. A política imperial era vista como estruturante do contexto histórico ou “pano de fundo” do período da origem cristã, na perseguição do judaísmo por Antíoco Epífanes e na destruição romana do Templo de Jerusalém. Mas Jesus e especialmente Paulo estavam por definição voltados para questões religiosas, e não para a política. Havia no máximo certas “implicações” sociais ou políticas de seus ministérios. As questões imperiais em particular pareciam remotas – exceto numa

1

Licenciada em História pela UFRRJ (2010), mestranda em História na UERJ, orientanda do professor Dr. Edgard Leite Ferreira Neto. Email: [email protected]

755

ocasional ajuda à história da salvação, como quando Paulo conseguiu escapar da prisão na Judéia apelando a César.2

Mediante a aplicação da análise do discurso ao corpus documental paulino detectamos uma mensagem que vai além do que entendemos na contemporaneidade como vida religiosa, voltada para as questões do espírito, cuja dimensão se manifesta além da esfera espiritual. Apóstolo Paulo, o autor das fontes utilizadas, teve seu material inicialmente disseminado na região da Ásia Menor. As informações que temos acerca deste autor estão todas contidas em parte da Literatura Bíblica 3 a posteriore denominada, nos escritos dos Padres da Igreja, como Novo Testamento4. Paulo constitui autor da maioria dos livros reunidos, já ao longo da Idade Média, sob conotação canônica. Sabemos que o autor possuía cidadania romana, era judeu descendente da tribo de Benjamim e foi educado por um mestre da Lei judaica de nome Gamaliel. Segundo relatos bíblicos, Saulo de Tarso (latinização de seu nome original hebraico – Shaul Hatarshi) perseguia para por em prisão os participantes de uma seita conhecida como “os do Caminho”5. Nos relatos, transmitiu-se a tradição de que teria vivenciado forte experiência teofânica. Após a teofania, Saulo converte-se, passando não só a participar do grupo que até então perseguia, mas a ser reconhecido por um novo nome. Tomamos para análise em nosso trabalho a carta que ele escreve à comunidade cristã que se reunia em Roma e a carta à comunidade que se reunia em Corinto. Quanto ao caráter político que as comunidades de Paulo possuem, gostaríamos de iniciar partindo do próprio nome que Paulo utiliza para se referir a elas: ekklesia. Este termo era utilizado para designar a “assembléia” de cidadãos da polis grega (cidade-estado). Segundo intelectuais romanos como Varrão, as assembleias de Paulo muito provavelmente não se enquadrariam aos moldes da religião civil (cidade-estado), ou da religião “mítica” 2

HORSLEY, Richard A. Paulo e o Império: religião e poder na sociedade imperial romana. São Paulo: Paulus, 2004, p. 10. 3 Coletânea de livros que dão corpo ao que conhecemos como Bíblia. Esta é tradicionalmente dividida em duas partes conhecidas como Velho Testamento, onde a história do povo judeu é contada e Novo Testamento, onde é relatada a história de um judeu conhecido como Jesus de Nazaré e o desenvolvimento de um movimento socioreligioso que seria a base do Cristianismo a partir do século II. 4 Para facilidade de entendimento utilizaremos aqui esta terminologia. Mas é importante destacar que se trata de um conceito anacrônico visto que não temos no momento em que as cartas foram escritas um cânon, desta forma não havia também a noção de um testamento “novo” e outro “antigo”. 5 Quanto a essas informações ver Atos 21.39;22.3;22.27,28,29. Gálatas 1.13-14. Filipenses 3. 5-6.

756

(natureza do universo). As assembleias de Paulo eram a fusão destas duas condições, tanto políticas como religiosas, como era o caso da polis grega.6 Ao adentrarmos ao contexto linguístico dos termos utilizados na carta aos Romanos, percebemos que Paulo utiliza um tom um pouco quanto irônico para fazer sua apresentação acerca de Jesus no início desta carta.7 Dieter Georgi, ao fazer uma análise criteriosa da carta dirigida a esta comunidade mostra que Paulo utiliza uma terminologia imperial para apresentar Jesus, utilizada na época para se referir aos Césares. Paulo equipara o senhorio deles com o de Cristo ao utilizar um vocabulário imperial, típico da época do Principado. Termos como evangelion, pistis, dikayosine e eirene; expressões que evocam associação com a teologia imperial romana.8 Tomemos como exemplo ao termo pistis, traduzido por fé. Pistis era o Evangelho fundamental da religião de César. Este termo se encontra em Gálatas 3, 23-25 e se mantém em Romanos, Paulo o utiliza para expressar a “fidelidade” e “confiabilidade” de Deus. A palavra fé segundo o autor não exaure bem seu sentido. O César representava a fides de Roma em termos de fidelidade e obrigações por exemplo. O autor ainda afirma que no contexto dos capítulos 31-33 do livro de Romanos, que descrevem a amizade universal com poderes estrangeiros “vê-se uma afirmação sumária segundo a qual, no Principado de Augusto, muitos povos antes não amigos “descobriram a pistis do povo romano”.9 Para o autor, o fato de Paulo utilizar os slogans da religião de César para apresentar o Cristo mostra que ele está interessado em algo maior do que uma propaganda nacionalista judaica. Paulo estaria oferecendo uma alternativa de governo do princeps. O evangelho de Paulo entraria em diálogo crítico “com a boa nova de que a paz universal fora alcançada por um milagre de Áccio.”10

SOBRE OS RITUAIS

6

HORSLEY, Richard. Paulo e o Império. Religião e Poder na Sociedade Imperial Romana. SP: Paulus, p. 16. Ver Romanos 1. 1 – 7. 8 GEORGI, Dieter. Deus virado de cabeça pra baixo. In: HORSLEY, Richard. Paulo e o Império. Religião e Poder na Sociedade Imperial Romana. SP: Paulus, p, 151. 9 GEORGI, Dieter. Deus virado de cabeça pra baixo. In: HORSLEY, Richard. In: HORSLEY, Richard. Paulo e o Império. Religião e Poder na Sociedade Imperial Romana. SP: Paulus, p, 151. 10 Ibidem, p.154. 7

757

A mensagem central do material paulino é a cruz. Não há outro tema que Paulo tenha elaborado de maneira mais cuidadosa em suas epistolas e que tenha dado mais importância. Ele insiste que o que mais lhe interessa é o Cristo, e o Cristo crucificado. Por que a maneira como a morte chegou a Jesus teria tido um papel tão importante em seu discurso? O termo cruz designava estacas protetoras de plantas. Com o tempo é que passou a designar um instrumento de suplício. Pelo que tudo indica a crucificação tem proveniência persiana. Em muitos textos de Heródoto ela aparece como uma forma de execução utilizada pelos persas. Para estes, a terra, a água e o fogo eram realidades sagradas, a divindade fazia parte desses elementos. Os cadáveres eram considerados coisas. Não podiam então estar associados ou misturados com esses elementos divinos. Sendo assim, os cadáveres eram suspensos em “Torres de Silêncio”, lá serviam de alimento aos corvos. Com o tempo os persas modificaram o procedimento e começaram a utilizá-la não só para não profanar os elementos por eles considerados divinos, mas também para castigo. Não só mortos, mas também vivos, começaram a ser postos em cruzes. Alexandre Magno começa a utilizá-la como meio de execução capital. Na Grécia a cruz era reservada aos escravos, não se aplicava à população livre. Muito provavelmente a crucificação chegou aos romanos pelos fenícios, povo navegador. Em Roma, tornou-se a forma de execução capital reservada aos escravos.11 Neil Elliott realizou um trabalho importante sobre a utilização da cruz no mundo antigo que muito nos ajuda a entender a postura política dos cristãos no momento em que Paulo escreve suas cartas. Elliott afirma que o fato de Jesus ter morrido em uma cruz teve um papel central nas cartas escritas por Paulo. Além do apóstolo chamar a atenção para este fato em diversas passagens bíblicas, os próprios rituais celebrados pelos cristãos, como o batismo e a ceia, tem como seu pilar o evento da crucificação. O batismo era uma co-crucificação com Cristo (Rm. 6. 1-5) e a refeição sagrada comum era uma proclamação pública da morte de Jesus (1 Cor. 11.26).

11

Sobre a terminologia e as informações aqui dadas até o momento sobre a cruz ver a dissertação de mestrado de em Teologia de Robson Mauro Lourenço intitulada “Cruz e Crucificação nas Cartas de São Paulo”. PUC Rj, 2000.

758

Levando em consideração a centralidade da crucificação para Paulo, o autor afirma então ficar perplexo em meio às afirmações de que Paulo não se interessava por questões políticas, pelo fato de a crucificação ser “um dos eventos mais inequivocamente políticos registrados no Novo Testamento.”12 O autor retoma o clássico estudo sobre crucificação realizado por Martin Hengel onde este põe em destaque a significação política da crucificação. Tratava-se da pena romana suprema infligida apenas às classes inferiores. Somente mediante atos de traição e renúncia à proteção de cidadania é que cidadãos romanos podiam ser crucificados. É importante destacar que a crucificação era, sobretudo, aplicada a grupos que de alguma forma ameaçassem a ordem e a Lei no Estado.13 O símbolo da cruz é utilizado de tantas formas na cultura ocidental que não conseguimos apreender o horror que ele causava no século 1. O mais intrigante é que temos um grupo de pessoas que se reúnem para realizar rituais em torno do símbolo que levou à morte um insurreto político romano. Em Romanos 6.3 Paulo faz a seguinte afirmação: “Ou não sabeis que todos os que fomos batizados em Cristo Jesus, é na sua morte que fomos batizados?” Em 1 Coríntios 11.26 ele declara acerca do ritual da Ceia: “Todas as vezes, pois, que comeis desse pão ou bebeis desse cálice, anunciais a morte do Senhor até que ele venha.” Optar pelo batismo não implicava apenas em assumir uma nova conduta ética ou declarar em público uma experiência de teofania. Assim como participar do banquete chamado “Ceia do Senhor” não era apenas participar de um memorial. Ambas as atitudes ritualísticas eram uma declaração ao Império Romano, uma declaração de qual senhor (e César) serviam.

ACERCA DAS COMUNIDADES PARALELAS AO IMPÉRIO Tudo indica que Paulo realizou três visitas à cidade de Corinto. A primeira teria se dado entre 50-51, quando ficou por 18 meses (At 18.1-18); a segunda no verão de 54; a terceira na qual permanece três vezes, inverno de 55-56. (2 Coríntios 13, 1-2).14

12

ELLIOTT, Neil. A Mensagem Antiimperial da Cruz. In: HORSLEY, Richard. Paulo e o Império. Religião e Poder na Sociedade Imperial Romana. SP: Paulus, p. 168. 13 Ibidem, p. 171. 14 MAZZAROLO, Isodoro. Primeira Carta aos Coríntios. Exegese e Comentário. RJ, Mazzarolo Editor, 2008, p.17.

759

Corinto foi fundada no século X A.C. Era a capital da Acaia e governada pelo pro cônsul de Roma, nos tempos de Paulo este era Lucio Iunio Gálio. A cidade foi saqueada no ano de 146 A.C e reconstruída em 44 A.C. por um romano chamado Julio César. Mazzarolo afirma que o sistema de governo de Corinto era “uma miniatura do poder romano.” A carta da qual tratamos foi escrita muito provavelmente em 54 na cidade de Éfeso. Gostaríamos de focar nossa atenção aqui no artigo de Richard Horsley sobre a comunidade cristã que se reunia nesta cidade e darmos enfoque aos elementos que a apontam como algo tanto quanto estranho, podendo afirmar que subversivo, ao governo romano. Primeiramente destacamos a estrutura da missão paulina. Existe uma ideia consensual de que Paulo ensinava e pregava para um grande número de pessoas em locais públicos, quando as fontes nos mostram que os encontros para formação e celebração ocorriam em pequenos grupos nas casas de pessoas que eram colaboradoras de Paulo. Parece que Paulo e seus auxiliares preferiram evitar “o mercado de concorrência religiosa”. “O quadro que emerge dessas observações não é o de um culto religioso, mas o de um movimento social nascente formado por uma rede de células baseada em Corinto, mas que se estendia mais amplamente pela província da Acaia.”15 “Saúdam-vos as Igrejas da Ásia. Enviam-vos efusivas saudações no Senhor Áquila e Priscila, com a Igreja que se reúne na casa deles.” (I Cor. 16.19) Outro ponto destacado pelo autor é a orientação acerca do consumo de alimentos “sacrificados a ídolos”:

Por conseguinte, a respeito de carnes imoladas aos ídolos, sabemos que o ídolo nada é no mundo e que não há outro Deus a não ser o Deus único. Por conseguinte, a respeito do consumo das carnes imoladas aos ídolos, sabemos que Se bem que existem aqueles que são chamados deuses, quer no céu, quer na terra – e há, de fato, muitos deuses e muitos senhores -, para nós, contudo, existe um só Deus, o Pai, de quem tudo procede e para o qual caminhamos, e um só Senhor, Jesus Cristo, por quem tudo existe e para quem caminhamos. (I Cor. 8.1-8) (grifos meus)

É boa a recordação de que no Mundo Antigo o campo religioso não se separava dos campos político, econômico e ético da vida. Também o fato de que os cultos realizados em

15

HORHSLEY, Richard A. Paulo e o Império. Religião e Poder na Sociedade Imperial Romana. Editora Paulus, p. 241.

760

homenagem ao imperador e os santuários erigidos nas províncias do império funcionavam como fator de coesão do mesmo.

Além disso, a partir de dentro do campo, recordam-nos de que o sacrifício era parte integrante, e na verdade constitutivo, da vida comunitária da Antiguidade greco-romana em todos os níveis sociais – das famílias ampliadas às guildas e associações e às celebrações que abarcavam a cidade inteira, incluindo os festivais imperiais. Tendo isso em mente, deveria ser possível perceber que a discussão de Paulo em 1 Coríntios 8-10 trata de algo bem mais amplo do que a ética individual.16

Paulo chama a atenção aos cristãos de Corinto que acreditam ter liberdade para banquetear-se nos Templos, onde homenagens a outra fonte de autoridade, que não a deles, é realizada. A questão centra-se no fato de que a visibilidade nesses templos poderia contribuir para enfraquecer ou confundir aos que são de dentro da comunidade como os que são de fora. Afinal, qual o sentido em banquetear-se em um local cuja autoridade não seria o Deus dos cristãos? Outra questão levantada pelo autor é quanto às relações econômicas que deveriam perdurar dentro da comunidade cristã. O texto base para tal continua sendo o anterior. Parece que Paulo deseja que o padrão das relações econômicas dentro da comunidade seja distinto das vigentes no império e se utiliza de seu próprio exemplo para dissertar sobre o assunto.17 Ele dispensa ajuda financeira para manter seu ministério. Segundo o autor isto era uma maneira de evitar que algum patrono de Corinto o considerasse um “apóstolo doméstico” como também uma maneira de evitar que a assembléia reproduzisse as relações de poder da sociedade dominante.18 Ao contrário do fluxo tributário ascendente de bens, “o movimento de Jesus adotou a reciprocidade econômica horizontal das pequenas cidades, seguindo o ideal mosaico tradicional da Aliança de manter o nível de subsistência de todos os membros da comunidade.”19

16

Ibidem, p, 243. HORSLEY, Richard A. Paulo e o Império. Religião e Poder na Sociedade Imperial Romana. São Paulo: Paulus, 2004, p. 245. 18 Ibidem, p, 246. 19 Ibidem, p, 245. 17

761

CONCLUSÃO

O conceito de cultura política em muito pode nos ajudar a pensar a postura dos cristãos frente ao império diante dos exemplos citados. Há cerca de duas décadas atrás o conceito de cultura política era ainda muito pouco utilizado por historiadores. Hoje muitos o utilizam amiúde sem se preocupar em explicar o que entendem como tal sendo muitas vezes feito um uso nada criterioso do conceito. O conceito foi criado na década de 60 por Almond e Verba, cientistas políticos norte-americanos, na tentativa de, a partir deste, melhor entender aspectos subjetivos que determinariam certas orientações políticas em detrimento de outras nas sociedades. Para a elaboração do conceito os pesquisadores utilizaram-se de diversas áreas do conhecimento como a História, a Psicologia, a Sociologia e a Filosofia. A Escola de Cultura e Personalidade que se desenvolveu nos EUA no pós-guerra dos anos 20 até o final da década de 60 é a grande referência.20 Serge Berstein afirma que o conceito responde bem a expectativa do historiador que trabalha com temáticas políticas pelo fato de que “não leva a uma explicação unívoca, mas permite adaptar-se à complexidade dos comportamentos humanos.” O autor afirma também que o surgimento de uma cultura política não se dá de forma acidental, mas respondendo aos problemas e crises que surgem em uma dada sociedade, respostas estas com fundamento suficiente para levar a comportamentos que atravessem a gerações.21 Segundo Almond e Verba, há uma classificação feita por estudiosos do tema distinguindo os tipos de cultura política. São três: a cultura política paroquial, a cultura política de sujeição e a cultura política de participação. A cultura política paroquial é caracterizada como sendo de sociedades simples onde instituições de cunho especificamente político não existem. A de sujeição é aquela presente em sociedades onde indivíduos dirigem suas avaliações e percepções primeiramente a instâncias administrativas e executivas para que deem uma resposta as suas demandas individuais. A de participação supõe a participação ativa de cada um. As percepções e avaliações sobre o sistema político são distribuídas de forma equilibrada entre as estruturas input e output. Nosso interesse neste trabalho é voltado para a chamada cultura política paroquial, tradicionalmente vinculada às sociedades do

20

KUSCHNIR, Karina. CARNEIRO, Leandro Piquet. As Dimensões Subjetivas da Política: Cultura política e antropologia da política. In: Revista Estudos Históricos.v.2, n.24,1999, p. 228. 21 Ibidem, p. 355.

762

Mundo Antigo, e a ideia de que “estas sociedades seriam caracterizadas ainda por baixos níveis de participação política e associativa, na medida em que os agentes têm uma visão limitada das estruturas de incorporação e resposta às demandas individuais e coletivas.”

22

Nosso intuito é problematizarmos tal afirmação a partir dos exemplos expostos aqui sobre o trabalho realizado pelo apóstolo Paulo, na região da Ásia Menor no Império Romano no século I da EC. Em Paulo, a cruz seria o início da destruição de todos os poderes maléficos. Paulo a internacionaliza ao escrever aos membros da comunidade de Corinto que residiam a quilômetros de distância da Judéia (local onde ocorreu a crucificação) que eles deveriam viver uma vida de lembrança desta crucificação por meio da qual Deus revelara o início do fim dos “Poderes” e começou também a levar “a aparência deste mundo” ao fim. (1 Cor 7,31). Fato é que a cruz no material paulino tem um papel central. Não só nas cartas que Paulo escreve a comunidade de Corinto mas também nas demais o culto a cruz realizado pelos cristãos recebe destaque. Os cristãos a que Paulo dá orientação prestam reverência ao símbolo de tortura e extermínio que os romanos utilizam para com seus insurretos políticos. É evidente que tais práticas por eles realizadas nada tem de imparciais para à ordem política romana, principalmente o culto a cruz, e que para se manter coesos em tal situação era necessária e também um alto grau de comprometimento e associação com a causa que resolveram abraçar. Os símbolos e os rituais são a expressão de um discurso eloquente. Segundo Berstein, os símbolos falam por si mesmos e significam, para quem os vê, um longo discurso em que se misturam as lembranças, o imaginário, as emoções, a adesão ou a recusa. A maneira como Paulo apresenta Jesus, os rituais, o vocabulário utilizada por ele, a organização das comunidades, tudo isso exalava uma forma de poder e organização paralela ao império, alternativa a quem desejasse. É através do vocabulário e de toda uma ritualística que os cristãos da Ásia Menor no século 1 desenvolvem uma cultura política de resistência, expressando a quem serviam, quem era o seu César. Fato que consequentemente levou vários deles a morte.

22

Ibidem, p. 231.

763

BIBLIOGRAFIA:

- Fonte Primária: Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Editora Paulus, 2006.

- Bibliografia Específica: BERSTEIN, Serge. Culturas políticas e historiografia. In: AZEVEDO, Célia [et al]. Cultura política, memória e historiografia. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2009. CROSSAN, John Dominic. Em Busca de Paulo. São Paulo: 2007. Paulinas. . O Jesus Histórico. A vida de um camponês judeu no mediterrâneo. Rio de Janeiro: Imago, 1994. DRANE, John. Paulo. Um documento ilustrado sobre a vida e os escritos de uma figura chave dos primórdios do cristianismo. São Paulo: Edições Paulinas, 1982.

FUNARI, Pedro Paulo de Abreu . Identidades Fluidas no Judaísmo antigo e no Cristianismo. Rio de Janeiro: Editora Annablume, 2010. LOURENÇO, Robson Mauro. Cruz e Crucificação nas Cartas de São Paulo. Tese de Mestrado em Teologia Bíblica. PUC, 2000.

HORSLEY, Richard A. Paulo e o Império. Religião e poder na sociedade imperial romana. São Paulo: Paulus, 1994. KUSCHNIR, Karina. CARNEIRO, Leandro Piquet. As Dimensões Subjetivas da Política: Cultura política e antropologia da política. In: Revista Estudos Históricos.v.2, n.24,1999.

MARKUS, Robert. O fim do cristianismo antigo. São Paulo: Paulus, 1997. MAZZAROLO, Isodoro. Primeira Carta aos Coríntios. Exegese e Comentário. RJ, Mazzarolo Editor, 2008. MEEKS, Wayne A. Os primeiros cristãos urbanos. O mundo social do apóstolo Paulo. São Paulo: Edições Paulinas, 1992. MENDES, Norma Musco. Repensando o Império Romano. Perspectiva socioeconômica, política e cultural. Rio de Janeiro: Editora Mauad, 2006. PAUL, André. O Judaísmo Tardio. História Política. São Paulo: Editora Paulinas, 1983. SIMON, Marcel. Judaísmo e Cristianismo Antigo. De Antíoco Epifânio a Constantino. São Paulo: Pioneira, 1987.

764

O IMPACTO DA OIT NO BRASIL

Denilson Gomes Barbosa*

Resumo: O objetivo deste estudo é investigar o papel da OIT no Brasil desde 1919. O país já ratificou 96 convenções da OIT, das quais 80 ainda estão em vigor, e a organização mantém representação no Brasil desde 1953. A pesquisa também tem como objetivo compreender o processo de implementação de padrões internacionais de acordo com cada contexto histórico, especialmente os padrões internacionais de trabalho. O trabalho se baseia principalmente em documentos oficiais disponibilizados pelo Century Project da OIT. Palavras-chave: OIT, Brasil, direito do trabalho

Abstract: The aim of this study is to investigate the role of the ILO in Brazil since 1919. The country has ratified 96 ILO Conventions, of which 80 are still in force, and the Organization has kept a representation in Brazil since 1953. The research also aims to understand the process of implementation of international standards according to each historical context, especially the international labour standards. It is based mainly on official documents made available by the ILO Century Project. Keywords: ILO, Brazil, labour law

1. Introdução

O objetivo deste artigo é mostrar os principais aspectos relativos à minha pesquisa de doutorado, que está sendo desenvolvido no Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora (PPGH-UFJF). O objeto de estudo é a Organização Internacional do Trabalho (OIT), mais precisamente, o impacto e a influência que a Organização tem exercido no país, desde que o mesmo se tornou membro da OIT. O projeto encontrou um campo fértil para o seu desenvolvimento no âmbito do PPGH-UFJF e ainda conta com o suporte da própria OIT, cuja equipe de pesquisadores tem se demonstrado muito solicita em termos de contribuição acadêmica, através de sugestões e indicações bibliográficas.

*

Doutorando em História pelo Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora (PPGH-UFJF), sob orientação da Profa. Dra. Valéria Marques Lobo. Contato: [email protected]

765

2. Sobre as condições da criação da OIT A necessidade de estabelecer regras de proteção ao trabalho surgiu com a revolução industrial. Naquele momento, os governos não se preocupavam com esta questão pois suas atenções estavam voltadas para a concorrência externa. Qualquer melhoria nas condições de trabalho provocaria um encarecimento dos custos de produção e, consequentemente, a diminuição da capacidade de concorrência dos produtos nacionais. Somente quase meio século mais tarde surgiria um esforço internacional no sentido de criar regras de proteção ao trabalho com a criação da Organização Internacional do Trabalho (OIT).1 A criação da OIT em 1919 foi um meio de promover o progresso social e solucionar conflitos econômicos através do diálogo e cooperação. Ao contrário dos movimentos revolucionários da época a OIT reuniu trabalhadores, empregadores e governos em nível internacional, em busca por regras em comum, políticas e comportamentos dos quais todos poderiam se beneficiar. Os efeitos da Primeira Guerra, a mobilização de massa e a expansão da repercussão social, facilitaram a abertura de líderes políticos a mudanças fundamentais na política, economia e sociedade e, na construção de instituições internacionais que pudessem envolver todos os países em um esforço comum, tal como as Nações Unidas.2 O ímpeto para o desenvolvimento de tais padrões era a crescente integração econômica mundial que vinha se desenvolvendo ao longo do século XIX e os trabalhadores viam a criação de padrões como tentativas internacionais de conquistar melhores condições de trabalho e de controle sobre os efeitos adversos no trabalho. Por outro lado, empregadores favoreciam a padronização das condições de trabalho de forma a facilitar a expansão do comércio e eliminar condições desiguais da competição da competição comercial internacional.3 Segundo Landy, a OIT reconhece que não é fácil ser pioneiro em questões que envolvem implicações políticas sociais e econômicas. E neste sentido, a OIT sempre buscou cobrir uma ampla variedade de direitos humanos. Tendo a “justiça social” como objetivo, a organização busca melhorar as condições econômicas e sociais dos trabalhadores, além de proteger os direitos fundamentais, tais como liberdade de associação, abolição do trabalho forçado e as formas de discriminação no trabalho. Atualmente, a meta da OIT é resumida como “trabalho decente”, um conceito que sintetiza direitos do trabalho, emprego e proteção social conquistados através do diálogo social.4 A OIT é a única das agências do Sistema das Nações Unidas com uma estrutura tripartite. Este sistema é composto de representantes de governos, de organizações de empregadores e de trabalhadores. Ela aprova suas normas na Conferência Internacional do Trabalho através dos Estados-Membros, sendo dois votos representando o governo do País, um 766

voto da representação dos trabalhadores e outro voto da representação dos empregadores. Quando um tema é inscrito para ser votado como Convenção, para que seja aprovado, necessita dupla votação (em anos distintos) e obter dois terços dos votos. Se não ocorrer a aprovação, pode transformar-se em Recomendação.5 As normas mais importantes da OIT são elaboradas sob a forma de Convenções, Recomendações e Resoluções. São instrumentos normativos distintos. A convenção é um tratado internacional. A Recomendação, como o nome está a indicar, é uma sugestão dirigida aos Estados-Membros para que, se aceita, formule-se um projeto de lei, para ser discutido pelo Poder Legislativo. A convenção, uma vez ratificada pelo órgão competente do Estado-Membro, transforma-se automaticamente em direito positivo. Já a Recomendação necessita de uma lei posterior para ratificar seus princípios. Existem, ainda, as Resoluções, que também são normas emanadas da OIT, constitutivas de Direito Internacional do Trabalho, representando valores destinados a orientar os Estados e a própria OIT em matérias de sua competência. O Brasil ratificou oitenta Convenções da OIT, que valem como legislação interna no Brasil.6

Com relação ao Brasil, a partir da Era Vargas, mais especificamente, verifica-se um grande esforço no sentido de regulamentar as relações e condições de trabalho, assim como a proteção social, verifica-se também que várias convenções foram ratificadas no Brasil, o que a princípio aponta um indício da relevância dos padrões internacionais para o processo de padronização interna. Ver o gráfico 1.

14

13 12

12 10

8 8 6

5 4 4 4

4

4

3

4 3

3 2

2

1 1 1

1

1 1 1 1

1

2 1

2

2

2 2 2 1

1 1

1934 1936 1938 1948 1952 1954 1957 1963 1965 1966 1969 1970 1981 1982 1983 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 2000 2001 2002 2006 2007 2009 2010

0

Número de Convenções ratificadas por ano

Gráfico 1 – Convenções da OIT ratificadas no Brasil Fonte – Organização Internacional do Trabalho

De maneira geral, o gráfico mostra maior incidência entre os anos 1934-1938, período 767

do primeiro Governo Vargas. Em seguida, um alto número no ano de 1957, durante o governo Juscelino Kubitschek. Os anos iniciais da ditadura militar, de 1965 à 1970, com um número bastante significativo de 12 ratificações em 1965. Por outro lado, entre 1971 e 1980 há um vácuo de ratificações. Já entre 1981 e 1989, há um retorno modesto às ratificações. Nos anos noventa, há um significativo número que tende para uma certa estabilidade e regularidade, embora uma ou duas ratificações no máximo, durante os anos 2000. O gráfico, portanto, indica o número total de Convenções ratificadas separadamente por ano, permitindo notar a existência de determinados anos com um número maior ou menor de ratificações. Os anos que não aparecem no gráfico não tiveram qualquer ratificação. A variação no número anual de ratificações constitui um dos aspectos relevantes investigados, na busca pelos motivos que levaram à maior ou menor abertura aos padrões internacionais de trabalho da OIT.

3. Abordando o papel da OIT De acordo com Strang e Chang, é de grande importância o papel da Organização Internacional do Trabalho na formação do Estado de Bem estar social moderno e do processo de geração de políticas públicas baseados nos Padrões Internacionais do Trabalho tecidos pela OIT. Apontam ainda, para a importância de se explorar a interação entre ideologias externas e instituições internas em níveis nacional e internacional. Os autores argumentam que as políticas internas devem ser vistas sobre uma perspectiva mais abrangente, considerando a influência de padrões internacionais em detrimento à ideia de processos desconectos e independentes. Assim, é necessário observar o trabalho realizado em modelos externos para que possam se enquadrar às circunstâncias locais, ao invés de uma simples imitação.7 Em seu trabalho, há um enfoque no impacto da OIT na ampliação do Estado de bem estar social e aponta países desenvolvidos como exemplo. Desta forma, percebem que ações como a participação nas conferências anuais da OIT já constitui, em si, um fator estimulante para a ação do Estado. Além disso, mostra que países com maior integração na sociedade internacional tenderia a estabelecer políticas de seguridade social mais amplas. Outros casos, podem apelar para os padrões internacionais de forma a evitar restrições constitucionais internas. Assim, para que seja possível avaliar o impacto dos modelos da OIT deve-se enfocar

nas mudanças de políticas, no aumento do tamanho dos programas, ou também, quando os 768

padrões da OIT reforçam os propósitos internos.8 A grande relevância da OIT no Brasil é inegável, pois a Organização tem mantido representação no Brasil desde a década de 1950, com programas e atividades que refletem os objetivos da Organização ao longo de sua história. O Brasil está entre os membros fundadores da OIT e participa da Conferência Internacional do Trabalho desde sua primeira reunião. Além da promoção permanente das Normas Internacionais do Trabalho, do emprego, da melhoria das condições de trabalho e da ampliação da proteção social, a atuação da OIT no Brasil caracterizase, atualmente, pelo apoio ao esforço nacional de promoção do trabalho decente no tocante ao combate ao trabalho forçado, ao trabalho infantil e ao tráfico de pessoas para fins de exploração sexual e comercial, à promoção da igualdade de oportunidades e tratamento de gênero e raça no trabalho e à promoção de trabalho decente para os jovens, entre outras.9 Existe uma vasta literatura que estuda estes aspectos em vários países do mundo. Muitos dos trabalhos foram produzidos por pessoas ligadas de alguma forma à OIT. Alguns exemplos destes trabalhos serão apontados adiante, mas o fato é que, com relação ao Brasil, levantamentos prévios indicam que existe uma lacuna nas pesquisas que fazem este tipo de análise no país. Por um lado, não se encontra trabalhos semelhante entre as publicações da OIT e por outro, no meio acadêmico nacional, encontra-se somente trabalhos restritos à área de direito e, geralmente, voltados para aspectos mais técnicos dedicados à aplicabilidade dos padrões da OIT na legislação Brasileira. Por tais motivos é que são necessárias análises que extrapolem o campo da técnica e investiguem as motivações internas para a adoção dos padrões, o processo de implantação e os resultados obtidos ao longo do tempo. Soma-se a isso, a necessidade de se comparar estes mesmos aspectos entre os diferentes contextos históricos internos vividos no Brasil desde a ratificação da primeira convenção da OIT. A própria organização incentiva a produção de novos trabalhos acadêmicos e destaca a necessidade de novas abordagens. Assim, sobre o papel da OIT, a pergunta inicial seria: Qual o papel dos padrões da OIT na legislação e na prática no Brasil? Para responder a esta pergunta, de caráter mais geral, obviamente faz-se necessário buscar a resposta para outras mais específicas, a saber: Como se deu a resposta a estes padrões? Como se desenrolavam os diálogos com a OIT? Como ocorreu o processo de implementação de medidas de acordo com os diferentes governos vivenciados no Brasil? Qual o resultado da implementação destes padrões para a seguridade social, a liberdade de associação e as condições dignas de trabalho? Qual o impacto dos padrões internacionais para a inserção internacional do país, para a economia e política?

769

Muitos trabalhos procuram responder questões semelhantes sobre outros países, embora também tratem do impacto dos padrões internacionais do trabalho, são específicos para os casos específicos de cada país, significam uma visão daquele caso em particular. Geralmente tratam dos efeitos internos, traçam uma perspectiva histórica, e, além de abordarem o impacto na aplicabilidade da lei, abordam os efeitos socioeconômicos e políticos envolvidos no processo através. A título de exemplo verifica-se trabalhos como: “A Influência dos Padrões da OIT na Legislação Trabalhista da Índia” (The influence of ILO Standards on Indian Labour Legislation.), de V. K R. Menon, publicado em 1956;10 “A Influência das Convenções Internacionais do Trabalho na Legislação Suíça” (The Influence of International Labour Conventions on Swiss Legislation.) de Alexandre Berenstein, publicado em 1958;11 “A Influência dos Padrões da OIT na Legislação Norueguesa” (The influence of ILO Standards on Norwegian Legislation.) de Karl N. Dahl, publicado em 1964;12 “A influência dos padrões das Convenções Internacionais do Trabalho na Legislação da Tunísia” (The influence of International Labour Conventions on Tunisian Legislation.) de Amor Abdeljaouad, publicado em 1965;13 “A Influência dos Padrões Internacionais do Trabalho na Lei e Prática Irlandesa” (The Influence on Irish Law and Practise of International Labour Standards.), de Maurice Cashiell, publicado em 1972;14 “A influência dos padrões da OIT na Lei e Prática na República Federal da Alemanha” (The Influence of ILO Standards on Law and Practise in the Federal Republic of Germany) De G. Schnorr, publicado em 1974;15 “A influência dos padrões da OIT na Lei e Prática no Japão” (The Influence of ILO Standards on Law and Practise in Japan.), de Tadashi Hanami, publicado em 1981;16 “A influência dos padrões da OIT na Lei e Prática Sueca” (The Influence of ILO Standards on Swedish Law and Practice) de S. LAGREGEN, publicado em 1986;17 e, finalmente, “A influência dos padrões da OIT na lei e prática australiana” (The influence of ILO Standards on Australian Labour Law and Practise.) de C. E. Landau, publicado em 1987.18 Como se pode perceber acima, a maioria dos trabalhos são publicados pelo periódico International Labour Review, uma publicação da OIT, tem como autores acadêmicos que possuem algum tipo de experiência de trabalho com a OIT e que normalmente pertencem a cada um dos países estudados.19 Sobre o Brasil, existem 25 artigos publicados, mas nenhum deles utiliza a mesma abordagem citada nos textos acima, ou seja, uma perspectiva histórica mais ampla sobre os impactos dos padrões internacionais de trabalho no país. Normalmente, estão voltados para questões pontuais. Pode-se afirmar que o periódico, com bases nos exemplos acima, é certamente uma das mais relevantes fontes de pesquisa sobre a OIT.

770

A pesquisa pretende, portanto, responder tais perguntas com base nas informações oficiais reportadas pelo governo brasileiro à OIT, assim como através dos relatórios produzidos pela organização e outros documentos em geral e, inclusive, os artigos de época, principalmente aqueles publicados pela International Labour Review, que também trazem discussões sobre o Brasil. Espera-se, ao responder tais perguntas, traçar uma perspectiva histórica de caráter abrangente, a exemplo dos diversos trabalhos citados anteriormente, abordando os principais temas envolvidos com as normas internacionais do trabalho.

4. Sobre as Fontes e a Metodologia Adotada

Os documentos e publicações produzidos pela OIT já eram de livre acesso ao público anteriormente à criação do Century Project, porém de forma pulverizada nas diversas páginas do site.20 Todavia, o projeto facilitou o acesso direto à informações e recursos tais como todas as bases de dados, as Convenções, as Recomendações, os relatórios e os artigos do periódico da OIT, International Labour Review. Todos os documentos e dados podem ser acessados diretamente no site da OIT. Todavia, alguns documentos só podem ser abertos por pessoal da OIT. Neste caso, para aqueles que não pertencem à OIT, podem consultar uma biblioteca mais próxima (biblioteca de Genebra ou dos escritórios regionais como o de Brasília), fazer o requerimento em uma biblioteca conveniada (Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro por exemplo) ou fazer o requerimento por meio de um empréstimo interbibliotecas Este mesmo sistema é válido para as obras e documentos que estão disponibilizados em formato impresso. Determinadas publicações também podem ser compradas através do site da OIT, tanto em formato eletrônico, quanto impressos. Com relação à metodologia, para melhor defini-la, faz se necessário uma compreensão acerca do processo de elaboração das fontes, que basicamente se resume à produção de dois tipos de relatórios: Um relatório elaborado por um comitê de especialistas e outro relatório elaborado pela Conferência Internacional do Trabalho que ocorre anualmente. Assim, a partir do momento em que um país ratifica uma convenção torna-se obrigatória a emissão regular de relatórios sobre as medidas tomadas para que a mesma seja implementada. Tais documentos são examinados por um comitê de especialistas que foi criado em 1926 diante do crescente número de relatórios. O papel do comitê é fornecer uma avaliação técnica e imparcial do status da aplicação dos padrões internacionais de trabalho.

771

Portanto, através de tais relatórios, serão levantadas informações gerais sobre a aplicação dos padrões internacionais no Brasil, concernentes a cada uma das convenções ratificadas. Em segundo, identificar todos os momentos em que o Brasil ganhou algum tipo de destaque na conferência, seja ele por obter sucesso ou por apresentar algum tipo de dificuldade. E, finalmente, verificar qual a atenção dada ao assunto e qual a sugestão apontada pela OIT. Além disso, verificar, também, o andamento da mesma matéria nos relatórios dos anos posteriores. Resumindo, é possível verificar as informações fornecidas pelo governo brasileiro, além do acompanhamento do andamento do processo. Verificar o progresso, as propostas e as soluções oferecidas pela OIT ajudarão a estabelecer mais precisamente como a OIT atuou de forma direta ou indireta na formulação de políticas e no estabelecimento de práticas internas. Além disso, também é possível estabelecer uma discussão envolvendo os resultados evidentes nos relatórios com os momentos de maior ou menor prosperidade econômica, maior ou menor abertura à expansão de direitos trabalhistas, maior ou menor liberdade de ação e associação sindical, assim como momentos de expansão das leis e medidas que implicam em ampliação da seguridade social. Para isso, uma ampla revisão bibliográfica dever será de forma que se possa comparar as matérias mencionadas nos relatórios com os determinados momentos históricos do país. Além dos relatórios, os requerimentos diretos também serão utilizados, de forma que sejam relacionados às questões mais técnicas ou ao requerimento de informações mais detalhadas. Tais requerimentos, podem ser acessados em uma base de dados chamada NORMLEX. Na busca em relação aos requerimentos diretos podem ser encontrados na base de dados todos os 299 requerimentos feitos para o Brasil até então. Estes documentos, permitem identificar os momentos em que foi requisitado do governo Brasileiro maiores informações ou informadas questões mais técnicas. É possível contar, ainda, com dados estatísticos. Tais dados são importantes para o desenvolvimento e avaliação de políticas e do progresso feito em rumo ao trabalho decente. Também são importantes como ferramenta de informação e análise para ajudar na compreensão de problemas, explicação de ações e na mobilização de interesses. Igualmente, para esta pesquisa, as estatísticas ajudarão a ilustrar melhor determinados momentos históricos e serão fundamentais para elaborar uma análise conjunta com as matérias trabalhadas nos relatórios. Assim, será possível ilustrar em números, momentos anteriores e posteriores à ratificação de convenções. A OIT justifica o desenvolvimento de suas bases de dados com três motivos, que podem ser empregados nesta pesquisa com a mesma finalidade. O primeiro é que ela constitui um 772

componente essencial como indicador socioeconômico que reflete os princípios e modelos de proteção social. Assim, os números, as condicionantes e outras características dos programas de seguridade social são vistas como elementos chave para a construção de indicadores de seguridade. O segundo aspecto é que a base de dados oferece uma visão geral da situação dos sistemas de seguridade social em todo o mundo, assim como uma detalhada descrição dos mecanismos em que os programas operam. Finalmente, os dados também servem como uma alternativa complementar enquanto fonte de informação para outras bases de dados. É importante destacar que todas as bases de dados e de documentos tratados aqui possuem ferramentas de busca que permitem filtrar as informações desejadas de forma que permitam pesquisas através de variáveis como como o país, assunto e período. Outras opções oferecidas pela OIT seria a visita aos arquivos e Biblioteca na sua sede em Genebra ou no escritório da OIT em Brasília. Finalmente, a International Labour Review também dispõe de diversos artigos que analisam o papel e o impacto da OIT em determinados países, análises comparativas entre diferentes países em relação à um tópico especifico, assim como análises de progressos ou as vicissitudes de situações enfrentadas pelos governos ao implantar os padrões internacionais. Estes artigos, são de grande valia em termos metodológicos para esta pesquisa, uma vez que servem como modelo de abordagem, tanto no campo teórico como em relação ao uso das fontes. Além disso, utilizam principalmente os documentos e dados da OIT citados aqui.

5. Considerações finais

Resumindo, este artigo descreve uma pesquisa cujo objeto é estudar o impacto da Organização Internacional do Trabalho (OIT) no Brasil. Considerando que a OIT foi criada em 1919 como um meio de promover o progresso social e solucionar conflitos econômicos através do diálogo e cooperação, atuando através de Convenções, Recomendações, Inspeções e da Conferência Internacional do Trabalho como meios de disseminar padrões internacionais do trabalho entre os países-membros, e que desde a criação da OIT, o Brasil já ratificou diversas Convenções e conta com representação no país desde 1950, dispõe-se de fortes justificativas para o estudo da Organização. Embora exista uma ampla produção de pesquisas que desenvolvem uma perspectiva histórica sobre o papel da OIT em diversos países, ainda há uma lacuna a ser preenchida no meio acadêmico brasileiro neste aspecto. Além disso, para desenvolver este tipo de estudo, é possível contar com a ampla disponibilidade de documentos 773

oficiais produzidos pela própria Organização. Dentre estes, destaca-se as Convenções e Recomendações, Relatórios da OIT, dados fornecidos pelos governos e uma ampla produção científica que trata dos temas mais relevante à instituição. Espera-se que a presente pesquisa, possa traçar uma perspectiva histórica e que seja capaz de definir o papel da organização para o Brasil e que sirva de referência para pesquisas futuras na área de história ou áreas afins.

1

SEITENFUS, R. A. S. Manual das organizações internacionais. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2005. 2 ROGERS, G.; Lee, E.; SWEPSTON, L,; VAN DAELE, J. The International Labour Organization and the Quest for Social Justice, 1919-2009. International Labour Office. Geneva: ILO, 2009. 3 Idem. 4 LANDY, E. A. The influence of international labour standards: possibilities and performance. International Labour Review 101 (Janeiro 1970). 5 GUNTHER, L. E. A OIT e o direito do trabalho no Brasil. Curitiba: Juruá, 2011. 6 Idem. 7 STRANG, D.; CHANG, P. M. Y. “The International Labor Organization and the welfare state: institutional effects on national welfare spending”, 1960-80. International Organization, v. 47, issue 2, Spring 1993. 8 Idem. 9 OIT. OIT no Brasil. Disponível em: < http://www.oitbrasil.org.br/content/oit-no-brasil> Acesso em: 02 out. 2014. 10 MENON, V. K R. “The influence of ILO Standards on Indian Labour Legislation.” 1956. International Labour Review, 73 (June 1956), pp 551-71. 11 BERENSTEIN, A. “The Influence of International Labour Conventions on Swiss Legislation.” International Labour Review, 77 (June 1958), pp. 495-518. 12 DAHL, K.N. “The influence of ILO Standards on Norwegian Legislation.” International Labour Review, 90 (September 1964), 226-51. 13 ABDELJAOUAD, A. “The influence of International Labour Conventions on Tunisian Legislation.” 1965. International Labour Review 91 (March 1965), 191-209. 14 CASHIELL, M. “The Influence on Irish Law and Practise of International Labour Standards.” International Labour Review 106 (July 1972), pp 47-74. 15 SCHNORR, G. “The Influence of ILO Standards on Law and Practise in the Federal Republic of Germany.” International Labour Review 110 (December 1974), pp 539-64. 16 HANAMI, T. “The Influence of ILO Standards on Law and Practise in Japan.” International Labour Review 120 (November-December 1981), pp 765-79. 17 LAGREGEN, S. The Influence of ILO Standards on Swedish Law and Practice. International Labour Review 125 (May/June 1986), pp 305-328. 18 LANDAU, C. E. “The influence of ILO standards on Australian labour law and practice.” International Labour Review, Vol. 126, No. 6, November-December 1987. 19 A International Labour Review (ILR) é um periódico multidicisplinar voltado para temas ligados ao trabalho e políticas sociais. Aborda as áreas de conhecimento que são de interesse da OIT, por exemplo, emprego, mercado de trabalho, treinamento, seguridade social, proteção social, direito do trabalho, instituições do trabalho e diálogo social. Todos os artigos, desde a criação da revisa em 1921, estão disponíveis em formato eletrônico na página do Century Project. 20 O Century Project é um projeto comemorativo dos cem anos da OIT, a ser celebrado em 2019. O projeto disponibiliza documentos oficiais da OIT, desenvolve pesquisas e presta suporte à pesquisadores em geral, interessados em temáticas ligadas à OIT.

774

As esmolas aos necessitados: a noção da caridade nos testamentos de Vila Rica na primeira metade do século XVIII1 Denise Aparecida Sousa Duarte2 Doutoranda/Universidade Federal de Minas Gerais Orientador: Jose Newton Coelho Meneses Email: [email protected] Resumo O texto objetiva analisar as atitudes frente à morte dos testadores de Vila Rica na primeira metade do século XVIII, com relação ao desprendimento de seus bens materiais pela esmola e a caridade. Consideramos que esse comportamento, assim como as demais disposições testamentárias, tem o intuito de servir para sua salvação. Desse modo, com os atos de caridade os testadores acreditavam estar beneficiando ao próximo, mas também sua alma, pois sua ação serviria para o perdão de seus pecados.

Palavras-chave: testamento; caridade; Minas Gerais.

Abstract The text aims to analyze the attitudes towards death of Vila Rica testers in the first half of the eighteenth century, with respect to the release of their material goods for alms and charity. We consider this behavior, as well as other testamentary dispositions, it is intended to serve to his salvation. Thus, through acts of charity testers they believed they were benefiting to the next, but also his soul, for his action would serve for the forgiveness of their sins

Keywords: testament; charity; Minas Gerais.

Frente à morte, os homens de Vila Rica no século XVIII buscaram por certos ritos e atitudes que pudessem favorecer sua alma através de demandas em seus testamentos. Esses procedimentos podem ser relacionados às concepções religiosas apresentadas naquele contexto. As cerimônias sagradas e a expressão de uma postura compatível às virtudes cristãs – elementos encontrados nos testamentos – são baseados na crença de que tais recursos eram auxiliares no processo de salvação.

775

Assim como considerou Cláudia Rodrigues, os testamentos indicam que, pelo menos no fim de sua existência terrena, seus signatários tentaram seguir à risca a direção católica, servindo como uma prestação de contas de suas vidas. Esses documentos refletiram a exteriorização do sentimento de fé, a obediência aos preceitos do catolicismo e a crença nos seus dogmas.3 Consideramos que esta atitude preparar-se para a morte estava ligada às possibilidades apresentadas pela Igreja Católica em relação ao perdão dos pecados daqueles que estivessem dispostos a seguir seus preceitos – ainda que especialmente neste momento derradeiro – através dos sacramentos, da disposição de legados e dos sufrágios. Os testadores enfatizaram o desprendimento de seus bens materiais destinando grande parte dos recursos que possuíram para alcançar o Paraíso, salientando algumas atitudes misericordiosas. Esse comportamento esta relacionado ao fato de que os preceitos religiosos destacavam que o apego4 às riquezas não condizia com o comportamento de um bom fiel. A esse respeito, Pe. Manuel Bernardes salientou no exercício espiritual Da consideração das misérias da vida humana; e vaidade humana, que Ser miserável, e não o conhecer, é outra nova, e maior miséria. (...) Para evitarmos pois esta nova miséria da ignorância, já que não podemos evitar as mais, (...) e por conseguinte de desapegar nosso coração das coisas vãs e transitórias, e levantá-lo as verdadeiras, e eternas, exercitando entretanto que andamos desterrados deste mundo.5

O oratoriano defende, assim, a ideia da necessidade de se afastar de grandezas falsas do mundo, que só levariam os homens ao desengano, pois nenhum bem ou prosperidade desta vida são permanentes. Contudo, os recursos materiais foram imprescindíveis para a efetuação dos ritos religiosos e na tentativa de se apresentar como um bom fiel, auxiliando os demais.

776

Os atos de caridade embasaram parte das determinações expostas nos testamentos. A apresentação de si como possuidor desta qualidade foi um dos motivos que levou os testadores a disporem de parte de seus bens em favor dos necessitados. A ideia de caridade achava-se relacionada ao fato de que a mesma “(...) não é um ato ocasional, mas a disposição profunda em tratar os outros como irmãos, por causa do Pai, e por causa do irmão primogênito, o filho”.6 Neste sentido, ajudar aos necessitados era um caminho para se aproximar de Deus. A caridade esteve ligada às noções de esmola e de pobreza, pois a doação atua, essencialmente, na forma de partilha com os não privilegiados. Acreditamos que com essa atitude os benfeitores buscavam destinar parte daquilo que possuíam de acordo com o que propunha a Igreja, pois “(...) o mal não está nas riquezas, mas sim na sua acumulação egoísta”.7 Jorge Pixley destaca que a revolução da caridade se deu a partir do século XIII, pois foi nessa época que ocorreu a multiplicação de diferentes instituições de assistência. Tais organizações foram apresentadas na forma de esmolarias (encontradas nos mosteiros, dioceses, canonicatos, na cúria papal e nas cortes principescas), nas confrarias leigas mutualistas, nas coletas paroquiais ou mesa dos pobres (também conhecido pelo cargo de pai dos pobres, que era o leigo responsável pelas visitas e cuidados com os necessitados), na justiça dos pobres (com um advogado para os carentes) e, por fim, os hospitais, que eram os senhorios e lugar exclusivo deles, locais que ficaram, inicialmente, sob a responsabilidade dos clérigos. 8 Entretanto, segundo o autor, já nos séculos XIV e XV as instituições de caridade começam a se mostrar inadequadas às formas de pobreza da época, ocorrendo um processo de laicização da caridade na Europa (ainda que relativamente, já que os homens do Estado eram também os homens da Igreja). Surgem aí novas instituições para remediar a pobreza, como as confrarias de leigos, a mesa dos pobres (que distribuía comida e roupas aos necessitados) e os hospitais. O período acima descrito foi, portanto, o momento em que se propagou a noção de que o homem leigo deveria tomar parte de atitudes caridosas – o que levou o assistencialismo até as práticas sociais – mas foi também quando ganhou força a

777

concepção de que a caridade deve ser merecida, ou seja, que ela deve estender-se somente aos incapazes de viver do trabalho. A esmola destinada às instituições de caridade era manual ou testamentária, sendo apresentada “(...) sobretudo em moeda e não tanto por dons in natura. Isto dava mais liberdade aos beneficiados e permitia ajudar os pobres”.9 Segundo a noção cristã, o auxílio aos desamparados pode contribuir para o perdão dos pecados, ajudando os homens a garantir sua salvação. No caso das Minas, as instituições caridosas, em especial sob a figura das irmandades religiosas de leigos, são as grandes difusoras da noção de caridade. Elas influenciaram de forma contundente o ideário dos indivíduos, pois, por sua função social, elas acabavam por inspirá-los. Às irmandades de leigos foi dedicada grande parte das esmolas presentes nos testamentos. Tais instituições são recorrentes na documentação analisada como sendo um dos principais destinos das obras de caridade dos testadores. Um exemplo deste caso é o testamento de Manoel Alvares de Almeida (morto em 16/11/1744), natural do Arcebispado de Braga, que: Deixou de esmola a Sant’Anna da matriz [do Pilar] de Ouro Preto 30,000 réis de esmola e a Senhora do Terço outros 30,000; a Santo Antônio 50,000 réis se a irmandade o acompanhasse e não acompanhando 30,000; a Santíssimo Sacramento 50,000; a Nossa Senhora do Rosário 30,000 da irmandade desta freguesia.10

Com a concessão de esmolas às irmandades, os testadores poderiam ajudar não só na construção e ornamentação de altares e de capelas das referidas irmandades, como também dar melhores condições para que tais associações pudessem ajudar aos seus irmãos necessitados, uma vez que era no seio dessas que a população encontrava uma estrutura capaz de atender suas necessidades pessoais e coletivas.11 Mas a doação de esmolas para as irmandades através dos testamentos não teve como destino somente a entrega dos recursos para que sua mesa decidisse qual a finalidade da verba recebida. Um exemplo foi o testamento de Manoel da Sylveira Peixoto, que “(...) declarou mandassem fazer um frontal (...) para o altar de São Miguel da matriz de Ouro Branco da cor que necessitasse a irmandade daquela freguesia”.12 Os recursos disponibilizados teriam com isso um destino certo, previamente estipulado pelo testador. A determinação exata de onde deveria ser empregada a esmola destinada à irmandade também é encontrada no testamento do português Jeronimo da Sylva, casado pela segunda vez com Ignacia da Sylva, natural da Piedade do Rio de Janeiro, que “deixou a ordem terceira de São Francisco do Rio de Janeiro cinquenta mil réis para 778

ajudar de se dourar o retábulo das almas da dita freguesia (...)”.13Há ainda o caso de Luis Correa Oliveira, morador da freguesia de Furquim, mas que indica no seu testamento que depois de “(...) pagas as dívidas e cumprido meus legados deixo se dê para a obra de uma capela de Santa Luzia que junto onde nasci trinta e sete oitavas e a irmandade das Almas da freguesia que fui batizado outras trinta e sete oitavas (...).14 Essas situações nos mostram que não só as freguesias em que se encontravam os testadores foram beneficiadas pelas esmolas, mas também aquelas relacionadas a algum aspecto ou momento de sua vida, em especial à sua origem. Tal fato é ainda encontrado no testamento de Agostinho Lourenço, que pede ao testamenteiro que deixe “(...) na cidade de Lisboa (...) uma esmola a Nossa Senhora da Oliveira dos Arcos dos pregos da mesma vila de 2$400 réis por sua: e (...) seu testamenteiro daria esmola a Nossa Senhora da Conceição (...) da mesma cidade 2$400 por vez somente: e que seu testamenteiro daria esmola a Sant’Anna da mesma cidade 2$400 réis”.15 Uma atitude específica, no entanto, esteve mais fortemente ligada à noção de caridade tal qual proposta pela cristandade, e que está presente nos testamentos mineiros: a caridade quando ligada ao auxílio específico dos desamparados. Esta abordagem está profundamente ligada ao conceito de pobreza. O pobre, no sentido bíblico, (...) é o termo dominado, oprimido, humilhado, instrumentalizado da relação prática que se denomina pecado. O ato constitutivo do ‘pobre’ na Bíblia não é o ‘não ter’ bens, mas o ‘estar dominado ‘pelo pecador. É a contrapartida do pecado, seu fruto (e, enquanto ‘pobre’, ou oprimido, é justo, santo).16

Ajudar aos pobres era, portanto, um ato espiritual. Contudo, se “é da essência do cristianismo ir de encontro do que está perdido e abandonado”, isto não “(...) implica nenhuma valorização da miséria nem, muito menos, qualquer cumplicidade com ela (...). Se desce até a miséria é para dela tirar o homem. Não ama a miséria mas sim o homem que é miserável”.17 Neste sentido, a crença relacionada aos benefícios de se ajudar aos menos favorecidos constitui-se como um elemento presente nos testamentos. Os pobres foram bastante ressaltados quanto ao destino das esmolas nas Minas. Porém, deve-se destacar que, nos documentos trabalhados, quase todas as vezes que foram remetidos alguns recursos aos mesmos, o valor ficava atrelado ao acompanhamento do corpo do jacente no cortejo fúnebre. Sob este aspecto, destacamos o testamento de Bernarda de 779

Vas,

natural de Lisboa e casada com o Doutor Manoel da Costa Reys e que ordena em seu testamento “(...) que se repartirão dez oitavas de ouro pelos pobres (...) e se daria a cada um deles meia oitava com declaração que acompanharão seu corpo a sepultura”.18 Os tipos específicos de necessitados a quem se destinariam as esmolas também foram enfatizados. Dessa forma, no testamento do português Francisco Pereira Lisboa há a seguinte declaração: “Deixo a vinte viúvas das mais necessitadas da minha freguesia cinco mil réis a cada uma (...) [e] cem mil para resgate de cativos”. Nascido na freguesia de São Nicolau em Lisboa, ele ainda determina que seus herdeiros fossem, de forma sucessiva, o pai, a madrasta ou os irmãos, de acordo com a possibilidade de estarem mortos ou não. E ainda, como sua família continuou vivendo na freguesia de origem do testador, ele ordena que a seus sobrinhos, (...) filhos de seu irmão Manoel Pereira Lisboa [fossem enviados] cem mil réis cada um para a ajuda de se acharem órfãs das mais necessitadas da mesma freguesia de São Nicolao além de mil réis para cada um para se casarem duas viúvas na mesma freguesia além de mil réis e a cada uma das mais necessitadas.19

As esmolas aos pobres parecem ter grande relevância para os testadores investigados e acreditamos que eram ressaltadas por sua relação ao processo de remissão dos pecados defendido pelo ideário cristão católico. Seguindo essa lógica, até a doação dos escravos serviu como esmola capaz de auxiliar os indivíduos no processo de sua salvação; como apresentado no testamento do Padre Gonçalo Rodrigues Santos, falecido em 08 de agosto de 1746 e que determina que todos “(...) meus escravos ordeno e é de minha vontade meus testamenteiros tomem conta deles e façam entregar ao recolhimento de Nossa Senhora de Macaúbas para servirem ao dito recolhimento”.20 Ao destinarem seus bens à caridade, estes homens buscam uma maneira de alcançar o perdão divino através de um processo de reconciliação, pois, segundo consideramos, a retirada de um necessitado de uma situação de desamparo, ou até mesmo a abreviação de seu sofrimento era, segundo a crença, bem vista aos olhos de Deus. Do mesmo modo que, ao ajudar as associações religiosas, também se cumpriria esse papel piedoso. Essas atitudes foram comuns nos testamentos, e revelam que frente à morte os homens de Vila Rica empenharam-se no sentido de se reestabelecer da situação de pecado.

780

1

O texto apresentado é parte da dissertação de mestrado intitulada E professo viver e morrer em Santa Fé Católica: atitudes diante da morte em uma freguesia de Vila Rica na primeira metade do século XVIII, defendida no ano de 2013 no Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais. 2 Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoa de Nível Superior (Capes). 3 RODRIGUES, Cláudia. Nas fronteiras do além: secularização da morte no Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005. 4 Compreendemos o conceito de desapego por seu sentido contrário ao “amor, afeição, com que se une a vontade com algum objeto. (...) Em havendo Apego a coisa da terra, desapega-se o amor do Céu. BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico ... Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712 - 1728. p.421. 5 Da consideração das misérias da vida humana; e vaidade humana. In: BERNARDES. Pe. Manuel. Exercícios Espirituais e Meditações da via purgativa, sobre a malícia do pecado, vaidade do mundo, misérias da vida humana e quatro Novíssimos do Homem. Lisboa: Na Oficina de Miguel Deslandes, 1686. v.1.p.223 6 MIALHE, Robert. A medida das virtudes. São Paulo: Flamboyant, 1959. p.131. 7 PIXLEY, Jorge. Opção pelos pobres. Petrópolis: Vozes, 1987. p.175. 8 Ibidem. pp.196-197. 9 Ibidem. p.197. 10 CECO/ACCOP. Livro de óbitos, óbitos e testamentos (Vila Rica e Freguesias – 1734 - 1750). Volume: 1863, Rolo/Microfilme: 055/0572-0767. Registro de testamento de Manoel Alvares de Almeida. Vila Rica. 16 NOV. 1744. 11 BOSCHI. Caio César. Os Leigos e o Poder (Irmandades Leigas e Política Colonizadora em Minas Gerais). São Paulo: Editora Ática, 1986. p.27. 12 CECO/ACCOP. Livro de óbitos, óbitos e testamentos (Vila Rica e Freguesias – 1734 - 1750). Volume: 1863, Rolo/Microfilme: 055/0572-0767. Registro de testamento de Manuel Sylveira Peixoto. Vila Rica. 28 AGO. 1741. 13 CECO/ACCOP. Livro de óbitos, óbitos e testamentos (Vila Rica e Freguesias – 1734 - 1750). Volume: 1863, Rolo/Microfilme: 055/0572-0767. Registro de testamento de Jeronimo da Sylva. Vila Rica. 09 NOV. 1741. 14 CECO/ACCOP. Livro de óbitos, óbitos e testamentos (Vila Rica e Freguesias – 1734 - 1750). Volume: 1863, Rolo/Microfilme: 055/0572-0767. Registro de testamento de Luis Correa Oliveira. Vila Rica. 05 NOV. 1744. 15 CECO/ACCOP. Livro de óbitos, óbitos e testamentos (Vila Rica e Freguesias – 1734 - 1750). Volume: 1863, Rolo/Microfilme: 055/0572-0767. Registro de testamento de Agostinho Lourenço. Vila Rica. 21 FEV. 1742. 16 DUSSEL, Enrique. Ética Comunitária. Petrópolis: Vozes, 1987. p.33. 17 Ibidem. p.84. 18 CECO/ACCOP. Livro de óbitos, óbitos e testamentos (Vila Rica e Freguesias – 1734 - 1750). Volume: 1863, Rolo/Microfilme: 055/0572-0767. Registro de testamento de Bernarda Vás. Vila Rica. 01 JAN. 1741. 19 CECO/ACCOP. Livro de óbitos, óbitos e testamentos (Vila Rica e Freguesias – 1734 - 1750). Volume: 1863, Rolo/Microfilme: 055/0572-0767. Registro de testamento de Francisco Pereira Lisboa. Vila Rica. 21 FEV. 1746. 20 CECO/ACCOP. Livro de óbitos, óbitos e testamentos (Vila Rica e Freguesias – 1734 - 1750). Volume: 1863, Rolo/Microfilme: 055/0572-0767. Registro de testamento do Padre Gonçalo Rodrigues Santos. Vila Rica. 08 AGO. 1746.

781

Sociedade de Leitura Hermann Faulhaber: a leitura como ameaça e resistência às políticas nacionalizantes de Vargas Autora: Denise Verbes Schmitt – Mestranda/UFSM – [email protected] Orientador: Vitor Otávio Fernandes Biasoli – Doutor/UFSM - [email protected] Coorientadora: Maria Medianeira Padoin – Doutora/UFSM - [email protected] Resumo: Em 1942 a Sociedade de Leitura da antiga Colônia Neu-Württemberg – atual Panambi/RS - foi invadida de forma violenta e teve seu acervo e documentos confiscados. O presente texto resgata as estratégias dos sócios da biblioteca para manter a instituição funcionando. Entre as ações encontram-se as correspondências entre secretário da biblioteca Walther Faulhaber com o presidente do Instituto Nacional do Livro, Augusto Meyer. Ainda registram-se as novas doações do INL para a sociedade, bem como, as novas aquisições feitas pelos sócios. Palavras chave: Biblioteca, Vargas e imigração.

Abstract: In 1942 the Reading Society of the old Cologne Neu-Württemberg - current Panambi / RS - was invaded violently and had your collection and documents confiscated. The present text rescues the strategies of library members to keep the institution working. Among the actions are the correspondences between the library secretary Walther Faulhaber with the president of the National Book Institute, Augusto Meyer. Also registers the new donations from the INL to the society, as well as new purchases made by the partners. Keywords: Library, Vargas and immigration.

Introdução A política de nacionalização do Estado Novo marcou a vida dos imigrantes e seus descendentes, desapropriando-os de sua identidade, de seus bens culturais e por vezes dos bens materiais, como por exemplo, a apreensão de livros. Nas colônias étnicas, as prisões e fechamento das escolas, bem como a apreensão dos materiais considerados subversivos pelo Estado, foram práticas recorrentes. Dentre desta prerrogativa encontra-se o confisco do acervo da Sociedade de Leitura Hermann Faulhaber, da antiga Colônia de Neu-Württemberg – atual cidade de Panambi/RS - que ocorreu em 1942. A ação ficou registrada na memória dos moradores locais, nos documentos que descrevem o ato do confisco, assim como a luta dos sócios da instituição para reaver os livros e documentos da Sociedade de leitura.

782

A busca para reaver os livros e a decisão de manter a Sociedade de Leitura em funcionamento, pode ser compreendida por meio dos documentos e das cartas trocadas entre Walther Faulhaber, sócio fundador e secretário da Sociedade de Leitura Hermann Faulhaber com Augusto Meyer, presidente do Instituto Nacional do Livro (INL). As correspondências demonstram o dialogo entre os dois descendentes de imigrantes alemães, que buscaram meios para solucionar o caso, sem entrar em confronto com as leis implantadas pelo do Estado Novo. Ao refletirmos sobre a história das bibliotecas precisamos entender que esta é indissociável da história da leitura, bem como das escolhas que são realizadas para constituir um acervo, sendo que a biblioteca só adquire sentido pelo uso de seus leitores 1, sendo a fundação de uma biblioteca o resultado de escolhas e/ou omissões de seus fundadores e/ou mantenedores. Resgatar a história das bibliotecas dos imigrantes alemães é esbarrar na falta de documentação ou referências aos acervos privados, aos gabinetes e/ou sociedades de leitura, apesar de encontramos discussões acerca da imprensa e da leitura que os imigrantes realizavam, assim como, das suas produções literárias. Percebe-se que não se discute sobre como os imigrantes tinham acesso às obras literárias, nem quais as motivações que os levaram a fundar as mesmas. Dentro do contexto da pesquisa, ainda devemos entender as bibliotecas como espaço de sociabilidade, que proporciona lazer e acesso a informação, através dos jornais e revistas. As bibliotecas de uso coletivo (gabinetes ou sociedades de leitura) dos imigrantes alemães - quando existentes - ou seus acervos pessoais, em sua grande maioria, foram confiscados durante a ditadura de Vargas (1937-1945), ou mesmo destruídos pelos próprios imigrantes/descendentes para que não fossem presos, por estarem em posse de materiais considerados subversivos . Quando apreendidos, muitos destes livros foram destruídos pelas autoridades brasileiras. A destruição dos livros levou ao desconhecimento das obras que pertenciam a estas instituições, perdendo-se a possibilidade de saber o que os imigrantes e seus descendentes liam. Entre os imigrantes existia uma forte consciência da importância do livro, especialmente entre os luteranos, educados na prática constante de leitura bíblica 2. Ainda podemos entender o livro/leitura como forma de manter viva a cultura germânica 3. A leitura era uma forma de entretenimento e informação entre os imigrantes/colonos, pois no espaço colonial eram raras as possibilidades de lazer. Assim entender os imigrantes pelas suas

783

práticas de leitura e seus ideais de cultura, leva-nos a refletir sobre suas escolhas e decisões, percebendo assim como estes grupos se identificavam e se relacionavam socialmente. O presente artigo é um recorte do projeto de pesquisa intitulado Sociedade de Leitura Hermann Faulhaber de “Panambi”/ 1903-1963. O projeto de dissertação pretende realizar um estudo sobre a biblioteca dos imigrantes alemães da Colônia de Neu-Württemberg, compreendendo sua transformação em Sociedade de Leitura em 1927, entendendo tanto a sua função social, quanto política. O projeto conta com apoio CAPES/DS, tendo por Orientador o Professor Doutor Vitor Otávio Fernandes Biasoli e Coorientação da Professora Doutora Maria Medianeira Padoin.

Um panorama da Colônia e sua biblioteca O início oficial da imigração alemã para o Rio Grande do Sul começou no ano de 1824, sendo que no decorrer do século XIX e primeiros anos do séc. XX foram criadas inúmeras Colônias alemãs no Estado do Rio Grande do Sul. As Colônias, classificadas entre públicas e privadas, possuíam geralmente o mesmo sistema de divisão do espaço, com lotes de terra para as famílias na área interiorana e um núcleo urbano central, onde situava-se geralmente a primeira escola e igreja. Os lotes denominados de colônias levaram os imigrantes a tornarem-se conhecidos como colonos. Este sistema formava colônias dentro da Colônia4. A partir da Lei de Terras houve um aumento dos empreendimentos privados o que levou os empresários a uma intensa divulgação de suas Colônias, na tentativa de atrair imigrantes para se fixarem nestes espaços. Este elemento é percebido na formação da Colônia de Neu-Württemberg - atual cidade de Panambi/RS – que foi fundada em 1898, pelo empresário alemão Herrmann Meyer, o qual possuía negócios no ramo editorial, sendo sócio proprietário do Instituto Bibliográfico de Leipzig5. O projeto colonial vislumbrado e propagandeado por Herrmann Meyer era de uma “Colônia Modelo”, que ofereceria educação e assistência religiosa aos que optassem por se fixar no local. No entanto, os benefícios “ofertados” foram somente concretizados no final do ano de 1902, com a chegada do casal Marie e Hermann Faulhaber. Faulhaber era Pastor Luterano, que além de cumprir com a assistência religiosa a todos os moradores da Colônia, independente da crença proferida por eles, também deveria fundar a primeira escola, na qual deveria atuar como professor. Faulhaber foi auxiliado por sua esposa, que tinha a formação de professora, apesar de Marie não ser contratada para desempenhar a

784

função, a qual tinha exercido por muitos anos em Neu-Württemberg, sem receber remuneração alguma por suas atividades. Ao longo de seu trabalho, Marie foi a maior responsável pela formação dos novos leitores na Colônia, pois além de ser a responsável pela Disciplina de Leitura, ainda mantinha um grupo de leitura com alunos dos anos finais - o que atualmente corresponderia aos 8° e 9° do ensino fundamental - que se reunia em sua residência nas sextas à noite. As obras de Goethe, Schiller e Shakespeare eram

as

selecionadas para a atividade. A maioria destes alunos também encenava peças de teatro, pequenas operetas, que em sua maioria eram escritas por Marie. Nos diálogos inseridos das peças, Marie buscava enfatizar a necessidade da educação, da leitura e da informação para alcançar um padrão de vida melhor ou pelo menos com menor dificuldade6. A biblioteca iniciou suas atividades com 200 livros, trazidos na bagagem do casal Faulhaber, sendo que os mesmos foram doados pelo idealizador e fundador da Colônia Herrmann Meyer7. No mês de agosto do mesmo ano de sua fundação a biblioteca já contava com trinta leitores, que haviam retirado 71 livros e 33 jornais e revistas. O acervo da instituição aumentou rapidamente ao longo do tempo, sendo que em 1906 a biblioteca possuía 2291 obras e a média de leitura era de 3 a 4 livros ou revistas por família8. No início da década de 1920 instaurou-se uma dúvida sobre a biblioteca, havendo a discussão sobre seu vinculo à escola. Em uma ata escolar do período consta que a instituição não pertencia à escola, por mais que a mesma mantivesse seu acervo alocado no espaço escolar. Segundo o presidente da escola e bibliotecário Hermann Faulhaber, a biblioteca estava intimamente ligada à escola, mas não pertencia a mesma, sendo uma instituição a parte. A biblioteca nos primeiros anos funcionava na área urbana da Colônia, de forma centralizada, fato que mudou depois da fundação da rede de escolas do interior do complexo colonial – na área rural, a partir dos anos 1910, quando a instituição passou a ser descentralizada, contando com a biblioteca central (urbana) e as filiais (localidades rurais), sempre alocadas dentro do espaço escolar. Com isso o acervo foi dividido para formar um acervo permanente em cada filial. Ainda criou-se um sistema de empréstimo de livros da central para as filiais, conforme necessidade de rodízio do acervo, trocando entre 50 a 100 livros. Assim a descentralização possibilitou aos leitores ter acesso mais fácil à biblioteca, sem precisar se deslocar para sede da Colônia, quando os mesmos eram colonos e permitia uma “renovação” do acervo para os leitores, devido ao sistema de rodízio do acervo. As filiais, bem como a central, funcionavam dentro do espaço escolar. A biblioteca funcionava tanto para consulta local como retirada de livros e revistas, permitindo ao sócio ficar com as obras por um período de quatro semanas. Para a utilização

785

da biblioteca era necessário ser sócio e pagar uma taxa, valor que era destinado para compra de livros, revistas e jornais. Sobre a aquisição de novas obras, a biblioteca contou com doações financeiras de Herrmann Meyer, bem como doações de livros do mesmo. Em 1927 a biblioteca foi transformada em Sociedade de Leitura Hermann Faulhaber. O fato ocorreu um ano após da morte autodirigida de Faulhaber, um dos fundadores da biblioteca. A mudança ocorreu para que houvesse a melhor gestão da instituição. O acervo foi transferido para a residência de Marie, que se tornou a principal bibliotecária da Sociedade. Depois da transformação da Biblioteca em Sociedade de Leitura ignorasse a informação se a instituição permaneceu descentralizada ou se foi unificada. A biblioteca ficou na residência de Marie em dois momentos distintos. O primeiro de 1927 a 1935, que corresponde a mudança de gestão e adequação da Colônia, depois da morte de Faulhaber, que exercia a função de diretor no período. Em 1932 o acervo aumentou com a doação de 2500 livros que pertenciam a biblioteca particular de Hermann Meyer e doados pela sua família após o falecimento do fundador da Colônia. A doação de livros era uma das formas de ampliação do acervo da instituição. Houve doações dos próprios leitores, de empresas locais – período da década de 1930 – e de instituições alemãs, que tinham o intuito de preservação da germanidade. Quanto a preservação do acervo havia restauro regular dos livros. Em 19 de outubro de 1932 consta na ata da Ordem Auxiliadora de Senhoras Evangélicas (OASE), que as integrantes da Ordem a convite de Marie, passaram a se reunir em encontros semanais, para encadernar os livros com tecido e bordar os números, para identificá-los. O trabalho serviu não só para restauro, mas também para catalogação do acervo. Em 1935 a Sociedade de Leitura foi alocada novamente dentro do espaço escolar, em uma sala do novo prédio da escola central. Em 1937 a instituição buscou registro no Instituto Nacional do Livro (INL), sendo que a partir da filiação ao INL a Sociedade passou a receber remessas regulares de livros da literatura brasileira, que levaram a ampliação do acervo. Interessa-nos entender este processo, ao longo da pesquisa, pois o propósito do INL era distribuir livros pra instituições públicas e não privadas. Devido ao registro no INL, o acervo necessitou passar por catalogação, para normatizá-la conforme regras de biblioteconomia, separando por áreas de conhecimento. Dois anos depois o registro foi no Departamento de Ordem Política e Social (DOPS). Os registros em órgãos federais ocorreram dentro do período do Estado Novo. Em 1939 o acervo da Sociedade retornou a residência de Marie Faulhaber, devido ao fechamento da escola onde estava alocado o acervo da instituição. Mas em 1942 o acervo da Sociedade de 786

Leitura Hermann Faulhaber foi confiscado. No dia da apreensão a bibliotecária Nilza Höhle estava sozinha quando chegou o “agente de repressão no distrito9, Sr. Armando Dill, escoltados por policiais e invadiram a biblioteca e começaram a carregar os livros no caminhão de carregar porcos” 10. Em entrevista a bibliotecária afirmou:

Eu estava sozinha na biblioteca, quando os homens vieram e fecharam e tiraram todos os livros. Isso foi (silêncio). Ainda estou sofrendo com isso. Tiravam os livros e levavam pra Cruz Alta. Mais tarde, acho que o pessoal se incomodou com isso e foi buscar os livros de novo. Mas isso já foi depois da guerra, ai já foi aberto de novo 11·.

“A destruição de bibliotecas é uma tentativa de eliminar qualquer evidência material – livros, documentos e obras de arte – que possam atestar às gerações futuras “que pessoas de diferentes tradições étnicas e religiosas haviam compartilhado uma herança comum”” 12. Em uma reportagem na revista Vida Policial de 1942, consta sobre uma apreensão de livros e matérias subversivos, realizada na Colônia de Neu-Württemberg, que no período já era denominada Distrito Pindorama da cidade de Cruz Alta/RS. Após a apreensão dos livros a comunidade local começou a se articular para restabelecer o funcionamento a Sociedade de Leitura, buscando resgatar o acervo, bem como adquirindo novas obras para restaurar o funcionamento da instituição.

A busca por restituir o acervo A apreensão do acervo da Sociedade de Leitura gerou uma comoção local. Assim iniciaram-se tentativas para reaver os livros e documentos apreendidos. Em uma carta Gertrud Schmitt-Prym, sócia da Sociedade de Leitura, descreve o seu encontro com autoridades de Cruz Alta, quando solicitou a devolução dos livros confiscados. No relato, ela afirma que lhe foi feita uma promessa de devolução dos livros, o que não aconteceu imediatamente. Posteriormente ela soube que os livros da Sociedade de Leitura, assim como milhares de outros apreendidos no período, foram vendidos para a Argentina13. Tal afirmação nunca foi comprovada. Se pensarmos que se os livros foram colocados em um caminhão impróprio para o transporte, segundo a afirmação da bibliotecária, os mesmos provavelmente não teriam grande valor comercial em um mercado paralelo. Entre as ações encontra-se a correspondência de Walther Faulhaber com o presidente do INL, Augusto Meyer. Walther descreve sobre o confisco e pergunta se Meyer pode intervir para reaver o acervo. Em suas considerações Walther alega que a instituição possuía todos os

787

registros exigidos pelo governo brasileiro e não entendia os motivos que levaram a apreensão. Em resposta, Meyer, fazendo uso de seu cargo, mandou uma correspondência em papel timbrado e assinando como presidente do INL, mas dirige-se a Walther de forma pessoal colocando que no momento não havia possibilidade de reaver o acervo, mas afirma que não se deve fechar a Sociedade, pois seria a confirmação de que havia algo errado com a instituição. Para que mantivesse funcionando Meyer prometeu uma remessa de livro, para formar um novo acervo, mas não afirma quanto livros seriam remetidos. Em uma ata do mesmo ano afirma que a Sociedade de Leitura não foi fechada graças a remessa de livro do INL e de doações dos próprios sócios, assim como novas aquisições, que foram escassas devido o pouco dinheiro em caixa. Em um formulário de 1944 do INL, Walther Faulhaber descreve nas observações sobre a apreensão da biblioteca, ocorrida em fevereiro de 1942, que foram levados 3000 livros da Instituição e que haviam retornado apenas 110 obras até o momento. Entre o período de 1942 a 1944 a biblioteca funcionou com 510 livros. Percebe-se que a Sociedade se manteve funcionando com um número reduzido de livros, se considerarmos o acervo

original.

Posterior a esta data não consta mais informações se mais livros retornaram. Sobre a documentação a Sociedade de Leitura mandou cartas a todos os órgãos nos quais havia possibilidade de que houvesse registros de suas atividades e pediu cópias dos documentos, para restituir sua documentação14.

Conclusão

O Estado Novo ao promover a nacionalização dos espaços coloniais, o fez de forma arbitrária, por vezes com violência, produzindo traumas irreparáveis nos imigrantes e seus descentes. A destruição de uma biblioteca é sempre a destruição de um modelo de cultura, que leva a desagregação de um grupo, marcando-os muitas vezes de forma traumática. A destruição dos acervos privados ou coletivos terminou ou desestimulou a cultura livresca entre estes grupos, assim como a possibilidade de acesso a estes livros, levando a total desconhecimento sobre as obras que pertenciam aos imigrantes/descendentes. A forma de resistência dos moradores de Neu-Württemberg, sócios da Sociedade de Leitura Hermann Faulhaber ocorreu com a manutenção da biblioteca. A ajuda para manter o funcionamento da Sociedade partiu de um órgão federal, o Instituto Nacional do Livro, que por meio de seu presidente enviou uma nova remessa de livros. Outras obras se agregaram por meio de doação dos sócios ou de novas aquisições. Com isso percebesse que não foi somente uma articulação

788

do sócio fundador e secretário Walther Faulhaber no intuito de restaurar o acervo, mas uma união dos sócios, em prol da manutenção da Sociedade de Leitura. O projeto de pesquisa que se encontra em desenvolvimento segue investigando os eventos ocorridos, de forma a ampliar a compreensão sobre tais. Até o presente momento entendemos que a manutenção da Sociedade de Leitura foi um ato de resistência, articulado com a ajuda de Augusto Meyer, presidente do INL, ligado ao governo Vargas, mesmo governo que por meio de leis e proibições levou ao confisco do acervo da Sociedade de Leitura Hermann Faulhaber.

1

BARATIN, Marc; JACOB, Cristian (dir.). O poder das bibliotecas: a memória dos livros no Ocidente. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ, 2008. 2 ALENCASTRO. Luis Felipe de; RENAUX. Maria Luiza. Caras e modos dos migrantes e imigrantes. In. NOVAIS. Fernando A. (org.). História da Vida Privada no Brasil – Império 2. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. 3 Op. Cit. 4 Quando escrito com a inicial em maiúsculo, o termo “Colônia” designa o empreendimento agrícola onde colonos foram assentados, o qual com o tempo foi elevado a vila e cidade. Por vez quando redigido com a letra inicial em minúsculo, “colônia” terá significado vinculado à propriedade territorial recebida pelo imigrante onde morou, trabalho e retirou sua subsistência. Dessa forma, a Colônia era divida em muitas colônias. (WITT, 2003, p. 41). WITT, Marcos Antônio. Os registros Paroquiais da Lei de Terras como fonte de pesquisa para a história da imigração. In: TEDESCO, João Carlos e NEUMANN, Rosane Maria. Colonos, colônias e colonizadoras: aspectos da territorialização agrária no Sul do Brasil. Vol. III. Porto Alegre: Letras & Vida, 2003. 5NEUMANN, Rosane Márcia. Uma Alemanha em miniatura: o projeto de imigração e colonização étnico particular da Colonizadora Meyer no noroeste do Rio Grande do Sul (1897-1932). Tese (doutorado) Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas: PUCRS. Porto Alegre, 2009. 6 Sobre Marie Faulhaber ver: SCHMITT. Denise V. Marie Faulhaber: a trajetória de uma imigrante alemã em Neu-Württemberg, 1902-1939/RS. Monografia (graduação) Universidade Federal de Santa Maria: UFSM. Santa Maria, 2014. 7 MAHP. Panambi: de colônia a município. Panambi: Editora Bühring Ltda, 2013 8 FAUSEL, Erich. Cinqüentenário de Panambi 1899-1949. s.l.: s.ed., 1949. 9 A Colônia com o passar do tempo tornou-se um distrito de Cruz Alta. Quando passou a ser distrito a mesma teve diferentes nomes, sendo no período da nacionalização o nome oficial Pindorama. 10 (BEUTER, 2013, p. 384). BEUTER, Ivo. De Elsenau a Panambi. Panambi: Ed. Emgrapan, 2013 11HÖHLE, Nilsa: Nilsa Höhle: entrevista (abr. 2014). Entrevistadoras: Denise Verbes Schmitt e Temia Wehrmann. Panambi, 2014. Arquivo de gravador. Entrevista concedida para Trabalho final de Graduação. 12(BATTLES, 2003, p. 187). BATTLES, Mathew. A conturbada história das bibliotecas. Tradução. João Vergílio Gallerani Cuter. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2003. 13 Acervo do Museu e Arquivo Histórico Professor Hermann Wegermann (MAHP). 14 Cartas e documentos no MAHP.

789

A Mayrink Veiga na na batalha das ideias: Brizola, reformismo e o golpe de 1964. Diego Martins Dória Paulo Mestrando em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), bolsista Capes Orientador: Lúcia Grinberg E-mail: [email protected] Resumo Este trabalho analisa a Rádio Mayrink Veiga como um veículo de imprensa na defesa da pauta reformista durante a crise dos anos 1960, que culminaria com o golpe empresarialmilitar de 1964. Assim, argumenta-se que a rádio serviu tanto como uma fronteira de defesa das reformas de base e da democracia quanto um instrumento de promoção de seu principal líder, o então deputado federal Leonel Brizola. Palavras-chave: Brizola – Rádio Mayrink Veiga – Reformismo

Abstract This paper analyses the Radio station Mayrink Veiga as a press vehicle to defend the reformist agenda during the brazilian 60’s crisis that would culminate in the militaryenterprise cup in 1964. Thus, it is claimed that the radio station worked not only as a defense boundary of the reformas de base and democracy, but also as na instrument of political promotion of its man leader, Leonel Brizola, then a Congressman. Key-words: Brizola – Radio station Mayrink Veiga – Reformist agenda

Mayrink Veiga: democracia e reformas Democracia é o regime de minorias privilegiadas. Desenvolvimento econômico para essa minoria é o enriquecimento próprio e o empobrecimento do povo. Em matéria de liberdade, a única que defendem mesmo é a liberdade de lucrar e fazer negócios. Ordem para essa minoria é a ordem dos cemitériosi.

Assim Brizola se exprimia pela Mayrink Veiga entre 1963 e 1964. Em discursos inspirados, reeditava a experiência dos tempos de rádio Guaíba e da Cadeia da Legalidade.

790

Dessa vez, todavia, seus inimigos eram mais específicos: “forças do atraso, vendilhões da pátria, inimigos do povo que querem mantê-lo na miséria”. Assim qualificava o “antipovo”, em outras palavras, as classes dominantes patrocinadoras do “atraso”: os setores internacionalizados, os empresários da grande mídia, os latifundiários da agricultura de exportação. No biênio referido, Brizola declararia guerra a esses grupos sociais - notadamente de grande poder econômico e político na república que vigia. A partir de agora, pois, analisaremos como Brizola intentou efetivar o conjunto de reformas entendidas como fundamentais para livrar o Brasil dos grilhões da dependência e do atraso. A modernização econômica que viria daí, porém, não deixaria de ter seu aspecto conservador, demonstrando atributos contraditórios do que se considera a epítome das esquerdas no período. Para entender o caráter estratégico dessas intervenções de Brizola há de se antecipar que consideramos a rádio Mayrink Veiga como um aparelho privado de hegemonia. Em outras palavras, a emissora aqui é considerada uma organização que objetivava defender o projeto social dos nacional-reformistas – travando o que Gramsci nomeara guerra de posições pelo controle do Estado. Assim sendo, convém explicar resumidamente o que se entende pelos conceitos relacionados acima. Aparelho privado de hegemonia, no esquema teórico gramsciano, é um meio que se utiliza para alcançar o consenso social sobre determinada causa. Isso se dá pela hegemonização de uma ideologia interessante àquele objetivo. Nesse raciocínio, o dito acordo é alcançável pela naturalização de uma ordem que, precisamente por isso, deixa de ser vista como arbitrária, parcial, atingindo o estatuto de representação da realidade efetiva, condicionando a orientação dos indivíduos na sociedade. Por conseguinte, a hegemonia engendra uma forma de estar no mundo, de reconhecê-lo; por meio dela, pessoas e classes sociais, em diferentes níveis, orientam suas práticas diuturnas. Há logo que se ressalvar, porém: a hegemonia jamais é total, pois comporta a possibilidade de sua superação – o que não estaria posto na hipótese de hegemonização totalizante. Seu poder reside, assim, no consenso da maioria. A minoria é tratada conforme sua relação com a ordem estabelecida: se opositora, é combatida por representar um óbice à efetivação da cultura que busca ser dominante; se alternativa, consiste na proposta de novo modo de ser, que, todavia, não representa ameaça imediata à naturalização da ordem; por isso é tolerada. Posto isso, há que ressaltar o projeto social defendido por Brizola e reformistas: um capitalismo brasileiro, relativamente autônomo em relação ao sistema internacional – na

791

medida em que interioriza os mecanismos decisórios da economia nacional. Da forma como entendemos, o Brasil defendido pelos trabalhistas analisados representaria um estágio específico do desenvolvimento social no país, ao mesmo tempo modernizador e conservador. Seus elementos modernizadores são identificados na defesa do aprofundamento industrial e tecnológico do país, do rompimento da dependência externa, da expansão da democracia – identificada pela ampliação do acesso aos direitos do cidadão, notadamente o de sufragar. Já o aspecto conservador se refere à manutenção da ordem burguesa, pela associação também das classes trabalhadoras ao seu desenvolvimento – processo que fora iniciado por Getúlio Vargas, mas que em Leonel Brizola e nos petebistas analisados encontra um ponto de radicalização. Com base nesses marcos teóricos, analisamos nosso acervo documental. Assim, debruçamo-nos sobre a reconstituição histórica que Brizola faz de 1945 até o seu presente. Nela, finda a deflagração mundial, as potências imperialistas retomaram seu empenho de exploração sobre certas áreas do globo, aprofundando as dependências econômicas dos países localizados nesses territórios. Em que pese a luta contra setores nacionalistas locais, que reagiram às iniciativas espoliativas externas, o “sistema econômico e financeiro internacional” insistiria em curvar a maioria das nações aos seus desígnios. A batalha de Getúlio Vargas, assim, seria de um brasileiro pela “libertação” de seu povo, que só pode ser conquistada com “independência econômica ”. Aproximamo-nos rapidamente de um desfecho desse período cruel que se iniciou desde o fim da última guerra. O presidente Getúlio Vargas, em 1954, decidiu morrer dramaticamente para que nós, brasileiros, sob o impacto de seu sacrifício, viéssemos a compreender a grande mensagem contida em sua Carta Testamento. O imortal brasileiro decidiu morrer para que nós despertássemos. Sua mensagem é uma convocação dirigida a todos os brasileiros e patriotas para a luta contra a espoliação internacional de nossa pátria por ser essa a causa e origem profundas desse quadro de injustiças, de sofrimentos, de angústias, de pobreza que vem tornando a vida humana insuportável em nosso país.

O encadeamento de significantes proposto por Brizola engendra um novo significado, que, contudo, não necessariamente está na história. A operação, assim, é ideológica, não porque deforma a realidade, mas por revelar um modo de conhecer que em última instância é pressionado pela vinculação do observador a um projeto social específico: a libertação do Brasil da espoliação internacional e o desenvolvimento autônomo de um capitalismo tipicamente brasileiro. O conceito de ideologia está aqui utilizado como o proposto por Antônio Gramsci, para quem ela nada tinha de equívoco, antes exprimindo uma percepção do

792

real. No caso, essa representação é tributária de um interesse político, imbricado, por sua vez, na perspectiva social dos nacional-reformistas. Assim sendo, a reconstrução da história do período efetua uma seleção interessada da tradição política brasileira. A atuação de Getúlio Vargas é recuperada, mas reelaborada de acordo com os interesses imediatos de Brizola e da frente de esquerda que identificou reformas e revolução, da qual participavam trabalhistas, comunistas e supostamente uma burguesia nacional rival do imperialismo porque portadora do sentido de progresso social, e, precisamente por isso, capaz de livrar o Brasil de “arcaísmos” baseados naquela espoliação externa. Ganha sentido a atitude de Brizola ao enfatizar, na sua exposição, um aspecto que tem interesse político imediato: a luta contra a “espoliação internacional realizada pelo imperialismo e pelos seus aliados no interior da nação”. Na passagem, pois, vemos a história sendo utilizada para fundamentar uma posição política. Ora, se Getúlio Vargas, cuja liderança do país fora chancelada pelo apoio popular, colocou-se contra os grupos internacionalizados da economia brasileira e o sistema financeiro internacional, era legítima a posição adotada por Brizola – que se ergue contra os mesmos inimigos do presidente morto. Atua-se, assim, no sentido de buscar a transferência de capital político de um detentor para outro, marcando a continuidade de uma tradição de lutas sociais a favor do “povo” e da “nação”. Com efeito, contar a história brasileira de 1945 até seu presente é funcional à fixação de uma interpretação particular – que é determinada por interesses políticos. Fazê-la pelo rádio é tanto mais significativo e propicia algumas reflexões. Ora, o uso da radiofonia, ao menos nos primeiros momentos de sua ampliação no Brasil, esteve intimamente associado a motivações educacionais. Recorrer a ela para reelaborações históricas é ilustrativo não só do sentido que ainda se atribui àquele meio de comunicação nos anos 60, mas também do tipo de estratégica política que se intenta: a formação – por meio de ferramentas pedagógicas – de uma consciência histórica e política útil aos interesses dos nacional-reformistas. Como visto, na sua reconstrução histórica, Leonel Brizola se estabelece como o continuador do varguismo, recurso político inestimável mesmo à época. Mais: relaciona o legado político de Getúlio Vargas à luta contra o imperialismo, um dos inimigos do próprio Brizola. Nesse sentido, ao passo que legitima a posição brizolista, desqualifica seus rivais, vinculados ao esquema de “exploração internacional” e, nesse sentido, obstáculos na “libertação da pátria”. Assim sendo, pode-se perceber que na difusão ideológica que toma parte na rádio Mayrink Veiga confluem dois processos, que aqui analiticamente se distinguirá

793

em momentos diferentes: a) função afirmativa, isto é, propositiva, quando Brizola elabora a história com intuito de favorecer a luta pelas reformas; b) função reativa, quando o político visa deslegitimar projetos sociais distintos e seus proponentes que concorrem pelo futuro do Brasil. Assim, se o elogio a Vargas é acompanhado da reelaboração de seu legado, Brizola introduz positivamente uma concepção de realidade em seus ouvintes – pela transferência do capital político do líder para as ideias por ele supostamente defendidas. Tal construção cumpre uma função propositiva, isto é, de apontar o futuro que se deseja para o Brasil: um país livre das dependências econômicas externas, moderno, em que as diferentes classes sociais atuem conjuntamente no sentido do desenvolvimento aspirado. Já a qualificação das “forças ocultas” presentes na Carta Testamento de Vargas, que o teriam levado à morte, consequentemente, é uma etapa reativa da trama ideológica difundida pela Mayrink Veiga. Isso porque de tal modo se busca atingir grupos rivais do nacional-reformismo na arena política. Não a toa estes são pejorativamente nomeados “vendilhões da pátria”. Seriam “minorias egoístas” que, aliadas ao “imperialismo internacional”, defendiam interesses particulares, portanto “antinacionais”. Por sua ação, os nacionalistas viviam guerra constante em defesa da “pátria” e do “povo”, contra as injustiças sociais advindas do “processo espoliativo” sofrido pelo Brasil. Uma minoria de brasileiros egoístas e vendilhões de sua pátria. Uma minoria poderosa e dominante sobre a vida nacional. Desde o latifúndio, a economia e a finança, a grande imprensa, os controles da política até os negócios internacionais. Infelizmente se associou ao processo de espoliação de nosso povo. Essa minoria é hoje o que podemos chamar de antipovo e antinação. Não deixa que as reformas se realizem e opõe toda sorte de obstáculos a defesa dos interesses nacionais. Porque as reformas e a libertação de nosso povo representariam o fim de seus privilégios antissociais e antinacionais.

A descrição do antipovo é precisa para os interesses do grupo nacional-reformista. Arrola no rol de inimigos da pátria latifundiários, a grande imprensa e a burguesia internacional e internacionalizada, cuja força política no período já foi demonstrada em extensa bibliografia. Com efeito, usando as armas que conhecia tão bem, a saber, a comunicação de massa e a retórica incendiária, pontuada por metáforas populares, Brizola se consolidou como a ponta de lança dos setores reformistas da sociedade. Opuseram-se, assim, não só aos conservadores do “corrompido congresso nacional”, mas também àqueles que se organizavam para derrubar o governo democrático de João Goulart.

794

“As finanças e os negócios internacionais” compunham logicamente aquele grupo. Com inserção maciça nos anos do Plano de Metas, durante o governo de Juscelino Kubistchek, formaram um bloco econômico coeso. Suas articulações com setores políticos não tardaram a se efetivar, sendo perceptíveis em instituições como o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), que recebera verbas estadunidenses para financiar políticos de oposição a João Goulart dispostos a inviabilizar seu governo. Tendo essa coalizão golpista sendo percebida ainda no calor dos acontecimentos – a CPI do IBAD é um dos fatores que demonstra o conhecimento de articulações para tumultuar o mandato de Jango – Brizola recorre aos microfones da Mayrink Veiga para combater a ruptura democrática. Era a aproximação do “momento do desfecho”, o do acirramento das lutas populares pelas reformas de base – e, sua contrapartida, a reação do “antipovo”: Para essa minoria, como o que já ocorre agora, os que lutam contra esse estado de coisas são radicais, agitadores, comunistas, fidelistas, etc. E daí caminham para o estado de sítio, para as medidas policiais contra o que chamam de agitação, para a restrição de liberdades públicas e individuais, para as tentativas de impor um governo forte, para o golpe e a ditadura

Denunciar o golpe, assim, atendia a múltiplos interesses dos setores do PTB ligados à Rede do Esclarecimento. Afinal, em um contexto marcado pela sensação de instabilidade política, a manutenção do regime era condição necessária para o sucesso de seu projeto social. Isso porque o partido se encontrava em franca expansão nos poderes da república. Dessa forma, não estava fora de cogitação supor que, em pouco tempo, os trabalhistas teriam força política para efetivar as reformas na lei. É por essa linha de raciocínio que se deve interpretar a proposta de organização popular de Leonel Brizola. Por meio da rádio Mayrink Veiga, o deputado instou a formação dos chamados Grupos de Onze, também nomeados provisoriamente de Comandos Nacionalistas. De acordo com o petebista, os grupos eram uma organização popular para atuar, para agir, para lutar. Não para tomar chá. Essas unidades irão atuar e se reunir não para tomar chá ou para fazer crochê. Não. Exatamente com o propósito de defender as conquistas democráticas do nosso povo e avançar. Pela realização de uma democracia autêntica. Pela realização imediata das reformas e pela conquista de nossa libertação. Se pretenderem golpear as nossas liberdades, as nossas conquistas democráticas, não tenham dúvida. A luta vai sair! Vai haver luta! (aplausos)

Ora, para fazer parte dessas organizações, um formulário deveria ser preenchido e enviado para a rádio Mayrink Veiga, contendo a localização do grupo e os nomes dos participantes, sendo um deles o líder – ou capitão do time, como Brizola nomeou o cargo, 795

para manter a metáfora futebolística que inspirou o nome do projeto por ser “compreensível ao ‘povo’”. A função dessas organizações populares seriam realizar palestras pró-reformas de base, panfletagem política e, principalmente, ouvir todas as sextas-feiras aos pronunciamentos de Leonel Brizola na rádio Mayrink Veiga, espalhando depois o que teriam ouvido. Os grupos, assim, seriam verdadeiras células extrapartidárias de formação política, difusão ideológica e defesa do projeto nacional-reformista. A hierarquia do projeto está clara: os G-11 tinham autonomia de atuação – mas deveriam sempre ser pautados pelos discursos de Brizola e a audiência de seu programa na rádio Mayrink Veiga, coligada a outras emissoras em cadeia. Assim Brizola explica a criação dos grupos e da Rede do Esclarecimento. A organização popular se impõe à medida que a crise brasileira se aproxima de seu desfecho. A vastidão territorial do país e a urgência da hora dificultam essa tarefa de organização. Antes que desabe sobre ele as pressões das oligarquias e dos grupos dominantes. É indispensável, portanto, meus patrícios e irmãos, o apelo à iniciativa de cada um, ao gênio criador do nosso povo, à sua própria capacidade de organização, exatamente como ocorreu na crise de agosto de 61, no Rio Grande do Sul e em outras áreas do país, quando o povo organizou-se por toda parte, de modo espontâneo, por sua própria iniciativa, após o apelo feito à resistência popular contra o golpe que se pretendia desfechar contra nossos direitos e liberdades. As iniciativas precisam surgir por toda parte. Onde quer que se encontre um brasileiro consciente, um nacionalista e um patriota (...). Foi dentro desse pensamento que se tomou a iniciativa através da rádio Mayrink Veiga e demais emissoras a ela coligadas da organização dos Grupos dos Onze companheiros ou comandos nacionalistas.

Portanto, se fica claro a mobilização popular com intuitos políticos, isto é, sustar a possível ruptura democrática e pressionar os poderes constituídos no sentido de efetivarem o programa reformista, a organização dos Grupos de Onze igualmente transparece uma estratégia de tutela por parte de Brizola. Ora, o “povo” assim organizado era livre para praticar política, desde que esta respeitasse as ideias defendidas todas as sextas-férias por Leonel Brizola no rádio. Assim, ao passo que difundiam o projeto nacional-reformista, os grupos também legitimavam a posição de liderança de Brizola.

Rádio Mayrink Veiga: um projeto também pessoal Com o debatido aqui, tem-se condições de sustentar que a ideologia propagada nas ondas da Mayrink Veiga era duplamente determinada. Dessa forma, defende-se que tal sistema simbólico era funcional para a defesa dos interesses de um grupo, a saber, os nacional-reformistas. Todavia, a reflexão sobre a tática política de Brizola não pode se deter aí. Isso porque também impulsiona seu esforço naquele biênio o empenho por ascensão política pessoal. Precisamente aí reside a dupla determinação de sua atuação frente à Mayrink

796

Veiga. Negar qualquer uma das partes é reduzir o escopo de análise e, consequentemente, os resultados obtidos. No mesmo conjunto de discursos analisado, há passagens que articulam objetivos visivelmente particulares a construção cultural que se opera. Se a hegemonia pretendida fincou raízes na cultura pré-existente, a liderança de Brizola no Brasil pós-crise orgânica trilhou o mesmo caminho, a bem dizer paralelamente. Assim, traços do senso comum são ressignificados, adquirindo nova conotação, a fim de adequá-los também aos desígnios particulares de Brizola. A religiosidade é só um exemplo do deslocamento de aspectos do folclore na ideologia que se propaga, mas é também o mais evidente, dada o seu apelo moral. Jogando com símbolos do sagrado, o político reelabora a história de Cristo. De acordo com ele, o “antipovo” usa a seu favor e contra “nossa pátria” toda sorte de armas, inclusive a tradição cristã, como se Cristo tivesse surgido no mundo como um homem de negócios ou como um privilegiado com os privilégios do patriciado romano. Não de uma família de operários! Como se o filho de Deus tivesse vindo à Terra para confraternizar em festins e fazer negócios com os espoliadores romanos, que então dominavam e oprimiam o povo hebreu. [grifos meus]

Para Brizola, assim, Cristo é um operário que luta contra os espoliadores romanos. A reconstrução do Novo Testamento assume aqui duas funções: além de instrumentalizar a tradição cristã em função dos objetivos políticos dos nacional-reformistas, também afirma a liderança de Brizola no seio das classes populares. Ora, se Cristo foi um desafiante da exploração externa, ele, Brizola, ocupando o mesmo espaço no espectro político, torna-se Cristo. Deificado, surge como o ideal condutor do povo rumo à libertação. As crenças populares - o folclore gramsciano - são assim instrumentalizadas para o exercício de uma nova dominação, que, para fazer sentido, interage dialeticamente com os sentidos prévios do saber popular. É com base em tal processo que se engendra o consenso e a se condiciona o destaque de Brizola na arena política. É de tal modo perceptível outra dimensão do projeto de direção hegemônica levado a cabo pela Rede do Esclarecimento. Esclarecer não se tratava de difundir apenas uma consciência nacional-reformista: convinha também, ao menos para o orador das ondas radiofônicas, inserir os participantes (mas também potenciais novos integrantes) da arena política em um universo no qual a cadeia de significantes e significados fosse organizada por ele. Era o petebista que apontava os inimigos da nação; Brizola, contava a história do país até ali; o mesmo instava a organização popular na qual a legitimidade de sua

797

liderança

sobressaísse. Ainda: todos deveriam ouvir seus discursos às noites de sextas. Era o convite para uma forma específica – e dirigida – de orientação social, marcada por sua defesa do capitalismo nacional, da ideologia trabalhista e da manutenção do regime então vigente, que, embora enfrentando turbulências, poderia reconquistar a estabilidade, contanto que se fortalecesse contra o “antipovo” – isto é, expandisse suas bases de apoio contra os setores favoráveis a outro tipo de futuro para o Brasil – caro aos setores associados às multinacionais que, desde o governo JK, consistiam no polo dinâmico da economia nacional. A dupla determinação das motivações da Rede do Esclarecimento também guiou o empreendimento ao rádio. Além de sua difusão na sociedade e de seu viés pedagógico, usado aqui a serviço de um projeto político-social específico, o veículo permitia a ampliação de atributos retóricos caros a Leonel Brizola, maximizando o potencial persuasivo de seus discursos e, por conseguinte, seu capital político. Assim, em uma análise mais formal do conteúdo das fitas analisadas, podemos destacar dois pontos como específicos da ação brizolista no rádio. O primeiro é a interação entre o orador e a plateia. Buscando recuperar a áurea dos discursos para grandes audiências, onde há interação direta entre emissor e receptor, Brizola posicionava apoiadores no estúdio da Rádio Mayrink Veiga enquanto seus programas iam ao ar. Assim, suas falas mais enfáticas eram pontuadas por aplausos, sugerindo à audiência sobre como se comportar a respeito do que acabara de ouvir. Estabelecia-se, assim, um laço mais do que racional: também emocional entre o político e o “povo”. O segundo atributo reside na informalidade da fala. Buscando uma relação pessoal com o ouvinte, Brizola não recorre a análises complexas e conceitos específicos como o faz no jornal O Panfleto, que analisaremos mais abaixo. Para explicar a inflação que se aprofunda no país durante a “crise vivida”, o político evoca uma imagem habitual na vida dos trabalhadores: Imaginem vocês, meus caros patrícios e irmãos, vocês, trabalhadores brasileiros, quando vão dormir, deixam mil cruzeiros na mesinha de cabeceira, mas quando acordam só há 999 cruzeiros lá. Esse é o resultado da inflação que avança no nosso país.

Posto isso, o rádio se mostra importante engrenagem na articulação hegemônica da Rede do Esclarecimento, embora não fosse frente suficiente para o sucesso almejado. Pelas emissões radiofônicas, um maior número de cidadãos era alcançado pela organização – haja vista as barreiras de distribuição de O Panfleto – podendo ser dirigidos por esse grupo político. Como se verá a seguir, o aprofundamento da mobilização popular e a manutenção do regime vigente eram fundamentais para se atingir o projeto nacional-reformista. Ambos as 798

medidas, a saber, a ampliação da participação popular condicionada e a radicalização da democracia tinham funções específicas na lógica dessa ala do PTB: pela mobilização popular, pressionava-se os grupos sociais avessos à aprovação das reformas de base – entendidas como etapa necessária do processo de “libertação econômica” e constituição de um capitalismo nacional maduro; já pela manutenção da democracia, idealmente radicalizada pela proposta anterior, acreditava-se ser possível alcançar os objetivos mencionados, haja vista a expansão constante dos trabalhistas nos diversos poderes republicanos. A Rede do Esclarecimento, assim, em macroanálise, representou uma organização hegemônica que buscava, ao mesmo tempo, aprofundar a participação social, radicalizar a democracia, assegurar um capitalismo nacional e, também e principalmente, conferir às classes trabalhadoras um lugar ainda subordinado no Brasil pós-crise. Ao mudarmos a escala de observação, vemos que a rádio fora também funcional na batalha de Leonel Brizola pela ascensão na carreira política, consistindo em uma etapa que se desdobra logicamente a partir das conquistas pessoais realizadas em 1961.

i

A documentação da Rádio Mayrink Veiga, e aqui referenciada, consta no fundo BR APERJ DOPS/GB, do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, disponível para audição em cinco fitas K-7.

799

A MEMÓRIA E A HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE: Um amplo movimento de renovação historiográfica

DINORÁH LOPES RUBIM ALMEIDA - UFES1

RESUMO: A história do tempo presente revitalizou e abrigou um amplo movimento de renovação historiográfica, com ampliação de fontes, interdisciplinaridade, a nova história política, a diversidade temática, a valorização da história oral e a relação dialética entre memória e história. O presente artigo, visa analisar alguns pontos dessa renovação, destacando-se a discussão da memória sob diferentes perspectivas, utilizando a teoria de pesquisadores da área, confrontando ou complementando seus pensamentos sobre a questão. Buscaremos discutir a memória e a história, sob a forma de como trabalhar sua construção e interpretação, trazendo também uma reflexão sobre a utilização da história oral nas pesquisas históricas. Palavras-chave: História do Tempo Presente. História Oral. Memória.

ABSTRACT: The History of this time revitalized and housed a broad movement of historiographical renovation, expanding sources, interdisciplinarity, the new political history, the thematic diversity, appreciation of oral history and the dialectical relationship between memory and history. This article aims to analyze some aspects of this renovation, especially the discussion of memory from different perspectives, researchers using the theory of the area, confronting or complementing his thoughts on the issue. We seek discuss memory and history, in the form of working construction and interpretation, also bringing a reflection on the use of oral history in historical research.

Keywords: History of the Present Time. Oral history. Memory.

1

Doutoranda do Curso da Pós-Graduação em História Social das Relações Políticas pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Orientador: Professor Dr. Pedro Ernesto Fagundes. Email: [email protected]

800

1 A HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE

A história do tempo presente, muitas vezes sofreu crítica pela proximidade dos historiadores em relação aos acontecimentos pesquisados, o que poderia provocar um olhar limitado sobre os mesmos. Porém, essa visão sem sendo reconstruída, e há uma grande adesão de pesquisadores que defendem a escrita a história do presente. Segundo Rioux (1999, p. 46), “o argumento da “falta de recuo” não se sustenta, pois é o próprio historiador, desempacotando sua caixa de instrumentos e experimentando suas hipóteses de trabalho, que cria sempre, em todos os lugares e por todo o tempo, o famoso recuo.” De acordo com Delgado & Ferreira (2014, p.8), “a configuração da história do tempo presente está relacionada inexoravelmente à dimensão temporal”, ou seja, é justamente a contemporaneidade dos fatos que faz surgir esse novo redimensionamento na matriz histórica que tem mobilizado historiadores de todo o mundo. Não há como limitar uma data para se enquadrar a história do tempo presente, mas há como aproveitar recursos “vivos” que muitas vezes podem ser documentados pela história, como a história oral. Além de vários outros recursos que são revitalizados e em parceria com o avanço tecnológico tem contribuído para o enriquecimento historiográfico. Portanto, é possível se fazer uma história do presente, pois a história não é imóvel, e o historiador sempre sofre a influência do contexto que está inserido, independente da época que elege como seu objeto de estudo. Por se tratar de uma história imediata, o pesquisador pode não dispor de todos os documentos disponíveis do período, pois alguns ainda podem não estar abertos ou mesmo em construção, portanto, cabe a ele, promover métodos de investigação acertados e aproveitar as vantagens empíricas da proximidade com os fatos. O historiador não pode simplesmente arquivar um acontecimento contemporâneo, quando o mesmo vem sendo questionado constantemente a nível nacional ou mundial. O pesquisador tem, portanto, a tarefa de exumar e tornar inteligível tal acontecimento, daí a importância de uma história do tempo presente. A memória, no sentido básico do termo, é a presença do passado. Portanto, não admira que tenha interessado aos historiadores do tempo presente, depois de outros, já que essa presença, sobretudo, a de acontecimentos relativamente próximos como as revoluções, as guerras mundiais ou as guerras coloniais, acontecimentos que deixam sequelas e marcas duradouras, tem ressonância em suas preocupações científicas: como arquivar tranquilamente e em silêncio a história de Vicky, quando no mesmo momento esse período era alvo de uma interrogação obsessiva em escala nacional? (ROUSSO, 2006, p. 94).

801

Realmente, como historiadores, seria possível não pesquisar e escrever sobre eventos de repercussão nacional e internacional, como o terrorismo, os problemas de imigração na Europa, a primavera árabe, a crise política e econômica brasileira e mundial, a mídia e a política, os arquivos da repressão no tempo do regime militar, a reaproximação de Cuba e os Estados Unidos; e tantos outros assuntos, só porque somos contemporâneos a tais fatos? Nós historiadores devemos delegar essa função a jornalistas, economistas e sociólogos, e só depois de um longo distanciamento analisar tais acontecimentos? Não me parece coerente incumbir tais responsabilidades a outros profissionais e sentarmos na arquibancada como meros expectadores que assistem o desfile dos acontecimentos e depois de anos procurar analisa-los. É certo que um distanciamento dos acontecimentos nos amplia a visão e a participação e articulação de atores nos fatos. Mas como afirma um provérbio russo “Nada muda tanto quanto o passado”. Esse provérbio traz em sua essência uma realidade que o historiador deve ter a sensibilidade de perceber: a história não é imóvel, as fontes históricas não são inócuas. As mudanças e variações de interpretações sobre um mesmo fato histórico são uma realidade na historiografia. Segundo Delgado & Ferreira (2014, p.8), a história do tempo presente envolve ferramentas importantes aos pesquisadores: “o campo constitutivo e temporalidade, pluralidade de fontes e de procedimentos de pesquisa e diversidade temática.” Acreditamos portanto, que o historiador do imediato, tem muito a contribuir na construção de fontes históricas que muito auxiliarão em pesquisas futuras, que poderão ou não trazer percepções distintas sobre um mesmo fato. Destacamos que a nova história política apresenta-se renovada com novos métodos de análises, novos conceitos e técnicas de pesquisas; ampla (voltada para uma sociedade global, abordando todos os atores e aspectos da vida coletiva); pluridisciplinar; quantitativa (apoderando-se de dados numéricos); e com uma pluralidade de ritmos, abordando acontecimentos de rápida, média, longa e longuíssima duração. Segundo Rémond (2003) após essa renovação, a história política passa a preencher todos os requisitos necessários para ser reabilitada e viver um renascimento. A cronologia do ressurgimento da história política está intimamente ligada ao ênfase que a história do presente tem vivenciado, bem como, a sua ligação com a memória. Essa trilogia – história política, história do presente e memória - vem sendo muito utilizada entre

802

os

pesquisadores e vem ganhando grande vigor na atual historiografia. Para Chauveau e Tétard (1999), os historiadores do político construíram a vanguarda da história do presente.

2 A MEMÓRIA SOB DIFERENTES PERSPECTIVAS

Não existe só uma memória, como afirma Halbwachs (2006), a memória é coletiva e há várias memórias sobre um mesmo fato, sobre ângulos e pontos de vista diferentes. Halbwachs (2006, p. 109), também afirma que “a história é um painel de mudanças”, justamente devido as distintas memórias que a compõe. Tratar de memória é, sem dúvida, mexer em um terreno movediço, que requer cautela, uma vez que as memórias não estão isoladas de um contexto e das influências externas que se tornam manipulações conscientes ou inconscientes que atuam sobre os atos mnemônicos. Entendemos por memória um conjunto de registros episódicos ou semânticos sobre um acontecimento, que pode ser transmitida por meio de relatos orais, de monumentos, das artes ou de arquivos escritos que trazem os apontamentos de determinado fato. Reconhecemos, no entanto, que os monumentos, os símbolos, os arquivos escritos, tanto quanto os relatos orais, correspondam a uma memória seletiva, filtrada de acordo com as percepções de quem as escreveu, narrou ou cristalizou, ou seja, uma memória que o historiador francês Pierre Nora chama de “memória historicizada”. Em se tratando do recolhimento da história oral, devemos observar e confrontar relatos orais a respeito do mesmo fato, levando em consideração que o personagem que viveu a história, que é o sujeito da história, atualmente tem a vantagem de contar com o futuro do passado, ou seja, tem uma visão distante e privilegiada do acontecimento narrado, por estar inserido em outro momento histórico e saber das incursões que tais fatos sofreram ao longo do tempo. As memórias sofrem, portanto, uma forte percepção do presente, podendo comprometer a originalidade da lembrança, com esquecimentos ou apagamentos, e até mutações, de acordo com a vivência do indivíduo que as relata. Tal compreensão é compartilhada pelo filósofo francês Henri Bergson, que, a respeito das sobrevivências das imagens passadas, alerta no sentido de que “[...] estas imagens irão misturar-se constantemente à nossa percepção do presente e poderão inclusive substituí-las” (BERGSON, 1999, p. 69).

803

Procuraremos apresentar perspectivas de memória sob a visão de determinados autores, que serão utilizadas como base para a estruturação desse trabalho, como: “memória coletiva”, “memórias subterrâneas”, “memórias enquadradas”, “lugares de memória”, “memória como luta de poder”, entre outros conceitos teóricos. Halbwachs (1877-1945) foi um sociólogo francês da corrente durkheimiana, que sofreu também forte influência de Bergson, e focou seu estudo na memória coletiva, que é construída e compartilhada por uma sociedade. Contudo, se a memória coletiva tira sua força e sua duração por ter como base um conjunto de pessoas, são os indivíduos que se lembram, enquanto integrantes do grupo. Desta massa de lembranças comuns, umas apoiadas nas outras, não são as mesmas que aparecerão com maior intensidade a cada um deles. De bom grado, diríamos que cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que este ponto de vista muda segundo o lugar que ocupo e que esse mesmo lugar muda segundo as relações que mantenho com outros ambientes (HALBWACHS, 2006, p. 69).

Para Halbwachs (2006, p. 72), a memória individual “[...] não está inteiramente isolada e fechada”, a pessoa necessita recorrer a “[...] referências que existem fora de si, determinadas pela sociedade”, ou seja, o funcionamento da memória individual toma emprestado do seu meio ambiente, as palavras e as ideais. Ele ainda comenta que existem muitas memórias coletivas, sendo uma das características que as distinguem da história. Sim, a musa da história é Polímmia. A história pode se apresentar como a memória universal da espécie humana. Contudo, não existe nenhuma memória universal. Toda memória coletiva tem como suporte um grupo limitado no tempo e no espaço (HALBWACHS, 2006, p. 106).

Reconhecendo que não existe apenas uma memória coletiva, podemos constatar que, mesmo uma memória sendo amplamente aceita em uma sociedade, ela não pode ser considerada oficial, tendo em vista ela não ser única. Esse raciocínio nos leva a concluir que podem surgir disputas de memórias sobre um dado fato ou acontecimento, na medida que memórias silenciadas ou marginalizadas comecem a surgir nas pautas das discussões históricas. Halbwaschs (2006, p. 72) comunga da ideia de que o presente desencadeia o curso da memória ao afirmar que “[...] a lembrança é em larga medida uma reconstrução do passado com a ajuda dos dados emprestados do presente”. Dialogando com Halbwaschs, Bosi

(2012,

p. 55) afirma que “[...] lembrar não é reviver, mas reconstruir, repensar, com imagens e ideias de hoje, as experiências do passado.” Portanto, Halbwaschs amarra a memória da pessoa à memória do grupo, que, segundo ele, está atrelada à memória coletiva de cada sociedade.

804

O filósofo francês contemporâneo Paul Ricoeur (2007), ao analisar a principal obra de Halbwachs, A Memória Coletiva, comenta o pensamento do autor em atribuir à memória uma entidade coletiva e ressalta que entre a memória individual e a memória coletiva, o vínculo é íntimo, iminente, as duas espécies de memória se interpenetram: De resto, diz o autor [Halbwachs], embora a memória coletiva extraia sua força e duração do fato de que um conjunto de homens lhe serve de suporte, são indivíduos que se lembram enquanto membros do grupo. Agrada-nos dizer que cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que esse ponto de vista muda segundo o lugar que nele ocupo e que, por sua vez, esse lugar muda segundo as relações que mantenho com outros meios (RICOEUR, 2007, p. 133).

No entanto, Ricouer (2007, p. 83) ressalta que não acontece esse mesmo vínculo entre a história e a memória, “[...] enquanto não for destinada ao que vai se tornar memória histórica”. Ele defende que a memória coletiva “[...] constitui o solo de enraizamento da historiografia.”, mas alerta para os “usos e abusos da memória, desde a memória impedida até a memória obrigada, passando pela memória manipulada”. Esse mesmo autor advoga também a favor de uma memória “esclarecida pela historiografia”, cabendo à história o dever de retirar os excessos e abusos da memória. Ricouer atenta ainda para o desafio da historiografia em construir uma “política da justa memória”, tema que ele levantou nos anos 1990, trazendo novas reflexões sobre a temática da memória e da história.

Pollak (1989) analisa os atores e os processos que atuam no sentido de construir e formalizar memórias. É interessante notar a preocupação do autor em trazer à tona as “memórias subterrâneas” dos que foram excluídos pela força de uma memória que se fez oficial, ou seja, a memória nacional: Aplicada à memória coletiva, essa abordagem irá se interessar portanto pelos processos e atores que intervêm no trabalho de constituição e de formalização das memórias. Ao privilegiar a análise dos excluídos, dos marginalizados e das minorias, a história oral ressaltou a importância de memórias subterrâneas que, como parte integrante das culturas minoritárias e dominadas, se opõem à "Memória oficial", no caso a memória nacional. [...] Ao contrário de Maurice Halbwachs, essa abordagem acentua o caráter destruidor, uniformizador e opressor da memória coletiva nacional. Por outro lado, essas memórias subterrâneas que prosseguem seu trabalho de subversão no silêncio e de maneira quase imperceptível afloram em momentos de crise em sobressaltos bruscos e exacerbados. A memória entra em disputa. Os objetos de pesquisa são escolhidos de preferência onde existe conflito e competição entre memórias concorrentes (POLLAK, 1989, p. 4).

Portanto, o olhar de Pollak sobre a memória coletiva enfoca o seu caráter opressor, enquanto Halbwachs insinua um processo de conciliação entre a memória coletiva e as memórias

805

individuais, através de uma espécie de negociação de sua seletividade, resultante da adesão afetiva do grupo, sendo a memória uma construção social e um fenômeno coletivo. Segundo Pollak (1989, p. 5), a disputa entre a memória dominante e a memória subterrânea pode ser encontrada na “[...] oposição entre Estado dominador e sociedade civil [bem como] nas relações entre grupos minoritários e a sociedade englobante”. Para esse estudioso, as memórias dos excluídos estão guardadas, sendo transmitidas nas “redes familiares e de amizades, esperando a hora da verdade e da redistribuição das cartas políticas e ideológicas”, podendo vir a emergência de acordo com as desconstruções e reconstruções da memória nacional. Essa memória "proibida" e portanto "clandestina" ocupa toda a cena cultural, o setor editorial, os meios de comunicação, o cinema e a pintura, comprovando, caso seja necessário, o fosso que separa de fato a sociedade civil e a ideologia oficial de um partido e de um Estado que pretende a dominação hegemônica. Uma vez rompido o tabu, uma vez que as memórias subterrâneas conseguem invadir o espaço público, reivindicações múltiplas e dificilmente previsíveis se acoplam a essa disputa da memória [...] (POLLAK, 1989, p. 5, grifos do autor).

Este enfoque teórico de Pollak tem um grande caráter norteador no estudo histórico, que deve ter a preocupação de estudar as versões de partes da memória coletiva oficializada que há sobre os fatos históricos que propomos discutir neste trabalho, bem como compreender as ausências, os esquecimentos e os silêncios que tais fatos carregam. Portanto, é necessário analisar as memórias coletivas, segundo a teoria de Halbwachs, sem deixar de lado os relatos subterrâneos não frisados nessa memória oficial, conforme a visão defendida por Pollak que a chama de “memória nacional”. Conciliar essas duas teorias é um grande desafio, que, se vencido, resultará em um trabalho reflexivo, que levará o leitor a perceber diferentes olhares sobre um mesmo acontecimento e compreender a luta travada para a formalização da memória. Na percepção do mundo social e da luta política, temos um olhar interessante de Pierre Bourdieu, que nos confirma o debate travado até agora sobre a questão da memória e suas representações: A teoria mais acentuadamente objetivista tem de integrar não só a representação que os agentes têm do mundo social, mas também, de modo mais preciso, a contribuição que eles dão para a construção da visão desse mundo e, assim, para a própria construção desse mundo, por meio do trabalho de representação (em todos os sentidos do termo) que continuamente realizam para imporem a sua visão do mundo ou a visão da sua

806

própria posição nesse mundo, a visão da sua identidade social (BOURDIEU, 1989, p. 139).

Segundo Bourdieu (1989, p. 139-140), o indivíduo deve impor a “[...] visão de sua identidade social”, porém isso refletirá as lutas simbólicas que exprimem o “estado da relação de forças simbólicas”. Para esse filósofo, as incertezas das variações dos objetos históricos fundamentam uma “pluralidade de pontos de vista” e de “visões do mundo” e também “todas as lutas simbólicas pela produção e imposição da visão do mundo legítima”. O autor chama atenção para a reconstrução retrospectiva de um passado “ajustado às exigências do presente”, que acaba delimitando ou definindo o sentido, sempre em aberto, do presente e, sobretudo, do futuro. Assim, as relações de forças tendem a reproduzir-se na visão de mundo social: O conhecimento do mundo social e, mais precisamente, as categorias que o tornam possível, são o que está, por excelência, em jogo na luta política, luta ao mesmo tempo teórica e prática pelo poder de conservar ou de transformar o mundo social conservando ou transformando as categorias de percepção desse mundo.[...] Na luta pela imposição da visão legítima do mundo social, em que a própria ciência está inevitavelmente envolvida, os agentes detêm um poder à proporção do seu capital, quer dizer, em proporção ao reconhecimento que recebem de um grupo (BOURDIEU, 1989, p. 142).

Portanto, os donos do capital fundamentam um discurso sobre o mundo social, impondo seus princípios de visão e divisão desse mundo; e estes, não estão inclinados a mudar suas percepções, ou seja, suas memórias. Cabe-nos analisar a visão do indivíduo a respeito de sua identidade social e proceder à leitura das lutas simbólicas nela inserida. O historiador francês Jacques Le Goff (2012, p. 408) discute a memória coletiva, na perspectiva de luta social: [...] a memória coletiva foi posta em jogo de forma importante na luta das forças sociais pelo poder. Tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva.

Le Goff (2012, p. 456) apresenta a memória coletiva como “um instrumento e um objeto de poder”: Mas a memória coletiva é não somente uma conquista, é também um instrumento e um objeto de poder. São as sociedades cuja memória social é, sobretudo, oral, ou que estão em vias de constituir uma memória coletiva escrita, aquelas que melhor permitem compreender esta luta pela dominação da recordação e da tradição, esta manifestação da memória.

807

As posições defendidas por Le Goff nos levam a uma profunda reflexão sobre a questão do domínio da memória como uma luta de classes, quando percebemos a imposição de uma memória coletiva que privilegia as classes elitistas em detrimento das demais. Resta-nos investigar quais os interesses forjados por trás dessa seleção de memória e os silêncios que tais manipulações de memória buscam esconder. Sem deixar de lado a análise do que Bourdier descreve como “memórias enquadradas”, ou seja, as memórias limitadas e selecionadas. Huyssen (2000) traz uma argumentação inovadora sobre a memória, a partir do momento que trata da mídia, da evolução tecnológica na difusão da memória. Ele defende um conceito de explosão de informação e da comercialização da memória. Esse medo de esquecer, do que ele chama de “amnésia”, acabou gerando uma preocupação com a “musealização” (expressão de Hermann Lübbe), ou seja, a mania atual de se arquivar e armazenar tudo. Porém, devemos ter consciência de que há “passados usáveis e passados dispensáveis” (2000, p.37), Portanto, lembrar tudo pode ser inútil, devemos trazer a memória os acontecimentos que realmente serão aplicados como instrumentos historiográficos, dentro da nova história política, que procura contemplar todos os atores históricos, não só os detentores do poder. Nesse contexto, sobre a política midiática da memória e o seu consumismo, Huyssen tece, na visão dos fins dos anos XX, uma crítica a Halbwachs: É possível que o excesso de memória nessa cultura saturada de mídia crie uma tal sobrecarga que o próprio sistema de memórias fique sem perigo constante de implosão, disparando, portanto, o medo do esquecimento? Qualquer que seja a resposta para estas questões, fica claro que velhas abordagens sociológicas da memória coletiva – tal como a de Maurice Halbwachs, que pressupõe formações de memórias sociais e de grupos relativamente estáveis - não são adequadas para dar conta da dinâmica atual da mídia e da temporalidade, da memória, do tempo vivido e do esquecimento. As contrastantes e cada vez mais fragmentadas memórias políticas de grupos sociais e étnicos específicos permitem perguntar se ainda é possível, nos dias de hoje, a existência de formas de memória coletiva consensual coletiva e, em caso negativo, se e de que forma a coesão social e cultural pode ser garantida sem ela. Está claro que a memória da mídia sozinha não será suficiente, a despeito de a mídia ocupar sempre maiores porções de percepção social e política do mundo. (HUYSSEN, 2000, p.19)

Huyssen (2000) utiliza regularmente expressões como “cultura da memória” (crescente uso da memória pela indústria cultural), “política da memória” (utilizada por governos para defender seus interesses) e “discursos da memória” (que permanecem ligados às histórias de estados específicos). O autor trata da memória traumática através da análise do holocausto, dando ênfase a sua utilização no campo sócio-político e discute a “memória séria” e a “memória

808

trivial”, e afirma “Não podemos simplesmente contrapor o museu sério do Holocausto a um parque temático “Disneyficado”.” (HUYSSEN, 2000, p.21). Conforme Portelli (2006, p.105), ao analisar o massacre de Civitella Val di Chiana executado por soldados alemães, em 29 de junho de 1944, o autor analisa que tal acontecimento gerou o que Giovani Contini descreve como “memória dividida”, ou seja, um choque de memórias entre um memória oficial que comemora o massacre “como um episódio da Resistência e compara as vítimas a mártires da liberdade; e por outro lado, uma memória criada e preservada pelos sobreviventes”, parentes que sofreram o luto. Interessante notar essa visão de memória de choque entre uma mesma comunidade, onde os enlutados culpam os membros da Resistência de Civitella como irresponsáveis por terem matado três soldados alemães, o que gerou uma retaliação com centenas de mortos. Podemos considerar com esse exemplo que a memória não é imutável, e se contrapõem a respeito de um mesmo fato, e como Portelli (2006, p.111), afirma “representações e “fatos” não existem em esferas isoladas. Hartog (2014), é um historiador francês, que defende a teoria do presentismo, ou seja, a valorização do imediato. Para o autor é central a ideia que ele chama de regime de historicidade, que é "apenas uma maneira de engrenar passado, presente e futuro ou de compor um misto das três categorias (...) a maneira como um indivíduo ou uma coletividade se instaura e se desenvolve no tempo." (Hartog, 2014.p.11-13). O autor considera a memória como uma das respostas do presentismo. Ele afirma que o futuro não é mais um caminho de luzes, mas uma linha de sombras, “enquanto parecemos patinar no campo do presente e ruminar um passado que não passa.” (2014,p.245). Portanto, segundo o autor, o presente tornou-se um horizonte, substituindo o futurismo.

3 A ORALIDADE COMO FONTE HISTÓRICA

Atualmente, devido à importância dada por alguns historiadores à história do tempo presente, as fontes orais passaram a ser uma metodologia estruturada dentro da pesquisa histórica. Paul Thompson, autor da obra A Voz do Passado, um clássico por sua importante contribuição ao método e à teoria da história oral, compreende que esta tem uma forte mensagem social que deve ser avaliada, e concorda que a volta à história oral que ocorre na atualidade está ligada, entre outras coisas, ao desenvolvimento da tecnologia e da comunicação audiovisual.

809

[...] a história oral pode dar grande contribuição para o resgate da memória nacional, mostrando-se um método bastante promissor para a realização de pesquisa em diferentes áreas. É preciso preservar a memória física e espacial, como também descobrir e valorizar a memória do homem. A memória de um pode ser a memória de muitos, possibilitando a evidência dos fatos coletivos (THOMPSON, 1992, p. 17).

O depoente relata o passado como testemunha do vivido, levando-se em consideração que se trata da lembrança de um indivíduo inserido num contexto familiar, social, político e econômico. A realidade contextual do entrevistado será latente em sua declaração; nunca será imparcial, haverá a seleção de acontecimentos e fatos que são representativos para esse indivíduo, e surgirá carregada de subjetividade, o que nos remete a considerar a seguinte colocação de Joutard (2006, p. 57): Porém, reconhecer tal subjetividade não significa abandonar as regras e rejeitar uma abordagem científica, isto é, a confrontação das fontes, o trabalho crítico, a adoção de uma perspectiva. Podemos dizer, sem paradoxo, que o fato de reconhecer sua subjetividade é a primeira manifestação de espírito crítico.

Precisa-se entender que história oral não é uma técnica de coleta e armazenamento de depoimentos, ela deve ser analisada, levando-se em conta a apropriação do meio pelo indivíduo, observando suas incertezas, inseguranças e hesitações demonstradas na hora da entrevista. A história oral é feita pelo recolhimento de lembranças, e o historiador deve estar alerta ao fato de que o sujeito não revive o passado, ele refaz o passado, ele remodela suas lembranças, refazendo-as pelos valores do presente. A história oral baseia-se na memória, e como afirma Nora, é imprecisa, pois se adapta às crenças e ao imaginário dos indivíduos. Por isso, é papel do historiador confrontar as fontes orais a outros tipos de documentação, atentando para o fato de que elas não devem ser usadas como um complemento, mas analisadas como uma fonte de estudo histórico, uma vez que apresentam fatos e transformações da sociedade. Portanto, as fontes orais e escritas devem complementar-se. Quando há visões diferentes sobre um determinado acontecimento, o historiador deve debruçar-se em diversas fontes de pesquisa, a fim de investigar profundamente os fatos. O historiador da oralidade deve reconhecer a importância da confluência multidisciplinar no desenvolvimento de seu trabalho, buscando outras ciências e conhecimentos que o auxiliem na análise dos depoimentos recolhidos, como a psicanálise, a linguística, a semiótica, a cultura local, folclore e outras:

810

[...] Em princípio as possibilidades da história oral estendem-se a todos os campos da história [...] E oferecem uma tendência que é básica a todos: em direção de uma história mais pessoal, mais social e mais democrática. Isso afeta não só a história publicada, como também o processo pelo qual é escrita. O historiador é posto em contato com colegas de outras disciplinas: antropologia social, dialeto e literatura, ciência política. O acadêmico é lançado fora do gabinete para o mundo exterior (THOMPSON, 1992, p. 336).

Observamos que o historiador da oralidade, ao fazer a entrevista e sua transcrição, cria sua própria fonte. Cabe a ele efetuar uma transcrição fiel do relato oral e no decorrer da pesquisa saber traçar um paralelo e um diálogo entre as fontes orais e os documentos escritos. Portanto, o papel do historiador não pode se resumir a uma simples técnica de coleta e transcrição, ele deve ser capaz de fazer as análises e as ponderações que conduzam às reflexões esperadas pelo estudo, buscando responder as hipóteses levantadas em sua pesquisa: A entrevista de história oral – seu registro gravado e transcrito – documenta uma versão do passado. Isso pressupõe que essa versão e a comparação entre diferentes versões tenham passado a ser relevantes para estudos na área das ciências humanas. Trata-se de ampliar o conhecimento sobre acontecimentos e conjunturas do passado através do estudo aprofundado de experiências e versões particulares; de procurar compreender a sociedade através do indivíduo que nela viveu; de estabelecer relações entre o geral e o particular através da análise comparativa de diferentes testemunhos, e de tomar as formas como o passado é apreendido e interpretado por indivíduos e grupos como dado objetivo para compreender suas ações (ALBERTI, 2005, p. 19).

Thompson analisa a importância da oralidade como fonte histórica, em especial por ouvir atores anônimos que não tramitam na esfera da historiografia oficial: [...] Uma vez que é da natureza da maior parte dos registros existentes refletir o ponto de vista da autoridade, não é de admirar que o julgamento da história tenha, o mais das vezes, defendido a sabedoria dos poderes existentes. A história oral, ao contrário, torna possível um julgamento muito mais imparcial; as testemunhas podem, agora, ser convocadas também entre as classes subalternas, os desprivilegiados, os derrotados. Isso propicia uma reconstrução mais realista e mais imparcial do passado, uma contestação ao relato tido como verdadeiro. Ao fazê-lo, a história oral tem um compromisso radical em favor da mensagem social da história como um todo (Thompson, 1992, p. 26).

Portanto, é compreensível a afirmação de Thompson (1992) que destaca a história oral como uma história mais pessoal e democrática, e esta, conforme afirma Pollak (1989), defende, dá voz aos marginalizados, esquecidos e silenciados pela historiografia oficializada. Entretanto, o fato atestado é que a potencialidade da história oral, como metodologia de pesquisa, está na análise da construção dos testemunhos, que por vezes podem ser fantasiosos, distorcidos ou próximos à originalidade dos fatos. Não cabe julgamento, o importante é entender a riqueza dos processos da construção da história oral, sendo tarefa do historiador

811

analisar a percepção social e política da constituição dos relatos. Afinal, não cabe ao historiador extrair verdades do relato oral, mas entender suas representações.

4 A DIALÉTICA ENTRE A HISTÓRIA E A MEMÓRIA

A história do tempo presente revitalizou e abrigou um amplo movimento de renovação historiográfica, com ampliação de fontes, interdisciplinaridade, a nova história política, a diversidade temática, a valorização da história oral e a relação dialética entre memória e história. Seixas (2004, p. 39, grifos da autora) tece o seguinte comentário em relação à memória-história: Recentemente, a partir do início da década de 80, a historiografia vem afirmando noção diversa; ela toma consciência de que a relação memória-história é mais uma relação de conflito e oposição do que de complementaridade, ao mesmo tempo – aqui se inscreve a novidade da crítica – em que coloca a história como senhora da memória, produtora de memórias.

Essa construção da memória histórica é um assunto essencial a ser abordado nos trabalhos historiográficos, que pretendem analisar a história oficializada, ou seja, a história que se tornou nacional, a partir das memórias, com o objetivo de confrontar as distintas fontes de memórias e observar as confirmações, os esquecimentos, as contradições, os silêncios e as possíveis distorções que possam vir apresentar. O que importa é incluir tais ocorrências em uma reflexão mais ampla, questionando o porquê das memórias diferirem uma da outra a respeito de um mesmo acontecimento histórico e as razões e em que medida isso contribui para a formação qualitativa da história. O historiador francês Pierre Nora, sofreu a influência da sociologia de Halbwachs e elaborou a teoria de divisão e oposição entre memória e história: Nora retoma e apropria-se das ideias básicas de Halbwachs – a oposição que estabelece entre memória individual e memória coletiva e, sobretudo, entre memória coletiva e história. À memória coletiva, Halbswachs confere o atributo de atividade natural, espontânea, desinteressada e seletiva, que guarda do passado apenas o que lhe possa ser útil para criar um elo entre o presente e o passado, ao contrário da história, que constitui um processo interessado, político e, portanto, manipulador. A memória coletiva, sendo, sobretudo, oral e afetiva, pulveriza-se em uma multiplicidade de narrativas; a história é uma atividade da escrita, organizando e unificando numa totalidade sistematizada as diferenças e lacunas. Enfim, a história começa seu percurso justamente no ponto onde se detém a memória coletiva. [...] Pierre Nora as oporá mais radicalmente. Afirma que é impossível, hoje, operar-se uma distinção clara entre memória coletiva e memória

812

histórica, pois a primeira passa necessariamente pela história, é filtrada por ela [...] (SEIXAS, 2004, p. 40, grifos da autora).

Expondo uma reflexão entre história e memória, notamos que a memória não escapa ilesa aos procedimentos historiográficos, que na verdade faz um processo de seleção, retirando dela o que podemos chamar de história oficial, que passará a dominar a memória coletiva. Nessa perspectiva, toda a memória coletiva passa a ser deturpada pela problematização e sistematização histórica, que escreve a memória a partir de sua interpretação intelectual e crítica. A memória é vista como uma tradição vivida, a história, como uma representação interessada e seletiva do passado. Seixas (2004, p. 41), analisando o pensamento de Nora, chega a afirmar que “[...] a memória encontra-se prisioneira da história ou encurralada nos domínios do privado e do íntimo, transformou-se em objeto e trama da história, em memória historicizada”, termologia esta, utilizada por Nora. Nora (1993) defende a teoria dos lugares da memória, que podem ser material (museus, cemitérios, monumentos, arquivos, bandeiras e outros) simbólico (rituais, aniversários, funerais, celebrações) e funcional (manuais, testamentos, associações). Para o autor, os lugares de memória existem porque não há mais meios de memória, e são nesses lugares que a memória de cristaliza e se refugia. A história transporta a memória, e nesse transporte há uma seleção, com discurso intelectual e laicizante, que muitas vezes a torna limitada e incompleta. [...] A historiografia inevitavelmente ingressada em sua era epistemológica, fecha definitivamente a era da identidade, a memória inelutavelmente tragada pela história, não existe mais um homem-memória, em si mesmo, mas um lugar de memória. (NORA, 1993, p.21).

Nora discute a problemática dos lugares entre a memória e a história. Memória, história: longe de serem sinônimos, tomamos consciência que tudo opõe uma à outra. A memória é vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, susceptível de latência e de repentinas revitalizações. A história é a reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais. A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente, a história, uma representação do passado. [...] A memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto. A história só se liga às continuidades temporais, às evoluções e às relações das coisas. A memória é um absoluto e a história só conhece o relativo. (NORA, 1993, p.09).

813

Com esse pensamento, Nora contrapõe história e memória. Ele coloca a história como um instrumento de deslegitimação do passado, a anulação do que realmente aconteceu. O autor nos leva a refletir esse antagonismo entre história e memória usando afirmações instigantes, como “[...] a lâmina entre a árvore da memória e a casca da história” (1993, p.10); “Na mistura, é a memória que dita e a história que escreve” (1993, p. 24); “a memória pendura-se em lugares, como a história em acontecimentos” (1993, p.25). Em contrapartida, devemos ressaltar que Nora afirma que na sociedade atual há uma necessidade por se compreender historicamente, por isso o historiador acaba se tornando uma figura central nessa sociedade arrancada de sua memória pela magnitude de suas mudanças: “o historiador é aquele que impede a história de ser somente história” (1993, p. 21). Para Le Goff, a memória alimenta a história e cabe aos profissionais científicos da memória lutarem prioritariamente pela democratização da memória social em

suas

pesquisas

científicas. A memória, na qual cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir ao presente e ao futuro. Devemos trabalhar de forma que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens. (LE GOFF, 2012, p.457)

Hartog (2014) também traz à discussão a história e a memória, dizendo que cabe ao historiador definir o modo como o passado vai ressurgir no presente. O importante é, inicialmente, o entre: posicionar-se entre história e memória, não opôlas, nem confundí-las, mas servir-lhe de uma e de outra. Apelar a memória para renovar e ampliar o campo da história contemporânea. [...] Decorre disso a abertura de um novo campo: o de uma história da memória. [...] Contra a história, Péguy invoca resolutamente a memória. Contra o sacrossanto método histórico, ele escolhe Hugo e Michelet. Em Clio, ele opõe a história “essencialmente longitudinal” à memória “essencialmente vertical”. A história “passa ao longo”, diz, que dizer, “ao lado”, enquanto “a memória consiste, antes de tudo, por estar ligada ao acontecimento, em não sair dele, em ficar e em fazer o caminho inverso de dentro. [...] No fim das contas, para retomar seu vocabulário, a história é “inscrição”, enquanto a memória é “rememoração.” Estamos em plena contestação do regime moderno de historicidade. (HARTOG, 2014, p.161; 167)

Rousso é um historiador francês que analisa a “história da memória”, defendendo ser esta um excelente exercício para o historiador. Portanto, a história da memória é um excelente exercício crítico – e um exercício permanente – sobre o próprio ofício do historiador, muito diferente de qualquer pretensão à normatividade. Ela permite resistir a essa outra ilusão nefasta que consite

814

em acreditar que os historiadores são os depositários da verdade histórica: ao recolocar a história erudita simplesmente em seu lugar, ao ser forçado a reconhecer que nenhum historiador jamais escapa às indagações de seu tempo, inclusive quando escreve uma história da memória – como se vê pela escolha dos temas mais frequentemente estudados nessa nova tendência historiográfica -, ele reafirma energicamente que a história do presente sobretudo àqueles que a viveram e que ela é um patrimônio comum que cabe ao historiador exumar e tornar inteligível a seus contemporâneos. (ROUSSO, 2006, p.98)

Rousso concorda com Halbwachs que o passado nunca corresponde a de um indivíduo sozinho, mas de alguém que está inserido num grupo social e nacional. Segundo o Rousso (2006, p. 94) “A memória, no sentido básico do termo, é a presença do passado” e portanto, “é uma reconstrução psíquica e intelectual que acarreta de fato uma representação seletiva do passado.” Quanto a discussão de história e memória, vale ressaltar o ponto de vista de Rousso (2000, p.97), que afirma que o fato de se escrever uma história de memória significa “que se ultrapassa essa oposição sumária entre história e memória, pois isso equivale a admitir que a memória tem uma história que é preciso compreender.” Portanto, para ele considera ultrapassada a questão ritual das diferenças entre história e memória, com base no seguinte argumento: Primeiro porque é hoje pacífico (ou assim esperamos) que opor de um lado a reconstrução historiográfica do passado, com seus métodos, sua distância, sua pretensa cientificidade, e de outro as reconstruções múltiplas feitas pelos indivíduos ou grupos faz tão pouco sentido quanto opor o “mito” à “realidade”. A tarefa do historiador é pois dupla. Por um lado, e essa é uma exigência fundamental, cumpre-lhes satisfazer a necessidade de estabelecer ou restabelecer verdades históricas, com base em fontes de informação tão diversas quanto possível, a fim de descrever a configuração de um fato ou a estrutura perene de um prática social, de um partido político, de uma nação ou mesmo, hoje em dia, de um entidade continental (pensamos aqui em novas histórias da Europa), em suma, fazer uma história positiva, ainda que seja ilusão descrever ou explicar “o que realmente aconteceu”. Por outro lado, com métodos e questionamentos diferentes, eles têm que expor e explicar a evolução das representações do passado, como sempre se tentou escrever a história dos mitos e das tradições que são as formas mais evidentes da presença do passado. (ROUSSO, 2006, p.96)

Ao analisarmos os contrapontos expostos sobre a história e a memória, observamos que a história demarca um tempo cronológico, enquanto a memória não demarca tempo na história. A memória alimenta a história, que a seleciona e a utiliza de acordo com os questionamentos de seu tempo e espaço.

815

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A história do tempo presente tem aberto um importante e amplo espaço de pluralidade de fontes e novos procedimentos metodológicos, entretanto, a realidade temporal da história do imediato nos leva a ouvir vozes múltiplas que algumas vezes se complementam e em alguns casos são conflitantes, o que gera um desafio ao pesquisador, em trabalhar com fontes heterógenas de memórias. A memória é um objeto complexo, utilizado por vários campos científicos e ela pode ser usada de diferentes formas para evocar o passado. No entanto, não podemos ser ingênuos no estudo de um documentos, monumentos, arquivos e memórias, uma vez que não existe um objeto inócuo. A memória não é imutável e não é neutra, ela é sempre seletiva e pode ser utilizada como objeto de poder. Tais percepções nos permitem chegar às seguintes reflexões: as fontes escritas, a oralidade e demais recursos de memórias que utilizamos em nossas pesquisas fazem parte da coletividade e carregam consigo visões que sofrem as intempéries do tempo, das ideologias, das lutas e das conjunturas sociais pelas quais passaram. Isso nos leva a diferentes visões, interpretações e representações sobre o mesmo fato histórico. Por isso a importância de ter toda a cautela e habilidade para nortear a pesquisa nos moldes das memórias, que muitas vezes tornam-se oficiais, representando na verdade uma história defendida por determinado grupo ou classe, que busca perpetuar seu poder por meio de representações e reconstruções da realidade histórica, segundo seus interesses, o que nos leva a considerar que a memória é a representação de poder. Diante dessa afirmação chega-se à conclusão de que há uma luta de classes quanto ao domínio e introdução de uma memória coletiva. A Nova História Política, renovada e ampla, que estuda as memórias em seu contexto político e social, analisando suas “areias movediças”, deve embasar as pesquisas científicas que trabalham com essa linha teórica. Afinal, o historiador pode fazer uma releitura do passado, mesmo sobre algo que já tenha sido construído, analisando as memórias subterrâneas, enquadradas e divididas que muitas vezes encontram-se submersas no meio historiográfico.

816

Enfim, como afirma Huyssen (2000, p.37): “A memória é sempre transitória, notoriamente não confiável e passível de esquecimento; em suma, ela é humana e social.” Portanto, sempre sujeita a constantes mudanças.

6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALBERTI, Verena. Manual de História Oral. 3. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2005. BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 17. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. DELGADO Lucilia de Almeida Neves; FERREIRA, Marieta de Moraes (Org.). História do Tempo Presente. Editora FGV: Rio de Janeiro, 2014, p. 07-12. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. 2 ed. São Paulo: Ed. Centauro, 2006. HARTOG, François. Conclusão – A dupla dívida ou o presentismo do presente. In: HARTOG, François. Regimes de Historicidade. Presentismo e Experiências do Tempo. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2014, p. 247-260. . Memória, História e Presente. In: HARTOG, François. Regimes de Historicidade. Presentismo e Experiências do Tempo. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2014, p. 133191. . Patrimônio e Presente. In: HARTOG, François. Regimes de Historicidade. Presentismo e Experiências do Tempo. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2014, p. 193245. HUYSSEN, Andreas. Passados Presentes: mídia, política e amnésia. In: HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos e mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000, p. 9-40. . Sedução Monumental. In: HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos e mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000, p. 41-66. JOUTARD, Philippe. História oral: balanço da metodologia e da produção nos últimos 25 anos. In: FERREIRA, Marieta de Moraes & AMADO, Janaína. (Org.). Usos & abusos da história oral. 8. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p.43-62. LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In: LE GOFF, Jacques. História e memória. 6 ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2012, p. 509-524.

817

. In: LE GOFF, Jacques. História e memória. 6 ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2012, p. 405-461. NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História. São Paulo: PUC, n. 10, p. 7-28, dez. 1993. POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos históricos, Rio de Janeiro, v. 2, nº. 3, 1989, p. 3-15. PORTELLI, Alessandro. O massacre de Civitella Val Di Chianna: mito, política, luto e senso comum. In: AMADO, Janaina; FERREIRA, Marieta Moraes (Org.) Usos e abusos da história oral. 8 ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p. 103-130. RÉMOND, René. Uma história presente. In: RÉMOND, René (Org.). Por uma história política. Tradução de Dora Rocha. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003. p. 13-36. RICOUER, Paul. A memória, a história e o esquecimento. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007. RIOUX, Jean Pierre. Pode-se fazer uma história do presente? In: CHAUVEAU Agnès & TÉTARD, Philippe. Questões para a História do Presente. São Paulo: EDUSC, 1999. p. 3950. ROUSSO, Henry. A memória não é mais o que era. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta Moraes (Org.). Usos & abusos da história oral. 8 ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p.93-101. SEIXAS, Jacy Alves de. Percursos de Memórias em Terras de História: Problemáticas Atuais. In: BRESCIANI, Stella; NXARA, Márcia (Org.). Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível. 2. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2004, p.37-58. THOMPSON, Paul. A voz do passado – História Oral. 2 ed. São Paulo: Paz e Terra, 1992.

818

DA ELITE OU DO POVO? UMA HISTÓRIA COMPARADA DA MEMÓRIA FUTEBOLÍSTICA NO RIO DE JANEIRO E EM JOÃO PESSOA Autor: Diogo Pimenta Pereira Leite – mestrando no PPGH da UFPB. E-mail: [email protected]

RESUMO No dia 14 de abril de 1941, os desportos nacionais são oficialmente abarcados dentro do projeto político do Estado Novo. Nos bastidores dessa propaganda ideológica temos a figura de Mário Filho como um grande entusiasta na defesa do futebol como fenômeno de massa. Este artigo pretende apresentar em contraposição a esse discurso, a obra de Walfredo Marques sobre o futebol paraibano como uma possível resistência de determinadas elites esportivas, e problematizar a memória nacional futebolística frente a uma diferente realidade.

Palavras- Chave: Futebol, Estado Novo, Paraíba.

ABSTRACT On April 14, 1941, national sports are officially embraced in the political project of the Estado Novo. Behind the scenes within the ideological propaganda, we have the name of Mário Filho, as a great enthusiast of football as a mass phenomenon. This article intends to present in opposition to this discourse, the work of Walfredo Marques about the Paraíba football, as a possible resistance of certain elites of the sport, and discuss the national football front to a different reality.

Keywords: Football, Estado Novo, Paraíba.

819

DO RIO DE JANEIRO PARA O BRASIL: A REGULAMENTAÇÃO DO DESPORTO COMO INSTITUCIONALIZAÇÃO DA NOVA “RAÇA” BRASILEIRA Adentrando na oficialidade da memória do Estado Brasileiro que através das leis deixam suas marcas em papéis timbrados, temos como marco da legislação desportiva brasileira o Decreto- Lei n. 3.199 no ano de 1941, que estabeleceu as bases da organização dos desportos em todo país criando o Conselho Nacional dos Desportos, vinculado ao Ministério da Educação e Cultura, que tinha como objetivo incentivar a cultura dos esportes em um âmbito nacional e ao mesmo tempo regulamentar a profissionalização da prática do futebol. Tendo em mente o processo de desenvolvimento do Estado brasileiro, podemos expor alguns pontos desse decreto em um sentido de centralizar a propagação de uma ideologia esportiva associada a uma nova cultura cívica no qual o Governo de Getúlio Vargas em plena ditadura do chamado Estado Novo (1937/1945) visava mediar entre as relações com a sociedade: Art.3 – Compete precipuamente ao Conselho Nacional de Desportos: b) incentivar, por todos os meios, o desenvolvimento do amadorismo, como prática de desportos educativa por excelência, e ao mesmo tempo exercer rigorosa vigilância sore o profissionalismo, com o objetivo de mantê-lo dentro de princípios de estrita moralidade; d) estudar a situação das entidades desportivas existentes no país para fim de opinar quanto às subvenções que lhes devam ser concedidas pelo Governo federal e ainda fiscalizar a aplicação dessas subvenções.1

A mudança de perspectiva de um modelo liberal e descentralizador na gestão política brasileira na década de 1920 para uma política ativa de utilização da burocracia legislativa centralizada, responsável por interpretar as necessidades sociais, políticas e econômicas, sem margem para a pluralidade do debate direto com a população civil, carregava claramente a intencionalidade de legitimar um novo ideal nacional, carregado de significados que vinham sendo pensados pelos ideólogos e intelectuais que apoiavam direta ou indiretamente o novo regime: “Para os grupos que ascendem ao poder em 1930, munidos de um novo projeto, tornase fundamental retomar a construção da nacionalidade.2” Sendo vinculado diretamente ao Ministério da Educação e Saúde presidido por Gustavo Capanema, é possível perceber a importância da prática amadora do esporte em um sentido de educar a população brasileira, e resgatar os valores coletivos de cooperação mútua na formação do caráter, em prol do nova tradição política inventada, no que tange ao novo modelo do futebol, 820

articulado a um sistema de “educação mental, moral e higiênica[...]imprescindíveis à preparação de uma raça empreendedora, resistente e varonil3.” Outro ponto importante que não deve ser esquecido se refere ao fornecimento de recursos as demais federações do Estado Brasileiro. Já se pode notar uma clara alusão ao caráter fiscalizador que o Distrito Federal visava impor, não apenas no controle do repasse dos recursos financeiros, mas também com o intuito de ter esse projeto político para o esporte propagado para todo o Brasil. O DISCURSO JORNALÍSTICO E A NAÇÃO IMAGINADA POR MÁRIO FILHO No livro “O Negro no Futebol Brasileiro”, publicado no ano de 1947, Mário Filho retrata a trajetória de vários jogadores de classes sociais marginalizadas, especialmente negros e mulatos, articulando-os a sua ascensão aos domínios do jogo. Em uma tentativa de interpretar a história do futebol brasileiro, associando-a narrativamente à fundação da nação, o autor atribuía ao ídolo esportivo, o papel de personificar a união dos diversos segmentos da sociedade brasileira. Com o intuito de construir uma memória nacional, o livro a partir da “ideia de que o futebol foi campo de um relaxamento das tensões sociais, faz com que os acontecimentos esportivos ocupem o lugar dessas lembranças comuns, possibilitando a construção de um sentimento generalizado de pertencimento à comunidade nacional 4.” Isso não quer dizer, que a obra omita os conflitos da trajetória desses jogadores até a sua ascensão. Mostrando as disposições do processo de negociação, dentro da lógica social heterogênea das grandes cidades, ela trazia à cena uma nova memória nacional. Lançando mão das interpretações de Michael Pollak sobre essas diversas rearticulações das memórias nacionais lembramos que: “Distinguir entre conjunturas favoráveis ou desfavoráveis às memórias marginalizadas é de saída reconhecer a que ponto o presente colore o passado. Conforme as circunstâncias, ocorre a emergência de certas lembranças, a ênfase é dada a um ou outro aspecto.5”. Podemos entender que à época que o livro foi lançado, o futebol já era um esporte legitimamente nacional. O escrete da seleção e sua atuação na Copa do Mundo de 1938, juntamente com as ações propagandísticas do Estado Novo, já haviam moldado as bases para o jogo “mestiço”, como um suposto exemplo da nossa democracia racial. Preparando-se para a copa do Mundo de 1950, a ser realizada no Brasil, restava um documento memorialístico que demarcasse as “fronteiras internas da nação6”. Ou seja, restava a exposição da forma como esses jogos de significados que o futebol teve, afetaram a reorganização de sentidos onde, esse

821

esporte passa de uma atividade descompromissada das jovens elites urbanas, guardando para si valores europeus de distinção conservando um discurso restrito; para um posterior discurso hegemônico -após constantes transformações no campo esportivo- que resultaram na inserção do fator racial “por meio do qual se realizou a inclusão desses grupos na representação da comunidade nacional, mas ao mesmo tempo, se buscou sua manipulação política7.” Inclusão essa, que é paradoxal desde o seu início. Partindo de um plano festivo de reconhecimento que é inerente ao jogo, o jogador se vê às voltas com um processo de celebrização que o leva para os diários esportivos. Diários esses, que passam a tomar uma nova forma de abordagem e interpretação do jogo; relacionada à satisfação das mudanças do perfil social do futebol, que há muito tempo já demandavam uma forma mais aberta ao diálogo, e ao contato com a diferença. Esses periódicos afluíram justamente para o foco na subjetividade dos personagens esportivos- tanto jogadores como torcedores-, explorando as suas opiniões, sentimentos e visões sobre os acontecimentos. Tendo Mário Filho como o fundador dessas mudanças no discurso do jornalismo esportivo, o jornal O Globo a partir do ano de 1931 provocava “um deslocamento no já frágil equilíbrio das forças que, por meio da imprensa, sustentavam a hegemonia das elites sobre os significados e valores do futebol8.”. Tomando para si o papel de mediadores culturais, os redatores e repórteres que compunham o staff da página 8 do jornal “O Globo”, reproduziam suas próprias subjetividades acerca da óptica heterogênea e conflitiva, que o mundo do futebol possuía. Nesse contexto, a grande valorização dos “cracks”, fazia parte de um projeto muito maior, que tinha por objetivo, a ruptura de um modelo antes definido pelas posturas amadoras, que se faziam representar pelos jornais, voltados ao público essencialmente de elite, que reagiam à heterogeneidade constituída pela popularização do futebol, com um tratamento essencialmente excludente. Marcelino Rodrigues da Silva nos mostra que embora tenha sido tomada uma linguagem mais popular: “a diferença surgida no mundo esportivo com a popularização do futebol, não era levada ao jornal em estado bruto, mas sim traduzida e, portanto, traída, pelo discurso jornalístico, que poderia acabar por capturá-la e domesticá-la através de novos estereótipos9”

Devemos entender com isso, portanto, que a democracia racial que o Brasil realiza a uma óptica futebolística, pode ser entendida como algo que é e não é, contendo nesse paradoxo o xis da questão. É que através do jogo, esses indivíduos sem perspectivas de se fazerem representados previamente por sua condição, são emancipados, e reconhecidos como cidadãos

822

brasileiros. Ao mesmo tempo em que, essa realização se dá em um plano virtual, já que se resume a uma redenção do ex-escravo, estritamente relacionada ao jogo e suas delimitações dentro das quatro linhas, onde este se dá: “(...). Nele (futebol), mulatos criam uma linguagem lúdica na qual se costuram os fios mal amarrados da escravidão mal abolida e sem projeto, e que se convertem numa afirmação esplendida de potência, que é “promessa” de felicidade10.”. NA PARAÍBA, O SILÊNCIO QUE DIZ QUASE TUDO “os espetáculos romanos não herdaram da Grécia subjugada nenhum acento que valorizasse as provas atléticas. Os jogos de pelota e os atrativos dos balneários foram privativos da classe rica. Nenhum esforço desinteressado prosperou. Os gladiadores de circo eram profissionais.”11

A citação acima é retirada do preâmbulo do livro de João Lyra Filho, em seu livro sobre a sociologia do desportos. Para o autor antes de tudo era preciso separar legalmente o conceito de desporto, do conceito de jogo. Segundo Lyra Filho, o jogo seria inerente a civilização humana devido ao seu caráter lúdico, porém sem uma função objetivamente utilizável para a sociedade por ser anterior a cultura. Já o desporto, por ser posterior a cultura, poderia ser utilizável para o bem do desenvolvimento da sociedade humana. Analisando novamente a colocação do autor em questão, poderia ser observável já na civilização romana traços de profissionalismo nos gladiadores romanos melhores delimitados do que os da civilização grega, que embora já elaborassem regras para os jogos helênicos, ainda carregavam consigo valores religiosos inerentes a sua civilização. Embora seja discutível a colocação de Lyra Filho, ela demonstra facetas do intelectual que presidiu o Conselho Nacional dos Desportos do ano de 1943 até meados do segundo Governo Vargas, participando ativamente da organização da Copa do Mundo no Brasil em 1950. O intelectual paraibano antes de assumir o cargo no CND, era representante nos anos anteriores da Liga Desportiva Paraibana entre 1938 a 1940, na extinta Federação Brasileira de Futebol -com sede na antiga capital federal-, que foi anexada a Confederação Brasileira de Desportos posteriormente ao decreto lei já comentado, que regulamentou os esportes no país. Sempre muito mencionado pelos jornais paraibanos como uma das “inteligências primorosas12” do Brasil, nota-se um desacordo aparente com relação a sua atuação política, principalmente no que tange a excessiva centralização que previa o decreto na gestão esportiva nacional, assim como a profissionalização dos esportes e em especial a dos jogadores de futebol. E para

823

explicarmos o fato precisaremos destrinchar os silêncios, muito mais do que as próprias vozes presentes na “memória que se quer ter” na organização do futebol paraibano, especificamente em sua capital João Pessoa. Digo silêncios, porque a obra de maior vulto sobre o jogo de bola na Paraíba, é “A História do Futebol Paraibano”, publicada no ano de 1975 por Walfredo Marques. Sendo este o principal livro sobre o desenvolvimento do futebol no estado, percebe-se a presença da importância dada pelo autor a grupos políticos, e pessoas ilustres da Paraíba, no sentido de valorizar as classes mais abastadas na gênese do futebol paraibano, omitindo a presença popular e as reapropriações do fenômeno esportivo nos diversos setores sociais. Importante ressaltar que o autor inclusive chegou a ser presidente da Federação Paraibana de Futebol de 1961 a 1962, assim como assumiu vários cargos na gestão esportiva do futebol paraibano nas décadas de 1940 e 1950. A obra em si, carrega um tom linear, e extremamente racional, inclusive na descrição dos períodos de crises políticas importantes nos seios das ligas e federações. É difícil visualizar paixões clubísticas, detestáveis pelas elites que praticavam o jogo por um suposto ideal excludente de amor e abnegação ao esporte, representados pela figura dos verdadeiros “sportmens13”. Carregada de vasta documentação sobre atas de reuniões, eventos sociais e prestimosos elogios aos dirigentes dos clubes, não é possível visualizar a realidade viva do futebol da Paraíba, que durante longo tempo de sua história passou por crises homéricas, desconfianças mutuas e vários episódios de violência. Tomemos como exemplo os relatos que se sucederam logo após a oficialização dos esportes no Brasil, no futebol paraibano: “EM CRISE O FUTEBOL PARAIBANO Desde a oficialização dos esportes, em face do Decreto lei federal, n.3.199 de 14 de abril de 1941, que as cousas não andavam bem para as antigas Ligas, extintas pelo citado Decreto, assinado pelo então Presidente-Ditador, Dr. Getúlio Vargas(...) Partindo de 14 de abril, acima mencionado, a nossa antiga LDP passou a ser Federação Desportiva Paraibana, ou simplesmente FDP(...)Diante de várias renuncias assumiu à Presidente da Federação Desportiva Paraibana o conhecido desportista Venelyppe Joaquim de Almeida, o qual reuniu a entidade no dia 6 de outubro de 1941.14”

Interessante perceber que a única alusão que pode ser considerada em um tom mais crítico seria ao termo “Presidente-Ditador”. Fora isso, há uma explicação sobre a alteração na nomenclatura da organização do futebol na Paraíba seguida das renúncias coletivas que não possuem maiores detalhes, para em seguida a citação do nome de Venelyppe Joaquim de Almeida no cargo da nova entidade.

824

Porém pela insistência que caracteriza a profissão do historiador, é possível encontrar relatos na crônica esportiva local, algumas divergências mais enfáticas ao advento do profissionalismo na região. O jornal “Liberdade15”, talvez tenha sido um dos canais mais importantes para a abertura em suas páginas dos relatos esportivos, especialmente da capital paraibana, chegando no ano de 1940, a rodar uma edição esportiva semanal. Nesse periódico podemos perceber algumas críticas mais contundentes por meio de seus cronistas esportivos, que muitas vezes-possivelmente pelo medo de represálias políticas, fruto da Ditadura em vigor à época- assinavam com outros nomes, e até com iniciais falsas: “Área de penalidade O projeto de Regulamentação dos esportes nacionais já foi publicado na integra. Desaparecendo por completo os interesses pessoais e a paixão clubista, teremos mais facilmente em mãos o remédio necessário para curar os males que ora minam o organismo esportivo do Brasil(...) Nós absolutamente não somos contrários a Regulamentação, contudo por uma questão de princípios, tudo faríamos se fosse possível em defesa da valorização dos esportes, sem a menor influência da doutrina profisssionalista. Essa nossa atitude poderá parecer há muitos como uma exigência doentia diante da evolução dos tempos(...) Estamos vendo que urge o mais depressa possível a necessidade do amparo e direção mesma dos esportes por parte do Governo, porém, o que concorreu para o descrédito esportivo do nossos País nesses últimos meses, foi a crise de ação dos nossos homens(...) Admitimos mesmo que a tolerância exercida pelas autoridades esportivas fosse no sentido de evitar a deblache mas, essa atitude não foi bem compreendida e os esportes nacionais foram atingidos rudemente pela crítica brasileira. Nesse caso melhor teria sido a aplicação da intolerância. (grifo meu)16”

A assinatura do cronista se resume a E.B., com a clara intenção de manter o anonimato, possivelmente devido ao teor crítico das afirmações em sua crônica. Um dos pontos mais inflexíveis pode ser observado na demanda por parte do cronista “do uso da intolerância” por parte do Estado brasileiro, que podem ser interpretados pela utilização do recurso ao autoritarismo político em vigor para barrar o profissionalismo, visto inclusive como uma doutrina que deslegitimaria a prática esportista. Vale a pena comentar que embora as opiniões no jornal não estivessem respaldas por um autor específico, o periódico “A Liberdade” logo em sua primeira edição esportiva apresentava no seu “corpo redacional17” praticamente todos os nomes dos principais gestores ocupantes de cargos importantes na Liga Desportiva Paraibana (LDP), e que posteriormente a oficialização dos esportes, vão renunciar coletivamente mais de quatro vezes ao longo do período entre 1941 a 1947, época em que a LDP se transformará em Federação Desportiva Paraibana, seguindo a obrigatoriedade do decreto lei 3.199/41.

825

Nesse sentido é possível perceber a utilização dos jornais paraibanos sempre sob um viés unilateral, ora externando pontos em desacordo sobre a política esportiva nacional, ora exaltando os valores dos próprios gestores paraibanos sobre o esporte local que muitas vezes acabavam sendo proprietários dos jornais e de clubes aristocráticos ao mesmo tempo, como é o caso de Walfredo Marques, que ao longo de sua trajetória, chegou a ser desde jornalista até presidente de clube na Paraíba. Talvez aí esteja uma das respostas a uma ausência de um discurso jornalístico mais próximo da realidade do jogo e de seus reais atores do espetáculo. Muito difícil é localizar reportagens sobre os jogadores paraibanos- até mesmo os de maior importância- que utilizam o recurso fotográfico em uma atuação de pluralização das vozes, como foi o caso de Mário Filho e de seus redatores na já citada página 8 do jornal “O Globo”. Para maiores respostas sobre essa diferença no uso da escrita jornalística, utilizo o teórico Mikhail Baktin18 que apresenta os conceitos das atividades discursivas narrativas como monológicas, cujos preceitos convergem para a construção de uma perspectiva interpretativa única e coerente, e dialógicas, já nesse caso mais abertas estruturalmente, dando a possibilidade a uma pluralização das vozes e que daria possibilidades maiores para se perceber interpretações divergentes e contraditórias. Porém, se deve ter em mente, segundo o próprio autor, que a palavra é em si um campo de embates sociais: Sabemos que cada palavra se apresenta como uma arena em miniatura onde se entrecruzam e lutam os valores sociais de orientação contraditória. A palavra revela-se, no momento de sua expressão como o produto da interação viva das forças sociais19.

POR UMA HISTORIOGRAFIA DO FUTEBOL BRASILEIRO Importante ressaltar que para esses “sportmen” paraibanos, a profissionalização do futebol feria o princípio de distinção social, fundamental para o impedimento da entrada de jogadores de classes menos abastadas, que poderiam ver no jogo a possibilidade de ganhar no campo, o que lhes sempre foi renegado, como prestígio, dinheiro e acima de tudo cidadania. Isso não significa que o jogo pela sua própria facilidade de ser praticado em qualquer lugar, sem a necessidade de muitos recursos, não possa desde o início ter sido jogado por uma parcela maior da população. Leonardo Afonso Pereira em seu estudo sobre o desenvolvimento do futebol no Rio de Janeiro, faz através da história social a importante contribuição da disseminação do jogo pelos variados cantos da cidade, e que fugiam a uma determinada historiografia oficial. Como nos diz o autor em sua reflexão:

826

Desconsiderando a prática esportiva de grupos os quais os próprios sportmen queriam ignorar, acabamos muitas vezes por fazer da memória construída por esses jovens esportistas a própria história do futebol na cidade, reafirmando com isso uma lógica que movia a atuação de um grupo particular.20

Temos como exemplo para o caso paraibano a criação da Liga Suburbana, ou liga de São Bento na cidade de Bayeux, no início dos anos de 1930, com o propósito de abarcar clubes que não atendiam às normas da Liga Desportiva Paraibana, e que foi incorporada à nova entidade renomeada Federação Desportiva Paraibana, justamente com a institucionalização do decreto de 1941. Com a possível entrada de outras forças políticas no seio da entidade gestora do futebol na capital, a organização dos campeonatos entre 1941 e 1947 foi extremamente prejudicada. Temos como exemplo o campeonato paraibano de 1946, disputado apenas por cinco clubes, já sem a presença de clubes tradicionais que ajudaram a fundar o futebol na capital. Vale ressaltar que é perceptível ao longo das pesquisas historiográficas sobre o futebol, a primazia dos estudos inseridos dentro de um protagonismo regional sul-sudeste, muito ligado à dinâmica econômica em potencial que o esporte, já em sua fase inicial possuía. Interessante notar que, adaptada a outras realidades, como é o caso do futebol paraibano, podemos perceber que o método não se aplica tão facilmente, já que o profissionalismo na Paraíba só viria a ser concretizado em 1960, ou seja, 19 anos depois da regulamentação do esporte. O fim de clubes tradicionais da cidade como Cabo Branco Athletic Club em 1940, e a criação de clubes com filiação operária a partir desse período, como o Esporte Clube União, Central Elétrica, Dolaport-vinculado a fábrica de cimentos Portland em João Pessoa-, assim como a entrada do Treze, de Campina Grande, são sintomáticos para uma forma específica de substituição dessas determinadas elites, em prol do nova tradição política inventada, no que tange ao novo modelo do futebol imposto a partir dessa época. É possível perceber com isso que mesmo que essas elites esportivas tenham perdido espaço com a promulgação da oficialização dos esportes no país, o amadorismo marrom21 se perpetuou como prática durante muitos anos na Paraíba, já que muitos dos novos clubes de fábrica viam no futebol a possibilidade de maior visibilidade de seus produtos, ao mesmo tempo que mantinham os seus times através do operário-jogador22.

827

1

BRASIL. Decreto Lei n.3.199 de abril de 1941.

2

SOIHET. Rachel. O Brasil Republicano. O tempo do nacional-estatismo; do início da década de 1930, ao apogeu do Estado Novo. Livro 2. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2003.p.314 3 SCHEMES, Claudia. Festas cívicas e esportivas: um estudo comparativo dos governos Vargas(1937-1945) e Peron(1946-55). Novo Hamburgo: Feevale, 2005, p.95. 4 SILVA, Marcelino Rodrigues da. Mil e uma noites de futebol: o Brasil moderno de Mário Filho. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006.p.197. 5 POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos. Rio de Janeiro:v.2, n.3, p.11,1989. 6 MIRANDA, Wander Melo. As fronteiras internas da nação. In: Anais do 5º Congresso da Abralic - Cânones e contextos. 1998. Rio de Janeiro. 7 SILVA,2006.pg.200. 8 SILVA,2006.pg.109. 9 SILVA,2006, p.147. 10 WISNIK, José Miguel. Veneno remédio: o futebol e o Brasil. São Paulo: Cia. Das Letras, 2008.pg.240. 11 LYRA FILHO, João. Introdução a Sociologia dos Desportos. Rio de Janeiro: Bloch editores,1973, preâmbulo. 12 Jornal “Liberdade”:20 de junho de 1940, p.1. 13 Termo utilizado comumente pelos periódicos da época para uma determinada distinção de classe dos jogadores que representariam o esportista do início do século XX, com o intuito de disseminar uma etiqueta esportiva associada a valores e condutas não necessariamente ligadas ao jogo em si. 14

MARQUES, Walfredo. A História do Futebol Paraibano (1908-1968). João Pessoa; União, 1975, p.138. O jornal “Liberdade” começou a circular no ano de 1930, com uma clara tendência a favor do novo regime pós golpe, tendo seus proprietários Anchises Gomes e Alves de Mello atuação ativa na realização do novo governo na Paraíba. Vale lembrar que Anchises Gomes, foi goleiro do Palmeiras de João Pessoa em 1919, tendo sido o campeão do primeiro torneio realizado pela Liga Desportiva Paraibana. 16 Jornal “Liberdade- Edição Esportiva- “: 20 de maio de 1940, p.1. 17 Dos nove nomes que figuravam no corpo redacional do jornal em questão, cinco já tinham assumido cargos de presidência da antiga Liga Desportiva Paraibana. Eram esses: Orris Barbosa, João Santa Cruz, Carlos neves da Franca, Elias Bernardes e Luiz Espinelli. 18 BAKHTIN,Mikail. Problemas da poética de Doistoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitario,2008. 19 . / VOLOCHÍNOV, Valentin. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2006, p.67. 20 PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. Footballmania. Uma história Social do Futebol no Rio de Janeiro,1902-1938. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira,2000. p.87 21 Condição na qual os jogadores recebiam para jogar futebol através de concessões que variavam entre o recebimento indireto em dinheiro por partida disputada, ou vantagens profissionais dentro de uma empresa, podendo ter maior mobilidade por cargos mais vantajosos. Ambas as práticas eram utilizadas para burlar o amadorismo propriamente dito, aonde era proibido o recebimento de vencimentos para a prática desportiva. 22 Termo utilizado por Mário Filho em “O Negro no Futebol Brasileiro” para ilustrar a situação dos jogadores do clube de fábrica Bangu Athletic Club no Rio de Janeiro. 15

828

METÁFORA DO HOLOCAUSTO: OTTO DOV KULKA E A BUSCA DA PALAVRA SOBREVIVENTE Dirson Fontes da Silva Sobrinho1 [email protected]

Resumo - O presente trabalho propõe uma análise literária da narrativa testemunhal de Otto Dov Kulka, sobrevivente de Auschwitz; é a partir da atenção a historicidade do testemunho de uma experiência paradigmática, o Holocausto como grande metáfora da modernidade, que se buscará esboçar como essa escrita, portadora de uma memória traumática, se situa em meio a tensões entre linguagem/silêncio, representação/trauma, literatura/real, e instiga uma significação que a confronta com outras modalidades discursivas como a historiografia e a prosa ficcional. Palavras-chave: Auschwitz; Testemunho; Narrativa. Resume – The present work proposes a literary analysis of Otto Dov Kulka's testimonial narrative, a survival of Auschwitz; it’s from the attention to the historicity of the testimony of a paradigmatic experience, the Holocaust how great metaphor of modernity, which will seek delineate how this writing, that carrier a traumatic memory, is situated amid tension between, language/silence;representation/trauma, literature/real, and instigates a meaning that confront with others discursive modes as a historiography and fictional prose. Key-words: Auschwitz, Testimony, Narrative. Nas últimas décadas, com cada vez mais frequência, os sobreviventes de catástrofes contemporâneas externam suas memórias, em forma de narrativas autorreferentes, que durante boa parte do pós-guerra haviam sido silenciadas. Estes sujeitos vêm sendo reabilitados como autores de um corpus testemunhal transpassado por uma “carga” ético política potencialmente desruptiva e caótica. O Holocausto assim, através do relato dessas experiências e frente à historiografia da “História do Tempo Presente”, pôde se estabelecer como uma experiência paradigmática, ou seja, os testemunhos, modalidades mediadoras da nossa relação com aquele passado, comportam-se como “meios” de investigação e questionamento de eventos traumáticos; permitindo-nos tecer uma significação das próprias narrativas testemunhais do Holocausto. Portanto, o presente trabalho retoma o Holocausto como experiência traumática através do testemunho de um sobrevivente de Auschwitz, Otto Dov Kulka. Proponho uma leitura do testemunho com o objetivo de interpretar os significados dessa narrativa; ou seja, o 1

Pós graduando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ (Ppghis), onde pesquiso as relações entre “testemunho, trauma e Holocausto” sob orientação da professora Monica Grin, coordenadora do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos da UFRJ (NIEJ-IH).

829

discurso daqueles que estiveram sob o jugo das SS são problematizados, de alguma forma, a partir da “categoria” de evento catastrófico. Grosso modo, o intento é saber a “validade” de certo testemunho literário contemporâneo que externa uma específica representação do Holocausto. Em que medida essa escritura testemunhal está implicada em uma prosa ficcional despojada de preocupações com a “verdade histórica”, ou melhor, com a correspondência entre o que é representado e aquela realidade que serve a representação? Nesse sentido, pensar como funciona o testemunho do Holocausto antecipa a problemática entre: linguagem/real, representação/factual; que, por sua vez, remete a uma questão propulsora: Qual o papel que a narrativa ficcional pode desempenhar no gesto testemunhal de um evento traumático como o Holocausto? A representação literária difere, ou não, de outras modalidades discursivas que a sua maneira dramatizam o mesmo tema? Se por um lado, a referência ao nascimento mítico da escrita da história indaga a memória sobre a validade da historiografia na legitimação da confiança do que seria específico do discurso da memória e da escrita do historiador i; por outro, permito-me mimetizar essa apropriação; a literatura então é o remédio ou veneno do testemunho de uma experiência como o Holocausto? Como essa modalidade de discurso teria êxito em suprir as demandas de um evento traumático que se equilibra entre a autenticidade e a dissimulação? Não é fácil questionar como a literatura está imbricada na narrativa testemunhal. Para situar essa ambição ressalto, como ponto de partida, a específica trajetória de vida (individual e coletiva) de Otto Dov Kulka. Esse caminho parece “ampliar o material” para que se chegue a uma significação da sua própria narrativa testemunhal através das seguintes ponderações: 1) Em que medida o testemunho de Dov Kulka dialoga com os testemunhos estabelecidos como cânone por uma tradição de representação do Holocausto 2) Como os textos historiográficos, escritos por Dov Kulka, estão relacionados com que ele chama de sua “reflexão não científica” 3) De que modo essa reflexão é fruto, ou não, de uma afinidade literária entre o autor e escritores ficcionais contemporâneos como W.G Sebald e Elias Canetti; o que poderia ser indício de uma “elevação” das relações entre a representação histórica e a narrativização ficcional do Holocausto. Otto Dov Kulka nasceu em abril de 1933, em Nový Hrozenkov pequena cidade da então Tchecoslováquia, ano em que os nazistas haviam acabado de assumir o poder e iniciado o processo de promulgação das primeiras leis antissemitas; em 1942 foi mandado ao gueto de Theresienstadt, situado nos arredores de Praga, e posteriormente, junto à mãe Elly, alistou-se ao comboio que faria o transporte a Auschwitz. Quando partiram prometeu aos amigos escrever relatando sobre o campo de concentração. Às vezes, junto a outras crianças, brincava

830

com o que chama de “pequena morte” se arriscando próximo ao arame farpado na certeza de que a morte era um destino inexorável; escapou quando seus assassinos o levaram a enfermaria para tratar de uma difteria. Em janeiro de 1945, com a eminência da derrocada nazista, Dov Kulka e seu pai foram forçados a deixar o campo nas “marchas da morte” de onde conseguiram escapar de vez. Em 1949 ambos embarcaram em um navio em direção a Israel; chegando a Jerusalém Dov Kulka adquiriu cidadania israelense, foi trabalhar em um kibutz e iniciou os estudos em história judaica contemporânea; anos mais tarde, como especialista nos estudos do Holocausto, passou a corresponder-se com preeminentes pesquisadores, entre eles: Saul Friedlander, Ian Kershaw, Katarina Bader, Omer Bartov, Sussanne Heim, Dan Laor, Dimitry Shumsky, Susann e Urban e Moshe Shedletzki, Martin Broszat. Em 1978 viajou a Polônia, já na condição de professor de história judaica da Universidade Hebraica de Jerusalém, ocasião na qual participou de uma conferência científica internacional e terminou por fazer uma visita a Auschwitz. Foi a partir desse momento que deu iniciou ao processo de rememoração e escrita de suas memórias, que permaneceram durante anos “escondidas” do grande público e só vieram a tona recentemente com a publicação de “Paisagens da metrópole da morte: reflexões sobre a memória e a imaginação”. O testemunho, escrito originalmente em hebraico, possui dez capítulos transcritos a partir de gravações em áudio semelhantes a um “diário falado”; no que se segue, encontramse três capítulos com excertos de diários que registraram passagens da memória como sonhos Kafkianos. Há também um componente visual que acompanha as passagens literárias; fotografias (em sua maioria de coleções particulares e algumas de arquivo oficial) ii, gravuras, desenhos infantis, fac-símiles. O livro resulta em uma forte escrita marcada por alegorias, prosa poética e metáforas conhecidas desde o título, Paisagens da Metrópole da Morte, e apresentadas em capítulos armados no plano da fantasia e da criação; longe de ser uma mera descrição pessoal, o relato permite a reflexão de como a literatura, e os recursos que esta disponibiliza, pode estar contida na construção de uma narrativa que tenta (re)apresentar o Holocausto. O percurso biográfico de Dov Kulka se entrecruza com as próprias condições e circunstâncias de escritura de Paisagens da Metrópole da Morte reforçando a possibilidade que considera que o seu testemunho, resultado de uma transcrição feita ao longo de décadas, não só remete, mas exprime certa historicidade atravessada por experiências de violência, exílio e configuração de uma nova identidade cultural (individual e coletiva); já que Auschwitz foi para Dov Kulka uma “experiência infantil” que teve que ser reelaborada em

831

uma nova ambiência social. Com isso quero enfatizar que a construção do seu testemunho não é autônoma, ela se dá em meio a tensões entre texto/contexto. Podemos pensar primeiro até que ponto, ao longo dessa longa trajetória (pessoal e literária), Paisagens da Metrópole da Morte incorpora elementos e técnicas narrativas provenientes do que a teoria literária convencionou denominar “literatura de testemunho”; definida como: “uma face da literatura que vem a tona na nossa época de catástrofes que faz com que toda a história da literatura – após 200 anos de autorreferência – seja revista a partir do questionamento da sua relação e de seu compromisso com o real” iii. Portanto, é necessário o “confronto” com outros testemunhos literários escritos por sobreviventes do Holocausto; penso, sobretudo, agregar os relatos de Primo Levi, Jean Améry, Ruth Kluger e Gerhard Durlacheriv. Essa “comparação” será mediada através da identificação de elementos que parecem se repetir como uma tópica nesse “tipo de literatura”. Desconfio que na medida em que a análise literária verifique como esses elementos aparecem em Paisagens da Metrópole da Morte isso me facilite perceber uma proximidade, ou não, da narrativa de Dov Kulka com a “literatura de testemunho”, ou, ao menos com aquilo que se reconhece como tal. Wilberth Salgueiro v elenca alguns desses traços que seriam característicos da “literatura de testemunho” como: o registro narrativo em primeira pessoa; o compromisso com a sinceridade do relato pretendido; o desejo incontornável de alguma forma de reparação e justiça; a vontade de resistir e não se conformar frente à violência e o autoritarismo; a ênfase em um valor ético da fala em oposição ao valor estético; a dimensão coletiva do relato; a presença do trauma físico e moral; a existência de certo rancor e ressentimento; o estreito vínculo com a história político-social; a presença de um sentimento de vergonha e culpa e a admissão da impossibilidade de representar algo inimaginável. Em um segundo momento, atentar para o fato de como o texto de Dov Kulka pode estar, ou não, contaminado por sua formação identitária não só como um sobrevivente de Auschwitz, mas também como um pesquisador acadêmico; ou seja, deve ser considerado que a sua busca “inconsciente” por uma "ética da representação" do Holocausto convergiu, de modo simultâneo, não só ao debate ocorrido em Israel, durante o pós-guerra, sobre a formação das identidades socioculturais judaicas, assim como, ao desenvolvimento da sua própria atividade historiográfica. Há dois aspectos a se observar; 1) Dentre os elementos culturais formadores de uma identidade israelense contemporânea, como a literatura exerce seu papel diante dos sobreviventes do Holocausto, como ela se serve e é servida por aqueles que de algum modo buscam representar o irrepresentável? 2) Como a formação de historiador

832

de Dov Kulka, vista como produção discursiva, influi no nosso objetivo de “significação literária” dessa narrativa? Retomo um caso, emblemático na literatura de testemunho, que situa de modo evidente o meu objetivo no trato com Paisagens da Metrópole da Morte, e provoca uma inevitável problematização desses três tipos de discurso (testemunho, ficção e historiografia). Supondo-se que esse trabalho houvesse desprezado que Otto Dov Kulka é um sobrevivente de Auschwitz; ou que Paisagens da Metrópole da Morte fosse uma reflexão, não acadêmica, de alguém que só indiretamente foi tocada pela experiência dos campos de concentração como um professor especialista no tema do Holocausto, ou mesmo um filho de pais que escaparam do genocídio nazista, portanto herdeiros de “segunda geração” de uma experiência traumática; essa omissão seria benéfica em relação ao objetivo de identificar/atribuir à especificidade da narrativa literária? Como se comporta essa narrativa? É uma autobiografia? É um memorialístico? As respostas a essas perguntas estariam facilitadas? O tencionamento dos limites entre a história e a ficção poderia assim ser mais bem exposto? Foi exatamente isto que aconteceu, porém pelo caminho inverso, na recepção da obra Fragmentos- Memória de uma infância 1939-1948, de autoria de Binjamim Wilkomirski. O livro, publicado em 1995 vi na Alemanha pela editora Suhrkamp e editado no Brasil em 1998, fora a princípio recebido, em uma resenha feita para o jornal Folha de São Paulo, pelo destacado estudioso do Holocausto Márcio Seligmann-Silva, como “um dos exemplos máximos” da chamada “literatura de testemunho”, esta, segundo ele, “uma das maiores contribuições que o século XX deixará para rica história dos gêneros literários.”

vii

um

entusiasmo é percebido na última sentença da resenha, quando profere; “Num certo sentido, também nós somos agora levados a escrever como o autor: Eu Vi! Eu Vi!” viii O vertiginoso sucesso de Fragmentos, verificado a época, fez com que o mesmo fosse traduzido em inúmeras línguas e servisse de inspiração a filmes e peças de teatro. Logo após a publicação Wilkomirski foi chamado a dar palestras em universidades européias e norteamericanas, assim como, solicitado a falar em escolas sobre a sua experiência de vida. Em resumo o livro narra a história da sua primeira infância atravessada nos campos de concentração nazistas de Majdanek e Auschwitz, ambos na Polônia e, posteriormente, uma passagem por um abrigo para crianças na Suíça quando o seu nome é trocado, não se sabe porque, para Bruno Grosjean e, depois de adotado, para Bruno Dossekker. Os leitores, portanto acessam o absurdo da violência e da brutalidade como episódios de comboios de crianças sendo assassinadas e tantos outros perecendo de fome e frio.

833

Contudo se descobriu que Fragmentos era na verdade fruto de uma fraude literária, Wilkomirski só havia estado em um campo de concentração na “condição de turista”. O responsável pela descoberta, publicada em um jornal suíço, foi o escritor judeu Daniel Ganzfried que fez uma investigação sobre a identidade do autor. Segundo a reportagem Wilkomirski era um personagem criado por Bruno Dossekker. A reação do editor norteamericano foi surpreendente: “Artur Samuelson, da Schocken Books, declarou (...) Fragments is a pretty cool book... It’s a only a fraud if you call it non-fiction. Não é o autor que falsifica, mas sim o leitor, quando afirma que no caso de Fragmentos se trata de um relato factual.” (HEUER, 2006, p.42 apud ELMIR, 2008, p.46) Wilkomirski, tentando desembaraçar-se de uma acusação ético-moral, se limitou em rebater a denúncia acusando Ganzfried de ser um conspirador e justificando que o pósfácio do livro já indicava incoerências em relação as suas memórias, sendo assim os leitores estariam, desde o princípio, livres para ler o seu livro como literatura ou como um documento pessoal. (SELIGMANN-SILVA, 1998, p. 30-32) Portanto, Wikomirski falsifica uma identidade e ainda, depois de descoberto, deixa de assumir seu relato como uma narração literária; justamente o contrário do que faz Dov Kulka, que diante da ressalva a factualidade de seu testemunho, assume desde o princípio que a sua narrativa projeta-se a ficcionalização; “(...) também estou ciente de que estes textos, mesmo ancorados em acontecimentos históricos concretos, transcendem a esfera da história.”

ix

Se

Otto Dov Kulka tivesse omitido a informação que é um sobrevivente de Auschwitz, dado que Wilkomirski forjou, Paisagens da Metrópole da Morte teria tido a mesma recepção elogiosa que teve quando foi publicado? Nesse caso a fronteira entre a ficção e história seria mais facilmente traçada? O desmascaramento do embuste literário de Wilkomirski traz algumas considerações à observação historiográfica das relações entre trauma, testemunho e literatura. 1) A representação testemunhal do Holocausto desloca a ênfase na “confissão de autenticidade” do testemunho para a preocupação em se “significar” essa narrativa; 2) Assim a informação de que se foi sobrevivente de Auschwitz não basta para atestar essa ou aquela narrativa como um bom relato; e nem mesmo “enquadrá-lo” como sendo “literatura de testemunho”; 3) Nenhum testemunho é fechado em si, ou seja, auto-validável, ele depende de uma intertextualidade, um diálogo entre texto e contexto, autor e leitor. 4) A dinâmica do testemunho comporta uma dimensão interna e externa dessa narração que a situa no tempo e no espaço, por isso o testemunho não deve ser interpretado como uma narrativa sui generis. Com isso não quero sugerir um relativismo da realidade ontológica, como se fosse possível, e nem tão pouco desprezar a responsabilidade ético-moral implicada em uma

834

dissimulação literária, como faz Wilkomirski, no entanto, a questão que se coloca é: o mero acesso a um conteúdo descritivo factual, ou a sua falta, não basta a uma interpretação literária que pretende ser o mais cautelosa e objetiva possível; nenhuma reconstrução biográfica, por mais completa que seja, pode por si só legitimar a qualidade e atribuir o significado de dado testemunho. Isso porque no processo de leitura ocorre uma troca entre o autor e o público; uma espécie de “pacto literário” sustentado entre os “mecanismos” internos da obra e as próprias intenções do leitor. Indicando assim, uma dimensão estética do texto testemunhal que, em certa medida, neutraliza a importância dispensada a sua dimensão ética. Nesse sentido, parece ser indispensável, como no caso de Wilkomirski, reconstruir parcialmente, a recepção a Paisagens da Metrópole da Morte, isso porque tanto a crítica literária, quanto pesquisadores ligados ao estudo do Holocausto operam e observam todo um aparato narrativo que gira em torno da construção de algum tipo de verdade. Precavidos de armadilhas elogiosas e sensibilizações apressadas à atribuição de algum significado(s) a narrativa de Dov Kulka pode surgir através da constatação de uma gradação “compatível” entre “normas literárias” que se esperariam ser mobilizadas pelo texto testemunhal com as “expectativas de veracidade” criadas antes e durante o processo de leitura. Portanto, essa “balança literária”, que procura conferir “peso” ao testemunho possui dois grandes pratos; a recepção à obra e a prescrição de gêneros, é nesse embate que iremos trabalhar. A despeito do rápido reconhecimento que fez com que Paisagens da Metrópole da Morte fosse aclamado como “o maior livro sobre Auschwitz desde Primo Levi” e “um dos essenciais livros que apareceram nos últimos anos”; recebesse prêmios como Jewish QuartelyWingatex, onde na opinião da presidente do júri de Rachel Lasserson, “Czechoslovakia-born author had "achieve[d] the impossible; a mythological and strangely beautiful new language for living with Auschwitz", ganhasse destaque no The Guardian, na revista alemã Spiegel, e no site da Universidade de Harvard; escolhi uma resenha de Judith Lyon Caen onde há alguns apontamentos que correspondem ao objetivo proposto. Judith Lyon Caen, na revista Lavie des idees, parte justamente de um questionamento da função da literatura na escrita de Paisagens da Metrópole da Morte; atenta para o dilema em que se situa o testemunho de Dov Kulka entre as preocupações da escrita da história, advindas da sua formação como historiador, e as especificidades de uma memória traumática. Se por um lado a abstenção de Dov Kulka em detalhar sua biografia pode indicar uma “ambição” literária, por outro essa omissão pode ser vista como um vício de sua atividade como pesquisador do Holocausto; é como se o terreno do testemunho lhe provocasse aflição “o que eu estou fazendo aqui, na verdade, contraria todas as minhas decisões, todos os meus

835

sentimentos, toda consciência das minhas limitações, ou limitações primordiais que me vem à mente: limitações de linguagem, principalmente dúvidas sobre a minha habilidade de mesclar essas paisagens mitológicas como paisagens passíveis de serem transmitidas.” (KULKA, 2014, p. 104). Lyon Caen, pesquisadora das relações entre história e literatura, ressalta que nos últimos dois capítulos do livro, “Rios que não podem ser atravessados e a Porta da Lei”, “Em busca da história e da memória”, Dov Kulka discorre sobre as relações entre a dimensão irredutível da sua experiência e a possibilidade de transmiti-las (preocupação de quem se acostumou durante anos a produzir reflexões acadêmicas de interpretação do passado); justificando assim o porquê de não ter tido contato mais estreito com obras artísticas (cinema, literatura, artes visuais) que tentam descrever Auschwitz, esse distanciamento se deu porque esses trabalhos só lhe causavam estranhamento, e não um meio de entender e vivenciar o Holocausto; Dov Kulka chega mesmo a indagar o porquê de outras pessoas conseguirem traçar essa “comunicação” com o evento e ele não, haveria algo de errado consigo? Porém, logo em seguida recorre justamente à literatura, mais especificamente ao conto do homem diante da Porta da Lei, e faz uma analogia em que Paisagens da Metrópole da Morte funciona como a porta de acesso aquilo que havia sido silenciado em suas memórias; como no conto essa porta está aberta a todos mas só existe para um só, no caso si próprio, a possibilidade de que Paisagens da Metrópole da Morte sirva a mais pessoas estaria em aberto, já que a própria porta da lei Kafkafiana, que serviria a uma só pessoa, foi aberta por Dov Kulka; “Será que outros conseguirão entrar pela porta que abri aqui, que permanece aberta para mim? É possível que sim, pois essa porta que Kafka abriu, que se destinava a uma única pessoa, a K., Josef K., na verdade está aberta a quase todos. Mas para ele havia apenas uma porta que dava acesso a sua mitologia particular.” (ibid, p.107) Essa preocupação com a escolha de uma “abordagem discursiva” que pudesse fazer ressonância a tensão, que permeia Paisagens da Metrópole da Morte, entre a reflexão pessoal da memória e a pesquisa histórica impessoal é exposta desde a introdução do livro. Dov Kulka ao apresentar suas “paisagens do Auschwitz da infância” dirige-se aos leitores de seus textos historiográficos fazendo uma “ressalva” a impossibilidade de manter a mesma linguagem objetiva diante da tarefa de narração daquele passado que havia “cindido” da sua atividade como historiador “poucos sabem da existência de uma dimensão de silêncio dentro de mim, de uma escolha que fiz: separar o biográfico do passado histórico. (...) este livro revela tensões imanentes: o confronto entre imagens da memória e a representação da 836

pesquisa histórica.” (ibid, p.12); a sua narrativa possuiria algo da ordem do imponderável “Essas gravações não são um testemunho histórico, nem um relato autobiográfico, mas uma série de reflexões de alguém que, dos cinquenta e tantos anos até o sessenta e tantos, revolveu na mente os fragmentos de memória e imaginação.” (Ibid, p.11) Em resumo, do ponto de vista da pesquisa historiográfica, a proposta de análise literária de Paisagens da Metrópole da Morte, que está alicerçada em um objetivo central em atribuir-lhe um significado e examinar como esse significado é construído no testemunho; se desdobra na problemática da verdade do texto literário, ou seja, em que medida o testemunho do Holocausto é capaz de descrever e representar aquilo que é o seu referente factual. Essa questão de verossimilhança pode ser tomada em dois níveis 1) A mediação do que seja essa relação entre o real/ficcional, trauma/imaginação deve ser concebida sob a lógica moderna de julgamento da linguística face a literatura assim não faz sentido indagar sobre a verdade ou falsidade da escrita de Dov Kulka, antes, retomando a poética aristotélica, a “verdade” se dá entre o testemunho e aquilo que os leitores reconhecem como sendo a realidade, surge então um “terceiro discurso”, autônomo ao livro, que funciona como arbítrio narrativo 2) Há ainda a relação do próprio livro com regras que determinam a divisão em gêneros literários, como literatura de testemunho. Portanto esses dois “níveis de verossimilhança” não são absolutamente excludentes, eles interagem nas relações autor/leitor, obra/gênero. Logo, a literatura no testemunhoxi parece surgir não no seu sentido estreito de um discurso subdividido em gêneros e marcador de distinção entre fato e ficção, mas uma abordagem discursiva peculiar da linguagem; no limite seria uma forma especial de dispor a palavra, se diferenciando da fala comum e cotidiana. Desse modo, o testemunho de Dov Kulka é significado como um discurso que ao mesmo tempo em que corresponde aos seus anseios em tornar seu passado inteligível e vivê-lo como uma eterna lembrança no presente, dialoga com outros “tipos de literatura”: a tradição testemunhal, a escrita historiográfica e a narrativa ficcional; essas podem até não nos transpor a Auschwitz, mas servem como “portas kafkafianas” de interpretação a Paisagens da Metrópole da Morte; uma narrativa que se confunde com o próprio sentido da literatura na cultura contemporânea: Competindo com outras formas de simbolizar (...), falando daquilo que se cala, oposta, por seu excesso, por sua permanente dissipação de sentidos, a economia que rege uma relação normal: a literatura é, pelo menos desde o século XIX, quase sempre incômoda e, por vezes, escandalosa. Acolhe a ambiguidade ali onde as sociedades querem bani-la; diz, por outro lado, coisas que as sociedades prefeririam não ouvir; com argúcia e futilidade, brinca de reorganizar os sistemas lógicos e os paralelismos referenciais; dilapida a linguagem porque a usa perversamente para fins que não são apenas práticocomunicativos; cerca as certezas coletivas e procura abrir brechas em suas defesas; permite-se a blasfêmia, a imoralidade, o erotismo que as sociedades somente admitem

837

como vícios privados; opina com excessos de figuração ou imaginação ficcional, sobre história e política; pode ser cínica, irônica, trabalhar a paródia, dar um caráter cômico a temas, que por consenso ou imposição são dados por sérios ou proibidos; pode, no limite, falar sem falar, usar a linguagem para não dizer nada em particular, exibir essa impossibilidade na cena dos textos; falsifica, exagera, distorce porque não acata os regimes de verdade dos outros saberes e discursos. Mas nem por isso deixa de ser, a seu modo verdadeiraxii

i

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução: Alain François. Campinas (SP); Ed. da Unicamp, 2007, p.148-154. A referência ao mito platônico Fedro é feita por Paul Ricouer com o objetivo de questionar e situar a gênese da relação entre o que ele chama de memória viva e história escrita. ii

Esses arquivos encontram-se sob guarda de diferentes instituições como: Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos; Museu Estadual de Auschwitz-Birkenau; Museu Judaico de Praga, Museu de Stutthof, Biblioteca do congresso americano e o Museu Yad Vashem. iii

SELIGMAN-SILVA. “Testemunho e a Política da Memória: o Tempo Depois Das Catástrofes.” Revista PUC-SP. São Paulo: Proj. História, v. 30, p.85, jun. 2005 iv

Esses dois últimos, ambos sobreviventes de Auschwitz, tiveram uma trajetória parecida com Otto Dov Kulka; ainda crianças foram submetidos à experiência do campo de concentração; passaram pelo gueto de Theresienstadt e anos depois, começaram a escrever um testemunho sobre aquilo que haviam vivenciado. Essa escolha de “experiências biográficas” similares serve ao exercício de pensar como a partir de uma mesma vivência a narrativa literária pode, ou não, apresentar pontos de aproximação em relação ao modo como arranja e representa o passado traumático. v

Professor da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)

ELMIR, C. P. “O caso Binjamin Wilkomirski: a dupla invenção da memória.” Anos 90. Porto Alegre: UFRGS Impresso, v. 15, n.28, p. 41-55, dez. 2008. Cláudio Pereira Elmir lembra que neste mesmo ano foi comemorada a efeméride dos 50 anos do fim da Segunda Guerra Mundial, portanto um momento propício à produção cultural relacionada à temática do Holocausto; o que pode ajudar a explicar a ampla recepção positiva ao relato de Binjamim Wilkomirski. vi

vii

SELIGMANN-SILVA, Márcio. “Literatura de testemunho: os limites entre a construção e a ficção.” Revista do mestrado em Letras da UFSM. Santa Maria (RS): UFSM/CAL, n. 16, p. 20, janeiro/julho/1998. viii

Ibid, p.23

ix

KULKA, DOV. Paisagens da metrópole da morte: reflexões sobre a memória e a imaginação.Tradução Laura Teixeira Motta.São Paulo; Ed Companhia das letras, 2014, p.13. x

O Jewish Quarterly-Wingate Prize, prêmio literário britânico estabelecido em 1977 por Harold Hyam Wingate, é o único prêmio literário de língua inglesa de reconhecimento para escritores judeus e não judeus que exploram, de alguma forma, temas relacionados à história judaica, sendo assim, um dos maiores prêmios de prestigio da área. Dentre os vencedores encontram-se além de Dov Kulka; Amos Oz (2005 e 2011); David Grossman (2004 e 2013); Zadie Smith (2003); Imre Kertesz (2006); Oliver Sacks, que dividiu o prêmio de 2002 com W.G Sebald, entre outros. xi

Como se refere Terry Eagleton a literatura deve ser vista como uma abordagem discursiva peculiar da linguagem. No limite, a literatura seria uma forma especial de dispor a palavra se diferenciando da fala comum e cotidiana; validada como tal, não por uma essência específica, mas por artifícios que o leitor reconhece que lhe são peculiares. Pensar a literatura desse modo é considerá-la quase como um todo poético. xii

SARLO, B. “Os militares e a história – contra os cães do esquecimento.” Paisagens imaginárias: intelectuais, arte e meios de comunicação. São Paulo: Edusp, p.26-28, 1997.

838

Entre Liberalidades e a Hierarquia: mecanismos internos de controle do operariado da Vale – 1959 à 1962 Douglas Edward Furness Grandson1 Resumo: O trabalho tem por objetivo discutir relações entre a direção da CVRD e os trabalhadores no do ano de 1959 a 1962, com o fito de observar os mecanismos de controle que a empresa criou para romper solidariedade entre os trabalhadores e colocar sua forma de sociabilidade do trabalho como alternativa única aos operários, sistematizando e aperfeiçoando tais mecanismos. Para identificar a Hierarquia criada dentro da empresa, utiliza-se o individualismo metodológico e a análise do discurso proposta por Ciro Cardoso2. Palavras chave: CVRD; trabalhadores; mecanismos de controle; Individualismo metodológico. Abstract: This work aims to discuss relations between the direction of CVRD and workers in the year 1959 to 1962 with the aim to observe the mechanisms of control, created for the directory company to breaking solidarity among workers and put their forms of sociability work how the only alternative to the workers, systematizing and perfecting them system. To identify the hierarchy established within the company, we use the methodological individualism and discourse analysis proposed by Ciro Cardoso. Keywords: CVRD; workers; control mechanisms; Methodological individualism.

Introdução Em 1948 estourou a greve da CVRD, em dois momentos: um do final de agosto ao início de setembro, e a principal de 20 de novembro a 6 de dezembro. Foi comandada por comunistas, com estreita ligação de confiança com sua base. Esse evento representou uma inflexão na participação e organização da classe trabalhadora capixaba, pelo fato de que, sem sindicato ou amparo de lei, os trabalhadores da CVRD estabeleceram entre lideranças e base uma relação horizontal, em que as pessoas se reconheciam como iguais e definiram entre si o que seria justo, enfrentando a justiça.

839

Porém, após a parede, a empresa demitiu cerca de 400 trabalhadores, assim como sistematizou mecanismos de coerção e rompimento de solidariedade, estimulando a iniciativa individual dos trabalhadores, desestimulando o inverso3.

Acidentes de trabalho e indisciplina Os mecanismos de coerção aos quais fazemos referência são dispositivos criados pela empresa, de modo a incentivar a iniciativa individual e desestimular o contrário4, assim como conformar os trabalhadores a uma estrutura interna da empresa vertical, dentro da hierarquia construída por usa diretoria. Nesse trabalho serão abordados: Acidente de trabalho; indisciplina; licença-prêmio e gratificações semestrais e especiais. A Estrada de Ferro Vitória a Minas passou de 1959 em diante, por um processo de inflexão, que foi a transição das locomotivas a vapor para diesel elétricas. Com isso, um processo longo de adaptação ocorreu, o que não se deu sem acidentes, o que apenas agravava um fato: o trabalho ferroviário era extremamente perigoso. A situação chegou a um nível crítico, a ponto de ser criada uma comissão interna de prevenção a acidentes, o CIPA, instituição que, composta por membros da diretoria da CVRD e trabalhadores, realizavam estudos para minorar os riscos de acidentes.5 Mas não só os acidentes tiveram um aumento numérico, como também os conflitos entre superiores e trabalhadores. As punições sempre reforçavam itens que eram levados em consideração pela comissão de inquérito, que eram a ficha funcional, tempo de serviço, ou dedicação à Estrada. Alguns indivíduos, em situações de acidentes, recebiam uma pena mais branda, e ainda tinham seus valores laborais ressaltados, como modo de justificar a punição que recebiam. O primeiro caso, um mestre de linha estava incluído em inquérito sobre descarrilamento, porém, dois motivos os desobrigaram de punições, que foram o fato de “seu superior, o engenheiro Chefe de Linha, ao encaminhar o recurso, o apontar como um elemento operoso e de valor” e “considerando ainda sua ficha funcional, resolv[eu] cancelar a punição de advertência (...).”6 O trabalhador se envolveu em um acidente, e entrou com um recurso para que a advertência fosse retirada de sua ficha funcional. Na circular, alegou-se que o agente nem havia sido apontado como responsável pelo tombamento, não justificando sua punição, porém, uma característica dos inquéritos é que, aos envolvidos em acidentes

840

que recebem qualquer tipo de punição, o recebe por uma justificativa da comissão. Então, se foi advertido, mesmo que com uma pena leve, em inquérito, foi apontado com algum nível de responsabilidade. Porém, com o recurso, essa foi retirada. Podem-se notar dois fatores importantes para essa alteração da punição: O apontamento do superior, que o denomina como detentor de “operoso valor”, assim como a referência à ficha funcional levada em consideração para a avaliação do recurso. Provavelmente, tinha uma boa ficha funcional, e assim queria continuar tendo. Apesar de se uma pena leve, o mestre de linha não quis ficar com essa mácula em sua ficha. Desse caso, junto ao outros é perceptível que são circulares bem sucintas e favoráveis aos indivíduos em questão. Porém, em outros casos, o julgamento é diferente, para situações semelhantes. Um caso se trata de uma colisão, na estação de Derribadinha, onde o agente noturno Romeu Oliveira Barbosa, enquanto descarregava uma locomotiva, liberou a linha para que outro trem passasse, pois iria se aproximar em 13 minutos. O agente fez um calculo de tempo, e previu que daria para descarregar a locomotiva e dar passagem para outro trem. O agente estava atendendo duas demandas, descarregando e dando passagem a outro trem, porém, não teve sucesso, pois houve o choque entre os dois. O superintendente diz ao ASO que o evento mostra a necessidade de “homens de responsabilidade da direção de uma estação (...) que este homem não tem condições para se responsabilizar pelo movimento ferroviário de uma estação como Derribadinha”, que além de suspenso por 15 dias, deve “ser transferido para um posto telegráfico onde as atribuições não venham prejudicar a circulação dos trens.”7 O trabalhador simplesmente foi desqualificado de qualquer possibilidade de ser um ‘elemento de operoso valor’, pelo contrário, foi retirado da função, apesar de notar que ele estava tentando dar prosseguimento ao trabalho, buscando maximizar o tempo. Pode-se considerar que teve boa vontade semelhante ao caso de sentença diversa acima. Portanto, no que concerne à ficha funcional, ela podia ser usada tanto para retirar o peso de uma punição, junto aos elementos de ‘operoso valor’ e ‘boa vontade’, assim como podia servir como justificativa para que um funcionário recebesse uma punição. Isso dependia de quem era, e do quanto estava próximo dos superiores e sua ficha funcional limpa. O que podemos afirmar, é que havia um tratamento diferenciado com relação os trabalhadores, que em situações semelhantes de acidentes, eram punidos ou não, conforme argumentação exposta em inquérito.

841

As condições de trabalho para os operários da CVRD não eram as melhores, definitivamente, e isso é perceptível através das relações conturbadas entre eles e suas chefias imediatas. As circulares que tratam de indisciplina e questões entre empregados trazem essas informações. As questões entre trabalhadores, em vários casos, chegava às vias de fato, em brigas corporais e até tentativas de homicídios. Nota-se que, a maior parte dos incidentes se dava entre trabalhadores e seus superiores imediatos, como inspetores, agentes, feitores. Isso demonstra que, nem todos os trabalhadores conseguiam seguir a ‘disciplina’ e a ‘ordem ferroviária’, tão exortada pela empresa, sem algum tipo de reação. Dentre os casos de agressão física de subordinados aos seus superiores, o ocorrido entre trabalhador e capataz, no qual o primeiro, ao ser suspenso por 3 dias, “desacatou seu superior hierárquico alegando que não obedeceria a suspensão, daí resultando sacar uma ‘escaladeira’, pretendendo agredi-lo, no que foi impedido por seus colegas de trabalho”.8

Após ser suspenso, o trabalhador partiu para cima de seu superior, sendo contido por seus colegas. Desentendimentos no local do serviço já vinham ocorrendo, pelo fato de o inquérito fazer referência a sucessivos ‘casos’ criados por esse trabalhador. Após isso, ele foi punido com uma suspensão de 30 dias e ameaça de demissão caso a situação se repetisse. Na circular, não só a insatisfação e agressão insistente do trabalhador, assim como para a punição que sofreu seu superior hierárquico são notáveis9. A revolta do trabalhador contra o agente, demonstrada pela dupla tentativa de agressão, foi punida com suspensão, mas o que chama atenção foi que o agente também foi punido, por ‘não saber se portar a altura do cargo’ recebendo uma suspensão de 5 dias. Outras tentativas de homicídio ocorreram contra chefes imediatos, como o “ato de indisciplina e insubordinação praticado pelo “guarda chaves José Alves de Mello, n° 20. 526 destacado então no posto de José Correia, ato esse cumulado com tentativa de homicídio na pessoa de seu superior hierárquico, ao agente Acylino Francisco dos Santos, n° 12.042”10 e “o empregado Antônio Camilo, matrícula 7.433, [que] foi afastado do serviço em março de 1959. Em 26/2/958 num sábado à noite, ele alvejou a tiros o feitor de sua turma, ocorrência essa comunicada pelo Dr. AVS – 7 foi autorizado a promover o respectivo inquérito judicial para a dispensa do interessado, por falta grave, mediante a carta J 71.21 C 180, de 17/3/58”.

11

Esses

casos de questões entre empregados são, como acima demonstrado, marcados pela agressão e violência às chefias. Esses fatos se inserem, não somente em uma questão de cultura violenta dos trabalhadores da CVRD, mas intimamente ao sistema hierárquico criado pela empresa,

842

a

complexificação das funções e os graus de subordinação, de cima para baixo. Como mesmo faz menção em diversas circulares, e observadas em algumas fontes supracitadas, o termo ‘superior hierárquico’, ‘hierarquia’, ‘ordem ferroviária’, ‘disciplina ferroviária’, demonstram, a partir dos inquéritos, que as chefias mais distantes, como chefes da divisão de pessoal e superintendência, faziam a manutenção dessa ordem interna da empresa, com alto grau de divisão e uma cobrança das chefias imediatas. Enquanto a direção coagia as chefias que não agiam de acordo

com a disciplina almejada, em seus inquéritos, punia os subalternos se referindo a essa hierarquia e o respeito que se deve ter a ela. Na SP 71.21, de 7 de julho de 1959, o guarda chaves foi punido por suas suspensões e faltas, e as considerações para justificar sua saída da Estrada são que “desrespeitou o seu

superior hierárquico, respondendo de modo grosseiro a ponto de ameaça-lo com agressão, prometendo eliminá-lo mesmo que o agente estivesse cercado de policiais;” e foi demitido pelo fato de “que o ambiente ferroviário é de disciplina e respeito aos superiores (...)”12 A questão era o desrespeito a disciplina e aos superiores. Mas nem todos os envolvidos em discussões eram punidos, levando em conta a hierarquia, porém, seguindo a mesma situação dos acidentes, que se supõe a posição privilegiada desses trabalhadores junto a uma chefia mais elevada. Em 30 de maio de 1959, a discussão entre um agente e um feitor, gerou insatisfação do superintendente, porém, esse procedeu de modo leve com estes, chegando a afirmar, que na discussão ‘naturalmente se alteraram’, matizando a discussão, de modo atípico ao feito em outras circulares. Em uma passagem, justifica ainda mais a não punição dos dois funcionários, por que “o fato se deu visando um benefício para aqueles que moram no pátio da Estação sem que tivesse havido intenção de diminuir a autoridade hierárquica”.13

O topo da hierarquia: Liberalidades da direção da CVRD. O poder de julgar os acidentes e indisciplinas, assim como quaisquer casos que extrapolavam as atribuições imediatas da divisão de pessoal e da superintendência, que dava sua opinião passava pelo parecer da Divisão Administrativa, no Rio, favorecendo ou não uma decisão, utilizando-se ações extra regulamentares, as ‘liberalidades’. No caso dos acidentes que eram punidos com suspensão ou penas mais graves, a direção da empresa respaldava todo o argumento juridicamente. Quando, mesmo com irregularidades, havia uma pena mais leve com relação aos trabalhadores, a intensidade dos argumentos jurídicos era menor, levando em conta a boa vontade dos trabalhadores.

843

Uma circular encontrada é particularmente importante para esse estudo, do dia 2 de março de 1959. Nele, o chefe da divisão de pessoal manda ao superintendente duas cartas sobre a questão de um aposentado, na quais falava sobre a gratificação semestral, esclarecendo que o ordenado do ano anterior havia aumentado, tendo por isso, os extraordinários, diárias, aumentado também. Porém, no que se refere às gratificações semestrais, poderiam ser majoradas apenas a partir de uma liberalidade da superintendência. Isso por que, por ser uma ‘concessão eventual’, não contaria como pagamentos de valores fixos, como horas extras ou diárias. Primeiro, por ser uma concessão eventual, demonstra que a empresa criava mecanismos de gratificação dos trabalhadores, prestadas como um favor, e como se verá adiante, com restrições para sua obtenção, como também é o caso das licenças prêmio. Segue a circular que demonstra um caso de pedido de liberalidade, no qual o chefe da divisão de pessoal informa ao superintendente sobre a situação de um funcionário aposentado que solicita o pagamento da licença prêmio a que faria jus, sendo a resposta deste que “o atendimento constituiria uma liberalidade a critério da Diretoria”.14 Nesse caso, o recebimento da licença prêmio não encontra amparo no regulamento, e sua concessão poderia se processar através da liberalidade da diretoria. Em outra situação, o superintendente escreveu a uma chefia imediata que “O peticionário é sabedor de que não lhe assiste o direito ao benefício solicitado por estarem faltando 2 anos para completar o prazo regulamentar”, porém transcreve o parecer da diretoria administrativa, que “deliberou a diretoria autorizar o pagamento da importância de CR$ 28.320,00 em favor do sr. Antônio marques de Oliveira (...) por tratar-se de empregado exemplar e que serviu à companhia durante 48 anos”.15 Aqui, percebesse que para ter o aval de uma liberalidade, o processo parte da divisão de pessoal, como outras circulares demonstraram, ao superintendente, que segue à Divisão administrativa no Rio de Janeiro, que volta a estrada, chegando às chefias administrativas da Estrada. Outra circular demonstra o quanto esse mecanismo era seletivo, pois faz questão de mostrar isso. Quando se refere à concessão de licença prêmio para um funcionário, diz que “Essa concessão, contudo, é feita a título excepcional e não constituí precedente nem direito de outros funcionários solicitarem igual favor, conforme determinou a carta P/DA-107-59, que nos comunicou a referida decisão”.16 Nesse caso, se trata

844

da

transcrição que o superintendente recebeu da divisão administrativa e repassou para o CHS. Um documento é importante pare entendermos as liberalidades. Trata-se de uma resposta da superintendência à Junta de Conciliação e Julgamento à uma notificação que a empresa recebeu. No caso, um empregado entrou com recurso sobre a questão de uma gratificação, dizendo que seu pagamento “É um favor da empresa e não constitui nenhum direito e o seu pedido não foi ainda apreciado”. 17 Isso demonstra que eram benefícios adicionais as leis do trabalho, criados pela empresa para estimular a ação individual, não sendo uma das CLT, mas algo específico a CVRD, criado internamente para seus funcionários, considerados como favores aos trabalhadores

Rompendo solidariedade: Licença prêmio, punição dos grevistas de 1948 e gratificações semestrais. No final do ano de 1960, o superintendente envia às chefias uma nova portaria, feita para regulamentar a concessão e licença – prêmio. Nessa portaria, o superintendente diz que esse benefício teve início em 1952, através de deliberação da diretoria, em junho do mesmo. O benefício atingiu os trabalhadores, funcionários desde 1942, quando a empresa CVRD foi constituída. O trabalhador, após dez anos de serviço, teria direito a 90 dias de licença, ganhos em descanso ou em espécie, isso dado por julgamento da empresa. Nem todos os funcionários recebiam o direito de escolher, na verdade, aqueles que tinham direito a opção eram poucos. Em primeiro plano, na documentação, a greve como primeiro motivo do não recebimento do benefício, seguido de licenças particulares, faltas de serviços, suspensões e ainda o adendo de que licenças médicas podiam influenciar na obtenção do mesmo. Esse era o padrão das circulares. Por fim, mesmo quando fizesse jus ao benefício, seria sem opção pelo recebimento em espécie. Relacionado ao movimento paredista, outras fontes nos mostram um fato importante, no caso, que confirmam o escopo da empresa e o sucesso de sua ação: funcionários negaram sua participação na greve, na tentativa de retirar de suas fichas funcionais as faltas referentes a ela. Na circular do livro da correspondência, a PE 74.5

845

LP B 703, do dia 29 de abril de 1959, o chefe da divisão de pessoal comunica ao Chefe de Mecânica sobre a solicitação de um funcionário pela a licença prêmio. Nela, diz que o funcionário, tendo “canceladas as faltas decorrentes da greve de 1948 (...) passou a fazer jus a licença prêmio com o direito a opção”. No caso, o funcionário entrou com um pedido para retirar esses dias marcados em sua ficha funcional, o que o habilitou a receber o benefício com direito a opção, ou seja, sem nenhuma perda do benefício. Negou sua participação no movimento paredista e teve um ganho com isso. Os trabalhadores precisavam apresentar provas de que não participou da greve, pois “Para cancelar esse período de faltas, serão necessárias provas substanciais ao contrário do que está anotado e consta no nosso arquivo os envelopes do pagamento daquela época são elementos fortes de boa prova para esse efeito desejado”.

18

Devia

também, contar com o aval de seus superiores para provar que não participou da greve, para contrariar as provas das folhas de pagamentos da época. “O cancelamento dessas faltas somente poderia ocorrer se essa divisão, pelos seus órgãos competentes aos quais estava subordinado o interessado, atestasse que o mesmo não teria participado do movimento grevista e receberam posteriormente os dias que lhe foram cortados”. 19 Ou seja, a empresa, dez anos depois do movimento paredista, pesava punições aos participantes, retirando-lhes benefícios. Junto a esta, assim como outros mecanismos de coerção dos trabalhadores, estavam às gratificações, que funcionavam como incentivos seletivos a ação individual dos trabalhadores, um forte desestimulante para ação coletiva. Dando resposta a Junta de Conciliação e Julgamento de Vitória, o superintendente explica que “(...) a gratificação especial tem sido concedida de 1955 a 1959, isto é, no primeiro e segundo semestre, ato de liberalidade da companhia, que adota como é de seu arbítrio, normas para concessão (...)”.

20

Tratava-se de uma

resposta feita sobre a questão de um trabalhador à JCJ, que trouxe essa explicação breve de quando começou a ser concedida e sob quais regras. Estas eram estabelecidas pela empresa, através de incentivos econômicos aos trabalhadores, que receberiam um valor de gratificação a cada semestre, sem vinculação com a CLT. Isso pode ser notado através da quantidade de reclamações feitas por funcionários à justiça externa, na Junta de Conciliação e Julgamento. Esta enviou uma grande quantidade de ofícios pedindo

846

esclarecimentos sobre o pagamento das gratificações semestrais, na verdade, pelo não pagamento reclamado por muito de seus trabalhadores. Em circular da superintendência, a SP 71.24 C 1.024 de 1 de março de 1960, o superintendente pede esclarecimentos ao CHS sobre o caso de um funcionário que reclamou gratificações a JCJ. Esse documento se soma as diversas reclamações de funcionários, que pediam esclarecimentos a empresa sobre o porquê do não pagamento e como estavam sendo feito as análises dos casos dos reclamantes. Em várias respostas, a empresa responde que a gratificação semestral “Tratava-se, pois, de uma liberalidade da Cia. mantida enquanto não houve inconveniente”. 21 Em circular geral de dezembro de 1959, o presidente da empresa resolve fazer uma concessão aos empregados da empresa, pelos resultados atingidos no ano, essa foi a chamada gratificação especial. Após estudos feitos pelas Divisões Administrativa e financeira “(...) deliberou a Diretoria conceder a gratificação de dois meses de vencimentos integrais a todos seus empregados.” Esta foi expressa como uma deliberação de caráter excepcional, não “constituindo qualquer compromisso futuro da Companhia, uma vez que as “gratificações semestrais são concedidas, sempre, em caráter precário, e se a diretoria julgar que os resultados obtidos justificam a concessão desse favor”. 22 Nesse caso, a empresa amplia as gratificações a todos os trabalhadores, como um favor pelos resultados, fazendo isso, porém, já adiantando que não se trata de algo permanente, “não constituindo um compromisso futuro da empresa”. Admite também o caráter precário do atendimento das gratificações semestrais, e afirma que essas passam pela avaliação da diretoria, para o atendimento e concessão do favor.

Conclusão O primeiro momento da greve foi de agosto a setembro e o segundo e mais emblemático de 20 de novembro a 6 de dezembro de 1948. O que se encontrou para esse período foi uma menção constante à hierarquia da empresa, assim como a existência de um regime ferroviário que exigia um determinado tipo de disciplina por parte dos trabalhadores, e que deveria ser exigida destes por seus superiores. Acima das chefias imediatas e de serviços, a divisão de pessoal a Superintendência e a Divisão Administrativa estavam no topo da hierarquia, exercendo as liberalidades,

847

abaixo

apenas do presidente da empresa. O meio de controle dos trabalhadores era a ficha funcional, que registrava toda a vida do trabalhador dentro da Estrada. Entre liberalidades e hierarquia era onde se estruturava o campo de opções que os trabalhadores se defrontavam para obter ganhos na distribuição de recursos da empresa, caminho que levou a uma individualização das lutas internas da empresa e a vitória do maquinário empresarial de coerção coletiva dos trabalhadores. Notas 1

Mestrando pelo programa de pós-graduação em História (PPGHIS) UFES e bolsista Capes, sob orientação de Luiz Cláudio Moisés Ribeiro e co-orientação de André Ricardo Valle Vasco Pereira. Email: [email protected]. 2 CARDOSO, Ciro Flamarion. Narrativa, Sentido e História. São Paulo: Papirus, 1986. 3

PEREIRA, André Ricardo Valle Vasco. Conflito de discursos na greve de 1948 na companhia Vale do Rio Doce. IN: CAMPOS, A. P.; VIANNA, K. S. S; MOTTA, K. S. da; LAGO, R. D. (Org.). Memórias, traumas e rupturas. Vitória: LHPL/UFES, 2013, p. 1-15. 4 OLSON, Mancur. A lógica da ação coletiva. São Paulo: Edusp, 1999. 5

Circular do tráfego, SP 70.0 D 528, 30 de julho de 1959. Circular do tráfego, SP 30.60 D 463, 21 de julho de 1959. 7 Circular do tráfego, SP 30.60 D 139, de 2 de fevereiro de 1959. 8 Circular do tráfego, SP 71.2 D 357, 13 de julho de 1959. 9 Circular do tráfego, SP 71.21 B 411, 7 de março de 1960. 10 Circular do tráfego, SP 32.90 D 2.640, 31 de outubro de 1960. 11 Circular do tráfego, PE 71.21 A 896, 24 de novembro de 1959. 12 Circular do tráfego, SP 71.21, de 7 de julho de 1959. 13 Circular do tráfego, SP 71.21 B 1.122, 30 de maio de 1959, 14 Circular do tráfego, PE 74. 7 C 349, 3 de março de 1959. 15 Circular do tráfego, SP 74.7 C 1 321, 11 de abril de 1959. 16 Circular do tráfego, SP 74.5 C 3. 654, 26 de outubro de 1959. 17 Circular do tráfego, SP 74.6 C 67, 7 de janeiro de 1960. 18 Circular do tráfego, PE 74.5 LP D 1.055, 3 de agosto de 1959. 19 Circular do tráfego, PE 74.5 D 1.054, de 3 de agosto de 1959. 6

20

Circular do tráfego, SP 71.24 C 996, 14 de março de 1960. Circular do tráfego, SP 71.24 C 1.138, 26 de março de 1960. 22 Circular do tráfego, SP 75.01 D 857, 9 de dezembro de 1959. 21

848

CIDADANIA E TRABALHO NO LITORAL DA CORTE: CONTROLE E RESISTÊNCIA NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XIX Edilson Nunes dos Santos Júnior*

Resumo: Apresentaremos nesta comunicação uma reflexão sobre o papel das instituições municipais e imperiais no exercício da cidadania e na regulação dos espaços de trabalho, a partir da associação entre proprietários de faluas da Praia de D. Manoel, no litoral da Corte, e sua relação com a Câmara Municipal na primeira metade do Oitocentos (1835-1845). Refletiremos como a “plebe” constrói identidades de classe a partir de um processo contínuo no qual interesses opostos e divergências de demandas são instrumentos fundamentais na formação de identidades coletivas, na reivindicação de direitos e no exercício da cidadania. Palavras-chave: Falueiros; Câmara Municipal; Litoral da Corte.

Abstract: We will present at this communication a reflects on the role of municipal and Imperial institutions in the exercise of citizenship and in regulating the workspaces from the association between owners of faluas of the Plaia de D. Manoel, on the seashore of the city of Rio de Janeiro and its relationship with the City Council in the first half of the nineteenth century (1835-1845). We will reflect how the "Plebs" has constructed class identities from a continuous process in which opposing interests and differences of demands were fundamental instruments in the formation of collective identities, in the claim of rights in the exercise of citizenship. Keywords: Falueiros; City Council; Seashore of Rio de Janeiro.

“Aquilo que é ineficaz para parar uma linha de desenvolvimento não é, por isto mesmo, totalmente ineficaz. O ritmo da mudança muitas vezes não é menos importante do que a direção da própria mudança; mas enquanto essa última frequentemente não depende da nossa vontade, é justamente o ritmo no qual permitimos que a mudança ocorra que pode depender de nós.” Karl Polanyi i

Introdução Na década de 1940, Polanyi vislumbrou um mundo em transformação. Percebeu como a lógica capitalista vinha se espraiando desde a época moderna para quase todos os pontos do

849

planeta, desconstruindo as formas tradicionais de relações econômicas. Entendeu, também, que os movimentos contra-hegemônicos, mesmo quando aparentemente parecem não ser bemsucedidos, podem influenciar o processo de transformação econômica, política e social a favor dos mais pobres.ii Alguns anos mais tarde, Edward Palmer Thompson também analisou os movimentos de contestação dos mais pobres. Seguindo um raciocínio semelhante, analisou como, através de magias, festas, cartas, protestos, a “plebe” construiu uma identidade enquanto classe, se fazendo em um processo contínuo no qual interesses opostos e divergências de demandas são instrumentos fundamentais na formação de identidades coletivas.iii Nos guiando por essas premissas, buscaremos nesta comunicação identificar essas transformações no cenário do litoral da Corte na primeira metade do século XIX, entre os anos 1835 e 1845, a partir das reivindicações dos Falueiros da Praia de D. Manoel. O período proposto tem como objetivo delimitar um recorte temporal entre a inauguração oficial do transporte de barcos a vapor entre as cidades do Rio de Janeiro e Niterói e a criação, em 1845, das Capitanias dos Portos das províncias pelo Governo Imperial, ato inserido em um processo no qual a relação do poder central com as províncias e os municípios vinha se modificando. Os autores citados nos ajudarão a refletir sobre como essas personagens vinham se inserindo em um cenário no qual as práticas econômicas se transformavam rapidamente. O tempo em que as motivações para tais práticas se restringiam à subsistência ou às questões puramente tradicionais já era distante e construir novas formas ou encontrar novos locais de reivindicação de direitos se faziam prementes para aqueles atores. Neste sentido, as instituições municipais e imperiais têm representado um vigoroso viés de pesquisa sobre o mundo do trabalho e as formas de controle e regulação das formas de trabalhoiv. Dessa maneira, tentaremos lançar uma luz sobre a relação daqueles proprietários com a Câmara Municipal do Rio de Janeiro a partir dessa perspectiva, através das solicitações daqueles falueiros junto à autoridade municipal nas quais buscavam impedir a usurpação do que acreditavam ser os seus direitos, assim como a utilização das posturas e leis que deveriam exercer o controle sobre o tecido social e suas atividades econômicas como instrumentos de resistência dos mais pobres.

Os Falueiros, a Câmara Municipal e a resistência às posturas municipais

A Câmara Municipal era, até 1845, a principal instituição de controle, organização e fiscalização das embarcações que atuavam no litoral da Corte, além das muitas

850

outras

atribuições, principalmente no que concerne ao ordenamento urbano. Então, recorrer à instituição camarária era uma rotina para aqueles que se sentiam prejudicados de alguma forma nas suas atividades econômicas, sociais ou religiosas. Quitandeiros, caixeiros, donos de botequins, farmacêuticos, trabalhadores ao ganho, religiosos, enfim, todos aqueles que se estabeleciam economicamente na cidade podiam recorrer à Câmara Municipal para buscar o que achavam ser de direito ou exigir o que achavam ser os deveres da instituição.v Desde o Código de Posturas de 1830, a Câmara já buscava regular e controlar o cotidiano da cidade e a rotina dos seus moradores. Os serviços realizados na no litoral da cidade também não fugiram a essa rotina, principalmente pela importância que representavam na economia da Corte e da província. O tráfego marítimo na baía foi intenso e crescente desde, pelo menos, o final do século XVIII, principalmente com o aumento dos negócios entre a então sede do Vice-Reinado e os comerciantes do outro lado da baía.vi Fazer essa ligação, deslizar pelas águas da Guanabara todos os dias, meses e anos, fez parte do cotidiano dos moradores do Município Autônomo e das vilas do Recôncavo. Em 1835 foi inaugurado oficialmente o transporte de barcos a vapor entre as cidades do Rio de Janeiro e Niterói.vii Toda a margem da baía de Guanabara e, principalmente, da cidade do Rio de Janeiro, era ligada pelo transporte marítimo. Os portos escoavam toda a produção oriunda do Recôncavo e das Minas Gerais, sendo responsáveis pela maior parte do abastecimento da cidade do Rio de Janeiro e pelos produtos exportados através dos seus pontos de atracação. Não é de se espantar, portanto, que pudessem surgir os mais diversos conflitos entre proprietários dos mais diferentes tipos de embarcações que circulavam pelas águas da baía e que estavam envolvidos em algum tipo de atividade econômica, fosse de frete ou de transporte de passageiros. Foi a partir dos anos 1830 que se verificou uma maior quantidade de solicitações às instituições municipais e imperiais, reivindicando direitos presumidamente adquiridos, a despeito das disposições legais. Os proprietários de faluas da praia de D. Manoel solicitaram, em março de 1842, licença para “que eles na qualidade de Falueiros da Praia de Dom Manoel possam arramparem o desembarque e embarque tendo limpa a Praia, e que possam encalhar as suas Falúas para limpar e pintá-las unicamente aquele tempo que para aquele fim for precisar. Imos. Srs. parece justa a pretensão dos abaixo assinados e revertendo-a em benefício do Público lhe esperam o justo deferimento.”viii

O Código de Posturas de 1830, na Sessão Segunda, no terceiro parágrafo do Título Terceiro, estipulava que: “Toda pessoa, que sem licença da Câmara Municipal depositar nas ruas da Cidade, suas Praças, Cais, e outros lugares públicos do seu Termo, qualquer objeto, que embarace o

851

livre trânsito dos Cidadãos, incorrerá na pena de 6$000 réis de condenação pela primeira vez, e nas reincidências na de 12$ a 30$000 réis, e na de 8 a 15 dias de prisão na cadeia, concorrendo circunstâncias agravantes, e pagará além disto a despesa, que se fizer na remoção desses mesmos objetos para o lugar, e pela forma, que pelo competente Fiscal for designada.”ix

Os sete falueiros que assinaram o requerimento tiveram seu pedido deferido pelo fiscal da freguesia de São José, Hygino José Nunes Carneiro, que atestou os bons serviços que aqueles proprietários prestavam ao público, além da boa conservação e limpeza que faziam do lugar, frisando que o serviço “se torna não só útil ao público, e aos mesmos falueiros, como proveitoso a esta Ilma. Câmara, por isso julgo que merecessem toda a contemplação, visto que nenhuma despesa se faz com aquele serviço”.x É importante frisar que a arrecadação de impostos para a Câmara Municipal era um dos principais meios de auferir renda para essa instituição. De acordo com Souza, quando os comerciantes recorriam à instituição camarária, faziam questão de: “[...] destacar entre seus méritos o pagamento dos tributos exigidos ao Estado, na expectativa de que a municipalidade reconhecesse que eles cumpriam com suas obrigações enquanto governados. Reforçar este ponto era conveniente porque diante da crônica e publicamente conhecida falta de recursos da instituição camarária, eles procuravam ressaltar a importância dos impostos pagos pelo corpo de comerciantes para a arrecadação municipal.”xi

Portanto, o fiscal da freguesia entendeu que, uma vez que estavam quites com seus impostos, os falueiros deveriam permanecer com seus negócios e que fosse concedida a licença pretendida, pois seria bom para todos, mas principalmente “proveitoso a esta Ilma. Câmara”. Entretanto, uma nota marginal no documento pedia que o engenheiro da Marinha fosse informado. Este, porém, em seu despacho, mostrou opinião diferente e desaconselhou o deferimento da licença, pelos seguintes motivos: “A pretensão de que trata o requerimento junto, dos Falueiros da Praia de D. Manoel, me parece bem merecer um indeferido. Esta Ilma. Câmara, indo (não há muito tempo) àquela praia, reconheceu a necessidade de continuar-se a aterrar até a direção do Cais denominado Farroux: de continuar a Rua Fresca até o Largo do Moura, sendo para isto preciso demolir-se um pequeno prédio: Ora os Suplicantes querem arrampar, e conservar limpo aquele lugar, que em outros termos quer dizer: não deixaremos mais entulhar senão o que nos fizer conta, e vamos adquirindo direitos, para depois gritarmos (como é costume) quando nisto se quiser bolir. É isto o que não convém, e porque estou convencido de que esta Ilma. Câmara tendo reconhecido a necessidade acima, quererá efetuar este plano, para isto me parece ser bem indeferido o presente requerimento. Deus Guarde V. Sas.”xii

Para terem seus pedidos atendidos, esses proprietários se utilizaram dos mesmos expedientes de subordinação que os comerciantes de gêneros alimentícios estudados por Juliana Teixeira de Souza em sua tese de doutorado. Segundo a pesquisadora, em um estudo de fôlego a respeito da relação da Câmara Municipal com os comerciantes de gêneros alimentícios e sua capacidade de intervenção neste tipo de comércio, fazia-se necessário, nas solicitações junto à

852

Câmara Municipal e a qualquer Secretaria de Negócios do Império reafirmar os códigos de dominação paternalista daquela sociedade. Se referindo ao requerimento da Companhia Industrial Fluminense, responsável pela instalação de quiosques pela cidade, mesmo quando a solicitação se tratava de, no caso, questões ligadas ao comércio e ao direito de propriedade – questões estas pertinentes ao mundo do capitalismo – o gerente da companhia utilizou a forma padrão de encerramento das solicitações à autoridade municipal, o recorrente “Espera Receber Mercê”. Assim, a autora argumenta que: “Mantinha-se o velho modelo, tão usado no Antigo Regime em pedidos para concessão de títulos honoríficos, para provimento em cargo oficial e remissão de culpa, mas atendendo a outros propósitos, prevalecendo a busca por privilégios que possibilitassem a obtenção de lucros e a acumulação de capital. A política de dominação paternalista exercida pela vereança exigia a repetição desses rituais de subordinação àqueles que encaminhassem suas reivindicações à Câmara.”xiii

Para Souza, embora em um período pouco mais extenso ao aqui recortado, mas que serve à nossa reflexão, havia uma necessidade que ia além da submissão com o objetivo de reivindicar direitos costumeiros. Para a autora, eles estavam agindo dentro da lógica do mercado e do lucro, a partir de práticas econômicas que estavam a cada dia mais se expandindo e consolidando nas bordas do Atlântico. A autora identifica o período – 1840 a 1889 – como um momento de transformação das relações sociais, políticas e econômicas, que permite a essas personagens acionar diferentes instrumentos através de lógicas diversas na luta diária pelo exercício da cidadania e por espaços de trabalho. O pedido dos Falueiros da Praia de D. Manoel, assim como os despachos do fiscal da freguesia de São José e do engenheiro da Marinha levantam algumas reflexões importantes. Da perspectiva dos Falueiros, o reconhecimento da instituição camarária como um local de garantia de direitos costumeiros contra um movimento que já vinha se delineando, qual seja a transformação tanto da cidade, quanto das práticas econômicas naquela sociedade, assim como dos novos agentes econômicos que se instalavam no meio marítimo. Do lado institucional, a verificação de que a intervenção da autoridade municipal não significava a proteção das classes empobrecidas ou menos favorecidas economicamente, mas a garantia de interesses que muitas vezes colidiam com os da população.

Polanyi e Thompson: um mundo de usos costumeiros em transformação

Como afirmamos acima, mudanças estavam ocorrendo nesse mundo. Essas personagens recorriam a ferramentas características de Antigo Regimexiv, o que inclui dizer que se fundamentavam em uma relação mercantilista com o Estado, no qual este, para resguardar

853

os mercados àquela época, era responsável pela total regulação da vida econômica xv. No entanto, subjacente a essa lógica moderna, os falueiros utilizaram, no que concerne à garantia de obtenção de lucro, ferramentas da lógica capitalista. De acordo com Polanyi, as motivações se transformam e os membros da sociedade já não se pautam pelo desejo de subsistência, mas pela geração de lucro e a consequente obtenção de renda: “Todas as transações se transformam em transações monetárias e estas, por sua vez, exigem que seja introduzido um meio de intercâmbio em cada articulação da vida industrial. Todas as rendas devem derivar da venda de alguma coisa e, qualquer que seja a verdadeira fonte de renda de uma pessoa, ela deve ser vista como resultante de uma venda.”xvi

A partir dessa perspectiva percebemos a lógica que perpassa os requerimentos dos proprietários de embarcações na cidade do Rio de Janeiro no período proposto. Essas pessoas atuavam em uma atividade que era muito concorrida e lucrativa diante da importância do transporte marítimo para a economia da região. Com a Revolução Industrial, uma nova crença nascia, baseada na certeza de que “todos os problemas humanos poderiam ser resolvidos com uma quantidade ilimitada de bens materiais”

xvii

. De acordo com Polanyi, o sucesso da

Revolução Industrial e de suas consequências não se resumem a uma causa ou em uma série catalogável de causas. O autor afirma que o estabelecimento da economia de mercado foi primordial para a transformação das práticas econômicas. A importância do “mercado” também não passou despercebida por Thompson quando refletiu sobre a teoria de auto regulação do mercado de cereais proposto por Adam Smith. Segundo o autor, Smith acreditava que “a operação natural da oferta e demanda no mercado livre maximizaria a satisfação de todos os grupos e estabeleceria o bem comum. O mercado nunca era mais bem regulado de que quando deixavam que se regulasse por si mesmo.”xviii Entretanto, para Thompson, o discurso liberal smithiano era vazio de comprovação real, não havendo como estabelecer provas que preços altos são formas eficazes de regular a produção. Afirma, ainda, que a ausência de regulação do Estado na economia impressiona “menos como um ensaio de investigação empírica do que um excelente ensaio de lógica que se autovalida.”xix Mesmo acreditando que a razão esteja do lado do historiador inglês, é fato que a ideologia liberal do mercado auto regulável se tornou hegemônica e assim a detalha Polanyi da forma como a verificamos hoje e como acreditamos que começavam a perceber os proprietários de falúas da praia de D. Manoel: “Uma economia de mercado é um sistema econômico controlado, regulado e dirigido apenas por mercados; a ordem na produção e distribuição dos bens é confiada a esse mecanismo auto-regulável. Uma economia desse tipo se origina da expectativa de que os seres humanos se comportem de maneira tal a atingir o máximo de ganhos monetários. [...] A auto-regulação significa que toda a produção é para venda no mercado, e que todos os rendimentos derivam de tais vendas.”xx

854

O autor segue demonstrando que em uma economia de mercado a política de Estado se resume a estar completamente ausente das transações econômicas, aonde os rendimentos não devem se realizar, senão somente através de relações de compra e venda. Assim como todos os tipos de mercadorias devem estar disponíveis, não deve haver nenhum tipo de interferência na regulação de preços de tais mercadorias, e “só terão validades as políticas e as medidas que ajudem a assegurar a autorregulação, criando condições para fazer do mercado o único poder organizador na esfera econômica”.xxi Faz-se necessário que para o pleno desenvolvimento de tal tipo de economia, é preciso que a mesma esteja inserida em uma sociedade de mercado. Isso significa dizer que todos os componentes sociais, incluindo os seres humanos e a natureza, representados em Polanyi pelo trabalho e a terra, devem estar submetidos ao processo produtivo.xxii Dessa maneira, é perceptível, então, que os proprietários de embarcações, assim como os comerciantes de gêneros alimentícios citados anteriormente, pareciam estar se adaptando a uma nova forma de se relacionar economicamente, recorrendo ao governo para, além de resguardar seus direitos costumeiros, garantir os recursos que os permitiam auferir lucro de suas atividades. Como assegura Polanyi, apesar das “mercadorias fictícias” – trabalho, terra e dinheiro serem essenciais para economia de mercado, uma sociedade não suportaria por um longo tempo tal sistema baseado em ficções, sem algum tipo de proteção.xxiii Dessarte, o autor também nos lembra que ao contrário do que se fez acreditar por muito tempo, a economia de mercado não foi o caminho inevitável seguido pelo homem moderno e nem uma forma de organização econômica trazida de outras sociedades. Para Thompson, investigando o mercado de cereais na Inglaterra setecentista, o que é visto como inevitável hoje, não era aceito facilmente pelos pobres e paternalistas. Para eles, “[...] o mercado deveria ser, na medida do possível, direto, do agricultor para o consumidor. [...] não deviam vendê-lo enquanto ainda estivesse no campo, nem deviam retê-lo na esperança da elevação dos preços. Os mercados deviam ser controlados; [...] os pobres deviam ter a oportunidade de comprar primeiro os grãos, a farinha fina ou farinha grossa, em pequenas porções, com pesos devidamente supervisionados.”xxiv

Antes da introdução das “máquinas complicadas” nas sociedades comerciais, Polanyi assevera que as motivações econômicas passavam por questões individuais, por “princípios gerais de comportamento”, nos quais “os costumes e a lei, a magia e a religião cooperavam para induzir o indivíduo a cumprir as regras de comportamento, as quais, eventualmente, garantiam o seu funcionamento no sistema econômico”.xxv Esses “princípios gerais de comportamento” foram identificados por Thompson, na Inglaterra do século XVIII, como embrião da consciência de classe inglesa no século seguinte. Segundo o autor, esses costumes operam de forma a legitimar a ação coletiva da plebe, esta

855

fundamentada na crença da defesa de direitos e costumes tradicionais e em “uma visão consistente tradicional das normas e obrigações sociais, das funções econômicas peculiares a vários grupos na comunidade”xxvi, resumindo-se aí em uma “economia moral dos pobres”. Essa expressão é importante aqui, pois os Falueiros da Praia de D. Manoel estavam inseridos sim, em um mundo em transformação, a cada dia mais regido pela lógica do capital, mas apesar disso, agiam através de comportamentos pautados por noções tradicionais de direitos costumeiros. Suplicar à autoridade municipal que observe os bons serviços prestados à comunidade remete à ideia do costume do uso do lugar e da atuação em determinada atividade econômica, ao mesmo tempo que reconhece na Câmara Municipal um agente interventor, que protege e garante as normas tradicionais daquela comunidade. Os proprietários das embarcações não negavam que novas formas de relações econômicas estavam sendo introduzidas, uma vez que estavam inseridos nelas. Porém, acionavam a instituição camarária para que resguardasse seus direitos costumeiros, inclusive como forma de assegurar a geração de renda, a obtenção de lucro. Em uma sociedade paternalista, como a brasileira de então, recorrer aos antigos modelos aliado às novas práticas econômicas significa dizer que há um reconhecimento das mudanças que ocorriam no seio da sociedade. De acordo com Thompson, pensando a cultura tradicional e popular: “A cultura conservadora da plebe quase sempre resiste, em nome do costume, às racionalizações e inovações da economia [...]. A inovação é mais evidente na camada superior da sociedade, mas como ela não é um processo tecnológico/social neutro e sem normas (“modernização”, “racionalização”), mas sim a inovação do processo capitalista, é quase sempre experimentada pela plebe como uma exploração, a expropriação de direitos de uso costumeiros, ou a destruição violenta de padrões valorizados de trabalho e lazer.”xxvii

Tais inovações e sua importância na expansão econômica podem ser vistas com bastante clareza no desenvolvimento dos transportes. Segundo Marcos Guedes Vaz Sampaio, a inovação tecnológica no setor de transportes permitiu não só incrementar as atividades econômicas, mas modificar mesmo o cotidiano das relações que pautavam essas atividades.xxviii E estas modificações perpassam todas as classes, como demonstramos acima, sendo possível coadunar com Thompson no sentido de que os Falueiros da Praia de D. Manoel resistiam, pois também sua cultura, a despeito de estar operando sob a égide do capital, ainda guardava traços conservadores que enxergavam nas inovações capitalistas a usurpação dos seus direitos costumeiros. Considerações finais É importante destacar o reconhecimento, pelo poder público, de uma estratégia de defesa dos espaços de trabalho. A ocupação das praias e seu uso como instrumento de trabalho,

856

bem como do entendimento das posturas municipais como ferramenta de defesa dos seus direitos, funcionou de maneira eficaz para os trabalhadores marítimos da cidade do Rio de Janeiro. É possível perceber como os trabalhadores oitocentista da Corte defendiam e reivindicavam direitos e deveres do Estado imperial e, assim, procediam ao exercício da cidadania dentro das práticas coevas. Assim sendo, é crível afirmar que a Câmara Municipal do Rio de Janeiro funcionava como um órgão de regulação das formas de trabalho marítimo no litoral da Corte, além das suas atribuições de regulação e controle do cotidiano da cidade. Funcionava, também, como cenário de uma relação de dominação e resistência, aonde dominadores e dominados reconstruíam seus papeis, em uma sociedade em construção. Pudemos verificar, também, de que maneira os falueiros da Praia de D. Manoel acionavam a Câmara Municipal com o fim de resguardar direitos que consideravam adquiridos, mesmo o Código de Posturas da cidade determinando restrições e punições às infrações dos moradores. Verificamos, outrossim, como essas personagens agiam a partir de noções de costumes e tradições estabelecidos, porém com objetivos decorrentes de uma nova lógica econômica que se expandia e consolidava em um mundo em transformação. Buscamos demonstrar que aqueles proprietários percebiam que estavam se adaptando a uma sociedade de mercado na qual as relações econômicas resumem-se na compra e venda de mercadorias e, ao fim ao cabo, na obtenção do lucro e da renda que se estendem às instâncias políticas, sociais e culturais da sociedade. Sabemos que todos os tempos são tempos de transformação, mas o século XIX foi especialmente rico em mudanças. No que nos concerne, o acesso à cidadania e aos direitos civis foi, muitas vezes, obstruído por construções políticas que visavam manter o status quo. Porém, verificamos que quando certos de estarem diante de práticas consideradas ilegítimas, aquelas personagens não hesitaram em acionar as instituições e os instrumentos disponíveis para valerem seus direitos e, a seu modo, influenciarem o ritmo das mudanças em curso. *

Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, tendo como orientadora a Profª. Dra. Gladys Sabina Ribeiro. Esta pesquisa conta com o apoio do CNPq. E-mail: [email protected]. i POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens de nossa época. Tradução de Fanny Wrabel. 2ª ed. Rio de Janeiro: Campus, 2000. p. 55. ii Idem. p. 49-137. iii Thompson investigou a formação da classe trabalhadora inglesa, bem como as leis consuetudinárias e sua utilização pela “plebe”, a partir das experiências deles na defesa do mercado comum da compra e venda de pão e no acesso às florestas durante o século XVIII. THOMPSON, E. P. Costumes em Comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. Revisão técnica: Antonio Negro, Cristina Meneguello, Paulo Fontes. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1998, p. 19. Ver também: THOMPSON, E. P. Senhores e caçadores: a origem da lei negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997; As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas: Universidade

857

Estadual de Campinas, 2001; A Formação da Classe Operária Inglesa: II. A Maldição de Adão. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001. iv Para “as reflexões sobre as experiências de resistência e luta dos trabalhadores urbanos no Oitocentos”, a partir da documentação da administração municipal, ver Revista Mundos do Trabalho, vol. 5, n° 9, janeiro-junho de 2013; SOUZA, Juliana Teixeira. A autoridade municipal na Corte imperial: enfrentamentos e negociações na regulação do comércio de gêneros (1840-1889). Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 2007. Disponível em: http://www.bibliotecadigital. unicamp.br/document/?code=vtls000418331. Acessado em: 17/09/2014; POPINIGIS, Fabiane. Proletários de casaca: trabalhadores no comércio (Rio de Janeiro, 1850-1920). Campinas: Editora da UNICAMP, 2007; TERRA, Paulo Cruz. Cidadania e trabalhadores: cocheiros e carroceiros no Rio de Janeiro (1870-1906). Rio de Janeiro: Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, 2013. v SOUZA, Juliana Teixeira. op. cit. pp. 168-193. vi NORONHA SANTOS, F. A. Meios de transporte no Rio de Janeiro: história e legislação. V. II. Rio de Janeiro. Typographia do Jornal do Commércio, 1934. p. 213. vii SOUSA, José Antônio Soares de. Da Vila Real da Praia Grande à Imperial Cidade de Niterói. Niterói, RJ. Fundação Niteroiense de Arte, 1993. pp. 111-119. viii Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (AGCRJ). Série Embarcações: Vários documentos acerca do tráfego, pesca e venda de mercadorias – 1813-1903. Códice 57.3.11. ix AGCRJ. Código de Posturas da Ilustríssima Câmara Municipal do Rio de Janeiro e Editais da mesma Câmara, 1830. x Grifo nosso. AGCRJ. Série Embarcações: Vários documentos acerca do tráfego, pesca e venda de mercadorias – 1813-1903. Códice 57.3.11. xi SOUZA, Juliana Teixeira. op. cit. pp. 171-172. xii Grifo nosso. AGCRJ. Série Embarcações: Vários documentos acerca do tráfego, pesca e venda de mercadorias – 1813-1903. Códice 57.3.11. xiii SOUZA, Juliana Teixeira. op. cit. p. 184. xiv Idem. p. 173. xv POLANYI, Karl. op. cit. p. 87. xvi Idem. p. 60. xvii Idem. p. 58. xviii THOMPSON, E. P. op. cit. p. 161. xix Idem. p. 162. xx POLANYI, Karl. op. cit. p. 90. xxi Idem. p. 91. xxii Idem. p. 93. xxiii Idem. p. 95. xxiv THOMPSON, E. P. op. cit. p. 156. xxv POLANYI, Karl. op. cit. p. 75. xxvi THOMPSON, E. P. op. cit. p. 152. xxvii Idem. p. 19. xxviii SAMPAIO, Marcos Guedes Vaz. Uma Contribuição à História dos Transportes no Brasil: a Companhia Bahiana de Navegação a Vapor (1839-1894). Tese (Doutorado) Universidade de São Paulo, USP, São Paulo, 2006. p. 33.

858

Administração da justiça nas Minas oitocentistas: da transgressão a aspectos do viver cotidiano Edneila Chaves1

Resumo O artigo trata da temática da administração da justiça com enfoque para dois aspectos: o caráter de sua aplicação e a dinâmica social evidenciada nos conflitos criminalizados. O estudo tem como referência a sociedade de Rio Pardo, na província de Minas Gerais, período de 1833-1872. Seu espaço sertanejo era visto como espaço de desordem, mas não sem lei. A aplicação das leis era defendida por autoridades locais, para uma eficaz administração da justiça. A transgressão das normas, entretanto, evidenciava a dinâmica própria do viver naquela sociedade. Palavras-chave: administração da justiça – ações criminais – Minas Gerais (século XIX)

The administration of the justice in the nineteenth century Minas: the transgression and the aspects of the daily life Abstract The article analyses the administration of the justice theme, focusing on two aspects: the character of your application and the social dynamics evidenced in criminalized conflicts. The study has as reference the Rio Pardo society, in the province of Minas Gerais, in the 1833-1872 period. Its sertanejo space was seen as disorder of space, but not lawless. The application of the laws was defended by local authorities for an effective administration of the justice. The transgression of the rules instituted, however, showed the dynamics of the daily life in that society. Key words: administration of the justice – criminal actions – Minas Gerais ( nineteenthcentury)

Introdução Apresenta-se aqui uma investigação sobre o tema da administração da justiça, em análise para a sociedade de Rio Pardo, para o período de 1833-1872, cujo território se situava na região Norte da província de Minas Gerais. Em âmbito da administração da justiça, em Rio Pardo estavam instalados os setores da justiça criminal e cível. A estrutura da administração

859

desses setores de primeira instância foi estabelecida pelo Código do Processo em 1832 e modificada pela sua Reforma em 1841, consoante reformas descentralizadoras e centralizadoras, respectivamente. Nas províncias, a administração judiciária estava estruturada em comarcas, termos de vilas e distritos de paz. Em cada termo deveria haver juiz municipal, promotor público, conselho de jurados, escrivão das execuções e oficiais de justiça. Nos distritos de paz deveriam haver juiz de paz, escrivão, inspetores de quarteirão e oficiais de justiça.2 No termo da vila de Rio Pardo, na década de 1830, atuavam: um juiz municipal, cuja jurisdição abrangia a criminal, a cível e a policial; um juiz de órfãos de jurisdição cível; um promotor público; dois conselhos de jurados; e uma junta de paz. No que se referia aos distritos do termo, um juiz de paz. O cargo desse magistrado era eletivo e ele exercia funções nas esferas criminal, administrativa e eleitoral, conferindo-lhe amplo poder local. Nessa primeira estrutura de administração da justiça, estabelecida para o Império do Brasil em 1832 e que vigorou até 1841, os cargos previstos para termos de vilas constavam em Rio Pardo (FIG. 1). As alterações promovidas com a Reforma de 1841 visaram centralizar o sistema judicial e policial, esvaziando de poder as autoridades eletivas, os juízes de paz, em favor de autoridades nomeadas, os chefes de polícia e os delegados de polícia municipais.3 1º Conselho de Jurados (Júri de Acusação)

Juiz Municipal Promotor Público

Responsável pela jurisdição criminal, cível e policial

Junta de Paz 2º Conselho de Jurados (Júri de Sentença)

Juiz de Órfãos Responsável pela jurisdição cível

Termo

Escrivão das Execuções

Escrivão de Órfãos

Oficiais de Justiça

Juízes de Paz Responsável pela jurisdição criminal, cível e policial

Distritos

Oficiais de Justiça

Escrivães de Paz

Inspetores de Quarteirão

FIGURA 1 – Organograma da administração da justiça em Rio Pardo (1833-1841) Fonte: BRASIL. Lei de 29 de novembro de 1832 (Código do Processo Criminal de Primeira Instância); ATAS das sessões da câmara de Rio Pardo, 1833-1841. Acervo do AFCRPM (Arquivo do Fórum da Comarca de Rio Pardo de Minas).

860

Em nível municipal, com a centralização, o juiz municipal continuou exercendo jurisdição criminal, cível e policial, acrescentando ao seu cargo atribuições criminais e policiais, que competiam aos juízes de paz. Extinguiram-se a junta de paz, o 1º Conselho de Jurados e o cargo de promotor público. Foi restaurado o posto de delegado de polícia, responsável pela jurisdição criminal e policial. Na esfera dos distritos, os subdelegados de polícia tinham as mesmas atribuições do delegado (FIG. 2). No caso de Rio Pardo, verifica-se o estabelecimento da estrutura da administração da justiça prevista para os termos de vilas.4 Delegado de Polícia

Termo

Responsável pela jurisdição policial e criminal

2º Conselho de Jurados (Júri de Sentença)

Juiz Municipal e de Órfãos Responsável pela jurisdição criminal, cível e policial

Escrivão das Execuções

Subdelegados de Polícia

Distritos

Responsável pela jurisdição policial e criminal

Inspetores de Quarteirão

Escrivão de Órfãos

Juízes de Paz As jurisdições criminal e policial foram reduzidas

Escrivães de Paz

FIGURA 2 – Organograma da administração da justiça em Rio Pardo (1841-1872) Fonte: BRASIL. Lei de 3 de dezembro de 1841 (Reforma do Código do Processo Criminal); ATAS das sessões da câmara de Rio Pardo, 1841-1872. Acervo do AFCRPM.

1 Administração local da justiça: entre a prática e a idealização Nos termos de vilas, a principal instituição era a câmara municipal, responsável pela administração do termo. Em Rio Pardo no discurso dos vereadores, em interlocução com a 861

presidência da província, observa-se a defesa de ordenação, prevista na legislação vigente, para o espaço conhecido como sertão. A visão deles sobre seu espaço sertanejo corroborava com a visão de sertão como lugar de desordem, construída historicamente. 5 Eles primavam pelo cumprimento das leis e pela garantia de certo ordenamento social. De fato, lá a violência permeou as relações cotidianas. Havia, de um lado, um cotidiano marcado por comportamentos violentos, vistos como geradores de desordens; e, de outro, uma ação administrativa de direção contrária, com a intenção de contê-los.

862

Um dos meios indicados pelos vereadores para exercitar uma eficaz administração da justiça era contar com magistrados qualificados e comprometidos com o cumprimento das leis, com fins de não perpetuar “a imoralidade” naquele sertão.6 O espaço social era visto como um lugar onde havia males e desordem, os quais eram recorrentes, porque lá não existia uma eficiente administração da justiça. Foi o caso da atuação do juiz de Direito, José Gomes, da comarca do Jequitinhonha. Em 1838, os vereadores de Rio Pardo levaram ao conhecimento do presidente da província sobre a conduta desse juiz, que presidiu sessões do júri no termo. O magistrado cometera erros graves, cuja conduta no cargo estava “longe de fazer imperar a lei”. Na compreensão deles, caso a solicitação não fosse atendida, perpetuaria “a imoralidade” naquele sertão.7 A imoralidade do sertão e a falta de justiça, na avaliação dos vereadores, poderiam ser combatidas por homens que apresentassem as habilidades exigidas para o desempenho da função. Por isso, solicitou-se um juiz com competências à altura das “necessidades” do sertão, visto como o mundo onde predominava a violência e o imprevisível.8 A solução pontuada por eles era estabelecer uma prática administrativa ordenadora, que deveria imperar sobre a prática da imoralidade.9 Quanto ao exercício da administração da justiça no termo, é possível verificar na documentação judiciária produzida na época como os comportamentos considerados criminosos foram interpretados e julgados pelas diferentes instâncias e observar a atuação dos magistrados, criticada pelos vereadores. As primeiras instâncias nas quais os processos-crime tramitavam eram as do juiz de paz, durante a década de 1830, e as do delegado e subdelegado de polícia, depois de 1841. O processo poderia seguir para o juiz municipal e depois para o Tribunal do Júri ou somente para o juiz de Direito. Quando o processo era encaminhado ao júri, realizava-se um novo interrogatório ao acusado, absolvendo-o ou o condenando. Do total de 127 processos-crime consultados, em 78% deles constam as sentenças proferidas por instância na finalização dos mesmos: 17% se refere à absolvição, 45%, condenação, e 34%, despronúncia. Considerando que a despronúncia era sentença de absolvição, os grupos de réus absolvidos e de condenados equipararam-se, com índice considerável de absolvição e relativa impunidade dos crimes denunciados.10 Tratando-se das sentenças proferidas por instância, na do juiz de paz, na do delegado de polícia e na do juiz municipal predominaram a condenação; na do juiz de Direito, a absolvição; e na do Tribunal do Júri, a despronúncia (TAB. 1). Nesse sentido, as evidências confirmam a queixa dos vereadores em relação à atuação do juiz de Direito, por exemplo. A sentença de condenação foi mais freqüente nas primeiras instâncias e as de absolvição e de

863

despronúncia, ao contrário, nas duas últimas. Quando o processo se encontrava com o júri ou o juiz de Direito, o réu dispunha de outros meios para elaborar sua defesa, como a fiança e o recurso contra a condenação já sentenciada. De outro lado, foram as autoridades dos distritos, as próximas do local do delito, que mais condenaram. Assim, as decisões nas instâncias do júri e do juiz de Direito, em grande medida, divergiram do julgamento das outras instâncias. Em relação às decisões dos jurados, elas foram orientadas menos pela lei que pelo sistema de valores partilhado entre eles, os jurados, e os que se encontravam na condição de réus.

TABELA 1 Sentenças pronunciadas, por instância – Rio Pardo (1833-1870) SENTENÇA PRONUNCIADA INSTÂNCIA

Absolvição Condenação Despronúncia Outro Total N. Abs. N. % N. Abs N. % N. Abs N. % N. Abs N. % N. Abs N. %

Juiz de paz 2 22,22 6 66,67 1 11,11 9 100 Delegado 3 27,27 6 54,55 1 9,09 1 9,09 11 100 Subdelegado 4 100,0 4 100 Juiz municipal 4 19,05 9 42,86 6 28,57 2 9,52 21 100 Tribunal do Júri 6 12,50 16 33,33 25 52,09 1 2,08 48 100 Juiz de Direito 3 50,00 1 16,67 2 33,33 6 100 Total 18 18,18 42 42,43 35 35,35 4 4,04 99 100 Fonte: AFCRPM. Processos-crime – maços 1825-1837, 1838-1842, 1861, 1865-1866 e 1869-1871.

Tanto as normas legais como as normas advindas dos costumes sustentaram as noções de justiça dos homens que estavam à frente da administração desse setor. Certamente, as práticas norteadas por elas confrontavam-se, como é percebido nos discursos dos vereadores. É necessário questionar se a aplicação da norma legal defendida pelos vereadores não poderia ser desconsiderada quando interesses dessas mesmas autoridades ficassem comprometidos com sua aplicação. A desqualificação tanto do júri quanto dos magistrados comprometia, também, a eficiência administrativa, como demonstrado pelos vereadores em nível local e pelos presidentes em nível provincial.11 Retomando os discursos dos vereadores sobre a prática administrativa da justiça local, perseguiu-se uma administração de justiça ideal, entendendo que ela seria alcançada com magistrados qualificados. Destacava-se a ausência de uma boa administração da justiça e a localização geográfica do termo da vila, no extremo da província e em um sertão “quase inculto.12 Para os vereadores, existia uma imoralidade no sertão no sentido de desordem porque o lugar era distante, em referência espacial à capital. E o fato de a justiça da esfera pública ser ineficaz, a desordem perpetuava. Era um ponto de vista que não ponderava a

864

lógica interna da sociedade. As transgressões das normas legais não decorriam simplesmente da localização e da falta de aplicação da lei. Elas expressavam os modos de vida e suas tensões sociais. No entanto, os administradores locais desejavam ordenar o espaço social a partir do princípio normativo legal, que em determinados contextos se tornava alheio. Com fins de investigar os males e a desordem, como assim pronunciados pelos vereadores, foi consultada uma série de 127 processos-crime, produzidos para atender aos objetivos da instância judiciária no âmbito da administração criminal.13

2 Aplicação da justiça: da transgressão a aspectos do viver cotidiano Homens e mulheres se envolviam em atos criminosos. Tanto os menos favorecidos de bens materiais quanto as mais afortunados. Assim, indivíduos ricos e pobres tinham acesso à justiça legalmente instituída. As evidências encontradas para Rio Pardo e para a comarca do Rio das Mortes sugerem que o sistema judiciário em Minas Gerais lidou com demandas de diferentes grupos sociais.14 Longe de ser apenas uma expressão de dominação de um grupo sobre outro, o recurso à lei pode ser entendido como mediador de tensões sociais. Como “expediente de reserva”, a lei é legitimada pelo grupo para o qual ela se aplica. 15 Por isso, é o conflito que emerge nessas circunstâncias, elemento permanente na vida social.16 De fato, comportamentos transgressores permeavam as relações cotidianas, irrompendo-se nos espaços ocupados: casas, locais de trabalho, ruas, vendas, estradas, caminhos, passagens dos rios e outros lugares de trânsito coletivo. Eram espaços de constituição da vivência cotidiana, onde as relações de caráter comunitário eram estabelecidas. Nelas estavam presentes a solidariedade, as negociações e os enfrentamentos. A tendência à criminalidade recaiu, principalmente, contra a pessoa. As ações consideradas criminosas incidiram também sobre a propriedade e a ordem e o sossego públicos. Do total dos processos consultados, 58% deles são relativos a crimes contra a pessoa, 29% contra a propriedade e 12% trataram de crimes contra a ordem e sossego públicos (TAB. 2).17 Os testemunhos de homens e de mulheres que formularam suas versões sobre os atos de caráter criminoso possibilitam tratar da dinâmica das relações cotidianas estabelecidas em Rio Pardo. Retratando os comportamentos transgressores, os testemunhos se reportam aos modos de vida instituídos na sociedade. Um deles diz respeito às soluções encontradas coletiva e individualmente para lidar com as tensões das relações sociais: as ações consideradas criminosas imbuídas ou não de violência. A violência emergia exatamente nas circunstâncias de enfrentamento decorrentes dos conflitos, em relações diversas: afetivas,

865

familiares, de amizade, de negócios, de desrespeito à propriedade, de senhor e escravo e de negação da ordem pública.

TABELA 2 Tipologia de crimes – Rio Pardo (1833-1870) Contra a ordem e sossego públicos Contra a pessoa Contra a propriedade N. abs. N. abs. N. % N. % Sonegação de N. abs. N. % impostos Homicídio 21 16,54 Furto 21 16,54 5 3,94 Tentativa de Desacato à 14 11,03 Herança 6 4,72 4 3,14 homicídio autoridade Bens Fuga de Ofensa física 17 13,39 escravos 6 4,72 2 1,57 cadeia Redução à Porte de 11 8,67 Bens de raiz 5 3,94 1 0,79 escravidão arma Injúrias verbais 4 3,14 Outros 3 2,37 Adultério 4 3,14 Violência sexual 2 1,57 Infanticídio 1 0,79 Subtotal 74 58,27 38 29,92 15 11,81 Fonte: AFCRPM. Processos-crime – maços 1825-1837, 1838-1842, 1861, 1865-1866 e 1869-1871.

Algumas das tensas relações cotidianas ocorriam no âmbito da vivência familiar. O casamento era a forma legal de se instituir uma família. Na prática, no entanto, outras formas de se relacionar se firmavam em condutas distintas da imposta pela norma legal. O concubinato e o adultério, por exemplo, feriam as determinações legais e eram considerados infrações cometidas contra a moral e os bons costumes. Foi o caso de Manoel Branco, que foi a juízo se queixar de João Saraiva. Este “tirou sua mulher, Maria Gomes” de casa e ambos foram condenados por esse crime. Presos na cadeia da vila, não foi preciso que o casal cuidasse da defesa, porque o ofendido desistiu da ação, perdoando os dois pelo crime cometido.18 Esses costumes de se relacionar estiveram presentes no Brasil desde os tempos de colônia, sempre vistos como procedimentos irregulares, em desrespeito às normas da Igreja e do Estado.19 No entanto, essas práticas permaneceram no tempo, veladas ou não, expressando modos de vida, instituídos à margem da lei. Nas relações cotidianas entre vizinhos, amigos e conhecidos, verifica-se a utilização da violência como solução para resolver desentendimentos. Estavam em jogo os valores da amizade, da palavra e da honra, por exemplo. Quando esses valores que sustentavam as relações eram quebrados, abriam-se caminhos de tensões que levavam a

possíveis

negociações ou a rupturas, mediadas pelo recurso à violência ou à lei.20 Nas estreitas relações estabelecidas entre familiares, amigos e vizinhos, a violência emergia como solução dos conflitos cotidianos.

866

No que se referia às condições da vida material, outra ordem de conflitos era gerada. Verificam-se conflitos oriundos de furtos, de crimes contra a propriedade, como a invasão de propriedade particular, bem como sua utilização indevida, a violação do direito de herança, a dissipação de patrimônio, as fugas e os desaparecimentos de escravos. Foram ações criminalizadas e que se tornaram objeto de queixas e de denúncias. No caso dos furtos, dentre outras motivações, eles foram recorrentes para abrandar as circunstâncias de miséria, sinalizando uma faceta das desiguais condições econômicas vigentes. A prática era definida como um costume no lugar, melhor dizendo, um “mau costume”. Furtos de roças, de animais, de escravos e de objetos nas residências foram freqüentes. Em condições de pobreza, alguns recorreram ao furto circunstancialmente para minorar as condições materiais desfavoráveis. 21 Já outros fizeram do furto um meio de vida,22 o que poderia estar significando uma aversão ao trabalho, especialmente em uma sociedade escravista, na qual a noção de trabalho estava associada à escravidão. Os proprietários lesados em seu direito de propriedade insistiam em combater a prática do furto. Independentemente das motivações pessoais, o comportamento era desaprovado, denunciado e combatido, fosse recorrendo à lei, fosse punindo o ofensor com outras normas. A negação do “mau costume” configurava uma defesa do direito de propriedade, garantido por outros costumes e pela lei.23 Enquanto a norma legal garantia o direito de propriedade e fundamentava sua defesa, o furto, de outro lado, sustentava-se em outras normas advindas do costume. Assim, noções distintas traduziam práticas que se confrontavam, gerando conflitos. Outros tipos de transgressões atingiam a esfera do poder público, como sonegação de impostos, desacato à autoridade pública, resistência à ordem instituída, fuga de cadeia e porte ilegal de arma. Constituíam-se comportamentos entendidos como ameaças à ordem pública, porque estavam na contramão de um ordenamento instituído, que visava a certa regularidade da vida social. A oposição à prisão, por exemplo, era um comportamento transgressor, que negava a autoridade pública e resistia à ordem instituída. João de Souza foi um dos que praticou esse crime ao não concordar com a prisão de seu sogro, Manoel Leandro. Valendose de uma arma de fogo, ele “deu um tiro na escolta que conduzia o sogro. Ele feriu um dos guardas e recebeu “voz de prisão”. O delegado de polícia o pronunciou pelos crimes de homicídio sem circunstâncias agravantes e por opor-se à execução das ordens legais das autoridades competentes. Insatisfeito com a sentença, Souza entrou com recurso e foi absolvido pelo Tribunal do Júri.24 O recurso à violência ou o recurso à lei eram utilizados na resolução dos conflitos cotidianos. A opção por um ou outro recurso decorria da concepção de procedência da justiça. 867

Em geral, essas soluções encontradas para as desavenças expressavam-se de duas formas: quando uma das partes fazia justiça ao seu modo, e assim detentor da justiça; e quando a outra parte ofendida reconhecia a justiça legal e a ela recorria, na expectativa de ser atendida. A presença de comportamentos transgressores e suas proibições legais na sociedade rio-pardense, sugerem ter existido histórias de tensões e de negociações. O comportamento considerado desviante traz à tona a tensão entre o imposto pela norma legal e a dinâmica própria da vida. E as contradições do viver cotidiano expressavam-se nas escolhas e nas práticas, fundadas em normas vigentes distintas. Observa-se nos comportamentos não condutas apenas individuais, e sim modos de vida, que remetem a costumes, construídos coletivamente, indicativos de padrões diferentes dos instituídos por princípios legais. Os comportamentos transgressores violentos não se resumiram em fator localizado em Rio Pardo. As Minas setecentistas, onde se conformou uma sociedade de configurações específicas no Brasil colonial, eram um mundo considerado às avessas, devido às dificuldades encontradas pelas autoridades para exercer um controle sobre a população e o território. 25 Já no século XIX, ministros e presidentes provinciais debatiam sobre a ineficácia das instituições em conter a violência diante das altas taxas de homicídio do período. 26 Se a violência atravessou a sociedade mineira setecentista, no Oitocentos ela permaneceu historicamente, marcando as relações sociais. As ações violentas configuraram soluções forjadas pelos grupos para resolver os conflitos, podendo assim ser entendidas como um traço cultural. Nesse sentido, “os males” de Rio Pardo, identificados pelas autoridades locais, são aqui compreendidos não como males inerentes ao sertão e permanentes porque a administração judiciária era ineficaz, como assim eles quiseram crer. A sociedade produziu seus desajustes porque as relações estabelecidas geraram suas tensões, como o era para outras sociedades. Quando os vereadores se pronunciavam em defesa da ordem e da lei, eles estavam buscando um ordenamento tal qual proposto pelas normas legais, o qual, em grande medida, era sancionado pela sociedade. A defesa de uma ordenação baseada apenas na norma legal não solucionaria a violência cotidiana como era o pretendido. Havia uma lógica própria de ordenação que propiciava manifestações de ações transgressoras violentas e que conduzia as ações coletivas e individuais, na tentativa de administrar os conflitos com violência também. Os discursos dos administradores revelavam a intenção de pacificar os atos violentos. No entanto, a garantia de que os conflitos assumissem formas menos devastadoras passava não somente pela pacificação, mas, principalmente, pelo questionamento dos valores que davam sustentação aos comportamentos violentos.

868

1

Drª em História e profª adjunta da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e do Mucuri. E-mail: [email protected] 2 BRASIL. Lei de 29 de novembro de 1832 (Código do Processo em 1832). Colleção das leis do Imperio do Brazil. Rio de Janeiro, 1874. 3 Sobre a conjuntura dessa época, cf. MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo saquarema. 4. ed. Rio de Janeiro: Access, 1999, p. 12-17. 4 Considerando que em Rio Pardo foi estabelecida a estrutura básica da administração da justiça, determinada para os termos de vilas, os organogramas respectivos (FIG. 1 e 2) podem servir de referencial para estudos sobre a temática em outras localidades do Império do Brasil. 5 Sobre o assunto, cf. LIMA, Nísia Trindade. Um sertão chamado Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999. 6 Arquivo Público Mineiro (APM). Correspondência da Câmara Municipal de Rio Pardo (CCRP). PP 1.33, cx. 223, doc. 14, 6/4/1838. 7 APM. CCRP. PP 1.33, cx. 223, doc. 14, 6/4/1838. 8 Cf. ANASTASIA Carla. Saci-Perê: uma alegoria mestiça do sertão. In: PAIVA Eduardo; ANASTASIA, Carla (Orgs). O trabalho mestiço. São Paulo: Annablume: PPGH/UFMG, 2002, p. 379-391. 9 APM. CCRP. PP 1.33, cx. 223, doc. 47, 1840. 10 Para São João del-Rei, entre o período de 1840 e de 1860, é registrado também um índice alto de absolvição e despronúncia, 64,4%, maior que o percentual encontrado para Rio Pardo (RESENDE, Edna. Entre a solidariedade e a violência. 1999. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1999, p. 71). Já para a comarca do Rio das Mortes, verifica-se um viés classista do sistema judiciário, com as sentenças dos processos variando de acordo com a capacidade dos grupos sociais de mobilizar recursos [VELLASCO, Ivan. As seduções da ordem. 2002. Tese (Doutorado), IUPERJ, Rio de Janeiro, 2002, p. 218-219]. 11 Sobre o assunto, cf. CHAVES, E. O sertão de Rio Pardo: sociedade, cultura material e justiça nas Minas oitocentistas. 2004. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2004. 12 APM. CCRP. PP 1.33, cx. 226, doc. 17, 12/7/1852. 13 Este número de documentos corresponde a todos dos processos do período de 1833-1842 e de 1861-1870, conservados pelo AFCRPM. Sobre a potencialidade informativa desse tipo de fonte, cf. dentre outros: FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: Ática, 1974. 14 A respeito dos dados para a comarca do Rio das Mortes, cf. VELLASCO. As seduções da ordem. 15 Cf. THOMPSON, Edward. Senhores & caçadores. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 348-361. 16 Cf. DAVIS, Natalie Zemon. Culturas do povo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, p. 129-156. 17 Para a comarca do Rio das Mortes, os dados encontrados por Ivan Vellasco sobre a tendência à criminalidade são bem próximos dos verificados para Rio Pardo (VELLASCO. As seduções da orden). 18 AFCRPM. Processos-crime – maço 1825-1837. Processo-crime de 15/12/1835. 19 Uma extensa produção historiográfica trata desse tema. Cf. dentre outros: VAINFAS, Ronaldo (org.). História e sexualidade no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1986. 20 AFCRPM. Processos-crime – maço 1865-1866. Processo-crime de 16/12/1866. 21 AFCRPM. Processos-crime – maço 1838-1842. Processo-crime de 29/10/1838. 22 AFCRPM. Processos-crime – maço 1825-1837. Processo-crime de 10/6/1835. 23 Cf. THOMPSON, Edward. Costumes em comum. São Paulo: Cia. das Letras, 1998; São Paulo: Editora Schwarcz, p. 86-149. 24 AFCRPM. Processos-crime – maço 1869-1871. Processo-crime de 21/1/1870. 25 Cf. ANASTASIA Carla Maria. Vassalos rebeldes. Belo Horizonte: C/Arte, 1998. 26 Cf. VELLASCO. As seduções da ordem, p. 234.

869

Seguindo a forma e a ordem: as Leis Fundamentais do Reino e a sucessão régia nas Cortes portuguesas do século XVII (1641-1698).

Eduardo Henrique Sabioni Ribeiro (Doutorando - UFRJ)

Resumo:

Este artigo tem como objetivo analisar a constituição política de Portugal depois da Restauração. Apontamos as condições políticas deste reino que levaram os portugueses a tomarem o Estado em 1640. A crise instalada em Portugal na década de 1630 criou uma ameaça de revolução popular que levou a fidalguia a assumir o poder e aclamar D. João IV. Com a Restauração, foram criadas as Leis Fundamentais do Reino, que incluía a participação do povo nos atos de governo.

Palavras-chave: Cortes; Leis de Lamego; sucessão régia.

Abstract:

This article aims analyze the political constitution of Portugal after the Restoration. We point the political conditions of the realm that carried the portugueses to take the state in 1640. The crisis installed in Portugal at the decade of 1630 created a threat of popular revolution which take the fidalguia to assume the power and to acclaim D. João IV. With the Restoration was created the Fundamental Laws of the Realm which includes the participation of the people in the acts of government.

Keywords: Court; Laws of Lamego; royal sucession.

Em meados da década de 1630, recrudescia em Portugal uma crise aberta por volta de 1629 e 1630, quando uma série de ataques perpetrados por navios estrangeiros contra as conquistas portuguesas do Oriente demandou do governo português uma grande quantia de dinheiro para a defesa do mar i. Desde 1621 as rotas comerciais do oriente foram ano após ano sucumbindo frente à pressão armada de comerciantes ingleses e holandeses, unidos pelo 870

interesse comum de conquistar uma parcela do vantajoso negócio das Índias. No lado atlântico, depois das tentativas fracassadas de se instalarem no Brasil em 1624 e 1628, os holandeses finalmente conseguiram conquistar Olinda e Recife em 1630. Este período coincide com o tempo em que Filipe IV e o Conde Duque de Olivares subiram ao poder, e as constantes perdas no ultramar não cessariam até 1641, já depois de feita a restauração ii. Sob o pretexto de organizar a defesa da Índia e de Pernambuco, o Conde Duque estabeleceu em 1631 uma quantia de 500 mil cruzados a ser arrecada todos os anos para a compra de navios e para o municiamento das artilharias. Logo depois a quantia aumentaria para um milhão, onde metade seria obtida com a melhor cobrança e administração das dívidas da coroa e a outra metade paga pelos vassalos. Além da defesa do ultramar, o dinheiro também seria usado para o financiamento das guerras que a Monarquia Hispânica mantinha no centro da Europa iii. A cobrança da chamada renda fixa ocupou, a partir de então, o centro das atenções da administração política portuguesa. Olivares era o principal interessado no estabelecimento da renda fixa, e tentou o quanto pode fazer com que as suas ordens fossem cumpridas em Portugal. Contra isso, portugueses faziam-lhe oposição até mesmo no Conselho de Portugal em Madri. Em Lisboa, a situação não era mais favorável ao Conde Duque. Com o aumento dos impostos, as populações pobres dos campos e das cidades se levantaram em revolta contra os abusos praticados pelos coletores, que muitas vezes invadiam as suas casas e tomavam à força bens que substituíssem a quantia exigida. Em 1635, Antônio Carvalho de Parada se dirigiu por meio de uma carta ao Conde Duque onde explicava que o reino estava se encaminhando para um precipício. As condições para uma revolta geral da população estavam dadas, e já não mais eram tratadas longe dos ouvidos públicos, e sim publicamente:

Isto tem alterado tanto os ânimos de quase todo o Reino, que se atrevem a falar em público desta matéria, mostrando desejo de novidade, e que é rara conversação que trate de outra coisa, e poucos os que mostram desgosto das alterações que esperam, antes desejam de que as haja: e contra um povo oprimido de tributos, desejoso de lançar de si o jugo, persuadido a que pode melhorar-se, e alterado com esperanças de melhor fortuna, que poder houve nunca que fosse bastante, não repetirei os muitos Príncipes que por esta via foram desgraçados, porque os vizinhos são sabidos, e os estranhos mais do que se permite neste papel iv

Paralelamente à tensão provocada pela cobrança do fisco, uma crise institucional se concretizava no governo português. Olivares tentou por diversos meio concretizar os seus interesses em Portugal, nomeando ministros de seu agrado, criando Juntas de governo que

871

passavam por cima das decisões dos tribunais portugueses e aceleravam o processo de implantação do fisco. Com a nomeação desses ministros, formou-se no governo uma facção afeita à Castela, intransigente à oposição que lhe faziam os portugueses e praticante de determinadas ações que foram identificadas como corruptas. Com efeito, a facção castelhana e as suas práticas foram identificadas nas figuras de Miguel de Vasconcelos e Diogo Soares, Secretários de Estado respectivamente em Lisboa e Madri, como se os dois secretários fossem os maiores responsáveis pela situação crítica que vivia o reino. Eles eram tidos como os representantes e líderes da facção castelhana. Embora as críticas e denúncias desveladas tivessem ganhado as feições de ataque a práticas individuais dos secretários, elas visavam chamar a atenção para um conjunto de ações praticadas por todo o grupo que se beneficiava do governo de ambos. Antônio Carvalho de Parada, prelado em Lisboa, identificava três delas como as mais nocivas à república, de onde se originava todos os perigos do reino: a demasiada carga de tributos, a venda de honras e ofícios e o “abatimento” dos fidalgos. E completava: “apertando mais o negócio vem a ser uma só a raiz de tudo, o modo de ajuntar dinheiro e respeito” v. E, com efeito, tratava todas elas como uma só: o governo voltado ao interesse particular em detrimento do bem comum. Parada se colocava na posição de quem fala de fora das disputas de poder. Ele dizia que os políticos vendiam conselhos para se aproximarem e ganhar a amizade de Olivares, tratando-o sempre como infalível, em vez de demonstrar as falhas no governo e apontar soluções. Vale-se de uma metáfora da medicina para demonstrar o seu argumento:

Como nas enfermidades do corpo em que o descuido do médico tem dado lugar a penetrar mais o mal, fica sendo mais difícil o remédio, assim se pode temer que tenha penetrado o mau humor no corpo desta República, com grande dificuldade de se lançar, se não à volta de sangue, contudo trabalharei para receitar alguns remédios, porque o mal não fique de melhor condição.

vi

Carvalho de Parada não se limita a apontar as origens do “mau humor”, mas também adentra em questões que seriam naturalmente polêmicas de se tratar diretamente com o favorito de Filipe IV. Pergunta ao valido: convém ao Estado ter o príncipe valido? A resposta é positiva, pois em uma Monarquia do tamanho da Católica, “cujo governo depende de muitos e diferentes negócios a que o Príncipe não pode só assistir”, se faz necessário que haja pessoa com autoridade para, em nome do rei, dar expediente a todos eles. Mas o seu entendimento

872

possuía uma ressalva que colocava em jogo os modos com que era administrada a coroa portuguesa então:

Porém, que o valido tenha outro e o segundo o terceiro, e que como alcatruzes se vão levando a água onde eles querem, ficando cada um com uma pouca, sem respeitarem aos merecimentos das pessoas e as necessidades do Reino, nem o li nem ouvi que se praticasse até agora, porque as mercês e favores dos Reis são os alimentos de que vivem os vassalos, e a todos se devem comunicar segundo sua capacidade, e quem os quer limitar e distribuir por seus intentos particulares, converte-os em veneno, que a mais água recebe corrupção passando por lugares imundos, e muitas vezes serve de acrescentar a sede a quem espera remediá-la

vii

Em sua observação, a alienação do poder político e a sua transferência para segundos e terceiros gerava uma rede de poderes que ia do rei – enquanto o primeiro a transferir seu poder ao valido – até Diogo Soares e Miguel de Vasconcelos. Evidentemente, são muito mais complexas e minuciosas as relações de atribuição e transferência de poder para os membros do Estado, mas é interessante observar que o autor percebia a atuação do secretário de Estado em Portugal como continuação da política que era feita em Castela. Além disso, Parada compreendia que o modo de se delegar poderes contribuía para o surgimento da corrupção dos ministros, pois a partir do momento que ministros se encontravam com grandes poderes, utilizavam-se desses poderes para o seus benefícios particulares e de pessoas próximas a eles. As honras, os ofícios e as mercês passavam a ser distribuídas segundo interesses pessoais, e não conforme o merecimento ou a capacidade dos que as pleiteavam. As referências do autor incidem direta ou indiretamente sobre a ação de três ou quatro personagens, mas não é difícil imaginar a extensão da rede de beneficiados que cada um deles mobilizava. Como a água podre e mal cheirosa que costuma atrair ratos e outros animais repugnantes, a prática de corrupção e beneficiamento atraía para si determinada fidalguia ociosa e parasitária, muito criticada por Antônio Carvalho de Parada. Não é, portanto, apenas o fisco o motor dos conflitos políticos observados em Portugal naquele momento, mas os vícios e a corrupção instalados no seio da república. Precisamente, a corrupção de alguns ministros que contaminava o poder público de uma maneira geral. A primeira ação da restauração de Portugal, segundo Antônio Carvalho de Parada, consistia em

873

acabar com tais práticas substituindo os ministros. Necessário seria ainda, e principalmente, ouvir e considerar a voz e o desejo do povo, a exemplo dos antigos reis.

Os Reis Dom Afonso, o sábio, de Aragão e D. João, o segundo de Portugal, conhecidos no mundo por sua prudência, e outros príncipes que os quiseram imitar, se disfarçavam para ouvirem as verdades da gente popular sem serem registrados pela adulação dos que dependiam de seu favor. El Rey Filipe, o prudente, tinha pessoas que com a mesma verdade lhe davam conta ainda das mais particulares coisas. Imite V. Excel. a tão gloriosos Príncipes no governo que, por descansar a sua Majestade, tomou sobre seus ombros, porque me atrevo afirmar que bastará gostar V. Excel. de ouvir verdade para se restaurar e ressuscitar o antigo valor que indevidamente lhe usurpa os prêmios que para ele se fizeram

viii

Depois da Restauração, o Manifesto do Reino de Portugal destilava críticas fortíssimas que iam ao encontro das observações de Parada.

Experimentaram-se então muitas perdas e danos, dos que havemos referido; mas não chegaram a ser de todo intoleráveis se não depois que Diogo Soares, entrando por Secretário de Estado deste Reino em Madri, pôs no mesmo ofício em Lisboa a seu sogro Miguel de Vasconcelos. (...) Então começaram os males a correr de monte a monte, e a declarar-se de todo contra nós. Cerrou-se a porta à justiça e à consciência: a injustiça e a tirania sós eram admitidas. Os ofícios, que antes de davam, já por peytas (sic), começaram agora a vender-se publicamente a quem mais dava, sem se reparar em pessoas dignas, ou indignas: e introduzindo-se neles pela maior parte estas últimas (que são as que por semelhantes meios procuram subir postos) todos os negócios públicos se perturbavam, ou pela insuficiência, ou pela ambição dos que os tratavam. (...) As pautas que se faziam para se nomearem oficiais das Câmaras do Reino, traziam notas, pelas quais se conheciam os de seu humor, e parcialidade, para serem elegidos: e como com estas e semelhantes traças, introduzissem no governo público pessoas de sua facção, saíam com quanto intentavam. Aos que com zelo do bem comum faziam reparos e advertências, ou recusavam cooperar em coisas indignas, perseguiam; e ainda que tivessem grandes méritos e serviços, eram excluídos dos despachos, e as suas pretensões se não deferia, porque se afetava formar universalmente governo tirano ix

Na medida em que os quadros do governo português foram assumindo os contornos desejados por Olivares, estes foram se destacando da realidade política e social portuguesa. Tais quadros foram se isolando e se tornando uma anomalia dentro de Portugal. A facção castelhana ficava cada vez mais isolada no poder. Mas o que antes agitava uma oposição dispersa e localizada em alguns grupos e figuras, aos poucos foi agrupando diversos setores da sociedade portuguesa, sobretudo após os levantamentos de 1637-38.

874

Após os levantamentos de Évora (1637-38), ficou evidente a incapacidade da facção castelhana de exercer o seu poder no território português, não apenas por não ter conseguido evitar a eclosão de uma revolta popular tão violenta, mas também por não ter conseguido contornar a situação de maneira rápida e eficiente. Seus representantes enviados ao centro da revolta não tiveram qualquer reconhecimento entre os revoltosos. A partir daí estariam dadas todas as cartas com que os restauradores jogariam: o isolamento, a inabilidade e a falta de representatividade de uma facção detentora do poder; a incapacidade dessa facção de controlar uma rebelião popular de grandes proporções; a demora no envio de tropas de Castela para reprimir a rebelião. Ao mesmo tempo, em Lisboa, fidalgos já se organizavam para protagonizar uma insurreição da fidalguia contra o domínio castelhano. Em algumas visitas ao Duque de Bragança em Vila Viçosa, conseguiram o convencer a aceitar a coroa que os insurgentes lhe ofereciam. Logo na primeira quinzena de 1641, D. João IV convoca as Cortes para “prover a defesa da nação” x. Para as necessidade de guerra ficou acordado que o reino precisaria reunir vinte mil infantes e quatro mil cavaleiros, e para tal encargo seria arrecadado 1.800.000 cruzados, dos quais o clero estava isento, participando apenas com um subsídio voluntário. A quantia levantada foi votada pelos procuradores do povo, que aceitaram aumentar os tributos do vinho e da carne em Lisboa. Os produtos de necessidade básica, como o pão, o couro e o pano para as vestimentas ficaram proibidos de receberem aumento nessa mesma cidade, não valendo para as demais localidades. Nas Cortes realizadas em 1642 e 1645, esta quantia aumentaria para 2.000.000 de cruzados e depois 2.500.000, mas as especificidades dos tributos de Lisboa se manteriam. Possivelmente, esse tipo de regalia par a cidade de Lisboa visava evitar a revolta da população como ocorrera na década anterior. Além dos preparativos de guerra, as Cortes de 1641 efetivaram o pacto de sujeição que preconizava a doutrina da origem popular do poder.

Os três Estados destes Reinos de Portugal, juntos nestas Cortes, onde representam os mesmo Reinos, e tem todo o poder, que neles há. Resolveram, que por princípio delas deviam fazer assento por escrito, firmado por todos, como o direito de ser Rei, e Senhor deles, pertencia, e pertence, ao muito alto, e muito poderoso Senhor D. João o IV. xi

Os três estados do reino se reuniram para transferir solenemente o poder do reino para o Duque de Bragança, o reconheceram por legítimo rei e juraram o seu filho, D. Teodósio, como o sucessor da coroa. Por princípio das mesmas cortes e “para maior perpetuidade, e solenidade de sua feliz aclamação”

xii

, determinou-se que seria feito um assento por escrito

875

que deveria ser assinado por todos os presentes, confirmando a realização das Cortes e fixando tudo o que nela foi deliberado. Este documento definia os fundamentos legais da Restauração e instaurava novas leis na sucessão do trono. A rigor, as leis que se instauravam eram as mesmas que supostamente haviam sido produzidas na fundação da monarquia em 1143.

Seguindo a forma, e ordem, que no princípio do mesmo Reino, se guardou, com o Senhor Rei Dom Afonso Henriques, primeiro Rei dele. Ao qual tendo já os Povos levantado por Rei no Campo de Ourique, quando venceu a batalha contra os cinco Reis Mouros, e tendo-lhe passado Bula do título de Rei, o Papa Inocêncio II no ano de 1142. Contudo, nas primeiras Cortes, que logo subsequentemente celebrou, na cidade de Lamego, pelo fim do ano de 1143 sendo juntos nelas, os três Estados do Reino, tornaram outra vez, em nome de todo ele, ao aclamar, e levantar por Rei, com assento por escrito, do que nelas se fez, para memória, e perpetuidade de seu título. xiii

O sentido dessa afirmação é que Portugal repetia na aclamação de D. João IV a aclamação do primeiro rei português, D. Afonso Henriques. Tendo sido aclamado pelo povo primeiro no Campo de Ourique, foi novamente aclamado em Cortes, onde, além de ser jurado rei de Portugal produziu um documento por escrito que continha as leis que deveriam ser seguidas na sucessão do trono, as chamadas atas das Cortes de Lamego. Trata-se de um documento apócrifo, tendo sido sua falsificação atestada por Alexandre Herculano no século XIX. Foi Frei Antônio de Brandão que o deu à luz no século XVII, na crônica de D. Afonso Henriques presente na obra Monarchia Lusitana

xiv

. O documento se

apresentava como cópia tardia do original, mas provavelmente foi forjado no cartório do Mosteiro de Alcobaça. Ele estabelecia leis sobre a herança e sucessão dos reinos de Portugal: transmissão por linha direta hereditária para o filho mais velho; transmissão para o irmão mais velho, não havendo filhos, mas necessitava de convocação das Cortes para eleição como rei do filho daquele; transmissão pela linha feminina, não havendo varão, mas, obrigatoriamente, a princesa herdeira devia se casar com varão português nobre. As atas de Lamego ainda definiam o que era nobreza portuguesa e estabelecia a justiça e a independência completa do reino de Portugal: interditava o monarca de prestar vassalagem ao rei de Leão ou a outro qualquer, excetuando o Papa. Na crônica de D. Afonso Henriques, Frei Antônio de Brandão duvida da autenticidade do documento que ele transcrevia, mas, seguindo o parecer de algumas pessoas a quem ele consultou, publica as atas com alguma cautela:

876

Algumas pessoas a cuja mão veio este papel depois de o eu ter divulgado, faziam dele tanta estima, que não só lhe davam o crédito que merecem as escrituras autênticas, que se conservam nos arquivos (...) mas ainda o queriam imprimir como coisa sem dúvida xv

Admitindo-se a autenticidade do documento, ficavam excluídos da sucessão legítima os reis castelhanos e espanhóis, desde D. João I de Castela a Filipe II. Legitimava-se de uma vez por todas a eleição do mestre de Avis e a candidatura dos Braganças. Ficavam por ilegítimos os reis portugueses D. Dinis e seus sucessores, até D. Fernando, mas como bem frisou Frei Antônio Brandão, isso era “mal menor” xvi. Entretanto, a incontestável falsidade das atas de Lamego não suprime o valor histórico que elas tiveram para a Restauração em 1640.

As leis de Lamego tiveram grande influência na reação contra o domínio filipino porque, excluindo do trono os reis estrangeiros, davam um fundamento legal à revolta da Restauração. Estas leis de Lamego foram confirmadas nas Cortes de 1641, como Leis Fundamentais do Reino e como tal consideradas em Portugal durante quase dois séculos. xvii

Nas Cortes de Lisboa ocorridas entre outubro de 1653 e fins de fevereiro de 1654, houve necessidade de jurar D. Afonso como príncipe herdeiro, em decorrência da morte do Infante D. Teodósio. Segundo as Leis Fundamentais do Reino, D. Afonso seria o próximo na linha sucessória. Após a morte de D. João IV, ocorrida em novembro de 1656, assumiu a regência do reino a rainha D. Luísa de Gusmão, em decorrência de Afonso ainda não ter atingido a maioridade e das dúvidas que se levantavam quanto à sua capacidade mental. Após uma complicada disputa palaciana entre facções que disputavam o poder, D. Afonso IV foi finalmente reconhecido rei em junho de 1662, onde permaneceu até abdicar do trono em favor do seu irmão D. Pedro nas Cortes de 1668. Devido à sua incapacidade de reinar e de ser notório que o governo estava todo concentrado nas mãos do Escrivão da Puridade, Conde de Castelo Melhor, além de não ter consumado seu casamento com a princesa francesa D. Francisca de Sabóia, D. Pedro foi jurado regente e sucessor de seu irmão. Após o divórcio com D. Afonso, D. Francisca casou-se com D. Pedro e dele teve uma filha em 1669, D. Isabel Luísa Josefa. Não tendo tido filho homem, D. Pedro convocou Cortes em 1674 para jurar herdeira do trono a Infanta D. Isabel. Nessa ocasião, a nobreza propõe aos povos que insistissem na coroação do regente D. Pedro, já que o clero havia aceitado, se bem que com ressalvas

xviii

.

Mas o regente não aceita a proposta. No entanto, isto era necessário para dar suporte legal ao juramento prestado à sua filha, mas a Infanta é jurada herdeira da mesma forma. As Cortes

877

são dissolvidas em 16 de junho por conta do clima de exaltação provocado pelo requerimento que D. Pedro desistisse da proteção dada aos cristãos-novos e dos interesses que com estes pretendia contratar xix. Em primeiro de novembro de 1679, D. Pedro convoca novamente as Cortes para tratar do casamento da Infanta Isabel com o Duque de Sabóia. Ela perde o título de herdeira assim que ajusta seu casamento com o Duque, pois este casamento era contrário às Leis Fundamentais do Reino. Como as negociações para o seu casamento malograram, a Infanta volta ser considerada herdeira, mas logo perde esse título com o nascimento do primeiro filho homem dos regentes em 1689, D. João, mais tarde D. João V. A partir de 1683, com a morte do rei D. Afonso VI, finalmente é aclamado D. Pedro II. Em agosto de 1697, D. Pedro escreve às diversas Câmaras do reino anunciando o nascimento do seu segundo filho, D. Manuel, e convoca Cortes para 15 de novembro. O objetivo dessas Cortes era jurar D. João e revogar o capítulo das Leis de Lamego sobre a sucessão. O príncipe é jurado em primeiro de dezembro e dois dias depois o rei anuncia sua outra vontade. Os três estados deram parecer favorável à consulta régia, e em 8 de janeiro de 1698 o Marquês de Alegrete e os jurisconsultos Paulo Carneiro de Araújo e Francisco Galvão assinaram a consulta, seguidos dos demais procuradores. Tratava-se da elaboração de uma nova lei sucessória que revogava as Leis Fundamentais assentadas em 1641. O monarca fez publicar em 12 de abril daquele ano: “Quando um rei morresse sem descendentes, os filhos e descendentes do irmão deviam suceder-lhe pela ordem direta, sem haver necessidade de aprovação dos três estados” xx. O monarca modifica as leis de sucessão de acordo com a realidade da coroa portuguesa, pois D. Afonso VI morreu sem descendentes. E como D. Pedro II se encontrava casado, com dois filhos homens, e estando o reino em paz, não havia mais a necessidade de consultar os povos quanto à sucessão do trono, pois esta estava assegurada pela linha sucessória do rei. A sua situação sugeria estabilidade política, estabilidade esta que o reino não experimentava desde 1640, ou antes. Enquanto vigoraram, as Leis Fundamentais do Reino garantiram que os povos não seriam novamente subjugados por reis estrangeiros, assim como as Cortes garantiram que eles não desprenderiam dinheiro em tributos que não fossem para a defesa e o bem comum do reino. A despeito disso, as leis de Lamego foram seguidas conforme o instituído em 1641, e a interdição da Infanta Isabel em 1679 demonstra a efetividade delas, bem como o que dizia respeito à imposição de tributos no período da guerra contra Castela, onde a população de Lisboa se viu isenta de tributação sobre os bens de consumo básico.

878

i

A ideia de crise é de António de Oliveira, embora o autor não tenha chegado a formular um conceito acerca do que caracteriza um estado de crise. No entanto, o conjunto de medidas tomadas pelos governos de Portugal e Madri no sentido de implantar o fisco, junto com uma série de ações políticas a que faremos referência, denotam uma situação de crise social e das instituições políticas catalisadora de levantamentos ao longo de todo o decênio, cujo ápice será os levantamentos de 1637-38: “Com efeito, só em 1631, em pouco mais de dois meses (de 21 de maio a 4 de agosto) se abateram sobre os portugueses três grandes flagelos tributários, antecedidos de más colheitas nos dois anos anteriores. Paralelamente, a revista das coimas antigas e execução dos devedores. E no final do ano, nos inícios de dezembro, a suspensão por parte da coroa da quarta parte dos pagamentos a particulares, com exceção dos ordenados: tenças, rendas, comendas e mercês ficaram retidas em jeito de penhora”, in: OLIVEIRA, Antônio de. Poder e oposição política em Portugal no período filipino (1580- 1640). Lisboa: DIFEL, 1990., p. 132. ii Uma abordagem que relaciona as perdas no ultramar e seus impactos sociais no reino com a Restauração de Portugal encontramos no ensaio clássico de Vitorino Magalhães Godinho: GODINHO, Vitorino Magalhães. “1580 e a Restauração”. In: SERRÃO, Joel (dir.). Dicionário de História de Portugal. Porto: Livraria Figueirinhas, 1976. 6vls. Sobre a recuperação das praças atlânticas no período da Restauração e seu impacto da diplomacia portuguesa consultar: MELO, Evaldo Cabral. O Negócio do Brasil: Portugal, os Países Baixos e o Nordeste 1641-1669. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998. iii “A queda de Olinda e Recife vai dar ensejo ao governo, a partir de 1631 – ano em que o exército sueco entra na Alemanha, obrigando Madri e Viena a firmarem um tratado de ajuda mútua (1632) –, de impor uma pesada e desmedida tributação sobre todos”: OLIVEIRA, António de. op. cit., p. 131. iv Idem, p. 241-242. v PARADA, Antônio Carvalho de. Justificação dos portugueses. In: CRUZ, António. Papéis da Restauração. Coimbra: ed. da Universidade, 1960. 2 vls., p. 243. vi Idem, p. 242. vii PARADA, Carvalho de. Justificação dos Portugueses. In: CRUZ, António. Papéis da Restauração. Coimbra: ed. da Universidade, 1960. Vol. 1, p. 243. viii Idem, p. 246. ix Manifesto do Reino de Portugal. Lisboa: Paulo Craesbeck, 1641. fol. 23-24. x SERRÃO, Joel (dir.). Dicionário de História de Portugal. Lisboa: Iniciativas Editora, 1968. 6 vls. Vol. II, p. 778-779. xi Assento feito em Cortes, fol. 1. xii Idem, fol 1-v. xiii Assento, fol. 2. xiv BRANDÃO, Antônio, Frei. “Crônica de D. Afonso Henriques”, in: Monarchia Lusitana. Lisboa: Pedro Craesbeck, 1632. t. III, liv. X, cap. 13º. xv Idem, ibdem. xvi Idem, ibdem. xvii AFONSO, A. Martins. “Valor e significado político das actas das côrtes de Lamego no movimento da Restauração”. In: Congresso do Mundo Português. Lisboa: [s/e], 1940. VII volume, tomo II, II seção: Restauração e guerra da independência, p. 493. xviii SERRÃO, Joel. Op. cit., v. II, p. 781-782. xix Idem, ibdem. xx Idem, p. 783 e ss.

879

O discurso médico e a prática de ginástica no Asylo de meninos desvalidos (1875-1894). Eduardo Nunes Alvares Pavãoi Doutorando do PPGH/UERJ Orientadora: Prof.ª Dr.ª Marilene Rosa Nogueira da Silva (UERJ) E-mail: [email protected]

Resumo: Nos oitocentos ocorreu o incremento de políticas públicas, tendo como centralidade: educar, proteger e cuidar da infância desassistida e para isto foram criadas diversas instituições que aumentaram consideravelmente as redes de sociabilidade e de circulação de saberes, entre elas, o Asylo de meninos desvalidos. Este trabalho tem como objetivo identificar a emersão de práticas discursivas e não discursivas para a assistência da infância desvalida, na cidade do Rio de Janeiro, na segunda metade do século XIX. Entre as práticas discursivas e não discursivas analisadas estão: o discurso médico e a ginástica no estabelecimento asilar de 1875 a 1894. Palavras-chave: Asilo – Educação Física – Infância Desvalida

Abstract: In the eight hundred was the increase of public policies , with the centrality : educate , protect and care for unattended children and for this were created several institutions that considerably increased social networks and knowledge of movement between them, summaries of Asylum of underprivileged boys . This work aims to identify the emergence of discursive and non-discursive practices to the assistance of needy children in the city of Rio de Janeiro in the second half of the nineteenth century. Between the discursive and nondiscursive practices analyzed are: the medical discourse and gymnastics in establishing asylum 1875-1894. Keywords: Asylum – Physical Education – Helpless childhood

Introdução Este texto foi pensado a partir de Foucault, a partir da leitura de obras de autores que pensaram a partir dos seus “ditos”, que utilizaram um instrumental teórico metodológico libertário, tentaram criar novas possibilidades de análise e novos objetos de pesquisa. Este estudo foi possível graças a uma historiografia preocupada em estudar a medicalização da sociedade e as transformações que advieram daí. Entre os diversos estudos com base na teoria

880

e metodologia de Michel Foucault se identifica os realizados pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. No século XIX a pobreza foi naturalizada, sua sacralização, racionalização através dos discursos e práticas médicas prescreveu o isolamento dos alienados, doentes, desvalidos e órfãos. Ela promoveu a emergência de discursos e práticas de proteção aos “normais”. Os discursos médicos, jurídicos e políticos ordenam os desviantes, os diferentes, os “anormais”, pois se tratava de proteger a “sociedade civilizada”, “culta”, “trabalhadora”, os “normais” da contaminação dos “perigosos”, dos “nefastos” e dos “maléficos”. O discurso médico considerava “perigoso” os pobres, maltrapilhos, desvalidos e pauperizados pré-determinados pela sua pobreza, e pelas diferenças para com os “bem nascidos”, os de “família” e “educados”. A pobreza foi segregada, escondida, velada nessa constituição de saberes e de poderes na modernidade.

O discurso médico e a prática de ginástica Em ofício enviado ao ministro João Alfredo Corrêa Oliveira no dia 5 de Maio de 1875, o diretor Rufino Augusto de Almeida informou parecer-lhe conveniente que os meninos recolhidos ao internato começassem a fazer exercícios ginásticos, pedindo autorização para comprar os aparelhos e vestuários indispensáveis aos exercícios. Já no dia 8 de Maio de 1877, num reservado ofício, o diretor do Asilo, Rufino Augusto de Almeida informou o Diretor interino da Instrução primária e Secundária do Município da Corte, o Conselheiro Barão de São Felix que:

Respondendo ao oficio reservado de V. Ex. de 4 do corrente (ontem recebido) cumpreme informar, que o cidadão Brasileiro Manuel d’Azambuja Monteiro exerce as funções de professor de Ginástica por contrato desde 1 de Junho de 1875, e que durante este tempo há mostrado ter as habilitações precisas para o ensino da ginástica higiênica, usada neste Estabelecimento, empregando bastante zelo, e dedicação no desempenho de seus deveres. Não conhecendo o mencionado cidadão, quando tratava de contrata-lo para professor neste Asylo, e não podendo ele apresentar diploma de habilitação, porque nesta Corte não se concede diploma, ou outro qualquer título de professor de Ginástica, procurei informar-me de pessoas competentes sobre a sua aptidão e de todas obtive os melhores juízos. Devo mais informar, que este cidadão tem requerido por mais de uma vez a essa Inspetoria, e ao Ministério do Império para o admitirem à exame da matéria que leciona, a fim de ficar comprovada legalmente a sua capacidade para o professorado que exerce. ii

Isto após a contratação de um médico para atendimento na instituição. Pois, em dezesseis de julho de 1875 o diretor Rufino Augusto de Almeida comunicou ao ministro dos Negócios do Império, no caso José Bento da Cunha e Figueiredo, que se utilizando da atribuição que o regulamento do internato de nove de janeiro de 1874, contratou no mês de

881

maio o Doutor Carlos Ferreira de Souza Fernandes como médico do asilo com o vencimento de seiscentos mil reis anuais “sob a condição de somente começar a percebê-lo quando os seus serviços” fossem reclamados, pois o Dr. João Joaquim Pizarro, genro do diretor realizava até aquele momento atendimento gratuito dos internos, e assim continuaria enquanto permanecesse em Vila Isabel, somente após a sua partida começaria o médico contratado a receber a quantia de cinquenta mil reis mensais. iii O médico Coutinho (1875) em Esboço de Higiene dos Colégios destacou que:

A educação física é completamente desconhecida em nossos colégios sem exceção, e, entretanto é intuitivo o beneficio que resulta da ginástica, da esgrima, natação: são exercícios importantes para o desenvolvimento do corpo, e se fosse a educação física bem avaliada, não veríamos os mancebos ao saírem dos colégios – nervosos, fracos, e parecendo dispostos a contraírem toda a casta de enfermidades. iv

Armonde (1874) em Da educação física intelectual e moral da mocidade do Rio de Janeiro e de sua influência sobre a saúde salientou que: “A necessidade dos exercícios físicos é tal que bem poderíamos dizer que eles estão para a educação física como o estudo está para educação intelectual, como a religião e o exemplo para a educação moral”. Além disso, “a influência benéfica” desses exercícios não se limitava ao físico, estendia-se ao moral e ao intelectual, pois, a inteligência era aguçada, a sensibilidade regularizada e a vontade era mais enérgica. Segundo o autor nas casas de educação não se dava o devido valor aos exercícios e eles não eram “praticados na medida de sua utilidade pelos educandos”. v Foi possível mapear algumas teses da década 50 do século XIX que tratavam da higiene nos colégios. O médico Guimarães na sua tese intitulada Higiene dos Colégios de 1858 preconizava como uma instituição asilar exemplar a que contasse: Uma cozinha com todos os apetrechos, um refeitório espaçoso, quartos de banho; latrinas asseadas, largos dormitórios bastante arejados com acomodações para vestuário e para quartos dos professores da vigília – salas de estudo suficientes salas de classes, sala de desenho, de escultura e de música, anfiteatro – gabinete de física de história natural e de química – laboratório de química, recreios para cada divisão, enfermaria com todos os pertences - um ginásio aberto – capela – acomodações convenientes para os diretores, professores, e mais empregados. A habitação deve ser construída sobre um solo calcário e arenoso ou granítico, mas nunca úmido e argiloso, e circundado de plantações diversas em diferentes direções; deve-se evitar muito a proximidade de pântanos e grandes fábricas. A divisão do tempo poderá ser a seguinte: Levantar às seis horas da manhã e deitar às dez da noite – quatro horas de estudo ou de repetições, três horas de curso, duas horas de refeição, (1) uma hora para banhos e cuidados de asseio, uma para música e artes, uma hora de ginástica, quatro horas para jogos, escultura e artes mecânicas. O regime não poderá ser uniforme para um grande número de alunos, dotados de temperamentos diversos; uma grande divisão, entretanto não será possível, ela constará de duas espécies de alimentação, uma com predominância do regime animal a outra com predominância do regime vegetal.

882

A aplicação será reduzida dos princípios estabelecidos nas questões – temperamentos e alimentação e o regime especial de um aluno deverá ser ditado pelo médico do estabelecimento, subordinado, entretanto ao gosto dele todas as vezes que for possível. No refeitório – deve haver um estremo cuidado a respeito da qualidade dos alimentos, guardar as condições de asseio e o serviço deverá ser feito por um pessoal suficiente. Os diretores e professores participarão das mesmas refeições que os alunos. Os banhos e as vestimentas devem ser regulados pelo bom senso. Para o sono bastarão sete horas, uma meia hora para se levantarem, e outra para se deitarem. A capacidade do dormitório deve ser tal que cada aluno disponha de vinte e cinco metros de ar (aparte o dos meios de ventilação) janelas sempre abertas durante o dia darão entrada ao ar exterior e durante a noite será iluminado por lâmpadas; os leitos construídos conterão um colchão de crinas e um simples travesseiro: os dormitórios devem ser visitados varias vezes à noite. As salas e as classes deverão compor-se de uma só peça, vasta perfeitamente clara e ventilada; os assentos terão a disposição necessária para a vigilância do mestre. À noite a iluminação se fará com lâmpadas, cercada com um globo de vidro ligeiramente azulado e munidos de um refletor metálico; seu numero será variável e deverão pender do teto para que os raios não ofendam aos olhos. Quanto às outras partes que devem constituir um internato, muito poucas coisas apresenta importantes que não sejam conhecidas e possam ser providas pelos homens de senso. vi

As condições de salubridade e higiene estiveram presentes no discurso médico. Inclusive, após uma carta denúncia de uma mãe de um interno, ocorre uma visita do comissário do Governo para avaliar as condições de internação dos asilados em Vila Isabel. O relato do comissário Dr. Manoel Pereira dos Santos descreveu as condições da Instituição. O funcionário do governo para o internato destacou que: Em doze de Março próximo passado recebi o aviso de V. Exª, em que me ordenava que fosse ao Asilo de meninos desvalidos, em Villa Isabel, a fim de verificar, se as queixas levadas ao conhecimento do Governo pela mãe de um dos asilados contra o diretor daquele estabelecimento eram infundadas. Cumprindo as ordens de V. Exª, dirigi—me ao Asilo, e, ali se achando o vice-diretor, o Sr. Dr. Daniel d’Almeida comuniquei-lhe o objeto de minha visita, e com ele passei a percorrer e a examinar com acurada atenção todo o estabelecimento, e vi com superficção, que se acha ele administrado com zelo, e economia, ordem e criteriosos graus de louvor. Notei que todos os asilados apresentavam aspectos saudável e alegre, e estavam especialmente vestidos e com roupas algodãozinho escuro, riscado, de excelente qualidade e corriam para o refeitório, acompanhei-os e vi que a sua refeição era abundante, de boa qualidade, e bem preparada; constando de muita boa sopa, assado, arroz, ervas ensopadas com carne seca, e bananas-maçãs para sobremesa. Fui depois examinar os dormitórios, e já estavam todos bem servidos, as camas feitas e limpas; sendo as condições higiênicas destes dormitórios as melhores possíveis. Passei depois a examinar as latrinas, e que estavam perfeitamente lavadas e limpas; sendo acomodadamente suas tubulações, de modo que não se sentia nelas o menor cheiro desagradável. Em seguida fui examinar as enfermarias, que está bem situada, e reúne excelentes condições de salubridade; e vi nela que parecia existir um enfermo, já convalescendo de febre biliosa. Fui depois examinar a cozinha, que estava limpa e asseada em todas as suas dependências; bem como vi a despensa, que estava suficientemente fornida; sendo todas as substâncias alimentícias de boa qualidade. Examinei a rouparia e que está bem suprida, sendo as roupas preparadas aos alunos. Quanto à queixa de serem os meninos obrigados a carregar pedras à cabeça, obsequiou-me o Sr. Vice-diretor que nunca tal se viu; mas sim que, fazendo-se escavações em um morro contiguo às edificações do Asilo no intuito, não só de alugar à área aplainada do terreno. Como para aterrar parte do lado noroeste da colina, que se acha à ação das chuvas, vai caindo em desmoronamento; foram os meninos mais crescidos e robustos encarregados de transportar em carrinhos chamados de mão, leves e de fácil locomoção, as terras desmoronadas e misturadas

883

com algumas pequenas pedras, não sendo a distância, que medeia o lugar da escavação, e o da vertente, que as águas vão derrocando, maior de 12 a 15 metros: sendo certo que este serviço, antes exercícios ginásticos, longe de ser nocivo à saúde dos alunos, concorre, pelo contrário, para lhes desenvolver a musculatura, torna-los mais vigorosos e sadios. Quanto a acusação de serem os meninos serem surrados com correias e metidos e fechados em um quarto escuro, asseverou-me o Sr. Dr. Daniel, ser falso e inexato, tão bem visto me parecer inverossímil, em vista do cuidar atencioso e criterioso do Sr. Daniel, que mora no estabelecimento com sua digna senhora e filhos, a qual boa e humana, como é para todos os meninos não se poderia suportar e presenciar todos os atos, ela que também é mãe. vii

Na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro diversas teses abordavam a questão da assistência e educação das crianças em internatos ou instituições de atendimento aos órfãos ou aos desvalidos. Entre as quais a tese Influência da educação física do homem de 1854, em que Antonio Nunes de Gouvêa Portugal critica as mães dos “enjeitados” pelos seus atos e preconiza hábitos e posturas consideradas como higiênicas nos cuidados das crianças. viii O acadêmico Naegeli (1863) em A utilidade dos exercícios ginásticos nos países tropicais destacou que os exercícios ginásticos nos países dos trópicos não eram prejudiciais como “bem úteis”, eles eram “o melhor modo de corrigir aquelas influências debilitantes do clima dos trópicos, e principalmente para aquela parte da população, cuja ocupação mais intelectual reduz muito os movimentos do corpo”, eles tornaram-se “uma necessidade”. Para aquela parte da população, e, principalmente, para a juventude, os exercícios ginásticos eram um benefício que se manifestava não só em saúde e força, como também em energia e vigor do espírito. ix Segundo os relatórios dos diretores do Asylo as aulas de ginástica eram “leves, sem exigir grandes esforços” dos internos e ocorriam à sombra. Mas a diretoria do Asylo de Meninos Desvalidos em março de 1878 afirmou que não havia verba para a despesa com a construção de um barracão, no qual fossem dadas as lições de ginástica, nem para a compra de um pórtico ginástico e demais aparelhos, e como não convinha à saúde dos meninos serem realizados aqueles exercícios ao ar livre, expostos às “impressões atmosféricas”, e não terem tirado nenhum proveito os menores do mesmo parecia-lhe “conveniente” a suspensão das aulas de ginástica, até que pudesse ser “melhor organizado”. x O médico do Asilo, o Dr. Carlos Ferreira da Silva Fernandes, no dia 28 de Agosto de 1877 destaca que: “A nocividade dos chiqueiros e esterqueiros na vizinhança desse Estabelecimento, onde se colocam cem meninos, e que tem o pessoal para isso necessário, é de fácil intuição, os porcos que povoam esses chiqueiros são alimentados também com restos de alimentos adquiridos em hotéis”.

xi

E logo depois, mais precisamente 29 de Agosto de

1877 o próprio diretor do internato, Rufino Augusto de Almeida submeteu à consideração do

884

ministro e secretário de Estado dos Negócios do Império, o Dr. António da Costa Pinto Silva o ofício do médico do Asilo para que fossem “removidos os chiqueiros de porcos, e esterqueiras na vizinhança deste Estabelecimento, e que seja desobstruído o braço do Rio Maracanã, que serve de limite à chácara, e cujas águas estagnadas estão prejudicando a higiene do Asilo”. xii Os objetivos do nosso estudo são explicitar e compreender a atuação dos médicos no processo de disciplinamento e controle da infância caracterizada como “desvalida”, “perigosa” e “desviante”. Pois identificar, descrever e analisar o discurso médico auxiliou na compreensão dos “ditos e escritos” jurídicos, políticos e pedagógicos de uma infância desvalida inventada. Os médicos determinavam os espaços de uso da infância, assim como participação e divisão das horas de sono, alimentação, higiene, estudos e brincadeiras. Além disso, eles preconizavam vigília, controle das atividades escolares, religiosas, sociais e culturais das crianças no dia a dia, com premiações e punições aos comportamentos ditos “imorais”. Diversos cenários foram utilizados pelos médicos para a divulgação das normas e orientações educativas das crianças. As teses das faculdades de medicina do Rio de Janeiro e da Bahia, as conferências pedagógicas, os jornais e as revistas, as visitações dos médicos às instituições de atendimento e assistência às crianças desvalidas preconizavam as diretrizes e a intervenção do governo imperial no Asilo de meninos desvalidos. A fim de transformar as crianças em futuros adultos “úteis a si e à sociedade” o discurso médico indicava o trabalho como elemento educativo, “moralizador” e “higienista”. O horário de funcionamento das oficinas, o mestre “ideal”, o ofício a ser aprendido, o controle das visitas, o professor a ser contratado, o rendimento nas aulas, a produção realizada e o comportamento dos internos era mensurado, medido e comparado.

Considerações Finais O tema de criança desvalida já foi objeto de inúmeras abordagens. Neste texto procuramos discorrer algumas considerações sobre o discurso médico e a prática de ginástica no Asylo de meninos desvalidos. Na segunda metade do século XIX ocorreram políticas públicas para a assistência à infância desvalida. Sobretudo a partir do último quartel, quando os escravos começaram a figurar na ordem dos homens livres e o Governo Imperial direcionou políticas públicas para “os desvalidos” que passaram a circular pelo centro urbano. Neste cenário, a assistência assume um caráter de “ordem” e “controle social”, a fim de se “evitar a violência 885

e

criminalidade”. Primeiramente, esta assistência teve um cunho religioso, sendo praticada pelos jesuítas que, além de um interesse humanitário, procuravam atrair indivíduos para a prática do catolicismo. A assistência, neste sentido, tinha uma característica de caridade atrelada a interesses religiosos. No entanto, durante o século XIX ocorreu uma medicalização da sociedade, das relações sociais, da assistência às crianças desvalidas. E a ginástica vai ser acompanhada do discurso médico que vai disciplinar, controlar, vigiar e punir as ações cotidianas dos internos do Asylo de Meninos Desvalidos.

i

Apoio financeiro da CAPES (Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). Arquivo Nacional. Série Educação. IE5 – 23 (1877). iii . IE5 – 22 (1875-1876). iv COUTINHO, Cândido Teixeira de Azeredo. Esboço de Higiene dos Colégios, Rio de Janeiro: Tipografia Universal de Laemmert, 1857, p.8. v ARMONDE, Amado Ferreira das Neves. Da educação física intelectual e moral da mocidade do Rio de Janeiro e de sua influência sobre a saúde, Rio de Janeiro, pp. 19-20. vi GUIMARÃES, Antenor Augusto Ribeiro. Higiene dos Colégios. Rio de Janeiro: Tipografia Imparcial de J. M. Nunes Garcia, 1858, p. 66. vii Arquivo Nacional. Série Educação. IE5 – 26 (1881-1882). viii PORTUGAL, Antonio Nunes de Gouvêa. Influência da educação física do homem. Rio de Janeiro, 1853. ix NAEGELI, Wilhelm. A utilidade dos exercícios ginásticos nos países tropicais. Rio de Janeiro: Tipografia Perseverança, 1863. x Arquivo Nacional. Série Educação. IE5- 24 (1878). xi . IE5- 23 (1877). xii . IE5- 23 (1877). ii

886

A BANDA MARCIAL E A SUA LINHA DE FRENTE: EMBATES E TENSÕES PELA DISPUTA DO ESPAÇO NA CORPORAÇÃO MUSICA1 Elizeu de Miranda Corrêa2

RESUMO

As bandas marciais e fanfarras foram manifestações artísticas de grande relevância no século XX, que se exibiam e ainda se exibem em desfiles, concursos, inaugurações e etc. Todavia traz em seu bojo, as características e de certo modo o comportamento militar. Nesse agrupamento de pessoas existe à frente dos músicos a linha de frente, composta por componentes que tem como função precípua, conduzir o pavilhão nacional e o estandarte corporação musical. Desta forma, esse texto tem como objetivo apresentar essa prática cultural que na década de 1990, tiveram grande aceitação popular, por apresentar coreografias de teor artístico e menos marcial. Devido ao impacto que esses grupos proporcionaram nos desfiles, foram alvo de embate e tensão no seio da corporação musical, pela disputa do espaço. Palavras chave: Banda – Fanfarra – Linha de Frente

ABSTRACT

The marching bands and brass bands were artistic events of great importance in the twentieth century, which is exhibited and still exhibit in parades, contests, openings, etc. However it brings with it, the characteristics and in some ways the military behavior. In this group of people there ahead of the musicians to the front line, made up of components whose main function, lead the national flag and the banner Music corporation. Thus, this paper aims to present this cultural practice that in the 1990s, had great popular acceptance by presenting choreography of artistic and less martial content. Because of the impact that these groups provided us with parades, they were targeted clash and tension within the Music corporation, the dispute space. Keywords: Band - Fanfare – Frontline

INTRODUÇÃO

As Bandas Marciais, possuem a sua matriz nas Bandas Militares, e a última por sua vez localiza a sua gênese na segunda metade no século XVIII, no Estado de Pernambuco, todavia, 887

tornaram-se visíveis e, portanto, populares, a partir da vinda de D. João VI e da Família Real, em 1808, que trouxeram junto sua corte ao Rio de Janeiro, além da Banda da Brigada Real de Portugal e através desse modelo foram criadas inúmeras Corporações do gênero, em diversas Organizações Militares. As Bandas Militares, formataram as bases das Bandas Civis, no sentido de estimular a disciplina, a organização e até mesmo o repertório, muito comum no século XIX, esses conjuntos proliferaram por todo o pais, deste modo encontra Bandas nos grandes centros das cidade, como nos interiores mais longínquos era fator comum, na medida em que essa prática cultural era um veículo de entretenimento coletivo, e sua popularidade deu-se devido ao fato de sua aproximação com o povo, em desfiles cívicos, procissões e eventos religiosos, eventos políticos e sociais de toda a esfera. As Bandas Marciais civis tiveram o seu ápice nos Campeonatos de Fanfarras e Bandas da Rádio Record de São Paulo, localizado entre os anos de 1957 e 1982. Nesses desfiles além do aspecto musical, grande destaque possuía as impressões visuais, materializadas pela Linha de Frente das Corporações Musicais, ou seja, por todo o pessoal que desfilava a frente do grupo musical, cuja função precípua era desfilar na avenida com sua composição alegórica constituída pelos estandartes, pelotão de bandeiras, corpo coreográfico, balizas e mor.

AS LINHAS DE FRENTE E O SEU DESENVOLVIMENTO

Num primeiro momento, o desdobramento desses grupos, localizado na década de 1960, se dava através de referências cívicas e ufanistas, nesse sentido, ao desfilarem no Largo do Anhangabaú, as apresentações das Linhas de Frente das Bandas Marciais, se restringiam a exibirem grupos de bandeiras, alegorias e carros alegóricos, contendo a representação de personagens de motivos nacionalistas, como homenagens a heróis e fatos de relevância nacional, segundo uma visão positivista dos agentes que promoviam esses eventos. Na década de 1970, esses aspectos perdem importância, na medida que o luxo dos uniformes, estandartes e acessórios, complementado com as coreografias de caráter marcial dão o tom das manifestações, explorando a questão técnica de ordem unida, como a marcha o alinhamento, a cobertura, aliados ao sincronismo, plasticidade das componentes, cuja precursora foi a Banda Musical Municipal de Cubatão, São Paulo, que ampliou os horizontes, dessa prática cultural, ao propor aspectos artísticos através da professora Silvia Maria dos Santos Silva, cujo objetivo era oferecer uma opção visual ao público, além da musical. Diante

888

dessa ação esse grupo experimentou momentos de tensão no interior da Corporação pela disputa de espaço e visibilidade social, na medida em que dividia o interesse do público. Na segunda metade da década de 1980, após a Ditadura Militar, esses grupos visando distanciar das características militar que esses grupos ostentam, sugerem uma nova proposta de trabalho liderada pela Banda Marcial Municipal de Itaquaquecetuba, por meio de coreografias de caráter cênico, ou seja, o estilo cênico é caracterizado por materializar um evento, associado a temática da música, imprimidos através do gestos, dos movimentos e de acessórios, como pequenos cenários, objetos, figurinos e etc. E, nessa perspectiva, possuir um corpo flexível, manifestar a liberdade de expressão, associados as questões de ordem psicológicas, como a manifestação do sorriso, esse contrário ao aspecto militar, eram fatores determinantes para a elaboração do trabalho. Desta forma, as Linhas de Frente, procuravam estabelecer um diálogo entre as produções artísticas e o espectador, na constante tentativa de materializar parte da história da música, através da representação teatral mediado pela linguagem gestual, isto é, pela técnica da mímica, amparado pela composição de pequenos cenários e acessórios cênicos, para o auxílio da comunicação com o público. Sobre a questão da mímica, Rudolf Laban esclarece que, a natureza da mimica é conduzir nós e a audiência, por meio de gestos com o corpo e das expressões corporais, possibilitando-nos a afeiçoar-se com os personagens e nesse sentido sentir o seu sofrimento ao abominável, ou alegrar-se frente à imagem refletida de nossos “eus”.3 Nesse instante, as pessoas que produziam esses trabalhos, de forma voluntária e, portanto, amadora, eram denominados de instrutor de Linha de Frente de Bandas Marciais e/ou Musicais, com o surgimento da proposta do estilo cênico, esses sujeitos sociais clamavam por serem reconhecidos, como artistas, dessa maneira o termo instrutor passa a ser substituído nesse universo por “coreográfo”, inclusive com a criação de cargo em concursos públicos. Com efeito, a Prefeitura Municipal de Itaquaquecetuba, através da Lei nº 1.195 de 15 de março de 1990, realizou o concurso público, para o preenchimento de vaga para coreógrafo, responsável pela parte estética/visual da Banda Marcial de Itaquaquecetuba. Ainda que, os anos de 1990, apresentassem a institucionalização do termo, verificou-se que ele já se insinuava, como consta no jornal “Tribuna de Itaquá” do dia 20 de Julho e 1985, que: “[...]. Estão de parabéns o Maestro Gabriel Ferreira dos Santos e do Coreógrafo Elizeu de Miranda Corrêa, pelo bom resultado, que confirma o excelente nível atingido pela nossa Banda Marcial Municipal.”4 Sobre a máxima das contratações de coreógrafos e a substituição do termo instrutor, consta, no informativo Weril, de março/abril de 1986, na coluna “Música nas Escolas”, uma matéria que versava sobre a Fanfarra com 1 pisto do Colégio Paralelo, sendo, “[...] Regida pelo 889

maestro Milton Pereira Lélis (Chocolate), [...]. A fanfarra mantém ainda, um arranjador, [...] e um coreógrafo profissional – Gilson Kindermann – especialmente contratado para abrilhantar ainda mais as apresentações do grupo, além de atuar como mór.5 À medida que a revolução se processava nas Linhas de Frente, e apresentando contornos profissionais através da contratação de “coreógrafos”, irreversivelmente constatou-se nesse momento, a perda da popularidade dos eventos de Bandas e Fanfarras a partir do término do Campeonato Nacional de Fanfarras e Bandas da Rádio Record. Contudo, na perspectiva de manter as corporações em atividades, verificou-se a irrupção de Concursos de Fanfarras e Bandas municipais, realizados em várias cidades do Estado de São Paulo, como os tradicionais Concursos de Santos, de Caieiras, de Cotia, de Itaquaquecetuba, de Franco da Rocha, de Arujá, de Araraquara, de Catanduva, de Guaíra e etc. Bem como nos Estados das regiões: Sul, Sudeste e Centro Oeste, haviam concursos municipais também. Entretanto, em nenhum desses eventos, a abrangência do certame era a nível nacional ou a nível estadual, em relação a participação de corporações musicais e com caráter oficial, como acontecia na Rádio Record, exceto em algumas cidades como é o caso de Itaquaquecetuba, que tanto a Banda Marcial quanto o concurso, foram criados pelo Decreto Lei nº 787 de 03 de março de 1983. Além da baixa popularidade dos eventos, outra fragilidade encontrada nesse ambiente, refere-se ao regulamento dos campeonatos. Neles observou-se, singelos apontamentos referente às regras de avaliação das Linhas de Frente. Entretanto, na prática as planilhas de julgamento, direcionavam os critérios de julgamento, procurando valorizar o trabalho realizado pelos grupos, passando a atuar como espécie de fase experimental para o julgamento das Linhas de Frente. Dessa forma, consta na planilha do VII Concurso de Caieiras/SP os itens: Garbo/Marcha, Alinhamento, Evolução e Uniformidade6. Por outro lado, na planilha do 3º Concurso de Ferraz de Vasconcelos/SP, eram avaliados: Marcha, Garbo, Criatividade, Evolução e Uniformidade.7 Já no II Concurso de Fanfarras e Bandas de Quatá/SP, consta na planilha: Marcha, Postura, Aplicação, Criatividade e Coreografia ou Evolução. 8 No II Festibanda de São José dos Campos/SP, registrava a planilha: Marcha, Postura, Movimento ou Evolução, Criatividade, Coreografia ou Evolução.9 Na planilha do IX Concurso de Caieiras/SP, encontra-se os itens: Alinhamento e Cobertura, Uniformidade, Marcha e Evolução.10 Na planilha do X Concurso de Fanfarras e Bandas de Caieiras/SP, consta: MARCHA (alinhamento, cobertura, garbo e uniformidade de marcha), EVOLUÇÃO (criatividade e coreografia) e UNIFORMIDADE (calçados, saias ou calça, túnicas, luvas, barretinas, cintos, talabartes e outros).11 Na planilha de notas de Linha de Frente do XI Concurso de Franco da Rocha/SP, encontra-se os seguintes aspectos de avaliação: Marcha, Postura/Garbo, Visual,

890

Criatividade e Coreografia de Evolução.12 Encontrou-se na planilha do XII Concurso de Catanduva/SP, os seguintes itens de avaliação da LF: Garbo, Marcha, Alinhamento e Cobertura, Evolução e Uniformidade.13 É pertinente destacar ainda, que outras cidades realizaram concursos, se apropriaram dos critérios supracitados para realizarem os concursos, como: Promissão, SP, Florianópolis, SC, Osasco, SP, Santa Isabel, SP, Carapicuíba, SP e etc. Ao analisar as Planilhas de Notas, constatou-se a emergência de um quadro momentâneo indicando a expansão e a aceitação dos trabalhos desenvolvidos pelas LF, na prática observouse um caráter ambíguo e com interesses divergentes, dificultando a integração entre o cênico e a marcialidade no crepúsculo do século XXI, traduzido no aspecto Evolução e/ou Coreografia, ou seja, a questão artística representava apenas de 20 a 25% das notas possíveis, a maioria dos critérios valorizados, eram os relativos aos aspectos da ordem unida, por conseguinte, apoiavase as características da marcialidade, ainda que entre os anos de 1986 e 1990, foi o período em que mais de desenvolveu os chamados trabalhos cênicos (imagem 1) .

Imagem 1: Detalhes da LF da Banda de Itaquaquecetuba no 15º COFABAN de Arujá, SP – 17/06/1990 - Coreografia Estilo Cênico –

Fonte: Acervo pessoal do autor deste texto

Diz Boris Kossoy: “Toda a fotografia, além de ser um resíduo do passado, é também um testemunho visual no qual se pode detectar – tal como ocorre nos documentos escritos – não apenas elementos constitutivos que lhe deram origem ao ponto material.” 14 Diante dessas considerações, a imagem acima revela aspectos despojados, linhas do corpo dos sujeitos em

891

forma de zig zag, possivelmente dançando, com instrumentos musicais característicos do gênero musical do Rock N’Roll, dois integrantes utilizando óculos escuros, uniformes masculinos, composto por bordados de lantejoulas sobre o veludo, kepes enfeitados com brilhos e plumas, revelam certo distanciamento das características militares na medida em que sugerem referências carnavalizads. Desta forma o quadro exibe pessoas mais liberais, e o comportamento de sujeitos masculinos que certamente iriam receber o carimbo de censura em contexto anterior, nesse universo das Bandas Marciais. Ao manifestar a sua arte, fica evidente que esse grupo ampliava o seu espaço e de forma sincronizada na coreografia da democratização. Nesse breve mapeamento dos percalços das Linhas de Frente, destaca-se que em grande parte dos concursos municipais e regionais, e até mesmo nas primeiras edições do Campeonato Estadual da Secretaria de Estado dos Negócios de Esportes e Turismo do Governo de São Paulo, eram ofertados troféus para a melhor Linha de Frente e para a melhor Baliza. Tal inovação revela que tanto as Linha de Frente e as Balizas não gozavam de nenhum prestígio nesse cenário, além do que, não pretendiam formar profissionais que atendessem a demanda social do movimento, mas sim, fomentaram as disputas por espaços, criando perfis de profissionais articulados ao poder hegemônico15. Nesse campo de disputas, observa-se que para conquistar os troféus, era realizada uma acirrada competição entre todas as categorias, ou seja, Fanfarra Simples, Fanfarra com um Pisto, Banda Marcial e Banda Musical. Assim, tanto a Linha de Frente quanto a Baliza, para obtê-los, enfrentava um grande concorrência, pois, geralmente só havia um troféu para a melhor Linha de Frente e outro para a melhor Baliza do evento. Nesse processo, ampliou-se a oferta dos prêmios, para as três melhores em cada aspecto que se destacaram no evento, e com o passar dos tempos a disputa passou a ser entre cada categoria técnica, até que se chegou a sub divisão de avaliação e premiação também para a faixa etária. Sobre a política de renovação dos regulamentos, pode-se considerar a necessidade de implementação de planejamentos municipais no Estado de São Paulo, assim, em 1988, a Secretaria de Estado dos Negócios de Esportes e Turismo do Governo de São Paulo (SENETESP), realizou o primeiro Campeonato Estadual de Fanfarras e Bandas e foi oficializado posteriormente por Lei nº 7.992, de 4 de Agosto de 1992. Mantido pelo governo do Estado de São Paulo, através do Projeto Bandas e Fanfarras, o Campeonato Estadual da SENETESP, tinha como Coordenador o Maestro Ronaldo Faleiros e era realizado em fases, conforme disposto no “Artigo 4.º - Cada Região Administrativa do Estado terá uma fase eliminatória, sendo que a Grande São Paulo e Capital terão 2 (duas) fases eliminatórias cada uma.”16 E, quanto fase final, registrava o “Artigo 5.º - A fase final do certame será realizada, a cada ano, em uma das Regiões Administrativas do Estado, conforme indicação do Secretário

892

de Esportes e Turismo, assegurada a participação de todas elas, em sistema de rodízio. 17 O mesmo mantinha a tradição, como no Campeonato Nacional de Fanfarras e Bandas da Rádio Record, de se realizar eliminatórias específicas, para a capital de São Paulo, tamanha era a quantidade de corporações musicais, ainda existentes na capital paulista, sendo a última edição deste campeonato, realizada no ano de 2002. Os campeonatos da SET, eram realizados em vários municípios do Estado, através de solicitação oficial das cidades, encaminhado junto ao governo de São Paulo, e, ainda, havia um repasse de verba à cidade sede, para auxiliar nos gastos. Portanto, diante da parceria entre os governos estadual e municipal, tornava-se mais fácil manter o campeonato, pois, o custo para a execução do evento era muito grande o que tornava inviável a realização. Segundo o Maestro Ronaldo Faleiros,

No ano de 1.987, fui convidado a ser o coordenador do Projeto fanfarras e bandas da Secretaria dos Negócios de Esportes e Turismo do Governo do Estado de São Paulo, pelo doutor Ralf Barquet, e, em 1.988, realizamos o 1º Campeonato Estadual. E motivado pelo desejo de retomar, o glamour dos grandes campeonatos da Rádio Record e com um sentimento de ousadia, conseguimos realizar no ano de 1.990, o 1º Campeonato Nacional, no Memorial da América Latina, com o apoio do Estado de São Paulo.18

Nesse contexto, fazia-se necessário a reelaboração urgente dos regulamentos dos concursos e campeonatos em detrimento das novas concepções das LF que surgiam. Isso também evitaria a banalização de um aspecto que se expandia e conquistava o seu espaço. Desta forma, no Regulamento Geral do I Campeonato Estadual de Fanfarras e Bandas da SET de 1988, as Fanfarras ou Bandas eram avaliadas em dois aspectos distintos: Musical e Apresentação. Com relação ao aspecto apresentação, consta no Art. 24, o Aspecto Apresentação, que era subdividido em quatro itens: 1 – Marcha, 2 – Uniformidade e Instrumental, 3 – Alinhamento e Cobertura e 4 – Coreografia (Linha de Frente) e/ou Evolução.19 Já no Art. 27, que fazia referência a avaliação, nele verifica-se no item “b) Conforme Artigo 24” que: “1.4 – COREOGRAFIA (linha de frente) e/ou EVOLUÇÃO: serão avaliados os movimentos de evolução, tanto da linha de frente como da corporação (optativo). A coerência dos movimentos, de acordo com a peça executada e a criatividade.” 20 Desta forma, no limiar da década de 1980, as Linhas de Frente passaram a ter visibilidade no cenário das Fanfarras e Bandas. Nesse momento o referencial deixa de ser o luxo das roupas e das alegorias e passa a ser o domínio do movimento com um diálogo com as peças e a capacidade criativa do instrutor “coreógrafo” em materializar a ideia da história da peça executada. Esse regulamento é um marco para a História das Linhas de Frente, pois

893

obrigava os conjuntos a adquirir novos perfis e a responsabilidade junto ao grupo musical, na medida em que, as notas eram somadas, para definir o melhor conjunto. Outro aspecto positivo era que a Linha de Frente, trazia em si, sensações de pertencimento ao conjunto musical.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No entanto, foi percebido que essa prática cultural, para se manter à frente da Corporação Musical, enfrentou momentos constantes de embates e tensões, pelo fato de que naquela ocasião o interesse do público é dispensado ao espetáculo que as Linhas de Frente apresentavam durante os desfiles, e nesse sentido, os músicos e maestros ao ter que dividir o espaço com os “coreógrafos” e componentes das Linhas de Frente, promoviam inúmeras formas de conflito, colocando-os a margem da Corporação Musical. Não obstante, os organizadores dos concursos promovidos pelo Estado, tentavam disciplinar os trabalhos das Linhas de Frente, através de normatizações expressas em seus regulamentos oficiais.

Este texto faz referência aos resultados preliminares do projeto de pesquisa previamente intitulado “História de uma paixão: memórias, tensões e negociações no universo das Linhas de Frentes das Bandas Marciais do Estado de São Paulo”. 1

2

Doutorando e Mestre em História Social (bolsista CAPES), pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, sob orientação da Profª Drª Yvone Dias Avelino. E-mail: [email protected] 3

LABAN, Rudolf. Domínio do Movimento. Org. Lisa Ullman. Trad. Anna Maria Barros de Vecchi e Maria /Silvia Mourão Netto. São Paulo: Summus, 1978, pp. 176-177. 4

Banda Marcial Municipal é Vice-Campeã em Santos. Tribuna de Itaquá, sábado, 20 de Julho de 1984, nº 385.

5

Música nas Escolas. Informativo Weril, março/abril de 1986, nº 45, Ano 8, p. 4.

6

Planilha de Avaliação LF do VIII Concurso de Fanfarras e Bandas de Caieiras – SP, realizado no dia 13/10/1985.

Planilha de Avaliação da LF do 3º Concurso de Fanfarras e Bandas de Ferraz de Vasconcelos – SP, realizado no dia 20/10/1985. 7

Planilha de Avaliação da LF do 2º Concurso de Bandas e Fanfarras de Quatá – SP, realizado no mês de Junho de1986. 8

Planilha de Avaliação da LF do II FESTIBANDA, Festival de Bandas e Fanfarras de São José dos Campos – SP, realizado no mês de Setembro de1986. 9

894

Planilha de Avaliação da LF Concurso de Fanfarras e Bandas de Caieiras – SP, realizado no mês de Outubro de 1986. 10

Planilha de Avaliação da LF do X Concurso de Fanfarras e Bandas de Caieiras – SP, realizado no mês de Outubro de 1987. 11

Planilha de Avaliação da LF do XIº Concurso Nacional de Bandas e Fanfarras de Franco da Rocha – SP, realizado em 15/11/1987. 12

Planilha de Avaliação da LF do XII Concurso de Bandas e Fanfarras de Catanduva – SP, realizado em 01/07/1989. 13

14

KOSSOY, Boris. Fundamentos Teóricos. In: Fotografia & História. 5. ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2014, p. 170. Do grego eghestal, a etimologia do verbete hegemonia de origem militar significa “liderar”, “estar à frente”, “comandar”. Em Gramsci, o conceito se aplica para explicar a dominação de uma classe social sobre outra de forma consentida, não só nas questões de ordem capitalista, mas em toda a forma ideológica de ordem social vigente difundida, como no modo de agir e pensar. Desta forma, “[...] o conceito de hegemonia é apresentado por Gramsci em toda sua amplitude, isto é, como algo que opera não apenas sobre a estrutura econômica e sobre a organização política da sociedade, mas também sobre o modo de pensar, sobre as orientações ideológicas e inclusive sobre o modo de conhecer.” GRUPPI, Luciano. O conceito de hegemonia em Gramsci. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Graal, 1978, p. 3. 15

16

ALESP, Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Lei 7.992, de 04 de agosto de 1992, institui os Campeonatos Estadual e Interestadual de Bandas e Fanfarras. Coletânea de Leis e Decretos. São Paulo Legislação. Diário Oficial. Ago/Set de 1992. V. 441, p. 1. 17

Idem, ibidem.

18

Entrevista com o maestro Ronaldo Faleiros, concedida ao autor desta tese, em 27/03/2001, na Avenida Tiradentes, 326 – Centro – São Paulo (Jornal Uniformes), a qual versava sobre “O campeonato Estadual da SET e a CNBF”. 19

SENETESP, Secretaria de Estado dos Negócios de Esporte e Turismo do Estado de São Paulo. Regulamento Geral. I Campeonato Estadual de Fanfarras e Bandas, 1988. Projeto Bandas e Fanfarras (org). São Paulo, 1988, p. 8. 20

Idem, ibidem, p. 9.

895

Desvendando a origem Puri: uma discussão sobre a provável origem dos Índios Puris do Vale do Paraíba. Enio Sebastião Cardoso de Oliveira Professor Mestre em História Social Doutorando em História Política – PPGE/UERJ Orientador Prof. Dr. Marco Morel

RESUMO

Os índios Puris habitaram uma grande região da Província do Rio de Janeiro, ocupando a maior parte do Vale do Paraíba. Povo do tronco linguístico Macro-jê, têm sua origem como algo envolta em controvérsia pelos pesquisadores, já que nos primórdios da colonização, os portugueses generalizaram todos os índios dos sertões como sendo da etnia Tapuia. Nosso trabalho pretende discutir a provável origem dos Puris na província do Rio de Janeiro, no Vale do Paraíba. No século XVII, as regiões do Vale era uma vasta região de “sertões”, ocupando pelos chamados “índios bravos” de várias etnias, porém tendo em sua maioria relacionada a etnia Puri. Para falar sobre os Puris devemos comentar sobre sua origem. E sobre essa questão, debruçamos nos relatos de vários cronistas e viajantes que estiveram na região no final do século XVIII e sobretudo no século XIX que muitas vezes se confunde com as dos Coroados, outra etnia que viveu na região interioranas dos sertões da Capitanias do Rio de Janeiro. Palavras Chaves: Puris. Sertões. Índios Bravos.

Abstrat The Puris Indians inhabited a large region of Rio de Janeiro Province, occupying most of the Paraíba Valley. People's linguistic branch Macro-Ge, has its origin as something wrapped in controversy for researchers, since the first settlers, the Portuguese generalized all Indians from the hinterlands as the Tapuia ethnicity. Our work discusses likely origin of the Puris in the province of Rio de Janeiro in the Paraíba Valley. In the seventeenth century the regions Valley was a vast region of "backwoods", ranking the so-called "wild Indians" from various ethnic groups, but having mostly related to Puri ethnicity. Talk about the Puris takes us in to comment on its origin. On this issue we worked through the reports of various chroniclers and travelers who were in the region in the late eighteenth century and especially in the nineteenth century that is often confused with those of Crowborough, another ethnic group that lived in the inland region of the hinterland of the captaincy of Rio de Janeiro. Key Words: Puris. Hinterlands. Wild Indians.

Os Índios Puris e a sua suposta origem

896

Este trabalho começa observando os apontamentos do naturalista Alemão Georg W Freireyss: “as línguas que falam os Coroados e os Puris são tão pouco diferente que só isso parece indicar uma origem comum e há entre elles a lenda que, há muito tempo atraz, formavam uma só nação”.1 Neste pequeno fragmento de Freireyss, que segundo o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, viajou pelo Brasil nos anos de 1814 a 1815, 2 mostra a aparente semelhança entre a língua dos Puris em relação aos índios Coroados, e que de acordo com Bessa Freire e Márcia Malheiros, classificados como grupos étnicos pertencentes ao tronco linguístico macro-jê(gê). Sobre a origem dos Puris Alfred Métraux afirma: “Cem anos atrás Coroado ainda se lembrava de um tempo em que eles formaram uma única tribo com o Puri, que mais tarde, como o resultado de uma rixa entre duas famílias, tornou-se seus inimigos3”. Nesta citação de Métraux, datada de 1946, portanto fora da visão e do contexto dos “cronistas” do século XIX, que buscaram defender a tese de que os Puris e Coroados tiveram a mesma origem e, por isso pertencente ao mesmo tronco linguístico, vêm reforçar a teoria de que essas duas etnias em seus primórdios talvez, no que podemos dizer como tempos imemoriais,4 tivessem a mesma origem. Ainda segundo Métraux, os Puris eram uma etnia que habitava uma área que se estendia do Rio Paraíba até a serra da Mantiqueira (províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais) e a parte superior do Rio Doce (província do Espírito Santo), divididos em tribos chamadas de Sahonan, TJamtori, e Xamixuna5. Isto nos remete ao indicativo de que os Puris habitaram uma região que ia além da província do Rio de Janeiro, e que foi ratificada segundo Métraux, por alguns memorialista do século XIX: No século 18, várias centenas de Puri foram atraídos para Villa Rica, onde eles foram vendidos como escravos. Cerca de 500 na região de Piranga e Santa Rita colocaram-se sob a proteção do Português e estavam já instalados perto rio pelo capitão Marlifere Pardo, que é responsável pela maior parte da informação disponível sobre eles. Em 1800, um grupo de 87 Puris foram colocados na Missão de São João de Queluz, onde muitos outros se juntaram a eles. Em 1815 WiedNeuwied viu um grupo de Puri perto de São Fidelis. Spix e Martius encontrou um outro grupo próximo a São João Baptista. A tribo originalmente totalizaram cerca de 4000, mas, após o contato com os brancos, diminuído rapidamente. 6

Métraux pontua na citação acima, a partir da ótica dos memorialistas, que o Puri foi uma etnia que ocupou uma grande área do atual sudeste brasileiro, sofrendo os avanços das fronteiras coloniais, promovido pela coroa portuguesa no final do século XVIII e começo do

897

XIX. Analisar a origem dos Puris não se trata de uma tarefa fácil já que as observações dos cronistas, missionários, viajantes e memorialista muitas vezes eram conflitantes como se pode notar. De acordo com Paulo Pereira dos Reis, os Índios Puris, os Coroados e os Coropós seriam aqueles grupos que nos primeiros séculos de colonização eram chamados genericamente de Tapuias7, como índios do sertão e os Tupis como os do litoral, isto é, a diversidade dos etnônimos na colônia luso-brasileira foi reduzida a apenas dois grupos. Os Tapuias eram, portanto, aqueles índios desconhecidos para os europeus, com uma cultura e língua diferente daquelas etnias que viviam no litoral (os Tupis). Reis se baseia nos apontamentos de diversos relatos de cronistas e pesquisadores do século XVIII e começo do XIX, como o que observa e assinala John Mawe, um mineralogista inglês que esteve no Brasil no período de 1807 a 1811. Mawe traçou o que Reis chama de “um retrato apressado e genérico do Tapuia Fluminense que segundo o viajante era observado como (...) ‘semicivilizados aborígenes do distrito’ de Cantagalo. ‘Tinham os característicos gerais da raça’ (...)”8. Segundo Reis todos os índios do interior da província do Rio de Janeiro eram reconhecidos de forma genérica por alguns memorialista ainda no final do século XVIII e XIX. Desta forma, tanto os Puris, Coropós e Coroados, eram conhecidos no universo étnico dos primeiros anos de colonização como Tapuias. Nesse contexto Luciana Maghelli em seu trabalho conclui: “(...) os Puri, Coroado e Coropó, pertenciam ao tronco lingüístico Macro-Gê e não ao Tupi. Também conhecidos como ‘Tapuia’, os índios pertencentes ao tronco Macro-Gê, sempre foram vistos por colonos e colonizadores como inimigos, selvagens, destituídos de qualquer traço de humanidade. Ao contrário daqueles pertencentes ao tronco Tupi que, exatamente em razão de terem se aliado mais facilmente aos portugueses, foram muito mais fácil e rapidamente dizimados. Somente o selvagem Tapuia ousara sobreviver em pleno século XIX.(...).” 9

Observando tanto os autores citados, quanto os relatos de viajantes do século XVIII e XIX, os ameríndios que viviam na região do Médio Vale do Paraíba, eram nitidamente vistos como diferente daqueles que viviam no litoral e a princípio eram considerados da mesma origem genérica dos Tapuias. Sobre essa temática Cristina Pompa faz a seguinte afirmação: “Tapui” é uma categoria criada no próprio contexto colonial. As línguas não-tupi foram identificadas pelos colonizadores, junto com seus falantes, com o nome genérico – utilizando de forma contrastiva pelos mesmos tupi – de “tapuia”. O dos tapuias, então, é um universo percebido em oposição ao tupi.10 .

898

De acordo com Pompa, esta citação mostra a forma genérica aplicada às etnias de língua não Tupi no período colonial, utilizadas por viajantes em suas crônicas desde o século XVI, estabelecendo uma oposição entre Tupi e Tapuia, em certa medida para simplificar a imensa variedade étnica da colônia lusa no continente americano. Isso demonstra o quanto é difícil dentificar os etnônimos dos índios nos primeiros séculos do Brasil colonial e a construção de uma etno-história pelas diversas lacunas historiográficas, e ao mesmo tempo a carência de fontes, bem como os contraditórios e até mesmo equivocados relatos dos viajantes que estiveram nas regiões de sertões nesse período.

O Binômio Tupi e Tapuia Em relação ao Tupi e Tapuia, John Monteiro ressalta o padrão bipolar no processo de interpretação do passado indígena e assinala o que chamou de binômio entre os Tupis e Tapuias na história do índio no Brasil colonial, procurando demonstrar que essa oposição pode ser algo muito mais complexa do que pode aparentar em princípio. Inscrito inicialmente no binômio Tapuia/Tupi, este padrão foi reciclado em várias conjunturas distintas, reaparecendo em outros pares de oposição, tais como bravio/manso, bárbaro/policiado ou selvagem /civilizado. Mas essas percepções e interpretações não ficaram apenas nas divagações historiográficas ou nos debates antropológicos em torno da unidade e diversidade dos índios, pois tiveram um impacto profundo sobre a formulação de políticas que afetaram diretamente diferentes populações indígenas. Mais do que isso, também foram recicladas e reapropriadas entre alguns segmentos indígenas, o que torna esta história mais complicada ainda11.

O autor procura pontuar como é obscura essa discussão relativa ao binômio Tapuia/Tupi, que está longe ser um debate simples de se fazer. Porém, podemos perceber uma postura que procura denotar uma superioridade dos Tupis em relação aos Tapuias, dentro de uma visão de historiadores tanto colonial como pós-colonial, que não observa toda uma gama de variantes que diferencia os Tapuias no interior do Brasil, e que representa um conjunto de etnias que possuem organizações sociais, a linguística, e manifestações culturais distintas. Monteiro chama a atenção sobre a questão política, isto é, as políticas indigenistas criadas no sentido de organizar o índio na colônia, atendendo o interesse do Estado e que afetaram a vida dessas populações indígenas. Podemos perceber que no século XIX a relação Tupi-Tapuia, toma outra dimensão, sendo que nesse quadro, o Tupi assume uma nostálgica condição heróica pela sua posição de contribuinte na consolidação da presença portuguesa na colônia. John Monteiro complementa:

899

As gerações subsequentes cederam o lugar para a civilização superior, deixando algumas marcas para a posteridade, inscritas nos topônimos, nos descendentes mestiços e na persistência da língua geral que, no século XIX, ainda vigorava entre algumas populações regionais e era cultivada por setores das elites imperiais como a autêntica língua nacional12.

Monteiro analisa pontos importantes sobre a etnia Tupi no que diz respeito ao seu suposto desaparecimento, deixando alguns legados como é o caso da língua geral, mesmo está sento proibida por força do Diretório Pombalino, que segundo o autor, era reconhecida por alguns setores da elite como a autêntica língua nacional. Sob a ótica dos oitocentos, os “Tupis do litoral pareciam ter perecido por completo desde há muito, sendo retratados cada vez mais em tons românticos e nostálgicos”.13 Já os Tapuias foram representados quase sempre como inimigos dos portugueses, mesmo ocorrendo um caráter dúbio apresentado nas evidências históricas. Retratado como índios bravos, um obstáculo para a marcha colonizadora, e por não aceitar a submissão, mostrando bem o caráter dicotômico estabelecido entre os Tapuias e os Tupis, estes últimos colaboradores com o domínio colonial, acarretando com o seu “desaparecimento”, garantindo aos Tapuias a sua sobrevivência no decorrer do período oitocentista. Desta forma, o índio Puri assim como os Coroados e Coropós que habitavam a vasta região no interior da Capitania e depois da Província do Rio de Janeiro, sofreu essa generalização dada às demais etnias. Segundo Luciana Maghelli, essas três etnias pertencentes ao tronco lingüístico macro-jê(gê) e que eram classificados como índios de comportamento “selvagens” e “bravios”, não deixando serem dominados com facilidades pelos colonizadores, foram generalizado como Tapuias14. Mas em certa medida os viajantes e cronistas do século XIX, ao relatarem certas similitudes entre os Puris, os Coroadas e Coropós em relação a sua língua, levantam indícios de que essas etnias poderiam ser de uma origem comum, já que compartilhavam do mesmo tronco lingüístico macro-jê(ge). Como é o caso do que foi assinalado por Mirtaristides de Toledo Piza15 ao analisar a língua dos Puris, Coroados e Coropós em seus apontamentos intitulados “Itaocara, Antiga Aldeia de Índios”, relatando as similitudes que permitiam o

900

“entendimento entre esses ‘selvagens’ e mesmo inimigos em ocasiões”16, reforçando a tese de que os Puris e Coroados falavam dialetos do mesmo tronco linguístico. Porém Magnhelli atenta para o reconhecimento de diferenças étnicas e contrastes desses índios de tronco linguístico macro-gê, que passaram, em determinado momento a serem reconhecidos como etnias com identidade cultural própria por parte dos colonizadores luso-brasileiros.

Puris e os Goitacás na Capitania do Rio de Janeiro Falaremos sobre a questão das visões de alguns autores que colocaram os Puris e Coroados como a de uma origem ou mesmo descendentes dos Goitacás. Em relação a essa descendência, o Dicionário Geográfico e Etnográfico do Brasil ao citar os Goitacás assinalam que esses são parentes e descendentes dos Puris, Coroados e Coropós: “Além de Saint-Hilaire, outros viajantes da primeira metade do século passado, como Eschwege, o príncipe de Neuwied e Martius, trataram demoradamente desses índios e de seus parentes ou descendentes, os Coroados, Puris e Coropós. Eschwege affirma que os Puris tinham origem commum com os Coroados, que eram Goitacás.” 17

O Dicionário Etnográfico afirma que vários viajantes deixaram importantes contribuições sobre o índio do Brasil, principalmente das províncias vizinhas a do Rio de Janeiro, assinalam uma origem comum dos Puris, Coroados e Coropós com os Goitacás, parentesco ou descendência. Paul Ehrenreich reforçando a teoria sobre a suposta descendência dos Puris, Coroados e Coropós em relação aos Goitacás, em seu texto “A Etnographia da América do Sul ao começar o Século XX” comenta: Goytacazes (Waitaka), muito temido, mas já extinctos ao começar o século XVII. Seus parentes ou descendentes são considerados os Coroados, Puris e Coropós, assistentes do Parahyba para o Norte até Minas e Itapemirim. Os viajantes da primeira metade do século XIX, Eschwege, Príncipe de Wied, Martius, Auguste de Saint- Hilaire descreveram-nos aprofundadamente.18

O fragmento de Ehrenreich acima demonstra que existiu identificação entre os Puris, Coroados e Coropós, declarando como extintos os Goitacás. O autor se refere à extinção da etnia Goitacás ainda no século XVII, isso nos remete que essa origem comum ou

901

descendência tem suas raízes ainda em tempos remotos, pois as etnias Puris, Coroados e Coropós ainda estavam presentes e em grande número no final do século XIX. Outro ponto importante que Ehrenriche ratifica no que relataram outros cronistas que estiveram no Brasil no primeiro e segundo quarto do século XIX, como é o caso de Von Eschwege, Príncipe de Maximillian de Wied-Neuwied, Von Martins e Saint - Hilaire. Porém, quando nos debruçamos nos trabalhos desses viajantes, podemos observar que também se identificavam como naturalista, e a historiografia tradicional sobre o indígena brasileiro, podemos notar que ocorre, como afirma John Monteiro, uma tentativa de simplificar o índio e sua história, quando se propõem em analisar o índio como uma espécie de bloco único com características gerais.19 Podemos deduzir que ocorreu a falta de um maior aprofundamento e conhecimento necessário para que os cronistas e os pesquisadores subsequentes desenvolvessem uma história mais crítica. Desta forma, a pesquisa sobre o índio brasileiro foi construída arraigada de conceitos oitocentistas e com certa dose de superficialidade, e porque não dizer, formatada a partir de preconceitos e axiomas. Sobre isto Alfred Metraux questiona a origem comum ou suposta a descendência dos Puris, Coroados e Coropós. Para ele (Métraux): O Guaitacá {Goaptaca, Gyataca, Goyaka, Goytakaz, Waitacazes, Oueitaca), que são tantas vezes mencionado na literatura inicial, desaparecido antes de uma única palavra de sua língua havia sido registrada, de modo que é impossível classificá-los. Sem qualquer razão válida que foram identificados com o Puri moderno e Coroado. eles provavelmente faziam parte dos numerosos "tribos" tapuias ", cuja presença ao longo costa antecedeu as invasões Tupi-Guarani.20

O autor observar que afirmar que os Puris e Coroados fossem identificados com os Goitacás não é verdadeira, pois não existe nenhuma comprovação científica que possa embasar essa afirmação21. Fazendo uma observação crítica quando pontua sobre a literatura disponível em relação a esse assunto no que tange e propõe aos pesquisadores que afirmam essa suposta identidade entre Goitacás em relação aos Puris e Coroados, visto que não existe nenhum registro linguístico, e não conhecemos uma só palavra do que falavam os Goitacás, o que interfere completamente na busca de uma identidade linguística ou alguma afinidade com os Puris e Coroados. Nesta citação Métraux afirma que essa etnia teria morado ao longo da orla marítima em tempos anterior a presença dos Tupis-Guaranis. Segundo Reis, repetindo as palavras de Métraux22, os Goitacás se encontravam “em meado século XVI, na faixa litorânea

902

compreendida entre o Rio Cricaré e o Cabo de São Tome (...)23. Reforçando os apontamentos de Métraux, Luciana Maghelli ressalta que essas etnias são bastante distintas entre si e constituem identidades contrastante e diferenciadas: “Sendo uma tribo essencialmente costeira, já neste aspecto os Goitacá diferenciavamse dos Puris, Coroados e Coropós, que concentravam-se em regiões interioranas. Por outro lado, as próprias características físicas e culturais das tribos em questão já dispõem no sentido da impossibilidade completa de uma descendência comum. Ao só os Puri e Coroados diferem entre si como também nada têm em comum com os Goitacá.24

A autora procura demonstrar aspectos que justifiquem as diferenças entre os Goitacás e os Puris, Coroados e Coropós, sendo os Goitacás uma tribo fundamentalmente do litoral, enquanto à presença das outras etnias estavam ligadas às áreas interioranas das províncias. Maghelli busca delimitar as características dessas tribos que contrastam entre si, defendendo suas identidades. Assim, assinala as diferenças físicas e culturais entre os Puris, Coroados e Coropós e impossibilita uma descendência comum, sendo taxativa ao afirmar que os Puris e Coroados não possui nenhuma semelhança entre eles e com os Goitacás. Maghelli procurou diferenças entre os grupos indígenas em questão, tanto do ponto de vista social, como cultural, assinalando uma radical “distintividade e contrastividade” entre esses grupos. Portanto, citar a etnia dos Goitacás que se localizavam no norte da antiga capitania do Rio de Janeiro, sob a perspectiva de vários trabalhos, nos auxilia a elucidar as teorias sobre a origem do índio Puri e demais etnias como é o caso dos Coroados e Coropós, mesmo não sendo o nosso objetivo estender nossa pesquisa à região norte da referida região. Mas Malheiros, utilizando a abordagem de Maghelli, em seu trabalho de doutorado, também questionando a possibilidade dos Goitacás, também do tronco macro-gê, ter sido a origem dos Puris, Coroados e Coropós. Podemos notar que Maghelli além de questionar essa suposta origem dos Puris, Coroados e Coropós partindo dos Goitacás, deixa, de forma bem clara, que essas etnias possuem uma independência sociocultural diferenciada. Reforçando essa tese, autores como Alfred Métraux, problematizam ainda mais esta possibilidade, assinalando que, devido às guerras que objetivavam exterminar os Goitacás no século XVII, e a presença de registros históricos sobre a existência dos Puris, Coroados e Coropós na mesma época e as diferenças em seus “usos e costumes”, inviabilizam a hipótese de uma descendência Goitacá25, e ainda assinala que: “aqueles que vêem em descendentes Coroados de Waitaka (Goitacás) esquece que o primeiro está intimamente relacionado com . 25

MÉTRAUX. Op. Cit., p., 108 a 122.

903

Puri, que desde o século XVI foram notificados, no interior do Rio de Janeiro (...).” 26 “Ao que parece, Métraux preferiu observar os Puri, Coroado e Coropó como universos socioculturais separados e independentes, ainda que falantes de idiomas de uma mesma

família

linguística”27, mas que segundo o autor existe uma relação entre os Puris e Coroados, ele afirma que esses estão intimamente ligados apesar de possuírem a mesma origem linguística, são possuidores de uma cultura e de dados sociais diferentes.

Considerações Finais Nossa intenção foi promover uma discussão sobre a origem dos puris e observar os registros existentes, tanto de cronista como as novas abordagens sobre essa temática, porém num rápido trabalho não é possível esmiuçar a questão da língua puri e a sua origem na família do troco macro-gê. Porém, podemos perceber que existem muitas similitudes dentre algumas etnias como é o caso dos Coroados e Coropós, que foram dados como uma origem linguística comum, formando a grande família linguística dos Puris. No entanto, apesar da similitude linguística são etnias que possuem culturas bem identificadas que mostram como é fascinante o estudo dessa temática.

1

FREIRYSS, Georg W. Viagem a Várias Tribos de Selvagens na Capitania de Minas Gerais; permanência entre ellas, descripção de seus usos e costumes. Tradução de Alberto Löfgren. In. Revista Histórico e Geográfico de São Paulo, Vol. VI (1900 – 1901). São Paulo, Tipografia do Diário Oficial,, 1902. p. 249 a 250 2 FREIRYSS, Georg W. Viagem pelo interior do Brasil nos annos de 1814 – 1815. In. Revista Histórico e Geográfico de São Paulo, Vol. XI, São Paulo, Tipografia do Diário Oficial, 1906. p. 158 a 228. 3 MÉTRAUX, Alfred, The Puri-Coroado Linguistic Family. In Handbook Of South American Indians. Washington, Sminthsonian Institution, United States, Vol I. 1946. p. 523 4 Ana Moura refere a questão do imemorial ao “aferramento à ideia de costumes locais”. MOURA, Ana Maria da Silva e LIMA, Carlos A. M..Sobre o cachorros e anteparos:Fronteira e projeções espacial da política na América Portuguesa; In História Política, série Grupos de Pesquisas LEPH, produção docente, Laboratório de Estudos de História Política, Universidade Severino Sombra, Vassoras, 2009. p. 172 5 MÉTRAUX. Op. Cit. p. 533. 6 MÉTRAUX. Op. Cit. p. 523 e 524 7 REIS, Paulo Pereira dos. O Indígena do Vale do Paraíba. São Paulo. Coleção Paulista, 1979. Vol. XVI. p. 65 e 66. 8 Ibid. p. 65 e 66. 9 MAGHELLI, Luciana. Aldeia da Pedra, estudo de um aldeamento indígena no Norte Fluminense. Dissertação de mestrado. UFRJ, RJ, 2000. p 121 e 122. 10 POMPA, Cristina. As muitas Línguas da Conversão: missionários, Tupi e “Tapuia” no Brasil colonial. In Revista Tempo, nº 11. Niterói. UFF. 2001

26

MÉTRAUX. Op. Cit., p. 123 MALHEIROS. Op. Cit.,p.107. citando Métraux, A. Les Indiens Waitaca. In, Journal de la Societé dês americanistes, nº 21. Paris, 1929; p. 107 a 126. Ver também: A. Metraux. The Puri-Coroado linguistic family. In: Handbook of South American Indians. Whashington, volume I, 1946, p. 523-530. 27

904

11

MONTEIRO, John Manuel. Tupis, Tapuias e Historiadores: Estudos de História Indígena e do Indigenismo. Campinas, SP: Unicamp, 2001. P. 8. 12 Ibid. p. 29. 13 MONTEIRO. Op. Cit. p. 29 14 MAGHELLI. Op. Cit., p. 121 e 122 15 Mirtaristides de Toledo Piza, natural do distrito de Trajano de Moraes do município de São Sebastião do Alto. Passou a residi em Niterói e se formou em odontologia pela Faculdade Fluminense de Medicina e se bacharelou em Direito pela Faculdade de Direito de Niterói. Foi Professor da Faculdade de Direito de Niterói e Jornalista. Maxwell. Puc Rio. p. 183. http://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/15474/15474_6.PDF. Acesso – 03/08/2015. Membro da comissão de redação Anúário Geográfico do Rio de Janeiro. Membro da Academia Fluminense de Letras, Membro da Academia Niteroiense de Letras, Membro da Academia Petropolitana de Letras, Membro Instituto Histórico de Petrópolis. Anuário Geográfico do Estado do Rio de Janeiro. Niterói. Departamento Geográfico. 1950. p. 1. 16 PIZA, Mirtaristides de Toledo. Itaocara. Antiga Aldeia de Índios. Niterói: Diário Oficial, 1946. p. 1. 17 DICCIONARIO HISTORICO, GEOGRAPHICO E ETHNOGRAPHICO DO BRASIL. Op. Cit., p. 269. 18 EHRENREICH, Paulo. A Etnographia da América do Sul ao Começar o Século XX. Revista do Instituto Histórico e Geographico de São Paulo. São Paulo. Typographia do Diário Oficial. Volume XI. 1906. p. 300. 19 LUFT, Vlademir José. MAGHELLI, L. RESENDE, J. Línguas Indígenas: A Questão Puri-Coroado. Caderno de Criação, ano V, número 15 - junho, Universidade Federal de Rondônia. Porto Velho Centro de Hermenêutica do Presente. 1998. p. 2. 20 MÈTRAUX, Alfred. “The Guaitacá”. In Handbook of South American Indians. Smithsonia Institution. Washington. Editor Julian H. Steward. Vol. 1. P. 2. 21 LUFT. MAGHELLI. RESENDE. Op. Cit., p. 3 22 Métraux “Em meados do século XVI, quando entra na história, os Waitaka a parte ocupada da costa que se estende do Rio Cricaré (hoje Rio S. Mateus), ao Cabo de S. Tomé”. “(...) basta citar Waitaka como uma população nômade que vive na costa do Brasil entre o Espírito Santo e Rio de Janeiro (...). Nesse caso Métraux utiliza a palavra para representar os Goitacás. MÉTRAUX, Alfred. Les Indiens Waitaca. In, Journal de la Societé dês americanistes, nº 21. Paris, 1929; p. 107 e 108. Disponível www. Etnolinguistica.wdfiles.com/local— files/biblios%3Ametraux-1929-waitaka/metraux _1929_ waitaka _perse e. pdf. Acesso: 12/07/2015. 23 REIS. Op. Cit., p. 64. 24 MAGHELLI. Op. Cit., p.18. 25 MÉTRAUX. Op. Cit., p., 108 a 122. 26 MÉTRAUX. Op. Cit., p. 123 27 MALHEIROS. Op. Cit.,p.107. citando Métraux, A. Les Indiens Waitaca. In, Journal de la Societé dês americanistes, nº 21. Paris, 1929; p. 107 a 126. Ver também: A. Metraux. The Puri-Coroado linguistic family. In: Handbook of South American Indians. Whashington, volume I, 1946, p. 523-530.

905

Uma dança de mal-entendidos: religião e conceitos de poder na Irlanda elizabetana

EOIN PAUL O'NEILL Pesquisador Independente Resumo Este trabalho abordará a complexa interação entre identidades, religião e conceitos de poder na Irlanda elizabetana, particularmente durante a Guerra dos Nove Anos (1594-1603), uma guerra que não apenas colocou em xeque o domínio inglês sobre a Irlanda mas o próprio regime elizabetano. Palavras-chave: Irlanda, poder, religião Abstract This paper will look at the complex interaction between identities, religion, and concepts of power in Elizabethan Ireland, especially during the Nine Years War (1594-1603), a war which not only threatened English rule in Ireland, but also the Elizabethan regime itself. Keywords: Ireland, Power, Religion

Irlanda na década de 1590: transgressão, oportunidade e repressão Na Inglaterra, o período elizabetano é encarado como uma espécie de belle époque, quase paradisíaca. Além da própria Gloriana, que, nos séculos XX e XXI ganhou nova vida através de 'retratos' de cinema e televisivos, há também a associação com Shakespeare. Ironicamente, Shakespeare só começou a escrever por volta da última década do reinado de Elizabeth, uma fase que esteve longe de gloriosa. Elizabeth estava velha e com a vaidade a pleno; a sua corte assolada por lutas faccionais. Ela tinha se deixado envolver numa guerra com a Espanha e, embora o mau tempo e o mau planejamento espanhóis lhe tivessem permitido ultrapassar a crise da Armada, a guerra continuou ao longo da década de 1590. Sobretudo, durante esta época a Inglaterra viu-se confrontada com uma guerra na Irlanda que se tornou cada vez mais séria. Embora boa parte da historiografia inglesa (não-irlandesa, melhor dizendo) minimize esta guerra, foi o maior desafio com que Elizabeth se defrontou durante seu reinado. A própria rainha foi em larga medida responsável pela guerra. Elizabeth não era uma boa governante da Irlanda, suas políticas e sua ignorância geral sobre a ilha, deixando seus agentes aí causar estragos sem controle só intervindo quando estes desencadearam uma revolta, bem como sua hostilidade básica diante dos senhores gaélicos e ingleses antigos, desestabilizou profundamente a ilha durante seu reinado. Apesar de na historiografia inglesa (e internacional) ser quase uma heresia sugerir que Elizabeth foi um rainha ruim, é fácil afirmar que ela foi uma rainha ruim da Irlanda. O melhor exemplo disto é a Guerra dos Nove Anos (1594-1603), ápice de anos de instabilidade no norte da Irlanda, causada essencialmente pela negligência e pela incompetência de Elizabeth. Num certo sentido, esta guerra foi o Vietnam da Inglattera. Em Chester, um dos portos de onde os navios com tropas eram mandados para a Irlanda, um dito comum era "melhor ser enforcado como um homem na Inglaterra do que morrer como um cachorro na 906

Irlanda." Milhares de soldados ingleses foram enviados à Irlanda durante a guerra, onde muitos morreram - mais por doenças e pelas condições que enfrentavam do que em batalha. Grande quantidade também desertava. Na verdade, com frequência, as forças da Confederação Gaélica, que as tropas inglesas enfrentavam, ao invés de se arriscarem a uma batalha, simplesmente escolhiam deixar que o clima, as doenças e a espera cobrassem seu tributo. Era mais barato do que comprar pólvora. Só perto do final da guerra é que os ingleses conseguiram organizar um sistema de suprimentos adequado - mesmo assim tacanho em comparação com a Estrada Espanhola utilizada para transportar tropas e suprimentos da Itália espanhola para os Países Baixos. Isto resultava em dificuldades adicionais para os soldados ingleses. Apesar deste cenário sombrio, a Irlanda não deixava de ser encarada com uma terra de oportunidades. Por um lado, vários oficiais, soldados e planters viam na Irlanda um caminho para o enriquecimento; e parcela significativa foi bem sucedida. Por outro, o dinamismo da sociedade gaélica, que tendia a aceitar e incorporar os estrangeiros com mais facilidade do que a cultura metropolitana inglesa, oferecia uma via alternativa, embora uma que potencialmente envolvia certa transgressão. Mais ainda, a cultura gaélica tinha um lado sedutor, identificado e temido pelo poeta Edmund Spenser e por outros escritores seus contemporâneos. Ameaçadora e rotulada de bárbara, talvez por alguns aspectos que parecem notavelmente modernos - pós-modernos até. Isto é particularmente nítido no que toca aos conceitos gaélicos de poder e identidade, que colocavam em xeque as noções bem mais simplistas dos ingleses. No artigo, elaborarei esta ideia. Antes de analisar as ideias gaélicas de poder, e o que pode ser considerado como uma noção gaélica, ainda que um tanto rudimentar, de contrato social, abordarei as identidades sociais na Irlanda no período elizabetano tardio e no que se lhe seguiu. Um aspecto que se destacará é o entrelaçamento entre religião e identidade, algo que progressivamente se tornou mais forte ao longo do século XVII, tanto na Irlanda como na Inglaterra. Em seguida, retornarei para a questão do poder, um conceito que era entendido de forma diferente pelos ingleses e pelos irlandeses gaélicos. A incapacidade da rainha Elizabeth de entender isto contribuiu muito para os graves problemas sofridos pela Irlanda no período de seu domínio e, indiretamente, para a correlação crescente entre identidade nacional e religião. Tornar-se inglês, tornar-se irlandês: identidade nacional no início da Era Moderna Durante o período em pauta, a identidade nacional esteve interligada com religião, traço que de certa forma se aplica à Europa como um todo. Na Irlanda e na Inglaterra ocorreram processos análogos, durante o século XVII, que resultaram na formação de novas identidades nacionais baseadas em religião. Mais, ambas as novas formas de identidade precisaram lidar com minorias que não se enquadravam no novo modelo. Na Irlanda, no final do século XVI, grosso modo havia três grupos étnicos culturalmente aceitos: os irlandeses gaélicos; os ingleses antigos; e os ingleses novos. Durante o século XVII, a separação entre irlandeses gaélicos e ingleses antigos foi sendo gradualmente erodida, talvez sobretudo em decorrência de derrotas militares, correspondendo em paralelo à emergência de um novo grupo identitário, o dos irlandeses católicos. O eclipsar da distinção entre os dois grupos tinha raízes na Guerra dos Nove Anos 907

e mesmo antes, e houve esforços conscientes por parte de literati falantes de irlandêsgaélico, como Keating, Ó Clérigh, ou Roche, de estimular a produção de uma nova identidade. Todavia, o processo parece ter-se acelerado em consequência das guerras Confederadas e de Cromwell. Após a assim chamada Revolução Gloriosa, o processo estava virtualmente completo, ao menos num de seus níveis: não havia mais uma elite gaélica separada da elite dos ingleses antigos. Não obstante, por contraste, havia ainda grande quantidade de camponeses e outros remanescentes do mundo cultural gaélico.. Os ingleses novos (bem como outros imigrantes britânicos na Irlanda) passaram por um processo diferente. Eles foram beneficiários dos conflitos que tanto afligiram a Irlanda no período elisabetano e dos Stuart, alguns com ganhos superiores mesmo aos dos monarcas ingleses. Richard Boyle, mais tarde alçado a Earl de Cork, é talvez o mais notável destes parvenus1. Grande número de recém-chegados, além do casamento com irlandeses gaélicos e ingleses antigos, fez com que este grupo aumentasse. Ao mesmo tempo, houve um afluxo maciço de escoceses à Irlanda, especialmente para o Ulster. Este processo conduziu ao, caso singular nos reinados dos Stuart, desenvolvimento de uma identidade britânica. Esta identidade, todavia, nunca foi sustentada pela maioria dos grupos de colonizadores, fossem eles de descendência escocesa ou inglesa. A construção de uma identidade irlandesa católica não estava apenas confinada à Irlanda. Na primeira metade do século XVI, os colégios da Europa onde os católicos irlandeses eram educados tiveram importante papel neste processo, destacando-se o colégio franciscano em Louvain. De certa maneira, estes colégios tendiam a reforçar a divisão entre irlandeses gaélicos e ingleses antigos, uma separação que encontrava eco nas ordens religiosas, o último grupo tendendo a preferir os jesuítas e o primeiro os franciscanos. Apesar disso, estes colégios contribuíram para a criação das bases da nova identidade. Dois tipos principais de atividade cumpriram esse papel: um envolveu o que se poderia chamar de resgate da história da Irlanda gaélica, como exemplificada na obra dos Four Masters, mas também associada a hagiografia; o outro girava em torno de um aspecto mais presente - a afirmação de uma natio católica. Há várias análises sobre os indivíduos associados a este processo, como as feitas por Thomas O’Connor sobre David Roche e Thomas Messingham. Na análise sobre Messingham, O’Connor descreve como ele aplicou a “ciência moderna da hagiografia às questões de identidade cultural e política” (1999: 158). 2 Messingham dera-se conta do significado político da história religiosa tanto para ajudar a criar, ou sustentar, a idéia de uma natio católica como para atrair o auxílio de outros países católicos aos católicos perseguidos na Irlanda. (ibid: 164). Na Inglaterra, a formação de uma nova identidade nacional seguiu um processo muito semelhante ao da Irlanda. Na verdade, ao menos em certa medida, as novas identidades podem ser encaradas como imagens especulares uma da outra. Ao passo que na Irlanda o que emergiu durante o século XVII foi uma irlandecidade católica, na Inglaterra tratou-se de uma anglicidade protestante. Em ambos os estados isto envolveu novas definições de quem estava incluído e quem estava excluído. Na Irlanda, os escoceses gaélicos estavam fora. Os clãs e sub-clãs das terras altas e das ilhas, que partilhavam da mesma cultura da Irlanda gaélica, eram colocados à parte do novo marco insular e religioso de irlandecidade, muito embora isto envolvesse romper com o Gaeltacht (área cultural gaélica) que existia anteriormente. Na Inglaterra, aqueles ingleses nascidos fora da Inglaterra - em áreas inglesas da Irlanda e de Calais -, na sua maioria católicos, eram excluídos da 908

definição de anglicidade3. Esta nova definição de anglicidade foi bastante contestada, inclusive de forma veemente pelos ingleses antigos da Irlanda que tentaram manter viva a associação com a categoria. O seu esforço, todavia, não teve sucesso. A partir de finais do século XVI os ingleses antigos passaram a ser comumente descritos como tendo caído, degenerado para algo inferior até aos gaélicos irlandeses. Spenser talvez seja o mais eloquente e bem conhecido defensor desta crença. Para além disso, a emergência de uma nova identidade irlandesa católica, baseada na fusão dos irlandeses gaélicos e dos ingleses antigos, era em certa medida interdependente do crescimento da nova identidade protestante inglesa. Assim, quanto mais irlandeses menos ingleses se tornavam os ingleses antigos. Ao mesmo tempo, este processo foi bastante intricado, tanto na Irlanda como na Inglaterra. Por exemplo, ao longo da maior parte do século XVII, os ingleses antigos encaravam-se como ingleses leais e como bons católicos, algo visto como anátema por muitos protestantes ingleses, incluindo-se aí o rei James, que os chamava de “meios súditos”. Ademais, havia outras lealdades e identidades, tais como as de ordem regional, a um clã ou família, e muita gente quase parecia especializar-se em conciliar identidades que se sobrepunham e eram aparentemente contraditórias (Kidd 1988: 322).4 A Irlanda do século XVI: um quebra-cabeça de identidades "étnicas" e a dimensão "nacional-religiosa" Antes de passar para a seção seguinte, quero deter-me um pouco mais na questão das identidades na Irlanda, nos diversos tipos de identidade, em particular aquelas presentes durante a Guerra dos Nove Anos. Em trabalhos sobre a Irlanda no século XVI (e boa parte do XVII) normalmente se divide a população em três grupos: irlandeses gaélicos, ingleses antigos e ingleses novos. Assume-se implicitamente que estes grupos eram rígidos e excludentes. Todavia, na realidade eram dinâmicos, fluídos e havia considerável superposição, ocorrendo também o que um observador atual poderia encarar como contradições. Os condes de Clanricard são exemplo disso. Descendentes da família normanda De Burgo, estavam entre os mais gaelicizados dos lordes ingleses antigos. Não obstante, Richard Burke, o quarto conde, lutou no lado inglês em Kinsale, casou-se com uma rica herdeira inglesa, tornou-se membro da corte da Inglaterra no período Stuart e Conde de St. Albans; além de ser o único católico a deter um cargo administrativo. Outro exemplo é Hugh O’Neill – cuja avó era da Casa de Kildare. Foi criado pela família de ingleses novos (ou, só para confundir ainda um pouco mais, de velhos ingleses novos) dos Hovenden e também manteve diversos contatos com famílias de ingleses antigos e novos. Um outro exemplo, que mostra como a Irlanda era uma zona tanto de transgressão como de oportunidades, é o de Henry Bagenal, marechal do exército inglês na Irlanda e arqui-inimigo de Hugh O'Neill. O pai de Henry, Nicholas, fugiu para a Irlanda em 1538 depois de ter morto alguém na Inglaterra. Entrou em contacto com Con Bacach O'Neill - avô de Hugh O'Neill - e Con Bacach intercedeu junto a Henrique VIII para que perdoasse Nicholas. Apesar desta entrada pouco auspiciosa, Nicholas foi capaz de desenvolver toda uma carreira na Irlanda, que culminou com sua indicação para marechal do exército. Henry herdou o posto, bem como o assento no Conselho da Irlanda - que correspondia ao governo de fato da Irlanda. Além disso, Bagenal dedicou-se com afinco à construção do senhorio, em torno do seu centro de Newry, bastante próximo ao de Hugh O'Neill. Na verdade, a rivalidade entre Henry e Hugh baseava-se nas tentativas de ambos de se tornarem o senhor mais importante 909

do Ulster. Noutros termos, em boa medida, Henry Bagenal agiu como um senhor gaélico, tentando obter um senhorio para si e até conseguindo colocar vários senhores menores sob sua influência. Estas interconexões de grupos “étnicos” no topo da hierarquia social eram sem dúvida repetidas através da sociedade irlandesa. Mesmo dentro do Pale, o núcleo forte dos “ingleses irlandeses”, vários camponeses eram gaélicos. Spenser queixava-se das amas-deleite gaélicas, que julgava responsáveis pela corrupção dos ingleses antigos. Os ingleses novos tampouco permaneceram imunes: muitos se casaram com membros de famílias gaélicas e de ingleses antigos. O próprio Hugh O’Neill foi criado por um tempo, como se disse, pela família de ingleses novos (mas católicos) dos Hovenden e Henry Hovenden, desta família, tornou-se um dos confidentes mais próximos de O’Neill, acompanhando-o no exílio. Outro exemplo interessante, especialmente em vista do medo de “corrupção” que parecia ser comum sobretudo entre os ingleses novos, em particular entre os inclinados ao calvinismo ou ao puritanismo, era a gaelicização de alguns (talvez de muitos na verdade) soldados. Um dos exemplos mais evidentes é o Capitão Thomas Lee, que se fez retratar em trajes gaélicos e se casou com uma mulher gaélica. Esse temor era particularmente forte entre os ingleses novos, evidenciado na sua crítica aos ingleses antigos – a afirmação de nãoanglicidade destes últimos, de sua queda, de certa forma -, de que os ingleses antigos haviam sido corrompidos pelos irlandeses gaélicos. Ao invés de se manter à parte dos irlandeses gaélicos, os ingleses antigos haviam adotado os costumes e a cultura irlandeses, tinham se casado com irlandeses gaélicos e muitos até falavam irlandês. Implícita neste argumento estava a ideia de algo sedutor na sociedade gaélica, sedução que fora a causa da queda dos ingleses antigos e algo com que, portanto, os novos ocupantes tinham que ter muito cuidado. Todavia, vários ingleses novos ainda se casavam com membros de famílias de ingleses antigos e até gaélicas, esmaecendo ainda mais as fronteiras “étnicas” da época. Ao mesmo tempo, havia sinais de emergência de uma nova irlandecidade católica, que ficou patente durante a Guerra do Nove Anos. O’Neill recorrera a uma ideologia de fé e pátria, com isso tentando (a maior parte do tempo sem sucesso) atrair o apoio dos ingleses antigos. Isto estava claramente sintetizado nas demandas que apresentou em 1599-1600, onde essencialmente apelava por liberdade religiosa para a Irlanda e por o país ser governado por irlandeses (católicos). Embora O’Neill fosse derrotado, a ideologia a que tentou recorrer durante a guerra acabou, a longo prazo, por ganhar ampla adesão. A derrota de Hugh O’Neill na guerra resultou na destruição dos senhorios gaélicos autônomos. Todavia, embora os sistemas políticos gaélicos tivessem sido destruídos e o país sofrido um processo de anglicização, a igreja do estado não conseguiu tornar-se aceita pela maioria da população. Ao contrário, a Igreja Católica, apesar dos vários problemas com perseguições e com o governo, estava fortemente empenhada na reconstrução e reforma do catolicismo irlandês, em novos moldes tridentinos. Na mesma época, no continente, nos seminários e universidades que aí haviam sido criados para ensinar católicos irlandeses, estava em curso um processo notável - de, essencialmente, um renascimento da cultura gaélica. Apesar disto ter-se dado em várias partes da Europa Católica, o seu núcleo estava na Flandres espanhola, particularmente no colégio franciscano de Louvain. Os franciscanos tinham laços muito próximos com as principais famílias gaélicas do Ulster. O que ocorreu em Louvain, entre outros lugares, foi uma tentativa de forjar um novo tipo de irlandecidade. Isto incluía tanto uma missão 910

antiquária de salvaguarda da memória da Irlanda gaélica, tendo como produto a história épica da Irlanda dos Four Masters, como (embora seguindo uma trajetória um tanto diferente) o Foras Feasa ar Éirinn de Keating. A história dos Four Masters atém-se de modo bastante rígido aos moldes das crônicas históricas gaélicas tradicionais. Keating é diferente, ele lida de maneira explícita com um segundo objetivo deste movimento, o de refutar as “calúnias” contra os irlandeses. Isto envolvia negar que os irlandeses fossem maus cristãos (ou fossem pagãos), que a igreja irlandesa durante seu período épico tivesse de fato sido “protestante” na sua essência e também a contestação de validade às tentativas de alguns autores escoceses de reclamarem como “seus” os santos irlandeses e os esforços missionários da igreja gaélica no início da Idade Média. Para além das comunidades acadêmica e religiosa, também havia no continente uma comunidade significativa de emigrés gaélicos. Consistia na sua maior parte de soldados dos vários terços irlandeses a serviço do exército espanhol - bem como de suas mulheres e famílias. Muito embora incluísse tanto irlandeses gaélicos como ingleses antigos, os irlandeses gaélicos tendiam a ter maior importância, com os pretendentes aos condados de Tyrone e Tyrconnell tendo seus próprios terços. É provável que vários irlandeses a serviço do exército espanhol houvessem estado em contato com as idéias do renascimento gaélico, bem como com as da Contra-Reforma. É aliás de certa forma irônico que seja muito mais fácil ouvir a voz da Irlanda gaélica nas histórias sobre a Flandres espanhola do que na própria Irlanda durante este período. O conceito gaélico de poder: um contrato social esquecido? Em outubro de 1595, James MacSorley McDonald, senhor do estratégico castelo de Dunluce, entalado entre as exigências da Confederação Gaélica de Hugh O'Neill e as do governo inglês, mandou carta à Rainha Elizabeth explicando-lhe que tivera que mandar uma força de soldados para O'Neill. Todavia, insistia que fora obrigado a cumprir com isso, para que O'Neill não o punisse, e que ele era de fato leal, o que ficaria claro assim que a Rainha mandasse homens para protegê-lo5. Numa época em que era abundava uma retórica com frequência obviamente falsa, é refrescante a franqueza (e o realismo político avant la lettre) assim expressa. É também uma boa ilustração de como o poder era encarado na cultura gaélica, do conceito gaélico de poder, bem distinto do elizabetano. Nos senhorios irlandeses, o poder não era garantido por herança nem por investidura. Era mais dinâmico e flexível do que isso e, em certo sentido, mais simples (bem como mais subversivo, representando um desafio não apenas para as estruturas de poder elizabetanas como também para trabalhos teóricos posteriores que fariam a justificativa da idealização inglesa do poder, com destaque para Locke, mas, em boa medida, também Hobbes): o poder estava com os que o detinham. O que era diferente e essencialmente radical quanto a este conceito era a ideia que os que detinham o poder deviam proteger aqueles que aceitavam o seu domínio. O poder não era algo absoluto e que vigoraria até a morte do senhor. Ao invés, envolvia deveres e responsabilidades. Mais, precisava ser constantemente reformulado e renegociado, não era permanente nem garantido. Se um senhor ou governo se mostrasse incapaz de cumprir com suas responsabilidades, particularmente de prover proteção a seus seguidores, nesse caso o domínio de outros senhores poderia ser aceito (ou o senhor poderia ser deposto ou, ainda, encorajado a renunciar). Lordes menores podiam mudar sua lealdade para rivais do senhor que se mostrava incapaz, e o próprio campesinato tinha opção de se 911

refugiar sob outro senhor - e, embora houvesse terra com relativa abundância, havia falta de pessoas para trabalhá-la. Num certo sentido, isto pode ser encardo como uma fórmula gaélica de contrato algo, algo que nos séculos XVII e XVIII mereceria debates filoóficos alentados. De modo talvez um tanto cínico, caberia defender que a principal distinção entre a versão gaélica do contrato social e as outras, mais eruditas e iluminadas, é que a gaélica efetivamente foi posta em prática. Repetindo, essencialmente, o contrato social gaélico postulava que o poder estava baseado em responsabilidades e deveres, em particular de proteger aqueles que se lhe submetiam, os quais, em contraste com o apresentado em algumas versões filosóficas, tinham o direito de escolher se retirar do contrato se os seus senhores se mostrassem incapazes de prover proteção. Esta versão gaélica era bem mais realista do que a versão posterior, pois que baseada em relações sociais e políticas que existiam de fato. Embora o poder fosse algo negociado em toda a parte - mesmo que em medidas variáveis, dependendo das circunstâncias particulares -, no sistema gaélico isto era muito mais reconhecido. Um exemplo interessante, que ilumina esta concepção de poder, foi a execução, em 1590, duvidosa do ponto de vista legal, de Hugh Roe MacMahon, um dos principais pretendentes ao senhorio de Monaghan. O vice-rei Fitzwilliam esteve sob forte suspeita de corrupção e de aceitar propina nesta execução (inclusive do próprio infeliz Hugh Roe). Além disso, ao promover a reorganização da estrutura de propriedade de terras em Monaghan, da qual se beneficiaram alguns oficiais do governo, também - talvez de modo fatal - solapou a confiança gaélica no estado. Neste sentido, foi também um contribuinte direto para a Guerra dos Nove Anos, na medida em que vários senhores gaélicos consideraram que as ações de Fitzwilliam eram ilegais - pelo menos no que se refere a sua concepção dos hábitos ou leis que regiam a interação social e política. Na sua visão, Fitzwilliam tinha preso e executado Hugh Roe de forma arbitrária, sem respeitar as normas (tanto legais como para-legais) que normalmente regiam as interações entre o estado e os lordes gaélicos. Isto era agravado pelo fato de acreditarem piamente que o vice-rei tinha aceito (e talvez mesmo extorquido) um suborno de Hugh Roe. Na verdade, pode-se defender, com base em Hobbes e outros filósofos contratualistas, que a execução de Hugh Roe rompeu o contrato social (ou acordo social, se quisermos pular dois séculos e ir a Burke) entre a Irlanda gaélica e o governo. Havia regras de conduta estabelecidas. Ao aceitar suborno e em seguida fazer com que um lorde gaélico fosse prontamente executado com base no que quase todos acreditavam ser acusações forjadas, Fitzwilliam quebrou estas regras. Numa certa extrapolação a partir daí, talvez que o recurso às armas de O'Neill, bem como dos outros senhores confederados, pudesse se justificar, nessa perspectiva contratualista, pela quebra dos acordos sociais básicos entre o monarca / estado e os senhores - ou, na verdade, também de uma perspectiva Whig, pela violação pelo estado ou pelo governo dos costumes e direitos tradicionais. Em última análise, isto correspondeu à essência da justificativa da "Revolução Gloriosa" de 1689 - e, de fato, durante o reinado de Elizabeth, a Irlanda sofreu tantos ou mais abusos do que a Inglaterra na década de 1680. Este conceito contratualista gaélico era bastante subversivo e, como se pode imaginar, colidia com a visão predominante de poder na Europa na época. Conforme esta, o poder era algo que os monarcas recebiam por direito, que lhes fora conferido por vontade divina. Era para ser aceito. Questionar tal poder implicava em questionar a vontade divina. 912

Por contraste, na concepção gaélica, o poder era dinâmico e flexível - noção bem mais realista, como já referido. Era (constantemente) construído e negociado, mais do que herdado, na medida em que, nesta concepção, poder envolvia direitos e responsabilidades - a proteção dos que lhe estavam sujeitos entre os mais fundantes. Mais, e isso talvez constituísse o elemento mais subversivo, os que aceitavam o poder de um senhor - na mesma linha, de um governo ou monarca - tinham a direito de, se não fossem protegidos, se o senhor não cumprisse com sua parte do contrato social, buscar proteção de outro senhor. Evidentemente, isto se confrontava com o absolutismo de Elizabeth, bem com as ideologias correntes nos novos estados centralizadores na maior parte da Europa ocidental. Embora isso tenha variado com o tempo e geograficamente, os magnatas regionais eram com frequência encarados como ameaças ideológicas e políticas a uma nova forma de poder que reivindicava o monopólio do poder militar, justiça e administração do estado. Na Inglaterra e, por extensão, na Irlanda - tal se mostrava com particular intensidade. Durante o seu reinado, Elizabeth, teve infindas dificuldades com os senhores da Irlanda. Não obstante, apesar do desejo da rainha de não gastar dinheiro na Irlanda e de evitar quaisquer maiores envolvimentos, praticamente não empreendeu esforços no sentido de tentar incorporar estes lordes ao estado. Alguns vice-reis tentaram implementar programas de "reforma", mas a maior parte naufragava quando eram necessários recursos ou quando outro vice-rei assumia. Não houve nenhuma tentativa de criar uma corte em Dublin ao contrário do que fez Filipe II, ao indicar sua filha Isabela e seu genro Alberto soberanos dos Países Baixos espanhóis em 1598. Ao contrário, mais parece, especialmente na década de 1590, que a estratégia do governo era o exato oposto. Assim, Nicholas Bagenal que, como referido, fugira para a Irlanda após matar alguém na Inglaterra, e seu filho podiam estar no Conselho da Irlanda, mas não Hugh O'Neill, o Conde de Tyrone, um dos senhores mais importantes. O fracasso de Elizabeth em estabelecer um laço dos lordes gaélicos com a administração do estado resultou numa série de rebeliões e num descontentamento generalizado, que culminaram na Guerra dos Nove Anos. Por outro lado, ela deixou seus oficiais, tais como Bagenal ou Bingham, criar seus próprios quase senhorios. Naturalmente, isto afastou os senhores gaélicos. A questão de por que Elizabeth não fez nenhum esforço efetivo de integrá-los é complexa e múltipla. Em síntese, todavia, pode-se dizer que parte da resposta se liga, exatamente, às concepções diversas de poder. A leitura de poder de Elizabeth - e as consequentes fidelidade e lealdade que demandava de seu súditos -era que lhe pertencia por direito, natural, e não algo que tivesse que ser (constantemente) negociado; com certeza não dependente de que o soberano cumprisse com determinadas condições. Embora, em função das guerras religiosas que varreram a Europa nos séculos XVI e XVII, a noção hegemônica de poder, como algo que os soberanos detinham por direito e que, em última análise, provinha de Deus, tenha acabado por ser questionada - provendo justificativa para revoltas contra monarcas -, permaneceu enquadrada num contexto religioso. Tampouco envolvia um questionamento da natureza do poder e da autoridade. Embora uma multiplicidade de questões costumasse estar envolvida, particularmente de ordem local, as revoltas contra os monarcas tendiam a ser legitimadas ou como rebeliões ligadas a "mau conselho" ou - embora em menor grau - a liberdades religiosas. Neste caso, embora os monarcas pudessem ser destituídos por causa de sua religião, como no caso de Mary da Escócia, a Revolução Holandesa é um dos poucos exemplos de caso bem sucedido no início da Era Moderna, de monarca deposto e substituído por outro soberano, 913

"estrangeiro". Após a deposição de Mary Stuart, o filho dela assumiu o trono. Na Inglaterra, na Revolução Gloriosa, o católico James foi substituído por sua filha e seu genro protestantes. Na Irlanda, durante a Guerra dos Nove Anos, os confederados de O'Neill ofereceram a coroa da Irlanda à Espanha, um movimento cujo caráter radical não costuma ser integralmente apreciado. Na verdade, muito católicos irlandeses, em especial os ingleses antigos, discordaram disto. Insistiam em permanecer leais à coroa inglesa, apesar de sua própria lealdade ser posta em questão e seu acesso aos privilégios de estado ter sido grandemente restrito. Ainda assim, na medida em que se consideravam ingleses, tornar-se súditos espanhóis era algo que encaravam como anátema. À medida que as guerras religiosas começaram a abrandar - e, de fato, no caso de Locke, como justificativa para a última guerra religiosa europeia significativa, a assim chamada Revolução Gloriosa -, os teóricos europeus, especialmente Hobbles, Locke e, mais tarde, Rousseau, desenvolveram a ideia de contrato social. Nenhum destes autores se referiu à Irlanda gaélica. Rousseau talvez possa aqui ser desculpado pelo fato de que a sociedade gaélica parara de existir bastante antes do período em que escreveu. Já a ignorância de Hobbes e Locke sobre o assunto é menos justificável. Ambos escreveram quando se processava a destruição da Irlanda gaélica. Na verdade, os textos de Locke, apesar de serem encarados como a pedra angular do pensamento liberal, podem ser vistos, um pouco mais cinicamente, como uma propaganda - contradizendo por inteiro a leitura usual de seu trabalho - do que correspondia de fato à expropriação forçada da propriedade e da posição social dos proprietários de terra irlandeses católicos, incluindo os remanescentes dos senhores gaélicos que tinham sobrevivido ao trauma dos períodos de Elizabeth, dos Stuart e Cromwell, e à criminalização dos irlandeses católicos em geral, que correspondiam à maioria da população da Irlanda na época. De fato, Hobbes e Locke - e outros téoricos sociais ingleses - essencialmente ignoram o fato de que os séculos XVI e XVII representam uma negação do contrato social que antes funcionava razoavelmente bem na Irlanda, um contrato social real, ao invés da fábula com que pareciam obcecados. Mais do que isso, o contrato social e o acordo liberal sobre os quais Locke escreveu e que propagandeou, ambos, legitimavam a destruição da classe proprietária católica na Irlanda apenas por sua religião. Assim, o resultado político da Revolução Gloriosa baseava-se nesta reorganização social, nada liberal e violenta, da Irlanda. A Irlanda católica precisava ser esmagada antes que uma Inglaterra liberal - que faria tudo ao seu alcance para destruir o comércio irlandês - pudesse emergir. Olhando a partir de uma perspectiva distinta, talvez se possa escusar Hobbes e Locke. Desde a invasão anglo-normanda no século XII, e com especial veemência durante os séculos XVI e XVII, a Irlanda gaélica fora associada e condenada ao "barbarismo" e ao "atraso", a ser diferente do resto da Europa Ocidental. Era encarada como uma cultura que precisava ser conquistada, reformada e civilizada, não como um lugar que pudesse servir de inspiração para novas teorias sociais ou ideias. Os textos de Giraldus Cambrensius do século XII definiram o padrão para esta exclusão da Irlanda gaélica do mundo civilizado ou cristão. Os escritores Tudor e elizabetanos basearam-se fortemente em Cambrensius, usando-o como base para seus próprios ataques à Irlanda gaélica. Como ele, não viram praticamente nada capaz de redimir a cultura gaélica. A ideia de que ideias políticas relevantes poderiam ter sido produzidas por este mundo teria constituído um anátema para esses escritores.

914

Na sequência da derrota da Confederação de Hugh O'Neill na Guerra dos Noves Anos, o sistema político gaélico foi destruído. A lei inglesa passou a impor-se pela primeira vez sobre a Irlanda como um todo, embora muitos senhores gaélicos ainda detivessem terras e a maioria da população fosse gaélica e católica. Ao longo do século seguinte, uma série de derrotas militares, assentamentos [plantations], perseguições aos católicos e a monetarização da economia e da propriedade da terra, de fato destruíram a Irlanda gaélica. No final do século XVII não havia mais irlandeses gaélicos - nem, na verdade, ingleses antigos. Haviam sido substituídos por irlandeses católicos e por planters e seus descendentes, com dificuldades identitárias que levariam séculos para resolver (se é que se pode falar numa solução). Os senhores e a classe proprietária de terras gaélica e de ingleses antigos tinha sido essencialmente aniquilada, destituída ou partido para o exílio. Não havia lugar na nova filosofia lockeana para eles - ou para suas ideias. Conclusão As guerras no final do século XVI e durante o século XVII na Irlanda envolveram uma batalha de ideias, na qual identidade e religião tiveram papel fundamental. É irônico que o "selvagem desprezível", católico, "bárbaro" - "pagão" até -, que constituía a imagem do irlandês gaélico, buscava limitar os poderes do monarca e defender a tolerância religiosa. Também é irônico que os ingleses antigos, difamados, embora menos do que os irlandeses gaélicos, colocassem resistência às tentativas do governo de criar uma maioria parlamentar artificial. Ou seja, que o que tentavam fosse garantir aspectos que serão depois destacados como dentre os mais "gloriosos" da assim chamada “Revolução Gloriosa”, que futuramente seria celebrada pela tradição Whig. Ainda mais irônico é que o tipo de princípios “Whig” ou “proto-democráticos” aplicados pela Inglaterra na Irlanda, sob Cromwell ou após 1691, tenha tido caráter catastrófico - que se pode pensar que acabou por culminar na Grande Fome da década de 1840. A Irlanda tornou-se uma anomalia. A grande massa da população permaneceu católica, um dos poucos países da Europa a desafiar o cuius regio, eius religio. Neste sentido, vale apontar ainda para mais uma ironia. Hugh O’Neill tentou sem sucesso recorrer a uma ideologia de “fé e pátria” durante a Guerra dos Nove Anos. Durante a década de 1640, isto voltou à cena mas não se consolidou diante da enorme quantidade de facções e divisões presente. Na década de 1690, quando finalmente havia um monarca católico e os católicos pareciam unidos, falta de sorte e inépcia conduziram à derrota dos jacobitas. Não obstante, o que triunfou após todas estas guerras foi a religião católica - ou, mais propriamente, a nova identidade de irlandês católico. Num certo sentido, a guerra teve um efeito perverso sobre a formação do estado na Irlanda. Antes um reino construído a partir da derrota dos inimigos internos, tornou-se uma colônia, ao mesmo tempo em que derrota militar e perseguição dos católicos levou à emergência de uma nova identidade irlandesa católica e ao desaparecimento das identidades anteriores. Assim, para permanecer no terreno da ironia, embora a vitória inglesa na Guerra dos Nove Anos tenha levado à conclusão da conquista da Irlanda - e aberto caminho para que a Inglaterra se movesse para longe da Europa, em direção a oeste e ao Império -, podia ter sido evitada. Elizabeth não queria lutar na Irlanda. Na verdade, não queria ter nada a ver com a ilha. Contudo, o seu desgoverno gerou grande descontentamento que, por incompetência dela, levou à eclosão da guerra, que se transformou na maior ameaça que teve durante seu reinado, e a qual superou mais por sorte do que por qualquer outro motivo. Ela errou muito 915

na sua interpretação da Irlanda. Uma área onde isto ficou bem patente foi na falta de compreensão da natureza do conceito de poder. Como já se disse, a Irlanda gaélica tinha um entendimento de poder diferente, mais complexo e subversivo, que se baseava numa espécie de contrato social, mais real do que o contrato social sobre o qual os teóricos escreveriam nos séculos XVII e XVIII. No uso que fez da ideia de contrato social, a guerra de Hugh O'Neill contra Elizabeth encontraria razão de ser na lógica daqueles que depois viriam a produzir a justificativa da "Revolução Gloriosa" de 1689. Vide RANGER, Terence. “Richard Boyle and the making of an Irish fortune, 1588-1614”. Irish Historical Studies, Vol. X, No. 39, March 1957. 2 O’CONNOR, Thomas. “Towards the Invention of the Irish Catholic Nation: Thomas Messingham’s Florilegium (1624).” Irish Theological Quarterly, LXIV: 157-77. 3 Vale reparar que, apesar da formação das identidades nacionais inglesa e britânica ser objeto de várias discussões, este aspecto em particular é raramente levado em consideração - exceto por historiadores irlandeses ou baseados na Irlanda, com destaque para Steven Ellis. 4 KIDD, Colin. “Protestantism, constitutionalism and British identity under the later Stuarts.” in: BRADSHAW, Brendan e ROBERTS, Peter, (1998). British Consciousness And Identity: The Making of Britain, 1533- 1707. Cambridge: Cambridge University Press. 5 PRO SP 63/183, 80(2). 1

916

Do desligamento à luta pela Anistia: a Associação dos Anistiados Políticos e Militares da Aeronáutica– GEUAr. Esther Itaborahy Costai Resumo Aprovada há mais de três décadas, a Lei de Anistia é tida como um marco no processo de transição democrática brasileira Assinada, mesmo que no contexto autoritário, foi vista como uma vitória - ainda que parcial - pela sociedade que bradava pelo fim do regime militar. Através de entrevistas com os membros do GEUAr, buscamos compreender o processo de construção de suas memórias a respeito dos eventos ocorridos no processo de desligamento da Aeronáutica e das lutas pela Anistia Política. Palavras-chave: Regime Militar; Anistia; GEUAr. Abstract Approved for over three decades, the Amnesty Law is seen as a mark in the process of Brazilian democratic transition. Signed, even though in authoritarian context, was seen as a victory – even if partial – for the society who claimed the end of the military regime. Based empirically on interviews with members of GEUAr, we seek to understand the process of building their memories about the events in the shutdown process of Aeronautics and their struggles for the Anistia Política . Key-words: Military Regime; Amnesty; GEUAr Introdução Aprovada há mais de três décadas, a Lei de Anistia é tida como um marco no processo de transição democrática brasileiraii. Assinada, mesmo que no contexto autoritário, foi vista como uma vitória - ainda que parcial - pela sociedade que bradava pelo fim do regime militar. Há que se pensar nas lutas inicias travadas já em 1964 até chegarmos às lutas propriamente dita pela anistia a partir da criação do Movimento Feminino pela Anistia em 1975 e a criação dos Comitês Brasileiros pela Anistia em 1978. Mesmo sendo aclamada pela sociedade, a anistia promulgada pelo general presidente João Baptista de Figueiredo em vinte e oito de agosto de 1979, não apresentou- se 'ampla, geral e irrestrita' como esperavam os movimentos em prol da anistia. Contudo, ainda assim, essa conquista foi celebrada, mas as lutas mantiveram-se, agora, com outro enfoque: denunciar as limitações da leiiii. A partir de então, novas legislações foram sendo aprovadasiv de acordo com as demandas apresentadas por aqueles que buscavam a anistia. O objetivo dessas revisões foi ampliar os benefícios e o número de beneficiários que, de alguma forma, sofreram violências de qualquer natureza durante os 21 anos de regime militar. Assim, entendemos a anistia por dois vieses: o primeiro afirma que a luta pela anistia é um processo de longa duração, pois não

917

se limita à lei aprovada em 1979v; e o segundo que a luta pela anistia é um processo inconcluso, pois ainda há profícuas discussões acerca de seus significadosvi. O regime autoritário instalado em 1964, com apoio de boa parte da sociedade, ao final dos anos 70, vivia um período de ‘lenta, gradual e segura’ distenção, nas palavras do presidente Ernesto Geisel. Faz-se necessário salientar que em 1978, os banimentos políticos vinham sendo revogados, a censura esfriara, a comunidade de informações e segurança estavam com suas ações limitadas, o AI-5 não operava mais, contudo, isso não significava que todos os militares quisessem ou trabalhassem para que essa distenção ocorresse, já que como há muito se sabe, havia importantes divisões nas Forças Armadas, “e a abertura não constituiu um momento de exceção”vii. Para levar seu projeto adiante, Geisel teria que se desvincilhar da imagem sempre associada no regime de que o chefe de governo era um representante da vontade militar. Segundo Gaspari essa imagem só seria quebrada e o general recuperaria 'o poder republicano do presidente' em 1977 com a demissão do ministro do Exército, Sylvio Frota – linha dura, contrário à liberalização. Dentro da análise sociológica de Fernando Henrique Cardoso e Florestan Fernandes, a intenção de Geisel e de Golbery – chefe da Casa Civil – era chegar à ‘normalização institucional’, ou seja, liberalizar o regime não para institucionalizar a ordem autoritária e não superá-la. Em ‘A volta aos quartéis’, os autores afirmam que tratou-se "de um projeto que se iniciou com autonomia pelo alto, com importantes passos liberalizantes, mas que logo virou processo, cujo rumo foi determinado por muitas forças"viii. Neste sentido, podemos analisar a promessa de 'afrouxar' o regime feita por Geisel e o início da luta pela anistia. Atrelado à anistia estava a utilização, desde o início do regime, de aparatos repressivos que minavam o direito de defesa dos acusados de crimes cometidos contra o governo, uma vez que após o AI-5, foram criadas condições institucionaisix que classificava de inimigos do Estado todos aqueles que se opunham ao regime. Com os 'inimigos internos' sob controle, Geisel poderia levar adiante o processo de distenção. Segundo Maria Helena Alves, o então presidente, oriundo do grupo dos castelistas moderados, pretendia uma distenção lenta, gradual e segura que garantiria a volta ao Estado de Direito, ao mesmo tempo que, permitiria uma escolha tranquila do sucessorx. Retomando as análises de Lemos a partir de sua leitura de José Honório Rodrigues quando este afirmava que as políticas de conciliação objetivavam por fim às contradições

918

entre os grupos dominantes e garantir a ordem -, podemos pensar a anistia de 1979 como um processo de transição entre setores moderados do regime civil-militar que controlariam o processo e a oposição. A negociação da anistia implicou o confronto entre diversos projetos políticos voltados para a conjuntura de transição vivida pelo país. Desde que, ao assumir a Presidência da República em 15 de março de 1974, o general Ernesto Geisel anunciou um programa de 'abertura lenta, gradual e segura', o processo político nacional passou a ser polarizado pela agenda da transição do regimexi.

Nesse cenário, vemos a partir de 1974 o fortalecimento da oposição, crescimento dos movimentos a favor da redemocratização, a revogação dos Atos Institucionais e a reforma da Lei de Segurança Nacional. Do outro lado estavam os militares que criticaram o modelo de abertura proposto por Geisel, em especial, os pontos que tratavam dos exilados, torturados e mortos. Debatia-se então, pelos militares da chamada linha-dura, quem deveria ser anistiado, como seria a reinserção dessas pessoas na sociedade, como o governo lidaria com aqueles processados judicialmente, como lidaria com a esquerda - grande difamatória do regime -, enfim, toda essa problemática deveria ser abarcada nos projetos de abertura e da anistiaxii. De acordo com Lemos, essa grande preocupação dos setores mais exaltados das Forças Armadas é típica de transições negociadas que predomina o interesse em manter no poder aqueles indivíduos identificados com a ordem anterior, a saber, a ordem ditatorial, ou seja, é uma estratégia de sobrevivência de diversos setores da classe dominante. Apesar das tensões internas na instituição, para efeitos do 'público externo' os militares haviam permanecido coesos no poder desde 1964 e teriam que sair dele em bloco, sem fissuras e sem clivagens aparentes para a sociedade. Era uma forma de se protegerem em bloco de possíveis cobranças em processos judiciais envolvendo a questão dos direitos humanos e atos discricionários cometidos durante a ditadura. Era uma transição que colocava como inegociável a imunidade parlamentar. Para isso, a coesão na saída era imprescindível, e o discurso precisava ser monolíticoxiii.

O debate pela questão da Anistia: o GEUAr como espaço de lutas Os integrantes do GEUAr (Associação dos Anistiados Políticos e Militares da Aeronáutica)xiv buscam direitos políticos por terem perdido suas funções militares na instituição que serviram, perda esta que se deu a partir de uma portaria de 12 de outubro de 1964, editada pelo Ministério da Aeronáutica, com intuito de reduzir o número de cabos xv. Esses ex-militares alegam em seus processos, enviados à Comissão de Anistia, que essa portaria teve caráter exclusivamente políticoxvi, já que com dez anos de serviço o militar alcançava estabilidade e poderia progredir na carreira chegando a postos superiores.

919

Já FAB (Força Aérea Brasileira) alega que essa portaria teve cunho administrativo, já que agia sobre um cargo público e impessoal. A Portaria 570/54, vigente em abril de 1964, permitia o engajamento de cabos por três anos e reengajamentos sucessivos, também por três anos, cada. Vale ressaltar, que nesta portaria, não havia nenhum impedimento quanto ao número de reengajamentos e, de acordo com a Lei do Serviço Militar vigente (desde 1946), cabos com mais de nove anos de serviço teriam estabilidade e poderiam continuar na ativa até a idade limite. Após o Golpe, foi editada a Portaria 1104/64xvii que alterou esses critérios, reduzindo os prazos de engajamentos e reengajamentos para dois anos cada e limitando o número de reengajamentos para ao máximo de três, o que resultou no estabelecimento do limite de oito anos de permanência na patente de cabo. Completado o período, caso o cabo não houvesse conseguido a promoção – através de concurso público -, à patente de sargento – era obrigado a dar baixa na corporação. Contudo, mesmo apresentando essa possibilidade, a promoção não dependia somente da aprovação, ficava sujeita ainda à aprovação pessoal do comandante da base. Assim, a Aeronáutica entendeu que, em busca de melhorias os cabos se organizaram, e acabaram a mercê de agitadores – no caso, os comunistas – que só pretendiam dividir as Forças Armadas objetivando o poder. Contudo, entende-se que estas revisões, em última instância, tinham uma única meta: impedir o surgimento de novos movimentos reivindicatóriosxviii. A associação esportiva GEUAr (Grêmio Esportivo Unidos do Ar) foi criada em 1963, em Lagoa Santa - Minas Gerais, por militares da Aeronáutica com intuito de reunir colegas da Instituição. Já a Associação dos Anistiados Políticos e Militares da Aeronáutica foi fundada juridicamente após a instalação da Comissão de Anistia em 2002, na cidade de Contagem- Minas Gerais, sendo reconhecida como uma sociedade sem fins lucrativos, com autonomia financeira e administrativa, não representando partidos políticos, grupos religiosos ou grupos étnicos. A sigla GEUAr foi mantida, como nome fantasia, para homenagear os fundadores do Grêmio Esportivo. Assim, segundo o estatuto da Associação, a mesma [...] será integrada por militares da reserva, reformados e ou ativos da Força Aérea Brasileira, Exército Brasileiro, Marinha do Brasil e Forças Auxiliares, anistiados ou anistiando, remunerados ou não, atingidos por Atos de Exceção e que esteja[m] amparados pelo Art. 8º do ADCT da Constituição Brasileira regulamentado pela Lei 10.559 de 13 de novembro de 2002xix.

Segundo o estatuto da associação, a mesma tem como finalidades: representar seus associados perante todos os Poderes, principalmente em assuntos referentes à Anistia; cuidar dos interesses dos associados; oferecer aos mesmos, assistência e orientação jurídica;

920

promover a representação e defesa judicial e extrajudicial dos direitos e interesses. Sempre incentivando a ética, a solidariedade e o espírito de classe. A luta desses militares teve início a partir da edição da Portaria 1104 de 12 de outubro de 1964 do Ministério da Aeronáutica onde a Portaria 570 é revogada, portaria esta que dava estabilidade aos cabos. A Portaria 1104 se baseia na Portaria 1103 que expulsou os cabos que faziam parte da ACAFAB (Associação dos Cabos da Força Aérea Brasileira) que apoiaram os sargentos na Revolta dos Sargentos de setembro de 1963 em Brasíliaxx. Movimentos de praças militares já aconteciam antes mesmo do golpe de 1964. O quadro político-social nacional e internacional mobilizou de um lado, civis e a baixa oficialidade a reivindicar seus interesses e, de outro, aqueles contrários a tais projetos, tomavam providências para evitar conflitos que pudessem ameaçar a ordem estabelecida. A Aeronáutica caminhou em duas direções quando o assunto era prevenir movimentos reivindicatórios: de um lado, excluiu aqueles que foram identificados como partícipes dos movimentos através da legislação vigente ou de autorizações especiais para tal; e de outro, alterou normas e regulamentos militares para punir aqueles que não participaram diretamente de tais movimentos, como os militares do GEUAr. Os desligamentos dos militares aqui retratados - que serviram na base área de Lagoa Santa – tem início nos anos 1970, e desde então, a luta pela anistia torna-se o foco central do GEUAr e de seus integrantes, pautada pelos direitos reconhecidos na Lei de Anistia de 1979, portarias e demais medidas provisórias decorrentes dela ao longo dos anos. Para os entrevistados, o primeiro sopro de esperança veio com a aprovação da Lei 6683 em 1979, que segundo o texto dizia que a anistia “reabriria o campo da ação política, ensejava o reencontro, reunia e congregava para a construção do futuro e que vinha em hora certa”xxi, pois previa a Lei [...] concessão de anistia a todos quantos, no período compreendido entre dois de setembro de 1961 e 31 de dezembro de 1978, cometeram crimes políticos ou conexos, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da administração pública, de fundações vinculadas ao poder público, aos poderes Legislativo e Judiciário e aos militares, punidos com fundamento em Atos Institucionais e complementares (grifos meus)xxii.

O Ofício Reservado 04 – documento que segundo os integrantes da Associação é a prova das perseguições - evidencia efetivamente a motivação exclusivamente política da

921

expulsão,

desligamentos e licencimentos de cabos com base nas Portarias 1103 e 1104, dando os efeitos retroativos ao revogar expressamente a Portaria 570 que garantia a estabilidade dos mesmos. Tal Ofício deu origem à Portaria 1104 que estipulou o prazo de 8 anos de permanência na FAB, minando o sonho daqueles que aspiravam chegar a postos superiores, através de concurso público ou da entrada nas escolas da especialistas. Com a Constituição de 1988 e o artigo 8º do ADCT (Ato das Disposições Constitucionais Transitórias) xxiii, a Anistia passou a ser concedida entre 18 de setembro de 1946 até 5 de outubro de 1988 - data da promulgação da Constituição. Apesar de estar inserida na Constituição, a Anistia ainda teria que ser regulamentada por lei e isso só viria a acontecer 14 anos depois, em 13 de novembro de 2002, quando foi sancionada a Lei 10559 que ampara os perseguidos políticos, atingidos por atos de exceção. A Lei 10559 apresenta duas fases procedimentais: a primeira constitui na reparação. Baseado em documentos e fatos legais apresentados pelo requerente, se confirmados, lhe é concedido o diploma de anistiado político onde o Estado reconhece seus erros perante o cidadão. Já a segunda fase consiste na concessão da reparação econômica, contudo, segundo Arão, um anistiado político pode não ser reparado financeiramente por já ter sido beneficiado por legislações anterioresxxiv. Ao longo dos governos democráticos eleitos após a Constituição de 1988, várias emendas e medidas provisórias foram apresentadas visando regulamentar os direitos concedidos com o artigo 8º do ADCT. Dentre elas, está a instalação em 28 de agosto de 2001 da primeira Comissão de Anistia. Em julho de 2002 a Comissão de Anistia – direcionada a reparar os atos de exceção, incluindo torturas, prisões arbitrárias, demissões e transferências por razões políticas [...] xxv- do Ministério da Justiça começou a julgar os casos dos cabos atingidos pela Portaria 1104 e considerou a mesma como um ato de exceção exclusivamente político, lançando alguma esperança para os ex-militares. Contudo, segundo M.A.O, um dos entrevistados, atualmente não cabe mais à Comissão de Anistia revisar os processos que lhe são enviados, pois com a edição da Portaria Interministerial 134 de 15 de fevereiro de 2011, foi instituído um Grupo de Trabalho que está responsável por promover todo e qualquer ato relacionado à execução dessa portaria xxvi [Portaria 1104]. Para o entrevistado, o GT está anulando todos os processos que foram deferidos pela Comissão de Anistia, pois

922

No meu caso, eles ‘falou’ assim 'oh, eu fui licenciado por tempo de serviço'; isso 'tá' lá no finalzinho do meu processo. Mas antes 'tá' falando que eu fui, 'de acordo com a portaria 1104, eu fui desligado'; só que eles não estão lendo isso não. 1104, 1104, não tem direito; eles não consideraram como ato de exceção mais, por isso que eles estão anulandoxxvii.

Questionado sobre qual justificativa o GT apresenta para tais anulações, o entrevistado é enfático Eles não estão justificando [...] O que acontece é o seguinte: é que nós estamos, eu Diniz, Dutra, analisando ... e o que acontece é o seguinte: eles vão anular todo mundo. Os 2500; quem quiser, entra na justiça. Se der bem, se não der, tudo bem. Eles fizeram o papel deles de anular[...]A ideia que se tem é porque: quem fez o pedido pra revisão das portarias, foi a Aeronáutica, e em todos eles, eles tem um atrasado pra receber desde a época que eles foram desligados até hoje; tanto que até hoje eles não pagaram e se você for ver, 2500 pessoas pra pagar - com juros, correção monetária - é um dinheiro muito grande. Então, tem-se a ideia de que [...] Mas isso não justifica [...]Esse dinheiro foi disponibilizado há muitos anosxxviii.

Enfatizando mais como funciona o GT, M. afirma [...] eles não querem pagar e pediram pra revisar a portaria [...] Mas o ministro da justiça que, é assim com a Aeronáutica, aceitou; e aí fez a portaria pra fazer a revisão. Então eles tão fazendo a revisão, vão fazer a revisão de todo mundo, não importa se os caras que tão fazendo a revisão, entende ou não entende de ...da lei de 5 anos, da decadência, essas coisas toda, esse aqui não tem direito não, anula. Tá na 1104, tá anulado. Aí manda ... quem entrar na justiça e ganhar, ganhou xxix [...]

Aqueles que tiveram seus processos anulados pelo GT podem entrar na justiça no prazo de 10 dias e pedir a revisão do caso. Contudo, eles continuam anulando os pedidos cabendo ao postulante entrar com mandato de segurança para voltar a receber os provimentos deferidos pelo julgamento da Comissão de Anistia. Segundo Baggio, o Tribunal de Contas da União (TCU) – responsável por fiscalizar as contas públicas – vem endossando as ações do GT ao pedir que todos os processos de anistia deferidos sejam por ele analisados, pois entendem que essas “indenizações teriam natureza jurídica de pensões”, e por isso, cabe a ele fiscalizar. A autora segue afirmando que o TCU alega que há uma “disparidade nas indenizações” que acaba por reduzir toda a luta dos atingidos pelos atos de exceção apenas à reparação econômica, eximindo o Estado e a sociedade de sua dívida moral e afirmando que quem pagará tais indenizações é o contribuinte, pois “não é o Estado que paga essas indenizações [...] Essa decisão do TCU é a moralização do que está ocorrendo”. Contudo, rebate a autora [...] como se fosse possível construir novos valores democráticos em sociedade sem uma base de solidariedade e de reconhecimento público de que as dívidas morais de um Estado autoritário também constituem-se como dívidas sociais, cujo enfrentamento e resolução são imprescindíveis ao fortalecimento de um Estado democráticoxxx.

923

O que fica claro nas palavras acima é que não há um consenso entre as diversas instâncias que formam o Estado brasileiro. Acreditamos que o Estado está perdendo grandes oportunidades de ressignificar o conceito de anistia e com isso, distanciando-se cada vez mais, do reconhecimento de sua culpa perante os atos perpetrados em nome de um Estado autoritário. Considerações Finais Podemos inferir sobre alguns pontos levantados pelos entrevistados. O primeiro diz respeito ao desligamento dos mesmos após 1964. A maioria deles foi desligada a partir de 1971, mas sob a mesma justificativa daqueles que foram desligados imediatamente após o golpe: apoio à Revolta dos Sargentos. O que podemos concluir é que as Forças Armadas, em nosso caso a Aeronáutica, temendo que resquícios das lutas dos subalternos de 1963 sobrevivessem, ‘limpou’ as fileiras de cabos e soldados - a partir da Portaria 1104 - visando manter intactas a disciplina e a hierarquia outrora rompidas. O segundo ponto diz respeito à anulação dos processos enviados à Comissão de Anistia. A partir da edição do artigo 8º do ADCT, que diz respeito aos expedientes oficiais sigilosos, 2500 processos foram analisados e deferidos, contudo, a partir da criação do Grupo de Trabalho em 2011, todos estão sendo revistos e anulados sem nenhuma justificativa coerente. Dessa forma, nos parece clara a interferência da Força Aérea Brasileira e do Estado em não reconhecer que esses homens foram prejudicados pelo regime de exceção e que tem direito à reparação regulamentada na Constituição de 1988.

i

Doutoranda em História pela UFJF, sob orientação do Prof. Dr. Ignácio José Godinho Delgado e bolsista de Monitoria pela mesma Universidade. [email protected]. MEZAROBBA, Glenda. Um acerto de contas com o futuro: a anistia e suas conseqüências – um estudo do caso brasileiro. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – Universidade de São Paulo, 2003, p.vi. ii

iii

RODEGHERO, Carla; DIENSTMANN, Gabriel; TRINDADE, Tatiana. Anistia ampla, geral e irrestrita: história de uma luta inconclusa. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2011, p.190. iv

Segundo Rodeghero; Dienstmann; Trindade, os anos de 1985, 1988, 1992, 1995, 2001 e 2002 tiveram a anistia como foco de discussões.

924

v

Segundo MEZAROBBA, são três os momentos fundamentais que nos ajudam a clarear a definição da anistia como um processo de longa duração: a lei 6683/79 (a Lei de Anistia propriamente dita), a lei 9140/95 (Lei dos Desaparecidos Políticos) e a lei 10559/02. vi

Podemos inferir à questão da revisão da Lei de Anistia encaminhada pelo procurador geral da República ao Supremo Tribunal Federal. Para mais detalhes, ver: < http://www.conjur.com.br/2014-set-03/juizes-apoiamrevisao-lei-anistia-proposta-pgr> Acesso em: 30/10/2014. D’ARAÚJO, Maria Celina; SOARES, Gláucio; CASTRO, Celso. (Org.) A volta dos quartéis: a Abertura. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995, p.30-31. vii

SOARES; D’ARAÚJO; CASTRO. Op. Cit, p. 39.

viii

ix

Código Penal Militar, Código de Processo Penal Militar e Lei de Organização Judiciária Militar. Decretados em 1969, regularizavam os órgãos de segurança nacional: SNI (Serviço Nacional de Segurança, Centros de Informação do Exército (CIEX), da Marinha (CENIMAR) e da Aeronáutica (CISA), dos DOI-CODI (Destacamentos de Operações e Informações e Centros de Operações de Defesa Interna). E em SP, vinculada ao II Exército estava a OBAN (Operação Bandeirantes). Somente no fim do governos de Figueiredo os DOI-CODI foram absorvidos pelas 2ªs seções do Exército e destinadas a informações no campo militar. COUTO, Ronaldo Costa. Memória viva do regime militar. Brasil:1964-1985. Rio de Janeiro, Record, 1995, p.287. x

ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e Oposição no Brasil: 1961-1964. Bauru, SP: Edusc, 2005.

xi

LEMOS, Renato. Anistia e crise política no Brasil pós-1964. Topoi: Rio de Janeiro, 2002, p. 293.

xii

RIBEIRO, Denise Felipe. A anistia brasileira: antecedentes, limites e desdobramentos da ditadura civilmilitar à democracia. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal Fluminense, 2012, p.4. D’ARAÚJO, Maria Celina. Militares, democracia e desenvolvimento: Brasil e América do Sul. Rio de Janeiro: FGV, 2010, p. 107. xiii

xiv

A sigla é uma homenagem ao Grêmio Esportivo Unidos do Ar, fundado dentro da Aeronáutica, na cidade de Lagoa Santa (MG) em 1963. xv

A Portaria 1104/64 não menciona que ela foi o resultado de um estudo feito pela Aeronáutica em setembro de 1964 apresentado como Ofício Reservado 04, que propunha a revisão e atualização da Portaria 570. Em seu tópico IV, item nº15, o estudo apresenta os cabos como um ‘problema’, pois estes se apresentavam em grande número: eram 7 cabos para cada oficial e 4 cabos para cada sargento. xvi

Para uma análise completa sobre esta questão, ver ITABORAHY COSTA, Esther. Do banimento à luta pela Anistia: história e memória da Associação dos Anistiados Políticos Militares da Aeronáutica (Mestrado em História –UFJF), 2014.141 p. xvii

Propunha a revisão e atualização da Portaria 570.

xviii

VASCONCELOS, Claudio Beserra. A política repressiva aplicada a militares após o golpe de 1964. Tese (Doutorado em História Social) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2010. xix

Estatuto da Associação dos Anistiados Políticos e Militares da Aeronáutica, p.4.

xx

Para mais detalhes sobre a revolta dos Sargentos, ver: Acesso em: 07/10/2015. xxi

Câmara Nacional. Anistia, volume I, p. 22.

xxii

Lei 6683/79. Disponível em . Acesso em 11/03/2014.

925

“É concedida anistia aos que, no período de 18 de setembro de 1946 até a data da promulgação da Constituição, foram atingidos, em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção, institucionais ou complementares, aos que foram abrangidos pelo Decreto Legislativo nº 18, de 15 de dezembro de 1961, e aos atingidos pelo Decreto-Lei nº 864, de 12 de setembro de 1969, asseguradas as promoções, na inatividade, ao cargo, emprego, posto ou graduação a que teriam direito se estivessem em serviço ativo, obedecidos os prazos de permanência em atividade previstos nas leis e regulamentos vigentes, respeitadas as características e peculiaridades das carreiras dos servidores públicos civis e militares e observados os respectivos regimes jurídicos.” In: . Constituição Federal Brasileira ,vol. I. xxiii

xxiv

ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo. As dimensões da Justiça de Transição no Brasil, a eficácia da Lei de Anistia e as alternativas para a verdade e a justiça. In:_ A Anistia na Era da Responsabilização: O Brasil em perspectiva internacional e comparada. Brasília: Ministério da Justiça, Comissão de Anistia; Oxford: Oxford University, Latin American Centre, 2011, p. 218. xxv

Idem, p. 217.

xxvi

A lei está disponível na íntegra em . Acesso em 11/03/2014. xxvii

Trecho da entrevista, realizada pela autora, com o senhor M.A.O., em 07/05/2013.

xxviii

xxix

Idem.

Idem.

xxx

BAGGIO, Roberta. Anistia e reconhecimento: o processo de (des)integração social da transição política brasileira. In:_ A Anistia na Era da Responsabilização: O Brasil em perspectiva internacional e comparada. Brasília: Ministério da Justiça, Comissão de Anistia; Oxford: Oxford University, Latin American Centre, 2011, p. 272-273.

926

A Diplomacia da Inclusão Social: o Caso Brasileiro de Políticas Públicas de Combate à Pobreza como Ferramenta de Inserção Internacional Fabiana de Oliveira1 Resumo: Em 2003, o Brasil inaugurou uma nova etapa para as políticas públicas, caminhando em direção à universalização dos direitos mais elementares e à inclusão de setores sociais historicamente excluídos. Ao mesmo tempo, a criação desta rede de proteção social, principalmente o Bolsa Família, se converteu em importante ferramenta de inserção internacional, fortalecendo o soft power brasileiro e contribuindo para a construção da imagem do Brasil como defensor dos princípios ocidentais de liberdade, democracia e respeito aos direitos fundamentais do Homem. Palavras-chave: Diplomacia; Políticas Públicas; Bolsa Família. Abstract: In 2003, Brazil inaugurated a new stage for the public policy, moving towards elementary rights universalization and inclusion of social sectors historically excluded. At the same time, the creation of this social safeguard system, mainly Bolsa Família, become the largest international insertion tool in the country, strengthening the Brazilian soft power and contributing to the construction of a Brazil’s image as defender of Western principles of freedom, democracy and respect of Human rights. Keywords: Diplomacy; Public Policy; Bolsa Família

Introdução As crises fiscais dos anos 1980 e 1990 mostraram a impossibilidade da manutenção do modelo estadocêntrico. Acusado de ineficiente e populista, colapsado e desprestigiado, o Estado foi apontado pelos teóricos neoliberais e seus seguidores como o inimigo a ser, se não combatido, ao menos minimizado, com o fim de dar espaço a uma “profunda e modernizante” reestruturação econômica e política. As crises fiscais e macroeconômicas foram as desculpas utilizadas para que a hegemonia neoliberal se impusesse e para que a mais simples ideia de desenvolvimentista fosse rapidamente rotulada de anacrônica e populista, disfarçando um dos

1

Mestre e Doutoranda em Ciência da Integração pelo Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da Universidade de São Paulo (PROLAM/ USP), sob orientação do prof. Dr. Sedi Hirano. Email: [email protected].

927

mais profundos processos de concentração de renda já existentes na história do sistema capitalista. A nova dinâmica imposta pelas políticas de austeridade ruiu em pouco tempo as estruturas políticas, sociais e econômicas sobre as quais estas sociedades se haviam sentado nas últimas décadas, provocando a perda da qualidade dos serviços públicos e dos mecanismos de homogeneidade social. O quase que total desaparecimento do Estado como ator capaz de estruturar as múltiplas demandas dos diversos grupos sociais terminou por implicar no aumento das tensões e dos conflitos sociais, até levar à vitória eleitoral de Luiz Inácio Lula da Silva nas eleições presidenciais de 2003. A chegada de Lula ao poder foi, então, a expressão não apenas do fracasso do neoliberalismo como modelo econômico no Brasil, como também a certeza de que os problemas sociais não podem ser resolvidos por outro ator que não o Estado. Neste contexto, a vitória eleitoral de um projeto político progressista foi um fenômeno de suma importância para que o Estado, ainda que sem romper completamente com os preceitos que caracterizaram o neoliberalismo, recuperasse a sua função de articulador das relações sociais e políticas, assim como sua capacidade desenvolvimentista. Dentro de uma orientação liberal, políticas compensatórias passaram a ser adotadas, na década de 1990, como mecanismo paliativo em toda a região. O Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), por exemplo, implantado pelo Governo Federal em 1996, consistia em um conjunto de ações que visavam a erradicação do trabalho infantil no Brasil. A transferência monetária tinha como contrapartida por parte da família beneficiada que os filhos menores de 14 anos frequentassem a escola e participassem de atividades sócioeducativas. Primeiro programa social caracterizado pela transferência de renda condicionada, esta iniciativa se apresentava como promotora da formação de capital humano. A exigência de cumprimento com obrigações escolares e sanitárias por parte dos beneficiários deveria levar, acreditava-se, ao encerramento do ciclo de pobreza a que estas famílias estiveram anteriormente condenadas. No entanto, estavam limitados a uma parcela reduzida da população em situação de grande vulnerabilidade social. O período que se iniciou em 2003, no entanto, encontrou o Brasil experimentando um projeto político baseado em iniciativas que visavam a correção das desigualdades, o combate à pobreza e a inclusão cidadã de milhares de indivíduos que estiveram

928

historicamente

excluídos das heranças mais básicas da civilização. Foi durante a chamada “la década ganada”, período que resultou em inegáveis avanços socioeconômicos no Brasil, que os programas de transferência condicionada de renda, em específico o Bolsa Família, foram amplamente implementados e sofreram um processo de universalização. Tal iniciativa ganhou destaque internacional e seu sucesso como mecanismo de eliminação da pobreza foi reconhecido no meio acadêmico e por organismos multilaterais. O presente artigo pretende analisar os impactos que o sucesso das novas políticas públicas de combate à pobreza, em especial o Bolsa Família, tiveram sobre a formulação de um novo perfil de política externa do Brasil, convertendo-se em ferramenta de inserção internacional brasileira. 1.

As Políticas de Transferência Monetária Condicionadas e a Construção do

Estado de Bem-Estar no Brasil O Brasil, país herdeiro de uma herança colonial que historicamente exclui enorme parcela de sua população e baseado na lógica de desenvolvimento igual e combinado (TROTSKY, 2008), é um caso cheio de peculiaridades por apresentar um capitalismo que se desenvolve baseado em estruturas semi-feudais e sem ser precedido por revoluções democráticas capazes de dotar seu povo de uma cultura cidadã (SCHWARTZMAN, 2007). Entre as décadas de 1980 e 1990, a América Latina como um todo experimentou um processo de ressignificação do papel do Estado e de importantes transformações políticas, econômicas e sociais, reflexos do reordenamento da ordem política mundial. Com o término da Guerra Fria, a hegemonia neoliberal se impôs como a grande vitoriosa, em detrimento dos esforços socialistas e terceiro-mundistas de superação autônoma do subdesenvolvimento. No campo das ideias, as formulações estruturalistas foram substituídas pelo Consenso de Washington e pela crença em um mundo globalizado e conduzido pela iniciativa privada. Foi assim que: “Em poucos anos, a América Latina avançou no caminho da desconstrução do núcleo central robusto de sua economia, erguido em sessenta anos de esforços nacionais (CERVO, 2000, p.7).” As teses neoliberais começaram a ganhar espaço a partir dos anos 1970, logo do esgotamento do período de maior expansão capitalista desde a década de 1940, marcado pelo crescimento econômico não apenas das economias capitalistas centrais, mas também das periféricas e das socialistas (HERNÁNDEZ, 2007). A força política de grupos

929

sociais

organizados, especialmente dos sindicatos, estaria, segundo estas teses, impedindo a acumulação de capital e limitando a expansão das margens de lucros das empresas, o que provocaria os processos inflacionários devido ao aumento dos preços. A única maneira de impedir uma crise sistêmica seria, então, desmontando os sindicatos através do aumento do desemprego e limitando a intervenção do Estado na economia à busca da estabilidade monetária. Assim, uma margem saudável de desigualdade seria restaurada, o que, prometiam os neoliberais, dinamizaria as economias em crise (ANDERSON, 1998). O Consenso de Washington consistiu na formulação de dez instrumentos de política econômica tidos como unanimidade pelos principais economistas dos países centrais e pelos organismos financeiros internacionais quanto à sua capacidade de restabelecer o crescimento econômico da América Latina e de superar a crise da dívida. Este novo programa de ajuste estrutural pretendia substituir os princípios estabelecidos por Bretton Woods, identificando as politicas que as principais instituições de Washington, tais como o Tesouro norte-americano, o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento e o Fundo Monetario Internacional, percebiam como centrais para que se restaurasse o crescimento econômico na América Latina (RANGEL & GARMENDIA, 2012). No que diz respeito aos resultados sociais, ainda que a primeira metade da década de 1990 tenha apresentado alguma melhora quanto ao crescimento do PIB em relação a 1980, os principais indicadores relativos ao bemestar, principalmente de distribuição da renda e de criação de empregos formais, refletiam o agravamento das disparidades sociais na região. Assim, ao final da década de 1990 quase todos os países da região apresentavam desemprego de dois dígitos, o que teve como uma de suas causas a desindustrialização, resultado da brusca abertura econômica, e a relativa reprimarização de economias que já haviam concluído o ciclo de substituição de importações, como foi o caso argentino. El crecimiento económico lento e inestable y los patrones estructurales adversos se han traducido en mercados laborales débiles. La generación de empleo ha sido particularmente escasa en América del Sur. Por su parte, el aumento de la informalidad, las crecientes brechas de ingresos entre trabajadores calificados y no calificados y, como ya se señaló, la heterogeneidad estructural cada vez más marcada, son tendencias de carácter regional. Un reflejo importante de estas tendencias es el deterioro estructural que experimentó el vínculo entre la pobreza y el crecimiento económico durante las dos últimas décadas [...]. Así, en 1997 las tasas de pobreza seguían estando por encima de los niveles de 1980, pese a que la disminución del PIB por habitante que caracterizó los años ochenta ya había sido revertida. Con la disminución adicional de los ingresos per capita promedio durante la “media década perdida”, la incidencia de la pobreza se amplió (OCAMPO, 2005, p.12).

930

Desprotegidas, empobrecidas e penalizadas pelo ajuste estrutural, as massas manifestaram o descontentamento popular das mais diversas formas, sendo, em diversas ocasiões, duramente reprimidas por seus governos. Como resposta à deterioração social, a América Latina se viu tomada por mobilizações, greves, bloqueios de estradas e panelaços. Ainda que os trabalhadores rurais e movimentos indígenas também estivessem mobilizados como ocorreu no caso brasileiro com o Movimento dos Trabalhadores sem Terra ou com os povos originários na Bolívia, Chile e México -, os protestos eram principalmente urbanos e protagonizados por desempregados e estudantes, uma vez que as cidades foram os principais palcos do aumento da vulnerabilidade social (CEPAL, 1999). Neste cenário, o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, uma das principais ações da rede de proteção social implantadas no Brasil a partir da década de 1990, começou a operar com apoio da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). Tratava-se de uma compensação financeira que era oferecida às famílias em situação de extrema pobreza para que as crianças deixassem o trabalho e frequentassem regularmente a escola – condição imposta para que a família tivesse acesso à bolsa de R$ 25,00 por criança nas áreas rurais e R$ 40,00 nos municípios com mais de 250 mil habitantes. Tão perversas quanto persistentes, as desigualdades sociais e a pobreza atingem particularmente a população infanto-juvenil no país. Conforme o último Censo Demográfico, 45% dessa população pertencia a famílias com uma renda per capita de até meio salário mínimo, porcentual que se elevava especialmente nos estados menos desenvolvidos do Norte e Nordeste [...]. Essa pobreza contribui para que muitas crianças e adolescentes sejam expostos a diversas situações de risco, violência e exploração, entre outras, devido à inserção precoce no mundo do trabalho, muitas vezes em condições extremamente penosas e degradantes (CARVALHO, 2004, p.50).

O PETI, resultado de um trabalho conjunto entre o Governo Federal, os estados e os municípios, tinha como prioridade as áreas que utilizavam o trabalho infantil em larga escala, como as zonas canavieira e do sisal de Pernambuco e Bahia ou as áreas de produção de carvão vegetal do Mato Grosso do Sul. Segundo Carvalho (idem), 140 mil crianças e adolescentes eram atingidas pelo programa em 2000, número que apenas dois anos depois saltara para 810.769 beneficiados. Ao mesmo tempo, foi implementado o Programa Nacional de Geração de Emprego e Renda em Áreas de Pobreza (Pronager), de forma a garantir que os beneficiários tivessem acesso a alguma formação técnica que os capacitasse para outro tipo de inserção no mercado de trabalho.

931

A partir de 2003, o PETI, assim como os demais programas de transferência monetária vigentes, foi incorporado ao Bolsa Família. O Programa Bolsa Família, criado em 2003, com a chegada de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência da República, tem a finalidade de converter-se em uma renda mínima a qual os brasileiros em situação de pobreza ou de extrema pobreza2 passariam a ter acesso. O programa tem se mostrado exitoso ao articular as três esferas do poder executivo e, mais que possibilitar a subsistência de pessoas que se encontram em situação de enorme vulnerabilidade, possuir condicionalidades que pretendem encerrar o ciclo de pobreza familiar ao qual historicamente esteve condenada esta parcela da população. Estas condicionalidades consistem em que as famílias beneficiárias mantenham a frequência escolar das crianças e jovens – de maneira a reduzir o analfabetismo e o trabalho infantil -, cumpram o calendário de vacinação e de visitas médicas em caso de gravidez. Assim, o Bolsa Família tem sido responsável por uma maior inclusão dos setores mais pobres e vulneráveis nos serviços públicos, especialmente os de educação e saúde. Segundo Antón Pérez et al. (2009) 91% das crianças em idade escolar frequentavam uma instituição de ensino ainda em 2005, enquanto que em 2004, a indigência havia caído de 13% para 11% em comparação com 1995. Tais políticas são aqui analisadas desde a perspectiva liberal que estas possuem como continuidade de um processo histórico de aplicação de transferência monetária como medida compensatória, vigentes em diversos países da América Latina a partir da década de 1970, mas também como parte de um processo embrionário da construção de um Estado de BemEstar Social3 capaz de apresentar como um de seus reflexos um ganho relativo por parte deste grupo social de consciência de seus direitos e de capacidade organizativa que lhes permita atuar de maneira a defender seus interesses. El surgimiento de este tipo de políticas en este momento específico en América Latina se debe a dos factores fundamentales, que también son clave para entender su diseño y el uso de la condicionalidad en su implementación. El primero se deriva del hecho de que corresponden a países de renta media en los que está presente, en mayor o menor medida, un Estado de bienestar que, sin embargo, no tiene un funcionamiento como en los países desarrollados de Europa, sino que es un Estado de bienestar 2

Segundo o Governo Federal, são considerados extremamente pobres aqueles que possuem renda mensal de até R$70,00 por pessoa, enquanto que os considerados pobres são aqueles cuja renda mensal varia entre R$70,01 e R$140,00 por pessoa. 3 As políticas de combate à pobreza através de transferência monetária condicionada podem ser entendidas como uma herança tardia do Plano Beveridge, considerado o “pai do Estado de Bem-Estar”. O britânico William Beveridge propôs, ainda durante a II Guerra Mundial, a implementação de um sistema social que previa a concessão de um subsídio aos cidadãos que se encontravam em condição social vulnerável, de maneira a garantir um nível de vida mínimo à toda a população (BEVERIDGE, 2000).

932

“truncado”, expresión que se refiere al limitado alcance de las políticas sociales desplegadas durante años por los gobiernos latinoamericanos. […] Por todo esto, en América Latina estas políticas de transferencia condicionada de renta van a ser un complemento a un Estado de bienestar que existe, pero que no ha conseguido universalizar su cobertura (ANTÓN PÉREZ et al., 2009, p.172-173).

Isso explicaria, então, o limitado impacto que o ligeiro aumento do gasto social ocorrido nos anos 1990 teve sobre muitos países da América Latina e a importância do Bolsa Família para a ampliação do grau de cobertura das políticas sociais e para a formação de capital humano como instrumento de combate à pobreza. 2.

Programas Sociais como Mecanismo de Inserção Internacional

Oliveira [s.d.] chama a atenção para a participação do Brasil no cumprimento das metas definidas pela Organização das Nações Unidas (ONU) como os Objetivos do Milênio. Tratavam-se de oito objetivos principais que deveriam ser cumpridos até 2015: 1) a erradicação da pobreza extrema e da fome; 2) atingir o ensino básico universal; 3) a promoção da igualdade de gênero e a autonomia das mulheres; 4) a redução da mortalidade infantil; 5) melhorar a saúde da mulher; 6) o combate ao HIV/ AIDS, malária e outras doenças; 7) a promoção do desenvolvimento sustentável; 9) o estabelecimento de uma parceria mundial para o desenvolvimento. A adesão por parte do Brasil aos Objetivos do Milênio, apresentados na Conferência do Milênio de 2000, foi mais uma expressão do novo perfil da política externa brasileira, marcada pela renovação de credenciais e pela autonomia pela participação e pela integração (VIGEVANI, OLIVEIRA & CINTRA, 2003). Ainda durante o governo de Fernando Collor (1990-1992), o Brasil sediara a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio-92), buscando alterar a percepção que a comunidade internacional possuía com respeito ao Brasil de país pouco colaborativo no que diz respeito à temática ambiental. Ainda em 1992, o Brasil ratificara os Pactos de Direitos Humanos da ONU, participando, ainda, de forma ativa na Conferência de Viena para Direitos Humanos de 1993. O ápice desta nova movimentação da política externa brasileira foi a assinatura do Tratado de Não Proliferação, em 1998. Eixo central da estratégia adotada pelo Brasil para o cumprimento das metas impostas pela ONU, o Bolsa Família é mais que um dos principais programas do novo sistema de políticas públicas de combate à pobreza do Brasil. É também uma ação

933

claramente

relacionada com as prioridades estratégicas da atual política externa brasileira (WEISSHEIMER, 2010). Constantemente figurando nos rankings de países mais desiguais do sistema da ONU, as disparidades sociais terminaram por caracterizar historicamente o Brasil. O Bolsa Família, no entanto, tem contribuído para a construção da imagem de um novo Brasil que tem no enfrentamento das desigualdades sociais sua mais recente característica. Reconhecido internacionalmente como um dos principais mecanismos de combate à pobreza atualmente vigentes, o Bolsa Família passou a ser exportado como modelo de política pública de combate à pobreza e tem sido alvo de diversos elogios por parte de organismos como a UNICEF e o Banco Mundial. Segundo Oliveira [s.d.]: Toda a projeção internacional da imagem do país como um seguidor de boas práticas reforça as estratégias da diplomacia brasileira de inserção global. Assim, a associação entre Bolsa Família e os Objetivos do Milênio contribuiu para reforçar a presença brasileira nos fóruns multilaterais de negociação e corroborou os compromissos da nação com os princípios ocidentais de liberdade, democracia e respeito aos direitos humanos. Deste modo, o programa acabou ajudando o país a barganhar algumas das questões centrais para a política externa republicana como a aspiração de maior visibilidade e participação na configuração da ordem mundial, a liderança regional e a candidatura a um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas (p. 16-17).

Assim, o desafio de combater a pobreza que historicamente assola uma parcela significativa da população brasileira tem levado o Brasil a se fazer a aumentar a sua influência não apenas nos países que compartilham de desafios similares, mas também nos espaços multilaterais ocupados por estas nações. Mais que um exemplo a ser seguido, o Brasil se converteu em parceiro requisitado para os mais distintos projetos de cooperação que visam a implementação desta tecnologia social, de modo que as transformações que se operaram no plano doméstico rapidamente se refletiram no plano externo. A presença do Brasil na Venezuela, por exemplo, através da Caixa Econômica Federal e a experiência com o programa habitacional Minha Casa, Minha Vida, é um importante exemplo a ser citado ou a influência exercida pelo Bolsa Família sobre os programas bolivianos Desnutrición Cero e Bono Juancito Pinto (GOMBATA, 2015). Essa cooperação pode ter, então, diferentes configurações. Por vezes, trata-se da influência e inspiração exercida pelo programa-modelo para a implementação de outros, enquanto que em outros casos a transferência da tecnologia envolve também o intercâmbio de técnicos estrangeiros, configurando acordos bilaterais.

934

Como afirma Lima (1994), o bom desempenho brasileiro no combate à pobreza tem garantido ao país um papel de destaque no plano internacional. O prestígio conquistado na arena global devido à construção de um conjunto de políticas públicas efetivas no sentido de levar o Estado a uma parcela da população historicamente desassistida, assim como a defesa dos valores ocidentais de liberdade, democracia e respeito aos direitos humanos, ademais da participação ativa do Brasil em organismos internacionais de caráter multilateral, têm construído para a formação de uma nova imagem internacional brasileira. Conclusão Depois da crise da dívida que assolou a América Latina em 1982, que marcou o aparente esgotamento do modelo de desenvolvimento econômico impulsado pelo Estado, e da crise social que resultara de mais de uma década de adoção dos preceitos do Consenso de Washington, o Brasil iniciou em 2003 um importante processo de desenvolvimento de políticas econômicas e sociais que visam enfrentar a desigualdade no país. Atualmente, mais que apostar no crescimento do PIB nacional, com a expectativa de que isso naturalmente trará como consequência a diminuição da pobreza, existe a percepção de que este é um tema de complexidade maior e que deve ser enfrentado por muitas frentes. Esta nova percepção nos tem conduzido a adoção de uma série de políticas de transferência monetária condicionada, em especial o Bolsa Família, que objetivam não apenas a garantia da subsistência de seus beneficiários, mas continuar e completar o processo de construção do Estado de bem-estar brasileiro. E mais que reconhecimento nas urnas, este programa obteve amplo reconhecimento internacional e projetou uma nova imagem do Brasil como um país participativo, defensor dos princípios básicos que regem a sociedade ocidental e como um país disposto a saldar as dívidas com sua própria história. Referências Bibliográficas ANDERSON, Perry. Qué es el neoliberalismo. Bogotá: Tiempo Presente, 1998 ANTÓN PÉREZ, José I. et al. Pobreza y desigualdad en América Latina: del crecimiento a las transferencias condicionadas de renta. Revista CIDOB d’Afers Internacionals, n.85-86, pp. 157-183. BEVERIDGE, William. Social Insurance and Allied Services. Bulletim of the World Health Organization, 2000. Disponível em: http://www.who.int/bulletin/archives/78%286%29847.pdf. Acesso em 22 de setembro de 2015.

935

CAMPELLO, Tereza; NERI, Marcelo C. Programa Bolsa Família: uma década de inclusão e cidadania. Brasília: IPEA, 2013. CARVALHO, Inaiá M. M. Algumas lições do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil. São Paulo em Perspectiva, vol.18, n.4. São Paulo, out/dez de 2004. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-88392004000400007&script=sci_arttext. Acesso em 27 de setembro de 2015. CEPAL. Panorama social de América Latina. Santiago: CEPAL, 1998. CERVO, Amado L. Sob o signo neoliberal: as relações internacionais da América Latina. Revista Brasileira de Política Internacional, n.43 (2), 2000, pp.5-27. GOMBATA, Marsílea. Programas sociais como mecanismo de solidariedade e política externa na América Latina. V Seminário Discente da Pós-Graduação em Ciência Política da USP, abril de 2015. HENRIQUES, Ricardo. Desnaturalizar a desigualdade e erradicar a pobreza no Brasil. In: WERTHEIN, Jorge; NOLETO, Marlova J. (Org.). Pobreza e desigualdade no Brasil: traçando caminhos para a inclusão social. Brasília: UNESCO, 2003. HERNÁNDEZ, José G. V. Liberalismo, neoliberalismo y postneoliberalismo. Rev. Mad., n.17, set-2007, pp.66-89. LIMA, Maria R. S. Ejes analíticos y conflictos de paradigmas en la política exterior brasileña. América Latina/ Internacional, 1994, v.1, n.2, pp.27-31. MARTINS, Carlos E. La economia mundial y América Latina: tendencias, problemas y desafíos. In: Neoliberalismo e desenvolvimento na América Latina. Buenos Aires: CLACSO, 2005. OCAMPO, José A. Más allá del Consenso de Washington: una agenda de desarrollo para América Latina. México D.F.: CEPAL, 2005. OLIVEIRA, Tatiana. Bolsa Família e Objetivos de Desenvolvimento do Milênio: integração entre plano interno e externo para a difusão de boas práticas. Disponível em: http://www.ipc-undp.org/publications/mds/36P.pdf. Acesso em 27 de setembro de 2015. SCHWARTZMAN, Simon. As causas da pobreza. Rio de Janeiro: FGV, 2007. RANGEL, Rubí M. El Consenso de Washington: la instauración de las políticas neoliberales en América Latina. Política y Cultura, n.37, jan-2012, pp.35-64. REGO, Walquiria Leão; PINZANI, Alessandro. Vozes do Bolsa Família: autonomia, dinheiro e cidadania. São Paulo: UNESP, 2013. TROTSKY, León. História da revolução russa. São Paulo: Nova Cultural, 1998. VIGEVANI, Tullo; OLIVEIRA, Marcelo F.; CINTRA, Rodrigo. Política externa no período FHC: a busca de autonomia pela integração. Tempo Social, vol.15, n.2. São Paulo, nov. de 2003, pp. 31-61. WEISSHEIMER, Marco A. Bolsa Família: avanços, limites e possibilidades do programa que está transformando a vida de milhões de famílias no Brasil. São Paulo: Perseu Abramo, 2010. 936

O Divino em Viana do Espírito Santo: indícios de uma “Açorianidade” capixaba

Fabiene Passamani Mariano Mestre em Artes – Ufes, Dourtoranda em História – Ufes Orientadora: Maria Cristina Dadalto Co orientador: Luiz Fernando Beneduzi [email protected] Resumo Para ser entendida em sua totalidade e simbologia, a Festa do Divino Espírito Santo deve ser “lida” a partir de suas referências históricas e crenças da antiguidade, expandindo a observação para além do contexto cristão. Trata-se de uma herança cultural e religiosa, advinda dos imigrantes açorianos que se instalaram na Capitania do Espírito Santo (início século XIX). Serão descritos e analisados os principais símbolos/objetos de culto utilizados na celebração do Divino Espírito Santo na cidade de Viana-ES. Palavras Chave: Açorianos – Viana – Celebração.

Abstract To be understood in its entirety and symbolism, the Feast of the Holy Spirit must be "read" from its historical references and age of beliefs, expanding the observation beyond the Christian context. It is a cultural and religious heritage, arising out of Azorean immigrants who settled in the Province of the Espírito Santo (early nineteenth century). Will be described and analyzed the main symbols/objects of worship used in the celebration of the Holy Spirit in the city of Viana- ES. Keywords: Azores - Viana - Celebration.

O Divino em Viana do Espírito Santo: indícios de uma "Açorianidade" capixaba

Para ser entendida em sua totalidade e simbologia, a Festa do Divino Espírito Santo deve ser “lida” a partir de suas referências históricas e crenças da antiguidade, expandindo sua observação para além do contexto cristão. A prática do culto do Espírito Santo nos Açores e em outros países do mundo é exercida por pessoas comuns, ligadas à religiosidade católica através da crença na Terceira Pessoa da Santíssima Trindade. Existe uma relutância geral na aceitação de uma amplitude mais vasta às raízes deste culto, por preocupações de ordem

937

religiosa no sentido de que o Culto do Espírito Santo, assim como muitos outros, possui vestígios de antigos ritos pagãos, cuja lógica é relacionada à manifestação das forças da natureza e como as mesmas são interpretadas pelo homem. Tal hipótese é sustentada pelo fato de que, fora do seu tempo original, tais festividades perdem parte do seu sentido, e, para preservação de sua coerência atual e posterior entendimento, faz-se necessário referenciá-la às suas origens. Assim como outras festividades tradicionais religiosas, a Festa do Divino Espírito Santo é marcada por uma lógica temporal que resulta da preocupação com a sobrevivência, e, desta forma, estes e outros aspectos vestigiais tornam-se mais claros se levarmos em consideração que os rituais funcionavam como tentativas mágicas de controle dos problemas. O aliciante da relação com o sagrado, nele proposto, é caracterizado por uma visão circular ou cíclica do tempo, oposta à visão linear, irreversível, proposta pela igreja estabelecida, na qual a salvação chega no fim. A festa cíclica, fruto de uma constante revitalização, ao contrário, representa uma concepção circular, que subverte a ordem estabelecida, destituindo de sentido os habituais enquadramentos, baseados na distinção entre sagrado e profano (COSTA, 2008, p.21)i

O Culto do Espírito Santo é composto por variadas tradições milenares, resultantes de diferentes apropriações e necessárias adaptações relativas a cada época. Para um estudo mais aprofundado faz-se necessário o contato com suas referências de origem, sendo elas relacionadas a quatro pontos importantes: as raízes pagãs, as influências hebraicas, o culto católico e o modelo imperial. As raízes arcaicas do Culto do Espírito Santo manifestam-se sob um modelo hierarquizante de poderes entre o sagrado e o profano; entre o ungido e o impuro. Possui em suas referências ancestrais a influência hebraica, apresentada a partir de três formas distintas: pela transferência da noção de sacrifício para a noção de oferta; pela obrigatoriedade do ato da devolução das primícias (relativo ao Antigo Testamento, onde os primeiros frutos da terra e também animais eram devolvidos às divindades protetoras da Terra e da Natureza), pela justificativa da promessa e pela tradição oral dos milagres atribuídos ao Espírito Santo. A partir do significado da data, podemos citar a celebração da saída dos hebreus do Egito sete semanas após a Páscoa Hebraica - ou quarenta e nove dias, sendo o qüinquagésimo, o dia de Pentecostes.

Em sua forma atual ainda podemos verificar um conjunto de ritos existentes na Festa do Divino Espírito Santo, expressos em um vocabulário alimentar que remete às primitivas sociedades agrícolas européias. Os ritos encontrados na celebração pertencem a diversas épocas, sobrepostos em camadas temporais, que expressam importantes mensagens

938

e

correspondem a um pacto entre os seres humanos e as divindades protetoras da terra e da natureza, através da entrega anual das primícias de primavera. Tal atitude era baseada na crença de que os frutos da terra pertenciam às divindades e o homem teria o direito de utilizar “as sobras” após a retirada e devolução das primícias, cujos elementos simbólicos eram e ainda continuam sendo: os cereais (pão), o vinho e a carne. Tal obrigação para com a divindade era entendida como agradecimento, mas também fundamental para a garantia de fartura nas próximas colheitas e consequente sobrevivência das populações recém sedentarizadas. A pesquisadora Antonieta Costa, em seu livro “O Culto do Espírito Santo” apresenta em termos gerais, a descrição dos nove elementos mais consensuais (núcleo conceptual) utilizados na vasta interpretação e realização do Culto do Espírito Santo nas Ilhas dos Açores, sendo eles características gerais da celebração, que se assemelham nas nove ilhas do Arquipélago: O ritual de “Mudança da Coroa”; A ritualização dos alimentos cerimoniais; A distribuição dos alimentos pelos diferentes grupos de pessoas; As séries de preces realizadas durante a semana; A Coroação ou Procissão da Coroa, com a refeição cerimonial; Os tipos de sentimentos considerados adequados e “exigidos” nestes dias (alegria, felicidade e amizade); Todo o ritual é dirigido e realizado em nome do Espírito Santo; O dever das irmandades de conceder o direito de realização da “Festa” a quem se proponha a fazê-la; A ductilidade do conceito de promessa, por vezes cumprida sem que o objetivo tenha sido alcançado.

O conjunto de ritos que compõem a Festa do Espírito Santo, dura em média uma semana, incluindo desde a preparação dos alimentos para as refeições cerimoniais; os cortejos; os bodos (banquetes de comidas típicas da festa servidos a todos os participantes); a entrega das esmolas (pão, carne e vinho) como forma de presentear as pessoas que contribuíram para a realização da festa, o arraial (complementação “profana” das festividades, semelhante às quermesses existentes no Brasil) até a realização do ato público da Coroação do Imperador, no último dia. A realização da Festa exige muita dedicação e por muitas vezes significa um ato de grande sacrifício em forma de trabalho e entrega, sendo também muito dispendiosa economicamente. Por muitas vezes pode estar relacionada ao cumprimento de alguma promessa, à cura de doenças ou outros males e exige da parte dos organizadores uma doação espiritual manifestada pela gratidão ao Divino Espírito Santo.

939

É inaceitável na realização do ritual o engrandecimento da pessoa que o realiza. O que deve ser exaltado é o aumento da fé e da devoção no Divino Espírito Santo. Tal imposição faz-se necessária para evitar a deturpação dos verdadeiros valores, evitando preventivamente a exaltação de desigualdades sociais na própria realização da festa. Tal situação pode até chegar a acontecer, mas seria contrária à filosofia geral dessa celebração, devendo ser reprovada em sua totalidade. O culto instaura transformações sociais sendo responsável pela geração e transferência para a sociedade local de questões éticas e morais, estando acima de qualquer questão material.

ANÁLISE ICONOLÓGICA DA SIMBOLOGIA DO DIVINO O método de interpretação e análise de Erwin Panofsky, intitulado “Metodologia Iconológia”, exige do observador diversos conhecimentos específicos que vão além da mera observação e descrição, sendo eles imprescindíveis à eficiência da análise: fontes artísticas, literárias e históricas; conhecimentos de símbolos e também dos “sintomas culturais” ou “símbolos”, ou seja, “a compreensão da maneira pela qual, sob diferentes condições históricas, tendências essenciais da mente humana foram expressas por temas e conceitos específicos” (PANOFSKY, 2009, p. 65)ii. Sua metodologia compreende a análise em três etapas, sendo a primeira pré-iconográfica que se detém da descrição formal daquilo que se está observando, também identificado como significado primário ou natural. A segunda etapa, relacionada ao significado secundário ou convencional, requer um pouco mais de conhecimento do observador a respeito das imagens, histórias e alegorias, recebendo o nome de análise iconográfica. O último nível, a interpretação iconológica, trata dos significados ou conteúdos intrínsecos, constituindo o mundo dos valores simbólicos, exigindo uma maior compreensão do observador a respeito das especificidades do objeto analisado, sendo de extrema relevância as questões históricas e culturais que o envolvem naquele contexto.

A simbologia atribuída à Festa do Divino Espírito Santo é carregada de valores formais, históricos e conceituais. Para a análise desses elementos, me utilizarei da metodologia de Panofsky por acreditar que esta é a que melhor se apresenta para o momento, no sentido de sua objetividade na aplicação. A apropriação dos símbolos da Divindade pela família ou pelo responsável pela semana da festa constitui o primeiro ato oficial do culto, porém, se observado apenas sob uma ótica exterior e superficial, poderia ser simplificado ao simples ato formal de transferir alguns objetos de culto para a casa dos novos realizadores da festa. Os símbolos atribuídos ao culto do Divino estão expressos em objetos considerados sagrados:

940

Coroa, Cetro, Pomba, Bandeiras e geralmente estão sob a tutela da irmandade local ou da paróquia (no caso de festas realizadas no Brasil, organizadas pela igreja católica, como por exemplo a de Viana), em outros casos também andam em sistema rotativo pelas casas de pessoas que trabalham voluntariamente na organização das festas. A estes objetos são atribuídas propriedades de ligação ao sagrado e desta forma é exigido um comportamento bastante respeitoso com relação aos mesmos. Caso este protocolo seja quebrado, será denunciado como forma de desconsideração, desapreço e desrespeito para com a Divindade. Os altares são o ponto alto (sob a ótica da estética) do culto do Espírito Santo nos Açores, seja nas Igrejas, nos Impérios ou nas próprias casas. Todos querem dar o seu melhor para a Divindade e para isso não medem esforços para ornamentá-los com muito luxo, com as cores do Espírito Santo - vermelho e branco – utilizando mobiliários, tecidos, rendas, pedras, flores, velas, pombinhas, coroas e pães.

Neste estudo, os símbolos apresentados estarão divididos em três grupos distintos, relacionados de acordo com suas origens: símbolos do conjunto alimentar; símbolos do culto católico e símbolos do modelo imperial.

SÍMBOLOS DO CONJUNTO ALIMENTAR A manipulação, o sacrifício e a oferta destes alimentos simbólicos carregam inúmeros significados implícitos, obtendo grande visibilidade e comoção em cortejos de oferendas e cerimônias de refeições. A transição do homem para o modo de vida sedentário foi de suma importância para a história da civilização européia, marcando profundamente uma cultura material. Os três símbolos do conjunto alimentar são igualmente importantes e analisando a estreita interação ritualística entre os três elementos (pão, vinho e carne), podemos entender o porquê da relutância dos açorianos praticantes do culto contra qualquer tentativa de mudança a este respeito.

O PÃO Na Festa do Divino Espírito Santo o pão é símbolo oficial do Sagrado e o mesmo é constituído de poderes especiais, com atribuições de milagres ou outros acontecimentos inexplicáveis cientificamente. A crença nas propriedades especiais do Pão está arraigada nos pressupostos de que ele teria o poder de acalmar tempestades; que sua durabilidade é infinita; que se utilizado no preparo das sopas do Espírito Santo apresentam um melhor sabor; que não

941

deve ser dado aos animais; que a casa que guardar durante o ano algum pedaço do pão sagrado será preservada da fome. Os “Pães do Divino Espírito Santo” possuem diferentes variedades e assim correspondem a diferentes utilizações na tentativa de obtenção de milagres e de cura de males corporais. Assim é comum a existência de pães em formatos de braços, pernas e corpos inteiros, na crença de que quanto mais especificado estiver o problema, maior será a eficácia da sua cura através do milagre. De forma idêntica também encontramos pães em formatos de animais, reproduzidos em massa sovada e apresentados como ex-votos ou como pagamento de promessas. Nas práticas relacionadas ao Culto do Espírito Santo no Arquipélago dos Açores encontramos pelo menos sete tipos diferentes de pães, sendo também chamados de massa sovada em algumas localidades: rosquilhas, brindeiras, merendeiras, pão de tranca, folares, pão de água e pão de leite. Cada uma destas especialidades é relacionada ao que delas é esperado, mantendo as propriedades que o classificam como objeto sagrado na realização da festa, marcando situações e intenções específicas.

O VINHO Nos rituais do Espírito Santo, as ofertas de vinho acompanham (ou devem acompanhar) outros alimentos rituais (pão ou carne). O vinho é um alimento cerimonial utilizado em diversas religiões, incluindo a católica numa simbologia atribuída ao sangue de Jesus Cristo. Na comunicação com o sagrado, sob uma ótica material, o vinho apresenta a função de facilitar o estado alterado de consciência nos praticantes (uma espécie de transe), permitindolhes o alcance de uma nova dimensão, pressupostamente mais próxima da Divindade. Outros instrumentos sensoriais também podem ser utilizados como recurso para acessar essa outra dimensão, tais como o olfato (incensos, perfumes), a audição (música e outros sons que contribuam para um estado de maior interiorização), a visão (aguçada pela arte, pela beleza no seu sentido estético), enfim todos os sentidos podem contribuir para uma elevação do espírito. A complexa ritualização do vinho nos rituais açorianos obedece a cerimoniais precisos onde é valorizada a acumulação dos sentidos em diversos aspectos. Mesmo com certas distinções de rituais existentes de ilha para ilha, encontramos diversas semelhanças no transporte do vinho: carros decorados obedecendo ao ritual e coreografia do cortejo (chamando atenção do público pela beleza de sua ornamentação e pelo chiado emitido por suas rodas), emissão de sinais sonoros pelos foguetes que anunciam sua chegada. O cortejo percorre um itinerário organizado de forma a permitir a distribuição do vinho pelas casas previstas.

A CARNE

942

A simbologia principal da carne nas festividades do Espírito Santo está relacionada com a existência do “Bezerro do Espírito Santo”, animal que desempenha um papel ambíguo e confuso. Nas religiões primitivas européias, ele desempenha, por excelência, o papel de animal cultual, tradicionalmente ligado ao sagrado. Inúmeros milagres são atribuídos a esse animal em diversas estórias contadas por participantes do culto. A carne é o elemento simbólico alimentar da Festa do Divino Espírito Santo que apresenta a maior ligação com as origens do culto. Embora seja morto de forma sacramental, sua distribuição é referência de fortes manifestação de milagres e outras estórias de acontecimentos inexplicáveis, onde o bezerro se destaca na tradição do culto. A folia dos bezerros tem lugar na quinta-feira. A partir do momento que o Imperador ou Mordomo são nomeados, os bezerros são as suas prioridades. O cortejo dos bezerros sai da casa do Imperador ou Mordomo, até ao local onde calmamente os animais ainda dragam a verdejante pastagem. Depois de enfeitados com fitas, rosas, pombas e coroas de papel, de diversas cores, os bezerros seguem no cortejo, que é animado por elementos da Filarmónica, até o local do sacrifício. Os Imperadores no final do cortejo benzem os bezerros com o ceptro, enquanto os Mordomos o fazem com a vara do Espírito Santo. Consideram-se estas dádivas como sagradas. O criador do bezerro também poderá benzer os bezerros. Antes de ser distribuída, a carne é benta por um Sacertdote. (MAGINA, 2007, p.36)iii

SIMBOLOS DO CULTO CATÓLICO No Culto do Espírito Santo são realizados ritos litânicos, preces e cânticos, o que o aproxima de outros procedimentos cristãos católicos. Constituem exemplos desta natureza a utilização da simbologia da Pomba e das Línguas de Fogo.

A POMBA E AS LÍNGUAS DE FOGO Sendo a ave um dos símbolos mais poderosos da liberdade e da expansão da consciência, pela sua natureza arquetípica estando presente em praticamente todas as culturas (pomba, águia, falcão, fênix). Um ser que voa, simbolizando e exprimindo, privilegiadamente, a relação entre o céu e a terra, entre o espiritual e o material. Desta forma, as aves representam os estados superiores dos seres, que se libertaram das questões terrestres e materiais, se ascendendo ao campo transcendental, realçando a importância fundamental do vôo e da liberdade. A pomba simboliza a pureza, a paz e a representação inequívoca do Espírito Santo entre os cristãos. Basta recorrer ao início do Genesis, onde o espírito de Deus se movia, como uma ave, sobre a superfície das águas primordiais. Encontramos referências ao Espírito Santo relacionado com o simbolismo da Pomba (no sentido de materialização) em todas as passagens referentes ao Batismo de Jesus Cristo, nos Evangelhos de São Mateus, São Marcos, São Lucas e São João. Também na Bíblia, em Atos dos Apóstolos 2, 1-4, encontramos a passagem que relata o 943

simbolismo das línguas de fogo, que encontramos sempre em formato de fitas coloridas amarradas à pomba do Divino Espírito Santo.

SIMBOLOS DO MODELO IMPERIAL Vários elementos da forma e também do sentido da Festa do Divino Espírito Santo referem-se ao sentido Imperial do Culto, atribuídos à realeza portuguesa do início do século XIV: Rei Diniz e Rainha Isabel. A Coroa e o cerimonial da Coroação dão ênfase à simbologia da delegação de poderes ao homem comum, por meio do papel desempenhado na realização da Festa. São símbolos imperiais na Festa do Divino Espírito Santo: o Império; a Coroa; o Cetro; a Bandeira e o Estandarte.

O IMPÉRIO Os Impérios são pequenas construções, geralmente em formato cúbico, que caracterizam uma particularidade no culto do Espírito Santo no arquipélago dos Açores. Devido à sua pequena dimensão e sua conseqüente incapacidade de abrigar as multidões de pessoas praticantes do culto, apresentam uma concepção funcional diferente das demais igrejas da religião católica e caracterizam-se por manterem o sentido inicial dos templos gregos, não sendo utilizados para a realização de cultos e preces, servem apenas como morada (temporal) da Divindade, abrigando os aparatos utilizados na Celebração da Festa do Divino Espírito Santo, marcando assim uma existência material. Tratando-se de uma estrutura sólida, tem, no entanto, o seu acesso por uma escadaria removível. Na sua fachada, a porta central é ladeada por duas janelas. O seu varandim de ferro fundido embeleza o pequeno espaço disponível para os visitantes. No cimo da fachada principal ostenta a coroa do Espírito Santo. No mastro eleva-se a bandeira do Espírito Santo. O império apenas abre as suas portas nos Domingos de Pentecostes e da Trindade. (MAGINA, 2007, p.7)iv

Alguns Impérios podem ser utilizados como ponto de apoio na realização das tradicionais touradas à corda ou outras festividades no arquipélago dos Açores. Muitos dispõem de um edifício de apoio, chamado de despensa e nele são guardados alguns utensílios e também alimentos (barris de vinho, pães, açafates de vime, etc.). Na despensa também se realiza a benção do pão e do vinho que são oferecidos nas festividades dos Domingos de Pentecostes e da Trindade. Em Viana não existem Impérios, e assim a Festa é preparada nas casas de integrantes da Comissão organizadora (incluindo o Imperador e a Imperatriz) e a mesma é realizada na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, no centro da cidade.

A COROA E O CETRO

944

A Coroa é um ornamento ou adorno de cabeça, símbolo de legitimidade, poder ou conquista. Além de representar o poder de quem a utiliza, faz alusão ao poder superior (daquele que está acima) e faz transcender o poder do coroado aos reinos celestes. Tradicionalmente utilizada por monarcas e outros nobres, assim como em representações figurativas de deuses e santos. A utilização de adornos de cabeça para indicar governantes acontece desde a pré-história, sendo encontrada frequentemente na história de diversas civilizações, nas mais diversas épocas. A precursora da coroa no Ocidente foi a Diadema, uma fita usada pelos imperadores persas e romanos. Na antiguidade clássica, as coroas geralmente eram feitas de metais preciosos, incorporando também pedras e outras incrustações. Eram oferecidas também a alguns indivíduos de destaque que não eram governantes, como por exemplo, aos generais em triunfo. Atualmente, a cerimônia de coroação é realizada apenas pela monarquia britânica, embora alguns países ainda mantenham suas coroas como símbolo nacional. Na religião católica, em cerimônias especiais, os cardeais e bispos (“príncipes da Igreja”) usam uma Mitra (forma estilizada da coroa tradicional), já a Tiara, um dos modelos mais nobres de coroa, é um atributo exclusivo do Soberano Pontífice.

A coroa é um dos símbolos mais importantes da Festa do Divino Espírito Santo, sendo o ritual da Coroação o ponto máximo da Festa, geralmente possui hastes, sendo que as mais antigas possuem quatro hastes, remetendo ao poder imperial, reconhecendo o Espírito Santo como o poder máximo. Na junção das hastes sempre há uma esfera, encimada por uma Pomba, que por sua vez, representa o domínio do Espírito Santo sobre a Terra e sobre o próprio poder imperial. As coroas do Espírito Santo possuem uma espécie de bastão chamado Cetro, que possui o mesmo nome do bastão utilizado pelos monarcas, destacando assim outro reconhecimento de autoridade real. O cetro também possui uma Pomba em sua extremidade superior, que remete ao simbolismo de realeza e hierarquia reconhecidos à Terceira Pessoa da Santíssima Trindade. Algumas coroas ostentam também uma Cruz sobre suas hastes, sinalizando a ligação entre a fé em Cristo e a fé no Espírito Santo.

ESTANDARTE E BANDEIRA A bandeira é definida como símbolo representativo de um estado soberano, país, ou qualquer organização tradicional. Na celebração da Festa do Divino Espírito Santo, assim como a coroa é símbolo do poder real, outra simbologia bastante utilizada está na implícita no hasteamento de bandeiras e/ou estandartes, remetendo às conquistas realizadas pelos antigos reinados e às instituições religiosas em torno de uma devoção específica. 945

Os estandartes e as bandeiras do

Divino Espírito Santo geralmente são confeccionados em vermelho, que simboliza o fogo, alusivo à forma pela qual o Espírito Santo de Deus se manifestou aos apóstolos e à Virgem Maria no cenáculo.Outra cor também muito utilizada é a branca, simbolizando a pureza do Espírito Divino. Em comum, todos possuem a representação da pomba, simbolismo do Espírito Santo, de onde frequentemente divergem vários raios de luz, em número de sete, representando os dons do Espírito Santo: Sabedoria, Entendimento, Conselho, Fortaleza, Ciência, Piedade e Temor de Deus. A decoração utilizada nas bandeiras e nos estandartes é bastante rica e variada, sendo freqüente o aparecimento de motivos florais e arabescos nos bordados. Os mastros das bandeiras ostentam em seus topos uma imagem da Pomba do Divino pousada sobre uma esfera armilar (equivalente celeste a um globo terrestre), esculpida em madeira, metal ou gesso.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A coerência entre ideais e comportamentos pode ser considerada como uma das garantias de longevidade de qualquer organização e assim, a sintonia existente entre o processamento do ritual e a economia de meios semânticos utilizados na expressão dos valores do Culto do Espírito Santo, reflete o sucesso que permeia a concordância entre o ritual e o ideal. O ritual exerce papel fundamental no contexto do Culto do Espírito Santo, sendo complementar ao seu sucesso. Assim, podemos considerar que a predominância dos elementos simbólicos materiais e imateriais na performance da Festa do Divino Espírito Santo é a melhor contribuição para o entendimento do Culto e sua conseqüente preservação através dos tempos. i

COSTA, Antonieta. O Culto do Espírito Santo/The Cult of the Holy Spirit. Lisboa: Ésquilo, 2008, p. 21. PANOFSKY, Erwin. Significado nas Artes Visuais. São Paulo: Perspectiva, 2009, p.65. iii MAGINA, João Manuel. O Ciclo do Espírito Santo/ The Holy Ghost Cycle. Angra do Heroísmo: Nova Gráfica, 2007, p. 36 iv MAGINA, João Manuel. O Ciclo do Espírito Santo/ The Holy Ghost Cycle. Angra do Heroísmo: Nova Gráfica, 2007, p. 7 ii

946

Legislação e prática do sistema de sesmarias: o caso das terras dos mocambos de Palmares (séculos XVII e XVIII) Felipe Aguiar Damasceno PPGHIS/UFRJ – CNPQ Introdução Pretende-se, brevemente, neste texto abordar alguns aspectos do ordenamento jurídicoterritorial do Brasil colonial, na virada dos séculos XVII e XVIII, através do caso das sesmarias concedidas na antiga região dos mocambos de Palmares, na capitania de Pernambuco. O objetivo é atentar para os embates em torno dos direitos de propriedade sobre as terras doadas, após o fim das guerras contra os escravos quilombolas, que opuseram frações da classe dominante colonial: de um lado os representantes de uma elite local pernambucana, muitos oriundos de famílias tradicionais (algumas inclusive com serviços prestados na guerra contra holandeses); e, de outro, os bandeirantes paulistas que deram o combate final aos quilombos, em fins do século XVII, arrogando para si direitos conquistados sobre sesmarias já anteriormente doadas naquela região. A atenção aqui recai sobre as estratégias destes paulistas, acionando todo tipo de dispositivo possível, seja o direito positivo, ou os costumes, para reivindicar a justiça real e o reconhecimento de sua prerrogativa. Através da documentação em torno destes embates, é possível enxergar a construção dos direitos de propriedade territorial na colônia como um processo onde a prática da apropriação de terras não apenas é conformada, mas, da mesma maneira, conforma a legislação e suas mudanças no período, num movimento bidirecional. Aspectos do sistema de sesmaria: de Portugal ao Brasil

Primeiramente, o que foram as sesmarias? O instituto das sesmarias, surgido em Portugal na baixa Idade Média, foi a ferramenta jurídico-política implantada na América portuguesa com a finalidade de ocupação e aproveitamento das novas terras conquistadas pelos portugueses. Teve sua história iniciada como um costume de distribuição de terras comunais em Portugal, logo transformado em legislação positiva pelo rei D. Fernando I, em 1375, em face a uma crise de subsistência. Seu intuito original era fomentar a agricultura, concedendo terras não aproveitadas a quem as pudesse cultivar. A legislação enunciava a obrigação do cultivo das terras, sob pena de perda das “herdades” aos senhores que se recusassem a lavrá-las, eles mesmos ou através de lavradores “soldados”, ou foreiros (em nome do bem comum – algo que se equivaleria hoje ao que se chama de função social da propriedade). Da mesma forma, pessoas “pobres” que vivessem de outras atividades que não a lavoura eram compelidas, com as limitações político-administrativas da época, a 947

se

dedicarem ao cultivo em terras próprias ou de outrem. Um antigo costume local que, segundo Cirne Lima, também influenciou na conformação da lei: o colonato adscritício. Escreve Cirne Lima que “tratava-se de promover o reerguimento da lavoura, já oferecendo braços aos que tivessem terras, já oferecendo terras aos que as quisessem lavrar.” (LIMA, 1988, p. 19)i A partir de 1530, com o regimento de Martim Afonso de Souza, a instituição chega à América portuguesa com objetivos claros de, não só aproveitamento da terra, mas de seu controle efetivo – incumbência de Afonso de Souza.ii A primeira fase do “sesmarialismo” brasileiro (seguindo a definição de Lígia Osório Silva) corresponde ao período de 1530 à 1695, quando as concessões de terra, bem embasadas nas Ordenações do Reino, obedeciam aos princípios da gratuidade – não havia impostos sobre a terra, apenas a cobrança do dízimo da Ordem de Cristo, que incidia sobre a produção das terras –, e da condicionalidade do cultivo, a chamada cláusula do aproveitamento. Este fundamento do instituto tinha o objetivo de evitar terras incultas, condicionando a concessão à capacidade do concessionário de aproveitar a terra dentro de um prazo de cinco anos. Para Silva, a necessidade de ocupação e defesa de um território dezenas de vezes maior do que o do reino acabou por fazer com que os administradores coloniais ignorassem este fundamento do instituto, expresso nas Ordenações, em nome do domínio efetivo e do retorno econômico. Neste período, são feitas concessões de terra em sesmarias vastíssimas (dezenas de léguas) a indivíduos com recursos suficientes para erguer engenhos de cana ou criar imensos rebanhos bovinos, especialmente as regiões de antiga colonização no norte, como Bahia, Pernambuco e demais capitanias adjacentes e subordinadas. (SILVA, 2008, p. 48) Foi no reinado de D. João II (1683-1706) que muitas mudanças foram introduzidas no sentido de melhor regulamentar as sesmarias. Uma série de alvarás, ordens e consultas do rei e do Conselho Ultramarino vão, gradualmente, estabelecer o pagamento do foro anual à Fazenda Real por légua doadaiii, limites máximos para as extensões das doaçõesiv e a necessidade de demarcação, títulos e confirmação régia das sesmarias.v Apesar de todas estas medidas tomadas ela Coroa, é consenso na historiografia que a cobrança de foro real sobre as terras de sesmarias não foi uma realidade até fins do século XVIII – sendo comuns cartas de sesmarias com a garantia de isenção do foro Real explícita. Quanto aos limites, demarcação e confirmações régias das datas de terra, é difícil afirmar a efetividade destas medidas, uma vez que muitas sesmarias nunca chegaram a ser confirmadas em Lisboa, apesar de terem sido registradas nos livros de sesmarias locais das diversas capitanias – o que assegurava (na prática) uma maior segurança da posse, através de documento público escrito. Apesar de algumas sesmarias anuladas pelo rei por falta de limites e demarcação claras, estes 948

casos

dependiam de denúncias e demorados trâmites judiciais. Dadas as possíveis desordens sociais destes processos, são pouquíssimos os casos de anulação nestas condições, ao longo do século XVIII. Apesar da aparente unidade do instituto das sesmarias, autores como Laura Varella e Francisco Teixeira da Silva lembram que eram múltiplas as formas de apropriação fundiária encontradas dentro do instituto das sesmarias. Didaticamente, Silva estabelece quatro tipos encontrados no contexto da pecuária do sertão do nordeste colonial: a. a grande propriedade, de origem sesmarial, com exploração direta e trabalho escravo; b. sítios e situações, terras arrendadas por um foro contratual, com gerência do foreiro e trabalho escravo; c. terras indivisas ou comuns, de propriedade comum –não são terras devolutas, nem da Coroa–, exploração direta, com caráter de pequena produção escravista ou familiar, muitas vezes dedicada à criação de gado de pequeno porte; d. áreas de uso coletivo, como malhadas e pastos comunais, utilizados pelos grandes criadores e pelas comunas rurais. (SILVA, 1997, p. 130.)

A despeito dos limites da Coroa em efetivar suas expectativas sobre o sistema sesmarial, conformando sua prática aos interesses da arrecadação real e da garantia da subsistência dos colonos, a característica primordial do instituto das sesmarias na colônia nunca deixou de ser seu caráter de propriedade condicionada. “Pressuposto básico para a compreensão da propriedade sesmarial brasileira é, precisamente, seu caráter público, ou seja, o fato dos territórios pertencerem de jure à Coroa, sob a jurisdição espiritual da Ordem de Cristo” (VARELLA, 2005). E a principal condição para a manutenção dos direitos de propriedade sobre as datas de sesmarias era seu aproveitamento no prazo estipulado na carta de doação (que era variável), erigindo fazendas e melhoramentos, e garantindo o cultivo das terras arrendadas aos lavradores e moradores dentro da sesmaria. A partir do caso das sesmarias doadas nas terras antes dominadas pelos mocambos de Palmares, buscarei mostrar como, nos pedidos de sesmarias e nas disputas engendradas sobre as terras, os agentes históricos acionavam as diversas noções de direitos de propriedade que advinham da legislação e dos costumes do sistema de sesmarias. Mais ainda, a realidade da prática da apropriação daquelas terras também conformou a legislação sesmarial colonial, demonstrando o diálogo entre prática e legislação fundiária na conformação do processo histórico. Doações de sesmarias nos Palmares de Pernambuco

Como já dito acima, as doações das terras dos Palmares são feitas aos combatentes coloniais em dois momentos distintos, o primeiro deles logo após o tratado de paz

949

de 1678.vi

Na Relação das léguas de terra que se tem dado por sesmaria em todas estas Capitanias de Pernambuco depois que o Governador Aires de Sousa de Castro, o ter cessado o prejuízo que faziam os negros dos Palmares que foi a causa porque as pediram as pessoas desta relação vii, encontramos dezesseis concessões e suas respectivas léguas de terra, totalizando 191,5 léguas (no entanto, pelo menos uma das cartas de doação é referente a terras fora da região dos Palmares, e não será considerada aqui)viii. São requerentes no documento seis capitães, quatro capitães-mores, um coronel, um sargento-mor e um padre, o vigário de Alagoas – e mais três sesmeiros cuja ocupação não é apresentada. No entanto, através das cartas de sesmarias podemos constatar que muitas das doações foram feitas a mais de um requerente. Assim, são ao menos 24 sesmeiros nesta primeira leva de doações que recebem terras na região dos Palmares.ix Apesar das doações de sesmarias na região, a guerra contra os mocambos reacende ainda na década de 1680. Não é surpreendente o fato de que muitos destes sesmeiros não tenham chegado a ocupar, muito menos a desbravar e a cultivar suas numerosas léguas de sesmaria. Talvez nem mesmo puderam se utilizar do expediente – muito comum à época – da cobrança de foro sobre possíveis posseiros e moradores das sesmarias. Assim, as terras teriam permanecido até o fim do século XVII sem atos possessórios que confirmassem os direitos de propriedade dos sesmeiros: cultivo e melhoramentos. O capitão-mor Fernão Carrilho reclamava, em 1693, o direito de receber duas tenças de 88$000 réis, para si e seu filho, pagas com os dízimos dos Palmares – Carrilho recebera direitos sobre uma área de 20 léguas de sesmarias, ainda não localizada por mim. Queria receber retroativamente aos anos em que não pode receber seus rendimentos por ser réu em uma devassa sobre seus procedimentos nas expedições aos Palmares. Uma vez tendo saído ileso do processo, tentou, contra grande resistência do provedor João do Rego Barros, receber as tenças. Ao que parece, a justificativa para a resistência do provedor seria o fato de que as terras dos Palmares, muitas já doadas em sesmaria, não apresentavam “melhoramentos” significativos em relação ao que eram antes das guerras palmarinas (ENNES, 1938, p. 188, doc. 22). O governador Caetano de Melo de Castro, em 1698, tenta sepultar de vez as aspirações de Carrilho, afirmando que, não obstante o valor e dedicação com que Carrilho fizera entradas aos mocambos, “porém nunca conquistou terras dos Palmares por quanto sempre os negros rebeldes se conservaram naquelas terras dilatando-se cada vez mais”, e somente a vitória paulista, em 1694-95, de fato acabou com a ameaça palmarina sobre as terras.x Em 1687, o terço de bandeirantes paulistas do então coronel Domingos Jorge Velho entra em acordo com o governo da capitania de Pernambuco, na pessoa do governador João 950

da Cunha Souto-Maior, ajustando condições para que o grupo de sertanejos faça o combate aos mocambos dos Palmares de Pernambuco. O documento em que se registram as condições ajustadas pelo governador e Domingos Jorge Velho é composto de 16 pontos acordados entre as partes, e confirmados por Alvará real, em 7 de abril de 1693, mais ou menos um ano após a chegada dos paulistas aos Palmares. Dentre ajustes quanto às mercês que receberiam após a guerra, assim como o destino de possíveis escravos fugidos capturados, estão as terras pretendidas por sesmarias pelos paulistas. O sexto ponto do acordo, dizia “que o Senhor governador dará aos mesmos conquistadores referidos sesmarias nas mesmas terras dos Palmares, que estiverem livres, para as poderem povoar e cultivar como suas, vivendo sujeitos e as mesmas terras ao domínio de Sua Majestade”. (GOMES, 2010, p. 277) Isto é, a Coroa se obrigava a conceder as terras dos Palmares conquistadas pela tropa de Jorge Velho “que estiverem livres”, e “com as cláusulas costumadas, limitando a cada um o que poder povoar, ficando-me livre para dar as que for servido a outras pessoas, que me quiserem servir na mesma guerra ou tiverem feito em outras ocasiões”, segundo as ressalvas declaradas no alvará de confirmação régia do contrato. (GOMES, 2010, p. 279) A partir de 1695, com o assassinato do líder Zumbi e o recuo dos negros palmarinos das principais terras da região, começa a contenda entre paulistas, pernambucanos e a Coroa pelos direitos sobre as terras dos Palmares. Os paulistas reclamavam em torno de 1060 léguas quadradas de terras, “sem nenhuma cláusula, nem mais controvérsias”, no sertão entre o rio São Francisco e o Cabo de Santo Agostinho. (GOMES, 2010, p. 422) De fato o terço paulista, através do Mestre de Campo, Domingos Jorge e seu procurador, reclamavam direitos sobre uma região que correspondia praticamente à totalidade das terras que se sabia fora dominada pelos mocambos palmarinos. Os paulistas evocariam a prática e a legislação da doação de sesmarias na colônia que previa “atos possessórios” para a efetivação da concessão em, no máximo, 5 anos. Do lado da Coroa, ainda em 1695 o Conselho nomeava três condições para as doações aos paulistas: 1) que a demarcação e repartição das terras entre os paulistas seria feita pelo governador, com assistência do ouvidor geral e do provedor da Fazenda; 2) que esta repartição seria enviada ao Conselho para que o rei ou altere como for servido; e 3), que sejam observadas as leis e Ordenações, com todas suas cláusulas, especialmente que as sesmarias não podem prejudicar terceiros, no caso, doações antecedentes que tenham sido ocupadas e cultivadas na forma da lei. (GOMES, 2010, pp. 357-358) No seu longo Requerimento, citado acima, Jorge Velho busca refutar estas exigências reforçadas pela Coroa. Primeiro, invocando os costumes da terra na concessão de sesmarias, escreve o procurador dos paulistas que “nunca se usou que na repartição das terras nesta conquista assistam 951

Governadores, Ouvidores gerais, nem Provedores da fazenda nem nunca se julgou ser necessário tal assistência; e só quando há contendas, as dúvidas entre hereos por causa de limites”. A terceira condição, no entanto, é a que merece maiores considerações por parte dos suplicantes. Insistem que a cláusula de não prejudicar terceiros não tem cabimento neste caso, como já haviam colocado em comunicação anterior. Invocando as mesmas Ordenações que a Coroa e o Conselho usavam para justificar suas ressalvas, os paulistas agora reafirmavam seus direitos às terras lembrando que os supostos agraciados com sesmarias nos Palmares anteriormente não haviam cultivado dentro do tempo determinado nas ordenações, muito menos povoado. Ademais, a própria existência dos mocambos seria prova suficiente de que aquelas terras nunca haviam sido devidamente ocupadas e cultivadas, “porquanto se eles as houvessem cultivado quando deviam é indubitável, que os tais negros nunca as ocupariam, nem haveriam feito nelas seus covis”, portanto quaisquer sesmarias pretendidas ali já teriam entrado em comisso, passados já dez anos desde as primeiras doações, em 1678. (GOMES, 2010, pp. 417-418) Escolhendo algumas normas e rechaçando outras, os bandeirantes paulistas buscaram construir a legitimidade de seus direitos sobre as sesmarias dos Palmares. Até o momento, identifiquei 16 cartas de sesmarias passadas aos paulistas e seus descendentes, entre 1702 e 1775, computando 28 sesmeiros.xi O notável é que, apoiando-se numa ordem régia de 1703 que isentava do pagamento de foro as terras concedidas aos suplicantes no rio dos Camarões, Piauíxii, todas as sesmarias concedidas aos paulistas nos Palmares ficaram isentas do pagamento do foro, mesmo tendo sido concedidas após a fixação do foro real. Mesmo as exigências fixadas pela legislação real na virada do XVII para XVIII seria flexibilizada por poderes e interesses específicos, respondendo a situações e conjunturas que exigiam a observância de normas e direitos particulares, bem ao caráter casuístico do direito colonial brasileiro (HESPANHA, 2005). Considerações Finais

Recentemente, vem surgindo na historiografia acadêmica um novo interesse sobre o episódio de Palmares. Monografias vem sendo defendidas em torno de diversos aspectos da experiência palmarina: a produção de uma memória de seus líderes (REIS, 2004), a arqueologia da Serra da Barriga, onde os mocambos floresceram (CARVALHO, 2005), aspectos da história política dos mocambos (LARA, 2008), a inserção de Palmares na experiência da colonização portuguesa no Atlântico Sul entre América e África (DAMASCENO, 2014), e as mercês recebidas pelos combatentes nas guerras contra os 952

quilombolas (MENDES, 2013; e MARQUES, 2014). Este pequeno texto se insere nesta conjuntura ao buscar um ângulo ainda pouco estudado sobre a experiência de Palmares, tentando conectá-la com a história do direito, especialmente os direitos de propriedade da terra. É extremamente importante entender as múltiplas facetas do sistema de sesmarias que se escondem sob a suposta unidade da “grande propriedade” sesmarial. As sesmarias não correspondiam a uma unidade produtiva única, nem mesmo podemos encontrar em sua legislação, ou nas “práticas proprietárias” no interior e ao redor das sesmarias, a produção única, voltada para o engenho de cana, ou aos grandes currais de gado. Não parece ser possível encontrar no processo histórico do sistema – pelo menos ao longo dos séculos XVII e XVIII – nem o germe do latifúndio moderno (LIMA,1988), tampouco noções de propriedade absoluta, individual, excludente, liberal (como parece buscar encontrar ALVEAL, 2007, pp. 15-16), que tenham antecedido relações sociais de produção compatíveis (proletarização do campesinato, expropriação dos produtores diretos, etc.). Busquei aqui, dentro das devidas limitações chamar a atenção para o que Rosa Congost (2007, p. 23) chama de “condições de realização da propriedade”: para além de marcos jurídicos e institucionais, se trata de observar o conjunto de forças de atração e de repulsa relacionadas à distribuição social da terra, do produto e da renda, que intervêm e interagem na sociedade analisada. As diversas modificações nas relações sociais de propriedade nem sempre são acompanhadas de mudanças nos códigos e leis de maneira correspondente, pois, por princípio, os códigos e leis tentam “encapsular” e tornar estática, como uma fotografia, uma determinada formação social em constante mutação. Assim, é dever do historiador observar como uma dada sociedade enxergava, em seus diversos momentos, as relações sociais que construíam os direitos de propriedade, e não analisá-los a partir de um enfoque evolucionista dos códigos jurídicos rumo à propriedade privada exclusiva. Fontes: “Alvará régio de 12 de Março pelo qual se defere os 8 pontos contidos no requerimento dos Paulistas [1695].” In: GOMES, 2010, pp. 362-365. “Carta de Sua Majestade escrita ao Governador e Capitão Geral deste Estado, Dom João de Alencastro, sobre os ouvidores, criados de novo, examinarem as sesmarias que se tem dado se estão cultivadas.” In: PINTO JUNIOR Joaquim Modesto e FARIAS Valdez (org). Coletânea de Legislação e Jurisprudência Agrária e Correlata. Vol. 3. Brasília: MDA, 2007, p. 59. “Carta para o capitão-mor doar sesmarias”. In: ALVES FILHO, Ivan. Brasil, 500 anos em documentos. Rio de Janeiro: Mauad, 1999, p. 38. “Condições ajustadas com o governador dos paulistas Domingos Jorge Velho para conquistar e destruir os negros de Palmares [1687]”. In: GOMES, 2010, p. 277-279. “Consulta do Conselho Ultramarino em que se determina Satisfaça ao que Sua Majestade ordena sobre as cartas que escreveu o Governador de Pernambuco e Domingos Jorge Velho, 953

acerca das condições que com os Paulistas ajustou o Governador João da Cunha Soto Maior sobre a expedição dos Palmares [1695].” In: GOMES, 2010, pp. 357-358. “Exordio da ordinhaçom da lavoira”, AHMC/Pergaminhos Avulsos, n. 29. “Fragmentos de uma memória sobre as sesmarias da Bahia.” In: Revista Trimestral de História e Geographia, Rio de Janeiro, n. 12, 1841, pp. 378-379. “Parecer de João do Rego Barros sobre dois padrões de tensas...”. In: ENNES, Ernesto. As guerras nos Palmares: subsídios para sua história. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1938, pp. 188-191. “Relação das léguas...”. In: ENNES, Ernesto. As guerras nos Palmares: subsídios para sua história. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1938, p. 153. “Requerimento que – aos pés de Vossa Majestade humildemente prostrado – fez em seu nome e em aquele de todos os oficiais e soldados do terço de Infantaria São Paulista de que é mestre, Domingos Jorge Velho que atualmente serve a Vossa Majestade na guerra dos Palmares contra os negros rebelados nas capitanias de Pernambuco”. In: GOMES, Flávio. Mocambos de Palmares: histórias e fontes (Séculos XVI-XIX). Rio de Janeiro: 7Letras, 2010, pp. 407-424. AHU_CU_015, Cx. 12, D. 1150. AHU_CU_015, Cx. 165, D. 11754. AHU_CU_015, Cx. 18, D. 1758. AHU_CU_015, Cx. 93, D. 7376. Arquivo do IHGB, Arq. 1.2.24 - Tomo V Biblioteca da Universidade de Coimbra, seção de manuscritos, MS 710 Documentação Histórica Pernambucana: sesmarias. Vols. 1, 2 e 4. Recife: Secretaria de Educação e Cultura; Biblioteca Pública, 1959. Refrências Bibliográficas: ALVEAL, Carmen M. Converting Land into Property in the Portuguese Atlantic World, 16th18th century. 354f. Tese (Doutorado em História) – Johns Hopkins University, Baltimore, 2007. CARVALHO, Aline V. Palmares como espaço de sonhos: análise do discurso arqueológico sobre a Serra da Barriga. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2005. CONGOST, Rosa. Tierras, leyes, historia: estudios sobre “la gran obra de la propiedad”. Barcelona: Crítica, 2007 DAMASCENO, Felipe A. Conexões e Travessias no Atlântico Sul: Palmares, africanos e espaços coloniais numa abordagem comparada (século XVII). Dissertação (Mestrado em História Comparada) – UFRJ, Rio de Janeiro, 2014. ENNES, Ernesto. As guerras nos Palmares: subsídios para sua história. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1938. GOMES, Flávio dos Santos (org.). Mocambos de Palmares: histórias e fontes (séculos XVIXIX). Rio de Janeiro: 7Letras, 2010. HESPANHA, António Manuel. “Porque é que existe e em que é que consiste um direito colonial brasileiro”, 2005. LARA, Silvia H. Palmares & Cucaú: o aprendizado da dominação. Tese (Titularidade em História) – UNICAMP, Campinas, 2008. LIMA, Ruy Cirne. Pequena História Territorial do Brasil: Sesmarias e terras devolutas. 4ª ed. Brasília: ESAF, 1988. MARQUES, Dimas Bezerra. Pelo bem de meus serviços, rogo-lhe esta mercê: a influência da guerra de Palmares na distribuição de mercês (Capitania de Pernambuco, 1660-1778). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Alagoas – Maceió, 2014. 954

MENDES, Laura Peraza. O serviço de armas nas guerras contra Palmares: expedições, soldados e mercês (Pernambuco, segunda metade do século XVII). Dissertação (Mestrado em História) – UNICAMP, Campinas, 2013. RAU, Virgínia; SILVA, Maria Fernanda (org.). Os manuscritos do arquivo da casa de Cadaval respeitantes ao Brasil, vol.1. Lisboa, 1956. REIS, Andressa M. Zumbi: historiografia e imagens. Dissertação (Mestrado em História) Universidade Estadual Paulista, Franca, 2004. SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. “Pecuária e formação do mercado interno no Brasilcolônia”. In: Estudos Sociedade e Agricultura, 8, abril 1997, pp. 119-156. SILVA, Lígia Osório. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da Lei de 1850. 2ª Ed. Campinas: Ed. da Unicamp, 2008. VARELA, Laura Beck. Das Sesmarias à Propriedade Moderna: Um estudo de História do i Cf. a transcrição paleográfica da cópia de 1413 do Arquivo Histórico Municipal da Câmara de Coimbra, da chamada Lei das Sesmarias, “Exordio da ordinhaçom da lavoira”, AHMC/Pergaminhos Avulsos, n. 29.

ii Apesar do termo “sesmaria” não aparecer explicitamente na carta, o rei deixa claro para Martim Afonso que as doações de terra que fizer no Brasil estavam sujeitas a uma cláusula de aproveitamento da terra em tempo determinado, 6 anos, depois do qual o capitão-mor poderia “tornar a dar com as mesmas condiçoes a outras pessoas que has aproueitem”. Cf. a carta de D. João III publicada em, “Carta para o capitão-mor doar sesmarias”. In: ALVES FILHO, Ivan. Brasil, 500 anos em documentos. Rio de Janeiro: Mauad, 1999, p. 38. Para uma análise exaustiva do regimento de Martim Afonso, cf. ALVEAL, 2007, cap. IV.

iii Cf. LIMA, 1988, p. 37-38; SILVA, 2008, p. 56; e ALVEAL, 2007, p. 11. O surgimento da cláusula do foro é controversa. Osório Silva tira sua data, 27 de dezembro de 1695, de Varnhagen. Este, por sua vez, retira a referência de um manuscrito publicado pela Revista do IHGB, “Fragmentos de uma memória sobre as sesmarias da Bahia.” In: Revista Trimestral de História e Geographia, Rio de Janeiro, n. 12, 1841, pp. 378-379. Para esta data só encontrei a carta régia de 27 de dezembro de 1695, ao governador-geral João de Lencastre, que estabelecia o limite de 4 léguas para as concessões de sesmarias doravante. Cf. “Carta de Sua Majestade escrita ao Governador e Capitão Geral deste Estado, Dom João de Alencastro, sobre os ouvidores, criados de novo, examinarem as sesmarias que se tem dado se estão cultivadas.” In: PINTO JUNIOR Joaquim Modesto e FARIAS Valdez (org). Coletânea de Legislação e Jurisprudência Agrária e Correlata. Vol. 3. Brasília: MDA, 2007, p. 59. Em Pernambuco, a cobrança de foro foi introduzida pela carta régia de 20 de janeiro de 1699, ao governador Caetano de Mello de Castro, citada na nota abaixo.

iv A carta régia de 21 de agosto de 1697 para o governador geral do Maranhão, onde notifica a Antônio de Albuquerque que a concessão de sesmarias deve observar os termos da lei, não excedendo o limite máximo de 3 x 1 léguas. Cf. Arquivo do IHGB, Arq. 1.2.24 - Tomo V, pág. 213v. Para Pernambuco, a limitação das concessões é inaugurada em meio às disputas pelas terras dos Palmares, assim como a cobrança do foro segundo a qualidade da terra e a necessidade de confirmação régia para os sucessores dos donatários originais, em provisão real de 1699 ao governador Caetano de Mello e Castro. Cf. a provisão real anexa em “CARTA (1ª via) do [governador da capitania de Pernambuco], D. Tomás José de Melo, à rainha [D. Maria I], informando ter cumprido as ordens relativas à cobrança nas pensões de foro das cartas de sesmaria; queixando-se dos governadores das outras capitanias no que se refere a concessão de datas de sesmaria, sem pagamento de pensão ou foro das mesmas; e remetendo documentos relativos ao assunto.” 19 de agosto de 1788, AHU_CU_015, Cx. 165, D. 11754, f. 6.

v A necessidade de confirmação real das doações aparece pela primeira vez na Carta régia ao governador-geral, João de Alencastro, de 23/11/1698, Biblioteca da Universidade de Coimbra, seção de manuscritos, MS 710. Em Pernambuco, esta determinação é reforçada pela provisão real citada na nota acima, de 20 de janeiro de 1699.

vi Sobre o tratado de paz e seus significados políticos para os negros palmarinos e para a colonização portuguesa no Atlântico, ver LARA, 2008.

955

vii Publicado em ENNES, 1938, p. 153; cf. também em GOMES, 2010, p. 263. Nesta edição a data do documento aparece como 1685, sem justificativa aparente. Também foi editado com pequenas diferenças nos nomes dos sesmeiros, em RAU e SILVA, 1956. Existe uma cópia, anexada a uma carta de João Fernandes Vieira ao príncipe regente, D. Pedro, sobre a continuidade da guerra contra Palmares, de 20 de agosto de 1679 – um ano após a tentativa de paz –, no Arquivo Histórico Ultramarino (AHU_CU_015, Cx. 12, D. 1150). Esta cópia se encontra em péssimo estado, porém, felizmente, foi transcrita por Ernesto Ennes, em 1938.

viii A carta de sesmaria passada ao capitão João Dourado de Azevedo e mais 11 pessoas era referente a 50 léguas de terras ao longo do rio Piranhas, na capitania do Rio Grande. Cf. a carta de sesmaria em Documentação Histórica Pernambucana: sesmarias. Vol. 4. Recife: Secretaria de Educação e Cultura Biblioteca Pública, 1959, p. 94.

ix Das dezesseis sesmarias da Relação, consegui localizar oito cartas de doação nos Palmares. Todas as informações estão na compilação de dados sobre as cartas condensada no volume Documentação Histórica Pernambucana: sesmarias. Vol. 4. Recife: Secretaria de Educação e Cultura Biblioteca Pública, 1959, pp. 91-94.

x “CARTA do governador da capitania de Pernambuco, Caetano de Melo de Castro, ao rei [D. Pedro II], sobre os motivos existentes para que as terras conquistadas nos Palmares por Fernão Carrilho, não renderem nada aos dízimos reais e não terem tido nenhum melhoramento”. – Pernambuco, 20 de junho de 1698. Arquivo Histórico Ultramarino. AHU_CU_015, Cx. 18, D. 1758.

xi Me utilizei largamente do trabalho de Dimas Marques e do banco de dados da plataforma online Sesmarias do Império Luso-Brasileiro – SILB. Cf. MARQUES, 2014, especialmente ANEXO 1, pp. 136-145.

xii Ver a ordem de 14 de junho de 1703, que isentava as terras paulistas no Piauí de pagamento de foro à Fazenda Real, pois foram requeridas antes da fixação deste foral; anexada em “REQUERIMENTO dos alferes Duarte Ramos Furtado e seu irmão José da Cunha ao rei [D. José I], pedindo para receber as sesmarias em Palmar com dispensa da pensão da mesma, por serem descendentes dos restauradores do dito lugar.” 11 de janeiro e 1760, AHU_CU_015, Cx. 93, D. 7376, f. 5 e 6.

956

Trocas clientelistas na construção da Avenida Central na Capital da República (1903-1904)

Felipe Martins dos Santos 1

Resumo: O tema deste trabalho é a prática do clientelismo na Primeira República. O objetivo é discutir as trocas políticas que envolvem recursos públicos em sociedades complexas sob o conceito de clientelismo. Para isso, analisamos correspondências recebidas, entre 1903 e 1904, por Paulo de Frontin, engenheiro responsável pela comissão construtora da Avenida Central. Em uma fase da cidade que se destaca pelos impactos das transformações urbanísticas, a proposta é entender as peculiaridades das relações políticas sustentadas no compromisso pessoal. Palavras-Chave: Patronagem, clientelismo, troca política.

Abstract: The theme of this work is the practice of clientelism in the First Republic. The objective is to discuss policy changes that involve public resources in complex societies under the concept of clientelism. For this, we analyzed correspondence received, between 1903 and 1904, by Paulo de Frontin, engineer responsible for the construction committee of the Avenida Central. At one stage the town that stands out by the impacts of urban transformations, the proposal is to understand the peculiarities of political relations based on personal commitment. Keywords: Patronage , clientelism , political exchange

Introdução

Este trabalho tem como tema as trocas políticas de caráter clientelista na cidade do Rio de Janeiro do início do século XX. Especificamente no contexto da primeira fase de Construção da Avenida Central (hoje Avenida Rio Branco), entre 1903 e 1904. Momento que compreende a fase de indenização, desocupação, demolição e construção do eixo principal da Avenida. No entanto, o que trata-se de discutir são as peculiaridades das trocas clientelistas em contextos urbanos, como a cidade do Rio de

957

Janeiro. Para isso, foram selecionados casos de pedidos feitos por carta e enviados ao engenheiro Paulo de Frontin, que chefiou a Comissão da Avenida Central. Coube a Paulo de Frontin a incumbência de dirigir os trabalhos de construção da Avenida Central. Nascido em Petrópolis no ano de 1960, Frontin transferiu-se em 1874 para a Capital do Império, onde estudou na Escola Politécnica, formando-se em engenharia civil e geográfica. Anos depois, recebeu o título na mesma instituição de bacharel em minas e bacharel em ciências físicas e matemáticas. Atuou, a partir de 1880, como professor da Politécnica e do Colégio Pedro II. O nome do engenheiro, conhecido nos círculos da Politécnica, se consagrou no restante da cidade do Rio no episódio que foi batizado pela imprensa em 1889 como Água em Seis Dias, que cumpriu o desafio de abastecer a cidade com água por meio de um aqueduto para amenizar a severa estiagem daquele verão. No ano seguinte, fundou junto com um grupo de engenheiros, entre eles Carlos Sampaio e Vieira Souto, a Empresa de Melhoramentos do Brasil. Sob a iniciativa de auxiliar o governo

a

promover melhorias em infraestrutura nas grandes cidades, Frontin se tornou um dos seus principais diretores; a empresa tinha atuação em ferrovias, construção civil e estradas. O seu perfil político oferece elementos interessantes e, em certa medida, novos para a compreensão das relações de troca política. Primeiramente porque até aquele momento Frontin não se enquadrava na categoria de político profissional – muito embora tenha tido uma participação política fundamental na presidência do Clube de Engenharia2. Em seu arquivo privado3, no entanto, encontram-se vestígios dos mais diversos tipos de pedidos (emprego, indenização, aquisição de imóveis, etc.) em 134 correspondências que tratam do período da construção da Avenida Central. As obras da Avenida se inserem no contexto das reformas urbanísticas empreendidas pelo presidente Rodrigues Alves e o prefeito Pereira Passos, sobretudo a partir de 1903. As obras foram divididas em duas grandes frentes. A primeira delas esteve sob a responsabilidade da Prefeitura, que se notabilizou pela política conhecida na época como Bota Abaixo, por conta da maneira radical e autoritária com que foram feitas as demolições e, sobretudo, a remoção da população do centro da cidade. A segunda parte, a cargo do governo federal, coube a execução dos projetos

958

de

remodelação do porto e ampliação, o prolongamento do canal do mangue e a abertura de três importantes avenidas: do Mangue, do Cais e a Central. A obra da Avenida Central transcorreu em um ritmo acelerado por conta de uma estratégia de desapropriações. Ao final de 1903, iniciou-se o processo de desapropriação e em fevereiro do ano seguinte começaram as demolições. Em menos de sete meses concluía-se o eixo-principal da Avenida. Com 1.800 metros de extensão e 33 metros de largura, ligava o porto à região central e a zona sul. No bojo das comemorações do dia 7 de setembro inauguravam o presidente Rodrigues Alves, o ministro da Viação e Obras Públicas Lauro Muller e o engenheiro chefe da Comissão de Construção da Avenida Central, Paulo de Frontin. .

A Capital Federal e as práticas políticas da Primeira República

É consolidada uma vertente interpretativa do Regime Republicano que analisa o caráter excludente deste período histórico sobre a ótica da relação entre o público e do privado. Sobretudo os trabalhos que têm forte influência da concepção clássica do coronelismo, elaborada por Victor Nunes Leal4. Em linhas gerais, foi o sistema em nível nacional fruto da alteração das relações entre os proprietários rurais e o governo; no qual os coronéis, em uma fase decadente, perdiam sua força diante do fortalecimento do poder do Estado. Neste sistema baseado na reciprocidade, envolviam-se deste o coronel, os oligarcas que controlavam a política estadual, até o presidente da República. Por conta de seu caráter de metrópole e por sediar a capital do país, o Rio de Janeiro possuía uma posição sui generis. Por ser a maior cidade do país, com mais de 500 mil habitantes, a cidade oferecia segundo José Murilo de Carvalho5, o momento propício para o desenvolvimento da cidadania. Isso porque, historicamente, a cidadania se desenvolvera no modelo de cidade proposto por Max Weber. Por outro lado, a posição de centro administrativo gerava uma forte predominância do Estado, inclusive o executivo municipal sendo um braço da administração federal6. A condição de Capital Federal foi fenômeno marcante da vida política da cidade. A cidade não gozava de uma de autonomia administrativa. Como desdobramento dessa 959

condição, a política carioca teria sido absorvida pela política nacional. Uma dinâmica marcada por forte interferência do governo federal e por sucessivas tentativas de enquadramento político da Capital Federal7. As relações entre as lideranças da cidade e seus cidadãos se davam, desta forma, de maneira distinta das relações do restante do Brasil agrário, controlados pelas oligarquias sustentadas nos domínios locais

dos

decadentes coronéis. .

Definindo a noção de “Trocas Clientelista”

O entendimento que aqui se faz de trocas clientelistas está amparado no conceito de clientelismo em sociedades urbanas. O fenômeno se configura como uma prática de troca de recursos públicos (sinecuras, benefícios fiscais, isenções) em retribuição a bens políticos. Luigi Graziano8 propõe que em sociedades urbanas complexas, o clientelismo é composto de três elementos básicos 1º) clientelismo é uma relação diática, ou seja, envolve dois elementos de forma intercambiante e seus agentes auferem benefícios mútuos; 2º) é uma relação assimétrica (entre atores que controlam recursos desiguais) e 3º) é uma relação privada, particularista que pressupõe envolvimento afetivo. Em sociedades urbanas e complexas, o fenômeno apresenta-se através de diversas redes de clientelas ou redes de patronagem. Este conjunto de relações corresponde à complexidade da metrópole, como uma sociedade heterogênea, complexa em termos étnicos, econômicos, sociais e políticos. Como identificou George Simmel 9, sociedades marcadas tanto pelo processo de individualização e de uma lógica monetária das relações sociais de reciprocidade. Nestes espaços, o clientelismo passa a caracterizar não mais a relação diática entre sujeitos que controlam capitais diferenciados, e sim um conjunto de redes de contato que visa a troca de diferentes bens. Surge com papel relevante neste cenário a figura mediadores10, que atuam no processo de distribuição dos bens que circulam nestas redes, distribuindo ou intermediando o acesso a recursos que não controlam diretamente. José Murilo de Carvalho aponta para o risco do uso indiscriminado do conceito de clientelismo11 que, para pensar a realidade brasileira, é constantemente confundido

960

com o conceito de coronelismo elaborado por Victor Nunes Leal 12. Neste sentido, as relações de troca política em meio urbano assumem um caráter essencialmente clientelista:

Os autores que vêem coronelismo no meio urbano e em fases recentes da história do país estão falando simplesmente de clientelismo. As relações clientelísticas, nesse caso, dispensam a presença do coronel, pois ela se dá entre o governo, ou políticos, e setores pobres da população. Deputados trocam votos por empregos e serviços públicos que conseguem graças à sua capacidade de influir sobre o Poder Executivo. Nesse sentido, é 13 possível mesmo dizer que o clientelismo se ampliou com o fim do coronelismo (...)

O entendimento de algumas elaborações teóricas sobre o clientelismo tem privilegiado os aspectos negativos destas práticas e seus impactos no sistema político. Esta postura teórica assume como modelo ideal os sistemas políticos de sociedades democráticas com sistema representativo de países da América do Norte e Europa. E neste modelo representativo ideal, a política brasileira se caracterizaria por práticas políticas atrasadas e inferiores. A produção sobre o tema procura associar as políticas de clientela a um processo de transitoriedade da sociedade. Há o risco, com isso, de associar o clientelismo a padrões de atraso na escala de desenvolvimento e modernização das sociedades urbanas e industriais ou de anomalia dos sistemas representativos. Tal interpretação, portanto, abre espaço para certa “adjetivação” do conceito. Sobretudo com conceituações universalizantes “clientelismo” que naturalizam e universaliza ideias dicotômicas entre “Público/privado”, “indivíduo/sociedade” ou “pessoal/universal”. A postura teórica da antropologia da política, no entanto, busca a necessidade de identificar o que

as 14

categorias sociais representam para os agentes sociais e não o que deveriam significar . As trocas clientelistas também operam sob a lógica da dádiva, elaborada por Marcel Mauss15, e portanto para compreender estas relações é necessário considerar os sentimentos empenhados por seus atores (com fidelidade, lealdade, amizade, justiça, etc). Neste sentido, a abordagem proposta é compreender a visão de mundo que os atores têm destas práticas e em que valores e crenças sustentam tais relações.

961

Trocas clientelistas na Construção da Avenida Central

Rio, 22 de março de 1904. or

Prezado Amº D Frontin Venho agradecer-lhe ter tomado em consideração o meu pedido, colocando o meo filho Gustavo nos trabalhos da Avenida. Mas elle sentiu-se mal no serviço que lhe foi destinado. Elle tem alguns preparatorios e deseja um lugar no escriptorio. Bem conheço o quanto lhe tem sido difficil attender á tantos e tantos pedidos, e não o pode inventar lugares, á contento de todos. to Não leve a mal, o meo amigo, o rapaz não pode continuar; eu agradeço-lhe m o obsequio que me fez. to Sempre amº m grato Gustavo Gama R. Alfandega 28.16

A carta de Gustavo Gama revela muito mais que um agradecimento e a realização de outro pedido. Ela se constitui de elementos de troca política entre agentes da cidade. Neste caso, a linguagem torna-se útil para analisar a questão. Trata-se aqui de uma forma de acesso a um recurso público, a vaga de emprego nas obras da Central, por meio de relações pessoais sustentadas em vínculos afetivos. A saudação “Prezado Amº Dor Frontin”, a despedida “Sempre amº mto grato” e em outros momentos como o “não me leve a mal, meu amigo” demonstram a relação que o missivista procura estabelecer com Frontin. Uma relação pautada por vínculos de amizade, mas que possui uma assimetria ao reconhecer a posição acadêmica de seu destinatário doutor. Outro ponto é o próprio endereço ao final da carta, um sinal de que sua casa ou escritório está à disposição, o que significa que o missivista teve a necessidade de afirmar o que não é “natural” na relação de ambos. Ao reconhecer as dificuldades de Frontin em atendente tantos pedidos, Gustavo Gama busca ressalta uma forma de reconhecimento, que se traduziu no esforço do engenheiro em selecioná-lo diante de tantos pretendentes e amigos. Reforça, assim, estreiteza dos laços pessoais. Desta sua afirmação, é possível auferir a dimensão que as obras da Avenida tiveram para a população da cidade e como possibilidade para a

962

obtenção de recursos públicos. Fica clara também, como a prática cotidiana do apadrinhamento nos quadros do Estado era para o missivista uma prática corrente. Na medida em que o primeiro pedido foi eficaz, Gustavo Gama aproveitou a oportunidade do agradecimento para realizar outro pedido de emprego, de um trabalho menos exaustivo fisicamente para seu filho. Para isso, lança mão de ressaltar as suas competências profissionais, como possuir alguns preparatórios. Por se tratar de uma relação de troca, que se desdobra como um obséquio entre amigos, é possível identificar os bens políticos que se intercambiam nestas relações. Da parte de Frontin, como já foi dito, o bem material era o emprego na Avenida Central. Já da parte do missivista Gustavo Gama, a gratidão é oferecida na contrapartida. Mais do que um recurso de retórica, elementos como a “gratidão”, “reconhecimento”, “consideração”, a “fidelidade” são bens valorizados nas relações políticas que se estabelecem na esfera pessoal. O conteúdo político que se revela em cartas como a de Gustavo Gama não é somente o falar sobre o arranjo da política formal, mas o fato de colocar em perspectiva os atores capazes de estabelecer obrigações e relações de confiança. Por meio delas, seus autores expõem julgamentos, ideias e posições pessoais que não compartam os documentos oficiais. Como elabora Ângela de Castro Gomes, a linguagem da escrita de si17 é constituída da subjetividade de seu autor, que através dela constrói a “sua” verdade. Essa documentação de “produção do eu” tem por objetivo um efeito de verdade, que se comunica em primeira pessoa do singular e traduz a intenção de revelar a dimensão do privado, do íntimo daquele que assume a autoria. “Um tipo de texto em que a narrativa se faz de forma introspectiva, de maneira que nessa subjetividade se possa assentar sua autoridade,

sua

legitimidade

como

‘prova’”

18

Dias antes, Paulo de Frontin recebeu uma carta que tratava de um pedido de um missivista que também almejava uma colocação para seu filho nos trabalhos da Central. Era Victorino José Pereira, em favor de Antônio Martins Pereira, utilizando de outras estratégias para dar eficácia a seu objetivo. Em um tom dramático, o pedido é feito:

963

mo

Ex

Senr Dr Frontin

Ao pedido de meu distincto Amigo Dr. Floresta de Miranda, junto os meus rogo em el favor de meu filho Antonio Martins Pereira, sobrinho e afilhado do Dr. M Victorino Pereira. O desastre que soffri, depois de 32 annos de comerciante matriculado, obrigou-me a aceitar uma colocação que na minha idade de 62 anos fez-me percorrer com risco de vida todo o centro de S. Paulo e Minas, é isto que me obriga também a incommodar a cia V. Ex. pedindo uma colocação para meu filho que cursava os preparatorios para cia seguir a carreira de Medicina e não pôde continuar. Se V. Ex me fizer este favor que o levarei a conta da Memoria de Meu irmão ficar-lhe-hei muito grato. Sou com estima e consideração cia

P.S. Meu filho aceita qualquer lugar em que V. Ex queira collocal-o o

Aff Servo e admirador Victorino José Pereira Travessa Senador Vergueiro III em 8/3/904.

19

A carta de Victorino Pereira evoca uma relação de assimetria entre ele e Frontin, pelo reconhecimento da autoridade pública (Excelentíssimo Senhor), do seu nível acadêmico (Doutor) e ao colocar-se na despedida como Afetuoso Servo e admirador. O missivista lança mão de estratégias diferentes de Gustavo Gama ao realizar o seu pedido de emprego. A primeira delas é a prática do apadrinhamento, que neste caso é utilizado como legitimação que o autorize a remeter a Frontin. Primeiramente ao lembrar o pedido e sua relação com o engenheiro Floresta de Miranda e a memória Manuel Victorino Pereira – irmão do missivista. Manuel foi político desde o Império, ocupando importantes cargos do executivo, inclusive a cadeira da vice- presidência (1884-1888) e a presidência interina da República (1896-1897). O que o missivista levará, em iniciais maiúsculas a “Memória do Meu irmão”. Outro ponto importante da investida do missivista é o tom dramático do relato de sua vida familiar para justificar o pedido e sensibilizar o remetente. Pelo fato de ter sofrido um desastre que o impossibilitou de continuar sua longa carreira de comerciante e, aos 62 anos, ter conseguido uma colocação que o expunha perigosamente em serviços por São Paulo e Minas Gerais. Além disso, por conta desta dificuldade financeira, seu filho teve que interromper os preparatórios para o curso de medicina. Sustentado em uma relação de favor, a estima, a gratidão e a consideração são as retribuições à pessoa de Frontin, em troca dos recursos públicos que Victorino Pereira buscou obter.

964

Os dois casos apresentam similaridades: tratam de pedidos de emprego, feitos por relações pessoais e afetivas, por meio de carta diretamente aos agentes que controlam os recursos públicos almejados. Relações que se enquadram na categoria do clientelismo. No entanto, contém especificidades da troca política que em seu conjunto podem revelar as práticas do cotidiano da política carioca. Como também demonstram que o clientelismo, em sociedades urbanas complexas, não se dá de forma linear e constante. E sim por redes de inúmeros fluxos que se sustenta por meio de vínculos particulares. Considerações Finais

Diante do exposto nestas breves páginas, é evidente que ainda não é possível elaborar conclusões de maior escopo, na medida em que a pesquisa encontra-se em curso. Por se tratarem de muitos missivistas, é necessária a catalogação de todas as correspondências, traçar os perfis sociais e políticos de seus autores. A partir de então, identificar as estratégias destes agentes enquanto grupos sociais, sobretudo na relação entre interesses privados e bens públicos. Como também analisar os recursos materiais e simbólicos que se intercambiam nas trocas políticas e reter as estratégias discursivas dos cidadãos, bem como os valores e os significados que sustentam e legitimam os vínculos clientelistas. 1

Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da UFRRJ (PPHR), sob a orientação da Professora Doutora Surama Conde Sá Pinto. O texto é composto de resultados da pesquisa intitulada “Paulo de Frontin e as práticas clientelísticas da Primeira República brasileira”, que conta com o financiamento da CAPES. E-mail: [email protected]. 2 Sobre a participação de Frontin no Clube de Engenharia, ver CURY, Vania Maria. Engenheiros e empresários: o Clube de Engenharia na gestão de Paulo de Frontin (1903-1933). Niterói: PPGH-UFF, 2000 (Tese de Doutorado). 3

O Arquivo Particular Paulo de Frontin encontra-se sob a guarda do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), disponível para a consulta desde 2002. 4 LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto. 7ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. 5

Análise sobre a questão da cidadania carioca e republicana realizada por José Murilo de Carvalho em CARVALHO, J. Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e na República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras,1987. 6 Idem, p. 35-36 7 FREIRE, Américo Oscar Guichard. Uma Capital para a República: Poder federal e as forças políticas locais do Rio de Janeiro na virada do século XX. Rio de Janeiro: Revan, 2000. 965

8

GRAZIANO, Luigi. A Conceptual Framework for the Study of Clientelistic Behavior. European Journal or Political Research 4. p. 149-174. 9 SIMMEL, G. A Metrópole e a Vida Mental, in Velho, Otávio Guilherme (org.), O Fenômeno Urbano, 4ª Edição da Zahar Editores, Biblioteca de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, Brasil, 1979. p. 19-25. 10 Gilberto Velho e Karina Kurshnir desenvolvem o conceito de “mediadores” em VELHO, Gilberto e KUSCHNIR, Karina. Mediação e Metamorfose. In: Mana: estudos de antropologia social. Vol.2 (1),1996. 11 CARVALHO, José Murilo de. Mandonismo, coronelismo, clientelismo: uma discussão conceitual. Dados [online] . Rio de Janeiro, v. 40, n.2, 1997. Disponível em: < http://dx.doi.org/10.1590/S0011-52581997000200003 >. 12 LEAL, Victor Nunes.Op. Cit, 2012. 13 CARVALHO, José Murilo de, Op. Cit. 1997. 14 Sobre trabalhos que seguem essa fundamentação teórica: SARMENTO, Eduardo. O espelho partido da metrópole: Chagas Freitas e o campo político carioca (1950-1983): liderança, voto e estruturas clientelistas. Rio de Janeiro: Folha Seca: FAPERJ, 2008; BEZERRA, Marcos. Em nome das bases: política, favor e dependência pessoal. Rio de Janeiro: Relume-Damará,1999. 15 MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a Dádiva. In: Sociologia e Antropologia. São Paulo: EPU, 1974. 16

Carta de Gustavo da Gama. Rio de Janeiro: 22 mar.1904.Arquivo Paulo de Frontin. Lata: 1288, pasta: 66. 17

GOMES, Ângela de Castro. Escrita de Si, escrita da História: a título de prólogo. In: Escrita de Si, escrita da História. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. 18 Idem, p. 15. 19 Carta de Victorino José Pereira. Rio de Janeiro: 08 mar.1904.Arquivo Paulo de Frontin. Lata: 1288, pasta: 52.

966

A PROPAGANDA COMO DIVULGADORA E FORMADORA DE CONCEPÇÕES SOBRE LUCAS DO RIO VERDE-MT A PARTIR DE UMA ANÁLISE DE MÍDIA ESCRITA. Fernanda Celina Nicoli da Silva1 Resumo: O Oeste do Brasil, mais especificamente o estado do Mato Grosso, foi motivo de mobilização de vários governos a fim de integrá-lo a economia do restante do país. Durante o Regime Militar intensificaram-se os programas que visavam sua colonização, ligados a um projeto de modernização conservadora. A propaganda foi um dos fatores que contribuiu para incentivar as pessoas a partirem Amazônia adentro. Procuramos compreender se a propaganda pode influenciar a migração, mais especificamente ao município de Lucas do Rio Verde, mostrando também de que maneira esse município projeta sua imagem e como ela ainda pode estar ligada aos ideais de modernidade como progresso e desenvolvimento.

Palavras Chaves: Colonização, Propaganda, Migração.

Abstract: The western Brazil, specifically the state of Mato Grosso, was cause for mobilization of various governments in order to integrate it into the economy of the rest of the country. During the military regime intensified programs aimed at colonization, linked to a conservative modernization project. The advertisement was one of the factors that contributed to encourage people to leave into the Amazon. We seek to understand whether advertising can influence migration, more specifically to the county of Lucas do Rio Verde, also showing how this city projects its image and how it can still be linked to the ideals of modernity as progress and development.

Key Words: Colonization, Advertising, Migration.

A ocupação intencional do espaço amazônico O estudo sobre a ocupação de terras no Brasil leva em consideração diversos momentos da história do país. Nesse momento, procuraremos refletir sobre o processo de ocupação da Amazônia no durante o período do Regime Militar, isso porque, a colonização de Lucas do Rio Verde ocorre exatamente nesse contexto histórico no fim da década de 1970, início da década de 1980. A intenção da integração do Mato Grosso com o restante da economia do país é bem anterior, poderíamos citar, por exemplo, a “Marcha para o Oeste”, ocorrida no governo de Getúlio Vargas que visava ocupar os “espaços vazios”. Porém foi no período da Ditadura que se intensificou a criação de órgãos e programas do governo para estimular a ocupação da Amazônia.

967

Para apontarmos algumas dessas iniciativas temos a criação da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), a Superintendência do Desenvolvimento da Região Centro Oeste (SUDECO), o PIN (Plano de Integração Nacional), o POLAMAZÔNIA (Programa de Desenvolvimento da Amazônia), dentre outros. Além do fortalecimento da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA) e do Instituto Nacional de Reforma Agrária (INCRA). Dentro dessa prerrogativa de ocupação chamada “Operação Amazônia” o lema era “integrar para não entregar”, e, além disso, transferir os problemas sociais campesinos de regiões com maior número populacional, para esses lugares “vazios”. A ressalva dessa concepção se dá por dois motivos, o primeiro pela denominação de “vazio”, pois a região era povoada por populações nativas, mais tarde como é de se lamentar, graves conflitos entre invasores e povos indígenas serão ocasionados em diversos pontos da região amazônica. Além dessas populações indígenas eram presentes também as figuras do posseiro, do garimpeiro, do extrativista, habitando o local com suas famílias e criando vínculos com esse espaço.2 O segundo ponto controverso é a necessidade de reduzir os conflitos pela terra em regiões onde o acesso a ela era dificultado sem de fato partir para uma reforma agrária, como afirma o autor João Carlos Barrozo, a preferência do governo foi priorizar a ocupação da Amazônia com agricultores do Sul, pois eram vistos com “vocação para a agricultura” (BARROZO, 2008, p.22). Nessa perspectiva de colonização diminuiriam os conflitos fundiários, principalmente do Sul do país, de acordo com o ideal anunciado pelo General Presidente Emílio G. Médici na década de 1970, de levar “os homens sem terra a terra sem homens”. O governo incentivou a ocupação desse espaço também com o auxílio da iniciativa privada, em alguns casos a partir de empresas de colonização como, por exemplo, em Sinop, Canarana e Alta Floresta ou parcerias entre o INCRA e cooperativas através de Projetos de Assentamento em Conjunto (PAC). No caso de Lucas do Rio Verde, ocorreu inicialmente o projeto de colonização oficial desenvolvido pelo próprio INCRA, assim como em Terra Nova e Guarantã, também pela urgência em resolver conflitos de pequenos proprietários de terra com populações indígenas no próprio Rio Grande do Sul. (BARROZO, 2008, p.23). Sobre os Projetos de Colonização do Governo Militar o autor Vitale Joanoni Neto3 descreve:

968

Em toda a Amazônia Legal, particularmente no estado de Mato Grosso, tais Projetos de Colonização foram operações para comercialização de terras, adquiridas em condições muito favoráveis por empresas privadas, ou repassadas a companhias estatais [...] ocultando a falta de infraestrutura o verdadeiro caráter de tais empreendimentos. Essa operação á qual se atribuía o mérito de fixar o homem a terra, de promover a integração nacional, de ocupar espaços vazios, que a propaganda se encarregou de consolidar como o equivalente a uma reforma agrária, serviu para desviar as atenções e aliviar as tensões (econômicas, sociais e políticas), nas áreas que estiveram sob sua influência além de auferir polpudos lucros a um pequeno grupo de empresários, reconhecidos como “Bandeirantes Modernos”, “Desbravadores”, ou “Pioneiros”. (JOANONI NETO, 2013, p. 8).

A ocupação da Amazônia, portanto, como afirma Joanoni Neto, assumiu uma configuração imaginária e simbólica, a região foi vista muito além de um conceito geográfico, e os locais de ocupação apresentaram características bem específicas, porém seguindo a lógica dos “novos bandeirantes” fazendo assim brotar na Amazônia vários assentamentos e depois diversas cidades. Os sonhos individuais, a promessa da terra, da melhoria nas condições de vida, trouxe pessoas de diversas regiões do Brasil para a Amazônia. O discurso do próprio governo na época foi motivador nesse sentido, pois tinha o caráter modernizador carregado de conceitos dessa concepção de modernidade, como a busca pelo “progresso” e o “desenvolvimento”. A mobilização para a ocupação da Amazônia partiu do governo, mas se refletiu num âmbito muito amplo de setores da sociedade. Um dos fatores, que contribui para a migração foi a propaganda. Paulo César Moreira Pessôa em sua dissertação de mestrado 4 aborda o tema da colonização do município de Brasnorte, a partir da perspectiva do uso da propaganda realizada pelas empresas colonizadoras a fim de atrair compradores de terras para a região. A divulgação feita pela iniciativa privada serviu-se de fotografias e a construção de representações do real (retratando aquilo que as pessoas queriam ver, nesse caso terras férteis), folders e ainda a música, perpetuando um discurso de extrema carga apelativa.

A propaganda tornou-se infalível, quando passou a usar o passado e o presente para projetar no imaginário dos agentes sociais a ideia de futuro com um destino certo e glorioso. Foram por meio de propagandas sedutoras que diversas pessoas foram cativadas a virem para Brasnorte. Através delas, diversas colonizadoras manipularam os colonos fazendo-os acreditar fielmente nos enaltecimentos de certas potencialidades existentes no Estado de Mato Grosso. Na realidade a campanha publicitária procurou integrar a Amazônia a comunidade nacional. (PESSÔA, 2013, p. 77).

969

De acordo ainda com Pessôa (2013), o direcionamento da propaganda era feito aos pequenos proprietários pobres do Sul, o “colono ideal” que estavam perdendo espaço para o latifúndio, além disso, mais tarde a propaganda se voltou para empresários que seriam possíveis investidores nesse local. A propaganda desempenhou um poder simbólico sobre os colonos do Sul “essas propagandas supriam suas necessidades, e, portanto eram legítimas e aceitáveis, criando obediência ao estatuto social criado pelo poder político construído”. (PESSÔA, 2013, p. 41). Para Regina Beatriz Guimarães Neto (1986), em seu trabalho A Lenda do Ouro Verde5, a questão da propaganda foi feita pelas empresas de colonização (nesse caso no município de Alta Floresta), onde a intenção da propaganda era vender terras no Mato Grosso, para pequenos proprietários do Paraná, atuando no imaginário social do pequeno produtor a fim de convencê-lo sobre uma condição até mesmo mítica das “das longínquas terras férteis da Amazônia”. E depois de uma abrangente propaganda montada daquele “Eldorado”, já não era mais nem preciso fazê-la, como aponta a autora, a fama já se propagava: “A terra desconhecida chamava!” (GUIMARÃES NETO, 1986, p. 25-27). É possível perceber que o processo de ocupação da região amazônica foi intencional envolveu políticas governamentais para alcançar esse fim, e muitas vezes gerou problemas, principalmente as inúmeras multidões que migraram e não encontraram as condições esperadas e por vezes prometida. A propaganda serviu como um instrumento para a vinda dessas pessoas, a decepção foi o que a maioria encontrou.

A propaganda como fonte de divulgação de uma ideia Partindo dessa perspectiva analisamos alguns materiais divulgados pela mídia municipal sobre o município de Lucas do Rio Verde onde foi traçado um comparativo com os trabalhos de Pessôa (2013) e Guimarães Neto (1986), pois foi possível perceber uma intenção do uso propaganda com o objetivo de divulgar e atrair pessoas para o município. A documentação utilizada para tal análise é mais recente, pois o propósito foi analisar de que maneira a propaganda atualmente ainda pode estar vinculada com a intenção de atrair pessoas para a região. Dentre as documentações analisadas procuramos utilizar as propagandas divulgadas pela Gestão Municipal Atual, além de uma revista de circulação municipal e estadual chamada “Mirante”. A intenção foi

970

reconhecer dentro dessas publicações alguns fatores que estariam ligados a divulgação atual da região, como já foi dito e de como o município é pensado e representado por essas mídias. Em relação a propaganda, os documentos analisados publicados pela própria Prefeitura Municipal de Lucas do Rio Verde, são lançados através do departamento de marketing, materiais informativos que tem finalidade de divulgar e informar sobre as ações da Prefeitura, bem como ressaltar aspectos urbanos, econômicos, de serviços públicos, logística e administrativos. Esses informativos são apresentados de diferentes maneiras alguns são periódicos, com pequenas reportagens, de acesso à população a cada mês e apresenta um balanço administrativo ressaltando as “positivas” ações tomadas pela Prefeitura Municipal nas pequenas reportagens constam títulos como: “Mais qualidade de vida”, “Mais educação para as crianças”, “Mais saúde a população”, “Mais desenvolvimento econômico”, “Mais qualificação profissional”, etc. Esse material se apresenta na forma de um pequeno jornal e tem a intenção de informar a população os fazeres da administração pública municipal6. Ainda perspectiva a Prefeitura Municipal de Lucas do Rio Verde tem a preocupação de lançar, não periodicamente, mas em torno de uma publicação por gestão, um material com as mesmas premissas do informativo acima citado, mas com uma qualidade diferenciada de papel, na forma de caderno 7. Esse material traz mais dados que os informativos citados, sendo eles: um apanhado histórico, aspectos positivos da estrutura urbana, gráficos demonstrando o crescimento de índice de qualidade de vida ou acesso à serviços. A forte presença de imagens também marca essa publicação, ressaltando paisagens, questões relacionadas com sua economia, pessoas tendo acesso à serviços públicos e a estrutura urbana, ressalta e afirma uma boa qualidade de vida. Esse material não tem a intenção de ser divulgado para a população do município, seria destinado à um público mais restrito, investidores e empresários, pessoas de “fora”, inclusive esse informativo que analisamos está impresso na língua portuguesa e inglesa, demonstrando a intenção desse material em atrair pessoas e investimentos até mesmo de fora do país e atrair também os olhos, num cenário mais amplo, para o município como o próprio título da publicação afirma “Lucas do Rio Verde para investir e viver”. A partir do estudo dessas fontes é possível perceber um discurso

de

prosperidade, otimismo e convencimento. A montagem do material ressalta a boa qualidade de vida da qual desfrutam os moradores do local. A propaganda demonstra 971

como essa sociedade pensa a si mesma e de que maneira projeta sua imagem para fora de seu espaço, como cidade ideal para viver e investir, muito além da realidade da maioria dos municípios brasileiros, a cidade que deu certo no modelo capitalista do agronegócio. A Administração Municipal retrata aspectos positivos da localidade, não constando as carências. Nosso questionamento seria em relação ao acesso aos benefícios apresentados, é possível em uma sociedade capitalista, que tem a característica de ser excludente, possuir tamanha qualidade de vida acessível a grande maioria da população? É importante ressaltar que muitas vezes esse tipo de discurso é construído por uma elite, ou por um determinado momento histórico e possivelmente incorporado pela população local. No caso dos materiais analisados da imprensa de Lucas do Rio Verde e região, o ideal de progresso é incorporado de maneira evidente. Na revista Mirante (2011)8, a reportagem intitulada “Lucas do Rio Verde comemora o aniversário com os olhos voltados para o futuro” observamos em diversos trechos da reportagem a menção ao termo “progresso” e ainda a fala de moradores incorporando a construção dessa ideia, como por exemplo, a fala de um morador: “Tudo o que eu não conquistei durante toda a minha vida em Pernambuco, eu conquistei nos últimos três [anos]” e ainda a afirmação de outro morador: “Vi que o desenvolvimento econômico era uma realidade e não apenas boatos”. Ao mencionarmos os subtítulos da reportagem podemos aprofundar nossa afirmativa: “Perspectivas de crescimento atraem pessoas de todas as regiões do Brasil” “Certeza de progresso faz com que empresários invistam no município” “Certeza de progresso marca toda a trajetória de Lucas do Rio Verde”. (MIRANTE, 2011, s/p). A observação desses materiais nos levou a estabelecer conexões com o texto de Guimarães Neto (1986). A autora analisa algumas reportagens sobre a ocupação de Alta Floresta e demais cidades do interior, para ela os jornais apontavam as novas cidades como lugares ideais para se “vencer na vida” relatando esses locais com certo teor mítico: “assim, heroísmo, aventura, progresso e grandeza mesclam-se no colorido mosaico que forma a paisagem sedutora da ‘nova fronteira agrícola’” (GUIMARÃES NETO, 1986, p. 147). Ainda sobre as reportagens a autora analisou sobre a “nova fronteira agrícola”:

Por trás dessas notícias aparentemente neutras, com várias informações e descrições das novas cidades, existe, na verdade, um discurso que difunde a ideia de progresso, estimulando e apoiando a iniciativa privada na Amazônia,

972

quando se sabe que o controle da riqueza nas áreas novas está desde sempre nas mãos daqueles que detêm o poder econômico. Por isso mesmo, nessas matérias encontra-se uma das formas para alardear o mito, reproduzindo pelo país a fora a ideia da possibilidade de riqueza nas terras da Amazônia. (GUIMARÃES NETO, 1986, p. 148).

Nessa mesma linha de argumentação Pessôa (2013), aponta a essa questão, embora a perspectiva do autor seja a propaganda no início da colonização de Brasnorte nos anos de 1978 a 1986, é possível perceber a continuidade dessa concepção nos dias atuais. A história de muitas “cidades” que brotaram no interior de Mato Grosso são marcadas (sic) por uma febre em busca da terra mítica, que contagiou um grande número de pessoas nas diversas partes do país que desejavam o paraíso. Não apenas Brasnorte vendeu a imagem de um eldorado, mas também muitas outras cidades. Dessa forma construiu-se para Mato Grosso a imagem de um local que proporcionaria riqueza em curto prazo, em outras palavras um paraíso no meio do mato. As propagandas agiam sobre esse imaginário criado para Mato Grosso como terra da fartura, desejado pelos colonos, que anestesiados pelo efeito da propaganda enfrentavam “tudo” pela frente. (PESSÔA, 2013, p. 112).

A ideia de modernidade inserida no contexto da política de ocupação De fato a colonização da região Oeste do Brasil foi incentivada pelo próprio governo em diversos momentos e durante o Regime Militar teve intensa participação da iniciativa privada. Diversas regiões de Mato Grosso receberam uma atenção especial nesse processo “civilizador”, como afirma Joanoni Neto (2013):

[...] a partir da década de setenta, as empresas privadas de colonização e agropecuária apareceram tomando para si a tarefa civilizadora povoamento das terras ditas vazias, assumindo a missão social, disseram,

de

transformar

o

mundo

selvagem,

levar

de como

progresso,

desenvolvimento e modernidade. (JOANONI NETO, 2013, p. 8).

Sobre essa perspectiva Guimarães Neto (1986), trabalha a questão do crescimento das cidades nessas áreas de colonização aliada a um crescimento rápido da ocupação: “a cidade passa a ser a imagem irreversível do desenvolvimento econômico e do triunfo dessas novas áreas de colonização. Com isso dissemina-se a ideia de que estamos diante de um modelo bem sucedido de progresso social e prosperidade material.” (GUIMARÃES NETO, 1986, p. 146).

973

A ideia de progresso tem uma influência muito grande na civilização ocidental, no caso de nosso tema essa ideia foi difundida pelo Estado Militar e traz consigo a concepção de desenvolvimento. Esses dois conceitos, progresso e desenvolvimento, foram muito utilizados na modernidade como descreve Rosanita Ferreira Baptista 9, dentro do sistema industrial capitalista as teorias de desenvolvimento [e também de progresso], são incorporadas pelos novos agentes sociais como o governo, as elites, os intelectuais etc. “Através dos instrumentos de planejamento, regulação, programas públicos, instituiu-se a intervenção política como indutora da aceleração do progresso social e econômico. As ciências sociais, de um modo geral, desempenharam um papel importante nisso, como fontes dos fundamentos teóricos e práticos norteadores das ações promotoras de desenvolvimento”. (BAPTISTA, 2007, s/p). Porém esse projeto da modernidade incorporado pelo Regime Militar no fim do século XX demonstra suas fraquezas, como afirma a autora, a concepção de progresso ligada ao desenvolvimento não se sustenta mais por diversos fatores, mas principalmente por gerarem “efeitos indesejáveis, tais como: pobreza das massas, fundamentalismo religioso, acirramento dos confrontos étnicos, tiranias políticas e religiosas”. (BATISTA, 2007, s/p). Em relação a ocupação de Lucas do Rio Verde, por fazer parte de um projeto federal, que foi influenciado por essa concepção de modernidade é compreensível na imprensa local o uso desses termos, mas é também bastante interessante observar que essas concepções ainda se fazem presentes no imaginário dessas pessoas. Nossa constatação partiu da observação da linguagem utilizada pela imprensa, das concepções presentes nos discursos dos moradores nos trechos de entrevistas apresentados pela reportagem e também na insistência da mídia em propagar esses conceitos

na

atualidade. Considerações finais A propaganda foi um fator mobilizador para a vinda das pessoas para a região da Amazônia Legal, certamente não foi o principal motivo, mas teve um peso importante na tomada de decisão dos sujeitos participantes do processo de ocupação desse espaço. O município de Lucas do Rio Verde notoriamente passou por uma mudança substancial de acesso a bens e serviços que de fato não havia em tamanha disponibilidade no início de sua ocupação10. Contudo é importante ressaltar que o

974

acesso a serviços no município se comparado com o início de sua colonização, atingiu uma complexidade maior, porém, o que se destaca em nossa percepção é a tentativa de atrair pessoas através da divulgação, que é muito semelhante da realizada no início da ocupação de outras regiões do estado de Mato Grosso. Os materiais analisados mostram uma intenção de ressaltar o crescimento e o desenvolvimento do município, ressalta, portanto a boa qualidade de vida e uma ótima estrutura tanto para viver quanto para possíveis investimentos. No entanto esquece de apontar, por exemplo o custo de vida, que tende a ser mais alto como consequência do aumento do preço das terras11 , comum aos municípios do estado de Mato Grosso com intensa influência do agronegócio em suas economias. Apesar do plano de modernização conservadora ter sido incorporado durante o Estado Militar a fim de estimular a ocupação de Mato Grosso, ainda ecoam discursos análogos aos daquele momento e os mecanismos de propaganda são muito semelhantes aos que foram utilizados anteriormente em outras cidades do estado de Mato Grosso. De fato o otimismo imprimido nas páginas dos materiais analisados carrega um teor de crença do futuro, possivelmente perpetuado pela experiência da superação de um passado difícil e para muitos, traumático. Porém nos perguntamos se no futuro serão desfrutados benefícios pela população atraída por essa ideia de prosperidade. E se não, que consequências teriam essa propaganda, não seria ela responsável por uma experiência também traumática para as pessoas que são influenciadas e vêm decididas a melhorar de vida? Observando as publicações atuais de Lucas do Rio Verde, percebemos a intenção de dinamizar a economia pautada no agronegócio para que a mesma atenda outros setores como a indústria e serviços, por exemplo, com essa constatação também nos questionamos, seria a propaganda uma maneira de atrair mais trabalhadores para servirem a esse propósito? Acreditamos que nesse modelo, seriam necessários muitos braços para mover essa “próspera” economia e esses muitos braços requisitados atenderiam as ambições de poucas mentes. Cabe a nós voltarmos nosso olhar para o passado e analisar que o processo de ocupação da Amazônia foi dotado de uma intencionalidade que beneficiou somente pequenos grupos de pessoas. O que constatamos é que essa intenção pode ainda estar presente, e trazendo mais uma vez benefícios a uma elite em detrimento a

975

uma

população que é seduzida pela propaganda que afirma uma certeza (no entanto duvidosa), de progresso e desenvolvimento para todos.

1

Mestranda do Programa de Pós-graduação em História da UFMT (Universidade Federal de Mato Grosso). Orientador Professor Doutor Vitale Joanoni Neto. Email para contato: [email protected] 2 BARROZO, J. C. (org.). Mato Grosso do sonho à utopia da terra. Cuiabá: EdUFMT/Carlini & Caniato Editorial, 2008. 3 JOANONI NETO, Vitale. O país na posse de si mesmo: primeira aproximação acerca da reconstrução da Fronteira Oeste brasileira. In:XVVII SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA: Conhecimento histórico e diálogo social, 2013, Natal: ANPUH. Disponível em:Acesso em 12 jun. 2014. 4 PESSÔA. Paulo César Moreira. Estratégia, poder e saber: a propaganda na política de colonização recente em Brasnorte (1978-1986). Cuiabá: UFMT/PPGHIS, 2013. Dissertação de mestrado. 5 GUIMARÃES NETO. Regina Beatriz. A lenda do ouro verde. Campinas: UNICAMP, 1986. 6 JORNAL DA GENTE. Lucas do Rio Verde: Prefeitura Municipal de Lucas do Rio Verde, 7ª Ed, 2015. 7 LUCAS DO RIO VERDE PARA INVESTIR E VIVER. Lucas do Rio Verde: Prefeitura Municipal de Lucas do Rio Verde, 2013-2016. 8 PAULINO. Marcello. Lucas do Rio Verde: comemora o aniversário com os olhos voltados pra o futuro. Mirante, Lucas do Rio Verde, n. 36, Ago. 2011. 9 BAPTISTA, Rosanita Ferreira e. Gênese e crise dos conceitos de progresso e desenvolvimento na teoria social. In. XIII CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA, 2007, Recife: UFPE. Disponível em: Acesso em 27 jun. 2015. 10

Uma análise da condição de vida das pessoas no início da colonização de Lucas do Rio Verde em: ZARTH, Laudenir Luiz. Lucas do Rio Verde: As vozes dos parceleiros no processo de construção de um novo espaço social. In: BARROZO, J .C. (org.). Mato Grosso do sonho à utopia da terra. Cuiabá: EdUFMT/Carlini & Caniato Editorial, 2008. 11 Dado retirado da TABELA REFERENCIAL DE PREÇOS DE TERRAS NO ESTADO DE MATO GROSSO emitida pelo INCRA no ano de 2010, que mostra o município de Lucas do Rio Verde como um dos municípios, com maior valorização no preço de terras e imóveis rurais. Fonte: http://www.incra.gov.br/images/arquivos/planilha_ref_preco_terras_incra_mt_2010.pdf Acesso em 29/05/2015.

976

“Ser contra ou a favor”: a defesa do golpe civil-militar nas crônicas de Rachel de Queiroz Fernanda Coelho Mendes1 Resumo: Este trabalho tem como objetivo analisar a produção jornalística de Rachel de Queiroz durante a ditadura civil-militar, com foco no ano do golpe, em 1964. Utilizando como fonte as crônicas publicadas semanalmente na revista O Cruzeiro, analisa-se a visão que Rachel de Queiroz possuía sobre o cenário político da época e a sua posição diante do golpe civil-militar, de modo a pensar o papel do intelectual e da imprensa para a legitimação da ditadura. Palavras-chave: Ditadura; Imprensa; Intelectual. Abstract: This paperwork aims to analyze the journalistic production of Rachel de Queiroz during the civil-military dictatorship, focusing on the year of the coup, in 1964. Using as a source the chronicles published weekly in the magazine O Cruzeiro, it’s being analyzed the view that Rachel de Queiroz had on the political scenario of the time and her position on the civil-military coup, in order to think about the role of intellectuals and the press to legitimize the dictatorship. Keywords: Dictatorship; Press; Intellectual.

Nos últimos anos, a historiografia sobre a ditadura civil-militar (1964-1985) no Brasil vem procurando elucidar as complexas relações estabelecidas entre a sociedade brasileira e o regime autoritário instaurado no país. A partir dos anos 1980, enquanto aconteciam as movimentações para um pacto que promovesse a conciliação nacional considerada necessária pelas autoridades para a transição democrática, começou a emergir uma corrente historiográfica em que a sociedade brasileira aparecia como vítima da ditadura, como se apenas a tivesse suportado durante os 21 anos, tolerando as condições ruins e, em muitos casos, resistindo bravamente contra o regime. A memória da “resistência” e do afastamento entre a sociedade e a ditadura tornou-se predominante durante algum tempo, tanto na historiografia, que investia grande parte dos seus estudos nas esquerdas brasileiras e na luta contra o regime, quantos nos discursos políticos, filmes, livros didáticos, etc, colaborando para a formação da tese, apontada por Daniel Aarão

977

Reis, de que “a sociedade brasileira viveu a ditadura como um pesadelo que é preciso exorcizar”2. Na última década, contudo, muitos historiadores passaram a problematizar essa relação entre sociedade e ditadura, entendendo que a primeira teve um papel fundamental no apoio ao golpe, em 1964, e que alguns dos seus setores seguiram ao lado do regime até o fim, em 1985.3 Nesta linha estão os estudos sobre a imprensa brasileira, que buscam compreender a atuação deste importante setor da sociedade, o qual empregava grande número de intelectuais e contribuía de forma imprescindível para a formação da opinião pública no país. Segundo Alzira Alves de Abreu, a grande imprensa apoiou, em sua maioria, o golpe militar. Sob a bandeira da “defesa da democracia” e em repúdio ao comunismo que, dizia-se, dominava o governo de João Goulart, a imprensa publicou matérias e editoriais pedindo a saída do presidente e, depois, celebrando a ação de militares e civis que resultou no golpe de 1964. Apesar de muitos jornais terem defendido a posse de Jango em 1961, apoiando a “Campanha da Legalidade” liderada por Leonel Brizola após a renúncia de Jânio Quadros, a crescente radicalização política que se seguiu, junto com elevados índices de inflação e a paralisação política em torno das reformas de base, entre outros fatores, minaram o apoio ao presidente: “A imprensa foi se posicionando ao lado dos grupos e movimentos que se opunham ao governo constitucional, vindo a se constituir no principal portador da mensagem contra a permanência de Goulart no poder”.4 O Comício das Reformas e o levante dos marinheiros, em março de 1964, contribuíram de forma decisiva para intensificar a campanha contra Jango na imprensa, levando quase todos os grandes jornais da época para a oposição, como o Diário de Notícias, o Correio da Manhã e o Jornal do Brasil. A Última Hora e o Diário Carioca foram uns dos poucos jornais que permaneceram a favor do presidente. Durante o governo de João Goulart (1961-1964), a imprensa foi um dos vetores da divulgação do fantasma do comunismo, uma das principais justificativas para a deposição do presidente. Ao mesmo tempo, propalou a existência de um caos administrativo e participou da divulgação de que era imperiosa a necessidade do restabelecimento da ordem através de uma intervenção militar.5

Esse apoio massivo da grande imprensa aos militares, contudo, não perdurou durante todo o regime. Uma vez instaurada e consolidada a ditadura civil-militar, os veículos de comunicação passaram a adotar diferentes posturas em relação ao governo, e o alinhamento aos militares foi se esvaziando na medida em que o novo regime mostrava sua face autoritária. Periódicos como o Jornal do Brasil, o Estado de S. Paulo e o Correio da Manhã

978

passaram a criticar abertamente o governo, até terem diretores e jornalistas presos, sedes invadidas ou passarem a sofrer censura prévia, a partir da implantação do Ato Institucional Nº 5 (AI-5), em dezembro de 1968.6 No entanto, nem todos os periódicos mudaram suas linhas editoriais após o endurecimento da ditadura. Os jornais O Globo e Folha de Tarde e a revista Manchete, por exemplo, mantiveram o seu apoio durante todo o regime, seja através de matérias e editorais abertamente favoráveis aos governos militares, seja pela ausência de críticas mesmo nos períodos mais conturbados, ou ainda pelo acompanhamento da política no país como se não houvesse nada fora da normalidade. É neste grupo que se encontra O Cruzeiro, uma das revistas mais importantes do Brasil no século XX, de circulação nacional e carro-chefe dos Diários Associados, conglomerado de comunicação construído por Assis Chateaubriand. Desde o golpe de 1964 até quando a revista para de circular, em 1975, O Cruzeiro acompanhou de perto o passo a passo da ditadura civil-militar. Apresentava as novidades e fazia análises do panorama político brasileiro na seção “Política”, noticiava desde matérias enaltecendo a vida pessoal dos presidentes militares até reportagens oficiais da ditadura mostrando os “progressos do país”, e publicava artigos e crônicas de jornalistas e escritores defendendo o governo, como David Nasser e Rachel de Queiroz. Rachel de Queiroz foi cronista da revista O Cruzeiro de 1945 até 1975, escrevendo semanalmente na seção “Última Página” durante 30 anos quase ininterruptos. A escritora abordava os mais variados assuntos em seus textos, desde política e problemas sociais até contos, resenhas de livros e amenidades corriqueiras do dia a dia. Em 1964, no entanto, Rachel destinou grande parte da sua coluna em O Cruzeiro para falar de política – mas especificamente, sobre o cenário político brasileiro. Desde cedo engajada politicamente, a escritora teve uma juventude ligada a grupos de esquerda. Ingressou no Partido Comunista do Brasil (PCB) em 1931, mas no ano seguinte foi expulsa por divergir de seus líderes – Rachel não aceitou alterar partes do seu livro João Miguel, considerado inapropriado pelos membros do PCB. No entanto, a escritora continuou freqüentando grupos trotskistas e realizando traduções para auxiliar na difusão dos ideais marxistas no Brasil. Durante o governo de Getúlio Vargas, sua atuação clandestina acabou lhe rendendo algumas passagens pela prisão, além da queima em praça pública do seu livro Caminho das pedras.7 Essa série de acontecimentos fez com que Rachel de Queiroz adotasse uma postura radicalmente anti-Vargas até o fim de sua vida – postura que aparecia de forma

979

recorrente nas suas crônicas em O Cruzeiro. Em sua biografia, escrita por Rachel e sua irmã mais nova, Maria Luíza de Queiroz, ela admite que sua geração se habituou a considerar Getúlio Vargas como “a fonte de todos os males políticos”: Talvez fossemos injustos em algumas coisas, em muitas coisas mesmo. Mas a figura de Getúlio, para nós, era o símbolo de todo o desastre nacional. [...] O fato é que Getúlio passou a simbolizar, para nós, a reação, o fascismo, a aliança com o Eixo. E essa imagem de Getúlio Vargas não se acabou com a sua morte: prolongou-se através de Jango, de Brizola, do queremismo de Hugo Borghi.8

Assim, enquanto João Goulart governou o país, de 1961 a 1964, Rachel de Queiroz fez oposição ao então presidente em suas crônicas, considerando-o “herdeiro do varguismo”, em um sentido negativo. Podemos encontrar esse repúdio à herança política de Getúlio Vargas, por exemplo, na crônica “A lição dos escândalos”9, publicada em O Cruzeiro em fevereiro de 1964. O texto de Rachel remete às denúncias de corrupção sofridas pela Petrobras em janeiro daquele ano. A diretoria da estatal era acusada de desvios de recursos, em parte para financiar eventos e publicações de grupos de esquerda, e o resto para os bolsos da própria diretoria da Petrobras.10 Na crônica, a escritora utiliza o gancho das denúncias para criticar os políticos trabalhistas brasileiros, narrando sua história desde o governo Vargas. Em sua argumentação, Rachel procura desmoralizar o trabalhismo começando pela sua fundação, afirmando que eram “homens formados politicamente dentro da ditadura” – no caso, a ditadura varguista. Para a autora, esses políticos chamavam-se de trabalhistas, mas poderiam utilizar qualquer outra denominação “igualmente inverídica”, uma vez que não possuíam ideologia. Em seguida, Rachel explica, do seu ponto vista, como aconteceu a transição do Estado Novo para a democracia, em 1945: Getúlio Vargas, pressionado pela “onda democrática” que vinha do exterior e avançava pelo país, teve que abrir espaço para o diálogo democrático e, “com a sua própria gente”, encaminhou o nascimento de dois partidos políticos, o Partido Social Democrático (PSD) e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Basta isso para ver o artificialismo, a imposição da medida: os dois partidos que deveriam exprimir tendências antagônicas, nasciam do mesmo ventre ditatorial, gêmeos inseparáveis, obedecendo a um único comando. De um lado, fazendo as vezes de direita, os coronéis do interior, a velha resistência oligárquica dos “carcomidos” de 30, que, para sobreviver, aderira à ditadura: era o núcleo do PSD. A esquerda era aquilo que nem mesmo o PSD engolia, a pelegada que se apossara do Ministério do Trabalho, a turma de choque da ditadura, os donos da Previdência Social, das gordas verbas como as do Imposto Sindical e etc, – e com eles se fez o PTB.11

O argumento de Rachel de Queiroz gira em torno do suposto artificialismo que permearia o PSD e PTB, partidos criados de cima para baixo por Vargas e “sua própria 980

gente”, nascidos do “mesmo ventre ditatorial” e obedientes a “um único comando”. Desta forma, a escritora demonstra seu descrédito em relação ao sistema democrático iniciado em 1945, uma vez que considerava artificiais dois dos maiores partidos políticos da época, contaminados por “coronéis do interior” e pelegos. Esse argumento do “artificialismo” no sistema partidário brasileiro foi desenvolvido principalmente pela sociologia e ciência política na segunda metade do século XX, que apontaram a suposta debilidade dos partidos políticos, ausentes de enraizamento social, como uma das principais causas do colapso da nossa democracia e a consequente instalação da ditadura. Contudo, Antonio Lavareda refuta esses argumentos com a tese da consolidação, defendendo que o sistema partidário-eleitoral brasileiro no início da década de 60 experimentava, ainda que de modo não uniforme, um processo de consolidação que viria a ser interrompido pelo golpe de 1964. Lavareda apresenta uma série de análises sobre o processo eleitoral brasileiro entre 1945 e 1964, verificando as principais características das eleições nesse período e utilizando pesquisas de opinião e intenção de voto do Ibope para apontar a identificação partidária do eleitorado brasileiro e a congruência entre esta identificação e o voto efetivo.12 Em pesquisa realizada em oito das principais capitais pouco antes do golpe, em março de 1964, o PTB aparece com 29% da simpatia dos eleitores, seguido da UDN (14%) e depois do PSD (7%). O total de preferências, 64%, é significativamente maior do que a opção “nenhum partido”, com 34%, o que indica a prevalência da identificação partidária. Lavareda aponta também a expressiva congruência entre a identificação partidária e o comportamento dos eleitores nas urnas das eleições presidenciais de 1955 e 1960. Desta forma, ainda que o PSD e o PTB tenham sido criados sob chancela governamental e influência política de Getúlio Vargas, como aponta Rachel de Queiroz, isso não os torna necessariamente artificiais durante os 19 anos de período democrático. Como aponta Lavareda, ambos os partidos conquistaram uma crescente identificação partidária com os eleitores brasileiros entre esses anos, refletindo essa identificação nas últimas eleições presidenciais que antecederam o golpe. “A lição dos escândalos” foi apenas uma das crônicas que Rachel publicou em 1964. Neste ano crítico para a história do Brasil, a escritora publicou 52 textos em sua coluna. Deste total, 22 tiveram como tema central a situação política brasileira, ou seja, aproximadamente 40% das crônicas publicadas em 1964. Entre os textos com temática política, a maioria foi

981

publicada após o golpe civil-militar – 20 dos 22, consequência da forte motivação de

Rachel

de Queiroz em defender das críticas o que ela chamava de “Revolução de 1964”. Em sua biografia, Rachel conta que recebia intelectuais e militares em seu apartamento no Rio de Janeiro e, lá, conspiravam sobre como derrubar João Goulart, vendo como cada um poderia contribuir, o que a escritora chamou de fazer “vigília cívica”: Já o que nós fazíamos era conspiração mesmo: saber onde estava a tropa, o que tinha havido, se o coronel fulano tinha se manifestado, se o coronel beltrano era de confiança [...] Eles me usavam como jornalista, eu opinava muito e era muito lida. Mas os trâmites secretos da conspiração eu não me metia a saber. [...] Mas o lado político, de pregação, de jornalismo de combate, de artigos de encomenda, de nos trazerem assuntos para a gente falar, isso era o nosso trabalho.13

Este depoimento mostrando o profundo engajamento político de Rachel de Queiroz traz uma reflexão sobre o papel do intelectual e suas relações com a sociedade. Jean-François Sirinelli propõe uma história dos intelectuais e trabalha com duas definições para esta categoria, que não são, contudo, excludentes – podem perfeitamente se sobrepor e dialogar, uma vez que são dois elementos de natureza sociocultural. A primeira acepção proposta pelo historiador é mais ampla, baseada na noção de criadores e “mediadores” culturais, que seriam desde jornalistas e escritores até o professor secundário e o erudito. A segunda definição, mais estrita, baseia-se na noção de engajamento na vida da cidade como ator, testemunha ou consciência, como por exemplo, a partir da assinatura de manifestos. 14 Considerando as acepções de Sirinelli, podemos situar a Rachel de Queiroz, escritora e jornalista, na primeira categoria, de intelectual como uma mediadora cultural, divulgando suas ideias a partir da sua produção textual em livros e crônicas. Contudo, Rachel de Queiroz também teve participação ativa na vida política do país, seja recebendo militares em seu apartamento durante o período de conspiração para a derrubada de Jango, seja assumindo um “jornalismo de combate” a favor do golpe em 1964 e, posteriormente, em defesa aberta ao regime militar. Neste sentido, Rachel de Queiroz situa-se na possibilidade de sobreposição de definições apontada por Sirinelli. As crônicas da escritora, como ela mesma destaca em seu livro, eram muito lidas pelo país em meados do século XX, tanto pelo prestígio que Rachel alcançara, quanto pela grande tiragem que possuía a revista O Cruzeiro, de circulação nacional. Assim, Rachel de Queiroz recebia muitas cartas comentando e, na maioria das vezes, elogiando suas crônicas, tanto de leitores desconhecidos quanto de políticos e outros intelectuais.15

982

Uma delas foi um telegrama do próprio Castelo Branco, quando já era presidente da República, em maio de 1964, onde o militar afirma que um artigo de Rachel em O Cruzeiro lhe deu “profundamente reconhecido ânimo e estímulo [...] bem como implícitas advertências”16. O telegrama provavelmente se refere à crônica “Os sindicatos rurais” 17, publicada dois dias antes do envio da correspondência de Castelo Branco, na qual Rachel pede uma reformulação total desses sindicatos, renovando toda a sua estrutura, e não apenas retirando “suas direções comunistas”, como a imprensa dizia ser a intenção do governo. Ao final da mensagem, o presidente reafirma esperar sempre conselho e crítica de Rachel de Queiroz, a quem admira como “grande escritora” e “generoso coração amigo”. Rachel de Queiroz e Castelo Branco tinham uma relação estreita de amizade e ainda um grau de parentesco distante, pelo lado da família Alencar, da qual a escritora descendia pelo lado materno. Quando assumiu a presidência da República, Castelo Branco pediu que a escritora entrasse para o diretório da Aliança Renovadora Nacional (ARENA), pois desejava a presença de intelectuais dentro do partido,18 e que viajasse para os Estados Unidos como delegada do Brasil na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1966. Ainda durante o seu governo, Rachel foi nomeada para o Conselho Federal de Cultura, em 1967, onde atuou até a sua extinção, em 1989. Essa relação de amizade entre ambos, aliada à crença de Rachel de Queiroz na competência e honestidade de Castelo Branco, resultou em uma série de crônicas na revista O Cruzeiro em que a escritora defende com grande entusiasmo e fervor o então presidente da República. Todas as vezes em que se refere a Castelo foram com adjetivos positivos, como “homem de bem”, “honesto”, “incansável”, “impecável”, entre muitos outros. Passados quase dois meses após o golpe, Rachel de Queiroz demonstra em seu texto total confiança na personalidade democrática do presidente, garantindo aos seus leitores que não haveria ditadura e nem perseguições ilegais: Dele [Castelo Branco] não temos a recear que os poderes excepcionais lhe subam a cabeça e que nenhuma escura noite ditatorial vá cair sobre nós, com os presídios cheios de presos políticos, sem inquérito nem processo, a opinião sufocada, a censura nos jornais e emissoras. O seu combate aos comunistas e demais conspiradores vai ser às claras, pela letra da lei, à sombra da toga dos juízes. Quem tiver crimes paga – e para os crimes há definições específicas nos códigos e nas leis de segurança nacional.19

Mais adiante, em julho do mesmo ano, a escritora publicou uma crônica defendendo a cassação do ex-presidente Juscelino Kubitschek, assinada no mês anterior, a qual ocasionara a saída de JK do país e a retirada do PSD do bloco parlamentar de apoio a Castelo Branco. Na

983

época em que a cassação foi divulgada, a decisão foi controversa inclusive entre os que apoiaram o golpe, com muitos defendendo a manutenção dos direitos políticos de Juscelino. Rachel de Queiroz, no entanto, mesmo reconhecendo em seu texto que alguns de seus amigos “bem pensantes” e “muito nobres” foram contra a cassação, acusa JK de ter sido o responsável pela ascensão e poderio de Jango, o “plantador do janguismo”, e novamente defende o então atual presidente: O ato do Presidente Castelo Branco, ao atender às recomendações do Conselho de Segurança Nacional, cassando o mandato e suspendendo os direitos políticos do Sr. Juscelino Kubitschek, foi, não só um ato de coragem política, mas, acima de tudo, um ato de lucidez e legítima defesa.

Em agosto de 1964, Rachel de Queiroz menciona em sua crônica, “Ser contra ou a favor”, a carta de um leitor comentando o prazer que os jornalistas pareciam ter em reclamar do governo e perguntando se, afinal, estavam ou não ao seu lado. A escritora, então, não deixa dúvidas de que era totalmente a favor: E como não apoiar, aplaudir, confiar, e ajudar tanto quanto possível um Milton Campos, um Luis Viana, um Juarez, um Golbery e praticamente todos os demais homens da equipe presidencial, grupo excelente de brasileiros que só têm um propósito nesta hora difícil e perigosa: acertar? Como não apoiar o Marechal Castelo Branco, homem de tão alta categoria, como dificilmente é dado ver igual em posto de governo? [...] não há brasileiro, neste momento, que tenha maior prestígio que o Presidente Castelo Branco. O povo mesmo, o povo propriamente dito, a maioria esmagadora, o grosso do Brasil está com ele. Cheio de esperanças, pleno dessa certeza antiga e quase esquecida: confiança. [...] É apenas um homem de bem, cheio de coragem, de inteligência e boa vontade, procurando dar no governo o melhor de si mesmo.20

Esses trechos retirados das crônicas de Rachel de Queiroz deixam claro a profunda admiração e confiança que a escritora depositava em Castelo Branco para desempenhar a função de governar o país. Seus constantes elogios ao presidente também indicam que, se por um lado Rachel sentia a necessidade recorrente de defendê-lo, é porque Castelo Branco enfrentava críticas de setores da sociedade desde o primeiro ano de seu governo. Mas a escritora não destinava seus textos a proteger apenas a figura do presidente – por diversas vezes, defendeu de críticas também o movimento chamado por ela de “revolução”. Entre os argumentos de defesa usados por Rachel de Queiroz, estavam o fato de a “revolução” ter ainda pouco tempo de governo; ter encontrado o país em péssimas condições, fruto da má administração janguista, e por isso precisar construir tudo do zero; o “povo brasileiro” voltava a ter confiança em um futuro melhor; e, principalmente, apesar de alguns percalços, o novo governo tinha mais erros do que acertos.

984

A crônica “Manter as aparências”, publicada em agosto de 1964, reúne alguns desses argumentos. Rachel abre o texto avisando que “o choro está muito precoce”, uma vez que ainda não tinham se passado nem 120 dias da “revolução”, e em seguida defende as ações repressivas do governo como parte de um “bem maior”: “Como se estava não era possível continuar. E também não se poderia fazer revolução sem repressão – é a eterna história de não se poder fazer uma omelete sem quebrar os ovos” 21. A escritora reconhece, na crônica, que pode ter havido excessos, mas defende que, mesmo assim, o saldo da balança do governo ainda era muito positivo: Deve ter havido injustiças. Deve ter havido excessos. Mas nem tão graves, mas não irremediáveis. Não houve morte de homem. Quando as outras revoluções executam – fuzilam, enforcam – aqui apenas se suspenderam os direitos políticos dos mais culpados, se cassaram os mandatos daqueles que traíam esses mandatos. E, pondo-se na balança os excessos e os benefícios – que grande saldo nos fica ainda! Não preciso lembrar como é que estávamos, a que abismo de degradação este País caíra. Éramos uma casa caída e saqueada, como disse muito bem o Presidente Castelo Branco.22

Rachel de Queiroz, desta forma, minimiza os excessos que devem ter acontecido – não necessariamente aconteceram, segundo a escolha de palavras da escritora. E, se de fato aconteceram, então não foram “tão graves” ou “irremediáveis”. Para Rachel, os supostos benefícios advindos da “revolução” eram suficientes para superar as críticas e garantir uma balança favorável. Contudo, nem em todos os textos de temática política a escritora usou seu espaço em O Cruzeiro para defender Castelo Branco ou a ditadura. Mesmo sem admitir categoricamente a existência de “excessos”, Rachel de Queiroz se posicionou contra as prisões arbitrárias e as revistas policiais que recolhiam “literatura comunista”. Na crônica “A caça às feiticeiras”, a escritora defende que só pode ser preso quem tiver cometido “crime perpetrado”, “fato concreto”, e que “na hora em que se declara, seja qual for o pretexto e o momento, que ter ideias é crime, então nessa hora está tudo muito mal”.23 Rachel estava se referindo à perseguição aos comunistas que se iniciava com a ditadura, ação da qual discordava: Ser comunista ou acreditar que o comunismo é a solução para os problemas do mundo pode ser um erro, um engano trágico, mas não é um crime. Democraticamente não o é. Só começa a ser crime quando o cidadão abandona a simples ideologia e entra no terreno da organização revolucionária, da conspiração e da revolta. [...] Quando leio nos jornais que a casa de fulano de tal foi “visitada pela polícia” que, em suas buscas, apreendeu grande cópia de “literatura comunista”, tremo. Apesar de toda a minha gratidão pelo milagre que foi esta revolução, de toda a minha confiança nos homens que a chefiam – tremo. Polícia que censura livros, revolução democrática que tem medo do pensamento e faz autos de fé, assustam.24

985

Aqui, portanto, Rachel de Queiroz defende o livre pensamento e a liberdade de ideias como prerrogativas essenciais a um sistema verdadeiramente democrático. Contudo, mesmo em um momento de crítica, a escritora destaca sua gratidão pela “revolução” e sua confiança na cúpula do governo, o que leva a entender que Rachel não acreditava que esses excessos estivessem partindo dos “homens que chefiam” a “revolução”, e sim de outros setores não mencionados no texto. Este artigo representa uma pequena amostra das mais de 400 crônicas escritas por Rachel de Queiroz durante a ditadura civil-militar. Com o foco voltado para o conturbado ano de 1964, procurou-se mostrar como Rachel reagiu diante do golpe e dos primeiros meses do governo de Castelo Branco, quais eram seus principais argumentos e seu entendimento a respeito do cenário político brasileiro, de modo a contribuir para o debate historiográfico sobre as relações entre sociedade e ditadura.

Notas: 1 Mestranda em História Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Bolsista da CAPES. Orientadora: Lucia Grinberg. E-mail: [email protected]. 2 REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditadura e democracia no Brasil: do golpe de 1964 à Constituição de 1988. 1ª edição. Rio de Janeiro: Zahar, 2014, p. 13. 3 Para saber mais a respeito desta historiografia sobre a ditadura, ver: ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, Samantha (orgs.). A construção social dos regimes autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século XX, 3 vols. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. 4 ABREU, Alzira Alves de. “A imprensa e seu papel na queda de João Goulart”. 2003. Disponível em: . Acesso em: 16 set. 2014. 5 Idem. 6 ABREU, Alzira Alves de. A modernização da imprensa (1970-2000). Rio de Janeiro: Jorge Zahtar Ed., 2002. 7 QUEIROZ, Maria Luíza de; QUEIROZ, Rachel de. Tantos anos. São Paulo: Siciliano, 1998. 8 Idem, p. 201. 9 O Cruzeiro, Ano XXXVI, nº 20, 22/02/1964, p. 130. 10 MOTTA, Rodrigo de Sá. Jango e o golpe de 1964 na caricatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006, p. 88. 11 O Cruzeiro, Op. Cit. 12 LAVAREDA, Antonio. A democracia nas urnas: o processo partidário-eleitoral brasileiro, 1945-1964. 3ª edição. Rio de Janeiro: Revan, 2012. 13 QUEIROZ, Maria Luíza de; QUEIROZ, Rachel de. Op. Cit., p. 204. 14 SIRINELLI, Jean-François. “Os Intelectuais”. In: RÉMOND, René (Org.). Por uma História política. Rio de Janeiro: FGV, 1996. 15 As correspondências da escritora se encontram no Acervo Rachel de Queiroz, no Instituto Moreira Salles. 16 CASTELO BRANCO, H. [Telegrama] 18 mai. 1964, Brasília [para] QUEIROZ, Rachel de. 1f. 17 O Cruzeiro, Ano XXXVI, nº 32, p. 122. 18 QUEIROZ, Maria Luíza de; QUEIROZ, Rachel de. Op. Cit., p. 205 19 O Cruzeiro, Ano XXXVI, nº 33, 23/05/1964, p. 130. 20 O Cruzeiro, Ano XXXVI, nº 45, 15/08/1964, p. 128. 21 O Cruzeiro, Ano XXXVI, nº 43, 01/08/1964, p. 114. 22 Ibidem. 23 O Cruzeiro, Ano XXXVI, nº 38, 27/06/1964, p. 146. 24 Ibidem.

986

O posicionamento político da grande imprensa no episódio da Guerrilha do Caparaó Fernanda Mattos da Silva1

Resumo: Este artigo apresenta uma investigação sobre as perspectivas da grande imprensa no episódio denominado Guerrilha do Caparaó. O propósito é desenvolver uma análise do posicionamento político dos jornais de grande circulação, compreendendo a conjuntura política da época e seus instrumentos de legitimação do poder. Para isso, busca-se reposiciona a grande imprensa de maneira crítica diante da responsabilidade de gerar informação sobre a Guerrilha, enfatizando o seu papel para construção do imaginário social no processo histórico deste acontecimento. Palavras chaves: Guerrilha do Caparaó, Ditadura Militar, Imprensa.

Abstract: This paper presents an investigation into the perspectives of the mainstream media on the episode known as Guerrilha do Caparaó. The main purpose is to develop an analysis of the political stance of the major newspapers, including the political situation of the time and their power legitimization instruments. Therefore, this work repositions the mass media in a critical way, given their responsibility to generate information on the Guerrilha, and emphasizing its role to build the social imaginary in the historical process of this event. Key Words: Caparaó Guerrilla, Military Dictatorship, Mainstream Media.

A Guerrilha do Caparaó foi um movimento armado que se organizou na Serra do Caparaó, na divisa dos estados do Espírito Santo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. O início do movimento guerrilheiro no alto da Serra ocorreu em novembro de 1966 e seu estopim ficou registrado pelas operações de repressão realizadas pelas Polícias do Espírito Santo e Minas Gerais, em início de abril de 1967. Foi a partir da captura dos guerrilheiros que a grande imprensa da época tomou conhecimento da organização guerrilheira e a tornou pública. É importante salientar que a divulgação da existência da Guerrilha do Caparaó foi feita após a prisão de todos os guerrilheiros envolvidos diretamente no foco guerrilheiro. Diante do cenário político ditatorial em que se estabeleceu a Guerrilha do Caparaó, julga-se importante um direcionamento em relação à situação da imprensa. Considerando as publicações sobre o movimento armado em questão, pode-se classificar os jornais de

987

grande

circulação como meio de comunicação com tendências ao que Jean-Jacques Becker chama de “condicionamento”. Para o autor o “condicionamento” pode ser visto a curto prazo como o resultado da propaganda, enquanto que a longo prazo, sua atuação tende a ser mais profunda, visando um enraizamento no consciente, moldando de certa forma o cotidiano que pode sofrer a transformação pelo que Becker chama de “opinião pública”. Segundo Maria Helena Capelato, a imprensa brasileira tem sido, desde sua criação, um instrumento de força política, pois diversos governos e as elites sempre fizeram o uso intencional da imprensa. Essas elites, ao mesmo tempo que a temem, bajulam, vigiam, controlam e punem os jornais. Dessa forma, os meios de comunicação se posicionam entre o que a autora chama de “domínio de consciências e a liberdade” 2, oposições que o movimento da história se encarrega em mudar de acordo com os interesses políticos de quem os maneja. Considera-se que o “domínio de consciências” envolve muito mais que apenas a compreensão da escrita dos jornais, envolvendo também, “o conhecimento pessoal e social, as experiências prévias, as opiniões pessoais e as atitudes sociais, as ideologias e as normas ou valores, entre outros fatores que desempenham um papel na mudança de mentalidade das pessoas”3. Em uma análise mais ampla, pode-se conceber o comportamento da grande imprensa sobre a Guerrilha do Caparaó como um instrumento importante para inculcar no imaginário social a ideia de primeira guerrilha contra a ditadura. Apesar de transcrever as considerações do governo, que insistia na insignificância do movimento, esses jornais alardeavam uma ameaça guerrilheira. De forma positiva, segundo Última Hora, ou negativa, segundo o Jornal do Brasil e O Globo. Independentemente do desfecho do conflito, o que ficou registrado foram as informações publicadas. Os jornais estudados eram emprenhados de conteúdo ideológico e essa ideologia não atuava de forma diferente no que dizia respeito às reportagens sobre a Guerrilha. Nesse período a maior parte da grande imprensa estava em pleno apoio ao Estado, o que pôde ser constatado na análise das reportagens sobre episódio em Caparaó. É interessante observar o cuidado que os jornais tinham em noticiar o conflito, ora enaltecendo, ora diminuindo ou até mesmo, ridicularizando-o. Todos os jornais estudados, com exceção do Última Hora, mantiveram uma postura com tendências direitistas ou conservadoras em relação ao acontecimento. O Globo posicionava as notícias sobre a Guerrilha do Caparaó junto a outras que relatavam crimes altamente violentos. O tom de grandiosidade atribuído ao movimento na Serra não tinha intenção de enaltecê-lo como Guerrilha em oposição ao governo ditatorial, e sim, em enaltecê-lo como ação criminosa, necessitando, assim, ser combatida. Esse tratamento que os jornais davam ao movimento levava a sociedade a não fazer distinção entre crime comum e crime político, por isso, a

988

determinação do lugar editorial “revela uma interpretação dos fatos sociais que ajudam a produzir uma nova realidade exposta pelos meios de comunicação”4. Desse modo, O Globo tendia ao sensacionalismo ao publicar acontecimentos de oposição ao regime, posicionamento que ficou marcado no tratamento das publicações sobre a Guerrilha do Caparaó. O Última Hora, segundo Rodrigo Patto Sá Motta, foi o jornal que adotou o posicionamento mais crítico ao regime militar, inclusive com argumentos permeáveis pela esquerda. Durante a cobertura pode-se perceber esse posicionamento político sobre a ação repressiva do Estado entre as narrativas das reportagens. Essa postura poderia levar o leitor a compreender a preocupação do jornal em ouvir não só os oficiais, mas também os guerrilheiros e a população local, no intuito de cumprir o seu papel de informar, proporcionando um debate mais honesto sobre o assunto. As reportagens eram maiores, e em dado momento, ridicularizavam a operação militar. O Última Hora se caracterizou por uma postura mais alternativa, preocupando-se em acompanhar o conflito de perto, atribuindo relevância aos demais atores da Guerrilha, e não somente aos oficias. Os jornais Tribuna da Imprensa e Correio da Manhã tiveram postura menos sensacionalista, porém mantiveram suas publicações sobre a Guerrilha nas páginas do noticiário. Apesar de Rodrigo Patto afirmar que o Correio da Manhã apoiou o golpe, mas “em poucos dias entrou em choque com o novo governo” 5, essa condição não pôde ser percebida no caso da Guerrilha do Caparaó. O jornal se colocou em uma posição de apoio aos militares com tendência ao silêncio, ou não se manifestando contra. O posicionamento político do Correio da Manhã na cobertura da Guerrilha do Caparaó não demonstrou uma postura crítica ao regime. O jornal fez uso das informações dos oficiais para negar a Guerrilha ou reduzi-la a caso de polícia, se referindo aos guerrilheiros como “marginais” e “bandoleiros”, palavras que traziam o tom de condenação do conflito. No que se refere ao Tribuna da Imprensa, não foi possível perceber uma mudança de posicionamento, pois o jornal se colocou de forma semelhante aos periódicos paulistas e ao Correio da Manhã, pois suas publicações se resumiram em assinalar as colocações dos oficiais em pequenas matérias que não convidavam ao diálogo. Sua intenção também foi de negar ou diminuir o episódio, dando-lhe pouca importância. Os jornais O Estado de São Paulo e Folha de São Paulo mantiveram um posicionamento claro de apoio ao regime. O Estado de São Paulo criticou o Exército por não confiar em seu poder de comunicação, mantendo sigilo sobre o acontecimento na Serra. O jornal justificou a crítica assinalando que a imprensa quando acompanha o Exército em uma ação armada também se torna um instrumento de defesa da Nação. As reportagens sobre a

989

Guerrilha eram, em sua maioria, de pequena dimensão e tendiam a caracterizá-la como ação criminosa a ser combatida. Quanto à Folha de São Paulo, o jornal manteve um posicionamento muito próximo ao do O Estado de São Paulo. Suas reportagens sobre o movimento eram publicadas com apontamentos dos oficiais que o consideravam mera ação criminosa, atribuindo-lhe pouca importância. A Folha de São Paulo é citada ainda, como o jornal que colaborou com os agentes da repressão encarregados por prisões e torturas após o endurecimento do regime6. O posicionamento do Jornal do Brasil também foi interessante, não deixou de atribuir ao episódio um caráter político. Porém, tratou o caso como uma articulação armada sem relevância nacional. As informações sobre a Guerrilha do Caparaó eram carregadas de adjetivos com denotações pejorativas. O objetivo era reduzir o conflito a um episódio que, como tratou o próprio jornal, foi completamente derrotado pelas forças do governo. De um modo geral, os jornais estudados não associaram de forma explícita o episódio da Guerrilha do Caparaó diretamente ao movimento guerrilheiro que se expandia por outros países da América Latina. Porém, é comum encontrar no final das respectivas reportagens ou na mesma página uma matéria sobre o foco guerrilheiro que se desenvolvia na Bolívia, incluindo menções a Ernesto Che Guevara. O que poderia levar o leitor a compreender de forma subjetiva a relação dos fatos. Os discursos reproduzidos pela imprensa neste período, inspirados em conceitos da Doutrina de Segurança Nacional, ajudaram a criar um clima de aparente normalidade no País, despolitizando a população e desestimulando reações de grupos organizados. Poucas vezes o texto insinuava algum questionamento sobre as afirmações das autoridades. Nem sempre havia marcas gráficas como o uso de travessões, grifos, para estabelecer um distanciamento entre opinião e informação. Muitas vezes, as opiniões eram tratadas como discurso indireto livre, sem uso de aspas. Diretamente ou não, a grande imprensa acabou desempenhando o papel de aparelho ideológico do Estado7.

Nesse contexto, as reportagens, os artigos e os editorias sobre a Guerrilha do Caparaó eram carregados de conteúdo ideológico, ratificando a perspectiva apresentada por Ricardo Mendes, na qual afirma que a Doutrina Segurança Nacional havia extrapolado os muros da caserna. Para o autor, “a visão elitista e conservadora da sociedade que essa doutrina propagava eram extremamente assimiláveis e palatáveis às elites brasileiras porque representava, em termos gerais, uma comunhão de interesses”8, interesses esses que harmonizavam com aqueles que o Estado defendia – calar os movimentos populares sob a ótica da manutenção da ordem. Dessa forma, o que se percebeu nos jornais foi um estratagema, no qual predominava o interesse em legitimar o regime militar. A tática consistia em fazer o uso de instrumentos

990

que, de uma forma ou de outra, levasse à sociedade a ideia de que a atuação do Estado era necessária para a manutenção da ordem. Por isso, prevaleceu no discurso da grande imprensa uma dupla relação que se utilizou de fatores como “criminalização” versus “potencial político”, ou “operação de envergadura e ameaçadora” versus “mera aventura”. Em algumas reportagens foi possível analisar um discurso que caracterizava o movimento Caparaó como ação criminosa. A perspectiva de “ação criminosa” apresentava-se de duas maneiras: a primeira, como mera ação local, como retratou o Jornal do Brasil transcrevendo um apontamento que segundo o periódico, era de um representante do governo, no qual dizia que o movimento de Caparaó era um “amotinamento de criminosos que foram condenados em júris locais”9. Essa ideia também é explorada pelo O Estado de São Paulo, que afirmou que se tratava de uma ação realizada por “elementos fora da lei” para perturbar a tranquilidade da sociedade. A segunda maneira foi observada no discurso do jornal O Globo, que demonstrou uma preocupação em transformar a Guerrilha em grande ação criminosa, pois o jornal tratava o episódio como algo perigoso para a segurança nacional, mas não como uma ameaça à política do país. O periódico transcreveu as considerações do Tenente-Coronel, um dos comandantes da operação antiguerrilha, afirmando que “com a Revolução, tal movimento se acentuou”10. A palavra “Revolução” foi escrita sem utilizar aspas, permitindo a ideia de apropriação do termo pelo jornal. Além disso, o jornal O Globo, publicou a Guerrilha do Caparaó em páginas destinadas às matérias criminais. O potencial político pode ser observado nas entrelinhas, como foi o caso do Jornal do Brasil que, apesar de diminuir o episódio, publicou suas reportagens sobre a Guerrilha em páginas sobre política. No caso do jornal Última Hora, também há uma alocação das matérias sob um aspecto claramente político, demonstrando um posicionamento mais crítico sobre o regime militar ao noticiar o movimento guerrilheiro em Caparaó. Esse periódico publicou uma manchete que dizia: “Guerrilheiros presos pretendiam impedir que Castelo continuasse”11. A afirmação atribuiu ao movimento um caráter político, deixando claro que a atuação dos guerrilheiros era em oposição ao regime. Outra dupla relação foi observada como o estratagema entre “operação de envergadura e ameaçadora” versus “mera aventura”. Essa forma de caracterizar a Guerrilha do Caparaó se repetiu na maioria dos jornais estudados, obscurecendo o posicionamento dos periódicos em relação às considerações das autoridades militares e governamentais. O jornal O Globo, por exemplo, publicou as seguintes manchetes em sequência: “Exército desloca três mil homens para Caparaó”12 e “Boliviano confirma que ‘Che’ Guevara organiza guerrilha”13. Essas duas reportagens atribuíam à Guerrilha grande importância, na qual se entende que sua organização

991

foi algo realmente ameaçador, seja no âmbito criminal, com a presença do Exército, seja no âmbito político, com a presença de Che Guevara. Contudo, em outro momento, o mesmo jornal publicou que os militares e fontes dos órgãos de Segurança Pública continuavam relatando que os acontecimentos em Caparaó eram “destituídos de maior importância”14. Essa questão também foi observada no jornal Última Hora, pois noticiava-se que o Exército se preparava para uma operação de “grande vulto” – operação essa que consistia em uma varredura completa na Serra do Caparaó, visando destruir possíveis focos guerrilheiros. O jornal também publicou a nota oficial do Exército que classificava a Guerrilha de “absurda”, pois a região era de difícil acesso, e, por isso, o movimento estava condenado ao “fracasso” por falta de condições de sobrevivência na região15. O posicionamento manifestado pelos órgãos governamentais através da imprensa considerou a Guerrilha uma aventura subversiva, conceito compartilhado pela maioria dos jornais, principalmente em São Paulo. Estes se valiam dos relatos oficiais para noticiar o movimento como mera ação de “bandoleiros”, cabendo à polícia da região combatê-los. Essas relações podem ser entendidas se estabelecermos que as Forças Armadas e a grande imprensa tinham diferentes concepções sobre o movimento guerrilheiro em Caparaó. Tendo em vista a necessidade de legitimação do regime ditatorial, conclui-se que esse comportamento foi consequência de uma estratégia para impor à sociedade a ideia de que o regime era necessário. A transformação da Guerrilha do Caparaó numa verdadeira ameaça política justificou a atuação repressiva do regime militar diante do “perigo comunista”. Era estratégico negar a sua importância para reprimir melhor pois, dessa forma, a redução tendia a valorizar a manutenção do regime. Nesse aspecto, a grande imprensa adotou os argumentos dos oficiais para estabelecer o seu próprio posicionamento político, sendo ao mesmo tempo um comportamento deliberado internamente e subjetivo para quem o lê. Constata-se que as perspectivas da grande imprensa sobre a Guerrilha do Caparaó se basearam nos discursos inspirados nos conceitos da Doutrina de Segurança Nacional, despolitizando a população e desestimulando reações de outros grupos guerrilheiros. Com exceção do jornal Última Hora, todos os demais periódicos estudados poucas vezes insinuavam em seus textos algum questionamento sobre as afirmações das autoridades. Dessa forma, direta ou indiretamente, a grande imprensa desempenhou o papel de “aparelho ideológico do Estado”. Portanto, pode-se considerar que a grande imprensa teve um papel importante na concepção da Guerrilha do Caparaó como a primeira guerrilha contra a ditadura brasileira. Essa construção se baseou na atuação do Estado mediante a conjuntura política do período que, de certa forma, se serviu do apoio recebido pelos jornais para estabelecer uma

992

relação de legitimação do uso da força, contribuindo para a concepção de guerrilha na construção do imaginário social. Considerando as afirmações acima e suas consequências, o estudo dos jornais permitiu que duas considerações relevantes pudessem ser observadas. A primeira é o apoio dado pelas instituições civis ao Golpe de 1964 e ao regime militar, como alguns historiadores discutem. Em concordância com o que defende Rodrigo Patto de Sá Motta, os jornais da grande imprensa apoiaram o Golpe de 1964 ao se manifestar a favor da intervenção militar, assim como, contribuíram para a manutenção do regime militar. Esses jornais não se voltaram contra o governo com o enrijecimento do regime. Para Motta, as exceções foram o Correio da Manhã e Última Hora que, segundo o autor, optaram por um posicionamento menos definido, não se manifestando a favor ou contra. Porém, no que se refere a cobertura da Guerrilha do Caparaó, a única exceção foi o jornal Última Hora, que adotou uma posição política mais crítica e tratou suas manchetes de forma como nenhum outro periódico. É um equívoco classificá-lo de jornal de esquerda, compreendendo a conjuntura política da época. Era, porém, um jornal com claro posicionamento crítico ao regime instaurado. Além disso, seus argumentos levavam o leitor a perceber a relevância depositada sobre a Guerrilha do Caparaó. O tratamento atribuído ao movimento pelos outros jornais corroborou o argumento de Motta, pois a maior preocupação desses periódicos foi transformar a Guerrilha em caso de polícia, diminuindo sua importância política e transformando-a em ação criminosa. O posicionamento político dos jornais propicia a segunda consideração, que consiste na percepção diferenciada que esses veículos tinham como interesse ao noticiar a Guerrilha do Caparaó. Essas percepções podem ser avaliadas não somente por análises qualitativas, mas também, por meio de uma pequena análise dos dados quantitativos. Considerando o período de um mês, no qual foram divulgadas as reportagens estudadas, constata-se que o jornal que mais noticiou a Guerrilha do Caparaó foi o Última Hora, com 46 reportagens. Em seguida veio o Jornal do Brasil com 44; Correio da Manhã com 42; O Globo com 37; O Estado de São Paulo com 28; Tribuna da Imprensa com 17; e por fim, a Folha de São Paulo com 14 reportagens. Baseado nesses números percebe-se que o Última Hora teve maior quantidade de notícias e produziu cerca de três vezes mais matérias do que a Folha de São Paulo, jornal que menos publicou sobre o assunto. Outra percepção consiste na maior veiculação de notícias nos jornais do Rio de Janeiro em comparação com os de São Paulo, mesmo se compararmos os dois jornais que tiveram menor quantidade de reportagens publicadas.

993

Uma questão interessante foi a quantidade de fotografias que retrataram a operação dos militares na Serra do Caparaó. Somando todos os jornais estudados foi contabilizado um total de 59 imagens que continham informação visual sobre a Guerrilha. Desse total, ficou estabelecida a seguinte distribuição: Jornal do Brasil - 37%; Última Hora – 30%; Correio da Manhã – 14%; O Globo – 12%; O Estado de São Paulo – 5%; Folha de São Paulo – 2%; enquanto que o Tribuna da Imprensa não teve nenhuma foto publicada. A informação relevante na análise desses dados está muito mais no que foi retratado com essas imagens do que propriamente na quantidade delas. Porém, três observações são importantes: (1) o Jornal do Brasil teve maior número de fotos publicadas, lembrando que apesar de estarem em páginas relacionadas à política, a intenção do jornal era diminuir a importância do episódio; (2) o Última Hora fez publicações mais coerentes, combinando imagens e textos, distribuindo-os nas suas respectivas capas; (3) outra questão foi a comparação entre os jornais do Rio de Janeiro e São Paulo, em relação às fotografias. Mesmo se for comparado apenas os jornais do Rio de Janeiro que veicularam menor quantidade de imagens, os jornais cariocas se sobrepõem aos principais jornais de São Paulo. Com exceção do Tribuna da Imprensa, que não fez uso dessa linguagem para noticiar a Guerrilha. Outra observação que esclareceu a relevância atribuída por cada jornal foi em relação ao tamanho dos textos publicados sobre a Guerrilha. Das 229 reportagens, 84 eram consideradas grandes, julgando que essa categoria compreende as que ocupam pelo menos 20% da página. Na outra extremidade, estão as 83 reportagens consideradas pequenas – categoria que abrange as notas com um ou dois parágrafos. As 62 restantes são os textos considerados médios. A intenção é quantificar as reportagens para ilustrar o tratamento dado à Guerrilha do Caparaó pelos jornais, esclarecendo o grau de importância do tema com base em diferentes critérios de referência.

Considerações finais Partindo das perspectivas da grande imprensa sobre a Guerrilha do Caparaó, pode-se considerar que a maneira pela qual foram publicadas as reportagens sobre a Guerrilha contribuiu para a construção do imaginário social sobre o movimento, tendo em vista os diferentes interesses políticos e econômicos desses jornais. Essa construção serviu tanto para direcionar os projetos políticos das direitas, como das esquerdas. As forças do governo viram nesse episódio a oportunidade de endurecer a repressão, usando como argumentos a violência e o perigo que esses movimentos proporcionavam à sociedade, colocando em risco a Segurança Nacional. A tática elaborada na publicação das informações sobre a Guerrilha

994

permitiu a percepção de certa preocupação em transformar a Guerrilha em algo que pudesse justificar as ações do regime. A potencialização da Guerrilha, transformando-a em verdadeira ameaça para a sociedade, justificou o endurecimento das ações repressoras do regime. Assim como reduzir a Guerrilha a mera ação criminosa de competência dos policiais locais, valorizava as ações do regime no sentido de torná-lo forte e representativo, contra o qual não caberiam ações de movimentos políticos em sua oposição. Ambos os direcionamentos foram utilizados pelos representantes do governo e das Forças Armadas, visando um único objetivo, a manutenção do regime militar. Na percepção das esquerdas, a contribuição desse episódio para os seus projetos políticos tendeu mais para a potencialização da Guerrilha como reação ao regime militar que se direcionava cada vez mais ao enrijecimento da repressão, cerceando qualquer manifestação política que fosse contra o governo. A Guerrilha do Caparaó seria um exemplo para os movimentos de esquerda e, ao mesmo tempo, poderia servir de aprendizado para outros grupos que viessem a se organizar em oposição ao regime. No intuito de impedir a disseminação de movimentos de esquerda contra o regime militar, o Estado se beneficiou da grande imprensa como instrumento para nortear e direcionar o posicionamento da opinião pública sobre a Guerrilha. Essa situação pode ser explicada por meio da Doutrina de Segurança Nacional, como aponta Ricardo Mendes, “[provocando] efeitos diferentes nos diversos grupos que ela atingiu”16, o que permite corroborar a visão elitista e conservadora da sociedade. Desse modo, a Doutrina de Segurança Nacional atuou para além dos muros dos militares, atendendo aos interesses particulares de determinados grupos da sociedade civil. O tratamento da Guerrilha do Caparaó pela grande imprensa pode ser entendido pela atuação da DSN, como legitimação do Estado em instância representativa dos interesses nacionais e promotora da manutenção da ordem interna. Nesse contexto, a Guerrilha do Caparaó representou uma ameaça aos objetivos das direitas, segmentos que continuavam a apoiar a ditadura, pois concretizava a ideia de propagação da guerra revolucionária que deveria ser combatida por meio da repressão em prol da Segurança Nacional. Esse posicionamento torna-se bastante claro com o estudo dos periódicos. A postura dos jornais se baseava na transformação da Guerrilha em caso de polícia local e no engrandecimento do episódio como ameaça real. As formas como isso foi dito pela grande imprensa se distinguem entre si. Houve casos que reduziram o impacto da Guerrilha para fortalecer a instituição do regime; outros a diminuíram para transformá-la em ação criminosa; além disso, há casos que a trataram como ameaça real legitimando a ação do

995

Estado. De certa forma, todos contribuíram para a construção da opinião sobre a Guerrilha do Caparaó. Seja ela num contexto negativo ou positivo, pois a percepção também depende do posicionamento do leitor. Foi nessa direção que se construiu o imaginário social a respeito da Guerrilha. Partindo do princípio que a representação depende da apropriação do discurso e que este processo está diretamente ligado a determinada cultura política, a concepção da ideia de primeira guerrilha contra a ditadura militar brasileira foi inculcada tanto pelas direitas quanto pelas esquerdas. A grande imprensa, assim como nos dias de hoje, foi o veículo de propagação desse imaginário. O Estado controlado pelos militares foi o maior beneficiado em relação à postura da imprensa no caso de Caparaó. A ameaça guerrilheira fomentou maior repressão, legitimando a ampliação de seu poder, assim como, as informações divulgadas pela imprensa motivaram maior ação coercitiva e aumento da prática da censura. As instituições que o apoiaram, hoje trazem em sua memória o peso da censura e da violência que a respaldava, se esquecendo da responsabilidade que lhe couberam, na ampla coalizão anti-Goulart e da manutenção da pantomima democrática que legitimou o golpe e o regime militar brasileiro. As perspectivas da grande imprensa sobre a Guerrilha do Caparaó, contudo, não se limitam à condição de justificar o endurecimento do governo. Elas legitimaram o Golpe de 1964 e sua manutenção, aplaudindo seu projeto político que se baseava, cada vez mais, na censura, na repressão e na violência. 1

Mestre em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), sob a orientação do Dr. Prof. Ricardo Antonio Souza Mendes e Beatriz de Moraes Vieira (co-orientadora). E-mail: [email protected]. 2 CAPELATO, Maria Helena R. Imprensa e História do Brasil. São Paulo: Contexto/EDUSP, 1988, p. 13. 3 DIJK, Teun A. Van. Discurso e Poder. São Paulo, Contexto, 2012, p. 20. 4 ABREU, João Batista. As manobras da informação: análise da cobertura jornalística da luta armada no Brasil (1965-1979). Niterói: EDUFF; Rio de Janeiro: Mauad, 2000, p. 259. 5 MOTTA, Rodrigo Patto de Sá. A ditadura nas representações verbais e visuais da grande imprensa: 19641969. Revista Topoi, v. 14, n. 26, jan./jul. 2013, p. 76. Site: www.revistatopoi.org. 6 KUSHNIR, Beatriz, Cães de Guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988. São Paulo: Boitempo, 2012. 7 ABREU, João Batista. As manobras da informação: análise da cobertura jornalística da luta armada no Brasil (1965-1979). Niterói: EdUFF; Rio de Janeiro: Mauad, 2000, p. 140. 8 MENDES, Ricardo Antonio Souza. Direitas, 1964 e a Doutrina de Segurança Nacional. Rio de Janeiro. Revista Maracanan, n. 11, Dezembro de 2014, p. 125. Disponível em: http://www.epublicacoes.uerj.br/index.php/maracanan/article/view/14035/11772. Acesso em 13 de abril de 2015. 9 Jornal do Brasil. 4 de abril de 1967, p. 4. 10 A prisão do ex-subrtenente Gelci deu pista para a grande caçada. O Globo. 4 de abril de 1967, p. 10. 11 Última Hora. 4 de abril de 1967, p. 2. 12 O Globo. 5 de abril de 1967, capa. 13 Ibidem, 1967, capa. 14 Mais tropas do Exército chegam a Munhuaçu. O Globo. 7 de abril de 1967, capa. 15 Guerrilheiros presos pretendiam impedir que castelo Continuasse. Última Hora. 4 de abril de 1967, p. 2. 16 MENDES, Ricardo Antonio Souza. Visões das direitas no Brasil (1961-1965). 2003. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal Fluminense. Rio de Janeiro, 2003, p. 271.

996

Os sentidos da mestiçagem em Manoel Bomfim e Euclides da Cunha 1

Resumo: A noção de mestiço é recorrente na produção intelectual brasileira da passagem do século XIX para o século XX. A proposta que apresentamos configura uma abordagem de Os sertões (1902) de Euclides da Cunha e América Latina: males de origem (1905) de Manoel Bomfim, sob a perspectiva da noção de mestiçagem, buscando observar sua amplitude de desenvolvimento assim como seus limites de aplicação ao contexto nacional. Palavras-chaves: mestiço; mestiçagem; intelectuais.

Abstract: The notion of mixed recurs in the Brazilian intellectual production of the late nineteenth century to the twentieth century. The proposal that we presented set up an approach to the hinterlands (1902) Euclides da Cunha and Latin America: origin of evil (1905) Manoel Bomfim, from the perspective of the concept of mestizaje, trying to watch your range of development as well as its limits application to the national context. Keywords: mestizo; crossbreeding; intellectuals.

Primeiros efeitos de variados cruzamentos, destinavam-se talvez à formação dos princípios imediatos de uma grande raça. Faltou-lhes, porém, uma situação de parada ou equilíbrio, que lhes não permite mais a velocidade adquirida pela marcha dos povos neste século. Retardatários hoje, amanhã se extinguirão de todo.

Euclides da Cunha 2 Não há na história da América Latina um só fato provando que os mestiços houvessem degenerado de caráter, relativamente às qualidades essenciais das raças progenitoras. Os defeitos e virtudes que possuem vêm da herança que sobre eles pesa, da educação recebida e da adaptação às condições de vida que lhes são oferecidas.

Manoel Bomfim 3

O período que se estendeu da segunda metade do século XIX, sobretudo a partir de 1870, até a primeira década do século XX concentrou debates e apresentou ideias em torno da problemática colocada pela intelectualidade da época sobre pensar a viabilidade do Brasil nos moldes de uma nação moderna, baseada nos ideias de civilização e progresso europeu. Dinâmica definida por Antonio Candido em Literatura e Sociedade de dialética entre localismo e cosmopolitismo, que consistia na integração progressiva de experiência literária por meio da tensão com o dado local. Na sua perspectiva as primeiras manifestações para o conhecimento do país teriam se desenvolvido por formas literárias ou ligadas à expressão desse gênero narrativo. 4

997

Para Antônio Edmilson Martins Rodrigues, as ideias resultantes dessa dialética entre substância brasileira e tradição europeia, promoveram a “identidade de um Brasil novo, mestiço e tropical, diverso e dilacerado em contraposição ao equilíbrio e às unidades europeias.” 5 Porem, é preciso destacar que a tensão entre diversidade brasileira ou americana e unidade/homogeneidade europeia é latente nas interpretações sobre o Brasil nessa época. Essa tensão se desdobra num duplo confronto: é preciso definir a nação brasileira em relação ao mundo “civilizado” e ao mesmo tempo dessa nação consigo mesma, conformando uma identificação própria, ou seja, à medida que a sociedade procura se afirmar externamente também o fazia internamente, pois mesmo levando em consideração o aspecto europeu na conformação de visões acerca da nação e na afirmação de uma modernidade do ponto de vista externo, as especificidades e tradições do país tropical estiveram presentes. Antonio Edmilson afirma que: a inteligência brasileira não aparece somente na organização de um novo regime político ou na luta contra a escravidão, mas no modo de interpretar o Brasil como um espaço novo e, por isso, diferente de qualquer outra experiência. A abolição da escravidão e a república estão contidas como ideias na maneira de interpretar o caminho de futuro do Brasil. A imitação é relativizada porque o mundo intelectual esboça uma interpretação capaz de relacionar o localismo e o cosmopolitismo, e a mudança é feita sob a égide da inteligência. 6

Compreende-se a partir disso que a circulação de ideias estrangeiras no Brasil impulsionou os intelectuais a um movimento de (re) conhecimento de seu país e de seu povo. Um movimento amplo de identificação e interpretação dos dados locais em confluência com as teorias e métodos disponibilizados à época. A “imitação fora relativizada”, porque a tentativa de compreender o nacional através de concepções formuladas em contexto distinto do nosso se exerceu pelo debate de ideias e interpretação crítica das mesmas, promovida pelo confronto com a nossa singularidade histórica de país tropical. Diante disso, a historiadora Maria Regina Capelari Naxara, entende o período abordado como um momento privilegiado para o estudo das representações e do imaginário sobre a população nacional brasileira, em que a intelectualidade da época esboçou as primeiras tentativas de compreensão da cultura e da história do Brasil. Reconhecendo na literatura o canal privilegiado na divulgação de certas representações que se forjaram sobre o brasileiro como indolente, vadio preguiçoso e não civilizado, cristalizadas no imaginário social ao longo do tempo. 7 Para esta autora, esse imaginário surge das interpretações das ideias evolucionistas e deterministas da história, além da crença dominante de que a humanidade estava em marcha em direção ao progresso, finalidade a ser alcançada por todos os

998

povos, além disso, coaduna

com a identidade de um Brasil diverso dilacerado ante a homogeneidade europeia, conforme indicou Rodrigues. 8 O imaginário de desqualificação do brasileiro inicialmente se restringia aos nacionais livres e pobres e ao longo do tempo se estendeu ao conjunto da sociedade, mestiça em sua maioria, e “ganhou contornos de representação da nacionalidade como um todo, estendendose à própria concepção de brasilidade e passando a fazer parte da construção da identidade do brasileiro”. 9 A imagem do brasileiro como um desqualificado se construiu a partir de uma visão comum, tanto das elites nacionais, quanto dos viajantes que vinham ao Brasil, do abandono da população brasileira vista como inadequada econômica e socialmente, vivendo à margem da organização social. Essa concepção da população promoveu o afastamento e a marginalização dessa parcela social, constituída por nacionais livres, vista como estrangeira em sua própria terra, mas também deu margem a interpretações que afirmavam a ausência de um povo brasileiro. Conforme a interpretação de Maria Regina Capelari Naxara: O povo brasileiro, (principalmente a população mestiça, ou de alguma forma vinculada à escravidão) vistos pelas suas elites, aproximava-se do atraso e da barbárie, enquanto que o que se procurava era o progresso e a civilização. Tal questionamento acabou levando a uma definição do brasileiro pela ausência do que se esperava que ele pudesse ser, ou seja, por aquilo que lhe faltava. (...) O Brasil tornava-se, de forma cada vez mais contundente e visível, o lugar da heterogeneidade, em todos os sentidos: diversidade de cor, de classe, de raça, de aparências e falares. A preocupação, para se formar a nação, por seu lado, colocava a possibilidade de se poder pensar em termos de homogeneidade, de características comuns ao povo brasileiro, o que era extremamente complexo, num país multiracial. 10

A interpretação da história do Brasil de acordo com essa tendência, alimentada pelas concepções do liberalismo, positivismo e do evolucionismo, se orientava na busca de uma identidade para o brasileiro e da superação do atraso. Intelectuais e pensadores da nação nesse período se orientaram no sentido de diagnosticar os “males” nacionais e indicar a cura. Nessa perspectiva, as preocupações de Euclides da Cunha (1866-1909) e Manoel Bomfim (1868-1932), abordadas nesse trabalho, apresentam temas centrais para a intelectualidade da época, imbuídos do ímpeto de descoberta e reconhecimento do Brasil. Médico formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1890, Manoel Bomfim dedicou sua vida à divulgação da importância do ensino público como elemento de formação da nacionalidade. Atuou no magistério ensinando Moral e Cívica na Escola Normal, onde foi professor de Pedagogia e Português e dirigiu o Pedagogium, instituição de pesquisas na área educacional. Foi membro do Conselho Superior de Instrução Pública do Distrito

999

Federal e em 1899 assumiu a Diretoria da Instrução Pública e dentre as suas publicações na área do ensino destaca-se o livro Através do Brasil (1910), escrito em parceria com Olavo Bilac, com quem também redigiu a revista infantil O tico-tico (1905). Como pensador da história, Bomfim teve a sua vida intelectual marcada por aquela que foi considerada a sua principal obra, o livro América Latina: males de origem (1905). Euclides da Cunha, por sua vez, autor de Os sertões (1902), onde narra os acontecimentos da Guerra de Canudos (1896-1897), formou-se em engenharia pela Escola Militar (1892) e atuou como jornalista, escrevendo para o jornal A província de São Paulo, hoje O Estado de São Paulo. Como marcas de formação Euclides depositava forte crença nas concepções filosóficas do positivismo e do evolucionismo, fruto da convivência com Benjamin Constan nos tempos de Escola Militar. Foi poeta, leitor e admirador do poeta romântico francês Victor Hugo e do historiador Jules Michelet, também era leitor de Castro Alves e Fagundes Varela, figuras que inspiraram suas ideias a cerca vida e da história, o levando a oscilar ente a utopia e a melancolia, de acordo com Roberto Ventura. 11 Mais do que um poeta romântico tentou ser ele próprio um herói, que perseguia visões inspiradas nas narrativas da Revolução Francesa. Teve atitudes extremadas, com atos de heroísmo e abnegação, em que colocou a defesa de crenças políticas, como o republicanismo, acima dos interesses pessoais. 12

Homem de atitudes extremadas, movido pelas emoções, acreditava que para narrar um fato era preciso partilhar da história que se contava. Impulsivo, teve um desfecho trágico ao ser assassinado em 1909 pelo amante de sua mulher. Um médico/pedagogo e um poeta/engenheiro, Bomfim e Euclides são vozes dissonantes aos horizontes do progresso brasileiro, nas palavras da historiadora Simone Petraglia Kropf, ambos o vislumbraram e o descreveram, produzindo visões do Brasil que divergem em seus matizes. Partindo de um contexto semelhante, o Rio de Janeiro, capital federal da jovem República, esses pensadores convergiram na critica contundente ao Estado, mas divergiam em seus princípios norteadores e nas conclusões tiradas. 13 De acordo com Kropf, a República, em oposição ao Império, era vista como a consagração do novo e caminho para a construção de uma nação moderna, em sintonia com os ideais do progresso e da civilização, paradigma perseguido pela intelectualidade brasileira de fins do século XIX. A geração ilustrada de 1870, como ficou conhecida, pregava a urgência de reformas para redimir e regenerar a sociedade de um passado obscuro e vazio de possibilidades. Segundo os intelectuais engajados do final do século XIX, as principais exigências da realidade brasileira da época que precisavam ser contempladas eram a atualização da sociedade diante do modo de vida característico dos países ditos civilizados, a

1000

modernização das estruturas básicas da nação e o estímulo ao progresso, tanto material quanto cultural do país. (...) compatibilizar o Brasil com os horizontes dos ‘novos tempos’ que se constituíam na passagem para o novo século. Para tanto, tornava-se imprescindível desenvolver um conhecimento sobre a sociedade que, abarcando-a em seus mais variados aspectos, pudesse identificar as vias mais adequadas para a solução de seus problemas prementes. É nesta perspectiva que os intelectuais comprometidos com a reforma social recorriam às teorias europeias. 14

Nesse contexto de efervescência de pensamento, a intelectualidade, de acordo com Nicolau Sevcenko, se viu com a missão de conduzir o processo que levaria o país à transformação social e moral, fazendo do engajamento e utilitarismo intelectual uma arma.

15

Dedicaram-se a conhecer a realidade nacional, tendo o saber científico, disseminado a partir de um fluxo cultural europeu, como o único meio capaz de produzir esse conhecimento e capaz de formular leis e promover o desenvolvimento social. As “ideias novas”

16

forneceram

aos pensadores nacionais conceitos e paradigmas para analisarem a realidade social. Com efeito, se destacou a opção pelo modelo evolucionista e do darwinismo social. Euclides da Cunha e Manoel Bomfim, ambos participaram efetivamente dessa esfera de discussões e assumindo um tom crítico e combativo quanto ao desenvolvimento histórico, social e cultural brasileiro, criam na regeneração do país através de um conjunto de reformas capazes de atualizarem a dinâmica social, mas manifestaram suas objeções em relação à maneira com que se realizavam as reformas no seio da política republicana. Demonstram em suas narrativas que mesmo com a mudança de governo, a passagem do Império à República não significou uma ruptura com a ordem antiga. O novo Estado havia sido organizado de acordo com os interesses dos grupos que derrubaram o Império e que estavam ligados aos negócios do café. Assim a possibilidade de mudança via modernização da nação contrastava com as permanências da política imperial no âmbito do poder político vigente, representando o atraso. Em face das instabilidades e da falta de planejamento que o regime republicano apresentou em seus primeiros anos, a sensação era de que o país havia embarcado numa aventura política, pois não existia um projeto a ser posto em prática. A inexistência de um mecanismo para a legitimação da ordem federalista criava uma situação de caos no cenário político da República, recém-inaugurada, conservando-se até o governo Campos Sales (18891902) uma forte desconfiguração da política no Brasil, conforme Renato Lessa. 17 Desse modo, em América Latina: males de origem, Manoel Bomfim faz uma análise crítica da formação histórico-cultural do continente Sul-americano e parte da experiência da colonização ibérica para explicar os “males” nacionais e da América Latina.

Seu

“diagnóstico” indica que as causas do atraso do Brasil estavam condicionadas a

um

1001

prolongamento do estatuto colonial engendrado no início da conquista e colonização ibérica no “novo mundo”, ideia que pavimenta toda a sua abordagem, com a permanência de uma mentalidade colonizadora e das oligarquias no poder. Além disso, identifica nos interesses do imperialismo estrangeiro um reforço para a visão negativa que circulava no mundo dito civilizado sobre o Brasil. 18 Sua análise não se detém apenas em aspectos políticos, Bomfim nos apresenta dados psicológicos da formação da mentalidade do brasileiro na tentativa de demonstrar a relação intrínseca entre o processo colonizador e a formação de identidades nacionais. Assim, na perspectiva do autor é fundamental considerar as relações que foram estabelecidas com a metrópole portuguesa para compreendermos os hábitos, as formas de ser, que foram assimiladas pelo povo colonizado. Assistidos, reconfortados por estes, os elementos refratários do passado parasitário, revivem, proliferam, doutrinam, orientam; e a nova pátria não chega nunca a ser uma pátria, senão a ex-colônia, que se prolonga pelo Estado independente, contra as leis da evolução, sufocando o progresso, presa a mil preconceitos, peada pela ignorância sob o conservantismo. 19

Bomfim procura expor a relação causal entre os problemas contemporâneos àquela época e a formação histórica das sociedades ibero-americanas, refutando as análises que condenavam o país pela miscigenação do seu povo. Para ele a miscigenação era um fator positivo e até renovador, pois “tenderia a reequilibrar os elementos negativos herdados da colonização” 20. Euclides da Cunha, por seu turno, apresenta em Os sertões uma narrativa e análise dos eventos ocorridos durante a guerra de Canudos (1896-1897), registrada quando atuava como correspondente do jornal Estado de São Paulo. Sua problemática se detém no contexto interno da nação, focalizada, sobretudo na relação de oposição sertão-litoral, motivo da análise.

21

O autor fica completamente perplexo com o que ele descreve como barbárie da

civilização, assumindo um tom de denúncia na obra. A narrativa dos sertões, desse modo, foi estruturada a partir de três ângulos: a terra, o homem e a luta. Em “A terra” tratou da geologia brasileira e do meio físico do sertão baiano; em “O homem” discutiu a formulação do homem americano, a formulação do sertanejo e os “males” da mestiçagem e em “A luta” narrou a Guerra de Canudos como resultante de fatores naturais, étnicos e históricos. Conforme Roberto Ventura, Euclides assumiu em Os sertões o um tom de acusação, responsabilizando os governos federal e estadual pelo massacre da população de Canudos, sobretudo o exército. Seu objetivo era “denunciar a guerra como fratricídio, matança entre irmãos, filhos do mesmo solo.” 22

1002

As duas principais referências teóricas para a construção da narrativa euclidiana vão ser o historiador francês Hippolyte Taine (1828-1893) que formulou na em sua obra Histoire de La Littérature anglaise (1863) a concepção naturalista de história “determinada a partir de três fatores: o meio, com o ambiente físico e geográfico; a raça, responsável pelas disposições inatas e hereditárias; e o momento, resultante das duas primeiras causas”

23

. A segunda

referência é o sociólogo austríaco Ludwig Gumplowicz (1838-1909) para quem a história era resultante da luta entre as raças, com a liquidação dos grupos fracos, pelos fortes. De acordo com essa interpretação: O conflito entre Canudos e a República resultou, para Euclides, do choque e entre dois processos de mestiçagem: a litorânea e a sertaneja. O mestiço do sertão apresentaria vantagem sobre o mulato do litoral, devido ao isolamento histórico e à ausência de componentes africanos, que tornariam mais estável sua evolução racial e cultural. ‘O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral.’ 24

Podemos perceber, a partir desses apontamentos, que esses dois autores foram tomados pela crítica e a perplexidade. Bomfim denunciou os efeitos do parasitismo social, conceito utilizado para descrever a relação existente entre colônia e metrópole durante a colonização e que se perpetuou como sistema, subsistindo mesmo após a independência política e também após a República, pois constituiu uma prática social arraigada a mentalidade das elites nacionais. Euclides denunciou o crime da “barbárie da civilização”, o massacre de Canudos expôs a violência com que o Estado que se pretendia civilizado e moderno atuava. A perplexidade se originou da constatação de que a população “degenerada” do sertão fora liquidada por meio de uma carnificina que igualou os soldados do exército aos povos sem civilização do sertão. Vozes dissonantes, os dois autores falaram de progresso e civilização, indicando seus caminhos e descaminhos, e como a maioria dos intelectuais da época encontraram na população do Brasil um desafio aos horizontes do progresso. Nesse sentido, percebemos que o tema da miscigenação aparece como ponto importante a ser explorado em suas abordagens, pois vemos em suas concepções dois posicionamentos distintos sobre os efeitos da mestiçagem para a nação. Manoel Bomfim a vê como elemento renovador, atenuante dos efeitos da colonização, Euclides da Cunha a vê como algo negativo que leva a degeneração, não havendo outra saída, além da extinção dos mestiços, para ele sinônimo de decadência e degeneração. Suas abordagens divergentes nos chamam atenção para a relação que ambos fazem da situação momentânea da nação com a sua historicidade, o que podemos perceber quando nos atenta para concepções distintas da mestiçagem. Seguindo suas pistas, nos indagamos sobre a

1003

pertinência de buscarmos os sentidos da mestiçagem para esses intelectuais no contexto de formação das sociedades de colonização ibérica. Partindo das reflexões dos historiadores Serge Gruzinski

25

e Eliane garcindo de Sá

26

, cremos encontrar um conjunto de referências

fundamentais para pensar a mestiçagem, no período e nos autores estudados, a partir do conceito de “pensamento mestiço” formulado por Guzinski e utilizado por Eliane Garcindo em obra recente, numa reflexão sobre a mestiçagem, onde nos indica a validade desse conceito para estudar processos contemporâneos. *** Refletindo sobre o mundo colonial e a sociedade que se formou a partir do mesmo, Eliane Garcindo de Sá, define-a na sua totalidade como uma sociedade mestiça, fruto de recombinações e modelos sociais. Sua interpretação se dá a partir da apropriação do conceito de “pensamento mestiço” do historiador espanhol Serge Gruzinski. Ao analisar os efeitos do choque da conquista espanhola do Novo Mundo nas sociedades e culturas que se encontraram, Gruzinski observa que a luta pela sobrevivência de grupos indígenas, negros e brancos, no contexto diverso e híbrido que surgiu desses encontros, estimula capacidades de invenção e improvisação, exigidas pela sobrevivência num contexto extremamente perturbado, heterogêneo (indo-afro-europeu) e sem precedentes. Tal limitação molda nos sobreviventes uma receptividade particular, a flexibilidades na prática social, a mobilidade do olhar e da percepção, a aptidão para combinar os fragmentos mais esparsos. 27

De acordo com isso, a interpretação de Eliane Garcindo indica que o conceito de “pensamento mestiço” abarca “uma forma de pensar e representar por combinações, articulações entre sistemas referenciais, em princípio, diferentes entre si, associados a um novo e redimensionado sentido.”

28

Para a historiadora, as sociedades fruto do processo de

conquista e colonização se construíram no espelho do Ocidente e como fruto de relações coloniais, “essas sociedades acirram internamente as exclusões sociais e étnicas que as marcam secularmente. A ocidentalização, por meio da incorporação desigual das ‘raças’ e culturas, foi o processo recorrente.” 29 Processo recorrente, o movimento de ocidentalização se constituiu como definidor de um sentido para a experiência que se configurou naquele espaço e que se seguiu após a conquista - a busca pela conquista da civilização e o confronto com o estigma da barbárie, refletido e acentuado à medida que se operava uma transposição de valores e referências para os povos colonizados. Para além do confronto inicial, o processo que levou a independência política os países colonizados, após séculos de domínio das metrópoles europeias, e a formação de

1004

Estados

nacionais, a partir da matriz liberal, serviram para aprofundar a referência ocidental e ao mesmo tempo não foi capaz de promover a cidadania nessas sociedades, o que representou uma dificuldade à criação de identidades nacionais nos países da América Latina, que se debatem ainda hoje, no presente, na tentativa de compreender e forjar uma identidade. 30 Resultante desse embate, a mestiçagem configura, na perspectiva de Eliane Garcindo, uma circunstância de produção do mestiço, não apenas enquanto forma, mas enquanto universo cultural, dinâmico e criativo. Assim, o conceito de “pensamento mestiço” faz-se importante para refletirmos a cerca da realidade mestiça, pois: Enfrentando a questão cultural e política da produção de pensamento decorrente das intensas trocas possibilitadas entre distintos e diversos sistemas de representação, a construção mesma do conceito de “pensamento mestiço”, aponta para a dimensão e a relevância das formas e ‘estratégias de recombinação’ instauradas pelo processo de expansão/mundialização. Trata-se, pois, de um processo cuja abrangência e cuja dimensão se realizam em cada ponto do mundo, que se articula de forma crescente e que ultrapassa todo e qualquer limite de seus múltiplos ponto de produção e reprodução . 31

O conceito de “pensamento mestiço” proposto por Gruzinski nos permite uma forma de compreensão da mestiçagem, num sentido ampliado, pois, mesmo localizando a sua origem colonial, leva em consideração as combinações e recombinações de sistemas de representações que se processaram desde aquele momento. De acordo com Garcindo, o reconhecimento da criação da condição mestiça como traço do processo histórico das representações pertinentes ao universo americano, nos torna possível estender e ampliar o conceito de “pensamento mestiço” para a compreensão de outros processos, distintos e até contemporâneos. 32 *** À guisa de conclusão, acreditamos que os estudos sobre mestiçagem tendem a se renovar a partir da compreensão proposta pelos autores, de que a mestiçagem não foi processo apenas biológico, mas, sobretudo cultural, fruto de combinações sucessivas dos sistemas de representação dos povos em contato. Processo que começou na conquista do Novo Mundo e que se acentuou com o passar do tempo, pois a trocas e (re)combinações continuaram. Cremos que a indagação a cerca do caráter nacional brasileiro e da problemática de se definir os parâmetros de uma cultura nacional encontram subsídios nas proposições de um “pensamento mestiço”, pois esse conceito nos alerta para a relação de duplicidade que abarca a relação identitária entre países de origem colonial e a Europa, representando o Ocidente e o processo de ocidentalização decorrente desse encontro. Para além de Manoel Bomfim e Euclides da Cunha, não se abandonou, ainda hoje na contemporaneidade, a referência europeia como exemplo de civilização e modelo

1005

de

progresso, nossas identidades continuam se espelhando contraditoriamente no reflexo da Europa e a amargura de um “atraso” persiste como um fantasma vivo.

1

Por Fernanda Miranda de Carvalho Torres, mestranda do Programa de Pós-graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGH-UERJ), na linha de pesquisa Política e Cultura, bolsista Capes, orientada pela Prof.ª Dr.ª Eliane Garcindo de Sá. 2 CUNHA, Euclides. Os sertões. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 17. 3 BOMFIM, Manoel. América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Editora Topbooks, 2005, p. 291. 4 CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 9ª ed. Rio de Janeiro: Ouro Sobre o Azul, 2006. 5 RODRIGUES, Antonio Edmilson Martins. “Cultura política na passagem brasileira do século XIX ao século XX”. In: LESSA, Mônica; e FONSECA, Silvia Carla P. B. Entre a Monarquia e a república: Imprensa, pensamento político, e historiografia (1822-1889). Rio de Janeiro: Eduerj, 2008, p. 210. 6 Ibidem, p. 210. 7 NAXARA, Marcia Regina Capelari. “A construção da identidade: um momento privilegiado”. In: Revista Brasileira de História. São Paulo: Editora Marco Zero, vol., n° 23/24 setembro 91/agosto de 92, p. 181-190. 8 Rodrigues, p. 210. 9 NAXARA, p. 181. 10 Ibidem, p. 184. 11 VENTURA, Roberto. “Introdução crítica”. In: SANTIAGO, Silviano (coord.). Intérpretes do Brasil. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000, p. 174. 12 Ibidem, p. 174. 13 KROPF, Simone Petraglia. “Manoel Bomfim e Euclides da Cunha: vozes dissonantes ao horizonte do progresse”. In: História, ciências e saúde – Manguinhos, vol. III (1), 1996, pp. 80-98 mar-jun. 14 Ibidem, p. 81. 15 SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 96. 16 Para Sílvio Romero (1851- 1914), polêmico crítico literário, o país se encontrava adormecido quando um movimento subterrâneo e longínquo colocou a mostra a instabilidade do Império provocando revezes contra o que se observava: “na política é um mundo inteiro que vacila. Nas regiões do pensamento teórico o travamento da peleja foi ainda mais formidável, porque o atraso era horroroso.” ROMERO, Silvio 1926, pp. 23-24 apud, SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 18701930. São Paulo: Companhia da Letras, 1993, p. 27. 17 LESSA, Renato. “A invenção da República no Brasil: da aventura à rotina.” In: REZENDE, Maria Alice de Carvalho. A República no Catete.Rio de Janeiro: Museu da República, 2001. 18 BOMFIM, 2005. 19 Ibidem, p. 358. 20 ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985, p. 26. 21 CUNHA, 2002. 22 VENTURA, Roberto. Euclides da Cunha: esboço biográfico – retrato interrompido da vida de Euclides da Cunha. São Paulo: Companhia da Letras, 2003, p. 198. 23 Ibidem, p. 200. 24 Ibidem, p. 202. 25 GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço. São Paulo: Companhia da Letras, 2001. 26 SÁ, Eliane Garcindo de. Mestiço: entre o mito, autopia e a história: reflexões sobre a mestiçagem. Rio de Janeiro, Quartet: Faperj, 2014. 27 GRUZINSKI, p. 91-92. 28 SÁ, 2014, p.158. 29 Ibidem, p. 160 30 Ibidem, p. 160. 31 Ibidem, p. 178-179. 32 Ibidem, p. 179.

1006

A República por Laudelina: Usos do Biográfico no Ensino de História Fernanda Nascimento Crespo1

Resumo Laudelina de Campos Melo (1904-1991), mulher, negra, cuja vida é marcada pela luta por melhores condições de trabalho para as domésticas e pelos direitos dos negros em nosso país. Seria possível ensinar/aprender a história do Brasil a partir de suas histórias de vida? Este estudo se constitui na primeira etapa de desenvolvimento de um projeto de mestrado interessado em desenvolver usos do biográfico para o ensino de história. Palavras-chave biografia, ensino de história , mulher negra

Abstract Laudelina de Campos Melo (1904-1991) , black woman whose life is marked by the struggle for better working conditions for domestic and for the rights of black people in our country. It would be possible to teach / learn the history of Brazil from their life stories? This study is the first stage of development of a master's project interested in developing uses of biography for teaching history . Keywords biography , history education , black women

Introdução

Em 12 de outubro de 1904, em Poços de Caldas, Minas Gerais, berrara sua nascença Laudelina de Campos Mello, bem como ainda berrava, pela plena falta de ajuste à realidade brasileira, a recém-nascida república. Neta de um ventre livre, a pequena Nina dá seus primeiros passos em descompasso com um projeto de Brasil que se pretendia branco. Inicialmente sob o comando das espadas dos militares e posteriormente sob o cabresto da aristocracia rural brasileira a chamada Primeira República foi marcada pela elaboração de projetos nacionais que sustentavam o Brasil como uma nação branca em seu cerne e os africanos e seus descendentes recém-libertos como elementos estrangeiros a essa nação. Influenciados pelos motes da eugenia teoria científica que adapta o darwinismo à esfera do social - tais projetos previam

1007

solucionar os problemas da sociedade brasileira eliminado as "raças inferiores", ou seja planejavam o triunfo do embranquecimento para a regeneração de um Brasil que consideravam "atrasado" na perspectiva positivista de progresso. Assim, a cidadania, intrínseca a qualquer república de fato, não fora pensada para sujeitos como Laudelina. Chamada pelo ministro do trabalho Jarbas Passarinho no ano de 1967 de o "terror das patroas", Laudelina começou a trabalhar como doméstica aos sete anos e teve sua vida marcada pela luta por melhores condições de trabalho para as domésticas e pelos direitos dos negros em nosso país. A ela é conferida a primeira organização de domésticas do Brasil, criada em 1936 em Santos/SP e fechada em 1942 pelo Estado Novo de Vargas, que hoje é compreendida como o primeiro passo para a conquista da sindicalização desta categoria profissional que ocorrera em 1988. 2 Apenas aos 87 anos Vó Nina finaliza sua longa caminhada repleta de lutas e negociações e, a esta altura, a República já colecionava projetos e feições. Ela traz em suas histórias de vida as marcas dos diversos tempos, assim como a História do Brasil é marcada por suas agências Visamos, a partir do estudo das histórias de vida de Laudelina de Campos Melo, ao desenvolvimento de outras possibilidades de narrativa da história do Brasil, além das tradicionalmente feitas por docentes e manuais didáticos, trazendo personagens que, de modo geral, são relegados a segundo plano, para os papéis principais de nossa narrativa e a partir de suas histórias de vida, produzir junto aos estudantes análises sobre os diferentes contextos das repúblicas que vivenciamos.

Uma disputa pela fixação de sentidos

Na perspectiva pós-estruturalista, a disputa por poder é a disputa pela fixação de sentidos. Por esse prisma, o currículo é entendido como um "discurso produzido na interseção entre diferentes discursos sociais e culturais ao mesmo tempo reitera sentidos postos por tais discursos e os recria." 3 Ou seja, sendo um discurso oriundo da relação assimétrica entre poderes, o currículo atua na atribuição de significados, criando e enunciando sentidos e identidades tanto pelo que é abordado quanto pelo que é omitido, silenciado: Os negros compõem mais da metade da nossa população, mas as histórias de suas lutas e de sua participação na sociedade ainda são pouco conhecidas e estudadas nas escolas e universidades. Essa escassez de memórias e histórias nos

1008

espaços de aprendizagem dificulta as construções identitárias positivas pelos indivíduos deste grupo.4

A história do Brasil, sendo abordada como tradicionalmente é nos currículos escolares; ou seja, atribuindo ao negro o papel de mero coadjuvante e aos europeus e seus descendentes o de protagonistas, traz as marcas do colonialismo que, como afirma Bhabha5, fixa sentidos preferenciais, numa tentativa de inviabilizar outras formas de significação e representação, reduzindo múltiplas possibilidades a uma. Foram muitas as investidas no âmbito escolar na disputa por frear o discurso eurocêntrico e pela ressignificação do papel do negro na História do Brasil. Segundo Amilcar Pereira, a relação da "luta pela reavaliação do papel do negro na História do Brasil" e a história ensinada nas escolas não é inaugurada com a lei em 2003. O autor afirma que, já na década de 1930, a Frente Negra Brasileira – movimento criado no ano de 1931, que se tornou partido político em 1936 e, em 1937, foi fechado pelo Estado Novo de Vargas – bem como o Teatro Experimental do Negro – fundado em 1944 – criaram escolas próprias para a formação de jovens negros. Relata, ainda, que desde o início da década de 1980, Maria Raimunda Araújo (Mundinha), presidenta do Centro de Cultura Negra (CCN) do Maranhão, atuara diretamente nas escolas através de palestras e da produção de materiais didáticos, que foram, inclusive, publicados em outros estados.6 Com a reabertura política e o centenário da abolição, a partir da década de 1980, o movimento negro no Brasil toma outras configurações ao se articular com variadas esferas de poder e adquire novos espaços de ação. As suas demandas passam ter mais visibilidade e a educação formal, ou seja, o ambiente escolar continua sendo visto como um instrumento poderoso de transformação.7 Desde o final da década de 1990, as noções de cultura e diversidade cultural, assim como de identidades e relações étnico-raciais, começaram a se fazer presentes nas normatizações estabelecidas pelo MEC com o objetivo de regular o exercício do ensino fundamental e médio, especialmente na área de história.8

Já em 2004, com a instituição das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afrobrasileira e Africana, que atendem e complementam a Lei nº 10.639/03 se estabelece, de fato, um enfrentamento no âmbito escolar contra o racismo.9 A luta anti-racista

1009

travada nas escolas suscita reflexões sobre as próprias noções de diversidade e multiculturalidade. Ana Canen atenta para as armadilhas que podem representar determinadas interpretações do conceito de multiculturalismo, as quais, segundo ela, ao invés de atuar na oposição a preconceitos podem acabar perpetuando-os.10 Dentre as interpretações equivocadas deste conceito apontadas por Canen, destacamos aquela que reduz o multiculturalismo ao folclorismo no currículo, ou seja, à momentos específicos do calendário escolar, como "feiras de culturas, celebração do Dia do Índio, da Consciência Negra" dentre outros e assim, conservam a ótica do exotismo relacionada à povos nãobrancos. Nessa perspectiva o cerne continua sendo a identidade essencializada do homem,

branco,

europeu,

tomada

como

norma.

Outras

perspectivas

do

multiculturalismo que Canen aponta como perigosas para os currículos são aquelas que se limitam a ações de reparação; as que ignoram "as diferenças dentro das diferenças" e também as que resultam em uma guetização curricular, em que determinados grupos se atém exclusivamente aos estudos de seus padrões culturais específicos. Hoje, um dos desafios de nós, docentes, é não tratar a História das Culturas Afro-Brasileiras como apêndices à História do Brasil. Concordamos com Verena Alberti11, quando ela afirma que devemos "evitar confinar o estudo da história das relações raciais a nichos do currículo." Outra espécie de "confinamento" que nos propomos a enfrentar nesse estudo é a que se refere à atuação de mulheres na História. As histórias de Laudelina nos permitem explorar, também, demandas feministas com relação à produção do conhecimento histórico. Desde sua constituição como disciplina, a história apresenta homens como protagonistas de suas inúmeras narrativas: seja ao tratar de trajetórias individuais - como ao eleger "grandes heróis" e elencar cronologicamente seus feitos - ou quando em outra perspectiva trabalha com sujeitos sem nomes próprios (como operários, camponeses etc), as mulheres não aparecem nos textos principais de nossos manuais didáticos. Concordamos com Rachel Soihet que, dialogando com Varikas, afirma:

...o que nos é necessário, enquanto gênero subordinado, não é reduzir a história da humanidade às experiências sociais das mulheres, mas fazer com que esta história "seja elaborada a partir de todas as experiências humanas, tanto no que elas têm de comum como no que têm de específico." O que pressupõe uma revisão radical na maneira de pensar a história. E, nessa revisão, a abordagem biográfica das mulheres, e do ponto de vista das mulheres, constitui-se numa

1010

contribuição preciosa não enquanto método específico, mas pela pertinência das questões que ela pode colocar.12

Nesse sentido, a escolha do olhar de Laudelina sobre os diferentes tempos e experiências das repúblicas no Brasil nos parece muito pertinente. Através dela podemos mostrar que a história da população negra e das mulheres não é algo que se desenrola à parte de uma suposta história nacional; os 87 anos de histórias de vida de nossa protagonista nos possibilitam romper com esse confinamento quando propomos abordá-la em suas experimentações em relação a questões centrais para a história de nosso país, como o paternalismo e suas profundas marcas sociais; a cidadania e sua negação à maior parte da população; as lutas por melhores condições de trabalho dentre outras. Frente a essas demandas de nosso tempo procuramos nos inserir na disputa curricular pela fixação de novos sentidos à nossa própria história e para isso, lançamos mão da problematização do uso de histórias de vida com fins didáticos. Como utilizar trajetórias individuais nos processos de ensino-aprendizagem sem que incorramos em uma espécie de retorno a antigas práticas da História elegendo heróis e seus feitos como ícones dessa história a ser contada? Como abordar didaticamente a História do Brasil tomando emprestado o olhar de Laudelina de Campos Melo

Uma protagonista para uma narrativa histórica didática

A proposta à qual nos lançamos neste estudo surge da reflexão das possibilidades de trabalhar a história do Brasil através de histórias de vida e só concebemos este como um caminho possível quando, como propõe Ilmar Mattos 13, compreendemos o (a) docente diante do processo de ensino-aprendizagem como autor(a) e sua aula como texto. A partir dessa postura conscientemente assumida, a(o) professor(a) tece seu enredo, elenca personagens, estabelece panos de fundo, encadeia temporalidades e narra a história deixando evidente a marca de seu estilo e de seu ponto de vista. Além disso, o(a) autor(a) de uma narrativa histórica didática, em nossa perspectiva, deve ter uma preocupação que transcende à sua própria produção. O(a) professor(a)/autor(a) deve ter em seu horizonte o devir; ou seja, é importante que conte com as múltiplas e simultâneas possibilidades para o desfecho de sua narrativa, pois 1011

esta parte - que lhe escapa - se dá na interlocução com seu público leitor; neste caso, na forma como cada estudante vai apreender e se apropriar daquela história. Não elegemos um grupo social ou uma instituição, por exemplo, para protagonizar nossa narrativa histórica didática. Elegemos um indivíduo, uma pessoa. Escolhemos explorar os usos do biográfico para o ensino de história e antes que pareça que seguimos por caminhos isentos de problematizações devemos esclarecer que nossa opção só pode ser compreendida quando cientes das discussões atuais acerca das relações entre biografia e história. A partir da segunda metade do século XX, em meio à crise dos grandes modelos de interpretação marxista e estruturalista, a esfera do individual se tornou uma questão central e o projeto biográfico é retomado. À luz de Chartier, Benito Bisso Schmidt 14 afirma que o movimento de retomada da biografia no campo da História a partir da década de 1980, relacionado à crise do paradigma estruturalista, deseja "trazer de volta os indivíduos à construção de laços sociais". Tal movimento, todavia, é alvo de questionamentos por parte de alguns historiadores preocupados com um possível retorno a uma abordagem cronológica, individualista e narcísica da história. Pierre Bourdieu alerta, nesse ensejo, para o caráter social em que se inserem os indivíduos e critica as produções biográficas alinhadas à perspectiva teleológica da história, ou seja, que trabalham histórias de vida como hermeticamente fechadas em si, como se cumprissem uma trajetória sem percalços, ininterrupta e auto-explicativa, seguindo o modelo do "desde pequeno fulano tinha espírito de liderança...por isso se tornou presidente", por exemplo. Este autor sustenta a necessidade de se analisar criticamente os processos sociais que atuam na construção de uma história de vida.15 Não contradizendo o que é posto por Bourdieu, mas explorando a outra face do gênero biográfico, Geovani Levi enfatiza as liberdades, as negociações, as capacidades, os espaços de ação dos indivíduos diante das regras estabelecidas. Segundo ele as normas estabelecidas pelo poder hegemônico são marcadas inexoravelmente por incoerências e, nesses limites entre o imposto e seus próprios paradoxos reside o espaço onde as ações dos indivíduos são capazes de promover transformações na sociedade. O campo do biográfico seria uma via privilegiada para observar o funcionamento concreto dos sistemas normativos e as margens mais ou menos extensas de liberdade dos indivíduos em cada contexto16

1012

Nessa esteira, Benito Schmidt afirma, por sua vez, que nos usos contemporâneos da biografia pela história devemos visar à introdução do elemento conflitual; buscar a relação entre indivíduo e sociedade; e enfatizar os espaços de liberdade do indivíduo frente aos sistemas normativos vigentes em cada contexto.

17

Para ele, esse movimento

de retomada das histórias de vida está no bojo de uma transformação muito marcante das bases teórico-metodológicas da produção historiográfica e, por tudo isso, não pode ser entendida como "a simples retomada de um gênero velho."18 As novas abordagens do biográfico nos impeliram à optar por esta seara também por se dedicarem à "outros sujeitos", não mais os "grandes", não mais o tratamento do "excepcional". Mulher e negra, as histórias de vida de Laudelina de Campos Melo vão ao encontro desse campo reformulado. A partir da crise das "grandes estruturas" é que se passa a perpetrar no âmbito da história questões como gênero e raça, que julgamos indispensáveis para pensar Laudelina. O método biográfico constitui-se no campo ideal para verificação das brechas utilizadas pelos subalternos, entre eles, as mulheres, os quais mesmo que se valendo de subterfúgios, compõem a rede de uma antidisciplina. Desta forma, buscam aproveitar as “ocasiões”, as possibilidades oferecidas para garantir o exercício de sua cidadania, inclusive em termos de gênero, no grau mais ampliado possível19

Não temos o interesse de que Laudelina conduza nossos estudos como um exemplo a ser seguido, demonstrado a partir de uma trajetória heróica, coesa, homogênea, linear. Como atenta Sabrina Loriga, o emprego e a própria ideia de termos como "herói" ou "grande homem" são entradas que induzem ao esquecimento do sujeito".20 Almejamos iluminar as ações de Laudelina frente às normatizações, seja em pleno acordo com elas ou experimentando-as em suas próprias contradições. Um olhar pouco atento à suas histórias se anteciparia em afirmar que sua vida fora determinada pelas "grandes estruturas", afinal, em sua condição de negra precisava se submeter ao poder do apadrinhamento de brancos para conseguir direitos mínimos, como o de frequentar escola, por exemplo; como menina pobre, lhe é destinada a exploração do seu trabalho desde os sete anos; em sua condição de menina, pobre e negra ocupa "o lugar" para ela reservado pelo legado dos tempos da escravidão: "o lugar" pouco prestigiado do trabalho doméstico. Todavia, com um pouco mais de afinco em nossas reflexões notamos que, das posições a ela impostas,

1013

Laudelina

explorou as arestas. Aos 16 anos, por exemplo, diante do racismo que obstaculizava o lazer comum entre negros e brancos fundou, e tornou-se presidente, do Clube 13 de Maio, grupo recreativo que reunia jovens negros de sua vizinhança em Poços de Caldas; tomou a frente de uma série de organizações que visavam à conquista de melhores posições sociais pela população negra; em fins década de 1950 promove o concurso de beleza negra Pérola Negra em Campinas, cuja apresentação das candidatas acontece no chique restaurante Armorial, onde negros não costumavam entrar; no ano de 1936 fundou a primeira associação de domésticas do Brasil com fins de proteger e dar assistência às trabalhadoras domésticas e lutar pelo reconhecimento desta enquanto categoria profissional em um momento em que a questão trabalhista era discussão central no Brasil.21 Era nesta década que estavam sendo instituídas as leis sindicais por Getúlio Vargas, porém esta luta das trabalhadoras domésticas pela sindicalização se estenderá, com Laudelina à frente, até as últimas décadas do século XX. Entendemos que, ao mesmo tempo em que as conjunturas sociais são

fundamentais para pensar sua biografia, pela sua postura ativa - que resulta em relevantes conquistas não só para a categoria das empregadas domésticas, mas também para as mulheres e para a população afro-brasileira de modo mais abrangente - a sua experiência escreve a história de nosso país. De acordo com Loriga, sustentamos o uso de biografias pela história como forma de abordagem que apresente a sociedade como uma obra comum e não como uma totalidade social independente ou como uma estrutura impessoal superior aos indivíduos e que os domina22. Como defendem Gabriel e Monteiro23, à luz de Hartog, a narrativa histórica didática que pretendemos construir visa a ser ponte entre a história vivida e a atribuição de sentidos ao mundo. Acreditamos que a perspectiva que procuramos desenvolver apresenta elementos muito férteis no âmbito da construção do conhecimento histórico escolar, pois nos empenhamos em "dessacralizar" a história, ou seja, aproximar a história experimentada pelos estudantes da história narrada através do uso de histórias de vida de uma pessoa comum e, assim, tencionamos trocar a sensação de vertigem que imobiliza, pela possibilidade de ação frente às coerções dos contextos em que se inserem.

1014

1

Mestranda do programa de Mestrado Profissional em Ensino de História (ProfHist), vinculada à Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), sob orientação da Profª. Drª. Marcia Gonçalves. Email: [email protected] 2 BERNARDINO-COSTA, Joaze. Sindicatos das trabalhadoras domésticas no Brasil: teorias da descolonização e saberes Subalternos. Tese (doutorado em Sociologia). Brasília: Universidade de Brasília, 2007. 3 LOPES, Alice Casemiro e MACEDO, Elizabeth. Teorias de Currículo. São Paulo: Cortez, 2011, p.41. 4 PEREIRA, Amilcar Araujo. "Resistência também dentro da escola". Revista de História da Biblioteca Nacional. nº101, fev/2014, p. 80. 5 BHABHA, Homi. O local da Cultura. Belo Horizonte. Editora UFMG, 2003. 6 PEREIRA, Amilcar Araujo. "Por uma autêntica democracia racial: os movimentos negros nas escolas e nos currículos de História". Revista História Hoje. vol. 1, n.1, p.111-128, jun/2012. 7 PEREIRA, Amilcar Araujo. "Por uma autêntica democracia racial: os movimentos negros nas escolas e nos currículos de História". Revista História Hoje. vol. 1, n.1, jun/2012, p.111-128. 8 ABREU, Martha e MATTOS, Hebe. "Em torno das "Diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana": uma conversa com historiadores." Estudos Históricos. Rio de Janeiro, jan-jun/2008. p.6 9 Ibid. p.5-20. 10 CANEN, Ana. "Sentidos e Dilemas do Multiculturalismo: Desafios Curriculares para o novo milênio". IN: LOPES, Alice Casemiro; MACEDO, Elizabeth (orgs.). Currículo: debates contemporâneos - 3ª ed São Paulo: Cortez, 2010, pp.174-195. 11 ALBERTI, Verena. "Algumas estratégias para o ensino de história e cultura afro-brasileira". In: PEREIRA, Amilcar Araújo e MONTEIRO, Ana Maria (org.). Ensino de história e culturas afrobrasileiras e indígenas. Rio de Janeiro: Pallas, 2013. 12 SOIHET, Rachel. "Discutindo Biografia e História das mulheres". In: FUNK, Susana Bórneo; MINELLA, Luzinete Simões; ASSIS, Glaucia de Oliveira (orgs.). Linguagens e Narrativas: Desafios feministas. Vol.1. Tubarão - SC: Copiart, 2014, p.79. 13 MATTOS, Ilmar Rohloff. "Mas não somente assim. Leitores, autores, aulas como texto e o ensino aprendizagem de história". Revista Tempo. Departamento de História da UFF. V.11, n.21. Rio de Janeiro. Julho, 2006. 14 SCHMIDT, Benito Bisso. "Biografia e Regimes de Historicidade". In: MÉTIS: história & cultura – UCS.v. 2, n. 3, p. 57-72, jan./jun. 2003 15 BOURDIEU, Pierre. "A ilusão biográfica". In. FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína (orgs.) Usos e Abusos da História Oral. 8. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. 16 LEVI. Giovani. "Usos da biografia". In. FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína (orgs.) Usos e Abusos da História Oral. 8. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. SCHMIDT, Benito Bisso. "Biografia e Regimes de Historicidade". In: MÉTIS: história & cultura – UCS. v. 2, n. 3, p. 57-72, jan./jun. 2003 18 SCHMIDT, Benito Bisso. "Luz e papel, realidade e imaginação: as biografias na história, no jornalismo, na literatura e no cinema". Comunicação apresentada na sessão A abordagem biográfica: meios e fins em diferentes campos de expressão e saber do GT “Biografia e memória social” no XXII Encontro Anual da ANPOCS. Caxambu/MG, outubro de 1998. Disponível em http://www.anpocs.org/portal/index.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=5031&Itemid=359. Acesso em: 20 de agosto de 2015, p.3. 19 SOIHET, Rachel. "Discutindo Biografia e História das mulheres". In: FUNK, Susana Bórneo; MINELLA, Luzinete Simões; ASSIS, Glaucia de Oliveira (orgs.). Linguagens e Narrativas: Desafios feministas. Vol.1. Tubarão - SC: Copiart, 2014, p.63 a 79. 20 LORIGA, Sabina. O pequeno x: da biografia à história. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. 21 PINTO, Elisabeth. Etnicidade, Gênero e Educação: A Trajetória de Vida de Dª Laudelina de Campos Mello (1904-1991). Vol 1- Dissertação de Mestrado. Universidade Estadual de Campinas/Faculdade de Educação, 1993. 493 pp. 22 LORIGA, Sabina. O pequeno x: da biografia à história. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. 23 GABRIEL, Carmen Teresa; MONTEIRO, Ana Maria. "Currículo, ensino de história e narrativa". 2007. Disponível em Acesso em 28 de julho de 2015. 17

1015

Educação sob censura: Os recentes projetos de lei sobre educação e a ameaça à liberdade de pensamento. Fernanda Pereira de Moura1 Resumo: O trabalho analisa alguns projetos de lei, de 2014 e 2015, na esfera federal que pretendem coibir a liberdade de aprender dos alunos através do cerceamento da liberdade de ensinar dos professores, inclusive criminalizando-os. O trabalho analisa também a polêmica com relação ao termo gênero no Plano Nacional de Educação. Palavras chaves: Gênero; Legislação educacional; Escola sem partido Abstract: The paper analyzes some project of bills in 2014 and 2015, at the federal level that aim to curb the freedom of learning of the students through the restriction of freedom of teaching, including for this, criminalizing the teachers. The paper also analyzes the controversy regarding the term gender in the National Education Plan. Key words: Gender; Educational legislation; Escola sem partido O presente texto faz parte de minha pesquisa de mestrado junto ao Programa de Pós Graduação em Ensino de História da UFRJ (PPGEH-UFRJ) sobre a história das mulheres e das relações de gênero no ensino de história. A escolha pela apresentação deste tema se dá em virtude da urgência sobre a discussão dos projetos contra a autonomia docente que tramitam pelo legislativo em nível federal e a nível municipal e estadual em todo o país. O Projeto de Lei nº 7.180 de 2014, do deputado Erivelton Santana, “Altera o artigo 3º da lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional”. Segundo este PL, a LDB incluiria o seguinte texto:

respeito às convicções do aluno, de seus pais ou responsáveis, tendo os valores de ordem familiar precedência sobre a educação escolar nos aspectos relacionados à educação moral, sexual e religiosa, vedada a transversalidade ou técnicas subliminares no ensino desses temas.

O PL cita o artigo 12 da Convenção Americana de Direitos Humanos, estabelecida por meio do Pacto de San José da Costa Rica, em 22 de novembro de 1969 em que se lê: “Os pais e, quando for o caso, os tutores, têm direito a que seus filhos e pupilos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções.” O texto termina da seguinte forma:

Somos da opinião de que a escola, o currículo escolar e o trabalho pedagógico realizado pelos professores em sala de aula não deve entrar no campo das convicções pessoais e valores familiares dos alunos da educação básica. Esses são temas para serem tratados

1016

na esfera privada, em que cada família cumpre o papel que a própria Constituição lhe outorga de participar na educação dos seus membros

Também de autoria do deputado Erivelton Santana é o Projeto de Lei nº 7.181, de 2014 que “dispõe sobre a fixação de parâmetros curriculares nacionais em lei com vigência decenal.” segundo o PL “A educação escolar, promovida em instituições de ensino básico, será orientada por parâmetros curriculares nacionais, estabelecidos em lei e com vigência decenal.” O PL aparentemente preocupado com a educação estabelece também que:

Os parâmetros curriculares nacionais respeitarão as convicções dos alunos, de seus pais ou responsáveis, tendo os valores de ordem familiar precedência sobre a educação escolar nos aspectos relacionados à educação moral, sexual e religiosa, vedada a transversalidade ou técnicas subliminares no ensino desses temas.

O deputado Erivelton Santana também usou o mesmo texto em sua Proposta de emenda à constituição nº 435, de 2014 que altera a redação do art. 10 da Constituição Federal. O deputado Erivelton Santana, da legenda PSC/BA, tem curso superior incompleto em Licenciatura em História pela Universidade Católica de Salvador e faz parte da FPE (Frente Parlamentar Evangelica) pela Igreja Evangelica Assembleia de Deus. Dos três discurso que realizou em plenário um foi contra a "ideologia de gênero" na educação infantil e um em ocasião do 23º aniversário da constituição no qual teceu considerações sobre a importância da comunhão com Deus para a obtenção de sucesso em uma gestão governamental. Dentre seus projetos de lei, o de nº 5.618 autoriza o poder executivo a transformar em projeto de Estado o programa denominado “Fé na Prevenção” que dentre outras coisas levaria aos agentes religiosos de que fala o projeto dentre outras coisas a “participar da implementação de projetos pedagógicos de prevenção do uso indevido de drogas, nas instituições de ensino de que trata a lei nº 9.394/96” ou seja, grupos religiosos fariam seu “trabalho educativo” nas instituições de educação básica inclusive públicas. Fundamentalistas evangélicos e católicos estão bastante alinhados a respeito da necessidade de limitação da autonomia docente. O PL 7.180/14 recebeu longo parecer favorável do Deputado Diego Garcia (PHS/PR). O deputado foi presidente do conselho diocesano da Renovação Carismática Católica em Jacarezinho, Paraná. De autoria de outro deputado, o Sr. Izalci (PSDB/DF), temos o Projeto de lei nº 867, de 2015. Este “inclui, entre as diretrizes e bases da educação nacional, o 'programa escola sem partido'”. Segundo o Artigo 3º, "São vedadas, em sala de aula, a prática de doutrinação

1017

política e ideológica bem como a veiculação de conteúdos ou a realização de atividades que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos pais ou responsáveis pelos estudantes." Segundo o artigo 4º, o professor no exercício de suas funções "não se aproveitará da audiência cativa dos alunos, com o objetivo de cooptá-los para esta ou aquela corrente política, ideológica ou partidária", "não favorecerá nem prejudicará os alunos em razão de suas convicções políticas, ideológicas, morais ou religiosas, ou da falta delas", "não fará propaganda político-partidária em sala de aula nem incitará seus alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas", "ao tratar de questões políticas, sócio-culturais e econômicas, apresentará aos alunos, de forma justa, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes a respeito", "respeitará o direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções", "não permitirá que os direitos assegurados nos itens anteriores sejam violados pela ação de terceiros, dentro da sala de aula.", Para tanto, o nobre deputado sugere afixar nas salas de aula e nas sala dos professores das escolas um cartaz "com 70 centímetros de altura por 50 centímetros de largura, e fonte com tamanho compatível com as dimensões adotadas" divulgando a "liberdade de aprender" dos alunos. Art. 7º. As secretarias de educação contarão com um canal de comunicação destinado ao recebimento de reclamações relacionadas ao descumprimento desta Lei, assegurado o anonimato. A PL também prevê a criação de ouvidorias a fim de receber a reclamação de alunos e responsaveis que deverão ser encaminhadas ao Ministério Público. Segundo o PL a lei aplicaria-se também aos livros didáticos e paradidáticos, às avaliações para o ingresso no ensino superior, às provas de concurso para o ingresso na carreira docente e às instituições de ensino superior. No texto do PL a educação nacional atenderia aos princípios da "neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado", do "pluralismo de ideias no ambiente acadêmico", da "liberdade de aprender, como projeção específica, no campo da educação, da liberdade de consciência" da "liberdade de crença", do "reconhecimento da vulnerabilidade do educando como parte mais fraca na relação de aprendizado", da "educação e informação do estudante quanto aos direitos compreendidos em sua liberdade de consciência e de crença" e do "direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções". Apesar de propagar estes 7 principios ao longo da justificativa fica clara qual a educação que os deputados desejam que os alunos recebam. De acordo com o nobre deputado:

1018

É fato notório que professores e autores de livros didáticos vêm-se utilizando de suas aulas e de suas obras para tentar obter a adesão dos estudantes a determinadas correntes políticas e ideológicas; e para fazer com que eles adotem padrões de julgamento e de conduta moral – especialmente moral sexual – incompatíveis com os que lhes são ensinados por seus pais ou responsáveis. Diante dessa realidade – conhecida por experiência direta de todos os que passaram pelo sistema de ensino nos últimos 20 ou 30 anos –, entendemos que é necessário e urgente adotar medidas eficazes para prevenir a prática da doutrinação política e ideológica nas escolas, e a usurpação do direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções.

Segundo a interpretação da Constituição Federal apresentada neste PL, a liberdade de consciência, garantida pelo seu art. 5º, conferiria ao estudante “o direito de não ser doutrinado por seus professores”, assim como a liberdade de aprender assegurada pelo art. 206 “compreende o direito do estudante a que o seu conhecimento da realidade não seja manipulado, para fins políticos e ideológicos, pela ação dos seus professores”, Porém quando o mesmo artigo 206 garante a Liberdade de ensinar, a interpretação dada é que esta não se confunde com liberdade de expressão pois não existiria liberdade de expressão no “exercício estrito da atividade docente, sob pena de ser anulada a liberdade de consciência e de crença dos estudantes, que formam, em sala de aula, uma audiência cativa.” O PL também cita do Estatuto da Criança e do Adolescente o artigo “nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de exploração” para afirmar que os jovens estariam sofrendo uma “exploração política”. É citado também seu art. 53, que garante aos estudantes “o direito de ser respeitado por seus educadores” para afirmar que “um professor que deseja transformar seus alunos em réplicas ideológicas de si mesmo evidentemente não os está respeitando”. Ainda segundo o PL:

Ao estigmatizar determinadas perspectivas políticas e ideológicas, a doutrinação cria as condições para o bullying político e ideológico que é praticado pelos próprios estudantes contra seus colegas. Em certos ambientes, um aluno que assuma publicamente uma militância ou postura que não seja a da corrente dominante corre sério risco de ser isolado, hostilizado e até agredido fisicamente pelos colegas.

Assim como o Projeto de lei nº 7.180/14 este Projeto de lei nº 867/2015 evoca o artigo 12 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos segundo o qual “os pais têm direito a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções”; Segundo o PL “cabe aos pais decidir o que seus filhos devem aprender em matéria de moral” Ainda a respeito da moral o PL apresenta “um Estado que se define

1019

como laico – e que, portanto deve ser neutro em relação a todas as religiões – não pode usar o sistema de ensino para promover uma determinada moralidade, já que a moral é em regra inseparável da religião” Assim “Permitir que o governo de turno ou seus agentes utilizem o sistema de ensino para promover uma determinada moralidade é dar-lhes o direito de vilipendiar e destruir, indiretamente, a crença religiosa dos estudantes, o que ofende os artigos 5º, VI, e 19, I, da Constituição Federal.” É bastante curioso que o mesmo texto que defende a moral religiosa ao invés da ética republicana critica o “O uso da máquina do Estado” que compreende o sistema de ensino dizendo que isto “contraria os princípios republicanos”. Fica claro que o objetivo do PL não é o direito dos estudantes e nem a defesa dos valores republicanos e sim a mera manutenção do status quo. Segundo o documento:

A prática da doutrinação política e ideológica nas escolas configura, ademais, uma clara violação ao próprio regime democrático, na medida em que ela instrumentaliza o sistema público de ensino com o objetivo de desequilibrar o jogo político em favor de determinados competidores.

Importante frisar que este projeto de lei foi elaborado baseado no anteprojeto elaborado pelo “Movimento Escola sem Partido” e disponibilizado em seu site oficial (escolasempartido.org). Segundo o site este movimento “é uma iniciativa conjunta de estudantes e pais preocupados com o grau de contaminação político-ideológica das escolas brasileiras, em todos os níveis: do ensino básico ao superior.” Segundo a página: “a pretexto de transmitir aos alunos uma 'visão crítica' da realidade, um exército organizado de militantes travestidos de professores prevalece-se da liberdade de cátedra e da cortina de segredo das salas de aula para impingir-lhes a sua própria visão de mundo.” No site encontramos artigos variados inclusive com criticas ao modelo de “doutrinação” defendido por Paulo Freire e uma área com links para informações sobre os livros recomendados pelo movimento chamada de “Biblioteca Politicamente Incorreta”. Há áreas destinadas a tratar da “doutrinação” em sala de aula, em livros didáticos e em provas de concurso público. Muito interessante também é uma parte intitulada “Sindrome de Stocolmo” destinada a relatar casos em que alunos defendam seus professores “doutrinadores”. Segundo a página: Vítima de um verdadeiro “sequestro intelectual”, o estudante doutrinado quase sempre desenvolve, em relação ao professor/doutrinador, uma intensa ligação afetiva. Como já se disse a propósito da Síndrome de Estocolmo, dependendo do grau de sua identificação com o sequestrador, a vítima pode negar que o sequestrador esteja errado,

1020

admitindo que os possíveis libertadores e sua insistência em punir o sequestrador são, na verdade, os responsáveis por sua situação. De modo análogo, muitos estudantes não só se recusam a admitir que estão sendo manipulados por seus professores, como saem furiosos em sua defesa, quando alguém lhes demonstra o que está acontecendo.

Outros projetos de lei semelhantes tramitam nas Assembleias Legislativas dos Estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Goiás e Espírito Santo, e na Câmara Legislativa do Distrito Federal; e em dezenas de Câmaras de Vereadores como São Paulo-SP, Rio de Janeiro-RJ, Curitiba-PR, Vitória da Conquista-BA, Toledo-PR, Chapecó-SC, Joinville-SC, Mogi GuaçuSP, Foz do Iguaçu-PR, etc. No Rio de Janeiro o PL Escola sem Partido foi encaminhando à Câmara Municipal e à Assembleia Estadual pelos filhos do deputado federal Jair Bolsonaro que também assina o projeto de lei federal. O projeto já foi aprovado nos Municípios de Santa Cruz do Monte Carmelo-PR e Picuí-PB. Também do deputado Sr. Izalci é Projeto de lei nº 1859, de 2015 que acrescenta o seguinte parágrafo único ao artigo 3º da Lei 9.394/96 (Lei de diretrizes e bases da educação): “A educação não desenvolverá políticas de ensino, nem adotará currículo escolar, disciplinas obrigatórias, ou mesmo de forma complementar ou facultativa, que tendam a aplicar a ideologia de gênero, o termo ‘gênero’ ou ‘orientação sexual.” A justificativa de mais de quatorze páginas do PL é bastante interessante. Cita trechos de obras de Karl Marx, Friedrich Engels, Kate Millett, Max Horkheimer, John Money, Michel Foucault, Judith Butler, Shulamith Firestone para provar o “totalitarismo” da “ideologia de gênero” para, ao fim, refutar a “ideologia” baseado em uma entrevista do padre José Eduardo que segundo sua página no facebook é Doutor em Teologia Moral pela Pontifícia Universidade da Santa Cruz (Roma) e padre em Osasco. Tanto no seu perfil na referida rede social quanto em sua página na web o padre se dedica a elucidar os “defensores do 'gênero' e as tais '‘minorias’' [para que] percebam que estão sendo feitos de TROUXAS”. A justificativa do PL começa pela citação à Constituição Federal em seu artigo 226 que estabelece que “a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado” e em seus artigos 220 e 221 que vedam qualquer forma de censura e estabelecem que compete a lei proteger à pessoa e à família de programas de radio e televisão. O texto então explica:

Se o constituinte, em 1988, não mencionou explicitamente a possibilidade de ameaças mais graves à família do que os apresentados pelos meios de comunicação social, isto se deveu a que, naquele ano, a ideologia de gênero era algo impensável para o público em geral.

1021

O texto do PL então citar trechos seguidos de sua interpretação de A ideologia Alemã e de A origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado como vemos no exemplo abaixo: Nesta obra [A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado], Engels, seguindo Marx, sustentava que nos primórdios da história não teria existido a instituição que hoje denominamos de família. A vida sexual era totalmente livre e os homens relacionavam-se sexualmente com todas as mulheres. Deste modo, as crianças somente conheciam quem eram as suas mães, mas não sabiam quem fossem os seus pais. Mais tarde, à medida em que a sociedade passou de caçadora a agricultora, a humanidade começou a acumular riqueza e os homens, desejando deixar as novas fortunas como herança à sua descendência, para terem certeza de quem seria o eu herdeiro, fora obrigados a forçar as mulheres a não mais se relacionarem com outros parceiros. Com isto transformaram as mulheres em propriedade sexual e assim teriam surgido as primeiras famílias, fruto da opressão do homem sobre a mulher, e com a qual se teria iniciado a luta de classes. A conclusão óbvia desta tese, afirmada como absoluta certeza, visto que confirmava as teorias já levantadas pelo jovem Marx, é que não poderia haver revolução comunista duradoura sem que a concomitante destruição da família.

A seguir o texto vai explicar a longa conspiração para destruição da família e do Estado através do uso da chamada “ideologia de gênero”: O que verdadeiramente está acontecendo é que o conceito de ‘gênero’ está sendo utilizado para promover uma revolução cultural sexual de orientação neo-marxista com o objetivo de extinguir da textura social a instituição familiar. Na submissão do feminino ao masculino através da família, Marx e Engels enxergaram o protótipo de todos os subseqüentes sistemas de poder. Se esta submissão é conseqüência da biologia, não há nada a que se fazer. Mas se ela é uma construção social, ou um gênero, então, a longo prazo, ela poderá ser modificada até chegar-se à uma completa igualdade onde não haverá mais possibilidade de opressão de gênero, mas também onde não haverá mais famílias, tanto as heterossexuais como demais famílias alternativas. Neste contexto a educação caberia como uma tarefa exclusiva do Estado, e não existiria mais traços diferenciais entre o masculino e o feminino. Em um mundo de genuína igualdade, segundo esta concepção, todos teriam que ser educados como bissexuais e a masculinidade e a feminilidade deixariam de ser naturais

Por fim o texto vai explicar como esta “revolução cultural sexual de orientação neomarxista” foi tramada pela ONU, pela delegação dos Estados Unidos e pela própria primeira dama americana Hillary Clinton, ao recomendarem o uso no termo “gênero” no lugar de “sexo” e sem responderem qual seria a definição de gênero e levando as delegações de outros países a adotarem o termo por boa fé acreditando que “gênero” seria apenas um sinônimo chique para “sexo”. Surpreendentemente, o termo gênero tem sido o principal alvo dos deputados na caça às bruxas contra à educação critica. Além de todos os projetos anteriormente citados, que de forma direta ou indireta, visam retirar as discussões de gênero da educação, como os

1022

Pls

7.180/14 e 7.181/14 que retiram gênero do currículo nacional ao vedar os temas transversais nos quais gênero aparece no PCN. Para compreender outros projetos em andamento é preciso compreender como o Plano Nacional de Educação foi construído. Em abril de 2010 ocorreu a Conferência Nacional de Educação (CONAE) da qual participaram vários atores da sociedade civil para a preparação da proposta do plano. Em novembro do mesmo ano o executivo preparou o plano já bem diferente do inicial que chegou em dezembro à câmara. Em março de 2011 foi criada uma comissão especial para o plano composta pela comissão de educação, cultura, direitos humanos e minorias, seguridade social e família e finanças e tributação. O PNE recebeu mais de 3 mil emendas. Número recorde para um projeto de lei. Em outubro de 2012 o projeto seguiu para o senado, onde começou a ser analisado em novembro. Em dezembro de 2013 o PNE é finalmente aprovado no senado e retorna a câmara onde suas alterações começam a ser analisadas em fevereiro de 2014. Em junho do mesmo ano, 4 anos depois do início das discussões e, 3 anos após a data prevista, o plano finalmente aprovado era bem diferente do proposto originalmente. Dentre as mudanças mais comentadas estão o montante destinado a educação que de 10% do PIB passou para 8%; o destino deste dinheiro que da redação “investimento em educação pública” passou para “investimento publico em educação”, incluindo assim repasse de verba para instituições privadas como o PROUNI e a retirada do Gênero do texto final como resultado do lobby liderado pelos deputados/pastores Marco Feliciano (PSC-SP), Marcos Rogério (PDTRO) e Pastor Eurico (PSB-PE). Deputados da ala católica radical também tiveram papel fundamental no processo seguindo o entendimento da CNBB (Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil) de que “a introdução dessa ideologia na prática pedagógica das escolas trará consequências desastrosas para a vida das crianças e das famílias”. Enquanto o Plano Nacional de Educação 2001-2011 (em vigor até o ano passado) por inúmeras vezes se referiu a gênero, principalmente no tocante a questão da educação como meio de promoção da igualdade de gênero, o PNE aprovado no ano de 2014 só foi aprovado na câmara após a retirada das duas menções ao termo. A primeira no inciso III do artigo 2º: “São diretrizes do PNE: superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual.” que foi substituída por “superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação.” E a segunda era a Estratégia

1023

3.12:

“implementar políticas de prevenção à evasão motivada por preconceito e discriminação racial, por orientação sexual ou identidade de gênero, criando rede de proteção contra formas associadas de exclusão.” substituída por “implementar políticas de prevenção à evasão motivada por preconceito ou quaisquer formas de discriminação, criando rede de proteção contra formas associadas de exclusão.” Porém o Ministério da Educação orientou que estados e municípios produzissem seus planos de educação baseado no divulgou o texto final da Conferência Nacional de Educação (CONAE) 2014 e não no Plano Nacional de Educação. O texto final fora sistematizado e divulgado pelo Fórum Nacional de Educação, criado pela portaria do Ministério da Educação n.º 1.407, de 14 de dezembro de 2010, conforme deliberação da CONAE 2010. Imediatamente houve reação da Câmara. O Projeto de decreto do legislativo nº 122, de 2015 do deputado Flavinho visa “sustar os efeitos da inclusão da ideologia de gênero no documento final do CONAE-2014, assinado e apresentado pelo Fórum Nacional de Educação”. Projeto de lei nº 2731, de 2015 do deputado Eros Biondini “Altera a lei 13.005 de 25 de junho de 2014, que estabelece o plano nacional de educação – PNE e dá outras providências”. Segundo a nova redação inclui-se no artigo 2º o paragrafo único: “É proibida a utilização de qualquer tipo de ideologia na educação nacional, em especial o uso da ideologia de gênero, orientação sexual, identidade de gênero e seus derivados, sob qualquer pretexto.” O texto do projeto também estabelece punições. Aos estados e municípios que incluírem o debate de gênero em seus prazos está previsto que isto “impossibilitará o repasse de recursos financeiros federais, destinados à educação, ao ente federativo” assim como aos educadores estabelece-se que “O descumprimento da proibição de utilização da ideologia de gênero, orientação sexual e congêneres ou de qualquer outro tipo de ideologia, na educação nacional, sujeitará os infratores às mesmas penas previstas no artigo 232 da Lei nº 8.069/90 (ECA), além da perda do cargo ou emprego.” o citado artigo estabelece a quem "Submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a vexame ou a constrangimento" a pena de detenção de seis meses a dois anos. Por fim, ainda com o intento de criminalizar a pratica pedagógica e punir os professores, o Projeto de lei nº 1411, de 2015 do deputado Rogério Marinho “Tipifica o crime de assédio ideológico e dá outras providências.” segundo o PL “Entende-se como Assédio Ideológico toda prática que condicione o aluno a adotar determinado posicionamento político, partidário, ideológico ou qualquer tipo de constrangimento causado por outrem ao

1024

aluno por adotar posicionamento diverso do seu, independente de quem seja o agente.” O PL prevê pena de detenção, de três meses a um ano e multa. Se o agente for professor, coordenador, educador, orientador educacional, psicólogo escolar, ou praticar o crime no âmbito de estabelecimento de ensino, público ou privado, a pena será aumentada em 1/3 e “se da prática criminosa resultar reprovação, diminuição de nota, abandono do curso ou qualquer resultado que afete negativamente a vida acadêmica da vítima, a pena será aumentada em 1/2”. Na justificativa do projeto novamente cita-se o mesmo artigo constitucional e o mesmo artigo da Convenção Interamericana de Direitos Humanos citado nos outros projetos. Segundo o texto que fala em totalitarismo, hegemonia e cita o nome de Gramsci o PT estaria usando:

Esse expediente estratégico foi utilizado para a conquista e manutenção de poder dos fascistas, nazistas, comunistas e ditadores por várias nações. Hegemonia política significa que a voz do partido deve ser ecoada em todos corações. Por isso, a propaganda desonesta, o marketing mentiroso, a idolatria por indivíduos, a falsificação da realidade e a tentativa de reescrever a História, forjando o passado.

De autoria de vários deputados dentre eles os já citados Marco Feliciano, Diego Garcia, Jair Bolsonaro e de missionário José Olimpio, Pastor Eurico, Pastor Franklin entre outros, o Projeto de Decreto Legislativo nº 214, de 2015 “susta a Portaria nº 916, de 9 de setembro de 2015, do Ministério da Educação, que “Institui Comitê de Gênero, de caráter consultivo, no âmbito do ministério da educação” e trazendo como texto de justificativa o mesmo já apresentado no PL 1.859. Os deputados estão de todas as formas buscando passar suas propostas coercitivas à pratica docente tendo o já citado deputado Erivelton Santana através do requerimento nº 9 de 2014 solicitado “a realização de audiência publica para tratar da doutrinação ideológica em sala de aula, no âmbito do estatuto da família, PL 6583/2013”. Já passa da hora dos professores se mobilizarem.

1

Professora da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro (SME-RJ), mestranda do Programa de Pós-

graduação em Ensino História (PPGEH) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Orientadora: Profa. Dra. Alessandra Carvalho. Email: [email protected].

1025

O Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPÊS): A construção de um Projeto Pedagógico e Saneador no Pós-1964 Fernanda T. Moreira* (Doutoranda- CPDOC/FGV) Resumo: No presente artigo busco analisar a construção de um ideário repressivo, calcado num projeto pedagógico e saneador, pelo Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais, não só no momento do golpe de 1964, mas também durante período ditatorial (1961-1971). Importante destacar que este trabalho abordará os apontamentos iniciais da pesquisa em questão. Palavras-chave: IPÊS, ideário repressivo, ditadura

Abstract: This paper analyzes the construction of a repressive ideology, based on a pedagogical project and exonerating, by IPÊS, not only at the time of the 1964 coup, but also during the dictatorial period (1961-1971). This paper will demonstrate the initial analysis of this research. Keywords: IPÊS, repressive ideology, dictatorship

Em 1968, a Carta Mensal do Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais de São Paulo, destacava: Não será muito pedir aos nossos empresários, que estiveram conosco nos dias sombrios de 1962 a 1964, se convençam do perigo que todos estamos vivendo. A subversão está em marcha. Os comunistas estão ativos, infiltrados no govêrno, na imprensa, no rádio e na televisão; nas emprêsas, nos bancos, nas usinas, podem paralisar a nação, provocando a sua ruína econômica e, por via de consequência, a mudança do regime. A omissão EMPRESARIAL pode ser-nos fatal1.

O trecho citado sugere pistas interessantes sobre a atuação do Instituto de Pesquisa e Estudos sociais durante a ditadura civil-militar brasileira. Organizado em 1961, no eixo RioSão Paulo2, logo após a renúncia do presidente Jânio Quadros, o IPÊS3 era apresentado ao público como um grupo formado por membros das chamadas elites empresariais com intuito de estudar sob um viés tecno-empresário libreral (com forte cunho econômico) as reformas pretendidas pelo presidente João Goulart. De um modo geral, pode-se dizer que funcionava como uma espécie de “guarda-chuvas” das direitas. Num plano ostensivo, militares (a maioria ligada a Escola Superior de Guerra), políticos conservadores (de um modo geral), profissionais liberais, professores universitários, empresários estrangeiros e também religiosos, confluíram no Instituto. No entanto, “a organização apartidária com objetivo essencialmente educacional e cívico”4, como era apresentada, possuía uma face encoberta e desenvolveu um criterioso

1026

trabalho de investigação e desestabilização do governo de Goulart. Uma multifacetada campanha militar, política e ideológica. Interessa centrar nas duas últimas características. De um modo geral, a história do Instituto é associada aos “planos de ação” imediatos de seus integrantes e ao desenvolvimento de um projeto econômico, ou seja, a movimentação para a derrubada de João Goulart e a construção de um consenso nos momentos iniciais do período ditatorial. Contudo, o Instituto continuou ativo até 1971, sendo oficialmente desativado em 1972. Como sugere a passagem que abre este trabalho, ativos e participantes da vida política do país. A entidade que, inicialmente, se apresentava com objetivos morais e cívicos, não só desenvolvera suas atividades no contexto do golpe de 1964, mas, seguia uma forte campanha ideológica ao longo dos primeiros governos do período ditatorial. Como destacou René Dreifuss, unidos num bloco de poder econômico multinacional e associado, anticomunista e movidos pela ambição de readequar o Estado5. Um movimento de classe organizado por frações e setores dominantes da sociedade que compartilhavam experiências e interesses em comum, forjados em contraposição a indivíduos e grupos com objetivos e vivências opostas6. De forma geral, ao analisar o IPÊS objetivo compreender a intervenção do Instituto na organização do movimento golpista de 1964 e também no desenrolar do período ditatorial, especialmente, a constituição de ações baseadas num discurso pedagógico e saneador, não só na fase de articulação do golpe 1964, mas no que tange a construção de um ideário repressivo, no âmbito do Estado, durante a ditadura civil-militar brasileira. Saneador no sentido de que defendia a eliminação do “perigo vermelho” (a defesa da ordem) e pedagógico no que se refere a um discurso permeado de valores morais - em defesa da família, da nação e dos valores cristãos. Mas, pedagógico também no que concerne a doutrinação e a tentativa de “manipulação da opinião pública”. Ao lado de um projeto econômico andava um projeto moralizante e saneador, características presentes desde a fundação do Instituto até o fim das atividades ipêsianas em 1971. Desse modo, no presente artigo busco apresentar os caminhos percorridos na investigação até o presente momento. Ou seja, os questionamentos iniciais que levaram a construção da pesquisa, as bases teóricas, bem como as primeiras impressões oriundas de um trabalho inicial com as fontes e com a bibliografia pertinente ao tema. Cumpre ressaltar que se trata de um trabalho em fase inicial. Entre lembranças e silêncios Em novembro de 1964, o artigo especial “The Country That Saved Itself” escrito pelo jornalista Clarence Hall foi publicado na revista Seleções do Reader’s Digest7. A conhecida 1027

reportagem era, basicamente, uma narrativa sobre como o “povo” teria impedido um “golpe comunista no Brasil”, mais especificamente, como constituiu “um claro plano de ação para cidadãos preocupados em nações ameaçadas pelo comunismo”8. Entre o “claro plano de ação” destacavam a participação de “líderes da classe média brasileira”, representados pelas mulheres reunidas em organizações como a Campanha da Mulher pela Democracia (CAMDE) e, consequentemente, a realização das “Marchas da Família com Deus pela Liberdade”, na atuação dos militares, religiosos, da imprensa, dos grupos que reuniam industriais como o Conselho Superior das Classes Produtoras (CONCLAP), do Grupo de Ação Política (GAP) e também do Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPÊS). Ressaltando um forte viés moral e anticomunista presente nos discursos e ações das organizações citadas, Hall destacava a criação do IPÊS como um centro articulador dessas ações e que tinha por objetivo principal descortinar “exatamente o que ocorria por trás do cenário político e descobrir o que poderia ser feito”. Interessante notar que em 31 de março de 1971, no bojo do processo de abertura política e das comemorações – no sentido de rememorar – do aniversário do Golpe de 1964 ou, como consta no panfleto, da “Revolução”, o artigo “a Nação que se salvou a si mesma” mais uma vez relembrava a participação das lideranças civis no movimento que derrubou o presidente João Goulart. Num período em que a bandeira por Anistia e de contestação à ditadura ganhava força, como ressaltou a historiadora Janaína Martins Cordeiro, tratava-se uma estratégia para lembrar que os militares não foram os únicos personagens a sustentar e construir a tomada de poder em 1964. Era tempo de destacar as bases sociais que, de certa forma, legitimaram duas décadas de governos autoritários: Os 90 milhões em ação. Para além, o artigo não só sublinhava um apoio civil, mas o protagonismo: “Conquanto sua fase culminante fosse levada a cabo por uma ação militar, a liderança atrás dos bastidores foi fornecida e continua a ser compartilhada por civis”9. Durante muito tempo, estes acontecimentos foram analisados ressaltando a participação dos militares. Ou seja, interpretações nas quais o golpe e a ditadura seriam resultados apenas das ações orquestradas por membros das Forças Armadas. O olhar estava centrado no aparato do Estado stricto sensu, na coerção e na ideia de manipulação. Explicação ancorada em tipologias que colocavam o poder estatal e a sociedade civil em espaços opostos. No entanto, ao investigarem a construção social dos regimes autoritários no Brasil e na América Latina, alguns estudiosos passaram a considerar um quadro mais amplo de agentes envolvidos nesses processos. O golpe e a ditadura civil-militar brasileira. Mais do que o nome, o debate e as possibilidades. Considero que através dos questionamentos e discussões sobre a participação de determinados setores e o apoio popular ao regime foi possível retomar certos temas e

1028

questões ainda pouco trabalhadas pela historiografia10. Entre estas, o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais. Nesse sentido, analisando tais processos, René Dreifuss ressaltava o protagonismo da fração empresarial enquanto elemento civil. Mais do que apoiar, os empresários e tecnoempresários estiveram no centro da organização do movimento de 1964, bem como ocuparam cargos públicos de alto escalão responsáveis pela formulação de medidas políticas em certos momentos chaves do regime. Nas palavras do autor: Na realidade, foi o bloco de poder liderado pelo IPES que reorganizou o Estado e, sob controle da elite orgânica, tentou consolidar sua posição. Com as classes dominantes ‘tornadas Estado’ e por este encobertas e dissimuladas (aufgehoben), o aparelho estatal passou a ser objeto de pesquisa em detrimento de industrias e banqueiros supostamente ‘ausentes de Estado’. [...] Com a supervalorização em geral do papel dirigente das Forças Armadas e com a função estratégica da ‘tecnoburocracia’, em detrimento da presença e das atividades dos empresários na política nacional, diversos problemas e questões, como a noção de uma classe ou de um bloco de poder governante foram deixadas de lado11.

Não é objetivo desse trabalho, afirmar um protagonismo civil na construção do golpe e durante o regime de exceção. Porém, os apontamentos trazidos à baila por Dreifuss são fundamentais para uma análise que leva em consideração a complexidade do período em questão. Nesse sentido, parte-se aqui da concepção de que o golpe de 1964 e a ditadura foram organizados e, principalmente, legitimados por elementos civis e militares, diga-se, com apoio de significativas parcelas da sociedade – mesmo com a preponderância das casernas. Mas, não só. Interessa pensar na construção dessa legitimidade em torno dos governos que se estabelecerem no período ditatorial. Como uma ditadura pode-se manter no poder por mais de uma década? Pergunta que moveu uma série de trabalhos sobre o período em questão e que é basilar para compreender a atuação do Instituto de Pesquisa e Estudos sociais na construção de um ideário repressivo. Não se pode negar que a repressão stricto sensu, marca mais sombria dos anos de ditadura, foi fundamental para a manutenção “da ordem” e dos projetos pretendidos pelos governos do período em questão, no entanto, ao lado das prisões, mortes e desaparecimentos, se desenvolvia uma ampla campanha, por vezes também repressiva, de valorização dos projetos e feitos da “Revolução”. Como já demonstrava Carlos Fico, por exemplo, ao analisar a propaganda durante o regime ditatorial12. Nesse sentido, é interessante notar que, em 1966, o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais era declarado como um órgão de utilidade pública. Ademais, passou a contar não só com o financiamento de empresas estrangeiras, mas também com apoio de órgãos governamentais tanto na esfera Federal como na Estatal 13. Período este em que o Instituto passou a desenvolver cursos, palestras e publicações para empresários, para membros do governo e também, numa escala menor, para o público em geral.

1029

A construção de um ideário repressivo: O discurso pedagógico e saneador

De acordo com Carlos Fico, a repressão política durante o período ditatorial não pode ser entendida “somente” sob o viés da violência física. Uma violência simbólica foi instituída e praticada tendo como base não só um discurso saneador da utopia autoritária14. Mas, levando em consideração uma dimensão pedagógica praticada livremente, legalizada e, muitas vezes, balizada no que seria “a moral e os bons costumes”15. Ademais, a repressão - entendida em sua complexidade - abarca uma gama variada de atos e atitudes que marcaram o regime civilmilitar. Cassações, suspeição e acusação sem fontes, vigilância, demissões, ameaças, entre outros16. E esse é um ponto de partida interessante para pensar na trajetória e determinadas ações do Instituto. Entre as diversas atividades do IPÊS, vale enfatizar, estava a montagem de um banco de dados com informações de 400 mil pessoas, levantadas pelo Grupo de Levantamento da Conjuntura (GLC)17. Acervo que, em 1964, o general Golbery do Couto e Silva (Ipêsiano) levaria para o recém-criado Sistema Nacional de Informações (SNI)18. Além, da construção de um forte discurso anticomunista visando uma dita “manipulação da opinião pública”. Num texto intitulado “A Ação Comunista na Imprensa como Peça-base para à Contrarevolução programada para 1974”, havia a seguinte citação: [...] os comunistas estão absolutamente tranquilos no cumprimento exato das etapas previstas e, por isso mesmo, doravante se tornarão cada vez mais audaciosos, buscando empolgar a opinião pública, talvez para antecipar a data prefixada19.

Mesmo no período pós-1964 a ideia de perigo comunista e de uma “contrarrevolução” ainda estava fortemente marcada no discurso articulado no âmbito do Instituto. Desde o período anterior ao golpe, o Instituto já desenvolvia um amplo e profundo trabalho de propaganda ideológica. Tal atividade fazia parte da organização do IPÊS que, desde o início, estava dividido em grupos - com objetivos específicos - interligados, voltados para o estudo e ação. Grupos de Assessoria Parlamentar (GAP), de Publicações e editoriais (GPE), de Levantamento da Conjuntura (GLC), de Opinião Pública (GOP) e de Estudos e Doutrina (GED). Como aponta René Dreiffus e também Maria Inês Salgado de Souza, estrutura que foi mantida em funcionamento até o fim das atividades ipêsianas 20, sofrendo algumas alterações na medida em que surgiam novas necessidades. Nesse sentido, vale destacar que os membros articuladores do IPÊS desenvolveram, ainda antes do golpe de 1964, estratégias de curto e longo prazo. As últimas definidas como “desenvolvimento do bem-estar e desenvolvimento do país em regime democrático”21. É certo

1030

que no período que antecedeu ao golpe não havia uma compreensão do que seria de fato estabelecido nos próximos anos. Ou seja, quais e como seriam os governos. Contudo, tais metas sugerem que os membros do Instituto tinham por objetivo também participar e construir um governo alinhado aos seus interesses. Interessante notar, como já destacaram Maria Inêz Salgado e René Dreifuss, que durante a ditadura uma parte dos esforços do IPÊS estava centrado no desenvolvimento de políticas no âmbito ministerial, as políticas educacionais são um exemplo. Se os integrantes do Instituto participavam ativamente de reuniões com ministros e militares influentes nos governos – muitas vezes, especialmente durante o governo de Castello Branco, ocupando cargos e sugerindo nomes −, também mantinham contato com faculdades e Universidades para realização de cursos e seminários como, por exemplo, o fórum “A Educação que nos convêm”, reconhecido e conveniado ao MEC (Ministério da Educação e da Cultura) e USAID (United States Agency for International Development), bem como com empresas estrangeiras (como as fundações Ford e Rockefeller)22. Mesmo que na presente investigação não objetive analisar a política pedagógica da ditadura, tais informações abrem alguns caminhos para pensar na presença e na intervenção do IPÊS em determinadas esferas estatais. Ao falar num discurso pedagógico e saneador cumpre salientar a relação entre a política educacional promovida pelo MEC e as propostas educacionais do IPÊS. Este último alinhado aos interesses “de diferentes setores das elites” que propunham “um conjunto de medidas para a transformação da educação brasileira num instrumento da hegemonia dos setores dominantes da sociedade”23, mesmo considerando toda a complexidade de relações e comportamentos estabelecidos no âmbito das Universidades (por exemplo). Como aponta a “Carta Mensal” produzida pelo IPÊS-SP em 1968: O governo revolucionário pouco fêz no setor educacional. À parte a Lei Suplicy [que proibiu as organizações políticas estudantis e colocou a União Nacional dos Estudantes e outras entidades na ilegalidade], que produziu seus efeitos, mas que deve ser tida como uma parcela, apenas, da questão escolar, não tocou nas estruturas [...] e os governos com ministros e secretários da educação escolhidos ou amistosos, não toma conhecimento das implicações do problema, de sua gravidade e da carga de explosivos que êle conduz em seu bojo. O resultado é que a bomba veio estourar nas mãos do presidente Costa e Silva. O governo agora vai ter que se mexer para tender as reivindicações [...]24

Pode-se dizer, por um lado, o expurgo e, por outro, a construção de práticas que seguissem a linha ideológica do regime. O documento acima citado foi escrito como uma resposta à crescente força do movimento estudantil. Num período que precedeu o Ato Institucional nº 5.

1031

Retomando a discussão inicial do tópico anterior, no que tange ao caráter civil/militar do golpe e da ditadura, é interessante conflitar diferentes abordagens no sentido de compreender as complexidades e os limites do Estado ditatorial. Até que ponto civis participaram? Foram apoiadores somente? Colaboracionistas? Até que ponto a estrutura era apenas militar? Por que não pensar na participação ativa de civis em determinadas esferas do Estado ditatorial? Por que não pensar que, para além de setores das Forças Armadas, outros grupos contribuíram para construção de um ideário anticomunista? Repressivo? No entanto, mais do que separar em nomes, interessa olhar para o evento iniciado pelo golpe de 1964, buscando compreender ao máximo a sua heterogeneidade.

O IPÊS, o golpe de 1964 e o Estado ditatorial Uma das bases teóricas para o desenvolvimento da presente pesquisa é a “teoria ampliada do Estado” – como intitularam os comentadores de Gramsci. A relação entre sociedade política e civil. Dessa forma, cumpre destacar que no âmbito da sociedade política estariam os aparelhos estatais convencionais como, por exemplo, o executivo e os órgãos de coerção. Já a sociedade civil seria composta pelos aparelhos privados de hegemonia. Segundo Gramsci, Estamos sempre no terreno da identificação de Estado e governo, identificação que é, precisamente, uma reapresentação da forma corporativo-econômica, isto é, da confusão entre sociedade civil e sociedade política, uma vez que se deve notar que na noção geral de Estado entram elementos que devem ser remetidos à noção de sociedade civil (no sentido, seria possível dizer, de que Estado = sociedade política + sociedade civil, isto é, hegemonia couraçada de coerção) [Grifo meu]25.

De acordo com Gramsci, a partir da segunda metade do século XIX, nos países ocidentais houve uma socialização maior da participação política – com a incorporação das classes populares. Portanto, não caberia mais ao Estado somente a coerção, mas também a busca pelo consenso, pela legitimação e, principalmente, a direção intelectual dos processos ocorridos na sociedade civil. Na teoria gramsciana, o Estado em sentido estrito é formado pelos mecanismos coercitivos através dos quais a classe dominante exerce o domínio legal da violência e da repressão, cujo controle passa pela burocracia executiva e pela polícia-militar, por exemplo. Já a sociedade civil é formada pelo conjunto de organizações responsáveis

pela

elaboração/difusão de visões de mundo, podendo compreender os sindicatos, escolas, Igrejas, os meios de comunicação em massa, as organizações profissionais, os partidos políticos, entre

1032

tantos. Desse modo, a busca e a disputa pelo consenso, bem como pela manutenção de uma determinada ordem social se dá no âmbito da sociedade civil, ou seja, no espaço da luta de classe e por hegemonia. Antes de voltar a atenção para a intervenção do Instituo de Pesquisa e Estudos Sociais, vale fazer uma breve e resumida acepção da noção de hegemonia. É certo que tal conceito envolve uma série de debates e significados, contudo, será empregado neste trabalho em acordo com as reflexões de Antonio Gramsci. Nas palavras do próprio: [...] a supremacia de um grupo se manifesta de dois modos, como “domínio” e como “direção intelectual e moral”. Um grupo social domina os grupos adversários que visa a “liquidar” ou a submeter inclusive com a força armada, e dirige os grupos afins e aliados. Um grupo social pode e, aliás, deve ser dirigente já antes de conquistar o poder governamental (esta é uma das condições fundamentais inclusive para a própria conquista do poder); depois, quando exerce o poder e mesmo se o mantém fortemente nas mãos, torna-se dominante, mas deve continuar a ser também [dirigente]26.

E é essa perspectiva que abre espaço para compreensão do IPÊS. Primeiro, como um aparelho privado de hegemonia, isto é, voltado para organização de visões de mundo e de consciência social. Segundo, pensando no bloco de poder multinacional e associado composto por empresários, tecno-empresários e militares como os dirigentes – considerando conflitos internos. Como é possível notar num documento publicado pelo Instituto na fase posterior ao golpe de 1964: Atemorizado pelo pensamento do que Goulart pudesse fazer, agora que dispunha do poder presidencial, o IPÊS acelerou seus esforços para influenciar a opinião. Mas era uma tarefa árdua [...]. A organização produziu uma corrente de folhetos e livretes que dava a quem quer deles fizesse uso. [...] ajudou a financiar um programa de treinamento em liderança democrática, para homens de negócio [...]. Encorajou associações femininas e organizações estudantis [...]27.

Importante notar que, ao longo dos anos 1950, o empresariado ainda discutia suas aspirações políticas no interior das associações de classe. Segundo Heloísa Starling, ao analisar o estado de Minas Gerais, não havia nenhuma liderança política reconhecida no interior do setor empresarial capaz de unificar sob o seu comando frações da classe dominante 28. De certa forma, pode-se dizer que ainda estavam num processo de construção da consciência enquanto classe. E, antes da tomada do poder, a formulação do IPÊS foi um elemento fundamental para a tomada de consciência29. Desse modo, o IPÊS surge como um elemento fundamental nesse processo de tomada de consciência.

Apontamentos finais

Essa perspectiva é fundamental para pensar na participação do IPÊS não só no período de articulação do golpe, mas também no desenrolar do regime ditatorial. Ao compreender o 1033

Estado numa perspectiva ampliada, para a pesquisa é importante fazer duas observações. Por um lado, no âmbito da sociedade política a modernização conservadora (ou autoritária) foi o projeto hegemônico que balizou diversas políticas em confluência com um aparato repressivo justificado pela Doutrina de Segurança Nacional e até mesmo por uma cultura política nacional conservadora. Por outro, no escopo da sociedade civil não bastava somente a repressão stricto sensu, mesmo com o espaço de contra-hegemonia extremamente reduzido e vigiado, foi preciso um trabalho vigilante e de propaganda ideológica no sentido de afirmar determinada ordem e valores. Ou seja, como alguns estudiosos já demonstraram, a relação entre anos de chumbo e anos de ouro que por vezes convergiam numa série de comportamentos sociais. A construção de um ideário repressivo passa diretamente por essa legitimação de um projeto hegemônico de sociedade. A violência simbólica passava não só pelo discurso saneador da utopia autoritária, mas por um constante trabalho de convencimento.

*

Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História Política e Bens Culturais (CPDOC/FGV)/ Bolsista CAPES/PROSUP, sob a orientação do Prof. Dr. Marco Aurélio Vannucchi Leme de Mattos. E -mail: [email protected] 1 Fundo Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais. Arquivo Nacional. Código de referência BR AN,RIO QL.0.CDI.11. 2 Expandindo-se para outras regiões do Brasil. 3 A abreviação de Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais está escrita com acento, pois, esta era a forma como seus integrantes intitulavam e chamavam o Instituto. Ipês, com acento, de acordo com Denise Assis, foi assim abreviado para fazer referência à árvore Ipê, símbolo da flora brasileira. Ou seja, uma tentativa de exaltar o nacionalismo e as raízes da nacionalidade. Mesmo se tratando de um grupo com fortes ligações com o exterior, especialmente, com os americanos. Cf. ASSIS, Denise. Propaganda e Cinema a serviço do Golpe- 1962/1964. Rio de Janeiro: Mauad/ FAPERJ, 2001. 4 FUNDO INSTITUTO DE PESQUISA E ESTUDOS SOCIAIS. Arquivo Nacional (RJ).(BR AN,RIO QL.0.CDI.1). Folheto O que é IPES?. Rio de Janeiro/ São Paulo. [s/d]. 5 DREIFUSS, René Armand. 1964: A Conquista do Estado. Ação política, poder e golpe de classe. Petrópolis: Vozes, 1981. 6 A noção de classe é aqui empregada em acordo com: THOMPSON, Edward P. A Formação da Classe Operária na Inglaterra. Volume I. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. 7 HALL, Clarence W. “The Country That Saved Itself”. In: Reader’s Digest, EUA, novembro de 1964, p. 133158. (reportagem especial). A mesma reportagem foi traduzida e publicada pela Biblioteca do Exército, em 31 de março de 1978 (décimo quarto aniversário do golpe de 1964), sob o título de a “Nação que se Salvou a Si mesma”. No bojo da abertura política e dos debates pela Anistia, a tradução trazia um encarte que lembrava e comemorava as “conquistas sócio-econômicas da Revolução”. Ver em: CORDEIRO, Janaína Martins. “A Nação que Se Salvou a Si mesma”: Entre memória e história, a Campanha da Mulher pela Democracia (1962-1964). Dissertação de mestrado - Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2008. Para a edição traduzida pela Biblioteca do Exército: A Nação que se Salvou a si mesma. Editora da Biblioteca do Exército, 1978. 8 A Nação que se Salvou a si mesma. Editora da Biblioteca do Exército, 1978, p. 95. 9 CODEIRO, Janaína Martins. Op. Cit./ A Nação que se Salvou a si mesma. Editora da Biblioteca do Exército, 1978, p. 7. 10 A importância de compreender as relações estabelecidas entre a sociedade e a ditadura, levando em consideração ambiguidades, o apoio, o colaboracionismo, ou seja, a complexidade não só do momento do golpe de 1964, mas da própria ditadura. 11 DREIFUSS, René Armand. Op. Cit, p. 487. 12 Ver em: FICO, Carlos. Reiventando o otimismo. Ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1997.

1034

13

Cf. SOUZA, Maria Inêz Salgado de. Os Empresários e a Educação. O IPES e a política educacional após 1964. Petrópolis: Editora Vozes, 1981, p. 25. 14 Utopia autoritária entendida como a crença de que seria possível eliminar quaisquer formas de dissenso (comunismo, "subversão", "corrupção") tendo em vista a inserção do Brasil no campo da "democracia ocidental e cristã". Cf. D’ARAUJO, Maria Celina; SOARES, Glaucio Ary Dillon; CASTRO, Celso. Visões do golpe: A memória militar sobre 1964. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p. 09/ FICO, Carlos. Além do Golpe: Versões e Controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Rio de Janeiro: Record, 2004. 15 A referência a essa questão pode ser encontrada no artigo “A Pluralidade da Censura e das Propagandas da Ditadura”. No entanto, neste artigo, a dupla dimensão da repressão surge associada apenas a questão da censura. No entanto, por vezes, o autor retrata fala não só em censura moral, mas em repressão moral. Ver em: FICO, Carlos. “A pluralidade das Censuras e das Propagandas da Ditadura”. IN: REIS, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá. O Golpe e a Ditadura Militar 40 anos depois (1964-2004). São Paulo: Edusc, 2005, p. 265-275./ O Aparato Repressivo do Regime Militar. Palestra de Carlos Fico e Heloísa Starlig. “Seminário 1964, 50 anos depois”, São Paulo, Instituto Moreira Salles, 11 de março de 2014. (Mediação: Miriam Dohlnikoff). 16 Ver em: JOFILLY, Mariana. “O Aparato Repressivo: Da arquitetura ao desmantelamento”. In: REIS, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá. A Ditadura que Mudou o Brasil. 50 anos do golpe de 1964. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 2014, p. 97-104. 17 Um dos grupos de ação do Instituto. Na lista estavam desde empresários que não apoiaram o golpe até pessoas consideradas “suspeitas de subversão” por diferentes motivos. Cf. DREIFFUS, René Armand. Op. Cit. 18 Não se trata de fazer uma leitura do SNI como um órgão de repressão, executório. Porém, é importante ressaltar que enquanto órgão de informações, o SNI subsidiou as autoridades em processos decisórios. Mantendo, assim, a vida social sob ampla suspeição e atenção. Cf. ORTIZ, Renato. “Revisitando os Tempos Militares”. In: REIS, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Op. Cit. / FICO, Carlos. Como Eles Agiam. O subterrâneo da ditadura militar: espionagem e polícia política. Rio de Janeiro: Record, 2001/ D’ARAUJO, Maria Celina; SOARES, Glaucio Ary Dillon; CASTRO, Celso. Anos de Chumbo. A memória militar sobre a repressão. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. Sobre a relação do IPES com o SNI: DREIFFUS, René Armand. Op. Cit. 19 FUNDO INSTITUTO DE PESQUISA E ESTUDOS SOCIAIS. Arquivo Nacional (RJ).(BR AN,RIO QL.0. CDI.37). A Ação Comunista na Imprensa como Peça-base para à Contra-revolução programada para 1974. [s/d]. Estima-se, pelo texto, 1971. 20 Dreiffus dedica um capítulo de seu livro para as atividades do IPÊS no período pós-1964 e Souza centrou suas análises nas políticas educacionais planejadas pelo instituto no período pós-1964. Cf. DREIFFUS, René Armand. “O Complexo IPES/IBAD no Estado - A Ocupação dos postos estratégicos pela elite orgânica”. In: DREIFFUS, René Armand.Op. Cit., p. 421-479/ SOUZA, Maria Inês Salgado de. Os Empresários e a Educação: O IPES e a política educacional após 1964. Petrópolis: Vozes, 1981. 21 “Apreciações de Golbery no CSN, no IPÊS e no SNI- Parte 2- IPÊS”. Documentos reunidos por Elio Gaspari. Disponíveis em: http://arquivosdaditadura.com.br/documento/galeria/apreciacoes-golbery-csn-ipes-sni-parte2#pagina-20. Acessado em: 28/10/2014, às 23:39. 22 Sobre as Universidades ver em: MOTTA, Rodrigo Patto Sá. As Universidades e o Regime Militar. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2014. 23 SOUZA, Maria Inês Salgado de. Op. Cit., p.109. 24 Fundo Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais. Arquivo Nacional. Código de referência BR AN,RIO QL.0.CDI.11. 25 GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Maquiavel. Notas sobre o Estado e a Política. Volume 3, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 244. 26 GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Volume 5, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 62-63. 27 FUNDO INSTITUTO DE PESQUISA E ESTUDOS SOCIAIS. Arquivo Nacional (RJ). (BR AN, RIO.QL.O.CDI.22). Folheto Quando os Homens de Empresa se Tornaram Revolucionários. São Paulo, 1964. Traduzido de: SIEKMAN, Philip. “When the business men truned revolutionary”. In: Fortune, setembro de 1964. 28 STARLING, Heloísa Maria Murgel. Os Senhores das Gerais. Os novos inconfidentes e o golpe de 1964. Petrópolis: Vozes, 1986, p. 41. 29 Consciência de classe aqui definida de acordo com Thompson, ou seja, construída no “fazer-se classe”: “A classe acontece quando alguns homens, como resultados de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus. A experiência de classe é determinada, em grande medida, pelas relações de produção em que os homens nasceram – ou entraram involuntariamente. A consciência de classe é a forma como essas experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas em tradições, sistema de valores, idéias e formas institucionais. Se a experiência de classe aparece como determinada, o mesmo não ocorre com a consciência de classe”. Cf. THOMPSON, Edward P. Op. Cit., p. 10.

1035

O PADRE E O JUIZ: A EDUCAÇÃO PARA A LIBERDADE DE MENORES CORRIGÍVEIS NO BRASIL E EM PORTUGAL (1911-1927). Fernando Rodrigo dos Santos Silva1 (Doutorando – PUC-Rio) Prof.ª Orientadora: Ana Waleska Mendonça (Doutora – PUC-Rio) Prof.ª Co-orientadora: Margarida L. Felgueiras (Doutora – FPCE/Univ. Porto)

Resumo: Este artigo analisa duas legislações elaboradas para menores em Portugal e no Brasil no início do século XX. Elas organizaram o serviço de proteção e assistência aos menores ao propor o internamento como um modelo educativo adequado para crianças indisciplinadas. Esta medida desejava reformar o modelo de sistema correcional para incluir os menores na própria transformação educacional, estimulando o "desejo de liberdade". A análise é referenciada pela prática do padre António Oliveira e do juiz Mello Mattos. Abstract: This article analyzes two legislations drawn up for minors in Portugal and Brazil early in the twentieth century. They organized the protection service and assistance to minors to propose the internment as an educative model suitable for unruly children. This measure longed to reform the correctional old system model to include minors in own educational transformation by stimulating the "desire for freedom". The analysis is referenced by the practice of the priest António Oliveira and judge Mello Mattos. Palavra-chave: Leis; Menores; Brasil e Portugal. Keyword: Laws; Minors; Brazil and Portugal. Este artigo é parte de uma tese que será defendida no departamento de Educação do Programa de Pós-Graduação em educação da PUC-Rio e tem por objeto o estudo da circulação de ideias e modelos correcionais para menores no espaço luso-brasileiro na passagem do século XIX para o XX. Entendo que a promulgação da Leis de Proteção à Infância, em Portugal (1911), e do Código de Menores, no Brasil (1927), consolida algumas ideias e modelos correcionais para menores em ambos os países. Uma destas ideias está na finalidade

1

Este trabalho contou com uma bolsa do PDSE/CAPES - 2015. Contato: fergo_fergoyahoo.com.br

1036

atribuída ao trabalho de regeneração da infância em perigo moral, abandonada ou criminosa por meio do seu confinamento em modernos estabelecimentos correcionais. Neste artigo, tratarei de modo mais atento sobre a proposta de trabalho pedagógico a realizar-se com os chamados menores corrigíveis. A divisão entre corrigíveis e incorrigíveis é uma construção jurídica, dos oitocentos, balizada pelo surgimento da Criminologia e a possibilidade de se recuperar ou não o criminoso. Juristas, pedagogos, médicos e filantropos se interrogavam: é possível recuperar o criminoso? Qual a finalidade da pena? Adepto da Escola Positivista e das penas eliminatórias2, o católico Balthazar da Silveira3 (1922) defendeu no Congresso Jurídico Brasileiro a tese de que a pena poderia produzir resultados, como intimidar, afastando as pessoas do crime, e até corrigir, mas estes frutos seriam efeitos e não o fim da pena. Para ele, a finalidade desta era colocar o criminoso anormal, nos seus vários graus, na impossibilidade de voltar a fazer o mal. Este debate sobre os limites e possibilidade da pena rompeu o século XIX e impactou de modo sensível a formulação das legislações para menores em todo mundo, não sendo diferente na comunidade luso-brasileira. Este impacto traduziu-se pela adoção da dupla imagem do criminoso, como corrigível e incorrigível, e na finalidade regenerativa da pena. As Casas de Correção e a “ausência” de um trabalho pedagógico. A perspectiva correcional da pena tem uma história, ela surge em fins dos setecentos com o aparecimento da pena de prisão 4, uma invenção do movimento filantrópico responsável pela substituição das penas de suplício, espetáculo público de execução do condenado, pela pena privada prisional. Jeremy Bentham5 é o autor do modelo panóptico cuja proposta era o controle total da vida do prisioneiro dentro do sistema carcerário.

2

Por penas eliminatórias são entendidas aquelas cuja finalidade é eliminar definitivamente o criminoso da sociedade, quer seja pela pena de morte, ou por penas como prisão perpétua, com ou sem trabalho forçado, pena de galés ou banimento. 3 Jurista Brasileiro, 1888-1966. 4 O surgimento da pena de prisão é um processo distinto da prisão enquanto estabelecimento. Com a pena de prisão, o estabelecimento prisional deixa de ser um lugar de passagem, detenção, para se tornar o lugar do cumprimento da pena, com a perspectiva de vigiar e punir. No fim do século XVIII, uma terceira função é introduzida nesta pena, corrigir. Perrot (2006) define este momento como o do nascimento da prisão moderna. 5 Penitenciarista Inglês, 1748-1832.

1037

As Casas de Correção apareceram no mundo luso-brasileiro, no século XIX, como resultado da participação dos dois Estados no debate penitenciário. A Casa de Detenção e Correção da Corte, no Rio de Janeiro, teve o seu projeto aprovado na década de 1830, porém a sua inauguração aconteceu apenas em 1850. A Casa de Detenção e Correção de Lisboa foi inaugurada em 1872. Ambas as experiências seguiam o modelo celular de trabalho forçado, divididas em duas seções: uma criminal e outra correcional. A primeira destinada a menores, mendigos e vadios e a segunda a todos os presos condenados que não fizessem parte da primeira seção. Nas Casas de Correção, o trabalho era realizado no sistema de oficinas, dirigidas por um mestre de ofício, que também tinha como incumbência ensinar um ofício aos aprendizes que não soubessem nenhum mister. Fundada como lugar de trabalho forçado, o ensino de primeiras letras foi introduzido nos sistemas penitenciários como um resultado do ensino religioso, porém, não sem grande resistência. O ensino elementar acabou por se configurar como mais uma atribuição dos capelães. A grande quantidade de reincidência entre os presos menores e adultos que passavam pelo sistema penitenciário levou vários homens de letras, no último quartel dos oitocentos a questionarem a eficácia da pena correcional e buscarem alternativas ao tradicional modelo correcional. A reincidência foi interpretada pelos renovadores como o atestado do vazio pedagógico das Casas de Correção. Fundada na certeza de que a pena correcional tradicional punia severamente, mas não corrigia os delinquentes, emergiu um movimento que se instituiu como renovador das práticas, ideias e modelos correcionais.

Os Tribunais de Menores com finalidade pedagógica. As cortes específicas para crianças apareceram no século XIX, nos Estados Unidos, a Childen’s Court. Rapidamente se espalharam por vários países europeus e americanos. Sua finalidade era retirar os menores dos tribunais ordinários, compreendidos como excessivamente punitivos, para lhes dar um tratamento de equidade 6. A difusão mundial do modelo dos tribunais de menores levou à adoção destes tribunais sendo alguns mais repressivos e outro mais tutelares. O tribunal português é uma referência deste

6

Aplicação ideal da norma ao caso concreto; justiça aplicada ao caso particular; disposição de reconhecer igualmente o direito de cada um; conjunto de princípios imutáveis de justiça que induzem o juiz a um critério de moderação e de igualdade, ainda que em detrimento do direito objetivo; sentimento de justiça avesso a um critério de julgamento ou tratamento rigoroso e estritamente legal; igualdade, retidão, equanimidade. (PEQUENO DICIONÁRIO JURÍDICO, 2012, p. 145).

1038

segundo modelo. Para Santarcângelo, os primeiros tribunais tiveram um caráter mais jurídicos, mas depois assumiram uma perspectiva mais protetora (1966, p. 106). A Tutoria da infância foi definida pelos redatores da legislação como um “tribunal coletivo especial, essencialmente de equidade, que se destina a defender as crianças em perigo moral, desamparadas e delinquentes, sob a divisa: educação e trabalho” (LPI, 1911, p.1317). Investido de uma perspectiva humanizada, este tribunal buscava afastarse das práticas impessoais e inflexivas do tribunal comum, onde o juiz era um mero aplicador da lei. À Tutoria se atribuía outros fins, ser um tribunal de acolhimento, disseram novamente os redatores, “êste tribunal julga pela sua consciência, como um bom pai, no amor pela verdade e justiça, e sempre no interesse das crianças” (LPI, 1911, 1317). Nele, as decisões seriam tomadas sob a forma de acórdão, em que teriam voto, o juiz-presidente e dois vogais, designados como primeiro e segundo juízes adjuntos. O acórdão toma por base o inquérito7 levantado pelo Delegado de Vigilância. O modelo do tribunal coletivo rivalizou com o modelo do juiz único, adotado no Brasil e na França, por exemplo. Com base em um rigoroso processo de investigação sobre a vida pregressa do menor – sua moralidade, saúde e educação –, o juiz ou o colegiado tomaria a melhor decisão para atribuir ao menor a medida regenerativa que lhe seria aplicada, da liberdade vigiada à pena de reforma correcional. Diferentemente do tribunal comum, nos tribunais de menores, o juiz não é responsável apenas pela aplicação da sentença, com o objetivo de exercer o governo pleno sobre a reforma da criança, a ação do juiz não se encerrava após a sua passagem pela Tutoria/Refúgio8 e consequente encaminhamento do menor ao espaço de correção que lhe fora designado. Este aspecto é, aliás, a diferença fundamental em relação aos tribunais comuns que encerravam os menores nas Casas de Correção. Os juízes de direito destes tribunais eram meros aplicadores da pena correcional. O juiz de infância é um pedagogo, ele acompanha cada menor, individualmente, da sua chegada à Tutoria até o fim da sua pena regeneradora.

Tabela 1: Medidas jurídicas aplicadas aos menores. 7

É composto por depoimentos; informações e documentos obtido das autoridades policiais, administrativas ou judiciais, bem assim como dos restantes funcionários da República, conforme descrito no artigo 8º da Lei de Proteção à Infância (1911, 135). 8 O Refúgio da Tutoria é um depósito anexo ao prédio da Tutoria, no Brasil, este anexo ganhou o nome de Abrigo de Menores. Sua finalidade era ser um lugar de passagem até a decisão do destino final do menor.

1039

Ação Jurídica

Liberdade Vigiada.

Tutelar

Disciplinar

Instituição de Aplicação.

Instituição de Aplicação

Finalidade

(BRASIL)

(PORTUGAL)

Família

Família

Sem finalidade

Instituições Particulares

Instituições Particulares

jurídica

Instituições Públicas e

Instituições Públicas e

Proteger a vida e a

Particulares

Particulares

saúde.

Escola de Preservação ou

Escolas de Preservação ou

Reformar o

Reforma.

Reforma e Casa de

indivíduo.

Jurídica

Correção9. Fonte: Lei de Proteção à Infância (1911) e Código de Menores (1927), elaborado por mim.

Das ações jurídicas descritas na tabela acima, a liberdade vigiada é a única medida que não consiste em uma sanção sobre o menor, a legislação portuguesa em seu artigo 86 definiu-a como a devolução “depois de julgados a viverem em casa dos pais ou tutores, sob a vigilância dum delegado de vigilância do quadro ou voluntário, ou duma instituição federada, indicados pela tutoria” (LEIS DE PROTEÇÃO À INFANCIA, 1911, p. 1325). Definição parecida é vista na lei brasileira, que em seu artigo 92 a define como “ficar o menor em companhia e sob a responsabilidade dos paes, tutor ou guarda, ou aos cuidados de um patronato, e sob a vigilancia do juiz” (CÓDIGO DE MENORES, 1929, p.151). O aspecto divergente referente a esta medida reside no fato que a ação tutelar, no Brasil, foi centrada na ação do juiz, enquanto em Portugal, ela foi instituída como um colegiado, podendo inclusive, o serviço de vigilância ser realizado por uma instituição federada de caráter auxiliar à Tutoria. Em 1925, o Decreto nº 10.767, ao organizar e regulamentar os serviços jurisdicionais e tutelares de menores, corrigirá, nos seus termos, a imprecisão da lei de 1911, que atribuiu a Federação Nacional dos Amigos e Defensores das Crianças um caráter de serviço oficial do Estado levando à ineficácia das suas funções. Esta reforma, além de lhe alterar a nomenclatura da Federação lhe atribuirá função meramente social, de entidade tutelar. A nova Federação Nacional das Instituições de Proteção à Infância ganhará contornos mais parecidos com o modelo brasileiro. Esta reforma, aliás, foi responsável por atribuir um aspecto mais jurídico à Tutoria quando retirou dela a centralidade de órgão formulador de práticas jurídico-pedagógicas a partir de então centradas no Ministério de Justiça e Cultos. As demais medidas apresentadas na tabela consistiam em medidas de reclusão em instituições de regime de internato com função disciplinar. Ao nosso ver, este é o aspecto 9

Com o Decreto nº 10.767 de 15 de maio de 1925.

1040

que constitui o núcleo do programa correcional moderno em perspectiva disciplinar. Tentaremos esboçar o que estamos chamando de uma educação para a liberdade. A nossa hipótese é de que esta pedagogia correcional consiste em um trabalho individual em que o menor, transformado em aluno, está colocado no centro do seu processo correcional. A renovação pedagógica correcional e a “Escola Nova”. O século XIX foi um tempo profícuo em discussão sobre o sistema penitenciário, para confirmar tal assertiva basta ver a profusão de Congressos Penitenciários existentes no período. A despeito destes eventos serem lugares da exibição da “modernidade correcional” dos países que deles participavam, a vida, na totalidade das prisões, era a representação do inferno. Não faltavam metáforas para dar a dramaticidade do que representava passar pelo sistema prisional, “escola do crime”, “oficina do diabo”, etc. Em 1899, chega à Casa de Correção de Lisboa, o capelão António Oliveira10 para assumir os serviços religiosos. Em Criminalidade e Educação (1918), o padre rememora a sua primeira impressão ao chegar a esta instituição. Quando, num dia qualquer de maio de 1899, entrei a primeira vez no átrio velho do casarão das Mónicas, depois de ter tocado uma sineta que ali havia, imediatamente vi abrir-se e fechar-se a vigia, de uma porta de ferro, que, pelo seu ar pesado e lúgubre, indicava a barreira, que naquela casa, marcava ser o fim da liberdade e o começo da prisão (...). Alguns passos adiante, abriu-se outra porta, que me franqueou o acesso ao claustro do edifício, onde, na ocasião, se encontravam alguns magotes de maltrapilhos, deitados por baixo das arcarias, e que me deram a triste e desoladora impressão de se me figurar como que com uma manada de gado no descanso da sesta (...) Tenho ainda hoje, bem presente os seus olhares, espantados e maus, e os seus sorrisos trocistas e cretinos (...). Os rapazes que ali via, não eram os pequenos que se topam vagueando pelas ruas e praças públicas, garôtos sujos e rôtos, é certo, mas vivos e buliçosos, de caras alegres e atraentes (...) eram outros sêres (...). Sem querer estanquei na presença desse estranho espetáculo (...). Despertei do meu espanto com o grito duro, desta frase: “Ó suas bêstas, deixem passar este senhor padre!...”. E as bêstas num movimento automático e silencioso, abriram ala para eu passar (OLIVEIRA, 1918, IV-VIII)

Em poucos anos, o trabalho à frente da Casa de Correção rende ao padre notoriedade. Em, 1900, com a vaga aberta na direção desta instituição, o antigo vicediretor, Silva Pinto11, é nomeado diretor desta Casa e o padre assume a vice direção. Neste

10 11

1867-1923. Jornalista e literato, 1848-1911.

1041

cargo, criou dois regulamentos para a Casa de Correção, onde no primeiro organizou as funções e os serviços correcionais (1901) e no segundo, consolidou a renovação pedagógica (1909). O advento da República, em 1910, enceta uma série de reformas legislativas liberais. Por meio de decretos, em 01/01/1911, o governo português constitui comissões de notáveis para tecerem projetos a serem enviados à Assembleia Constitucional. Uma das comissões autorizadas, foi a que elaborou a Lei de Proteção à Infância, marco jurídico proteção à infância, em Portugal. Desta comissão fez parte o padre Oliveira. As práticas pedagógicas do padre, vividas na Casa de Correção, foram a base das propostas educativas de reforma correcional publicadas nesta legislação. Contudo, elas devem ser entendidas como fruto de uma “linguagem comum do pensamento pedagógico do período republicano” (Pintassilgo, 1998, 228), a Escola Nova. Essa linguagem é uma “expressão do rico e diversificado movimento associativo (cultural, educativo, profissional, etc.) do período republicano, no publicismo docente” (Pintassilgo, 1998, 229). Diferente do que parece ter ocorrido no Brasil, em Portugal, as ideias correcionais, ainda que não estivessem no centro desse debate, dele participaram.

A escola do lar e a escola oficinal. É verdade que o modelo educativo tramado no interior de uma instituição total marcou de modo muito severo a representação e a prática correcional de menores no mundo, fossem nas prisões, misturadas com adultos, fossem em estabelecimentos próprios, como asilos, conventos, manicómios, institutos industriais e agrícolas, etc. Felgueiras (2008) afirma que, pensado como meio de formar a criança longe de uma vida sem regras, o internato teve como modelo instituições de tipo monacal abarcando no decurso histórico o modelo das instituições de tipo militar. Para a autora, O internato é uma estrutura relacional complexa que objetiva o governo total do indivíduo. Nela o interno sujeitar-se-ia às regras que são impessoais, à dependência do professor que o acompanha de modo sistematizado, além de se subordinar à aprovação do coletivo e a sofrer as consequências da desaprovação. A vida no internato almeja o acompanhamento global do interno, razão pela qual, instituições cujo processo socializador se constituem por uma transformação plena do outro recorrem ao modelo de regime de internato. No entanto, duas ideias de escolas consolidam-se nas legislações para menores nos referidos países, neste período, elas surgem como uma crítica ao modelo do internato, descrito como artificial, pois não conseguiria reproduzir os benefícios da vida em família. 1042

Lugar da verdadeira educação. Referimo-nos à “escola do lar” e à “escola oficinal”.

O

que esses modelos escolares têm em comum? Educam para a vida futura. A “escola do lar” foi definida no Decreto nº 6117/19 como uma escola preparatória, ministrada no lar para crianças, até os 12 anos12, tendo como finalidade a educação para o trabalho, no caso, doméstico. Onde ela se habitue a praticar a virtude do trabalho. Porém, que tipo de trabalho doméstico, a legislação se referiria, com certeza, não era o mesmo trabalho doméstico destinado às meninas. Uma educação que reconhece que a sua finalidade é a colocação de cada educando no seu lugar, no mundo adulto, não poderia aceitar a ideia de que homens e mulheres adultos têm o mesmo destino no mundo do trabalho adulto. É preciso recordar, que entre as finalidades dessa educação preconizada pelos reformistas correcionais, na lei de 1911, estão em formar o homem que seja útil a si, sendo útil a sociedade. Não se pode esquecer que um dos critérios para a escolha da oficina em que seriam matriculados os alunos era a sua aptidão. Assim, a educação doméstica preconizada por esta legislação é uma educação colaborativa, baseada na pouca idade do reformando. No artigo nº 161, da lei de 1911, que tratava do ensino nas oficinas industriais, a educação doméstica para os meninos aparecia como a última opção para o menor que não tivesse aptidão para o aprendizado de nenhum dos ofícios das seções industriais ou agrícolas. A finalidade desta prática educativa é habituar o menor a virtude do trabalho, nela, percebe-se um preceito da psicologia, segundo a qual, a criança aprende pela imitação, desta forma, o seu aprendizado deveria ser prático, no seio de uma família idônea e numerosa. A criança em reforma aprenderia a trabalhar brincando. Outra modalidade, destinada para os menores com mais de 12 anos era a “escola oficinal”, uma escola técnica, ou seja, igualmente prática, ministrada na oficina, onde a educação se dá pelo trabalho e o aprendiz se especializa em um ofício. Nela, os aprendizes, trabalhando e economizando, aprendem a ganhar e saber gastar.

As provas de saídas. O fim da pena é experimentado pelo interno como a conquista de um desejo, não como uma concessão de uma autoridade ou de um poder. A liberdade é um merecimento conquistado pelo interno, ela deve esconder a sua arbitrariedade. O fim da pena deve 12

Não se pode esquecer que pelas reformas promulgadas no início da 1ª República, a idade de 12 anos representa ao mesmo tempo o fim da idade

1043

exibir a vitória pessoal do interno que se comprometeu com a sua regeneração. Ela exibe a vitória para si, para os demais internos, que também desejam a sua liberdade e para a sociedade. Quando deixam as escolas de preservação ou reforma, os ex-internos levam consigo um diploma, um documento que certifica a sua regeneração. Atento ao processo de não estigmatizar, o documento exibe o seu novo mister, o domínio de um ofício. Foucault (2004) afirma que a pena não pode durar para sempre, ela precisa terminar para mostrar a sua eficácia, que é tornar o criminoso em um homem virtuoso. É importante que ela circule socialmente para se legitimar, ao exibir a sua eficácia. A pena correcional dos menores também finda, mas ela é vivida como um rito. O menor não sai dos institutos disciplinares de uma só vez, ele experimenta a liberdade. As saídas constituem a última etapa e a mais importante do seu processo de reforma e indicam de modo mais claro as diferenças de ritmo entre as escolas disciplinar e comum. A educação correcional atende a outro ritmo que não coaduna com o ritmo da escola graduada comum, embora nela também se ministre uma educação física, moral, profissional e literária. Diferentemente da escola graduada cujo tempo é também expresso pelo calendário rígido de entrada e saída, nas escolas disciplinares eles obedecem a uma ordem arcaizante (BENITO, 2008). O programa educativo não é o da instituição, ele é o do interno. A entrada do interno pode ser a qualquer momento, porque a sua lógica de matrícula atende ao acaso da sua detenção. O tempo de saída é menos flexível, mas ele não depende a priori do cumprimento de um programa que lhe é externo. A compreensão de que estar reformado ou parecer reformado é condição para sua saída. Sobre a distinção entre as escolas regulares e os institutos disciplinares, Mineiro (1929) afirma que a educação ministrada nos institutos disciplinares não póde ser igual á dada comumente nos outros estabelecimentos de ensino. A pedagogia moderna possue a respeito daquele gêneros e regras, dignos de uma secção desta sciência, a chamar-se “Pedagogia Correcional (1929, p. 461).

Considerações. A pesquisa ainda está em fase de elaboração, o que apresentei são aspectos inconclusivos, porém, considero importante este diálogo, pois a apresentação para uma audiência que não conhece a pesquisa obriga a um esforço de síntese. De todo modo, considero que já haja elementos para se divulgar e que podem contribuir para lançar novas perspectivas ao estudo da construção da menoridade enquanto categoria jurídica no momento da sua descoberta pelo Estado. O primeiro deles

1044

é apontar para a necessidade de que se alarguem o espaço da pesquisa sobre menores para além dos recortes nacionais. Este processo foi mundial e a reiterada busca de respostas nacionais podem encobrir dimensões que o estritamente nacional não permite ver. Depois, tentei mostrar que a proposta jurídica de correção de menores constituiu sim um projeto educativo e não apenas punitivo. Neste sentido, convém compreender como os tribunais se apresentaram como espaço de gestão correcional (na dupla dimensão educativa e punitiva). A ideia de um tribunal educativo e de um juiz-pedagogo são indícios bastantes interessantes a respeito dessa proposta. Por fim, salientar que na perspectiva correcional de menores, a pena assumiu uma função educativa. Se o debate criminológico para adultos no período não tinha certeza dessa possibilidade, no que se refere à infância houve um projeto claro. Outras pesquisas poderão quais foram concretamente os seus limites e as suas possibilidades.

Bibliografia: DIARIO DO GOVERNO. Decreto nº 6117, de 20 de setembro de 1919. Lisboa. p. 20002007. . Decreto nº 10.767, de 15 de maio de 1925. Lisboa. p. 500-530. . Lei de Proteção à Infância, de 27 de maio de 1911. Lisboa. p. 1316-1331. BENITO, Agustín E. La invención de tempo escolar. In: Mignot, Ana C; FERNANDES, R. O Tempo na Escola. Porto: Profedições, 2008. p. 33-54. FELGUEIRA, M. L. A organização do tempo escolar em internato. In: Mignot, Ana C; FERNANDES, R. O Tempo na Escola. Porto: Profedições, 2008. p. 99 – a 122. FOUCAULT, M. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão. 20ª ed. Tradução Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2004. p. 87 – 108. MINEIRO. Beatriz S. O Código de Menores dos Estados Unidos do Brasil: comentado. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1929, p. 151- 461. PEQUENO Dicionário Jurídico: referências legislativas, termos e expressões estrangeiras, termos e expressões latinas. Rio de Janeiro: Lamparinas, 2012, p 145. PERROT, M. O Excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros. São Paulo: Paz e Terra, 2006 p. 231- 332. OLIVEIRA, A. Criminalidade e Educação. Lisboa: Caritas Portuguesa, 1918, p V – VIII. SANTARCÂNGELO, Maria C, Vergueiro. Juventude e Delinquencia. SÃO PAULO: EDITORA FRANCISCANA, 1966. p. 91-107.

1045

Entre a febre da paixão pelo samba e o desafio que surge da espetacularização: A tarefa dos compositores nas Escolas de Samba no Rio de Janeiro hoje em dia Friederike Jurth* 1 Resumo: Este trabalho foca a presente situação dos compositores nas Escolas de Samba do Grupo Especial. A pesquisa é baseada em minha pesquisa de campo (2013-15). Ela foi realizada como estudo de caso entre compositores de diferentes Escolas, mas principalmente na “GRES. Unidos de Vila Isabel” e busca analisar a realidade do trabalho dos compositores, caracterizada pela paixão pela música, e também pela tensão que surge das mudanças e novas condições do processo de espetacularização e profissionalização na disputa do samba. Palavras-Chave: samba de enredo, compositores, disputa de samba Abstract: This paper focuses on the present situation of composers in the “Special Group” of Rio´s Samba Schools. The research is based on my fieldwork (2013-15). It was conducted as a case study on composer´s collectives of different Samba Schools and analyzes the work and circumstances of composing, which is characterized by their paxion for the music, but also by a tension, that arises from several changes and new conditions, caused by the new kind of professionalization during the composer´s competition. Keywords: samba-enredo, composers, competition of the composers

Rio de Janeiro e o seu fenômeno das Escolas de Samba carioca se tornou um assunto fascinante para pesquisadores de qualquer área há vários anos. A presente pesquisa se propõe a contextualizar a composição dos sambas de enredo nas Escolas de Samba do Grupo Especial, mas também do Grupo A e B no Rio de Janeiro, seu desenvolvimento e sua relação com os ambientes e mudanças sociais e econômicas no Rio de Janeiro a partir dos anos noventa - ou bem - do início do novo milênio, levando em consideração as influências externas, que consistem nas regras determinadas pelas próprias Escolas de Samba, e também o “Regulamento Oficial”, que estabelece os critérios pelos quesitos julgados2, definidos pela LIESA3. Mas as condições sociais e econômicas “do trás”, que surgem da recente evolução das Escolas de Samba como “empresas”, também causaram um grande desenvolvimento ao longo dos últimos anos e caracterizam profundamente a disputa dos compositores nas Escolas de Samba contemporâneas.

Quando o Carnaval no Sambódromo se tornou um espetáculo que chamou a atenção international e começou chamar-se “maior show da terra”, afetou a área musical e influenciou várias dimensões da música do samba de enredo. O desenvolvimento do Carnaval comercializado manifestou-se, entre outros, pela Construção da Marquês de Sapucaí em 1984, que “foi um marco decisivo para a implementação desse projeto de carnaval como espetáculo”4. Este movimento, esta evolução, já foi tratada e comentada por várias pesquisas, livros e artigos intitulados como por exemplo “Comercialização fez o Carnaval virar Broadway” 1046

uma entrevista da Folha de São Paulo com Fernando Pamplona -5. Os enredos evoluíram e passaram a ser cada vez mais patrocinados e o Carnaval cada vez mais comercial, escolhendo enredos tais como „Da Seiva Materna ao Equilíbrio da Vida“ (“Iogurte”, Porto da Pedra, 2012)6. Pesquisadores confirmam: „Até esta época [1970] temos enredos que exaltam a Nacionalidade brasileira, grandes heróis nacionais. Os anos de 1980 marcam uma „virada crítica” [...]. E atualmente vivemos a fase „comercial”, em que muitas vezes grandes empresas adotam como estratégia de marketing o patrocínio de enredos de Escolas de Samba, isto inicia na década de 1990 no Carnaval carioca, e na década de 2000 fica altamente evidente.“ Eduardo Nunes, Historiador7

Considerações nas composições - recentes mudanças e caraterísticas musicais no gênero do samba de enredo Até hoje, o processo criativo da composição, que vai se tornar o sujeito principal de minha dissertação de doutorado, e o desenvolvimento musical do samba de enrdeo ao longo das três décadas passadas - além de alguns assuntos específicos como a mudança do andamento e a crescente velocidade das baterias – infelizmente não se tornaram assuntos de conversa entre o mundo acadêmico. O samba de enredo caracteriza-se tradicionalmente pela estrutura sincopada e pontilhada do ritmo,8 pelo princípio da divisão do canto (“CallResponse”) entre as partes solistas – geralmente performado pelo intérprete ou “puxador” oficial (solista) - e as partes corais – cantado pela comunidade de uma Escola de Samba. A “bateria”, o grupo de ritmistas, que consiste em um total de cerca 350 pessoas, define o andamento e a marcação enquanto a parte harmônica é realizada pelos Cavaquinhistas e Violonistas.9

Ao lado dessas caraterísticas tradicionais deixam-se descobrir várias mudanças e transformações musicais que analisei em minha dissertação de mestrado no exemplo de caso dos sambas de 1980-2013 da “GRES. Unidos de Vila Isabel” e que queria destacar em breve aqui, pois elas devem estar presente e consideradas paras compositores na hora de fazer um samba. Nas épocas passadas, até os anos oitenta, a estrutura do samba era diferente da forma de hoje. O samba era feito de estrofes e refrões, mas caracterizou-se pela estrutura predominantemente de pequenos segmentos, como por exemplo de uma forma ABCD ou ABCDE. A improvisação, que hoje não se encontra mais nas composições dos sambas de enredo, tinha uma função importantíssima e destacada nos sambas antigos. 10 Atualmente os sambas têm uma estrutura definida, com um refrão principal que ganha cada vez mais 1047

importância através das inúmeras repetições para facilitar a aprendizagem do público na hora do desfile.11 Os exemplos seguintes de dois sambas da Vila Isabel, transformado em gráficos, ilustram este fato visualmente. As partes dos refrões foram colodidas em laranja e vermelha, as estrofes em azul claro e escuro e a introdução em verde:12

Vila Isabel: Sonho de um sonho, 1980

Vila Isabel: Água no feijão que chega mais um, 2013 Como nova característica entrou nos anos oitenta a “Chamada” do puxador no samba, um “grito” para esquentar a comunidade antes de iniciar. Em 1976 foi a primeira vez que uma “Chamada” era cantada - por Neguinho da Beija-Flor13 - e a partir de então as “Chamadas” podem ser encontradas em cada samba. As palavras e o jeito do grito são a marca pessoal de cada puxador.14

Um assunto importante, que já se tornou assunto de conversa intensiva há muito tempo é a mudança do andamento: O próprio Alberto Ikeda já tematizou e descreveu o fenômeno da crescente velocidade do andamento em seu artigo “Escola de samba ou de marcha” de 1990,15 onde ele mostrou como o ritmo acelerado se compensa. A melodia tem que ser composta de menos notas por compasso e a bateria também é obrigada a usar menos “ornamentações rítmicas”, que antigamente faziam parte das caraterísticas individuais de cada bateria e eram meio de identificação. Um especialista em samba de enredo, Guilherme Salgueiro, compositor e ritmista e em 2013 diretor dos tamborins na Vila Isabel, comentou comigo sobre essa questão: „Nos anos oitenta [...], acredito que o tempo seria 120 no maximo... 100... e hoje em dia chega a 147, tem baterias que tocam até 150 batimentos por minuto... que e muito rápido. [...] Temos pessoas que chamam o samba “frevado”. [...] é bem mais rápido, é uma marcha, um frevo. E agora a gente está perdendo as características do samba mais cadenciado.” Guilherme Salgueiro, compositor e ritmista16

O atual mestre de bateria da “GRES. Unidos de Vila Isabel” também explicou sobre a mudança do andamento nas baterias:

1048

„O samba vem do Candomblé, destas festas regionais africanas. Então isso vem tudo lá de fora... Então hoje, [...] cada Escola criou sua característica. Eu falo da minha parte, da bateria [...] por exemplo a caixa [...] você pode pesquisar alguns toques de caixa [...] lembre um pouco de toque do Candomblé. [...] Então, se você analisar e colocar isso e numa dinâmica mais lenta, num jeito que era samba antigamente que não era tão corrido porque não tinha um horário...” Friederike Jurth: „Sim. E hoje são exatamente 82 minutos?” Wallan: „Isso... e antigamente a gente não tinha isso.” Wallan, mestre de bateria da Unidos de Vila Isabel17

Fazendo um samba para concorrer, os compositores devem então sempre levar em consideração em seus trabalhos artísticos, que: „O samba [...] é mais rápido. Porque a Escola [...] ela se tornou maior. Então você [...] desfilar num tempo determinado pelo regularmento, [...] [e] tem que passar mais rápido [...] [porque] o ritmo aumentou. Antigamente você passava brincando, [...] hoje não, é mais rápido” Fernando Araújo, direção da LIESA18

Pesquisei em minha dissertação de mestrado, como o andamento dos sambas acelerou ao

longo

dos

anos

até

o

novo

milênio,

particularmente

nos

desfiles:19

Além disso, deixaram-se observar desenvolvimentos em termos do canto e na instrumentação que devem ser contemplados pelos compositores. Na investigação da divisão de canto entre puxador e coro mostrou-se uma deslocação da quantidade do canto do coro. E também a sonoridade do coro começou a evoluir – antigamente ela se caraterizava pelas vozes agudas femininas que dominavam o coro, enquanto a “tendência” presente privilegia vozes graves, masculinas, que dominam na divisão. Há também um desenvolvimento na instrumentação que não havia nas épocas antigas: Em acordo ao enredo ou para sublinhar 1049

determinadas linhas da letra, a integração de instrumentos “estranhos”, que tradicionalmente não fazem parte do gênero do samba de enredo, tais como violinos, flautas etc. virou moda. Como exemplos desta evolução podem servir os casos da Unidos de Vila Isabel de 2015 20 ou o da São Clemente de 2012. As próprias linhas melódicas do sambas constroem-se tradicionalmente de melodias contrastantes e equilibradas21: Se há saltos na melodia, vai seguir uma linha de passos pequenos, se há uma linha de notas pequenas seguem notas longas na próxima frase melódica. Essas caraterísticas permanecem na criação musical, mas houve novidades que surgiram ao longo das últimas décadas, e que investiguei durante minha pesquisa para a tese de mestrado. Elas podem ser chamadas de “desenhos melódicos” quando aparecem na parte melódica da música, ou “bossas“, quando se trata de desenhos rítmicos da bateria. Antigamente não se tinha este jeito de pintura musical, que cria um desenho exato da letra na melodia, mas isso pode ser observado na maioria dos sambas hoje em dia.22 Quanto à questão do processo criativo, à “composição” em si, tem-se que primeiramente levar em consideração que ela pode ser vista como um complexo de três fases conectadas. Entre 2012 e 2015 investiguei como pesquisadora esse processo complexo pela observação e acompanhamento de diferentes parcerias de compositores de diversas Escolas de Samba, e acabei por conhecer o lado artístico pela participação como musicista (violinista) em diferentes parcerias durante a defesa dos sambas concorrentes em 2015. Os resultados dessa pesquisa de campo estão atualmente em análise e avaliação e serão publicados em minha tese de doutorado. No centro da investigação ficam os diferentes procedimentos e fases da composição, que é em primeiro plano o próprio processo da criação musical e poética, mas que consiste além disso em mais duas partes: Na finalização da composição no momento da gravação do CD e na produção dos Clipes ou Vídeos “promocionais” no estúdio, e também a terceira parte da performance, que é a apresentação das parcerias depois da entrega do samba durante as noites de eliminatória, chamada “disputa” de samba.

Condições “externas” paras compositores e o princípio da “disputa de samba” Um fator importante a ser considerado no contexto do desenvolvimento atual de profissionalização e espetacularização que acontece nas Ecolas de Samba é o jeito de concurso dos compositores – a “disputa” -, que decorre a cada ano entre o final de Agosto e

1050

meio de Outubro. De Maio a Julho, cada Escola do Grupo Especial define o seu enredo e apresenta a Sinopse23 na reunião para compositores. Depois da introdução, explicação e tiradúvidas da Sinpose pelo Carnavalesco, os compositores se reúnem em parcerias e entram na fase da composição, até gravar e entregar o samba pronto, que é apresentado na quadra durante as “Noites de eliminatória”.

Acompanhando a disputa como pesquisadora ao longo de alguns anos e participando em 2015 como musicista em diferentes parcerias em todas as etapas e depois como violinista no carro de som da “Unidos de Vila Isabel” no desfile, bem como na gravação oficial da LIESA, observei em detalhe a realidade da disputa e a situação dos membros da Ala dos compositores de diferentes pontos de vista e investiguei os fatores importantes que fazem parte anualente desta competição entre os diferentes grupos nas quadras das Escolas de Samba do Grupo Especial, A e B. Em seguida, filtrei as passagens principais de uma coluna de um compositor e algumas citações de entrevistas que realizei com compositores e especialistas, e que explicam a posição dos compositores. Primeiro, a coluna “Samba-Enredo” de Aloisio Villar, compositor no Rio de Janeiro e São Paulo, mostra de um jeito recreativo, quais fatores e condições dominam as “disputas de samba” nas grandes Escolas de Samba do Grupo Especial hoje em dia: “O tema de hoje [...] é uma das maiores distorções do mundo do samba de hoje: a disputa para escolha do samba de enredo e a questão dos “escritórios”. [...] Basicamente hoje em dia pra você concorrer em uma Escola de Samba do Grupo Especial nem adianta tentar fazer sozinho o samba, mesmo que você seja uma pessoa talentosa. [...] Uma disputa no Especial rende valores expressivos em direitos para a parceria campeã algo em torno de 300 a 350 mil reais brutos - é evidente que tendo um prêmio desses também traz muitos gastos. Dificilmente você fará parte de um samba campeão na elite carioca se sua parceria tiver menos de cinquenta mil reais pra investir. Faz como então? Geralmente, hoje as escolas permitem que quatro ou cinco pessoas assinem um samba. Nesse grupo de compositores é essencial que tenha o integrante que forneça o suporte financeiro: pode ser um cara que tenha esse dinheiro ou saiba como arrumar. Tem que ter o “cara da política”, aquele, que é bem relacionado dentro da escola [...]. Tem o “cara da torcida”. Ah, esse é muito importante porque você pode concorrer com um hino nacional – se cê não botar torcedor, você perde [...]. Mas eles [os torcedores] não vêm apenas porque você é um cara bonito não. [...] tem que ter ônibus pra buscá-los. [...] Tem que bancar bebida da galera, churrasco, geralmente dão camisas também e evidentemente os ingressos. A parceria também costuma usar uniforme lembrando os bons momentos de Escola. [...] Não esqueça que você tem que contratar cantores, cantores do Grupo Especial claro [...] com “apenas” 700 reais por apresentação [...] Evidente que o gasto não é só com ele: você tem que contratar pelo menos mais uns três cantores como base dele até porque muitas vezes o seu cantor do especial não aparecerá - porque ele fechou com mais três escolas do Rio e duas de São Paulo no mesmo dia. [...] Mas evidente que isso não basta. Para chegar lá você gravou um CD que deve ter custado mais de mil reais a gravação e fez mais de mil cópias dele com prospecto de primeira qualidade.

1051

Na quadra, em sua apresentação, além de tudo que citei é bom colocar umas faixas com versos do samba, uma maior do lado do palco com a letra inteira, máquina de papel picado, gelo seco, raio laser, telão com imagens da vaidosa parceria e a letra do samba, além de queima de fogos. Cada apresentação sua tem que ser uma mistura de virada de ano em Copacabana e abertura de jogos olímpicos. E muita, muita gente carregando bandeiras de seu samba, pulando na quadra, cantando sua obra. [...]”. Alloisio Villar, compositor24

Esta descrição mostra de maneira irônica e illustrativa o que observei em muitos casos nas disputas de samba e e coincide com várias declarações de pessoas entrevistadas por mim sobre este assunto. Neste concurso tem primeiramente imensas despesas financeiras pelos compositores, que - mesmo se eles fossem abençoadas pelo um grande talento - nunca poderiam disputar sozinha. Por quê? Durante de algumas entrevistas semiestruturadas, os compositores convidados explicavam que uma das principais razões principais para ter parceiros é o alto nível de investimento financeiro e, com um gasto total de cerca de 3000 a 5000 Reais por semana, a vitória é sempre incerta e o compositor só terá o reembolso do investimento no caso de vencer. Mas mesmo um dos compositores mais emergentes e famosos da nova geraçao do samba de enredo comentou numa entrevista comigo: Friederike Jurth: „Como se forma uma parceria hoje? ...Porque um compositor que faz samba para disputar sozinho quase não existe mais, não é?” A: „É. Mas por quê?! Não é pela composição. [...] você viu a disputa? É uma loucura. Eu não conseguiria botar 2.000 pessoas a me torciar [...] um investimento de 70.000 RS. Entendeu? E outra coisa é o morro. [...] aí você bota um cara do morro, que aprendeu neutralizar. [...] então na verdade você forma um grupo de parceiros, que não necessariamente são compositores por parte logística da disputa [...].” André Diniz, compositor 25

Conforme as descrições, uma condição inevitável para ganhar uma competição é a capacidade financeira de uma parceria: O dinheiro disponível tem que ser suficiente para cobrir os custos de uma produção do CD, a impressão das letras, bebidas e comidas, ingressos, bandeiras, balões, alegorias, até um fogos de artifício ou um grupo de dançarinos profissionais. O grande evento esperado pela Escola e os custos enomres afetam a disputa e a composição em várias formas. O fato que não há mais a possibilidade de se inscrever sozinho já explica. Hoje as disputas dos compositores de uma Escola do Grupo Especial se caracterizam-se pela apresentação de um grande Show em frente a um júri e uma audiência. Além do Comitê do Carnaval, o público - sim - será capaz de votar pelo canto e pela ação de girar bandeiras e etc. Durante o trabalho de campo foi observado como o show aumenta a cada semana que se aproxima do final da disputa e foi também confirmada a influência que um grande show, um grande evento, tem. Acessórios da torcida, tais como CDs, balões, bandeiras e, claro, a 1052

letra, eram obrigatórios em cada grupo. A final da disputa é sempre o fim glorioso de todo um espetáculo em que a presença da imprensa e de turistas cria uma atmosfera semelhante à de um Show de Rock. A parceria campeã de 2013 da Vila Isabel realizou, entre outros, um show de fogos de artifício no meio de uma multidão animada, e em 2015 uma outra parceria trouxe uma equipe de bailarinas e sambistas profissionais para brilhar na quadra. De acordo com as declarações de vários compositores e especialistas pode-se dizer que a disputa é financiada pelo próprio compositore ou pelo proprio grupo dos compositores e, no final, só o grupo que vence receberá uma compensação de despesas: „Hoje um samba de enredo é um investimento. Se você ganha um samba hoje numa escola, o retorno financeiro é muito grande. Então as pessoas investem, trazem a torcida, fazem um show para tentar ganhar. Por quê? Porque eles sabem que, se eles investem 10 eles podem ganhar 20. Então vale a pena. Hoje uma escola é uma renda, é um negócio aumentável. Você investe e você tem um retorno de dinheiro.” Fernando Araújo, da direção da LIESA26

Mas quais consequências concretas têm esses fatos pelas parcerias e pela criação musical de um samba de enredo hoje em dia? Um exemplo da influência direta pelas condições externas aos compositores e o lado musical se ilustra nesta citação: „A minha ideia eram duas vozes mesmo, se misturando. Mas meu passeiro falou: “Mas André, muito legal. Ah não vai ganhar. Vai perder disputa, eles vão dizer que você e maluco e você não tem a mínima chance de vencer.” Então foi o que eu queria? Não... então.. as padronizações impedem de ser o que a gente quer. Acaba sendo que é impossível dentro do que a gente quer.” André Diniz, compositor 27

A “vista romântica” antiga da composição vs. os presentes “Capitais” questionados Aquele sistema observado mostra várias concordâncias com as condições, já explicadas e nomenadas como “Capital social e econômico” por Bourdieu em seus conceitos 28 e que influenciam o trabalho dos compositores assim que o processo criativo. A composição e o sucesso de um samba concorrente numa escola de alta classificação não depende só da pura criatividade musical e poética mas também dos compositores, que entram o Capital social ou econômico na parceria, mas que em muitos casos não escrevem nenhuma linha do samba em si. Como uma única noite de eliminatória custa em torno de 3.000 a 5.000 Reais e acontece uma vez por semana durante cerca de dois meses, precisa-se de um imenso “Capital econômico” de uma parceria concorrente. Por outro lado tem o que Bourdieu chama de “Capital social”: A capacidade de levar a maior quantidade possível de torcida para as noites da disputa e um determinado grau de conhecimento entre a comunidade, os componentes e a diretoria da Escola ajuda e facilita um voto positivo. 1053

As Escolas de Samba do presente já transformaram-se em instituições culturais, até mesmo empresas, em muitos casos patrocinados, onde o “Capital social e econômico” começou tomar uma função destacada, e onde as apresentacoes dos sambas nas quadras durante as disputas tem pouco comum com aquela forma da disputas das épocas antigas, que marca a imagem e a vista romântica do passado. Esse processo do desenvolvimento traz novas condições e pede novos focos e capacidades dos compositores, assim como uma consciência deles da evolução.

1

*Mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em Musicología (primeira disciplina: Transcultural Music Studies) da Academia de Música FRANZ LIZST Weimar; intercambista (estágio de doutorado, orientado pelo Prof. José Alberto Salgado e Silva) na UFRJ, presentemente realizando a dissertação de doutorado em Etnomusicología, orientado pelo Prof. Tiago de Oliveira Pinto na Academia de Música em Weimar 2 Documentos Oficiais da LIESA para julgamento no Carnaval: “Manual dos Julgadores - Carnaval 2015” e “Regulamento”. http://liesa.globo.com/ (acessado em 20.09.2015) 3 LIESA: Liga independente das Escolas de Samba 4 NUNES DA SILVA, Eduardo Pires. “O riso político-social nos Carnavais das escols de samba do rio de Janeiro durante a década de 1980”. In: Anais da VII Semana de História Política, IV Semana Nacional de História: Política e Cultura & Política e Sociedade. Rio de Janeiro: UERJ, 2012, p. 473. 5 Entrevista da Folha de São Paulo com Sr. Fernando Pamplona sob o Título: “Comercialização fez o Carnaval virar Broadway”. www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2302200922.html (acessado em 18.06.2014) 6 TEMISTOCLES, Gabriel. “A linha tênue dos enredos patrocinados”. http://otemizando.blogspot.de/2013/02/alinha-tenue-dos-enredos-patrocinados.html (acessado em 06.06.2013) 7 Entrevista: com Eduardo Pires Nunes da Silva (compositor, Historiador). Conversa escrita, em 11.09. 2012 e 06.06.2013 8 OLIVEIRA VIZEU, Carla Maria. O samba-enredo carioca e suas transformações nas décadas de 70 e 80: Uma análise musical. Campinas: UNICAMP, 2004, p. 72. 9 BIRKENSTOCK, Arne e BLUMENSTOCK, Eduardo. Salsa, Samba, Santéria. Lateinamerikanische Musik. 2. Edição, München: Deutscher Taschenbuchverlag, 2002, p.184. 10 OLIVEIRA VIZEU, 2004, p. 85-86. 11 CAVALCANTI, Maria Laura. „Os sentidos no espetáculo”. Revista de Antropologia, São Paulo: USP, vol. 45, fascículo 1, p. 52, 2002. 12 JURTH, Friederike. Rio im Sambafieber – der samba enredo zwischen Wandel und Konstanz im Spiegel der Zeit. Musikanalytische Untersuchungen zur Entwicklung des samba de enredo von 1980 bis 2013 am Beispiel der GRES. Unidos de Vila Isabel, Weimar: Dissertação de mestrado/Academía de Musica Franz Liszt, 2013, p. 30-31. 13 OLIVEIRA VIZEU, 2004, p. 88. 14 BRAGA, Leandro. Na bateria da escola de samba, Rio de Janeiro: Gryphus, 2014, p. 37. 15 IKEDA, Alberto. “Escola de samba ou de marcha?”. In: O Estado de São Paulo. São Paulo: Edição São Paulo, ano VII, fascículo 500, p.3, 1990. 16 Entrevista: com Guilherme Salgueiro (compositor). Realizada no Rio de Janeiro, Vila Isabel, em 09.10.2012 17 Entrevista: com Mestre Wallan (Mestre de bateria da Unidos de Vila Isabel). Realizada no Rio de Janeiro, Vila Isabel, em 14.11.2012 18 Entrevista: com Fernando Araújo (LIESA). Realizada no Rio de Janeiro, LIESA/Centro de Memória, em 29.10.2012 19 JURTH, 2013, p. 22. 20 “O maestro brasileiro está na terra de Noel, e partitura azul e branca da nossa Vila Isabel” foi escolhido como enredo da “GRES. Unidos de Vila Isabel” em 2015. Trata-se de uma homenagem ao maestro Isaac Karabtchevsky, ”. http://liesa.globo.com (acessado em 15.09.2015) 21 OLIVEIRA VIZEU, 2004, p. 91. 22 JURTH, 2013, p. 35-51 23 Sinopse: O documento que apresenta e conta o novo enredo em detalhe, define seu decurso. A Sinopse está geralmente apresentada pelo Carnavalesco e a Comissão do Carnaval de uma Escola para os compositores numa reunião depois do lançamento do enredo, geralmente entre Junho e Julho

1054

VILLAR, Aloisio. „Samba Enredo S.A”. http://pedromigao.blogspot.de/2011/08/orun-aye-samba-enredosa.html (acessado em 15.03.2013) 25 Entrevista: com André Diniz (compositor). Realizada no Rio de Janeiro, Vila Isabel, em 19.11.2012 26 Entrevista: com Fernando Araújo (LIESA). Realizada no Rio de Janeiro, LIESA/Centro de Memória, em 29.10.2012 27 Entrevista: com André Diniz (compositor). Realizada no Rio de Jneiro, Vila Isabel, em 19.11.2012 28 BOURDIEU, Pierre. “The Forms of Capital”. In: Handbook of Theory and Research for the Sociology of Education. New York: Greenwood Press, 1986 p. 241-258. 24

1055

A conquista de papel: As estratégias retóricas de Gomes Eanes de Zurara na Crônica da Tomada de Ceuta (1449-1450)

Gabriel Gonzales Ballestero de Souza - PPGHIS1 Orientação: Prof. Dra. Juliana Beatriz A. de Souza

Resumo: No presente artigo, analisaremos a “Crónica da Tomada de Ceuta por El Rei D. João I”, visando compreender os sentidos e significados produzidos neste texto através das estratégias retóricas adotadas pelo cronista régio Gomes Eanes de Zurara. Buscaremos também identificar elementos literários na obra que explicite a função retórica da lógica “Das Armas às Letras”, muito difundida na literatura ibérica do período. Palavras- chave: Discurso, Retórica, Portugal.

Abstract: In this article we focus on the Crónica da Tomada de Ceuta por El Rei D. João I, to understand the meanings produced in this text through the rhetorical strategies adopted by the royal chronicler Gomes Eanes de Zurara. Also seek to identify literary elements in the work stating the rhetorical function of logic “Das Armas às Letras”, widespread in the Iberian literature of the period. Keywords: Speech, Rhetoric, Portugal

Em 1415 os portugueses desembarcam no norte da África para estabelecer o controle da região de entrada do mediterrâneo, naquele momento sob o comando dos Mouros. No que foi um rápido combate em terra, encontrando parca resistência militar por parte dos locais, o Infante D. Henrique, D. Duarte e D. Pedro de Meneses, a mando do Rei Dom João I, empreenderam a tomada de Ceuta.2 Entretanto a tomada de Ceuta não se resumiu a uma empresa de conquista territorial. Trinta e quatro anos após a consolidação da presença portuguesa na região, o Rei Dom Afonso

1056

V ordenou a elaboração de uma obra que guardasse a memória dos feitos de Dom João I, a seu então cronista régio Gomes Eanes de Zurara. Desta forma a crônica da Tomada de Ceuta se estabelece como um instrumento político e cultural do período, nos permitindo compreender o contexto histórico e social de Portugal no limiar dos descobrimentos europeus do século XV. No presente artigo, analisaremos a Crónica da Tomada de Ceuta por El Rei D. João I, visando compreender os sentidos e significados produzidos neste texto através das estratégias retóricas adotadas pelo cronista régio Gomes Eanes de Zurara. Buscaremos também identificar elementos literários na obra que explicite a função retórica da lógica “Das Armas às Letras”, muito difundida na literatura ibérica do período. Neste sentido, é necessário pensar o contexto político-cultural de Portugal no início do século XV, de modo a identificar questões como para quem foi feita a crônica, qual o propósito, qual tradição foi seguida e qual a sua função dentro do contexto político e social de Portugal. A compreensão da formação intelectual do cronista, bem como a sua inserção no cenário da Corte portuguesa também se faz necessária, à medida que nos permitirá perceber suas estratégias retóricas naquele contexto, nos fornecendo pistas de como as foram utilizadas por Zurara na produção da crônica.3 A trajetória de Portugal do quatrocentos está vinculada a formação da dinastia de Avis e a luta contra os mouros no norte da África. A ascensão de Avis se deu a partir da morte de Dom Fernando de Borgonha em 1383. Filho de D. Pedro I e de D. Constança de Castela, o nono Rei de Portugal sucedeu seu pai em 1367, tendo seu governo sido marcado por diversos conflitos externos, em especial com Castela.4 Com o seu falecimento se abriu uma disputa dinástica com Castela, visto que a única herdeira de Dom Fernando, a Infanta Dona Beatriz, era casada com D. João, rei de Castela. Em meio a possível perda da liberdade de Portugal com a anexação a outro reino e na sequência da crise política, surgiu por parte da nobreza lusa a indicação do filho bastardo do antigo Rei português D. Pedro, irmão de D. Fernando, o Mestre de Avis, Dom João.5 L. F. de Alencastro6 apresenta que os portugueses, mesmo durante o período de vigência do “Tratado de Ayllon” se sentiam acuados com a iminente possibilidade de ataque por Castela, o que os motivou a buscar novos territórios.7 Desta forma, a conquista da região de Ceuta no Marrocos8 cumpriria um duplo propósito: era um local estratégico para o acesso ao Mediterrâneo, e supriria a “demanda” da nobreza e do clero, respectivamente de terras e de almas na Reconquista Cristã.9

1057

Luis Filipe Barreto10 destaca que o Renascimento Português foi um fenômeno não apenas político e social, mas, também, cultural que alterou a realidade e o cotidiano do homem português dos quinhentos.11 Segundo o autor: “A constante unitária do doutrinal-ideológico constitui uma leitura religiosa-espiritual dos Descobrimentos. A expansão colonial dos portugueses surge como concretização histórico-humana de desígnios e projetos transcendentes-absolutos. Portugal é o braço realizador da Cidade de Deus e os Descobrimentos, enquanto alargamento do mundo aos mundos, provocam uma redução da diferença à identidade, uma planetarização global e total do Cristianismo. Nesta construção ideológica, Portugual é mais Europa porque é mundo enquanto planetarização cristã."

Assim, podemos identificar pistas da razão de D. Afonso V encomendar a Gomes Eanes de Zurara a produção da sua segunda crônica, que será produzida entre 1452-1453, relatando os feitos dos enviados a costa africana entre as décadas de 1420 e 1450.12 Desta forma, compreendemos que durante o reinado de D. Afonso V, quando Portugal havia passado por um período de incertezas políticas, que foram concluídas com a Batalha de Alfarrobeira, em 1449, e a manutenção da ala nobre que apoiava D. Afonso, o rei encomendou a seu cronista a produção de textos que legitimassem os feitos da casa de Avis e dos seus antepassados não apenas para a sua nobreza como para os demais reinos.13 Gomes Eanes de Zurara nasceu aproximadamente entre 1410 e 1420. A falta de precisão se deve muito pelo fato de que existem poucos registros sobre o cronista em seus anos iniciais. As informações que temos disponíveis foram obtidas pelos relatos de outros cronistas da época ou por seus escritos e documentos de mercês oferecidas a ele, como destaca Francisco Maria Esteves Pereira na introdução da edição de 1915 da Crônica da Tomada de Ceuta.14 Segundo o mesmo autor, Zurara na “Crónica da Tomada de Ceuta por El Rei D. João I”, concluída em 1450, indica que ainda não havia passado pela terceira idade, como destacado abaixo, o que provavelmente significa que Zurara ainda não havia alcançado os 40 anos quando escreveu a crônica: “E ainda que naturalmente todos os homens depois que passam as três primeiras idades, destam muito aquele tem que são, dizendo que eles eram muito melhores...certamente não posso entender por enquanto, pois a minha idade não é semelhante a deles.15

1058

A origem de seu nome, principalmente do uso “Zurara” nos leva a identificar a sua origem. Dois povoados no Portugal do século XV recebiam o nome de “Azurara” ou “Zurara”. O primeiro pertencia a freguesia de Santa Maria nas proximidades do Rio Ave. A outra povoação ficava na freguesia de São João batista, do conselho de Mangualde. Ainda segundo Francisco Maria, no Bispado de Viseu havia uma comenda da Ordem de Cristo chamada Comenda de são João de Azurara, o que nos leva a crer que esta fosse a origem da família de Gomes Eanes. Entretanto cabe destacar que o local de nascimento de Gomes Eanes é impreciso, pois o próprio pai já adotava o apelido “Azurara”, nos levando a aceitar que Gomes o adotou com um “sobrenome de família”, e não referente a sua origem. José Correia da Serra 16 indica que Gomes Eanes teria solicitado ao Rei D. Afonso V privilégios para dois moradores da Vila de Castelo Branco, a região da Beira onde o mesmo possuía propriedades. Estes subsídios, somados ao fato do pai de Gomes já adotar o apelido “Zurara” nos leva entender que este não se referia necessariamente ao seu local de nascimento. Gomes Eanes era filho de “Johanne Eanes de Zurara”, cônego da Sé de Coimbra e Évora. Pouco se sabe da origem da família materna, mas pela origem religiosa do seu pai, se supõe que possuísse algum grau de influência social. Embora pouco se atribuísse a educação familiar no período, com a formação do indivíduo, visto que na maioria das vezes o caminho para a ilustração se fazia fora das cercanias domiciliares, podemos compreender as redes disponíveis para Gomes Eanes em sua trajetória. A instrução literária e a erudição de Gomes Eanes de Zurara se confundem com a trajetória política e social da corte de D. Afonso V. A vivência na Corte a sua inserção nas questões políticas que o seu cargo demandava, permitiram a Zurara ter contato com figuras influentes, e conviver na primavera do “Renascimento português” com, dentre outros indivíduos, o então Cronista Régio Fernão Lopes e o preceptor do Rei, Mateus Pisano. Maria Ema Tarracha Ferreira destaca a ilustração do rei D. Afonso V: “D. Afonso V, rei letrado, cuja cultura, desenvolvida “sob o signo do Latim”, é já de inspiração clássica, mostra-se apreciador das artes e das Letras, aumentando a biblioteca régia e admirando o estilo erudito do seu cronista, Gomes Eanes de Zurara, conforme declarou (em 21 de Novembro de 1467, numa carta – escrita por sua mão – que lhe dirigiu), ao valorizar as Letras e aqueles que as cultivam não por oposição às Armas, mas porque constituem o meio de perpetuar os grandes feitos já realizados: Não é sem razão que os homens que têm vosso cargo sejam de prezar e honrar, que, depois daqueles príncipes ou capitães que fazem os feitos dignos de memória, aqueles que depois de seus dias os escreveram muito louvor merecem...”17

1059

Poucos registros dão conta da trajetória de Zurara até 1450. Entretanto podemos supor, até mesmo pelos cargos que Zurara ocupou, que o mesmo trabalhou como ajudante de Fernão Lopes na Torre do Tombo e na Livraria Real. Provavelmente a sua convivência na corte e no paço imperial com os mestres dos infantes, possibilitou a Zurara a oportunidade de receber a mesma instrução dada aos fidalgos e o contato com figuras proeminentes do Renascimento Português, assim como a leitura de diversos livros que Zurara se refere ao longo de suas obras. Com a avançada idade de Fernão Lopes, primeiro Cronista régio de D. Afonso V, Gomes Eanes de Zurara, já sido feito comendador e Cavaleiro da Ordem de Cristo, é nomeado Cronista régio e guardador das escrituras do Tombo, no ano de 1454.18 Durante os 20 anos em que exerceu suas funções até o seu falecimento, em 1474, Zurara produziu quatro crônicas, a “Crônica da Tomada de Ceuta”, “Crônica dos Feitos de Guiné”, “Crônica do Conde Dom Pedro de Meneses” e “Crônica de Dom Duarte de Meneses”. Embora possamos observar em praticamente todas as suas obras uma estratégia que buscava a legitimação de indivíduos, principalmente o Infante Henrique, de D. Pedro e D. Duarte, encontramos as bases da criação de um discurso que iria legitimar as próprias conquistas portuguesas, não somente no norte da África contra os mouros, como também ao longo do Atlântico Sul. Tarracha destaca o fato de que Zurara propõe uma forma de coleta de informações inteiramente diferenciada em relação ao utilizado por Fernão Lopes. Zurara dava importância ao testemunho oral, como observamos nas crônicas de Ceuta e Guiné, com participação direta do Infante D. Henrique. Cabe ressaltar que estes testemunhos vinham invariavelmente de pessoas do alto escalão da sociedade portuguesa do Quinhentos, como nobres e príncipes, o que nos permite identificar o constante ideal de cavalaria em suas crônicas e a intenção de se criar o mito do Infante D. Henrique. Entretanto, o discurso produzido por Zurara nos permite compreender o processo de produção literária das crônicas no contexto de afirmação da Dinastia de Avis, assim como identificar os signos culturais que serão constantemente relembrados ao longo do processo de expansão ultramarina portuguesa.19 Autores como Charles Boxer e Luiz Filipe Thomaz destacaram em suas obras o contexto histórico da sociedade portuguesa e os eventos que antecederam a conquista da praça de Marrocos. Desta forma, Charles R. Boxer20 contribui para esta reflexão à medida em que busca compreender as razões para a expansão ultramarina portuguesa como uma confluência de fatores, tanto religiosos e sociais como políticos. 21 Para Boxer, estes primeiros momentos de conquista após a ascensão de Avis representaram uma ruptura do padrão existente de expansão territorial, consolidando a lógica que seria amplamente adotada pela nobreza de Avis, do

1060

“sangue por mercês”.22 Boxer aponta que não havia uma organização homogênea nem da nobreza nem do clero na sociedade portuguesa. Isto se soma ao fato de que exceto em Lisboa e no Porto, cidades com porto e comerciais, não existia uma classe burguesa consolidada. Sobre a participação da nobreza nos negócios da expansão ultramarina, Luiz Filipe Thomaz23 aponta que a praça de Marrocos não representava uma confluência de interesses da sociedade portuguesa como apontava Vitorino Magalhães Godinho.24 Para Thomaz, a nobreza de Avis enxergava em Ceuta a possibilidade de se consolidar através de conquistas, obtendo cargos e status. Assim, a conquista de Ceuta, e posteriormente de Guiné representou muito mais a intenção de se afirmar da nobreza de Avis do que o interesse dos mercadores de estabelecer um controle comercial na região. Desta forma, analisar a crônica produzida por Zurara referente a expansão Ultramarina Portuguesa em África, nos permitirá compreender as estratégias intelectuais e retóricas utilizadas pelo cronista régio em suas obras, visando à afirmação das personalidades da dinastia de Avis envolvidas. Tais estratégias não representavam tão somente sua visão de mundo, mas um pensamento letrado do momento das conquistas.25 A Crónica da Tomada de Ceuta por El Rei D. João I começou a ser escrita por Gomes Eanes de Zurara aproximadamente em 1449, ou seja, 34 anos após o evento, durante o segundo ano de reinado de D. Afonso V. Segundo o próprio Zurara no capítulo III da crônica, o Rei D. Afonso teria solicitado que Zurara produzisse uma crônica sobre os feitos tão notáveis de seu avô, visto que estas não haviam sido terminadas, havendo o risco de se as perder quando fosse feita uma crônica sobre ele. Sobre os feitos de Dom João I, Francisco Maria destaca no prólogo da edição da Crônica de 1915: “Os feitos do rei D. João I, até ao tempo em que se tratou de fazer a paz com Castela, que se celebrou em 1411, tinham sido escritos em crónica por Fernão Lopes, o qual não pode continuar o trabalho por ser de muita idade e doente. Gomes Eannes de Zurara escreveu em uns cadernos as memórias dos feitos do mesmo rei a partir de 1411, que foi a época em que se começaram os preparativos para a empresa da tomada de Ceuta; e por isso foi desta empresa que principalmente se ocupou como o feito mais notável do último período da vida do mesmo rei. ”26

A crônica foi composta em 105 capítulos em sua formatação original, tendo atualmente sido conservado diversas cópias manuscritas. As duas edições mais antigas são a que se encontram no Arquivo Nacional Português na Torre do Tombo. O primeiro exemplar está reunido no Códice 368, que se estima ser do final do século XV, e o segundo se encontra no

1061

Códice 355 do começo do século XVI.27 A edição que temos disponível é justamente uma transcrição dos dois Códices da Torre do Tombo. O códice 368 se apresenta em um fino livro de pergaminho composto por 13 cadernos tendo cada um deles 5 folhas duplas. Cada página ocupa um retângulo e a escrita está disposta em duas colunas, contendo exatas 33 linhas cada. A formatação da letra segue o estilo gótico, aparentemente por uma única mão, com suas folhas marcadas em numeração romana. Todos os títulos são escritos em tinta vermelha, criando uma espécie de ornamentação na página. Está cópia não está totalmente completa, observando-se algumas lacunas ao longo do texto como a falta da folha de rosto, e os cadernos iniciais. O segundo manuscrito esta compilado no Códice 355 também na Torre do Tombo. Este é formado por 15 cadernos, compostos de 5 folhas duplas e sem numeração. A escrita também segue a disposição de duas colunas, mas com 35 linhas cada, contendo em sua totalidade de 25 a 30 letras. O formato da escrita segue o padrão gótico francês sendo escrito em uma única forma. Diferente do manuscrito do Códice 368, os títulos dos capítulos estão em tinta preta, porém eles seguem o a ideia de florear a página com a métrica da escrita. Na forma impressa, três edições se tornaram importantes dado o seu momento histórico, a de 1644, a impressão de 1900 e a de 1915, data do quinto centenário da tomada de Ceuta. A primeira impressão de 1644 foi composta em 142 folhas disposta em duas colunas com 36 linhas cada. Esta edição também contempla em seu final a narração do falecimento do Rei D. João I, o seu Epitáfio e o seu testamento. Segundo José Correia da Serra, esta edição foi solicitada pelo Bispo do Porto Dom Rodrigo da Cunha.28 A edição de 1900 foi impressa em três volumes, contendo cada um respectivamente 153, 157 e 127 folhas. A sua formatação segue o padrão de uma única coluna contendo 34 linhas com aproximadamente 40 letras cada. Cabe destacar que esta edição foi uma reimpressão da feita em 1644 adequando-se a grafia e linguagem. Esta edição foi publicada por Luciano Cordeiro de Melo e Azevedo para a Biblioteca dos clássicos portugueses. A última edição mencionada foi realizada para os eventos nacionais de 1915. Esta edição publicada pela Academia das ciências de Lisboa e organizada por Francisco Maria Esteves Pereira, contempla uma coletânea dos manuscritos do Códice 368 e 355 da Torre do Tombo. Esta extensa publicação conta com 88 páginas de introdução sobre a vida e a trajetória do Zurara, assim como dois apêndices, um sobre uma carta escrita por Gomes Eanes de Zurara ao Rei Dom Afonso V, e um documento referente ao relato de um escritor judeu sobre a tomada de Ceuta intitulado “Noticia da tomada de Ceuta dada por Abraham Ben Samuel Zacuto”.

1062

Ao analisarmos o discurso elaborado por Zurara na Crônica da Tomada de Ceuta identificamos sólida erudição, principalmente no que diz respeito as referências literárias que o cronista utiliza como instrumento retórico ao longo do texto. O valor estético empregado, assim como a estrutura narrativa indica uma preocupação na estrutura dos personagens envolvidos e na ratificação dos seus feitos como gloriosos e imortais através da ressignificação da tradição épica.29 Mesmo tendo sido completada em dois anos, a Crônica da Tomada de Ceuta se apresenta com uma escrita muito clara e uma narrativa minuciosa dos eventos, buscando-se atribuir a Dom Henrique um essencial papel na conquista portuguesa. Este fato nos permite concluir que o objetivo da obra era relatar os grandes feitos da casa de Avis, como relatado por Zurara quando da solicitação de D. Afonso V.30 É mister destacarmos que a produção literária de Zurara se enquadra na lógica “Das Armas às Letras”, onde o cronista, sob as ordens do Rei, produz um texto para legitimar os feitos heroicos. Desta forma ao analisarmos as participações de D. Duarte, D. Pedro de Meneses e do Infante D. Henrique nos eventos da Tomada de Ceuta, e a ênfase dada por Zurara nos relatos, podemos compreender as dinâmicas sociais da aristocracia portuguesa e como a decisão da conquista de Ceuta foi, principalmente, motivada pela nobreza.31 O ideal cruzadista e a intenção de se criar uma narrativa dos feitos de Avis se evidencia ao longo da crônica, à medida que Zurara, coloca D. Henrique32 como grande articulador, não apenas da conquista, mas também do “projeto” expansionista português. Zurara faz um amplo uso de referências literárias na crônica, em especial de escritores romanos e referências religiosas. A bíblia foi possível identificar referências a “Pentateuco”, “Paralipomenos”, Esdras e Macabeus”, “Livro de Salomão”, “Evangelhos”, “Epístolas canônicas”, “livro Apócrifo” e o “livro dos profetas”, perfazendo oito referências ou menções. A Padres católicos Zurara se refere a São João Crisóstomo, São Gregório, São Jerônimo, Santo Agostinho, São Bernardo, são Tomás de Aquino e a Alberto, O magno. Está grande quantidade de referências religiosas ao longo do discurso produzido por Zurara se deve em grande parte a duas razões. A primeira é a forte relação da coroa portuguesa com a Igreja católica, a que historicamente se mostra aliada tanto nas questões externas de Portugal como nas internas. A segunda é a motivação heroica empreendida na luta contra os Mouros no norte da África. Desta forma, ao fazer apropriação da tradição Cristã, Zurara busca legitimar os feitos narrados, adequando sua estrutura com o “Decorum” retórico.33 Zurara também faz constante uso de escritores greco-romanos, tais como Homero, Hesiodo, Heródoto, Aristótoles, Josepho, Ptolomeu pelo lado dos gregos. Aos romanos Zurara

1063

se refere a Cesar, Tito Lívio, Marco Túlio, Cícero, Ovidio, Salustio, Valerio Máximo, Plínio, Lucano, Seneca (tanto o trágico como o filosófico) e a Vegecio. A crônica apresentada pode ser entendida tanto como um importante instrumento da afirmação política portuguesa na “primavera dos descobrimentos” para uma jovem nobreza de Avis, como também uma forma de se estabelecer mitos e heróis que seriam utilizados e relembrados ao longo do século dezesseis, compondo assim parte da tradição cultural Portuguesa.34 Entretanto, ao nos debruçarmos na análise do discurso de Zurara, identificamos signos e símbolos que nos permitem compreender o dinâmico mundo social da literatura das crônicas portuguesas. Zurara não foi primeiro cronista régio, nem foi o último na longa história da monarquia portuguesa. Influenciado em sua formação por Fernão Lopes e servindo de base para tantos outros cronistas régio como Duarte Galvão, Rui de Pina, Damião de Góes, Francisco de Andrade, Fernão Lopes de Castanheda, Gaspar Correia e João de Barros e Diogo do Couto, Zurara conseguiu estabelecer em suas obras um estilo literário único, principalmente em relação as estratégias de organização dos testemunhos e de sua forma narrativa retórica. Embora alguns historiadores defendam que a sua Magnum Opus seja a “Crônica dos Feitos de Guiné”, foi justamente em sua primeira crônica, e a primeira da expansão ultramarina portuguesa que Gomes Eanes de Zurara estabeleceu o seu topos literário, ao mesmo tempo em que Portugal iniciava a primavera dos descobrimentos.

Notas: 1

Mestrando em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHIS-UFRJ). - E-mail: [email protected] 2 As origens deste conflito, assim como outras consequências políticas, econômicas e sociais para Portugal podem ser compreendidas na extensa obra de Charles Boxer sobre o assunto, em especial na obra Império Colonial português (1415-1825). S/e. Lisboa: Edições 70, 1977. 3 Estas estratégias dialogam com a ideia de L.F. Barreto que compreende a “Sociologia da cultura dos Descobrimentos” como um local da presença do “Rei/Estado”. Desta forma, a “articulação de todo o sistema de produção de conhecimentos náuticos, cartográficos, de construção naval, matéria médica, e antropologia/geografia colonial com o aparelho de estado gera certo número de peculiaridades características que se manifestam tanto na intencionalidade como nas normas de nascimento e difusão.” (BARRETO, 1989) 4 Curiosamente Dom Fernando de Borgonha recebeu duas alcunhas. A primeira seria “O Formoso”, dada a sua suposta beleza facial. A segunda, e mais relacionada com o contexto político, seria “O inconstante”, devido às consequências de sua política externa que quase levaram a perda da autonomia política portuguesa. 5 A Ordem de São Bento de Avis surgiu incialmente como uma ordem religiosa militar de cavaleiros portugueses. Sua criação em Portugal, no século XII, se confunde com o expansionismo das cruzadas e o ideal de cavalaria. 6 “ALENCASTRO, Luiz Felipe de. A economia política dos descobrimentos. In: NOVAES, Adauto (Org.). A descoberta do homem e do mundo. S/e. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 7 Cabe destacar que a taxa demográfica era relativamente baixa em Portugal comparada ao Reino de Castela. 8 L.F. Thomaz defende a ideia de que a principal motivação portuguesa em Marrocos não era a busca por alimentos (trigo), mas sim o interesse religioso de luta contra os mouros.

1064

9

Novamente é importante ressaltar que o contexto religioso andava ao lado do desejo de conquistas territoriais em Portugal quatrocentista. Segundo Boxer, em alguns momentos da expansão portuguesa, e no caso mencionado por ele o próprio São Francisco Xavier, “desejava tanto almas como qualquer mercador desejaria ouro”. (Boxer, 1977) 10 BARRETO, L. F. Os Descobrimentos e a Ordem do Saber. Ed. Gradiva, Lisboa, 1989 11 ibid., p. 14 12 Embora não sendo o foco deste artigo, vale mencionar a importância da produção da segunda crônica de Zurara, a “Crônica dos feitos de Guiné”, finalizada em 1453, compilada na “Chronica do descobrimento e conquista de Guiné” que se convencionou chamar de “Códice de Paris”, publicada a primeira vez em 1841. 13 Este fato pode ser explicado com a ordem dada por D. Afonso V para que Matheus de Pisano fizesse uma versão da crônica em Latim “De bello Septensi”. (PISANO, Mateus de, De Bello Septensi, manuscrito nº1 da Biblioteca Ducal de Vila Viçosa, século XV.) 14 Gomes Eanes de Zurara. Crónica da Tomada de Ceuta por El Rei D. João I. Academia das ciências de Lisboa segundos os manuscritos 368 e 355 do Arquivo Nacional por Francisco Maria Esteves Pereira. 15 Tradução livre do original. 16 “Coleção de livros inéditos de história portuguesa”, Lisboa, 1792 17 Podemos extrair deste trecho a importância dada por D. Afonso a lógica das “Armas às Letras” quando compara a importância dos homens que “fazem os feitos dignos de memórias” com “aqueles que depois de seus dias escrevem. ” 18 Zurara é tido como um cronista da nobreza e um representante dos seus valores. Este fato é importante para compreendermos os “símbolos” que o cronista faz uso em suas obras, principalmente a afirmação dos ideais de cavalaria. (TARRACHA) Zurara também faz uso de fontes escritas, embora em menor proporção, e destaca que “Eu, que esta história escrevi, li mui grã parte das crónicas e livros historiais. ” (TARRACHA, 1992) 20 BOXER, Charles R. Império Colonial português (1415-1825). S/e. Lisboa: Edições 70, 1977 21 No primeiro capítulo “Ouro da Guiné e o Preste João (1415-99)” Boxer define as motivações dos dirigentes portugueses (Reis, Príncipes, Nobres e Mercadores) como: a cruzada contra os Mouros; o ouro de Guiné; a busca por Preste João e as especiarias orientais. ibid., p. 22 ibid., p. 16-17 23 ibid. 24 GODINHO, Vitorino Magalhães. Os descobrimentos e a economia mundial. V.1, 2º edição. Lisboa: Editorial Presença, 1981. 25 Estas estratégias dialogam com a ideia de L.F. Barreto que compreende a “Sociologia da cultura dos Descobrimentos” como um local da presença do “Rei/Estado”. Desta forma, a “articulação de todo o sistema de produção de conhecimentos náuticos, cartográficos, de construção naval, matéria médica, e antropologia/geografia colonial com o aparelho de estado gera um certo número de peculiaridades características que se manifestam tanto na intencionalidade como nas normas de nascimento e difusão.” (BARRETO, 1989) 26 Gomes Eanes de Zurara. Crónica da Tomada de Ceuta por El Rei D. João I. Academia das ciências de Lisboa segundos os manuscritos 368 e 355 do Arquivo Nacional por Francisco Maria Esteves Pereira. 27 Cabe destacar que foi possível identificar outros manuscritos, como os Códices que se encontram na Biblioteca Nacional de Lisboa, no Museu Etnológico de Lisboa e em duas livrarias particulares, a de Anselmo Braancamp Freire e da Casa Cadaval. 28 José Correia da Serra, Colecção de inéditos de história portuguesa, Tomo I. 29 Em relação a questão da gloria, podemos identificar uma forte relação com a tragédia grega e o Topos da Glória Imorredoura que Vernat nos apresenta. A medida que Zurara narra os feitos ocorridos em Ceuta, destacando a participação exacerbada de Dom Henrique, por exemplo, o cronista reproporia valores do topoi épico através de diversos elementos factuais. 30 Cabe destacar que neste período de transição política pós “Ayllon”, a guerra e os “grandes feitos” eram as formas de que dispunha a nobreza para consolidar a sua posição frente ao Rei (Sociedade de Mercês). 31 Como apresenta Luís Felipe F. R. Thomaz no livro “De Ceuta a Timor”. 32 Zurara destaca que o Infante D. Henrique foi o único a lhe prestar testemunho oral. 19

Ao estabelecer o “decorum retórico”, Zurara define a forma narrativa da crônica estabelecendo dispositivos de legitimação do discurso em valores reconhecidos pela sociedade como a religião. 34 Não à toa que o Infante Dom Henrique entrará para o imaginário com a alcunha de “O navegador”, assim como D. Afonso V, conhecido como “o Africano”. Estas questões reforçam a importância que as crônicas de Zurara tiveram para a construção do Imaginário dos Descobrimentos. 33

1065

A reabertura do Consulado do Império do Brasil em Angola (1854-1857). Notas sobre a evolução do sistema consular imperial e sobre o lugar da África na política externa do Segundo Reinado Gilberto da Silva Guizelin*

Resumo: Em 1854, após vinte anos de intensas negociações, o Brasil obteve de Portugal a permissão para reabrir o seu Consulado em Angola, fechado desde 1828. Além de oferecer proteção aos brasileiros residentes em Angola, o Consulado deveria auxiliar na repressão ao tráfico transatlântico de escravos. Neste trabalho demonstrar-se-á de que maneira a responsabilidade de suprimir o comércio negreiro influiu sobre a organização da novíssima representação consular do Império; concluída em 1857 com a nomeação de Saturnino de Sousa e Oliveira. Palavras-Chave: Brasil Império, Angola Colonial, Política Externa.

Abstract: In 1854, after twenty years of intense negotiations, Brazil obtained from Portugal permission to reopen its Consulate in Angola, closed since 1828. In addition to providing protection to Brazilian residents in Angola, the Consulate should assist in the repression of the transatlantic slave trade. Therefore, this work will be to demonstrate how the responsibility to suppress the slave trade influenced the organization's brand new consular representation of the empire; completed in 1857 with the appointment of Saturnino de Sousa e Oliveira. Keywords: Brazil Empire, Angola Colonial, Foreign Affairs.

Breve antecedente histórico do Consulado do Brasil em Angola

Criado em outubro de 1826, o Consulado do Brasil em Angola (a primeira representação diplomática do país na África) funcionou até meados de 1828, quando, em decorrência do estremecimento das relações luso-brasileiras provocado pela usurpação do trono de D. Maria da Glória, filha de D. Pedro I, por D. Miguel, acabou por acarretar na expulsão do cônsul brasileiro, Ruy Germack Possolo, de Luanda.

*

Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual Paulista (UNESP) de Franca. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Orientador: Prof. Dr. Samuel Alves Soares. E-mail: [email protected]

1066

Restabelecida a comunicação entre o Rio de Janeiro e Lisboa em 1834, 1 após a restauração do trono de D. Maria da Glória, o Governo Imperial procurou recompor os seus postos diplomáticos e consulares existentes em Portugal e nos seus domínios antes da ruptura. Neste contexto, Manuel Alves Branco, que naquela época se encontrava à frente da Secretaria dos Negócios Estrangeiros, nomeou o Segundo-Tenente da Armada Imperial, Eugênio Aprígio da Veiga, para a chefia do Consulado do Império no Reino de Angola. O Consulado, segundo a justificativa apresentada por Alves Branco em seu Relatório, deveria “vigiar (...) o armamento de embarcações de pretos africanos”,2 de modo a obstaculizar o envio de novas remessas de cativos ao Brasil. Porém, alegando que os portos da África Portuguesa estavam fechados ao comércio exterior e, por conseguinte, ao estabelecimento de relações consulares o Governo Fidelíssimo (como o Governo português era comumente identificado na correspondência diplomática Oitocentista) negou o exequatur, isto é, a validação da carta patente de Aprígio da Veiga. Pelo decreto-lei de 5 de junho de 1844, o Governo Fidelíssimo abriu alguns de seus portos ultramarinos, entre os quais o de Luanda e de Benguela em Angola, ao comércio exterior, e anuiu à admissão de um vice-cônsul da Grã-Bretanha na sua colônia na África Centro-Ocidental.3 Tal fato motivou protesto do Governo Imperial, que cobrou a extensão ao Brasil da faculdade consentida à Grã-Bretanha argumentando que esta era uma obrigação moral, haja vista que, como argumentou Antônio de Meneses Vasconcellos de Drummond, chefe da Legação Imperial em Portugal, “o comércio lícito daquelas possessões [era] pela sua máxima parte (...) feito com o Brasil e por navios brasileiros”4. No entanto, o protesto movido Vasconcellos de Drummond não sensibilizou o Palácio das Necessidades, sede da pasta dos Negócios Estrangeiros do Estado português; sendo necessárias diversas trocas de correspondências entre o diplomata brasileiro e os sucessivos ministros dos Estrangeiros de Portugal entre 1844 e 1854, até que o Governo Fidelíssimo concordasse com a reinstalação do Consulado do Brasil em Angola. Conquistada a autorização portuguesa uma tarefa não menos hercúlea se apresentou à Secretaria dos Negócios Estrangeiros do Império: a de organizar a nova representação consular da monarquia brasileira no exterior. Acontece que, como procuraremos demonstrar nas próximas páginas, o Consulado do Brasil em Angola ocupava uma posição de preeminência no quadro das representações consulares do Império ao tempo do Segundo Reinado. Afinal esperava-se que este tivesse papel efetivo no combate ao tráfico transatlântico de escravos. Não obstante, sua reinauguração foi cercada de todos os cuidados, assim como a escolha dos seus primeiros ocupantes depois de Germack Possolo.

1067

A redefinição do status do Consulado do Brasil em Angola Tão logo o Império (re)conquistou o direito de nomear agentes consulares em todos os portos ultramarinos de Portugal abertos ao comércio internacional, a Secretaria dos Negócios Estrangeiros deu início aos preparativos para a reabertura do Consulado do Brasil em Angola. Uma das primeiras medidas foi redefinir a classe da mais nova repartição consular. Como recorda o diplomata Flávio Mendes de Oliveira Castro, a escala hierárquica do serviço consular brasileiro àquela época “começava dos Agentes Comerciais até os Cônsules-Gerais, passando intermediariamente pelos Chanceleres, Vice-Cônsules e Cônsules”.5 A fixação destas classes se deu na Regência, a partir do Regulamento Consular de 1834; sendo a mesma classificação mantida nos Regulamentos de 1847 e de 1872 que organizaram o serviço consular brasileiro ao longo do Segundo Reinado. Como o próprio nome já indica, o cônsul-geral era o posto de maior grau na hierarquia consular, de modo que todos os demais agentes de carreira ficavam a ele subordinados. 6 Via de regra, recomendava-se o estabelecimento de um cônsul-geral em cada uma das ditas potências marítimas do período. Todavia, observada a posição geográfica, a extensão territorial e, sobretudo, o volume das relações comerciais de cada potência e de seus respectivos domínios com o Império, não era incomum o credenciamento de um cônsul-geral na capital e de outro agente da mesma classe em uma província distante ou, então, em uma possessão ultramarina de uma mesma potência.7 Oras, Uma vez que Luanda distava menos do Rio de Janeiro do que de Lisboa, e tendo em vista que ali se fazia indispensável a presença de um agente de primeiro escalão “tanto para zelar [pelos] interesses brasileiros, como para informar prontamente ao Governo Imperial de quaisquer tentativas que por ventura [pudessem] ainda arriscar no sentido de reviver o extinto tráfico de Africanos”, 8 não é de se estranhar que os gestores da política externa do Segundo Reinado tenham optado por instalar ali uma repartição autônoma do Consulado-Geral em Lisboa. No momento em que Portugal consentiu o seu aval para a instalação de um agente consular do Brasil em Angola, o corpo consular do Império era formado por 183 agentes distribuídos nos quatro cantos do globo terrestre.9 Deste total, 29 eram cônsules-gerais, 2 eram cônsules, 6 eram cônsules honorários e 146 eram vice-cônsules. A grande maioria, 153 para ser mais exato, servia na Europa, ao passo que 23 residiam na América, enquanto que 7 deles atuavam em algum domínio colonial europeu na África, Ásia ou Oceania. Em tempo, na África o Império mantinha um consulado-geral na República da Libéria; outro na Cidade do Cabo, com jurisdição sobre os vice-consulados de Serra Leoa e da Ilha de Santa Helena

1068

(possessões britânicas no continente); e um vice-consulado no arquipélago português de Cabo Verde, que era subordinado ao Consulado-Geral de Lisboa. O tamanho e a cobertura alcançada pelo corpo consular do Brasil, completado pouco mais de trinta anos de sua criação é, sem sombra de dúvidas, surpreendente. Ainda mais se levarmos em conta que na transição do Primeiro Reinado para a Regência o corpo consular brasileiro limitava-se a não mais que 14 agentes consulares distribuídos somente entre o continente europeu e americano.10 No entanto, é preciso relativizar estes números, posto que o esquadrinhamento da composição do corpo consular do Brasil nos primeiros anos do Segundo Reinado revela alguns dados curiosos. É digno de nota que a maioria absoluta dos agentes consulares a serviço do governo de D. Pedro II fosse de vice-cônsules. Juntamente com os agentes comerciais, os vice-cônsules constituíam a base da carreira consular do Brasil Imperial. Eram, portanto, agentes de hierarquia mais baixa. Diferentemente dos quadros hierárquicos mais elevados, estavam dispensados de prestar o exame de admissão na carreira consular, instituído pelo artigo 7 do Regulamento de 1847. Isto quer dizer que não precisavam comprovar aptidão no idioma francês e inglês, as línguas da diplomacia Oitocentista, nem conhecimento em matéria de direito das Gentes, marítimo e comercial. De igual forma, estes agentes também não precisavam ser necessariamente brasileiros. Com efeito, sobrenomes como Corner, Kramp, Foster, Meyers, O’Donnel, Fox entre outros particularmente estranhos ao quadro de nomes próprios da língua portuguesa integravam o corpo consular do Brasil em princípios da década de 1850, o que sugere que boa parte dos vice-cônsules do Império eram estrangeiros. Tendo em vista que a população brasileira instruída no século XIX restringia-se, para usar a expressão cunhada por José Murilo de Carvalho e bastante pertinente ao que queremos demonstrar, à “uma ilha de letrados num mar de analfabetos”,11 não é estranho que o Governo Imperial tenha sido obrigado a recorrer a admissão de estrangeiros para completar o seu corpo consular. Entretanto, mais do que uma alternativa para contornar a falta de gente capacitada e instruída para a profissão, a nomeação de estrangeiros para servirem como vice-cônsules do Império era também uma alternativa para contornar o recorrente déficit orçamentário da Secretaria dos Negócios Estrangeiros. Isto porque, ao contrário dos cônsules-gerais e dos cônsules privativos, os vice-cônsules não recebiam ordenados fixos do Tesouro Público, nem tampouco tinham direito a aposentadoria; sua remuneração resumia-se à metade do valor dos emolumentos (taxas) cobrados pelos serviços prestados aos marinheiros, comerciantes e súditos do Império no exterior. No mesmo sentido da economia política, os cônsules honorários, geralmente designados para servirem em potências marítimas de ordem

1069

secundária nas relações comerciais com o Império, também não integravam a folha de pagamento da Secretaria dos Negócios Estrangeiros, e além de contarem com a metade dos emolumentos, era permitido exercerem outra atividade simultânea à consular para completar a sua subsistência. Não surpreende, assim, que o número de cônsules honorários superasse em duas vezes o número de cônsules privativos. Fato é que, em face do importante papel que a representação consular em Angola viria a assumir no combate ao tráfico transatlântico de escravos para o Brasil, esta não poderia ser confiada a qualquer indivíduo por uma mera questão de economia. O seu comando devia ser entregue à gente experiente e, caso isso não fosse possível, seu ocupante deveria estar ao menos em sintonia com a postura contrária ao tráfico negreiro assumida pelo Governo Imperial após a aprovação da Lei Eusébio de Queirós.

Hermenegildo Frederico Niterói: um diplomata com experiência na e em África Em seu Relatório do ano de 1846, ao tratar da situação do corpo consular brasileiro, Bento da Silva Lisboa, barão de Cairu, então responsável pela condução da Secretaria dos Negócios Estrangeiros do Império, recobrou aos “Augustos e Digníssimos Senhores Representantes da Nação”, isto é, aos deputados, de que “o pessoal em serviço” de Sua Majestade Imperial, advertiu Cairu, “não [era], geralmente falando, o mais próprio para desempenhar as importantes funções a seu cargo”. Ainda assim, o ministro estava convicto de que “com o tempo se far[iam] as substituições necessárias” no intuito de capacitar o corpo consular do Império com empregados especialmente formados para o desempenho daquela importantíssima função para o desenvolvimento das relações exteriores do país. Até que isso fosse possível ele aconselhava que se prosseguisse à “escolha de pessoas recomendáveis pelos seus talentos e luzes adquiridas no manejo dos negócios para certas missões especiais” 12 quando as circunstâncias assim o exigissem. A despeito, contudo, das deficiências do corpo consular brasileiro naquele tempo, em se tratando de assuntos africanos ninguém tinha mais experiência dentro do quadro de pessoal da Secretaria dos Negócios Estrangeiros de finais da década de 1840 e princípios da década de 1850, como assinalado por Alberto da Costa e Silva,13 do que Hermenegildo Frederico Niterói. A primeira missão diplomática desempenhada por Niterói na África se deu entre 1841 e 1844, quando, ao lado de Joaquim Tomás do Amaral (futuro visconde de Cabo Frio), ocupou uma das cadeiras correspondentes ao Império na Comissão Mista anglo-brasileira sediada em Freetown – Serra Leoa. Uma vez integrado ao quadro de comissários daquele

1070

tribunal Niterói assumiu uma linha clara de objeção aos preceitos adotados pelos seus colegas britânicos no julgamento dos casos apresentados àquela corte. Vindo, inclusive, a ter papel fundamental na absolvição do Ermelinda, navio pertencente a Francisco Lisboa, cuja família era notoriamente conhecida na Praça de Pernambuco pelo seu envolvimento com o comércio negreiro, capturado na altura da costa angolana pelo cruzador britânico Water Witch, aos 27 de outubro de 1841, sob a alegação de estar armado para emprego no tráfico transatlântico de escravos.14 Em 1850, Niterói foi chamado por ninguém mais, ninguém menos que Paulino José Soares de Souza, um dos nomes mais fortes do gabinete Saquarema (leia-se: Conservador) então no poder, para desempenhar a sua segunda missão no continente africano. Desta vez na dupla qualidade de cônsul-geral e encarregado de negócios interino do Império na recémindependente República da Libéria. À primeira vista chega a soar contraditório o afã com que o Brasil, à época um país de regime monárquico-escravista, veio a reconhecer e a estabelecer relações com um país cujo sistema além de lhe ser politicamente antagônico, em termos sociais lhe era absolutamente avesso. Vale frisar, ademais, que interesses de cunho comercial também não existiam para justificar essa súbita aproximação. Contudo, havia uma manifesta conveniência política no estabelecimento de relações do Império com o Estado liberiano, uma vez que era do interesse do Governo Imperial favorecer a emigração dos chamados “africanos livres”15 residentes no Brasil para aquele país. Neste sentido, a tarefa de Niterói consistia em fechar um acordo de emigração de “gente de cor” livre com o Governo Liberiano ao menor custo para o Tesouro Público Imperial. Niterói não foi bem-sucedido nesta sua segunda missão. Em parte, seu fracasso pode ser explicado pelas recorrentes exigências do Governo da Libéria de que o Governo Imperial arcasse para além do transporte e da instalação inicial dos emigrados, com o sustento dos mesmos por um prazo de pelo menos seis meses. Por outro tanto, a missão de Niterói também foi obstaculizada pela própria instabilidade político-institucional da Libéria na medida em que as autoridades da Monróvia, sua capital, encontravam-se constantemente envolvidas na contenção de revoltas e motins das tribos nativas residentes ao sul e ao norte do país. Sem falar nas suspeitas da própria opinião pública da Libéria quanto as verdadeiras intenções do Governo Imperial, levantadas, ao que tudo indica, pelas sociedades filantrópicas e antiescravistas britânicas que fizeram circular pelo país africano folhetos com informações oficiais trocadas entre os gabinetes de Londres e do Rio de Janeiro sobre as dificuldades do Brasil em estancar o infame comércio negreiro.16

1071

Apesar do fracasso colhido na Libéria, a reputação de eficiente diplomata que, ao que tudo indica, era conferida a Niterói não foi maculada, de modo que, a 23 de agosto de 1854, ele foi nomeado cônsul-geral do Brasil em Angola. Todavia, por alguma razão, a qual os documentos não informam qual seja, Niterói não assumiu o posto, vindo a ser exonerado do mesmo a 10 de dezembro daquele ano.17

A nomeação de Saturnino de Sousa e Oliveira

Depois da exoneração de Niterói, o posto consular em Luanda permaneceu vago até 20 de janeiro de 1856, data em que Inácio José Nogueira da Gama veio a ser designado para preenchê-lo.18 Diferente de seu antecessor, cuja trajetória diplomática encontra-se registrada no livro de assento dos empregados da antiga Secretaria dos Negócios Estrangeiros, o percurso profissional que alçou Nogueira da Gama ao posto consular em Angola é uma incógnita. O mais certo é que ele tenha sido nomeado por indicação de seu parente Brás Carneiro Nogueira da Costa e Gama, conde de Baependi, gentil-homem da Imperial Câmara de D. Pedro II.19 Contudo, a passagem de Nogueira da Gama por Angola foi relâmpago. Desembarcado em Luanda a 1 de dezembro de 1856, Nogueira da Gama se viu obrigado a se retirar-se para Lisboa, por motivos de saúde, passado apenas dois meses de sua chegada na capital angolana.20 Por decreto de 24 novembro de 1857 a chefia do Consulado-Geral do Brasil em Angola recaiu sobre o médico Saturnino de Sousa Oliveira.21 Oriundo do clã dos Oliveira Coutinho, o pai de Saturnino, de quem herdara o mesmo nome, ocupou interinamente a pasta da Fazenda em 1847, foi efetivado na dos Negócios Estrangeiros entre 1847 e 1848 e , antes de vir a falecer, no final da década de 1840 passou ainda pela da pasta Justiça. 22 Já seu tio, Aureliano de Sousa e Oliveira Coutinho, visconde de Sepetiba, ocupou o assento da Justiça entre 1833 e 1835, e dos Negócios Estrangeiros em duas ocasiões: a primeira durante a Regência, entre 1834 e 1835, e a segunda, nos dois primeiros gabinetes do Segundo Reinado, entre 1840 e 1843.23 Como se vê, Saturnino descendia de uma tradicional família de servidores do Estado e da Coroa brasileira. Não surpreende, portanto, que mesmo antes de exercer a função consular, quando ainda se dedicava à medicina, ele tenha se envolvido no principal embate políticos de sua época: a supressão do tráfico transatlântico de escravos. Foi à frente da redação do jornal O Philanthropo,24 no biênio de 1851-1852, que Saturnino externou seus pensamentos e projetos políticos em relação a matéria do tráfico de africanos. N’O Philanthropo Saturnino publicou, dividido em dois capítulos, uma “Memória

1072

sobre os meios de abolir a escravatura e de promover a colonisação [sic] no Império do Brasil”; acompanhada por um projeto de lei, também de sua autoria, com vista a extinguir a escravidão urbana e promover a colonização.25 Em linhas gerais, Saturnino defendia a supressão imediata e definitiva do tráfico negreiro por entender que este estava diretamente associado às frequentes ondas de epidemias que assolavam as cidades brasileiras. Pensamento este, é válido dizer, bastante em voga entre os sanitaristas e higienistas do Brasil de meados do século XIX. Saturnino não tinha a experiência diplomática de Niterói. Mas não era menos culto e instruído. Afinal, para todos os efeitos, era um doutor formado pela Escola de Medicina da Faculdade do Rio de Janeiro.26 Certamente, a sua conhecida oposição ao tráfico transatlântico de escravos contou para a sua nomeação. Ademais, é preciso lembrar, que Caetano Maria Lopes Gama, visconde de Maranguape, titular da pasta dos Negócios Estrangeiros à época de sua nomeação, foi um dos componentes da notória facção áulica liderada pelo visconde de Sepetiba, e, que, nos primeiros anos do Segundo Reinado exerceu uma considerável influência sobre o imperador e, por conseguinte, sobre a condução do Estado imperial. 27 Em face, portanto, da antiga relação de amizade entre os dois viscondes é plausível que Maranguape tenha se lembrado do sobrinho de Sepetiba, e decidido convidá-lo a assumir o posto consular vago em Luanda. Conclusão: Pelo o que acima foi exposto, constata-se que a decisão de abrir em Luanda o trigésimo Consulado-Geral do Império envolveu um planejamento com vista a refletir a importância estratégica do posto em questão no quadro do serviço consular do Segundo Reinado. Não por acaso, se dos três nomes escolhidos para ocupar o comando daquela repartição apenas Niterói parecia possuir alguma experiência em assuntos diplomáticos, Nogueira da Gama e Saturnino não eram menos preparados para o desempenho das funções que deles se esperavam uma vez que ambos descendiam de famílias acostumadas a formar e a ceder servidores ao Estado imperial. Sem embargo, podemos afirmar que o Consulado-Geral do Brasil em Angola era, ao tempo de sua reabertura, a principal representação mantida pelo Império na África Oitocentista, por conseguinte, uma das principais no âmbito de todo o Atlântico Sul. 1

Para um quadro geral das relações luso-brasileiras do período ver CERVO, Amado; MAGALHÃES, José Calvet. Depois das caravelas: as relações entre Portugal e Brasil, 1808-2000. Brasília: Editora da UnB, 2000. 2 Relatório do Ministro dos Negócios Estrangeiros, 1835, p. 5.

1073

3

CAETANO, Marcello. Portugal e a internacionalização dos problemas africanos (História duma batalha: da liberdade dos mares às Nações Unidas). 3ª edição. Lisboa: Edições Ática, 1965, p. 47 (vide nota nº 60). 4 Nota de 31 de julho de 1846, de Antônio de Menezes Vasconcellos de Drummond, enviado extraordinário e ministro plenipotenciário do Brasil em Lisboa, para D. Francisco de Almeida Portugal, conde do Lavradio, Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal. Arquivo Histórico Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal, Fundo da Legação Brasileira em Portugal, cx. 370. 5 CASTRO, Flávio Mendes de Oliveira. Dois séculos de história da organização do Itamaraty (1808-2008). Vol. I, 1808-1979. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2009, p. 94. 6 Ver o Capítulo III do Regulamento Consular de 1847, que trata “Das relações dos Empregados Consulares entre si, e com seus Superiores, e de sua Correspondência”. In: Coleção das Leis do Império do Brasil de 1847, p. 56-58. 7 Ver o Capítulo I do Regulamento Consular de 1847, que trata “Da nomeação, Classes, Vencimentos e Prerrogativas dos Empregados Consulares”, em especial os artigos 3º, 4º e 5º. In: Coleção das Leis do Império do Brasil de 1847, p. 49-50. 8 Relatório do Ministro dos Negócios Estrangeiros, 1854, p. X. 9 Quadro nº 4: Mapa demonstrativo dos agentes consulares do Brasil residentes nos diversos portos estrangeiros. In: Relatório do Ministro dos Negócios Estrangeiros, 1853, p. 6-10. 10 Quadro nº 4: Relação do Corpo Diplomático e Consular Brasileiro, residente na Europa e América, seus vencimentos anuais, e mais despesas das Legações e Consulados, depois da entrada do Excelentíssimo Ministro atual [Francisco Carneiro de Campos]. In: Relatório do Ministro dos Negócios Estrangeiros, 1830, s/p. 11 CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial; Teatro de sombras: a política imperial. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/Relume-Dumará, 1996, p. 55. 12 Relatório do Ministro dos Negócios Estrangeiros, 1846, p. 7-5. 13 SILVA, Alberto da Costa e. Um rio chamado Atlântico: a África no Brasil e o Brasil na África. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Ed. da UFRJ, 2003, p. 32. 14 REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos; CARVALHO, Marcus J. M. de. O Alufá Rufino. Tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico negro (c. 1822 – c. 1853). São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 241257. 15 A categoria de “africanos livres” correspondia aos africanos importados ilegalmente e resgatados após a promulgação da Lei de 7 de novembro de 1831. Para maiores informações a respeito ver MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti. O direito de ser africano livre. Os escravos e as interpretações da Lei de 1831. In: LARA, Silvia Hunold; MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. (Orgs). Direitos e justiças no Brasil: ensaios de história social. Campinas: Editora da UNICAMP, 2006, p. 129-169. 16 Relatório de 12 de maio de 1853 de Hermenegildo Frederico Niterói para Paulino José Soares de Souza (AHI 221/02/07). 17 Relatório do Ministro dos Negócios Estrangeiros, 1854, p. 12 (Anexo A). 18 Relatório do Ministro dos Negócios Estrangeiros, 1856, p. 13 (Anexo A). 19 Sobre a posição do conde de Baependi na corte de D. Pedro II ver GENOVEZ, Patrícia Falco. “Os cargos do paço Imperial e a Corte no Segundo Reinado”. Métis. Caxias do Sul: Edusc, vol. 1, nº 1, p. 215-237, 2002. 20 Boletim Oficial do Governo-Geral da Província de Angola nº 592 de 31 de janeiro de 1857. 21 Relatório do Ministro dos Negócios Estrangeiros, 1858, p. 29 (Anexo A). 22 BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Diccionario bibliographico brazileiro. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1902, p. 197-198 (vol. 6). 23 SISSON, Sébastien Auguste. Galeria dos brasileiros ilustres. Vol. II. Brasília: Senado Federal, 1999, p. 465; BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Diccionario bibliographico brazileiro. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1902, p. 373-374 (vol. 1). 24 Sobre a história deste periódico ver KODAMA, Kaori. “Os debates pelo fim do tráfico no periódico O Philantropo (1849-1852) e a formação do povo: doenças, raça e escravidão”. Revista Brasileira de História. São Paulo: ANPUH, v. 28, nº 56, p. 407-430, 2008. 25 O Philanthropo, nº 102, de 14 de março de 1851; e nº 106, de 9 de maio de 1851. 26 BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Diccionario bibliographico brazileiro. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1902, p. 199 (vol. 6). 27 Sobre a organização e a influência da facção áulica ver BENTIVOGLIO, Júlio. “Palacianos e aulicismo no Segundo Reinado – a facção áulica de Aureliano Coutinho e os bastidores da corte de D. Pedro II”. Revista Esboços. Florianópolis: Programa de Pós-Graduação em História da UFSC, vol. 17, nº 23, p. 187-221, 2010.

1074

Memória e Imigração: uma análise das falas dos deslocados da Segunda Guerra Mundial Guilherme dos Santos Cavotti Marques1 Resumo: Este trabalho tem por objetivo analisar , a partir de três falas memoriais, o processo migratório dos deslocados da Segunda Guerra Mundial. De modo geral, buscaremos identificar as contingências subjetivas que se tornaram marcos nesse processo. Assim, buscamos lançar um novo olhar sobre a temática migratória, trazendo à primeiro plano as percepções daqueles que vivenciaram essa condição. Nesse sentido, a metodologia da história oral foi central para aliceçarmos nossa análise, pois nos possibilitou especificidades que, de outro modo, dificilmente seriam alcançadas. Palavras-chave: Deslocados, Imigração, Memória. Abstract: This paper aims to analyse, from three memorial speeches, the migratory process of displaced persons from Second World War. In general, we want to identify the subjective contingencies which have become important mark in this process. Thus, we’ll try to provide a new point of view about this theme, putting in foreground the perceptions from whom lived that situation. Therefore, the methodology of oral history was central to our analysis because it enabled us to observe specificities. Keywords: Displaced persons, Imigration, Memory.

Vivemos um período de grandes transformações no cenário internacional acerca dos processos migratórios. Tomando os noticiários diários, a “crise migratória” gera comoções e debates sobre as políticas de imigração e recepção no mundo, sobretudo, na Europa. De acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados – ACNUR -, ao final de 2014 haviam cerca de 59,5 milhões de deslocados no mundo; destes 19,5 milhões de refugiados2. Os maiores percentuais após a Segunda Guerra. É exatamente no imediato pós-guerra que concentraremos nossa análise, buscando compreender através dos relatos e memórias dos imigrantes que se deslocaram nesta condição, os obstáculos e momentos marcantes, desde o desenraizamento de sua localidade, passando pela viagem até, finalmente, a chegada destes em território brasileiro. Segundo Odair Paiva3, os deslocamentos podem ser analisados a partir de dois matizes, o macroestrutural e o singular. O primeiro se refere às determinações e conjunturas econômicas e políticas, depreendido que tais elementos, e razões para se deslocarem, fogem dos limites dos imigrantes. De outra forma, tais deslocamentos não são consequências apenas de tais determinações, podendo estes estarem imersos na subjetividade, no cotidiano daquele

1075

que imigra. Em outras palavras, faz-se emergir uma nova luz explicativa ao fenômeno imigratório. Apesar de, temporalmente distanciado no tempo, as falas dos deslocados transfiguramse enquanto indícios que, como nos lembra Thomson, nos remetem as razões que levam os indivíduos a construírem suas memórias marcadas por certos eventos, e, concomitantemente, não conseguirem conjecturar como o processo de relembrar poderia se transformar em um meio, através do qual poderíamos “explorar os significados subjetivos da experiência vivida” 4 e, por conseguinte, da natureza da memória individual.

1. Por que imigrar para o Brasil? “Guerra é uma coisa que não serve para nada, a única coisa que serve é para destruir os povos, mais nada. Aonde nós nascemos hoje em dia não é mais território italiano. E na época era italiano”5. Esta fala, obtida através de uma série de entrevistas realizadas com refugiados da Segunda Guerra Mundial nos permite vislumbrar o quadro histórico que cercava as premissas que levaram um milhão de pessoas a optarem pela imigração para outros países. Krystina Harasyn, imigrante ucraniana, relata que quando tinha dois anos de idade sua família fora arrancada de sua residência, assim como seus vizinhos, e foram obrigados a caminharem durante quilômetros no inverno europeu até a estação de trem que os levaria para a Alemanha. Suas lemabranças marcam momentos singulares tais como, “os alemães invadiram [...] minha mãe embrulhou cada uma de nós [ela e sua irmã] em uma colcha, pegou uma sacolinha com mantimentos e saíram para nunca mais voltar”6. Relatos sobre esses acontecimentos são possibilitados em vista do momento propício de sua escuta, ou melhor, quando nos fala Pollak das conjunturas favoráveis ao relato de tais memórias, fazendo emergir lembranças, sempre intermediadas pelo presente, sobre o passado7. Ademais, devemos ressaltar que tais falas carregam consigo traços da formação das identidades desses imigrantes, sendo estas marcadas pelos eventos que participaram. Neste sentido, suas identidades e referências são compreendidas enquanto relacionais, em última instância, são sujeitos relacionais8. Outrossim, utilizando o conceito cunhado por Pollak9, podemos caracterizar tais memórias enquanto “subterrâneas”, quer dizer, memórias que se encontram marginalizadas, silenciadas quando do cotidiano e passam a ser acessadas a partir do conflito entre vozes disputantes na construção de memórias e histórias em torno dos eventos que foram vividos.

1076

Tais relatos podem, segundo o autor, ser acessadas em momentos de crise, neste caso, o fim do conflito mundial poderia ser considerado um momento ideal para o surgimento dessas vozes. Apesar da força desses relatos, um deles destaca-se pela sucessão de dominações as quais fora submetida. Ana Toncic10, originária do Vale de Vitala, Eslovênia, lembras das constantes capitulações que a cidade sofrera em um curto período de tempo. Quando da Primeira Guerra, eram dominados pelo Império Austro-Hungaro, tendo, por conseguinte, observado o avanço italiano para aquelas terras; fato que perdurou até meados de 1943. Estes quadros ressaltam o intricado contexto de disputas intestinas entre invasores e resistência, afinal uma das fortes lembranças de Toncic quando ainda estava na Eslovênia, foi a vingança dos fascistas à ação da Resistencia. Os primeiros cercaram a aldeia e atearam fogo nas casas, além de queimarem as pessoas vivas. Todavia, ressalta ela, “quanto mais eles faziam isso, no caso os fascistas, mais a resistência crescia”11. Ainda assim, após a guerra a Eslovênia ficou submetida aos poderes de Josip Tito, que então comandava a antiga Iuguslávia. Nos relata ainda que este fora um dos fortes motivos que a levou a imigrar, afinal, “ninguém gostava de ser submisso aos sérvios. ‘Sentíamos’ humilhados”12. Acrescente-se a essa situação, a repressão vivenciada pela refugiada quando da instalação do “titoísmo”, motivada pelo desejo de se construir, segundo a memória de Toncic, uma Iugoslávia que não “existia de verdade”, mas criada e sonhada por Tito, com a incorporação da Sérvia, Bósnia, Dalmácia, Herzegovina, Croácia, dentre tantas outras regiões. Conectada a uma rede de informações, Ana Toncic destaca que recebia cartas de amigas que haviam decidido fugir da Europa e que se instalaram na América. Não obstante, para além da influência que a estrutura da sociedade a qual estava inserida engendrou, a ação conseguida por essa rede de contatos não pode ser negligenciada, afinal, “elas diziam que estavam bem, que estavam livres e um dia decidi ir também. Atravessei em uma quinta feira a noite. Na sexta pela manhã encontrei meu noivo”13. Nesses breves, porém fortes relatos, podemos verificar motivações que levaram tais indivíduos a optarem pela imigração para outros países, e o Brasil nem sempre era a primeira opção. Neste sentido, suas falas permitem um olhar mais subjetivado14 a esses processos. Krystina Harasyn, por exemplo, ao falar sobre a escolha do país ao qual imigrariam, destaca que o Brasil acabou sendo a destinação de sua família devido aos impeditivos adotados por outros países, tais como EUA, Inglaterra ou Canadá, em relação a extensão familiar dos imigrantes. Os ditos países estipulavam, através de suas lembranças, que imigrantes poderiam ter no máximo dois filhos; seus pais possuíam quatro. Ainda assim o

1077

Brasil não se afigurou como a primeira opção de destino, este seria a Argentina, todavia, por descaminhos do governo de Perón as fronteiras foram fechadas. Nessas circunstâncias, o Brasil surgiu no horizonte após a passagem de um documentário sobre o país, marcado ainda pela fala de sua mãe: “é para lá que nós vamos, é a última chance, [...] não tem mais para onde ir”15. Essas falas nos possibilitam, como nos alerta Thomson, perceber o quanto os campos da história e da memória se entrelaçam pelo envolvimento maior na recuperação e na reapropriação do passado que as contribuições trazidas pela história oral possibilita. Neste sentido, complexifica-se ainda mais a escolha do Brasil enquanto país de destino, sendo evidente as variantes pelas quais essas escolhas poderiam estar submetidas, fazendo com que a vivência de cada imigrante o possibilite fatos singulares.

2. A Viagem

A viagem marca nos relatos dos imigrantes um ponto central neste processo, que, apesar de possuir variações nas experiências vividas nos navios, poderiam ser compreendidas enquanto o momento da tomada de consciência de que se afastaria em permanente de sua terra natal. Segundo Pollak, esse quadro poderia ser caracterizado como marcos imutáveis dentro da memória, elemento que a constitui tanto quanto a flutuação e variabilidade marcada pelas experiências individuais16. Ademais, ainda de acordo com Pollak, a memória e suas narrativas são fenômenos construídos

social

e

individualmente

podendo

realizar,

inclusive,

uma

relação

“fenomenológica” estreita entre a memória e o sentimento de identidade. Neste caso, a identidade está fortemente ligada ao processo de transitoriedade no qual o sujeito que se desloca encontra-se. Logo, o próprio fenômeno de deslocamento constitui, por si só, um ato de contestação a uma ordem vigente que se vislumbrava, tendo sua expressão no fundado teor, ou no da prática, perseguição política, social, religiosa. Enfim, quadros em que se verificam desrespeito e violações dos direitos humanos17. Ainda que, em larga escala, esse processo da viagem se apresente como um marco imutável do processo de migração, Pollak ressalva que dentro das experiências individuiais, marcadamente pela relação entre indivíduo-experiência, as variabilidades podem trazer consigo importantes significações, sobretudo na construção da identidade dos indivíduos. Nesse sentido, ilustraremos essas pressuposições a partir da análise de três narrativas.

1078

Retornemos a fala de dona Ana Toncic. A primeira experiência vivida com a busca do refúgio foi, paradoxalmente, a negação, o cerceamento dos países de destino. Ainda que tivesse trabalhado para o governo de Tito, sua aceitação foi obtida nos principais países que recebiam refugiados naquele momento, tais quais EUA, Canadá e Inglaterra. Todavia, pela descontinuidade de uma história familiar, seu agora esposo, havia sido “manchado” por um coiote- um ex-esposo de uma tia que decidiu vingar-se naquela ocasião- denunciando-o enquanto comunista para as autoridades dos respectivos países, fazendo-os ouvir, por mais de uma vez as palavras, “o teu marido não, mas você sim, pode ir a qualquer lugar” 18. Não obstante, esse quadro de negação e redução das possibilidades foi um grande choque de realidade para a refugiada que em suas lembranças apresenta-se ainda enquanto uma forte marca de dor dentro do processo de deslocamento. Certamente, essa negativa explicitada no exemplo anterior vem ao encontro do contexto global em que estavam inseridos, notadamente o recrudescimento da Guerra Fria, haja vista as disputas engendradas no interior da recém criada Organização das Nações Unidas(ONU), e o respectivo órgão de trato com os refugiados a Organização Iternacional para Refugiados(OIR)19. Não podemos ainda negligenciar as posturas belicosas entre os dois blocos que, a partir de 1948 com o bloqueio de Berlim e de 1950, com o início da Guerra das Coreias, servia de pano de fundo no desenvolvimento do refúgio de Toncic. Dentro dessa situação de deslocada e refugiada de seu país de origem, e vendo suas possibilidades se esgotarem, descobriram as atividades levadas a cabo pelos representantes brasileiros no campo de refugiados. Apesar de possuir pouquíssmas informações acerca do Brasil, seu marido havia sido aceito pelas autoridades brasileiras enquanto refugiado político. É interessante ressaltar ainda o choque pelo qual Toncic passou ao ser informada que seriam bem aceitos no Brasil pela potencialidade que eles representavam no proceso de branqueamento da raça. Assim, saídos da Europa em fevereiro de 1952 pelo porto de Gênova, iniciava-se de fato sua atravessia pelo Atlântico. Apesar de ter-se colocado enquanto refugiada pela decisão de fugir da Iugoslávia, percebe-se em sua fala a complexidade da subjetividade nos deslocamentos. Relata que logo no início da viagem pelo navio adoeceu, entendida por ela como consequência do sentimento de arrependimento. Entre questionamentos pelo que havia feito, o desenraizamento fora um processo dificultoso, ainda mais pelas fortes ligações que ainda mantinham, mesmo em seu íntimo, de pertencimento a uma terra, uma região. Em resumo, sua viagem poderia ser descrita a partir

1079

do seguinte trecho, “eu acho que entre arrependimento ‘o que eu fiz?’. Minha mente começou a cair em depressão”20. Por outro lado, a chegada ao Brasil pode ser comprendida enquanto uma ambivalência. Em um primeiro momento um fato iria demonstrar a diferença cultural à qual estariam, a partir de agora, sujeitos. Sua chegada ao Rio de Janeiro se deu nas comemorações de carnaval, fazendo-a refletir, ainda dentro do navio, os motivos que levavam as pessoas a gritarem pelas ruas, fantasiadas e mascaradas, instaurando em seu modo de pensar um quadro de loucura. Ao desembarcar e presenciar mais de perto toda a comemoração característica da sociedade carioca, rapidamente retornara ao navio levada pelo pensamento “não, isso é loucura, o que estou fazendo aqui”, a desejar seu retorno para o continente europeu. Marcada a diferença cultural manifesta, fora acalmada pelo comandante do navio e, após breve explicação, compreendera que se tratava de uma festividade daquela população, ainda que permanecesse estranha aos seus olhos, afinal, “esse país é maluco”21. O segundo contexto que marcaria essa ambivalência poderia ser indicado pela sua chegada a Ilha das Flores. Passado o estado de surpresa e conflito cultural, foram os refugiados embarcados para a Hospedaria da Ilha das Flores, local fundamental dentro do trânsito da imigração dos refugiados para o Brasil. Ao passo que a chegada a cidade do Rio de Janeiro marcaria as profundas diferenças entre aquele que se refugia e a sociedade que o acolhe, a chegada a Hospedaria demonstararia uma situação mais amena e acolhedora. Suas lembranças desse momento seriam reveladas pela beleza da localidade, pela sua paisagem salteada pelos “bougavilles”. Vale destacar ainda o quão intrigante essa fala pode parecer, pois passados os momentos de arrependimento e choque cultural, a Ilha das Flores seria destacada enquanto uma ilha de fantasia. Mais a frente problematizaremos melhor essa questão. Em seguida, as falas de Graziela e Guerrino -refugiados italianos- nos permitem ainda verificar outras experiências que singularizam os processos de se deslocar. Ainda que seu início tenha sido igualmente marcado pelo campo de refugiados, como a experiência de Toncic, as contingências que os trouxeram para o Brasil marcariam novas expectativas. A escolha pelo Brasil, realizada mais um vez pelos representantes brasileiros, por parte da família de Guerrino estava atrelada fortemente pelas faculdades que seu pai poderia oferecer ao desenvolvimento da área industrial brasileira. Não obstante, a sua formação pela Fábrica Italiana de Automóveis de Turim (FIAT) em mecânico de maquinaria pesada, era compreendida enquanto fator de interesse por parte do governo brasileiro, o que veio a facilitar sua aceitação na condição de refugiado22. 1080

Ao passo que sua esposa Graziela -também imigrante italiana- destaca que a vinda de sua família para o Brasil marcava ainda a busca do restabelecimento dos laços familiares, haja vista que parentes de seu pai e de sua mãe haviam imigrado para a Argentina na década de 1920. Certamente, somado a esse quadro, detaca que seu pai sempre fora desejoso de buscar coisas melhores, ou melhor, “desejava um pouco de paz”23. Diferentemente das lembranças de dona Ana Toncic, cuja viagem fora marcada pelos sentimentos de arrependimento e saudades, ainda que posteriormente superados, a experiência nos navios para os italianos em questão, foram diametralmente opostas. Guerrino salienta que a mesma não fora marcada por problemas, suas lembranças lhe trazem as imagens que perfazia o espetáculo de se cruzar o oceano, como se essa experiência pudesse representar um novo começo. Assim como a fala de seu esposo, Graziela destaca a alegria e felicidade que permeiam as sua lembranças da viagem. Dentre essas lembranças positivas, busca destacar uma que, significativa pela dimensão a que chegou, representava tanto em termos geográficos quanto em termos simbólicos, uma mudança de vida: a passagem pela linha do Equador. Quando deste fato, lembra, uma grande festa foi celebrada a bordo com a participação dos imigrantes e da tripulação, afinal saíram de Gênova debaixo de um intenso frio, e a passagem pelo Equadro representava o “reaquecimento de suas esperanças”. A despeito das lembranças da festa, a surpresa marcava igualmente a chegada de seu navio ao Brasil, mais especificamente ao Rio de Janeiro. A impressão que ela relata ao ingressar à Baía de Guanabara era surpreendente, pois sua chegada se desenvolveu ao entardecer, sendo um elemento marcante em sua memória. A paisagem bucólica do por do sol, transforma a paisagem da cidade do Rio de Janeiro em uma espécie de receptividade acolhedora, com o Cristo iluminado ao alto da Urca e as luzes que salteavam os morros. Após esse quadro romantizado, mas compreensível pelas vivências em um continente que acabara de guerrear, os barcos chegaram para os levarem a Hospedaria. Por fim, mas certamente não menos importante, o depoimento de Irina Popowimigrante russa- traz ainda outras facetas desse processo. Sua experiência, relata, em um primeiro momento foi de espera. Afinal, passaram quatro anos, de 1945 a 1949, dentro dos campos de refugiados quando surgiu a oportunidade de imigrar para a Argentina. Quando tudo estava programado e a entrevista com o cônsul marcada, chega a notícia de que pelos acontecimentos políticos naquele país, ele encontrava-se, a partir de então, fechado a imigração24.

1081

Tomado pela situação de desespero, Popow relata que seu pai, no dia seguinte, saíra pelas ruas de Hannover quando vira uma bandeira colorida a tremular, este prédio era o Consulado do Brasil. A partir de então, acompanhado de alguns amigos feitos no interior do campo, buscaram informações com o cônsul Ubatuba sobre as possibilidades de se imigrar para o país. Em uma intrincada conversa, abriu-se as portas para que pudessem imigrar como refugiados para o Brasil, apesar de suas profissões não constarem na lista de prioridades nas normas para a seleção.25 Essa fala mostra duas facetas interessantes e intrigantes quando da análise dos meios que levaram a escolha do Brasil e o processo de aceite. Diferentemente dos exemplos anteriores, marcadamente, por um lado de um ideal de branqueamento da raça e, por outro, de formação técnica, este se desenvolveu através de meios que tangenciaram as orientações do governo brasileiro, haja vista que suas qualificações sofreram alterações. Esse caso, pode ser interessante para ilustrar o papel da discricionariedade, função concedida aos representantes brasileiros para que estes, por análises objetivas e subjetivas, possam autorizar a concessão de visto ou mesmo negá-las. Na travessia do oceano, ressaltam o deslumbramento que marcariam suas memórias, pois nunca haviam visto o mar. Sem embargo, esse deslumbramento possui ligação direta com a experiência extendida dentro do campo de refugiados. Suas falas, permeadas pelas lembranças de sofrimento, perda e fome causados pela guerra, faziam esse quadro de deslumbre ser ainda mais exaltado, nesse sentido, sua fala torna-se expressiva, quando “Muitos morreram na guerra, como uma tia nossa que era uma médica da frota. Então, de repente, ver toda essa beleza...”26. A chegada ao Rio de Janeiro guarda ainda muitas semelhanças ao quadro construído por Gaziela. Todos esses relatos marcam a multiplicidade de experiências no processo migratório e, por conseguinte, as variações em que o fato de se deslocar na condição de refugiado carrega. Muitas vezes negligenciado, essa faceta nos demonstra as possibilidades que a história oral e a pesquisa sobre a memória podem resultar. O processo de rememorar se desenvolve na relação de construção e reconstrução com a realidade presente do indivíduo, ou seja, as críticas que rechaçam a história oral e o estudo da memória enquanto importantes meios analíticos, não reconhecem esse potencial, relegando-os que sua substância é redutível a um pacote de recordações, previstos e acabados de antemão27. Ademais, segundo Meneses28, a heterogeneidade presente na memória individual torna o seu resgate, puro e simples, uma ilusão. Não obstante, essa heterogeneidade possibilita verificar especificidades ao mesmo contexto e processo, é dessa forma que temos

1082

a

oportunidade de verificar os diferentes motivos que levaram o Brasil a ser o destino de Toncic, Andreani e Popow. Por outro lado, Pollak destaca que certas expressões, tais como deslumbramento, dor, arrependimento, beleza, fantasia, dentre tantas outras utilizadas nas falas que foram analisadas, remetem mais a noções de memória, percepções da realidade vivida e rememorada, do que apenas a factualidade positivista poderia nos demonstrar29. Assim, a memória está de acordo com as contingências do presente, mas como seu objeto primordial é a mudança, se lhe faltar o referencial do passado, “o presente permanece imcompreensível e o futuro escapa a qualquer projeto”30. Ademais, há de se ressaltar o que para Pollak seriam os elementos constitutivos da memória. Neste caso, estes poderiam ser definidos a partir de três categorias que se agregam, mas não necessariamente se excluem, quais sejam, os acontecimentos, as pessoas e finalmente os lugares. Assim, os acontecimentos seriam ainda subdividos em dois, aqueles vividos pessoalmente, que marcam as singularidades que pudemos verificar, e aqueles “vividos por tabela”31, acontecimentos vividos pelo grupo ou pela coletividade ao qual a pessoa se sente pertencer. Como exemplo desse último aspecto, a contribuição de Toncic torna-se central quando da fala das diversas capitulações que sua região sofrera, desde antes da Primeira Guerra, quando ainda não era nascida, até o momento de sua fuga, constituindo-se enquanto marcos referenciais das identidades e lembranças dos indivíduos daquela região. Além desses acontecimentos, a memória é constituída pelas pessoas, personagens. Tais personagens possuem, dentro da dialética da memória de lembrança e esquecimento, papel de destaque quando de um acontecimento importante. Nesse caso, poderíamos lembrar da fala de Popow, no momento em que a figura do cônsul Ubatuba fora fulcral na aceitação, por parte do Brasil, de sua família. Além dos acontecimentos e das pessoas, podemos arrolar o terceiro aspecto constituitivo da memória, qual seja, os lugares. Assim, utilizando a conceitualização de Nora, existem lugares de memória32. Assim, o campo de refugiados, bem como os navios surgem enquanto importantes lugares para rememoração de situações e eventos que singularizam as experiências imigratórias, suas percepções e simbolismos. Em resumo, tais lembranças aqui analisadas nos ajudam a compor um quadro da imigração dos refugiados da Segunda Guerra, multifacetado e abrangente, dando voz não apenas ao contexto ou a estrutura que o levou a migrar, mas ao indivíduo que viveu, em sua subjetividade, a migração. Não incorremos no erro de generalizar tais percepções, entendemos que tais falas marcam posições dentro de experiências específicas mas que de alguma maneira

1083

tornaram-se prementes para tais refugiados, pois como nos alerta Pollak, “a memória é seletiva, nem tudo fica gravado, nem tudo fica registrado”33. 1

MARQUES, Guilherme dos Santos Cavotti Marques. Mestrando em História Social pelo Programa de PósGraduação em História Social (PPGHS – UERJ/FFP), sob orientação do Professor Doutor Luis Reznik. Bolsista FAPERJ. Email: [email protected] 2 UNHCR. Global Trends 2014. War’s Human Cost. Suiça, 2014. 3 PAIVA, Odair da Cruz. Ensino e Memória. Histórias da (I)migração: Imigrantes e Migrantes em São Paulo entre o final do século XIX e o início do século XXI. São Paulo, Arquivo Público do Estado, 2013. 4 THOMSON, Alistair [Et Al.]. Os Debates sobre memória e história: alguns aspectos internacionais. IN: FIGUEIREDO, JANAÍNA Baptista de; FERREIRA, Marieta de Moraes. Usos e Abusos da História Oral. Editora FGV. Rio de Janeiro, 2006. 5 Entrevista concedida pelo senhor Guerrino Andreani, imigrante italiano, ao Centro de Memória da Imigração da Ilha das Flores, 2010. 6 Entrevista concedida pela senhora Krystina Harasyn ao Centro de Memória da Imigração da Ilha das Flores, 2010. 7 POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento e Silêncio. IN: Estudos Históricos, vol.2, n.3. Rio de Janeiro, 1989. P. 3-15. 8 ELIAS, Norbert. A Sociedade dos Indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. 9 POLLAK, Michael. Op. Cit, 1989. 10 Entrevista concedida pela senhora Ana Toncic ao Centro de Memória da Imigração da Ilha das Flores, 2010. 11 Ibidem. 12 Ibidem. 13 Entrevista concedida pela senhora Ana Toncic ao Centro de Memória da Imigração da Ilha das Flores, 2010. 14 PAIVA, Odair da Cruz. Op. Cit. 15 Entrevista concedida pela senhora Krystina Harasyn ao Centro de Memória da Imigração da Ilha das Flores, 2010. 16 POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. IN: Estudos Históricos, Vol.5, n.10. Rio de Janeiro, 1992. P. 200-212. 17 Tais objetivações encontram-se reunidas, para o caso dos deslocados, no documento que se configurou enquanto um marco na identificação deste: o Estatuto do Refugiado de 1951.Para mais detalhes ver:http://www.acnur.org/t3/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Convencao_relativa_ao_Estatuto_dos_Refu giados.pdf?view=1. 18 Entrevista concedida pela senhora Ana Toncic ao Centro de Memória da Imigração da Ilha das Flores, 2010. 19 Devemos ressaltar ainda que devido ao agravamento do quadro entre as potências globais, a estrutura montada para o atendimento aos refugiados sofreria importantes modificações. Nesse quadro, a OIR teve seu fim em 1952, quando a partir de então o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiado (ACNUR) inciou suas atividades, tendo por base, primordialmente, o novo Estatutto ods Refugiados de 1951. 20 Entrevista concedida pela senhora Ana Toncic ao Centro de Memória da Imigração da Ilha das Flores, 2010. 21 Ibidem. 22 Entrevista concedida pelo senhor Guerrino Andreani, imigrante italiano, ao Centro de Memória da Imigração da Ilha das Flores, 2010. 23 Entrevista concedida pela senhora Graziela Andreani, imigrante italiano, ao Centro de Memória da Imigração da Ilha das Flores, 2010. 24 Vale ressaltar que neste momento a Argentina estava sob governo de Perón. 25 Entrevista concedida pelas irmãs Irina e Ludmila Popow, imigrantes russas, ao Centro de Memória da Imigração da Ilha das Flores, 2012. 26 Ibidem. 27 MENESES, Ulpiano Bezerra de. A História, Cativa da Memória? Para um mapeamento da memória no campo das Ciências Sociais. IN: Rev. Inst. Est. Bras.. São Paulo, 1992. P. 9-24 28 Ibidem. P. 11 29 POLLAK, Michael. Op. Cit. 1992 30 MENESES, Ulpiano Bezerra de. Op. Cit. 31 POLLAK, Michael. Op. Cit. 1992. P. 201 32 NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática dos lugares. IN: Projeto História. São Paulo: PUC, n.10. Dezembro de 1993. P. 07-28 33 POLLAK, Michael. Op. Cit. 1992.

1084

Enéas Carneiro e o PRONA: nacionalismo e conservadorismo no Brasil pósditadura militar Guilherme Esteves Galvão Lopesi

RESUMO O presente artigo busca compreender o surgimento do Partido de Reedificação da Ordem Nacional (PRONA), fundado em 1989 por Enéas Carneiro (1938-2007), e sua inserção no cenário político brasileiro até sua fusão com o Partido Liberal (PL), em 2006. Defendendo temas morais, criticando a classe política brasileira e combatendo as reformas neoliberais, sobretudo no governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), o PRONA identificou-se com o conservadorismo e o nacionalismo, ocupando, até sua extinção, considerável espaço na direita política brasileira. Palavras-chave: Conservadorismo; Enéas Carneiro; PRONA.

ABSTRACT The present article aims to comprehend the rise of the National Order Reedification Party (PRONA), founded in 1989 by Enéas Carneiro, and its insertion in the brazilian political scenario until its merge with the Liberal Party (PL), in 2006. By defending moral themes, criticizing the brazilian political class and against the neoliberal reforms, mostly in Fernando Henrique Cardoso government (1995-2003), PRONA identifies with its traditionalism and nationalism, holding until its extinction considerably most of the right wing in Brazil politics. Keywords: Conservatism; Enéas Carneiro; PRONA.

INTRODUÇÃO Em 1989, nas primeiras eleições presidenciais diretas realizadas desde 1960, 29 partidos lançaram 22 candidatos que concorreram ao cargo máximo do Brasil. Destacavam-se na disputa políticos conhecidos, como os ex-governadores Leonel Brizola (PDT), Fernando Collor de Mello (PRN) e Paulo Maluf (PDS); os senadores Mário Covas (PSDB) e Affonso Camargo (PTB); o ex-vice-presidente da República Aureliano Chaves (PFL), e os deputados Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Roberto Freire (PCB), Guilherme Afif Domingos (PL) e Ulysses Guimarães (PMDB), sendo o último ex-presidente da Assembleia Nacional Constituinte.

1085

De acordo com a legislação em vigor, os partidos que possuíssem apenas o registro provisório poderiam concorrer. Dentre as diversas siglas fundadas com o intuito de lançar candidatos a presidente, figurava o Partido de Reedificação da Ordem Nacional (PRONA), fundado pelo médico acriano Enéas Carneiro. Nascido em 1938, Enéas foi militar do Exército. Formou-se em Matemática, Física e Medicina, especializando-se em cardiologia, sendo autoridade nacional na área. O médico resolveu fundar o PRONA depois que sua ex-mulher, cansada de suas reclamações a respeito da situação política do país, sugeriu que ele fundasse um partido e se candidatasse a presidenteii. Enéas recolheu 112 assinaturas de alunos, ex-alunos, amigos e colegas de profissão e fundou o partido, que obteve o registro provisório em 29 de junho de 1989 com o número 56. Em pouco tempo, o PRONA já estava organizado em 14 unidades da federação e 110 municípiosiii. Após polêmicas acerca dos registros provisórios de legendas inexpressivas e da divisão do tempo de TV entre os 34 candidatos inicialmente apresentados, o PRONA conseguiu filiar o Deputado Federal Gustavo de Faria, eleito pelo PMDB fluminense iv. O receio era não obter tempo de televisão ou registro da candidatura de Enéas em virtude de não possuir deputados ou senadores, parâmetro utilizado também na seleção de candidatos para programas de debates. Criticando a Constituinte, prometendo fazer um governo “com determinação e decisão”, falando de ordem e usando a frase “Não aguento mais o que está aí” em sua propagandav, Enéas conseguiu atrair minúscula parcela do eleitorado, notadamente os de perfil conservador. Dispondo de poucos segundos no horário eleitoral, o bordão “meu nome é Enéas” tornou-se marca registrada de sua carreira política. A participação de Enéas no programa Jô Soares Onze e Meia, do SBT, foi o ponto alto de sua paupérrima campanha. O próprio Jô Soares declarou que a entrevista foi bem sucedida e que Enéas era uma figura “curiosa”, por chamá-lo o tempo todo de “senhor” e pela maneira como discursavavi. Insatisfeito com o tratamento dispensado pela imprensa e pelo pouco tempo de TV, considerado por Enéas uma “esmola”, ele gravou seu programa de governo em fitas K7 e as distribuiu pelo país. Aos poucos, seu slogan passou a ser repetido por eleitores e simpatizantes em todo o país, sendo parodiado até em propagandas e programas de TV. Ao fim do 1º turno, o desempenho de Enéas foi modesto: o 12º lugar, com 360 mil votos, cerca de 0,5% do total. Apesar da pequena votação, Enéas foi considerado

1086

uma das revelações daquelas eleições, pelo seu poder de síntese, seu perfil caricato e por suas ideias conservadoras. No 2º turno, anunciou que não apoiaria Fernando Collor e nem Luís Inácio Lula da Silva (Lula), e revelou que no passado chegou a ser marxista por breve período. Revelando sobre sua carreira militar, chegando ao posto de 3º sargento do Exército, lamentou o golpe de 1964, ao afirmar que “aquilo foi uma tristeza muito grande vii”. Declarou o voto nulo, “porque um dos candidatos é semianalfabeto e o outro analfabeto”, afirmando ainda que trabalharia para eleger deputados e senadores do PRONA, e que se candidataria apenas à Presidência da Repúblicaviii. Em maio de 1990, o PRONA conquistou o registro definitivo. Paralelamente ao andamento do registro, foi iniciada a discussão sobre a criação de novas siglas partidárias e uma eventual cláusula de desempenho (ou de barreira), impondo votações mínimas para que partidos políticos continuassem existindo, recebendo parcelas do fundo partidário e gozando de tempo de televisão. O último ponto, inclusive, envolveu o PRONA em uma grande batalha no Congresso, pois os grandes partidos, como o PMDB, consideravam vários dos pequenos partidos “siglas de aluguel”. O tempo de televisão destinado ao PRONA foi duramente questionado, com várias acusações de beneficiamento pessoal através do horário eleitoral contra Enéas Carneiro, dentre elas a de que se lançava como “garotopropaganda” em comerciais. A crise, no entanto, foi contornada, e a discussão sobre a cláusula de desempenho, dentro de uma reforma eleitoral, foi adiada para 2006, depois da pressão dos “nanicos” e de legendas médiasix. Meses depois, durante o horário eleitoral obrigatório semestral reservado ao PRONA, Enéas afirmou que o Brasil estava “doente”, criticou Collor por lançar a economia na desordem e justificou sua formação: ele estava incomodado com a própria ignorância. Prometeu, ainda, se candidatar a presidente em 1994x. Aos poucos, ao tornar-se figura frequente em debates e entrevistas na TV, suas ideias políticas ganharam maior notoriedade. Em 1994, Enéas cumpriu sua promessa e, mais uma vez, candidatou-se a presidente, quando concorreu com o, então, Senador e Ex-ministro, Fernando Henrique Cardoso (PSDB), apontado como um dos criadores do Plano Real; Luiz Inácio Lula da Silva, derrotado no 2° turno em 1989; e os Ex-governadores Leonel Brizola (PDT), Orestes Quércia (PMDB) e Esperidião Amin (PPR).

1087

No debate da TV Bandeirantes, Enéas defendeu a redução da carga tributária e a diminuição da taxa de jurosxi. O Jornal do Brasil deu destaque à propaganda do PRONA, no qual, pela primeira vez, um candidato a presidente pediu dinheiro no horário eleitoral. Enéas anunciou o lançamento de seu livro Um grande projeto nacional e ofereceu bônus de campanha a R$ 25xii. Enéas levantou temas morais em sua propaganda, como a defesa da família contra “cenas de lascívia” na televisão, em horário nobrexiii. Defendeu também o “Estado soberano, que detenha controle das questões estratégicasxiv”. Em diversas ocasiões, criticou os institutos de pesquisa, que colocavam-no entre os “nanicos”. Defendeu também, durante seus programas de TV, a saúde pública e a previdência social. Levantamento do Jornal do Brasil mostrou que os candidatos mais criticados por Enéas foram Lula e Fernando Henrique. Os temas mais abordados pelo candidato do PRONA foram ética, saúde e educação, sendo também crítico do Plano Realxv. Disputando o cargo com nomes já consagrados, surpreendentemente Enéas conseguiu seu melhor desempenho em eleições presidenciais: 4 milhões e 670 mil votos (7,3%), ficando em 3º lugar geral, sendo ultrapassado apenas por Fernando Henrique e Lula. Em diversas unidades da federação, os votos em Enéas foram superiores à sua média nacional. No Rio Grande do Sul, São Paulo, Amapá e Distrito Federal, o candidato do PRONA alcançou votação superior a 9%. Enéas declarou gastos de apenas R$ 137 mil em sua campanha, sendo R$ 120 mil oriundos de recursos própriosxvi. Quatro anos depois, Enéas foi apontado como outsiderxvii em virtude de suas polêmicas ideias: “a construção da bomba atômica, a prisão dos responsáveis pelo programa de privatizações e a reversão de todas as reformas econômicas xviii.”. Em relação à bomba atômica, tema explorado negativamente pelos adversários, Enéas era enfático: “Se o Japão tivesse a bomba, ninguém se atreveria a ter destruído Hiroshima ou Nagasakixix”. O candidato a deputado federal pelo PDT fluminense, Luiz Fernando D'Ávila chegou a ingressar com pedido de impugnação da candidatura de Enéas, por “crime de lesa humanidade, que contraria todos os tratados assinados pelo Brasilxx”. Em meio às polêmicas, ao sucesso relativo do Plano Real e ao protagonismo dos candidatos Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, Enéas despencou dos 7% da pesquisa do GERP em março para os 2,13% conquistados nas urnas (1.447.089), terminando a corrida presidencial em 4º lugar, atrás ainda do Exgovernador do Ceará e Ex-ministro Ciro Gomes (PPS).

1088

Nas eleições municipais de outubro de 2000, Enéas foi novamente candidato, desta vez à Prefeitura de São Paulo. A singularidade dessa campanha foi sua participação nos debates televisivos. Na TV Bandeirantes, ao ser indagado pelo candidato José Maria Marin (PSC) sobre esportes, afirmou não entender “absolutamente nada de futebol”, minimizando o questionamento, no que foi retrucado a respeito de suas posições sobre a bomba atômica. Enéas finalizou afirmando que “o domínio do poder nuclear é uma questão de soberania nacional”, e que “prefeito não tem poder para isso”. No mesmo debate, Enéas envolveu-se em acirrada discussão com o Expresidente Fernando Collor de Mello, candidato pelo PRTB. No momento em que deveria perguntar ao candidato do PRONA, Collor disse apenas “fale qualquer coisa aí”, o que gerou risos da plateia e uma fala indignada de Enéas, que acusou Collor de falar bobagem e dizendo que ele deveria estudar. Enéas terminou o pleito em 6º lugar, com 190.844 votos (3,46%), sendo Marta Suplicy (PT) a vencedora no 2º turno, com 58,51% contra os 41,49% dos votos destinados ao candidato Paulo Maluf (PPB). Visando a sucessão presidencial, o cenário não favorecia Enéas: em 2001, pesquisa do Vox Populi indicava apenas 4% de preferência entre os eleitoresxxi. Em março de 2002, pesquisa do IBOPE apontava expressivos 72% de rejeição, com apenas 2% das intenções de voto para presidentexxii. A repercussão do tema bomba atômica figurou entre as prováveis razões para o mau desempenho nas sondagens. Constando em pesquisas com 4% dos votos para presidente, mesmo um ano antes das eleições, Enéas Carneiro decidiu não candidatar-se a presidente. Sua opção foi a vaga para deputado federal por São Paulo, sendo o mais votado da história do Brasil, com 1.573.642 votos, expressivos 8% do eleitorado paulista. Com sua votação, graças ao quociente eleitoral, outros 5 candidatos foram eleitos com votações inexpressivas: Amauri Robledo Gasques (18.421), Irapuan Teixeira (673), Elimar Máximo Damasceno (484), Ildeu Araújo (382) e Vanderlei Assis (275). O PRONA também foi campeão de votos para a ALESP: Havanir Nimtz recebeu 682.219 votos, levando consigo mais 3 eleitos com poucos votos. Outros 3 deputados estaduais foram eleitos pelo Rio de Janeiro (2) e Alagoas (1). Naquele ano, o partido não lançou candidato a presidente. Meses após as eleições, o PRONA sofreu seu maior escândalo: o ex-candidato Jorge Roberto Leite divulgou gravações em que Havanir Nimtz negociaria a venda de 1089

vagas na legenda do partido, condicionando a concessão à aquisição de cartilhas de formação política. Após a denúncia, outros candidatos pelo partido confirmaram o pagamento à então vereadora, e a Corregedoria Eleitoral de São Paulo determinou a quebra de sigilo bancário de Enéas, Havanir e do PRONA. Uma comissão foi instalada na Câmara Municipal de São Paulo para apurar as denúncias. No entanto, Havanir escapou da abertura de processo de cassação. Enéas assumiu o mandato em 2003, e dentre suas propostas estavam a proibição de alimentos em formato de cigarros e a substituição de combustíveis derivados do petróleo por outros produzidos a partir da biomassa, sendo também relator de apenas 8 projetos de lei, a maioria tratando de concessões e outorgas para serviços de radiodifusão. A principal característica de Enéas e dos parlamentares do PRONA foi o uso da palavra. Enéas discursou 82 vezes, de acordo com as notas taquigráficas da Câmara, principalmente acerca da dívida pública, críticas às medidas econômicas do governo Lula, além de elogios à “revolução” de 1964, ataques ao envio de tropas brasileiras ao Haiti e ao aborto, pedidos de intervenção federal em Rondônia diante de conflitos indígenas e até de renúncia do então presidente Lula. Em diversos discursos, Enéas justificou suas ausências e a baixa produtividade de seu mandato em função do tratamento contra leucemia a que estava submetido. Elimar Máximo Damasceno, o único que permaneceu no PRONA além de Enéas, usou a palavra por 322 vezes. No total, foram 605 pronunciamentos de parlamentares que passaram pelo PRONA. Ainda em 2003, Ildeu Araújo, Irapuan Teixeira e Vanderlei Assis trocaram o PRONA pelo Partido Progressista (PP), e Amauri Gasques transferiu-se para o Partido Liberal (PL). Todos eles, em 2006, seriam arrolados no relatório final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) dos Correios, que investigou a “máfia das Ambulâncias”, sugerindo a abertura de processo de cassação contra eles e outros 68 parlamentares. A última eleição disputada pelo PRONA foi em 2006, com desempenho aquém do de 2002. Foram apenas 2 deputados federais eleitos: o próprio Enéas, com 386.905 votos e Suely Santana (RJ), com 23.459 votos. Novamente, o PRONA não lançou candidato a presidente da República. No pleito daquele ano, apenas 7 dos 29 partidos brasileiros ultrapassaram os 5% de votos exigidos em âmbito nacional para continuar existindo sem as restrições que a 1090

Lei dos Partidos Políticos previa. Alguns partidos iniciaram fusões e incorporações, e o PRONA manifestou interesse em uma fusão com o PL (Partido Liberal). No entanto, no dia 7 de dezembro, o Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, derrubou a cláusula de barreira, por considerá-la inconstitucional. No entanto, o PRONA e o PL prosseguiram a fusão, criando assim o Partido da República (PR), que obteve o registro em dezembro de 2006. Na ocasião, o PRONA contava com 47 mil filiados. Pouco depois do fim do PRONA, seu criador, Enéas Carneiro, faleceu de leucemia mieloide aguda, em 6 de maio de 2007, na capital fluminense. Assumiu a vaga Luciana Costa, sua suplente.

CONCLUSÃO Até o surgimento do PRONA, o campo conservador brasileiro dividia-se principalmente entre duas legendas: o PDS (Partido Democrático Social), sucessor da ARENA (Aliança Renovadora Nacional), que em 1993 transformou-se no PPR (Partido Progressista Reformador); e o PFL (Partido da Frente Liberal), dissidência do PDS surgida em 1985, durante o Colégio Eleitoral que elegeu Tancredo Neves presidente. No entanto, após a consolidação da democracia, o PDS entrou em profundo declínio. Sua representatividade na Câmara dos Deputados, por exemplo, caiu dos 235 deputados eleitos em 1982 para 42 em 1990. O PFL, por sua vez, mostrou bastante força eleitoral no Nordeste e nas grandes capitais, conquistando 965 prefeituras em 1992. Embora fossem forças políticas importantes, raramente tratavam em suas plataformas sobre assuntos estruturais, como macroeconomia, relações internacionais, defesa nacional, infraestrutura e biodiversidade. O PRONA, ao apresentar uma roupagem nacionalista, agradou ao nicho específico do eleitorado, majoritariamente no campo conservador, embora contasse com simpatizantes no campo da esquerda. Enéas foi extremamente crítico ao modelo econômico adotado por Fernando Henrique Cardoso, alinhado ao Fundo Monetário Internacional, que privilegiou as privatizações, o fortalecimento de instituições privadas de crédito, as relações bilaterais com o governo norte-americano e a adoção do câmbio flutuante, acarretando no aumento da dívida pública, no baixo poder de compra do salário-mínimo, na alta vertiginosa dos juros, no desemprego e no aumento do tempo de contribuição para fins de aposentadoria.

1091

Em 1994, uma reportagem da Folha de São Paulo, baseada em pesquisa do Datafolha, traçou um perfil do eleitorado de Enéas: desprezo pelos partidos políticos e ao voto. De acordo com a matéria, os eleitores do PRONA rejeitavam elementos essenciais à democracia, aproximando-se do autoritarismo e do integralismo. 21% enxergavam em Enéas “o novo” e outros 19% atribuíam o voto à honestidade do candidato. 59% possuía renda superior a 5 salários-mínimos e 48% havia cursado o 2º grau ou o nível superiorxxiii. Durante palestra proferida na Universidade de São Paulo (USP), no ano de 2000, Enéas Carneiro explanou, de forma mais ampla, sobre seu pensamento político. Ao ser indagado sobre “parecer” ser um conservador, Enéas foi enfático: “eu não pareço, eu sou conservador”. Definiu seu conservadorismo enquanto “o respeito aquilo que é clássico”, e o “clássico não é aquilo que é velho, clássico é aquilo que é eterno”, referindo-se às obras de Adam Smith, Isaac Newton, Luís de Camões, Nicolau Copérnico, Galileu Galilei e Hipócrates como clássicas e obrigatórias. “O fato de eu respeitar e admirar os clássicos não quer dizer que não goste do que é novo. Mas é preciso que se tenha no espírito que o novo só existe porque existiu o velhoxxiv”. Enéas prosseguiu sua explanação dizendo que não era contra inovar, mas contra destruir. Criticou ainda o socialismo em relação à liberdade de pensamento e de crença. Sobre seu famoso bordão, declarou que, com apenas 12 segundos, a ideia era fazer com que as pessoas gravassem seu nome, independentemente de gostarem dele ou não. Na sequência, sendo questionado sobre o seu perfil autoritário, Enéas afirmou que gosta “de autoridade, de ordem, de respeito”, e que está muito distante do nazismo e do fascismo, afirmando que por ser mestiço não poderia aceitar o nazismo, considerado por ele um perigo para o mundo. Sobre a ditadura militar no Brasil, ele afirmou que o militar está habituado ao comando bélico e à obediência, não sendo treinado para dirigir nação. De acordo com Enéas, a ditadura militar foi um fracasso no que diz respeito à liberdade de expressão, classificando a censura como “besteira”, defendendo, no entanto, que o regime alavancou o processo de industrialização do país. Prosseguindo, afirmou que a educação começou a piorar durante a ditadura, e que os militares atuaram em defesa da segurança nacional, denunciando a presença de geólogos disfarçados de missionários na Amazônia, e que no regime militar “não tinha o que tem hoje”. Segundo Enéas, as Forças Armadas encontravam-se desmoralizadas, sem dinheiro e sem comida. Declarou ser contra a tortura, o aborto e a pena de morte, sendo favorável a tudo que um ser humano tem por direito desde que nasce: respirar, se

1092

alimentar, ter uma família, moradia, estudar e “aprender a olhar pra fora e pra dentro de si mesmo, e ver que todos nós integramos uma só família, a família cósmica, situada num planetinha pequenino, um pálido ponto azul, dentro do oceano cósmicoxxv”. Deste modo, os ideais de Enéas Carneiro e do PRONA enquadravam-se no conservadorismo conforme descrito por Nisbet, no que tange o apego às tradições, o respeito ao que é considerado clássico, além dos valores morais do cristianismo e o combate ao culto à modernidadexxvi. O fundador do PRONA condenava a desordem e a falta de autoridade, evocando assim o pai do conservadorismo político moderno, Edmund Burke, notável crítico da Revolução Francesa, que responsabilizou-a pelo rompimento violento com as tradições e a ordem sociopolítica daquele país em fins do século XVIIIxxvii. No caso de Enéas, as críticas foram dirigidas às reformas neoliberais, que, segundo ele, objetivavam a destruição do Estado brasileiro, a partir da entrega dos recursos naturais às grandes corporações mundiais; da privatização de setores estratégicos da economia; do desmantelamento e sucateamento das Forças Armadas; do pagamento de juros exorbitantes das dívidas interna e externa; da propagação do descrédito e da baixa autoestima do brasileiro por parte dos veículos da grande mídia; além da destruição da família, como consequência da legalização do uso de drogas e do abortoxxviii. O estudo acerca de Enéas Carneiro e do PRONA mostra-se pertinente para compreensão da conjuntura histórica do Brasil entre o fim da ditadura militar, com o consequente restabelecimento da democracia, e o declínio do processo neoliberal, no início dos anos 2000. Neste período, no qual o país sofreu profundas transformações, o PRONA, enquanto partido conservador e crítico das reformas, obteve importante papel político.

i

Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGH/UERJ). Orientador: Prof. Dr. Oswaldo Munteal Filho. Coorientadora: Prof.ª Dr.ª Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves. E-mail: [email protected]. ii Veja, edição 1.773, ano 35, nº 41, 16 de outubro de 2002, pp. 52-54 iii Jornal do Brasil, 19 de julho de 1989, p. 2. iv Jornal do Brasil, 05 de setembro de 1989, p. 2. v Idem, 17 de julho de 1989, p. 2. vi Idem, 21 de setembro de 1989, p. 6. vii Idem, 18 de novembro de 1989, p. 6. viii Jornal do Brasil, 18 de dezembro de 1989, p. 4. ix Idem, 24 de dezembro de 1992, p. 4. x Tribuna da Imprensa, 15 de fevereiro de 1991, p. 3.

1093

xi

Jornal do Brasil, 17 de agosto de 1994, p. 4. Jornal do Brasil, 23 de agosto de 1994, p. 4. xiii Idem, 30 de agosto de 1994, p. 9. xiv Idem, 03 de setembro de 1994, p. 12. xv Idem, 01 de outubro de 1994, p. 8. xvi Idem, 02 de dezembro de 1994, p. 3. xvii Sujeito com comportamento e pensamento próprios, que não se enquadra às convenções de determinado grupo ou sociedade. xviii Jornal do Brasil, 01 de fevereiro de 1998, p. 3. xix Tribuna da Imprensa, 19 de agosto de 1998, p. 2. xx Tribuna da Imprensa, 17 de julho de 1998, p. 3. xxi Jornal do Brasil, 17 de junho de 2001, p. 3. xxii Idem, 22 de março de 2002, p. 3. xxiii Eleitor de Enéas tem perfil conservador; Integralismo, disponível em http://www 1.folha.uol.com.br/fsp/1994/8/28/caderno_especial/47.htm, acessado em 02 de setembro de 2015. xxiv Dr. Enéas - Conservadorismo e o Marketing Político - Parte 6/9, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=6UUv51Jc1Nw, acessado em 15 de setembro de 2015. xxv Dr. Enéas na USP - Panorama Militar e Carl Sagan - Parte 9/9, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=V5EkyMduaOg, acessado em 15 de setembro de 2015. xxvi NISBET, Robert. O conservadorismo. Lisboa: Editorial Estampa, 1987. xxvii BURKE, Edmund. Reflexões sobre a Revolução na França. São Paulo: Edipro, 2014. xxviii CARNEIRO, Enéas Ferreira. O Brasil em perigo. Rio de Janeiro: Livraria Editora Enéas Ferreira Carneiro LTDA, 1997. xii

1094

William Hodges. A Paisagem como Narrativa Histórica. Guilherme G. Gonzaga1

Resumo O presente trabalho investiga a obra do britânico William Hodges em dois momentos: primeiro durante sua participação na segunda viagem de James Cook ao Pacífico Sul e, segundo, na condição de pintor da Companhia das Índias Orientais, na Índia. Hodges produziu pinturas narrativas histórico-sociais apoiadas pela tradição acadêmica inglesa. Tais imagens, situadas no início do Imperialismo britânico, poderiam tanto classificar os povos do Pacífico Sul em estágios civilizatórios quanto associar as virtudes do finado Império Mugal com a administração colonial. Palavras chave: Wiliam Hodges. Pintura de Paisagem. Imperialismo.

Abstract This study concerns the works of William Hodges as a member of James Cook’s expedition to the South Pacific and as a painter for the East Indies Company. Hodges paintings reflected social and historical narratives supported by the English academic tradition. These images, dated from the beginning of the British Empire, could either classify different communities of the South Pacific into civilization stages as well as to associate the virtues of the extinguished Mughal Empire to the colonial management.

Keywords: William Hodges; Landscape Painting; Imperialism.

1095

O pintor inglês William Hodges (1744-97) foi o primeiro artista a contribuir solidamente com a formação de uma iconografia britânica no oriente, principalmente na região do Pacífico Sul, onde atuou com pioneirismo na condição de artista oficial da segunda viagem exploratória comandada pelo Capitão James Cook (1772-75). A primeira viagem de Cook (1769-71) também contou com dois artistas: Sydney Parkinson, ilustrador botânico e Alexander Buchan,2 pintor de paisagens. Estes, porém, não tinham formação completa como Hodges, treinado na Royal Academy por Richard Wilson, então a maior autoridade em pintura de paisagem na Inglaterra. Hodges também contribuiu substancialmente com a formação da iconografia britânica colonial na Índia, mais especificamente na região de Bengala, quando foi contratado pelo primeiro governador geral, Warren Hastings. Sua obra teve êxito ao transcender objetivos puramente poéticos, conseguindo subordinar a paisagem à narrativa histórica. Logo, as pinturas de Hodges eram verdadeiras manifestações visuais da Filosofia Natural, abordando problemas que abrangiam desde a Natureza às questões histórico-culturais envolvendo os povos do Pacífico Sul e os indianos. Enquanto não atuava como pintor viajante, Hodges se dedicou à temática da guerra. Tal fato se justifica com a grande quantidade de conflitos que arrastaram a Grã-Bretanha em tão curto período de tempo, como a Guerra dos Sete anos, a Revolução Americana e a Revolução Francesa. Para Hodges, embeber suas paisagens com temas históricos como a guerra seria uma forma de elevar-se intelectualmente para que ele pudesse se consolidar como grande pintor de história no cenário artístico britânico.3 O que deveria ser o clímax de sua carreira, a exposição individual Guerra e Paz, fora um retumbante fiasco comercial. A grave crise financeira que praticamente paralisou tanto o mercado editorial quanto o de artes, além da sensibilidade da opinião pública em relação à temática da guerra, contribuiu com o alto risco do empreendimento de Hodges e seu consequente mau desempenho. O fracasso da mostra fez com que abandonasse a pintura e procurasse um recomeço na atividade bancária, que ulteriormente iria conduzi-lo à falência.

1096

O artista de James Cook. A Segunda viagem de Cook pôs termo definitivo às ideias medievais de continentes perdidos e ilhas fantásticas,4 graças principalmente ao uso do cronômetro de precisão de Harrison, que possibilitou a determinação das longitudes e, logo, da navegação precisa. A atuação dos naturalistas oficiais da expedição, Johan Foster e seu filho, George, que substituíram no último momento o veterano Joseph Banks, apoiada pelas pinturas de Hodges, também foi decisiva para o sucesso científico da expedição. Naturalmente, a tripulação também contou com conhecimentos obtidos em viagens prévias, como a primeira jornada do próprio Cook e a conhecida expedição francesa de Bougainville (1766-69). As imagens que Hodges produziu intencionavam classificar povos em estágios civilizatórios conforme a disposição destes em se comunicar e absorver valores europeus. Aqueles que demonstravam nenhum interesse por coisas ocidentais, ou até mesmo desprezo, eram considerados os mais bárbaros e desprezíveis dos povos, como os fueguinos encontrados na Terra do Fogo, na América do Sul.5 O naturalista Johan Foster, cujas ideias eram francamente alinhadas

com

o

Iluminismo, procurava diferenciar os povos encontrados na viagem em termos de progresso, fazendo analogias entre o progresso social e o indivíduo. Selvagens seriam como crianças, bárbaros como adolescentes impulsivos. Povos civilizados assemelhar-se-iam com adultos mais ou menos maduros.6 Assim, o Taiti, localizado no Arquipélago da Sociedade, fora considerado pelo naturalista como o zênite da civilização no Pacífico Sul. A cultura taitiana apresentava definida divisão social, com seus trabalhadores queimados de sol e seus nobres, cujos físicos remetiam a certa ociosidade que beirava à indolência, sugerindo incipiente corrupção.7 Durante a segunda passagem do Resolution pelo Taiti, em abril de 1774, a tripulação testemunhou os preparativos de uma expedição naval. A quantidade de embarcações ricamente adornadas, bem como os inúmeros guerreiros, causou assombro em Foster, servindo como base para seu cálculo estimado da população local em cerca de 150.000 pessoas. O naturalista logo justificou a civilidade e o cultivo como consequências, em sua opinião, do tamanho populacional.8 Em Vista geral da ilha de O-Taheitee (fig.01), Hodges mostra a paisagem taitiana povoada, repleta de movimento e embarcações sofisticadas. Uma canoa de guerra dupla não apresenta armas ou qualquer inclinação agressiva.

1097

A expedição visitaria em abril de 1775, a ilha de Malakula, hoje o país Vanuatu, nas Novas Hébridas. Pela primeira vez um povo de pele escura, melanésios, fora registrado por europeus.9 Em vista de Malakula (fig.02), Hodges mostra cenário bastante diferente do Taiti. A bordo das canoas estão guerreiros com posturas relativamente mais agressivas, portando armas. A paisagem não sugere muitas construções ou sinais de cultivo. Ainda mais radical seria a vista que Hodges pintou da ilha de Niue, chamada por Cook de Ilha Selvagem, após a hostilidade de seus habitantes ter forçado uma retirada do grupo de desembarque do Resolution. A paisagem de Hodges sequer mostra seus habitantes, como se lá não houvesse sinais de atividade humana.

Figura 01. William Hodges,Vista geral de Otaheite (Taiti), 1775, National Maritime Museum, Londres.

Figura 02. William Hodges, Mallicolo, 1774. The Britrish Library, Londres.

A postura de Foster e seus colegas perante as culturas encontradas na viagem evidencia a influência do pensamento iluminista na tripulação do Resolution. Bougainville, que estivera no Taiti anos antes de Cook, identificou a ilha com a lendária Cítara 10 e incitou seus leitores a visualizar a paisagem como uma pintura rococó de Boucher.11 Os próprios

1098

taitianos foram associados aos árcades, felizes em suas vidas frugais, em plena felicidade e comunhão com a natureza. Uma espécie de primitivismo suave, à moda das geórgicas de Virgílio. Duas pinturas de Hodges, que retratam episódios de desembarque da tripulação de Cook, ilustram a ideia europeia de classificar os nativos em níveis civilizatórios, ao mesmo tempo em que apontam o quanto a cultura clássica influenciava a linguagem do pintor, apesar de Foster ter sinalizado diversas vezes sua reprovação por estes componentes da Antiguidade. Em desembarque em Erramanga (Fig. 03), uma das mais icônicas ilustrações de Hodges, os nativos resistem violentamente à chegada dos ingleses, obrigando-os a retornar ao Resolution. Já em desembarque em Middleburgh (Fig.04), uma das chamadas Ilhas Amigáveis por Cook (atual Tonga), o povo acolhe pacificamente o bote britânico, inclusive com o chefe tribal já a bordo, ostentando uma folha de bananeira, simbolizando a paz.

. Figura 03. William Hodges. Desembarque em Erramanga, uma das Novas Hébridas, c.1776. National Maritime Museum, Londres.

Figura 04. Desembarque em Middlesbuth (Tonga). Gravura de J.K.Shirwin a partir de desenho de William Hodges.

1099

Se Virgílio trouxera grande encantamento à região da Arcádia grega na Antiguidade, 12 o trabalho de Hodges, apoiado pelo intelecto de Foster, ajudaria a desencantar a nova Arcádia. O desfecho trágico de Cook, morto no Havaí por nativos em sua terceira viagem (1779), além de outras tragédias, como o desaparecimento da expedição francesa de La Perouse, cujos destroços só seriam identificados muito depois nas praias de Vanikoro, Ilhas Salomão, também ajudaram a enfraquecer a visão paradisíaca do Pacífico13, abrindo caminho para a moderna história da região, despida de idealismos.

William Hodges na Índia. Após os três anos a bordo do Resolution, Hodges conseguiu trabalho a soldo da Companhia Britânica das Índias Orientais. Boa parte das pinturas desse período mostram ruínas do finado império Mugal, apoiando-se nas construções sintáticas consagradas por Claude Lorrain, no século anterior. As paisagens índicas de Hodges não tinham como escopo principal narrar a história ou a mitologia mugal, mas sim tecer associações entre a grandeza do extinto império com o novo governo britânico colonial.14 O polêmico governo da Companhia justificou a necessidade de uma iconografia britânica na Índia que pudesse de alguma forma ajudar a fortalecer a autoridade do governador Hastings. Como um simples despacho entre Mumbai e Londres poderia levar cerca de 18 meses para ser entregue, era mister que se pudesse projetar poder administrativo, político, militar e econômico com certa independência da metrópole. Tal fato poderia isentar parcialmente o estado britânico da culpa direta por abusos cometidos pelas forças de Hastings contra a população local. Porém, caso a Grã-Bretanha intencionasse em insistir na construção da imagem de nação livre, civilizada, protestante, marítima e comercial, deveria posicionar-se unilateralmente contra os então supostos abusos da Companhia. Ao menos era a esta a publicamente conhecida opinião de Edmund Burke, o filósofo que liderou verdadeira cruzada contra o governador geral, provocando grandes debates públicos. Para o governador Hastings, o impasse entre o domínio do imperium e a necessidade da libertas, poderia ser superado com a imagem de um despotismo britânico ilustrado. A associação entre o governo da Companhia com a era dourada do imperador mugol Akbar

1100

seria, então, um deus ex machina para aplacar as agitações provocadas pelas intervenções britânicas na região. As paisagens índicas de Hodges, principalmente aquelas que exortavam o sentimento de perda, como em Tumba e vista distante das colinas de Raj Mahal (fig.05), seriam parte de um programa associativo maior, a exemplo da tradução dos éditos do lendário imperador: o A’in-i Akbari, a pedidos do próprio Hastings. Ao contrário das paisagens de Claude, no século anterior, que invocavam a doce melancolia associada ao fim da idade de ouro, as ruínas da corte de Akbar(responsável pela construção do Taj Mahal), representadas por Hodges, apontavam para um governo que serviria de modelo a Hastings: centralizador, expansionista, patrono das artes e cosmopolita 15. Tal imagem seria útil para o fortalecimento das relações com as classes dominantes remanescentes do finado império mugal. Enquanto as ruínas greco-romanas de Claude invocavam o sentimento de perda de algo que era perfeito e se fora, as ruínas mugais pintadas por Hodges sugeriam a decadência de imperadores posteriores a Akbar, que corrompidos pelos excessos decorrentes do luxo e do comércio, teriam conduzido o império à derrocada diante da Confederação Mahata.

Figura 05: William Hodges, Tumba e vista distante das colinas de Raj Mahal, 1782. Tate Gallery. Londres.

1101

A cruzada de Burke finalmente resultou no processo de Impeachment que demoveu Hastings do cargo (ainda que ele fosse inocentado posteriormente) e pôs fim à aventura índica de Hodges. O pintor inglês não sabia, mas suas paisagens no Oriente testemunharam o nascimento do Segundo Império Britânico, onde o sol nunca se punha, e que viria a se tornar o principal ator das relações internacionais do século XIX. Sua visão também ajudou a ilustrar a grande ideia de Burke sobre o mapa das civilizações que se desenrolava sob o auspicioso olhar da Grã-Bretanha.16

1

Mestre em História da Arte pela Universidade de Brasília, UnB. Docente do Centro Universitário IESB, Brasília-DF. E-mail: [email protected]. 2 Parkinson e Buchan adoeceram e morreram durante a viagem do HMS Endeavour. 3 Bonehill, J. This Hapless Adventurer': Hodges and the London art word. in: William Hodges 17441797. The Art of Exploration. New Haven and London: Yale University Press, 2005, p.212. 4

Por exemplo, o mito da Terra Australis. Quilley, G. William Hodges, artist of empire : Hodges and the London art word. in: William Hodges 1744-1797. The Art of Exploration. New Haven and London: Yale University Press, 2005, p.212. 6 Foster., J. R. Observations Made During a Voyage Round the World. London: G. Robinson, 1778, p. 676. 7 Ibid. 8 Ibid. 9 Thomas, N. Hodges and anthropologist and historian. in: William Hodges. 1744-1797. The Art of Exploration. . New Haven and London: Yale University Press, 2005, p.212. 5

10 11

12

A ilha de Cítara está associada ao mito do nascimento da deusa Vênus. Sheriff, M. D. Boucher Enchanted Islands. in: Rethinking Boucher. London: Oxford, 2006, p.289. O tema é tratado em: Panofsky, E. (2002). Et In Arcadia Ego. Poussin e a Tradição Elegíaca. in: O Significado das Artes Visuais. São Paulo: Perspectiva.

13

Muitos continuariam a crer no idílio pacífico, como Gauguin no século XIX e Marlon Brando no século XX. 14 Eaton, N. Hodges visual genealogy for colonial India, 1780-95. in: William Hodges. 1744-1797. The Art of Exploration. New Haven and London: : Yale University Press, 2005, p. 212 . 15 16

Ibid. A ideia do mapa da humanidade foi exposta por Edmund Burke em sua famosa carta a William

Robertson, em resposta ao seu livro História da América.

1102

A Primeira Exposição Nacional de 1861: O ensaio geral e os cientistas brasileiros

Guilherme Guimarães Martins1

Resumo: O objetivo deste artigo é retomar a relevância da Primeira Exposição Nacional de 1861, não só para os estudos da História das ciências, mas também para uma releitura do contexto histórico do Segundo Reinado. A grande festividade da inteligência brasileira, assim referida pelo Imperador, foi o ensaio geral brasileiro para a Exposição Universal do ano seguinte. Outra finalidade do artigo é resgatar alguns dos participantes da Exposição, traçando um perfil para esses pequenos inventores, que se apropriavam dos discursos científicos para as construções de seus inventos, com o duplo interesse da utilidade publica e o seu desenvolvimento individual. Palavras chaves: Exposição, ciências, inventores.

Abstract: The purpose of this article is to resume the relevance of the First National Exhibition of 1861, not only for the study of history of science, but also to a reinterpretation of the historical context of the Second Empire. The great feast of the Brazilian intelligence, so that by the Emperor, was the Brazilian dress rehearsal for the World Fair the following year. Another purpose of the article is to rescue some of the participants of the exhibition, tracing a profile for these small inventors, who appropriated the scientific discourse for the construction of their inventions, with the dual interest of public utility and their individual development. Key-words: Exposition, science, inventors.

A Primeira Exposição Nacional de 1061: O ensaio geral e os cientistas brasileiros.

1103

Mercê de Deus, não é capacidade que nos falta; talvez alguma indolência e certamente mania de preferir o estrangeiro, eis o que até hoje tem servido de obstáculo ao desenvolvimento do nosso gênio industrial2·. (Machado de Assis)

O ensaio geral brasileiro “O maravilhoso efeito das Exposições Nacionais, que em 1844 e depois tivera lugar em Paris, Berlin, Viena e Madrid, provocara entre nós o desejo de seguir-se o exemplo dado por aquelas capitais” 3. É dessa forma que o dignitário político do Império, Marques de Abrantes, abre o prefacio do livro “As Recordações da Exposição Nacional 1861”, lançado em 1862 pelo Instituto Artístico de Fleuss Irmãos & Linde, sob a proteção especial do Imperador. Em seguida, Marques de Abrantes prossegue: “Apreciada por nacionais e estrangeiros como o primeiro e apressado inventario das forças produtivas do Brasil, a Exposição desde logo infirmou a crença da falta de oportunidade e o temor do seu insucesso, oferecendo depois amplo assunto à reflexão dos que ocupam-se de questões econômicas, e dos meios de desenvolver a riqueza nacional.”

O otimismo do Marques de Abrantes pela bem sucedida exposição nacional de 1861, refletia os anseios da sociedade imperial da segunda metade do século XIX. A busca pelo desenvolvimento econômico e social a partir da introdução de novas descobertas científicas impulsionou o florescimento de cientistas que buscavam colaborar com o desenvolvimento nacional. Durante o referido período, o Brasil passava por um momento de estabilidade política e uma efervescência econômica devido a algumas reformas institucionais, entre elas o fim do tráfico, o que possibilitou maiores investimentos nos setores industriais e no desenvolvimento urbano4. As grandes mudanças pelas quais passavam a sociedade influenciaram o modo de fazer ciências, que se torna, cada vez mais, voltado para os desenvolvimentos nos setores industriais na tentativa da diversificação na produção 5. Eram os ecos da Revolução Industrial se propagando na sociedade da Corte6. Nos jornais de cunho científico foram publicados inúmeros artigos referentes às produções inglesas, instigando as produções nacionais. Alguns avanços relevantes na produtividade brasileira podem ser oportunamente mencionados para ilustrar o momento, como a criação da Repartição Geral dos Telégrafos, a substituição dos lampiões para o sistema

1104

de iluminação a gás e a construção da primeira locomotiva no Brasil. Entre as bem-sucedidas construções modernas que pouco a pouco iam se incorporando ao cotidiano da sociedade, havia os “pequenos cientistas”. Estes incorporavam a “cultura científica” que estava sendo propagada e buscavam o reconhecimento a partir dos seus eventos. Conforme constatou João Cruz Costa, esse período foi marcado pelo florescimento de uma “modalidade de burguesia”, que aspirava novas idéias. “Para se inserir nessa burguesia, o indivíduo deveria ser um selfmade-man, que amealhava riqueza por seu próprio esforço, iniciativa e desprendimento (...) rompendo com a cultura dos privilégios de nascimento ou status”.

7

Na mesma perspectiva,

Breno M. Zeferino, em sua dissertação, afirma que dentro desse período de mudanças, mitificado pelo progresso e avanços das técnicas, os efeitos da expansão europeia trazia a energia característica da revolução tecnológica engajado à lógica capitalista do lucro. Diante desse contexto próspero e com o apoio do Imperador, a Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional8, junto com o Imperial Instituto Fluminense, propôs organizar a primeira Exposição Nacional, no ano de 1861, com o intuito de preparar e selecionar os expositores que iriam representar o Império na terceira Exposição Universal em Londres, no ano seguinte. A comitiva brasileira esteve ausente nas edições anteriores, o que foi muito lamentada pelos correspondentes brasileiros enviados pela SAIN, como observou Strauch nos depoimentos deixado pelos jornalistas brasileiros enviados à Exposição Universal9. A exposição nacional foi realizada na Escola Central, no Largo de São Francisco, uma escolha proposital, já que foi a escola pioneira no ensino de engenharia civil no Brasil. Teve seu início em dois de dezembro de 1861 e foi finalizada em março de 1862. Foram quarenta e dois dias do evento, que recebeu aproximadamente 50.000 visitas, um número extraordinário comparado com as proporções demográficas da época, representando aproximadamente ¼ da população da corte10. De acordo como relato dos comissários do evento, a festividade industrial arrecadou uma soma de 15:367$ para os cofres públicos. O governo imperial destinou boa parte dessa renda para investimentos em setores industriais11. Como foi proposto em seu regulamento, a Exposição Nacional seguiu os padrões internacionais para divisões dos produtos expostos. Regulamento para a Exposição Nacional de 1861 Art. 5. Os produtos serão distribuídos a cinco grupos, a saber: 1 Industria Agrícola 2 Industria Fabril e manual 3 industria metalúrgicas – artes e produtos químicos 4 Artes mecânicas e liberais

1105

5 Belas Artes ( pinturas e literaturas)12

Assim como o regulamento, a “teatralização” das solenidades também foi incorporada na “Festa Nacional do Trabalho e da Indústria”. Como aponta Strauch, o discurso inaugural do Imperador foi bastante parecido com os discursos realizados na abertura da Exposição Universal em Londres13. O monarca Dom Pedro II demonstrou-se honrado e admirado com a “inteligência” da engenhosidade brasileira.

As festas da inteligência e do trabalho são sempre motivo do mais fundado regozijo. Minha animação nunca deixará de procurar a quem concorrer para o engrandecimento da nossa pátria; e, abrindo hoje a primeira exposição nacional, muito me comprazo em ligar a recordação de sucesso tão esperançoso a das provas de amor e fidelidade que dos brasileiros recebo no dia dos meus anos14.

Como consta no livro das Recordações da Primeira Exposição Nacional, houve uma participação relevante de todo Império, contendo produtos provenientes das províncias do Pará, Amazonas, Alagoas, Bahia, Sergipe, Pernambuco, São Pedro (Rio Grande do Sul), Ceará, Espírito Santo, Paraíba, Rio Grande do Norte. A agitação transcendia o espaço geográfico da Corte e ganhava o cenário nacional, demonstrando a unidade do Império. Em algumas províncias mencionadas, ocorreram exposições locais como processo seletivo para a Exposição Nacional. A maioria dos produtos enviados era de origem extrativista e agroindustrial15. Como por exemplo, a província de Pernambuco, que não enviou nenhum produto manufaturado, apostando na riqueza dos elementos naturais, em destaque o algodão que era um produto de boa qualidade na região. A província do Pará, por sua vez, concentrouse em produtos naturais para uso medicinal e a do Amazonas estava representada pela sua diversidade de madeiras. Porém, como ilustrou Strauch, havia uma gama de produtos industriais que se destacaram pela suas engenhosidades. Segundo o autor, após a Exposição Universal de 1851 em Londres, vários produtos e técnicas científicas que foram expostas lá, ultrapassaram as fronteiras continentais e foram incorporadas no dia-a-dia da sociedade brasileira e com ela foi ganhando suas modificações e adaptações. O autor destaca em especial o Arsenal da Marinha e os produtos expostos pelo estabelecimento de Ponta d` Areia.

Algumas máquinas realmente destacaram-se naquela exposição. Por exemplo, o arsenal da Marinha expôs uma máquina a vapor marítima com três cilindros verticais, para 250 CV, por ele fabricada e destinada às corvetas em construção naquele Arsenal; pode ter sido talvez a principal atração, já que constituía uma máquina de grande potência para a época. Equipamentos que tinham chamado a atenção de brasileiros na exposição de

1106

Londres em 1851, passaram a ser fabricados no Brasil, por exemplo; na Exposição Nacional a fábrica de Ponta D` Areia expôs, entre outros equipamentos uma bomba centrifuga acionada por correia para bombear 1,5 t por minuto de água e uma moenda de ferro para cana - de -açúcar com três rolos acionada por máquinas a vapor, com grandes engrenagens de redução, regulador de velocidade, etc.16

Analisando em particular o livro As recordações da primeira Exposição Nacional de 1861, destacaria outras produções de igual empenho científico, como o modelo de engenho a vapor para moer cana, feita por João Maria da Conceição Junior, e outros artefatos produzidos pelo Estabelecimento de Iluminação a Gás, como por exemplo, o modelo de uma draga volante, além de outros produtos de irrigação. A variabilidade do conceito de “ciência” proporcionou a exposição dos mais diversos produtos. Eram 9.962 produtos enviados por 1.136 expositores. Embora muito bem representada pelas demais províncias, a representatividade dos expositores da província do Rio de Janeiro era massivamente superior, preenchendo cerca de 90% do espaço destinado à exposição17. Havia outros tipos de produções, com menos grau de cientificidade em sua fabricação, mas contendo finalidades importantes. Nada melhor que apreciar um bom vinho das serras gaúchas, que já naquela época ganhava um lugar de destaque na produção. O Auxiliador da Indústria Nacional destinou diversas páginas sobre a importância da produção do vinho no Rio Grande do Sul, apostando na sua renda pela exportação. Por mais diversos que fossem os produtos expostos, havia um ponto comum entre eles: a preocupação da sua incorporação no cotidiano das pessoas. Desde os modelos de jangadas de pescaria, fabricada no norte do Brasil, ao enfeites mais simples, todos visavam sua incorporação no dia-a-dia da sociedade imperial. Para garantir o funcionamento da festividade, foi elaborado um decreto em 17 de julho, que criou o Júri Central, com a difícil tarefa de selecionar e premiar os expositores que iriam representar o Império na Exposição Internacional de 1862. Foram nomeados: o presidente, Marques de Abrantes, os Srs. Visconde de Itaboraí, conde de Baependi, Visconde de Barbacena; Dr. Frederico Leopoldo César Bulamarque, Dr. Alexandre Maria de Mariz Sarmento, Dr. Bernardo Augusto Nascente de Azambuja, Dr. Manuel Ignácio de Andrade, Tenente Coronel Jacinto Vieira do Couto Soares, Dr. Augusto dias Carneiro, Dr. Manoel de Oliveira Fausto, senador José Pedro Dias Carvalho, Antônio Joaquim de Azevedo, José Afonso Ramos e Antonio Luiz Fernando da Cunha. Nota-se que todos escolhidos eram homens de status, e que, muito deles eram ligados, no âmbito político, à Coroa. Somente no dia 16 de agosto o público teve conhecimento deste decreto. 18

1107

A comissão diretora, por sua vez, ficou encarregada de dirigir e organizar o evento. Árduo trabalho reconhecido e admirado nas páginas dos jornais. Não faltaram elogios aos “patrióticos” organizadores. As obrigações eram:

Art. 8. 1 Decidir sobre a admissão dos objetos apresentados. 2- Classificar os que tiverem de ser expostos conforma a ordem estabelecida no catalogo em anexo. 3- Colocar nos objetos que forem admitidos rótulos que indiquem os nomes dos expositores dos objetos, seu gênero, espécie, uso e procedência. 4- Organizar um catalogo de tudo cm as declarações e especificações necessárias para se fazer uma idéia exata de cada objeto. Este Catalogo será publicado nas gazetas da capital e impresso a custa do governo para se distribuído pelos visitantes e enviado para a Corte e para todas as províncias do Império.

Para o cargo da presidência da comissão, foi escolhido o conselheiro Carvalho Moreira, que, na época, era o embaixador do Brasil no Reino Unido. O status de embaixador seria útil ao Império, que tinha a preocupação de modificar a imagem do Brasil - mal visto devido às ausências nas exposições universais.

...tornar o Império conhecido, e devidamente apreciado, apresentando alguns espécimes de seus multiplicados e valiosos produtos, com o fim de permutá-los e de excitar capitais, braços e inteligência da Europa para sua extração e preparo; dar uma idéia posto que fraca da nossa atividade e civilização fazendo assim desvanecer preconceitos que se hajam formados entre nos. 19

Assim como a abertura, o encerramento também teve as solenidades de agradecimentos e premiações. Como foi observado por Strauch, no discurso do Doutor Frederico Leopoldo Bulamarque exaltando a união entre os povos e o avanço do progresso científico.

Os destinos do gênero humano vão mudar, [...] entrou nos desígnio da Providência que a humanidade viva a mesma vida e repouse sobre as mesmas bases. Essa união tão desejada, a reunião de todos os povos civilizados em um só povo, saiu do domínio das utopias, hoje que o homem conseguiu subjugar a matéria, hoje que as ciências unem todos os povos pelos laços do saber, da indústria e do comercio, hoje finalmente hoje, finalmente, que o vapor anula as distancias e a eletricidade o tempo.20

Durante dias, meses e até anos, a primeira Exposição Nacional estampou as laudas dos periódicos da época. Era comum, até mesmos em jornais que não tinha o espaço da ciência como prioridade, a admissão de artigos referentes à “festa da inteligência brasileira”. Artigos sobre os produtos expostos, instruções de fabricação ou de como utilizar os produtos eram sempre publicadas. Para exemplificar, transcrevo um trecho de um texto extraído do Jornal do

1108

Comércio no ano de 1862, exaltando o trabalho dos marceneiros e a qualidade de suas produções. O texto relata a aproximação do marceneiro e do artista, já que o produto final depende muito mais da habilidade do operário do que da utilização das máquinas modernas que acabam por inibir as precauções e cuidados do trabalho manual.

Os marceneiros desejaram e conseguiram demonstrar que entre nós já chegaram a um ponto de perfeição tal que nos autoriza e esperar e exigir tudo deles. Graças as suas obras, de hoje em diante, talvez possamos ver-nos livres desses moveis que a França nos envia por não haver extração para eles por lá e também dessas mobílias notáveis pela sua fealdade e feitio pesado que nos vem de Hamburgo [...] . A madeira é matéria-prima trabalhada a mão em pequenas oficinas. Não pode o trabalho manual ser substituído pelas maquinas, [...] resulta-se daí que o marceneiro, para estabelecer, não necessita de grandes capitais, nem de instrumentos custosos. Nos moveis, portanto, temos meramente que pagar a matéria prima e a mão-de-obra, da maior ou menor habilidade, do gosto mais ou menos apurado do operário dependem da maior ou menor perfeição do trabalho. Ora, estas mesmas condições que acabamos de expor, tornam a marcenaria, que tem mais um ponto de contato com a arte, uma das profissões que atraem e oferecem a quem a ela se dedica um salário suficiente, abre ao operário a perspectiva de chegar a facilmente a ser patrão, nada tem de penoso, porque lhe faltarão, pois braços?[...].

Na edição seguinte, na continuação do artigo, o jornal volta dar importância para os objetos que se destacaram pelo trabalho manual, como os chapéus. Segundo a estimativa do Jornal do Comércio, o número de operários empregados nessa indústria era de 250 na cidade do Rio de Janeiro. Juntos, eles fabricam diariamente cerca de 700 chapéus. Das produções com alto grau de engenhosidade aos pequenos objetos de trabalho manual, havia o intuito de diminuir a importação para ampliar a produtividade. O orgulho patriótico encobria as páginas dos jornais através de exageros. O Brasil era colocado em patamar de igualdade às referências européias. No campo da ciência e na sua aplicabilidade nas indústrias, o Brasil ainda engatinhava, mas possibilitava no imaginário desses homens, um horizonte de expectativa.

Os cientistas e algumas considerações

Através de uma minuciosa análise sobre alguns dos participantes da primeira Exposição Nacional, o enfoque se direciona para esses homens que buscavam “fazer ciência” 1109

construindo inventos e experimentos para utilização no dia-a-dia da sociedade, visando o progresso social e econômico do país. Entretanto, o espírito patriótico não anulava a lógica individualista de conquistar o seu lugar ao sol na “inteligência brasileira”, através da sua inventiva. Todavia, não será abandonado o objetivo inicial, a análise da Exposição Nacional; só mudaremos o ângulo de observação para os participantes do evento. Recorrendo novamente ao livro As Recordações da Exposição Nacional de 1861, que destaca com riqueza de detalhes alguns produtos e produtores da exposição, pressuponho que embora o número de expositores não fosse baixo, eles pertenciam a um núcleo minoritário em uma sociedade marcada pelo escravismo. Parte deles estava conectada por pertencerem à Sociedade Auxiliadora Nacional. Eram constantemente citados no jornal de propriedade da Sociedade, na lista de membros associados ou nos pedidos por patentes de suas invenções. As petições de patentes eram recorrentes na revista, Auxiliador da Indústria Nacional, da SAIN, munida pelo apoio da Sociedade Auxiliadora, desde os anos de 1830 quando foi criada a primeira lei específica para regulamentar os pedidos de patentes. “Essa concessão de privilégio para quem descobrisse, inventasse ou aprimorasse uma indústria útil” garantia benefícios morais e materiais ao autor. Os pedidos de auxílios e incentivos para Sociedade Auxiliadora também eram um ato comum para esses homens que buscavam o caminho das descobertas científicas. O Sr. Castro Paes, por exemplo, que participou da Exposição Nacional apresentando vários artefatos feitos de vidro em sua fábrica em Praia Formosa, meses antes aparecia nos relatórios do Auxiliador pedindo auxílio para manutenção da sua fábrica. A fábrica do Sr. Castro Paes já existia desde os anos de 1830 e gozava da proteção dos poderes públicos. Outro associado à Sociedade Auxiliadora, era José Maria Reis, que participou da Exposição Nacional com a luneta Imperial, fabricada em seu estabelecimento. A luneta possuía detalhes em ouro e lentes de cristais. Jose Maria Reis, anos após o evento, concorreu ao cargo de tesoureiro da Sociedade Auxiliadora e foi destinado ao conselho da seção Artes Liberais e Mecânicas da associação. O engenheiro Henrique Hargreves torna-se sócio da Sociedade Auxiliadora em 1873. No mesmo ano, solicita pedido de patente sobre sua invenção ao Arquivo Público, como conta no Auxiliador da Indústria Nacional.

Estando assim compridas as disposições da Lei de 1830, e distinguindo-se perfeitamente a Máquina-Hargreves de secar café de todas as outras privilegiadas pelo governo Imperial, é de parecer a Seção de máquinas a aparelhos da Sociedade Auxiliadora da

1110

Indústria Nacional que deve ser concedido privilégio por 20 anos a Henrique Hargreves para o aparelho, que afirma ter inventado, e que se acha descrito e representado nos documentos juntos à sua petição de 24 de julho de 1879.21

Henrique Hargreves aparece nos relatos da Exposição Nacional anos antes do seu pedido de patente, com outros dois produtos de finalidades diferentes. O mais interessante é o seu guincho de ferro, que surpreende pelo seu grau de engenhosidade. O outro produto produzido e exposto pelo engenheiro civil foi um medalhão com retratos, feito de ferro fundido. A diversificação nas produções era algo comum para esses “cientistas”, que buscavam realizar grandes eventos e marcar o seu nome na história brasileira. Isso se deve principalmente ao caráter universal e pragmático que o conceito de ciência abrangia. Em suma, podemos perceber que esse grupo de cientistas, estava de algum modo, conectados pelo elo da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional. De certa forma, o momento propiciou o crescimento desses cientistas. Mas esse crescimento era limitado às pessoas que tinham acesso a educação em uma sociedade escravista. Portanto, ao contrário do que aponta a historiografia tradicional, o Brasil não estava tão aquém das descobertas científicas européias. As idéias referentes à aplicabilidade da ciência para o progresso social já pairava no imaginário desses homens. Como afirmou César Agenor Fernandes da Silva, havia uma premissa compartilhada de incorporar os conhecimentos científicos na sociedade, tornando-se habitual aos brasileiros, alcançando o patamar do “progresso humano”. A primeira Exposição Nacional de 1861, adjetivada como a “Festa Nacional do Trabalho e da Indústria”, por Dom Pedro, representou um marco na história das ciências no Brasil, registrando os pioneiros científicos do país. “O ensaio geral” brasileiro abriu os caminhos para a participação do país nas Exposições Universais, lado a lado com as grandes potências européias.

1

Mestrando em história pelo programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Juiz de Fora ( PPGH-

UFJF) sob orientação da professora Silvana Mota Barbosa . Email: [email protected] 2

ASSIS, Machado. O que ficou provado a respeito da Itália – Exposição nacional – Morte de um general– A

Resignação – “La Dame Blanche” – Comissão para teatro – Ainda o Sr. Senador Jobim. In: Machado de Assis – obra completa. Disponível em http://machado.mec.gov.br/, acessado em 06 de agosto de 2012. 3

ABRANTES, Marques de. As recordações da Exposição Nacional de 1861. Rio de Janeiro: Instituto Artístico

de Fleuss Irmãos & Linde, 1862.

1111

4

SHWARCZ, Lilia. O espetáculo das raças: cientistas instituições e questão racial no Brasil. 1870-1930. São

Paulo: Companhia das letras, 1993. 5

ROSA, Russel Terezinha da. Publicações brasileiras e o desenvolvimento das ciências no século XIX. Episteme

(Porto Alegre): filosofia e história das ciências em revista. Porto Alegre. N. 23 (jan/jun. 2006). 6

Sobre as reformas institucionais Ver: LEVY, Bárbara. A indústria do Rio de Janeiro através de suas sociedades

anônimas. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro, 1994. 7

COSTA, João Cruz. Contribuição à história das idéias no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1967.

8

A SAIN surgiu sob jurisdição do governo ligada ao Ministério dos Negócios do Império. Em 1860 passou a

funcionar como órgão consultivo do Estado. A finalidade da sociedade pode ser vista no seu primeiro estatuto. “... promover por todos os meios ao seu alcance, o melhoramento e prosperidade da Indústria no Império do Brasil, amalgamando os alicerces econômicos da nova nação com a produção do conhecimento científico”. 9

Strauch, P. César. Pindorema e o Palácio de Cristal: um olhar brasileiro sobre a exposição de Londres de

1851. Rio de Janeiro: E-papers Ed., 2008. 10

CUNHA, Antonio L. Fernandes. Relatório Geral da Exposição Nacional de 1861 e relatórios dos

júris

especiais. Coligidos e publicados por deliberação da Comissão diretora. Rio de Janeiro; Typ. Do Diário do Rio de Janeiro, 1862. 11

Cultura da seda do ailantus na Republica Oriental da Argentina. Auxiliador da Indústria Nacional, Ed. 001,

pág. 24, 1862. 12

CUNHA, Antonio L. Fernandes. Regulamento para a Exposição Nacional de 1861. Diário de Pernambuco.

Ed. 00254, 1861. 13

Strauch, P. César. Pindorema e o Palácio de Cristal: um olhar brasileiro sobre a exposição de Londres de

1851. Rio de Janeiro: E-papers Ed., 2008. 14

Discurso do Imperador extraído do jornal Diário de Pernambuco. Retrospecto político do ano de 1861. Diário

de Pernambuco. Ed. 024. Ano 1862. 15

CATALOGO. Catálogos dos Produtos Naturaes e Industriais Remetidos das Províncias do Império do Brasil,

Typographia Nacional, Rio de Janeiro, 1861. 16

Strauch, P. César. Pindorema e o Palácio de Cristal: um olhar brasileiro sobre a exposição de Londres de

1851. Rio de Janeiro: E-papers Ed., 2008. 17

CUNHA, Antonio L. Fernandes. Regulamento para a Exposição Nacional de 1861. Diário de Pernambuco. Ed.

00254, 1861 18

Anônimo. A Redação. Diário de Pernambuco. Pág. 2, Ed: 0042, 1862.

19

BELOCH, Israel, FAGUNDES, Laura Reis (org). Sistema FIRJAN: A história dos 170 anos da representação

industrial do Rio de Janeiro, 1827-1997. Rio de Janeiro: Memória Brasil projetos Culturais, 1997. 20

BUALMARQUE, Frederico L. C. Recursos minerais no Brasil. O Auxiliador da Indústria Nacional. Ed. 006,

1862. 21

Anônimo. Seção do Conselho Administrativo. Auxiliador da Indústria Nacional. Ed: 0047; pág 178, 1879

1112

Frantz Fanon (1925-1961): um pensador africano entre o projeto de emancipação e a luta anticolonial. Ms. Gustavo de Andrade Durão1 [email protected] Doutorando do Programa de Pós-graduação em História Comparada (UFRJ) Orientador: Dr. Bruno Sciberras Carvalho

Resumo: Apesar de uma formação francesa e da sua origem antilhana, Frantz Fanon, o renomado intelectual pós-colonial, teve sua trajetória marcada por um compromisso de libertação dos territórios africanos. Importante representante das ciências humanas, Fanon lançou inúmeras reflexões vis-à-vis a libertação do continente africano. Além disso, esse pensador foi retomado por grande parte dos intelectuais africanos, das décadas de 1960 e 1970, pois, viabilizou um modelo de independência para os países africanos como Angola, Quênia e Camarões. Palavras-chave: Colonização, Fanon, Revolução.

Abstract: Although a French learning and their West Indian origin, Frantz Fanon, the renowned postcolonial intellectual, had your history marked by a commitment with the liberation of African territories. Important representative of the humanities, Fanon introduced many reflections vis-à-vis the liberation of the African continent. In addition, most African intellectuals took up this thinker, in the 1960s and 1970s, therefore, it enabled a model of independence for African countries as Angola, Kenya and Cameroon. Key words: Colonization, Fanon, Revolution.

Frantz Fanon: uma formação humanista

Dentre as colônias francesas na África, a Argélia merece uma atenção especial, pois, se diferenciou dos outros territórios no que diz respeito à sua relação com a metrópole. Durante o início do século XIX, os territórios argelinos, foram estabelecidos como pontos para que a França não perdesse o contato com o continente africano (BOUVIER, 2010, p.131). 1

Esse artigo foi escrito e idealizado durante o estágio doutoral financiado pela CAPES no Institut de Sciences Politiques de Paris (agosto 2015).

1113

A sociedade da Argélia colonial era constituída como algo parecido a um sistema de castas que trazia duas comunidades justapostas e distintas. Essas duas sociedades eram caracterizadas como uma sendo inferior e outra superiora, “separadas por grande quantidade de barreiras invisíveis, institucionais ou espontâneas” (BOURDIER, 1958, p.115-116 apud BOUVIER, 2010, p.131). O code de l’indigénat de 1887 corroborou para que essas diferenças se estabelecessem criando a diferenciação entre o nativo e o cidadão francês. Desde aí surgia a separação entre os nascidos franceses e os nativos argelinos, sendo que aquele que tinha maior predominância nas decisões da sociedade era sempre o colono francês (BOUVIER, 2010, p.132). Apesar de não ser originalmente argelino, já que nasceu na Martinica, Fanon teve uma relação de muito envolvimento com o continente africano e com a luta colonial. Ele nasceu em Fortde-France em 1925, se tornando entre 1939-1945 um seguidor das ideias de Aimé Césaire, seu professor. Césaire publicou o famoso Cahier d’un retour au pays natal (Caderno de um retorno ao país natal) e Discours sur le Colonialisme (Discurso sobre o Colonialismo, sendo um dos tenores do Movimento da Négritude (HADDOUR, 2006, p.vii). Em 1947, Fanon foi estudar psiquiatria em Lyon (na França) e, em 1951, ele defendeu seu doutorado com sucesso. Foi em território francês que entrou, verdadeiramente, em contato com o racismo. O seu primeiro livro, “Pele Negra, Máscaras Brancas”, foi um representação desse racismo, ainda com base nas análises etnológicas francesas em comparação com a literatura antilhana (HADDOUR, 2006, p.vii). Fanon teve um duplo papel enquanto escritor, pois, sua sensibilidade enquanto filósofo deixavao confortável para realizar as análises existencialistas sobre o “ser negro no mundo” e, sua formação enquanto psiquiatra, levava-o a refletir enquanto médico com base nas análises neurológicas e médicas em geral. A preocupação humanista de Fanon abrangia elelentos da antropologia, na busca por uma ética, dotada de elementos abstratos que suscitavam novas reflexões, já que, dialogavam com várias áreas do saber (FREDJI, 1984, p.77). Na obra “Pele Negra, Máscaras Brancas”, Fanon tratava da alienação promovida pelo sistema de assimilação cultural difundido pela França e propunha um meio de evasão desses preceitos (FREDJI,1984, p.79). Devido a sua formação francesa e aos seu contato com a cultura ocidental Fanon pôde desenvolver uma série de teorias sobre o colonialismo e sobre como acabar com o domínio colonial. Em 1953, Fanon foi convidado para trabalhar como psiquiatra no hospital de Blida-Joinville na Argélia e já em 1956, se demitiu do cargo para atuar na causa argelina. O próprio filósofo JeanPaul Sartre assume que Fanon foi o principal teórico e porta-voz da revolução argelina 1114

(HADDOUR, 2006, p. vii). O que muitos estudiosos de Fanon não levam em conta é que ele chegou na Argélia sem as suas ideias revolucionárias ou com definições definitivas tal como vê-se em “Os Condenados da Terra”, sua obra póstuma, de 1962 (MACEY, 2011, p.219-220). Sua trajetória enquanto escritor poderia ter atingido o repertório intelectual dos pensadores que se envolviam com a cultura francesa, e até mesmo, ter se integrado no ambiente francês. Contudo, Fanon demonstrava veia crítica e compreensão para o lado político, contestando a sociedade argelina, principalmente na sua configuração sociocultural. A cidade do colono é uma cidade sólida, toda de pedra e ferro. É uma cidade iluminada, asfaltada, onde as latas de lixo transbordam sempre de restos desconhecidos, nunca vistos mesmo sonhados […] a cidade do colonizado, ou pelo menos a cidade indígena, a aldeia negra, a medina, a reserva é um lugar mal afamado, povoado de homens mal afamados (FANON, 2006, p.55).

Apesar da força desta caracterização de Fanon da sociedade argelina, ele carregava um desejo de transformação da Argélia, país o qual ele estava fortemente comprometido politicamente. Dessa maneira, Fanon encontrava uma situação de extremo preconceito e discriminação no norte da África, situação que era reforçada pelas teorias do racismo biológico. Assim, ele entrava em contato com a FLN (Frente de Libertação Argelina) através das ligações que tecia ao auxiliar os combatentes que apareciam no hospital e, fornecendo-lhes cuidados médicos, ele ia ficando cada vez mais próximo do ideal revolucionário (MACEY, 2011, p.276). O escritor da Martinica passou por quatro fazes importantes da sua trajetória, que definiram a sua participação na vida político-sócio-cultural da África e do terceiro mundo de maneira geral. A primeira foi a fase antilhana em que, de algum modo, Fanon se identificava com a cultura francesa e era possível ocupasse um local importante cultura ocidental francesa. A segunda fase caracteriza-se por suas críticas à assimilação francesa e a consequente alienação que ela provocara na sociedade antilhana em meados do século XX. A terceira etapa foi a sua identificação com a África, pois, ele não só identificou-se como interligou-se à realidade argelina, a qual passou a fazer parte da consciência crítica, no interior da movimentação revolucionária. A última parte de sua biografia pode ser definida como uma teoria da violência, que nada mais era do que a defesa de uma nova perspectiva para o mundo que deixava de ser dominado pela colonização. Durante a escrita do livro “Os condenados da Terra” Fanon estabelecia um projeto futuro para o continente, tornando-se definitivamente o teórico das questões coloniais ou pós-coloniais (HADDOUR, 2001, p.viii). A trajetória de Fanon, esteve, nessas duas primeiras fases, estritamente relacionada com o racismo e as reflexões teóricas que envolviam a Martinica e a França. Já as outras duas partes caracterizadas representaram o desencantamento total de Fanon com qualquer tipo

1115

de

abordagem francesa e estabeleceu uma ruptura tanto em relação à assimilação francesa, como qualquer outro tipo de contato proveniente da civilização francesa. De maneira geral, pode-se dizer que um Fanon enquanto escritor e crítico teve como função a deflagração dos mecanismos da colonização francesa. Esses mecanismos tinham como objetivo a alienação do colonizado e a assimilação da sua cultura em substituição dos valores franceses. Por isso, enquanto reflexão, a definição crítica do escritor tunisiano Albert Memmi sobre Fanon é fundamental: When a dominated man has understood the impossibility of assimilation to the dominator, he generally returns to himself, to his people, to his past, sometimes, as I have indicated, with excessive vigor, transfiguring this people and this past to the point of creating counter-myths. When Fanon finally discovered the fraud of assimilating West Indians into French citizens, he broke with France and the French with all the passion of which his fiery temperament was capable (MEMMI, 1973, p.16). 2

Em um primeiro momento Fanon viu-se diante da realidade colonial, realizando a crítica à sociedade antilhana, e pouco a pouco, concluía que a França nunca possibilitaria uma troca justa com suas colônias. O papel humanista de Fanon surgiu, justamente, dessa nova postura diante da ideia colonial e como proposta concreta, ele repudiava a exploração do homem pelo homem, encontrando no conceito de violência uma solução para a questão do domínio colonial (GIRAUD, 1984, p.84). Fanon adotou a Argélia como sua pátria e serviu, incondicionalmente, aos propósitos revolucionários na promessa da superação do colonialismo e da liberdade dos homens, demonstrando a sua postura diferenciada enquanto pensador e militante anticolonial. Na prática, o escritor argelino enxergava a descolonização como a única maneira possível de impedir o processo de desumanização pelo qual o colonizado estava passando (HADDOUR, 2006, p.xii).

Ruptura e violência O conceito de revolução estava atrelado à uma “transformação radical nas estruturas sociais”, e isso fez com que se aceitasse a ideia de que as mudanças sociais poderiam acontecer de uma hora para outra (SILVA, 2010, p.365). A própria noção de Revolução Francesa é questionada pelos historiadores contemporâneos por representar algo bem mais ideológico do que concreto. 2

Quando o homem dominado entendeu a impossibilidade da assimilação ao dominador, ele geralmente, volta a si mesmo, ao seu povo, ao passado dele, às vezes, como tenho indicado, com excessivo rigor, transfigurando esse povo e esse passado a ponto de criar contra-mitos. Quando Fanon finalmente descobriu a fraude da assimilação dos antilhanos em cidadãos franceses, ele rompeu com a França com toda a paixão da qual seu temperamento inflamado era capaz (MEMMI, 1973, p.16).

1116

Em 1954, a Argélia, terra adotada por Fanon, entrava em guerra com a França e, graças ao congresso de Soummam, ficou decidido que uma era nova começaria para o país. O Encontro de Soumman foi a primeira vez que os revolucionários se encontraram e, a FLN se consolidou, enquanto força política contrária à ordem colonial francesa. A Argélia entrava no ano zero e a revolução argelina buscava iniciar uma nova era, fazendo tábula rasa da história de seu povo (MACEY, 2011, p.275). O objetivo dos revolucionários era fazer renascer um Estado argelino na forma de uma «République démocratique et sociale», tendo um espaço reservado para a participação popular. Também era previsto uma redistribuição de terra a todos os que nela trabalhassem, embora as bases dessa reforma agrária não estivessem completamente definidas (MACEY, 2011, p.270271). Durante os seis anos mais duros do conflito argelino dois massacres foram os mais emblemáticos do conflito: o de Guelma e de Sétif. Isso demonstrava que a política social francesa não era capaz de lidar com os problemas que se acumulavam historicamente no país. As únicas coisas que vinham como resposta eram o ataques militares das forças francesas, que acabaram tornando-se os pilares da continuidade da tutela francesa (BOUVIER, 2010, p.137). Isso foi percebido por Fanon e a questão da violência pode ter surgido, igualmente, como resposta às investidas militares da França. Um dos principais líderes do nacionalismo argelino era Messali Hadji, um personagem importante nos movimentos argelinos da segunda metade do século XX. Ele foi o criador da “Étoile Nord Africaine”, em 1928, que contava com forte influência do comunismo francês, mas, já em 1929, a “Étoile” foi interditada pela França (MACEY, 2011, p.273). A iniciativa de Massali Hadji foi de grande importância, pois, conseguia unificar a visão socialista e o nacionalismo argelino aos padrões da identidade árabe-muçulmana (MACEY, 2011, p.273). A entrada de Fanon na frente revolucionária se deu quando os combatentes chegavam ao posto médico mutilados sob o efeito das torturas e a Aliança Libertadora Nacional (ALN) viu o seu apoio como algo importante de ser mantido em nome do combate pela liberdade da Argélia (BOUVIER, 2010, p. p.144). O debate sobre o real papel de Fanon na guerra da Argélia ficou restrito ao apelo que fez aos intelectuais de esquerda para que freassem o conflito, e, além disso, que pudessem compreender a violência como a tática utilizada pelo colonizado para sua libertação. Fanon escrevia no periódico El Moudjahid que atuava como órgão de divulgação da luta revolucionária. Neste cargo Fanon tinha nova identidade, passaporte novo e toda a instrumentalização para atuar junto da FLN (MACEY, 2006. p.379). 1117

Ao contrário do que se pensa, a FLN, por exemplo, não era um partido político, era uma frente revolucionária (MACEY, 2011, p.275). O nacionalismo não chegava a ter as suas bases estruturadas pela frente revolucionária, contudo, Fanon trazia uma reflexão acerca da consciência nacional, que só seria atingida através do fim do colonialismo (FANON, 2006, p.240-241). A ruptura com a França e a meta para se atingir o nacional eram coisas duas coisas muito ligadas nas análises de Fanon e, pode-se dizer que o conceito de nacional aparecia praticamente como algo pedagógico para que aqueles comprometidos com a revolução, compreendessem o surgimento uma nova Argélia (HADDOUR, 2006, p xxiii). Por outro lado, o seu foco não era só o colonizado, pois, em sua obra “Os condenados da Terra” Fanon realizou análises geopolíticas, tendo como enfoque a situação africana. Sabendo que fazia parte do jogo político capitalismo e socialismo, Fanon tentou de todo modo alcançar uma definição para a África que traria o fortalecimento dos Estados diante dos destroços da dominação colonial (HADDOUR, 2006, p.xxii). Desse modo, Fanon reconhecia que a situação colonial “tirava o véu” da exploração do homem pelo homem, que se dava já de modo explícito, sem nenhum tipo de disfarce por parte do colonizador (GIRAUD, 1984, p.82). Mesmo assim, Fanon foi tido por alguns intelectuais como um apologista da violência, quando, na verdade, ele via a violência como uma maneira do colonizado se desfazer do seu complexo de dependência (GIRAUD, 1984, p.84). L’expérience vécue de la violence coloniale tricontinentale est tridimensionnelle, est surdéterminée et en croissance constante, elle génère une frénésie et une férocité intérieures chez le colonisé. Le rôle du parti politique, selon Fanon, est alors de canaliser cette violence accumulée et de la diriger vers quelque chose de productif, de le combattre en utilisant le langage de la vérité et de la raison (YOUNG, 2006, p. 91).3

Diante da guerrilha argelina e dos massacres promovidos pela França é inegável que a Guerra da Argélia foi uma das mais violentas que envolveram o mundo colonial africano. Mas Fanon admitiu em seu texto “L’An V de la révolution algérienne” que o papel do argelino também seria compreender as baixas de guerra (FANON, 2011, p.37-38). O conceito de violência em Fanon representou seu desejo de ruptura e sua postura de militância diante do poderio militar francês, um dos principais pilares do colonialismo francês. É preciso

3

A experiência vivida da violência colonial tri continental é tridimensional, é superdeterminada e em crescente constante, ela gera uma frenesia e uma ferocidade internas dentro do colonizado. O papel do partido, segundo Fanon, é agora de canalizar essa violência e acumular e dirigi-la através de qualquer coisa de produtiva, de combatê-la utilizando a linguagem da verdade e da razão (YOUNG, 2006, p. 91).

1118

lembrar que para além da defesa da violência que Fanon levanta em “Os condenados da Terra”, ele escrevia em situação colonial atrelado às suas convicções políticas e às conjunturas históricas. O seu pensamento, apesar de parecer muito extremista, trazia as exigências de sua ação profissional e, enquanto militante, carregando a vontade de mudança de uma situação histórica de opressão (GIRAUD, 1984, p. 88).

Por um projeto Pan-africano.

Fanon ocupou um papel relevante no contexto político e intelectual do seu tempo. Sua função enquanto intelectual foi o de articular-se ao campo das relações humanas. Simone de Beauvoir, por exemplo, aponta que Fanon era um homem intrigante e que parecia viver perdido em seus próprios pensamentos (BEAUVOIR, 1963, 428-429 apud MACEY, 2006, p.447). Fanon poderia ter sido seguidor de pensadores como Cheik Anta Diop, Tom Mboya, Kwame Nkrumah e Léopold Senghor que foram seus contemporâneos. Mas, de algum modo ele foi influenciado pela perspectiva política de Ho Chi Minh, Che Guevara e Amílcar Cabral, personagens que também tinham projetos políticos ousados e de esquerda (YOUNG, 2006, p.94). A biografia de Fanon não foi suficientemente explorada durante sua atuação enquanto secretário geral do Governo Provisório Argelino (GPRA) em Gana. O convite, feito à pedido do próprio Nkrumah deu ao revolucionário argelino um local importante nas articulações para o projeto político do país. A ideia central era abrir novas frentes de luta revolucionária para que a África, tivesse na Argélia, um ponto de resistência que alimentaria-se das noções de emancipação frente ao colonialismo (BOUVIER, 2010, p.171). Enquanto articulador do GPRA, Fanon fez contatos com líderes da África subsaariana, representantes do Mali e do Camarões, visando apoio militar para abrir uma nova frente de luta política para a FLN (BOUVIER, 2010, p.174). Tendo visto Patrice Lumumba como um ícone do movimento anticolonial e buscando aproximar-se de Félix Moumié (Camarões), Fanon buscava suas conexões com o continente africano, idealizando um continente mais interligado e que contasse com uma liberdade mais ampla (BOUVIER, 2010, p. 170). Os contatos de Fanon, como o de Roberto Holden, também revelavam como o intelectual da revolução argelina estabeleceu ligações políticas importantes com a África portuguesa. Graças a algumas informações vinculadas entre eles, acredita-se que o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) tenha conseguido as suas primeiras orientações no longo caminho para libertar-se o colonialismo português (MACEY, 2006, p.412-414). 1119

Havia um ambicioso projeto de criação dos Estados Unidos da África, fruto da empreitada panafricanista. Graças a conferência promovida em Accra, em 1958, por Nkrumah, pode-se iniciar um amplo processo de negociações, visando uma união pan-africana, onde os Estados, obteriam certa autonomia e fariam parte de uma comunidade africana de cooperação mútua (YOUNG, 2006, p.86). Durante esse congresso percebeu-se uma serie de desentendimentos do que viriam a ser entraves ao projeto pan-africano. De um lado Nkrumah (Gana) e Julius Nyerere (Tanzânia) já tinham autonomia para decidirem o futuro dos seus países, mas discordavam em alguns pontos importantes. Outra divergência foi entre W.E.B. DuBois e Fanon no que tange aos temas de violência e do que seria o nacionalismo dentro dessa dinâmica pan-africana (YOUNG, 2006, p.86). Le panafricanisme de Fanon s’est construit dans la lutte, en dissidence à l’esprit de confort de la négritude et en opposition au capitalisme comme au communisme. Pour lui, l’unité de l’Afrique est avant tout une unité de combat, visant à libérer le continent du colonialisme et de la violence qui lui est consubstantielle (BOUKARI-YABARA, 2014, p.170). 4

O pan-africanismo enquanto projeto político ganhava força na medida em que os países se libertavam e ganhavam a independência. A oposição de Fanon era a qualquer tipo de opressão e ele buscava conduzir a África para um projeto de libertação, tendo como exemplo a Argélia. Desse momento em diante, a reunião dos seus escritos estão no livro “Pour la révolucion africaine” (1960) em que estabelecu-se as diretrizes para a revolução, mas também suas reflexões sobre como vencer-se o colonialismo. Como reflexão final, é possível interpretar parte da tarefa de unificação do continente para Fanon através deste trecho: Le colonialisme et ses dérives ne constituent pas à vrai dire les ennemis actuels de l’Afrique. À brève échéance, ce continent sera libéré. Pour ma part, plus je pénètre les cultures et les cercles politiques, plus la certitude s’impose à moi que le grand danger qui menace l’Afrique est l’absence d’idéologie (FANON, 2006b, p.207).5

4

O pan-africanismo de Fanon se contruiu na luta, em dissidência ao espírito de conforto da négritude e em oposição ao capitalismo como ao comunismo. Para ele, a unidade da África é antes de tudo uma unidade de combate visando libertar o continente do colonialismo e da violência que lhe é consubstancial (BOUKARI-YABARA, 2014, p.170). . 5

O colonialismo e seus derivados não constituem, pra dizer a verdade, os inimigos atuais da África. Em breve data, esse continente será libertado. Da minha parte, mais eu penetro as culturas e os círculos políticos, mais a certeza se impõe a mim que o grande perigo que ameaça a África é a ausência de ideologia (FANON, 2006b, p. 207).

1120

Referências bibliográficas: BEAVOIR, Simone de. La force des choses. Paris : Galimard, 1963. BOUKARI-YABARA, Amzat. Africa Unite. Une Histoire du Panafricanisme. Paris : La Découverte. 2014.

BOURDIEU, Pierre. Sociologie de l’Algérie. Paris : PUF, 1958. BOUVIER, Pierre. Aimé Césaire, Frantz Fanon. Portraits de décolonisés. Paris : Les Belles Lettres, 2010. FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2006. FANON, Frantz. Pour la Révolution Africaine. Paris : La Découverte, 2006b. FANON, Frantz. L’An V de la Révolution Algérienne. Paris : La Découverte, 2011. FREDJI, Jacques. Définition de L’Humain et Statut de L’Humanisme Chez Frantz Fanon. Memorial Frantz Fanon – 1925-1961- Célébration du XXe anniversaire de mort de Frantz Fanon. Paris : Présence Africaine, 1984. GIRAUD, Michel. Portée et Limites des Thèses de Frantz Fanon sur la Violence. In : Memorial Frantz Fanon – 1925-1961- Célébration du XXe anniversaire de mort de Frantz Fanon. Paris : Présence Africaine, 1984. HODDOUR, Azzedine. The Frantz Fanon reader. Londres: Pluto Press, 2006. MACEY, David. Frantz Fanon: une vie. Paris : La Découverte, 2011. MEMMI, Albert. “The impossible life of Frantz Fanon”. The Massachussets review, inc. Massachussets, Vol.14, no.1, 1973, p.9-39. SILVA, Maciel Henrique, SILVA, Kalina Vandernei. Dicionário de conceitos históricos. São Paulo: editora contexto, 2010. YOUNG, Robert. Fanon et le recours à la lutte armée en Afrique. Les Temps Modernes. Paris, 61e année, no. 635-636, Novembre-Decembre 2006, p.71.96.

1121

A historiografia do nazismo e a narrativa da experiência pessoal. Gustavo Feital Monteiro Mestrando em História pela Universidade de Brasília Orientador: Wolfgang Döpcke E-mail: [email protected] Resumo: Este trabalho aborda a historiografia do nazismo e do Holocausto na procura de identificar as principais questões presentes nos estudos desenvolvidos e destacar a relevância das memórias e dos diários para o aprofundamento da compreensão de tais eventos. Através do embasamento na narrativa pessoal, é a intenção deste estudo defender a relevância da singularidade da experiência, e apontar as possibilidades da análise histórica na observação das interpretações daqueles que viveram e escreveram sobre o seu passado. Palavras-chave: Nazismo, historiografia, narrativa Abstract: This paper addresses the historiography of Nazism and the Holocaust in attempting to identify the main issues addressed in past studies and to highlight the importance of memories and diaries to deepen the understanding of such events. Through the foundation in personal narratives, it is the intention of this study to defend the relevance of the uniqueness of the experience, and indicate the possibilities of historical analysis in observing the interpretations of those who lived and wrote about their past. Key-words: Nazism, historiography, narrative. Introdução: Partindo de uma análise da historiografia do Holocausto e do nazismo, pode-se compreender o desenvolvimento das metodologias de estudo deste tema que, desde o final da segunda guerra, apresentam diferentes formas de observação e escrita do passado. Debates tal qual a determinação da existência e origem de uma possível ordem dada para o início do extermínio; o envolvimento e o papel de Hitler no desenvolvimento do antissemitismo; a participação da população alemã com os programas do partido; assim como as atitudes de pessoas comuns frente à violência

1122

permanecem, até hoje, como pontos sobre os quais se formaram diversas argumentações relevantes, mas não definitivas, sobre o nazismo. As particularidades derivadas de cada perspectiva analítica predominante contribuíram para o estabelecimento de aspectos metodológicos que influenciaram os estudos destes eventos pela história ao longo dos anos. Porém, alguns aspectos permanecem ainda pouco abordados. A existência de diversos testemunhos e narrativas pessoais da experiência, tanto dos sobreviventes quanto das vítimas que pereceram, não costumam ser abordados como fundamentação empírica principal para análise histórica dos eventos que tais sujeitos descrevem. Os livros de Primo Levi, como É isto um homem?1, assim como a memória Noite2 de Elie Wiesel, sem mencionar os diários de Anne Frank 3 e Hélène Berr4, são apenas alguns exemplos das obras que demonstram a procura de seus autores de registrar e transmitir a sua experiência pessoal, relatando eventos que, até mesmo para eles, pareciam irreais demais para serem compreensíveis5. Apesar da diversidade de obras conhecidas, estudos da história que se baseiam em tais narrativas se restringem às formas de representações do Holocausto, seja ela na literatura ou em outros gêneros textuais e artísticos6. A análise de tais fontes possibilita uma compreensão do nazismo a partir de perspectivas que são diferenciadas devido à sua proximidade dos acontecimentos e à presença da singularidade da experiência vivida. O foco não se constitui nas políticas e discursos antissemitas, na organização burocrática ou no extermínio dos judeus em si. Ao invés, se permite a observação de seu reflexo sobre a vida cotidiana daqueles que sofreram, praticaram ou observaram diretamente tais eventos, e nas formas como tais experiências foram transmitidas em narrativa. O Holocausto, partindo deste ponto, não se restringe somente à morte dos judeus, seja nos campos como Auschwitz ou nas florestas do leste europeu. Ao se delimitar o significado da Shoa apenas ao extermínio, exclui-se o longo e complexo processo que ocorreu anteriormente, no qual se encontram as leis, a propaganda e as práticas que estiveram presentes na Alemanha desde o início do governo nacionalsocialista em 1933. A observação do antissemitismo na vida cotidiana na Alemanha e em outros países através de suas variadas práticas, desde o discurso na propaganda até a violência, contribui para uma percepção da particularidade dos sujeitos históricos, principalmente dos judeus que estavam vivenciando tal momento, assim como também

1123

gera a observação de como estes personagens percebiam o seu contexto, as reações da população ao seu redor e o desenvolvimento das práticas desse antissemitismo no seu cotidiano. Após uma breve análise das tendências historiográficas do nazismo e do Holocausto, este trabalho procurar-se-á apontar as possibilidades de estudo no qual, baseando-se em fontes narrativas da experiência pessoal, contribuiria para um maior aprofundamento e compreensão das vidas dos indivíduos que estavam presentes, vivenciaram e sofreram com o antissemitismo nazista. Através dessa abordagem, é objetivo a percepção de que a escrita da história que evidencia a subjetividade, a particularidade e a singularidade da experiência vivida é uma forma metodológica pouco explorada no estudo do nazismo e do Holocausto, e que, devido a isso, se diferencia das análises predominantemente realizadas até então. Historiografia e a escrita da história alemã. Em diversos momentos, Friedländer7 aponta determinadas características que identificou como principais na pesquisa histórica, e procura evidenciar as direções metodológicas da historiografia juntamente com as causas para tais inclinações. Segundo o autor, as questões levantadas, os temas abordados e os parâmetros explicativos encontrados para o aprofundamento em cada objeto de pesquisa dentro do amplo tema do nacional-socialismo foram oriundos, principalmente, de elementos políticos do contexto alemão pós-1945 e do relacionamento com a memória, sendo esta tanto a individual dos sobreviventes quanto a coletiva nacional. Essa dificuldade em lidar com a carga histórica do Holocausto pôde ser observada principalmente nos historiadores alemães. Acadêmicos letrados que, apesar de terem sido, em sua maioria, adultos durante o período nazista, inclinaram-se a ficar em silêncio e voltar à normalidade após a guerra, em vez de explorar e problematizar o recente passado da Alemanha8. Tal período de silêncio pendurou durante cerca de quinze anos, nos quais até mesmo os sobreviventes do Holocausto, estes sendo de qualquer nacionalidade, possuíram suas experiências reprimidas devido à ausência de interesse dos ouvintes. Como Friedländer descreve: The silence did not exist within the survivor community. It was maintained in relation to the outside world and was often imposed by shame, the shame of telling a story that must appear

1124

unbelievable and was, in any case entirely out of tune with surrounding society.9 Somente no final dos anos 70 e início dos 80 expandiram-se com maior evidência as abordagens dos estudos históricos devido a novos questionamentos gerados em diversas origens, presentes tanto no campo acadêmico quanto no artístico 10. Durante esse período de cerca de duas décadas, tais debates e formas analíticas foram influenciadas, em grande parte, pelas tendências políticas da Guerra Fria11. À medida que a terceira geração amadurecia no final dos anos 90, formavam-se historiadores que não possuíam os mesmos problemas dos seus avós e pais em sua relação com o passado alemão, havendo um distanciamento ainda maior devido à reunificação do país, o que possibilitou uma diminuição das interferências do contexto político. A partir dessa época, os estudos historiográficos se desenvolveram procurando suprir a curiosidade social, mas ainda mantinham determinadas características em comum ao mesmo tempo em que encontravam dificuldades particulares tanto nos aspectos abordados quanto na metodologia narrativa12. Talvez a principal característica dessa dificuldade em aceitar o passado se apresente como a focalização dos estudos na burocracia e na forma metodológica do extermínio, mantendo a perspectiva das vítimas sem ser mencionada. Ao abordar predominantemente o sistema em si, estabeleceram-se padrões analíticos que prevaleceram sobre outras formas de estudo em trabalhos posteriores. Segundo Friedländer: Historical writing about the Holocaust has increasingly attempted to circumvent such problems by focusing on the mechanisms that led to the "Final Solution" within Nazism itself, or on the logistics, the technology and the bureaucratic processes of its implementation, on the agencies of extermination and the behavior of the perpetrators. For example, in regard to his The Destruction of the European Jews, Raul Hilberg stated that he had mainly concentrated on the "how" rather than on the "why" of that history. Such historical inquiry into the mechanisms of the "Final Solution" is the very basis of our knowledge and undoubtedly, remains a primary task. But, ultimately, the "why" over-shadows all other concerns.13 Porém, tais tendências são geradas por determinadas dificuldades enfrentadas pelos historiadores ao abordar este período em específico, e evidenciam a procura por superá-las a partir de diferentes metodologias. Pois mesmo com um

1125

distanciamento

temporal e com a ausência de um cenário político com ideologias radicalizadas, o nazismo e o Holocausto ainda se constituem como objetos de estudo diferenciados devido ao impacto dos seus eventos na sociedade contemporânea. Lüdtke procurou focalizar nesta ausência de estudos dos indivíduos e de suas vidas cotidianas na história e, através da Alltagsgeschichte14, era sua intenção estudar a vida cotidiana na Alemanha sob o governo nacional-socialista, assim como as formas pelas quais a população percebia e se adequava às políticas do governo. Segundo ele, o objetivo de tal atividade era demonstrar que os perpetradores não eram marionetes sem vontade própria, assim como os judeus não eram vítimas indefesas15. Duas características são identificadas por Lüdtke na percepção do “cotidiano” como objeto de estudo. A primeira delas se refere ao conceito de “normalidade”, através da qual a vida se organiza e procura estabelecer uma estabilidade baseada na repetição de ações rotineiras. Já a segunda procura observar que os sujeitos são objetos de estudo tanto quanto são sujeitos históricos. Ou seja, suas atitudes podem tanto refletir o seu contexto político, social e cultura, como também podem ser ativos participantes das práticas sociais, seja reforçando-as ou opondo-se a elas16. Mais recentemente, alguns historiadores procuraram aprofundar reflexões teóricas e metodológicas sobre tal perspectiva de análise, sendo Friedländer e Young dois daqueles que mais demonstraram tal preocupação em seus trabalhos17. Ambos partem de pontos semelhantes em sua defesa de um estudo histórico que incorporasse a individualidade das percepções e a experiência dos sujeitos que estavam inseridos em tais contextos, e apontam que, através da focalização nos processos de extermínio, na política e na burocracia do estado, a historiografia deixou de abordar os judeus como indivíduos devido à subjetividade da sua narrativa histórica18. Para Friedländer: The reintroduction of individual memory into the overall representation of the epoch implies the use of the contemporaries' direct or indirect expressions of their experience. Working through means confronting the individual voice in a field dominated by political decisions and administrative decrees which neutralize the concreteness of despair and death. The Alltagsgeschichte of German society has its necessary shadow: the Alltagsgeschichte of the victims.19

1126

A narrativa da experiência no nacional-socialismo Porém, ainda se observa a necessidade de fundamentação empírica na realização de tais pesquisas. As fontes nas quais os sujeitos registraram acontecimentos cotidianos e a sua participação individual dentro de seu contexto específico não são abundantes, e principalmente se estabelecem em cartas, memórias pessoais e diários. Devido à característica subjetiva de tais elementos, estas fontes não foram incorporadas ao estudo histórico do nazismo e do Holocausto como objeto central na historiografia predominante. A distinção entre história e memória – na qual a primeira é um estudo dos acontecimentos enquanto que a segunda é a forma pela qual tais acontecimentos foram percebidos – é o fator principal que contribui para a focalização dos historiadores em um enquanto deixa-se de abordar o outro na busca pela objetividade. Young aponta que tal distinção entre história e memória não somente aumenta uma distância artificial entre ambos, mas também faz com que o historiador perca o valor do testemunho do sobrevivente na pesquisa histórica.20 Este autor também defende que a incorporação da memória dos sobreviventes nos estudos históricos permite a observação de como tais eventos foram percebidos enquanto se desenvolviam, uma vez que a narrativa das reflexões dos acontecimentos, juntamente com a descrição em seus escritos daquilo que viram e presenciaram, faz parte da realidade histórica.21 Para Young: This is why we need to find a middle road by which the living memory of the eye-witness might be assimilated to the historical record without using it only rhetorically to authenticate any given narrative, without allowing it to endow the surrounding narrative with the seeming naturalness of the survivor's voice.22 Percebe-se que a dificuldade de estudo do nazismo e do Holocausto é reconhecida não somente pela incapacidade dos historiadores de compreender e estudar sobre estes eventos que marcaram o século XX. Mais do que isso, os acontecimentos também desafiam a compreensão daqueles que os viveram e tentam, em seus escritos pessoais, descrevê-los. Ao atribuir vozes e rostos a estes indivíduos, procura-se inserilos na narrativa histórica, possibilitando uma percepção mais próxima da vida pessoal e da realidade histórica que foi construída por eles. Garbarini, em seu livro chamado Numbered days, narra:

1127

People’s efforts to render their suffering meaningful are discernible in their diaries. So, too, are their repeated doubts about these efforts because of their ongoing suffering. Thus, the potential exists to explore these men’s and women’s construction of narratives – what was historically imaginable to them – and the ways in which such narratives molded their possibilities for agency – both the actions they took and the strategies they developed to make sense of the destruction of their worlds.23 Dessa forma, os registros pessoais não são tidos como comprovação factual dos acontecimentos24, uma vez que a presença do indivíduo em determinados contextos, a sua observação dos eventos e a narração de sua experiência se constituem em elementos distintos no estudo histórico. O desenvolvimento de tal base observa a forma pela qual esses três pontos se conectam, ou seja, como a experiência se transforma em narrativa pessoal e como esta pode ser abordada na observação do discurso que atribuiu significado ao vivido e ao seu contexto. Conclusão Este trabalho buscou identificar algumas das principais tendências presentes na historiografia, assim como apontar outras perspectivas metodológicas de estudo que possibilitam abordagens diferenciadas do nazismo e do Holocausto. O relato pessoal destes indivíduos que vivenciaram o nazismo é mais do que o registro de suas experiências, significando também a sua própria memória como vítimas de um dos mais marcantes eventos da história contemporânea. O objetivo principal de tais autores nesta atividade foi dar sentido à sua experiência e ao seu contexto, atribuir significado ao vivido e tentar compreender os acontecimentos caóticos que se desenvolviam, por mais irreais que pudessem parecer. As respostas que encontram às questões por eles mesmos levantadas variam de acordo com aquilo que presenciam, com os boatos que escutam e com as reações do público às políticas do governo que observam. Young abrange o registro pessoal característico de uma escrita que possui grande relevância para a visualização das diferentes formas pelas quais os sujeitos atribuíam significado ao seu contexto e ao seu próprio passado: As most historical theorists now acknowledge, the legitimacy and value of historical sources cannot rest solely on their factual element, in which case readers would be endlessly troubled by conflicting versions. Instead of disqualifying competing accounts, the critical reader accepts that every Holocaust writer has a different story to tell, not because what 1128

happened to so many others was intrinsically different, but because how victims and survivors have grasped and related their experiences comprises the actual core of their story. In this view, it is not a matter of weather one set of facts is more veracious than another, or whether the facts have been transformed in narrative at all. The aim of an inquiry into literary testimony is rather to determine how writers’ experiences have been shaped both in and out of narrative. Once we recognize that the “facts” of history are not distinct from their reflexive interpretation in narrative, and that the “facts” of the Holocaust and their interpretation may even have been fatally interdependent, we are able to look beyond both the facts and the poetics of literary testimony to their consequences.25 O estudo da vida cotidiana, com ênfase na subjetividade individual, procura demonstrar como a experiência dos agentes históricos foi mais complexa e profunda do que análises baseadas em outras perspectivas possibilitam visualizar. Tais sujeitos, enquanto inseridos em contextos, no mínimo, turbulentos, tentam atribuir sentido àquilo que observam, refletindo e agindo de acordo com a sua compreensão dos acontecimentos. A ligação do sujeito com a sua experiência se dá através de seus escritos, onde a subjetividade da linguagem e a objetividade dos fatos se mesclam na narrativa. 1

LEVI, Primo. É isto um homem? Rio de Janeiro: Rocco, 2013. WIESEL, Elie. Noite. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002. 3 FRANK, Anne. O diário de Anne Frank: edição integral. 47ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2015. 4 BERR, Hélène. O diário de Hélène Berr: um relato da ocupação nazista de Paris. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008. 5 Chaim Kaplan pode ser citado como outro exemplo da procura de registro. Ao iniciar seus diários, escritos no gueto de Varsóvia, ele afirma que não iria relatar sobre nada que não visse com seus próprios olhos. Tal procura pelo testemunho visual possui o objetivo, para o autor, da confirmação dos acontecimentos que, mesmo tendo sido vistos e presenciados, ainda assim permaneciam como inacreditáveis. Ver YOUNG, James E. “Toward a Received History of the Holocaust”. History and Theory. Vol. 36, No. 4, 1997. 6 Além dos estudos da historiografia, podem-se apontar as obras literárias, cinematográficas e demais gêneros artísticos como meios de reprodução dos eventos relacionados ao nazismo e ao Holocausto. Poesias como a Death Fugue de Paul Celan, filmes como O Pianista e A Lista de Schindler, a obra Maus de Spiegelman, assim como os testemunhos orais dos sobreviventes, se constituem como exemplos da diversidade de formas pelas quais o Holocausto e o nazismo vêm se demonstrado presente na mentalidade social. Tamanha diversidade gerou, por si, trabalhos que focalizam nas formas de representação do Holocausto como o livro organizado por Bernard-Donals e Glejzer, Witnessing the disaster, assim como também a obra de Friedländer, Probing the limits of representation, em BERNARD-DONALS, Michael; GLEJZER, Richard (ed.). Witnessing the disaster: Essays on representation and the Holocaust. University of Wisconsin Press, 2003, e FRIEDLÄNDER, Saul (org). Probing the limits of representation: Nazism and the final solution. Cambridge, Mass: Harvard University Press, 1992. 7 Saul Friedländer, por ser um sobrevivente do Holocausto, aborda com propriedade a dificuldade de conciliação entre memória pessoal e estudo histórico do passado, principalmente entre os historiadores alemães. Dessa forma, além de escrever as obras The years of persecution e The years of extermination, também escreveu suas memórias pessoais do período de infância durante a segunda guerra, em When memory comes. Ver FRIEDLÄNDER, Saul. Nazi Germany and the Jews: The years of persecution, 19331939. New York: Harper Collins, 1998, FRIEDLÄNDER, Saul. Nazi Germany and the Jews: The years 2

1129

of extermination, 1939-1945. New York: Harper Collins, 2007, e Friedländer, Saul. When memory comes. Farrar, Straus and Giroux, 1979. 8 FRIEDLÄNDER, Saul. History and Memory: Lessons from the Holocaust. Genève: Graduate Institute Publications, 2014. 9 FRIEDLÄNDER, Saul. “Trauma, Transference and "Working through" in Writing the History of the "Shoah"”. History and Memory, Vol. 4, No. 1, 1992, pág. 48. 10 As produções cinematográficas e televisivas tiveram grande relevância em gerar interesse público por este tema, influenciando também em estudos mais aprofundados ou partindo de abordagens diferenciadas pelos historiadores. De tais produções, podem-se mencionar a adaptação em filme do diário de Anne Frank, que, já nos anos 50, tinha adquirido ampla divulgação e reconhecimento. Segundo Friedländer, “In short, for millions of readers or viewers, she represented the epitome of a wise, young, wistful, and innocent universal victim, an image that Western society of the 1950s was all too eager to accept.” FRIEDLÄNDER, Saul. History and Memory: Lessons from the Holocaust. Genève: Graduate Institute Publications, 2014. Outra produção relevante foi a exibição da minissérie Holocaust, feita pela NBC voltada ao público americano e exibida em 1978, na qual se abordava a trajetória de duas famílias, sendo uma delas judaica e a outra nazista, durante o Nacional Socialismo. Por último, também se aponta o filme Shoa, produzido por Claude Lanzmann e exibido em 1985, o qual se constitui em um documentário onde se apresentam entrevistas com sobreviventes do extermínio, testemunhas dos crimes e também perpetradores nazistas, possuindo mais de nove horas de duração. Cada uma destas produções, apesar de estarem distribuídas em períodos distantes entre si, demonstra a procura social pela abordagem desse período a partir de diferentes métodos e perspectivas, sendo que, na historiografia, os estudos que estavam sendo realizados ainda sofriam com o silêncio que, mesmo sendo aos poucos superado, ainda interferia na escrita da história alemã. FRIEDLÄNDER, Saul. “History, memory, and the historian: dilemmas and responsibilities”. New German Critique, No. 80, 2000, pág. 6. 11 Sobre o envolvimento de Friedländer com os debates, pode-se mencionar o estudo de Aschheim em ASCHHEIM, Steven E. “On Saul Friedländer”. History and Memory, Vol. 9, No. 1/2, 1997, pág. 22. 12 FRIEDLÄNDER, Saul. “History, memory, and the historian: dilemmas and responsibilities”. New German Critique, No. 80, 2000, pág. 7. 13 Id. Ibid. pág. 12. 14 A história do cotidiano, em tradução para o português, é considerada por Revel como um ramo da micro história que se desenvolveu na Alemanha nos anos de 1970, assim como a história da vida privada ocorreu na França, em REVEL, Jacques. Jogos de escalas: A experiência da microanálise. Rio de janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998. Esta metodologia de abordagem possui com Lüdtke um dos seus primeiros e principais historiadores, o qual afirmava que “It studies the everyday toil and festive joys of men and women, the young and the old, individuals emerge as actors on the social stage.” em LÜDTKE, Alf (ed.). The history of everyday life: Reconstructing historical experiences and ways of life. Princeton University Press, 1995, pág. 4. 15 Lüdtke enfatiza que a Alltagsgeschichte não procura minimizar a culpa dos perpetradores ou o sofrimento das vítimas, mas sim demonstrar como os perpetradores estavam pessoalmente envolvidos e em como viam a sua participação pessoal no processo, assim como as vítimas também procuravam reagir e se adaptar às pressões na sua busca pela sobrevivência. Segundo o autor, “historical actors were (and are) more than mere blind puppets or helpless victims.” Id. Ibid. pág. 5. 16 Nas palavras de Lüdtke: “the focus is on the forms in which people have “appropriated” – while simultaneously transforming – “their” world.” Id. Ibid. pág. 7. 17 Friedländer segue essa argumentação devido, principalmente, à sua própria experiência como sobrevivente. Em seu livro When memory comes, ele aborda as suas memórias como um refugiado do nazismo, sobrevivendo escondido enquanto seus pais foram enviados a Auschwitz. Da mesma forma, ele procura, na obra Nazi Germany and the Jews, abordar a experiência pessoal das vítimas e dos perpetradores. Ver FRIEDLÄNDER, Saul. When memory comes. Farrar, Straus and Giroux, 1991. Young, por sua vez, se baseia nas observações de Friedländer e procura aprofundá-las em outras questões da escrita da história, como a relação entre necessidade de embasamento empírico com a subjetividade da interpretação pessoal pelos agentes históricos. Ver YOUNG, James E. “Between history and memory: The uncanny voices of historian and survivor”. History and Memory, Vol. 9, No. 1/2, 1997. 18 YOUNG, James E. “Interpreting Literary Testimony: A Preface to Rereading Holocaust Diaries and Memoirs”. New Literary History Vol. 18, No. 2, 1987. 19 FRIEDLÄNDER, Saul. “Trauma, Transference and "Working through" in Writing the History of the "Shoah"”. History and Memory, Vol. 4, No. 1, 1992, pág. 53. O termo working through é constantemente abordado por Friedländer no seu estudo da análise de uma memória. Outro estudo relevante que aborda o

1130

uso deste termo na pesquisa histórica é o de LaCapra em Writing history, writing trauma. Ver LACAPRA, Dominick. Writing history, writing trauma. Baltimore: Johns Hopkins University, 2001. 20 YOUNG, James E. “Between history and memory: The uncanny voices of historian and survivor”. History and Memory, Vol. 9, No. 1/2, 1997, pág. 50. 21 Id. Ibid. pág. 55. 22 Id. Ibid. pág. 52. 23 GARBARINI, Alexandra. Numbered days: Diaries and the Holocaust. Yale University Press, 2006, pág. 6. 24 Tozzi procura estabelecer a escrita da experiência pessoal em uma “epistemologia do testemunho”, baseando-se em três autores sobreviventes de “terrorismo de estado”, a denominar: Calveiro, um sobrevivente da ditadura argentina; Levi e Klemperer, ambos sobreviventes do nazismo e do Holocausto. Nesta epistemologia, as obras de tais sujeitos, assim como outras similares, não podem cair no fundacionalismo empiricista, ou seja, servir como comprovação de acontecimentos através de sua relação com outras documentações. Segundo ela, estes testemunhos são, em si, formas de transmissão do conhecimento, que contribuem para a constituição dos eventos como acontecimentos históricos. Embora Tozzi não cite, Young já tinha realizado afirmações semelhantes anteriormente, aprofundando e elaborando de forma mais clara o estabelecimento de tais narrativas como reconstrução da experiência, em “Rather than coming to Holocaust diaries and memoirs for indisputable “factual” testimony, however, the critical reader might now turn to the manner in which these “facts” have been understood and reconstructed in narrative.” Em YOUNG, James E. “Interpreting Literary Testimony: A Preface to Rereading Holocaust Diaries and Memoirs”. New Literary History, Vol. 18, no. 2, 1987, pág. 406 e TOZZI, Verónica. “The epistemic and moral role of testimony”. History and Theory, Vol. 51, n° 1, 2012. 25 YOUNG, James E. “Interpreting Literary Testimony: A Preface to Rereading Holocaust Diaries and Memoirs”. New Literary History Vol. 18, No. 2, 1987, pág. 421.

1131

Caminhos e descaminhos da colonização: Uma análise crítica sobre a colonização agrícola no Estado do Rio de Janeiro no Governo Vargas (1930-1945) Henrique Dias Sobral Silva1 Resumo: A presente comunicação pretende analisar, através de um estudo de caso, como políticas de colonização adotadas pelo governo de Getúlio Vargas (1930-1945) em diferentes conjecturas influenciaram na colonização e no desenvolvimento de certas regiões. Para tanto, será analisado o caso de Santa Cruz/Itaguaí, no Rio de Janeiro, cuja colonização esteve inserida no projeto agrícola de abastecimento da então capital federal, a partir de 1930. Assim, esta comunicação problematiza aspectos centrais da colonização oficial, a mão de obra e os aspectos econômicos tendo em conta discussões que merecem revisões, em busca de novas ideias a respeito da questão da colonização oficial. Palavras-chaves: Governo Vargas, Colonização, Santa Cruz.

Abstract: This communication aims to analyze, through a specific case, how the steps of colonization made by the government of Getúlio Vargas (1930-1945), in different conjectures, influenced in the colonization and the development of certain regions. Therefore, the case of Santa Cruz/Itaguaí, in Rio de Janeiro, in which its colonization has been in the agricultural project of the old capital's supply from 1930 on, will be analyzed. So, this presentation questions central aspects of official colonization, labor and economic aspects considering discussions that should be revised, so we can find new ideas about official colonization. Key-words: Government Vargas, Colonization, Santa Cruz.

Construindo caminhos: A política de colonização agrícola Esta comunicação propõe uma breve analise, através de um estudo de caso, de como políticas de colonização adotadas no primeiro governo de Getúlio Vargas, ou fomentadas nele, influenciaram a ocupação e o desenvolvimento de certas regiões. Isto posto, buscar-se-á também entender os mecanismos utilizados por esses trabalhadores rurais e servidores, que enxergam o poder como algo distante e inalcançável, mas que, na relação pontual que estabelecem com o líder político e com seus algozes, indicam suas demandas, reclamações e sugestões. Partimos da premissa de que o privilégio à colonização dado pelo Estado brasileiro, configurou-se como uma alternativa para a não execução de medidas reformistas no campo.

1132

José Vicente Santos afirma que na primeira república e no primeiro governo Vargas a ideia de colonização trata-se de uma representação única, e grande, como solução a questão agrária2. A política de colonização dirigida passou por um intenso debate intelectual e acadêmico nas décadas de 1930 até 1960, desde seu aspecto benéfico para a introdução da via farmer no país até as denúncias de seus erros de execução e desvios3. Entre as críticas levantadas situam-se aquelas que apontam a colonização como tentativa do Estado varguista de favorecer a monopolização das terras por grupos econômicos diversos – no caso das apropriações por não colonos - e o desenvolvimento extensivo do capitalismo no campo, além de representar uma contrarreforma agrária. Contra esse ponto de vista, e com base na existência de terras devolutas, que atenderiam à uma população excedente das cidades, em alguns momentos históricos, de outras regiões do país, o Estado varguista desenvolveu todo um processo de ocupação de novas fronteiras agrícolas, no caso em análise, nas bordas da cidade do Rio de Janeiro. Sobre a escolha da região, ela não é acidental, trata-se de uma região que na década de 1930 recebeu grandes investimentos governamentais passando por um grande processo de melhoramentos na questão da salubridade e saneamento de rios, na intenção de oferecer as terras saneadas ao trabalho dos colonos. No âmbito da cidade do Rio de Janeiro, a intenção era prover a mesma de gêneros agrícolas para abastecimento. O projeto de colonização agrícola previa o assentamento de famílias de brasileiros e estrangeiros (japoneses, austríacos e portugueses) em lotes rurais situados em 49.096 hectares da antiga Fazenda de Santa Cruz, sendo o pagamento pelos lotes divididos em parcelas a partir do terceiro ano de produção agrícola nas terras do núcleo colonial. Somou-se a essa iniciativa governamental todo um aparato burocrático organizado pelos ministérios da Agricultura e do Trabalho4. No contexto da cidade do Rio de Janeiro, a colonização em Santa Cruz deveria prover a cidade com gêneros hortigranjeiros a baixos preços, tornando a região o celeiro da capital federal como fora propagado pelo presidente em muitos discursos sobre a região. As leituras das documentações de época são feitas buscando perceber como a administração do núcleo, os servidores e os colonos manejavam referenciais de expectativa e termos como justiça e direitos no ambiente da colonização.

Descaminhos da colonização: As relações no ambiente da colonização

A história do núcleo colonial de Santa Cruz começa bem distante do bairro homônimo, se inicia na mesa de despachos do Palácio do Catete pela assinatura do presidente da república

1133

Washington Luís. Na terça-feira, dia 11 de março de 1930, o presidente juntamente com o então ministro da Agricultura, Indústria e Comércio Geminiano Lyra Castro assinam o Decreto nº 19.133, que previa a ocupação agrícola dos campos de Santa Cruz. Não tardou para que a opinião pública fizesse elogios à proposta presidencial. Dois dias após a chancela do presidente, o jornalista e gerente do jornal O Paiz, Romeu Ribeiro, tece elogios a nova diretiva governamental por estimular “a agricultura praticada em pequena escala, que é a de que precisamos para atender ás exigencias do consumo de generos alimenticios no Districto Federal.”5. Externando assim uma das primeiras medidas para as qual o núcleo colonial havia sido criado. Para o fomento de tal empreitada, foram instaladas oitenta famílias o que correspondia a uma população de quatrocentas pessoas, como informa o primeiro relatório sobre o núcleo colonial do Ministro da Agricultura, Indústria e Comércio. Com o intuito de dirigir o núcleo foi nomeado o Doutor Gentil Norberto6, que recebeu o cargo de chefe da comissão fundadora do núcleo colonial e prontamente adquiriu uma casa apropriada para a instalação da sede do centro. Em seu primeiro discurso o Doutor Norberto avisa a população carioca que “Dentro em breve, esse adeantado subúrbio carioca contará com um novo melhoramento, que virá, não há duvida, favorecer mais o seu já promissor desenvolvimento” e informa também que já se encarregara da construção de 80 casas para os referidos colonos e suas famílias7. O adeantado subúrbio citado por Gentil Norberto é o bairro de Santa Cruz8 e a porção leste da cidade de Itaguaí, respectivamente as regiões oeste da cidade do Rio de Janeiro e da Baixada Fluminense. No referido período foram construídas caixas d’água no bairro, pontes metálicas e os rios do Itá e Guandu foram dragados para que se evitasse o seu transbordamento que trazia inundações e problemas de saúde à população local com o aparecimento de epidemias de doenças como o tifo e a malária. Esses melhoramentos na região fizeram parte de uma política em prol do ressurgimento da lavoura de abastecimento para a Cidade do Rio de Janeiro. Acompanhado desse processo, seguiu-se uma tentativa de organização da titulação das terras de Santa Cruz, conforme nos esclarece a documentação do Ministério da Fazenda, que na data de 5 de junho de 1930, determinou a diretoria do patrimônio da União que entregasse a Gentil Norberto, na figura do Ministério da Agricultura, terrenos e benfeitorias de Santa Cruz. Esse cenário de transformação e aparente apoio político as reformas em Santa Cruz trouxe a região em 29 de setembro de 1930 os ministros da Alemanha e da Áustria. Os 1134

ministros chegam a Santa Cruz, a convite de Dulphe Pinheiro Machado, diretor geral do Serviço de Povoamento do Ministério da Agricultura sendo recebidos pelo diretor Gentil Norberto e seus auxiliares João Ortiz, Geraldo Bandeirante e Mauro Barroso. Em anotações pessoais, Gentil Norberto fala da visita como um encontro regado de “congratulações ao senhor Dulphe Pinheiro que fez o mesmo a mim, me congratulando pelo alto empreendimento que eu e minha equipe organizávamos em Santa Cruz” 9. No dia 04 de setembro de 1930 foi publicado no Diário Oficial e nos jornais de grande circulação do país a chamada para aqueles que requereram lotes rurais ao Centro agrícola de Santa Cruz. A nota pedia a confirmação, em 16 dias, dos candidatos a novos colonos junto à sede da administração do núcleo colonial de Santa Cruz. Com a confirmação dos registros são mencionados 25 supostos colonos, com a presença de dois engenheiros na listagem. Se impõe a pergunta, eram os engenheiros agricultores? E como fizeram para apresentar atestados de lavradores no ato da apresentação? Investiguemos a situação dos engenheiros. O primeiro engenheiro era Américo de Pinho Leonardo Pereira. Em uma busca por sua história encontramos que ele fora diretor do clube carioca Tijuca Tennis Club, as notas da junta comercial de 23 de abril de 1931 apresentam o referido engenheiro como sócio de uma firma que explorava o comércio de uma revista. Reportagens do Jornal do Brasil em 5 de maio de 1934, congratulam o referido engenheiro como novo 4° secretário da Sociedade Nacional de Agricultura no ano de 193410. O engenheiro civil Jacundino Barreto foi um dos responsáveis pelas obras de saneamento na Baixada Fluminense. De 1930 a 1935, ano da sua morte, foi diretor e professor do Ginásio de Santa Cruz. Fixou residência na estrada do morro do Ar, lote 45, nas imediações do centro urbano de Santa Cruz. A inserção desses engenheiros é estranha a primeira medida do governo federal com relação à ocupação de terras no núcleo colonial, uma vez que, somente aqueles declaradamente agricultores poderiam usufruir da posse da terra. Além disso, as pequenas investidas nas biografias desses engenheiros não apresentam maiores interações desses personagens com o núcleo, para além do seu registro como “colonos” para a aquisição dos lotes. O mesmo processo não acontece com o segundo edital de convocação de colonos, que em 12 de dezembro de 1930, selecionou nove nomes, sendo todos os colonos que se apresentaram ligados à agricultura, conforme sua documentação deixada no escritório do centro agrícola de Santa Cruz. Que não pareça ao leitor que essa é uma história sem conflitos. Em uma de nossas muitas horas no Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro uma carta saltou aos nossos

1135

olhos. Escrita por Jeremias de Sá e Benevides narrava um evento ocorrido na segunda-feira, dia 3 de novembro de 1930, o autor informa que fora injustamente demitido meses antes, de suas funções na comissão fundadora do núcleo colonial de Santa Cruz. O motivo relatado? “Ser parahybano symphatico á Alliança Liberal e haver assistido ás exequias por alma de João Pessoa” 11. Apoiar o grupo que perdera as últimas eleições e tomou o poder por meio de um golpe de estado levou a demissão de Benevides que foi acompanhada de uma sistemática perseguição de Gentil Norberto ao servidor paraibano, que fora acossado por policias e recebendo injúrias por escrito do diretor do núcleo colonial. Jeremias que se apresenta como “revolucionário sincero e auxiliar na tarefa de regeneração do país”, dias antes de deflagrada a revolução de 1930, arquitetou um plano de tomada do quartel de Santa Cruz, com o auxilio de 25 sargentos paraibanos. A investida foi fracassada pela delação de um dos participantes, que levou o fato ao conhecimento do deputado Cesário de Melo e de Gentil Norberto12. Mas fica a indagação, a postura perseguidora de Gentil Norberto se perpetuaria como uma prática costumeira no núcleo colonial? O curso dos acontecimentos colaborou com a causa de Benevides, e em 3 de novembro de 1930, uma junta militar passou o poder, no Palácio do Catete, à Getúlio Vargas e a Revolução de 1930 saíra vitoriosa. Em meio a tais acontecimentos, a carta do engenheiro do ministério da agricultura Ernani de Oliveira, escrita em 06 de novembro de 1930 e endereçada ao jornal O Globo com o título “O Dr. Gentil Norberto jámais fez pressão a revolucionários” faz comentários sobre a situação política em Santa Cruz13. Oliveira menciona que fora perseguido pelo Deputado Cesário de Melo que solicitou a sua exoneração à Gentil Norberto por conta de suas práticas políticas “revolucionárias e perniciosas”. Contudo, a exoneração é negada uma vez que Gentil informa estar “plenamente satisfeito com os trabalhos do engenheiro”. A carta acompanha ainda um comentário transcrito pelo autor como trecho de uma fala de Gentil Norberto “Em Santa Cruz não tenho outro objetivo senão o de cumprir a missão que me confiara o ministério da agricultura, isto é, fundar a colonia de Santa Cruz”. E o engenheiro Ernani Oliveira recorda, de maneira indireta o caso de Jeremias Benevides, o qual avalia como “Se o Dr. Gentil Norberto perseguisse revolucionários eu não poderia continuar na comissão [fundadora do núcleo colonial] depois desse facto.”. A questão que se impõe é que o Doutor Gentil Norberto apoia a revolução feita por seus colegas de profissão e não aquela que é posta a cabo por servidores de baixo escalão no ministério da agricultura? Ela se reiteraria com o tempo? Fica a questão para reflexão de até

1136

que ponto esse apoio não é resultado de um acordo entre engenheiros e contra a revolução da militância, caso de Jeremias Benevides. E sobre o núcleo colonial, sua propaganda como “celeiro da capital federal” se manteria com a ascensão de um novo governo? Vejamos na sequência. Em atas do governo provisório que se instalara, encontram-se pedidos indeferidos pelo ministro do trabalho a pedidos de gratificações feitos por Gentil Norberto. O diretor do núcleo colonial solicitara gratificações por horas extraordinárias de servido executado e teve seis pedidos não despachados14. Ainda nas primeiras semanas de 1931, em 11 de janeiro, os colonos de Santa Cruz e Itaguaí recebem a primeira distribuição de material agrícola. Intermediada pela diretoria do povoamento pediu ao Serviço de inspeção e fomento agrícola do ministério da agricultura foi solicitado o fornecimento de sementes, adubos, inseticidas, árvores frutíferas, ferramentas e máquinas agrícolas aos colonos. Acompanhado desses avanços da colonização, em 24 de março do mesmo ano, encerrava-se o prazo de entrega dos projetos para a concorrência do edital de construção de 100 casas que o ministério do trabalho iria construir no núcleo em Santa Cruz 15. O projeto vencedor contava com quatro tipos de casas a serem escolhidos conforme o tamanho das famílias, além disso, o pagamento das casas seria efetuado em cinco prestações, a partir do ano da sua instalação no núcleo. Nesse cenário, no ano de 1934 um novo cenário de disputa entre o administrador e um servidor se apresenta no núcleo colonial. Imediatamente a saída de Gentil Norberto é o engenheiro civil Henrique Dietrich quem assume as funções no núcleo em Santa Cruz. Na gestão de Dietrich a gestão e organização do núcleo colonial de Santa Cruz são passadas do ministério do trabalho ao ministério da agricultura16. Essas mudanças atingem diretamente as vidas dos servidores do núcleo colonial, como é o caso de Alipio Bandeira de Melo. Em carta de 28 de setembro de 1934, Alipio reclama por quatro meses sem pagamentos e das “differenças de salarios existentes no núcleo” inconcebíveis em face do que propunha o “artigo n°121, 1° da Constituição” 17. Sobre as diferenças de salário, Alipio informa que as diferenças salariais existiam para amparar protegidos e que não haviam folhas de pagamento do pessoal do núcleo desde o mês de julho daquele ano. O servidor termina sua carta de maneira contundente “com um dispêndio de mais de 7.000 contos de reis não se conhece algo sobre a produção do núcleo, só sendo conhecido pelos escândalos que tem proporcionado”.

1137

Importa-nos da carta de Alipio seu posicionamento, que é político, pela garantia de seus salários atrasados e contra o beneficiamento de alguns em detrimento de outros. O servidor tenta reconstruir uma ordem, por ele considerada como justa ameaçando seus proventos enquanto trabalhador na administração do núcleo. As denúncias à administração de Henrique Dietrich não são apenas de servidores federais, mas também dos colonos. Nesse sentido, torna-se relevante conhecermos a história de José Dario, colono, ocupante do lote 37, que escrevia ao presidente Getúlio Vargas, esclarecendo que fora cobrar do administrador da fazenda a construção da casa que lhe era por direito. Além de não receber, Henrique Dietrich lhe advertiu que se insistisse “sofreria consequências”. Além disso, o preposto esclareceu que não poderia recorrer a ninguém uma vez que “até a polícia em Santa Cruz tinha consideração ao senhor Dietrich”, e assim não adiantava queixar-se. José Dario sublinhava que ouvira falar dos benefícios que o presidente havia proporcionado aos colonos de São Bento “embora ninguém tenha recebido em Santa Cruz”. Esperava que se o seu caso não fosse resolvido, que ao menos houvesse justiça para outros de seus patrícios. É importante estabelecer algumas oposições fundamentais na missiva: colono versos administrador; poder local (administração do núcleo) oposto ao poder central (o governo do presidente Vargas). O interessante é que em nossas pesquisas encontramos essas mesmas oposições em outras cartas direcionadas também ao Ministério da Agricultura e, como já apresentado, em jornais da época18. Neste cenário, os colonos não tinham a quem recorrer, já que os próprios administradores infringiam as leis. É relevante destacar a atitude dos colonos que por meio de cartas recorreram aos jornais para reclamar seus direitos. É o que demonstram os documentos citados anteriormente. Como agricultores de origem humilde conseguiram redigir e datilografar cartas a jornais localizados no Centro do Rio de Janeiro? Talvez esses colonos tivessem apoio de profissionais liberais, ou, seriam colonos de condição sóciocultural mais elevada? Defendo que grande parte dos colonos não tiveram a oportunidade de reclamar, afinal muitos não sabiam dos seus diretos. Portanto dificilmente recorreriam às instâncias de denúncia diante dos atos de administradores corruptos, assim estavam mais suscetíveis às ações criminosas ou ilegais oriundas dos administradores. Todavia não eram somente colonos isolados que se revoltaram e mostraram sua indignação contra o tratamento que recebiam por parte da administração. Durante a 1138

vigência

do mandato de Eneas Calandrini Pinheiro, no ano de 1936, houve uma mobilização por parte dos colonos. Uma comissão composta por 6 colonos se dirigiu à redação do Jornal O Globo, na data de 24 de março, com o objetivo de ―advogar os direitos dos componentes do núcleo19 e com a queixa de que as providências solicitadas ao Ministro da Agricultura, Odilon Braga20, não vinham sendo atendidas. As reclamações desses trabalhadores se concentram nos problemas relativos às inundações na região que creditam ―a administração sem dúvida. Esta negligenciou o problema. Sendo facto notorio a repetição annual da calamidade, não se conhece qualquer providencial21. Novamente os colonos pleiteiam uma posição mais ativa e justa da administração do NCSC. Nesse ambiente onde pairava a calamidade a comissão de colonos tece agradecimentos ao Prefeito do Distrito Federal, Pedro Ernesto (1935-1936), que enviou ao núcleo assistência médica e alimentação aos atingidos pela inundação de fevereiro/março de 1936. Um fato descrito pelos colonos foi o desvio dos víveres que seriam distribuídos aos necessitados. Já a comissão alega que, a partir desse momento, grande parte dos gêneros foi ter ás casas de certos funcionários ou de outros não necessitados22. Solicitavam ainda que o prefeito estabelecesse a distribuição de alimentos através da prefeitura e não pelas mãos da administração do senhor Eneas Calandrini Pinheiro. A denúncia de desvio de alimentos para uma situação de calamidade é um sinal de que a atuação dos administradores nem sempre foi lícita, como se esperava. Mostrava também que nem sempre o autoritarismo dos mesmos foi a única causa da indignação dos colonos. A aplicação irregular das verbas e a atuação de uma administração corrupta que não levava em conta as necessidades do núcleo, interferiam de forma direta na vida dos colonos. O senhor Pedro Castilho tem a doença de sua filha contada na edição n°70 do jornal Imprensa Rural, onde conta sua experiência com a inoperância do serviço médico-sanitário. Lúcia, moça de 16 anos, recolhida a um dos improvisados abrigos, enferma gravemente. Apesar do seu estado inspirar sérios cuidados o médico responsável pelo núcleo a deixou entregue só aos cuidados do enfermeiro do núcleo e abalou para a cidade, na manhã de sábado. Para ser sepultada foi necessário que o Dr. Gaston de Oliveira fornecesse o attestado de óbito.23

O médico é ainda descrito na carta de Pedro Castilho como um ―regularǁ ausente. Os colonos reclamam constantemente, por meio dos jornais, do tratamento absenteísta dos funcionários do NCSC. Já sobre o número de funcionários que o NCSC possuía, pelas fontes documentais tratava-se de uma equipe reduzida: engenheiros agrimensores e agrônomos, médico, enfermeiro24. É comum nos relatos dos colonos falas acerca de um quadro de pobreza

1139

estrutural na colônia que, mesmo organizada com escritórios e funcionários e detentora de uma das maiores produções agrícolas no Estado do Rio de Janeiro tinha péssimas condições, pois como afirma Pedro Castilho, faltava quase tudo.

(In) conclusões parciais

Nosso objetivo no presente trabalho não foi apresentar um produto acabado, mas trazer pontos para reflexão com base nos resultados da avaliação de experiências concretas daqueles que viveram o processo da colonização, para que, no decorrer das discussões do encontro, num processo participativo, possa-se chegar a uma maior exposição e debate sobre os temas colocados. Na perspectiva da colonização dirigida como uma forma complementar de ocupação da terra expressa um processo não apenas econômico, mas também político, em consonância com um modelo econômico e sob condições políticas especificas. Nesse sentido a colonização se manifestou, nas décadas de 1930 e 1940, como uma estratégia de manipulação das populações rurais. Por essa estratégia buscava-se, em termos socioeconômicos, controlando a apropriação e utilização do espaço, preservando estruturas de propriedade e relacionais autoritárias vigentes. Por fim, vale dizer que a colonização dirigida viabilizou uma ocupação de fato e irreversível para à área em análise com manifestações sociais consideráveis. A despeito das realizações concretas da colonização terem contribuído pouco para dar forma ao padrão de abastecimento da cidade do Rio de Janeiro25, ela oferece outro contexto para investigação das formas de ação política na luta por direitos, pela garantia deles ou pela sua implementação.

1

Mestrando no Programa de Pós-Graduação em História da UFRRJ, sob a orientação do Prof. Dr. Álvaro Pereira Nascimento. Naturalmente, sou o único responsável pelas falhas e omissões. E-mail: [email protected] 2 SANTOS, José Vicente Tavares. A política de Colonização no Brasil Contemporâneo. In: Reforma Agrária, São Paulo, vol. 15, n°1, jan/abr, pp.18-27. 3 Idem, pp.25. 4 SILVA, Henrique Dias Sobral. Nas veredas da colonização: Apontamentos sobre a política de colonização no primeiro governo Vargas e o caso do núcleo colonial de Santa Cruz (1930-1945). Orientadora: Manoela da Silva Pedroza. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS/Instituto de História, 2015. Monografia (Bacharelado em História). 5 O Paiz, 13 de março de 1930, Edição 16580, p.03. 6 Do ano de 1926 a 1929 o Doutor Gentil Norberto fora administrador do Centro Agrícola de Cleveland, no então território federal do Amapá. Pesquisas informam que durante sua gestão o centro recebia prisioneiros políticos, vindos principalmente do Rio de Janeiro e São Paulo, eram militantes do movimento anarcosindicalista que caracterizou as lutas sociais nas primeiras décadas do século XX e foram presos no bojo da repressão ao movimento tenentista. Ver: ROMANI, Carlo. Clevelândia (Oiapoque) colônia penal ou campo de concentração? In Revista Verve, São Paulo: Núcleo de Sociabilidade Libertária (Nu-Sol) – PPG em Ciências Sociais da PUC-SP, vol.4, p. 112-130, 2003.

1140

7

No discurso de Gentil Norberto há ainda a promessa da construção de mais 200 casas em terras saneadas no núcleo colonial de Santa Cruz. Ver: Discurso de Gentil Norberto, 28 de abril de 1930, AGCRJ. 8 Diversas referências situam a região como antiga Fazenda dos padres jesuítas no período colonial, com a expulsão dos mesmos a área é escolhida como residência rural da família real e imperial no século XIX. Quando da proclamação da república, a área da Fazenda abrangia os territórios abrange os bairros de Santa Cruz e Sepetiba, localizados no Município do Rio de Janeiro, e os municípios de Seropédica, Paracambi, Paulo de Frontin, Mendes, Piraí, Pinheiral e Rio Claro, totalizando aproximadamente 83.000 (oitenta e três mil) hectares de terras passaram ao controle do governo federal. Até o fechamento desse projeto nenhuma medida de regularização fundiária fi executada na região desde o ano de 1945. Ver: AMANTINO, Márcia; ENGEMANN, Carlos (orgs.). Santa Cruz: de legado dos jesuítas à perola da Coroa. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2013; FRIDMAN, Fania. Donos do Rio em nome do rei: uma historia fundiária da cidade do Rio de Janeiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999; SOUZA, Sinvaldo do Nascimento. Singularidades da educação na colônia agrícola japonesa de Santa Cruz. Dissertação (Mestrado) – PPG – UFF, Niterói, 2005. 9 Anotações avulsas de Gentil Norberto, 30 de setembro de 1930, AGCRJ. 10 As fontes utilizadas para esse parágrafo foram por ordem de aparecimento: “Toma posse o novo diretor do Tijuca Tennis Club”, Jornal a Noite, edição 899, página 8; Atas da Junta comercial de 23 de abril de 1931, Livro 78, pag. 32.; Jornal do Brasil, 05 de maio de 1934, Edição 106, p.05. 11 A carta narra ainda a profunda admiração de Jeremias Sá e Benevides pelo então presidente do Estado da Paraíba, João Pessoa. Carta de Jeremias de Sá e Benevides, 3 de novembro de 1930, AGCRJ. 12 A Esquerda, 03 de novembro de 1930, edição 866, p.2. 13 Os próximos três parágrafos foram desenvolvidos com a matéria de jornal de O Globo, 07 de novembro de 1930, Matutina, Geral, página 4. 14 As datas levantadas foram entre os meses de janeiro a março de 1930. Ver: Atas do Ministério do trabalho, governo provisório, 1930. AN. 15 Diário de Notícias, 13 de março de 1931, edição 443, p. 02. 16 O núcleo colonial de Santa Cruz fazia parte da jurisdição do Departamento Nacional do Povoamento, do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, dos anos de 1932 a 1934, ver decreto-lei: n°21.115. No ano de 1934, o núcleo e a Fazenda de Santa Cruz passam a gestão do Ministério da Agricultura a partir do decreto-lei n° 24.606. 17 Carta de Alípio Bandeira de Melo, cartas avulsas do núcleo colonial de Santa Cruz, 29 de setembro de 1934, INCRA-RJ. 18 O recurso das missivas endereçadas a instâncias governamentais é muito utilizado como fontes históricas, alguns importantes trabalhos nos aproximaram dessa metodologia: DEZEMONE, Marcus. Impactos da Era Vargas no mundo rural: leis, direitos e memória. Perseu, v. 1, n. 1, p. 177-205, 2007; FERREIRA, Jorge. Trabalhadores do Brasil: o imaginário popular. Rio de Janeiro, FGV, 1997; QUELER, Jefferson José. Entre o mito e a propaganda política: Jânio Quadros e sua imagem pública (1959-1961). Campinas, tese de doutorado em História, Unicamp. 2008. 19 O Globo. Rio de Janeiro. 24 de março. 1936. p. 4. 20 Odilon Duarte Braga (Guarani, 3 de agosto de 1894 — Rio de Janeiro, 11 de junho de 1958), foi um advogado e político brasileiro. Foi ministro da Agricultura no governo de Getúlio Vargas, de 24 de julho de 1934 a 10 de novembro de 1937. 21 O Globo. Rio de Janeiro. 24 de março. 1936. p. 4. 22 Idem. 23 Imprensa Rural. 19 de maio. 1936. p. 10. 24 Segundo relatórios do Ministério da Agricultura foram destacados para o núcleo colonial de Santa Cruz: quatro engenheiros, dois agrimensores e cinco agrônomos – Selecionados e enviados pelo Centro Nacional de Ensino e Pesquisas Agronômicas (CNEPA); A equipe médica contava com um médico e dois enfermeiros, todos os profissionais teriam o cargo válido por 20 anos, ver: BRASIL. Atividades do Ministério da Agricultura entre 1930-1940. Rio de Janeiro, Serviço de Documentação, 1941. 25 SILVA, Henrique Dias Sobral. Nas veredas da colonização: Apontamentos sobre a política de colonização no primeiro governo Vargas e o caso do núcleo colonial de Santa Cruz (1930-1945). Orientadora: Manoela da Silva Pedroza. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS/Instituto de História, 2015. Monografia (Bacharelado em História).

1141

Projetos nacionais em perspectiva nas páginas da Revista Amauta (1926 -1930) Henrique Guimarães da Silva 1

RESUMO O objetivo do presente trabalho é o de articular os âmbitos da política e da cultura na análise dos textos que preenchem as páginas da revista Amauta, publicação peruana que circulou entre os anos de 1926 e 1930 e que reuniu enorme gama de intelectuais e artistas latino-americanos do período. Dentre os diversos artigos e ensaios que permeiam as duas instâncias citadas, nos deteremos especialmente sobre a temática da identidade nacional/continental, tema recorrente nos contextos linguísticos do período. PALAVRAS-CHAVE: Identidade nacional; História intelectual; América Latina.

ABSTRACT The objective of the present work is to articulate political and cultural scopes on the analysis of the texts that fill the pages of the Amauta magazine, a peruvian periodic that circulated between the years of 1926 to 1930 and gathered huge range of intellectuals and artists of the period. Among the various articles and essays that permeate the two instances mentioned, we will concentrate especially on the issue of national/continental identity, a recurring theme in linguistic contexts of the

period.

KEYWORDS: Nacional identity; Intelectual history; Latin America.

Nas últimas décadas, os estudos históricos vem passando por transformações

com

relação

a novas

abordagens

apontadas

por

inúmeras correntes

historiográficas que visam dar novo sentido às interpretações sobre o passado. Neste turbilhão intelectual, os diversos campos da historiografia cada vez mais estabelecem interações possibilitando análises que conciliam elementos econômicos, políticos e culturais na abordagem de fontes e objetos. No presente trabalho, pretendemos, de maneira especulativa e argumentativa, analisar as possibilidades de interação entre os âmbitos da cultura e da política pelo viés da história intelectual, ao nos determos sobre as considerações de autores latino americanos que, nas páginas da revista Amauta, principal fonte abordada aqui, promovem contribuições para a interpretação de suas realidades nacionais continental.

1142

e

Contudo, antes de destinarmos a devida atenção à revista Amauta, entendemos a necessidade de considerar alguns aspectos relevantes sobre a abordagem de textos e discursos, aliada às particularidades da interação entre cultura e política. Para tal, julgamos importante ressaltar que os textos abordados podem ser entendidos como parte de uma zona bastante fluída entre as áreas. Em especial, na América Latina, o estabelecimento de uma fronteira entre as áreas supracitadas parece tarefa de difícil execução quando nos propomos a analisar textos e revistas culturais por suas possibilidades variadas de interpretação. Carlos Altamirano chamou a atenção a esta aproximação entre as áreas no caso latino-americano vinculando-a a uma “tradição de subordinar a arte de escrever à arte da política”, citando H. A. Murena. 2 A fim de sustentar esta interpretação, Altamirano propôs a utilização de um termo que pudesse contribuir para a significação da originalidade latino-americana e que pretendemos nos apropriar no presente trabalho. A noção de “literatura das ideias”

3

apresentada pelo autor, visa associar as pretensões de inserção no debate político dos autores e textos estudados com a categorização dentro do ambiente literário dos mesmos. Em termos gerais, a chave de análise citada visa ampliar o raio de modos de compreensão dos textos e discursos estudados a fim de localizá-los não só

como

ensaios, categorização mais clássica de interpretação, e, portanto, como parte de uma categoria da crítica literária, mas também como discursos voltados para intervenção nos debates da instância política nos quais estão situados. Para melhor situar nossa abordagem acerca dos textos e discursos aqui analisados, se faz importante ressaltar o conjunto de teorias que nos auxiliam a entendêlos a partir do estabelecimento de redes de debates e contatos entre autores, de forma a dar significado aos conteúdos e suas intenções. Partindo desta premis sa, utilizaremos como suporte teórico as proposições apresentadas por autores da chamada Escola de Cambridge, em especial Quentin Skinner e J. G. A. Pocock. 4 De acordo com os autores, as enunciações, ou atos de fala, promovido pelos autores em certo tempo e lugar, têm direta relação com a conformação de contextos linguísticos no qual estão inseridos e, em muitos casos, visam transformar. As interações linguísticas estabelecidas entre os autores contribuem para a interpretação do conteúdo dos discursos dos autores, fugindo às concepções tidas como tradicionais que apresentavam as proposições de intelectuais ora como “reflexos” imediatos dos contextos políticos, econômicos sociais vivenciados pelos autores, ou por meio do

1143

e

“textualismo”, ou seja, interpretações que buscavam explicar o significado e os objetivos dos autores a partir dos textos em si. De acordo com

Skinner:

Podemos começar assim a ver não apenas que argumentos eles [autores] apresentavam, mas também as questões que formulavam e tentavam responder, e em que medida aceitavam e endossavam, ou contestavam e repeliam, ou ás vezes até ignoravam (de forma polêmica), as ideias e convenções então predominantes no debate político. Não podemos esperar atingir esse nível de compreensão estudando tão-somente os próprios textos. A fim de percebê-los como respostas a questões específicas, precisamos saber algo da sociedade na qual foram escritos. E, a fim de reconhecer a direção e a força exata de seu argumento, necessitamos ter alguma apreciação do vocabulário político mais amplo de sua época. 5

Entramos, portanto, em um importante ponto de reflexão ao tratar dos textos e discursos políticos que permeiam as páginas da revista Amauta. Criada pelo importante intelectual peruano José Carlos Mariátegui, Amauta foi uma das principais publicações da história intelectual latino-americana, por seu conteúdo variado e sua propagação no ambiente letrado do continente. Publicada pela primeira vez em setembro de 1926, em suas 32 edições e quase 5 anos de circulação, a revista se manteve como um espaço frutífero para a interação entre intelectuais de diversas regiões da América Latina e do mundo. Apesar da periodicidade irregular, em especial derivada de problemas de manutenção e devido a intervenções externas, até o ano de 1930 a revista Amauta possibilitou o estabelecimento de uma extensa rede de autores graças à variada composição temática em suas páginas e do importante esforço de seu criador/diretor para a divulgação do projeto. Com o subtítulo de Doctrina Arte Literatura Polémica, a revista foi palco para proposições de autores das mais variadas áreas, tendo em suas páginas desde ensaios de cunho político, até poesias, crônicas, contos, pinturas, fotografias, resenhas e críticas literárias e de cinema. A variedade temática, portanto, também seria uma característica especial de Amauta. Foi espaço de divulgação de importantes nomes da intelectualidade mundial, seja com textos originais ou traduções, dentre eles os peruanos Haya de la Torre, Dora Mayer de Zulen, Luis Valcárcel, Uriel Garcia, José Sabogal e o próprio Mariátegui, além de nomes de força no continente como José Vasconcelos, Jorge Luis Borges, José Ingenieros, Diego Rivera, Gabriela

Mistral,

dentre outros, além de grandes intelectuais e artistas de importância mundial como

1144

Karl Marx, Vladmir Lênin, Sigmund Freud, George Sorel, José Ortega y Gasset e outros mais. Ao percebermos a revista Amauta como espaço importante para a circulação de ideias e discursos no período, vale assinalar o grau de pertinência das revistas culturais latino-americanas enquanto ambientes que possibilitam um mais claro entrelaçamento entre os âmbitos político e cultural, para retomar a reflexão inicial deste ensaio. Apontadas por diversos autores como lugares de enunciação de ideias de grande relevância para o estudo da história intelectual, as revistas culturais podem ser pensadas como publicações periódicas que se dedicam a diversos temas e formas. Nos apropriamos da definição de “revista cultural” de Antonio Checa Godoy que sinaliza a dedicação deste veículo a tratar de temas não só literários, “mas, também, de uma grande variedade de assuntos relacionados com o cultural, como ciência, história, política”. 6 Para além desta definição, nos é caro localizar a revista Amauta, juntamente com

outras

publicações

de

cunho

político/cultural,

enquanto

espaços

que

representam/constituem as dinâmicas estabelecidas entre artistas e intelectuais no período tratado. Desde princípios do século XX a produção letrada latino-americana vivenciou processo de plena expansão, com a profissionalização do jornalismo e o crescimento das universidades. Somente no intervalo de 1918 -1930, como ressalta Oscar Terán7, as publicações de todas as ordens triplicaram no continente, incluindo se periódicos e revistas. De acordo com Mabel Moraña, a importância das revistas para o debate político e cultural na América Latina está relacionado com uma tradição continental de dedicar às revistas e periódicos a função principal na elaboração “de las culturas nacionales y transnacionales, y en el asentamiento de las bases ideológicas y culturales que conforman la noción de ciudadanía y, más ampliamente, regulan el funcionamiento de la sociedad civil”. 8 O período de circulação da revista pode ser lembrado como um momento de grande importância para a intelectualidade latino-americana, devido às profundas mudanças vivenciadas em boa parte do mundo que impactaram paradigmas até então estabelecidos e dando origem a discussões de nova ordem de fatos que circulavam pelas variadas esferas da vida social. De acordo com Ansaldi e Funes, são tempos de “transgresión, innovación, crítica, compromiso, transformaciones y expectativas” 9 , herdeiros das enormes transformações vivenciadas em diversas partes do globo caracterizadas pelo período entre guerras com as críticas ao modelo liberal, ao avanço do socialismo e à, cada vez mais significante, emergência de ideias e regimes fascistas.

1145

A “Grande Guerra”, ocorrida entre os anos de 1914 e 1918, ao colocar em choque não só as grandes potências europeias, mas também diversas de suas áreas coloniais e/ou de influência nos demais continentes, em um conflito sem precedentes na história humana por sua magnitude e abrangência, abriu terreno para incontáveis elaborações teóricas e ações políticas que visavam compreender, superar ou negar os seus legados. Durante o mesmo período a Rússia fora sacudida por uma das mais importantes revoluções da história, com a chegada dos Bolcheviques ao poder e a instauração de um regime socialista em todo o país,

abrindo caminho para a

organização de uma série de movimentos e grupos em todo o mundo inspirados nas resoluções do evento. Graças à Revolução Russa “las periferias del mundo, leídas desde otras periferias, aparecían más vitales”. 10 Dentro do continente americano, ainda ocorreu a Revolução Mexicana, iniciada em 1910, que visava destruir as bases do Porfirismo, assentado em legitimidade política semelhante a dos demais países do continente, baseado em autoritarismo político e manipulações desde o aparato estatal. Tal evento contribuiu também para ressaltar a participação de camadas populares, em especial camponeses, nas transformações políticas do continente. Portanto, os três importantes acontecimentos aqui relatados (1ª Guerra Mundial, Revolução Russa e Revolução Mexicana) podem ser entendidos como significantes marcos para o desenrolar dos anos posteriores, em diversos setores e sentidos, pois

remueven las certidumbres en las que, precariamente, se pensaba la política (la matriz histórica e ideológica del pensamiento l iberal), lo social (exclusión "natural" de las mayorías), la economía (el colapso de la guerra en muchas de las producciones primarias del subcontinente evidencia la fragilidad del modelo primario exportador), el mundo cultural (permeado de "europeísmo" y cosmopolitismo). 11

Portanto, na importante década de 1920,

muitos

intelectuais e artistas

dedicaram-se às realidades locais, a partir de representações artísticas, estudos nacionais e projetos políticos a fim de dar um novo sentido à história de seus países e continente. Acompanhando este processo, se faz importante ressaltar o papel das revistas que, assim como Amauta, foram espaços significativos para a enunciação das novas correntes artísticas e políticas. Com base na compreensão apresentada acima, buscamos aqui ressaltar dois importantes aspectos da intelectualidade latino-americana no período de circulação de

1146

Amauta: em primeiro lugar, observamos a existência de uma espécie de tradição no continente de mobilizar as discussões locais por meio de veículos como as revistas, e, como segundo ponto, enfatizamos que, com a propagação do número de publicações na região, a importância das revistas atinge alcance de grande relevância como meio para o estabelecimento de projetos políticos e culturais entre autores. Dentre as seções da revista Amauta, por exemplo, identificamos um esforço editorial em localizá-la enquanto uma revista que permeia as esferas aqui em discussão. Espaços como Labor e El proceso del gamonalismo que, por meio de artigos e informativos, buscavam apresentar um panorama da organização do trabalhador urbano e rural, além de promover denúncias de crimes e abusos sobre a população camponesa submetida ao controle dos gamonales12 no interior, enfatizam o caráter político, e até panfletário, da publicação. Contudo, outra importante seção que constava como complemento da revista Amauta era a Libros y Revistas, parte dedicada à divulgação de obras literárias, resenhas e críticas de livros e filmes, entrevistas com artistas e intelectuais de diversas partes do mundo, dentre outras características que enfatizam um projeto de divulgação cultural por parte do corpo editorial da revista. Para além das seções específicas citadas, a revista Amauta também apresentava em sua composição diversos artigos de autores que podem ser entendidos pelo viés da interação entre os âmbitos da política e da cultura. Áreas estas que, vistas pelo prisma das contribuições das novas correntes historiográficas, apresentam aproximações importantes para se pensar a “literatura das ideias” aqui analisada. As interpretações sobre as realidades nacionais e continental que permeiam os escritos de muitos dos autores que publicaram em Amauta, além de outras muitas revistas que povoaram o ambiente intelectual latino-americano da década de 1920, são importantes lugares para enunciação de projetos que articulam política e cultura. Muitos artigos publicados na revista, e no período em questão, buscaram reelaborar um esforço de compreender as realidades locais a fim de contribuir para a constituição de novas perspectivas futuras para dilemas imediatos e históricos. Permeando este intento criativo dos autores, os projetos de sociedade estabelecidos, em muitos casos, eram acompanhados por uma necessidade de se produzir certas interseções étnicas e históricas, ou seja, culturais, que sustentassem as bases de renovadas identidades coletivas. Portanto, para além das orientações políticas e projetos de conformação social, estava em jogo a afirmação identidades culturais

1147

nacionais e da América Latina, com referenciais diversos, mas que apresentavam certos denominadores comuns. A intelectualidade latino-americana das primeiras décadas do século XX, assim, pode ser analisada por sua grande variedade de projetos que, como aponta Altamirano, objetivavam a auto interpretação e auto definição de suas práticas enquanto homens de letras: “quem somos nós, latino-americanos? Quem somos nós, argentinos? somos nós, mexicanos? Quem somos nós, peruanos? E assim por diante”.

13

Quem Um dos

temas correntes dentre a intelectualidade do continente, ainda que variável em lugar e intensidade, foi a busca pelo fortalecimento de uma identidade local – nacional, continental, ou até regional – frente às “ameaças” representadas pelo estrangeiro tido como dominante, em especial em torno da figura da presença europeia e norteamericana. Na década de 1920 surgiram, em diversas regiões do continente, frentes intelectuais e organizações políticas que buscavam afirmar uma luta anti -imperialista latino-americana. La Liga Antiimperialista de las Américas (LADLA),

Alianza

Popular Revolucionaria Americana (APRA) e Unión Latinoamericana (ULA) são algumas destas organizações que reuniram em seus projetos muitos nomes da política e da intelectualidade do período, ganhando especial força a partir do Congresso de Bruxelas, realizado em fevereiro de 1927, onde se reuniram importantes personagens da luta anti-imperialista de todo o mundo a fim de se buscar soluções e estratégias coletivas para os povos colonizados pelo globo. Para além destas frentes políticas, muitos dos projetos nacionais/continentais partiram de uma identidade para a reunião de povos e culturas originais contrárias à “invasão” estrangeira. Em artigo intitulado América para la humanidad, publicado no nº 9 de Amauta, Dora Mayer de Zulen buscou apresentar uma crítica ao lema propagado pela chamada Doutrina Monroe, “América para os americanos”, defendendo uma solidariedade continental frente à ostensiva presença norte-americana e o modelo de sociedade idealizado por estes. Outro importante artigo publicado na revista que contribui para entendermos esta busca pela unidade político-cultural anti-imperialista foi o Sentido de la lucha anti-imperialista, de Victor Raul Haya de la Torre, principal idealizador da APRA. Em texto de caráter panfletário com conteúdo poético, o autor reivindicou a organização de uma frente anti-imperialista com alto teor identitário para os latinoamericanos. De acordo com o autor:

1148

Nuestra generación verá y será actora de la lucha definitiva de América Latina por su libertad. [...] Nos enorgullece que el grito de alarma y el mandato de organización de las falanjes nuevas haya surgido del Perú nuevo, del Perú que lleva en su verbo de incitación la palabra rotunda de Gonzalez Prada que sigue desde la tumba llamando a los jovenes a la obra. También la voz de los viejos Incas nos llama al deber.14

As variadas interpretações que possibilitaram uma literatura engajada na constituição de projetos nacionais, e que, portanto, estavam em grande medida em disputa nas páginas de Amauta, também promoveram amplo debate acerca das matrizes étnicas dos povos do continente, como alicerce para as identidades nacionais. Muitos foram os projetos na intensa década de 1920, em especial no país peruano, mas não somente, que buscaram na figura do nativo ameríndio a figura a ser resgatada como base para a constituição das identidades coletivas. Órgãos como a Asociación ProIndígena, liderada por Pedro S. Zulen e a já citada Dora Mayer de Zulen, foram importantes instrumentos de denúncia e defesa das comunidades indígenas submetidas ao controle e exploração dos grandes proprietários rurais. Não por acaso, na primeira edição da revista Amauta, a convite de Mariátegui, foi publicado o artigo Lo que ha significado la pro-indígena, com autoria de Dora Mayer de Zulen, para relembrar a importância da instituição nas primeiras décadas do século XX. Para a autora, a associação juntamente com sua publicação, El Deber Pro-Indígena, tiveram papel crucial de publicidade de denúncias, contribuindo para o cumprimento de leis frente aos gamonais. Neste artigo, a autora ressalta esta característica:

La publicidad constituía en buena cuenta el eje de la acción de la Pro Indígena. Era el temor a la sanción pública provocada por la publicidad el motivo que servía de freno a los abusivos y que inducía a los funcionarios gubernamentales y judiciales a ocuparse de las reclamaciones presentadas por la Asociación en nombre de sus defendidos. 15

Para além das muitas organizações criadas em defesa das populações indígenas, numerosos

foram

os

esforços

mobilizados

por

intelectuais

que

promoviam

interpretações sobre as realidades locais a fim de construir novas orientações de identidade. A revista Amauta teve, neste sentido, papel crucial para o estabelecimento de contato entre variadas vertentes do indigenismo

16

latino-americano, pois, além de

ser uma temática frequente nos discursos e escritos do período, existiu um projeto real do comitê editorial da publicação para tornar este tema assunto de urgência. Desde as

1149

frequentes ilustrações com a temática indígena de nomes como o peruano José Sabogal, até poesias e ensaios de autores de relevância como Luis Valcárcel, Gamaliel Churata, Jorge Basadre e o próprio Mariátegui, a revista foi palco para inúmera inovações linguísticas que visavam dar sentido às novas – e variadas – possibilidades de formulação de projetos de identidade nacional/continental com base na figura do indígena americano, como traduzido no título da revista: “El título no traduce sino nuestra adhesión a la Raza, no refleja sino nuestro homenaje al Incaísmo. Pero específicamente la palabra ‘Amauta’ adquiere con esta revista una nueva acepción. La vamos a crear otra vez”. 17 A revista Amauta, portanto, pode ser apontada como um importante veículo da intelectualidade latino-americana da década de 1920 por representar, enquanto projeto editorial e espaço de publicação, caminhos para projetos político-culturais

que

visavam responder a questionamentos do presente, sem perder de vista as contribuições – mesmo que refutadas – do passado e desenhando projetos para o futuro. sentido, se apresenta para nós a possibilidade de mapear, através da utilizada pelos

autores, a emissão de lances que visam

Neste

linguagem

renovar conceitos e

interpretações em voga nos “idiomas” nos quais estão inseridos. A noção de lance, alicerçada por Pocock, 18 se apresenta para nós como uma chave de leitura para entender a dinâmica estabelecida entre os autores da década de 1920 na América Latina, pois entendendo os atos de fala dos autores como enunciações voltadas para transformar o contexto linguístico em que estão inseridos, a busca constante pelo “novo” se torna cada vez mais inteligível em perspectiva histórica.

1

Graduado em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente mestrando do c urso de História Social no Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHIS-UFRJ), orientado pelo Prof. Dr. Fernando Luiz Vale Castro. E-mail: [email protected]. 2 ALTAMIRANO, Carlos. Ideias para um programa de História Intelectual. Tradução de Noberto Garinello. Tempo Social - Revista de sociologia da USP, São Paulo, SP, v. 19, n. 1, jun. 2007. p.14. 3 Ibidem. p.11. 4 SKINNER, Quentin. Meaning and Understanding in the History of Ideas . (1988); As fundações do pensamento político moderno. (1996). / POCOCK, J. G. A. Linguagens do Ideário Político . (2003)

1150

5

SKINNER, Quentin. (1996). op.cit. p.13. GODOY, 1993 apud PAULA COUTO, C. P. Revistas político-culturais como cifra da história intelectual latino-americana. História, imagem e narrativas. Nº 20, abril/2015. p.2. 7 TERÁN, Oscar. Amauta: vanguarda y revolución. In: ALTAMIRANO, Carlos (Dir.). Historia de los intelectuales en America Latina (volumen II). Buenos Aires: Katz, 2010. p.169. 8 MORAÑA, Mabel. Revistas culturales y mediación letrada en América Latina. Outra Travessia, nº 40/1, Ilha de Santa Catarina, 2° semestre de 2003. p.67. 9 ANSALDI, Waldo; FUNES, Patricia. Viviendo una hora latinoamericana . Acerca de rupturas y continuidades en el pensamiento en los años veinte y sesenta. Disponível em: http://www.catedras.fsoc.uba.ar/udishal. 1998. p.1. 10 FUNES, Patricia. Salvar la Nación: Intelectuales, Cultura y Política en Los Años Veinte Latinoamericanos. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2006. p.14. 11 ANSALDI; FUNES. Op. cit. p.9. 12 Representante da oligarquia rural peruana acusado por autores de época pe lo exercício do poder senhorial sobre indígenas que habitavam suas terras. 13 ALTAMIRANO, Carlos. op.cit. p.15. 14 HAYA DE LA TORRE, V. R. Sentido de la lucha anti-imperialista. In: Amauta, nº8, 1927. p.40. 15 ZULEN, Dora Mayer de. Lo que ha significado la pro-indígena. In: Amauta, nº1, 1926. p.21. 16 De acordo com de Henri Favre, o indigenismo pode ser entendido como “una corriente de opinión favorable a los indios. Se manifiesta en tomas de posición que tienden a proteger a la población indígena, a defenderla de las injusticias de las que es víctima y a hacer valer las cualidades o atributos que se le reconocen” (1998, p.7). A definição inicial do autor, contudo, não limita a abrangência mais vasta de um conceito carregado de historicidade, como é o caso do indigenismo. Portanto, apesar de ser uma definição que nos serve como base, esta não limita outras atribuições possíveis ao conceito. Cf. FAVRE, Henri. El indigenismo. México D. F.: Fondo de cultura económica, 1998. 17 MARIÁTEGUI, José Carlos. Presentación. In: Amauta, nº1, 1926. p.1. 18 POCOCK, J. G. A. op.cit. 6

1151

“EXPURGAR OS COMUNISTAS”: O APOIO POLÍTICO DO MUNICÍPIO DE MUNIZ FREIRE (ES) AO GOLPE DE 1964

Herbert Soares Caçador1

Resumo O anticomunismo chegou a Muniz Freire (ES) e teve grande acolhida da população local na década de 60. Com o golpe de 1964, o sentimento anticomunista explodiu no município. Saudando o golpe como o movimento que livraria o país dos comunistas, o prefeito e os vereadores municipais aprovaram efusivos manifestos de apoio aos militares golpistas. Assim, este trabalho problematiza as movimentações políticas ocorridas no município na primeira metade da década de 60 e a influência do discurso anticomunista na sociedade. Palavras-chave: Anticomunismo; Golpe Civil-Militar; Muniz Freire.

Abstract The anticommunism arrived to Muniz Freire (ES) and had great hospitality of the local population in the 60's. With the coup of 1964, the anticommunist sentiment exploded in the city. Welcoming the blow as the movement that rid the country of communists, the mayor and city councilors approved effusive manifestos of support for the military coup. Thus, this work discusses the political movements that occurred in the city in the first half of the 60s and the influence of anticommunist speech in society. Keywords: Anticommunism; Civil-Military Coup; Muniz Freire.

Introdução

O acirramento da Guerra Fria, período em que Estados Unidos e União Soviética travavam intensa disputa ideológica e política, fortaleceu a propagação do anticomunismo na década de 60, atingindo também o pequeno município de Muniz Freire, localizado na região do Caparaó, no sul do Espírito Santo, que em 1960 tinha população estimada em 21.669

1152

habitantes2, até hoje o número máximo registrado no município. Os muniz-freirenses, gentílico referente aos nascidos no município, também foram afetados pelo discurso nacional e o clima tenso na política local consolidou a oposição a já demonizada ideologia comunista. O município, com grande parte da população descendente de imigrantes italianos, tem forte ligação com o catolicismo e uma vida política conflituosa desde o início da sua povoação no século XIX. O presente trabalho tem por objetivo problematizar as movimentações políticas ocorridas no município na primeira metade da década de 60 e a influência do discurso anticomunista amplamente disseminado pelo país afora e que teve grande acolhida na sociedade de Muniz Freire.

1962 a 1964: a disputa política em Muniz Freire A oligarquia local, quase sempre vencedora nas disputas eleitorais no município era ligada aos políticos da família Monteiro Lindenberg, que dominou a política no Espírito Santo durante quase meio século. A proximidade era tanta que foi fundado na cidade em 26 de julho de 1958 um clube social com o nome de “Centro Cívico Senador Lindenberg”,3 em homenagem ao ex-senador e ex-governador do Estado, ambos por dois mandatos, Carlos Fernando Monteiro Lindenberg.4 É interessante assinalar, que este clube chegou a impedir a participação de negros entre seus associados. De fato, era comum ocorrer divisões nas festas de Muniz Freire, sendo que durante um tempo, os carnavais de negros e brancos ocorreram em lugares separados na cidade.5 O conservadorismo imperava na sociedade da época e a poderosa oligarquia local contava com o apoio do conservador padre José Bazzarella, vigário local desde 1927 e que influenciava a política do município com o objetivo de favorecer os candidatos ligados à oligarquia local e estadual. A partir de 1962 a oligarquia dominante começou a perder força no município. O PTB (Partido Trabalhista Brasileiro), partido mais popular e que se opunha a ela, elegeu o prefeito e o vice-prefeito, impondo uma derrota inédita à oligarquia local, fortemente ligada ao PSD (Partido Social Democrático) e a UDN (União Democrática Nacional), partidos

mais

próximos aos setores conservadores e fundamentais para a posterior deposição do então presidente João Goulart, também do PTB. A eleição municipal de 07 de outubro de 1962 é até hoje a mais disputada na história de Muniz Freire e demonstra a profunda divisão da sociedade. PTB, PSD e UDN mediram

1153

forças na disputa para prefeito e vice-prefeito, já que no período havia eleições separadas para ambos os cargos. O candidato a prefeito pelo PTB, Antônio Ferreira Sobrinho, foi eleito por uma diferença de apenas 48 votos em relação a José Ávila e Silva, candidato do PSD. 6 Em terceiro lugar ficou o candidato da UDN, Aristóteles Aguiar. A vitória do PTB em 1962 foi a primeira do partido em sua história no município, quebrando uma sequencia de dois mandatos seguidos do PSD. Além de perder a eleição para prefeito, a oligarquia local, até então imbatível, sofreu outra derrota na eleição para viceprefeito. Rômulo Araújo (PTB) venceu Alyrio Ribeiro Soares (PSD) e João Batista Frignani (UDN), o que aumentou a rivalidade política no município. O vereador do PTB, Walfredo Ribeiro Soares, reeleito em 1962, em discurso no plenário da Câmara Municipal considerou as eleições tranquilas e pediu a união dos políticos do município: Em seguida o V. Walfredo Ribeiro Soares pediu a palavra e manifestou sua satisfação, pois que, o pleito de 7 do corrente correu em perfeita ordem e harmonia, Deus ouviu esta Casa, congratulou com os Vereadores reeleitos, dizendo ter sido feita justiça, pois mereciam a reeleição, sempre defenderam os interêsses do Município, fêz apêlo a todos para que agora após às eleições deixem de lado os partidos, as paixões políticas e trabalhem tôdos juntos e unidos para o bem de nosso Município, disse ainda conhecer as intenções do Prefeito recém-eleito à respeito do desenvolvimento de nosso Município, apezar de ser uma pessôa de poucas instruções mas suas intenções são as melhores possíveis, disse ainda pretender o novo Prefeito depois de sua posse, fazer um novo levantamento na Prefeitura, para saber o que ela tem e o que possui, que todos ajudando o Prefeito estarão cooperando com o nosso Município.7

Nas eleições estaduais realizadas no mesmo pleito, a UDN estava coligada com o PTB disputando a eleição majoritária contra o PSD. Para o governo, Jones dos Santos Neves, da coligação PSD-PTN, venceu em Muniz Freire, mas foi derrotado na eleição geral para Francisco Lacerda de Aguiar, da coligação formada por UDN, PSP, PRP, PTB. A eleição para vice-governador foi vencida por Rubens Rangel e para o senado os vencedores foram Eurico Rezende (UDN) e Raul Giuberti (PSP), ambos da mesma coligação de Francisco Lacerda de Aguiar. Rubens Rangel e Eurico Rezende venceram também em Muniz Freire e o segundo colocado para o senado no município foi Carlos Fernando Monteiro Lindenberg (PSD), que não foi eleito no pleito geral. Nas eleições de outubro de 1962 havia no município 4.524 eleitores, dos quais 4.025 votaram.8 Sobre o PTB a nível estadual estar coligado com a conservadora UDN, partidos rivais na política nacional, vale destacar que sobre o PTB capixaba “[...] pelo menos a sua parcela hegemônica, possuía um perfil bastante fisiológico e conservador, bem diferente da agremiação em âmbito nacional.”9

1154

Já em 06 de janeiro 1963 foi realizado um plebiscito sobre a manutenção ou não do regime parlamentarista implantado no país no contexto da conturbada posse do presidente João Goulart em setembro de 1961, após da renúncia de Jânio Quadros. A maioria esmagadora da população votou pela volta do presidencialismo, que venceu com 9.457.448 votos, contra 2.073.582 para o parlamentarismo10, dando indiretamente uma importante vitória ao presidente João Goulart, que finalmente teria plenos poderes para governar. Em Muniz Freire o presidencialismo também venceu com grande maioria, com um total de 2.498 votos contra o parlamentarismo e 549 a favor. Brancos e nulos somaram 384 votos.11

O Golpe de 1º de abril de 1964: explode o anticomunismo em Muniz Freire O anticomunismo brasileiro manifesta-se logo após a Revolução Russa de 1917, em parte devido à retirada da Rússia da Primeira Guerra Mundial, além do temor da “[...] possibilidade de atividades revolucionárias por aqui. Afinal, havia vanguardas operárias organizadas e eventuais surtos grevistas, e o Partido Comunista foi fundado em 1922”.12 O anticomunismo continuou presente na sociedade brasileira nas décadas seguintes. Diversas representações foram criadas para dar ao comunismo um status totalmente negativo. Alguns fatores potencializaram o sentimento anticomunista como o rompimento das relações diplomáticas do Brasil com a Rússia. Soma-se a isso a influência externa na formação da opinião contra o comunismo e a campanha anticomunista propagada por diversos setores da sociedade brasileira, com destaque para a Igreja Católica, partidos políticos e imprensa. De fato, o anticomunismo no Brasil, que iria crescer na década de 60, já aparecia em períodos bem anteriores ao fim do governo de João Goulart: Mobilizações anticomunistas faziam parte do repertório do Estado e de grupos de direita desde o início do século, mas, entre 1961–1964, elas alcançaram picos elevados, graças à combinação de fatores internos (incremento nas reivindicações e protestos sociais) e externos (Guerra Fria, revoluções no Terceiro Mundo). Na derrubada de Goulart, em 1964, as representações anticomunistas tiveram um papel-chave [...].13

Assim como em todo o país, em Muniz Freire também ocorria o mesmo em relação ao anticomunismo. Ainda em 1963, o vereador João Martins, eleito pelo PSD (também pertenceu na mesma legislatura ao PRP) pediu “votos de louvores” da Câmara Municipal a revista “Ação Democrática”, famosa por sua atuação contra o comunismo:

1155

Exmo Sr. Presidente da Câmara Municipal de Muniz Freie. João Martins, Vereador eleito pelo PSD, abaixo assinado, requer a V. Excia., que, depois de submetido e aprovado por esta Casa, seja enviado um ofício à redação da Revista "Ação Democrática", dando a nossa irrestrita solidariedade e apresentando votos de louvores pela brilhante campanha que vem desenvolvendo contra as iniciativas comunistas em nosso tão querido Brasil.14

A citada revista era parte do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), entidade criada em 1959 para combater a disseminação do comunismo no Brasil: Praticamente todo o conteúdo da revisa se dedicava a atacar o comunismo, seja no plano externo, seja no interno. Ela trazia, principalmente, matérias apontando a "infiltração" no Brasil (sindicatos, UNE) e denúncias sobre as ações soviéticas no mundo. A intenção do grupo era chamar a atenção das classes dominantes brasileiras para o "perigo", convencê-las da necessidade de se organizar para enfrentar um inimigo que estaria se tornando cada vez mais ameaçador.15

Com a eclosão do Golpe Civil-Militar em 1º de abril de 1964, a Câmara Municipal de Muniz Freire se apressou e na Sessão Ordinária de 6 de abril de 1964 aprovou um manifesto de apoio ao golpe. O manifesto segue a linha do que era divulgado nacionalmente, ou seja, para os vereadores de Muniz Freire, o golpe também se justificava pelo fato de livrar o país dos comunistas. No manifesto é possível observar que os vereadores conclamaram os líderes militares a tomarem medidas enérgicas contra os “elementos comunistas” que estavam ao lado do governo constitucional do presidente João Goulart: Ouvindo o plenário a Câmara Municipal, fica registrado moção de solidariedade aos briosos militares e aos ilustres governadores de Estados membros da Federação que, na defesa da constituição, atuaram no sentido de extirpar do poder público os elementos nitidamente com tendência comunistas, cujos elementos nocivos só traziam intranquilidade, pertubando a paz da família brasileira, aniquilando o princípio de autoridade e desagregando as Forças Armadas com o propósito de se perpetuarem no poder. [...] A Câmara Municipal de Muniz Freire, ainda, aprova mensagem aos responsáveis dirigentes que promoveram o afastamento dos comunistas do poder público, que adotem providências enérgicas no sentido de expurgar de uma vez por tôdas, todos êsses elementos comprovadamente comunista que conspiram contra o regime democrático no Brasil.16

O manifesto foi aprovado pelos vereadores José de Lima (UDN), João Martins (PSD), José Gomes da Silva (PSD), Waldemar Antônio Sgrâncio (PTB), Anestor Machado de Ávila (PTB), Aladim José de Souza (PTB) e José Gomes (PTB). Um vereador faltou à sessão e outro, Walfredo Ribeiro Soares, então líder do PTB e vice-presidente da Câmara, se posicionou contra, sendo o mesmo aprovado por sete votos favoráveis e um contrário. A aprovação do manifesto gerou discussão entre os vereadores:

1156

O Vereador Waldemar pediu a palavra e esclareceu que tinha assinado o manifesto e defendia a brilhante atitude do Sr: Presidente (da Câmara Municipal), de ter entrado defendendo a democracia e a família brasileira, que estes comunistas covardes e bandidos precizavam ser degolados, e disse ao V. Walfredo que êle foi contra o manifesto e que achava ainda que quem cala consente, e que estes ainda continua acompanhando estes safados como Leonel Brizola e João Goulart, porque tem ideias comunistas. O Vereador Walfredo pediu a palavra e disse que o V. Waldemar tachou-o como comunista mas que êle não era comunista que votou contra por uma questão particular de ser do PTB, e amigo do Jango. Concedida a palavra ao V. João Martins, êle disse assinar e votar favoravel aquele manifesto que era defender a constituição e a familia brasileira e que no Brasil há comunistas e que o Brizola e um deles.17

Já na sessão de 05 de maio de 1964, o vereador Walfredo, único contrário ao manifesto de apoio ao golpe muda de posição e pede para constar em ata um voto de solidariedade da bancada do PTB ao presidente Castelo Branco.18 O Poder Executivo também se pronunciou a respeito do golpe. Ao ser questionado por ofício pela Câmara Municipal, sobre qual seria a sua posição perante os novos acontecimentos, o prefeito municipal, Antônio Ferreira Sobrinho enviou a Câmara, no dia 14 de abril de 1964, a sua posição, onde entre outras palavras, disse: Tenho a grata satisfação de responder o seu ofício nº 2/64 datado de 8/4/64, referente a minha posição face aos últimos acontecimentos políticos e que culminaram com a revolução vencida pelos bravos militares de nossas Forças Armadas. Pelo que tenho observado, a revolução tem rumo certo e o seu principal objetivo é: 1º Expugar o comunismo dos nossos meios. 2º Manter a democracia a qualquer preço. 3º Punir os dilapidadores dos cofres públicos. Honro-me em vos afirmar que estive estou e estarei sempre solidário e ao lado das forças que pugnarem por êstes princípios e direito que é o marco da civilização brasileira [...].19

As manifestações ocorridas após o Golpe em Muniz Freire parecem uma reprodução do discurso que era espalhado Brasil a fora. O horror ao comunismo e concordância da perseguição contra os que supostamente seguiam tal ideologia alcançava até o prefeito municipal, este eleito pelo PTB, partido onde muitos dos seus filiados eram acusados de serem comunistas, e por isso perseguidos implacavelmente pelos militares. A expressão “bravos militares”, usada pelo prefeito municipal e “briosos militares”, usadas no manifesto dos vereadores reproduzem o que a mídia que apoiou o golpe divulgava. Um dos trechos do editorial do jornal O Globo defendendo o movimento que derrubou João Goulart parece ter sido uma das fontes inspiradoras do manifesto do prefeito e dos vereadores de Muniz Freire:

SALVOS DA COMUNIZAÇÃO que celeremente se preparava, os brasileiros devem agradecer aos bravos militares, que os protegeram de seus inimigos. Devemos felicitar-nos porque as Fôrças Armadas, fiéis ao dispositivo constitucional que as obriga a defender a Pátria e a garantir os podêres constitucionais, a lei e a

1157

ordem, não confundiram a sua relevante missão com a servil obediência ao Chefe de apenas um daqueles podêres, o Executivo.20

Considerações finais A campanha difamatória contra os comunistas, fortalecida principalmente com a Guerra Fria, onde Estados Unidos e União Soviética se digladiavam ideologicamente, também se fez presente na pequena cidade do sul do Espírito Santo. Em Muniz Freire, associar o comunismo com tudo que havia de negativo também foi realidade e se fortaleceu na década de 60. Dos oito vereadores que se posicionaram a favor dos militares após o golpe, cinco pertenciam ao PTB, mostrando que os vereadores locais e o prefeito, que também era do PTB, influenciados pelo discurso anticomunista e pela “revolução”, esqueceram a rivalidade local e não seguiram o próprio partido, optando pelo pragmatismo de apoiar quem havia tomado o poder. A perseguição contra os “elementos comunistas”, aprovada por grande parte da sociedade local, pelo prefeito e pelos vereadores de Muniz Freire, reforça a tese de que o anticomunismo teve papel preponderante na concretização do golpe de 1964. Por fim, vale contextualizar que, mesmo alguns políticos do município de Muniz Freire se exaltando na defesa do golpe e na perseguição contra os “comunistas”, o apoio a derrubada do presidente João Goulart não os coloca automaticamente como favoráveis ao regime opressor que se instalou no país após o fatídico 1º de abril de 1964, ainda que os manifestos de apoio aos militares aprovados pelo prefeito e pela Câmara Municipal tenham sido divulgados dias após os primeiros casos de mortes e torturas praticados pela violenta repressão do novo regime.

1158

ANEXO 1: Muniz Freire, julho de 1960: comemoração do “Dia do Município” com a presença do governador Carlos Fernando Monteiro Lindenberg (terceiro da direita para esquerda) ao lado de autoridades locais. Foto: Casa da Cultura de Muniz Freire.

1

Mestrando em História Social das Relações Políticas pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), orientado pelo Professor Doutor Pedro Ernesto Fagundes. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado do Espírito Santo (FAPES). E-mail: [email protected]. 2 Dados regionais do IBGE. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Disponível em:< http://www.ipeadata.gov.br/>. Acesso em 30 set. 2015. 3 BAZZARELLA, Carlos Brahim. A História de Muniz Freire. Muniz Freire: 2003, p. 105. 4 ALMEIDA, Amylton de. Carlos Lindenberg: um estadista e seu tempo. Vitória (ES): Arquivo Público do Estado do Espírito Santo, 2010, p. 6. 5 FAVORETO FILHO, Agenor. Muniz Freire Terra de Gente que Faz História. Muniz Freire: 2011, p. 64. 6 BAZZARELLA, op. cit., p. 51. 7 Ata da 16ª Sessão Ordinária da Câmara Municipal de Muniz Freire realizada em 20/10/1962. 8 Eleições Anteriores. Tribunal Regional Eleitoral do Espírito Santo. Disponível em:. Acesso em 22 ago. 2015. 9 OLIVEIRA, Ueber José de. “A Fórmula para o Caos: O Golpe de 64 e a Conspiração Contra o Governador Francisco Lacerda de Aguiar, no Espírito Santo (1964-1966)”. Revista Crítica Histórica. Maceió: Ano V, nº 10, p. 86, 2014. 10 FICO, Carlos. O golpe de 64: momentos decisivos. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2014, p. 23-24. 11 Plebiscitos e Referendos. Tribunal Regional Eleitoral do Espírito Santo. Disponível em:< http://www.trees.jus.br/eleicoes/plebiscitos-e-referendos/plebiscitos-e-referendos>. Acesso em 22 ago. 2015. 12 MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em Guarda Contra o Perigo Vermelho: o anti-comunismo no Brasil (1917-1964). São Paulo: Perspectiva, 2002, p. 6. 13 MOTTA, Rodrigo Patto Sá. “O golpe de 1964 e a ditadura nas pesquisas de opinião”. Revista Tempo. Niterói: vol.20, p. 8, 2014. 14 Ata da 7ª Sessão Ordinária da Câmara Municipal de Muniz Freire realizada em 05/06/1963. Disponível em:. Acesso em 20 set. 2013.

1159

15

MOTTA, Rodrigo Patto Sá. João Goulart e a mobilização anticomunista de 1961-1964. In: FERREIRA, Marieta de Moraes (Coord.). João Goulart: entre a memória e a história. Rio de Janeiro> Editora FGV, 2006, p. 133-134. 16 Ata da 3ª Sessão Ordinária da Câmara Municipal de Muniz Freire realizada em 06/04/1964. Disponível em:. Acesso em 24 set. 2013. 17 Ata da 3ª Sessão Ordinária da Câmara Municipal de Muniz Freire realizada em 06/04/1964. Disponível em:. Acesso em 24 set. 2013. 18 Ata da 5ª Sessão Ordinária da Câmara Municipal de Muniz Freire realizada em 05/05/1964. Disponível em:. Acesso em 24 set. 2013. 19 Ata da 4ª Sessão Ordinária da Câmara Municipal de Muniz Freire realizada em 20/04/1964. Disponível em:. Acesso em 24 set. 2013. 20 O Globo, 2-4-1964, p. 1. Disponível em:. Acesso em 23 ago. 2015.

1160

Um gênero em disputa: o ensaio histórico no Brasil na virada dos séculos XIX e XX Hugo Ricardo Merlo*

Resumo: buscamos, neste breve artigo, analisar panoramicamente a memória do gênero ensaístico no Brasil a fim de compreender o papel do ensaísmo para a consolidação da formula da historiografia da formação, tentando identificar os momentos nos quais o significado do ensaio historiográfico modifica-se e reajusta-se. Palavras-chave: Ensaio, Historiografia, Formação. Abstract: we aim, on this brief paper, to analyze widely the memories of the essayistic genre in Brazil so that we are able to comprehend the role that essayism played on setting the formula of the "formation historiography", trying to identify the moments in which the meaning of the historical essay changes and resets itself. Keywords: Essay, Historiography, Formation.

Autonomia, historiografia e formação Em um texto recentemente publicado na revista Varia história, também adaptado a forma de um workshop, o prof. Valdei Lopes de Araújo introduz à história da historiografia brasileira, o conceito de regimes de autonomia intelectual. Nesse texto, intitulado Historiografia, nação e os regimes de autonomia na vida letrada no Império do Brasil1, Araújo defende a coexistência, no Brasil oitocentista, de dois conjuntos de fatores que legitimavam autoria do conhecimento histórico, e por conseguinte, moldavam (e eram moldados por) suas formas de escrita, leitura e a disposição geral da institucionalização então vigente na disciplina. Um primeiro padrão de autonomia da produção historiográfica é o compilatório, ou seja, aquele herdado do século anterior e hegemônico até, pelo menos, meados dos anos 20 e anos 30 do século XIX. Esse regime compilatório pode ser sumariamente descrito como o regime no qual existe um forte apoio do sistema de subscrição e editorial; uma preocupação com a síntese (filosófica) e a oferta de uma versão da narrativa historiográfica menos documentada; a presença de uma linguagem sentimental; a resistência à erudição moderna; a maior presença de padrões e referências clássicas; demandas locais e regionais de identidade e *

justificação

Mestrando em História do Programa de Pós-graduação em História Social das Relações Políticas da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). É vinculado ao Laboratório de Estudos de Teoria da História e História da Historiografia (Lethis) desta mesma Universidade. Pesquisa sob a orientação do prof. Julio Cesar Bentivoglio (PPGHis-Ufes). É bolsista CAPES de mestrado. E-mail: [email protected]

1161

política; uma fusão entre documento e relato (texto arquivo); e a escrita como ação política direta. Nos idos dos anos 30, já delineiam-se as formas de um segundo regime, o disciplinar, que se pode sumarizar da seguinte forma: a existência de um subsídio estatal direto ou indireto, acompanhado da formação de Sociedades e Instituições; de um padrão erudito e de uma valorização da crítica e da autoridade do pesquisador/erudito; da formação de um "decoro" especializado; da fusão de erudição, filosofia e narrativa; de uma abertura para os padrões conceituais modernos e os limites do discurso histórico; da centralidade da História Geral

Nacional;

da

separação

entre

documento

e

relato;

e

da

escrita

como

formação/informação ou ação política direta. É importante, antes de seguirmos em frente, notar que Araújo fala em "acomodações competitivas em diferentes arranjos", ou seja, em combinações em diferentes níveis desses dois regimes, na produção, de fato, do conhecimento historiográfico do período. Nossa hipótese é de que nas décadas finais do século XIX, um arranjo algo estável e consolidado desses dois regimes de autonomia começa a se constituir frente a uma série de fatores de ordem interna ou externa as dinâmicas disciplinares, dentre os quais podemos mencionar o evento da Proclamação da República e da Abolição da Escravatura - cujos impactos certamente perturbam a configuração do tempo histórico e redefinem os sentidos orientadores da produção historiográfica do período subseqüente - e também a chegada de novas formas de conhecimento científico aos trópicos, bem como a formação de divisórias disciplinares antes inexistentes ou configuradas de outra maneira. Esse arranjo, que viria a ser o mesmo de uma historiografia da formação, pode ser provisoriamente descrito como mais independente, frente as novas possibilidades de publicação (menos intervenção estatal, mais mercado) e de conexões pontuais com a sociedade; busca de síntese (sociológica) a partir de padrões críticos e eruditos; pela presença de um decoro especializado flexibilizado por uma linguagem mais literária (de autorreferência); pela fusão de erudição, filosofia, narrativa e das novas disciplinas em constituição; pela abertura para padrões conceituais modernos e eventual negação de uma linguagem exageradamente acadêmica; pela centralidade da história nacional; pela separação entre documento e relato; e, por fim, pela escrita como formação e como ação política. Quando falamos de uma historiografia da formação, nomenclatura que tomamos emprestada de Paulo Arantes2, referimo-nos aos grandes ensaios historiográficos que marcaram nossa historiografia nacional, dentre os quais sempre mencionam-se Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, e Formação do Brasil

1162

Contemporâneo, de Caio Prado Jr.. Mas não apenas. Referimo-nos, ainda, aos outros inúmeros trabalhos permeados por um fetiche pela formação nacional, e em cujos títulos e subtítulos constam a palavra, tais quais: Os Donos do Poder - Formação do Patronato Político Brasileiro, de Raimundo Faoro, Formação Econômica do Brasil, de Celso Furtado, Formação da Literatura Brasileira, de Antônio Cândido, dentre outros mais nos quais não constam a palavra, tais como Retrato do Brasil, de Paulo Prado, e Populações Meridionais do Brasil, de Oliveira Vianna. Todos esses trabalhos possuem uma série de características em comum, mas não únicas, basilares e que consideramos que um estudo de suas genealogias seja central para a compreensão do que é a historiografia da formação: o, já mencionado, fetiche pela ideia de formação; uma experiência específica do tempo histórico; um ensejo de síntese sociológica; e, o que discutiremos nesse breve texto, o ensaísmo como forma. Portanto, o objetivo deste trabalho é o de compreender o papel do ensaísmo para a consolidação da formula da historiografia da formação. Para tal, iremos apresentar um brevíssimo histórico do gênero, tentando identificar os momentos nos quais o significado do ensaio muda ou pluraliza-se.

Uma breve história (da memória) de um gênero3 O gênero do ensaio goza, nos trópicos, nas palavras de Dalton Sanches, "uma longa e errática vida de mais de um século e meio"4, mas sua existência no velho mundo data de mais de quatro centenas de anos. "Centauro de los géneros"5, nas palavras de Alfonso Reyes, o ensaio tem trajetórias diferentes em tradições distintas mas foi alvo de diversas reflexões teóricas acerca de sua natureza como gênero, transcendendo a particularidade da sua historicidade múltipla, e sem que, ao fim, se houvesse um consenso amplo e claro acerca de sua definição (vide as quase 100 ocorrências da palavra "ensaio" e suas variantes, por exemplo, na História da Literatura Ocidental de Otto Maria-Carpeaux, nenhuma delas acompanhada de uma definição). Em seu já clássico Breve historia del ensayo hispanoamericano, José Miguel Oviedo trabalha próximo a Lukács e define o ensaio como uma reflexão original, organizada e racional que busca elucidar um tema. Diferencia-se entretanto, de outras linguagens do conhecimento e da ciência pois "en el ensayo ese lenguaje es un reflejo vivo de la persona que piensa, analiza y descubre: es un lenguaje singular y reconocible como tal, pues no ha renunciado a la

1163

subjectividad y aun a los vuelos imprevisibles de la fantasía."6. Já André Moysés Gaio, em Modernismo e Ensaio Histórico, pequeno ensaio no qual tenta dar conta das relações entre o Modernismo brasileiro e o gênero a partir do estudo da obra de Nelson Werneck Sodré, trabalha mais próximo a Simmel e Adorno. Em suas palavras: Adorno reconhecia a separação entre arte e ciência e admitia haver certa autonomia estética no ensaio; ele é essencialmente linguagem, um esforço tenaz na exposição das idéias; todavia considerava um erro hipostasiar essa separação. As referências principais ao ensaio são as seguintes: sua natureza aberta, o reconhecimento da nãoidentidade entre pensamento e objeto, entre o sujeito e o objeto, entre o modo de expor e o objeto, sua natureza fragmentária que não é contrária à busca da totalidade, a presença de teorias e conceito, o esforço para abrir o que há de opaco nos objetos, a própria organização textual deverá amarrar o que, às vezes, poderia parece como solto, disperso, sua abertura aos dados novos da realidade, sua assistematicidade como crítica às formas fixas e consagradas da verdade, herdada da filosofia tradicional. Também como Simmel ele reafirma a noção de tentativa e o caráter de excurso presentes no ensaio.7

Voltaremos a essas discussões acerca da natureza do gênero ensaístico assim que houvermos traçado um panorama da trajetória do ensaio e suas tradições distintas. O ensaio é um gênero moderno de origens pouco claras. No entanto, escrever ensaio é remeter-se a um fundador que, por séculos, preservou um legado extremamente potente na literatura européia: Michel de Montaigne. É a partir dos Essais que toda a tradição ensaística é estabelecida. Neste momento, o ensaio preserva uma conotação menos profunda e mais geral, que permanece como uma das alternativas de sua definição até os dias de hoje Signo por excelência do trabalho fragmentário e inconcluso, justamente por ser sua intenção primordial não concluir ou oferecer um sistema fechado de pensamento, a obra de Montaigne aparece como um livro em constante escrita, aberto, na tarefa de reatualização por que passaram as três edições alteradas pelo autor.8

Tendo a obra de Montaigne sido traduzida em 1603 para o inglês, foi no Reino Unido que o ensaio viria a florescer mais frondosamente e dar mais frutos de sabores um tanto distintos. Francis Bacon já adotara, nessa época, o termo ensaio para seus escritos, numa oposição ao estilo intimista e subjetivo de Montaigne. É, entretanto, sobretudo no século XVIII que o gênero se estabeleceu de forma privilegiada como mediadora dos anseios de uma sociedade civil em transformação, com suas correlatas formas de sociabilidade. Seu terreno fértil, a produção literária em periódicos, onde o conhecimento poderia ser vulgarizado e, com isso, generalizado o saber.9

É no Reino Unido que, ao longo do século XVIII, nasce a faceta jornalística do gênero ensaístico como um instrumento de público de divulgação de ideias que, por seu tom de inconclusão, deixava ao leitor a responsabilidade pela formação da opinião dos textos que digladiavam-se no espaço dos periódicos.

1164

No XVIII, na França, que o ensaio (no singular), em posse dos philosophes ganha uma conotação de estudo sistemático, sendo usado por Voltaire, por exemplo, na forma de ensaio histórico. Ao mesmo tempo, a mudança de linguagem cria também a possibilidade de compreender, como Diderot, o ensaio como um gênero de superficialidade. Em meados do XIX, já podemos identificar, em ambos os lados do Canal da Mancha, o desenvolvimento dos ensaios românticos - aqueles cuja missão é constituir "cenários convincentes de representação de uma cultura por ela mesma"10, ou seja, de dar conta do contexto, da cultura e da identidade de uma nação. Na França, Michelet é o grande nome dessa tradição, ao passo que na Inglaterra, Macaulay seria seu representante máximo. Ao fim do século XIX, já podemos notar a existência de múltiplas maneira de escrever ensaio e a formação de tradições nacionais algo amplas. Nicolazzi fala da formação de um cânone alemão, de um francês, de um inglês e de um espanhol: [...] se na Inglaterra a tradição ensaística assume, de maneira geral, as vezes de um discurso aberto e público sobre a cultura e na França ela passa a se ligar mais estreitamente à prosa da literatura como forma de crítica literária, na Alemanha trata-se de uma maneira particular de se fazer filosofia, cujo nome notável da segunda metade do século XIX é Nietzsche e, na primeira metade do XX, Walter Benjamin. Na Espanha, por outro lado, cultura dada à introspecção onde o gênero pareceu sempre gozar de boa reputação, ele se filia mais abertamente a uma tradição intimista e quase religiosa de pensamento, onde se coloca em primeiro plano, além da questão do “eu”, uma indagação vigorosa sobre a identidade cultural espanhola, em que se destacam nomes como Miguel de Unamuno e José Ortega y Gasset [...]11

Dessa forma, chegamos ao Brasil. O ensaio brasileiro, naturalmente, também tem uma gênese confusa mas é atribuído correntemente aos publicistas do período imediatamente préIndependência, dentre os quais os especialistas destacam o nome de Hipólito da Costa. Até as décadas finais do oitocentos, ensaio, no Brasil, aparecerá quase apenas como o ensaio jornalístico próximo àquele de gênese inglesa. A mudança brusca no uso do gênero virá apenas nos idos dos anos 1870, acompanhando o radical rearranjo conceitual que acontecerá a partir da chegada, ao Brasil, de um "bando de ideias novas", tão citado e referenciado. Um número crescente de autores, a partir de 1870, adotará o ensaio como forma de expressão de suas ideias, dentre os quais devemos citar, inicialmente, Euclides da Cunha, por ser o fundador do ensaio histórico brasileiro, e Silvio Romero, por sua campanha de incorporação do cientificismo da segunda metade do século XIX na pauta dos intelectuais brasileiros da época, além da suma importância, para esta análise, da publicação de sua Introdução (1882) e de sua História da Literatura Brasileira (1888). Do período subseqüente, podemos mencionar Gilberto Amado, Alberto Torres, Oliveira Vianna, Oliveira Lima, Rodolfo Garcia, Capistrano de Abreu, João Ribeiro, Vicente Licínio Cardoso, Jackson de Figueiredo e - por que não? -

1165

Rui Barbosa. André Moysés Gaio elenca duas características importantes desse ensaísmo histórico-sociológico pré-modernista - termo que toma emprestado de Alfredo Bosi: 1 - a despreocupação com o aspecto formal da exposição e uma prosa destituída de preocupações literárias; e 2 - a insatisfação com o período republicano ou com o acúmulo de erros seculares que não teve, na República, mudança de rumos.12 Algumas explicações sobre a disseminação do ensaio como forma de expressão do pensamento social, historiográfico e sociológico brasileiro já nos foram oferecidas ao longo da mais que centenária história do gênero no Brasil. Afrânio Coutinho (e, aqui, voltamos a falar de algumas concepções gerais acerca da natureza do gênero ensaístico) recuou à etimologia da palavra para destacar seu caráter inacabado e experimental. Chamou atenção para a brevidade dos textos do gênero e para sua ambição interpretativa. Mais a frente, tenta definir sua essência que, segundo ele: [...] Reside em sua relação com a palavra falada e com a elocução oral, como se depreende do estudo estilístico dos grandes ensaístas [...] É o estilo que marcha a passo com a o pensamento e o traduz, como um orador, sem nenhum intervalo, diretamente, do pensamento à palavra [...]13

Imbuído, portanto, do entendimento de Afrânio Coutinho acerca da natureza do gênero, Gaio sugere ser possível concluir que o mesmo "só foi incorporado como gênero textual pelos intelectuais brasileiros devido à decisiva presença da cultura oral no Brasil. Um deficiente sistema educacional e a presença tardia da Universidade poderiam justificar tal escolha".14 Entretanto, a explicação mais disseminada e de adesão massiva entre aqueles que já depositaram seus esforços acerca do tema é aquela fundada, talvez, por José Veríssimo e disseminada por Antônio Cândido. Para Antônio Cândido " o ensaio como gênero de escrita no contexto brasileiro remete à convergência formal entre os saberes constituídos no Brasil durante o final do século XIX"15. Roberto Ventura, seguindo na mesma linha de raciocínio, sugere, a partir da caracterização de José Veríssimo de seu tempo como um tempo de "espírito científico desespecializado16, que o que existiu foi “uma concatenação eclética de teorias e conhecimentos díspares, apresentados como saber ‘universal’ [...] Daí a importância do ensaio literário, histórico e cultural, como forma de expressão de letrados e bacharéis [...]”17. Luiz Carlos Jackson nos diz, em seu estudo sobre a sociologia de Antônio Cândido, que o crítico destaca, como forma típica de expressão do nosso pensamento, esta espécie de sincretismo entre literatura e sociologia: Não será exagerado dizer que esta linha de ensaio – em que se combinam com felicidade maior ou menor a imaginação e a

1166

observação, a ciência e a arte, – constitui o traço mais característico e original do nosso pensamento. Notemos que, esboçado no século XIX, ela se desenvolve no atual, onde funciona como elemento de ligação entre a pesquisa puramente científica e a criação literária, dando graças a seu caráter sincrético, uma certa unidade ao panorama de nossa cultura (Cândido, 1976, p. 130).

Ao longo de sua riquíssima, profunda e extensa obra, Antônio Cândido, construirá um argumento importantíssimo para os avanços dos estudos do ensaísmo historiográfico e sociológico brasileiro: o ensaio é a forma mais adequada que esses escritores da virada do século e do período subseqüente encontraram de efetuar a síntese sociológica que tanto almejavam. Ousemos, entretanto, analisar muito brevemente parte de sua argumentação acerca do ensaio - aquela relativa a constituição da sociologia brasileira - a fim de propor possíveis reflexões sobre a história do gênero no Brasil. Antonio Candido divide o processo de formação da sociologia no Brasil em três fases: a primeira, 1880-1930, marcada por estudos não especializados e voltados para interpretações globais do Brasil; a segunda, transitória, 1930-1940, é o momento de publicação dos ensaios histórico-sociológicos de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque e Caio Prado Jr.; a terceira, 1940 em diante, é a fase de “consolidação e generalização da sociologia como disciplina universitária” e da “produção regular no campo da teoria, da pesquisa e da aplicação” (Candido, 1957, p. 2107).18

Em 1958, ano seguinte a publicação de L’état actuel et les problèmes les plus importants des études sur les sociétés rurales du Brésil, citado por Jackson acima, Antônio Cândido publica a primeira edição de sua monumental Formação da Literatura Brasileira no qual "reconstrói a formação de nossa literatura como sistema e sugere que nela está a origem de nossa vida intelectual e artística; a crítica literária e o pensamento social aparecem inicialmente como gêneros literários e se autonomizam progressivamente."19 O argumento de Antônio Cândido, entretanto, desconsidera o estado da produção do conhecimento historiográfico. Àquela altura, como já afirmamos no princípio deste trabalho, coexistiam múltiplas experiências do tempo histórico e múltiplos regimes de legitimação de sua escrita que se arranjavam mais ou menos desigualmente. Na análise - quase estrutural - do desenvolvimento da disciplina sociológica que Antônio Cândido produz é possível localizar o ensaio como a manifestação de uma fase específica da evolução disciplinar. Mas o mesmo é inviável, para nós, se considerarmos as variadas possibilidades de escrita da história no mesmo período. Uma possível saída é aquela sugerida por Fernando Nicolazzi ao estudar historiograficamente o ensaísmo em Gilberto Freyre. Discutamos, na parte final deste trabalho, alguns dos possíveis planos de ação para uma análise do ensaísmo, que é também historiográfico, frente a multiplicidade da experiência da escrita da história. 1167

Um gênero em disputa Nicolazzi a partir de sua leitura de vários dos autores aqui mencionados, em especial Antônio Cândido e Roberto Ventura, e de Marielle Macé, desenvolverá uma hipótese acerca do ensaísmo brasileiro. Macé sugere, Nicolazzi nota, que na França por volta de 1900 o ensaio emerge como produto eminentemente literário, isto é, ligado àquilo que, talvez de uma maneira imprecisa mas por ora suficiente, é definido como discurso da literatura, como uma estratégia de manutenção do valor dessa forma discursiva diante da ascensão de outros campos de saber.20

O final do século XIX é, também na França, momento de demarcação de fronteiras intelectuais e institucionais, além de período de compartimentação das disciplinas e áreas cada vez mais numerosas. Nesse contexto, "o ensaio aparece [...] não apenas como gênero de linguagem, mas como instrumento de escrita adequado para o intuito de reafirmação do campo literário diante de outros espaços de saber". Em outras palavras, o ensaio aparece como dispositivo de manutenção da centralidade da literatura na constituição do saber. O processo em sentindo inverso ocorrerá no Brasil, por um lado. Silvio Romero, em fins do século XIX, já buscava reafirmar a centralidade da literatura na compreensão do espírito nacional com base em uma longa tradição fundada em Gonçalves Magalhães. Magalhães, em seu "Discurso sobre a história da literatura do Brasil", publicado em 1836, na revista Niterói, nos diz: A literatura de um povo é o desenvolvimento do que ele tem de mais sublime nas idéias, de mais filosófico no pensamento, de mais heróico na moral, e de mais belo na natureza; é o quadro animado de suas virtudes e de suas paixões, o despertador de sua glória, e o reflexo progressivo de sua inteligência; e quando esse povo, ou essa geração, desaparece da superfície da terra com todas as suas instituições, crenças e costumes, escapa a literatura aos rigores do tempo para anunciar às gerações futuras qual fora o caráter e a importância do povo, do qual é ela o único representante na posteridade.21

Essa noção de literatura como "o único representante da posteridade" é uma das condições que Hans Ulrich Gumbrecht, nos lembra Rodrigo Turin, elenca como prévia e basilar para a constituição de uma história de uma literatura nacional. Romero, ao tentar conferir novos ares, sob a égide de seu tempo, a centralidade e a suficiência a literatura como a representante do espírito brasileiro - além de sua excepcionalidade em relação ao material semântico ordinário - o faz alargando a história literária para abranger tanto o cânone literário e o conjunto de arquivos-texto erguidos pelos românticos quanto o cientificismo de sua época.

1168

Por outro lado, ao mesmo tempo que Silvio Romero advogaria a centralidade da literatura no processo de produção de uma síntese que abarcasse a cultura brasileira como um todo, projeto que depois seria também abraçado pela ABL, com sua fundação em 1897, Capistrano de Abreu tecia suas críticas a Varnhagen, a quem faltou "espírito plastico e sympathico", já que "a história do Brasil não se lhe afigurava um todo solidário e coerente". Faltava a obra de Francisco Adolfo de Varnhagen o "facho luminoso", sem o qual "elle não podia vêr o modo por que se elabora a vida social".22 Capistrano, não apenas em sua crítica a Varnhagen, expressava a necessidade de modernizar (não com esse termo) o conhecimento historiográfico por meio da síntese sociológica. Advogava, em outros termos, a centralidade do conhecimento histórico na interpretação do Brasil a partir da incorporação dos avanços mais recentes da ciência sociológica, dentre outras. Piero Detoni demonstra, em sua dissertação de mestrado A síntese como desafio historiográfico na Primeira República: pequenos estudos de caso23, como esse ensejo de síntese era mais antigo do que o próprio Capistrano e que encontraria dentre seus grandes defensores um Oliveira Vianna, um Pedro Lessa e um Rocha Pombo. O próprio Capistrano seria avaliado como ele avaliara Varnhagen, ironicamente. Ainda que sua crítica a Varnhagen tenha recaído sobre o caráter não sintético da obra do Visconde de Porto-Seguro, muitos autores lamentam o exato mesmo sobre a obra do historiador cearense. José Veríssimo, na resenha dos Capítulos de História Colonial, lamenta que a obra não é ainda "completa e definitiva (quanto uma história pode ser)". Silvio Romero é mais amargo: nós mesmos, durante mais de trinta anos, nos deixamos iludir, e chegamos a esperar, com ansiedade, a História do Brasil, prometida por Capistrano. Sabiamos que êle é grande conhecedor dos nossos fatos históricos [...] Mas, após dez anos de espera, reconhecemos que o seu saber é puramente micrológico e de minúcias, sem relêvo de espécie alguma24

O conhecimento historiográfico procurava repaginar-se e viria a fazê-lo nas décadas seguintes sob a forma dos ensaios históricos da historiografia da formação. A aproximação entre ensaio e síntese sociológica efetuada por Antônio Cândido abriu a seara, via sociologia e crítica literária, para o estudo da importância da tradição ensaística no pensamento nacional. Mapear, entretanto, as disputas no entorno do gênero, reivindicado por duas tradições distintas na virada do século XIX para o XX, faz-se mister frente a tendência de tratar das dinâmicas das disciplinas que se constituíram, neste período, de forma múltipla e recheada de simultaneidades. O próximo passo é meter as mãos e pés na lama e escrutinar

1169

todas as relações promíscuas entre não apenas historiografia, síntese, sociologia, literatura e ensaio, mas também entre todos esses fatores e a formação, o caráter missionário da literatura da Primeira Republica25 e as mudanças de linguagem26 que viriam a se efetuar, num momento posterior, com o Modernismo. Desta maneira, seremos capazes de melhor compreender a frutífera produção historiográfica brasileira entre o final do século XIX e a metade do século XX.

1

ARAÚJO, Valdei Lopes de. "Historiografia, nação e os regimes de autonomia na vida letrada no Império do Brasil". Varia Historia, Belo Horizonte, vol. 31, n. 56, p. 365-400, mai/ago 201. 2 Ver ARANTES, Paulo Eduardo & ARANTES, Beatriz Fiori. Sentido da Formação: Três Estudos sobre Antonio Candido, Gilda de Mello e Souza e Lúcio Costa, Rio Janeiro Paz e Terra, 1997. 3 Faço referência ao título (A memória de um gênero) de uma das sessões da terceira parte da tese de Nicolazzi, op.cit. que, por sua vez, faz referência um trecho da obra de Marielle Macé. 4 SANCHES, Dalton."Entre formas hesitantes e bastardas: ensaísmo, modernismo e escrita da história em Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda (1920-1956)". Dissertação de Mestrado. Orientador: Prof. Dr. Fernando Felizardo Nicolazzi. Programa de Pós-Graduação em História. Universidade Federal de Ouro Preto, Mariana, 2013. p. 17 5 OVIEDO, José Miguel. Breve historia del ensayo hispanoamericano. Madrid: Alianza Editorial, 1990. p. 12 6 OVIEDO, op. cit., p. 14 7 GAIO, André Moysés. Modernismo e Ensaio Histórico. São Paulo: Cortez, 2004. p. 12 8 NICOLAZZI, Fernando Felizardo. "Um estilo de história : a viagem a memória, o ensaio, sobre Casa-grande & senzala e a representação do passado". Tese de Doutorado. Orientador: Temístocles Américo Correa Cezar. Programa de Pós-Graduação em História. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2008. p. 308 9 NICOLAZZI, op. cit., p. 308 10 NICOLAZZI, op. cit.,p. 311 11 NICOLAZZI, op. cit., p. 313 12 Ver GAIO, op. cit., p. 22 13 GAIO, op. cit., p. 15 14 GAIO, op. cit., p. 16 15 NICOLAZZI, op. cit., p. 315 16 Ver SANCHES, op. cit., p. 71 17 VENTURA apud SANCHES, op. cit. p. 72 18 JACKSON, Luiz Carlos. "A Tradição esquecida: estudo sobre a sociologia de Antonio Candido". Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, vol. 16, n. 47. p. 128-140, Outubro de 2011. p. 134 19 JACKSON, op.cit., p. 134 20 NICOLAZZI, op. cit., p. 314 21 MAGALHÃES apud TURIN, Rodrigo. Narrar o passado, projetar o futuro: Sílvio Romero e a experiência historiográfica oitocentista. Dissertação de Mestrado. Orientador: Temístocles Américo Correa Cezar. Programa de Pós-Graduação em História. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005. p. 51 22 ABREU apud NICOLAZZI, op. cit., p. 322 23 Ver DETONI, Piero di Cristo Carvalho."A síntese como desafio historiográfico na Primeira República. Pequenos estudos de caso". Dissertação de Mestrado. Orientador: Prof. Dr. Mateus Henrique de Faria Pereira. Programa de Pós-Graduação em História. Universidade Federal de Ouro Preto, Mariana, 2013. 24 ROMERO apud NICOLAZZI, op. cit., p. 323 25 Ver SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. 2ª ed., São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 26 Ver SEVCENKO, Nicolau. "Transformações da linguagem e advento da cultura modernista no Brasil". Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 6, n. 11, 1993, p. 78-88.

1170

SALDANHA MARINHO NO DIÁRIO DO RIO Um liberal histórico no debate político em 1860 IETE CHEREM LEVY (PPGH-UERJ) Orientadora: LÚCIA BASTOS PEREIRA DAS NEVES Co-orientador : ALEX VARELA E-mail : [email protected]

RESUMO: O artigo tem por objetivo analisar o posicionamento político de Joaquim Saldanha Marinho como publicista na redação do Diário do Rio de Janeiro entre 1860-1865. Trabalharemos com a ideia de que Saldanha Marinho, na busca de visibilidade política, fez uso do espaço público, a imprensa na veiculação de críticas à monarquia. Este ator político mobilizava-se na estratégia de defesa das ideias liberais e na formação de uma opinião pública. Nos seus editoriais, a presença de outras vozes liberais como a de Landulfo Medrado, politico baiano, trechos da folha Atualidade e do Correio Mercantil. Traçando assim uma rede de publicistas e de políticos interessados na luta contra a dominação saquarema.

Neste artigo nosso objetivo é analisar as narrativas politicas construídas por Joaquim Saldanha Marinho, principal redator do Diário do Rio de Janeiro, entre 1860 e 1865. Joaquim Saldanha Marinho nasceu em Pernambuco em 1816. Teve uma educação clássica para a época, pois estudou Direito na Escola de Recife. Possuidor do titulo de bacharel em Ciências Sociais e Jurídicas em 1836. Sua trajetória profissional é emblemática, pois de posse desse capital escolar, Saldanha circulou por algumas províncias (1). No Ceará, por exemplo, exerceu o cargo de promotor público, professor de geometria, secretário de governo e deputado provincial. Já em 1848, ele foi eleito deputado à Assembleia Geral Legislativa na corte do Rio de Janeiro. Nesta eleição seu nome associava-se ao Partido Liberal. Com a anulação da eleição, Saldanha se afasta para o interior da corte, Valença, com receio de alguma perseguição de seus adversários políticos. Em Valença, exerceu seu trabalho de advogado, o que lhe deu certa

1171

independência material, porém exerceu alguns cargos políticos, como presidente da câmara municipal, juiz de paz e ainda trabalhos no âmbito da filantropia, associados à sua participação na maçonaria. Um espaço em que galgou a posição de Grão-mestre, na difusão de ideias de civilização para o país. (2) Da experiência de viver no interior, por doze anos, até sua volta à corte num novo contexto politico. Seu ressurgimento, num novo ambiente para os liberais, no momento em que a conciliação mostrava esgotamento. (3) Alguns nomes de liberais históricos voltavam a cena politica, resgatando antigas bandeiras como a descentralização administrativa, experiência vivida nos tempos da Regência. De fato, o partido liberal, desde o fracasso das revoluções de São Paulo e Minas Gerais, em 1842, e da Revolução Praieira, em 1848, tinha perdido espaço politico, como Ilmar de Mattos nos explica, o partido conservador entre 1841-1850 realizou a obra de centralização do Estado, imputando aos liberais uma dupla derrota: no campo da batalha e no campo jurídico-administrativo (4). Esse momento é rico em representações, em que cada individuo descreve suas ideias e sua própria luta politica. Nos textos políticos escritos por Saldanha, há uma marca constante: a fala de um luzia contra o governo dos saquaremas, principalmente quando o partido liberal se encontrava fora do poder. A imprensa serviu de espaço para a voz dos liberais se difundir, no momento de novas eleições, em 1860-1861, como por exemplo, a publicação da circular aos eleitores mineiros escrita pelo experiente politico do partido liberal, Teófilo Ottoni, teve repercussão pelos “Constitucionais” do Jornal do Comercio: “O Sr. Teófilo Ottoni a sair do isolamento e proclamar-se Chefe do Partido Liberal, tomando a dianteira dele e dando-lhe um alcorão politico.” (5). Segundo Valdei Lopes de Araujo, Ottoni pode ser visto, neste momento, como um aglutinador de forças entre os liberais. (6) Sua circular uma espécie de orientação politica para os novos representantes do partido. Segundo Jose Murilo de Carvalho, a conciliação provocou um impacto no campo do debate politico, na medida em que os novos participantes produziram textos políticos nesta nova luta: circulares, panfletos, saindo do prelo e provocando “o ruído publico”; além de jornais que representavam por trás das penas dos redatores, os partidos. (7) Novos comportamentos políticos se delinearam no decorrer de 1860. Neste

1172

sentido, mobilizaremos um conceito de imprensa que se interligava à renovação das abordagens da historia politica. A ideia de que o politico tem consistência própria e certa autonomia em relação a outras instancias. (8) A imprensa como fonte e como objeto de estudo, na medida em que enuncia discursos e expressões de atores políticos, enquanto agentes que intervém nos processos e fatos políticos, na construção da Historia Nacional. (9) Saldanha ao escrever seus editoriais, forjava uma identidade politica. O Diário do Rio era folha de opinião na sua critica ao governo de D. Pedro II e ao Poder Moderador. O jornal era sua tribuna, na busca de visibilidade. No ano de 1860, a frente do Diário do Rio, ele procurava o eleitor-leitor. Nos seus editoriais, a estratégia de dar espaço aos colegas-redatores, liberais históricos como ele, representantes de uma rede de amigos que se referenciavam. Panfletos e circulares saiam do secreto para o debate publico. Como o panfleto de Landulfo Medrado, “A viagem do Imperador às províncias do norte.” Ao mobilizar os conceitos de democracia e monarquia, Saldanha perguntava ao seu publico-leitor: “Qual deles ameaça invadir, ou invade já realmente, os domínios do outro? (...) a ideia monárquica.” (10) Como Ilmar nos ensina, o conceito de democracia associava-se ao de descentralização politica, ou seja, o poder seria distribuído por cada grupo em seu âmbito provincial. Projeto que foi derrotado pela dominação saquarema. (11) Inicialmente, o foco da crítica eram as pompas dos cortesãos e os gastos da viagem. Landulfo responsabilizava os conselheiros do Imperador que lhe deram o conselho errado. Nas páginas do Diário do Rio, a publicação de um trecho do Correio Mercantil, do redator Francisco Otaviano, liberal histórico que também criticava os títulos de nobreza distribuídos pelo monarca: “Não: as graças da monarquia tinham só de recair no homem honesto e laborioso (...) por outro lado, o simples fato de ser deputado ou senador (...) não constitui direito a ser agraciado.” (12) O Diário do Rio também funcionava como divulgador de obras que endossavam o pensamento do Partido Liberal. Por exemplo, o folheto

1173

“Da natureza e limites do Poder

Moderador” de Zacarias de Góes e Vasconcelos, na defesa da necessidade

de

responsabilidade ministerial como fundamental para o equilíbrio dos poderes constituídos: “Recomendamos a leitura desse belo trabalho, que elucida com ciência e brilho a tese que sustentamos da responsabilidade dos ministros.” (13) Saldanha abria o editorial do dia 2 de maio na defesa das ideias de Zacarias, defendendo-as contra o redator do Jornal do Comércio, de caráter oficial: “A teoria da não admissão do abuso no poder moderador é tão absurda: Esse homem (...) pode errar (...) O poder Executivo tem o corretivo na responsabilidade dos ministros.” (14) Em seguida, o redator do Diário do Rio dava espaço para a publicação de trechos da circular do outro liberal Felix Xavier da Cunha, candidato à Assembleia Geral pela província do Rio Grande do Sul. Um dos argumentos dizia respeito aos princípios democráticos, novamente relacionados com a distribuição do poder politico, na sonhada descentralização: “A autonomia das províncias, e o que quer dizer – a emancipação à vassalagem da corte.” (15) Concluímos que Saldanha participou com seus editoriais na critica à monarquia experimentada naqueles vinte anos após o golpe da maioridade. Sua “critica é de cunho reformista, já que ele acreditava no “justo meio”, ou seja, negava o absolutismo, mas ainda não acreditava no ideal do republicanismo, segundo ele, pouco estudado entre nós .Sendo assim um defensor da Monarquia Constitucional em que o povo, através do voto, teria a liberdade de escolher os seus representantes. Através da imprensa, discutiu o que na sua visão era preciso mudar: as fraudes, os interesses privados em detrimento dos interesses públicos e, principalmente, o arcabouço saquarema, no que diz respeito aos quatro poderes e outros. Em 1870, Saldanha já dava outro tom aos seus escritos, abandonava a opção pela monarquia, acusando-a de não democrática e despótica, rumo ao horizonte republicano.

1174

NOTAS: 1. BLAKE, Augusto Vitorino Alves Sacramento – Dicionário bibliográfico brasileiro – Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, quarto volume, 1898, p237 a p241; 2.

1

3.

1

SILVA, Inocêncio Francisco da - Dicionário bibliográfico português - Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, Tomo 12, 1884, p141 a p145; ARAUJO, Valdei Lopes de - “Teófilo Benedito Ottoni; - Visibilidade e espera publica no Brasil oitocentista” – IN: PRADO, Maria Emília (org.). O estado como vocação: Ideias e praticas politicas no Brasil oitocentista. – Rio de Janeiro – Acess Editora, 1999, p. 178.

4. MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo Saquarema; 60 edição, São Paulo: Hucitec Editora, 2011, p. 142 a p. 204. 5. Jornal do Comercio, 30 de outubro de 1860, p1, Comunicado: Para onde vamos? 6. ARAUJO, Valdei Lopes de. Op. cit, p178; 7. CARVALHO, Jose Murilo de – “Liberalismo, radicalismo e republicanismo nos anos 60 do século XIX”, Centre for Brazilian Studies, University of Oxford: working paper 87, p.87 a p.22 e MOTA, Silvana Barbosa da – “Panfletos vendidos como canela”: Anotações em torno do debate politico nos anos 1860; IN; CARVALHO, Jose Murilo de (org.) Nação e cidadania no Império – Novos Horizontes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 156. 8. REMOND, Rene – Por uma historia politica. Tradução Dora Rocha, 2a Edição, Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003, capitulo um; 9. MOREL, Marco e BARROS, Mariana Monteiro de – Palavra, Imagem e Poder: o surgimento da imprensa no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro; DP&A Editora, 2003; 10. Diário do Rio de Janeiro, 13 de maio de 1860; 11. MATTOS, Ilmar Rohloff de – op cit, p169 12. Diário do Rio de Janeiro, 28 de maio de 1860; 13. Diário do Rio de Janeiro, 14 de julho de 1860; 14. Diário do Rio de Janeiro, 2 de maio de 1860; 15. Diário do Rio de Janeiro, 27 de julho de 1860;

1175

Projetos de sociedade e referências externas: a presença francesa em publicações luso-brasileiras (1808-1840) Inoã Pierre Carvalho Urbinati* O século XIX foi um período conhecido, na história brasileira, pelo forte predomínio cultural da França entre as camadas letradas do Brasil Imperial. Numerosos pesquisadores têm destacado em seus trabalhos esse predomínio, que alcançou diversos setores: a literatura, a imprensa, a moda, a filosofia, etc. No plano político, é conhecida a influência exercida pela França, e desde o final do século XVIII o francês já concorria com o latim como língua culta e obras publicadas em francês tornavam-se freqüentes nas bibliotecas coloniais1. Após o fim das guerras napoleônicas, chegou ao Brasil a Missão Artística Francesa, com artistas como Debret. Nelson Shapochnik, focalizando a Biblioteca Pública da Corte – a atual Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro -, registrou o elevado número de publicações francesas pedidas pelos leitores.2 Tânia Bessone apontou a presença francesa nas bibliotecas particulares de médicos da Corte3. A influência francesa manifestou-se, também, no setor agrário e nos projetos voltados para tal setor. Diversos documentos – como relatórios ministeriais, periódicos, diários, etc – atestam essa presença. Aqui nos interessamos especialmente pelo registro de referências à França – a pensadores franceses ou a aspectos da sociedade francesa – em publicações da primeira metade do século XIX, em questões referentes à sociedade e a economia do mundo luso-brasileiro – em pleno contexto de formação e consolidação do Estado brasileiro -, e particularmente na área agrária, considerando-se, inclusive, que a agricultura era o setor econômico e social hegemônico na América portuguesa. Nesse trabalho abordaremos uma publicação do Visconde do Cairu e edições do periódico Auxiliador da Indústria Nacional. José da Silva Lisboa, o Visconde de Cairu é conhecido por ter sido um ardente defensor do liberalismo no Brasil oitocentista, tendo, ao que consta, exercido importante papel na decisão de Dom João de declarar a abertura dos portos às “nações amigas”, em 28 de janeiro de 1808. Funcionário régio, o visconde ascendeu socialmente e tornou-se pessoa influente sob os reinados de Dom João VI e de Dom Pedro I, tendo escrito diversos textos. Em Observações sobre o comércio franco no Brasil – o primeiro publicado no Brasil, logo após o fim da proibição de impressão *

Doutor em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Atualmente trabalha na pesquisa de pós-doutorado “Referências francesas em publicações luso-brasileiras e seu impacto no Oitocentos”, sob a coordenação da Professora Doutora Tânia Maria Bessone da Cruz Ferreira, com bolsa financiada pela Faperj. E-mail: [email protected]

1176

na América portuguesa -, Cairu enaltece o liberalismo econômico, defendendo a abertura dos portos e apoiando entusiasticamente a aliança do mundo luso-brasileiro com a Inglaterra. Ora, na obra, o visconde, se faz constante referência aos britânicos, não deixa de referir-se diversas vezes à França, ainda que frequentemente sob um olhar fortemente crítico. Nos propomos, com base nos dados que nos foi possível coletar até agora, perceber em que medida as alusões à França operaram uma posição de contraponto à Grã-Bretanha, de modo a realçar as qualidades da segunda, ainda que em diversos momentos pensadores franceses tenham sido elogiados pelo visconde. O Auxiliador da Indústria Nacional, por sua vez, constituiu o órgão impresso da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional (SAIN), entidade fundada oficialmente em outubro de 1827, com apoio do governo imperial. O periódico, que passou a circular em outubro de 1833, está facilmente acessível para consulta, estando inserido na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Formado por membros influentes da elite imperial, a instituição se propunha apresentar e debater alternativas de aperfeiçoamento e de modernização da economia nacional, especialmente a agricultura. A SAIN, até o final do regime monárquico, exerceu influência, contribuindo para a organização das chamadas Exposições Nacionais e assessorando o governo em questões econômicas. A entidade bateu-se pela adoção de métodos agrícolas inovadores com base nas experiências de outros países, com destaque para a França, e que procuraremos mostrar adiante. José da Silva Lisboa, o Visconde de Cairu, nasceu em Salvador em 1756, filho de Henrique da Silva Lisboa, português técnico em edificações 4 e de Helena Nunes de Lisboa5, natural da América portuguesa. Seu irmão, Baltazar da Silva Lisboa, foi juiz de fora no Rio de Janeiro no final do século XVIII, tendo sido – de acordo com Afonso Carlos Marques dos Santos em No rascunho da nação: Inconfidência no Rio de Janeiro – influenciado pelo iluminismo. Em 1778, após quatro anos de curso, José Lisboa concluiu na Universidade de Coimbra estudos “jurídicos e filosóficos”, conquistando a aptidão para exercer o cargo de professor de grego e de hebraico, e em 1779 obteve o bacharelado em Direito Canônico e Filosofia6. Após exercer o cargo docente em Lisboa, retornou à Bahia, onde trabalhou como professor e, em 1797, recebeu da Coroa o cargo de Deputado e Secretário da Mesa de Inspeção da Agricultura e Comércio da Cidade da Bahia. “Assim, de 1797 a 1808, Silva Lisboa foi funcionário de um órgão encarregado de fiscalizar e promover a agricultura e o comércio de Salvador7”. E foi nesse período

1177

que o futuro visconde publicou seu primeiro trabalho, Direito Mercantil e leis da marinha, em dois volumes, pela Régia Oficina Tipográfica de Lisboa, em 1798 8. Segundo Penalves Rocha, foi nessa época que Lisboa teria adquirido suas convicções liberais, com base, destacadamente, em Adam Smith e As Riquezas das Nações (ROCHA, 2011). Em 1804, publicou Princípios de Economia Política9. A trajetória de José da Silva Lisboa mudou decisivamente em 1808, quando chegou à América portuguesa a Família Real, que aqui veio refugiar-se da invasão francesa a Portugal. O liberal baiano teria tido papel de grande importância não somente na decisão do príncipe regente de declarar – quando de sua estada em Salvador, logo após chegar à colônia portuguesa - a abertura dos portos às nações amigas, mas também, de acordo com Lúcia Bastos, na decisão de Dom João de criar um pioneiro curso de economia política, no Rio de Janeiro. O curso foi confiado à Silva Lisboa, mas por razões diversas, não chegou a ser implantado. Não obstante, Lisboa conheceu uma ascensão marcante ao longo do período Joanino, ocupando cargos estratégicos para a difusão de uma cultura livresca. De fato, o liberal integrou a Junta Diretora da Impressão Régia, ocupando o cargo de censor régio; integrou também a Real Junta do Comércio e Agricultura, Fábricas e Navegação; foi deputado da Mesa do Desembargo do Paço e da Consciência e Ordens. Observe-se que o baiano exerceu cargos importantes relacionados às questões econômicas, e inclusive da agricultura. Vale lembrar, aliás, que a Mesa do Desembargo do Paço foi o órgão ao qual se atribuiu, após a transmigração da Corte ao Brasil, a política relativa às sesmarias (cujo regime foi formalmente extingo em 17 de julho de 182210). José da Silva Lisboa igualmente atuou como magistrado, alcançando a posição de chanceler da Relação da Bahia. Enfim, no plano político propriamente dito, foi deputado na Assembleia Constituinte do recémproclamado Império do Brasil, em 1823, e foi senador vitalício, de 1826 até seu falecimento em 1835. Próximo dos monarcas, foi feito barão em 1825 e em 1826 visconde de Cairu por Pedro I. De acordo com Lúcia Bastos, sua posição era a de um monarquista, defensor da Monarquia constitucional, opondo-se às “propostas mais democráticas veiculadas desde a Revolução Francesa”. Segundo a pesquisadora, o visconde, integrante da geração de 1790, “representou um dos mais bem acabados modelos de burocrata do Império nascente, guiado pelos ideais do absolutismo ilustrado11”. Penalves Rocha, por seu turno, destacou o seu vínculo com a sociedade do Antigo Regime, ao seio da qual se formou. Convém, ainda, destacar seu posicionamento

1178

frente à escravidão. Para Bastos, Cairu mostrou-se, “de maneira moderada”, contrário à manutenção da escravidão12. Além disso, publicou ao longo do período Joanino e do início do Império inúmeros textos. A imagem de Cairu na historiografia brasileira variou bastante desde o século XIX. Já nos Oitocentos, se houve retratos negativos do mesmo por parte de contemporâneos a ele opostos politicamente, segundo Penalves Rocha, por outro lado, se forjou a sua imagem de um eminente estadista. No século XX, imagens negativas foram expostas por diversos pesquisadores, alguns tendendo a ver no personagem um mero bajulador da Monarquia, uma figura subserviente ao poder. Nas últimas décadas, nos diz Lúcia Bastos, as análises tenderam a demonstrar a complexidade do personagem, e o próprio Penalves Rocha valorizou a atuação do visconde. A obra de José da Silva Lisboa que abordamos aqui, Observações sobre o comércio franco no Brasil, corresponde ao primeiro livro legalmente impresso no que hoje é o Brasil, de 1808. A publicação, se de um lado é impregnada por uma forte anglofilia, por outro, deixa transparecer claramente uma série de referências à França, e o modo como o autor o faz é que nos interessa aqui. Convém observar que Lúcia Bastos ressaltou duas influências marcantes no visconde: o inglês Edmund Burke e o iluminista francês Montesquieu. Ao longo de seu texto, Cairu faz uma apaixonada defesa da aliança do mundo luso-brasileiro com a Inglaterra, e enaltece o liberalismo econômico como política a ser adotada. A abertura comercial, a liberdade de comércio com as nações amigas – sobretudo a Grã-Bretanha – perpassa grande parte dos escritos. O baiano alude diretamente a pensadores britânicos, com destaque para Adam Smith, e faz uma defesa vibrante da sociedade e da economia da nação britânica. De outro lado, percebe-se uma forte crítica à França: ao expansionismo militar, mas também a aspectos econômicos. A frequência com que aparecem referências francesas é tal, que se pode mesmo pensar que o autor inseriu tais referências como contraponto, de modo a melhor sustentar, pela crítica à nação adversária, a Inglaterra. Nesse ponto, o contexto, cuja importância foi tão bem enfatizada por Quentin Skinner13 para a abordagem dos documentos históricos, é fundamental, visto que a França napoleônica era então potência rival da Inglaterra e inimiga da monarquia bragantina, da qual José da Silva Lisboa era grande defensor e servidor público. O escritor não era contra tudo o que viesse da França, mas criticava a

1179

“idolatria gaulista” e pedia maior proximidade e atenção com a Inglaterra. No trecho adiante, a posição de Cairu frente aos dois países rivais fica bastante clara: Não há dúvida que o idioma gálico, se acha honrado com as imortais obras de Montesquieu, Buffon, Lavoisier. Também D’Alembert e Laplace serão sempre grandes mestres nas matemáticas. Porém, em moral, história, economia e política, e ainda em poesia, a literatura inglesa é incontestavelmente mais sólida e profunda, e a francesa é, em muitos, superficial e leviana, e em outros, pior que o inútil. Muitas frases, poucas ideias, constituem, em geral, o fundo dos livros desta nação14.

Na relação de pensadores franceses citados, nota-se a referência a grandes nomes do Iluminismo. Se o futuro visconde de Cairu admirava filósofos franceses setecentistas, por outro lado, dissociava-se abertamente do que ele chamava de “seita fisiocrática15”. E se, como se vê, a nação francesa era alvo de fortes críticas, o liberal apoiava parte de sua argumentação também em autores franceses, inclusive – note-se bem – para enaltecer a Inglaterra. Assim, citou ele nomes como os de Jean-Baptiste Say (1767-1832) – figura essencial no surgimento da chamada Economia Política, de grande influência – e o Abade Raynal (autor que abordou a política colonial europeia e que teria inspirado lusobrasileiros em outros contextos, tendo inclusive, ao que parece, sido lido por letrados cariocas integrantes da chamada Conjuração Carioca de 1794) e o “celebrado autor do Espírito das leis16”, isto é, Montesquieu (1689-1755). É interessante, ainda, observar que ele citou um longo trecho de Talleyrand17, no qual este reconhecia a força da nação britânica em várias áreas. Percebemos, então, que Cairu fundamentou parte expressiva de seu texto fazendo alusões a França, aos seus pensadores ou a aspectos de sua vida política e econômica – neste caso, geralmente de forma crítica ou mesmo dura. Bem diverso é o modo como as referências francesas aparecem em O Auxiliador da Indústria Nacional. A publicação, que teve como seu primeiro redator o engenheiro Frederico Leopoldo César Burlamarqui, constituiu, como se disse, o órgão impresso da SAIN, esta fundada oficialmente em outubro de 1827 por Inácio Álvares Pinto de Almeida, negociante do Rio de Janeiro e fidalgo da Casa Imperial18. A proximidade com o poder monárquico foi uma característica marcante da nova entidade que, embora de natureza privada, foi integrada à estrutura da Secretaria de Negócios do Império, passando a receber uma dotação do Tesouro. Em 1861, com a criação do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, a SAIN passaria a integrar a estrutura do novo ministério 19. Propondose aperfeiçoar a indústria nacional, a sociedade pautaria-se, durante o Império, por um

1180

conceito amplo de indústria, e a ela coube a organização das Exposições Nacionais realizadas durante o Segundo Reinado. Segundo Lúcia Paschoal Guimarães, o termo indústria significaria “o conjunto de operações que concorrem para a produção de riquezas20”. Somente mais tarde o foco recairia nas atividades fabris propriamente ditas, já na República, quando a SAIN fundiu-se com o Centro de Fiação e Tecelagem de Algodão, originando o Centro Industrial do Rio de Janeiro (CIRJ), em 1904. Ao longo de sua atuação em prol de uma modernização da economia nacional, a SAIN dedicou atenção maior, portanto, ao ramo agrícola, e o fez, inclusive, divulgando as “últimas novidades do mundo das máquinas, traduzidas de periódicos norteamericanos, ingleses e franceses”. Tal atitude pode ser relacionada, acreditamos, ao movimento, forte entre as camadas letradas do Brasil imperial, de buscar inserir o país em padrões civilizatórios europeus. Autores como Jean Starobisnki 21 mostraram como o conceito de Civilização, originalmente relacionado à noção de abrandamento e refinamento dos costumes ganhou a partir do século XVIII uma conotação mais ampla, com implicações ideológicas. De acordo com Martha Abreu, o termo passou a expressar, também, o “desenvolvimento artístico, tecnológico, científico e econômico da humanidade, ou ao menos de uma parte dela, que se considerava superior 22”, e nesse processo, a França e a Inglaterra teriam desempenhado um papel fundamental, constituindo-se em referências na crença no avanço da humanidade para a civilização e o progresso. Não por acaso, os dois países foram bastante mencionados no texto de Cairu, conforme visto, embora de forma distinta. No caso da SAIN, a França aparece com grande destaque, tida como modelo a ser seguido, inclusive na área agrícola. Destaque-se, ainda, o contexto: as guerras napoleônicas haviam terminado, e a França, não mais adversária do mundo luso-brasileiro, emergia com força junto às elites do Brasil imperial. Junto com a defesa de um aperfeiçoamento da economia e, sobretudo da agricultura, a entidade pregou a extinção da escravidão, mas com argumentos de ordem principalmente econômica, em que o custo de manter o trabalho em bases “livres” parecia mais racional, do ponto de vista econômico, do que o trabalho escravo23. A análise das edições de O Auxiliador revela uma forte presença francesa: não apenas exemplos de inovação técnica no mundo agrícola vindos da França eram comentados, como trechos inteiros de textos provenientes de publicações francesas eram transcritos. Na edição 2, do ano de 1834, por exemplo, verifica-se abundante referências. Assim, foi transcrito entre as páginas 39 e 44 um “método de elaborar o anil

1181

na Índia, e no Senegal, extraído da obra do Marquês de Fougère. Já entre as páginas 49 e 52 consta um texto sobre a “Utilidade, que se pode tirar do farelo na fabricação do pão”: o texto foi baseado, pelo que é informado ao final do artigo, no Journal des Connaissances Utiles (3º ano), e nele a referência francesa é bem clara, como se percebe no trecho seguinte: M. Herpin, rua das Belas-Artes n. 5, em Paris, alcançou uma Patente sobre o invento, para a extração da farinha de cevadinha contida na fabricação dos cereais, que ajuntando-se na manutenção do pão por meio de uma água de lavagem, aumenta as qualidades nutritivas, e o peso em uma grande proporção. A Patente de M. Herpin, parece ser contestável, porque o número do Journal des Connaissances utiles, de Dezembro de 1834, apresentou processo igual. Todavia, a brochura que publica M. Herpin contém cálculos, que pareceram justos e dignos de serem consignados aqui24.

Ainda na edição 2 de 1834 de O Auxiliador , há um artigo intitulado “Meio de cada um pagar as suas contribuições sem aumentar o número de terras25”, com base no periódico francês Père de Famille. É significativa, aliás, tal referência, uma vez que a França oitocentista se destacou pela implantação do imposto territorial: instituído em 1790-91 durante a Revolução Francesa, o imposto ganharia uma base sólida com a efetivação do cadastro territorial, iniciado em 1807 sob Napoleão I. Ora, o referido imposto constituiu uma importante demanda de diversos políticos do Brasil imperial, como o senador Tomás Nabuco de Araújo. Outras referências francesas que destacamos são as que aludem a eventos e publicações relacionadas ao mundo agrícola, como o Instituto Agrícola de Grignon e à Sociedade Politécnica Prática de Paris. Na edição 12 do ano de 1833, foi comentado, a partir do Journal des Débats, um “concurso do Instituto Agrícola de Grignon”, do qual participaram membros das camadas dirigentes, incluindo deputados, e os “Cultivadores mais instruídos26”. Tratava-se de um concurso visando distinguir melhorias e inovações técnicas, com destaque para a charrua de Grangé. Os concursos agrícolas constituíramse numa prática bastante difundida na França e em outras nações do século XIX, e Grignon destacou-se como um renomado centro agrícola, abordado por pesquisadores franceses como Fabien Knittel, autor de um minucioso estudo sobre o agrônomo Mathieu de Dombasle (1777-1843). Em relação à Sociedade Politécnica, é informado pelo Auxiliador que a SAIN recebeu de Paris, dirigida ao redator do periódico, uma carta de Mr. de Molèon, diretor da Sociedade, oferecendo a “troca do Periódico que ali publica sobre a indústria, etc., etc. pelo Auxiliador do Rio de Janeiro”, pedindo ainda

1182

que publicassem anúncio informando sobre as atividades da instituição francesa, que incluía, pelo que se lê, o envio a outros países de máquinas e instrumentos para a promoção da indústria, da agricultura e do comércio, além de remeter “as melhores obras de agricultura, comércio, planos”. Observa-se, aí, com nitidez, a existência de um diálogo estabelecido entre a SAIN e entidades congêneres na França. Além disso, é interessante registrar que o referido artigo incentiva os leitores a pedirem assinatura do jornal da Sociedade Politécnica, o Reccueil Industriel, o qual, diz o artigo, contém a “descrição de todas as invenções, e descobertas feitas em França, na América, em Inglaterra, e em Alemanha”, além da “análise dos trabalhos das diversas sociedades de Sábios, Francesas e Estrangeiras, e o anúncio das melhores obras publicadas cada dia no sentido do interesse da indústria, comércio, agricultura e das artes”. A influência francesa no domínio econômico, inclusive agrícola, aparece claramente, ao lado – é importante ressaltar – de outras referências externas. O estudo da publicação do Visconde de Cairu e do periódico da SAIN permite apreender aspectos da presença francesa ao seio da camada letrada do mundo lusobrasileiro, em diferentes momentos e contextos. De um lado, percebe-se que a referência à França aparece permeada de um tom fortemente crítico àquela nação, em Cairu: tal postura pode ser explicada de um lado pela anglofilia do liberal, mas também nos parece que, em parte, pelo contexto de guerra entre França de um lado, e Inglaterra e seus aliados – dentre os quais Portugal – de outro. Mas, ainda nesse caso, a presença francesa está longe de se reduzir a uma espécie de contraponto à Inglaterra: não apenas Cairu tece elogios a algumas personalidades francesas, como vale-se de pensadores franceses para apoiar parte importante de sua argumentação, inclusive e especialmente quando estes elogiam a Grã-Bretanha. De outro lado, os artigos de O Auxiliador revelam que a França aparecia como uma referência central – e aí bem positiva – em sua defesa por uma agricultura mais racional e moderna, inserida num certo padrão de civilização da qual a França - ao lado de outras nações, como a Grã-Bretanha, mas também os EUA e a Alemanha – aparecia como um dos principais expoentes. Essas considerações finais nos levam, enfim, a refletir sobre o lugar em que tais textos foram impressos. Pois, como vimos, o contexto é fundamental, sendo valorizado por Skinner e inúmeros pesquisadores. Tanto o livro de Cairu como o periódico da SAIN eram voltados para um público específico e restrito. De fato, nas condições da época, o território brasileiro era marcado por uma estrutura social

1183

conservadora,

marcada pelo predomínio da grande propriedade agrária escravista, em que a grande maioria da população era iletrada; naquelas condições, tais textos só podiam ser lidos, na prática, por uma pequena “ilha de letrados” – conforme definido por historiadores – e voltados para tal segmento. Não deixa de ser significativa a frequente alusão – e transcrição – a periódicos franceses, em O Auxiliador: de alguma forma, o contexto francês relacionado às publicações deve ter tido seu peso. Afinal, como o historiador francês Jean-Yves Mollier mostrou, o século XIX correspondeu, na França, a um amplo processo de difusão e de popularização do livro pela sociedade 27. Consequentemente, suas publicações deveriam estar mais acessíveis aos leitores de outros países, como os do Império do Brasil. Enfim, acreditamos que os textos aqui focados refletem, também, um momento de transição: enquanto que em Cairu é bastante evidente a proximidade com o poder real, no caso da SAIN, as ideias veiculadas parecem inserir-se com facilidade nos planos do nascente Estado imperial brasileiro, que se consolidava e buscava fundamentar-se num referencial de civilização inspirado na Europa – França especialmente -, em que uma agricultura racional e científica aparecia como um de seus principais baluartes. Seja como for, nos dois casos a presença francesa parece ter ajudado a forjar um projeto modernizador, com ênfase num liberalismo econômico aliado ao capital britânico, num caso, e no outro, com base numa agricultura aperfeiçoada, de moldes científicos, sob a égide do Estado monárquico. Abstract During the XIX century, France exerced a great influence in Brazil. In our work, we will study this influence in two kinds of textes: a book written by an important liberal brazilian, Visconde de Cairu, and the magazine O Auxiliador da Industria Nacional, examining the french influence on economics views, specially ideas concerning the agriculture, in order to understand how France inspired ideas of modernization, in a country dominated by slavery like the Brazil of this time. Key-words: France – Agriculture – Printed Resumo Durante o século XIX, a França exerceu uma grande influência no Brasil. No nosso trabalho, estudaremos essa influência em dois tipos de textos: um livro escrito por um importante liberal brasileiro, Visconde de Cairu, e o periódico O Auxiliador

1184

da

Indústria Nacional, examinando a influência francesa em visões econômicas, especialmente ideias concernentes a agricultura, de maneira a compreender como a França inspirou ideais de modernização, num país dominado pela escravidão como o Brasil dessa época. Palavras-chave: França – Agricultura - Impresso

Cf. VILLALTA, Luis Carlos. “O que se fala, o que se lê: língua, instrução e leitura” In: SOUZA, Laura de Mello e (org.). História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p.346, 2 Cf. SHAPOCHNIK, Nelson. “Das ficções do arquivo: ordem dos livros e práticas de leituras na Biblioteca Pública da Corte Imperial”. In: ABREU, Márcia (org.) Leitura, História e História da Leitura. Campinas, SP: Mercado das Letras: Associação de Leitura do Brasil: São Paulo Fapesp, 1999, p.273-312. 3 Cf. FERREIRA, Tânia Maria Bessone da Cruz. Bibliotecas de médicos e advogados no Rio de Janeiro: dever e lazer em um só lugar. Leituras, História e Memória da Leitura, organizado por Márcia Abreu. Campinas, SP: Fapesp / Mercado das Letras – ALR, 1999. 4 Na época chamado arquiteto, uma espécie de precursor da atual profissão de engenheiro. 5 Cf. NEVES, Lúcia Batista Pereira das. “José da Silva Lisboa (Visconde de Cairu)”. In: VAINFAS, Ronaldo (dir.). Dicionário do Brasil Imperial (1822-1889). Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. p.429. 6 Cf. ROCHA, Antônio Penalves (org. e introdução). Visconde de Cairu. São Paulo: Ed, 34, 2001. p.11. 7 Cf. ROCHA, Antônio Penalves. op. cit., p.12. 8 Cf. ROCHA, Antônio Penalves. op. cit., p.12. 9 Cf. ROCHA, Antônio Penalves. op. cit., p.12. 10 Cf. MOTTA, Márcia Maria Menendes. Nas Fronteiras do Poder: conflito e direito à terra no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro Vício de Leitura: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 1998, p.125. 11 Cf. NEVES, Lúcia Batista Pereira das. op. cit., p.430. 12 Cf. NEVES, Lúcia Batista Pereira das. op. cit., p.430. 13 Cf. SKINNER, Quentin. “A liberdade e o historiador”. In: Liberdade antes do liberalismo. Tradução de Raul Fiker. São Paulo: Editora UNESP, 1999, p.83-95. 14 Cf. CAIRU, Visconde de. Observações sobre o Comércio Franco no Brasil. In: ROCHA, Antônio Penalves (org. e introd.). Visconde de Cairu. São Paulo: Ed. 34, 2001, p.87. 15 Cf. CAIRU, Visconde de. op. cit., p.71. 16 Cf. CAIRU, Visconde de. op. cit., p.97. 17 Cf. CAIRU, Visconde de. op. Cit., p.88-91. 18 Cf. GUIMARÃES, Lúcia Maria Paschoal. “Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional”. In: VAINFAS (org. e dir.). Rio de Janeiro: Objetiva, 2002, p.679. 19 Cf. GUIMARÃES, Lúcia Maria Paschoal. op. cit., p.679. 20 Cf. GUIMARÃES, Lúcia Maria Paschoal. op. cit., p.679. 21 Cf. STAROBINSKI, Jean. As máscaras da civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. 22 Cf. ABREU, Martha. “Civilização”. In: VAINFAS, Ronaldo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002, p.142. 23 Cf. GUIMARÃES, Lúcia Maria Paschoal. op. cit,, p.679. 24 Cf. O AUXILIADOR DA INDÚSTRIA NACIONAL, 1834, número 2, p.49. Disponível no Portal da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. 25 Cf. O AUXILIADOR DA INDÚSTRIA NACIONAL, 1834, número 2, p.62. Disponível no Portal da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. 26 Cf. O AUXILIADOR DA INDÚSTRIA NACIONAL, 1833, número 12, p.3. Disponível no Portal da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional 27 Cf. MOLLIER, Jean-Yves. A leitura e seu público no mundo contemporâneo: ensaios sobre história cultural. Tradução Eliza Nazarian. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009. 1

1185

O Protagonismo feminino na fotografia de Ricardo Rangel: O Pão Nosso de Cada Noite. Ms. Isa Bandeira Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da Universidade de São Paulo - PROLAM/USP/CAPES Orientadora: Profª.Drª.Dilma de Melo Silva Pesquisadora filiada ao Centro de Estudos de Religiosidades Contemporâneas e das Culturas Negras, CERNe- Universidade de São Paulo, USP e-mail: [email protected]

RESUMO: Ricardo RANGEL, fotógrafo moçambicano expõe e publica posteriormente o livro com a série de fotografias “O Pão Nosso de Cada Noite”, estas imagens pertencem em sua maior parte as décadas de 1960 e 1970, é um documento do período colonial, uma vez que a independência do país só vai ocorrer em 1975. Retratam como personagem principal a vida das prostitutas de Lourenço Marques, atual Maputo em Moçambique, África, especificamente a Rua Major Araújo. Tendo como cenário uma diversidade de personagens que transitavam pela cidade, alguns residentes e outros aportando em seu porto buscando a diversão e o prazer. Esta cidade e tantas outras com sua malha urbana e social atrelada à influência portuguesa vão se revelando nas lentes de RANGEL, é uma cidade que contém várias outras. É a mulher que luta pela sua sobrevivência e pela revolução, sob o olhar sensível do fotografo. PALAVRA-CHAVES: fotografia moçambicana; história; identidade; mulher. The female protagonism in Ricardo Rangel´s photography: Our Bread of Each Night. ABSTRACT: Ricardo Rangel, Mozambican photographer exposes and publishes afterwards the book with a series of photographs “Our Bread of Each Night”, whose images belong mostly to the 1960 and 1970 decades, it is a document of the colonial period, since the independence of the country would only take place in 1975.

1186

They portray as the main character the life of Lourenço Marques´s prostitutes, currently Maputo, in Mozambique, Africa, specifically at the Major Araujo street, having as background the diversity of characters who wander through the city, some being locals and others that just arrive in the port in search for amusement and pleasure. This city and several others with its urban and social network tied to the Portuguese influence reveal themselves through the lens of Rangel, as cities which contain several others within. It is the woman who fights for her survival and for the revolution, under the sensitive eye of the photographer. KEY WORDS: Mozambican photography; history; identity; women.

INTRODUÇÃO Quem é o personagem principal deste trabalho fotográfico de observação e interação? A mulher, a mulher moçambicana que sai dos subúrbios da capital a procura de uma forma de subsistência. A série de fotografias de Ricardo Rangel1, que originou o livro “Pão Nosso de Cada Noite”2, retrata a vida das prostitutas de Lourenço Marques, atual Maputo em Moçambique, África, especificamente a Rua Major Araújo 3. RANGEL fez as fotografias quando assistia o vai e vem dos marujos que aportavam na cidade e que saiam em busca de diversão e prazer. Nesta paisagem humana, é possível encontrar também “os boers e anglo-boers, sul africanos, libertando-se das grilhetas do apartheid no abraço multiracial, fruto proibido no país.”4, é o que nos conta SILVA sobre as fotografias de Ricardo Rangel, ver figura 1. Na África do Sul, MANDELA 1

Ricardo Achiles Rangel nasceu em Lourenço Marques (atual Maputo, Moçambique), em 15 de fevereiro de 1924 e morreu em 11 de junho de 2009 em Maputo, Moçambique. Trabalhou nos principais jornais de Maputo como fotojornalista, e também como editor tendo posteriormente fundado a primeira escola de fotografia da cidade, o Centro de Formação Fotográfica em 1983, onde há um acervo de imagens tratando de diversos temas cobertos durante a sua vida profissional em Moçambique. Em 2008, a Universidade Eduardo Mondlane lhe conferiu o titulo de doutor honorário em ciências sociais. 2

RANGEL, Ricardo. Pão Nosso de Cada Noite. Marimbique:Maputo, Moçambique, 2004.

3

“Desde os primórdios do século XX, a Rua Araújo era conhecida por ser uma via de hoteis, pequenos bares, companhias transitórias, escritórios de despachos oficiais e cinemas, depois também de casinos, até aos anos 40, para, mais tarde, se encher de clubes nocturnos, cabarés, bares de alterne e restaurantes.” SILVA, Calane. “Pão de Neon na Rua da Vida”. In: RANGEL, Ricardo, op.cit, 2004, p.15. 4

Op.cit, p.15.

1187

relata outros episódios que dão noticias da diversidade das agendas do Continente Africano e nos dão uma compreensão melhor sobre o comentário de SILVA: Any desire or intention that Nelson and Winnie Mandela might have had to lead a normal life would have thwarted by government policies that provided compelling grounds for them to continue their political crusade. In 1959, parliament passed the Promotion of Bantu Self-Government Act, creating eight ethnic homelands called Bantustans. The legislation formed the basis of the state’s groot apartheid (grand apartheid).Blacks were outraged by the obvious injustice of a policy that set aside 13 per cent of the land in South Africa for more than 70 per cent of its people. Although roughly two-thirds of black South Africans lived in so-called white areas, the new law determined that they could only claim citizenship of their traditional homelands. The aim was clearly to drive blacks out of, or as far away as possible from, areas inhabited by whites, and to fragment them into separate tribes in order to divide them and prevent them from functioning as one cohesive group.5

A segregação pensada para a África do Sul, narrada por MANDELA, é uma tentativa de desmobilizar uma ação coletiva por parte da maioria negra, de homens e de mulheres. Por outro lado, essa segregação reforça uma ideia crescente de uma resistencia no cerne do grupo indo contra os objetivos iniciais dos colonizadores.

5

“Qualquer desejo ou intenção que Nelson e Winnie Mandela poderiam ter tido de levar uma vida normal teria sido contrariado por políticas governamentais que forneciam motivos convincentes para que eles continuassem sua cruzada política. Em 1959, o Parlamento aprovou a Lei de Promoção de Bantu Self-Government, criando oito pátrias étnicas chamadas bantustões. A legislação formou a base para o Groot apartheid do Estado (grand apartheid). Os negros ficaram indignados com a óbvia injustiça de uma política que reservou 13 por cento da terra na África do Sul para mais de 70 por cento da sua população. Apesar de aproximadamente dois terços dos negros da África do Sul viverem nas chamadas áreas brancas, a nova lei determinou que eles só poderiam reivindicar a cidadania de suas terras tradicionais. O objetivo era claramente de conduzir os negros para fora de, ou o mais longe possível de, áreas habitadas por brancos, e fragmentá-los em tribos separadas, a fim de dividi-los e impedi-los de funcionar como um grupo coeso. Tradução: Luana Brito. BEZDROB, Mariè Anne Du Preez, Winnie Mandela, a life. Zebra Press: Cape Town, South Africa, 2012, p.81.

1188

O livro “Pão Nosso de Cada Noite” com 69 fotografias corresponde ao período que vai de 1959 a 1975, tendo a maior parte de seus momentos capturados entre 1960 e 1970, ou seja, antes da independência do país que ocorre em 1975. A independência foi guiada pela Frente de Libertação de Moçambique, FRELIMO, partido político fundado em 1962 contra o jugo português, uma vez que Lourenço Marques era uma colônia lusitana. O arcabouço heterogêneo que é a África, sua colonização, sua libertação e as décadas seguintes foram mapeados pelas lentes e pelo olhar atento de Ricardo Rangel. Não lhe escapou nada desde a vida pulsante da Rua Major Araújo desde a criança marcada a ferro como se gado fosse, ver figura 2. Sobre a participação das mulheres moçambicanas na luta pela independência, CASIMIRO observa: As mulheres que se haviam juntado à luta funcionavam, muitas vezes, como produtoras e reprodutoras, fonte de prazer sexual para os guerrilheiros que, sob a direção de alguns chairmen (chefes tradicionais homens), organizaram o controle da sua força de trabalho, e o controle dos homens, ao seu acesso. Alguns homens afirmavam que as mulheres eram um ser fraco, que não aguentava os treinos militares, e que era perigoso aproximar o fogo do capim. 6

COLLINS alerta sobre a necessidade de uma revisão conceitual acerca do tema: To get at that “piece of the oppressor which is planted deep within each of us,” we need at least two things. First, we need new visions of what oppression is, new categories of analysis that are inclusive of race, class, and a gender as distinctive yet interlocking structures of oppression.7

Neste aspecto a compreensão do universo feminino através da compreensão da estrutura da opressão aproxima as realidades tanto das mulheres americanas quanto das mulheres africanas, pois ajuda a entendê-las sob outro ponto de vista. Contudo, as concepções relativas ao que se convenciona chamar Estado e Nação também têm uma articulação diferente na origem dos dois países. CARVALHO examina a ideia de Estado-nação e pondera: Poucos Estados africanos podem ser considerados como Estados nação, se por Estado-nação se entender que cada nação tem o seu 6

CASIMIRO, Isabel Maria, “Repensando as relações entre mulher e homem no tempo de Samora”. In: SOPA, Antonio (Coord.). Samora. Homem do povo, Maguezo:Maputo, Moçambique, 2001, p.129. 7

“Para chegar a esse "pedaço do opressor, que está plantado no fundo de cada um de nós", precisamos de pelo menos duas coisas. Em primeiro lugar, precisamos de novas visões do que a opressão é, novas categorias de análise que são inclusivas de raça, classe e gênero tão distintivas como entrelaçadas em estruturas de opressão.” Tradução:Luana Brito. COLLINS, P. (1989).Toward a New Vision-Race, Class and Gender as Categories of Analysis and Connection.C.f.t.R.o.Women, Menphis State University, p.674.

1189

Estado, ou que cada Estado é constituído somente por uma nação. Pelo contrário, os Estados africanos são um reflexo da esfera dos interesses em África de um grupo de Estados - nação europeus durante o final do século XIX.8

No quadro destas relações sociais é que vão se sedimentando as ideias centrais sobre o racismo e as violências que se sucederam a partir de então relacionadas a este fenômeno tanto no Continente Africano como também em outras partes do mundo. O desdobramento desta discussão pode seguir pelo caminho do estudo das identidades que na contemporaneidade pode ser considerado um dos pontos de conflito cultural. Desta forma, os estudos relativos a mulher levam em conta a desigualdade entre homens e mulheres principalmente ao que se refere a divisão na área do trabalho e das políticas públicas. A definição do que é feminino, associado à natureza e masculino associado a própria criação da cultura, por exemplo, acabam sendo determinantes na caracterização do lugar de submissão imposto as mulheres.

Figura 2. Marca de gado em jovem pastor. Aconteceu como punição por ter perdido uma rés. Foto: Ricardo Rangel, Changalane, 1972. Fonte: http://alexandrepomar.t ypepad.com/alexandre_ pomar/2009/06/, último acesso:11.01.15 Figura 1. Espera baby! Bar Mundo. Da série Pão Nosso de Cada Noite. Foto: Ricardo Rangel, 1970. Fonte: http://alexandrepomar.typepad.com/alexandre_pomar/2007/08/ricardo-rangel-.html, último acesso: 06.01.15

Nesta perspectiva quando se estuda a África é necessário equilibrar o conjunto de valores do ocidente com os valores do continente africano. Pergunta-se; •

Quais são os aspectos discutidos em relação ao feminismo moçambicano considerando que a mulher negra é a maioria?

8

CARVALHO, Moreira Rui. Compreender África: teorias e práticas de gestão. FGV: Rio de Janeiro, 2005, p. 76.

1190

O debate sobre o feminismo negro no contexto norte-americano; apresentado através de Bell Hooks, Patricia Hill Collins, Melissa Perris Harry, Audre Lorde entre outras; facultado desta forma, é direcionado as mulheres negras em diáspora, mulheres vindas de diferentes partes da África e de mulheres negras nascidas nos Estados Unidos. Os parâmetros de análise desta série fotográfica de Ricardo Rangel, que antecede a independência do país, procura refletir como estas relações teóricas feministas prosperaram em Maputo. Em primeiro lugar é importante frisar que as regras de organização das sociedades africanas impõem a mulher um papel diferente em relação ao Ocidente. Na realidade moçambicana, o papel da mulher também está intimamente relacionado ao grupo étnico a que pertence e, portanto teríamos que pensar em realidades especificas. Neste sentido observa CARVALHO: Em África quase todos os países são heterogêneos, visto que incluem dois ou mais grupos étnicos. Como resultado, existem muitos países divididos em que as diferenças e os conflitos entre estes grupos desempenham um papel importante na política do país.9

Para a teórica americana COLLINS10, por exemplo, a mulher negra por fazer parte de um grupo oprimido, percebe que sua experiência na realidade compartilhada torna possível o surgimento de uma consciência coletiva devido a identificação destas experiências singulares entre si gerando uma ação imediata no político e no econômico. Mas na África o pertencimento às etnias alteram estes pressupostos, pois se trata de várias especificidades de mulheres negras e não apenas um grupo único de mulheres negras não pertencentes aquele lugar, em diáspora, contra um opressor branco. Como esta mulher moçambicana irá desenvolver sua experiência pessoal neste espaço social? SERRA se referindo a um quadro antes de c.1800 evidencia as características da sociedade moçambicana e detalha a organização política e social onde se nota dentro das linhagens e das famílias alargadas a cristalização das formas políticas das relações de produção: 9

10

Op.cit. p.75.

COLLINS, P. (1989) “The social construction of Black feminism thought” Signs 14(4):745-773.

1191

À frente de cada linhagem ou da família alargada estava um chefe com poderes políticos, jurídicos e religiosos, e um conselho de anciãos. As funções políticas nessas sociedades eram exercidas pelos homens. Em algumas regiões, o poder passava do irmão mais velho para o irmão a seguir na idade, noutras regiões do pai para o filho e, noutras ainda, a norte do Zambeze, do tio materno para o sobrinho. O solo era patrimônio (e não propriedade) das linhagens...A terra podia ser usada, mas não alienada de livre vontade...Os chefes estabeleciam o controlo das alianças matrimoniais...11

Essa fundamentação na descendência paterna já coloca a mulher em segundo plano e, portanto, numa condição de submissão. Nesta acepção COLLINS 12 faz uma crítica sobre a legitimação do conhecimento sedimentado em um eurocentrismo masculino dentro do universo dos Estados Unidos, no caso de Moçambique há um paralelo na configuração patrilinear, mas é necessário um detalhamento maior desta estrutura para identificar com mais precisão o papel feminino. Há criticas sobre esta realidade sendo formuladas no decurso do século XXI como atestamos abaixo: A sociedade do “homem chefe de família” está funcionando pra nós onde nossos países tem casamentos forçados com frequência, violência relacionada com dotes, estupro marital, assédio sexual, esterilização forçada, tráfico sexual, espancamentos, gravidez forçada, mutilações e violências emocional e psicológicas? É suficiente dizer que isso é parte da nossa cultura ou que a religião permite ou que a tradição exige que a mulher seja inferior ao homem? Nós ainda estamos dispostos a aceitar que 50% do nosso capital humano seja tratado como propriedade, ou menos que um humano, ou menos que um homem?13

Neste texto intitulado “O feminismo em África” está retratado a base da sociedade africana comprovando os relatos da história sobre a organização da comunidade e é uma tentativa de análise em relação às atribuições da mulher que ocorrem na contemporaneidade.

11

SERRA Carlos. História de Moçambique, Vol.1, in SERRA, Carlos (dir), Maputo: Departamento de História, Universidade Eduardo Mondlane, 2000, p.17. 12

COLLINS, P. (1989) “The social construction of Black feminism thought” Signs 14(4):745-773.

13

http://www.geledes.org.br/o-feminismo-em-africa/#axzz3OteHVwln, último acesso em 07.01.15.

1192

Aproximando-nos de quem é esta mulher moçambicana retratada por RANGEL e pertencente a esta estrutura tradicional, voltaremos ao período colonial para verificar outros aportes e a forma como eram inseridos os cidadãos, homens e mulheres neste espaço social: No campo educacional, especificamente, muitos foram os desafios, os entraves, as limitações humanas e materiais que Moçambique independente encontrou. No passado colonial, deve-se procurar a gênese das condições herdadas; o limitado alcance da rede escolar e do próprio sistema educacional, os seus objectivos “desafricanizantes” e as práticas e métodos autoritários, necessários as exigências econômicas do sistema colonial. Olhando para o passado colonial, não é de estranhar que pouco ou quase nada fosse feito em termos educacionais para a maioria do povo moçambicano.14

Nestes termos a educação serviu para impor a cultura de quem estava no poder, a língua passa a ser um dos pontos principais deste processo “desafricanizante” do povo africano. Quem não domina a língua do colonizador já está fora da maioria dos postos de trabalho, neste sentido podemos criar uma relação com o texto de HOOKS, sobre “o lugar da linguagem nas relações de poder”15, requesito determinante para as mulheres e homens negros nos Estados Unidos se inserirem na sociedade americana e obterem acesso a educação e ao trabalho. Para qualquer cidadão moçambicano este critério ainda é válido hoje em pleno século XXI é preciso falar a língua do colonizador para acessar as diversas camadas da sociedade. Em Moçambique, há uma diversidade linguística ampla e o português do colonizador ainda é um idioma restrito. GÓMEZ faz uma retrospectiva significativa da educação em Moçambique, o autor comenta: Em 1962, os liceus oficiais eram 6 e os privados 26. Onze anos mais tarde, em 1973, haviam 74 escolas para 1º e 2º ano do ensino liceal, das quais 51 lecionavam até o 5º ano e umas poucas até o 7º ano. Ainda em 1973, quase no fim do regime colonial, somente 27% dos 14

GÓMEZ, Buendía Miguel. Educação Moçambicana. História de um processo: 1962-1984. Livraria Universitária: Maputo, 1999, p.19.

15

http://www.geledes.org.br/bell-hooks-linguagem-ensinar-novas-paisagensnovaslinguagens/#axzz3OteHVwln, último acesso em 07.01.15.

1193

alunos matriculados no ensino secundário geral eram africanos (Johnson, 1989-60) As escolas de nível mais elevado de ensino eram claramente destinadas à classe dominante: elas eram as mais modernas, com construções mais sofisticadas e bem equipadas.16

Vai se delineando o ambiente onde estas mulheres prostitutas vão lutar por sua subsistência. A perspectiva muda e podemos falar mais do que significa ser mulher e menos do ser mulher negra no contexto moçambicano.

1. Contestação do Modelo - o papel da mulher Neste aspecto, torna-se inevitável abordar o tema da cultura, onde uma série de valores são partilhados: a língua, os saberes, enfim todo o conjunto do patrimônio imaterial até as questões materiais e tecnológicas, que num âmbito maior, irão repercutir posteriormente no espaço da sociedade. Por exemplo, os Makondes possuem diferentes ritos de passagem tanto para os homens quanto para as mulheres. Os Zulus também diferenciam as mulheres crianças das mulheres adultas através do vestuário ou outros códigos simbólicos, há também a divisão das tarefas a serem realizadas pelos homens e pelas mulheres. Algumas regiões estão voltadas a agricultura, ou a pecuária, a caça em outras a criação de gado. A vaca, por exemplo, pode valer mais que qualquer outra coisa incluindo a mulher, pois ela, a vaca, dá uma série de produtos que irá manter viva a comunidade. Se nos lançamos à aventura de analisar os aspectos econômicos das sociedades ditas tradicionais africanas, notaremos aí uma economia de subsistência, que envolve todo o conjunto assentado naquela região que se caracteriza por uma baixa densidade populacional, em uma ação de solidariedade e de sobrevivência. A tradição coloca a mulher como objeto e a modernidade por sua vez a faz se ver como mercadoria também e esta relação conflitante, retratada por Ricardo Rangel na década de sessenta, é uma das testemunhas de uma época tumultuada no País. São diversos os personagens, entretanto o contexto socioeconômico e político altera-se

16

GÓMEZ, Buendía Miguel. Educação Moçambicana. História de um processo: 1962-1984. Livraria Universitária: Maputo, 1999, p.71.

1194

lentamente a situação da mulher moçambicana em relação à mulher americana é desigual. Ao contrário nos Estados Unidos, na mesma década de sessenta, as mulheres americanas estavam envolvidas num clima de contracultura, podemos perceber certa influência do período nas mulheres moçambicanas que frequentam a Rua Major Araújo nas roupas, maquiagens e o uso das perucas com os cortes em voga, ver figura 3. LEUCHTENBURG narra os episódios desta década nos Estados Unidos: O consenso perdido sobre papéis sexuais não resultou apenas da contracultura, mas também do movimento de liberação das mulheres, o qual combinou as novas convicções emancipacionistas com o reformismo de antanho. Em grande parte do seu programa, o women’s lib solicitava simplesmente que se cumprissem objetivos feministas tradicionais e inatacáveis, como a igualdade de oportunidade...Entretanto, as partidárias do womens’s lib foram muito além das metas familiares, com a paridade salarial, e exigiram o fim da exploração das mulheres como objeto sexuais...17

Evidencia-se que as mulheres americanas, nesta altura, estavam com demandas diferenciadas das mulheres moçambicanas, porém havia uma similaridade, a submissão. CASIMIRO narra à trajetória da mulher moçambicana e o papel que desempenhou em estreita parceria com a FRELIMO: Com a sua Constituição em 1962, a partir de associações de refugiados, criadas nos países vizinhos, as mulheres encontraram na FRELIMO condições para a sua integração, tendo tido um importante papel nesta fase. Datam já de 1962, referencias a grupos de mulheres que, por iniciativa própria, se organizaram para apoiar a Frente. A este propósito, Janet Mondlane, viúva do primeiro presidente da FRELIMO diria, numa entrevista realizada pela autora, a 19/06/86, que foram as mulheres que decidiram organizar-se para apoiar a FRELIMO, deste modo canalizando as energias dos que se haviam juntado à luta.18

17

LEUCHTENBURG. William E. (Org.) O Século Inacabado. A América desde 1900. Vol.2. Rio de

Janeiro: Zahar, 1976, p.897-98. 18

CASIMIRO, Isabel Maria, “Repensando as relações entre mulher e homem no tempo de Samora”. In: SOPA, Antonio (Coord.). Samora. Homem do povo, Maguezo:Maputo, Moçambique, 2001, p.128.

1195

CASIMIRO discute a partir daí como a mulher moçambicana vai interagir e se organizar mediante sua experiência no Destacamento Feminino (DF) da FRELIMO e como esta sua participação de certa forma acaba reproduzindo aspectos anteriormente vivenciados por elas relacionados à submissão.

Figura 3. As três Marias. Bar Casablanca Da série Pão Nosso de Cada Noite. Foto: Ricardo Rangel, 1970. Fonte: http://ma-schamba.com/2007/11/?page=5, último acesso, 11.01.15.

Com o desenvolvimento da argumentação CASIMIRO nos proporciona uma ideia ampla sobre os aspectos positivos e negativos neste período que anteciparia a independência de Moçambique em relação ao papel da mulher neste processo a guisa de conclusões salienta: De realçar, todavia, que a participação da mulher na luta armada, obrigou a um repensar sobre o seu papel na sociedade, sobre as relações sociais com os homens e sobre o tipo de sociedade a edificar, tendo provocado uma ruptura simbólica nas relações de gênero. Talvez seja este um dos motivos porque, apesar da situação de discriminação que ainda caracteriza a mulher, Moçambique ser hoje o primeiro país em África, em termos de percentagem de mulheres no parlamento, 30%, e um dos poucos a ter inscrito a dimensão de gênero no programa de governo, saído das eleições multipartidárias de 1994. Será apenas retórica ou resultado dos desafios que as mulheres vêm enfrentando? Esta situação ocorre num momento em que, a nível mundial, a percentagem de mulheres parlamentares decresceu de 14,8%, em 1988, para 11,7%, 1997, sobretudo após a queda do comunismo.19

Decorridos quatorze anos da edição deste texto de CASIMIRO e destacando que as teorias feministas americanas já pertencem ao século passado, hoje, no apogeu do século XXI a mulher de todos os lugares continua com sua agenda de prioridades em aberto e inconcluso. No mesmo ano em que Moçambique declarava a sua independência, em 1975 a Organização das Nações Unidas, ONU, decretava o dia 8 de março como o Dia Internacional da Mulher, em referencia ao trágico episódio ocorrido 19

Op.cit.p.135.

1196

em 8 de março de 1857, em Nova York, Estados Unidos, vitimando 130 tecelãs que morreram carbonizadas depois de terem sido trancafiadas em represália na fábrica onde trabalhavam. A ideia de que a mulher ligada à natureza e considerada como um ser fraco deve permanecer na esfera da vida privada e na administração do lar e da família começa a ser contestada justamente pelos movimentos por elas liderados. Como destaca CASIMIRO para alguns homens da FRELIMO “as mulheres não aguentavam os treinos militares”20 e acabavam desempenhando funções que de certa forma não se distanciavam muito da sua vida privada como ficar nas aldeias, cuidar das crianças, servir sexualmente etc. Ou seja, este papel da mulher definido desta forma impossibilita o surgimento de outro modelo. Importante referir que as experiências das mulheres e dos homens são uma construção singular e pode haver similaridades com outras sociedades, mas a relação que se estabelece deve respeitar as diferenças culturais em que se expressam e sua complexidade. A série fotográfica de Ricardo Rangel, “Pão Nosso de Cada Noite” entendida como um documento nos possibilita as mais distintas leituras das relações históricas, sociais, econômicas etc sem, no entanto, deixar sua marca estética configurando uma arte que sobrevive no tempo. O fotografo assumindo o desafio atesta: Dedico este livro às mulheres nele retratadas pelas quais sempre tive muito respeito, carinho e amizade. Dedico-o também à minha mulher Beatrice que, com o seu amor que ultrapassa todos os preconceitos, me apoiou na sua preparação.

Sublinhando as posições diferenciadas entre as mulheres a que se reporta nesta dedicatória hoje se desenha a necessidade de uma superação desta divisão entre a vida privada e a vida pública, e os limites e posições onde a mulher poderia transitar. Este trânsito hoje se ampliou e mulheres e homens juntos podem superar este modelo de opressão e submissão pautando as relações em um modelo mais justo no âmbito da sociedade onde o leque de identidades também ampliou.

20

Op.cit. p.129.

1197

REFERENCIAS BEZDROB, Marie Anne Du Preez, Winnie Mandela, a life. Zebra Press: Cape Town, South Africa, 2012. CARVALHO, Moreira Rui. Compreender África: teorias e práticas de gestão. FGV: Rio de Janeiro, 2005. COLLINS, P. (1989) “The social construction of Black feminism thought”

Signs

14(4):745-773. COLLINS, P. (1989).Toward a New Vision-Race, Class and Gender as Categories of Analysis and Connection.C.f.t.R.o.Women, Menphis State University. GÓMEZ, Buendía Miguel. Educação Moçambicana. História de um processo: 19621984. Livraria Universitária: Maputo, 1999. LEUCHTENBURG. William E. (Org.) O Século Inacabado. A América desde 1900. Vol.2. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. RANGEL, Ricardo. Pão Nosso de Cada Noite. Marimbique:Maputo, Moçambique, 2004. SERRA Carlos. História de Moçambique, Vol.1, in SERRA, Carlos (dir), Maputo: Departamento de História, Universidade Eduardo Mondlane, 2000. SOPA, Antonio (Coord.). Samora. Homem do povo, Maguezo:Maputo, Moçambique, 2001. LINKS

http://alexandrepomar.typepad.com/alexandre_pomar/2007/08/ricardo-rangel-.html http://alexandrepomar.typepad.com/alexandre_pomar/2009/06/ http://www.geledes.org.br/o-feminismo-em-africa/#axzz3OteHVwln http://www.geledes.org.br/bell-hooks-linguagem-ensinar-novas-paisagensnovaslinguagens/#axzz3OteHVwln http://ma-schamba.com/2007/11/?page=5

1198

O caso da Escola de Farmácia e Odontologia por um viés de Gênero Isabella Bonaventura de Oliveira* Resumo Este estudo visa analisar as estratégias empreendidas por farmacêuticos e dentistas a fim de criarem suas instituições de ensino em separado da medicina, no contexto da Primeira República. Tomando como ponto de partida os discursos mobilizados na criação e manutenção da Escola de Farmácia e Odontologia, almeja-se analisar conjuntamente sua institucionalização, e a entrada de mulheres nessas profissões. Alunas/os e as/os profissionais dessas áreas serão consideradas enquanto grupo heterogêneo e atuante, evitando, assim, uma abordagem de gênero dual e universalista. Palavras-chave: Gênero, História das Ciências, Escola de Farmácia e Odontologia. Abstract This study aims to analyze the strategies used by pharmacists and dentists in order to create their educational institutions separately from medicine, at the Brazilian’s First Republic. Using as a departure point the discourses mobilized in the creation of Pharmacy and Dentistry School, it aims to analyze the institutionalization and the entry of women in these professions. The students and the professionals of these areas will be considered as heterogeneous and active group, thus avoiding a dualist and universalist's approach. Keywords: Gender, History of Science, Pharmacy and Dentistry School. Apresentação do tema de pesquisa A partir dos questionamentos iniciais da pesquisa: O Caso da Escola de Farmácia e Odontologia por um viés de gênero pretende-se discutir de que maneira - na Primeira República - farmacêuticos e dentistas paulistas agremiaram-se em associações a fim de estabelecerem-se enquanto cientistas a serviço da nação. A criação de uma instituição de ensino separada da medicina1 foi considerada por esses grupos enquanto saída estratégica para estabelecer e fortalecer uma identidade profissional.

*

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), sob a orientação da Profª Drª Márcia Regina Barros da Silva. Bolsista CAPES.

1199

Após 1870 fortaleceu-se um projeto político e intelectual modernizador de caráter progressista, segundo o qual a administração nacional deveria espelhar-se nas instituições e modos de vida europeus2. Durante a Primeira República, fortaleceram-se os binômios ignorância/doença enquanto problemas a serem solucionados pela saúde/educação: Tais avaliações se basearam, por um lado, na visão da ignorância e das doenças como dados que dificultariam o soerguimento de um governo plenamente republicano; em direção contrária, a busca pela educação e saúde serviria para auxiliar na construção do que se imaginava ser o caminho da modernização do país e do estado. 3

Em diálogo com as tais propostas republicanas, algumas profissões da área de saúde – como a Medicina, a Farmácia e a Odontologia - atribuíram-se a tarefa de ‘civilizar’ a nação por meio de ações de saúde pública e higiene. Além de uma agenda sanitária, as políticas modernizadoras da Primeira República evocaram a educação como importante fator para o progresso nacional, nesse momento, a mulher assume uma nova tarefa política frente ao Estado: educar os futuros cidadãos, transmitindo aos filhos as concepções de saúde higiênica e educação cívica4. A concepção de mulher evocada nesse contexto interage com a perspectiva médica e jurídica do período segundo a qual as categorias homem e mulher operariam enquanto opostos imensuráveis devido à evidência biológica do sexo5. Tais concepções de gênero atuam na produção de sujeitos e identidades6, definindo, assim, quais seriam os papéis específicos de homens e mulheres nas políticas republicanas. Nesse momento as mulheres – assim identificadas - adquirem a tarefa de difundir e fortalecer os saberes médicos na família, a fim de englobarem7 nesse conjunto de saberes e práticas a maior quantidade possível de cidadãos. Pretende-se observar como os argumentos que almejavam estabelecer uma identidade8 – para farmacêuticos e dentistas – dialogavam com as concepções do período sobre a existência de aptidões restritas e naturalizadas para mulheres e homens. Esta pesquisa não considera que a presença de alunas na Escola de Farmácia e Odontologia de São Paulo é a resultante de um “progresso histórico” 9, segundo o qual as mulheres teriam gradativamente acesso a profissões já cristalizadas - ou seja, com seu conjunto de saberes, práticas e objetos já definidos. Deseja-se pensar de que maneira tais agentes - grupos de farmacêuticos/as, medicamentos, os/as dentistas, boca, médicos – ora reuniram-se, ora distanciaram-se a fim de criarem espaços de atuação e discurso. Dessa maneira, a entrada de mulheres nas profissões de Farmácia e

1200

Odontologia será discutida enquanto aspecto constituinte da construção da identidade profissional que essas áreas de saber adquiririam na primeira república. Farmácia e Odontologia em São Paulo: um ‘novelo de redes’. Farmacêuticos e dentistas paulistas buscaram estabelecerem-se como cientistas a serviço das políticas modernizadoras da Primeira República, assim, esses setores criaram e divulgaram - entre a última década do século XIX e a primeira do século XX - uma série de publicações com o intuito de agremiar a maior quantidade possível de aliados e se instituírem como cientistas respeitados. Nesse sentido, o editorial da Revista Farmacêutica de Maio de 1895 destacou: Como foi que os nossos colegas d’além mar conseguiram elevar a nossa classe? Instruindo-se, formando associações e criando revistas profissionais. Trataremos, pois, de imitá-los e conseguiremos certamente o nosso desideratum. 10

Tal aspecto se relaciona ao contexto de criação dos periódicos paulistas especializados em Farmácia e Odontologia, sendo eles vinculados às recém-fundadas sociedades científicas. A Revista Farmacêutica, por exemplo, foi criada em 1895 pela Sociedade Farmacêutica Paulista e circulou até 1914 - tendo sua circulação interrompida entre 1903 e 1905. Durante esses dois anos, farmacêuticos associaram-se aos dentistas e lançaram a Revista Farmacêutica e Odontológica (1903 a 1905). Finalmente, após a criação da Sociedade Odontológica Paulista (1905) dentistas e farmacêuticos voltaram a manter periódicos distintos: foi criada a Revista Odontológica Paulista que circulou entre 1905 e 1911 e a Revista Farmacêutica foi retomada, perdurando até 1914. Nesse primeiro momento, as sociedades científicas utilizaram dos periódicos como seus porta-vozes11, fomentando o estabelecimento de relações entre farmacêuticos, médicos e profissionais da saúde pública de diferentes localidades (inclusive do exterior). Essas publicações também atuaram na produção12 de uma identidade para farmacêuticos e dentistas – elaborando discursos que reforçaram sua relevância à saúde pública, assim como, delimitaram quais saberes e práticas seriam adequados à profissão. É importante destacar que a Sociedade Farmacêutica Paulista e a Sociedade Odontológica Paulista não veicularam e nem produziram discursos13 em num espaço vazio: outras redes, agentes e significados estavam estabelecidos e, não poucas vezes, competiam por espaço e preponderância. Nesse sentido, embora farmacêuticos e dentistas buscassem

1201

criar espaços de atuação desvinculados da Medicina, utilizavam-se do lugar de fala prestigiado que essa última dispunha no período. Desta forma, aproximar-se dos médicos, mesmo que temporariamente, significava aliar-se às políticas sanitárias da república, distanciando-se de práticas de cura consideradas ‘atrasadas’, como as de ervanários, farmacêuticos e cirurgiões dentistas práticos. A profissão de dentista, por exemplo, ao longo do século XIX possuía a fama de ser uma atividade puramente mecânica e desenvolvida por escravos14. Enquanto o farmacêutico era considerado um comerciante15. A fim de fortalecer alianças e se estabelecer como produtores de um discurso científico, farmacêuticos e dentistas paulistas reunidos em

sociedades

especializadas

tramaram redes com os não-humanos16, ou seja, com compostos químicos, receitas de remédios, boca, músculos, dentes. Tais misturas oficiosas eram divulgadas na imprensa científica pelo viés da purificação, colocando esses profissionais como leitores objetivos dos sinais emitidos pela Natureza, assim como os médicos. O objetivo era diferenciar-se de curandeiros e ervanários que não estariam qualificados para ‘lerem’ tais sinais, pois se considerava que eles os ‘misturariam’ com suas vontades e anseios religiosos. Nesse sentido, um artigo publicado na Revista Odontológica Paulista em janeiro de 1908 argumentava: Se tantos cabedais científicos são exigidos pelas leis, como tolerar o exercício da odontologia por aqueles que são inteiramente leigos na matéria e alguns até analfabetos. Do mesmo modo que o médico é ginecologista, parteiro, cirurgião, especialista de sífilis, da garganta, de olhos, ouvidos. Porque não considerar a odontologia uma especialidade, um ramo dessa grande ciência.17

No âmbito da Farmácia, a Revista Farmacêutica em artigo de agosto de 1896 destacou: “O farmacêutico não é como pensam, um simples negociante sem responsabilidades (...) o farmacêutico é também um industrial e sobretudo um homem de ciência." 18 A fim de se desvincularem da imagem do comerciante, os farmacêuticos aliaram-se aos fenômenos e compostos químicos, alegando que: Na farmácia e na medicina, com raras exceções, ela [a química] prepara todos os medicamentos e fornece todos os materiais técnicos. (...) É coisa singular! Essa química é o produto da evolução do homem primitivo.19

Por meio das publicações oficiais, farmacêuticos e dentistas paulistas reunidos em sociedades científicas estabeleceram alianças com profissionais de outras localidades e com a anatomia e a química (não-humanos). A criação dessas redes é essencial para que tais setores possam se colocar na posição de produtores de conhecimento científico, pois “A construção do fato é um processo tão coletivo que uma pessoa sozinha só constrói sonhos, alegações e sentimentos, mas não fatos.” 20.

1202

Farmácia e Odontologia – Formação de uma identidade profissional. Outra estratégia empreendida por essas duas classes profissionais foi a utilização do lugar fala já bem estabelecido da Medicina, como vimos, a fim de diferenciarem-se e substituírem os chamados ‘conhecimentos populares’. Porém, atuar junto aos médicos não seria suficiente para que farmacêuticos e dentistas atingissem seu objetivo de criar um espaço de ensino e um campo profissional específico: “O médico está para o farmacêutico como a grande árvore está para o pequeno arbusto, a grande árvore desenvolve-se e cresce, estendendo seus frondosos galhos sobre o arbusto que definha e morre.”

21

.Sendo assim,

buscaram delimitar quais seriam seus saberes, objetos e práticas, assim como, quais sujeitos não estariam autorizados a desempenhá-los, marcando um processo de individuação. 22 Nesse momento as revistas especializadas publicaram numerosos artigos que pontuavam as especificidades da Farmácia e da Odontologia em relação à Medicina, visando manter uma identificação mais direta entre os primeiros e as políticas modernizadoras da Primeira República. Nesse sentido, a Revista Farmacêutica frisou a importância de seus profissionais para saúde pública, atuando na manipulação dos medicamentos: Uma boa farmácia, isto é, a preparação conscienciosa dos medicamentos, sua qualidade irreprochável e uma dosagem de perfeita exatidão constituem condições indispensáveis para a eficácia de qualquer medicina; e se esta condição de boa farmácia não for preenchida, os esforços do médico serão nulos – seja qual for o seu saber, seja qual for a sua experiência. 23

A Sociedade Odontológica Paulista por meio de seus artigos concentra-se em destacar seu papel na manutenção da saúde bucal do cidadão, destacando como seu principal objetivo zelar pela saúde das famílias: “A nobreza da nossa profissão tem a sua base no santuário das famílias, é com elas que nós privamos, desde a classe desfavorecida da fortuna até a mais elevada” 24. A criação de uma faculdade autônoma seria um movimento estratégico nesse processo de formação de uma identidade profissional, pois ampliaria a quantidade de profissionais atuantes, resultando em mais alianças – fator que proporcionaria maior força política. A intenção era englobar

25

as práticas de cura desempenhadas por ervanários e curandeiros e

padronizar a formação das futuras gerações de farmacêuticos e dentistas, as quais deveriam ser treinados para estabelecer com os não-humanos uma relação “objetiva”, e, portanto, científica. Escola de Farmácia e Odontologia por um viés de gênero. As sociedades científicas de farmacêuticos e dentistas desejavam expandir o espaço de atuação,

ambicionando expandir suas redes de aliados e de poder: englobando adversários26,

1203

aumentando o número de profissionais atuantes e delimitando quais seriam os conhecimentos próprios às futuras gerações de profissionais. Durante os anos finais do XIX, a Sociedade Farmacêutica iniciou uma campanha pela criação de um espaço de ensino voltado exclusivamente à formação em Farmácia, tais esforços culminaram na fundação da Escola de Farmácia em 1898. Tal instituição anexaria os cursos de Odontologia e Obstetrícia em 1903 formando nesse momento a Escola de Farmácia, Odontologia e Obstetrícia de São Paulo. Grupos de farmacêuticos, dentistas e alguns médicos envolvidos na criação da Escola de Farmácia e Odontologia, consideravam que a instituição passaria a propagar, criar e estimular a formação dos ‘verdadeiros cientistas’. Embora, usualmente tal processo seja abordado de forma linear e neutra, destacam-se as questões de gênero e disciplinar que perpassam a concepção moderna de prática científica, segundo a qual tudo o que possa levar o pesquisador viril e destemido à hesitação deve ser descartado. Stengers destaca a posição da mulher – assim identificada - nesse processo de formação voltado à uma ética masculina de ‘conquista do conhecimento’: Mais si elle resiste, c’est seulement parce que les filles peuvent désormais y obtenir lês diplômes qui leur permettrons de gagner leur vie. Mais qu’elles évitent d’y faire carrière dans les professions qui promettent prestige et influence.27

Através da análise dos artigos da Revista Farmacêutica e da Revista Farmacêutica e Odontológica é possível perceber um estímulo para que as jovens em busca de instrução procurem se integrar ao corpo de estudantes da Escola de Farmácia e Odontologia. Esse estímulo obteve resultados interessantes, principalmente se considerarmos as matriculadas em 190328: dos 166 alunos inscritos em farmácia, 25 eram mulheres (15%) e em odontologia dentre os 46 matriculados, havia 11 alunas (23%). Em artigo publicado, em outubro de 1898, observa-se que o estimulo à formação de mulheres em Farmácia, explicita-as como colaboradoras ilustradas e relaciona o preparo de medicamentos à receita de um doce: A Escola de Farmácia pode também proporcionar à mulher brasileira mais uma aptidão à sua inteligência, mais um ramo de vida às suas justas aspirações. A eterna e boa companheira dos nossos dias, que já nos correios e nos telefonos tem tido ocasião de provar as suas aptidões, pode também aproveitar a profissão de farmacêutico colaborando conosco nos progressos do espírito humano. Quem melhor, pergunta o orador, poderia adoçar uma pílula.29

A relação de submissão presente no trecho acima também se apresenta na maneira como o farmacêutico é concebido na hierarquia das profissões em saúde. Conforme se verifica em publicação da Revista Farmacêutica abordando o caso de casamento entre um médico e uma farmacêutica na França30: 1204

Em tais condições hão de forçosamente se dar inúmeras uniões entre membros das suas profissões que reúnem tantos interesses comuns: medicina ativa, ousada, mais particularmente destinada ao homem, e a farmácia, sedentária, meticulosa, é apropriada à mulher. 31

Em meio a esta discussão da relação submissa das práticas farmacêuticas, situa-se uma interessante questão de gênero, na qual o médico é considerado o grande protagonista do avanço científico enquanto o(a) farmacêutico(a) se restringiria à posição de auxiliar ilustrado(a). Embora não se observe a presença de mulheres na Sociedade Farmacêutica Paulista, as interfaces entre a questão de gênero e a Farmácia se mostram presentes nos discursos que abordam a criação e manutenção da Escola de Farmácia. A farmacêutica é citada como plenamente capaz de administrar uma farmácia e preparar medicamentos, porém, apesar dos artigos citarem um movimento de profissionalização, a vinculação entre o feminino e o lar se mantém: É tempo de dilatarmos os horizontes para a atividade da mulher, dar-lhes profissões mais liberais, mais intelectuais, mais e melhores elementos para a luta da vida. Dirigir seu lar; dirigir sua farmácia e acalentar seus filhos, poderá a mulher fazer com aquilo doce energia, com aquela rigorosa brandura.32

Ao se analisar as atas da Sociedade Odontológica Paulista, publicadas pela Revista Odontológica a partir de 1903, destaca-se a presença de seis mulheres que mantinham consultórios na região central da cidade de São Paulo33. A presença dessas associadas, a veiculação de seus discursos pelas atas publicadas, assim como sua atuação profissional evidenciam a agência dessas dentistas no processo coletivo de estabelecimento

da

Odontologia enquanto área produtora de discursos científicos e politicamente relevantes. Em discurso proferido em dezembro de 1905 e publicado pela Revista Odontológica Paulista em fevereiro de 1906, a dentista Clymente de Andrade destaca a trajetória da Odontologia até aquele momento, frisando que esta profissão pouco a pouco se separou de habilidades mecânicas, tornando-se, assim, uma atividade racional e científica. Andrade inicia seu discurso colocando a importância da Odontologia para a saúde do cidadão, bem como, da criança [“(...)essas inquietas criaturinhas (...)”], e em seguida destacou as vantagens da presença de mulheres nesse ofício: Quem melhor que a mulher, que está mais acostumada a aturar essas inquietas criaturinhas, acharão meios audaciosos e prontos, para a execução de trabalhos na boca desses adoráveis manhosos, de que a maioria dos dentistas tanto se queixa. 34

Clymente de Andrade também defendeu que o exercício da Odontologia pela mulher não significaria a traição ou perda das habilidades consideradas naturalmente femininas: “Ficai 1205

certos, também vos digo, de que, por se entregarem ao estudo das artes e das ciências, não perderão elas os caracteres próprios, e, portanto, não deixarão de ser boas esposas, mães, filhas ou irmãs extremosas. ”35. Em seu discurso, Andrade considera a Odontologia uma ciência a serviço da família e da criança, a dentista defende que a presença da mulher nessa profissão não apresentaria uma perversão de sua natureza. A Odontologia - por possuir mulheres atuantes em sua sociedade científica – possui artigos interessantes para se analisar a agência das dentistas na conformação de objetos e saberes próprios a esse saber. No discurso de Vera Andrade à Sociedade Odontológica Paulista, publicado pela Revista Odontológica Paulista em julho de 1906, a dentista abordou a utilidade do dentista ao Direito, atuando como perito tanto em questões relativas ao foro civil quanto ao criminal. Em relação ao primeiro, a autora destacou importância do dentista em exames como os pré-nupciais: “A lei que rege esse ato faculta, entre nós, aos interessados, o exame prévio dos nubentes, a bem da procriação duma raça forte e sadia. O dentista mais do que ninguém ao lado do médico deveria ser o perito escolhido.” 36. Os artigos analisados procuram delimitar como a Odontologia – enquanto área científica poderia auxiliar o progresso da Primeira República. Ambas destacam a ligação entre a saúde bucal e a formação de populações sadias, sendo que Clymente de Andrade ressalta a necessidade de uma atenção especial ao público infantil, destacando a vantagem em se obter mulheres nessa profissão. Vera Andrade, por sua vez, aborda um aspecto importante nas discussões de sua época: a Eugenia e a Antropologia Criminal, pontuando de que maneira a Odontologia poderia auxiliar o Estado, aconselhando matrimônios entre indivíduos sadios e demarcando qual seria a constituição dentária dos criminosos. Nesse sentido, percebe-se de que forma a entrada e atuação das mulheres em Farmácia e Odontologia estabelece agenciamentos nesse processo de construção de uma identidade profissional e científica. Enquanto em um primeiro momento, elas aparecem como auxiliares ilustradas, posteriormente elas mesmas veicularam discursos sobre o que seria a Odontologia e qual seu papel na saúde pública. Embora, a princípio, tais estudantes estivessem sendo chamadas

para

compor

áreas

‘secundárias’

e

‘subordinadas’,

elas

utilizaram-se

estrategicamente dessa posição marginal e infiltraram-se nesse processo de individuação e estabelecimento de redes. Conclusões Preliminares

1206

Este trabalho buscou apresentar de que maneira o processo de institucionalização da Farmácia e Odontologia em São Paulo – na Primeira República – foi perpassado por discussões de gênero, políticas e estabelecimento de redes. Tais setores buscaram estabelecerem-se enquanto grupo autorizado a falar em nome da natureza (de forma neutra), por meio de alianças com humanos e não-humanos, fundando sociedades científicas e divulgando suas propostas nos periódicos especializados. Em um primeiro momento, fora necessário conformar uma aliança junto aos setores médicos, a fim de diferenciarem-se das práticas de cura populares. Porém, afastar-se da Medicina foi necessário para que farmacêuticos e dentistas iniciassem a criação de uma identidade profissional engajada com as proposições da saúde pública republicana. A presença de mulheres nessas profissões - por meio de seu acesso à Escola de Farmácia e Odontologia – foi um dos aspectos constituintes na configuração dos aliados, saberes, práticas que tais setores visavam estabelecer. Por meio dos artigos analisados, demonstrou-se como as questões e os problemas envolvendo o gênero relacionaram-se à posição hierárquica, à institucionalização e ao papel político e científico que a Farmácia e a Odontologia ocuparam entre as práticas de cura, em meio ao processo de modernização instituído na Primeira República.

A Reforma Leôncio de Carvalho, promulgada em 19 de abril de 1879: “Definia que, em cada uma das Faculdades de Medicina, estaria uma escola de farmácia, um curso de obstetrícia e ginecologia e de cirurgia dentária” MELO Cristiane Silva; MACHADO, Maria Cristina Gomes. “Notas para a História da Educação: Considerações acerca do decreto nº 7.247, de 19 de Abril de 1879, de autoria de Carlos Leôncio de Carvalho.”. Revista HISTEDBR On-line. Campinas, n.34, p.300, junho de 2009. 2 MURARI, Luciana. Natureza e cultura no Brasil (1870-1922). 1ª Edição. São Paulo: Alameda, 2009. 3 SILVA, Márcia Regina Barros da. O Laboratório e a República: saúde pública, ensino médico e produção de conhecimento em São Paulo (1891-1933). 1ª Edição. Rio de Janeiro: FioCruz, 2014, p. 33. 4 MARTINS, Ana Paula Vosne. A mulher no discurso médico e intelectual brasileiro. In: Visões do Feminino a medicina da mulher nos séculos XIX e XX. 20ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2004. 5 LAQUEUR, Thomas. Inventando o sexo corpo e gênero dos gregos a Freud. Tradução: Vera Whaterly. Rio de Janeiro: Editora Relume-Dumará, 2001. 6 BUTTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução: Renato Aguiar. 8ª Edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. 7 SLOTERDIJK, Peter. Esferas II: Globos. Macrosferología. Tradução: Isidoro Reguera. Barcelona: Siruela, 2004. 8 FOUCAULT, Michel. “O Sujeito e o Poder” in: RABINOW, Paul; DREYFUS, Hubert. Michel Foucault – Uma Trajetória filosófica (Para além do Estruturalismo e Hermenêutica). Tradução: Vera Portocarrero e Gilda Gomes Carneiro.Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1985. 9 SCOTT, Joan. “Gender a Useful Category of Historical Analysis”. The American Historical Review. Oxford. Volume 91, nº05, dezembro de 1986. 10 “São Paulo 15 de Maio de 1895”. Revista Farmacêutica. São Paulo. Volume 01, nº 01, 15 de maio de 1895, p.01. 11 LATOUR, Bruno. Ciência em Ação como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. Tradução: Ivone C. Benedetti. 2ª Edição. São Paulo: Editora Unesp, 2011. 1

1207

12

SHAPIN, Steven. Nunca Pura - Estudos Históricos de Ciência como se Fora Produzida por pessoas com Corpos, Situados no Tempo, no Espaço, na Cultura e na Sociedade e Que Se Empenham por Credibilidade e Autoridade. Tradução: Erick Ramalho. Belo Horizonte: Fino Traço Editora, 2013. 13 Considera-se discurso segundo Michel Foucault: “Essas relações [discursivas] caracterizam não a língua que o discurso utiliza, não as circunstâncias em que ele se desenvolve, mas o próprio discurso enquanto prática” FOUCAULT, Michel. Arqueologia do Saber. Tradução: Luís Felipe Baeta Neves. 8ª Edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012. 14 PIMENTA, Tânia Salgado. “Transformações no exercício das artes de curar no Rio de Janeiro durante a primeira metade do Oitocentos”. História Ciências Saúde Maguinhos. Rio de Janeiro, volume: 11, suplemento 1, 2004. 15 MARQUES, Vera Regina Beltrão. “Medicinas Secretas magia e ciência no Brasil Setecentista”. In: CHALHOUB, Sidney. (Org.) Artes e Ofícios de Curar no Brasil. 1ª reimpressão. Campinas: Editora Unicamp, 2009, p. 177. 16 LATOUR, Bruno. Jamais Fomos Modernos Ensaio de antropologia simétrica. Tradução: Carlos Irineu da Costa, 2ª Edição. São Paulo: Editora 34, 1994. 17 SALGADO, Vieira. “Exercício ilegal da odontologia – Memória apresentada ao 6º Congresso Brasileiro de Medicina e Cirurgia”. Revista Odontológica Paulista. São Paulo. Volume: 04, nº 02, janeiro de 1908, p.18. 18 “O Preço dos Medicamentos”. Revista Farmacêutica. São Paulo. Volume 02, nº 04, 15 agosto de 1896, p.49. 19 “Conferência feita no ‘Salão Steinway’ sobre a ciência e especialmente a química, pelo farmacêutico Reynaldo Ribeiro”. Revista Farmacêutica e Odontológica. São Paulo. Volume: 07, nº 05, 30 de maio de 1903, p. 70 - 71. 20 LATOUR, Bruno, 2011, p. 60. 21 “Escola Livre de Farmácia e Arte Veterinária e o projeto de regulamento para o exercício da farmácia”. Revista Farmacêutica. São Paulo. Volume: 04, s/n, setembro de 1898, p. 78. 22 “Esta forma de poder aplica-se à vida cotidiana e imediata que categoriza o indivíduo, marca-o com sua própria individualidade, liga-o à sua própria identidade, impõe-lhe uma lei de verdade, que devemos reconhecer e que os outros têm que reconhecer nele. É uma forma de poder que faz dos indivíduos sujeitos”. FOUCAULT, Michel, 1985, p. 235. 23 D’AZIR. “De Mês em Mês”. Revista Farmacêutica. São Paulo. Volume: 01, nº 03, 15 de julho de 1895, p. 60. 24 SALGADO, Vieira. “Discurso pronunciado pelo Dr. Vieira Salgado, em sessão solene de posse, na sede da Sociedade Odontológica Paulista”. Revista Odontológica Paulista. São Paulo. Volume: 02, nº 08, setembro de 1906, p.28. 25 SLOTERDIJK, 2004. 26 Apesar da proibição legal às práticas de cura desempenhadas por curandeiros, ervanários e barbeiros: “Os reclames de remédios secretos evidenciavam a continuidade dessas preparações no Oitocentos, à revelia das ordens emanadas da Fiscatura-mor, nas quais constava a obrigatoriedade de comunicar as fórmulas desses medicamentos para que fossem estudados pelas autoridades competentes”. (MARQUES, 2009, p.177). 27 (Ibid., p.33). 28 “Escola de Farmácia, Odontologia e Obstetrícia de São Paulo”. Revista Farmacêutica e Odontológica. São Paulo. Volume: 07, nº 12, dezembro de 1903. p. 187-189. 29 “Acta da 1ª reunião”. Revista Farmacêutica. São Paulo. Volume: 04, nº 06, outubro de 1898, p. 141. 30 As associações de farmacêuticos do período condenavam veemente que o médico indicasse o profissional que prepararia o medicamento receitado, sendo assim, esse artigo discutia a legitimidade deste tipo de união, na qual o médico poderia indicar aos pacientes que comprassem medicamentos na farmácia de sua esposa. 31 QUEROZ, Luis Pinto de. “Interesses Profissionais”. Revista Farmacêutica. São Paulo. Volume: 01, nº 03, 15 de julho de 1895, p. 153. 32 “Escola Livre de Pharmacia de S. Paulo Sessão de Instalação realizada 11 de fevereiro de 1899”. Revista Farmacêutica. São Paulo. Volume: 04, nº10, 15 de fevereiro de 1899, p. 176. 33 Foram citadas: Dona Catulitia Ribeiro, D. Brites Álvares, D. Clymente de Andrade, D. Vera Andrade, D. Maria Augusta Nogueira e D. Deolina Bigale. “Lista dos Sócios da Sociedade Odontológica Paulista inscritos até 30 de novembro de 1905”. Revista Odontológica Paulista. São Paulo. Volume: 01, nº 04, novembro de 1905, p.30-32. 34 ANDRADE, Clymente. “Conferência feita pela distinta Cirurgiã Dentista D. Clymente de Andrade, no dia 27 de Dezembro de 1905”. Revista Odontológica Paulista. São Paulo. Volume: 01, nº 05, fevereiro de 1906, p. 07 08. 35 Ibid., p. 10. 36 ANDRADE, Vera. Conferência feita pela distinta Cirurgiã Dentista D. Vera de Andrade, no dia 03 de julho de 1906. In: Revista Odontológica Paulista, vol. 02, n. 07, julho de 1906, p. 03.

1208

“Ierecê a guaná” e a etnografia romanesca do Visconde de Taunay Isadora Tavares Maleval* Resumo: Alfredo d’Escragnolle Taunay (1843-1899) tornou-se conhecido pelo uso que fez de suas experiências de vida para criar enredos ficcionais. Este artigo propõe a análise da novela “Ierecê a guaná” (1874), de certo modo fruto dos meses em que Taunay conviveu com os índios durante a Guerra do Paraguai, observando seus costumes e aprendendo sua língua – algo sem dúvida inédito no cenário intelectual brasileiro da época. Palavras-chave: Visconde de Taunay – Literatura – Guerra do Paraguai Abstract: Alfredo d’Escragnolle Taunay (1843-1899) became known for the use he made of his life experiences to create fictional scenarios. This article proposes the analysis of the novel “Ierecê a guaná” (1874) as a product of the months that Taunay lived with the Indians during the War of Paraguay, observing their customs and learning their language – something unprecedented on the intellectual scene Brazil at the time. Key-words: Viscount of Taunay – Literature – War of Paraguay

Antonio Candido, em sua Formação da Literatura Brasileira, editada primeiramente em 1959, identificava na obra do Visconde de Taunay um importante diferencial em relação a outros autores do século XIX – a “experiência” como ingrediente decisivo para a produção literária do escritor: [...] nem bacharel nem médico, mas militar, enfronhado em problemas práticos, é particularmente um caso raro na literatura do tempo, para a qual trouxe uma rica experiência de guerra e de sertão, depurada por sensibilidade e cultura nutridas de música e artes plásticas. Esta combinação de senso prático e refinamento estético fundamenta as suas boas obras e compõe o traçado geral da sua personalidade1.

Sem sombra de dúvidas, esta é uma característica que salta aos olhos na leitura dos textos produzidos por Alfredo d’Escragnolle Taunay, tanto os fictícios, quanto os de outras categorias. Pode-se igualmente inferir, contradizendo um pouco Candido, que sua formação em letras, adquirida no Colégio Pedro II, acabou fornecendo subsídios à escrita que empreendeu e que tinha como pano de fundo, sobretudo, o período da Guerra do Paraguai. Além de bacharel em letras, Taunay diplomou-se em ciências físicas e matemáticas da Escola Militar em 1859, por imposição familiar3. Em 1864 – ano em que teve início aquele conflito bélico – matriculara-se no curso de engenharia militar da Praia Vermelha e foi promovido a segundo-tenente de artilharia (antes, atuava como soldado do 4º batalhão de

1209

artilharia a pé). Enviado, em 1865, para o Mato Grosso na comissão de engenheiros, Taunay partiu com a missão de repelir os paraguaios daquela província. Mas só chegou ao teatro da guerra em 1867, devido à demora, como conta nas suas Memórias, do comandante da tropa em sair de Campinas4. Dali por diante, vivenciaria as experiências que mais lhe renderam subsídios para a escrita – atividade que acabou por torná-lo conhecido e pela qual quis ser conhecido. Podemos afirmar que escrever sobre aquele tempo foi uma das mais recorrentes atividades do Visconde de Taunay: aquela viagem transformou o jovem militar em escritor 5. Daí veio o epíteto de “Xenofonte brasileiro”; assim como o autor da Antiguidade, que narrou os eventos da “retirada dos dez mil”, dos quais participou na qualidade de comandante6, Taunay escreveu imensa obra que tinha como foco o que viu e ouviu na terrível guerra contra o país vizinho. O trabalho mais prestigioso foi sem dúvida alguma A Retira da Laguna, que narrou a derrota sofrida pela coluna da qual Taunay fez parte em 1867: após a invasão do norte paraguaio pelas tropas brasileiras, por falta de armamentos e alimentos, foi iniciada a retirada7. O escritor também serviu-se daquele período de sua vida para elaborar outros trabalhos, tais como o Relatório geral da comissão de engenheiros (1867), redigido ao longo da campanha do Mato Grosso; Scenas de viagem (1868), em que narrou a viagem de reconhecimento que fez, em 1866, pelo sul daquela província, durante a qual travou contato com índios de diversas etnias 8; Diário do Exército (1870), sobre a ocupação do Paraguai e a morte de Solano Lopes; Narrativas militares (1878), conjunto de contos numa conformação entre romance, epístola e história9; e Céus e terras do Brasil (1881), que conta com relatos de viagem do autor e, portanto, não poderia deixar de trazer a descrição das regiões que visitou por ocasião da Guerra. Além dessa escrita oficial e técnica, Taunay utilizou as experiências que teve a seu favor em outros tipos de textos. Em seu romance mais conhecido, Inocência (1872), a natureza descrita é, justamente, a do “sertão” do Brasil. Esta palavra foi usada pelo literato para nomear a região quase despovoada e inculta que ele percorreu, e que ia desde Uberaba até a fronteira com o Paraguai, abrangendo o sul das províncias de Goiás e Mato Grosso. Região ao mesmo tempo “esplendorosa” e inóspita10. Em várias passagens do romance o autor cita as referências adquiridas ao longo do tempo em que passou no “sertão”, sendo elas usadas para compor o ambiente e os personagens. Ao tratar do caminho que a tropa percorreu de Camapuã à entrada de Sant’Ana do Parnaíba, por exemplo, contava que se encontrou com um anão, “[...] mudo, mas um tanto gracioso, sobretudo ágil nos movimentos, que me serviu de tipo ao Tico do meu romance Inocência”11.

1210

Essa experiência no interior do Brasil possibilitou, além disso, uma nova visão do país por Taunay, que até então nunca havia saído do Rio de Janeiro. A própria ideia de nação brasileira construída pelo autor em seus vários trabalhos demonstra uma espécie de associação entre a imagem do Brasil que recebeu do Romantismo e a que obteve a partir da bagagem adquirida por sua participação na Guerra do Paraguai12. Por conta deste conflito, Taunay conheceu muito bem o “sertão paradisíaco”, ao contrário de outros autores nacionais, como José de Alencar, que tratavam da natureza13 e dos habitantes do interior do país sem nunca terem posto os pés fora de seus gabinetes. Ou dos internacionais, como o ilustre François-René de Chateaubriand, que adorava tratar de temáticas nativistas em seus romances, ao que tudo indica desconhecendo a realidade delas. Taunay, inclusive, chegou a comparar em suas Memórias os dois autores naquilo que eles distorciam em relação à natureza e ao índio: Parecendo muito nacional [, Alencar] obedecia mais do que ninguém à influência dos romances franceses. [...] Dos índios fez Alencar heróis de verdadeiras fábulas, oriundas dos Natchez, Atala e Réné14, a falar com linguagem poética e figurada de exuberância e feição oriental15.

Taunay, inversamente, pôde confrontar na prática as ideias de Rousseau sobre o “bom selvagem”, pois viveu naquele ambiente hostil “[...] a doçura da vida não civilizada e o contato do homem bom de índole, mas inculto e agreste”16: Conheci-os bem de perto, com eles convivi seis meses a fio e pude observá-los detidamente. E eram aborígenes de procedência e cunho mais elevados, chanés de Mato Grosso que se dividem em quatro numerosos grupos – chooronós ou guanás, kinikinaus, laianos e terenas. Decerto tinham fraseologia por vezes pitoresca, mas daí a conversações todas de tropos e elegantes imagens há um mundo17.

Por tudo isso, preferia os romances urbanos de Alencar, como contou em um artigo publicado em Reminiscencias (1908). O primeiro livro citado era Minas de prata (1862-1865), que o Visconde considerava uma das obras-primas daquele autor, porque com menor “possança imaginativa” que O Guarani (1857), por exemplo18. Não podia deixar de mencionar também um dos últimos e mais importantes romances do literato cearense, Senhora (1875), verdadeiro testemunho dos tempos que então jaziam no passado – o Império19. É notável, nesses casos, a importância conferida por Taunay a narrativas que eram compostas a partir da observação direta, levando em conta o que havia sido experimentado pelo autor. Como esta era uma particularidade do seu próprio modo de escrever, faz sentido que procurasse em seus contemporâneos o mesmo afã, muito provavelmente com o intuito de diferenciar-se e elevar-se deles. Isso porque o valor de sua obra consistia, justamente, na autenticidade dos modelos, que conferiam um valor documentário à sua ficção20. Por sua

1211

excessiva preocupação com a fidelidade do narrado21, Taunay acreditava que Inocência lançaria as bases da autêntica literatura brasileira, “[...] ao unir a reprodução da fala sertaneja com ‘descrições perfeitamente verdadeiras’ da natureza”22. Em outros textos trouxe à tona o grande tipo do movimento romântico nacional: o índio. A novela “Ierecê a guaná”, incluída em Histórias brasileiras (1874), fruto dos meses em que conviveu com os índios no distrito de Miranda, ao sul da província, observando seus costumes e aprendendo sua língua, representava algo inédito no cenário intelectual brasileiro da época. Taunay se gabava repetidamente de ter sido o único escritor de sua geração a passar por esse tipo de experiência23. Daí o despeito demonstrado em suas Memórias em relação ao sucesso de José de Alencar, que via o índio como um ser idealizado e, por isso mesmo, irreal. Falando da proximidade de Taunay com os indígenas, impossível não mencionar um episódio descrito exaustivamente em suas Memórias: o tórrido romance que teve com uma “[...] rapariga da tribo chooronó (guaná propriamente dita) e da nação chané”, a jovem Antônia. A paixão se deu à primeira vista: “E tão sedutora me pareceu que fiquei tolhido de surpresa e admiração e de súbito inflamado, achando-a muito, mas muito acima de quanta descrição me havia sido feita [...]”24. O desejo foi tamanho que Taunay acabou por tentar raptar a formosa índia, que então era a concubina de outro oficial do exército. Porém, só conseguiu consumar suas vontades depois de chegar a um acordo com o pai de Antônia: teria de entregar-lhe “[...] um saco de feijão, outro de milho, dois alqueires de arroz, uma vaca para corte e um boi [para] montaria [...]”25. Além disso, deveria haver o pleno consentimento de Antônia em deixar seu amante. Como Antônia, houve várias em situação semelhante, naquele contexto. Inclusive, em outro texto mais propriamente etnográfico, Taunay apresentou os costumes dos índios da região de vender suas filhas a “qualquer homem que a[s] queira[m] por companheira ou mero passatempo”26. Isto era tão rotineiro que um colega do escritor, que o ajudou a intermediar a “venda” de Antônia, indignava-se com a quantidade de pedidos feitos pelo pai da menina, dizendo que “Todas as índias juntas, [...] e mais algumas brancas por cima, não valem todo esse despotismo de cobreira!”27. Mais ainda que Taunay, além dos pedidos feitos, deu de presente à jovem um colar de contas de ouro, que havia lhe custado cerca de cinquenta contos de réis. No dia seguinte ao acerto ele alcançou seu intento, não sem antes ter de aplacar a fúria do antigo namorado28. Foi graças a esse relacionamento que Taunay parece ter tido um período agradável em meio aos desalentos da guerra, segundo dão conta os trechos a seguir: “A bela Antônia apegouse logo a mim e ainda mais eu a ela me apeguei”; “Embelezei-me de todo por esta amável

1212

rapariga e sem resistência me entreguei exclusivamente ao sentimento forte, demasiado forte, que em mim nasceu”; ao lado dela haviam transcorrido “[...] dias descuidosos e bem felizes, desejando de coração que muito tempo discorresse antes que me visse constrangido a voltar às agitações do mundo [...]”29. Ainda que fosse comum esse tipo de relação entre oficiais e as mulheres da região, não deixa de ser curioso o tom de forte nostalgia do qual se utiliza Taunay para descrever aquele tempo de sua vida. Vale indicar, ainda, que as Memórias do Visconde passaram muitos anos acolhidas na “arca do sigilo” do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB)30, até que sua publicação fosse realizada postumamente pelo esforço dos filhos do escritor, como era de sua vontade. A exposição de tamanha intimidade do autor, não apenas pelo que narra, mas pela forma como o narra (quase uma indecência para a época), pode ajudar a explicar tamanho anseio por privacidade. Ao que parece, ainda que haja censura em relação ao concubinato entre Alfredo e Antônia, tal relacionamento foi realmente muito importante para o escritor, a ponto de ocupar páginas e páginas de seu esboço autobiográfico e de não ter sido limado pelos seus filhos quando de sua publicação. Taunay chegou inclusive a tentar rever Antônia em outra ocasião, ao se despedir do Mato Grosso31. Este reencontro fez ressurgir todo o sentimento que Taunay nunca esqueceu: “Em mim deixou indestrutível lembrança de frescor, graça e elegância, sentimento que jamais as filhas da civilização, com todo o realce do luxo e da arte, poderão destruir nem desprestigiar!...”32. Após esse último encontro, da índia ficou a nostalgia: “Pensando por vezes e sempre com sinceras saudades daquela época, quer parecer-me que essa ingênua índia foi das mulheres a quem mais amei”33. O caso com Antônia garantiu pitadas de romance à obra autobiográfica de Taunay. Aos olhos do memorialista, ali estava a verdadeira Iracema, porque concreta, não “a virgem dos lábios de mel” que Alencar tornaria imortal. Será mesmo? Fora das Memórias, o romance com Antônia inspirou a escrita do conto “Ierecê a guaná”, já mencionado. Nele, o aventureiro Alberto Monteiro, em viagem pelo interior do Brasil, acaba se estabelecendo, no período em que convalescia de uma doença, na aldeia dos quiniquinaus, próxima ao distrito de Miranda. Lá ele conhece o velho Morevi, índio “mandingueiro” que lhe oferece sua neta, Ierecê, em “casamento”34. Ao contrário do acordo que o próprio Taunay teve que travar com o pai de Antônia no seu passado “real”, Alberto só precisou aceitar a proposta de Morevi para ter Ierecê como sua companheira. Esta pouco pareceu se importar com a combinação; sua atenção estava toda voltada para o colar de contas de ouro que Alberto lhe dera35 – representação semelhante, ainda que distinta em muitos pontos, do que ocorreu a Taunay.

1213

A índia guaná – pois, como explica Morevi, sendo filha de pai guaná e mãe quiniquinau, era considerada da primeira nação – é descrita por Taunay como “mulher de altura regular e porte elegante” e em vários aspectos se aproxima do retrato de Antônia descrito nas Memórias36. O conto narra ainda o aprendizado de Alberto na língua chané e o cotidiano do casal37. Ierecê, aos poucos, se civilizava por meio do contato com o namorado; ao mesmo tempo, permanecia nela o que agradava o “português” 38, o que era por ele considerado “bom e poético”: “[...] assim, frequentemente entretecia capelas e colares de flores para os cabelos e braços e todos os dias renovava a elegante palma ou a folha de samambaia mimosa que, segura por delgado cordão, lhe acariciava a fronte como verdejante penacho”39. Desse modo, é possível constatar a existência, nesse texto de Taunay, de aspectos de atração e repulsa em relação ao modo de ser do índio, a tensão do civilizado em face do bárbaro40. O desfecho do conto, por esse motivo, só poderia tomar uma direção: a separação dos amantes. E, enquanto para Alberto, era a civilização que o esperava de volta (e para onde ele se dirigia com manifesta felicidade), para Ierecê foi impossível retomar a mesma vida que tinha antes, só lhe restando a morte41. Uma coisa era certa: tanto no passado nostálgico do maduro Taunay, descrito nas Memórias, quanto no tempo mais recente que inspirou “Ierecê a guaná”, a possibilidade de que o romance do homem branco com a índia prevalecesse era inviável. Sobre isso, Taunay dá pistas ao narrar a despedida final de Alberto e Ierecê: “As suas relações que aqui eram muito lícitas e naturais tornar-se-iam em qualquer outra parte quase impossíveis e motivos justo de escândalo”42. Nessa mesma lógica, compreende-se, em parte, o motivo de resguardar as Memórias, levando em consideração a exposição – tão calorosa – do envolvimento entre os namorados.

Importa reiterar os pontos do conto que expressam ora a proximidade com aquilo que foi vivido pelo autor no Mato Grosso, ora um afastamento disso – uma espécie de “licença poética”, necessária para conferir à narrativa seu aspecto romanesco. Em primeiro lugar, o modo como se inicia o texto, descrevendo com uma linguagem técnica e direta aspectos geográficos, históricos e da natureza da região, introduz o leitor naquele universo tão bem conhecido pelo autor. Do mesmo modo, ele gasta tintas em apresentar detalhadamente os personagens centrais do conto, sobretudo os de origem indígena. Neste caso, passa algumas páginas fazendo uma análise etnográfica, ainda que prenhe de preconceitos e idealizações do escritor urbano, como se pode ver a partir da passagem a seguir: Os viajantes se adiantaram sem demora e foram recebidos com a maior benevolência por um idoso quiniquinau que sentado à porta se levantou com a presteza que lhe permitiam as cansadas juntas. Nu da cintura para cima, tinha uma espécie de saia que lhe descia aos

1214

calcanhares, toda ornada de vidrilhos e contas de cor. O rosto, pescoço e tronco estavam sarapintados de desenhos e cortados de linhas vermelhas e pretas feitas com o suco do urucu e do jenipapo, mas aqueles sinais, destinados principalmente a incutir terror nos que o fitassem, se conseguiam disfarçar a cor de tijolo queimado da pele, nem de leve modificavam a expressão natural de timidez e bondade que caracteriza em geral a fisionomia dos índios guanás e quiniquinaus43.

Posteriormente, o narrador indica o porquê de o indígena apresentar-se daquele modo: estava em meio a “barulhentas vigílias”, um período de constantes rituais religiosos. Neste ponto, a descrição incorpora ainda novos elementos de sua vestimenta sacerdotal – um espanador de penas de ema, um chocalho e um “couro sem pelo estendido diante da porta”, com o qual fazia movimentos de avanço e recuo44. Este exemplo colabora com o argumento de que Taunay, acima de tudo, tinha um grande interesse etnográfico em observar e registrar tudo o que considerasse importante durante sua vivência no interior do país. Chegou a expressar tal fascínio logo no início da novela, através da voz de seu protagonista: “Vir a Mato Grosso e não conviver algumas semanas com seus amáveis aborígenes, é falta imperdoável em viajante do meu quilate”45. O uso constante que faz de informações a respeito dos costumes dos índios da região e de sua língua corrobora aquela assertiva, do mesmo modo que a presença de notas de rodapé explicativas do significado de determinadas expressões chanés utilizadas no texto 46 demarca a preocupação do autor em demonstrar um conhecimento quase científico sobre a temática, mesmo em um texto ficcional47. Em outro trecho, reforça o conhecimento sobre as diferentes nações indígenas, sobretudo em relação às distintas formas em que elas se expressavam linguisticamente. Imaginação poética e etnografia (ainda que amadora 48) aparecem, nesse caso, lado a lado na escrita de Taunay. Ao comentar sobre a língua chané, falada pelos índios da região, o autor indica, em nota de rodapé, uma importante informação que consta, inclusive, de suas Memórias e de seu tratado “Os índios do distrito de Miranda”, publicado inicialmente em Scenas de viagem49: a de que esta língua “[...] serve com ligeiras alterações para as quatro tribos em que se divide a nação chané: terenas, laianos, quiniquinais e guanás” 50. O conto, nesse sentido, ganha contornos de estudo do ambiente experimentado por Taunay durante a Guerra do Paraguai. Isso abarca tanto aspectos da natureza e da geografia da região, quanto de seus habitantes mais antigos. Não é incomum na literatura de Taunay esse tipo de traço. Inocência, por exemplo, também é iniciada com uma espécie de contextualização, na qual explora aspectos do sertão e do sertanejo. No caso de “Ierecê a guaná”, o foco recai sobre a população indígena e a natureza da região, mas também sobre uma conjuntura bem específica, anterior à Guerra do Paraguai: “Nessa época, já próxima da invasão que o ditador do Paraguai Lopez ideava, raros eram,

1215

contudo, aqueles que, nos mais chegados lugares da fronteira, supusessem possível uma guerra provocada pela república confinante”51. Ao contrário do que ocorreu ao próprio Taunay, o ano em que começa essa história de amor, conforme indica o autor, é 1861, não 1867. Tal recuo no tempo, entretanto, não diminui o forte aspecto memorial do conto. Pode-se dizer, portanto, que “Ierecê a guaná” não era um retrato fiel do passado de Taunay. Ao mesmo tempo em que há uma premissa clara do autor em abranger uma dada realidade, ele acabava por sobrepujá-la, criando algo novo52. O próprio protagonista, Alberto, a despeito das semelhanças (inclusive no nome, vale indicar), era bem diferente de Alfredo. Segundo Sérgio Medeiros, ele era mais um “dândi com tédio”, do que alguém como Taunay, que acalentava se distinguir pelas letras e ciências. O personagem “viajava por mera distração”53 quando chegou à região junto com uma comissão de caráter militar enviada pelo governo central, assim como aquela da qual participou o seu criador. Ainda que aquele fosse um momento anterior à guerra contra o país vizinho, Taunay observava o iminente caráter belicoso e conquistador de Solano López. Como em outras situações, o autor usa o recurso de “adiantar” narrativamente acontecimentos históricos54. Mesmo o relacionamento descrito era de natureza distinta daquele narrado nas Memórias: enquanto para Alberto, Ierecê foi, no máximo, foco de um interesse exótico, para Alfredo Taunay, Antônia foi uma “das mulheres que mais amou” em sua vida 55. Nota-se, igualmente, que, se o uso da experiência vivida (no caso, da relação com Antônia) contribuiu para a escrita do conto, isso não foi assumido por Taunay no momento da publicação do mesmo. Tampouco aparece essa referência em outros trabalhos do autor. Há menção à Antônia no opúsculo já mencionado, “Os índios do distrito de Miranda”. O tom seco e técnico, que muito tem a ver com o caráter etnográfico do texto, entretanto, não permite a um leitor desavisado perceber nada além do interesse quase científico do escritor em relação ao povo indígena: O guaná, no distrito [de Miranda], quase tem desaparecido nas raças branca, índia ou negra, que o cercam. Vimos, porém, uma índia, chamada Antônia, filha de um pai quiniquinau e mãe guaná, que sobre ser verdadeiro tipo de beleza pela venustade do rosto, delicado da epiderme e elegância do corpo, tinha suma graciosidade e donaire56.

Somente com a maturidade advinda pela idade e com o respaldo garantido pela arca do sigilo do IHGB foi que Taunay assumiu de maneira tão escancarada seu amor por Antônia. Aos leitores da década de 1940 – tempo em que pediu que fossem publicadas suas Memórias – caberia julgar de maneira positiva ou negativa – como sentimento verdadeiro ou como motivo “justo de escândalo” – aqueles dois meses no Mato Grosso em plena Guerra do Paraguai. A omissão não foi, portanto, mecânica: Taunay só se sentiu à vontade para assumir o que

1216

aconteceu no distrito de Miranda muito tempo depois, em uma obra que, ainda por cima, seria publicada postumamente57. Apenas no final de sua vida conseguiu revelar os detalhes do romance real, muito provavelmente rememorado de forma idealizada 58. Em que pesem as diferenças, sendo Antônia ou Ierecê, a índia de Taunay não deixava de ser uma personagem, tanto quanto a Iracema de Alencar59. *

Doutora em História Política pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Atualmente faz o estágio de PósDoutorado na mesma instituição, sob supervisão da Professora Doutora Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves, e através de auxílio financeiro da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). E-mail: [email protected] 1 O texto em questão foi publicado em Formação da Literatura Brasileira, mas a edição consultada está contida em uma compilação mais recente. Ver: CANDIDO, Antonio. “A sensibilidade e o bom senso do Visconde de Taunay”. In: MEDEIROS, Sérgio (org.). Ierecê a guaná. São Paulo: Iluminuras, 2000, p. 95. 3 TAUNAY, Alfredo D’Escragnolle. Memórias. Rio de Janeiro: Edições Melhoramentos, [1948], p. 69. 4 Ibidem, p. 119-129. As Memórias do Visconde de Taunay foram escritas após a queda do regime monárquico, entre 1890 e 1892, e guardadas no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, como se verá. 5 CASTRILLON-MENDES, Olga Maria. “Taunay viajante: uma contribuição para a historiografia literária brasileira”. Revista do IEB, n. 46, p. 222, fev. 2008. 6 Xenofonte relatou sobre a “retirada dos dez mil” em um dos sete volumes da Anábasis, que narra acontecimentos ocorridos entre 401 e 399 a.C. Curioso notar, além disso, que o próprio Taunay devia intuir, de antemão, a comparação que dele seria feita em relação ao historiador da Antiguidade. Ele inclusive esclarece nas Memórias que, dentre as leituras dos clássicos que fez em plena Guerra do Paraguai, estavam dois volumes da obra de Xenofonte. TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. Op. cit., [1948], p. 377. 7 TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. A Retirada da Laguna. Organização de Sergio Medeiros. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 26. A primeira versão desta obra foi feita em francês, logo após o primeiro retorno de Taunay ao Rio de Janeiro, em 1868; a versão integral só foi impressa em 1871, por ordem do Visconde de Rio Branco. Foi traduzida pela primeira vez para o português em 1874, por Salvador de Mendonça, e sua edição definitiva, que saiu publicada em Paris com prefácio e revisão de Xavier Raymond, data de 1879. 8 Esta obra inclui, ainda, um vocabulário da língua guaná ou chané. Cf. MEDEIROS, Sérgio. “A volta de Ierecê”. In: MEDEIROS, Sérgio (Org.). Op. cit., 2000, p. 11. 9 MUNHOZ, Patrícia. Hibridismo e conflitos morais em Narrativas militares (1878), do Visconde de Taunay. 2008. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Estadual Paulista, Botucatu, 2008, p. 107. 10 TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. Op. cit., 1997, p. 16. 11 Idem. Op. cit., [1948], p. 270. Conferir também as páginas 273 e 275. 12 Para uma análise mais detalhada dessa contradição, ver MARETTI, Maria Lídia Lichtscheidl. O Visconde de Taunay e os fios da memória. São Paulo: Editora UNESP, 2006, p. 71. 13 Nota-se que a natureza que aparece na obra de Taunay é vista mais como algo a se enfrentar do que a ser contemplado. Ibidem, p. 92. 14 Referências aos famosos romances de Chateaubriand. 15 TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. Op. cit., [1948], p. 166. 16 Ibidem, p. 186. 17 A crítica de Taunay consistia na forma como o indígena se expressava linguisticamente nas obras de Alencar. Ibidem, p. 166. 18 TAUNAY, Visconde de. Reminiscencias. São Paulo: Melhoramentos, [1923], p. 91. 19 Ibidem, p. 211. 20 Neste caso, percebe-se uma interlocução da escrita de Taunay com a pintura. Vale lembrar que era filho e neto de grandes artistas do século XIX: Félix Emílio Taunay e Nicolas-Antoine Taunay, respectivamente. Cf. CANDIDO, Antonio. Op. cit., 2000, p. 100. 21 CASTRILLON-MENDES, Olga Maria. Op. cit., p. 225, fev. 2008. 22 TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. Op. cit., [1948], p. 168. 23 MEDEIROS, Sérgio. “Introdução”. In: TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. Op. cit., 1997, p. 17. 24 TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. Op. cit., [1948], p. 201. 25 Ibidem, p. 201. 26 TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. “Os índios do Distrito de Miranda”. In: MEDEIROS, Sérgio (Org.). Op. cit., 2000, p. 66. 27 Idem. Op. cit., [1948], p. 202.

1217

28

Ibidem, p. 202. Ibidem, p. 207. 30 A “arca do sigilo” foi um projeto idealizado pelos sócios do IHGB na década de 1830, ainda que apenas concretizado nos anos finais do oitocentos, logo após a queda do regime monárquico. De modo geral, estipulavase que documentos que versassem sobre eventos políticos atuais de grande complexidade ou sobre personagens neles atuantes deveriam ser guardados nessa espécie de depósito para que só em momento julgado oportuno fossem publicados. Tratei dessa temática de forma aprofundada em minha tese de doutorado “Entre a ‘arca do sigilo’ e o ‘tribunal da posteridade’: o (não) lugar do presente nas produções do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889)”, defendida neste Programa de Pós-Graduação. 31 TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. Op. cit., [1948], p. 220-222. 32 Ibidem, p. 222. 33 Ibidem, p. 207. 34 Idem. “Ierecê a guaná”. In: MEDEIROS, Sérgio (Org.). Op. cit., 2000, p. 31. 35 Ibidem, p. 32. 36 Ibidem, p. 30-31. 37 Ibidem, p. 33. 38 Segundo o próprio Taunay conta, assim eram denominados todos os que não eram índios no Mato Grosso. Ibidem, p. 35. 39 Ibidem, p. 35. 40 MEDEIROS, Sérgio. “As vozes do Visconde de Taunay”. In: MEDEIROS, Sérgio (Org.). Op. cit., 2000, p. 126. 41 Ibidem, p. 131. 42 TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. “Ierecê a guaná”. In: MEDEIROS, Sérgio (Org.). Op. cit., 2000, p. 52. 43 Ibidem, p. 28. 44 Ibidem, p. 39. 45 Ibidem, p. 23. 46 Ibidem, p. 29-30. Outro exemplo disso é a descrição feita pelo autor, em nota, da contagem de tempo pelos índios daquela região: eles usavam o termo “paratudos”, devido à árvore de mesmo nome que floresce anualmente. Cf. Ibidem, p. 45. 47 Para Afrânio Coutinho, Taunay era mais um homem da ciência do que um “puro escritor”. Citado em: CASTRILLON-MENDES, Olga Maria. Op. cit., p. 225, fev. 2008. 48 MEDEIROS, Sérgio. “As vozes do Visconde de Taunay”. In: MEDEIROS, Sérgio (Org.). Op. cit., 2000, p. 131. 49 Utilizei a mais recente edição do texto, publicada na coletânea organizada por Sérgio Medeiros. Op. cit., 2000, p. 57-72. 50 TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. “Ierecê a guaná”. In: MEDEIROS, Sérgio (Org.). Op. cit., 2000, p. 29. 51 Ibidem, p. 19. 52 CASTRILLON-MENDES, Olga Maria. Op. cit., p. 233, fev. 2008. 53 TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. “Ierecê a guaná”. In: MEDEIROS, Sérgio (Org.). Op. cit., 2000, p. 20. 54 Por exemplo, quando descreve o distrito de Miranda, considerado pelos seus habitantes como uma cidade – algo que, segundo Taunay, não passava de um grande exagero. Somente em um “futuro não muito remoto”, como ele diz, é que esse título poderia ser dado ao local, por conta de suas relações com as províncias de São Paulo e Paraná. Ibidem, p. 16. 55 MEDEIROS, Sérgio. “As vozes do Visconde de Taunay”. In: MEDEIROS, Sérgio (Org.). Op. cit., 2000, p. 124. 56 Ibidem, p. 59. 57 Ibidem, p. 120. 58 Ibidem, p. 127. 59 Para Lúcia Sá, a história de Iracema e de Ierecê tinha mais em comum do que Taunay gostaria de assumir. Apesar do realismo da obra do Visconde, ele não conseguiu fugir de muitos clichês românticos da época. Cf. SÁ, Lúcia. “Índia romântica. Brancos realistas”. In: MEDEIROS, Sérgio (Org.). Op. cit., 2000, p. 139. Já Haroldo de Campos entende que Ierecê, como personagem, está mais próxima da Atala de Chateaubriand, do que de Iracema. CAMPOS, Haroldo. “Do verismo etnográfico à magia verbal”. In: MEDEIROS, Sérgio (Org.). Op. cit., 2000, p. 166. A título de curiosidade, destaco que Taunay em sua autobiografia não cita “Ierecê a guaná” em nenhum momento. Aliás, o único romance que é mencionado (inclusive de forma exaustiva) é Inocência. Parece supor que só ele mereceria a apreciação da posteridade. 29

1218

Se os religiosos, e monges só cuidassem na conservação dos bens espirituaes:a política regalista de Carvalho e Melo e o tratado de proibição de posse de bens por religiosos Iverson Geraldo da Silva*

Resumo: Após o Terremoto de 1755, Carvalho e Melo iniciou uma trajetória de enfrentamentos com algumas estruturas chaves do Antigo Regime, visando o fortalecimento do poder monárquico. A Igreja foi uma dessas estruturas. A presença jesuítica e o cabedal econômico que religiosos formaram, foram alvos das proposições do ministro. Esta comunicação se propõe analisar o tratado escrito por Carvalho e Melo no qual dissertou sobre a formação de bens por parte da Igreja, relacionando com a questão do “regalismo” em Portugal.

Palavras-chave: Sebastião José de Carvalho e Melo, Igreja, Regalismo Abstract: After the earthquake of 1755, Carvalho e Melo began a path of confrontation with some Old Regime key structures in order to strengthen the monarchy. The Church was one of those structures. The Jesuit presence and economic leather that religious formed, were targets of the minister's proposals. This communication aims to analyze the treatise written by Carvalho e Melo in which spoke about the formation of goods by the Church, relating to the issue of "regalismo" in Portugal. Key Words: Sebastião José de Carvalho e Melo, Church, Regalismo

INTRODUÇÃO Entre os anos de 1750 e 1777, Portugal esteve sobre o que costumeiramente chamouse Período Pombalino. Reinado de D. José, Sebastião José de Carvalho e Melo foi o ministro que maior influência exerceu sobre o monarca, principalmente após o terremoto de 1755. Após este evento, Carvalho e Melo introduz um conjunto de medidas que visavam uma “modernização” de Portugal e o reforço do poder monárquico. Para esta ultima medida havia dois grupos que foram enfrentados: a alta nobreza portuguesa e a Igreja, principalmente na figura dos padres da Companhia de Jesus. Neste artigo tentarei abordar um pouco da investida sobre a Igreja a partir de um tratado de Carvalho e Melo e pautando na questão do regalismo. A PROIBIÇÃO DA POSSE DE BENS, MORGADIO E A QUESTÃO DO REGALISMO Apesar de afirmar sinais de obediência aos ritos da Igreja, prestatividade em socorro e Bolsista Capes, doutorando em História pelo Programa de Pós Graduação em História da UFJF com a tese “Um Novo Portugal: Verney, Pombal e Melo Fraco”, orientado pela professora Drª Beatriz Helena Domingues *

1219

auxilio das ordens religiosas, além de fé nos dogmas religiosos, o ministro Sebastião José de Carvalho e Melo entendia que era necessário a separação da esfera pública do poder real, da esfera religiosa. Carvalho e Melo deu continuidade a medidas que já eram tomadas anteriormente, durante os governos dos antecessores de D. José. Pautou-se nesses e nos exemplos que outros países europeus (Áustria, França, Espanha...) davam sobre a relação Estado x Igreja, e a submissão da ultima a primeira. Esta submissão passava também pela questão das finanças acumulativas, em forma de heranças e bens, da Igreja e seus membros. Essa questão levou o ministro a escrever o Tractado em que se mostra que os religiosos Posto que em particular, ou em commum, não podem possuir bens de raiz, que herdassem, ou possuíssem, por mais tempo que anno, e dia.1 Neste tratado,2 Carvalho e Melo explicita os motivos para uma proibição de religiosos possuírem bens de raiz. Pois, para o ministro, esses bens ficavam estagnados, não geravam riqueza para o estado e eram isentos de pagarem as devidas taxas ao governo, justamente por pertencerem a Igreja ou seus oficiais. Certamente que, com este tratado, o ministro tentou atacar o acumulo de riqueza por parte da Igreja, o que lhe conferia uma influência considerável por deter um poder econômico junto a sociedade portuguesa. Este tratado, portanto, insere-se dentro do conjunto das Reformas Pombalinas que, como lembra Iris Kantor, “procuraram liquidar as jurisdições corporativas, restringindo a transferência de bens de raiz (nova legislação testamentária) às ordens religiosas”. 3 A linha de raciocino apresentada por Carvalho e Melo dividiu-se em duas etapas: primeiro, que o acumulo de riquezas por parte da Igreja entra em conflito com sua filosofia, ética e princípios cristãos; segundo, cabe ao Estado a regulamentação e a limitação do acesso a bens, tanto dos súditos quanto do clero regular. Assim, o fato de religiosos e a Igreja possuírem bens, para o estadista, significava a ruptura com o principal principio cristão da instituição, o voto de pobreza. Porém, a constituição de riqueza através da posse de bens de raiz pela Igreja não era algo que contrariava os princípios da Igreja, tomando como base o Concilio de Trento, que não proibia. Provavelmente, por este fato, Sebastião José Carvalho de Melo atacou diretamente esse enriquecimento, argumentando que a riqueza construída pelos religiosos era inimiga direta da virtude que os mesmos deveriam apresentar. Deste modo, argumentou assim: O voto principal dos regulares é certo, que consiste na pobreza. Por ella tem aquella antiga veneração, que se lhes deve, se a observam, do contrario se reputam como indignos, por se entregarem á gloria de possuir fundos, e riquezas consideráveis, sem pagar os tributos necessários, com que se gravam os vassallos seculares, quando devera consistir a sua gloria na observância dos votos, que professam, e nao em conservar, e adquirir os bens profanos, (...)Perdida aquella antiga veneração pela inobservância do voto de pobreza, se entregaram á cobiça, que é o veneno da caridade, e companheira da violência. Passaram de senhores de tudo quando pobres, a

1220

escravos de todo o mundo quando ambiciosos.4

Para o estadista, o voto rompido, levava os sacerdotes a criarem sentimentos conflituosos com sua vida espiritual. Acabavam ocorrendo um choque sobre o que era esperado do religioso e o que este demonstrava em suas ações, em alguns casos acabava agindo mais como enviado do “mal” do que de Deus. Assim, concluía que a avareza despertava tentações e colocava em risco a Igreja Daqui nasce o argumento da ruina, em que lentamente se radicam, e degeneram no horror de avarentos, não detestam esta abominável torpeza, como devem, por ser o pae, e mãe de todos os males; mas antes pela corrupção dos seus costumes fazem que a piedade da Igreja se suffoque a impulsos da opulência, que gerou, entranhando o ouro, que deve distribuir, (...), e expondo-se ao perigo de serem martyres do anjo máo, devendo dedicar-se todos a um Deus, que é bom.5

Por tudo isso, Sebastião José de Carvalho e Melo considerou que os religiosos deveriam atentar-se unicamente para as questões espirituais. Ligados exclusivamente a seus oficios, estariam cumprido suas obrigações para com Deus e não causariam atrito com as instâncias seculares, tanto na sociedade quanto no governo. Assim, Não acontecera deste modo se os religiosos, e monges só cuidassem na conservação dos bens espirituaes, que são os que devem possuir; porque então o seu exemplo não provocaria tantos seculares, aos quaes elles mesmos inquietam, intromettidos em negociações profanas, perturbando a republica com pleitos injustos, compostos para a sua destruição letal, e deixando os thesouros celestes, que unicamente devem conservar conforme os seus estatutos, pela gloria das riquezas deste mundo.6

Essa pratica era uma ação negativa, que atingia o fundamento da Igreja, na ótica do ministro. A aquisição de bens era, portanto, um “procedimento indecoroso”, resultando em uma “péssima doutrina” e na “inobservância dos preceitos da igreja”.7 Sebastião José de Carvalho e Melo sinalizou neste tratado que tanto a aquisição quanto a ação de incorporarem bens dos fiéis era um ato contra o reino. Atacava até mesmo o pacto do “padroado”, impedindo que o rei conseguisse recursos para manter as obras da Igreja em atividade. Assim, Fiados na duração dos seus mosteiros, e no poder do corpo delles respeitável, desprezada a composição dos litigantes seculares, para depois de seus fallecimentos confundirem os cordeiros, e obterem a sua rebeldia, ou por ajuste lesivo, proseguem, e continuam na vexação dos povos para lhes tirarem tudo, e se fazerem senhores de todos os bens temporaes, em prejuízo da republica de v. m. , que não pode sustentar-se desta forma, nem patrocinar, e defender a mesma Igreja.8

Em relação a essa questão Laurinda Abreu aponta que a Igreja e a constituição de riqueza pela mesma contribuíram para a complexificação do regime de propriedade que dominou Portugal do Antigo Regime, sendo uma das principais preocupações do estadista Carvalho e Melo e sua política legislativa. Pois, “o modelo de gestão patrimonial dos bens das almas escolhido por muitos fiéis foi, precisamente, o modelo organizacional que supostamente protegia, para a eternidade, o patrimônio das grandes famílias: o morgadio”.9 A analise de Laurinda Abreu sugere que muitas capelas de missas foram criadas seguindo o preceito jurídico do morgadio.

1221

Na prática isso significava que as capelas aprisionavam a favor das almas todo tipo de bens que, desta forma, eram retirados dos circuitos comerciais. É certo que a esmagadora maioria não tinha, em termos individuais, grande expressão económica, uma vez que estava condicionada à terça – a terça parte dos bens que o direito pátrio permitia que o testador usasse livremente. Todavia, residia aí uma das maiores fragilidades do sistema. Com uma grande representação dos grupos sociais menos favorecidos, as fundações de missas encapelavam perpetuamente uma diversidade de formas de propriedade, que podia ir da simples fracção de um prédio – urbano ou rural -, a apenas algumas rendas desses mesmos imóveis. Em qualquer dos casos, por mais reduzido que fosse o vínculo, ele imobilizava todo o 'bem' que sofria o ónus da vinculação.10

A Igreja, neste esquema, tornava-se uma das regulamentadoras do comportamento econômico, sendo considerada um elemento de bloqueio ao desenvolvimento econômico de Portugal na avaliação de Sebastião José de Carvalho e Melo. 11 Tanto que o estadista afirma claramente que a Igreja, através de seus clérigos, “confundem” seu rebanho no intuito de se apropriarem de suas riquezas em prejuízo direto contra o Estado e o rei. Reforçando a tese de Laurinda de Abreu, na concepção de Carvalho e Melo, havia o risco de que “os prédios rústicos e urbanos se-hão incorporar as igrejas, mosteiros, confrarias e capelas se v. m. o não acautelar”.12 Aprofundando sua crítica, o estadista Carvalho e Melo acabou comparando o ato dos religiosos como a revolta de Lúcifer contra Deus, já que os motivos que levavam aqueles a incorporação de bens, eram os mesmo que levaram Lúcifer a rebelião no céu: Desta perturbação, e tenacidade das demandas, entre os vassallos monachaes, e seculares, resulta contra os regulares uma concludente conjectura da corrupção dos costumes, á similhança de Lúcifer, e distracção por inveja, soberba, honra, e avareza, tudo contra os votos que professaram, e certamente cessariam com a privação dos bens.13

Por tanto, se havia permissão do Papa para o acúmulo de bens por parte das Ordens, estas também dependiam da permissão do monarca. Caso contrário, caracterizava-se uma rebelião. Carvalho e Melo, provavelmente, delimitava no seu entendimento os espaços de ação, de maneira comparativa, entre os poderes. Reforçava o que já apontamos para a questão do reforço do absolutismo em território luso-brasileiro. Assim, através da proibição o monarca estava exercendo sua autoridade sobre as questões terrenas, devendo ser respeitado, assim como o Papa era na instância da autoridade espiritual. Pois para Carvalho e Melo, o poder do rei foi instituído pelo próprio Deus, sendo junto com o Papa seu representante na terra. O primeiro representante na instância temporal e o segundo na espiritual. Isto ocorre pois “no temporal é v. m. um senhor absoluto sem sujeição, que recebeu da mão do mesmo Deus a plena jurisdicçao, e poder que tem nos seus Estados, da mesma sorte que Christo a conferiu ao seu successor S. Pedro”.14 Desta forma, supposto, como v. m. é ministro, e vigário de Deus no temporal, da mesma sorte que o pontífice é no espiritual, absoluto senhor, que pela providencia Divina tem, e conserva o justo titulo do reino immediatamente recebido da mão do mesmo Deus, com pleno poder nas causas civis, do qual pode usar quando lhe parecer, como quasi Deus na terra,

1222

fonte da justiça, que tem por ofíicio libertar a republica das violências, e de escândalos por meio das leis, que v. m. só pode fazer, e declarar nos seus Estados, para bem commum de toda a monarchia, que deve ser o objecto geral dos soberanos, com preferencia ao bem particular, e ao mesmo favor à Igreja concedido, da qual v. m. é respeitável observante, filho, defensor, e protector efficaz.15

Assim, para Carvalho e Melo, a origem do poder real era divina, quando Deus separou as esferas temporal e espiritual, designando dois representantes na terra para ocupá-los: o rei e o papa. O estadista aproximava-se das teorias clássicas, como de Jean Bodin, que viam o poder real como de origem divina e não resultado de um pacto social. Ao rei, ainda, Carvalho e Melo remeteu uma autoridade para regulamentar leis para manter o “bem comum” da sociedade e da Igreja, cabendo-lhe as intervenções que fossem necessárias. Essa expressão forte sobre a divisão dos poderes temporal e espiritual envolvia provavelmente a situação referente a atuação dos Jesuítas e sua relação com os bens terrenos. A principio, no argumento dos religiosos, a riqueza que eles acumulavam era necessária para a expansão do catolicismo. Porém, estudos das últimas décadas demonstram de fato que a Companhia de Jesus possuía considerável patrimônio, possuindo foro privilegiado no comércio dos produtos gerados dentro de suas terras. Na América Portuguesa os jesuítas estavam intrinsecamente ligados ao sistema agrário colonial, possuindo: terras, escravos e domínio sobre o trabalho dos índios.16 Nesse sentido, os colégios criados na colônia possuíam papel importantíssimo para a existência da Ordem dos Jesuítas: “foram através deles que puderam montar(...) uma extensa e complexa estrutura que começava pela posse das terras, seguia em direção ao controle sobre a mão de obra e terminava no envio de produtos e riquezas para outros colégios e capitanias”.17 Paulo de Assunção analisou as relações econômicas do jesuítas, percebendo que ao longo de aproximadamente três séculos os inacianos detiveram uma forte inserção na economia colonial e do Império como um todo, sendo grandes detentores de terras e escravos e grandes produtores de açúcar, tabaco, algumas especiarias, exploração de madeiras, além da atividade pecuária e casas de aluguel. 18 Interessante ver também que toda a produção dos inacianos recebia isenção real das taxas normalmente cobradas sobre a produção e comércio de produtos, que entre outros benefícios, tornavam o comércio dos jesuítas mais competitivo frente aos colonos normais. Por esses benefícios, a presença jesuíta no Império era constantemente motivo de reclamações pelos demais colonos e, até mesmo, expulsão. Assunção aponta que “para a maioria da população, os jesuítas eram 'homens de negócio', (..). A diversidade do patrimônio e das práticas dos jesuítas demonstra que eles se adaptaram às economias regionais, visando a obter uma melhor rentabilidade”.19 Provavelmente por ver a expressão da riqueza e dos privilégios dos

1223

inacianos,

Sebastião José de Carvalho e Melo tenha implementado tal lei sobre as posses de bens por religiosos. Obviamente que esse não era um problema só dos jesuítas, outras ordens certamente faziam uso de benefícios e bens. Mas, os números que os jesuítas concentravam, fruto da aliança no contexto reformista católico e expansão ultramarina, os tornavam únicos. Outro fato que pesou era a sujeição da Ordem direta com o papado, sem acatar as determinações da Coroa Portuguesa. Essa medida de restrição de posse de bens para clérigos, insere-se dentro das medidas para o reforço da autoridade real.20 Portanto, é perceptível o fato do estadista Carvalho e Melo no capítulo VI, do tratado em analise, apontar que muitos religiosos se aproveitam de sua posição privilegiada para fazerem negociatas envolvendo amigos e parentes. Em outros casos, aproveitam-se para usurpar os bens de viúvas, órfãos e beatas. Da clausura própria fazem armazéns de vinho, que independentemente vendem almudado, trocando a casa de Deus, que é só para a oração, em covil de malfeitores, como se podessem vender outros bens, que não fossem de raiz, ou comprar pedras preciosas, pondo-se na evidente contingência de expulsa-los delia o mesmo Deus, com privação do seu reino.21

No intuito de dificultar essa incorporação dos bens deixados via testamento, foram criadas duas importantes leis testamentárias em 25 de junho de 1766 e em 9 de setembro de 1769. Assim, defende que os bens administrados e aqueles que são de propriedades dos religiosos devem ser incorporados pela Coroa. Na lógica usada no texto, sendo os bens da esfera secular e pela necessidade de fazer valer a autoridade real, o rei poderia sim confiscar os bens da igreja.22 Através deste tratado, seria proibido, portanto, a posse de bens pelos religiosos. O Estado, segundo Carvalho e Melo, estaria preservando os religiosos, principalmente para não incorrem no erro de conseguirem lucros através dos juros, o que representaria uma falta grave para um clérigo. Tomam dinheiro a juros por um e meio até tres, ou para edificarem contra a intenção da lei do reino, ou para negociarem dando a cinco ou a seis por cento, como o certificam as notas e cartorios, onde correm os pleitos respectivos, abusando do direito que o prohibe por um, e outro testamento, que elles sempre aconselham, sem nunca o praticarem, pois não ignoram que só a intenção de perceber usura é culpa.23

Ainda assim, independente da proibição, os religioso possuindo bens, devem pagar os impostos ao governo, pois todos têm a obrigação de pagar os tributos dos fruetos: porque estes, ainda que sejam de benefícios, são cousa temporal, e profana, c assim da jurisdicção de v. m. E a razão porque se devem pagar, é porque os tributos devem-se aos monarchas pelo direito divino, que o pontífice não pode dispensar, e só v. m. o pode fazer nos seus Estados, renunciando-os em quanto durara sua preciosa vida, que Deus immortalize; mas nunca em prejuízo de vindouros.24

O tratado é finalizado com a prerrogativa sim da proibição da posse de bens por parte dos religiosos e em caso de reclames sobre a matéria Carvalho e Melo orienta que O remédio para a queixa consiste em deferir v. m. a supplica exposta no cap. 7 das

1224

cortes do estado dos povos feita ao senhor rei D. João IV. De gloriosa memoria, declarando que as Religiões não podem succeder em capellas, nem administra-las, e que as desfructam indevidamente fiadas na indecisão de v. m., prohibindo nos vassallos o ingresso por contracto, taxando porção certa pela entrada, acautelando também os empréstimos a juros, e finalmente mandando restituir o que tiverem extorquido; tomada esta deliberação pelos fundamentos expostos.25

Quando o primeiro ministro Sebastião José de Carvalho e Melo direciona essa regulamentação do direito de posse de bens por parte de religiosos, podemos encaixar isso dentro do quadro mais amplo da tentativa de ampliação do poder do Estado e da limitação do poder e do espaço de atuação da Igreja em relação ao Estado. Rubem Barboza Filho registra essa situação da seguinte forma: “O Estado já não se movia e se emocionava com tarefas missionárias e evangelizadoras. A investida sobre a Igreja, seus privilégios e imunidades, tinha como objetivo transformar os clérigos em súditos diretos da Coroa”.26 Evergton Sales Souza destaca que a relações Estado – Igreja, em Portugal, foi marcada por momentos de conflitos, assim como por momentos de conciliação. Muitos religiosos, de diferentes Ordens, ocuparam importantes cargos de confiança dentro do Estado, além de exercerem considerável influência dentro da atmosfera política do Império Português. Citando o historiador alemão Wolfgang Reinhard aponta para o fato de como essa relação Estado – Igreja foi importante para a formação do Estado Moderno já que propiciava: “reforço da identidade nacional ou territorial; controle sobre uma instituição rival importante como a Igreja; disciplinamento e homogeneização dos súditos”.27 Assim, facilitava a ordem política e o fortalecimento do poder monárquico. Evergton Souza conclui que no caso especifico dessa relação dentro do governo josefino, não houve uma tentativa de ação do Estado contra a Igreja, mas sim uma tentativa de aplicação de uma lógica moderna, na qual as ações e reformas do ministro Carvalho e Melo buscavam limitar os poderes da Igreja, “agindo particularmente contra alguns grupos específicos que ameaçavam o desenvolvimento do seu projeto político”. 28 Para Ana Cristina Araújo essa questão está diretamente ligada à essência do Estado Absolutista, pois com o propósito de fortalecer a adesão integral dos súbditos à Coroa, D. José I, que na esfera temporal não reconhece a superioridade de Roma, sujeita os institutos religiosos e todos os organismos tradicionalmente lhe eram adictos às leis da Monarquia. Para conservar a ordem pública e defender os sagrados princípios da religião, mantendo inviolável o primado da lei, o clero é chamado a contribuir para o bem público e para a felicidade geral. Nesta base, a subversão da disciplina interna da Igreja é pensada em função dos superiores interesses do Estado. 29

José Eduardo Franco chama a atenção de que as medidas adotas para a modernização de Portugal, no argumento do Estado e do ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, estavam inseridas dentro da teoria do “regalismo” que vinha ganhando força dentro do governo desde a Restauração. Na compreensão de Franco, o “pombalismo” foi uma

1225

variante

do “regalismo”, já que este previa, enquanto doutrina política, a supremacia do poder político em relação ao poder eclesiástico: “o poder temporal dos reis deveria afirmar-se plenamente pelo processo de subtração e conseqüente enfraquecimento dos pólos de poder e de influência da Igreja”.30 O melhor exemplo para esse processo foi a ruptura com a Cúria Romana em 1760, após a expulsão do núncio apostólico de Lisboa. Contextualizado dentro do processo de expulsão dos Jesuítas do Império Português, essa medida deu autonomia para a Coroa portuguesa durante cerca de dez anos de gerir toda a Igreja em seu território, retomando o beneplácito régio de 1728. José Eduardo Franco situa a pratica “regalista” de Sebastião José de Carvalho e Melo como influência direta do “episcopalismo”, uma doutrina eclesiológica, que relacionava o poder do Papa a um “contrato social” estabelecido entre a comunidade católica e aquele líder, na qual aquela comunidade poderia dar ou retirar o poder do Papa, assim como dos bispos.31 Mais do que isso, Zilia Osório de Castro coloca que a relação entre o rompimento das relações com a Cúria Romana e a expulsão dos Jesuítas de Portugal, pautase no fato de que aquela Ordem reconhecia a soberania papal como única, superior e absoluta tanto no temporal quanto no espiritual. A autoridade régia ficava reduzida a nada, a estabilidade do Estado passava a estar dependente de uma entidade estranha, a Igreja não participava no seu próprio governo. Esta forma de pensar pressupunha uma concepção unicamente teológica do mundo e da vida.32

Para o fortalecimento do poder monárquico esse pensamento era penoso. Ou seja, “pensar o Estado em termos de unidade implicava em certa concepção de soberania que lhe garantisse a identidade e independência quer na ordem interna quer na ordem externa do seu exercício”.33 Assim, era determinante para a unidade da soberania real, a unidade do poder soberano do rei e a unidade da sua esfera de jurisdição.34 Evergton Souza, aponta que a ruptura com Roma trouxe nas décadas de 1760 e 1770 um novo modelo de Igreja para Portugal, de forte influência regalista, jansenista e antiultramontana, bem exemplificada pelas idéias apresentadas pelo padre Oratoriano Antonio Pereira de Figueiredo (1725-1797)35 . Este escreveu, entre outras, a obra “Antiga doutrina da Igreja sobre o Poder supremo dos reis sobre todos os seus súditos, mesmo entre os clérigos, fundada nos Santos Padres e nos monumentos sagrados da Tradição dos primeiros séculos, e apoiada tanto pelos testemunhos dos teólogos modernos quanto pelos exemplos dos Príncipes cristãos”, composta de 16 proposições, subdivididas em 4 grupos, que versavam sobre: a natureza e a extensão do poder real; comparação e explicação das relações entre o poder real e o poder pontífice; o direito do poder real de proteger a Igreja e a submissão do clero ao poder real no temporal; o poder real sobre os bens do clero e o direito do príncipe de impor tributos as pessoas eclesiásticas. 36 Deste modo, vejo que a proposta de proibição de posse de bens por religiosos, pode ser

1226

encaixada dentro dessa idéia do “regalismo”, levando a subjugar os interesses econômicos da Igreja aos interesses econômicos e políticos do Estado, reforçando o poder real, o absolutismo. Assim, os religiosos e a Igreja ficavam obrigados a cumprir e obedecer às leis civis, pagar os devidos impostos ao rei, além de ficarem subordinados a ele. Leandro Ferreira Lima da Silva destacou que o regalismo português pode ser abordado em dois planos: de um lado buscou-se subordinar a Igreja e o clero português, bem como o do Império, à Coroa no temporal, erradicando privilégios e imunidades que permitissem aos eclesiásticos e religiosos esquivarem-se da soberania régia; por outro, buscou-se reforçar a secularização do Estado, mantendo-o católico, erradicando, porém, as pressões ultramontanas de sua jurisdição e impondo sua soberania frente a Santa Sé.37

Já Mônica da Silva Ribeiro identificou essa ação como parte do processo de formação de uma “razão de Estado” em Portugal setecentista.38 Esta “razão de Estado” evidenciou-se quando Carvalho e Melo percebeu a participação ativa de importantes membros da Igreja dentro da reformas, em especial a da educação, “não descurando as orientações filosóficas veiculadas por conselheiros mais distantes, toma como fio condutor da sua acção governativa do discurso regalista os sectores ilustrados do clero”.39 CONCLUSÃO Os nove anos que seguem pós o rompimento com Roma, Sebastião José de Carvalho e Melo agiu com total liberdade, “desmoronando, em medidas certeiras e efectivamente concretizadas, a estrutura em que se assentava a Igreja, substituindo-a por outra, renovada, (…), economicamente fragilizada, (…), e indiscutivelmente, subordinada ao Estado, cujo poder saía reforçado em relação a Roma”.40 A medida que deu inicio a este processo de transformação nas estruturas políticas de Portugal foi a expulsão dos Jesuítas em 1759. Creio que neste momento certamente o conflito Estado x Igreja fica mais evidente. Carvalho e Melo buscou diferentes formas de reforçar o poder monárquico. A limitação do espaço de ação da Igreja frente ao Estado foi, talvez, a principal por ele enfrentada e levada avante. Resultando, ao fim, em um Estado forte, com um monarca fortalecido e com pouca oposição direta. 1

MELO, Sebastião de Carvalho e. Tractado em que se mostra que os religiosos Posto que em particular, ou em commum, não podem possuir bens de raiz, que herdassem, ou possuíssem, por mais tempo que anno, e dia. In: . Cartas e Outras Obras Seletas do Marquês de Pombal. Tomo II. Lisboa: TYPOGRAPHIÀ DE COSTA SANCHES, 1861. 2 Este tratado foi precedido pela Lei dos Testamentos de 25/06/1766 e sucedido pela Lei das Consolidações de 04/07/1768, pela Lei da Boa Razão de 18/08/1769 e pela Lei Testamentária de 1769 3 KANTOR, Iris. Novas expressões da soberania portuguesa na América do Sul: impasses e repercussões do reformismo pombalino na segunda metade do século XVIII. In: FRAGOSO, João & GOUVEA, Maria de Fátima Gouvea. O Brasil Colonial. V. 3. Rio de Janiero: Civilização Brasileira, 2014. p. 464 4 MELO, Sebastião de Carvalho e. Op. Cit., p. 294-295, negrito meu. 5 Idem, p. 295 6 MELO, Sebastião de Carvalho e. Op. Cit., p. 296-297 7 MELO, Sebastião de Carvalho e. Op. Cit., p. 296, negrito meu.

1227

8

Idem, p. 296-299, negrito meu. ABREU, Laurinda. As relações entre Estado e Igreja em Portugal, na segunda metade do século XVIII: o impacto da legislação pombalina sobre as estruturas eclesiásticas. In: BARATA, Ana Leal de Faria & BRAGA, Isabel Drumond. Problemarizar a História. Estudos de História Moderna em homenagem a Maria do Rosário. Lisboa: Caledoscópio, 2007, p. 653. O Morgadio foi um sistema que perdurou em Portugal até finais do século XIX, tendo surgido oficialmente nas ordenações filipinas de 1603, mesmo já existindo no período medievo como prática costumeira. O sistema de morgadio previa que a terras, rendas, e todos tipos de bens de uma determinada família, não podiam ser alienados, só pudiam ser usufruídos pelo morgadio, que geralmente era o primogênito. Tal sistema visava preservar as riquezas das famílias, dificultando a repartição entre os herdeiros. Ver: ROSA, Maria de Lurdes. O Morgadio em Portugal, sécs. XIV - XV. Modelos e práticas de comportamento linhagístico. Lisboa: Editorial Estampa, 1995. 10 ABREU, Laurinda. Op. Cit, p. 654. 11 ABREU, Laurinda. Op. Cit., p. 656. 12 MELO, Sebastião de Carvalho e. Op. Cit., p. 13 MELO, Sebastião de Carvalho e. Op. Cit., p. 299, negrito meu. 14 MELO, Sebastião de Carvalho e. Op. Cit., p. 307 15 Idem, p.299 16 AMANTINO, Marcia & CARVALHO, Marieta Pinheiro de. Pombal, a riqueza dos Jesuítas e a expulsão. In: FALCON, Francisco & RODRIGUES, Claudia. A “Época Pombalina” no mundo Luso-brasileiro. Rio de Janeiro; FGV/FAPERJ, 2015. p. 63 17 AMANTINO, Marcia & CARVALHO, Marieta Pinheiro de. Op Cit., p. 66 18 ASSUNÇÃO, Paulo de. Negócios Jesuíticos: o cotidiano da administração dos bens divinos. São Paulo: Edusp, 2009. p. 291-354 19 ASSUNÇÃO, Paulo de. Op. Cit, p. 353 20 Importante lembrar que os esforços de limitação do poder da Igreja já eram tentados nos governos de D. Pedro II e D. João V, não sendo portanto uma exclusividade das reformas do ministro Sebastião José de Carvalho e Melo. Ver: ABREU, Laurinda. Op Cit.,. p. 645-646 21 MELO, Sebastião de Carvalho e. Op. Cit., p. 313 22 MELO, Sebastião de Carvalho e. Op. Cit., p. 308-309 23 Idem, p. 313-314 24 MELO, Sebastião de Carvalho e. Op. Cit., p. 306 25 Idem,p. 315 26 BARBOZA FILHO, Rubem. Tradição e artificio: iberismo e barroco na formação americana. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Ed. UFMG/IUPERJ, 2000. p. 374 27 SOUZA, Evergton Sales. Igreja e Estado no Período Pombalino. In: FALCON, Francisco & RODRIGUES, Claudia. A “Época Pombalina” no mundo Luso-brasileiro. Rio de Janeiro; FGV/FAPERJ, 2015. p. 280 28 Idem, p. 278 29 ARAÚJO, Ana Cristina. Dirigismo Cultural e Formação das Elites no Pombalismo. In: (coord.). O Marquês de Pombal e Universidade. Coimbra: Imprensa da Universidade, 2000. p. 16 30 FRANCO, José Eduardo. Op. Cit., p. 328 31 Essa teoria surgiu com o belga Zeger Bernard Van Espen (1646-1728) e foi aprofundada na obra do pensador alemão Nicolau von Honthein (1701-1790), principalmente por retirar a ligação do poder papal de Deus, acabando com a origem divina daquele poder. Em Portugal o próprio Sebastião José de Carvalho e Melo ordenou a publicação de um resumo em português do livro “De statu Eclesiae et legitima potestate Romani Pontificis liber singularis” que apresenta a teoria. Ver: FRANCO, José Eduardo. Op. Cit., p. 330 32 CASTRO, Zilia Osório de. Sob o signo da unidade: Regalismo Vs. Jesuítismo. Lisboa, Brotéria. Nº 169 (2009), 113-134. p. 122-123. 33 Idem, p. 127-128 34 Idem, Ibidem, p. 128 35 SOUZA, Evergton Sales. Op. Cit., p. 283-284 36 SOUZA, Evergton Sales. Op. Cit., p. 285-286 37 SILVA, Leandro Ferreira Lima da. Regalismo no Brasil Colonial: a Coroa portuguesa e a provincia de Nossa Senhora do Carmo do Rio de Janeiro (1750-1808). Dissertação de Mestrado em História. USP, São Paulo, 2013. p.24 38 RIBEIRO, Mônica da Silva. “Razão de Estado” e pombalismo. In: FALCON, Francisco & RODRIGUES, Claudia. A “Época Pombalina” no mundo Luso-brasileiro. Rio de Janeiro; FGV/FAPERJ, 2015. p.94 39 ARAÚJO, Ana Cristina. Op. Cit., p. 13 40 ABREU, Laurinda. Op. Cit., p.648 9

1228

O barão do Rio Branco: as duas faces do monarquista na República (1889-1902) Jacqueline de Andrade Lopes1

Resumo: Este trabalho procura analisar a dualidade entre a posição e a atuação política do barão do Rio Branco através dos conceitos de campo e habitus de Pierre Bourdieu. Destacar a importância de Rio Branco nos primeiros anos da República brasileira ao definir as fronteiras do país sem pegar nas armas e defender os interesses do novo governo sem deixar se ser monarquista e de atuar de acordo com sua formação. Palavras-chave: Barão do Rio Branco; Primeira República; Pierre Boudieu.

Abstract: This paper analyzes the duality between the political position and duties of the Baron of Rio Branco through the Pierre Bourdieu’s concepts of field and

habitus.

Highlight the importance of Rio Branco in the early years of the Brazilian Republic on defining the boundaries of the country without using force and defend the interests of the new government without declining his own monarchist concepts and acting accordingly to his beliefs. Key words: Baron of Rio Branco; Brazilian First Republic; Pierre Boudieu.

Introdução

José Maria da Silva Paranhos Júnior, o barão do Rio Branco, foi um importante ator político da história brasileira, responsável pela definição das fronteiras do país por meios diplomáticos e pela defesa dos interesses brasileiros em diversas ocasiões, foi considerado um mito ainda em vida e hoje é um símbolo da diplomacia brasileira. A atuação política de Rio Branco foi de demasiada importância durante os primeiros anos da Primeira República, e isto independentemente do fato de que o barão continuasse a defender a monarquia e a manter sua ideologia através de sua atuação. Entretanto, como foi possível a convivência entre duas ideologias distintas como a republicana e a monarquista? E ainda mais, como foi possível não somente a atuação de um monarquista na República, como ainda sua demasiada importância na construção de

1229

um nacionalismo brasileiro através da defesa dos interesses da República?

O atuação do monarquista na República

A transição da Monarquia para a Primeira República foi um

período

caracterizado pelas afirmações sobre modernidade e melhoria da nação brasileira, mas que continham persistências do período imperial tão fortes acabaram por gerar revolta na população e dentre os opositores políticos desta forma de governo. A República brasileira se iniciou apresentando ideias de igualdade e cidadania, que ao longo de sua trajetória, foram se demonstrando não apenas ilusórias como também resultaram em momentos conturbados no país. A ilusão foi generalizada, se fez presente entre os escravos, entre os imigrantes, e entre

aqueles

que

esperavam

um

desenvolvimento brasileiro que fizesse com que o país se tornasse uma potência mundial. A acomodação em relação às diversas características econômicas e sociais conviveu com a ideia de modernização. Margarida de Souza Neves aponta como que a “ideologia do progresso” impedia a percepção do desrespeito às culturas e da injustiça na distribuição da riqueza, visto que o país enfrentava dois cenários distintos: o da capital federal, caracterizada pela modernização e pelo progresso; e do interior, bem diferenciado. Lilia Moritz Schwarcz demonstra como que a urbanização nas capitais implicava em um “embelezamento” da cidade, mas de fato, não trazia melhorias estruturais, não provocando

em

uma

modernidade efetiva. As principais preocupações do novo governo foram justamente “a manutenção da ordem, da estabilidade e da integridade nacionais”2, além da preocupação com o desenvolvimento da riqueza nacional. Em um panorama geral, o país enfrentava dois cenários que eram representados pela capital federal, caracterizada pela modernização e pelo progresso e o interior, bem diferenciado. O mesmo governo que se dizia includente era também excludente tanto para as populações já residentes no Brasil, quanto em relação aos novos imigrantes que chegavam ao país. No terreno político a instabilidade foi fortemente presente nos anos iniciais da república, que foram nomeados “anos de assimilação” e contiveram tensões,

1230

indefinições

e ausências de definições políticas. Foi marcado por greves, revoltas e críticas de países importantes do mundo sobre tais problemas. As críticas dos monarquistas se fizeram tão presente quanto às do exterior. Joaquim Nabuco e o barão do Rio Branco não deixaram de pronunciar suas preocupações com a república recém implantada. Tanto um quanto o outro apoiavam o mantimento da ordem e o progresso do Brasil3. A primeira década da República brasileira foi marcada por um debate político entre republicanos – que buscavam legitimar o novo status quo – e monarquistas – que defendiam a ordem antiga. Joaquim Nabuco foi o principal

crítico

do

governo

republicano, tendo publicado diversos textos sobre os problemas deste governo além de ter demonstrado sua permanência como monarquista. Rio Branco, lançou nota crítica à república justificada pelos seus argumentos de preocupação com a desordem e o caos4. O que demonstra uma semelhança entre as ideias dos monarquistas o do governo republicano. Contudo, as lutas nos campos de poder entre diferentes classes para imporem a definição do mundo social em conformidade com seus interesses, formando um campo das posições sociais, no qual os agentes lutam com meios e fins diferenciados conforme sua posição na estrutura desse campo5, esteve presente nos primeiros anos republicanos. Rio Branco atuou a favor da monarquia no início da República e, com o estabelecimento do novo governo, atuou ao lado deste com o intuito de manter seus ideais e sua forma de “fazer política” de acordo com seu habitus6 monarquista. Ou seja, tanto Rio Branco quanto Nabuco viram na influência moral o caminho para manter vivo os seus ideiais e evitar que o país caísse no caos e assim, rompesse com o atraso político e social que a República produzira7. Com isso, segue-se uma sequência de casos em que o barão vai atuar a favor dos interesses brasileiros da República (campo) com base na sua formação monarquista (habitus). No período de 1891 a 1893, Rio Branco, residente em Liverpool, na Inglaterra, exerceu o cargo de Superintendente de Emigração da Europa para o

Brasil,

cargo

exercido conjuntamente ao de Cônsul em Liverpool, o qual ocupava desde 1875 e onde ficou até 1896. No que cerne a questão da imigração, o barão, como um monarquista convicto, defensor do processo imigratório tão importante no Império, sempre se mostrou favorável

1231

a tal emigração europeia para o Brasil. Sem contar que a imigração se tornou o principal meio de obtenção de mão-de-obra após o fim da escravidão. Com isto, ele não mediu esforços na tentativa de melhorar a imagem do país com relação à

situação

dos

imigrantes. Rio Branco não somente tomava para si a responsabilidade de esclarecer os ataques promovidos pela imprensa, como assinalava a necessidade de se preparar e adquirir informações para defesas futuras a favor do Brasil. Rio Branco ainda atuou como defensor do território brasileiro ao advogar em favor do Brasil em 1893, no território de Missões; em 1895, na questão de Palmas; e em 1898, na questão do Amapá. Essas defesas lhe renderam a confiança e prestigio para com os assuntos de interesses territoriais brasileiros, ligados às questões de política externa, mas que assumiu grande importância para resolver os problemas que o Brasil enfrentava no seu interior. Pois, como afirma Pierre Bourdieu, os agentes: "[...] podem também lutar com as forças do campo resistir-lhes e, em vez de submeter suas disposições às estruturas, tentar modificar as estruturas em razão de suas disposições, para conformá-las às suas disposições". Para tanto este agente necessita de ter capital científico8.

A resistência monarquista perante a república e a atuação de monarquistas, como Rio Branco, na busca pela retomada da ordem e da grandeza do país, assim como pelo legado monarquista, foi possível devido ao seu capital, a importância política que adquiriu através da defesa dos interesses brasileiros, vistos acima de suas ideologias, mas promovidas através destas, permitindo que ele se mantivesse como monarquista e continuasse a assinar através de seu título nobiliárquico, então extinto pela Constituição de 1981. Ainda em Bourdieu:

"[...] só compreendemos, verdadeiramente, o que diz ou faz um agente engajado num campo, se estamos em condições de nos referirmos à posição que ele ocupa nesse campo, se sabemos ‘de onde ele fala’ e não o lugar que ocupa na classe social.9”

Neste sentido, a estrutura, a prática e a representação social não são pensadas separadamente, elas são conhecidas simultaneamente num sistema de posições sociais, que é o campo10.

1232

Com isso, a trajetória política e de vida do barão, ao longo do processo de fim da Monarquia e início da Primeira República, serão fundamentais para a afirmação desta última, por conta das vitórias diplomáticas promovidas por ele, capazes de “acalmar” a população. Sua posição “anfíbia” na construção de uma nacionalidade e na possibilidade de transformar o velho em novo fez com que Rio Branco servisse à ideia republicana em suas necessidades de herança das virtudes da monarquia, na ideia “de pôr a experiência da monarquia a serviço da jovem república”11. A influência de sua formação, como sua vivência no exterior, atrelados ao período e a sociedade em que ele se encontrava foi fundamental em suas decisões políticas. Ainda no período da monarquia as antigas elites açucareiras deram lugar às elites cafeicultoras que se voltaram para o comércio da exportação. Sendo o café o principal produto da economia brasileira da época, por consequência, o centro do poder político passou a ser o sudeste, este que passou a controlar o governo. Com a República, esta estrutura econômico-social se manteve e por isso tornou possível que monarquistas como o Joaquim Nabuco e o barão do Rio Branco continuassem a prestar serviços ao Brasil, agora como República12. Os anos finais do século XIX e iniciais do século XX foram alvos de mudanças tanto em uma conjuntura internacional como no interior do Brasil. O país passou por alterações que foram resultado de problemas oriundos de meados do século XIX, desembocando na mudança de Império para República no ano de

1989.

transformações – em caráter nacional e internacional – também afetaram a

As

política

externa, tais como as relações do Brasil com o restante do mundo. Na esfera da política externa, também é possível perceber continuidades e mudanças. Assim como no período monárquico, a República vai se relacionar com países capitalistas e, de preferência, com potências hegemônicas, como parte de sua tentativa de inserção internacional. Pois como afirma Amado Cervo13, por mais que mudanças de regimes políticos imponham novas concepções na política exterior de um país, tais concepções renovadas ocorrem muito mais nas percepções dos interesses nacionais – que no caso do Brasil Republicano as permanências do Segundo Reinado estiveram tão presentes – do que com relação às mudanças. O que se notou na segunda metade do século XIX foi um redirecionamento no

1233

eixo externo, isto é, o Estado que durante o Império manteve sempre grande vínculo com a Europa teve que voltar-se para os Estados Unidos, país que cada vez mais substituía a Inglaterra no que dizia a respeito ao consumo do café brasileiro (principal produto do país no período). Com o advento da República a relação Brasil-EUA ficou mais forte, ganhando um caráter mais simbólico, visto que os republicanos viam nos EUA uma fonte de inspiração para o seu modelo de governo14. Isso sem contar que os EUA vão adquirir cada vez mais o papel de potência hegemônica mundial. Por isso Rio Branco - como um “monarquista de pena”15 que atuou na república a fim de “salvar” o país de se tornar uma república turbulenta tendo em

vista

as

repúblicas dos países vizinhos - se espelhou na república norte-americana por ser um exemplo de república organizada e próspera. Bueno ainda aponta que além da estratégia de inserção internacional, o estímulo à imigração, a busca de controle da política internacional, a consolidação das fronteiras e a pretensão de hegemonia regional foram elementos que, desde o Segundo Reinado vão estar presentes na política internacional do Brasil, perdurando ao período da Primeira República. Pois como demonstra Letícia Pinheiro os ideais do âmbito da política externa eram convergentes entre monarquistas e republicanos. Era sobre as questões internas que eles mais divergiam16. Rio Branco, ao assumir um caráter de ação mais voltado para a política externa, pôde manter sua ideologia monarquista durante a República. Os monarquistas, e entre eles estava incluído o barão do Rio Branco, a grande preocupação era de que o Brasil se tornasse mais uma república mal governada e turbulenta17, e os diplomatas do império sempre reafirmaram de que não havia interesse da parte deles de divorciar as relações entre Brasil e Europa. Tanto que o Barão continuou a servir como Cônsul em Liverpool, e já na República recebeu o

cargo

de

Superintendente de Emigração da Europa para o Brasil, tendo ainda servido em uma missão especial em Berlim no ano de 1901. Contudo, não dá para negar que o Barão também acompanhou as mudanças ocorridas no contexto das relações exteriores do país, ao servir em missão especial em Washington no mesmo período que servia tanto como cônsul quanto

como

superintendente e, posteriormente manter a chamada “aliança não-escrita” entre o Brasil e os Estado Unidos, buscando sempre o que fosse melhor para o país de acordo com o

1234

contexto em que o mundo se encontrava. Quando assume uma posição tão importante, a de herói nacional por conta das vitórias na definição das fronteiras (grande empecilho para o Brasil desde o Império) e com isso consegue despertar na população “um certo” sentimento nacional, seu cabedal político estava no auge. E isso permitiu que, na questão do Acre, em meio a discordância com relação ao pagamento de uma determinada quantia à Bolívia, Rio Branco pudesse determinar sozinho sua decisão.

1

Pós-graduanda em Sociologia pela UNESA. Orientador: Prof. M.e Emerson Ferreira da Rocha. E-mail: [email protected] 2 BUENO, Clodoaldo. A República e sua política exterior (1889 a 1902). São Paulo: Editora Unesp, 1995. 3 Tanto Clodoaldo Bueno quanto Elio Chaves Flores concordam nesta afirmação. 4 Este pensamento de Rio Branco se deu com base nas experiências nada tranquilas das repúblicas latinoamericanas. 5 CAPPELLE, Mônica C. A. MELO, Marlene C. de O. L. BRITO, Mozar José de. “Relações de poder segundo Bourdieu e Foucault: uma proposta de articulação teórica para a análise das organizações”. Organizações Rurais & Agroindustriais. Lavras, v.7, n.3, p 359, 2005. 6 São as estruturas incorporadas dos sujeitos, como a formação monarquista de Rio Branco e Nabuco. É através do conceito de habitus que podemos evidenciar o subjetivismo, pois o habitus é a estrutura incorporada no indivíduo que é interpretada por este, permitindo assim sua capacidade criadora, ativa e inventiva. 7 NOGUEIRA, Marco Aurélio. O encontro de Joaquim Nabuco com a politica: as desventuras do liberalismo. 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2010. 8 BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo: UNESP, 2004. p. 23 e 24. 9 Ibidem 8. p.29. 10 Análise sobre o campo. Ver ANTUNIASSI, Maria Helena Rocha. “A noção de representação social e a pesquisa nas Ciências Sociais”. Anais do 33º Encontro do CERU. São Paulo: 2009. 11 LYNCH, Christian Edward Cyril. “Um saquarema no Itamaraty: por uma abordagem renovada do pensamento político do Barão do Rio Branco”. Revista Brasileira de Ciência Política. Brasília: nº15, setembro-dezembro, p. 288, 2014. 12 MELO E SILVA, Alexandra de. “O Brasil no continente e no mundo: atores e imagens na política externa brasileira contemporânea”. Estudos dos Históricos. Rio de Janeiro: vol. 8, n. 15, 1995, p. 97. 13 Afirmação feita na Apresentação do livro “A República e sua política exterior” de Clodoaldo Bueno. 14 BURNS, E. Bradford. “The Unwritten Alliance: Rio Branco and Braziolian-American relations”. Nova Iorque: Columbia University Press, 1966. In: DANESE, Sérgio França. “A diplomacia da República Velha: uma perspectiva”. In: Revista Brasileira de Política Internacional. Ano XXVII, 1984. 15 ALLOSO, Ângela. “A década monarquista de Joaquim Nabuco”. In: Dossiê Joaquim Nabuco e a República. São Paulo: Revista USP, 2010. p. 2. 16 PINHEIRO, Letícia de Abreu. Política Externa Brasileira, 1889-2002. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2004. 17 BUENO, Clodoaldo. A República e sua política exterior (1889 a 1902). São Paulo: Editora Unesp, 1995. p. 25.

1235

ESCOLARIZANDO AS INFAMES: AS PRIMEIRAS LETRAS NA PENITENCIÁRIA DA CORTE (1870-1890) Jailton Alves de Oliveira Historiador e doutorando em Educação (PROPED-UERJ-FAPERJ) E-mail [email protected]

RESUMO O artigo objetiva discutir a educação das mulheres criminosas escolarizadas na escola de primeiras letras do complexo penitenciário da Corte, no tempo aqui proposto. O conceito de educação é tomado como um conjunto de discursos produzidos e disseminados, atormentados pela necessidade de melhor governar uma massa populacional (FOUCAULT, 2005). A escolha do tempo-espaço imbrica-se com as mudanças sociais, políticas e econômicas pelas quais o país passava nesse momento histórico. Assim, as preocupações com (re) educação dos presos foi pensada também. Palavras-chave: Mulher. Educação. Prisão. SUMMARY The article discusses the education of criminal educated women in the school of first letters of the prison of the court complex in time herein. The concept of education is taken as a set of produced and disseminated speeches, tormented by the need to govern a population mass (Foucault, 2005). The choice of time-space overlaps with social, political and economic in which the country was at this historic moment. Thus, concerns about (re) education of prisoners was also thought. Keywords: Woman. Education. Prison.

1236

O COMPLEXO PENITENCIÁRIO DA MULHERES, HOMENS E MENORES.

CORTE.

UM

LUGAR

PARA

No Brasil oitocentista, a instauração de uma nova ordem carcerária surgiu como resposta da civilização à barbárie. No caso específico da cidade do Rio de Janeiro, o complexo penitenciário, constituído pelas Casas de Detenção e Correção e Calabouço, já estava presente desde o final da década de 1850. Teoricamente, foi uma tentativa de resolver os problemas relacionados à superlotação, convivência entre apenados e correcionais e entre homens, mulheres e menores. (OLIVEIRA) Nesse mundo patriarcal imperial, os discursos referentes à organização desse complexo teimavam em silenciar a presença feminina. Há recomendações quanto aos uniformes; disciplina; alimentação; vigilância; higiene; separação entre apenados e correcionais. Resoluções quanto a motins, brigas, assassinatos e demais inconvenientes existentes. Há, inclusive, determinações para que “mulheres, escravos e menores fossem recolhidos em prisões separadas e guardadas as convenientes divisões” (COLEÇÃO DE LEIS DO IMPÉRIO DO BRASIL, 1857, p.294). Entretanto, é difícil acreditar que esse ordenamento tenha sido seguido rigorosamente. A expressão “convenientes divisões”, que a priori pode aparentar uma preocupação com a presença feminina, foi empregada para designar quem poderia ter alguma regalia no interior das prisões. Era o caso, por exemplo, de detentos que poderiam “tomar um copo de vinho [...] ou ter escravos” (COLEÇÃO DE LEIS DO IMPÉRIO DO BRASIL, 1857, p.294). Mesmo com essas e outras recomendações não foi possível perceber recomendações específicas para as mulheres. Entretanto, ao vasculhar documentos existentes na Biblioteca Nacional, deparei-me com um manuscrito escrito por alguém que supostamente esteve preso na Casa de Correção. É uma carta endereça ao jovem Imperador D. Pedro II, ano de 1841, onde constam reclamações quanto às condições da prisão, abusos e irregularidades cometidos pela administração, bem como pedidos para que o imperador intercedesse pelos presos. Nessa carta, o administrador é acusado de várias falcatruas, como o de aceitar comida estragada tendo em vista que o fornecedor era o seu cunhado; deixar os presos sem comida para que a mesma fosse direcionada às visitas; esconder mantimentos no depósito, e depois levar para casa (REQUERIMENTO DOS PRESOS SENTENCIADOS NA CASA DE CORREÇÃO, 1841, p.3). No que tange às presas, o documento faz menção aos maus tratos dispensados às africanas.

1237

Essas desgraçadas vivem, de noite e de dia, domingos, dias santos, de serviços trancadas. Dão-se barbarismo de humilhação, de certo que o administrador não trata os seus escravos com tanta barbaridade como trata aos africanos. Foi huma preta africana castigada rigorosamente [...] ficou com uma marca [...] assim mesmo naquele mizero estado foi metida no libambo [...] mandou tirar os ferrolhos [...] o qual seria o crime cometido para sofrer tão terrível sofrimento? [...] não consintirás que continuem amargando desumanidade em um império brasileiro [...] Seus corpos eram educados pelos “encantadores de chicotes quando as levavam para o libambo”. Ali ficavam “suspensos do vintém, que a nação lhes manda dar para comprarem os fumos [...] as africanas devem ser ida para o Arsenal da Marinha porque ali reina outra humanidade do que na casa de correção [...]. (REQUERIMENTO DOS PRESOS SENTENCIADOS NA CASA DE CORREÇÃO, 1841, p.6). As informações terminam aí. Não há mais menção às mulheres presas. Alguns jornalistas, que visitaram o complexo em diferentes ocasiões, informaram que “crianças, assassinos e pequenos ladrões [...]” (AZEVEDO, 1877, 434) dividiam a mesma cela; que havia “convivência entre homens, mulheres e crianças [...] de haver promiscuidade nesse lugar [...]” (RIO, 2008, p.227). Três instituições dividindo o mesmo espaço físico. Eram regidos pelo mesmo regulamento, possuíam o mesmo comando burocrático, pois o diretor respondia por eles. Aproximados pela lei, esses espaços simbólicos diferenciavam-se pela condição social dos seus habitantes, pela relação de trabalho entre os apenados e os que aguardavam decisão judicial. Enfim, pelas mordomias daqueles que podiam ser sustentados pela família e dos que necessitavam viver ás custas do Estado (SILVA, 2007). Ao aproximar as lentes para os discursos que emergem desse complexo penitenciário, em particular os produzidos pelos relatórios ministeriais, verifica-se que a presença feminina era constante no lugar.

REMEDIAR OS VÍCIOS E A MÁ EDUCAÇÃO: A ESCOLA DE PRIMEIRAS LETRAS.

Na pauta dos discursos parlamentares verifica-se uma preocupação com a necessidade de erradicar o analfabetismo no país. Entretanto, essas

1238

preocupações

estiveram imbricadas também com a necessidade de vigiar e castigar a ociosidade, vadiagem, prostituição, embriaguês e tudo o mais que fosse considerado perigoso à ordem na cidade. Para o Regente Feijó era de extrema urgência o combate à periculosidade que “rondava o país [...], pois a desordem está sendo dissipada graças à vigilância imposta sobre os desocupados” (RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 1832, p.10). Mais de cinquenta anos após essas palavras de Feijó, o Imperador D. Pedro II, ao dar início aos trabalhos da Sessão na Câmara dos Deputados, que discutiria problemas relacionados à ociosidade no país, alertava aos parlamentares a respeito da importância de “[...] disciplinar os que incidissem em condutas desordeiras

ou

quem

desacatassem as autoridades [...]” (ANAIS DO PARLAMENTO BRASILEIRO, 1888, p.2), pois esses comportamentos eram entendidos como movimentos que poderiam conduzir a uma ruptura na ordem social. O imperador esperava que os deputados se ocupassem de “[...] não só dos projectos para melhorar a organização judiciária e reprimir a ociosidade, mas também da creação de tribunaes correcionais.” (ANAIS DO PARLAMENTO BRASILEIRO, 1888, p.3). A erradicação do analfabetismo esteve presente também nos debates educacionais. Na sessão da Câmara do dia vinte e sete de agosto de 1874 seriam discutidas as novas medidas para a reorganização do ensino primário e secundário do país. Durante a sessão, os membros da comissão de instrução salientaram a respeito da necessidade de haver uma expansão da instrução no Brasil; de difundir a maior soma possível de conhecimentos por todas as classes da sociedade, que “careciam desse pão do espírito, não menos que o pão material do corpo” (ASSEMBLEIA LEGISLATIVA PROVINCIAL DO RIO DE JANEIRO, 1874, p. 317), pois a ociosidade e a ignorância eram perenes no país. Nesse sentido, a instrução era uma “indeclinável necessidade” (ASSEMBLEIA LEGISLATIVA PROVINCIAL DO RIO DE JANEIRO, 1874, pp. 317-318), mas que, no entanto, deveria ser diferente conforme as classes, os indivíduos, as aptidões e os fins para que cada um se preparava. Deveria ser igual somente para os que respeitassem a instrução primária e elementar, da qual ninguém poderia prescindir. Ainda segundo os membros dessa Comissão, o analfabeto era um “cego do espírito; trevas da ignorância em condição quase igual a dos irracionais, que estão sujeitos a seguir o erro porque não conhecem as sendas da verdade”. (ASSEMBLEIA LEGISLATIVA PROVINCIAL DO RIO DE JANEIRO, 1874, p.318). Dessa forma, “o analfabeto estaria propenso aos vícios e ao crime; e a sociedade deveria punir com todo 1239

vigor das leis.” (ASSEMBLEIA LEGISLATIVA PROVINCIAL DO RIO DE JANEIRO, 1874, p. 318). Por seu turno, como estiveram os debates relacionados às escolas prisionais? De acordo com alguns discursos parlamentares, a educação penitenciária brasileira deveria preparar “homens para a sociedade, tornando-os melhores do que eram antes; remediando os seus vícios de sua má educação” (COLEÇÃO TAVARES BASTOS, 1871, p.71). Deveria oferecer aos presos noções de “[...] instrução e incutir ideias de moral religiosa” (COLEÇAO TAVARES BASTOS, 1871, p.72). O educador deveria conversar com os detentos, ajustá-los e reconciliá-los; fazê-los sujeitarem-se às regras fixas. Porém, esse mesmo educador deveria cuidar para que a demasiada “familiaridade não enfraquecesse o efeito de seus discursos, além de evitar tudo que contribuísse para irritar ou perturbar a serenidade dos sentidos dos detentos” (COLEÇAO TAVARES BASTOS, 1871, p.73). Ou seja, a docilidade do comportamento, via educação escolar no interior das prisões, deveria ser conseguida através da habilidade dos responsáveis por gerir a educação prisional. Nessa linha, o trabalho, instrução obrigatória, culto religioso e a disciplina eram vistos como “elementos indispensaveis ao melhoramento moral do condemnado.” (RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 1879, p.106). As preocupações dos reformadores imperiais quanto à ignorância dos detentos e detentas esteve presente nos projetos do complexo da corte. O regulamento destinado ao bom funcionamento da instituição determinava que deveria “Crear-se-ha logo que for possivel em cada huma das divisões da Casa de Correcção huma escola, onde se ensinará aos presos a ler e a escrever, e as quatro operações de arithmetica” (REGULAMENTO DA CASA DE CORREÇÃO DA CORTE, 1830, Art.

178).

Entretanto, essa determinação só foi cumprida quase quarenta anos depois. A escola foi criada no ano de 1868. [...] Aviso de 25 de agosto de 1868. Incumbido o professorado ao Conego Capellão, foi a eschola estabelecida em 2 de setembro, e tem funcionado regularmente nas terças, quintas e sabados das ½ ás 2 da tarde, no edifício que serve de capella; agora funciona todos os dias, exceptos as quintas-feiras, reunindo-se os presos junto ao quartel da guarda interna. (RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 1868, pp. 63-64). À exceção dos escravos, todos os detentos e detentas que desejassem estudar, e que tivessem bons comportamentos, poderiam ser matriculados na escola. Fato que parece estar em conformidade com os discursos oficiais ao determinarem, nas escolas, a presença de “[...] cidadãos brasileiros que estiverem no gozo de seus direitos civis e 1240

políticos, sem nota na regularidade de sua conduta.” (LEI DE 15 DE OUTUBRO DE 1827, ART. 8º). A escola foi dividida por classes. Na primeira havia os detentos e detentas, que deram entrada no complexo sabendo ler e escrever. A segunda classe era composta por detentos e detentas que ainda não sabiam ler e escrever. Nas informações contidas nos relatórios de alguns diretores do complexo encontram-se informações a respeito da movimentação na escola. No final do ano de 1871, por exemplo, dos seiscentos e trinta presos condenados, cento e quarenta e nove foram considerados aptos a ler e a escrever. Havia cento e quarenta e seis brasileiros, onde 42,5% sabiam ler e escrever. Nesse mesmo ano, dos vinte e quatro detentos conduzidos por motivo de vadiagem, dezessete liam e escreviam. No ano de 1879, a escola foi frequentada por cento e quarenta e nove alunos, onde cento e quarenta e quatro eram homens e apenas cinco mulheres. Ao final do ano letivo, todos esses foram considerados aptos a ler e a escrever. Do total de brasileiro (a)s, cerca de cento e vinte e três pessoas, a metade já havia entrado na instituição sabendo ler e escrever. Consta que essas cinco mulheres foram presas por vadiagem, mas não há especificações se as mesmas foram ou já eram alfabetizadas (RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 1880). Conforme anotações no relatório ministerial, nesse ano de 1879, cento e doze homens e duas mulheres tiveram muito bom aproveitamento; vinte e cinco homens e duas mulheres foram regulares e, por fim, sete homens e uma mulher tiveram um aproveitamento ruim. Entretanto, o resultado final foi tido como satisfatório. De acordo com o professor, todos os alunos que se dedicaram e foram aplicados naquele ano conseguiram boas notas e, consequentemente, foram aprovados nos exames finais (RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 1880). Levando em consideração que nesse mesmo ano passaram pela Casa de Detenção mais de seis mil pessoas, temos pouco mais de 1,0% de detentos frequentadores da instituição. O que nos faz concluir que pouquíssimos detentos estudavam. Dessa forma, há de se desconfiar do que o diretor da instituição quis dizer com “satisfatório”. Para além de uma escolarização, a educação imposta por essa escola deveria servir para disciplinar os presos e as presas. Deveria servir para “conhecer a origem do crime, combatê-lo e destruí-lo mesmo quando das manifestações dos primeiros sintomas” (RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 1871, p.15). Por seu turno, o professor deveria conhecer todas as circunstancias dos males sociais e físicos dos seus 1241

alunos. A educação, ainda segundo ele, “limitaria consideravelmente o número desses desgraçados que a sociedade vê-se obrigada a guardar em antros de granito e ferro, esperando muitas vezes sua dúbia regeneração” (RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 1871, p.16). A escola, no entanto, não era unanimidade entre os discursos jurídicojudiciários. Para uns dos diretores, delegado Saldanha, a prisão ignorava as origens dos crimes e as suas raízes mais profundas. Dessa forma, a escolarização dos condenados não seria suficiente para combater a criminalidade; a escola ajudava a combater apenas em um nível superficial. Era necessária uma escola mais disciplinada, ordenada, a fim de formar cidadãos. Alguns detentos “[...] analisados, se tivessem sido educados convenientemente dentro dessa escola, poderiam ter sido excelentes cidadãos em vez de criminosos” (RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 1871, p.20). Por

outro

lado criticava o alto grau de analfabetismo entre os detentos e detentas. Para ele, a culpa recaía no fato de não terem recebido uma educação moral e religiosa adequada. Muitos jovens aprendiam a ler e contar com os seus patrões; outros eram explorados pelos pais, que os mandavam trabalhar e ficavam com os seus ganhos; muitos dos jovens presos aprenderam a ler, escrever e contar apenas observando os movimentos da contabilidade nas lojas onde trabalharam. A formação superior, em línguas ou escrituração contábil aconteceria somente pela força de vontade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O século XIX significou uma espécie de marco na história das vidas das mulheres. Para além de pensar esse século como uma representação de um tempo sombrio para as mulheres, vale lembrar que foi também um tempo em que houve algumas mudanças estruturais, que objetivaram atingir a vida das mulheres: trabalho assalariado, autonomia do indivíduo civil, direito à instrução, aparecimento na vida política (FRAISSE; PERROT, 1991). Nesse contexto, esse século pode ter sido o momento histórico em que a perspectiva da vida das mulheres foi alterada, pois passaram a participar do espaço público. Como o artigo tenta demonstrar, as tensões geradas pela participação do feminino nesse espaço público ocasionaram também as prisões de muitas no complexo

1242

da corte. Ao participarem das tramas do poder e saber, mulheres diferentes produziram reações opostas às construídas e disseminadas pelos discursos oitocentistas. Discursos, esses, que, ao não reservarem um espaço prisional adequado para receber as mulheres, intentaram obscurecer a presença delas nas prisões da cidade; em especial no complexo da corte. Por fim, vale refletir a presença da escola no interior do complexo. As esparsas informações, principalmente a respeito da presença feminina, são indícios de um silenciamento intencional dos discursos “marginais”. Para além disso, a pedagogia prisional previa uma escola para conhecimento e prevenção do crime e do criminoso e não necessariamente para a escolarização ou ressocialização. Ainda é prematuro desvendar os mistérios a respeito da educação das mulheres nessa instituição. Entretanto, já contribui para refletir a respeito da necessidade da escolarização das ditas perigosas à ordem; que o discurso da vigilância e punição incluiu a educação prisional na ordem do dia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1 OLIVEIRA, Jailton Alves de. Escolas de todas as perdições e degenerescências: Casa de Detenção da Corte e Penitenciária Nacional de Buenos Aires como espaços educativos (1856-1889). Rio de Janeiro: Multifoco, 2014. 2 BRASIL. Coleção de Leis do Império do Brasil. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1857. 3 Requerimento dos presos sentenciados na Casa de Correção, 1841. 4 AZEVEDO, Manuel Duarte Moreira de. Rio de Janeiro: Sua história, monumentos, homens notáveis, usos e curiosidades. Biblioteca Garnier, 1877. 5 RIO, João do. A alma encantadora do das ruas. Crônicas. Raúl Antelo (Org.). São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 6 SILVA, Marilene Nogueira da. Um lugar para os deserdados e deserdadas. In. FILHO, Sílvio de Almeida Carvalho (et.tal). Deserdados. Dimensões das desigualdades sociais. Rio de Janeiro: editora H.P. Comunicação, 2007. 7 BRASIL. Relatório do Ministério da Justiça. 1825-1928. Disponível em: . Acesso em: 20 mai. 2015 8 BRASIL. Anais do Parlamento brasileiro. Projeto em discussão: repressão à ociosidade. Câmara dos senhores deputados. 3ª Sessão da 20ª Legislatura. 03 de maio de 1888. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1889. 9 Coleção Tavares Bastos. Da Organização Judiciária. Sobre a Jurisdição Criminal. Reforma Judiciária de 1870. Setor de Manuscrito. Códice 13, 01, 002-010. Título II. Art. 11. Secção 1ª. Cap. I. 11Regulamento da Casa de Correção da Corte. Disponível em: . Acesso em: 27 mai. 2015.

1243

12 Lei de 15 de Outubro de 1827. Primeira Lei Geral de Educação no Brasil. Disponível em: . Acesso em: 02 jun. 2015.

1244

Do quimono à casaca: transformações e marcas identitárias na indumentária japonesa Jaqueline de Sá Ribeiro1

Resumo: Através do estudo da indumentária podemos compreender os códigos culturais e estruturas mentais de uma sociedade. No caso japonês, em que a sociedade antes da Era Meiji (1868-1912) era estamental, com normas e condutas muito rígidas, ficava nítido como a roupa era um forte demarcador de nivelamento social. Com a reestruturação política e a ocidentalização em meados do século XIX, a mobilidade social passou a ser possível e isto se tornou visível com a democratização da moda ao estilo ocidental.

Palavras-chave: Indumentária, Japão, Marcas identitárias.

Abstract: Through the study of clothing, a society's cultural codes and mental structures can be understood. In the Japanese case, in which society before Meiji Era (1868-1912) was estamental with very strict standards and conducts, was clear that clothing was a social level mark. With political restructuring and Westernization in the mid-nineteenth century, social mobility has become possible and it became visible in the democratization trendy to the Western-style.

Keywords: Clothing, Japan, Identity marks. “O hábito fala pelo monge, o vestuário é comunicação além de cobrir o corpo de nudez, ele tem outras finalidades”. Umberto Eco

A roupa além de adornar, proteger, aquecer e envolver nosso corpo, também circunda nosso imaginário (autoimagem), anseios e expectativas (imagem que queremos projetar). A efígie refletida no espelho social é constituída do ser e do ter. A composição do ser com o que o envolve não é formada apenas de escolhas aleatórias, pois a sociedade tem seus padrões de vestimenta, e esses padrões podem nos esclarecer como funcionam certas relações de poder e construções de identidades. O vestuário é uma convenção social e expressão cultural, a roupa oculta e revela tanto o corpo quanto o corpus simbólico que ela representa.2 A imagética de

1245

uma sociedade também pode ser construída e analisada a partir do guarda-roupa, pois há uma conexão histórica entre vestuário, indivíduo e sociedade. Dentro dessa perspectiva, o estudo da indumentária como uma chave de investigação histórica3 nos ajuda a compreender como alguns tipos de controle e demarcações sociais são construídos. De acordo com Roland Barthes, “o poder está presente nos mais finos mecanismos do intercâmbio social: não somente no Estado, nas classes, nos grupos, mas ainda nas modas, nas opiniões correntes”4, entre outras coisas. Logo, as maneiras de se vestir podem ser naturalizadas, mas não são naturais, indicam formas de poder. Através do estudo das tipologias de roupas predominantes, que indicam padrões de vida e de consumo, podemos identificar sinais de distinção presentes nas sociedades. A moda nos possibilita o acesso ao espaço social e comportamental, influi e reflete as mudanças materiais, políticas e sociais em quase todas as comunidades culturais. Pensando nessas problemáticas referentes à indumentária e sua relação com a exteriorização e materialização de dinâmicas políticas e sociais, latentes ou manifestas, este artigo objetiva uma análise, no contexto japonês, dessas questões envolvendo as ifuku (vestimentas), hierarquias e identidades. Assim como em outras sociedades, nas confluências nipônicas há um reflexo das transformações sociopolíticas e culturais na indumentária. Este trabalho se concentra em dois períodos ou jidai (era):5 a Era Edo (1603-1868) e a Era Meiji (1868-1912). A primeira representava o Japão mais tradicional e isolado, onde o poder do shogunato6 se sobrepunha ao do imperador e no qual o modelo de sociedade estamental era dominante. Já a segunda Era correspondeu a um período de reforço da autoridade do imperador frente ao shogunato e de grandes efervescências e reestruturações sociais por meio da implementação de mudanças políticas e econômicas de cunho ocidentalizante. Tanto em uma, quanto em outra jidai, de modo diferenciado, as tipologias de vestimentas estão em consonância direta com uma visão de governo de como deveria se estruturar uma sociedade, dentro de padrões tradicionais ou modernos. Segundo Daniel Roche, em A cultura das aparências: uma história da indumentária (século XVII-XVIII) (2007), ao se aprofundar o conhecimento sobre as formas de vestimentas pode-se compreender melhor as civilizações, pois a forma de se vestir revela códigos culturais e estruturas mentais. O respeito à hierarquia social se faz presente na sociedade nipônica, assim como o primor e o rigor com detalhes, desde tempos imemoriais. Esse preciosismo é bem perceptível nas suas expressões artísticas e culturais; salta aos olhos a busca pela harmonia e o equilíbrio.

7

As simbologias muitas vezes eram expressas nas sutilezas do

convívio. Um exemplo se manifestava no uso de leques para definir status social. Se a pessoa

1246

mantinha o leque fechado diante da outra, indicava que o seu status era superior, mas se o abria significava o oposto. Essas idiossincrasias também foram transpostas nas indumentárias. A forma como os japoneses se vestiam nos transmite informações relevantes, principalmente, no que se refere às estruturas de poder e às formas de doutrinamento social. Antes da restauração imperial na Era Meiji, a sociedade nipônica sofria um rígido controle e demarcações sociais bem estabelecidas. Dessa forma, a roupa era uma expressão de nivelamento social. O tipo de tecido, cor, estampa e formato indicavam a posição do indivíduo. Quando o imperador assumiu o poder de fato em 1868, uma nova concepção de organização social, mais igualitária, foi instaurada. O Japão viveu momentos de grandes adaptações e assimilações advindas do Ocidente. Essas transformações e reformulações atingiram todos os setores da sociedade, assim como os campos de saber. Nesse momento de profundas mudanças, a moda nipônica8 também acompanhou o ritmo frenético da modernização e ocidentalização. As relações hierárquicas impostas anteriormente, que impediam a mobilidade social, foram sendo amortizadas. Nesse novo cenário havia uma grande possibilidade de um ex-samurai ser confundido com um comerciante, pois ambos poderiam estar desarmados, usando algodão e paletó, em vez de seda e quimono.9 As roupas semelhantes mostram o rearranjo social e as tentativas de adaptação a uma Era nova.

Era Edo (1603-1868): armadura, katana, seda e chapéu

A Era Edo, também conhecida como Tokugawa Bakufu isolamento

11

10

, foi um período de

em que o Japão alcançou grande florescimento cultural e uma estabilidade

política. A capital passou de Quioto para Edo (atual Tóquio), que se desenvolveu sobremaneira tornando-se grande pólo atrativo econômico e cultural. Apesar de algumas tensões entre os daimyo (senhores feudais) e camponeses insatisfeitos, o período Tokugawa é reconhecido como de paz. Com o fim dos grandes conflitos militares as cidades puderam ser reconstruídas e progrediram, a vida mais tranquila gerou tempo para a apreciação e o desenvolvimento artístico. Música, teatro, xilogravuras, poesia e literatura se desenvolveram bastante nesse momento histórico. Foi o tempo áureo das gueixas, cujo nome literalmente significa artista. Os guerreiros, samurais, sem a pressão dos combates constantes, começaram a se dedicar mais à arte poética e à filosofia. Esse quadro de estabilidade política e expansão cultural foi pincelado pelas mãos firmes e os olhares argutos do shogunato Tokugawa.

1247

Todas essas conquistas, a pacificação e a unificação do território tiveram um preço: a concentração de autoridade e de poder do shogun. Novas leis e um sistema burocráticoadministrativo mais complexo e centralizado foram implantados. Dessa forma, as rédeas da situação política estavam mais controladas. Várias estratégias foram traçadas com a finalidade de imobilizar os opositores, como deslocamentos forçados e tributações sobre construções oficiais, o que aumentava a renda do bakufu e solapava possibilidades de sublevação. No entanto, o maior exemplo de controle e austeridade se configurou no sankin-kotai (sistema de visitas obrigatórias). Nesse sistema todo daimyo era obrigado a residir um ano em Edo, porém os filhos e esposas ficavam na cidade, numa espécie de sequestro consentido. Além dos altos gastos com a viagem, para que pudessem ser admirados e respeitados usavam seus melhores trajes, ofereciam presentes e cerimônias ao shogun. Isso garantia a segurança do shogunato e minava os tesouros dos outros clãs. O lado benéfico do sankin-kotai é que a cultura e a forma de desenvolvimento da capital passaram a ser levados para outras regiões, contribuindo para o progresso de todo o território japonês. Essas formas de controle se refletiram na estruturação e nas demarcações de identidades sociais, assim como na indumentária. Muito antes dos Tokugawa assumirem o poder, o Japão já possuía estratificação social e distinções pela forma de se vestir. 12 Ocorre que, no período Tokugawa, a divisão social foi consolidada e reforçada pelo bakufu. Majoritariamente, a sociedade era composta de: samurais, camponeses e chonin (artesãos e comerciantes). As minorias eram constituídas pelos nobres, estudiosos, sacerdotes e artistas. Nos períodos anteriores, ainda havia possibilidade, apesar de remota, de ascender socialmente. Um exemplo disso é Toyotome Hideyoshi, que lutou pela unificação japonesa em meados do século XVI. Hideyoshi era um mero soldado, mas com suas habilidades e sagacidade conseguiu assumir o cargo de generalíssimo. Na Era Edo isso se torna inviável, visto que até mesmo o casamento entre os grupos sociais de posição hierárquica distinta ficou impossibilitado. Para além do reforço da hierarquia social, leis suntuárias

13

foram promulgadas,

delimitando o comportamento e o vestuário de cada grupo. Essas leis serviam para ordenar os deveres e privilégios que evidenciavam as discriminações sociais. Aluízio Azevedo no tempo em que foi cônsul no Japão, no final do século XIX, escreveu sobre a forma como o shogunato, no caso de Ieyasu Tokugawa, controlava a sociedade:

Depois de disciplinar hierarquicamente a população, fixar em regras os limites dos canteiros sociais, traçando o lugar preciso de cada grupo, de cada família, de cada

1248

indivíduo, com a tábua rigorosa dos seus direitos e dos seus deveres, Ieiás penetra com a lei pelo íntimo da vida privada e regula como se deve comer, beber e até sentir.14

Como já foi mencionado, nessa sociedade dividida, cada grupo possuía suas próprias normatizações, deveres e privilégios. Devido ao poder ser exercido por militares, os samurais faziam parte de um grupo privilegiado, apesar de representarem por volta de 6% da população. Controlavam por meio de sua força e autoridade os chonin. Caso um samurai se sentisse ofendido ou desrespeitado por um indivíduo de uma classe inferior, poderia de pronto tirar-lhe a vida alegando defesa da honra. Nas dinâmicas internas dos samurais também havia uma hierarquização e controle. Na cidade de Tosa, por exemplo, haviam os jochi e kashi, onde os primeiros submetiam os outros à sua autoridade. Aos kashi cabiam os trabalhos considerados menos honrosos e eram obrigados a reverenciar os jochi quando estes passavam. Mesmo assim, a posição de um kashi ainda era superior à de um camponês ou chonin. Diferentes dos camponeses, os samurais não plantavam, mas absorviam grande parte da produção agrícola de arroz.

A essa vantagem material somava-se o orgulho de casta, alimentado por costumes e privilégios que não era necessariamente acompanhado pelo ganho vil. Só os samurais tinham o direito de usar as duas espadas- uma longa (katana) e outra mais curta (tanto). Ambas passavam por um longo e laborioso processo na forja e na bigorna, do qual resultavam, num só corpo, lâminas compostas de ferro e diferentes aços, dotadas de um gume afiadíssimo e dureza extraordinária, cuja elasticidade evitava que o conjunto fosse quebradiço.15

Na maior parte do tempo os samurais usavam um uniforme padrão composto pelo kosode, às vezes com uma sobreposição sem mangas com ombros largos e estruturados e a hakama (saia-calça longa) com o obi na cintura. Também carregavam o daisho (conjunto de duas katana). Usavam um penteado bem característico, o chonmage, em que os cabelos eram presos num coque superior atrás da cabeça, mas a parte da frente acima da testa era raspada. Os quimonos geralmente possuíam algum símbolo característico do daymio ao qual o samurai pertencia. Além desse uniforme, em conflitos militares o traje era composto por uma armadura imponente que os protegiam. Segundo Luiz Paulo Lindenberg, o samurai

tinha os pés calçados apenas com sandálias, mas o resto do corpo protegido por uma blindagem composta de placas de bambu ou couro, envernizadas com laca de modo a aumentar-lhe a resistência e a dureza, ligadas entre si por cordões de seda, o todo constituindo uma defesa leve e funcional. De ferro eram os pequenos guantes que protegiam o dorso das mãos, como era o capacete ou chapéu de guerra, cujas abas de placas guardavam a nuca e as faces. Ocasionalmente, levava uma máscara também de ferro, com bigode e barba de crina, de modo a proteger um pouco o rosto e transmitir ao inimigo impressão de ferocidade.16

1249

Em contraposição a essa imponência e autoridade estavam os camponeses. Apesar de a base econômica e o sustento dos demais estarem calcados no trabalho do agricultor, este não possuía reconhecimentos e privilégios. Eram numerosos e explorados, tinham uma vida árdua e de penúria extrema. Deviam mostrar subserviência curvando-se diante dos samurais e nobres. Não lhes era permitido usar trajes finos e armamentos, o que os tornava mais vulneráveis e sem meios de autodefesa. Ao contrário dos nobres da Corte, que usavam várias sobreposições que valorizavam as combinações das cores, o que também indicava o seu status, a vestimenta do camponês era simples, sem cores e condizente com o trabalho. Usavam o kosode de tecido simples e sandálias, porém, na maioria dos casos não possuíam calçados e andavam descalços. As roupas geralmente usadas pelos camponeses podem ser assim descritas: O vestuário normal era cânhamo ou, ocasionalmente, de algodão com a variedade que as artes da tecelagem e da estamparia conseguiam introduzir pela combinação da cor natural da fibra com o azul, pois o anil era a única tintura ao alcance dos pobres. Como cobertura tinha o chapéu de bambu traçado e, contra a chuva e a neve, um manto áspero de palha de arroz, incômodo, mas eficiente.17

Outro segmento social era o dos chonin, cujo termo significa literalmente pessoa da cidade. Os artesãos e comerciantes possuíam uma vida financeira mais confortável, no entanto, o seu prestígio não divergia muito do de um camponês. Mesmo quando suas rendas ultrapassaram as dos samurais aristocratas, ainda estavam presos às leis suntuárias impostas pelo shogunato. Não podiam circular por todos os lugares e tinham que prestar total reverência aos seus superiores. Os kosode que usavam, devido à sua condição material mais elevada, eram coloridos com pinturas e bordados. As mulheres usavam obi com fios de ouro e prata, o que ostentava sua riqueza. As formas de distinção pelo vestuário também estavam presentes entre as gueixas, que se tornaram um símbolo da cultura japonesa. Essas artistas passavam anos se dedicando e desenvolvendo habilidades com dança, canto e instrumentos, a fim de agradar de forma completa as companhias masculinas. Havia uma diferença entre as gueixas, com sua formação artística, e as prostitutas. Porém, muitas prostitutas queriam se aparentar às gueixas, o que as diferenciava estilisticamente era o uso do obi. As prostitutas o amarravam para trás, enquanto as gueixas para frente, algo sutil, mas revelador. Havia também as gueixas em treinamento, chamadas de maiko. Quando terminavam o treinamento passavam pela cerimônia de transição, eriage (mudança de colarinho), quando seus quimonos de cores vivas com o colarinho

1250

vermelho eram substituídos por cores suaves e colarinho branco, o que significava que a maiko ascendera. Com a chegada da esquadra norte-americana em 185318, as estruturas do shogunato começaram a ruir. Dificuldades internas latentes sem amplificaram, enquanto o lema sonno joi (reverência ao imperador, expulsão dos bárbaros) ecoava por todo o Japão. Ao se darem conta de que estavam em posição de vulnerabilidade, devido à disparidade econômica e tecnológica em comparação ao gigantismo dos gaijin (estrangeiros), expulsá-los conscientemente não era mais uma opção. Diante dos saberes ocidentais foram despertados sentimentos de medo e de admiração e um movimento de renovar-se sem perder-se se iniciou numa busca desenfreada por igualdade de poder. A assimilação de saberes e moldes ocidentais foi adotada com o intuito de usar as armas dos algozes contra os próprios no momento oportuno. Forçados a sair do isolamento e se abrir comercialmente, as armaduras não foram páreos para combater o poder dos ocidentais. A seda e o quimono tiveram que ceder ao algodão e ao paletó, que representavam nesse momento o poderio ocidental e um novo estilo de vida.

Era Meiji (1868-1912): do quimono à casaca Isto, conquanto um pouco fora do meu programa, faz-se indispensável para clareza do resto desta singela obra de impressões pessoais; sem contar que o caso é de si bonito e novo, pois começa poeticamente por uma lenda maravilhosa e risonha, palpitante de quimeras e ficções divinas, e acaba na mais engravatada e burocrática monarquia constitucional, com os seus ministérios de casaca bordada, com as suas secretarias de Estado e os seus competentes amanuenses de calças puídas, e até, acreditai se quiserdes!, com o pálido bacharel apenas desabrochado da academia sem outro ideal na vida além de apanhar por empenho qualquer emprego público.19

A narrativa de Aluízio Azevedo, apesar de romântica e idealizada, nos apresenta um panorama do desenvolvimento histórico japonês, do mito de criação com Amaterasu (deusa do sol) até o período de modernização no final do século XIX. O imperador se despiu dos seus trajes majestosos e adotou um uniforme militar ao estilo ocidental. Esse prisma de análise evidencia uma era áurea e suntuosa que sucumbiu às normatizações de um Estado burocrático, representado por suas vestes ocidentalizadas. Em outra perspectiva, o período de modernização foi de superação, pois antes não possuíam estradas de ferro, sistema bancário ou tecelagens mecânicas. No entanto, em meio século, de um arquipélago que foi obrigado a se abrir para o exterior, acuado em seu próprio território com tratados comerciais impositivos,

1251

o Japão tornou-se uma reconhecida potência Oriental conquistadora e o primeiro país nãoocidental a se industrializar antes de 1945. De acordo com Lynn Hunt, “o exercício do poder sempre requer práticas simbólicas, não há governo sem ritual ou símbolos (...). Uma nova ordem política carece de uma nova representação simbólica”.20 O Governo Iluminado, como a Era Meiji ficou conhecida, era representado como a luz condutora da modernidade japonesa. A partir da restauração do poder imperial, uma série de transformações sociopolíticas, econômicas e culturais foi se desenvolvendo.

Dedicaram-se corajosamente à tarefa e, no tempo de uma geração, o Japão assumira o aspecto de uma civilização moderna. O primeiro objetivo era convencer as grandes potências de que mais nada, a não ser a cor, distinguia um japonês de um europeu, mesmo se para tanto fosse necessário abandonar o penteado tradicional, adotar o traje estrangeiro, em todas as cerimônias oficiais e fazer proclamar pelo imperador que a vestimenta antiga não era mais adaptada a época. Durante esse período de embriagues ocidental, tudo era feito para mostrar a modernidade do Japão.21

Os japoneses passaram a substituir lentamente o wafuku (roupa tradicional) pelo yofuku (vestes ocidentais). Esse processo não foi apenas devido a maior interação com os estrangeiros. O governo determinou que todos os funcionários públicos substituíssem suas vestes tradicionais por uniformes ocidentalizados. De maneira geral, os homens adotaram mais depressa esse modelo, enquanto as mulheres ainda mantiveram o estilo tradicional até o início do século XX. Calças, ternos, camisas e sapatos foram incorporados ao guarda-roupa japonês; até mesmo o quimono foi se adaptando, sendo confeccionado em outros tecidos e ganhando formatos mais simples. Apesar de os samurais terem sido, em sua maioria, incorporados ao exército imperial, o status que possuíam caiu vertiginosamente. Com a extinção das leis suntuárias e da divisão social estabelecida nos períodos anteriores, todos se tornaram cidadãos perante o governo imperial. “Os ex-samurais não trazem mais katana à cintura, cortam o chommage, usam o cabelo a ocidental, vestem traje europeu, calçam sapatos em vez de geta ou zori, andam de chapéu e guarda-chuva ou bengala”, afirmou José Yamashiro.22 Muitos samurais começaram a exercer outras profissões, alguns incorporaram-se à máquina administrativa do Estado, tornaram-se artistas ou comerciantes que estabeleceram as bases econômicas do Japão Moderno. Iwasaki Yataru, por exemplo, pertencente aos kashi, uma classe de samurais subalterna, fundou uma das maiores corporações japonesas, a Mitsubishi.

1252

Logo, a hierarquização, o isolamento e a imobilidade social foram aos poucos sendo substituídos pela igualdade e a modernização. Esse processo se refletiu nas formas de indumentária. O novo estilo de vida e de vestuário simbolicamente representavam a forma de os japoneses mostrarem aos ocidentais sua capacidade de aprimoramento e de adaptação. Queriam se assemelhar, não por se sentirem inferiores, mas por terem como alvo a manutenção da soberania nacional e a igualdade de poder. O quimono aos poucos foi sendo substituído pela casaca, mas o espírito de luta nipônico permanecia.

Notas 1

Mestranda no Programa de Pós-graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, sob orientação do Prof. Dr. Fabiano Vilaça dos Santos e coorientação da Profª Dr.ª Elisa Massae Sasaki. E-mail: [email protected]. 2 Sobre questões simbólicas referentes ao indumentário na construção da cultura política francesa pósrevolucionária vide o trabalho de Lynn Hunt, Política, cultura e classe na Revolução Francesa (2007). Ao analisar o contexto revolucionário francês, a autora evidenciou que o vestuário passou a representar posicionamentos e engajamentos políticos bem demarcados. Segundo Hunt, “diferentes trajes indicavam diferentes políticas, e uma cor, o uso de determinado cumprimento de calças, certos estilos de calçado ou o chapéu errado podiam desencadear bate-boca, troca de socos ou pancadaria generalizada” (p. 77). A indumentária tornou-se, então, uma prática política manifesta. 3 Para Beverly Lemire, historiadora canadense organizadora do livro The force of fashion in politics and society (2010), a moda é um catalisador de mudança material e um sinal visível da distinção. Lemire defende a ideia de que a moda é um viés de análise histórico importante, visto que, emergiu como uma das forças motrizes mais poderosas que determinam as ramificações políticas e econômicas de produção e circulação de bens. O estudo das vestimentas seria, então, uma possível lente para enxergarmos as transformações das sociedades. 4 BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix. 1977, p. 11. 5 O calendário gregoriano é reconhecido pelo Japão desde o século XIX, no entanto, a periodização japonesa é feita de forma distinta da ocidental. As eras representam modificações políticas importantes, como mudanças de famílias ou imperadores no poder. A primeira Era é a Jomon (13000 a.C. – 300 a.C.) e a última, até então, é a Heisei, iniciada em 1989 quando o imperador Akihito assumiu o trono. 6 Período dos governos militares estabelecidos em paralelo e sobrepujando a estrutura político-administrativa da Corte imperial. O Japão era comandado pelo shogun (abreviatura de Seii Taishogun), o generalíssimo dos exércitos, que tinha o poder para controlar os daimyo, que literalmente significavam grandes extensões de terras dominadas pelos “senhores feudais”. Os proprietários dessas terras formavam os clãs que tinham que se submeter às ordens do supremo líder militar, o shogun. 7 Muitas expressões artísticas tradicionais japonesas partem dessa perspectiva de busca pela harmonia com a natureza. Atividades que aparentemente fariam parte de práticas cotidianas, como servir o chá (shado), escrever (shodo) e cuidar de ornamentos e arranjos florais (ikebana) tornam-se artes por excelência através de dedicação, preparação e concentração de corpo e mente. A cada gesto, pincelada e prática se evidencia uma questão simbólica. 8 Ao usar o termo moda nipônica, no contexto do século XVIII e XIX, uma longa discussão é evocada acerca da concepção e origem da moda. Alguns estudos, seja na história ou em outros campos de saber, divergem quanto ao assunto. Fernand Braudel em The structures of everyday life: civilization and capitalism, 15th-18th century (1985), faz um estudo sobre a economia material, incluindo os vários setores relacionados com a moda. Braudel sinaliza que a moda é um viés importante para se entender questões políticas e sociais profundas. Este apontamento foi relevante para um olhar mais crítico sobre a estilização dos vestuários. No entanto, a visão de Braudel sobre a moda é aristocrática e eurocêntrica, pois ele indica que esta floresceu apenas na Europa dentro da aristocracia e que as outras civilizações estavam alheias ao seu desenvolvimento. Segundo esse prisma, a moda teria sido “exportada” para outras regiões do mundo com o desenvolvimento da economia. Durante muito tempo essa visão foi preponderante, mas alguns autores do campo da moda começaram a combater essa concepção mais eurocêntrica, como a historiadora de arte Anne Hollander em Sex and suits: the evolution of modern dress (2002) e o historiador Marco Belfanti. Em 2008, Belfanti escreveu um artigo para o Journal of Global History, de Cambridge, intitulado “Was fashion a european invention?”, em que problematizou se a

1253

moda foi ou não uma invenção europeia. O autor chegou à conclusão que a moda não foi uma invenção europeia, mas só se desenvolveu totalmente como uma instituição social na Europa, enquanto na Índia, China e no Japão, só evoluiu parcialmente, sem ser capaz de obter o reconhecimento social pleno. Outro opositor dessa visão mais estreita de moda é Jack Goody, cientista social e antropólogo britânico, autor de O roubo da história (2008). Para Goody, Braudel estava equivocado ao alegar que a moda era uma exclusividade europeia, pois o uso das roupas como distinção de status, consumo e variações de estilo, pode ser encontrado em outros lugares do mundo. Logo, a origem da moda ou seu desenvolvimento foram sendo questionados, assim como as afirmações restritas que a definiram. 9 O termo quimono (em escrita romanizada kimono) significa “coisa de vestir” (verbo kiru=vestir e mono=coisa). Existem vários tipos de quimonos, um para cada época e para cada cerimônia ou festividade. Entre outras composições ampliadas, a peça principal de um quimono se chama kosode, tem também o obi (faixa amarrada na cintura para manter o quimono), obijime (cordão de seda que dá firmeza ao obi, usado por mulheres) e tabi (meia de algodão). Para compor o vestuário usa-se as ornamentações de cabelo chamadas de kansachi e a geta (tamanco) ou zori (sandália com acabamento em tecido). Sobre composições e evolução dos quimonos ao longo do tempo, vide texto de Cristiane A. Sato, disponível em http://www.culturajaponesa.com.br/?page_id=355 Acesso em 25/09/2015. 10 Bakufu (tenda do general) representava o sistema de governo do shogunato e Tokugawa era o sobrenome de Ieasu Tokugawa, o shogun que após muitos conflitos concluiu a unificação japonesa iniciada por Nobunaga Oda e Ideyoshi Toyotomi, na batalha conhecida como Serigahara (nome do local do ocorrido), em 1600. Os descendentes Tokugawa exerceram o poder militar e político até a restauração imperial em 1868. 11 Após a expulsão dos portugueses e a proibição do cristianismo, em 1639, o único povo que ainda manteve uma relação comercial restrita com os japoneses foram os holandeses. Os livros da Holanda que chegaram ao Japão foram analisados com afinco por intelectuais, muitos conhecimentos ocidentais foram apreendidos através desse contato. O hangaku (estudos holandeses) impulsionou o desenvolvimento das ciências físicas e naturais. 12 José Yamashiro ao falar sobre a influência Tang chinesa na Era Nara (710-794), afirmou que essa influência se estendia à escrita, à religião, aos costumes e indumentárias. Yamashiro descreveu: “Na corte existe o raifuku ou roupas para ocasiões solenes como a cerimônia de coroação (...). Os nobres vestem quimonos elaborados e bordados, longos com mangas compridas que cobrem até as mãos. (...) O material diferente de acordo com as estações do ano, e as cores determinadas conforme a posição na hierarquia oficial. Normas e regulamentos minuciosos aplicam-se ao uso de indumentária própria de cada classe ou função”. YAMASHIRO, José. Japão passado e presente. São Paulo: Ibrasa. 1986, p. 59. 13 Um trabalho elucidativo sobre leis suntuárias foi desenvolvido por Alan Hunt em seu livro Governance of the consuming passion: a history of sumptuary law (1996). Hunt fez um estudo das interações culturais e jurídicas suntuárias em sociedades da Europa Medieval e Moderna. Segundo o autor, as leis suntuárias foram tentativas governamentais de organizar e de controlar as formas de comportamento, de consumo e de vestimenta. 14 AZEVEDO, Aluízio. O Japão. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2010, p. 76. 15 SETTE, Luiz Paulo Lindenberg. A revolução samurai. São Paulo: Massao Ohno Editor, 1991, p. 35. 16 Ibid., p. 36. 17 Ibid., p. 38. 18 Em 1853 aportaram em Edo as naus pretas de Comodoro Mathews Perry. Em suas mãos estava uma carta do presidente Millard Fillmore, exigindo que o Japão se abrisse para comercialização com os EUA. Analisando sua posição inferior diante do poderio norte-americano, o governo central, indo contra vontade imperial e de muitos daymio se viu obrigado a aceitar os termos de abertura comercial. Em 1854 foi assinado o Tratado de Kanazawa. A partir desse período, aos poucos o Japão foi estabelecendo relações comerciais com outros países, saindo do isolamento em que se encontrava desde então. Uma das consequências dessa abertura foi o aumento da insatisfação popular, pois os contratos comerciais, na visão dos japoneses, sempre privilegiavam os estrangeiros em detrimento do povo nipônico. 19 AZEVEDO, Aluízio. O Japão, p. 25. 20 HUNT, Lynn. Política, cultura e classe na Revolução Francesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 78. 21 PANIKKAR, K. M. A dominação ocidental da Ásia. Rio de Janeiro: Saga S/A., 1969, p. 209. 22 YAMASHIRO, José. Japão passado e presente, p. 270.

1254

Originalidade e desvios na literatura brasileira Jean Bastardis (Bolsista CNPq) Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ [email protected] Orientadora: Profª Drª Andrea Viana Daher

Resumo: O objetivo do trabalho é demonstrar a existência de diferentes arranjos entre as principais dimensões que constituíram a experiência literária tal como conhecemos. Procuramos estabelecer em que bases a autoria, a originalidade e o mercado conformaram esse campo no decorrer dos séculos XIX e XX, concentrando especial atenção sobre o primeiro momento, ainda no século XIX, quando se estabelecem os critérios iniciais de valorização da obra literária. Palavra-chave: Literatura brasileira, originalidade literária, história literária.

Abstract: This study aims to demonstrate the existence of different arrangements between the main dimensions that constitute the Brazilian literary experience as we know it today. We seek to establish on what basis the authorship, originality and literary market had conformed this field over the nineteenth and twentieth centuries, with attention to the first moment, the nineteenth century, when the initial criteria for assessing the literary work are established. Keywords: Brazilian literature, originality, literary history.

A pesquisa que orienta esta comunicação tem como motivo alguns questionamentos dirigidos ao fazer literário no Brasil, desde sua definição formal, no século XIX, até o final do século XX. Reconhecendo a extensão do trabalho necessário à análise do tema em tão longo tempo, procuramos expor em linhas gerais algumas questões que orientam o trabalho, procurando esclarecer sua relevância para o estudo das práticas letradas em nosso país. Dessa maneira, buscando compreender como se definiu a originalidade da literatura brasileira em diferentes momentos, cabe perguntar o que é ser original no Brasil, ou antes, o que foi ser original nos diferentes períodos que estudamos? Esta comunicação concentra-se sobre esse questionamento quanto aos primeiros tempos da produção literária brasileira, quando

1255

a

argumentação favorável a sua autonomia concentrava-se sobre sua especificidade nacional. Contudo, buscaremos apontar de que maneira o estudo é estendido a outros períodos em que outros pontos que povoaram o tratamento da literatura no Brasil. É conhecida a importância conferida à questão da nacionalidade nas narrativas formadoras da literatura brasileira. Durante o século XIX, diversos escritores defenderam a originalidade das letras produzidas por aqui ou, com postura muitas vezes panfletária, destacaram a necessidade de se produzir boa literatura que exaltasse as características locais, relacionando diretamente a filiação temática da literatura à chamada pátria brasileira. Segundo os sistematizadores da produção daquele século, ainda que se pudesse qualificar como boa a poesia de muitos dos que haviam escrito nos séculos XVII e XVIII, faltou-lhes uma marca que caracterizasse o texto segundo a terra que os vira nascer. Tal exigência constituiu manifestamente uma norma colocada à literatura brasileira que, em vista da cotidiana e profunda necessidade de “declarar sua autonomia e originalidade em relação ao tronco comum português”,1 procurou garantir como uma marca autoral nacional nas letras. A autonomia política potencializou na literatura a constituição de um mecanismo passível de manipulação para afirmar a especialidade brasileira e sua originalidade em relação a outras nações. Buscava-se justificar, ao mesmo tempo, reforçar a independência conquistada ainda em época recente, potencializando uma diferenciação em relação à antiga metrópole. Para compreender essas questões, é necessário analisar os textos de alguns escritores alinhados ao projeto de formação da literatura no Brasil do século XIX, procurando demonstrar de que forma enquadraram a produção compreendida digna de figurar entre a chamada pátria literatura. Autor de muitas obras na segunda metade do século XIX, Joaquim Norberto de Sousa Silva dedicou diversos textos ao estudo da literatura. Entre sua numerosa produção podemos destacar a Introdução histórica sobre a literatura brasileira2, Modulações poéticas3 e Mosaico poético.4 Nesses textos, o escritor procurou analisar o desenvolvimento da literatura no Brasil, lançando juízos de valor em relação a essa produção. Importa observar que teve grande convívio com figuras intimamente relacionadas aos primeiros movimentos de interpretação da história literária brasileira: cedo conheceu Januário da Cunha Barbosa, responsável por uma das primeiras coletâneas de poetas e escritores brasileiros, voltada a reunir expressões dignas de constituir a literatura nacional e publicada a partir de 1829; participou dos cursos de retórica e poética ministrados por Domingos José Gonçalves de Magalhães, que em 1836 publicou seu festejado manifesto, o Discurso sobre a História da

1256

Literatura do Brasil na revista Niterói5. Protegido daquele primeiro, Joaquim Norberto foi admitido na Biblioteca Nacional e trilhou carreira na defesa de uma literatura essencial e originalmente brasileira, baseada na expressão e exaltação das características do país, seu território e sua cultura. Em Modulações poéticas, publicado em 1841, o autor identificou uma enorme profusão de opiniões em torno da situação política do país naquele momento. Segundo ele, aquele era um “momento em que uma indiferença de morte pesa[va] sobre a literatura nacional, e com desprezo se olha[va] para os literatos”. 6 Se, no entanto, notou essa concentração de atenção sobre as contingências políticas, Joaquim Norberto fazia coro com todos os literatos interessados em fundar as letras brasileiras, e celebrava também o momento que marcava o rompimento da continuidade do estado colonial. Celebrava a especialidade de sua terra afirmando ser “sem exageração alguma o [caso] brasileiro o mais digno da veneração (...) que conheceu a necessidade de sua independência, que intentou por vezes sacudir o jugo da escravidão e constituir-se nação livre e independente”.7 Para o autor, essa disposição para a autonomia permitiu que fosse o Brasil também “o primeiro que ensaiou-se nos diversos ramos da literatura”.8 Cumpria, dessa maneira, a agenda de exaltação de sua pátria. Januário da Cunha Barbosa, a quem foi dedicado Modulações poéticas, de Joaquim Norberto, já havia procurado inserir a introdução de seu Parnaso 9 na situação atravessada pelo país – demonstrando também seu apreço pela libertação política – afirmando que a nação brasileira, que nestes derradeiros tempos se tem feito conhecer, e devidamente apreciar no meio do mundo civilizado por seus nobres sentimentos patrióticos com os quais soube vindicar a sua independência e liberdade, (...) carecia ainda de fazer patente ao mundo ilustrado o quanto ela tem sido bafejada, e favorecida das musas, particularmente daquelas que, empregando a linguagem das paixões e da imaginação animada, oferecem à admiração das eras exatos modelos do mais delicado engenho, e apurado gosto.

Era celebrada a independência, portanto, como um episódio que marcava a especialidade brasileira e que revigorava a literatura local sob os critérios românticos de valorização das características próprias, algo que não ocorreu, segundo seus articuladores, em séculos anteriores. Sobre os séculos XVI ao XVIII, afirmavam ser possível identificar grandes poetas que, contudo, não foram capazes de expressar as particularidades brasileiras. João Manuel Pereira da Silva tratou esses poetas como “meros copistas e imitadores [que] celebravam antes os amores cavalheirescos dos galhardos portugueses, seus combates, e suas lidas de guerra, do que as belezas naturais do Brasil, com sua grandeza e majestade, com

1257

suas flechas e seus cocares”.10 Também Varnhagen observou esse fato, rogando que “os poetas, em vez de imitarem os que leem, se inspirem da poesia que brota com tanta profusão do seio do próprio país, e sejam antes de tudo originais – americanos”.

11

Joaquim Norberto,

ao afirmar que os “filhos dos conquistadores portugueses, que bem que inspirados pelas pitorescas paisagens brasílicas, pelo céu dos trópicos, pelo sol fulgente da América, não os souberam cantar, antes exemplo abriram, que por desgraça seguido foi por longo tempo”, 12 também expressou com propriedade o descontentamento dos que viveram um momento de transição entre formas distintas de apropriação do texto escrito, quando a lógica da imitação deixava de fazer sentido numa sociedade que passava a valorizar firmemente a propriedade individual sobre o texto. Outros exemplos poderiam ser coligidos em outros textos da época, mas parece ser suficiente ter demonstrado, através dos que foram oferecidos, a grande inclinação de valorização da expressão das particularidades do país na literatura, dotá-la de cor local.13 A base deste estudo, situado no bojo da formação de um regime de produção e consumo de discursos – e da crescente autonomia dos discursos ditos literários, entre os séculos XVIII (em países como França e Inglaterra) e XIX (no Brasil) –, é marcada pela pesquisa relacionada à emergência de três categorias fundadoras – originalidade, mercado e autoria como marca psicológica – que delimitariam, de imediato, a importância da questão da propriedade autoral e, em consequência, da prática de plágio. Sob essa perspectiva, como desvio, o plágio estabelece uma afronta ao sistema literário, tendo em vista que desafia aquelas categorias na medida em que copia-se ou reelabora-se de maneira pouco inventiva o que já foi produzido por outrem. Quanto à definição da literatura brasileira, defende-se que seu cânone foi constituído com base num tipo de abordagem apologética da noção de autoria, relacionada intimamente ao conceito de nação, no esforço de, mais uma vez, esclarecer a especificidade da produção tupiniquim. Um ponto importante foi compreender que, pelo contrário, o movimento brasileiro esteve integrado à agitação europeia relacionada a um dos aspectos do romantismo, ou seja, a valorização da particularidade nacional.14 Há um aspecto contraditório no esforço romântico de valorização da literatura brasileira, visto que se desenvolveu intimamente implicado no desenvolvimento da tradição literária propriamente portuguesa. Como se sabe, a questão da nacionalidade na literatura brasileira fundamentou a produção de diversas obras críticas que visaram estabelecer parâmetros de qualificação da escrita ficcional por estas terras, desde as primeiras críticas e programas da literatura até as produções mais recentes da

1258

história literária brasileira. Em 1826, Ferdinand Denis escrevia seu Resumé de l’histoire littéraire du Portugal, suivi du Résumé de l’histoire littéraire du Brésil, que serviu de referência para a afirmação da autonomia de uma literatura brasileira em relação à portuguesa. Denis elaborou diversas obras sobre o Brasil, como, por exemplo, Le Brésil, ou Histoire, mœurs, usages et coutumes des habitants de ce royaume, de 1822. Os seis volumes que compunham a obra foram abreviados e formaram o Résumé de l’Histoire du Brésil, suivi du Résumé de l’Histoire de la Guyane, de 1825. Seus trabalhos lhe renderam a alcunha de apresentador do Brasil na França e conferiram-lhe certo prestígio e ocupação quando retornou a seu país de origem. Identificando o indianismo como especificidade da “nação brasileira”, Denis foi também um dos escritores referenciados pelo movimento romântico brasileiro, em razão por exemplo, de sua exaltação da paisagem grandiosa e do clima generoso como matéria prima de inspiração para a poesia em terras brasílicas. Seu Scènes de la nature sous les tropiques et de leur influence sur la poésie. Suivies de Camoens et Jozé Indio , de 1824, alimentou o argumento da cor local na produção literária e garantiu um bom número de leitores românticos. Foi, no entanto, o Résumé de l’histoire littéraire du Portugal... uma das primeiras obras a valorizar a produção literária brasileira como autônoma e digna de conhecimento, conferindo-lhe lugar destacado entre os estudiosos do Brasil e produzindo certa “consciência nacional” entre os escritores brasileiros, conforme afirma Antonio Candido, quando considera o livro de Denis, o “pequeno livro (...) sem dúvida o que teve maiores consequências em toda a nossa crítica, porque foi o primeiro a conceber a literatura brasileira como algo diferenciado e a indicar quais deveriam ser os rumos do futuro”.15 No mesmo ano do lançamento do pequeno livro de Ferdinand Denis, surgia também o Parnaso Lusitano ou poesias seletas dos autores portugueses antigos e modernos, de João Baptista da Silva Leitão de Almeida Garret. Como Ferdinand Denis, Almeida Garret também alimentou os escritores brasileiros de argumentos favoráveis à valorização da chamada cor local, considerando que defendeu que “os muitos e riquíssimos ornatos que habilmente pode tirar de nossas festas rurais, de nossas usanças (...), das descrições do nosso formoso país, com que de certo fará mais nacional e interessante seu estimável poema” 16. Seu nacionalismo tenderia a romper as fronteiras portuguesas e movimentar as reflexões dos escritores brasileiros, tendo em vista que impregnou a geração da revista Niterói. Garret extrapolava ainda esse papel, cobrando dos escritores brasileiros maior afinco em questão

de

nacionalidade e originalidade, afirmando que “as majestosas e novas cenas da natureza (...)

1259

deviam ter dado a seus poetas mais originalidade, mais diferentes imagens, expressões e estilo, do que neles aparece”. A proximidade com a cultura europeia teria apagado do espírito desses literatos sua expressão nacional, originando uma “afetação e uma impropriedade que dá quebra em suas melhores qualidades”.17 Dessa maneira, exaltava a pulsante vibração da cor local como energia da literatura brasílica. A partir dessas e de outras obras críticas e programáticas, a discussão sobre a autonomia da literatura brasileira teria passado a constar, de forma geral, da produção da crítica literária, ao longo do século XIX 18. Na origem da crítica romântica no Brasil, portanto, estariam provocações europeias. O desenvolvimento de nosso romantismo, portanto, foi impulsionado por imperativos originariamente encaixados no jogo literário que se configurava a partir das literaturas do velho continente. A originalidade que se buscava afirmar foi centralizada em argumentos que se estabeleciam na Europa, a produção individual proprietária de textos negociados comercialmente. O plágio aparecia, portanto, como violação da ética discursiva que se procurava definir no contexto brasileiro, servindo como elogio da qualidade estética das obras plagiadas que, na maioria das vezes, eram estrangeiras. A desqualificação do crime de plágio serviu à definição dos padrões da própria literatura, procurando estabelecer os padrões de produção letrada calcados na originalidade específica do caso brasileiro. Joaquim Norberto de Souza Silva esforçou-se em demonstrar o quanto a imitação foi responsável pelo atraso da produção literária brasileira. Em artigo intitulado Originalidade da literatura brasileira, desenvolveu uma discussão com outros literatos em relação às razões da fraqueza da produção cultural brasileira, afirmando que “mais da imitação que da educação veio essa falta de originalidade e de influência da natureza, nas composições de nossos primeiros poetas”.19 A defesa da presença dos elementos da natureza local na produção literária remete diretamente ao conhecido argumento da “cor local”, marca do lugar em que vive o autor. Os textos deveriam evidenciar elementos da natureza, religião e clima, marcando a compreensão de que o gênio autoral imprimia no produto de sua inspiração a sua própria experiência, constituindo uma compreensão evidentemente psicológica da produção literária. Nesse sentido, a imitação e o plágio significariam falta de inspiração e – tomando como exemplo obras produzidas em outras terras – negação da cor local, dos elementos que marcariam a pátria. A história da literatura brasileira idealizada por Joaquim Norberto de Sousa e Silva20 é um exemplo bem claro desse tipo de produção. Inacabada em sua execução, sua estrutura demonstra bem a abordagem dispensada à literatura, centrada muito mais sobre seu

1260

desenvolvimento histórico do que sobre reflexão crítica. O plano da obra previa a execução de cinco volumes, dos quais são conhecidas as estruturas de apenas dois. O primeiro volume consistiria de uma “introdução histórica” da questão, dividida em quatro capítulos 21 que buscavam evidenciar a originalidade da literatura produzida no Brasil. O segundo volume, que foi publicado de maneira incompleta22, tratava do primeiro século da “experiência literária” na América Portuguesa. Esse empreendimento demonstra bem as características da argumentação constituinte da história literária romântica, apoiada nos ideais de originalidade, nacionalidade e autoria. Tal desenvolvimento da argumentação pela originalidade das obras literárias no Brasil, baseadas na identificação do texto com a pátria dos autores, constituiu apenas parte do processo de delimitação da escrita literária no país. Esta comunicação pretende avançar, no entanto, sobre outros processos importantes para compreender de maneira mais ampla o funcionamento do fazer literário, relacionando-o com diferentes dimensões citadas anteriormente, que se relacionam de forma intrínseca com a originalidade, a saber, mercado e autoria. Reconhecemos variados momentos no fazer literário desenvolvido no Brasil que relacionam, de formas variadas, tais dimensões constituintes dessa prática. Detectamos que nas primeiras décadas da prática literária brasileira, constituída autonomamente em relação à literatura europeia, com o interesse de afirmação da originalidade brasileira, houve grande investimento em sua imposição pela desqualificação de tudo o que não valorizasse a pátria. Explicamos: toda a literatura produzida por brasileiros deveria dirigir-se ao elogio da nação. Mesmo que indiretamente, a cópia e a imitação de poetas ou modelos estrangeiros, significavam afronta ao esforço de autoafirmação da produção brasileira de textos literários. Nesse sentido, o plágio pátrio era, então, atualizado como dispositivo desqualificador da literatura produzida nessas terras, tendo em vista que esse tipo de produção conferia certo elogio ao material copiado. Cabe esclarecer a fundamentação do termo cunhado na elaboração da presente pesquisa: a qualificação pátria do plágio residiria não em sua execução, ou seja, não se plagiava como um ato de exaltação da pátria, mas, pelo contrário, consistiria uma afronta à pátria que se buscava enaltecer pelas Letras. Ela funciona apenas como adjetivo da ação de plágio e não se deve confundir com o termo “patriótico”, tendo em vista que consistiria, destarte, uma qualificação positivada derivada do termo “pátrio”. Plágio pátrio, portanto, constituiria uma ação de cópia da produção literária estranha à brasileira, produzindo uma positivação da literatura estrangeira, um elogio em forma de dolo para a pátria.

1261

Compreende-se a potência da crítica naquele contexto em que se buscava forjar a literatura brasileira sob os fundamentos iluministas do gênio criador inspirado e autônomo. Os plágios percorreram o sistema cultural daquele momento23, classificados como ilegítimos no esquema letrado e, por isso, excluídos da coleção literária que se buscava construir. Percebemos, portanto, que, ainda que tenham sido desqualificados, os plágios não deixaram de atuar na construção do cânone literário brasileiro, tendo em vista que constituíram modelos negativos, que demonstraram a importância da originalidade nacional da literatura brasileira, que se buscava construir. Traçando esse percurso argumentativo, produziu-se no século XIX a individualização da literatura produzida no Brasil, num processo que derivou do esforço de individualização do próprio estado brasileiro, no esforço de formar a nação e produzir suas expressões próprias. Houve, no entanto, outros arranjos que configuraram o campo literário, conformando de maneiras variadas a experiência da literatura no Brasil. Se no momento de sua definição instalou-se a temática nacional nas questões relativas à originalidade literária, desde a segunda década do século XIX, até pouco antes da profissionalização autoral nas primeiras décadas do século XX,24 depois disso, percebemos outras configurações, pendendo ora para um reforço da figura autoral, ora para o estabelecimento do mercado como definidor privilegiado do que poderia ser considerado como boa literatura. Esse passo da investigação reúne, até o momento, apenas apontamentos de uma pesquisa que ainda necessita amadurecer, mas indicam grandes questões para uma melhor compreensão do fazer literário brasileiro ao longo do século XX.

1

ZILBERMAN, Regina; MOREIRA, Maria Eunice. O berço do cânone: textos fundadores da história da literatura brasileira. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1998, p. 9. 2 SILVA, Joaquim Norberto de Souza. “Introdução histórica sobre a literatura brasileira”. Revista Popular, Rio de Janeiro, tomo IV, p.358, out./dez. 1859. 3 SILVA, Joaquim Norberto de Souza. Modulações poéticas: precedidas de um bosquejo da historia da poesia brazileira. Rio de Janeiro: Typ. Franceza, 1841. 44 SILVA, Joaquim Norberto de Sousa; ADÊT, Émile. Mosaico poético, poesias brasileiras antigas e modernas, raras e inéditas, acompanhadas de notas, noticias biographicas e criticas, e de uma introdução sobre a litteratura nacional. Rio de Janeiro: Tipografia de Berthe e Haring, 1844. 5 MAGALHÃES, Domingos Gonçalves de. “Sobre a História da Literatura do Brasil.” In: Niterói (1836).

1262

São Paulo, Academia Paulista de Letras, 1978. 6 ZILBERMAN, Regina; MOREIRA, Maria Eunice. O berço do cânone... op. cit. p. 95. O desprezo pelos literatos é, como a autonomia política, um tema recorrente nesses escritos. Também Gonçalves de Magalhães tocou a questão em seu Discurso. 7 ZILBERMAN, Regina; MOREIRA, Maria Eunice. O berço do cânone... op. cit. p. 100. 8 Ibid. 9 ZILBERMAN, Regina; MOREIRA, Maria Eunice. O berço do cânone... op. cit. p. 86. 10 SILVA, João Manuel Pereira da. “Parnaso Brasileiro”. apud. ZILBERMAN, Regina; MOREIRA, Maria Eunice. O berço do cânone... op. cit. p. 157. 11 VARNHAGEN, Francisco A. de. “Florilégio da Poesia Brasileira”. apud. ZILBERMAN, Regina; MOREIRA, Maria Eunice. O berço do cânone... op. cit. p. 236. 12 ZILBERMAN, Regina; MOREIRA, Maria Eunice. O berço do cânone... op. cit. p.103. Joaquim Norberto critica, sob esse argumento, poeta celebrado quando afirma que “Santa Rita Durão não soube aproveitar-se dos mais poéticos quadros que em tão dilatado número lhe oferecia a pátria”. Cf. p. 121. 13 Cor local foi um termo atribuído à Mme. De Stäel, articuladora do romantismo europeu, conhecida no Brasil. Seu nome é citado por Joaquim Norberto de Sousa Silva Bosquejo da história da literatura brasileira. 14 BAPTISTA, Abel Barros. O livro agreste. Campinas: Editora Unicamp, 2005, p. 26. 15 CANDIDO, Antônio. O Romantismo no Brasil. São Paulo: Humanitas-FFLCH/USP, 2002, p. 22. 16 CÉSAR, Guilhermino. Historiadores e Críticos do Romantismo – 1: a contribuição européia, crítica e história literária. Rio de Janeiro: LTC; São Paulo: USP. 1978, p. 84. 17 ALMEIDA GARRET apud AMORA, Antonio Soares. A Literatura Brasileira V. II – O Romantismo. 5ª ed. São Paulo: Cultrix. 1977, p. 68. 18 Dentre algumas produções mais importantes, podem ser citados os trabalhos de Januário da Cunha Barbosa e seu Parnaso Brasileiro (1829-1831); General José Inácio de Abreu e Lima, com Bosquejo Histórico, Político e Literário do Brasil (1835); Gonçalves de Magalhães, e o Ensaio sobre a História da Literatura do Brasil (1836); Santiago Nunes Ribeiro, Da Nacionalidade da Literatura Brasileira (1843); diversas obras de Joaquim Norberto de Sousa e Silva, como Considerações Gerais sobre a Literatura Brasileira (1843), Introdução sobre a Literatura Nacional (1844), A Língua Brasileira (1855) e Estudos sobre a Literatura (1836); Álvares de Azevedo, Literatura e Civilização em Portugal (1849-1850) e Francisco Adolfo de Varnhagen, Ensaio Histórico sobre as Letras no Brasil (1850). 19 SILVA, Joaquim Norberto de Souza. “Originalidade da literatura brasileira”. Revista Popular, Rio de Janeiro, n. 9, p. 165. 20 SILVA, Joaquim Norberto de Sousa e. História da Literatura Brasileira... op. cit. 21 Os trechos desse primeiro volume foram todos publicados na Revista Popular, entre 1860 e 1861. Seu primeiro capítulo recebeu o título de Introdução histórica sobre a literatura brasileira (parte 1, Revista Popular, n. 4, p. 357-364,1859; parte 2, n. 5, 1860, p. 21-33); Capítulo 2 – Nacionalidade da literatura brasileira (parte 1, RP, n. 6, p. 298-301,1860; parte 2, n. 7, p. 105-112, 1860; parte 3, ibid., p. 153-163; parte 4, ibid., p. 201-208; parte 5, ibid., p. 286-291); Capítulo 3 – Inspiração que oferece a natureza do Novo Mundo a seus poetas, e particularmente o Brasil (parte 1, RP, n. 16, p. 261-269,1862; parte 2, ibid., p. 344-351); Capítulo 4 – Originalidade da literatura brasileira (parte 1, RP, n. 9, p. 160-173,1861; parte 2, ibid., p. 193-200). 22 Capítulo 1 – Tendência dos selvagens brasileiros para a poesia (RP, 1859, p. 343-357); Capítulo 2 – Catequese e instrução dos selvagens brasileiros pelos jesuítas (RP, 1859, p. 287-303); Capítulo 3 – Da língua portuguesa; Capítulo 4 – Da literatura portuguesa (inéditos). 23 CLIFFORD, James. “Colecionando arte e cultura” In: Revista do Patrimônio, n. 23, 1994, pp. 69-89. 24 Consideramos as fundações de sociedades autorais como indicativo de uma situação mais definida do fazer literário no Brasil, ainda que seja problemático afirmar uma estabilização da situação econômica dos autores em período tão remoto. É possível, no entanto, encontrar casos de sucesso editorial que justificam vislumbrar uma situação diferente daquela experimentada por escritores do final do século XIX, dificilmente mantidos apenas por sua atuação literária.

1263

Tempo, montagem e narrativa: Uma análise do reemprego de imagens de arquivo no cinema documentário Jean Carlos Pereira da Costa1 Resumo Walter Benjamin, em “Passagens”, acreditava ser possível transportar o procedimento da montagem do Cinema para a escrita da História. Este artigo analisa, então, as relações entre a narrativa histórica e a narrativa cinematográfica a partir da montagem de filmes de arquivo no gênero documentário. Acreditamos que os arquivos sejam espaço de experiência, pois são documentos e experiências com o passado, além de horizonte de expectativas, pois, em sua montagem, reconcilia-se tempo e narrativa, refletindo-se sobre possíveis experiências com o futuro. Palavras-chave: tempo; montagem; narrativa. Abstract Walter Benjamin, in his book called “Passages”, had believed that it was possible to convey the montage procedure from Cinema to the History’s written procedure. This article analyses the associations between history narrative and cinematographic narrative through the use of montage procedure of found footages films on documentaries. We believe that found footages films can be a space of experience, given the fact that they are documents, past experiences, and a horizon of expectations and also since in its montage it is possible to reconcile time and narrative, reflecting over the possible experiences with the future. Key words: time; montage; narrative. Introdução O uso de imagens como forma de melhor compreender ou produzir determinados contextos vem crescendo bastante nas últimas décadas. Muitos campos do conhecimento têm mudado seu ponto de vista sobre o papel desses objetos, que hoje deixam o lugar da mera ilustração para tomar posição frente às mais diversas discussões contemporâneas. Em um primeiro momento, as fotografias conquistaram seu espaço na produção de conhecimento, trazendo à tona questões importantes como a do ponto de vista, a das condições de sua produção, bem como sua autonomia, no que diz respeito à impossibilidade de controlar por completo as potencialidades que uma imagem e sua mise-en-scène2 podem produzir. Dessa forma, com a fotografia, as imagens puderam mostrar seu poder de agência (SCHWARCZ, 2014)i, sua tomada de posição frente ao mundo no qual são produzidas e o qual elas próprias produzem (DIDIHUBERMAN, 2009)ii.

1

Mestrando do Curso de História Social do PPGHIS/UFRJ, sob orientação da Profª. Drª. Luiza Larangeira (PPGHIS/IH/UFRJ) e coorientação da Profª. Drª. Anita Leandro (PPGCOM/ECO/UFRJ). Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail: [email protected]. 2 Compreendemos este termo como a organização/disposição das formas, objetos, adornos e cores presentes na imagem, a forma como foi construída a cena fotografada ou filmada. Em outras palavras, a mise-en-scène pode também ser entendida como uma tentativa de ordenar o real, de emprestar uma forma ao que é originalmente caótico.

1264

Se o estudo sobre a imagem fotográfica encontrou seu espaço na produção do conhecimento nas humanidades em geral, a imagem em movimento ainda carece de uma maior atenção fora de contextos como o da Comunicação ou o do Cinema, já que ainda não se pode falar de uma tradição de estudos sobre a imagem cinematográfica dentro do campo da História, no Brasil, por exemplo. Se a fotografia trabalha com recortes de instantes, tornando-se um elemento incontornável não só para o estudo da História da Arte, mas também um documento de natureza diferente para entender e produzir a História de forma geral, o cinema, por outro lado, conjuga elementos que aproximam ainda mais a produção de imagens do mundo histórico, por meio de efeitos de realidade, articulando tempo e narrativa. Quando falamos mais especificamente do cinema documentário produzido a partir do reemprego de imagens, estas questões ficam ainda mais claras, pois, ao falarmos de reemprego, estamos lidando também com o deslocamento ou desvio de imagens (DEBORD, 2005) iii da função para a qual elas foram produzidas e as reutilizando para a produção de novos contextos, atribuindolhes novos sentidos ou acreditando na potencialidade de sentidos presente nelas desde sua produção. Dessa forma, o reemprego de imagens está ligado diretamente ao procedimento da montagem cinematográfica3. Assim, apesar de produzidos em contextos familiares, investigativos, amadores ou históricos, vídeos e fotografias são reempregados na montagem de forma a compor outras narrativas, com outras possibilidades de sentido. Nessa perspectiva, retomar imagens, mais do que produzir um momento de contemplação da arte e de suas relações com a realidade, é entender as articulações entre tempo e narrativa por meio da montagem, compreendendo esse procedimento como essencial para se pensar a produção da História.

Cinema, montagem e narrativas do mundo No livro A estética do filme (1995), organizado por Jacques Aumont, a relação entre cinema e narração é problematizada, compreendendo o surgimento do cinema enquanto um processo de técnica de registro no final do século XIX, tendo sua consolidação enquanto forma narrativa acontecido apenas nas primeiras décadas do século seguinte. Dessa forma, são discutidas as razões para o estabelecimento dessa união resistente entre cinema e narração: A princípio, a união de ambos não era evidente: nos primeiros tempos de sua existência, o cinema não se destinava a se tornar maciçamente narrativo. Poderia ser apenas um instrumento de investigação científica, um instrumento de reportagem ou de documentário, um prolongamento da pintura e até um simples divertimento efêmero de feira. Fora concebido como um meio de registro, que não tinha a vocação de contar histórias por procedimentos 3

Por montagem, compreendemos o processo de edição do filme. Não só no que diz respeito aos efeitos ou ajustes produzidos na imagem, mas também na composição da narrativa, através das escolhas de sequências, da ordem das imagens, dos sons, entre outros elementos cinematográficos.

1265

específicos. Se não era necessariamente uma vocação e se, portanto, o encontro do cinema e da narração conserva algo de fortuito, da ordem de um fato da civilização, havia algumas razões para esse encontro. Lembraremos especialmente de três, das quais as duas primeiras se devem à própria matéria da expressão cinematográfica: a imagem figurativa em movimento (AUMONT, 1995, p. 89)iv.

No que diz respeito a essa espécie de narratividade potencial das imagens figurativas em movimento, Aumont chama a atenção para o fato de que toda figuração implica na representação de um objeto cuja percepção não se limita ao mero reconhecimento, já que convoca o universo social ao qual o objeto representado pertence, levando, necessariamente, à pressuposição de que “se quer dizer algo a propósito desse objeto” (AUMONT, 1995, p. 90)v. Ao mesmo tempo, o movimento associado às imagens, ao inscrever os objetos representados em uma determinada temporalidade, oferece-os à transformação, convocando, igualmente, a narratividade. Em nosso caso, o do documentário, gênero que, no senso comum, é compreendido por buscar uma maior aproximação com a “realidade objetiva do mundo” 4, o dispositivo5 do reemprego de imagens tensiona ainda mais a concepção de narrativa, ao passo que desestabiliza a própria ideia de oposição entre realidade e ficção. Quando utilizamos imagens de arquivo, amadoras ou imagens de família para compor uma narrativa que não pretende unicamente representar o real, mas ficcionalizá-lo para melhor pensá-lo (RANCIÈRE, 2009)vi, essas imagens tocam outras esferas da História, como, por exemplo, a da fabulação. Nesse sentido, pensar o documentário hoje passa por uma reflexão sobre sua relação com os desdobramentos das imagens nas narrativas que antecederam a forma clássica de se filmar o real. Da mesma forma que as vanguardas artísticas, apesar de suas especificidades, se compunham a partir das conexões de umas com as outras, documentário e ficção também se constituem de suas interlocuções, de sua hibridez. Assim, pensar a ficção como uma mera representação fantasiosa do real não corresponde ao potencial presente na forma de produzir narrativas ficcionais; de igual forma, não corresponde ao papel do documentário levar à tela somente o real objetivo. Para Consuelo Lins a prática documentária na contemporaneidade tem sido formada por “obras que se renovam a partir de estratégias extraídas da arte contemporânea e que propiciam outras maneiras de se relacionar com imagens em movimento, redefinindo temporalidade, espaço, narrativa” (LINS, 2004, p. 2)vii. Nessa direção, acreditamos que, para além das aparências do real, cabe ao documentário também captar as relações que estão em jogo, aquilo que, sem reflexão e imaginação, torna-se uma difícil tarefa observar. Mas, cabe, então, ao documentário imaginar o real? Imaginar quer dizer fantasiar e criar, mas também supor. Supor sobre o real quer dizer refletir sobre ele, pensá-lo, e isso, sim, é tarefa não só do documentário, mas de qualquer gênero de filme. 4

Como realidade objetiva do mundo, compreendemos aqui o meramente visível, aquilo que uma câmera pouco reflexiva está apta a capturar do real: sua aparência. 5 Compreendemos dispositivo como um termo utilizado para se referir aos procedimentos e às escolhas de filmagem, é uma estratégia narrativa capaz de produzir acontecimento na imagem.

1266

Nessa perspectiva, a falsa ideia da objetividade da câmera, muitas vezes, corrobora a relação de reificação entre as imagens que são produzidas a partir do real e a própria realidade. O que queremos dizer aqui é que, ao tratar o real como algo exterior a nós mesmos, colocamo-nos sob o risco de mecanizar nossa relação com o mundo e de superestimar, ou humanizar, em uma troca invertida, nossa relação com imagens que, nesse caso, pouco representam as relações e os códigos compartilhados por aqueles que tecem as redes das narrativas do mundo. Dessa forma, tornamo-nos reféns de nossas próprias imagens do mundo, que dificultam nossa compreensão e nossa imaginação sobre ele. Nesse sentido, é importante atentar para a facilidade de produção e reprodução de imagens em nossa sociedade e a forma como lidamos com esses objetos. Em tempos de produção excessiva de imagens, como pensar a reflexão sobre os arquivos? Segundo Jacques Derrida (1995) viii, nossa sociedade sofre de um verdadeiro “mal de arquivos”. O autor se referia à destruição, às simulações e até mesmo ao recalque de arquivos que marcaram desastres do último milênio. Seria possível através do cinema, por exemplo, atualizar as imagens arquivadas, conferindo novos pontos de vista à produção de suas narrativas do passado? Como trabalhar com esse tipo de imagem sem, no entanto, instrumentalizar seu uso, sem que nos apropriemos delas de forma meramente ilustrativa ou reificada? Walter Benjamin (2006)ix, em seu trabalho intitulado “Passagens”, acreditava ser possível transportar o procedimento da montagem no Cinema para a escrita da História. Ao escolher planos, sequências e um ponto de vista para construir a narrativa cinematográfica, o montador, aquele que edita os filmes, nada mais faz que um trabalho de montagem. De forma semelhante atua o historiador ao pesquisar suas fontes, estudá-las e selecioná-las para escrever a História, sempre sob determinado ponto de vista. No caso dos documentários realizados a partir de material de arquivo, amador ou de família, podemos, então, tentar trabalhar com a noção de “montador-historiador”. Para Georges DidiHuberman, as imagens de arquivo são imagens indecifráveis e sem sentido, quando não trabalhadas pela montagem (DIDI-HUBERMAN, 2004)x. Nessa perspectiva, o exercício do montador é o de estudar essas imagens de forma que, ao ligá-las no procedimento de montagem, sejam produzidas narrativas que despertem ao menos uma das potencialidades daquele material. O trabalho do montador se aproxima, dessa forma, do trabalho do historiador e do arqueólogo, pois, ao trabalhar com as faltas e as sobras no material de arquivo, ele pesquisa o sentido nos vestígios e nas ruínas das imagens, buscando as relações possíveis entre elas, a narrativa cinematográfica, mas também o mundo histórico, já que é dele que essas imagens partem e do qual falam.

1267

Narrativa de arquivos O trabalho com arquivos pode, a princípio, remeter-nos a uma mera descrição daquilo que é visto, compreendendo o filme e seus fragmentos como matéria estática, congelada no tempo. O estudo sobre essas imagens, no entanto, ganha extrema importância em uma sociedade onde cada vez mais se cogita o fim da história e a virtualização do real, já que elas são também rastros, vestígios e, consequentemente, arquivam em si uma produção material da História. Mas, como buscamos aqui definir os arquivos? Para este trabalho, imagens de arquivo são aquelas que, de alguma fora, foram organizadas durante o tempo, guardadas não necessariamente em bancos de instituições públicas ou privadas. No conjunto de imagens de arquivo, para nós, reúnem-se imagens de famílias, vídeos e imagens amadoras, desde que, de alguma forma, organizadas, passíveis de acesso, arquivadas com possibilidade de serem convocadas novamente para contar uma história. Para contar a história, é necessário, então, pensar em como produzir sua narrativa. Ao buscar a definição do verbo “narrar”, podemos encontrar em diversos dicionários significados como expor minuciosamente, contar, relatar, dizer, pôr em memória, registrar, historiar. O ato de contar histórias é intrínseco ao ser humano, pois é o que justamente fazemos todo o tempo em que tentamos nos comunicar. Tratando de fatos reais ou imaginários, são muitas as maneiras pelas quais as narrativas se apresentam, que vão além da literatura. Mas, quais são as fontes para se produzir uma narrativa? De documentos oficiais, passando por romances, testemunhos e imagens, são os arquivos as fontes necessárias à escrita das narrativas históricas. É importante compreender, entretanto, que as fontes não necessariamente buscam comprovar as relações materiais de maneira objetiva. Pensar uma historiografia do esquecimento e da ausência é papel também daquele que analisa suas fontes para compor narrativas que compreendam outras visões que não a hegemônica. Para o filósofo Paul Ricoeur, Uma história descreve uma sequência de ações e de experiências feitas por um certo número de personagens, quer reais, quer imaginários. Esses personagens são representados em situações que mudam ou a cuja mudança reagem. Por sua vez, essas mudanças revelam aspectos ocultos da situação e das personagens e engendram uma nova prova (predicament) que apela para o pensamento, para a ação ou para ambos. A resposta a essa prova conduz a história à sua conclusão (RICOEUR, 1994, p. 214)xi.

Além disso, é necessário compreender que a produção da narrativa histórica é também um processo de imaginação, interpretação e criação a partir das fontes a que se tem acesso aquele que a escreve. Nesse sentido, as aproximações entre história e ficção se tornam cada vez mais fortes. Enquanto a história teria por objeto o dado concreto e se inscreveria no domínio da realidade efetiva, da experiência empiricamente verificável, a ficção seria definida como uma realidade demarcada do mundo objetivo e transportada para o reino do possível. A ficção surge no pensamento de Aristóteles como o território da verossimilhança, ou seja, daquilo que, sem ser real, é credível que tenha ou possa ter acontecido (ARISTÓTELES, 2004)xii. 1268

Como afirma Peter Burke, “escritores gregos e seus públicos não colocavam a linha divisória entre história e ficção no mesmo lugar que os historiadores a colocam hoje (ou foi ontem?)” (BURKE, 1997, p. 108)xiii. Nessa perspectiva, é possível perceber que o próprio real se desencobre enquanto possibilidade de ficcionalização para ser pensado e ressignificado. As narrativas ficcionais não perdem para a narrativa histórica tradicional em termos de credibilidade. Na verdade, elas se entrecruzam todo o tempo, posto que a narrativa histórica clássica é produto da expressão da linguagem escrita e, portanto, demanda criatividade em algum nível, modalização da linguagem e preocupação com o público para o qual está sendo escrita. Nessa direção, a produção de narrativas nada mais é que a abertura à ficcionalizção do real demandada por ele próprio para ser repensado. Temos ainda a questão do tempo e sua relação com a narrativa. Para Paul Ricoeur, O desafio último tanto da identidade estrutural da função narrativa é o caráter temporal da existência humana. O mundo exibido por qualquer obra narrativa é sempre um mundo temporal. [...] O tempo torna-se tempo humano na medida em que está articulado de modo narrativo; em compensação a narrativa é significativa na medida em que esboça traços da experiência temporal (RICOEUR, 1994, p. 15)xiv.

Nesse sentido, a narrativa está intrinsecamente ligada não só ao tempo, mas à dialética entre a experiência (Erfahrung) e a vivência (Erlebnis) do homem com seu tempo. Assim, é impossível desprendermo-nos da ação do tempo sobre os arquivos produzidos pela história e as memórias e experiências evocadas por eles. Os arquivos enquanto vestígios de experiências temporais do homem com a produção de sua história cumprem um papel essencial nesse processo de repensá-la, criticá-la e reescrevê-la. É, no entanto, a técnica da montagem, no caso do reemprego de imagens, o elemento essencial para compreendê-los no novo contexto em que eles são colocados.

Tempo, montagem, desvios e narrativa No final do século XIX, foi possível observar uma maior popularização do cinema. As imagens em movimento causavam curiosidade e empatia aos espectadores da época, que se maravilhavam com os filmes curtos (alguns minutos, no máximo) exibidos na máquina de imagens móveis da modernidade. No entanto, uma questão ainda se colocava: não era possível encontrar uma lógica de apresentação dessas imagens. Como escreve o pesquisador canadense André Gaudreault: Podemos precisar que a maior parte dos filmes só comporta apenas um plano até 1902, que, no ano de 1903, soa o início de uma corrida à multiplicação de planos (real mas limitada: um filme comportava raramente mais de dez planos neste ano) e que os cineastas só verdadeiramente fracionavam suas cenas e filmavam então em função da montagem depois do início dos anos 1910 (GAUDREAULT apud AMIEL, 2010, p. 21)xv.

Podemos perceber que um cinema em que a montagem tem um papel mais fundamental: ao passo que o filme tem uma duração limitada, torna-se a montagem a única possibilidade de ligação

1269

entre os planos simples produzidos pela câmera. No entanto, à época, estabelecer relações lógicotemporais, uma continuidade entre as imagens do cinema não era algo comum tanto para o espectador quanto para o próprio cineasta. Dessa forma, à montagem cabia apenas a função técnica de ligar o material produzido. Cabe-nos, no entanto, compreender que este era um cinema ligado à estética das atrações, que tinha como objetivo apenas o entretenimento, ainda muito influenciado por outras manifestações artísticas, como a dos próprios mágicos. O primeiro cinema, ou cinema de atrações, como ficou mais conhecido, é composto por filmes surgidos no período que os historiadores costumam localizar, aproximadamente, entre 1894 e 1910 e que apresentam características comuns relativas aos modos de produção e exibição dos filmes e à composição do público. O primeiro cinema e sua estética da atração foram, então, importantes para se pensar outras formas de produzir cinema e de se montar os filmes. Cada vez mais, houve a incorporação das narrativas cinema sendo, então, a estética da narrativa a sucessora da estética da atração. No entanto, além da restrição temporal da película, como dar conta de narrativas maiores e que ensaiassem uma representação mais fidedigna com o tempo do mundo real? Como tocar um espectador que não está acostumado com a continuidade entre as imagens e as ações presentes nelas? Nesse ponto, a narrativa encontra sua grande interlocutora com o tempo: a montagem. Esta, que antes estava ligada à mera operação material de ligação, agora tem o papel essencial de temporalizar, de criar ativamente o/no filme. Dessa forma, a função da montagem torna-se também a de “contar histórias” (AMIEL, 2010, p. 21)xvi. Contar histórias, produzir narrativas. Para se produzir narrativas, todavia, é necessária uma experiência com e no tempo. A montagem assume, assim, uma tarefa difícil: conciliar tempo e narrativa, uma vez que, o tempo cinematográfico sendo uma representação indireta, depende da organização das imagens e sons para que ele se constitua. A montagem tem, então, o papel de organizar o tempo em uma narrativa. Mas, não se trata de qualquer tempo. Trata-se de um tempo ao qual o olhar do espectador ainda não está acostumado, principalmente pelo novo ritmo que assumem as imagens em movimento. Para o teórico e crítico de cinema Vincent Amiel, O espectador do início do século não está, portanto, habituado, culturalmente, a incluir uma imagem num fluxo narrativo, um fluxo que se apoia nela mas a ultrapassa. Ao contrário, os quadros fixam, fecham, estabilizam. Vai ser necessário ultrapassar os seus limites, literalmente atravessá-los; fazer de modo a que o olhar esqueça a imagem tão depressa como a apreende, a integre num movimento de desapossamento (AMIEL, 2010, p. 22)xvii.

Nesse sentido, a montagem se torna não só uma operação no filme, mas também na vida do espectador. Ao passo que ela desconstrói a zona de conforto do olhar para o cinema, ela também aponta a necessidade de se perceber que o cinema não é apenas uma forma de entretenimento, mas 1270

também uma representação das relações sensíveis que afetam a vida do espectador, sem deixar de afetá-lo também. Segundo Amiel, [...] o curso do tempo nunca havia sido suportado, na nossa, cultura, pela sucessão de quadros diferentes, uma vez que cada um deles, pelo contrário, é como que arrançado ao tempo (isso é verdade, em particular, na pintura religiosa, ou nos retratos do século XIX, quer sejam picturais ou fotográficos. Têm como função imortalizar). Portanto, a imagem com o cinema deve proporcionar um escoamento temporal que não lhe é habitual. E pouco a pouco os cineastas vão impor uma analogia entre sucessão dos planos e sucessão dos momentos de ação. Os raccords, os gestos ou as ações continuadas de um plano para outro são para isso os utensílios privilegiados. Gradualmente, passar de um plano a outro equivale para o espectador a avançar no desenrolar cronológico (AMIEL, 2010, p. 24)xviii.

A narrativa e sua temporalidade são, então, expostos pela montagem, que define um novo estatuto de percepção das imagens no cinema. Ela apresenta ao espectador uma nova forma de perceber os significados da transição de imagens na tela. É claro que nem toda passagem de um plano a outro significa um avançar cronológico, mas, nem por isso, a montagem perde sua especificidade. Pelo contrário, são as apresentações do tempo como, por exemplo, na representação da simultaneidade que fortalecem o sentido da montagem como elemento de reconciliação entre tempo e narrativa no cinema. Para Jacques Aumont, Desse ponto de vista, a montagem é, portanto, o que garante o encadeamento dos elementos da ação segundo uma relação que, globalmente, é uma relação de causalidade e/ou temporalidade diegéticas: trata-se sempre, dessa perspectiva, de fazer com que o drama seja mais bem percebido e compreendido com correção pelo espectador (AUMONT, 1995 p. 64)xix.

Desviar significa mudar o curso, a direção das coisas. No cinema, o desvio de imagens e sons pode também significar uma ação transformadora não só da narrativa, mas da própria História. Ao passo que as imagens compõem uma narrativa, podem elas serem também as responsáveis por decompô-la ou por construir uma nova narrativa através do dispositivo do desvio. Dessa forma, utilizamos o termo “desvio” em direção ao uso que Guy Debord faz em seu livro A Sociedade do Espetáculo, com o sentido de desviar as imagens já existentes de sua função original e utilizá-las em novos contextos, de forma a potencializar o alcance político da montagem e a transformar o cinema e a própria História em lugares de troca de experiências. Mas, de que forma o dispositivo do desvio pode se relacionar aos arquivos e à montagem? De forma convergente à definição de arquivo já exposta, podemos também pensar o arquivo como “um conjunto de documentos manuscritos, gráficos, fotográficos, fílmicos que é, de modo geral, destinado a permanecer guardado e preservado” (CURSINO; LINS, 2010, p. 87)xx. Para Paul Ricoeur, “o arquivo apresenta-se como um lugar físico que abriga o destino dessa espécie de rastro que cuidadosamente distinguimos do rastro cerebral e do rastro afetivo, a saber, o rastro documental. Mas o arquivo não é apenas um lugar físico, espacial, é também um lugar social” (1994, p. 177)xxi. Trata-se de uma imagem indecifrável e sem sentido, quando não trabalhada pela montagem (DIDI-HUBERMAN, 2004)xxii.

1271

Nesse sentido, o exercício da montagem oferece a esses arquivos a possibilidade de desviar o curso de sua própria história, mas também de propor novas narrativas para a História. Ao trabalhar com os arquivos na montagem, são evocadas memórias que nos permitem imaginar, reinterpretar e reescrever narrativas a partir de processos técnicos e poéticos revelados pela montagem fílmica, “trazendo à tona aspectos recalcados da vida” (LEANDRO, 2012, p. 03) xxiii. Lembrando dos filmes com imagens de arquivo produzidos por Guy Debord, que trabalhava com o desvio de imagens de propaganda em geral juntamente com trechos de seu livro A sociedade do espetáculo, Anita Leandro comenta: A ativação da memória potencial das imagens pela montagem era uma forma de engajamento do cinema no tempo histórico. A recusa em acrescentar novas imagens ao mundo do espetáculo e o desvio de função de imagens já filmadas transformam a montagem num ato cinematográfico eminentemente político, pois é capaz de reunir o que foi separado, de desmontar discursos e de remontar as imagens do espetáculo de outra maneira, para, finalmente, devolvê-las, desreificadas, ao espectador, como matéria-prima destinada a sua atividade criadora (LEANDRO, 2012, p. 03)xxiv.

Nessa direção, o desvio provocado pela montagem dos arquivos propõe ao espectador um olhar criativo não só sobre essas imagens como também sobre o próprio mundo. Enquanto exercício mesmo de metalinguagem, a montagem de arquivos se insere como elemento pedagógico ao passo que apresenta aos espectadores o que se esconde por trás não só do filme, mas também da história: a própria montagem, seja de imagens, de informações, de notícias ou de fatos. Para Anita Leandro, a montagem é “uma estratégia política de deslocamento das imagens, pois só ela permite tirar as imagens do lugar onde se encontram, confiscadas, e trazê-las de volta à vida, ao espaço da confrontação” (LEANDRO, 2012, p. 03)xxv. O arquivo, dessa forma, não é uma questão do passado. Como afirma Derrida, “é uma questão de futuro, a questão do futuro em si mesma, a questão de uma resposta, de uma promessa, de uma responsabilidade para o amanhã. O arquivo, se queremos saber o que significa, só saberemos em tempos futuros, talvez” (DERRIDA, 1995, p.10)xxvi. Nessa perspectiva, a temporalidade implícita não está definida em uma perspectiva linear; ao contrário, essa dimensão enfatiza o papel ativo do presente no momento de definir e dar forma ao passado. Nesse sentido, as imagens de arquivo não devem ser vistas apenas como arquivamento do real nem como documento do que existiu, mas como imagens captadas em certas circunstâncias sociais, técnicas e políticas, atravessadas, portanto, por contextos específicos. Imagens que devem ser trabalhadas, desmontadas, remontadas, relacionadas a outros tempos, a outras imagens, a outras histórias e memórias e, ao mesmo tempo, que não devem ser vistas como ilustração de um real preexistente. Nessa perspectiva, o arquivo deve ser trabalhado de seu interior para que seja possível compreender seus múltiplos enunciados e suas possibilidades de transformação. O

1272

desvio

provocado pela montagem possibilita, assim, entender a falsa consciência do tempo provocada pelas imagens do espetáculo, aquelas que confiscam a realidade, depositando o passado num passado acabado e também acelerando o futuro para o presente. A montagem de arquivos, portanto, permite às imagens a possibilidade de desviar da zona de conforto produzida pela virtualização do tempo e suas miragens. Se arquivar é produzir documentos, copiar, transcrever ou fotografar objetos, reconstruir é de certo modo fabricar arquivos, reconhecer a sobrevivência de um passado através dessas imagens, com olhos do presente. Dessa forma, a montagem como processo de reconstruir e desviar os arquivos é “um modo de desdobrar visualmente as descontinuidades do tempo da obra em toda a sequência da história” (DIDI-HUBERMAN, 2004, p. 474)xxvii, o desvio provocado por ela é o elemento que, então, “submete à subversão as conclusões críticas passadas que foram petrificadas em verdades respeitáveis, isto é, transformadas em mentiras” (DEBORD, 2005, p. 145)xxviii.

i

SCHWARCZ, Lilia. Lendo e agenciando imagens: o rei, a natureza e seus belos naturais. In.: Sociologia & Antropologia. Rio de janeiro, v.04.02: 391– 431, outubro, 2014. ii DIDI-HUBERMAN, Georges. Quand les images prennent position. L’oeil de l’histoire, I. Paris: Les Éditions de Minuit, 2009. iii DEBORD, Guy. A Sociedade do espetáculo. RJ: Contraponto, 2005. iv AUMONT, Jacques. A estética do filme. São Paulo: Papirus Editora, 1995. v Idem. vi RANCIÈRE, Jacques. A Partilha do Sensível. São Paulo: Editora 34, 2009. vii LINS, Consuelo. O documentário de Eduardo Coutinho: televisão, cinema e vídeo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. viii DERRIDA, Jacques. Mal d’archive. Paris: Galilée, 1995. ix BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: UFMG, 2006. x DIDI-HUBERMAN, Georges. Images malgré tout. Paris: Minuit, 2004. xi RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. Trad. Constança M. Cesar. Campinas: Papirus Editora, 1994. xii ARISTÓTELES. Poética. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004. xiii BURKE, Peter. As fronteiras instáveis entre história e ficção. In: AGUIAR, Flávio; MEIHY, José Carlos Sebe Bom; VASCONCELOS, Sandra Guardini T. (Orgs.). Gêneros de fronteira: cruzamento entre o histórico e o literário. Tradução Sandra Vasconcelos. São Paulo: Xamã, 1997. xiv RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. Trad. Constança M. Cesar. Campinas: Papirus Editora, 1994. xv AMIEL, Vincent. Estética da montagem. Tradução de Carla Bogalheiro Gamboa. Lisboa: Armand Colin, 2007. xvi Idem. xvii Idem. xviii Idem. xix AUMONT, Jacques. A estética do filme. São Paulo: Papirus Editora, 1995. xx CURSINO, Adriana; LINS, Consuelo. 2010. O tempo do olhar: arquivo em documentários de observação e autobiográficos. In: Conexão - Comunicação e Cultura. Revista acadêmica do Centro de Ciências da Comunicação da Universidade de Caxias do Sul. Vol 9. No 12. xxi RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. Trad. Constança M. Cesar. Campinas: Papirus Editora, 1994. xxii DIDI-HUBERMAN, Georges. Images malgré tout. Paris: Minuit, 2004. xxiii LEANDRO, Anita. Desvios de imagens, ontem e hoje: de Debord a Coutinho. XXI Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Juiz de Fora, junho/2012. xxiv Idem. xxv Idem. xxvi DERRIDA, Jacques. Mal d’archive. Paris: Galilée, 1995. xxvii DIDI-HUBERMAN, Georges. Images malgré tout. Paris: Minuit, 2004. xxviii DEBORD, Guy. A Sociedade do espetáculo. RJ: Contraponto, 2005.

1273

A burocratização da justiça - tensões e negociações políticas da magistratura na Capitania de Pernambuco (1702-1750) Jeannie Menezes* [email protected]

RESUMO: Este artigo discute a atuação burocrática dos magistrados em Pernambuco no século XVIII. Vindos do reino para as colônias, os juízes letrados tiveram uma atuação paradoxal. A chegada deles sugeriu mais centralização reinol, enquanto sua atuação nas questões da governança seguiu gerando tensões que reforçavam os laços de juízes com os mesmos grupos locais que eles deveriam ‘fiscalizar’. Buscamos alguns aspectos acerca deste exercício burocrático dos juízes em Pernambuco a partir de seus efeitos nos (des) caminhos da justiça. PALAVRAS-CHAVE: CÂMARA; JUSTIÇA; AMÉRICA PORTUGUESA

ABTRACT: This article discusses the bureaucratic activities of judges in Pernambuco in the eighteenth century. The judges came of the kingdom to the colons and their role done an interesting situation. Their arrival have suggested more centralization, but their activities in the government made some conflicts and political negotiations with the local groups making alliances for them, wherever these groups would be controlled for those judce. We seek some aspects about this bureaucratic exercise of the judges in Pernambuco and its effects on justice colonial problems. KEY-WORDS: MUNICIPAL POWER; JUSTICE; PORTUGUESE AMERICA Na primeira metade do século 18, as novas ouvidorias1 criadas em fins do século anterior encenaram conflitos diversos. Com as câmaras eles já ocorriam desde o primeiro século de colonização, agora os protagonistas seriam além de ouvidores e agentes camarários, os juízes de fora que discutiam os limites de poderes que cabiam a cada um.

*

Profª Adjunta do Deptº de História da UFRPE na qual leciona História da América Colonial. Fez Graduação, Mestrado e Doutorado na UFPE especializando-se na área dos direitos, justiças e administrações coloniais.

1274

A centralidade dos ouvidores nas tensões nos levaram a refletir sobre as suas atribuições de correição e justiça e os males que elas poderiam proporcionar na medida em que as tarefas de correição nas comarcas se confundissem com as tarefas burocráticas nas câmaras e no governo. Um exemplo do que dissemos, foi a convivência turbulenta entre a Câmara do Recife quando no século XVIII, passou a sofrer com as investidas de ouvidores nas suas atividades, relatadas a todo tempo na correspondência dos primeiros anos de instalação da comarca. Até meados do século, persistiam os problemas, como o exemplificou o relato do juiz de fora João de Sousa de Meneses Lobo, no ano d 1744, sobre o conflito de jurisdição que havia entre o juizado de fora e a ouvidoria da comarca, assim relatado: Tirando-se as devassas nesta cidade e vila do Recife, e em termos dos delitos que sou obrigado por razão do cargo que ocupo, as mais das partes queixosas depois que tem notícia que estão obrigados a prisão, chiavam muito os delinquentes porque {...}, vão novamente querelar perante o ouvidor desta comarca pelos mesmos delitos contra os mesmos culpados: por sendo o ouvidor por vir sido dessas querelas, que os livramentos sejam perante ele enviando-me precatórios para lhe remeta as devassas...2

A um primeiro olhar, naquela disputa pelos papéis jurisdicionais se apresentavam a diminuição das atribuições do ouvidor mediante o seu trânsito para o juiz de fora, não resolvidas após décadas da instalação das comarcas. No entanto, havia outros elementos ali atuantes, que eram o resultado da sobreposição de tarefas administrativas e judiciais que os ouvidores assumiram desde cedo, algumas das quais também forma desempenhadas pelos juízes de fora. Uma constante aproximação da governação com a justiça fez com que a atuação judicial dos magistrados perdesse espaço para seus papéis na burocracia. A chegada dos juízes letrados teria ampliado a interferência dos magistrados na vida camarária na primeira metade do setecentos, o que ocorrera na Bahia quando os desembargadores passaram a gerir a vida concelhia. Esta fórmula se repetiu em outros espaços como veremos a seguir. Em resumo, a interferência dos juízes na ação de oficiais e auxiliares se dava por vários caminhos. Fosse sob a forma de intervenções ou omissões nos sistemas eleitorais, fosse através de nomeações para os cargos camarários, ou até mesmo de simples confrontos para ocupar lugares de destaque em festividades e celebrações, as intervenções dos magistrados passaram a ser constantes na vida administrativa e concelhia das capitanias.

1275

Governo e função jurisdicional Nos quadros da administração colonial havia uma coexistência de “entidades políticas”3, segundo Greene, na qual a câmara e a justiça, para o caso deste estudo, desde a sua criação quando da fundação das vilas intervinham nas funções umas das outras de modo constante. Esta intervenção não se dava de maneira harmônica e foi pensada de modo que as funções burocráticas tivessem o apelo judicial e se confundissem, por vezes, com as funções de governo. Ao observarmos as funções camarárias na sua relação com a justiça, temos a perspectiva de que, na porção portuguesa da América, as câmaras não tinham autoridade para criar leis ou seja para produzir direitos o que não quer dizer que não enraizassem costumes que poderiam ter força de lei. Para Pernambuco, a chamada nobreza da terra,4 nos moldes da designação de Evaldo Cabral, teria emergido numa situação destas. Arrogando privilégios oriundos da bravura em face da presença holandesa, os discursos produzidos pelos naturais de Pernambuco nos começos do século XVIII evidenciaram a potencialidade das câmaras para enraizar costumes e a sua luta para sedimentá-los, assim como discute Fernanda Bicalho. Governação para aquele tempo até parte do século XVIII implicava numa relação estreita com a jurisdição fosse ela voluntária, a dos tribunais da justiça, fosse a contenciosa, uma estrita atribuição do monarca. Neste momento, mais uma vez aproximamos as esferas da vida política das tarefas requeridas para a vida burocrática que eram eminentemente exercidas pelos magistrados. De muitas maneiras se deu esta constante aproximação entre o que era do universo político das câmaras e o que era do universo burocrático da magistratura. Governo, administração, burocracia e justiça cabiam no que genericamente se entendia por “governação”, como a sintetiza Cardim5. Em meio a este leque abrangente de significados atribuídos à “administração” e à “justiça”, as várias jurisdições de governadores, magistrados, eclesiásticos, enfim a “governação” de cada um convivia como parte de um programa político imperial na América Portuguesa que permitia a convivência de todas elas. Por vezes em conflito, em outros momentos travando alianças os poderes jurisdicionais tiveram a sua versão quase ilimitada até chegarmos ao século XVIII, quando a liberalidade outrora delegada aos governadores, conquistadores e ao que viria a ser mais tarde uma “nobreza da terra” passou a sofrer a ingerência de controles por

1276

parte da coroa. Neste ínterim, a magistratura representou para a América Portuguesa um instrumento político da centralização régia, como afirma Bicalho6. Por outro lado, aqueles a quem competia o exercício burocrático também desempenharam atribuições para além dos seus papéis de julgadores. Imiscuídos na administração colonial, os magistrados nos cargos de ouvidores e de juízes locais tiveram um desempenho enquanto fiscais das eleições camarárias, substituíram govenadores, devassaram administrações e, em muitos momentos, extrapolaram tanto suas funções burocráticas quanto judiciais. Camarinhas analisa que no reino a justiça se distinguia em duas esferas 7, uma escala central e outra escala periférica, esta última subdividia-se em três níveis territoriais: o local, a comarca ou ouvidoria e as magistraturas de jurisdição provincial. Tivemos algo semelhante na América Portuguesa, ao mesmo tempo em seus quadros ocorreu o que Greene analisa como uma cada vez maior “naturalização dos oficiais enviados do centro”8, e de sua influência na governança imperial a partir do uso pleno de seus atributos somados a outros poderes adquiridos na ambientação colonial. Como não poderia ser diferente, aqueles exercícios burocráticos que marcaram as folhas de serviço dos magistrados que por aqui passaram revelaram vícios que se estenderam pelo aparato judicial, por vezes assinalados no presente. Altos graus de pessoalidade, uma constante falta de harmonia nas decisões que era acentuada por uma legislação geral e abrangente, e pela falta de eficácia de tribunais com seus juízes ausentes acentuada e quando presentes com múltiplas incumbências a realizar.

A instalação da justiça de Pernambuco em meio aos conflitos das duas câmaras Para algumas áreas periféricas da América Portuguesa, que exerciam certa centralidade na sua relação com áreas vizinhas, os primeiros magistrados ou ministros das letras somente foram nomeados a partir de 1696, mediante a criação das comarcas de Pernambuco, do Rio de Janeiro e de Alagoas a um só tempo, como vimos. A nosso ver, alguns episódios da convivência turbulenta entre juízes de fora, ouvidores, juízes ordinários e câmaras demonstraram, entre outros aspectos, o caráter apressado desta criação de comarcas e de instalação dos primeiros juízes letrados. Embora, por outro lado, tenha sido ela tardia no tempo uma vez que já haviam se passado século e meio de colonização. Providos para os cargos determinados pela coroa, os primeiros juízes letrados designados para as recém-criadas comarcas de fins do século XVII,

1277

exerceram

efetivamente suas atribuições para extensões territoriais imensas. Além disto, as tarefas que eles teriam que exercer iam desde a realização de investigações criminais, incluindo inquéritos e devassas9, além as atribuições do cível, tais como todas as questões que envolviam o juízo dos órfãos e dos ausentes e todas as demais ações relativas ao patrimônio familiar. Por outro lado, eles também exerciam papéis administrativos que estavam previstos tanto para situações extraordinárias quanto para outras mais corriqueiras. Foi no espaço da Câmara de Olinda que o primeiro juiz de fora despachou seus papéis e lá assumiu, junto ao ouvidor, as funções de controle dos processos eleitorais ou a condução do governo da capitania, sobretudo aqueles que o sucederam e se viram em meio às situações de conflito gerados pelo Levante dos Mascates10, no qual os governadores se ausentaram ou foram impedidos de atuar. Normalmente exercidas por ouvidores, estas tarefas também poderiam ser exercidas pelos juízes de fora que atuavam na ausência daqueles. Em meio àquelas atribuições, os magistrados de Pernambuco desenvolveram alianças com os grupos locais, mediante as quais obtiveram a chance de angariar privilégios ou a efetiva propriedade de cargos auxiliares para familiares e afilhados políticos. Por sua vez, a câmara também obtinha poderes de controle sobre o aparato judicial enquanto uma entidade política. Como exemplo destes controles, as residências por ela instauradas instrumentalizavam o exercício dos cargos pelos magistrados, ou seja, no momento em que das câmaras saía a designação das residências, elas tinham o controle sobre um instrumento primordial para a ascensão do magistrado aos tribunais na colônia ou até mesmo no reino. A câmara era, portanto, uma instituição que poderia conter ou atrapalhar a trajetória profissional de um magistrado. Era nas câmaras que se originavam as denúncias contra juízes que abusavam de seus poderes. Com vistas a responder às inúmeras denúncias que emergiam das residências, a Coroa ordenou em 1743 que nos casos de infrações de magistrados os oficiais deveriam obrigar os inspetores que as registrassem nos autos do processo e determinou que, entre outros aspectos que “…se ele ouvidor ou seus sucesores preterirem em alguma parte a dita forma se lhes há de dar em culpa nas suas residencias, o que sou servido mandar vos avisar e ordenai-vos façais registrar esta ordem nos livros desse Senado”11

Ambos os lados detinham, portanto, poderes que os confrontavam, ou por vezes controlavam um ao outro em determinadas circunstâncias. As diversas situações de

1278

conflito que aqui encontramos se aparentam em um nível mais elevado na relação entre vice-reis e auditores na América Espanhola que culminavam nas mesmas relações e jogos de poder. Na Câmara do Recife não foi diferente, uma vez que após os conflitos dos mascates passou ela a ser a sede da capitania. Ali foram oportunizados muitos confrontos jurisdicionais mais comuns entre magistrados e oficiais que renderam muitas atas e determinações régias acerca dos limites da atuação de uns e outros. Duas razões faziam de juízes os protagonistas de muitas tensões. Uma delas era a perspectiva do apoio da Coroa para eles na medida em que a representavam e, portanto, quando encenavam divergências quanto à condução dos poderes locais deveriam se posicionar em defesa dos interesses régios. Outra razão residia no conjunto de responsabilidades administrativas que eles assumiam paralelamente às suas funções judiciais. Quanto à circulação burocrática, justiça e municipalidade atuaram bem próximas tanto física quanto administrativamente e quase nunca harmonicamente.

Querelas burocráticas em Pernambuco no setecentos As relações de conflito com os poderes locais foram sentidas em Pernambuco. Já desde o seu primeiro juiz de fora, Manoel Tavares Pinheiro, sendo procedido por Roberto de Carvalho e Luiz de Valensuela Ortiz. Sobretudo este último testemunhou os conflitos oriundos com a eclosão do levante dos mascates a partir de 1711. A fase turbulenta pela qual passou a capitania foi um momento de eclosão dos conflitos jurisdicionais que emergiram após a presença holandesa e se estenderam até o início do século XVII. A atuação de cada um dos juízes de fora de Pernambuco revelouse, a nosso ver, quase que totalmente direcionada para os assuntos administrativos. A atuação tanto dos magistrados quanto das demais autoridades da capitania oscilou naquele período entre as devassas dos levantados e as querelas sobre limites de poderes de ouvidores, juízes de fora e juízes ordinários. Exemplificaram aquelas situações, tanto a atuação de Valensuela quanto a do seu sucessor Paulo de Carvalho. Em carta ao rei D. João V, este último se ocupou de descrever o estado da capitania e as situações de conflito ocorridas entre as duas vilas principais de Pernambuco12. Além disto, Valensuela Ortiz chegou a assumir o papel de Ouvidor Geral da Capitania e junto com seu sucessor João Marques Bacalhau atuaram em meio aos conflitos entre as duas câmaras.

1279

As tensões não fugiram dos reclames de governadores e, em especial, naquele turbulento contexto da capitania, o então governador revelou outro aspecto das relações entre justiça e atuação camarária. Em suas cartas dirigidas ao rei, o governador Lourenço de Almeida queixou-se do estado da justiça e ressentiu-se da falta de juízes de fora. Entre pedidos de esclarecimento sobre os rendimentos do juiz de fora de Pernambuco, em sua correspondência ele registrou que “só a queixa que há entre alguns é experimentarem alguma falta de justiça nas suas causas, porque como serve de juiz de fora um vereador não pode este deixar de fazer algumas sem razões porque como não é letrado”13. Porém, não somente o contexto de conflitos justificava os conflitos protagonizados pelos ouvidores. Nos momentos de paz que se seguiram à devassas os levantados, a convivência entre juízes e ouvidores com o cotidiano da câmara também revelou tensões. Nas regulares eleições municipais nas quais cabia aos magistrados resolver fraudes nos processos e promover novas eleições quando fosse o caso, em muitas situações o ministro anterior era o alvo das reclamações por haver precedido “menos canónicamente” do que o requerido para sua função. A convivência entre juízes de fora e agentes camarários chegou ao ponto de em novembro de 1734 os oficiais terem apresentado uma solicitação ao ouvidor da comarca “invocando el título LXVI do Livro I das Ordenações, donde se autoriza aos vereadores a recorrir aos ouvidores no caso em que os juízes e fora não cumprem as sentenças emitida pela câmara.14 Se por um lado, os magistrados protagonizavam denúncias e querelas, por outro eles também reclamavam da extensão de suas atribuições. Vencendo grandes distâncias para o exercício de seus atributos ou assumindo novas atribuições quando um dele se ausentasse para fazer diligências. Olinda e Recife figuraram novos conflitos protagonizados por agentes camarários e juízes nas décadas que se seguiram aos levantes dos mascates, segundo George Cabral15: En 1712 los vereadores de Olinda consultaron al Conselho Ultramarino sobre los mecanismos de sustitución de los magistrados reales. La corona confirmó que, faltando el ouvidor y el juiz de fora, asuma el vereador mais velho del municipio que sea la cabeza de la comarca del ouvidor ausente.16 Los oficiales de Olinda interpretaron al principio que durante la falta del juez letrado, debía ser el juez ordinario de Olinda el que presidiera las dos cámaras. Hemos visto que entre los dos grupos había rencores enraizados desde hacía muchas décadas. Por lo tanto, esa situación no era en absoluto conveniente para los ediles de Recife. Debido a las protestas de los oficiales de Recife, el Conselho Ultramarino recomendó en 1713 que los sustitutos del juiz de fora ejerciesen su jurisdicción por separado dentro del alfoz de cada villa.17

1280

Aqueles problemas continuaram a existir uma vez que os oficiais de Olinda mantiveram a prática de “controlar o posto de ouvidor” quando da vacância do cargo o que levou a coroa a dividir as jurisdições “também nos casos de substituição de magistrados reais”.18 Outro elemento complicador no quadro das disputas de interesses entre magistrados e outras autoridades se apresentava quando da nomeação dos auxiliares da justiça, muitos dos quais eram providos pelos ouvidores. Por este caminho, gerações de aparentados políticos assumiram “cargos de família”, como já discutimos em outro trabalho acerca da atuação dos escrivães19. Os conflitos se deram na medida em que alguns grupos reagiram, por vezes, buscando obter os mesmos privilégios para seus afilhados. Até os fins da década de 50, esta continuava a ser uma fonte de denúncias de parte a parte, pois neste contexto temos a disputa entre a Câmara do Recife e o Juiz de Fora sobre a nomeação do escrivão do juízo dos órfãos e ausentes.20 Ainda no rol dos conflitos burocráticos que os magistrados encenaram, algumas autoridades eclesiásticas também travaram intensas disputas. Foi o que ocorreu entre o juiz de fora Antonio Teixeira da Mata e o bispo D. Frei Luis de Santa Teresa, relatado na Informação Geral de Pernambuco e nas Cartas dos oficiais da Câmara do Recife. Entre os fatos narrados a excomunhão do juiz por ordem do bispo21 teria sido o mais sugestivo. A querela extrapolava as desavenças dentro da ordem civil e ganhava a cena dos conflitos de jurisdição entre a administração civil e clerical, tendo como centro da discussão uma herança deixada por um indivíduo destinada a salvação de sua alma e que o juiz não acatou o que levou a sua excomunhão.22 Como resultado, a câmara foi chamada a arbitrar e o fez em favor do juiz de fora. Unidos contra o bispo e por interesses nas benesses do juízo dos Ausentes, e também por alguns descontentamentos com as atitudes do bispo em outras ocasiões, a disputa se estendeu por algum tempo e envolveu outras autoridades como o ouvidor Francisco de Araujo. Desse modo, câmara, ouvidoria, bispado e, até mesmo, o arcebispado da Bahia e o Conselho Ultramarino, foram chamados a debater as denúncias que circulavam o fato. Inimizades eclodiram, denúncias se agigantaram e o resultado foi a repreensão do prelado.23 Aquela querela é bastante ilustrativa dos envolvimentos gerados pelas disputas jurisdicionais que os magistrados iniciavam ou nas quais eram envolvidos em um volume de tensões que abarcavam vários níveis da administração. Os debates travados entre juízes

1281

e agentes camarários, produziram muitos efeitos, chegando a exigir a regulação de assuntos que motivavam enfrentamentos. Muitas vezes, a solução que a coroa, o conselho ou as autoridades locais encontravam podiam produzir novas tensões e chamar outros atores para a cena dos conflitos. Portanto, embora em grande número, obviamente os confrontos de jurisdição não eram bem-vindos porque poderiam acender a centelha de problemas ainda maiores, o fato de terem em seu centro as denúncias e os abusos cometidos pelos magistrados, talvez permitisse um arbítrio menos imediato e incisivo da coroa o que em outras situações seria diferente. Enfim, a burocracia colonial implicou em um constante exercício de barganhas políticas entre poderes no âmbito das relações centro-periféricas da monarquia corporativa portuguesa. Os ocupantes dos cargos camarários e judiciais exerceram funções burocráticas, no entanto, a burocracia foi se aparentando com o exercício exclusivo de magistrados e deste exercício tornou-se uma marca com profundas raízes na sociedade brasileira.

1

Refiro-me às ouvidorias criadas conjuntamente com as comarcas de Pernambuco, Rio de Janeiro e Alagoas no ano de 1696. 2 Carta do juiz de fora da capitania de Pernambuco, João de Sousa de Meneses Lobo, ao rei D. João V sobre o conflito de jurisdição entre o juizado de fora e a ouvidoria da comarca. AHU, Cx 61, doc 5193 3 GREENE, Jack P. Tradições de governança consensual na construção da jurisdição do Estado nos impérios europeus da Época Moderna na América. In: FRAGOSO, Joâo & GOUVÊA, Maria de Fátima (org.). Na trama das redes – política e negócios no Império Português, séculos XVI – XVIII. RJ: Editora Civilização Brasileira, 2010 4 Conceito associado à reconquista da capitania frente os holandeses ao reivindicarem “para si distinções e privilégios e um acesso privilegiado ao governo das conquistas”. MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro Veio: o imaginário da restauração pernambucana. 3ª ed. rev. SP, Alameda, 2008; Ver ainda BICALHO, Maria Fernanda. Elites coloniais: a nobreza da terra e o governo das conquistas CUNHA, Mafalda Soares da & CARDIM, Pedro & MONTEIRO, Nuno Gonçalo F. Optima Pars – Elites Ibero-Americanas no Antigo Regime. Lisboa: ICS, 2005 5 CADIM, Pedro. “Governo e Administração” – o vocabulário político do Antigo Regime. In: BICALHO, Maria Fernanda & FERLINI, Vera Lúcia Amaral. (org.) Modos de Governar - idéias políticas no Império português (sécs. XVI-XVII). São Paulo, Ed. Alameda, 2005 6 BICALHO, Optima Pars..., 2005

1282

CAMARINHAS, N. Juízes e administração da justiça no Antigo Regime. Portugal e o império colonial, séculos XVII e XVIII, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian / FCT, 2010. 8 GREENE, Na trama das redes..., 2010, p. 111 9 Conforme as Ordenações Filipinas, no Livro 1, Título 65, itens 31 a 72; Livro 5, Título 26, § 9. ALMEIDA, Cândido Mendes de. Código Philipino, ou Ordenações e Leis do Reino de Portugal. Rio de Janeiro, 1870. Edição por reprodução em "fac-símile" da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1985, p. 1315. 10 Ver MELLO, Evaldo Cabral de. A Fronda dos Mazombos: nobres contra mascates, Pernambuco, 1666-1715. SP, Ed. 34, 2003. 11 Ordem Régia de 4/9/1743, LRCU, 5º volume de CP, AHU, Códice 260 12 AHU, Cx. 24, doc. 2217 13 AHU, Cx 27, doc. 2483 14 Carta da Câmara do Recife ao Ouvidor da Comarca, de 29/11/1734, LRCMR, 17331808, p. 171, IAHGP. 15 CABRAL, George F. Elites e exercício de poder no Brasil colonial: a Câmara Municipal de Recife (1710-1822). Tese de doutorado defendida no Programa de Pósgraduação da Universidade de Salamanca. 2007 16 Carta da câmara de Olinda ao rei sobre a substituição dos ouvidores e juízes de fora, 3/2/1712 e carta do rei a câmara de Olinda, 2/7/1712, Informação Geral da Capitania de Pernambuco em 1749, p. 230. 17 Consulta do Conselho Ultramarino ao rei D. João V, sobre o que escreveram os oficiais da Cámara do Recife, acerca da necessidade da separação daquela vila da jurisdição da cidade de Olinda, 19/3/1713, AHU_ACL_CU_015, Cx. 25, D. 2278. Citada por CABRAL, Tese de doutoramento…, 2007 18 Carta del Rey a la Cámara de Olinda, 17/11/1716, LRCU, 3º volume de CP, AHU Códice 258, hoja 130v. 19 Ver meu artigo ‘Ofícios’ de família: estratégias patrimoniais no mercado matrimonial colonial (sécs. XVII –XVIII). Revista Brasileira de História & Ciências Sociais – RBHCS. Vol. 5, n. 09, 2013, pág. 132-150 20 Carta do governador de Pernambuco, conde dos Arcos D. Marcos José de Noronha e Brito, ao rei D. João V, sobre informação do juiz de fora de Olinda e Recife, João de Sousa de Meneses Lobo, acerca da representação da Cámara do Recife em que pedem a criação do ofício de avaliador e partidor para o Juízo dos Ausentes, 21/3/1746, AHU, Cx. 62, doc. 5346. 21 Carta da câmara de Recife ao governador de Pernambuco, 27/11/1749, LRCMR 17331808, p. 215v-216, IAHGP. 22 Carta del obispo D. Fraile Luís de Santa Teresa a la cámara de Recife, 28/11/1749, LRCMR 1733-1808, hojas 216v-217, IAHGP. 23 Consulta do Conselho Ultramarino ao rei D. José I, sobre a carta dos oficiais da Cámara do Recife, em que se queixam dos excessos de salários dos oficiais e ministros eclesiásticos, 11/9/1751. AHU, Cx. 72, doc. 6054. 7

1283

A definição dos limites brasileiros com a República do Paraguai nas penas de Duarte da Ponte Ribeiro (1844-1872) Jéssica de Freitas e Gonzaga da Silva* Resumo A partir da década de 1850, a política externa brasileira foi desenvolvida para obter o fortalecimento da soberania brasileira. As relações políticas com o Paraguai tornou-se estratégico devido à importância do território fronteiriço e a livre navegação do rio Paraguai para manutenção da unidade nacional. O artigo almeja apresentar a contribuição do diplomata Duarte da Ponte Ribeiro para definição dos limites com o Governo Paraguaio, destacando atuação da Diplomacia Brasileira para consolidação do Estado Imperial. Palavra-Chave: Fronteira, Império do Brasil, Relações Internacionais Abstract Since the 1850s, Brazil's foreign policy has been developed for the strengthening of brazilian sovereignty. The political relations with Paraguay have become strategic because of the importance of border territory and the free navigation of the Paraguay River to maintaining national unity. This article aims to present the contribution of the diplomat Duarte da Ponte Ribeiro to define the limits with the Paraguayan Government, highlighting activities of Brazilian diplomacy to consolidate the Empire State. Keywords: Frontier, Brazil Empire, International Relations O território representa um dos elementos constitutivos dos Estados Nacionais i. Na segunda metade do século XIX, a manutenção dos domínios territoriais era uma das prerrogativas para a consolidação da soberania brasileira e o fortalecimento da instituição monárquica. José Antônio Pimenta Bueno (1803-1878), na obra Do direito público Brasileiro e análise da Constituição do Império (1857), analisou sua importância: “o território do Império não constitui somente a sua mais valiosa propriedade; a integridade, a indivisibilidade dele é de mais a mais não só um direito fundamental, mas um dogma político ii”. E acrescentou: “É um atributo sagrado de seu poder e de sua independência; é uma das bases primordiais de sua grandeza interior e exterioriii”. A própria concepção de Império estava, intrinsecamente, relacionada à preservação e continuação de sua unidade, pois representava autoridade sobre as províncias e contrapunha às repúblicas vizinhas cuja ideologia representava uma ameaça. A Coroa e o Imperador D. Pedro II desempenhavam uma função simbólica: consolidação da soberania popular e direitos da

*

Mestranda em Estudos Marítimos pela Escola de Guerra Naval (EGN). Graduada em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Orientadores: Professor Cláudio Marin Rodrigues (EGN) e Professora Regina Wanderley (IHGB). E-mail: [email protected].

1284

realeza. Um dos elementos identitários era as dimensões continentais de seu território. Caberia a Coroa, corpo e centro político, garantir o monopólio da força e das leis, controle da administração local, atuando na preservação e ampliação dos interesses da elite em casa região do Império e sua defesaiv. Nesse projeto político, a definição dos limites tornava-se essencial, conforme explica Pimenta Bueno: “Uma das mais importantes necessidades do Império, para conservar paz e harmonia com os Estados limítrofes é definir a linha dos seus limites e destarte evitar questões e conflitos de jurisdiçãov”. O Ministério dos Negócios Estrangeiros, sobretudo, a partir de 1850, na gestão de Paulino José Soares de Souza, construíu uma política externa capaz de atender aos interesses brasileiros, privilegiando as relações diplomáticas regionais. A política intervencionista na bacia do Prata, a negociação de tratados de limites e livre navegação foram os principais assuntos na agenda internacional brasileira. A República do Paraguai ingressou à órbita da política externa brasileira que buscou assinar o Tratado de Amizade, Comércio, Limites e Navegação. Sua importância estratégica era relevante pelos seguintes aspectos: o reconhecimento de sua soberania para conter os planos expansionistas do General Juan Manuel Rosas, Governador de Buenos Aires, incluindo uma aliança política-militar em caso de uma ofensiva platina ou brasileira. A livre navegação garantiria o acesso e a integração da fronteira ocidental do Império à Corte, enquanto a demarcação dos limites preservaria a integridade da província do Mato Grosso. As disputas pelo território entre o rio Branco e o rio Apa na fronteira contribuiram para o acirramento das relações diplomáticas entre o Governo Imperial e o Governo de Carlos López durante a década de 1850. É interessante notarmos que o corpo diplomático formado por membros intelectuais da elite obtiveram destaque, não só através da atuação política nas missões diplomáticas. Alguns diplomatas formularam pensamentos e estratégias capazes de cumprir os objetivos nacionais, sobretudo, no que tange a definição dos limites e defesa das fronteiras, conforme destacaremos na carreira de Duarte da Ponte Ribeirovi. A fronteira do Brasil com o Paraguai Em 1844 Duarte da Ponte Ribeiro escreveu Apontamentos sobre o Estado da Fronteira do Brasil. A primeira assertiva apresentada foi o uso pelo Governo Imperial do princípio de uti possidetis e da força como meios para garantir seus interesses sobre as áreas fronteiriças: “Dessa forma conseguiria o Império, aproximadamente, a fronteira possível direito valioso, isto é, o uti-possidetis, apoiado com a força, sem a qual nada de proveito obterá o Governo Imperial dos

1285

outros seus vizinhos limítrofes”vii. No caso específico da fronteira mato-grossense, o autor analisou os principais pontos onde a segurança estava fragilizada, comprometendo a soberania brasileira e sugerindo medidas para sua defesa, impedindo o avanço da Bolívia e do Paraguai e o pleito oficial dessas nações sobre esses territórios: 19º Nova Coimbra não tem guarnição nem a artilharia que precisa para se fazer respeitar. A dificuldade de levar artilharia aquela província é hoje a mesma que havia no tempo dos Espanhóis: o Governo de Buenos-Aires não consente a condução pelo Paraná e Paraguay; 20º É sobremaneira nocivo aos direitos e interesses do Brasil que continue em esquecimento a margem oriental do Paraguai desde o lugar denominado “Fecho do Paraguai” até o rio Correntes. Auguto Leverger fez ultimamete de Cuiabá a Assunção mostrou que os Paraguaios tem estabelecimentos até a margem austral do rio Apa, que eles consideram ser o “Correntes” do “Tratado Preliminar” de 1777: e julgo que o Governo do Paraguay não se oppõe a que o Brasil avance também estabelecimentos até a margem Boreal, do mesmo Apa. A vista desses estabelecimentos, antigos e modernos, formados pelo Governo do Paraguay, mal poderá o Brasil conseguir hoje que a sua fronteira chegasse ao rio Ipanéguassú: além do que nas circunstâncias presentes não convém entabolar com aquele Governo questões definitivas a respeito de limites, porque iríamos confirmar a alarma que o Governador de Buenos Aires busca suscitar contra as intenções do Governo Imperialviii.

Para Ponte Ribeiro, além da negociação era fundamental a manutenção e a construção dos fortes para garantir os interesses territoriais brasileiros: Em todo caso deverá cuidar-se de estabelecer quanto antes um posto brasileiro no lugar, ja indicado dos “Fechos dos Morros” na margem oriental de Paraguai, junto do Cerro chamado “Pão de Açúcar” pelos Comissários da Demarcação de 1750 onde estiveram e fizeram observações. A posse da Ilha que está defronte ao meio do rio, poderá tomar-se depois e não já, porque despertaria desconfianças; porém uma vez assegurada a posição do “Pão de Açúcar”, fácil será apoderar-se da Ilha, que é a verdadeira chave do rio Paraguai dalí para cima. 21º Enquanto a raia do Império com o Paraguay, pelo lado das vertentes que vão ao Paraná, importa muito que ela seja pelo Iguatemi desde a sua foz até as suas nascentes na serrra Amambay, que separa em sentido aposto as vertentes que correm para os dois – rio Paraguay e Paraná. Na margem do Iguatemi, tivemos a “Praça dos Prazeres”, que por ter sido abandonada em 1777, não por isso perdemos o direito de reedificá-la como nos convém; é de esperar que não haja oposição por parte do Governo Paraguayix.

Em seguida, alerta para a fronteira entre o Paraguai, Corrientes e o Brasil, defendendo que o Governo Imperial deveria requerer os territórios próximos a bacia do Paraná devido à ameaça da conquista desses territórios pela Confederação Argentina próximos a província de São Paulo: Entretanto deverá cuidar-se de prevenir a renovação dessas antigas questões sobre o verdadeiro peperi-guassú e o Santo Antônio, levantando-se já um fortim, presídio, ou qualquer estabelecimento na foz do peperi-guassú. Seria este o meio não só de firmar o direito do Brasil nesses lugares, mais ainda para ir avançando monumentos de posse por aquele território compreendido entre os dois grandes rios; mas há todavia muitos índios bravos que dificultam esses estabelecimentosx.

Em 1846, o diplomata escreveu outra memória que complementa seu estudo sobre as fronteiras: Apontamentos sobre o rio da Prata e seus afluentes: Paraná e Uruguai por Duarte da Ponte Ribeiro. A contribuição de sua análise foi além da descrição dos afluentes do rio Paraná. Seu objetivo foi relacionar a relevância estratégica para o Império do Brasil, Paraguai, Confederação Argentina e Uruguai. No caso paraguaio, sublinhou as disputas de Assunção com

1286

as províncias argentinas para obter a livre navegação desde a foz do Vermejo até a do Pilcomaio e a construção de fortalezas para guarantir sua possessão e impedir a entrada de indígenas. Encerra, estabelecendo as fronteiras entre os domínios brasileiros sobre o rio Paraná: “pertence a margem esquerda do Paraguay desde o rio Apa para o norte, depois Bahia Negra. Pelo lado do Paraná primitivo toca ao Brasil a margem esquerda desde a foz do Iguarú para o norte, e ambas as margens depois do Iguatemixi” e paraguaios: “A margem esquerda do rio Paraguai desde a formação do Paraná primitivo até a foz do rio Apa: pelo lado do Paraná primitivo, pertence-lhe toda a margem direita deste rio, desde a sua confluência com o Paraguai até a foz do Iguatemi acima do Salto Grandexii”. Cabe destacarmos esse trabalho não só pela análise geográfica, mas também, como uma obra política. A partir do estudo sobre os rios, Ponte Ribeiro fornece subsídios para compreender as relações políticas da bacia do Prata durante o processo de consolidação dos Estados-Nacionais dessa região. Ademais, esse objeto foi trabalhado uma vez que a livre navegação da bacia do Paraná e Paraguai era fundamental para o Governo Imperial compreender os interesses que poderiam convergir ou ir de encontro aos da Corte e na formulação da estratégia política, pois cada realidade era analisada, considerando as consequências para o Brasil. Mais tarde, durante a década de 1850, o Paraguai buscou estreitar relações com Confederação Argentina. A disputa entre os territórios de Missiones e o Chaco, foi assinado apenas o Tratado de Amizade, Comércio e Navegação. Ao mesmo tempo em que o Brasil, em 1852, assinava um tratado com a Confederação Argentina para garantir seu apoio na obtenção do livre trânsito e a definição dos limites com o Paraguai. Em 1858, com o acirramento das tensões com Assunção, o Governo Imperial assinou com a Confederação um tratado de Limites, renunciando qualquer pretensão sobre a região de Misiones, a oeste do Peperi-Guaçu e Santo Antônio, mais tarde, não retificado e aliança militar entre o Paraná xiii e Rio de Janeiro em caso de guerra contra os Paraguaiosxiv. Doravante, as análises de Ponte Ribeiro não permaneceram apenas na esfera diplomática, pelo contrário, foram utilizadas por militares que pensaram estratégias para defesa das fronteiras brasileiras. Em 1895, a Imprensa Nacional publicou Apontamentos sobre o Estado da Fronteira do Brasil de 1844 por Duarte da Ponte Ribeiro e Observações feitas em 1847 pelo Tenente General Francisco José de Souza Soares de Andréa aos Apontamentos sobre o estado atual da fronteira do Brasil por Duarte da Ponte Ribeiro. O Tenente Andréa

1287

complementa o trabalho de Ponte Ribeiro, pois, enquanto o primeiro analisou a política, o segundo abordou a defesa das áreas de fronteira. O militar defendeu a mudança da estratégia de defesa, que antes era baseada nas fortificações construidas pelos portugueses, para ocupação efetiva do território através das colônias militares que iria reunir o civil ao militar, desenvolvendo ocupação e atividades econômicas, comércio e agricultura, nessas áreas. Para Andrea, a província do Mato Grosso deveria ser defendida pela Marinha do Brasil: Tem sido com efeito um deleixo indesculpável o abandono das nossas fronteiras, e esse deleixo é hoje maior que nunca. Em geral não bastam quaisquer fortificações ou quartéis nesses sertões desabitados, é preciso que estes postos militares fiquem fora de uma surpresa (..) É preciso desenvolver por toda ela uma população agrícola ou industriosa [sic], da melhor gente do país. A província do Mato Grosso deve ter em si os meios não só de bem guarnecer as suas fortificações, e isso o quanto antes, como os de se defender de qualquer tentativa externa. Deve (por estabelecimentos de Marinha) desenvolver a navegação interna por todos os rios que a admitirão, sendo os principais o Paraguai, Madeira, Tapajós, Xingu e Araguaia. Quanto ao Paraguai bastará vencer por bem ou por mal os obstáculos internacionais, e fazer uso dos barcos a vapor até ao mar para que a província do Mato Grosso entre na classe de província marítimaxv.

Com o acirramento das relações diplomáticas entre o Paraguai e o Brasil, a partir de 1852, devido ao embargo promovido por Carlos López ao livre trânsito brasileiro pelo rio Paraguai, pois acreditava que ameaçaria a soberania paraguaia, através da exigência de documentos, inspeções nas fortalezas e cobranças de tributos, e que só deveria ser concedido caso os limites territoriais fossem definidos, obedecendo ao Tratado de Santo Idelfonso (1977) conforme os interesses de Assunção. Apesar das insistentes negociações, o Governo Paraguaio permanecia intransigente na concessão das prerrogativas brasileiras. O caráter econômico do território devido à produção de erva-mate para atender ao lucrativo mercado consumidor corroborava para que López permanecesse na disputa, enquanto que, caso o Brasil concedesse terras, a integridade da província do Mato Grosso ficaria comprometida. No Rio de Janeiro, o Ministério dos Negócios Estrangeiros chegou a considerar a ofensiva militar contra o Paraguai. Diante desse contexto, após 1855, o Ministério da Marinha, Ministério da Guerra e a Secretaria de Estado de Agricultura, Comércio e Obras Públicas foram mobilizados para promover ocupação, integração e segurança da província do Mato Grosso. A Armada Imperial buscou desenvolver seu poder naval para atuar no teatro de operação fluvial e na manutenção das organizações militares na fronteira ocidental do Império como Trem Naval do Mato Grosso composto pelo Arsenal e Companhia dos Imperiais Marinheiros (1857), Estação Naval (1858), Flotilha do Mato Grosso (1846-1858) e a criação do Estabelecimento Naval e Colônia Militar do Itapura (1858). Ao mesmo tempo, o Ministério da Guerra fundou seis colônias militares nas áreas de litígio com o Paraguai com o objetivo de legitimar a posse brasileira: Colônia Militar de Dourados (1856), Brilhante (1855), Nioac (1855), Miranda (1859) e São Lourenço (1859). 1288

Em 1858, com a chegada de José Maria da Silva Paranhos, o Paraguai assinou o protocolo que garantia a livre navegação dos navios brasileiros e mantinha o status quo da fronteira, mantendo sua neutralidade sem a militarização da área. No entanto, verificamos que não só o Brasil buscou aumentar seu efetivo militar, mas o Paraguai preparava-se para guerra com a organização de uma força armada na fronteira. As modificações políticas no ano de 1862 foi um marco nas relações internacionais platinasxvi, mas a escala de crise estava aumentando e a guerra raiava no horizonte. Os limites só seriam definidos após a Guerra da Tríplice Aliança contra o Governo do Paraguai (18641870). Nesse interím, Duarte da Ponte Ribeiro escreveu Questões de limites entre o Brasil e a República do Paraguai (1862) para fornecer subsídios às negociações da diplomacia brasileira. Inicialmente, considera a definição dos limites com o Paraguai fundamental para o Império demonstrar seu poder e impedir novas disputas: O Governo Imperial deverá atentar seriamente para a solução das questões de limites com a República do Paraguai, porque o resultado que estas tiverem servirá de aresto para outras idênticas e de muito mais transcendente alcance com Bolívia e outros Estados que cercam o Império. Engana-se quem opina que não se devem quebrar lanças com o Paraguai para conservar uma estreita faixa de vinte léguas de terreno ao longo do Rio Paraguai desde a foz do Apa até a boca da Sanga chamada Rio Brancoxvii.

Através da análise sobre os interesses pelos territórios cobiçados pelos paraguaios entre o rio Branco e o rio Apa para garantir “vinte léguas de território, e sim possuir ambas as margens do rio até o forte Olimpo (...) a buscar o seu contraverte [rio] Dourados, e por este o [rio] Invinheima até o [rio] Paranáxviii”, o diplomata desenvolve argumentos capazes de legitimar a posse brasileira. Sua justificativa foi baseada nos seguintes aspectos: I) Tratado de Madri, como explica o autor: Os limites do Brasil na parte confinante com a hoje República do Paraguai, são os mesmos que tinha em 1750 quando a Espanha e Portugal fizeram o Tratado sob a base comunicada no seu preâmbulo, isto é, que cada parte contratante ficasse com o território que possuía na atualidade. E posto que esse Tratado fosse abolido pelo de 12 de fevereiro de 1761, ficou subsistindo o seu valor histórico quanto ao mútuo reconhecimento das posses que então tinha cada umaxix.

Em segundo lugar: A repetição das cláusulas do Tratado de Madri no Tratado de Santo Ildefonso (1777), exceto a região do Ipane-Guassú ao norte, próximo ao rio Apa. Área cuja fronteira não era pleiteada pelo Brasil e reconhecida como território paraguaio. E, por fim, Ponte Ribeiro explica a posse brasileira sobre o rio Iguatemy, desde a marcação da fronteira em 1752: Se o Plenipotenciário do Paraguai insistisse em prolongar àquem do Rio Iguatemi a fronteira que em 1752 foi demarcada pelo leito dele até as suas fontes principais e as do seu contraverte Ipané-Guassú, e a Leste da linha divisória que depois das posses tomadas pelos Espanhóis ao longo do Rio Paraguai até o Apa lembre que depois das demarcações de 1752 levantaram os portugueses o Forte dos Prazeres na margem esquerda do Iguatemi

1289

e que sendo abandonado, nunca a Espanha ousou mandar ocupá-lo ou estabelecer posse ao norte daquele rio, nem a leste da Cordilheira Amambaya.

Mais uma vez seu trabalho não dever ser interpretado apenas pelo aspecto geográfico, mas sim, como obra política, a partir da análise de seu discurso sobre o emprego da força do Estado para proteger seu monopólio: Convencendo-se o Governo Imperial de que a marcha acima esboçada é a mais conveniente, senão a única a seguir na questão de fixar definitivamente os limites do Império com a República do Paraguai, deverá desde já preparar-se com meios de força, seja para repelir qualquer tentativa daquele Governo estabelecer outra fronteira que não for a que fica descrita pelo Apa, Serra Amambaya e Igmuatei, ou para fazê-la efetiva por esses pontos colocando neles os monumentos de posse que julgar convenientesxx.

Duarte da Ponte Ribeiro, intelectual e, ao mesmo tempo, ator político, agente do projeto de consolidação do Estado Imperial, não deixou de criticar o abandono e a insegurança nas áreas estratégicas do Império, enfatizando na relevância do desenvolvimento de um plano de defesa, a partir de linhas de comunicação nacionais: É certo, como deve estar de que não temos em Mato Grosso a tropa nem materiais de guerra necessários para rechaçar as avultadas forças que o Paraguai pode empregar nessa possível tentativa, cumpre cuidar desde já fazer seguir para aquela Província essa tropa esses materiais. Deve, porém, conter como evidente que nunca os poderá levar pelo Rio Paraguai. Busque-se no território do Império o caminho mais curto, mais fácil e mais conveniente para transitarem por ele a tropa e materiais de guerra para o ponto da Província de Mato Grosso próximo da República Paraguaia, sem dúvida o mais vulnerável. E não se hesite sobre a despesa necessária para efetuar a sua abertura, porque além de outras perdas muito mais se gastaria com expedições pelo Rio Paraguai, quando possíveis, e cujo resultado seria efêmero, em quanto que o caminho ficará permanentemente e concitando a povoarem-se suas Províncias hoje quase desertasxxi.

O Tratado de 1872: Definição dos Limites Em 1865, quando os governos brasileiro, argentino e uruguaio assinaram o Tratado da Tríplice Aliança acordaram que a definição dos limites com a República do Paraguai seria negociada com a presença de todas as delegações beligerantes. No entanto, em 1872, ao final da Guerra, o Governo Imperial assinou o Tratado de Limites com o Paraguai de forma unilateral com a missão do Barão de Cotegipe. Na Argentina, a repercussão da atitude brasileira foi negativa, atribuindo ao Brasil uma postura expansionista, usurpador do território paraguaio. Além disso, a pretensão de Buenos Aires era anexar o Chaco e o território de Misiones. Não era interesse brasileiro permitir tamanha perda territorial dos paraguaios para Argentina. Em 1873, com o arbitramento do Presidente dos Estados Unidos Hayes, os argentinos perderam seu pleito. Cabendo a Duarte da Ponte Ribeiro elaboração da carta da fronteira definitiva com o Paraguai, o diplomata publicou na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro o trabalho Carta da fronteira do Império do Brasil com a República do Paraguai organizada pelo Conselheiro Duarte da Ponte Ribeiro (1872). O objetivo era explicar os documentos

1290

utilizados na elaboração da carta e demonstrar que o Brasil negociou as terras que lhe eram de direito: Alguns jornais do rio da Prata apresentam a questão de limites do Império com a República do Paraguay de maneira que pode dar lugar a supor-se que, tendo o Brasil saído vitorioso na guerra com aquele Estado, pretende agora impor-lhe uma nova linha de fronteira, e para que não prevaleça esta erronea suposição, daremos esclarecimentos, resumindo quanto for possível a história desta questão de limites. Ver-se-ha que o Brasil, depois da vitória, contenta-se com menos do que antes pudéra exigir.

Inicialmente, o “fronteiro-mór” explica a dificuldade de delimitar esses territórios, devido à vastidão de mapas e documentos utilizados, sobretudo, os mapas utilizados pela comissão de demarcação do Tratado de Madri. Em seguida, recorda as comissões demarcadoras dos limites durante o século XVIII, justificando a soberania brasileira, herança de Portugal, sobre as principais áreas litigiosas com o Paraguai. De modo geral, os limites foram definidos a partir da região das Sete-Quedas, no rio Iguassú, em direção a Serra do Amambai e Maracajú, finalizando no rio Apa. Considerações Finais Durante o processo de consolidação do Estado Imperial Brasileiro, a manutenção do território, sobretudo, as províncias situadas em áreas fronteiriças era fundamental para garantir o fortalecimento da instituição monárquica e o exercício pleno do seu poder soberano. Para garantir os interesses brasileiros na região da bacia do Prata, a diplomacia foi fundamental na formulação e execução de uma política de definição de fronteira na qual destacamos Duarte da Ponte Ribeiro. Além de obter destaque pela atuação na lideraça de diversas missões pelo continente latino americano, sua participação nos bastidores da política foi evidente, sobretudo, a partir da formulação de trabalhos tão pertinentes para política externa brasileira. As memórias sobre as fronteiras brasileiras, sobretudo, no recorte sobre a fronteira litigiosa entre Brasil e República do Paraguai nos fornece subsídios para compreender, a partir de sua visão, a importância estratégica dos territórios e das linhas de comunicação, não só para o Brasil, mas para os demais Estados Nacionais da bacia do Prata. A partir de Duarte da Ponte Ribeiro verificamos como os diplomatas, além de representantes eram formuladores de estratégias políticas. O estudo de caso sobre o Paraguai corroborou para compreender como o processo de formação do território brasileiro foi complexo e como a política de fronteiras demandou estratégias distintas. É interessante notarmos como o discuros de Ponte Ribeiro reflete a importância do território para consolidar a identidade do Império do Brasil, a partir de sua herança portuguesa. A justificativa que legitimaria a posse brasileira sobre as áreas em litígio era baseada nas ocupações portuguesas.

1291

Os embates políticos entre os governos brasileiro e paraguaio implicaram na dificuldade em definir os limites. Iniciada em 1844, apenas depois do maior conflito da América do Sul, a definição foi alcançada em 1872. Mapaxxii

1292

i

O Tratado de paz de Westphalia (1648), após o fim da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), corroborou para formulação do conceito de Estado soberano cujos elementos constitutivos são: território definido e reconhecido; população, governo aceito, poder soberano nas dinâmicas internas e externas. A formação dos estados-nação, nesses moldes, modificaram as relações políticas no sistema internacional. Ver: CASTRO, Thales. Teoria das Relações Internacionais. Brasília: FUNAG, 2012, pp. 100-110. ii BUENO, J. A. P. Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império. In: KUGELMAS, Eduardo (org). Marquês de São Vicente.São Paulo: Ed. 34, 2002, 80. iii Idem. iv MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema. São Paulo: Editora Hucitec, 2011, pp. 93-95. v Op. Cit. vi Duarte da Ponte Ribeiro (1795-1878) formou-se em medicina, no entanto, obteve destaque na carreira diplomática. Em 1826, foi nomeado cônsul na Espanha com o objetivo de obter o reconhecimento da independência brasileira. Na década de 30, foi representante brasileiro no Peru (1829-1830; 1836-1841), México (1834-1835); Bolívia (1836-1841); Buenos Aires (1842); Entre 1841 e 1844-1851 Ponte Ribeiro chefiou a 3ª Seção da Secretaria de Estados dos Negócios Estrangeiros; Em 1851 chefiou a Missão Especial nas Repúblicas do Pacífico e Venezuela. Ver: SANTOS, Luís Cláudio Villafañe G. Duarte da Ponte Ribeiro: Definindo o território da monarquia. In: PIMENTEL, José Vicente de Sá (org). Pensamento Diplomátco Brasileiro (1750-1964). Brasília: FUNAG, 2013. vii RIBEIRO, Duarte da Ponte. Apontamentos sobre o estado atual das fronteiras do Brasil (1844). Museu Imperial: Maço 107, Documento 5248. Trabalhamos também com a cópia integral do texto publicada em 1895, pertencente ao Arquivo Visconde do Uruguai custodiada pelo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. viii Idem. ix Idem. x Idem. xi 1846. Apontamentos sobre o rio da Prata e seus afluentes: Paraná e Uruguai por Duarte da Ponte Ribeiro. Biblioteca Nacional, 07,4,96. xii Idem. xiii A Confederação Argentina (1831-1861) era formada, a partir de um pacto federal, pelas províncias de Corrientes, Entre-Rios, Buenos Aires, Santa Fé, e outras províncias do interior. Após o rompimento com Buenos Aires, a província do Paraná tornou-se capital da Confederação Argentina. xiv DORATIOTO, Francisco. Maldita Guerra: Nova História da Guerra do Paraguai. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, pp. 33-35. xv ANDRÉA, F. J. S. S. De. Observações feitas em 1847 aos Apontamentos sobre o Estado da Fronteira do Brasil de Duarte da Ponte Ribeiro. IN: Memórias sobre as fronteiras. Brasil: Imprensa Nacional, 1895, p. 18. xvi No Paraguai, ocorreu a ascenção de Solano López (1827-1870) quem modificou a política externa paraguai a fim de expandir os interesses econômicos de seu país. No Brasil, chegava ao poder o Partido Liberal, enquanto que, na Argentina, Bartolomeu Mitre (1821-1906) vencia os federalistas das províncias argentinas, implicando na formação do Estado centralizado: República Argentina. No Uruguai, o Partido Blanco chegou ao poder, apesar da política doméstica haver sofrido interferências dos interesses brasileiros, argentinos e paraguaios sobre o país. xvii RIBEIRO, Duarte da Ponte. Questões de limites entre o Brasil e a República do Paraguai. Rio de Janeiro, 06/06/1862. 10 p. Orig. Museu Imperial. 63,04,001 nº 065 xviiiIdem. xix Idem. xx Idem. xxi Idem. xxii Mapa da província do Mato Grosso pertecente ao Atlas do Império de 1868. Legenda: área em amarelo representa a área de disputa entre Brasil e Paraguai, entre o rio Branco e o Rio Apa. Ver: ALMEIDA, Candido Mendes de. Atlas do Imperio do Brazil. Rio de Janeiro: Lithographia do Instituto Philomathico, 1868. Disponível em: SENADO FEDERAL. http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/179473.

1293

Política patrimonial do Conselho Federal de Cultura Jessica Suzano Luzes Mestre em História, Política e Bens Culturais do CPDOC - PPHPBC - Fundação Getúlio Vargas. [email protected].

Resumo Este artigo é resultado da dissertação de mestrado concluída no CPDOC/FGV, e apresenta reflexões sobre as políticas públicas voltadas para a preservação do patrimônio brasileiro engendradas pelo Conselho Federal de Cultura (CFC), no período de 1966-1974, enfocando as discussões e deliberações internas da Câmara do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (CPHAN), onde foram discutidas políticas para os bens representativos da nacionalidade brasileira que não eram tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Palavras-Chave: Políticas culturais, Patrimônio e Conselho Federal de Cultura.

Abstract This article is the result of the dissertation completed in CPDOC / FGV, and presents reflections on the public policies for the preservation of Brazilian heritage engendered by the Conselho Federal de Cultura (CFC), from 1966 to 1974, focusing on the discussions and deliberations in the Interior of the Câmara do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (CPHAN) , which were drawn up policies for representative acts of Brazilian nationality who were not listed by the Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Key-Words: Cultural policy, Heritage and Federal Council of Culture.

Introdução O período que tem início na última década do século XX e se desdobra nos dias atuais, segundo alguns estudiosos1, tem entre seus processos distintivos o da ocorrência de um intenso movimento de institucionalização da cultura no campo das políticas públicas. Esta é uma afirmativa válida quando se trata de analisar a realidade latino-americana.

1294

Assim, vivemos uma conjuntura que, de acordo com Lia Calabre2 é resultado de um processo histórico originado nas décadas de 1920 e 1930, momento de fortalecimento e modernização dos Estados nacionais na América Latina, no qual o campo da cultura, vinculado ao da educação, também foi objeto de elaboração de políticas. Nas décadas de 1960 e 1970, podem ser identificadas novas iniciativas, por parte dos governos, em inserir a cultura no campo das políticas públicas. Em muitos países da América Latina esse período corresponde ao dos governos autoritários, às ditaduras militares (como no caso da Argentina e do Brasil). No caso do Estado brasileiro, estes dois momentos, décadas de 1920-30 e de 1960-70, correspondem, respectivamente, ao primeiro governo Vargas (1930-1945), quando houve a estruturação formal da área da cultura; e a ditadura civil-militar, especialmente o dos presidentes Médici3 e Geisel4, período em que há o recrudescimento do Estado autoritário, e também de um intenso processo de renovação da ação pública no campo da cultura, Na interpretação de Tatyana Maia5, muito dos intelectuais convidados a compor o Conselho Federal de Cultura atuaram intensamente no período de 1920 a 1970 em movimentos, ministérios, agências governamentais, funções no legislativo e no executivo. Alguns dos conselheiros exerceram atividades no Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), na Era Vargas, como Rodrigo Melo Franco de Andrade, e compartilhavam uma certa noção de cultura e patrimônio que permaneceu ao longo dos anos, e orientou os discursos e critérios de avaliação do CFC. Como constatado em pesquisas anteriores6, as primeiras tentativas de preservação do patrimônio cultural tem origem nas inspetorias7, e posteriormente, houve a sua estruturação a nível estatal no SPHAN. Este tem origem no primeiro governo do presidente Getúlio Vargas (1930-1945) através da Lei nº 378, de Janeiro de 1937, que o integrou oficialmente a estrutura do Ministério da Educação e Saúde (MES). Serviço, Departamento ou Instituto são variações administrativas8 da área considerada a experiência institucional pública mais bem sucedida no setor cultural. Os estudos sobre o tema do patrimônio têm se concentrado nas ações do IPHAN, considerado o principal órgão brasileiro responsável pela formulação e implementação das políticas patrimoniais. Mesmo estando num momento autoritário, o SPHAN foi o lugar onde se reuniram intelectuais de variadas perspectivas políticas, estéticas, dentre eles Mário de Andrade, expoente modernista, que a pedido do Ministro Gustavo Capanema elaborou o anteprojeto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

1295

Mário de Andrade defendia que o conceito de arte deveria reunir as manifestações eruditas e populares9, todavia Cecília Londres Fonseca10 explicou que as obras de arte eruditas continuavam a ser privilegiadas, pois já eram consagradas no universo simbólico através de prêmios em concursos, pela menção em livros de história da arte, inclusão em acervos museológicos, avaliações do Conselho Consultivo do SPHAN. Nesta época, ainda era pouco aceitável a equiparação das obras de arte arqueológica, ameríndia e popular à arte erudita, e assim, a dificuldade de classificá-las como bens patrimoniais. Assim, muito das propostas do anteprojeto não foram realizadas na íntegra, visto que o antigo Sphan priorizou medidas para preservação de edificações coloniais e modernistas. A primeira fase do Sphan, denominada de fase heróica, sob a liderança de Rodrigo de Melo Franco de Andrade, no período de 1937 até final da década de 1967, institucionalizou o tombamento11 do patrimônio edificado, denominado de Pedra e Cal. Posteriormente, entre 1967 a 1979, temos a gestão de Renato Soeiro, não muito lembrada pela historiografia do patrimônio, tida como continuísta da fase anterior. A terceira fase, de 1979 a 1982, dirigida por Aloísio Magalhães é classificada como renovadora, onde novas frentes são adotadas, como a valorização da cultura popular. Há um consenso nos estudos sobre políticas voltadas para a preservação do patrimônio brasileiro de que a ação estatal voltada para a preservação das manifestações populares sugerida no anteprojeto de Mário de Andrade, nos anos 1930, foi resgatada num segundo momento, na gestão de Aloísio Magalhães no IPHAN, antigo SPHAN, no final dos anos 1970. Contudo, outro órgão, antes da década de 1970, o Conselho Federal de Cultura, por meio da sua Câmara do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, estava empenhado efetivar uma política patrimonial alternativa a desenvolvida pelo IPHAN, ampliando o conceito de patrimônio até então vigente, restrito à preservação das obras arquitetônicas e dos centros históricos. A idéia de patrimônio nos remente a herança, mas pesquisadores especialistas no tema atentam que este não é um dado objetivo, sendo necessário compreender como este se tornou importante para determinado público, a partir de operações específicas que envolvem a seleção, organização e preservação conduzidos por atores definidos e em circunstâncias específicas. Nesse sentido, as políticas patrimoniais são resultados de disputas pelo poder, pela hegemonia do simbólico e está relacionado à construção das identidades nacionais. Deste modo, se torna interessante analisar as discussões e as deliberações internas da CPHAN oficialmente divulgadas nos periódicos12 do CFC - que publicavam resumos de pareceres emitidos pelo órgão, atas de reuniões plenárias, discursos -, averiguando o debate

1296

temático mais amplo realizado pelo Conselho Federal de Cultura acerca das questões do patrimônio e as diferenças dos procedimentos entre a CPHAN e o SPHAN. A idéia aqui defendida é a de que a CPHAN constituiu um novo campo de formulações, debates e ações estatais para a área do patrimônio cultural. O Conselho Federal de Cultura (CFC), criado pelo Decreto nº 74, em 21 de Novembro de 196613, teria a responsabilidade de “institucionalizar a área da cultura no campo da administração pública”14, sendo inicialmente responsável por coordenar as atividades culturais do Ministério da Educação e Cultura (MEC) e elaborar o Plano Nacional de Cultura. Este era composto por vinte e quatro membros designados pelo Presidente da República e constituído por quatro câmaras: artes, letras, ciências humanas, patrimônio histórico e artístico nacional. Estas eram entendidas como áreas essenciais para a formação da “cultura nacional”, sendo orientadas por intelectuais consagrados em cada campo de saber. Além disso, os conselheiros organizaram a Comissão de Legislação e Normas que garantia o suporte jurídico necessário à apresentação de portarias, anteprojetos de lei ou resoluções. As funções centrais do Conselho Federal de Cultura foram definidas e hierarquizadas já no documento de sua criação15: elaborar uma política nacional para o setor e preservar o patrimônio cultural brasileiro. Ao longo do texto mostraremos a partir como o Conselho, especialmente, a partir das publicações da revista Cultura, se estruturou para atender esta proposta fundadora. O início das atividades do CFC ocorreu no princípio de 1967. Na primeira publicação da Revista Cultura16, de responsabilidade do próprio CFC, no período de 1966 a 1971, Josué Montello, presidente do Conselho Federal de Cultura, afirmava em seu discurso que não ambicionava estabelecer uma política pública de cultura única, mas de viés nacional, composta pelas diferentes aspirações, tendências e tradições de cada região do país. O regionalismo não significava ruptura com a centralidade política, Vanessa Paz17 atentou que os conselheiros se empenharam na construção de diferentes espaços culturais, como conselhos estaduais e municipais de cultura, casas de cultura, biblioteca, e também na organização de Encontros Nacionais18, como o I Encontro dos governadores sobre a defesa do patrimônio histórico e artístico do Brasil (1970)19, onde gestores culturais seriam formados e discutiriam as dificuldades e conquistas da construção do setor cultural na esfera local.

1297

O caráter inovador da política cultural do Conselho era o investimento em uma infraestrutura que engendrasse a regionalização, proporcionando a ampliação dos espaços de discussão sobre a cultura e patrimônio nacional, e a formulação de medidas para preservação e divulgação do mesmo. Essas ações eram desde a década de 1930, centralizadas no Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, atual IPHAN. No sétimo número da Revista Cultura, em janeiro de 1968, Rodrigo M. F. de Andrade, publicou o artigo “Âmbito do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional” 20 com o objetivo de demarcar da área de atuação da CPHAN, que por tratar do patrimônio nacional estava próxima às atividades do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN). A primeira tomava sob sua responsabilidade um conjunto maior de bens, ou seja, preocupava-se com bens passíveis ou não de tombamento, tendo em vista a importância dos mesmos para o conjunto da população. Já a ação do SPHAN limitava-se estritamente aos bens tombados. Rodrigo elencou uma série de bens culturais, que mesmo tendo a sua importância conhecida, não poderiam ser resguardados pelo Sphan devido a limitação executiva e financeira do órgão. “Massas consideráveis de documentos de interesse histórico existentes em arquivos dos órgãos da administração, nos cartórios judiciais, nos arquivos eclesiásticos, nas associações civis e em recintos particulares. Remanescentes da pilhagem sistemática operada pelos negociantes do gênero, parcelas consideráveis do espólio de obras de arte antiga e de artesanato tradicional deixado por nossos antepassados, dispersos por muitos lugares (REVISTA CULTURA, nº 07, 1968, p. 33).”

Havia, também, aqueles que não eram reconhecidos socialmente, mas que deveriam ser objeto da ação estatal, como: os empreendimentos mal concebidos pelas municipalidades, os sítios urbanos e rurais, nos quais predominavam traços de ancestralidade, de pitoresco ou de beleza de paisagem. Os mesmos indicaram a existência de numerosas edificações, que embora não fossem reconhecidos como monumentos nacionais, eram produções genuínas da arquitetura brasileira, popular ou erudita, merecedoras de estudo e conservação. Por último, destacou a importância das sedes dos institutos históricos estaduais e municipais 21, dos museus regionais, das lojas maçônicas subsistentes, onde estavam guardadas valiosas coleções de peças (REVISTA CULTURA, nº 07, 1968, p. 33). Por último, Rodrigo Melo Franco de Andrade relembrou o Decreto-lei, de 21 de novembro de 196622, que atribuía ao CFC, no artigo segundo, línea d, o dever de cooperar para a defesa e conservação do patrimônio histórico e artístico do país, e difundir o conhecimento produzido sobre estes patrimônios à coletividade brasileira e instruí-la do seu valor inestimável.

1298

Em 1970, foi realizado o “I Encontro dos governadores sobre a defesa do patrimônio histórico e artístico do Brasil”, realizado em Brasília, coordenado pelo presidente do CFC, Arthur Cezar Ferreira Reis, e o presidente da CPHAN, Pedro Calmon23. O primeiro trabalho registrado foi do CFC, intitulado “Defesa do patrimônio histórico, artístico e natural do Brasil, no pensamento do Conselho Federal de Cultura”24, no qual foram apresentados 12 tópicos em ordem numérica sem apresentação inicial ou conclusão final. Segundo Maia (2010: 128), a organização da escrita deste artigo, evidenciava uma síntese que induzia o leitor e o ouvinte a uma hierarquização dos temas, e estipulava medidas a serem adotadas de forma pragmática, evitando discussões conceituais ou política. Tratava-se de uma política dirigista25 que impunha uma série de medidas técnicas e racionais, aparentemente desprovidas de conteúdo ideológico, das quais destacamos: •

Criação de órgãos regionais voltados à proteção do patrimônio histórico e artísticos no formato do DPHAN;



Dotação orçamentária dos estados da federação e a participação da União em programas nacionais;



Formação de equipe técnica nos estados;



Infraestrutura estadual, com a criação de arquivos, bibliotecas, Casas de Cultura, museus e parques;



Restauração dos bens tombados;



Defesa dos monumentos funerários;



Ampliação da legislação sobre comercialização das obras de arte;



Ampliação de uma legislação que estimule a preservação dos bens tombados pelos proprietários;



Encontros anuais entre os órgãos estaduais e o DPHAN;



Auxílio técnico e financeiro aos municípios possuidores de conjunto arquitetônico tombado (REVISTA CULTURA, nº 34, 1970, p. 127).

Estas medidas deveriam ocorrer a partir de convênios entre os Estados, órgãos da administração pública federal especializados, Ministério da Educação e Cultura através da Diretoria de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e do Conselho Federal de Cultura (REVISTA CULTURA, nº 34, 1970, p. 128). No segundo dia do Encontro, priorizou-se a temática dos “problemas de defesa e utilização do patrimônio cultural” e a “defesa do patrimônio natural” que deveria envolver

1299

órgãos federais, estaduais e municipais, além do poder legislativo e judiciário, e das universidades, para melhor controle e resguardo dos usos do patrimônio. Os representantes dos estados informaram a situação de cada região, e a prática de proteção patrimonial que estava sendo utilizada. De forma inédita o secretário de educação e cultura de Minas Gerais, Heráclito Mourão Miranda sugeriu a realização de estudos sobre bens imateriais de cada Estado, especialmente, sobre o folclore. Esta proposta era inovadora dentro do Evento que se propunha a discutir o patrimônio de pedra e cal, seguido dos acervos artísticos e documentais. O último dia foi dedicado para a apresentação, aprovação do “Compromisso de Brasília” e para finalização do evento. O documento reunia as decisões tomadas no “I “Encontro dos governadores sobre a defesa do patrimônio histórico e artístico do Brasil” que sintetizava as decisões tomadas no Encontro, cujo objetivo principal era expor a importância da contribuição oficial de cada estado para a resolução de problemas relacionados à defesa e utilização do patrimônio cultural. Os participantes do Encontro assinaram este documento que foi redigido por Pedro Calmon, novamente, num formato dirigista, foram elencados 23 tópicos, reforçando o inadiável comprometimento de estados e municípios com a política do governo, indicando como deveriam atuar os governos no setor da cultura, ressaltando a necessidade de conscientizar a população sobre a importância da proteção e da valorização do patrimônio, responsável pela preservação da memória sócio histórica da nação brasileira. Vale destacar as personalidades que assinaram o Documento: ministro da Educação e Cultura, Jarbas Passarinho; Arthur Cesar Ferreira Reis, presidente do Conselho Federal de Cultura; Renato Soeiro, diretor do DPHAN; governadores dos Estado do Distrito Federal, Pará e Maranhão; os vice-governadores do Acre e do Sergipe; os secretários de educação e cultura de Minas Gerais, do Ceará; e ainda os presidentes dos conselhos estaduais de cultura e os representantes dos governos Bahia, do Rio Grande do Norte, da Paraíba, da Santa Catarina, de São Paulo, do Amazonas, do Mato Grosso, de Goiás, de Alagoas, do Paraná, da Guanabara, do Espírito Santo, do Rio de Janeiro, de Pernambuco e do Rio Grande do Sul; os presidentes do IHGB; do Instituto Brasileiro do desenvolvimento florestal, do Arquivo Nacional, do Centro Universitário de Brasília, da Universidade de Brasília, do Instituto dos Arquitetos do Brasil e do Arquivo Histórico da Câmara dos Deputados. Paz (2011: 98) comparou o “I Encontro dos governadores sobre a defesa do patrimônio histórico e artístico do Brasil”, de 1970, com uma experiência anterior a Primeira Reunião Nacional dos Conselhos de Cultura, 1968, que foi o primeiro encontro após a estruturação do Conselho, e objetivava “o estudo das questões pertinentes à articulação, à coordenação, e à 1300

execução do Plano Nacional de Cultura”26. Esta reunião contou com representantes estaduais que ainda não conheciam as práticas gestadas pelo conselho, e por isso tinham poucas informações sobre a realidade cultural local, diferentemente da situação do Encontro, que fora organizado 3 anos após a implantação do Conselho, já havendo o reconhecimento deste como um dos órgãos orientadores da política cultural do país, e usufruindo de dotações orçamentárias que permitiam a implementação, o apoio e o financiamento de projetos de diversas naturezas. O prestígio conseguido pelo Conselho é constatado com o aumento do número de participantes público, que incluía representantes estaduais de cultura e presidentes de instituições culturais. O presidente do Conselho, Arthur Cesar Reis apresentava um discurso otimista em relação ao Encontro que teria proporcionado uma maior conscientização dos problemas da cultura no país, e que o Compromisso de Brasília apresentava uma política permanente de defesa do patrimônio histórico e artístico nacional27.

Considerações finais

Nos últimos anos, pesquisas têm se dedicado a analisar da responsabilidade do Estado sobre a produção cultural e os princípios que regem a elaboração das políticas culturais. No entanto, são escassos os estudos sistemáticos no que diz respeito ao acompanhamento do política cultural do Estado durante a ditadura civil-militar (1964-1984) no Brasil. Este estudo pretende contribuir para uma melhor compreensão da relação Estado/cultura no campo das políticas culturais no período de 1966 a 1974, e assim, destacamos a forma como o Conselho Federal de Cultura reformulou a ação pública no campo da cultura, que incluía o financiamento de reformas não apenas em instituições públicas, mas também privadas, como os Institutos Históricos, e o incentivo da construção de novos espaços culturais e encontros nacionais, que para além do SPHAN, constituíram novos locais de discussão sobre o patrimônio nacional, e formulação de novas medidas para preservação do mesmo.

1

As ações estatais no Brasil, durante primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-1945), são marcadas por atuações negativas de opressão, repressão e censura, e também as “afirmativas”, com formulações, práticas e legislações e (novas) organizações de cultura. Esta última possibilitou a expansão da rede de instituições culturais como o Serviço de Radiodifusão educativa (1936); o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (1937) e o Conselho Nacional de Cultura (1938). Ver os estudos de OLIVEIRA, LÚCIA LIPPI DE; VELLOSO, M. P.; GOMES, Â. DE C. Estado Novo – ideologia e poder. Rio de Janeiro: Zahar, 1982, e SCHWARTZMAN et al. Tempos de Capanema. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000. 2 CALABRE, Lia. “História das Políticas Culturais na América Latina: um estudo comparativo entre Brasil, Argentina, México e Colômbia”. Escritos (Fundação Casa de Rui Barbosa). v. 7, p. 323–345, 2013.

1301

3

Presidente entre 30 de outubro de 1969 e 15 de março de 1974. Neste período, as medidas repressivas foram intensificadas, sendo instituída a nova lei de segurança nacional que incluía a pena de morte por fuzilamento. Esta havia sido suprimida após a Proclamação da República, e no Império já não era utilizada. Em 1970, temos o auge do “terrorismo cultural”, no qual ampliou-se a censura prévia em jornais, livros e outros meios de comunicação, ou seja, qualquer publicação ou programa de rádio e televisão deveria ser avaliada aos censores do governo antes de ser apresentada ao público. Este governo é caracterizado pela intensa repressão, mas também pelo crescimento econômico, oferecendo abertura de crédito, financeiro e político à área de produção cultural, até então, pouco prestigiada pelos órgãos oficiais, especialmente, através do Programa de Ação Cultural (PAC) pelo Ministério da Educação e Cultura, na Gestão do Ministro Jarbas Passarinho (1969-1974). Ver: CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil. O longo Caminho. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 162. 4 Presidente entre 15 de março de 1974 e 15 de março de 1979. A partir de 1974 houve a ‘abertura’ política, na qual o presidente Geisel teve como uma das medidas a redução das restrições à propaganda eleitoral, e em 1978, tem-se a revogação do AI-5, fim da censura prévia e retorno dos primeiros exilados políticos. 5 MAIA, T. “‘Cardeais da cultura nacional’: O Conselho Federal de Cultura e o papel cívico das políticas culturais na ditadura civil-militar (1967-1975)”. Tese (Doutorado em História) — Rio de Janeiro: Departamento de História, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2010. p. 14. 6 Sobre as políticas de proteção do patrimônio histórico e artístico nacional. Ver: GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A Retórica da Perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; IPHAN, 1996; BOMENY, Helena. (Org.). Constelação Capanema: intelectuais e políticas. Rio de Janeiro: FGV/EDUSF, 2001; FONSECA, Maria Cecília Londres. O patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no Brasil. 2ª edição, Rio de Janeiro: Editora UFRJ; MINC- IPHAN, 2005; OLIVEIRA, Lucia Lippi. Cultura é Patrimônio: um guia. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008; e CHUVA, Márcia R.R. Os arquitetos da memória: sociogênese das práticas de preservação do patrimônio cultural no Brasil (anos 1930-1940). Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ, 2009. 7 Antes da década de 1930, já havia iniciativas de proteção de determinados espaços, predominantemente construções do período colonial, que eram consideradas como genuinamente representativas da identidade nacional, a exemplo das experiências de inspetorias estaduais de monumentos históricos a fim de preservar o passado colonial brasileiro nas cidades de Minas Gerais (1926), na Bahia (1927) e em Pernambuco (1928) (OLIVEIRA, 2008: 114). 8 Atentamos para a variada denominação referente a tal órgão. De 1946 a 1970 mudou para Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (DPHAN); no período seguinte, 1970 a 1979, recebeu o nome de Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN); entre 1979 a 1990, tornou-se Secretaria (SPHAN) que em 1990 foi extinta por decreto, e passou a funcionar como Instituto Brasileiro de Patrimônio Cultural (IBPC) até 1994; deste ano em diante, voltou a ser Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). 9 Mário de Andrade defendia que o conceito de patrimônio artístico nacional incluía oito categorias de arte: a arqueológica, a ameríndia, a popular, a histórica, a arte erudita nacional e estrangeira, as artes aplicadas nacionais e estrangeiras. 10 FONSECA, M. C. L. “O patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no Brasil”. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; MINC- IPHAN, 2005. p. 102. 11 Para Márcia Chuva (2009:147) o instituto do tombamento é “um ato administrativo que deu origem à tutela do Estado sobre o patrimônio histórico e artístico nacional”. E na década de 1930, não se concebia como viável a proteção legal do patrimônio como proposto pelo anteprojeto de Mário de Andrade, que incluía a cultura popular e sua imaterialidade, com manifestações folclóricas, como lendas, superstições, danças dramáticas. Desta forma, restringiu-se o tombamento à materialidade intitulado de Pedra e Cal. 12 Os periódicos publicados pelo CFC foram: revista Cultura, Boletim do Conselho Federal de Cultura e Revista Brasileira de Cultura. 13 CONSELHO FEDERAL DE CULTURA. “Decreto-lei nº 74, de 21 de novembro de 1966”. Cultura. MEC: Rio de Janeiro, ano I, n.°1, Julho de 1967 pp.107-110. Este encontra-se no anexo 1 no final desta dissertação. 14 CALABRE, Lia. “O Conselho Federal de Cultura, 1971-1974”. Estudos Históricos. Rio de Janeiro: CPDOC/FGV, 2006. 15 “Decreto-lei nº 74, de 21 de novembro de 1966”. Cultura. MEC: Rio de Janeiro, ano I, n.°1, Julho de 1967 pp.107110. 16 CONSELHO FEDERAL DE CULTURA. “Discurso proferido pelo Acadêmico Josué Montello, presidente do Conselho Federal de Cultura, por ocasião de sua instalação.” Cultura. MEC: Rio de Janeiro, ano I, n.°1, Julho de 1967 pp.05-08. 17 PAZ, Vanessa. C. “Encontros em defesa da cultura nacional: O Conselho Federal de Cultura e a regionalização da cultura na ditadura civil-militar (1966-1976)”. Dissertação de Mestrado em História—Niterói: Departamento de História, Universidade Federal Fluminense, 2011.

1302

18

Vanessa Paz (2011) analisou de forma minuciosa três encontros nacionais: Conselhos Estaduais de Cultura (1968), I Encontro dos governadores sobre a defesa do patrimônio histórico e artístico do Brasil (1970), e Nacional de Cultura (1976), que ocorreram nas décadas de 1960 e 1970. 19 O “I Encontro dos governadores sobre a defesa do patrimônio histórico e artístico do Brasil”, realizado em Brasília entre 01 e 03 de Abril de 1970, foi coordenado pelo presidente do CFC, Arthur Cezar Ferreira Reis, e o presidente da CPHAN, Pedro Calmon. A revista Cultura nº 34 foi toda dedicada ao evento. 20 “Âmbito do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional”. In: CONSELHO FEDERAL DE CULTURA. Cultura. MEC: Rio de Janeiro, ano II, n.º 07, Janeiro de 1968.pp. 32-35. p. 32. 21 Desde o Brasil Império, o IHGB estimulava a criação de institutos regionais, responsáveis por estudar a história local e pelo mapeamento das personalidades políticas tidas como bons exemplos de conduta para as gerações futuras. Cabia ao primeiro IHGB, servir de referência de atividades acadêmicas e culturais a serem realizadas nas filiais e a inclusão destas realidades parciais no projeto nacional, contribuições para a formulação de uma memória totalizante. Ver: LUZES, J. S. O Conselho Federal de Cultura e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro: um estudo de caso da política de financiamento à cultura (1966-1974). Dissertação (Mestrado acadêmico em História, Política e Bens Culturais) — Rio de Janeiro: CPDOC - Fundação Getúlio Vargas, 2015. No Brasil, República constatamos a criação dos seguintes IHGs: Instituto Histórico e Geográfico da Bahia, 1894; O Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, 1902; Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, 1905; Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal, 1964; Instituto Histórico e Geográfico de São João delRei, 1970 e Instituto Histórico e Geográfico de Tiradentes, 1977. 22 CONSELHO FEDERAL DE CULTURA. “Decreto-lei nº 74, de 21 de novembro de 1966”. Cultura. MEC: Rio de Janeiro, ano I, n.°1, Julho de 1967 pp.110. 23 A revista Cultura nº 34 foi toda dedicada ao evento ocorrido entre os dias 01 a 03 de abril de 1970. Trabalho apresentado pelo CFC no “Encontro dos governadores sobre a defesa do patrimônio histórico e artístico do Brasil”. In: CONSELHO FEDERAL DE CULTURA. Cultura. MEC: Rio de Janeiro, ano IV, n.º 34, abril de 1970.pp. 127-128. p. 128. 25 No Dicionário Crítico de Política Cultural, Teixeira Coelho define dirigismo cultural como: “forma de intervenção na dinâmica da cultura que se realiza de cima para baixo, das instituições e dos agentes culturais para a coletividade ou público a que se voltam, sem que sejam estes consultados sobre suas necessidades ou desejos. Políticas culturais dirigistas partem de diagnósticos elaborados pelos agentes culturais com base num quadro de referências previamente determinadas. Ver: COELHO, T. Dicionário crítico de política cultural: cultura e imaginário. São Paulo: Iluminuras, 2004. 26 Decreto nº 62.256, de 12 de fevereiro de 1968. In: CONSELHO FEDERAL DE CULTURA. Cultura. MEC: Rio de Janeiro, ano II, n.º 07, janeiro de 1968. P. 67. 27 Discurso do presidente do Conselho Federal de Cultura no “I Encontro dos governadores sobre a defesa do patrimônio histórico e artístico do Brasil”. In: CONSELHO FEDERAL DE CULTURA. Cultura. MEC: Rio de Janeiro, ano IV, n.º 34, abril de 1970.pp. 5-7. p. 5. 24

1303

“Com poucos recursos e uma câmera em mãos”: aproximações iniciais sobre as relações de gênero no cinema pernambucano da década de 1920.* Jéssika Évelyn Leitão Alves1

RESUMO: Neste artigo analisamos um dos filmes do Ciclo do Recife, A filha do advogado (1926), e sua relação com fontes impressas da década de 1920 no Recife, buscando entender como as relações de gênero são tratadas nesses dois veículos, refletindo o cinema enquanto novo espaço de divertimento e incentivador da prática de produzir filmes. A metodologia empreendida centra-se na análise das cenas fílmicas e problematização das imagens e de jornais e revistas da época. PALAVRAS-CHAVE: HISTÓRIA E CINEMA – RELAÇÕES DE GÊNERO – CINEMA E IMPRENSA

.ABSTRACT: In this paper, we analyze one of Ciclo do Recife films, A Filha do Advogado (1926) , and it relation to printed sources from the 1920s in Recife , seeking to understand how gender relations are treated in these two vehicles , reflecting the cinema while new fun space and encouraging the practice of producing movies. The undertaken methodology focuses on the analysis of the cinematic scenes and questioning of images and newspapers and magazines of the time. KEYWORDS: HISTORY AND CINEMA - GENDER RELATIONS - CINEMA AND PRESS.

“Se continuares a repelir-me, desmoralizar-te-ei!”. Tal ameaça, presente no filme pernambucano A Filha do Advogado (1926) é responsável por grande parte das inquietações presentes neste trabalho. Proferida por Helvécio Aragão, filho de famoso advogado do Recife, contra sua própria irmã Heloísa, com o intuito de que ela ceda a seus caprichos e investidas, tem nos gerado a possiblidade de pensarmos como as relações entre homens e mulheres se constituíam, e como foram representadas pelo cinema produzido na própria capital pernambucana. Qual o contexto social que esses personagens teoricamente vivem que levou Helvécio a pensar que a ameaça de destruição da honra de Heloísa, faria a mesma a ceder a seus abusos? Será que esses personagens viveram fora das telas do cinema? Quais os temas que movimentaram as discussões da sociedade pernambucana ao longo da década de 1920 e foram levadas para as telas de cinema? Honra, Casamento, Família, Modernidade? Como se deu o processo de construção do cinema pernambucano, articulado à historicidade do chamado Ciclo do Recife2?

Essas e outras perguntas norteiam nossa pesquisa, ainda em 1304

desenvolvimento, e nos incentivam a buscar compreender os entrecruzamentos entre História, Cinema e Relações de Gênero. O trajeto do estudo que propomos será de, inicialmente, entender como o cinema pernambucano estava situado como um novo espaço social de circulação de imagens, análise do momento que as obras fílmicas foram produzidas, apontando os elementos

que

favoreceram e prejudicaram a produção e distribuição desses filmes em seus aspectos técnicos e financeiros. Em seguida, partiremos para o ponto chave deste trabalho: analisar o enredo fílmico das obras, as representações de gênero, o papel que homens e mulheres ocuparam nas tramas históricas, nos atendo em como as trajetórias, dos personagens estavam inseridas no contexto histórico da cidade do Recife nos anos de 1920. Para isso, fontes de veículos impressos são fundamentais para o desenvolvimento do trabalho. O Ciclo do Recife surgiu em meio a quarenta curiosos jovens, que inspirados na produção norte-americana, com poucos recursos e uma câmera em mãos, produziram cerca de treze longas metragens, entre filmes de ficção e propaganda. O surgimento e a força da produção pernambucana não teve uma explicação lógica: “A impressão que se tem é que, de repente, se alastrou uma espécie de febre de fazer cinema de enredo, uma cineastite aguda e contagiosa”.3 Lucila Ribeiro Bernadet4 (1970) ressalta que esses surtos de produção resultaram

em

grupos de filmes com características comuns: coerência, duração mais ou menos longa. Segundo seu entender, a extinção dos grupos de filmes decorreu de alguns fatores, tais como a estrutura colonial da indústria e do comércio cinematográfico no Brasil, contribuindo para dificultar a dinâmica do mercado interno de consumo, esbarrando também nas distâncias geográficas e na modéstia social, cultural e econômica dos antigos cineastas.5

i.

O cinema na dinâmica da cidade do Recife

No período pós-primeira guerra mundial o cinema avançou. Esse, surgido no final do século XIX, criou nos homens novas formas de ver, interpretar e representar a sociedade e suas ideias. O cinema surge também como uma outra possibilidade de abordagem metodológica e como uma nova fonte para os estudos históricos. Ao longo desta década, a população pernambucana passou a ter outro relacionamento com a cidade, de forma mais intensa, como apontado por Barros6, marcada não somente pelas “alterações no espaço físico, mas pelas modificações nos comportamentos, vestimentas, profissões, ocupando espaços antes inusitados e com a construção de novos espaços de

1305

contato: cafés, bailes, chás-dançantes, praças, cinema”. O cinema inclui-se como novo espaço de encontro, e passa assim, a empenhar jovens a produzirem seus próprios filmes, registrando nas telas o cotidiano, sendo este representado ora pelas reformas urbanas, ora com alterações nos costumes e tradições locais. O Recife, durante as primeiras décadas do século XX, era umas das principais capitais do Nordeste, em termos populacionais, por seus negócios portuários e seu avantajado comércio, apenas inferior ao do Rio de Janeiro e de São Paulo. Nesse período, passava por várias transformações urbanas e sociais, dentre as principais, alterações arquitetônicas, principalmente no centro da cidade, aparecimento dos primeiros automóveis que vinham a disputar espaço com os antigos bondes e novos espaços de divertimento. Todas essas mudanças tiveram como característica uma preocupação não só estética, mas também higiênica, tais como políticas públicas sanitaristas que objetivavam um maior controle no aparecimento de pragas e doenças. As ditas mudanças desencadeavam um tema que não se afastava das rodas de conversa e da curiosidade daquelas pessoas que ali viviam: a modernidade. O novo conceito de modernização vinha imbuído de uma “missão civilizatória”. Não era suficiente reorganizar a cidade, a sua inserção nos padrões de modernidade passava por uma reformulação também dos hábitos e comportamentos da população. Limpar a cidade, torná-la culta, higiênica e ordenada significava ordenar a população, impondolhe normas a serem cumpridas.7

Os espaços de divertimento no Recife da década de 1920 são muito bem esboçados por Sylvia Couceiro em sua tese de doutorado (2003) intitulada Artes de viver a cidade: Conflitos e convivências nos espaços de diversão e prazer do Recife nos anos 1920 8, na qual podemos encontrar um balanço geral sobre as “diversões modernas” que os recifenses passaram a buscar cada vez mais, e que reforçaram a composição de uma nova identidade, de um novo estilo de vida que se construía à época: cinemas, teatros, competições esportivas (sobretudo o futebol e o remo), danças, festas nos clubes, exposições de pintura, concertos musicais, conferências e recitais de poesia, confeitarias, excursões e passeios ao ar livre, temporadas nas praias e banhos de mar, piqueniques, corridas de automóvel e motocicleta, parques de diversão, entre outros.9 A esse respeito, a autora faz questão de frisar que boa parte das novidades advindas desse crescimento na produção de novos produtos e invenções não foram acessíveis a todos, pois, incialmente, poucos foram os que tiveram condições de experimentar o turbilhão das novidades e as “comodidades” que começavam a chegar à cidade. Contudo, o acesso aos novos utensílios e serviços não dependia apenas do poder aquisitivo das pessoas, mas também

1306

das escolhas e opções pessoais, uma vez que a aceitação do novo não foi um processo rápido e automático. Podemos atribuir à chegada da eletricidade como incentivo de muitas dessas alterações no espaço urbano da cidade, sobretudo, no que se refere à inauguração de muitos cinemas que passaram a existir em quase toda a cidade. Os jornais ficavam responsáveis por trazer a programação dos principais cines com pequeno resumo dos roteiros. Os cinemas, assim, surgidos a partir de 1909, transformaram o panorama das diversões na cidade e eram contabilizados em mais de 50 (até o final da década), desde os mais equipados e decorados, até as pequenas salas de projeção, espalhados por toda a cidade. As apresentações estendiam-se de 12h às 16h e das 18 horas em diante, com orquestra ao vivo acompanhando a projeção.10 Não só o cinema enquanto espaço de sociabilidade e lazer, mas os próprios filmes exibidos movimentaram muitas discussões na cidade. Ora elogiada, e por muitas vezes criticada, é fato que a produção fílmica naquele momento gerou inúmeras polêmicas, o que nos faz notar a capacidade do cinema de nos legar a dimensão de como a década de 1920 foi um dos momentos históricos significativos na tensão entre o moderno e o tradicional no Recife. Para Cunha11, a sociedade pernambucana, durante o período do Império ao fim da República Velha, “vivenciou conflitos sociais, políticos e econômicos, marcada pela ideia de ruptura, sobretudo demonstrada por intermédio de imagens”. Sendo assim, a influência fílmica na educação da mocidade ora era vista como positiva, ora como péssimo exemplo para os jovens ao oferecer-lhes contato com outros estilos de vida, com um mundo novo. É nesse contexto que o Ciclo do Recife se consolida, empenhando não apenas jovens a produzirem seus próprios filmes e registrar suas percepções e representações, mas, sobretudo, a própria sociedade pernambucana que então passava a se interessar por uma nova maneira de ver e contar histórias, ao ser possível visualizar nas telas assuntos anteriormente falados nas rodas de conversas. O historiador que se dedica ao trabalho com fontes cinematográficas pode, tantas vezes, encontrar-se em situações complicadas de trabalho, sobretudo se escolher debruçar-se sobre o cinema silencioso, onde há quase um esgotamento de informações disponíveis: menos de 10% dos filmes produzidos nesse período sobreviveu. Por sua vez, trabalhos nesse sentido precisam ser enfrentados e incentivados, apesar das barreiras existentes, tornando-se “necessário a pesquisa de fontes impressas em arquivos históricos, fundamental para que tenhamos um quadro mais completo destas produções”12Com o Ciclo do Recife enfrentamos problema

semelhante: dos treze longas metragens filmados, além de todos os filmes

1307

naturais/de

propaganda, apenas dois ainda são possíveis de acesso em completude - Aitaré da Praia (1925) e A filha do Advogado (1926). Essas são consideradas as principais obras do Ciclo, pelos enredos e estruturas mais complexas que as demais. Ambas, desenvolvem suas narrativas centradas em assuntos que envolvem discussões sobre família, defesa da honra, relacionamentos e disputas amorosas. Em A filha do advogado (1926), a principal personagem feminina é Heloísa, filha de um caso amoroso de sua mãe com Paulo Aragão, advogado no Recife. Heloísa se muda com a mãe para a capital por ordem de seu pai, que mesmo mantendo segredo sobre a situação das duas, deseja que as mesmas tenham uma vida social mais ativa e protegida durante os seis meses em que viajará pela Europa. Em defesa dos assédios cometidos por Helvécio, que insiste e ameaça a própria irmã (ambos não conheciam os laços sanguíneos que os uniam) Heloísa o retribui com um tiro, levando-o à morte. A protagonista vai a julgamento, porém ninguém na cidade aceita advogar em sua defesa, apenas seu próprio pai, Paulo Aragão que também é pai do jovem morto e faz toda a defesa disfarçado, pois os laços sanguíneos dos envolvidos no caso ainda não eram conhecidos. O promotor é convincente, assim como sua assistente, Antonieta Bergamini, noiva de Helvécio. Um crime como esse não poderia ficar impune, ainda mais se tratando do filho de um rico advogado da cidade. Heloísa mesmo argumentando a seu favor, apenas é absolvida quando o jardineiro da casa presta depoimento informando que facilitou, em troca de dinheiro, a entrada de Helvécio na casa, e a jovem apenas agiu em legítima defesa. Assume toda a responsabilidade, livra-se do remorso que o corroía e é levado preso. Ao pensarmos na história de Heloísa e compreender “o cinema como um lugar de memória e escrita da história”,13 nos lançamos a algumas reflexões sobre o contexto feminino do início do séc. XX. A defesa da honra, família e nação preocupavam tanto autoridades religiosas, quanto à elite política. Tanto intelectuais quanto autoridades públicas consideravam a defesa da família e da sua tradição um item fundamental para “civilizar” a República Brasileira. “A família honrada era construída por uma mulher devota, ordeira, submissa e recatada” 14, e é por isso que o pai de Heloísa, o advogado Paulo Aragão, por estar inserido nesse contexto históricosocial de hierarquia de gênero, onde a honra de uma família pode ser destruída após a quebra desses padrões de comportamento exigido à mulher, aconselha a filha a defendê-la acima de qualquer outra coisa, por ser, a honra, observada enquanto uma marca de superioridade moral e de civilização avançada.

1308

Uma mulher desonrada “ofendia” à autoridade paterna; às normas estabelecidas pelo discurso católico quanto ao casamento e ao batizado; à reputação pública da família; sua própria integridade moral; patrimônio familiar; e ao Estado. Heloísa afirma que cometeu o crime contra Helvécio apenas para proteger-se da investida violenta do mesmo, que a forçara a se envolver com ele, ameaçando difamá-la, caso a mesma não o aceitasse. A difamação de uma mulher naquela sociedade marcada por traços profundamente patriarcais carregava consigo a perda de toda honra e prestígio de uma família. É fundamental destacarmos que qualquer suposto erro masculino envolvendo relacionamentos, não é motivo de desonra ou vergonha. A honestidade masculina não se refere à virtude moral no sentido sexual. Buriti15 destaca que o registro de nascimento, a pureza de sangue (ausência de ascendência afro, indígena ou judia) constituíam-se em elementos fundamentais de condição social e, por conseguinte, da honra da família, embora “manchas” pudessem frequentemente ser apagadas com dinheiro ou com bens. Essa questão é vista em A Filha do Advogado, quando Helvécio mesmo chegando bêbado à casa de sua noiva, não sofre repreensões por parte dos pais da moça, os quais incentivam e aceitam o relacionamento com base em interesses financeiros. Helvécio, filho de um famoso advogado do Recife era um bom partido matrimonial, ainda que constantemente fosse surpreendido em meio a confusões. Nesse sentido, pouco importaria qualquer relacionamento que se desenvolvesse fora dos padrões estabelecidos pela família. Pontuamos essas questões no intuito de viajarmos para aquela sociedade e compreendermos como as relações e as estruturas familiares eram formadas e sustentadas ao longo do tempo. Entendemos que a produção cinematográfica expõe as mudanças ocorridas na sociedade, nas formas de se representar, nos temas e estilos utilizados. Os filmes, tais como os documentos textuais, são um vestígio de seu tempo, considerando-se as diferenças no campo da linguagem, evidenciando as batalhas no campo da memória e da história, nas representações que elabora16.

ii.

Cinema e Imprensa

O Ciclo do Recife, em especial a produção de A filha do Advogado, nos oferece uma série de possibilidades de questionamentos e informações sobre o contexto no qual estava inserido, por seus enredos que envolvem relações de poder, hierarquias sociais, subordinação feminina, entre outros, sobretudo, por serem histórias contadas por pernambucanos

1309

a

pernambucanos, suas formas de ver e viver a sociedade recifense em suas relações e contradições, por procurarem representá-la como achavam que era, ou gostariam que fosse. Segundo Maria Inez Machado Pinto, é interessante notar que o cinema, enquanto disseminador de hábitos e criador de moda, foi muito mais eficiente do que qualquer outro veículo que se propôs exclusivamente a isso na época, principalmente para fazer perpetuar, por meio das lembranças das imagens de certa cena, alguns produtos ou costumes. O universo cultural hollywoodiano, já nessa época, representava fonte inexaurível de padrões de hábitos, costumes, comportamentos, valores, moda.17

O espaço público vinha se modificando, se colocando como um lugar de trocas, e junto a isso, “a mulher dentro de casa, invisível aos olhos dos estranhos, ocupada com seus trabalhos domésticos, tem agora muitos espaços a descobrir, outras atividades a desempenhar”.18 Passam a ocupar profissões antes vistas como masculinas. A Igreja, o baile na casa de conhecidos, os banhos de rio, vão perdendo espaço para o cinema, as praças, magazines, chás-dançantes. O trabalho como objetivo de muitas delas e o aumento do nível de escolaridade pode estar associado a uma visão menos ingênua do casamento, uma mudança de postura bastante lamentada no período. “(...) Que tristeza! Essas preocupações de dinheiro, não se inscreviam no coração das moças e rapazes de outrora. As conveniências materiais do casamento eram entregues aos cuidados das famílias. Para os rapazes e para as moças era o amor inicialmente, razão suprema. Amavam-se. O resto era secundário”.19 Os locais de diversão, a moda, os carros, as conversas, tudo isso foi vivido pela sociedade recifense e assistido nas telas. Uma cidade com seus contrapontos, sua sede por modernidade, seus avanços tecnológicos, e suas raízes conservadoras. Estar posto uma mocinha, como Heloísa, com seus traços de delicadeza e bondade, como responsável por um assassinato, acalorou muitas discussões. Por sinal, assassinatos cometidos por mulheres não aparecem as nossas vistas através do cinema por acaso. os filmes com outras fontes pesquisadas, os assassinatos cometidos por mulheres, talvez, era uma temática cada vez mais abordada. Em Rua Nova20, revista que circulou no Recife de 1924 a 1926, nos deparamos com a seguinte matéria: O CASO HELENA MATTOSO - Helena matou o Alvaro - Quando? - Na noite do casamento - Deixa-me. Vai-te. Grande maníaco. Outra vez com os teus casos extravagantes de mulheres criminosas... [...] - Helena matou o Alvaro – repetiu Teixeira. Não respondi. Tomei o chapéu, e sem uma palavra saí [...] Na rua comprei o jornal. E de fato. Helena matara o Alvaro. E em letras gordas disformes, o título – “O caso Helena Mattoso” : Um crime misterioso, provocado pela paixão mórbida de uma moça. E fui lendo. Era uma história confusa de mulher bela. O motivo do crime dizia o jornal, fora um beijo violento.21

1310

Deste modo, embora a produção fílmica pudesse sustentar de forma mais explícita o cenário de adoção de novos padrões de comportamento e também de resistência às mudanças, essa tarefa não coube apenas à produção cinematográfica, pois revistas, jornais e outros artefatos culturais também foram utilizados com esse objetivo. Os debates envolvendo as questões femininas, o lugar ocupado por essas mulheres e todos os assuntos abordados nas películas não estavam restritos ao cinema. Destacamos a circulação de revistas que dedicaram colunas a analisar a condição e o comportamento social das mulheres, onde os hábitos femininos são considerados, na maioria das vezes, ligados à beleza, à moda, ao amor, à sedução, ficaram cada vez mais comuns. As revistas Mensário Paramount22 e Cinema23, por exemplo, tinham como alvo principal o público leitor feminino, e foram responsáveis pela divulgação da programação dos filmes, além de possuírem um papel significativo na propagação dos modelos de masculinidade e feminilidade nos anos de 1920. A Pilhéria24, por sua vez, não tinha como alvo as mulheres enquanto leitoras, mas enquanto assunto recorrente. Revista humorística, dedicava parte de seu roteiro jornalístico a opinar sobre a vida das mulheres da cidade, sempre em tom jocoso, emitindo opiniões de cunho político sobre questões de comportamento social feminino: “Foi nomeada para o cargo de terceiro oficial do povoamento do solo dona Mercedes Rocha, seguindo telegrama procedente do Rio. Acho bastante semelhante nomeação, pois é verdade firmada que a mulher nasceu talhada para essa nobre função25. E relacionamentos: - Ainda ante-ontem encontrei uma pequena bonita. Trocámos olhares, consegui falar-lhe e, ontem mesmo, fomos ao sacco de S. Francisco... - Sozinhos? - Sim. Beije-a muito; passeamos de bote, e de regresso, o diabinho confessou que era noiva, mas de um homem a quem não amava e com o qual ia casar-se somente para satisfazer ao desejo da família. Depois, caiu num pranto. - Coitadinha...!26.

A respeito dos jornais, identificamos que estes veiculavam anúncios de convite para as estreias dos filmes nos cinemas de produções estrangeiras e locais. Muitos desses jornais exerciam na população forte influência, e também se mostravam preocupados em conter os avanços femininos, seja em questões profissionais, políticas ou sociais: Pode parecer absurdo que a mulher se afaste de sua nobre missão na terra, para abraçar uma vida absolutamente incompatível à sua finalidade social enveredando por um terreno em que o homem desenvolve essa grande atividade que tem elevado o mundo inteiro, em honra à mulher, o motivo mais forte de suas melhores conquistas27.

1311

iii.

Considerações finais

A trajetória aqui percorrida procurou evidenciar o modo pelo qual o cinema participa na construção da História. A partir das chaves temáticas analisadas, percebemos como as experiências históricas, materializadas nos filmes, fornecem uma condição de legitimação aos acontecimentos dispostos nas películas. Nesse sentido, as análises apontam como o movimento de construção de um pólo cinematográfico em Recife, e a forma como isso se deu, foi importante para que as discussões sociais daquele momento ganhassem mais força, mais notoriedade, estando o cinema e outros artefatos, em confluência com o momento em que a cidade vivia. De tal forma que as imagens e os enredos estão ajustados ao registro documental de muitas dessas novas atividades, adoção de outros anseios de maneira geral, de novas discussões, outros espaços. Questões essas que projetadas no tempo histórico, acabam por reforçar o ideal de modernização e avanço, mas não sem resistências, como por exemplo, as polêmicas envolvendo as relações socioculturais entre homens e mulheres, retratadas pelo cinema e também pela imprensa local. * O referente artigo é o resultado das primeiras impressões decorrentes da pesquisa de mestrado em andamento, vinculada a área da História Social do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF). 1 Graduação em História pela Universidade de Pernambuco (UPE). Mestranda em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), sob a orientação da Profa. Dra. Rachel Soihet. E-mail: [email protected]. 2 Ciclo do Recife é o título dado ao movimento cinematográfico ocorrido em Pernambuco ao longo da década de 1920. 3 BERNARDET, Lucilla. O cinema pernambucano de 1922 a 1931: primeira abordagem. Dissertação de mestrado, 1970, p. 71. 4 A dissertação de Lucilla Ribeiro Bernadet defendida em 1970 é até hoje classificada como o trabalho mais completo sobre a produção cinematográfica do período. BERNARDET, Lucilla. O cinema pernambucano de 1922 a 1931: primeira abordagem. Dissertação de mestrado, São Paulo, 1970. Disponível em: http://www.cinemapernambucano.com.br/trabacademicos/ocinemapernambucanodelucilabernadet.pdf Acesso em: 07/08/2015. 5 Edson Chagas, Gentil Roiz, Jota Soares, Ary Severo, foram alguns dos cineastas pernambucanos que se lançaram na empreitada de produzir filmes enfrentando inúmeras dificuldades financeiras, estruturais e de elenco. 6 BARROS, Natália Conceição Silva. As Mulheres na Escrita dos Homens: Representações de Corpo e Gênero na imprensa do Recife dos anos vinte. Dissertação de Mestrado, UFPE. Recife - 2007, p. 72. 7 ROSA, Ana Lúcia Gonçalves. Passos cambaleantes, caminhos tortuosos: beber cachaça, prática social e masculinidade – Recife/PE – 1920-1930. Dissertação de mestrado UFC. Fortaleza – 2003, p.22. 8 COUCEIRO, Sylvia Costa. Artes de viver a cidade: Conflitos e convivências nos espaços de diversão e prazer no Recife nos anos 1920. Tese de doutorado em História, UFPE. Recife - 2003. 9 É importante destacar que as formas de diversão chamadas “modernas” que se propagaram pelo Recife nos anos 10 e 20 não sucederam de forma linear às festas e comemorações tradicionais como o pastoril, as festas de igreja, as quermesses, os bumba-meu-boi. Essa noção pode nos levar a uma concepção de progresso numa linha de evolução que não considera que essas formas de expressão e brincadeira se entrelaçaram, enfim, conviveram, sofrendo influências e transformações mútuas. In: COUCEIRO, Sylvia. Op. Cit. 10 LEMOS FILHO. Clá do Açúcar: Recife - 1911/1934. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1960. 11 CUNHA, Paulo. A Utopia Provinciana. Recife: Ed. Universitária, UFPE, 2010, p.66. 12 MORETTIN, Eduardo Victorio. Acervos Cinematográficos e pesquisa histórica: Questão de método. Revista Esboços, Florianópolis, v. 21, n. 31, p. 50-67, ago. 2014, p.55.

1312

VEYRAT-MASSON, Isabelle. “Retrato de Marc Ferro” em NÓVOA, Jorge; FRESSATO, Soleni Biscouto; FEIGELSON, Kristian (orgs.). Cinematógrafo: um olhar sobre a história. Salvador: Ed. UFBA; São Paulo: Ed. UNESP, 2009, p. 492. 14 BURITI, Iranilson. Espaços de Eva: a mulher, a honra, e a modernidade no Recife dos anos 20 (século XX). Revista História hoje. São Paulo, nº 5, 2004, p. 02. 15 Idem. Ibidem. 16 JUZ, Breno de Souza. Representações cinematográficas da Argentina em crise (1999-2004). Dissertação de Mestrado em História. UNICAMP- Campinas, SP: 2010, p. 12. 17 BARROS, Natália Conceição Silva. Op. Cit. p. 62. 18 Idem. p. 42. 19 DIÁRIODE PERNAMBUCO. 10/09/1927. p. 4. FUNDAJ. 20 . Em: http://www.fundaj.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=618&Itemid=460 Acesso em 06/08/2015. 21 Revista Rua Nova, nº 19, 1925. 22 Revista Mensário Paramount. 27/05/1927. Biblioteca Pública do Estado (BPE). 23 Revisa Cinema. 12/09/1926. Biblioteca Pública do Estado (BPE). 24 Em: http://www.fundaj.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=615&Itemid=460 Acesso em: 12/08/2015. 25 A Pilhéria 31/12/1921. Biblioteca Pública Estadual de Pernambuco. Optamos por fazer a atualização da grafia para uma melhor compreensão das ideias. 26 Revista A pilhéria 27/12/1924. Fundação Joaquim Nabuco. 27 “O feminismo”. DIÁRIO DE PERNAMBUCO. 10/08/1927. Acervo Fundação Joaquim Nabuco. 13

1313

A maternidade e os preceitos médicos na formação de um novo modelo de feminilidade na América Latina durante os séculos XVIII e XIX Jhoana Gregoria Prada Merchán Doutoranda em História Social (PPGHIS-UFRJ) Orientador: Marcos Luiz Bretas da Fonseca E-mail: [email protected] RESUMO Na Europa, durante o século XVIII, mas especialmente no final deste período e início do século XIX na América Latina, filósofos, acadêmicos e médicos fizeram grandes esforços para criar e divulgar uma série de discursos higienistas com a finalidade de orientar á população até uma reconfiguração da ordem social e evitar oa mesmo tempo os chamados males sociais. Esses manuais foram dirigidos especialmente às mulheres, e a sua maternidade, através da qual foi redefinido o modelo de feminilidade dirigido para as boas mães, mãeseducadoras, aquelas que foram capazes de reproduzir não só fisicamente, senão também moralmente indivíduos adequados á nova ordem social liberal. Palavras chaves: Maternidade, mãe ilustrada, discursos higienistas. ABSTRACT In Europe during the eighteenth century, especially in Latin America at the end of this period and in the early nineteenth century, philosophers, academic staff and physicians made great efforts to create and disseminate a series of hygienists’ speeches in order to guide the population towards reconfiguration of the social order and avoid so-called social ills. These manuals were led particularly to women and their maternity, through which redefined a new model of femininity aimed to good mothers, educator mothers, those that were able to reproduce not only physically but also morally appropriate individuals to the new liberal social order. Keywords: Motherhood, illustrated mother, femininity, hygienists speeches.

INTRODUÇÃO A frase do poeta alemã Christian Hebbel nossas virtudes são, frequentemente, filhas bastardas de nossos vícios, assinala perfeitamente a maneira em que a sociedade em certas situações se percebe a si mesma. Esse dualismo entre o bem e o mal, entre o correto e o que não, também se extrapolou ao binômio homem-mulher, onde esta última geralmente levou a impressão mais negativa. Por essa razão, foi comum escutar o provérbio: as mulheres para rezar ou para parir, fato, onde, precisamente se enquadrou o destino de muitas durante o período colonial e do século XIX nos países Latino-americanos, tradição que justamente reproduziu o comportamento e os convencionalismos inculcados desde a metrópole. Em essa incessante busca de transformações e de entendimento do outro porque era diferente, ao longo do processo histórico, a mulher e o que ela representava sempre significou 1314

um ponto neurálgico de atenção. Muitas dessas classificações foram dadas pela interpretação que se deu a seu corpo e à função que tem de reprodução biológica. De esse modo, com esse elemento, a sociedade definiu à família, o casamento e a sexualidade em função dos papeis que estabeleceu como fixos e invariáveis, ou seja, que constituiu as relações de género de forma assimétrica. Como essas relações podem ser precisadas basicamente como relações de poder, as mesmas se implantaram durante o período em estudo como dependências que essencialmente permitiam o exercício do poder e estiveram identificadas pelas ideias de diferenciação e inferioridade para com o outro. Dentro dessas relações, a mulher do século XVIII, sofre uma serie de transformações geradas a partir das ideias ilustradas europeias, sobretudo, as que fazem referência a seu comportamento e a seu dever ser para com a sociedade. Em esse sentido, a feminidade se redefine para submetê-la a seu corpo e à capacidade que elas tinham de dar à luz. MATERNIDADE: UMA CONSTRUÇÃO HISTÓRICA A maternidade tem sido amplamente estudada tanto em Europa como em América Latina. Esses trabalhos apresentam uma evolução que começou com o primário interesse da corrente feminista até renovadas visões e métodos praticados pela história da família. Desde essa perspectiva, é especialmente a história social, a história das mentalidades e a história de vida as que mais se têm destacado em seu tratamento. A pesar de isso, é necessário ressaltar que a interpretação da maternidade variou segundo o espaço e o tempo. Justamente, de acordo com Cristina Palomar (2005), a maternidade não pode ser definida como um fato natural porque a mesma é uma construção cultural multideterminada que se concebe e organiza por certas normas que respondem à necessidades sociais de um grupo especifico em uma época determinada.1 Ao mesmo tempo, a maternidade

está

composta por uma série de discursos e práticas sociais que conformam o imaginário social que regulariza as relações de género, impondo um sentido das funções masculinas e femininas na sociedade. Por essa razão, se pode argumentar que a maternidade tem um caráter polissêmico e histórico que ajuda na compreensão das práticas sociais. A representação da maternidade estive sempre presente em diversos médios como textos literários, religiosos e médicos, que ao longo dos séculos expuseram sua funcionalidade de forma direta ou indireta, e reconheceram ao mesmo tempo não só questões físicas, senão também abarcaram o mundo dos sentimentos e desejos. A maternidade junto com o amor

1315

maternal, por exemplo, são construções históricas que têm sido experimentadas como vivências individuais, mas que também têm obedecido às exigências sociais. Entendida dessa forma, a maternidade e tudo o que ela implicava, serviu como discurso formador de as ações femininas, sobretudo a partir do século XVIII quando o movimento ilustrado oferece um novo matiz à sexualidade, o casamento e claramente à maternidade. CORPO FEMININO: UMA RENOVADA MIRADA A FEMINIDADE É indiscutível que o corpo da mulher foi definido ao longo do tempo, mas também é inegável que essa definição sempre esteve relacionada com a feminidade.2 Em esse constante enquadramento, a preocupação que invadiu teólogos, médicos, religiosos e filósofos foi o fato de que a mulher era um ser diferente a seus pares masculinos e por isso foi classificada por um suposto dimorfismo onde a teoria dos humores herdada da antiguidade e que atravessou a Idade Média serviu para justificar durante todo esse período a ideia de que a mulher era um ser imperfeito, incompleto, instável, frio e húmido, além de débil. Ao mesmo tempo, a mulher foi descrita negativamente como luxuriosa e lasciva, como um símbolo capaz de levar à corrupção da carne devido a seu imenso poder sexual e por tanto sua moral era frágil e duvidosa.3 Especialmente, a partir do século XVIII, o humanismo desenvolveu uma ideia menos negativa da mulher, sua sexualidade e o casamento, valorando de esta forma o amor conjugal. O discurso que se começa a manejar se despoja de aqueles antigos preceitos e lhe assignam uma nova identidade, que ainda que lhe permitisse independia-se das comparações masculinas lhe deu um status de corpo singular marcado e definido por um órgão: o útero. Se passará de esse modo, do mito da mulher incompleta ao mito da mulher útero, onde ela será condenada pelo seu próprio órgão que será ao mesmo tempo dominante em seu comportamento e impulsos. O útero, como órgão reprodutor simbolizará à mulher mesma e por essa razão receberá o nome de matriz ou mãe, por isso os médicos também se esforçaram em explicar as doenças femininas em função de este órgão.4 Com a Ilustração, a feminidade foi redefinida em função de pensar que a mulher estaria plenamente cheia de felicidade com uma vida familiar tranquila, expressada não só como seu destino natural e o estado que lhe permitia cumprir suas obrigações com a sociedade, senão também como aquele estado onde deviam permanecer suas esperanças de felicidade.5 Em essa redefiniçao dos pensamentos antigos misóginos que assumiriam a inferioridade da mulher, em essa luta entre o desejo e a moral, se resgatou a persistência do

1316

segundo, onde a feminidade foi construída sobre a castidade das mulheres, situação que as levava, bem, a um estado de satisfação pessoal, mas também a uma alta consideração moral natural que manteria a ordem social desde o privado para o público. Em definitiva, o discurso dirigido durante o século XVIII apresentará uma imagem da mulher em função de sua maternidade6, ou seja, ser mulher era sinônimo de ser mãe, acima de tudo de ser boa mãe porque seu corpo estava biologicamente preparado para tal ato e em esse sentido sua função social estava intimamente relacionada com esse fato. Justamente, o binômio maternidade e mulher se combinavam para dar passo a toda uma pedagogia da maternidade que pretendia de forma geral manter a ordem social através da reprodução de indivíduos saudáveis capazes de ser úteis à sociedade, por tanto, houve uma maior preocupação tanto médica como social por temas como a gravidez, o parto, o amor maternal e o cuidado dos filhos. IDEAL DE FEMINIDADE: A MÃE ILUSTRADA As ideias ilustradas em sua redefinição da feminidade agora entendida como um ideal de mãe, a maternidade e o sentimento maternal adquirem vigorizada importância ao definir sua função como um bem social através da qual a mulher cumpria com uma missão moral de cuidar e proteger a seus filhos. A este respeito, a maternidade e a mãe antes do movimento ilustrado não aparecem presentes nos discursos da época, a mãe se apresenta como uma figura auxiliar do pai na procriação e a educação dos filhos, como uma ocupação menor, carregada de moléstias onde se justifica que o cuidado das crianças era feito por parentes e empregados, destacando-se o papel do pai em quanto à relevância da linhagem e a transferência de bens.7 No caso do amor maternal, de acordo com Bolufer (2004), sim este aparecia, por exemplo, em textos religiosos, era entendido como uma paixão e um impulso que devia ser controlado para que não contradisse a moral cristã ou a ordem social estabelecida. Era percebido como um impulso instintivo animal, que justificava e demostrava a incapacidade das mulheres para controlar e racionalizar seus sentimentos. De igual forma, na literatura humanista se expõe como uma linguagem seco, como um destino carente de bem-estar.8 Ao contrário, a literatura moral e pedagógica do século XVIII9 exibiu a maternidade como um modelo de construção histórica que tentou explicar como um fato natural, que permitia à mulher, a chamada anjo do lar, nascer em ela sentimentos de sensibilidade e compreensão para com os filhos, por isso, aquela que não os revelasse era considerada desnaturalizada. A ideia consistia em formar um padrão de família ilustrada baseada nos

1317

sentimentos e no amor maternal, onde a mulher em seu papel mais importante –o de mãe- se lhe assigna o cuidado físico, moral e sentimental dos filhos. Igualmente, a maternidade de acordo com os filósofos e médicos se interpretava como o destino ao que se encaminhava a natureza da mulher, marcadas pelas características de seu corpo, era por tanto sua razão moral, que também se entendeu como uma missão física e cívica que lhe delegava a formação de bons cidadãos.10 Mas a maternidade exigia uma aprendizagem, assim o expressa Lucía Provencio 11 em seu estudo sobre os discursos da maternidade em Cuba para finais do século XVIII e princípios do XIX, onde os jornais e revistas da época se encarregavam de divulgar conselhos às mulheres –entendidas como mães- sobre o instinto maternal. Para Yvonne Knibielhler citada por Provencio, ainda que a mãe não necessitasse de intermediários para realizar uma boa tarefa, nos discursos se expressou a presunção de que elas requeriam de orientação para exercer um bom papel, sobretudo, em quanto à criação dos filhos. Para convencer às mulheres de essa situação, se recorreu a três fatos básicos: o instinto maternal, a razão e à natureza. Se nenhum funcionava, se apelava à obrigação como um mandato de Deus. Para as mulheres [...]a maternidade devia constituir o objeto de todos seus desejos, o lugar de todos seus prazeres e o fundamento de seu poder moral: essa mensagem que, reiterado desde meados do século XVIII na literatura pedagógica, moral, medica e política, se difunde com particular sucesso na novela e o teatro sentimental: obras como Nouvelle Héloïse de Rousseau, Pamela Andrews de Richardson ou as populares ficções pedagógicas de Mme.12

No caso especial de os países de América Hispânica, as reformas bourbônicas tiveram influência em este aspecto, pois tais transformações não só se fizeram em termos econômicos, senão também em aspectos sociais dentro dos quais se incluíram às mulheres e a família. Por essa razão, a maternidade e tudo o que ela implicava, desde a gravidez, o parto e posterior criação dos filhos, receberam uma inusitada importância a partir de finais do século XVIII, projetando-se até o século XIX e XX13, inclusive chegando a ter certa influência nas costumes e tradições de determinados povos de Latino América. Dentro das ideias liberais da maioria dos governos dos países da América Latina durante o século XIX e princípios do XX, o discurso oficial estava dirigido a garantir a ordem e o progresso das nascentes Repúblicas14, definindo do mesmo modo o ideal de cidadão diferenciado em seu papel feminino e masculino de suas funções, assim, em quanto o homem seguia sendo o chefe da família e estava destinado à funções dos espaços públicos, as mulheres se predestinaram ao espaço privado onde se garantiam a educação dos filhos que seriam úteis à pátria.15 Essa seria agora a nova visão da virtude feminina que se redefine em

1318

comparação com a ideia de virtude feminina como honra sexual e virgindade dos séculos anteriores, por tanto, se entende que a virtude feminina agora abrange outros espaços da mulher como a maternidade e seus sentimentos maternais. O DISCURSO HIGIENISTA EM SUA ÂNSIAS POR CORRIGIR MALES SOCIAIS O discurso higienista manejado em Europa y Latino América dos séculos XVIII e XIX tive grande interesse em temas como a maternidade e funcionou basicamente com fines pedagógicos para as mulheres. A maternidade, com seu revigorizado interesse não estive isenta das questões que se intentaram resolver e orientar através dos discursos médicos que recomendavam como bem principal a higiene. Assim, temas como o processo de gravidez e os cuidados posteriores que tanto a mãe como o filho deviam manter se fazem evidentes e se difundem de forma massiva por meio de jornais, manuais e a literatura da época que trataram de forma direta o assunto. O discurso higienista presente na América Hispânica de finais do século XVIII e que se estendeu –com certas variantes de região em região- até o século XIX e princípios do XX estive orientado a evitar os altos índices de mortalidade infantil, já que as mortes foram comuns tanto em Europa como em suas colônias, tanto para as mães e seus filhos, já fosse durante o período de gravidez, no parto ou nos primeiros dias de vida do recém-nascido. A futura mãe, de acordo com esse argumento, estava obrigada a preservar e contribuir com a boa formação do feto, o objetivo era educar às mulheres em uma higiene tanto física como moral, evitando com esse último aspecto crimes considerados como males sociais como o aborto, o abandono de infantes e os infanticídios. O cuidado da gravidez involucrou dentro de seus discursos higienistas diversos conselhos que intentavam garantir o bem-estar da mãe e do futuro filho, elos iam desde uma boa alimentação, pouco esforço físico da mãe, não ter sobressaltos, o uso de uma adequada vestimenta que facilitara a liberdade de movimento do feto, sim ataduras, até a controvertida suposta influência direita das ações da mãe na formação física da criança, colocando assim uma vago conhecimento sobre anatomia na povoação, mas especialmente nas futuras mães. Em esse último aspecto, nasceu a preocupação da relação existente entre a mãe e o feto, mas em especial sobre a influência que a mãe podia exercer no desarrolho da criatura, alguns estudiosos manteiam que a imaginação da mãe devido à os câmbios produzidos em seu útero podiam influir de forma negativa no bebe, em quanto que outros especialistas contradiziam esta posição e muitas vezes adoptavam pontos de vista intermédios.16

1319

Outro ponto importante que se tratou nos manuais de higiene sobre o período de gravidez foram as ânsias sofridas pela mãe e que muitas vezes ficaram definidas racionalmente contradizendo certas superstições sociais, levando-as até a ideia de que eram produzidas pela imaginação da mesma. As ânsias foram determinadas como o apetito descontrolado por uma coisa incomum que se não era satisfeito num tempo determinado podia levar às grávidas a atos irracionais.17 Certos médicos argumentavam que os abortos e as malformações de alguns recém-nascidos não se deviam à insatisfação das ânsias da mãe, senão a sua imaginação exagerada produzida pelos câmbios em seu útero que se acentuavam muito mais durante a gravidez. O processo do parto e certos procedimentos médicos como a cesariana adquirem transcendência para os médicos através dos manuais e discursos higienistas onde fizeram presente suas recomendações às mães. Sendo esta etapa a de maior resgo físico para a mãe, os especialistas procuraram por meio da pedagogia higienista que aquela sofrera a menor dor possível, contradizendo o cânon antigo da igreja que indicava que a mulher devia ter o maior sofrimento possível durante o alumbramento, já que ela limpava de essa forma o pecado cometido por Eva. Os médicos da época aconselhavam e recomendavam às parturientes sobre a posição mais cômoda e apropriada para o parto que consistia basicamente em um ciclo inicial em manter-se em pé, evitando os enemas, supositórios, injeções e purgantes por considerar-se perniciosos e com possíveis consequências nefastas tanto para a mãe como para o feto.18 O recomendável era que a mulher tivesse um parto normal, sim embargo, se faziam referências a partos difíceis como nascimento de crianças deformes e monstruosas. No que se refere aos procedimentos como a cesariana, o tema gerava contradições por diversos motivos, principalmente, porque colocava em muitos casos ao médico a escolher entre a vida da mãe o da recém-nascido. A cesariana foi praticada em Europa desde o século XVI, onde se sabia que podia fazer-se por meio de um corte lateral do ventre e do útero da mulher viva sim risco. Sim embargo, esta teoria encontrou seus detratores que alegavam a impossibilidade de cometer um homicídio direito na mãe para salvar a vida do filho. 19 Com novas propostas e discussões, durante o século XVIII se recomendou que o uso da cesariana se fizesse não só em aquelas mulheres que haviam falecido antes de dar à luz com a intensão de que a criatura recebera o sacramento do batismo, senão também em aquelas cujas vidas estavam em perigo.

1320

O SENTIMENTO MATERNAL E A LACTAÇÃO Dentro dos preceitos ilustrados junto com a maternidade o sentimento maternal e a lactação se converteram em sinônimos de feminidade, ou seja, de uma boa mãe. Como o amor maternal é uma construção cultural que se formou paulatinamente de acordo com certos convencionalismos sociais se pensou que era um tipo de sentimento que era natural, mas que nascia na mulher despois de ter o filho em seus braços. Por isso uma mulher para chegar a ser uma excelente mãe devia continuar com os cuidados do recém-nascido amamentamo-lo e dando-lhe cuidados físicos e higiênicos como lava-los e alimentá-los corretamente. Os discursos higienistas tentaram convencer às mães de que parte de seu destino como mães implicava o surgimento em elas de um tipo de sentimento especial para com seus filhos que estava personificado maioritariamente pela lactação. Se planteou de esse modo, uma relação mais intima e amorosa entre a mãe e a criança que foi argumentada como um assunto natural à mulher onde os preceitos religiosos ajudaram a condenar à desalmadas que se negavam a cumprir com a tarefa de amamentar suas criaturas. Mas, ao mesmo tempo, se usaram argumentos de tipo médico como o benefício que proporcionava a leite materna tanto para a criança como para a mãe, ademais de que se justificou como uma forma moralizante aos interesses sociais e demográficos de aquelas sociedades.20 É indiscutível que o sentimento maternal se exercia corretamente através da lactação, por essa razão, ambas iam da mão e serviram para redefinir o ideal de mãe, mas também o modelo de família ilustrada. A lactação materna significou um símbolo que expressava a maternidade em seu mais amplo e correto sentido, onde o sentimento maternal fazia que a mãe tivesse desejos de alimentar com seu leite ao filho e ao mesmo tempo a lactação complementava o amor maternal das mães. Da mesma forma as mães também eram responsáveis pela educação de seus filhos, tanto mais o menos amor podia ter influência no futuro comportamento da criança, por isso houve uma espécie de separação entre as formas de criar e amar aos meninos e meninas, para as últimas o amor devia ser mais favorecido e a sua vez vigiado, preparando-as para sua futura missão de mãe e no caso dos varões, se aconselho dar-lhes menos carinho, pois ao ser excessivo o apego podia leva-los a comportamentos afeminados dos quais a mãe seria responsável. Se criam, assim, modelos de vida familiar que incluíam a construção de um lar onde ressaltasse o amor, ademais de padrões de comportamentos considerados como femininos ou masculinos que chegam ainda até nossos dias.

1321

CONSIDERAÇÕES FINAIS Os discursos ilustrados do século XVIII que foram criados em Europa e que posteriormente se trasladam a suas colônias americanas, começaram a difundir-se graças a jornais, manuais e a literatura buscando estabelecer uma nova forma de feminidade universal e hegemônica que começou por enquadrar à mulher em seu próprio corpo, particularmente, em seu órgão reprodutor. Este órgão serviu para explicar seu comportamento assumido como fortemente instável e imaginativo onde as aquisições sobre as doenças femininas também se especificaram com base a os câmbios produzidos em seu útero. Muito mais, como este novo modelo de feminidade, se lhe ensino à mulher como funcionava seu corpo, mas também como devia pensar e sentir. Baseados em um fato biológico, médicos e pensadores explicaram a função feminina para com a sociedade por meio da maternidade como uma circunstancia natural. Portanto, cresceu o interesse por tentar instruir à mulher sobre a melhor maneira de exercer seu papel para contribuir com o progresso e a nova ordem social. Em esse sentido, não todas as mulheres eram boas mães, pois ainda que algumas tinham a capacidade de parir, não todas eram verdadeiramente mães coisa que só se completou como o surgimento do sentimento maternal e a lactação materna, em poucas palavras, o cuidado posterior ao parto que elas deviam dar ao filho. A mãe ilustrada foi preparada para configurar a família moderna burguesa, que separou igualmente as funções dos espaços públicos e privados, criando ao mesmo tempo uma família onde permaneciam os sentimentos de cuidado e amor para como os filhos. Mais que uma garantia física dos filhos, implicou uma garantia moral para com a sociedade. Como a maternidade é uma construção histórica e cultural, não se pode afirmar que foi evolucionando progressivamente sim interrupções, especialmente em estas sociedades, já que tive avanços e retrocessos. Em consequência, os efeitos e as pretensões dos discursos maternais e higienistas se fizeram presentes, mas de forma lenta e muitas vezes contraditória, sobretudo porque se tratava de extrapolar um assunto pessoal como a maternidade para espaços públicos e de interesse social. PALOMAR VEREA, Cristina. “Maternidad: Historia y Cultura”. In: Revista de Estudios de Género. La Ventana. # 22. 2005. p. 36. 2 Veja-se os interessantes trabalhos de LAQUEUR, Thomas. Inventado o Sexo Devoto: Corpo e Género dos Gregos a Freud. Río de Janeiro. Relume Dumará. 2001 e WIESNER, Merry E. Women and Gender in Early Modern Europe. Cambridge University Press. 2000. 1

1322

BOLUFER PERUGA, Mónica. “La realidad y el deseo: formas de subjetividad femenina en la época Moderna”. ESPIGADO TOCINO, Gloria e PASCUA SÁNCHEZ, María José de la. (coord.). In: Mujer y deseo: representaciones y prácticas de vida. Cádiz: Universidad de Cádiz, 2004. p. 365. 4 Ídem. 5 Ibídem. p. 367. 6 É interessante observar como dentro da sociedade grega clássica, por exemplo, a honra feminina representou um papel tão notável, mas sobretudo quando este se relacionava com o fato biológico de conceber e dar à luz, a mulher se considerava como completa frente a tarefa de engendrar, implicava que ela pagava a dívida que havia contraído com o Estado, pagando sua manutenção com um bem para a sociedade: a reprodução de especialmente varões que continuaram não só com o legado do Oikos, senão com a regeneração da Polis. Precisamente, se estimava que a honra de uma mulher aumentava quando tinha um maior número de filhos, o que levava implícito o valor da legitimidade. 7 BOLUFER PERUGA, Mónica. “La realidad y el deseo: formas de subjetividad…” p. 368-369. 8 Ibídem. p. 369. 9 É importante ressaltar que a partir de este momento o discurso dirigido à maternidade e tudo o que ela envolvia se faze cada vez mais laico substituindo o tradicional discurso religioso o que significo que a Igreja vai perdendo pouco a pouco o controle que exercia sobre a sociedade para ser assumido com mais força pelo Estado, especialmente amparados pelos homens de ciência que se preocuparam por estabelecer discursos higienistas para abordar temas de interesse social. ROSAS LAURO, Claudia. “Madre sólo hay una. Ilustración, Maternidad y Medicina en el Perú del Siglo XVIII”. In: Anuario de Estudios Americanos, Vol. 61, # 1, 2004. p. 107. 10 BOLUFER PERUGA, Mónica. La realidad y el deseo: formas de subjetividad… pp. 369-370. 11 PROVENCIO GARRIGÓS, Lucía. “Las Madres Cubanas no son Madres sino a Medias. Discurso Teórico y Disciplina de la Maternidad (Siglo XIX)”. In: Dimensiones del diálogo americano contemporáneo sobre la familia en la época colonial. Coor. Francisco CHACÓN JIMÉNEZ e Ana VERA ESTRADA. 2009. p. 12. 12 BOLUFER PERUGA, Mónica. “La realidad y el deseo: formas de subjetividad…” p. 372. 13 No Brasil para inicios do século XX, Fabiola Rohden realiza um interessante trabalho sobre a importância que adquire nos principais jornais de medicina brasileiras e em teses doutorais a maternidade entendida como uma virtude feminina que se considerou como a verdadeira função da mulher, o que refletiu a preocupação que o Estado tinha sobre a reprodução social como base a reprodução biológica e que buscava a melhoria da raça. ROHDEN, Fabiola. “Medicina, Estado y Reproducción en el Brasil de inicios del siglo XX”. In: Iconos. Revista de Ciencias Sociales. # 28. Mayo 2007. p. 47-57. 14 Na Venezuela, o caso excepcional da Negra Hipólita que foi ama de leite do Simón Bolívar serviu aos governos liberais de finais do século XIX e princípios do XX para justificar a chamada maternidade republicana que difundia a ideia de mãe abnegada e fiel, mas também serviu para branquear a negritude de aquelas mães que podiam contrariar ao modelo ideal de mãe. PROTZEL A., Patricia. “La Madre Negra como símbolo Patrio: El Caso de Hipólita, la Nodriza del Libertador”. In: Revista Venezolana de Estudios de la Mujer. Enero/junio, 2010. Vol. 15. # 34. p. 65-74. 15 TRUEBA DE PAZ, Yolanda. “El discurso de la Maternidad Moderna y la Construcción de la Feminidad a través de la Prensa. El Centro y Sur bonaerenses a fines del siglo XIX y principios del XX”. In: Quinto Sol. Vol. 5. # 2. 2011. p.5. 16 ROSAS LAURO, Claudia. “Madre sólo hay una. Ilustración, Maternidad y Medicina en el Perú del Siglo XVIII”. In: Anuario de Estudios Americanos, Vol. 61, # 1, 2004. p 116. 17 Ibídem. p. 119. 18 Ibídem. p. 125. 19 Ibídem. p. 127. 20 BOLUFER PERUGA, Mónica. “Actitudes y Discursos sobre la Maternidad en la España del Siglo XVIII: La Cuestión de la Lactancia”. In: Historia Social. # 14. Otoño, 1992. p. 8. 3

1323

A EDUCAÇÃO ESCOLAR EM MONTES CLAROS-MG NO INÍCIO DO SÉCULO XX NA PERSPECTIVA DA IMPRENSA

João Paulo da Silva Andrade1 Elisa Campo Borges2

Resumo: A pesquisa analisa os conteúdos de jornais na cidade de Montes Claros-MG no início do século XX, que estavam ligados à divulgação das práticas da Educação Escolar na cidade. A metodologia desenvolvida baseia-se na revisão bibliográfica e análise de jornais da época (1916 a 1918). Conceitua-se a Primeira República no Brasil, a partir da Constituição de 1891, buscando analisar a organização da escolarização da sociedade, as distinções do período imperial bem como as manutenções de práticas educativas ligadas à política e ao processo de civilidade nacional.

Palavras-chave: História da Educação, Imprensa, Primeira República

Abstract: The research analyzes the content of newspapers in the city of Montes Claros, Minas Gerais in the early twentieth century, which were linked to the disclosure practices of school education in the city. The methodology is based on literature review and analysis of newspapers of the time (1916-1918). Conceptualizes to First Republic in Brazil, from the 1891 Constitution, trying to analyze the organization of schooling of society, the distinctions of the imperial period and the maintenance of educational practices linked to politics and national civilization process.

Keywords: History of Education, Press, First Republic

1

Licenciado em História, Pós-graduado em Didática e Metodologia do Ensino Superior e em Educação à Distância pela Universidade Estadual de Montes Claros - UNIMONTES. Mestrando em Ciências Humanas pela Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri - UFVJM (Campus Diamantina-MG) ([email protected]) 2 Graduada em Historia pela Universidade Federal de Goiás (2000), Mestrado em Historia Social pela PUC-SP (2005), Doutorado em História Social pela Universidade Federal Fluminense (2011). Professora da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM) - Orientadora – Mestrado Profissional Interdisciplinar em Ciências Humanas – UFVJM ([email protected])

1324

1.1.-Sobre Imprensa na Primeira República – Sob a perspectiva da cidade de Montes Claros

A Primeira República no Brasil marca a passagem do sistema agrário-comercial para o sistema urbano-industrial, caracterizando assim o rompimento das bases de uma sociedade estamental, o que leva ao surgimento de uma sociedade de classes baseada em uma nova fase política e econômica. A partir destas transformações são introduzidas novas regras de condutas, bem como novos padrões de pensamento, que visam atingir a todos. Aranha (1996)i, vem de encontro a esta prerrogativa, discorrendo a respeito de uma sociedade de modelo agrário-comercial:

São muitas as contradições sociais e políticas de um país cuja economia consolida o modelo agrário-comercial e faz as primeiras tentativas de industrialização. Debatemse aí os segmentos renovadores, que aspiram pelos ideais liberais e positivistas da burguesia europeia, e as forças retrógradas da tradição agrária escravocrata. [...] Ainda que no final do Império surgissem algumas esperanças de mudança no quadro educacional, de fato a situação continua muito precária. (ARANHA: 1996, p. 156)

A autora apresenta uma vertente de análise da conjuntura econômica do Brasil, que compreender estar diretamente ligada ou progresso ou a uma possível dicotomia do rural e do urbano. Outro ponto que nos chama atenção é a abordagem temporal do final do Império, diz da precariedade da educação e da instrução oferecida nos espaços escolares, percebemos que esta em quase nada se diferiu da realidade republicana. Com a finalidade de compreender a escola e educação escolar neste momento é salutar considerar as alterações que provocaram a abertura da sociedade, com movimentos que retomam princípios liberais. O método apresentado para o desenvolvimento do nossa pesquisa perpassa a pesquisa histórica ligada à imprensa no Brasil e em particular Montes Claros. Buscamos analisar a imprensa na cidade com a finalidade de analisar o “Jornal Montes Claros”, dos anos 1916 a 1918, bem como a sua utilização como fonte, neste sentido damos ênfase as colunas que tratam a respeito da educação escolar. No período citado, vemos que os jornais publicavam artigos que eram utilizados para reafirmar o comportamento político de determinados grupos da cidade de Montes Claros, e assim podiam funcionar como instrumento tanto de disputas como de domínio social.

1325

Ao conceber as ideias de “Progresso” e “Civilidade” da Primeira República no Brasil, pensamos que a imprensa está a serviço das mesmas no início do século XX, pois tais temas eram recorrentes em diversos jornais. O crescimento urbano que marca este período passa a ser um tema tão corriqueiro tanto quanto a política, quanto a educação escolar. Sendo assim tais informações estão presentes também no interior e não só nos grandes centros. Os jornais passavam a circular com maior frequência também entre as cidades. A ideia mencionada de progresso não se desvincula da civilidade, pois compreendemos que os processos estão interligados, afirmando tal premissa a partir da visão de Morel e Barros (2003)ii, dizendo da renovação da imprensa:

A renovação das abordagens políticas e culturais redimensionou a importância da imprensa, que passou a ser considerada fonte documental (na medida em que enuncia discursos e expressões de protagonistas) e também agente histórico que intervém nos processos e episódios, em vez de servi-lhes como simples “reflexo”. (MOREL e BARROS: 2003, p. 8-9)

Portanto, compreendemos a imprensa não como mera reprodutora de discursos, mas como formadora de opinião e em consequência grande influente da mesma. A imprensa então é pensada em nossa pesquisa como uma linguagem capaz de articular grupos políticos, registrar a memória de determinadas regiões, ofertar a “cultura letrada” a um grupo social, e assim, a temática educação escolar deve ser abordada ampliando o debate entre o que era legislado e o que o registro social impresso através do jornal, apresentava como prática. Rodrigues (2011)iii afirma que: “Do século XIX para o século XX, a imprensa passa a contar com o telégrafo agilizando a circulação de informações. E além dos objetos – telefone e telégrafo – houve uma mudança no comportamento dos jornalistas.” (p. 85). Os jornalistas a partir deste momentos desenvolvem ações que reconhecidamente os organiza como profissionais do determinado meio de comunicação, levando também a uma maior credibilidade do que eles escrevem, apesar de que as tendências políticas não se anularam. Para além da nossa análise sobre educação escolar em Montes Claros, não poderíamos deixar de perceber que os jornais tem em recorrentes edições o tema das intrigas políticas, bem como os acordos políticos estabelecidos. Em algumas publicações demostram que é necessário apresentar tais fatos à população pelo fato de a imprensa considerar que

1326

o

município de Montes Claros ocupava importante espaço no cenário político da época. A cidade de Montes Claros é apresentada à frente para o seu tempo, os conceitos de progresso estão permeados em todos os meios, a modernidade encontra-se presente em várias as ações, e como município grande a comunicação ou outros locais era considerada fundamental. A comunicação se dava em rede, com a finalidade de fortalecer pensamentos que fossem parecidos, opiniões que convergissem para o mesmo fim, e desta maneira fortaleceriam determinadas aproximações geográficas e ideais sociais, políticos, educacionais e das mais variadas demandas. Os jornais então não circulavam somente para atender a interesses de grupos que o compunham, mas com a intenção de dinamizar os periódicos, e fortalecer aproximações de objetivos. Ainda segundo Rodrigues (2011), uma análise da imprensa norte-mineira, afirma que:

Neste debate, de acordo com as minhas análises, os jornais produzidos em e sobre o norte de Minas também apresentavam caminhos para a compreensão de “circuitos e linguagens que constituíam as redes de comunicação”. Salientar a cidade ou o sertão foi, para os grupos políticos, que estavam por traz desses jornais, um caminho para se colocarem e se imporem frente aos seus opositores. A “palavra impressa”, nesse embate, “produzia opinião e divulgava os projetos” pretendidos por esses grupos, tanto entre seus corregilionários como entre seus rivais políticos. Ao “construírem memórias”, além da disputa do momento, projetavam, também, essa disputa para o futuro. Pois, depois de escritos e materializados, os textos, certamente, teriam suas idéias, pensamento, permanência e circulação; através do elemento jornal, configuradas em objeto. (RODRIGUES: 2011, p. 90)

Afere-se que as redes de comunicação, produziam pensamentos que fomentassem a ideia de certa homogeneidade dos rumos do progresso necessário e almejado pela Primeira República, destacando no contexto a ideia de cidade e todas as nuances que convergiam para esta. O pensamento republicano, contexto político regional, a educação escolar como era apresentado pelos jornais, permaneciam na realidade social da população, porém vale lembrar que os índices de analfabetismo eram muito altos neste momento, o que talvez pudesse impedir que as informações chegassem a um maior número de pessoas. Toda esta temática envolvendo as questões sociais, a política, e a educação giravam em torno do que chamamos de “Projeto de Nação”. A passagem do Período Imperial para a República, no Brasil, cujo território é de extensão continental e que tem regional a sua

1327

formação, apresenta-se como uma séria questão de organização da administração pública que almejava. Assim, a nação ideal existia no papel e de, alguma maneira, tinha que passar a existir de fato. A imprensa então se apresenta como de grande contribuição para o projeto da nação, tanto que a circulação de notícias gerava a sensação de unidade. O jornal era considerado instrumento de divulgação desse projeto, por isso publicavam-se informações do litoral no sertão, bem como do sertão no litoral, assim afirma Rodrigues (2011): “A exemplo disso temos a coluna “Cartas Cariocas” do jornal Montes Claros, de 22 de fevereiro de 1917, em que aparece publicação a respeito da onda de calor na cidade do Rio de Janeiro, dando ênfase a atuação de médicos e exaltando a modernidade daquele lugar. A publicação fala também da diferença existente entre ricos e pobres para enfrentarem essa onda de calor, logo depois, passa a noticiar sobre a guerra”.(p. 91). A autora então diz que a justificativa para esta circulação de informações é a necessidade de integrar a comunicação do sertão com o litoral fortalecendo a unidade nacional e reafirmando a ideia de nação, o que ajudaria a consolidar a “Nova República”. Compreendemos como o marco delimitador da passagem do Império para a República é a Constituição de 1891, que tinha características liberais. Porém, no interior do país, essa passagem não apresenta um significado bastante distinto. Dá-se assim a importância de se trabalhar, a premissa do simbolismo presente na constituição da nova conjuntura política do Brasil, verificamos também, que as redes de comunicação influenciaram diretamente para que os interesses políticos e sociais daquela época fossem atendidos. O Jornal Montes Claros, utilizado como fonte para nossa pesquisa se apresenta como um jornal popular, procurando estabelecer com os leitores uma proximidade de interesse e opinião. Porém, apesar de poder ser chamado de “imprensa sertaneja”, o motivo da sua existência era retirar os “moradores do sertão” do “atraso” e aconselhar era a melhor tática, não era legitimar os modos de vida existentes na população, mas regulamentá-los a partir dos ideais civilizatórios da Nova República. Destaca também a importância

da

escola,

comentando o malefício do “ócio” e busca trabalhar a ideia de que os locais públicos, fora do ambiente escolar eram espaços negativos, para os filhos. Também compreendemos no tocante aos temas abordados pelo o jornal Montes Claros, não se detinham somente a assuntos referentes ao governo, mas também, publicava as práticas sociais, escolares, econômicas e religiosas da cidade.

1328

Um dado relevante que levado em consideração é a postura dúbia da escola em se tratando de religião, pois o ensino era considerado laico e o Estado Republicano já sem uma religião oficial, e por diversas vezes os jornais apresentam práticas religiosas cristãs-católicas no contexto escolar, talvez legitimando a presença da educação religiosa como parte da formação dos novos cidadãos republicanos. Nagle (1976)iv apresenta uma distinção ao dizer que: “Em Minas Gerais e São Paulo, que eram os estados mais representativos durante a primeira república, ocorreram reformas da instrução pública primária.” Assim, a União, representada por esses estados (política dos governadores), não acompanhou o movimento de reforma educacional em relação ao ensino secundário e superior. A partir de tal afirmação percebemos que o conceito afirmado por tal autor consiste em dizer que esses estados em se tratando de educação, só se preocuparam consigo mesmo, por estarem à frente das decisões nacionais. Partindo do pensamento da época, vale lembrar que no Brasil ainda não existia nenhum paradigma, ou orientação consolidada com a finalidade de instituir um sistema educacional. As pessoas que pensaram este assunto podem ser consideradas pioneiras de fato, no que se refere à educação nacional, e assim criam, a partir do movimento internacional da escola nova, moldes de educação inovadores para a realidade brasileira da Primeira República. Nagle (1976) ainda argumenta que “O debate sobre o desenvolvimento do ensino, não privilegia todos os níveis: primário, secundário, superior e profissional.” O que se tem como objetivo para o momento é a o alcance e consolidação da escola primária, que proporciona a aquisição

dos

direitos

políticos,

direitos

estes

intrinsecamente

ligadas

à

instrução/alfabetização, e não a educação e não a secundária ou a superior. Pois a realidade do país era que os poucos letrados que existiam sobressaiam em suas vontades aos que tinha o impedimento do voto, os analfabetos. Dados apresentados por Nagle (1976) apontam que em 1922 quando se comemorava o 1º Centenário da Independência, o censo revelava 80% de analfabetos no Brasil. Sendo assim o analfabetismo e como consequência a falta de acesso à cultura letrada, impediam significativamente o progresso do país. Por volta de 1920, percebemos uma preocupação quase unânime com os problemas educacionais relacionados a República. A responsabilidade, passada aos estados e por homens públicos, imprensa, sociedade e movimentos sociais, dentre outros, busca difundir que a instrução deve alcançar a todos em detrimento ao grande analfabetismo vigente. Desta forma, a escolarização, passa a ser um programa político. A educação é vista como base que poderá solucionar os problemas brasileiros. Daí, seria possível contemplar

1329

diversas camadas da população ao progresso, passando pelo processo civilizatório, levando o Brasil a trilhar o caminho de outras nações desenvolvidas no mundo.

1.2 – A Primeira República como Marco Civilizatório do Brasil

A partir da Primeira República consideramos então que há a implantação do novo modelo político e social no Brasil, o que difunde assim a idéia de prosperidade nacional. A instrução nacional, então ofertada neste período, idealiza uma dimensão cidadã, principalmente em se tratando da educação primária. Como supracitado a instrução, ou educação escolar visava organizar e normatizar os cidadãos da República, através de vários conceitos, dentre eles demos destaque à alfabetização, porém para discutir tal “processo civilizador” cremos que se faz salutar apresentar alguns conceitos, bem como suas aproximações e distinções, apontado sobre qual delas tratamos ao citá-la. Observamos que a Primeira República no Brasil buscou-se de maneira geral “normatizar” a vida das pessoas com a finalidade de fazer do país uma nação civilizada. O que objetivamos mostrar é que esta discussão faz-se pertinente à medida que analisamos as obras de ELIAS (1993)v, RIBEIRO (2000)vi e REIS (1996)vii, não no sentido restrito ao Brasil, mas no sentido amplo de análise do “caminho evolutivo” ou civilizatório de outros países. Tais concepções se organizam em torno de temas distintos, a primeira pensando na História dos Costumes da Sociedade e como os mesmos evoluem ao longo do tempo e das construções sociais neles empregadas; a segunda perpassa diversos momentos da evolução sociocultural e os seus diversos fundamentos. Ao discutir o conceito de civilização, Elias, 1993, nos aponta diversos fatos que influenciam a sua teoria:

O conceito de “civilização” refere-se a uma grande variedade de fatos: ao nível de tecnologia, ao tipo de maneiras, ao desenvolvimento dos conhecimentos científicos, às ideias religiosas e aos costumes. Pode se referir ao tipo de habitações ou à maneira como homens e mulheres vivem juntos, à forma de punição determinada pelo sistema judiciário ou ao modo como são preparados os alimentos. Rigorosamente falando,

1330

nada á que não possa ser feito de forma “civilizada” ou “incivilizada”. Daí ser sempre difícil sumariar em algumas palavras tudo o que se pode descrever como civilização. (ELIAS: 1993, p. 23)

Corroborando com pensamento de Norbert Elias (1993), José Carlos Reis (1996), vem nos afirmar a civilização no território espacial estável bem como as possibilidades condizentes com ele. Vejamos:

Cada civilização é ligada a um espaço mais ou menos estável, que constitui um lote de possibilidades e de dados. Resultado da aliança com a sociologia, a história social considerará como “civilização” a estrutura social mesma, mas sem confundir “civilização” e “sociedade”: para a história social, a civilização possui um tempo mais longo, que ultrapassa o de uma realidade social dada. (REIS: 1996, p. 71)

Ou seja, a partir desta premissa, formar uma civilização ultrapassa a questão temporal de determinadas sociedades. A realidade brasileira da Primeira República foi o germe inicial de um processo maior e gradual que se formava, e ainda pode estar em formação, com a finalidade de alcançar um patamar civilizado de desenvolvimento sob os moldes externos que influenciaram a organização nacional. Desta forma, compreendemos que a civilização ou ausência dela está impregnada na sociedade, nos mais vários meios e ações sociais. Vimos que em se tratando de Brasil na Primeira República, tanto as questões que envolvem o dia a dia do povo como os detalhes mais pessoais necessitavam do momento da instrução para se normatizar, daí a importância da educação escolar neste contexto. Assim tal instrução não bastava somente ser organizada e passada no âmbito doméstico, mas necessitava, em uma “gênese republicana”, da instrução escolar. Não obstante este tipo de educação se bastava por si só, mas deveria influenciar também diretamente nos costumes, nas decisões, no lidar social, bem como na política. Compreendemos também que assim como a instrução, a constituição de uma civilização se dá por um processo, seja ele lento ou rápido, mas não imediato. Ribeiro (2000), afirma que: “O conceito de processo civilizatório permite essa abordagem conjunta porque ressalta, na sua acepção global, a apreciação dos fenômenos de desenvolvimento progressivo da cultura humana tendentes a homogeneizar configurações culturais” (p.13). Assim, para tal processo, permitindo diversas caracterizações aponta a busca de um ponto comum que possa

1331

“homogeneizar” as distintas culturas existentes em uma sociedade. Ao pensar o Brasil, e suas proporções continentais, bem como as diferenciações de cada região, analisamos que dificilmente um projeto de unidade nacional que pudesse existir conseguia alcançar todo o território e/ou lograr total êxito em suas pretensões. Ribeiro (2000), ainda nos aponta que “uma sociedade passa por uma evolução sociocultural que consiste um processo interno de transformação e auto-superação que se gera e se desenvolve dentro das culturas, condicionado pelos enquadramentos extraculturais”, e ainda que, “as culturas são construídas e mantidas por sociedades que não existem isoladamente, mas em permanente interação umas com as outras” (p.11). Ora, se tal interação está presente em todas as sociedades, na constituição da sociedade brasileira não seria feita de forma distinta. Apesar de um governo central e de leis que buscavam reger toda população, as realidades locais, os seus costumes e práticas culturais colaboravam ou não para que tais objetivos se legitimassem. Ao compilar teorias dos autores supracitados vemos que Elias (1973) também diz que: “‘Civilização’ descreve um processo ou, pelo menos, seu resultado. Diz respeito a algo que está em movimento constante, movendo-se incessantemente ‘para a frente’ [...] Até certo ponto, o conceito de civilização minimiza as diferenças entre os povos: enfatiza o que é comum a todos os seres humanos ou – na opinião dos que o possuem – deveria sê-lo” (p.2425). Desta forma, compreendemos que a civilização torna homogêneo o momento evolutivo das nações, de maneira que ao formar um conjunto, do que antes era distinto, o caminho tende a ser o mesmo para todos. Novamente vemos a instrução escolar como fundamental neste processo. Ainda, ao citar os processos civilizatórios consideramos essencialmente os apontamentos de Ribeiro (2000), que nos dizem dos mais diferenciados processos civilizatórios que as sociedade podem passar, nesta perspectiva considera-se tanto “as consequências históricas concretas”, como “os processos socioculturais”, “as sociedade”, e os “movimentos evolutivos”. Desta forma cada um deles tem a sua singularidade e importância na vida e formação do ser humano.

i

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. História da Educação. 2ed. rev. e atual. São Paulo:

Moderna, 1996 1332

ii

MOREL, Marco; BARROS, Mariana Monteiro de. Palavra, imagem e poder: O surgimento

da imprensa no Brasil no século XIX. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

iii

RODRIGUES, Rejane Meireles Amaral. Memórias em disputa: transformando modos de

vida no sertão e na cidade. Uberlândia: 2011 (Tese Doutorado)

iv

NAGLE, Jorge. Educação e sociedade na Primeira República. São Paulo, EPU: rio de

Janeiro, Fundação Nacional do Material Escolar. 1974-1976 (reimpressão)

v

ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Trad. Ruy Jungman. Rio de Janeiro: Zahar Ed, 1994, 2v.

vi

RIBEIRO, D. O Processo Civilizatório: estudos de antropologia da civilização; etapas da

evolução sociocultural. São Paulo: Companhia das Letras; Publifolha, 2000. (Grandes nomes do pensamento brasileiro)

vii

REIS, José Carlos. A História: Entre a Filosofia e a Ciência. São Paulo: Ática, 1996.

1333

Em busca da Cor; em busca da Raça: a escrita da história e da nação na imprensa negra (1924-1937) Drando. João Paulo Lopes - UERJ

Ainda hoje, no início do século XXI, o racismo interdito, à brasileira, ou mesmo os casos escancarados, são uma característica vil da realidade da sociedade nacional. Negros e mulatos são constantemente alvo de comportamentos preconceituosos por toda a parte, seja por agentes do Estado, ou em vários espaços, como os do trabalho, na Justiça, no mass media, na imprensa, o que ajudam a fincar estereótipos nefastos e a afundar a realidade de discriminação e preconceito. Acompanha essa descrição, a exclusão social a que boa parte dos negros e mestiços do país estão submetidos, o que as estatísticas oficiais não deixam mentir. Embora ainda prevaleça a ideia no senso comum de que não existe racismo por essas bandas, fruto ainda de uma leitura muito à moda freiriana1 da sociedade brasílica de uma suposta democracia racial nos trópicos. Em retrospectiva, se fizermos uma comparação, a vida para a população descendente de africanos não deve ter sido nada fácil nos anos e primeiras décadas após a Abolição de 1888. O ranço da pecha de ex-escravos, ou filhos deles, e o racismo cada vez mais disseminado na medicina, na política, na literatura, na imprensa, na justiça, fomentaram e alimentaram uma realidade de mais exclusão e preconceito aos afordescendentes. Realidade que a liberdade do cativeiro não apagou e nem minou. A desigualdade econômica, a falta de políticas públicas para essa população

1

por parte do

O termo aqui faz referência a Gilberto Freyre e a sua obra clássica Casa-Grande e Senzala, de 1933, que é um clássico dos estudos sobre a formação da sociedade brasileira, onde embora se reconheça a violência e as desigualdades no processo, se investiu fortemente para apagar-se ou minguar os conflitos e tensões eminentes, dando muito mais ênfase a contribuição cultural do que os efeitos socioeconômicos de conformação da sociedade brasileira, desde a época colonial.

1334

Estado, a falta de escolarização e qualificação formal para o trabalho, a falta de acesso à terra, e a violência generalizada contribuíram para piorar esse quadro. No entanto, o discurso de identidade nacional brasileira foi repaginado nos 1920 e 30, sob um novo prisma e sentido: da redenção e aceitação da ideia de uma sociedade miscigenada, étnica e culturalmente, entre os descendentes de indígenas, africanos e europeus. Era um contraste frente aos discursos nacionalistas predominantes de antes que sujeitavam à camada negra e mestiça um forte teor negativo e pejorativo, baseado nas teses raciais do século XIX. O racismo científico sustentava a ideia de uma hierarquia entre supostas “raças”, o que para boa parte das cabeças pensantes do país atreladas às teses eurocêntricas relegava ao Brasil um status menor no concerto das nações. O imaginário preponderante, que adentrou as primeiras décadas do século XX, era de que somente uma política de embranquecimento biológico da população, com a introdução maciça de imigrantes europeus e o estancar da entrada de africanos que acontecia desde 1850, redimiria o país e o levaria a graus de civilização e progresso. Se observarmos bem, e baseado em farta literatura a respeito, ao longo da década de 1920 no campo da cultura e das artes, fervilhado pela inflexão que o movimento modernista e outros discursos intelectuais causam, o nacionalismo brasileiro começa a se moldar de novas características e falas. A mudança em curso se faz, paulatinamente, nos estudos e criações em que o protagonismo de mestiços e negros vai se tornando objeto importante e a regra. As várias obras artísticas, musicais e literárias do período readéquam o discurso raciológico de exclusão e queda, que lidou com os negros e mestiços do país como sinal de atraso e entrave ao completo processo civilizatório. O movimento modernista foi o aporte dessa nova tendência, mas não o único. No campo dos estudos sociais também se verificou um caminho de novas análises sobre

1335

a

população negra e mestiça do país, da valorização da sua cultura e sua contribuição na formação nacional. Mas o que a comunidade negra pensava e dizia a respeito das novas análises que traçavam e punham em xeque a nação, quando ela mesma era redimida e apreciada positivamente pelos novos paradigmas? Existia uma intelectualidade negra ou associações e organizações dirigidas por essa camada da população capaz de articular o seu ponto de vista sobre os novos discursos intelectuais e oficiais a respeito da identidade nacional durante os anos 1920 e 30? Qual o uso do discurso historiográfico para a ação política dos ativistas negros e da sua produção intelectual autônoma sobre a nação e sobre si? É possível localizarmos uma fala específica de intelectuais e ativistas negros e mulatos que conferiram o seu aval, a sua liderança e a sua ideia de nação, e da reescrita da história do país, tendo o negro como protagonista e sujeito histórico. A inflexão que imprimiram em suas análises sobre o país vai promovendo um discurso que se distanciava da visão intelectual proeminente do período republicano anterior, que tomara a hierarquização étnica e o grande contingente de negros e mestiços como o traço que tornava o Brasil refratário ao desenvolvimento e ao alcance do

processo

civilizatório de cânone europeu.2 Mesmo com o cenário de exclusão, preconceito e discriminação que reinava no país, alguns ativistas aproveitam o espaço aberto com a guinada mais democrática e positiva quanto à constituição étnica do país, para também se autonomizarem e criarem um campo intelectual propriamente negro. Faziam parte da primeira geração de negros e mestiços que nasceram no Brasil do pós-abolição, e chegavam à década de 1920 e 30 na faixa etária entre os 30 aos 40

2

As obras referenciais de Nina Rodrigues, Silvio Romero e Oliveira Vianna são o tripé das análises sociológicas e históricas que tomam o racismo científico como metodologia preferencial. Os três autores são acompanhados de muitos outros de menor quilate, mas de grande peso na produção intelectual e na formação da opinião pública da Primeira República.

1336

anos. Entre os vários nomes que tomaremos como foco desse artigo, percebemos que tiveram uma trajetória de luta contra a discriminação, a exclusão, a violência e a sujeição à persistência do preconceito pela cor da pele e pela origem de situação escrava. Nomes como os irmãos Arlindo e Isaltino Veiga dos Santos, originários do interior paulista, e fundadores da Frente Negra Brasileira em 1931. O coronel da Força Pública de Minas Gerais, o sr. Antônio Carlos que participou da rebelião tenentista de São Paulo em 1924, quando era sargento da força pública paulista, e depois se juntou e seguiu com a caravana da Coluna Prestes no interior do país. Ainda podemos levar em conta a atuação de José Correia Leite, dissidente da Frente Negra, que nos anos 30 aderiu ao socialismo e que em 1924 fundou o jornal “Clarim d”Alvorada”. Por sua expressividade e atuação junta-se ainda os nomes dos cariocas Guerreiro Ramos e José Pompílio da Hora, esse último diretor da União dos Homens de Cor, fundada em 1943. Além de também incluímos na lista dos ativistas negros que pensaram e lançaram suas análises sobre a nação e a história brasileira na imprensa negra, os pensadores Raimundo Souza Dantas, Luís Lobato e Solano Trindade (esse último também de verniz socialista), e que atuavam, a partir de São Paulo. Eram homens que pertenciam a uma camada média baixa dos centros urbanos, eram escolarizados, alguns com ensino secundário, leitores ávidos das análises sociais do período e ansiosos para intervirem na esfera pública, no rodo do embate e luta políticos contra o preconceito racial e contra a discriminação às pessoas “de cor”. Nos círculos que esses intelectuais transitavam, desde o trabalho no pequeno comércio ou no funcionalismo público, quanto nos meios militares ou nas redações dos jornais, a questão do negro no país, da sua trajetória de luta e de formação identitária, os fez levar para a arena pública de discussão e debate, se sorvendo das diversas culturas políticas em ebulição: o socialismo, o integralismo, o nacionalismo. Afora o discurso liberal que

1337

glorificava a educação e a meritocracia como caminho de promoção social e para superação individual dos negros e mestiços do país. É seguro perceber que os espaços oficiais ou laudatórios dos discursos intelectuais e políticos, não contavam com homens negros em cargos de expressão e de peso. Os locais de onde falavam esses ativistas da intelectualidade negra são espaços à margem da máquina do Estado ou dos ambientes de consagração do campo intelectual e cultural. A não ser um ou outro caso individual, a maioria não estava nas instituições culturais, nem nas faculdades, nem nas academias, tampouco na tribuna legislativa. E, poucas vezes, eram colaboradores das redações dos jornais e revistas com ampla tiragem.3 A partir dos anos 20 é possível apostarmos que houve a constituição de redes e locais de concentração de uma camada intelectual, compostos por mulatos e negros para pensar e analisar a situação da população afrodescendente no país e a situação do país. A criação de um circuito intelectual negro na região sudeste foi um ato de resistência, de enfrentamento sutil ao establishment intelectual, instalado nas academias e órgãos culturais, nas grandes editoras, nas faculdades e nas redações de jornais de grande tiragem. Mesmo esbarrando nas fragilidades do movimento, da possibilidade de malogro e das dificuldades corriqueiras que a comunidade negra vivia. Aqui compartilhamos do que lança Jacques D’Adesky “A aspiração de ser reconhecido como ser humano corresponde ao valor que chamamos de auto-estima. Ela leva os negros a desejarem libertar-se do estado de inferioridade a que foram

3

Mas não podemos esquecer essas publicações tinham linhas editoriais muitas vezes laudatórias do discurso oficial e ligada a uma visão de mundo elitista e conservadora. Consequentemente usavam do recurso à brasileira de nutrir as ideias, ora de que não existia racismo segregacionista no país aos moldes dos Estados Unidos, por exemplo, ora exaltava-se a ideia de democracia racial, que ganha fôlego ainda maior na virada dos anos 20 para o início dos anos 30. Essas atitudes permitiam e sustentavam um discurso sutilmente preconceituoso para com os negros e os mulatos, que arrefecia os movimentos contra o racismo que os ativistas que lidaremos no projeto, sentiram na pele e usaram da pena para situar-se, em contrário.

1338

relegados e desembaraçar-se das imagens depreciativas de si mesmos. Particularmente leva-os a lutar contra o racismo que representa, acima de tudo, uma negação da identidade configurada pela negação radical do valor das heranças histórica e cultural de onde advém a discriminação e a segregação.”4 Ao tentarem a organização da população afrodescendente como meio mais apropriado para a luta pelo reconhecimento de direitos e a busca por igualdade e ascensão social, desdobraram-se também na reparação ante ao passado escravagista e na luta veemente contra o racismo. Em vista da negação do poder público e de parte da elite em reconhecer qualquer reparo ou política de compensação, ou de fazer ‘vista grossa’ para as demandas e reivindicações que o movimento negro alimentava de maneira mais sistemática. A luta mais incisiva contra o racismo faz o movimento politizar-se ainda mais ao longo dos anos e na década de 1920 a discussão sobre a identidade nacional é o ponto de enlace do incipiente campo intelectual de pensadores que se reuniam e publicavam na imprensa negra. Os jornais voltados para o público negro são os espaços mais bem acabados para a construção de um discurso paralelo ao oficial ou intelectualmente predominante. 5 Nas publicações é relevante tomar nota que por elas também se permite outra visão sobre o negro: de pensadores e de formadores de opiniões, de ativistas e promotores do debate

4

D’ADESKY: 2005, p.167. Muito embora em São Paulo houvesse o maior número de publicações da imprensa negra, vemos como se organizou uma rede de intelectuais e ativistas negros na região Sudeste, incluindo os estados de São Paulo, Minas Gerais e a capital federal, entre o período que vai de meados da década de 1920 até o início do regime estado-novista. Em 1937 o movimento negro que crescia e fortalecia-se sofreu um golpe com o fechamento do governo, e o escancaramento de sua face ditadorial, que repreendeu, censurou, prendeu, exilou e baniu os movimentos sociais, como no caso do fechamento da Frente Negra Brasileira. A FNB a essa altura já havia se tornado um partido político e pretendia disputar as eleições de 1938, angariando, disputando e orientando o voto da população negra para as pautas contra o preconceito e a elevação moral do homem e mulheres negras. Não só a FNB foi fechada como diversos espaços e partidos políticos, assim como os órgãos de imprensa, que senão foram fechados sofreram cerceamento por conta da censura. As investidas da ditadura estado-novista contra o campo político e o campo intelectual também atingiram, em cheio, o incipiente movimento negro. 5

1339

intelectual. Tanto no que diz respeito ao trabalho, que é valorizado como obra de construção nacional, sob a responsabilidade da população negra ao longo dos séculos. Mas também no que tange à produção e criação da cultura, à análise do comportamento social, e da importante invenção de uma linhagem formada por ícones negros, alçados à condição de heróis nacionais, que se coadunaram na construção nacional passível de fazer parte de uma memória coletiva. A cultura política nacionalista do período passou a criar e a consolidar novas características da formação da sociedade brasileira, usando das ideias de agregação, convergência e integração étnica positiva, que tinha na mestiçagem racial e o hibridismo cultural o seu baluarte. É no cruzamento com os novos discursos e novas análises sobre a identidade nacional que os intelectuais negros promoveram e incutiram suas opiniões, envolvendo-se altivamente no debate intelectual e político daquele contexto. A análise que podemos chegar é de que muito longe de lançarem um projeto de conformação e plasmagem, que a ideia de cadinho condicionaria, as análises da imprensa negra tomaram a nação como um mosaico, em que o negro aparecia e tinha vez e voz, de forma independente e protagonista. Contudo é também um discurso difuso e plural, que ao repensar a história do país, usara da fórmula de que houve combate, violência, resistência e que não se devia calar passivamente quanto ao passado, nem o menosprezar. Pelo contrário, a sua recuperação certeira seria arma contra o preconceito persistente porque passavam ainda naquele momento. Os discursos na imprensa que os ativistas negros lançaram vão ao encontro da ideia de que a partir da história do negro no país, se deu uma singularidade formativa da sociedade em que os afrodescendentes também usaram de estratégias de sobrevivência e criatividade que os permitiu não ser mais africano em território brasileiro, desde o período colonial. O que os habilitou na construção de identidades múltiplas, que fiaram

1340

boa parte do que tinha se tornado o Brasil ao longo do tempo. A ponto de que nos anos 20 e 30 reivindicassem também a cidadania, lhes negada pelo regime republicano e o reconhecimento coletivo de que também eram nacionais, de que também eram brasileiros. E a visitação à história era um convite para que a reinvenção do discurso sobre a identidade nacional em curso também fosse a chave para a superação do preconceito e contra o racismo. Na produção do conhecimento historiográfico, a análise dos discursos que legitimam a luta pela memória e pelo passado consiste na articulação entre o aparato documental e a posição do sujeito do discurso num conjunto determinado de relações de poder, a fim de levantar, problematizar e dar sentido objetivo aos artefatos ideológicos inseridos na narrativa. Assim como conferirmos o real significado dos conceitos correntes nessa época, de igualdade, democracia e cidadania, além é claro da ideia de nação. As décadas de 1920 e 1930 são de intenso debate político e de transformações gritantes, no Brasil e no mundo. Os sentidos por trás dos conceitos acionados na imprensa negra, na luta contra o racismo e na consolidação de uma identidade coletiva, também se plasmam ao contexto e são flexíveis. Para narrar a história da experiência social dos negros e atribuir-lhe de sentido, os conceitos são acionados e amarrados numa narrativa que requer reconhecimento e verossimilhança com o passado ocorrido. Os produtores dos discursos veiculados pela imprensa negra partiam da sua experiência, do passado recente que ainda fervilhava as expectativas e a realidade da população negra e mestiça no país, procurando dar sentido e buscar a adesão. Reinhart Kosselleck lembra-nos que se a vida humana é constituída de experiências, os conceitos são necessários para poder acumulá-las vitalmente, tanto na nossa linguagem quanto no nosso comportamento. E mais: os conceitos na sua metamorfose são passíveis de estimular a mudança.

1341

“[…] En el mismo instante en que desplazamos nuestra atención de esta disposición general del ser humano al contenido de los conceptos, a las experiencias concretas y reales captadas mediante conceptos, cuando las experiencias se integran en estos linguisticamente, en esse momento comienzan los cambios.”6

Nesse movimento, na análise dos discursos produzidos pelos ativistas e intelectuais negros dos anos 20 e 30 do século passado, precisamos considerá-las no interior dos conjuntos de representações coletivas em que se inscrevem e que as tornam possíveis na busca do reconhecimento dos negros enquanto grupo social distinto e como uma etnia contributiva à formação nacional. Mas também como produtora do enredo histórico de conformação da sociedade brasileira. E, na medida em que aqui se trata de realizar a análise de discursos sobre o exercício do fazer político, é importante considerar as matrizes coletivas de valores e conceitos por meio dos quais os sujeitos acionaram e deram significados à memória que se pretendia coletiva. No exame dos jornais da imprensa negra a análise dos mecanismos de ação pedagógica e persuasão que os artigos de jornais elegidos leva a entendê-los como instrumentos fundamentais que os ativistas usaram para a construção própria do pensamento nacionalista e da tomada da história como discurso de afirmação da nacionalidade e da identidade nos negros e mulatos. Interessante tomar nota que os recursos discursivo-ideológicos adotados por esses sujeitos foram usados como arma simbólica, ora na contramão, ora na conformação, do discurso oficial sobre a identidade nacional. Assim, também promoveram e se sorveram da discussão sobre o tema,

6

KOSSELECK, Reinhart. Historia de los conceptos y conceptos de historia. In: Historia de conceptos: estudios sobre semantica y pragmática del lenguaje politico y social. Madrid: Editora Trota, 2012. pp. 30.

1342

inserindo e valorizando a cultura negra e a história da população afrodescendente na formação do povo brasileiro, de maneira protagonista e autônoma. Ao falarmos em uma cultura política dos anos 20 e 30, encampada e costurada pelos ativistas negros no Brasil, veremos que uma pluralidade de matizes políticas que se enfrentavam e concorriam. E por vezes também coexistiam e se confundiam. No caso dos pensadores negros e mestiços, a operação que fizeram se deu na evocação de um passado a ser revisto, habilitando à história brasileira personalidades afrodescendentes que são alçadas ao posto de heróis nacionais. Nesse ponto é importante lembrar o esforço que se fez para alçar e perpetuar lideranças negras ao papel de heróis nacionais. Como Luiz Gama colocado no posto de expressão maior da raça negra, “que aparece aos pósteros como um vulto singular de lutador,

intrépido,

enérgico,

clarividente,

bravo

e

generoso,

que

amava

apaixonadamente as plagas auríferas de Cabral, sem escravos(...)”7 quando até mesmo se promoveu uma campanha para a construção e inauguração de uma estátua em sua homenagem entre o ano de 1931 e 1932, no Rio de Janeiro. Ou a celebração do provável 270⁰ aniversário da morte de um dos líderes da Insurreição Pernambucana do século XVII, Henrique Dias, em que o artigo em sua homenagem deixa esclarecer o intuito da empreitada: “Seria indespensável, sempre para uma nação conhecer os seus maiores para bem construir no presente e preparar para o futuro. São estas, porém, ideas que povoam, no nosso paiz, limitadíssimo número de cérebros. Um dos brasileiros que, honrou o Brasil e enalteceu a sua raça, dentro das suas atividades foi sem duvida o grande guerreiro Henrique Dias.

7

“Em novembro, lança-se a primeira pedra do monumento, que resgatará parte do quanto o Brasil deve a um abolicionista negro” - – Jornal Progresso. 20.09.1931. Anno IV, n.40, p.01

1343

Este valente cabo de guerra, negro, conseguio com seus homens, expulsar do solo da Patria, os invasores, hollandezes. […] Hoje, transcorre o 270º anniversario de nascimento de Henrique Dias”8 Sob o interesse de promoção de uma linhagem de homens negros de vulto para a história nacional que serviriam como mirantes de comportamento e honradez, ainda são lembrados vários outros como José do Patrocínio e João Alfredo, Cruz e Sousa, e negros e mulatos desconhecidos da história oficial, mas recuperados nessas empreitadas de pretensão nacionalista. Também o samba e a capoeira foram promovidos sob um ponto de vista original e positivo como as principais contribuições da cultura negra à alma nacional. O interessante também é notar quais as outras personalidades negras foram pôstas de lado ou negligenciadas. Qual a representação de negro que se queria alimentar e explorar? De quais períodos? De quais áreas profisisonais ou regiões geográficas? Mas o esforço vai ao encontro das expectativas sociais e intelectuais da promoção positiva de uma nação etnicamente plural, na expectativa da redenção dos negros a um projeto de nação inclusivo e justo. Essas foram as armas que a imprensa negra usou e empunhou. Stuart Hall lembra que “As culturas nacionais são compostas não apenas de instituições culturais, mas também de símbolos e representações. Uma cultura nacional é um discurso - um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos (...). As culturas nacionais, 8

Henrique Dias” - – Jornal Progresso. 30.08.1931. Anno IV, n.39, p.02.

1344

ao

produzir sentidos sobre “a nação", sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem identidades. Esses sentidos estão contidos nas estórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com seu passado

e

imagens que dela são construídas.”9 A produção dos discursos identitários negros tentam conectar o passado com o futuro pelo enlace renovado da ideia de nação, o qual os negros são incluídos, aceitos e partícipes da construção da sociedade nacional. Fomentar e costurar os discursos de validação positiva da trajetória dos africanos e descendentes no Brasil, passou a ser, portanto, uma importante ação política do movimento negro nesse período. Ficar alheio a esse processo foi coisa que os grupos intelectuais formados por negros e mulatos não mais queriam, e agir pela pena para mudar o quadro de desrespeito e preconceito com que eram tratados era a forma com a qual partiram para a luta política e o convencimento. A cultura política nacionalista, como outras do mundo moderno, deixou suas marcas e efeitos que podem ser consideravelmente tratados à luz da análise dos símbolos, dos comportamentos, dos discursos, das noções acerca do mundo, da construção de expectativas lançadas ao futuro, e na recuperação seletiva do passado. A partir da ação política e intelectual de certos homens, a precisão de um estatuto de verdades compartilhado pelos seus seguidores, a definição de padrões sociais a serem seguidos e outros a serem contestados e a produção e promoção de um efeito duradouro e permanente das noções estandardizadas, o que é próprio da cultura nacionalista. O que Serge Berstein nos assegura como vital para a ocorrência e a sustentabilidade de experiências políticas que não hibernavam mais no restrito espaço da

9

[STUART HALL: 2003, p.44]

1345

política

institucional. E se formos além, nem eram mais exclusividade de setores intelectuais já consagrados e detentores da chave de entendimento do que fosse o Brasil. BIBLIOGRAFIA ALMOND, G; VERBA, S. The civic culture: political attitudes and democracy in five nations. Princeton, EUA: Princeton University Press, 1989. ANDERSON, Benedict. Nação e Consciência Nacional. São Paulo: Ática, 1989.. BERSTEIN, Serge. “A Cultura Política”. In: RIOUX, Jean-Pierre; SIRINELLI, JeanFrançois (org.). Por uma história cultural. Lisboa: Estampa, 1998. pp. 13-36. D’ADESKY, Jacques. Pluralismo étnico e multiculturalismo: racismos e antirracismos no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Pallas, 2005. DE CERTEAU, Michel. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. DUTRA. Eliana. História e Culturas Políticas: definições, usos, genealogias. Varia História: n.º 28, Belo Horizonte, 2001. pp. 13-28. GELLNER, Ernest. Nações e Nacionalismos. Lisboa: Gradiva, 1993. GONÇALVES, Luiz Alberto de Oliveira. “Os movimentos negros no Brasil: construindo atores sociopolíticos”. Revista Brasileira de Educação, n. 9, São Paulo, 1998. pp. 30-50. KOSELLECK, Reinhart. Historia de los conceptos y conceptos de historia. In: Historia de conceptos: estudios sobre semantica y pragmática del lenguaje politico y social. Madrid: Editora Trota, 2012. pp. 27-43. MOTTA. Rodrigo Patto Sá, Desafios na apropriação de cultura política pela historiografia. In: Culturas Políticas na História: Novos Estudos. Belo Horizonte: Argumentum, 2009. pp. 13-37. PEDERSEN, Susan. O que é a história política hoje? In: CANNADINE, David. O que é a história hoje? Lisboa: Gradiva, 2006. pp. 61-84. REMOND, René. Por uma História política. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2003. RIOUX, Jean-Pierre; SIRINELLI, Jean-François (org.). Por uma história cultural. Lisboa: Estampa, 1998. ROSANVALLON, Pierre. Por uma história conceitual do político. São

Paulo:

Alameda Casa Editorial, 2010. SANTOS, Joel Rufino. “O Movimento negro e a crise brasileira”. Política e Administração. Rio de Janeiro. v.2, n.2 , jul./set. 1985. pp.287-307. 1346

SCHIAVINATTO, Iara. “Henri Berr, a história como vida e valor.” In: Revista da ANPUH, vol. 13, n.o 25,26. São Paulo, 1993. pp. 105-120. STUART HALL, J. As culturas nacionais como comunidades imaginadas. In: A identidade cultural na pós-modernidade. São Paulo: DP&A Editora, 2003, pp. 47 a 63.

1347

O ESTUDO DA GUERRA EM UMA PERSPECTIVA CONCEITUAL João Victor da Mota Uzer Lima Mestrando Bolsista (CAPES) Programa de pós-graduação em História Social UERJ Orientadora: Maria Letícia Corrêa Coorientador: Rafael Vaz da Motta Brandão [email protected]

RESUMO

A História constantemente volta-se para as guerras analisando seus efeitos sociais, culturais, econômicos ou demográficos, poucos são aqueles que veem na guerra um fenômeno complexo, cujas origens e mecanismos de aplicação são variáveis no tempo e inevitavelmente arraigadas na sociedade. Sendo a “guerra” um conceito básico, o estudo conceitual possibilita a compreensão de sua aplicação nos discursos, analisando os efeitos sociais que tornaram possível as ressignificações refletidas nas esferas políticas, literárias, na imprensa e em outros meios de comunicação social

Palavras Chave: Guerra, História Militar, História dos Conceitos

ABSTRACT Historians frequently study "wars" to understand its social, economic, cultural or demographic effects, few are those who comprehend "wars" as a complex phenomenon whose bases and ways are directly linked to society traditions. The conceptual study allow us to comprehend the meaning of a concept and the social effects that makes its reinterpretation possible. So, it's possible to study the way a society understand "war", by the speeches about it on politic, literature, media and other social communications.

Keywords: War, Military History, History of Concepts

1348

I – CONSIDERAÇÕES SOBRE A HISTORIOGRAFIA ACERCA DA GUERRA O que é a “guerra”? Eis uma pergunta que até hoje carece de resposta. As tentativas de responder tal questão são muitas, muitas teorias buscam trabalhar a origem e a dinâmica da guerra nas áreas da antropologia, psicologia, filosofia, política, relações internacionais, estudos militares, história, geografia, entre outras áreas de conhecimento humano em diversas épocas diferentes. Tal efeito demonstra apenas que o conceito de “guerra” não pode ser tomado como um conceito absoluto, embora a guerra seja praticada por toda a história, é feita de forma distinta por sociedades distintas, sejam elas contemporâneas ou não. A “guerra”, assim como o discurso sobre, deve ser encarada como uma “estrutura histórica dinâmica no tempo das civilizações, como outras estruturas históricas de investigação definidas pelos historiadores, tais como a economia, a cultura, a religião, o direito, dentre outras” 1, ou seja, a pergunta inicial não pode ser respondida de forma simplista e automática2. Na introdução do livro “história das Guerras” o sociólogo Demétrio Magnoli afirma: “É evidente que navios a remo e muralhas de pedra não funcionam mais para atacar ou defender cidades, como na Guerra do Peloponeso, na Grécia Antiga: conflitos recentes, como a Guerra do Golfo, contaram com armamento sofisticado e a mais moderna tecnologia da informação. O que elas têm em comum, assim como todos os embates apresentados neste livro, é o fato de terem promovido mudanças fundamentais na trajetória da humanidade”3

De fato, a “Guerra” é tão antiga quanto o homem, antecedendo até a criação das sociedades complexas e a sua dinâmica e relação com a sociedade é tamanha que não seria errado afirmar que “não é só o ‘meio de produção’ que forma as sociedades humanas, mas os ‘meios de destruição’”4 também. Ou seja, a forma como uma sociedade guerreia ou entende “guerra”, diz tanto sobre ela quanto o meio de produção. Na teologia cristã, por exemplo, a “guerra” era apresentada com uma prática pecaminosa e, portanto, desencorajada, a menos que pudesse representar uma cruzada, ou seja, uma “guerra santa”, sendo então justificada 5. O impacto que a cultura militar japonesa sofreu com o contato com a arma de fogo, e a sua dificuldade em aceitá-la, foi tamanha que, embora tenham sido de grande importância para a unificação do Japão e para a implementação do Xogunato Tokugawa, em meados do século XV, o uso de arma de fogo já estava quase extinto no final do século XVII. Somente em meados do século XIX os japoneses voltaram a pegar em armas de fogo 6. Esses quatro séculos que a cultura japonesa demorou em absorver o armamento evidencia a força que o militarismo exerce em

1349

uma sociedade, o fim da honraria da guerra e do poder do samurai exerceu uma mudança drástica não só na guerra como prática, mas também na sociedade. Por muito tempo, o estudo do campo militar fora tomado como pertencente ao campo da História Política – ou da “História Tradicional” – tomando como elemento desta história o estudo dos generais, da participação das forças militares no exercício do poder, o estudo das grandes batalhas entre outras abordagens renegadas pela primeira geração dos Annales. Desta forma, a história política – e consequentemente a história militar nela embutida – adquiriu um status de ultrapassada, sendo tomada como sinônimo de “história tradicional descritiva” em contraposição a uma “história crítica” ou “história problema”. Nesta conjuntura, a “história militar” – adotada por intelectuais militares – tomou um caráter instrumental, ou seja, tinha como função o relato do passado a fim de instruir novos cadetes ou novos oficiais, facilitando a compreensão de conceitos militares em uma função didática,7 “Para o militar, principalmente, a Historia representa uma base ampla, uma gama de experiência à qual se pode recorrer para a cultura e para o desenvolvimento individual. Como fonte de sabedoria e de inspiração e como um registro de linhas de ação alternativas, a História propicia um interesse adicional para os militares.”8

A História Militar, que se restringiu aos estudiosos militares, ganha um caráter mais técnico, devido à aproximação destes estudiosos aos arquivos e costumes militares, enquanto, os estudos da guerra quanto conflito – que antes fora campo da História Política Tradicional – era gradativamente substituído na academia pela história constitucional e diplomática 9, distanciando-se dos conflitos e abordando, sobretudo, as condições que promoviam as guerras ou as conjunturas socioculturais ou econômicas resultantes de conflitos, o que acentuou ainda mais disparidade entre a História Militar, usada por militares como técnica de ensino, e a História Diplomática, sendo esta última uma história acadêmica acerca dos conflitos e leis presentes na esfera política e na formação nacional. Neste ponto, o historiador não militar que desenvolvesse algum interesse pela História Militar era visto com desconfiança pelos militares historiadores, já que primeiro não partilharia dos conhecimentos técnicos necessários para o desenvolvimento de uma história mais “técnica”, ou seja, não possuía uma “’Cultura’ Militar”, por outro lado, o militar pesquisador – ou seja, o militar de carreira – que tivesse interesse em ingressar na historiografia acadêmica sofreria resistência, pois não partilharia das normas científicas e institucionalizadas pela academia no fazer história, ou seja, em ambas as situações, haveria a dicotomia entre o profissional e o amador10

1350

Tal concepção só veio a ser desfeita, aproximadamente, nos finais dos anos 70 com a incorporação da antropologia e com a criação do pensamento de “política como representação social” que caracterizou a renovação da História Política e a fundação de uma “Nova História Política” em uma contraposição a uma “História Política Tradicional”.11 Com estudo das ciências políticas, houve então a apropriação do conceito de cultura por esta ciência, desenvolvendo o conceito de “Cultura Política”, que por sua vez viria denominar um conjunto de normas, crenças e atitudes difundidas pelos membros de uma unidade social, tendo como objeto fenômenos políticos12, esta definição de cultura política foi um dos fatores que proporcionou a história os meios para a renovação da história política, que compreenderia o “político” como uma instância de representação social, preocupando-se com as práticas e representações, e atentando-se para as reconstruções dos contextos históricos. Portanto, somente recentemente que os historiadores voltaram-se para o estudo das guerras ou de elementos militares, em uma perspectiva política ou social, sem sofrer qualquer tipo de resistência, possibilitando a apropriação de conceitos da sociologia e antropologia para a análise histórica de um fenômeno tão complexo quanto a “guerra”, que, sendo uma constante na história da humanidade leva a afirmações como “o estudo da guerra é também o estudo do livre arbítrio do homem”13 ou “a história das guerras é, sobretudo, a história do gênio humano aplicado à destruição”14 II – O ESTUDO DA GUERRA A “guerra” é tão antiga quanto o homem, alguns teóricos postulam a existência da guerra mesmo antes da existência de sociedades humanas, em um fenômeno denominado de “guerra natural”. A palavra “guerra” do Latim “Bellum” derivado de “Duellum”, que por sua vez, deriva de “duo”, exprimindo, etimologicamente, uma ideia de separação em dois. Do Grego “Po’lemoc”, expressa uma ideia de multidão, no grego antigo, “Lu’h”, implica em uma “Desunião – ou desentendimento – de pensamentos” ou “o'h Term Du”, que significa dissolução duas “Partes do Corpo”,15 ou seja, em sua etimologia a palavra “guerra” apresenta uma noção de separação. Na filosofia antiga, a guerra por vezes era compreendida por ter um “valor cósmico”, como em “Heráclito, que chamou a guerra de ‘mãe e rainha de todas as coisas’”, ou Empédocles, que via a “Amizade (ou Amor), como força que une os elementos constitutivos do mundo, pôs o Ódio ou a Discórdia que tende a desuni-los”16, sendo os últimos resultados de “Lu’h”. Quincy Wright firma que a violência é comumente considerada

1351

como sinônimo de desordem e injustiça e que ambas estão eliminada da comunidade legal ideal. “O conceito moderno de guerra inclui tanto o conceito de lei quanto o de violência” 17, de forma que a legalidade da guerra tenha sido discutida desde filósofos gregos e cristãos da idade média a juristas contemporâneos a fim de definir – não só “o que é guerra”, mas também – “com quem pode-se fazer guerra?” para definir a “guerra justa”. A ideia de “guerra” é frequentemente associada à ideia de “violência”, o que – nos anos setenta – levou a conjectura de diversas teorias acerca da origem da guerra na violência humana. Uma abordagem que tange os estudos biológicos buscava, nas noções de seleção natural de Darwin, uma apropriação do Darwinismo Social para explicar a origem das guerras na violência humana, alegando que “todo grupo humano tem a característica tendência natural de defender-se contra estranhos e até mesmo a declarando-lhes hostis”18 ou seja, a “guerra” – sendo “guerra” um confronto violento – seria um reflexo da violência proporcionada pelo instinto de sobrevivência e de autopreservação humana. Os Etnógrafos acreditavam que o homem herdou seus instintos agressivos do reino animal e de seus ancestrais, que na natureza exerciam funções onde a violência era necessária, como caça ou proteção dos assentamentos19. Durante o Ano Internacional da Paz da UNESCO, em 1986, uma conferência internacional de naturalistas e cientistas sociais buscavam desconstruir a noção de que a Biologia “condenava a humanidade a guerra” e elaboraram um manifesto afirmando que: alegar que o homem herdou de seus ancestrais animais a tendência de travar guerras; dizer que a guerra ou qualquer comportamento violento sejam reflexos genéticos; ou, afirmar que na evolução humana houve uma seleção em favor do comportamento violento, é cientificamente incorreto20. A concepção clássica de guerra diz respeito a um conflito entre iguais, entre duas “castas militares”, que partilham de uma ética militar. Mesmo antes das sociedades modernas, e de um Estado de direitos, a existência de uma “casta militar” se fazia presente, vide os Zulus na África, que possuíam uma sociedade extremamente militarizada ou os Samurais no Japão, nestes casos, firma John Keegan, a guerra era cultural e muitas vezes moldava a sociedade. Com o iluminismo houve a necessidade de racionalizar a guerra, o que deu origem a definição que é utilizada até os dias atuais de guerra como “continuação da política por outros meios”21 de Carl Von Clausewitz. Com o fim da Segunda Guerra Mundial e com o início da Guerra Fria, e da paranoia nuclear, o militarismo entra em decadência e tem-se a origem de movimentos pacifistas como o movimento Hippie, na década de 6022. Dos anos 80 para cá, a

1352

ideia de guerra ganha uma conotação de luta, mas não de violência, esta tende a ser abandonada do discurso, o que dá origem a expressões como “exército da paz”. Aqui, o Regimento, que antes era o coração do exército e por tanto a máquina que move uma guerra – na concepção clausewitziana – agora é usado como instrumentos da paz, mesmo que estes possam ser usados de forma ilusória, à utilização semântica existe, portanto há, ao menos, a tentativa de vender esta imagem. John Keegan argumenta que a “guerra” é tão antiga quanto o homem, mas o estado não, o que desconstrói a noção Clausewitziana de “guerra” como continuação da política por outros meios23, noção esta que implica, indispensavelmente, na existência de uma negociação entre dois Estados, portanto, para Keegan, a guerra se caracteriza sobre tudo como um fenômeno cultural, em algumas sociedades como fenômeno principal.24 O fenômeno da “guerra” é uma constante na história da humanidade e, independente de sua vertente interpretativa – seja cultural, biológica, sociológica, psicológica, jurista, econômica, demográfica, social, entre outras – é constantemente representada na literatura, nas artes em geral e nos discursos, afinal, assim como a cultura, a economia, o direito, e outros, a “guerra” é um fenômeno que tanto influencia a sociedade como é influenciado por ela. II – A ABORDAGEM CONCEITUAL O estudo de um conceito possibilita o estudo da sociedade, uma vez que a ressignificação de um conceito se dá por uma contextualização específica, fazendo com que a análise de um conceito exija a sua contextualização linguística assim como a não linguística 25, ou seja, social, de seu locutor, compreender como um conceito é circulado na sociedade possibilita observar as mudanças das conjunturas que legitimam esta ressignificação. Sendo assim, o estudo dos conceitos só é possível através da história social, e a história social é auxiliada pelos estudos dos conceitos, como afirmou Koselleck.26 Podem-se destacar os conceitos sociais e políticos em três grandes grupos: 1) Conceitos tradicionais cujo significado persiste em partes; como “Democracia” 2) conceitos cujo significado tenha mudado de tão forma drástica que, mesmo com a permanência da mesma palavra, uma comparação se torna difícil; como “Revolução” e 3) Os neologismos, palavras criadas para causar impacto e novidade, como “fascismo” ou “comunismo”27. Uma vez que os conceitos não variam, unicamente, de acordo com seu campo semântico, mas também de acordo com as conjunturas temporais embutidos em si, os

1353

conceitos

evidenciam uma possível continuidade ou descontinuidade histórica social refletidas na linguagem, fazendo com que o conceito carregue em si “uma referência ao intervalo de tempo que ele projeta”28 destacando, no estudo dos conceitos e da história conceitual, a noção de “faixas temporais”. Ou seja, independente de sua origem, um conceito acumula vários significados conforme é apropriado por diferentes comunidades, evidenciado não somente a mudança espacial linguística – como traduções e afins – mas mudanças históricas temporais, e, uma vez que esta segunda se dá devido a mudanças sociais, pode-se compreender um conceito a partir da época em que foi cunhado ou ressignificado, assim como o caminho oposto é viável, sendo então possível compreender um período histórico a partir da forma como este se apropria de um determinado conceito. Mesmo os conceitos “novos” criados propositalmente para causar algum tipo de impacto, necessitam de uma mínima coerência para obter alguma aprovação, logo, o autor precisa voltar-se para o vocabulário já estabelecido da linguagem buscando “um mínimo de consenso” na utilização de um termo, de forma que, mesmo “novo”, um conceito só possa ser compreendido por algum traço já recorrente na linguagem da sociedade29. Embora um conceito seja definido como um “significante” com múltiplos “significados”, ou seja, uma palavra munida de várias interpretações fazendo com que esta única palavra expresse diversas ideias distintas, todas essas ideias partilham uma estrutura em comum, geralmente reconhecível por um estudo etimológico. Os conceitos básicos são sempre os pivôs em que os argumentos giram e são caracterizados por serem, quase sempre, controversos, uma vez que combinam experiências e expectativas multiformes. Sendo o centro em que os argumentos se apoiam, tornam-se disputados e apropriados de formas distintas por pensadores, políticos e afins, para justificar seus argumentos, o que evidencia como os conceitos básicos são essenciais para a formulação de qualquer tema de um determinado tempo30. O termo “Guerra” implementado em expressões como “Guerra do Vietnã” ou “Guerra entre facções”, por exemplo, carrega uma conotação distinta da implementada na noção de “Guerra ao terror” ou “guerra ao tráfico”. No primeiro exemplo, a palavra representa um evento, enquanto no segundo, representa uma política. As duas primeiras expressões fazem referência a um acontecimento; um em âmbito internacional ou nacional, que, embora seja de construções diferentes, ou seja, conjunturas e formas de ações diferentes, representam um mesmo significado: “um conflito”. O segundo faz

1354

referência não a um conflito com inimigos opostos e declarados, mas sim a uma política, um conjunto de práticas estatais, no entanto, ambas as expressões utilizam-se da mesma palavra. Portanto, sendo a “guerra” um conceito básico, praticar um estudo conceitual da “guerra” aproxima-se de um estudo dos discursos, mas sem negligenciar o estudo da dinâmica da sociedade onde este discurso se insere, e mesmo a dinâmica da sociedade em que o discurso foi elaborado, afinal, os conceitos são englobados pelo léxico da sociedade lentamente, sem necessariamente ser contemporâneos aos fenômenos as quais se referem 31. Nesta concepção, o estuda da “guerra” em uma perspectiva conceitual não se preocupa, unicamente, em compreender as dinâmicas das guerras com o passar dos anos – em suas campanhas militares, em seus avanços técnicos e bélicos ou com seus efeitos socioculturais –, mas sim em como a “guerra” é entendida pelas sociedades civis em diferentes tempos históricos. Uma análise que prioriza pelo estudo conceitual da “guerra” em uma perspectiva política, deve trabalhá-la como um conceito articulado em um vocabulário político. “O objetivo da história conceitual do político é a compreensão da formação e evolução das racionalidades políticas, ou seja, dos sistemas de representações que comandam a maneira pela qual uma época, um país ou grupos sociais conduzem sua ação, encaram seu futuro.”32

O estudo acerca do “político” de Pierre Rosanvallon pode ser compreendido em duas fases: a primeira em um estudo do funcionamento e dos problemas das instituições eleitorais e de representação; e a segunda em uma análise da constituição de um “universo de desconfiança”, estando a primeira “mais atenta ao fenômeno discursivo e ao vocabulário político existente em um determinado período” e a segunda com “o estudo das práticas políticas e de estratégias existentes na ‘sociedade civil’”33. Ou seja, uma abordagem Político Conceitual da “guerra” preocupando-se em analisar a forma como o conceito de “guerra” fora compreendido e utilizado pelos discursos, tratados e escrituras políticas, ou mesmo na literatura acerca do político de um determinado recorte histórico, a fim de analisar como o discurso acerca da “guerra” era usado como “estratégia política”, em um exercício que se aproxima ao feito pela história dos pensamentos políticos, do enfoque Collingwoodiano, em um estudo das “ideias em contexto”. Quentin Skinner, fundador da corrente conhecida como “ideias em contexto”, acreditava que a análise de uma sentença deveria ceder lugar à análise “do ato de fala, do uso da linguagem em determinado contexto”34 e de seus fins, de acordo com as normas linguísticas do contexto em que a sentença se inseriria. Embora tenha descartado que o “resgate da

1355

intenção” do autor devesse ser a principal preocupação do historiador – já que “há intenções e significados que, por ausência de informação contextual, não podem ser recuperados.”35 –, Skinner afirmou que a história da teoria política deveria ser compreendida como uma “história de ideologias”, compreendendo os “papéis diversos desempenhados por fatores intelectuais na vida política”, o que por sua vez abriria “caminho para o estabelecimento de conexões entre o mundo da ideologia e da ação política”36, o que proporcionaria ao estudioso a possibilidade de entender um determinado texto – seja ele um tratado ou outra escritura política – da forma como ele fazia sentido para seu escritor e para o seu leitor contemporâneo. Desta forma, pensar a “guerra” quanto “conceito político” é também pensar o seu uso em uma “cultura política” – sendo esta uma conjuntura de elementos incluindo: tecnologias, crenças e práticas religiosas, conjunto de normas, entre outros – de uma época específica, atentando-se para a forma como o conceito fora utilizado nos discursos político, observando não somente os seus significados – o que por sua vez exige a contextualização do conceito de “guerra” adotado pela sociedade ou época em questão –, mas também a sua coerência dentro dos discursos e efeitos práticos dentro da esfera política. Evidente que uma análise puramente “político conceitual” acerca da “guerra” não esgota as possibilidades interpretativas do fenômeno, nem mesmo do conceito, tal analise apresenta apenas mais uma chave interpretativa, dialogando com as noções geopolíticas, legais, militares, sociais e mesmo culturais que o conceito de “guerra” adquiriu com o passar dos anos, que eventualmente são refletidas nos discursos políticos ou na literatura. Os conceitos, seus “nascimentos” e ressignificações, são frutos dos recortes temporais que percorrem e são indissociáveis da linguagem. São resultados das representações feitas pelos atores das construções e ressignificações deles (no caso de conceitos básicos presentes nos debates políticos). Portanto, embora seja impossível remeter-se à intenção do autor na elaboração de um argumento e conceitualização, é possível indagar as representações que determinado autor realizou do fenômeno conceituado (significante e significado), contextualizando a obra escrita e o desenvolvimento da mesma. Mais que uma série de batalhas ou um desastre, a guerra é um fenômeno sociocultural recorrente, e a forma como determinadas sociedades ou grupos compreendem, praticam e aplicam este conceito nos discursos políticos nos permite compreender os acontecimentos sociais que levaram esta sociedade a construir este conceito, assim como observar o seu uso – seja como conceito ou como prática – na disputa pelo poder.

1356

1 PARENTE, Paulo André Pereira. A Construção de uma nova história militar. In: Revista Brasileira de História Militar. Ano I. Dezembro de 2009, p. 3. 2 KEEGAN, John. Uma História da Guerra. Tradução Pedro Maia Soares, São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 492 3 MAGNOLI, Demétrio. (org) História das Guerras. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2006, p. 7. 4 EHRENREICH. Barbara. Ritos de Sangue: um estudo sobre as origens da guerra. Trad. Beatriz Horta. Rio de Janeiro: Record. 2000, p. 149. 5 KEEGAN, John. A Face da Batalha. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 2000, p. 48. 6 KEEGAN, John. Op. Cit. 2006, p. 71. 7 PEDROSA, Fernando Velôzo Gomes. A história militar tradicional e a “nova História Militar” in: Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH,. São Paulo, julho 2011., p. 4. 8 MATLOFF, Maurice. A Natureza e o Âmbito da História Militar. In: WEIGLEY, Russel. Novas Dimensões da História Militar. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1981, p. 427. 9 MACUSO, Amanda Pinheiro. A História Militar, nota sobre o desenvolvimento do campo e a contribuição da História Cultural. In: Revista História em Reflexão: Vol. 2 n. 4 – UFGD – dourados jul/dez, 2008, p. 4. 10 Ibidem, p. 8. 11 FALCON, Francisco. História e Poder. In: CARDOSO, CIRO; VAINFAS, Ronaldo (org). Domínios da História, ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 68 – 74. 12 BOBBIO, Norberto; MATTUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Trad. Carmen Varriale. Brasília: Editora Universidade de Brasília/Linha Gráfica, 1991. Vol.1, p. 306 13 KEEGAN. John. Op. Cit. 2000, p. 59 14 MAGNOLI, Demétrio, Op. Cit, p. 27. 15 GROTIUS, Hugo. The Right of War and Peace. Book I. Liberty Fund, Inc. Indianapolis, Indiana. 2005. p. 135 16 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Trad. Alfredo Bossi. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 492 17 WRIGHT, Quincy. A Guerra; tradução Delcy Doubrawa. Rio de Janeiro: Biblioteca do exército, 1988. p. 147 18 DAWSON, Doyne. As Origens da Guerra no Ocidente: militarismo e moralidade no mundo antigo: tradução José Lívio Dantas – Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Ed. 1999, p. 44 19 LIDER, Julia. Da Natureza da Guerra: tradução Delcy Doubrawa. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Ed. 1987, p. 17 20 DAWSON, Doyne. Op. Cit. p.. 42 – 43 21 CLAUSEWITZ. Carl. Von. Da Guerra. Trad. CMG Luiz Carlo Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 97. 22 KEEGAN, John. Op. Cit, 2006, p. 75 -80 23 CLAUSEWITZ. Carl. Von. Op. Cit, p. 97. 24 KEEGAN. John. op. Cit. 2006, p. 493 25 Ibidem, p. 104. 26 KOSELLECK, Reinhard. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006, p. 62. 27 JASMIN, Marcelo Gantus e FERES JUNIOR, João. História dos conceitos: dois momentos de um encontro in: JASMIN. Marcelo Gantus; FERES JUNIOR. João. (org) História dos Conceitos: debates e perspectivas. Rio de Janeiro: editora PUC-Rio, Edições Loyola. 2006, p. 28 28 MOTZKIN, Gabriel. A instuição de Koselleck acerca do tempo na história. in: JASMIN. Marcelo Gantus; FERES JUNIOR. João. (org) Op. Cit. p; 77. 29 KOSELLECK, Reinhart. Uma resposta aos comentários sobre o Geschichtliche Grundbegriffe. in: JASMIN. Marcelo Gantus; FERES JUNIOR. João. (org) Op. Cit. p. 102 30 Ibidem, p. 103 31 Ibidem, p. 105 32 ROSANVALLON. Perre. Por uma História conceitual do político. In: Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 15, nº 30. 1995, p 16

1357

33

OLIVEIRA JUNIOR. Carlos Mauro de. História política e história dos conceitos: um estudo sobre o “político” em Pierre Rosanvallon e Marcel Gauchet. In: história da historiografia. Ouro preto. Número 9. Agosto. 2012. Pag. 169 34 JASMIN, Marcelo Gantus. História dos Conceitos e Teoria Política e Social. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol. 20, nº 57. Fevereiro de 2005, p. 28. 35 Ibidem, p. 31 36 SKINNER, Quentin. Some problems in the analysis of political thought and action. In: Political Theory 2 (3). 1974, p. 280

1358

MÍDIAS NA EDUCAÇÃO E LETRAMENTO DIGITAL: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS. Autora: Joiciele Rezende Costa Mestranda em Ciências Humanas pela UFVJMi [email protected] Orientadora: Prof. Dra. Elayne de Moura Braga [email protected]

Resumo: As mídias já fazem parte do nosso dia-a-dia. Vivemos na chamada “sociedade da informação”, onde as tecnologias digitais são recursos para trabalho, interação social, lazer e educação. Nesta perspectiva, este trabalho ressalta alguns fatores importantes na relação sociedade-educação-tecnologias como: letramento digital, formação de professores e os novos tempos na infância e juventude. O projeto “Mídias na Educação” é apresentado como um exemplo dos incentivos para o diálogo mídias-educação, seguido pelo estudo de caso da Universidade Estadual UNIMONTES, Montes Claros/MG.

Palavras Chave: Tecnologias. Educação. Sociedade. Abstract: The media are already part of our day-to-day. We live in the "information society", where digital technologies are resources for work, social interaction, leisure and education. In this perspective, this paper highlights some important factors in the relationship between society and education-technologies such as digital literacy, teacher training and new times in childhood and youth. The project "Media in Education" is presented as an example of incentives for media-education dialogue, followed by the case study of the State University UNIMONTES, Montes Claros / MG. Keywords: Technologies. Education. Society.

1. Mídias na educação e letramento digital. É sabido que o conteúdo do saber está em constante progresso, devendo o professor atualizar-se e renovar constantemente o seu ensino. Oliveira (1988) sobrepõe que hoje o processo de aprendizagem não se resume mais na transmissão de conhecimentos, via explicação de matéria, memorização dos conteúdos e controle de alunos na sala e que na modernidade, ensinar e aprender são processos que devem caminhar juntos, interagindo.

1359

Dantas (2005) acrescenta que faz muito tempo que os pesquisadores da educação apontam para a necessidade dos professores utilizarem as Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) como estratégia para elevar a qualidade da aprendizagem dos seus alunos e atender às novas e diversas exigências que se apresentam. No entanto, o que tem sido evidenciado, é que grande parte dos professores apresenta dificuldades e, até mesmo, resistência ao uso destas tecnologias na sua prática educativa. A presença da tecnologia na sociedade exige a alfabetização tecnológica e uma formação de professores adequada. Neste sentido, é necessário que os professores se preparem para as inovações tecnológicas, juntamente com as decorrências pedagógicas advindas disso. É necessário se adequar às práticas pedagógicas (BELLONI, 2006). Devemos ressaltar portanto, a importância de uma formação permanente e continuada no uso das tecnologias digitais na sala de aula, pois cada vez mais estas se incorporam ao cotidiano dos educadores fazendo parte da rotina profissional. Por outro lado, nossos alunos também se envolvem cada vez mais com o espaço virtual e criam redes de relações de acordo com seus interesses. Nesta perspectiva de uma sociedade cada vez mais informatizada através das TDICs, Lévy (1999), traz o conceito de cibercultura, que designa “o conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de valores que se desenvolvem juntamente com o crescimento do ciberespaço” (Lévy, 1999, p.17). Para ele, ciberespaço é “o novo meio de comunicação que surge da interconexão mundial dos computadores”. Se há um novo espaço e uma nova cultura em ascensão, certamente há também novas práticas sociais em voga, fazendo-se necessário o letramento na cibercultura. Segundo Kleiman (2008), a questão da alfabetização fora sempre tratada como uma prática específica da escola. O conceito de letramento começou a ser usado nos meios acadêmicos numa tentativa de separar os estudos sobre o “impacto social da escrita” dos estudos sobre alfabetização. Porém “o fenômeno do letramento, extrapola o mundo da escrita tal qual ele é concebido pelas instituições que se encarregam de introduzir formalmente os sujeitos no mundo da escrita” (Kleiman, 2008, p. 20). Segundo a autora, a escola, a mais importante das agências de letramento, preocupa-se não com o letramento, prática social, mas com apenas um tipo de prática de letramento, a alfabetização, o processo de aquisição de códigos, processo geralmente concebido em termos de uma competência individual necessária para o sucesso e promoção na escola. O letramento é compreendido por Kleiman (2008, p. 18) como um fenômeno mais amplo e que ultrapassa os domínios da escola: “[...] podemos definir hoje o letramento como 1360

um conjunto de práticas sociais que usam a escrita, como sistema simbólico e como tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos”. O conceito da autora destaca os aspectos sociais e práticos do letramento: As práticas específicas da escola, que forneciam o parâmetro de prática social segundo a qual o letramento era definido, e segundo a qual os sujeitos eram classificados ao longo da dicotomia alfabetizado ou não-alfabetizado, passam a ser, em função dessa definição, apenas um tipo de prática – de fato, dominante – que desenvolve alguns tipos de habilidades mas não outros, e que determina uma forma de utilizar o conhecimento sobre a escrita (KLEIMAN, 2008, p. 19)ii

Melo (2011) acresce que: O letramento é uma competência que adquirem aqueles que já se apropriaram do código escrito, já são alfabetizados e sabem usufruir da capacidade obtida em situações e circunstâncias diversas. Saber desfrutar desta leitura e escrita e transformar-se socialmente, utilizando-a para saber solucionar os problemas do cotidiano, saber ler e interpretar o mundo em que vive, usar essa habilidade para assimilar, transmitir e produzir conhecimento. (MELO, 2011, p.05)iii

Ser alfabetizado apenas, saber decodificar signos de leitura não são mais suficientes. Também é necessário ultrapassar o saber ligar e desligar o computador, imperioso é saber usálo de forma produtiva, interpretá-lo de forma crítica, como bem destaca Melo (2011): O indivíduo, ao acessar a internet, tem que saber o que quer buscar, interpretar a informação disponível, e não simplesmente fazer uma busca por fazer, perdendo-se na navegação, sem direcionamento e sem um objetivo concreto. Este indivíduo letrado digitalmente saberá usar as TIC de forma crítica e agir de forma positiva na vida pessoal e coletiva. (MELO, 2011, p.08)iv

Ainda de acordo com Melo (2011), o letramento digital não deve somente capacitar para lidar com as tecnologias, mas preocupa-se em mostrar como utilizá-las de forma crítica. Ser agente nesta sociedade da informação através do uso das ferramentas tecnológicas como os computadores, fazer pesquisas, selecionar conteúdos, escrever uma mensagem no correio eletrônico, conversar em tempo real utilizando um chat, escutar um arquivo Mp3, manusear celulares, são condições de inserção tecnológica e muitas vezes, de inserção social. Gomez (2004, p.14) afirma que “não adianta distribuir tecnologia sem ideologia, sem formação, sem método, sem mudar o paradigma.” Não basta que aparelhos cheguem as escolas, eles podem chegar e em nada modificar ou melhorar nas relações de aprendizagem, sem alfabetização e letramento digital e principalmente sem capacidade reflexiva e crítica para uso dos mesmos. Transformar a educação em comunicação, mediação, interatividade e acompanhamento é um desafio e, portanto a democratização da informática e a inclusão digital são urgentes e necessárias. A informação é um bem social, como tal não deve ser utilizada como instrumento de lucro pelas “indústrias do conhecimento”. A informação é acima de tudo, um direito, um direito fundamental, já que sem ela não temos acesso aos outros direitos. Precisamos contaminar o planeta com essa ideia. (GOMEZ, 2004, p.16)v

1361

As tecnologias, incluindo o computador, o que tem maior presença no imaginário quando se fala em tecnologias na educação, não foram criadas para a educação e sim foram integradas a ela e pode facilitar a resolução de problemas educacionais. Se o uso das mesmas for bem direcionado, pode contribuir ainda para que a influência dos meios de comunicação massivos e por vezes alienantes, não afete as capacidades cognitivas, críticas, criativas e sócio afetivas dos educandos, conforme atesta Belloni (apud Libâneo 2001, p.72): “Daí as escolas desenvolverem uma leitura crítica e uma postura ativa perante a mídia, ou seja fazer uma educação para a mídia, para ensinar aos jovens a dominar a linguagem televisual, para não serem dominados por ela.” Devemos estar atentos e cientes que de nada servirá a integração das tecnologias nas escolas, se essas ferramentas se configurarem apenas como mais um recurso didático. É necessário que o uso dos artefatos tecnológicos sejam atribuídos de significado. É preciso reconhecer a mudança no paradigma educacional e não apenas verificar a modernização da infraestrutura escolar. Não restam dúvidas que na sociedade contemporânea é preciso ensinar com qualidade, educar cidadãos, oferecendo-lhes espaços de aprendizagem de alto nível. Nessa perspectiva, a qualidade torna-se um conceito multidimensional (...) mudar a sala de aula, incrementá-la com novos equipamentos é mais fácil do que mudar formas de pensamento. É preciso que ocorra a preservação do conhecimento, enriquecido pelo novo, superando o ensino alienante que vem se perpetuando em muitas escolas. (RIOS; SANTOS, 2009, p.05)vi

Deste modo, a preocupação de parcela da classe educadora em ser substituída pelos recursos digitais e midiáticos (DANTAS, 2005) não encontra ressonância, já que compreendemos que eles não visam substituir mas sim modificar algumas funções. HAWKINS (1995), afirma que “a tecnologia é capaz de ajudar o professor, mas não o substitui.”vii Ideia semelhante é partilhada por Moran (1997): O processo de ensino aprendizagem pode ganhar assim um dinamismo, inovações e poder de comunicação inusitados. E reencantamento enfim, não reside principalmente nas tecnologias -cada vez mais sedutoras- mas em nós mesmos, na capacidade em tornarnos pessoas plenas, num mundo em grandes mudanças e que nos solicita um consumismo devorador e pernicioso. É maravilhoso crescer, evoluir, comunicar-se plenamente com tantas tecnologias de apoio. É frustrante por outro lado, constatar que muitos só utilizam essas tecnologias nas suas dimensões mais superficiais, alienantes ou autoritárias. O reencantamento em grande parte, vai depender de nós. (MORAN, 1997, p. 05).viii

Como bem observou Brzezinsk (2002), a profissionalidade docente será o conjunto maior ou menor de saberes e de capacidades de que dispõe o professor, no desempenho de suas atividades, e o conjunto do grupo profissional dos professores num dado momento histórico.

1362

1.1 Novas crenças, novas gerações e tecnologia: Os desenvolvimentos tecnológicos no campo da informação tem sido em boa parte responsáveis pelo novo perfil de nossa sociedade. Masuda (1982) distingue a sociedade industrial da sociedade da informação, onde a primeira buscaria ampliar e melhorar as características físicas do homem, objetivo este alcançado com o desenvolvimento da máquina a vapor, enquanto que a sociedade atual busca ampliar características mentais do homem com suas múltiplas máquinas, nenhuma delas a vapor claro, sendo central o computador objetivando: “substituir e amplificar o trabalho mental do homem.” (MASUDA, 1982, p.46). No entanto, teria sido alcançado tal objetivo? O trabalho mental do homem está sendo ampliado ou tolhido? Alienação ou liberdade? Para as crianças e jovens cujo único mundo que conhecem é este “digitalizado”, quais implicações? Para Belloni (2009) o assunto é demasiado complexo e pouco pesquisado para que determinadas afirmações sejam tomadas como verdades totais. “Existem muito mais perguntas do que respostas,” (BELLONI, 2009, p.51) conclui a autora. O fato é que uma nova crença está em voga já há alguns anos, “a crença nos poderes ilimitados da ciência e da técnica, onde a máquina seria o novo ídolo e a televisão seu arauto.” (BELLONI, 2009, p.53). A utilização das máquinas e de várias atitudes técnicas já é antiga, mas a contemporaneidade parece trazer a novidade dentro da novidade: O que é novo na sociedade atual não é a mecanização do trabalho, mas a mecanização da vida em geral, da esfera privada a vida social: o lazer, a cultura, a vida doméstica. O homem moderno, urbano e “racional” passa durante seu dia de uma máquina a outra para trabalhar, transportar-se, preparar seus alimentos, conversar, divertir-se e até para namorar. (BELLONI, 2009, p. 54)ix

De acordo com Horkheimer (2000, p.155) “a eficiência, a produtividade e a planificação inteligente, são proclamados deuses do homem moderno.” Adiciona ainda que: “tantas possibilidades foram reduzidas a um padrão e toda imaginação transformada em utilidade.” (HORKHEIMER, 2000, p.145). Neste sentido, o homem viveria sob pressão externa para que se adapte à cultura de massa, toda ação espontânea estaria em declínio. O sujeito não seria mais um indivíduo e sim membro de uma organização. As pessoas estariam aceitando protótipos de pensamento e ação camuflados, disfarçados sutilmente de ideias do próprio povo, em um jogo perverso de manipulação. O fato de o ser humano atual buscar sempre se adaptar aos novos meios tecnológicos e industriais seria para este autor, um sintoma da crise do indivíduo. Querer adaptar-se é querer manter a ordem imutável do universo, o que impediria a emancipação do sujeito, levando-o a uma eterna infância.

1363

Com relação aos que realmente vivem a infância nesta era contraditória, não em sentido figurado como disse Horkheimer, eles teriam sua imaginação direcionada a utilidade do status quo? Buckingham (2007) afirma que: As crianças hoje passam mais tempo em companhia dos meios de comunicação do que com seus familiares, professores e amigos. As crianças parecem cada vez mais viver “infâncias midiáticas”, suas experiências diárias, são repletas de narrativas, imagens e mercadorias produzidas pelas grandes corporações globalizadas de mídias. (BUCKINGHAM, 2007, p. 07)x

Esse autor analisa que as mídias providenciam uma “cultura comum” global as crianças, que vai além das fronteiras nacionais e as altercações culturais instituídas. O que por um lado seria positivo a medida em que oportuniza as crianças e adolescentes se desvencilharem das limitações ligadas as tradições, mas por outro lado poderia ser mais um traço do processo homogeneizador globalizante, onde as identidades culturais são descuidadas e até apagadas. O grande questionamento para Buckinghan (2007) é: Será que a medida que as crianças vão crescendo (...) sob o signo do capital –Pókemon, Disney, McDonald’s- irá desaparecer o caráter local e situado da infância? Ou será que as crianças interpretam e recriam a cultura global através dos filtros mediadores de experiências e significados locais? (BUCKINGHAM, 2007, p. 09)xi

Existe uma ambivalência presente no discurso quando se trata de infância e tecnologia, já que o padrão das mudanças é complexo, ambíguo e em construção. Alguns autores como Adorno (1997) e Postman (1999) falam em “morte da infância”, em adultos precoces, jovem adulto, enquanto outros como Belloni (2007) e Prout (2005) veem uma ressignificação social da infância em decorrência dos novos tempos. As mídias contemporâneas estariam pluralizando a socialização, entretanto, conflitos entre mercado, mídia, criança e escola seriam evidentes. Buckingham (2007) prudentemente indaga: Qual será o destino da infância no século XXI? Será que as crianças terão cada vez mais uma “infância midiática”, dominada pela tela eletrônica? Será que o acesso crescente delas às mídias “adultas” ajudará a abolir as distinções entre infância e maturidade? Ou será que o advento das novas tecnologias de mídia aumentará ainda mais o fosso entre as gerações? E quais serão as consequências desse processos para as políticas sociais, culturais e educativas? (BUCKINGHAM, 2007, p.275)xii

Retornar as velhas noções de infância não é possível, o autor reconhece isso: “Não podemos trazer as crianças de volta ao jardim secreto da infância ou encontrar a chave mágica que as manterá para sempre presas entre seus muros.” (BUCKINGHAM, 2007, p.295). Ele ainda conclui que o necessário é preparar as crianças parar lidar com o novo mundo, já que não podemos privá-las ou protegê-las dele. O caminho para isto seria a educação. Educá-las para serem participantes e ativas. A educação é a chave de todo o processo. As escolas tem capacidade (ou deveriam ter) de desenvolver nos educandos habilidades, inclusive 1364

de

protegerem-se dos ambientes virtuais, de entendê-los e lidar com os mesmos com seletividade e sensibilidade crítica.

1.2 Um estudo de caso: Universidade Estadual de Montes Claros- UNIMONTES. Na tentativa de promover essa mudança no pensamento além do aparelhamento que se procede nas escolas públicas, o governo federal criou em 2005, o Programa de Formação Continuada Mídias na Educação. Este Programa efetiva-se através da Educação a Distância (EAD), e se desenvolve em três círculos articulados e integrados, respeitando as necessidades e aprofundamento dos educadores do ciclo básico (extensão), ciclo intermediário (aperfeiçoamento) e avançado (especialização). O programa tem como desafio, auxiliar os educadores da rede pública para o uso das mídias no processo de ensino aprendizagem, de forma integradora, visando melhorar a qualidade dos processos (VIEIRA; SANTOS, 2009). Tal Programa objetiva contribuir efetivamente para que os professores se aperfeiçoem pedagogicamente e tecnicamente quanto a utilização das tecnologias de informação e comunicação. Ele é desenvolvido pela Secretaria de Educação a Distância (SEED) e pela Capes em parceria com secretarias de educação e universidades públicas, tendo como público alvo professores da educação básica da rede estadual e municipal de ensino (RIOS; SANTOS, 2009). Os três níveis de certificação variam em carga horária: ciclo básico, de extensão, com 120 horas de duração; ciclo intermediário, de aperfeiçoamento, com 180 horas; e o ciclo avançado, de especialização, com 360 horas. De acordo com Libâneo (1998), seria desejável que nos processos de formação inicial e contínua do professor estivesse a integração das tecnologias aos currículos, para que houvesse desenvolvimento de habilidades e formação de atitudes favoráveis ao emprego das mesmas ao cotidiano e a prática docente. Percebemos o programa supracitado com este intuito. Nota-se que uma nova realidade se apresenta e necessário se faz refletir sobre a construção de uma sociedade educativa para o uso das mídias e tecnologias. A emergência do tempo contemporâneo reclama profissionais e pessoas em geral capazes de compreender, de intervir e contribuir para as transformações positivas diante da imprevisibilidade do futuro. Espera-se que o docente seja capaz de mediar uma educação onde a informação é convertida em conhecimento e sabedoria, de forma crítica e plural. Dentre as várias instituições participantes do Programa de Formação Continuada Mídias na Educação em todo o país, está a Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES, localizada no município de Montes Claros, centro convergente e

1365

polarizador

dos demais municípios da região. É a única Universidade Pública Estadual na vasta região do Norte de Minas e atende, ainda, as regiões norte e noroeste do Estado, Vale do Jequitinhonha, do Mucuri e do Urucuia, com influência até o sul da Bahia. Sendo assim, potencialmente, deve atender a uma clientela oriunda de uma população que ultrapassa os dois milhões de habitantes (UNIMONTES, 2015)xiii. As condições socioeconômicas que prevalecem nas regiões de sua abrangência, associadas ao fato de ser uma instituição pública que, pelas ações e princípios norteadores se propõe a ser instrumento de transformação da realidade, justificam a dimensão do papel que a Unimontes desempenha em seu contexto. De acordo com o sítio virtual da UNIMONTES (UNIMONTES, 2015), esta instituição oferece 33 cursos de graduação, além dos cursos de pós-graduação “lato sensu” e “stricto sensu”, e mantém convênios interinstitucionais com diversas universidades credenciadas pela CAPES, para o oferecimento de Mestrado. De acordo com Viera e Santos (2009, p.07), a primeira oferta do curso Mídias na Educação na instituição e portanto na cidade de Montes Claros, ocorreu em 2006/2007, capacitando 200 professores da rede municipal do norte de Minas Gerais e Vale do Jequitinhonha, com o ciclo básico do curso. A segunda oferta (2007/2008), capacitou 300 professores da mesma região, também com o ciclo básico. Ainda em 2008 ocorreu a primeira oferta do ciclo intermediário, que capacitou 100 professores. No mesmo ano houve ofertas para novas turmas, resultando em mais 300 capacitados em nível intermediário, mais 200 em nível básico e 100 professores em nível avançado. Para Rios e Santos (2009, p.08) “as Tic contribuem para o desenvolvimento das habilidades e competências dos professores e estudantes numa perspectiva crítica e colaborativa.” De acordo com as autoras a experiência da implantação deste curso na UNIMONTES foi muito positiva. O bom aproveitamento estaria explicito nos trabalhos de conclusão dos cursistas (requisito para obtenção do certificado de nível avançado), que teriam evidenciado o quanto cresce o interesse de professores e alunos, além da aproximação de um com o outro, depois do uso efetivo as tecnologias como mediadoras. Nos projetos de intervenção (requisito de certificação para todos os níveis), também teria ficado evidente a otimização do trabalho dos profissionais participantes. A oferta desse programa na região norte mineira colheu bons frutos. De acordo com os depoimentos dos professores cursistas, eles aperfeiçoaram, enriqueceram sua prática e fizeram uso dos equipamentos disponíveis nas escolas, fazendo com que o dinheiro público que os custearam não ficassem estagnados bem como os aparelhos que por inúmeras vezes só servem à poeira (RIOS e SANTOS, 2009). 1366

Durante a apresentação dos projetos de intervenção (...) vários depoimentos indicam que houve mudanças significativas na prática do professor, em sala de aula, depois do ingresso no curso de mídias. A maior parte dos professores enfatiza a importância dos conhecimentos adquiridos. Um dos professores afirmou que: “preparo minhas aulas com mais entusiasmo, utilizo todos os recursos que a escola possui, a indisciplina nas minhas aulas diminuiu.” (RIOS e SANTOS, 2009, p. 09)xiv

O papel relevante do professor no cenário escolar é dinamizado por capacitações como essa que o inserem no universo de oportunidades das tecnologias. Porém: Não observamos no Brasil avanços significativos no que diz respeito a mídia-educação e os principais obstáculos a seu desenvolvimento continuam ativos. O que não significa que não exista uma multiplicidade de experiências singulares inovadoras e importantes, mas elas são frutos do trabalho incansável de professores, jornalistas, comunicadores, religiosos, todos eles mídia-educadores militantes e têm, por sua própria natureza, abrangência restrita quando não um estatuto marginal. Em nível oficial dos sistemas de ensino, na escola básica como no ensino superior, especialmente na formação de professores, a mídia educação continua ignorada e ausente. (BELLONI, 2009, p. 11)xv

Embora haja um esforço vindo de várias partes, desde educadores solitários e sem recurso em suas escolas, até o próprio governo que cria um curso completo e bem estruturado como é o Mídias na Educação, ainda não tem sido suficiente, porque falhas permanecem e a abrangência da educação digital ainda não satisfaz. Chauí (2007) já observara que a abertura de uma democracia não pode ser confundida com a utopia de uma igualdade: Não é a liberdade da informação que define a abertura democrática (...) é a elevação de toda cultura a condição de coisa pública, isto não significa que a ciência, a filosofia, as artes e as técnicas se tornem transparentes e imediatamente acessíveis; não significa que deixem de ser, em suas expressões mais rigorosas, impenetráveis para os não iniciados. Significa, apenas, que é bastante diverso considerá-las como de direito acessíveis a todos que desejem dedicar-se a elas (...) Há duas maneiras igualmente antidemocráticas de lidar com a cultura e com a informação: faze-las privilégio de uns poucos, em nome da divisão “natural” das aptidões, ou vulgarizá-las, escamoteando tanto a divisão social do trabalho quanto a realidade do privilégio para produzi-las. (CHAUÌ, 2007, p. 156157)xvi

Ou seja, todas as pessoas deveriam ter direito ao acesso as mídias e as tecnologias afinal, são produtoras e produtos da cultura e da informação. A nossa sociedade ainda não comunica-se consigo mesma de ponta a ponta numa produção constante de conhecimento e informação. Neste sentido, pode-se afirmar que educadores devem estar atentos para orientar alunos em determinadas circunstâncias, utilizando o mundo virtual e suas diferentes formas de comunicação com o mundo, selecionando a qualidade dessas informações e conteúdos, numa utilização crítica, sob pena da alienação e bitolação. Para que as tecnologias não sejam apenas um modismo, e tão pouco vilãs que furtam a privacidade e a individualidade das pessoas, para que tenha um poder educacional transformador, e que a sociedade em outras áreas, não somente a educacional, usufruam dos lucros da modernidade, é necessário que todos estejam conscientes e preparados para a definição de uma nova perspectiva filosófica. 1367

Numa sociedade da informação como a hodierna, é indispensável pensar em novas ferramentas pedagógicas que permitam responder às necessidades de atualização constante do conhecimento e uma maior eficiência na forma de se comunicar. Hoje os professores se vêem diante do que pode ser considerado, ao mesmo tempo, um grande desafio e uma grande oportunidade: utilizar as Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) como meio para construir e difundir conhecimentos, e ainda, para concretizar a necessária mudança de paradigma educacional, centrando seus esforços nos processos de criação, gestão e regulação das situações de aprendizagem. O surgimento das tecnologias é um fator irreversível e a educação enfrenta e certamente enfrentará problemáticas relacionadas ao seu uso no futuro próximo. i

Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri. Mestrado Profissional Interdisciplinar em Ciências Humanas. Agência Financiadora: Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação (PRPPG/UFVJM). ii

KLEIMAN, Ângela B. (Org.). Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas: Mercado das Letras, 2008. P.19. iii

MELO, Nicéia Maria de Figueiredo Souza. Práticas de Letramento Digital na formação de professores: avanços e limites do uso das mídias digitais na sala de aula. Universidade de Sorocaba, 2011. P. 05. iv

Idem. P.08.

v

GOMEZ, Margarita Victoria. Educação em rede: uma visão emancipadora. São Paulo: Cortez, 2004. P.16

vi

RIOS, Clitien Alice Meira; SANTOS, Dulce Pereira dos. Mídias na educação: formação continuada para o professor, privilégio para o aluno. Montes Claros: Unimontes, 2009. P.05. vii

HAWKINS, Jan. O uso de novas tecnologias na educação. Rio de Janeiro: Revista TB, 1995.

viii

MORAN, José Manoel. Novas tecnologias e o reencantamento do mundo. Revista Tecnologia Educacional. Rio de Janeiro, vol. 23, n.126, setembro-outubro, 1995. P.05. ix

BELLONI, Maria Luiza. O que é mídia educação. Campinas: Autores associados, 2009. P.54.

x

BUCKINGHAM, David. Crescer na era das mídias eletrônicas. São Paulo: Edições Loyola, 2007. P.07.

xi

Idem. P.09.

xii

Idem P. 275.

xiii

UNIMONTES. Pró-Reitoria de Ensino da Universidade Estadual de Montes Claros. In: http://unimontes.br. Acesso em: 23/04/2015. xiv

RIOS, Clitien Alice Meira; SANTOS, Dulce Pereira dos. Mídias na educação: formação continuada para o professor, privilégio para o aluno. Montes Claros: Unimontes, 2009. P.09. xv

BELLONI, Maria Luiza. O que é mídia educação. Campinas: Autores associados, 2009. P.11.

xvi

CHAUÍ, Marilena. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. São Paulo: Cortez, 2007. P 156-157.

1368

Por um conceito de “pacto social” no Primeiro Reinado: debates no Parlamento e na imprensa. Jônatas Roque Mendes Gomes1

Resumo: Neste trabalho analisamos o conceito de “pacto social” e sua relação com outros conceitoschave utilizados no ideário político, durante a construção da nação brasileira. Nosso recorte cronológico se situa entre 1820 e 1831. Para este trabalho, concentramos nossa análise em fontes periódicas, O Conciliador e A Aurora Fluminense, e fontes parlamentares, os anais da Câmara dos Deputados Federais, de 1826 a 1831. Estas fontes são importantes para analisarmos como os atores políticos desse período pensavam os importantes conceitos sóciopolíticos. Palavras-chave: pacto social, contratualismo, constitucionalismo.

Abstract: This paper analyses the concept of “social pact” and your connection with others keyconcepts used in the political thought, during the construction of the Brazilian nation. Our chronological focus is between 1820 and 1831. For this text, we concentrated our analyses in periodical sources, O Conciliador e A Aurora Fluminense, and parliamentary sources, the annals of Chamber of Federal Deputies, between 1826 and 1831.This sources are important to analyses how these political agents thought the relevant socio-political concepts. Keywords: social pact; contractualism, constitutionalism.

Introdução Neste trabalho visamos analisar o conceito de pacto social (ou contrato social) e outros conceitos-chave a ele relacionados, como os de vontade geral e soberania, utilizados no ideário político durante o processo de formação da nação brasileira. Dessa forma, pretendemos estudar como foram gestados o Contratualismo e o Constitucionalismo no início do Império. Nosso recorte temporal é o período de 1820 a 1831 que engloba a Revolução Liberal do Porto, a Independência política do Brasil e o Primeiro Reinado. Para a realização desse trabalho temos como referencial teórico-metodológico a história conceitual ou história dos conceitos. Na história dos conceitos demanda-se uma 1369

atenção ao estudo do pensamento político levando em consideração o aporte conceitual que o circunda e dos usos linguísticos feitos pelos atores políticos. Outras preocupações teóricometodológicas são: a diferenciação entre conceito e palavra, a reflexão sobre o contexto, os conceitos opostos, a consciência da importância da linguística, mesmo que enfoque a distância necessária para a História e a coexistência de significações antigas e recentes de um conceito, com suas diferentes camadas temporais. Os estudiosos da história conceitual dão valor também a dinâmica das transformações históricas e buscam o uso de elementos interpretativos para a compreensão dos textos escritos, sempre se apoiando no conjuntural e não apenas no textual.2 Um conceito é resultado do seu tempo e o tempo também é influenciado pelos conceitos anteriormente constituídos. A multiplicidade de sentidos possibilita e nos auxilia a perceber as disputas políticas em busca da significação correta ou mais apropriada do conceito. O quadro conjuntural em que o termo polissêmico se insere pode nele ser condensado, aumentando assim a própria polissemia anterior, o que justifica o esforço de se fazer uma história dos conceitos. Os conceitos possuem também sua relevância anterior ao contexto de disputa, devido a esta formação prévia ter fundamentado a base de sentidos que apareceriam no futuro. Mesmo que as novas significações nos digam muito sobre a história inscrita nos conceitos, as antigas significações foram muito relevantes para que as disputas conceituais em si ocorressem. Tanto as várias significações recebidas pelo conceito, sua história (diacronia), quanto os sentidos contemporâneos apresentados por ele (sincronia), são levados em conta na história dos conceitos.3 Partindo das concepções de Koselleck, podemos compreender como a história se materializa na combinação de experiências e expectativas. Assim sendo, a história dos conceitos cumpre o papel de uma metodologia que dá conta de uma semântica dos conceitos históricos que objetiva a constituição linguística “de experiências do tempo na realidade passada"4. Apesar de propor uma história dos conceitos, Koselleck não se atém somente a análise deles. O autor alemão considera as histórias algo necessário para o estabelecimento teórico. Por isso, os fatores extralinguísticos fazem parte do arcabouço teórico-metodológico da história conceitual. Dessa feita, Koselleck critica a hermenêutica gadameriana que centrase no texto como forma de compreensão da realidade, esquecendo o extratextual. Entretanto, a crítica de Koselleck foi rebatida por Gadamer que afirmou que “a linguagem que a hermenêutica considera central não é apenas a dos textos. Ela se refere também à condição fundamental de todas as ações e criações humanas”5. Sendo assim, a hermenêutica

1370

gadameriana leva em conta os efeitos que os textos estudados tiveram na sociedade e na vida humana. Um “novo pacto social” Um “novo pacto social” representaria a consolidação da felicidade do povo, que fora maculada nas Cortes de Lisboa, e as bases da nação brasileira. Deste pacto nasceria a Constituição da nação brasileira. O debate em torno do pacto social foi tema de discussões nas Cortes, Juntas, Câmaras, periódicos e folhetos e envolvia outros conceitos políticos em plena difusão no período. Esses conceitos adensavam e instrumentalizavam os debates acerca da compreensão constitucional ou liberal do contrato social.6 A discussão em torno do “pacto social” no contexto luso-brasileiro começou em Portugal com a Revolução do Porto, quando os vintistas questionavam a “colonização” de Portugal pelo Brasil e reclamavam a reordenação da soberania e a “Regeneração” política lusa. Não queriam que Portugal ficasse em segundo plano e o Rio de Janeiro permanecesse como centro do Império Português. Sem embargo, a “recolonização” do Brasil não era um consenso entre os vintistas e também não será entre os deputados lusos nas Cortes lisboetas. Apesar disto, Ilmar Mattos defende que as Cortes tomaram muitas

medidas

“recolonizadoras”, o que tornou a convivência entre portugueses e brasileiros difícil. Ainda em 1819, o periódico Campeão Português, publicava que “sem o povo não há Trono nem Coroa, quando pode haver, e tem havido, povo sem haver Trono ou Coroa” 7. E ainda afirma que “Coroas e Tronos são efeitos de pactos”8 entre povos e soberanos, e que ambos têm direitos e deveres, sendo que estes direitos e deveres não terminam para ambos os lados, não isentavam dessa forma, a Coroa de honrar o pacto, o que para muitos não estava acontecendo. A crise política em Portugal era clara, por mais que os ministros portugueses tentassem amenizar, e a opção pelo estabelecimento de um pacto social em que o rei seria constitucional surgia como a melhor alternativa para os regeneradores vintistas. Durante a Revolução Liberal do Porto, a convocação das Cortes de Lisboa não foi feita por D. João VI, mas sim pela nação lusa. A nação convocava as Cortes, onde estariam seus representantes, e escolhia viver sob a égide de um rei constitucional/liberal, mudando-se o estatuto real. Entretanto, tumultos e “anarquias” eram coibidos. A máxima “Queremos a Constituição, não queremos Revolução”9 valia para as elites luso-brasileiras. Não se queria fazer uma revolução, a Regeneração identifica-se muito mais com o conceito de reforma, a preocupação da elite política vintista era em regenerar a sociedade lusa, retornar às épocas áureas de Portugal. Os atores, as datas, as imagens e os conceitos eram elencados de acordo

1371

com a História que queriam que fosse contada, buscando-se na fundação portuguesa justificativas para o estabelecimento de um “novo pacto social”. O rei se torna menos divino e mais pactual. Nas leituras do passado eram apropriados conceitos e noções políticas pertencentes ao liberalismo10. Concepções de “pacto social” em periódicos e no discurso parlamentar no Primeiro Reinado Propomos o estudo dos conceitos-chave do nosso trabalho à luz da história conceitual, tal como desenvolvida por Reinhart Koselleck. Para tanto, mapearemos os significados dos conceitos em fontes periódicas, que são os jornais A Aurora Fluminense (1827-1831) e O Conciliador (1821-1823), e parlamentares, os Anais da Câmara dos Deputados (1826-1831). Os documentos dessa natureza são importantes para analisarmos como os atores políticos, componentes das elites políticas e intelectuais, e a população, pensavam o constitucionalismo e conceitos importantes, como o de pacto social. Estamos em fase inicial de pesquisa, contudo já tivemos contato com os documentos citados no parágrafo anterior e pudemos perceber alguns aspectos nessa análise inicial de nossa investigação. No O Conciliador, do Maranhão, que até o seu fim em 1823 expressa uma integração às Cortes de Lisboa e ao rei D. João VI, pudemos notar o uso constante e diverso do conceito de “pacto social”. Na publicação do dia 12 de janeiro de 1822, o redator afirma que: (...) não achamos nesse Pacto Social a clausula por onde este Governo ficasse obrigado a respeitar supersticiosamente as antigas formulas de Direito quando as julgasse (ou mal ou bem) desavantajosas ao primeiro dos títulos para que foi authorisado por huma Sociedade de homens liberaes, por um Povo, que foi Soberanamente livre em toda a extensaõ da palavra, athe ás suas ulteriores relações com os poderes legislativo, e executivo da Naçaõ de que faz parte. Por tanto parece-nos que no Pacto Politico Social, que o Povo do Maranhão fez no dia 06 de abril com o Governo que instalou, reduzio tacitamente todos as suas convenções, e clausulas, a esta clausula geral de todos os Povos, e de todos os Governos livres, nas suas primitivas instituições.11

O redator se refere a um “06 de abril, este ocorreu em 1821, quando o rei D. João VI, pouco tempo depois seu regresso a Portugal, jurou as Bases (projeto) da constituição, aceitando respeitar as decisões das Cortes. No trecho acima, podemos apreender a evidente referência a um contrato (com o termo cláusulas), um contrato social, entre “Governo” e “Povo”12. Ainda não existia uma Constituição política, mas o novo pacto foi firmado a partir do juramento da proposta de constituição. No dia 27 de abril de 1822, o Conciliador publica um texto de 16 de fevereiro do mesmo ano, emitido pela Câmara (de Vereação) do Rio de Janeiro, que dizia: “o Brazil quer tão bem sahir no Pacto Social que V. Magestade está 1372

celebrando, com condições em tudo iguaes a Portugal: quer ser irmão deste, e não filho: Soberano como Portugal, e nunca subdito, independente finalmente como ele, e nada menos”13. Novamente podemos perceber o uso de “pacto social” como sinônimo de acordo, contrato. Reinhart Koselleck preocupa-se com a “segunda modernidade”14 – período no qual se insere o Primeiro Reinado – que surge na ruptura entre o passado, o presente e o futuro, a experiência e a expectativa. O passado passa a poder ser interpretado e/ou reinterpretado a partir do presente e das expectativas existentes nesse presente que olha para o futuro, como o juramento de um projeto de constituição, com um poder simbólico, visto que as Cortes já haviam sido convocadas, porém que modificou a experiência existente entre o rei e seus súditos/cidadãos, que até então existia em Portugal. Da mesma maneira, o espaço de experiência, este passado e presente, pode influenciar o horizonte de expectativas. No A Aurora Fluminense também percebemos, a partir novamente de um esforço interpretativo, pacto social com o sentido de acordo, como no número do dia 14 de maio de 1828, em que o redator, em resposta a um parlamentar, deixa claro que: “O Sr. D. Pedro I he Imperador por unanime acclamação dos Povos: eis o grande fundamento do nosso pacto social”15. Nesta passagem, podemos notar a clara simbologia da “acclamação dos Povos”. Esta seria, para o redator, a “Lei fundamental e base de todas as nossas instituições” 16, principal fundamento do pacto social, o que o legitimaria. O redator ainda completa: “No Brasil, todos os poderes são delegados da Nação”17. Como pudemos apreender a partir das citações acima, grande parte das referências ao termo “pacto social” que é empregado nos dois jornais elencados tem o sentido de acordo tácito ou contrato. Contudo, também encontramos o conceito de “pacto social” como um sinônimo de Constituição política, como no O Conciliador do Maranhão de 01 de março de 1823, ao falar do “Juramento da nossa Constituição política, do nosso Pacto social, base fundamental da nossa felicidade, e thesouro precioso de ricos bens” 18. No Aurora Fluminense de 08 de janeiro de 1830 podemos observar uma referência mais direta que a do Conciliador. O redator afirma que “o simples acto de adhesão á Independencia, sem os outros quesitos exigidos no art. 6º §. 4º. do Pacto Social, não constitue o Cidadão Brasileiro”19. Na sessão da Câmara dos Deputados do Império brasileiro de 16 de junho de 1826, o deputado identificado como “Sr. Souza França”20, também relaciona o pacto ou contrato social à Constituição, ao dizer que “a segurança da liberdade individual que deve ser garantida pelo pacto social que é a constituição política” 21. O mesmo Souza França reforça no dia 28 do mesmo mês que “o ministro de estado, ainda que ministro não deixa de ser cidadão brazileiro;

1373

e como tal é sujeito ao pacto social. Que diz a constituição, quando trata do poder judiciário?”22. Ainda podemos citar um trecho de uma fala do deputado Nicolau Vergueiro 23 do dia 27 de junho que é mais direta que as de Souza França e evidencia a concepção de pacto social para este: “Que é a constituição? É o pacto social”24. O termo “pacto social” substitui e aqui tem o mesmo valor que Constituição, mostrando a evidente reelaboração que sofre o conceito em destaque. Reelaborações e ressignificações, como a apontada acima, são aspectos importantes do constitucionalismo luso-brasileiro do período que estudamos nesse trabalho. O deputado Vasconcellos25 afirma que “Rompendo os laços que nos união a Portugal, dissolveu-se o contracto social, e se formou o novo que é a constituição do imperio”26. Em outro trecho, podemos ver o deputado Vergueiro dizer que “pelo novo pacto social, e constituição, formamos uma nação nova”27. Um aspecto interessante presente nas falas dos parlamentares brasileiros é uso recorrente do adjetivo “novo” juntamente ao conceito de “pacto social” (ou contrato social). A necessidade de (re)afirmar que o contrato social que partilhavam os brasileiros era distinto daquele anterior com Portugal é evidente, visto que a separação política era recente e a Câmara estava apenas iniciando seus trabalhos após o abrupto fim das sessões da Assembleia Constituinte em 1823. Há também casos em que apesar do conceito de pacto social não apresentar um significado sinônimo ao de constituição, ele mostra uma estreita relação com esta, como na passagem a seguir: Os Povos desta Cidade, e Provincia, que taõ briosamente acclamárão a Constituição no dia 6 de Abril; que taõ Constitucionalmente tem sustentado indelével o seu primeiro pacto social, mesmo a despeito &c.... Estes Povos generosos não precisaõ conciliador – para adoptarem, manterem, e concordemente obedecerem ao Governo que A SOBERANIA NACIONAL lhes decreta; e lhes manda aceitar o MONARCHA mais amado, e respeitado de todos quantos tem regido Nações. 28

“Soberania”, ou soberania nacional, é outro conceito muito relevante que podemos perceber nesta citação. Isto porque, como afirma Koselleck, a partir de fins do século XVIII, quem passa a ser soberano é o Estado e não mais o monarca. A sociedade civil, composta pela união dos cidadãos/súditos – por meio do contrato social – transfere o poder político para o Estado29. Neste trecho é possível perceber a presença de outros conceitos adjacentes ao de pacto social, como povo (ou Povo), governo e nação. Conclusão Como pudemos perceber nos exemplos, os conceitos carregam cargas semânticas para além da conjuntura em que são usados. Estas cargas podem representar permanências estruturais, além das apreendidas empiricamente, pois “um conceito não é somente

1374

o

indicador dos conteúdos compreendidos por ele, é também seu fator”30. O conceito possibilita horizontes de expectativas e ao mesmo tempo pode limitar espaços de experiências. Objetivamos neste trabalho compreender o conceito de “pacto social”, ou “contrato social”, bem como seu uso no processo de formação da nação brasileira. Na construção do Império do Brasil um “novo pacto social” foi evocado, para substituir o velho contrato do Império Português, do qual a América Portuguesa partilhava até a ruptura com Portugal. Procuramos estudar a apropriação do conceito pelos atores políticos da época, em periódicos e nos Anais da Câmara dos Deputados. Na conjuntura estudada, o conceito de pacto social foi apropriado pelo aporte liberal/constitucional, chegando em alguns momentos a se confundir como pudemos apreender nas citações que evidenciam pacto social e constituição como sinônimos. Muitos atores políticos, em busca de um argumento patriótico de legitimidade e autoridade, evocavam o conceito de pacto social, dele utilizando-se de diferentes maneiras. O termo pacto ou contrato social objeto de estudo de vários filósofos, como Hobbes, Locke e Rousseau, foi usado muitas vezes em publicações durante o período fundacional do Império, sendo assim reelaborado e adaptado à realidade do Brasil. 1

GOMES, Jônatas Roque Mendes. Mestrando em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História Social (PPGHS – UERJ/FFP), sob orientação da Professora Doutora Ana Paula Barcelos Ribeiro da Silva. Bolsista CAPES. Email: [email protected]. 2 JASMIN, Marcel Gantus; FERES JÚNIOR, João (orgs). História dos conceitos: debates e perspectivas. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2006. pp. 5-38. 3 KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto Editora; Editora PUC Rio, 2006. passim; . Uma história dos conceitos: problemas teóricos e práticos. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, p. 134-146, 1992. 4 PEREIRA, Luísa Rauter. A História e “o Diálogo que Somos”: A Historiografia de Reinhart Koselleck e a Hermenêutica de Hans-Georg Gadamer. Rio de Janeiro, Dissertação de Mestrado defendida no PPGH - PUCRio, 2004. p. 46. 5 KOSELLECK, Reinhart. Estratos do Tempo. op. cit. p. 116. Esta passagem no livro Historia y hermenéutica encontra-se na página 104: “La lingüisticidad que la hermenéutica emplaza en el centro no es sólo la de los textos; por tal entiende igualmente la condición del ser fundamental de todo actuar y crear humanos”. KOSELLECK, Reinhart; GADAMER, Hans-Georg. op. cit. p. 104. 6 SOUZA, Iara Lis Carvalho. A adesão das Câmaras e a figura do imperador. Revista Brasileira de História, 1998, vol.18, n..36. pp. 367-3366. 7 SOUZA, Iara Lis Carvalho. A Pátria Coroada: O Brasil como Corpo Político Autônomo. 1780-1831. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999. pp.76-78 8 Ibidem. p.77. 9 GONÇALVES, Marcia Almeida. Em terreno movediço: biografia e história na obra de Octávio Tarquínio de Sousa. Rio de Janeiro: Eduerj, 2009. p.57. 10 NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das. Corcundas e Constitucionais: a cultura política da Independência (1820-1822). Rio de Janeiro: Revan, FAPERJ, 2003. pp. 171-173 11 VARIEDADES. O Conciliador, Maranhão, 12 jan 1822. Nº 53, p. 2 12 Gladys Ribeiro diferencia “Povo” e “povo”, presentes em documentos oficiais e jornais publicados durante o processo de construção da nação brasileira, a diferenciação estava além da letra inicial maiúscula ou minúscula. “Povo”, cidadãos ativos, os proprietários, componentes das elites luso-brasileiras. E o “povo” era os “nãoremediados, pobres, escravos, forros ou livres”, alijados do poder político e oprimidos caso se agitassem. RIBEIRO, Gladys Sabina. A Liberdade em Construção. Rio de Janeiro: Relume Dumará-FAPERJ, 2002.p, 323.

1375

13

PEREIRA, José Clemente; BULHÕES, João Soares; Manoel, José Pereira da Silva; AMARAL, Domingos Vianna Grugel do; XAVIER, José Antonio dos Santos. Para o Governo Provisorio da Provincia de Pernambuco. O Conciliador, Maranhão, 27 abril 1822. Nº 83, p. 7. 14 José D’Assunção Barros denomina assim a “modernidade”, período que vai de 1750 a 1850, que se refere Koselleck em suas obras. BARROS, José D’Assunção. Rupturas entre presente e o passado: Leituras sobre as concepções de tempo de Koselleck e Hannah Arendt. Revista Páginas de Filosofia, São Paulo, v. 2, n. 2, p. 6588, 2010. 15 INTERIOR. A Aurora Fluminense, Rio de Janeiro, 14 mai 1828. Nº 43, p. 1. 16 Ibidem. op. cit. p1. 17 Ibidem. op. cit. p1. 18 MESQUITA, Luiz Manoel de. Caxias. O Conciliador, Maranhão, 01 mar 1823. Nº 171, p4 19 INTERIOR. A Aurora Fluminense, Rio de Janeiro, 08 jan 1830. Nº 286. p.2. 20 Manuel José Souza França, deputado pelo Rio de Janeiro, mas não encontramos informações de sua origem e demais informações. http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/plenario/discursos/escrevendohistoria/125anos-da-lei-aurea/1823-discussao-sobre-o-conceito-de-cidadania.-debate-sobre-a-condicao-do-negro-no-brasil. 21 Annaes do Parlamento Brazileiro. Camara dos Srs. Deputados. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1874. Tomo I. p. 165. 22 Ibidem. p.324 23 Nicolau Pereira de Campos Vergueiro, nascido em 1778 em Bragança (Portugal), veio para o Brasil em 1805. Estudou Leis na Universidade de Coimbra. Foi deputado nas Cortes de Lisboa. Foi ministro e senador no Império Brasileiro. Era membro do IHGB. BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Diccionario bibliographico brazileiro. Rio de Janeiro : Typ. Nacional, 1883-1902. Vol. 6. p313. 24 Ibidem. p. 304 25 Bernardo Pereira de Vasconcellos, nascido em 1795 em Vila Rica (Ouro Preto), estudou direito em Coimbra, ingressando em 1813 e concluindo em 1818. Foi deputado federal de 1826 a 1838, quando se tornou senador, cargo que exerceu até sua morte em 1850. Vasconcellos também ocupou ministérios no Império do Brasil: Ministro da Fazenda (1831), da Justiça (1837) e do Império (1840). BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Diccionario bibliographico brazileiro. Rio de Janeiro : Typ. Nacional, 1883-1902. Vol. 1. pp.415416. 26 Annaes do Parlamento Brazileiro. Camara dos Srs. Deputados. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1874. Tomo I. p. 12. 27 Annaes do Parlamento Brazileiro. Camara dos Srs. Deputados. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1875. Tomo III. p. 141. 28 OS REDACTORES DO CONCILIADOR. O Conciliador, Maranhão, 29 dez 1821. Nº 49. p. 8. 29 KOSELLECK, Reinhart. Uma história dos conceitos: problemas teóricos e práticos. Op. cit. p. 139. 30 KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Op. cit. p. 109.

1376

A especialização do Conselho Nacional de Desporto e o Plano Nacional de Educação Física e Desporto. Jorge Fernando Albuquerque D’Amaral Moreira Mestrando em História das Relações de Poder e Práticas Culturais na UFRRJ. Orientador: Felipe Magalhães E-mail: [email protected]

Resumo: O presente trabalho visa apresentar o processo de especialização ocorrido no Conselho Nacional de Desporto (CND) na década de 1970, durante o desenvolvimento do Plano Nacional de Educação Física e Desporto (PNED). Assim, será observada que a ditadura militar criou um planejamento de reorganização do esporte nacional transformando o CND, herança da ditadura estado novista, em um órgão especializado em gerenciar as demandas relacionadas ao esporte de alto nível, assimilando as antigas estruturas e reorganizando-a de modo que melhor lhe servia.

Abstract: The current paper aims to presente the process os specialization occured in the National Sports Counsel (NSC) at the seventies, during the PNED’s developing. Thus, it will be observed that the military dictatorship created a national sports reorganizational plan transforming the NSC, heritage of a New State, in a organ specialized in management os tasks related to high level sports activities, assimilating the old structures and reorganizating them on a way that it fits better.

Palavras-chave: Conselho Nacional de Desporto (CND); especialização; esporte nacional;

Introdução

Diante de um ambiente de crescente profissionalização do futebol brasileiro e expansão de outras diversas modalidades esportivas, na década de 1940, o Conselho Nacional de Desportos (CND) foi criado a partir do decreto-lei 3.199 de 14 de Abril de 1941 para

1377

arbitrar a prática esportiva. Logo, o objetivo de criar um órgão estatal que tivesse autoridade de intervir nas instituições esportivas de cunho privado correspondia ao anseio de mediar e regularizar as práticas esportivas amadoras e profissionais. Assim, para atender o objetivo de disciplinar o esporte nacional, o conselho acumulava múltiplas competências – normativa, legislativa, executiva e judicante - as quais o conferia a centralização da seara esportiva em torno de si. A centralização das entidades esportivas de cunho privado foi sacramentada no artigo 25 do regimento do CND: “as confederações são órgãos de execução das decisões do CND, a cuja secretaria prestarão informações que lhes forem pedidas no prazo determinado” i. Além disso, em termos de disciplinarização, competia ao CND intervir diretamente em uma associação esportiva, federação ou confederação quando fosse necessário. Nesse sentido, a flutuação do conceito de disciplina “não é mera casualidade advinda de fortuita imprecisão legislativa. Ao contrário. Contava a ordem corporativa justamente com um aparelho ‘disciplinador’ plenipotente (capaz de arbitrar conflitos de toda natureza)” ii. Desse modo, os interesses e as perspectivas envolvidas no ambiente esportivo seriam arbitrados pelo Estado a partir da criação do Conselho Nacional de Desportos. Tão logo a legitimidade do Estado em tornar-se árbitro dos interesses e perspectivas envolvidas no plano esportivo toca na noção de disciplinar a seara esportiva, mencionada acima, como também toca no reconhecimento do próprio Estado em zelar pelo “bem comum” – o esporte. Para o projeto de sociedade do governo estado novista, a ausência de ordenamentos no campo esportivo era motivo da aplicação da disciplina estatal, justificando dessa forma, a intervenção estatal em instituições de ordem privadaiii. Então, os governos posteriores à ditadura varguista puderam utilizar uma estrutura que permitia controlar toda a seara esportiva. O que podemos perceber, contudo, é que os momentos de maior atenção ao CND foram em períodos autoritários. Não que o referido conselho tenha sido negligenciado em outros momentos, mas se observamos os decretos do executivo em torno do CND, até sua extinção em 1993, percebemos que o número de decretos-lei expedidos em qualquer um dos momentos ditatoriais é maior do que em qualquer período democrático. Na verdade, os períodos de maiores preocupações do executivo nacional com o CND são na década de 1940 e de 1970. São os períodos em que ocorrem, respectivamente, a criação do CND, durante a ditadura estado novista, e sua especialização, na ditadura militar. O primeiro condiz aos primeiros passos de ordenamento do esporte brasileiro, numa espécie de catarse do esporte nacional. E o segundo pertence ao projeto macro de organização de uma

1378

Política Nacional de Educação Física e Desporto (PNED), o qual promoveu a especialização do CND. Nas páginas seguintes, então, será possível observar os decretos do executivo que promoveram a especialização do CND, ressaltando a continuidade da estrutura centralizadora deste órgão. E em seguida analisaremos as alterações promovidas pelo PNED, notando que a especialização do CND fazia parte da implantação do plano de desenvolvimento do esporte brasileiro.

Enquadramento e Especialização do CND na década de 1970

No que diz respeito ao processo de especialização do CND, torna-se relevante pontuar que o nosso entendimento por especialização do referido órgão passa pela conservação dos poderes conferidos ao conselho no momento de sua criação, delimitando sua área de atuação e ainda atribuindo ao referido órgão a possibilidade de realizar subvenções. Além disso, torna-se relevante ressaltar que o fenômeno de especialização do conselho é concluído junto com a segunda etapa do Plano Nacional de Educação Física e Desporto. O PNED foi um planejamento elaborado pelo governo ditatorial para reorganizar o esporte, traçando diretrizes que visavam elevar a prática esportiva nacional: desde a implantação da educação física nas escolas, até a revelação de novos talentos profissionais. O desenvolvimento do PNED foi realizado em etapas, sendo a primeira (concluída em 1970) de diagnósticos sobre o panorama esportivo brasileiro, a segunda etapa (1971-1975) realizou as alterações administrativas para atender os objetivos alçados, e, por fim, a terceira etapa (1976-1979) visou implementar efetivamente as políticas e investimentos planejados. Logo, o processo de especialização do CND, a partir dos decretos do executivo nacional, foi desenvolvido em consonância com a segunda etapa do PNED e concluído com o Decreto-lei 6.251 de 1975, o qual definia a área de atuação do CND e as principais prerrogativas do PNED. Das alterações realizadas no Conselho Nacional de Desportos na primeira metade da década de 1970, poderemos perceber que foram modificações pontuais e superficiais no que tange às funções administrativas do CND, mas em nenhum momento alterou sua natureza centralizadora. Logo, as primeiras leis em torno do CND visaram definir o melhor enquadramento para este órgão de natureza singular que acumulava em torno de si funções normativas, legislativas, executivas e judicantes.

1379

Em 1970, a partir do Decreto nº 66.967 de Julho deste ano, conforme disposto no Art.3º da referida legislação, “as Comissões e Conselho instituídos para o estabelecimento de orientação normativa de atividades que, por força de legislação específica, estejam enquadradas na área de atuação do MEC” eram vinculados diretamente ao gabinete do Ministro da Educação. A partir desta norma o Conselho Nacional de Serviço Social e o Conselho Nacional de Desporto passaram a vincular-se diretamente ao MEC. Estes se somaram a outros três conselhos que tinham a mesma subordinação direta, a saber: Conselho Federal de Educação, Conselho Federal de Cultura e Comissão Nacional de Moral e Civismo. Assim, a organização do Ministério da Educação durante o período estudado (1970-71). A referida legislação ainda estabelece a criação do Departamento de Desportos e Educação Física (DDEF), o qual passou a ser responsável pela educação física e a prática esportiva não competitiva. Toda atividade relacionada a esse tema que estivesse sendo desempenhada no CND – como, por exemplo, o cadastro geral das entidades esportivas e do registro de técnicos e de atletas profissionais - ou em qualquer pasta do executivo nacional foi transferida para o DDEF. O CND, por sua vez, ficou encarregado de fiscalizar a esfera esportiva profissional e amadorística a nível competitivo. A criação de um novo órgão também relacionado à causa esportiva, mas voltado para uma atividade específica, além de fixar as fronteiras de atuação entre estes órgãos – o CND e o DDEF-, garante um processo de especialização de entidades públicas para tratar do esporte nacional. Segundo o presidente do CND, General Elói de Menezes, em matéria publicada na Revista Placar em 22 de Janeiro de 1971, o mesmo afirmava que as atividades de cadastros eram funções que tumultuavam o CND e agora eram de responsabilidade do DDEF. Elói de Meneses ainda prestou alguns esclarecimentos acerca da reforma que estava ocorrendo no Ministério da Educação e ponderou que o coronel Lamartine Pereira da Costa realizava naquele momento um estudo sobre os problemas da educação física e dos esportes no Brasil. Em 1972, o Decreto-Lei nº 70.025 de 24 de Janeiro promoveu a primeira conclusão no enquadramento do CND. O decreto foi produto de uma Força Tarefa liderado pelo Ministro Jarbas Passarinho para desenvolver a fórmula adequada para o enquadramento do Conselho Nacional de Desporto. O referido órgão, então, passou a integrar em Janeiro de 1972 os “Órgãos de Deliberação Coletiva”, enquadramento o qual não foi mais alterado durante toda a década de 1970. Em 1973, há a organização de uma Força Tarefa organizado pelo CND a fim de estudar a condição do próprio órgão e como ele deveria ser devidamente enquadrado na organização do Ministério da Educação

e Cultura. A Força Tarefa apresenta o relatório final 1380

propondo modificações no enquadramento do CND, requerendo que o mesmo fosse remanejado aos órgãos normativos do MEC e, ainda mais, por suas características singulares comparados aos demais órgãos, o CND deveria gozar de autonomia administrativa e financeira. Por fim, a Força Tarefa conclui: Ora, o CND tem como finalidade ‘orientar, fiscalizar e incentivar a prática dos desportos, em todo o país’, segundo Decreto nº 3.199, de 14/04/1941, estando, portanto, ligado estreitamente ao desenvolvimento desportivo do país no plano nacional e, em consequência incluído entre os órgãos de 2º grau. No entanto, o Decreto nº 70.025, de 24/01/1972, em seu artigo 1º, inciso II, inclui o CND entre os órgãos de 3º grau, o que demanda ser corrigidoiv.

A conclusão da Força Tarefa, independente de suas motivações v, não toca em nenhum momento nas competências normativas, executiva e judicante. E a natureza centralizadora do CND, herdada da ditadura estado-novista, não foi alterada em nenhum momento pelo governo da ditadura militar. Afinal, “Não iria o poder autoritário restringir o espectro de poderes ao mesmo conferido” vi.

Loteria Esportiva e CND

A Loteria Esportiva surgiu em 1970 com edições experimentais entre Abril e Junho. Primeiramente somente a capital federal, Guanabara, e algumas cidades do Rio de Janeiro participaram do programa que foi expandido para São Paulo em Agosto do mesmo ano. A grande atenção voltada à seleção nacional, com as feras de Saldanha e o acompanhamento minucioso, por parte dos periódicos, no que corresponde à convocação do selecionado brasileiro até o embarque para o México criou um ambiente de relativa excitação em torno do futebol brasileiro, mais precisamente em torno do selecionado. E a Loteria Esportiva surgiu em meio a essa efervescente agitação em torno da seleção brasileira explorando economicamente a febre futebolística por meio das apostas. No que corresponde ao destino da renda arrecadada na venda dos bilhetes: a renda bruta seria taxada no valor de 10% recolhida diretamente pelo Banco do Brasil S.A. e destinado à conta do Fundo de Liquidez da Previdência Social. A renda descontada pela Previdência social, em seguida, sofreria descontos percentuais de despesas e manutenção da seguinte forma: 50% seriam destinados ao pagamento dos prêmios da Loteria Esportiva; 12% para atender às despesas de organização, administração e divulgação dos concursos em todo o

1381

Território Nacional; e 13% de comissão às Caixas Econômicas Federais e revendedores credenciados para atender ao serviço regional de venda e recolhimento das apostas. Dessa forma, após essas duas etapas distintas de descontos, a renda líquida consistiria em 22,5% da renda bruta da Loteria Esportiva. A receita líquida do concurso era contabilizada e distribuída semestralmente de acordo com o Decreto-lei nº 66.118 de 26 de Janeiro de 1970. E 30% desse montante arrecadado ao longo de seis meses seriam destinados para programas de educação física e atividades esportivas, que seriam distribuídos pelo Conselho Nacional de Desportos, na forma que determinasse a regulamentação a ser baixada por Decreto do Poder Executivo. Então, em 03 de Junho de 1971 foi expedido o Decreto-Lei nº 68.703, o qual visava regulamentar os recursos da Loteria Esportiva. O decreto definia então que a cota destinada a programas de educação física e atividades esportivas, isto é, a parcela anteriormente destinada ao CND, seria repassada ao Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) e este utilizaria o seguinte critério de distribuição: um terço da receita era destinado ao CND e dois terços da mesma ao DDEF. Ao CND competia aplicar os recursos no desenvolvimento de atividades esportivas profissionais de qualquer entidade segundo indicação do próprio CND e ao DDEF cabia aplicar em programas de desenvolvimento da educação física e atividades esportivas estudantis. Logo, a fatia direcionada ao Conselho Nacional de Desportos, pós Junho de 1971, era aplicada nos órgãos esportivos que detinham o monopólio de exploração do esporte profissional, isto é, Confederações, Federações ou Associações esportivas a serem indicadas pelo próprio CND. Assim, além das atribuições legislativas, executivas e judicantes, o conselho passava a ter capacidade de auxiliar economicamente as instâncias esportivas de acordo com os interesses que o próprio conselho definia em plenário. Podemos perceber, então, que as alterações realizadas no CND obedeciam sobretudo um caráter de enquadramento ministerial. E as mudanças administrativas, por sua vez, contribuíram para delimitar a área de atuação do CND, como foi possível notar com criação de um órgão exclusivamente responsável pela educação física e a prática

esportiva

espontânea, o DDEF. Assim, o CND se tornava responsável por gerenciar somente as demandas relacionadas ao esporte de alto nível, a partir das competências preservadas desde a ditadura estado novista. Nota-se, então, que em nenhum momento o caráter centralizador do órgão foi posto em dúvida, visto que se tratava de um órgão de controle da esfera esportiva com mecanismos legais de intervenção em qualquer instância. Além do mais, conferiram ao conselho 1382

a

possibilidade de realizar subvenções ao esporte profissional. Portanto, as alterações realizadas não visaram alterar sua natureza centralizadora, visto que as características do CND atendiam adequadamente aos anseios centralizadores do regime.

A Categoria Comunitária e o esporte de Alto Nível.

A conclusão do processo de especialização do CND, ou melhor, a definição da área de atuação deste órgão poderá ser observada com maior clareza quando observado sob a luz das implicações gerais da lei 6.251 de 1975. Lei a qual também consolidou as prerrogativas e lançou o alicerce para o desenvolvimento do PNED. Sobre as implicações destinadas ao CND, através do Decreto nº 6.251 de Outubro de 1975, o Estado passava a reconhecer outras categorias organizacionais do esporte: comunitária; estudantil; militar; e classista. A categoria comunitária estaria diretamente submetida ao CND, enquanto as demais categorias teriam suas próprias gerências independentes. A categoria comunitária representava o Sistema Desportivo Nacional, isto é, o conjunto de competições ditas “nacionais” que visavam promover o campeão brasileiro de alguma categoria esportiva. Caso alguma associação esportiva de outra categoria (estudantil, militar ou classista) pleiteasse participar do Sistema Desportivo Nacional, a mesma estaria se colocando sob supervisão do CND, algo que Manhães pontuou como mera formalidade, já que as associações classistas, estudantis e militares já integravam o cosmo das entidades desportivas comunitárias 1. A saber das distinções entre as categorias que a referida legislação reconhecia: o desporto classista se tratava de qualquer organização de uma empresa em torno de uma associação esportiva, podendo sobreviver fora da sua natureza original de empresa. “Art. 39 - As associações desportivas classistas poderão filiar-se às entidades do desporto comunitário e participar de suas competições oficiais, nas condições fixadas pelo Conselho Nacional de Desportos. Parágrafo único — O disposto neste artigo não se aplica ao futebol profissional, o qual, em nenhuma hipótese, poderá ser disputado por equipes de associações desportivas classistas” vii.

O desporto militar correspondia às práticas esportivas nas Forças Armadas sob a direção dos órgãos especializados de cada ministério militar. As equipes formadas pelas Forças Armadas poderiam Art. 34 — As equipes representativas de unidades das Forças Armadas e Auxiliares poderão participar de campeonatos e torneios regionais e nacionais

1

MANHÃES, Eduardo Dias. Op.Cit. 1986. P. 92.

1383

dirigidos ou organizados pelas confederações e federações dirigentes do desporto comunitário nas regiões sob a jurisdição destas entidades viii.

O desporto estudantil, por sua vez, era organizado em universitário e escolar. As entidades organizadas em torno do desporto estudantil universitário, por estarem submetidos ao CND, faziam parte do Sistema Desportivo Nacional, isto é, tinham a possibilidade de frequentar os campeonatos do desporto comunitário. Art. 26 — Para efeito de sua organização e estruturação, o desporto estudantil será dividido em universitário e escolar. § 1º — O desporto universitário abrange, sob a supervisão normativa do Conselho Nacional de Desportos, as atividades desportivas dirigidas pela Confederação Brasileira de Desportos Universitários, pelas federações desportivas universitárias e pelas associações atléticas acadêmicas ix.

Por fim, o desporto comunitário era o ponto de encontro de todas as categorias anteriores, onde o esporte era desempenhado no mais elevado nível em território nacional. O desporto comunitário compunha o Sistema Desportivo Nacional e representava o cosmo das associações esportivas clubísticas, federações e confederações que estavam submetidas à supervisão e disciplina do CND. O desporto comunitário, amadorista ou profissional, sob supervisão normativa e disciplinar do Conselho Nacional de Desportos, abrange as atividades das associações, ligas, federações, confederações esportivas e do Comitê Olímpico Brasileiro, integrantes obrigatórios do Sistema Desportivo Nacionalx.

Essa passagem poderia trazer confusão para um leitor mais atento, “se o CND é o responsável por zelar pelo esporte profissional, por que o desporto amadorista estava sob supervisão do CND?”. Porque o CND era responsável por toda a atividade esportiva de alto nível, não somente profissional. A concepção de esporte profissional não dá conta da envergadura que a noção de alto nível abrange. Logo, entende-se por esporte de alto nível o esporte desempenhado com a maior perícia do território nacional, sejam atletas profissionais ou amadores. O ponto chave reside no fato de que algumas modalidades na década de 1970 desenvolveram-se menos que outras, preservando a condição amadorísticasxi, contudo, mesmo na condição de amadores, os atletas, apresentavam a melhor técnica do território nacional. Assim, esses atletas eram, ainda que amadores, os representantes brasileiros em competições internacionais daquela modalidade. Assim, o esporte desempenhado em alto nível abrange não apenas a categoria profissional, mas também a amadorística. E diante dessa situação qualquer atleta, mesmo que estudantil (universitário) ou amador, poderia pertencer

1384

ao

desporto de alto nível e, consequentemente, representar o Brasil em competições internacionais. Assim, torna-se relevante pontuar que toda associação esportiva que frequentasse a categoria comunitária se encontrava sob jurisdição do CND, exatamente pelo fato de serem associações esportivas que conseguem desempenhar o esporte em alto nível. E, logo, o governo ditatorial visava promover a integração de todas as categorias na categoria comunitária, a fim de juntar toda a nata da perícia esportiva em uma só categoria. E nela deveriam se encontrar todas as associações esportivas que desempenhassem o esporte em alto nível, independente da categoria de origem. O processo de integrar associações esportivas de diferentes categorias obedecia a um dos objetivos do PNED, elevar o potencial técnico brasileiro e revelar novos talentos para o esporte nacional.

Considerações Finais

A partir da década de 1970 foi possível observar o processo de especialização do CND, um órgão criado durante o Estado Novo para organizar o esporte nacional. A especialização se deu através de alterações pontuais nas suas funcionalidades e uma série de estudos realizados pelo governo federal a fim de designar o melhor enquadramento que pudesse ser dado ao CND. As frequentes alterações no enquadramento do referido órgão, ora sendo submetido diretamente ao gabinete do Ministro ora pertencendo aos “Órgãos de Deliberação Coletiva”, pode ser justificado em função de diferentes fenômenos que ocorreram nesse período, tais como: o processo de reforma do Ministério da Educação, a implantação do Plano Nacional de Educação Física e Desporto e em função da própria natureza singular do conselho, o qual acumulava em torno de si funções normativas, legislativas, executivas e judicantes. A condução da especialização tinha como objetivo reorganizar primeiramente as entidades públicas de gerenciamento do esporte nacional para em seguida, a partir do PNED, promover a reorganização do esporte nacional. Ressaltando que o planejamento do PNED abarcava desde a implantação da educação física nas escolas até o desenvolvimento do esporte de alto nível, contudo, a temática se mostrou verdadeiramente longa para ser tratada nesse breve trabalho. É possível perceber, inclusive, que o processo de especialização do referido conselho não alterou suas competências centralizadoras, mas definiu os limites de sua área de atuação – esporte de alto nível. O CND, então, passou a conduzir o esporte nacional de alto nível, o qual 1385

abrangia toda condução do esporte profissional, amador e estudantil. E, além disso, o conselho se encarregava de promover a integração de todas as categorias citadas em uma só organização – comunitária -, de modo que possibilitasse revelar novos talentos em elevado nível competitivo. Por fim, esse breve trabalho pretendeu mostrar o processo de especialização do CND, promovido pela ditadura militar, em gerenciar as demandas relacionadas ao esporte de alto nível, assimilando as antigas estruturas (da ditadura estado novista) e reorganizando-a de modo que melhor lhe servia. Assim, o fenômeno de especialização do CND não apenas o tornou mais completo e eficiente, como também delimitou a área de atuação deste órgão, o qual passou a deliberar pelas causas do esporte considerado de alto nível. i

Artigo 25 do Regimento do Conselho Nacional de Desportos. Apud MANHÃES, Eduardo Dias. Política de Esportes no Brasil. Rio de Janeiro: Graal. 1986. P.51. ii MANHÃES, Eduardo Dias. Op.Cit. 1986. P.37 Abordar a noção de disciplina a partir de uma eficácia operativa é apenas uma perspectiva explicativa que não dá conta de todo o problema. E apesar do claro projeto de sociedade proposto no referido Decreto-lei 3.199 há um elevado nível de abstenção quanto ao raio de ação pertinente ao CND e sua disciplinarização do desporto. O autor, então, historiciza o conceito de disciplina e o relaciona a um projeto de sociedade corporativa onde o Estado criava estruturas que se sobrepunham as entidades civis e as subjugavam em função do – ou pelo menos o que o Estado entendia por - “bem comum”. Nesse sentido, ou autor bebe da fonte Gramsciana e Althusseriana para relacionar os aparelhos de manutenção da ordem na ditadura estado novista como um projeto social hegemônico. “É bem verdade que se refere à categoria de ‘disciplina’ as medidas tidas como de caráter administrativo conjuntural, tal como obrigar que associações desportivas brasileiras adotassem regras internacionais para que competissem em pé de igualdade nas pugnas internacionais, por exemplo.” P.28. iii MANHÃES, Eduardo Dias. Eduardo Dias. Op. Cit. Pp. 27-46. iv Ibidem. P. 91. v Os órgãos de 1º grau são os vinculados diretamente à presidência da república. Os órgãos de 2º graus os vinculados aos Ministros de Estado, e Dirigentes de Autarquias ligadas à pesquisa científica e tecnologia, pura e aplicada, de alto nível; ao ensino superior; ao desenvolvimento do País no plano nacional ou regional; à previdência e assistência social de âmbito nacional; e à atividade bancária. Os órgãos de 3º graus são os órgãos de deliberação coletiva não compreendidos nas definições anteriores. Os órgãos de 1º, 2º e 3º graus recebem respectivamente a gratificação de 80%, 65% e 50% pela participação nos órgãos de deliberação coletiva. E a Força Tarefa chega a conclusão de que o CND deveria ser enquadrado como órgão de 2º grau e não de 3º. vi MANHÃES, Eduardo Dias. Op.Cit. 1986. P. 91. vii Lei 6.251 de 8 de Outubro de 1975. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/19701979/L6251impressao.htm Consultado pela última vez em 09/09/15. viii Ibidem. ix Ibidem. x Ibidem. xi Entende-se por amadores todos os atletas que não exercem o esporte como profissão, reconhecida desde a década de 1960 como categoria de “profissionais do esporte”.

1386

Os Bispos, os novos magistrados romanos – A Relação Cristianismo e império no século IV. i

Jorge Lima.

Resumo: Diante da realidade de um império em crise, o cristianismo antes perseguido, será agora visto como aquele capaz de fornecer os quadros necessários para a administração imperial. Seus líderes, os bispos, dado a sua autoridade diante do povo, em especial nas cidades, tornam-se os novos magistrados do império. A análise do processo em que isso se deu - a relação império e Igreja no século IV-, como se pode entender a autoridade do epíscopo cristão é o objetivo do trabalho proposto. Palavras chave: bispo, autoridade, magistrado. Abstract: Faced with the reality of an empire in crisis, Christianity pursued before, will now be seen as the one able to provide the frames needed for the imperial administration. Its leaders, bishops, given its authority to the people, especially in cities, become the new magistrate of the empire. The analysis of the process that took place, the empire and church relationship in the fourth century, and how to understand the authority of Episcopo Christian is the goal of the proposed work. Keywords: bishop , authority , magistrate. Dentro de um império em crise, uma seita que surge na província da Palestina e que se espalha para outros territórios, antes duramente perseguida, será agora aquela capaz de ajudar na administração imperial. A figura de seus líderes, os bispos, dado a sua autoridade diante do povo, em especial nas cidades, é percebida pelos imperadores em especial Constantino e Teodósio, como aqueles que podem se tornar os novos magistrados do império. A análise desse processo de simbiose entre império e Igreja, através da figura do bispo e a apresentação do arcabouço teórico que nos permitir compreender a autoridade desse epíscopo cristão é o objetivo desse artigo.

A relação império e Igreja_- Bispo como magistrado romano Com Édito de Milão em 313, Constantino imperador romano põem fim às perseguições, concede ao cristianismo a categoria de religio licita, os cristãos tem agora

1387

o direito de seguir livremente a sua religião, isso é um marco para a história do cristianismo e também do império romano. Mondoni nos dirá que Constantino foi além de apenas tolerar a nova fé, ele também a favoreceu através de isenções fiscais ao clero e com doações monetárias. O imperador acaba por lançar as bases que fundamentariam o futuro império cristão, proibi os sacrifícios nos lares e autoriza os bispos a julgarem os processos judiciais quando ambas as partes estivessem de acordo, proibi o auríspicioii e fecha templos no Líbano e na Fenícia. O paganismo ainda era a religião da maioria e nem Constantino ou a Igreja buscaram a homogeneidade dos súditos do império em torno da religião, acreditava-se no século IV, que não era possível buscar a conversão à força, o que buscavam imperador e os cristãos, era a abolição dos cultos públicos, segundo diz Veyne: Constantino e os cristãos, porém cuidavam menos de respeitar o domingo e de proselitismo do que de erradicar o culto dos demônios, e antes de tudo de abolir o rito principal do seu culto, o sacrifício sangrento, essa poluição que suscitava entre os cristãos uma repugnância física e os fazia tremer de horror sagrado. Para eles, o “sacrifício sangrento” era algo à parte no culto pagão. O que os chocava não era encontrar pagãos (quase que só havia pagãos em torno deles), mas topar com os restos de um sacrifícioiii.

Mondoni destaca que Constantino tem interesse na relação com o cristianismo, para esse autor: Constantino teve a clara visão da utilidade que derivaria para o Estado a aliança e o apoio do cristianismo, e a convicção do bem que operava em favor da religião e da Igreja. Acreditava numa missão especial que Deus lhe confiara em benefício do estado e da Igreja, e era convicto da necessidade de uma harmonia entre as duas esferas; sentia-se como patrono da Igreja - permitia que a fórmula “Pontifex Maximus” fosse cunhada nas moedas – apresentava-se como servo de Deus para humanidade e definia-se como “ bispo constituído por Deus para a humanidade fora da Igreja”. Movido pelo desejo de manter a ordem, e também pelo interesse por problemas religiosos, interveio em questões dogmáticas e disciplinares; preocupava-se como o perigo político que os dissenso religiosos constituíam, ao menos potencialmente, e queria restabelecer a unidadeiv.

Peter Brown ao tratar desse período constantiniano, destaca que foi o tempo que trouxe as igrejas cristãs, a paz e a possibilidade de assumirem de forma rápida, uma contundente posição local, o imperador se depara com uma instituição capaz se mobilizar e redistribuir riquezas, ele mesmo se torna um grande doador cristão, as grandes igrejas basiliscasv que construiu em Roma, Antioquia e Jerusalém são exemplos de sua generosidade, o autor no diz que se trata de “sermões em pedra”, imensos salões que com capacidade para 4000 pessoas com isso segundo Brown: Através deles,

1388

Constantino tornou real o sonho dos primeiros cristãos de ter em cada Igreja local um “povo sagrado” unido, reunindo frequentemente em vastas assembleias em torno ao seu chefe, o bispo. ”vi Essas novas construções estavam interligadas a outras , segundo Brown o que consideramos como Igreja nesse período , é um complexo de edifícios que incluíam: um secretarium, uma sala de audiências, um palácio episcopal, armazéns de vitualhas para os pobres e um grande pátio semelhante ao que se tem nas casas da nobreza urbana romana, onde se podiam ter banquetes caritativos, distribuição de esmolas, ou serviam como ponto de encontro, onde os fieis se inteiravam das notícias locais. Estes edifícios também ajudaram no surgimento de um novo estilo de administração urbana. O clero cristão que gozava de privilégios como isenção de impostos e dispensa de executar serviços públicos, se expandiu cada vez mais rápido em um momento, conforme destaca Brown, que os conflitos existentes no império paralisaram as outras associações cívicas. Segundo o autor: Ligada por juramento ao “seu” bispo, toda uma hierarquia de padres diáconos e clérigos menores formavam uma espécie de ordo em miniatura , tão subtilmente graduada como o conselho de qualquer cidade , e igualmente ciosa dos seus privilégios. Constantino esperava que o bispo actuasse como juiz e arbitro exclusivo nos problemas entre cristãos, e até entre estes e não cristãos. A litigação civil normal tornara-se proibitivamente cara; em resultado disso, o bispo, já considerado como o juiz do pecado ente os crentes, transformou-se no Provedor de justiça da comunidade local no seu conjuntovii.

Outro autor que trabalha com essa perspectiva do bispo agindo como juiz, é Capdevila, para ele se pode dizer que quando Constantino reconhece a Igreja como collegium licitum, é um prelúdio à sua instrumentalização, pois o tribunal episcopal oferece mais rapidez na resolução dos litígios devido a sua pouca formalidade e, além disso, a figura do bispo tem o respeito popular, ele é uma autoridade reconhecida. Na constituição de 318viii, Constantino concede que se encontrando em processo um caso civil – negotium - diante de um tribunal público seja possível transferir à competência a autoridade episcopal – episcopale iudicium - se alguma das partes assim o solicitar, com isso diz o autor: Pode-se inferir, não sem dúvida razoável, de que isso define o episcopado acima ou talvez melhor, ao lado dos magistrados públicos cidadãos, já que tem a capacidade de interromper um processo e julgar execução de plena jurisdição da autoridade imperial...ix.

1389

O edito de Tessalônica representa outro grande acontecimento para a história do cristianismo, Teodósio imperador do oriente, reconhecido cristão, promulga em 27 de fevereiro de 380 o citado documento, que se dirige a população de Constantinopla, mas, na verdade se apontava para todos os súditos do império onde impõem a fé cristã a todos. A simbiose crescente entre Igreja e Estado iniciada com Constantino tem em Teodósio sua sanção universal através de seu ato jurídico. O Estado interveio diversas vezes nos dissensos religiosos, entendendo que isso constituía um risco a unidade política, e nesse período há uma evolução da legislação romana, por influência do cristianismo, tais como: a) as condições dos escravos melhoraram: o ato de matar um escravo foi equiparado ao assassinato; proibiu-se a tortura, a marca com o ferro em brasa e a separação da família em caso de divisão do patrimônio; favoreceu-se a emancipação, simplificando-se a praxe; b) proibiu-se a crucifixão; suprimiu-se a faculdade concedida ao juiz para destinar os culpados aos jogos dos gladiadores; c) o assassinato de uma criança a mando da autoridade paterna foi equiparado ao patricídio; proibiu-se o abandono ou exposição das crianças d) aboliu-se as sanções de Augusto contra o celibato e a falta de prole ; e) reconheceu-se o domingo como dia festivo( dia de descanso e de culto)x.

A Igreja que tinha pouca influência no império, no século IV tornou-se importante aliada do poder constituído, o aumento de poder também veio com o aumento de riqueza. Os bens eclesiásticos provinham da transferência para a Igreja: de templos pagãos supressos, doações de famílias cristãs. Segundo Mondoni lei de 318xi tendeu a transformar os bispos em funcionários do Estado, no oriente surgiu o foro eclesiástico e o clero tendeu a se tornar uma casta especial dotada de privilégios próprios, conforme ainda diz o autor: As instituições eclesiásticas desenvolveram-se esforçaram-se modelando-se mais ou menos às estruturas estatais. O cristianismo tornou-se um fenômeno de massa (conversões por convicção, interesse e comodismo) xii. Sobre esse período se percebe que o governo imperial incluiu a Igreja em suas estruturas, sancionou sua legalidade, dotou de privilégios através de concessões. As cidades serão o lugar onde se percebe maior influencia, a atuação dos bispos se faz mais evidente, sobretudo a partir da gradual cristianização de Roma. Isso reforça a posição de Bourdieuxiii, em que o autor destaca que as grandes religiões universais, o

1390

cristianismo

se inclui, se desenvolvem e surgem associados à urbanização e a oposição de cidade e campo. Com a chegada ao poder de Teodósio se inicia uma nova política religiosa, que é mais combativa, pois pretende a unidade religiosa de todos os habitantes do império, só que para alcançar esse objetivo se fazia necessário, fortalecer a figura do bispo: Este cargo, na época teodosiana, recebe uma especial atenção por parte dos governantes, pois, como chefe da comunidade religiosa cristã tem um grande poder sobre os seus fieis, os imperadores conhecedores deste fato, procuram assegurar-se que este fator nunca seja usado contra a sua pessoaxiv.

Conforme já citado o Edito de Tessalônica se dirigia ao povo da cidade de Constantinopla, mas na verdade o intuito era impor a todos do império que seguissem a religião de Pedro. No entanto, cabe destacar que Constantinopla era a cidade onde os arianos, mas possuíam igrejas. Era a cidade que o imperador administrava e seu exército garantiria o cumprimento de sua ordem, além disso, catolicizar a nova Roma, lhe traria um forte apelo psicológico na luta contra o arianismo. No Edito de Tessalônica não se menciona o credo de Nicéia, pode-se interpretar essa omissão como uma opção política que buscava evitar a alusão ao “controverso credo católico”

xv

. Ao invés disso ele indica que a fé do Império é a que seguem

Dâmaso de Roma, Pedro de Alexandria , bispos das sedes mais importantes do império. Essa lei tem um importante significado, pois a partir desse momento a nível oficial, só teriam duas categorias de cristãos, os católicos e os que a eles se opõem, os hereges. No ano seguinte a promulgação do edito, em resposta a uma petição do concílio de Constantinopla convocado por Teodósio para tratar do tema da fé, o imperador volta a definir a fé confeccionando uma lista completa dos bispos considerados ortodoxos. Nessa lista dos bispados estão citados todas as dioceses do oriente e não há nenhuma alusão as cidades ocidentais, isso se deu devido a intenção de Teodósio erradicar a heresia ariana tão presente no oriente, do ocidente ele já havia citado a fé de Dâmaso no edito de Tessalônica. Buenacasa destaca: Para ser católico é preciso manter a comunhão com esses bispos, disso se deduz que mediante este sistema, para forçar todo o clero a manter comunhão com eles, o imperador pretende detectar aqueles que de nome se faziam passar por nicenos, mas não o eram. Mas também não se trata somente de ter atada de pés e mãos a hierarquia eclesiástica, entretanto, além disso, se tentava controlar os fieis, dado que esta medida não permite a profissão nicena privada. A partir desse momento,

1391

a fé de cada um desses se deve expressar publicamente por meio de uma atuação visível com respeito a uns determinados bisposxvi.

Desta forma o imperador se definiu a favor de uma das profissões de fé cristã, a católica, rechaçou aqueles que a recusavam , tratando-os como inimigos da Igreja e por conseguinte do Estado, de outra forma esta lei instituiu o bispo como colaborador do monarca, encarregado de descobrir em suas comunidades quem são aqueles que não seguem a norma estabelecida. Segundo Rappxvii, na literatura cristã do século IV a expansão da igreja e a ascensão do cristianismo a categoria de religio licita , depois religião oficial do império , acabou por trazer um renovado interesse pelo episcopado , uma maior consciência da imagem pública dos representantes da igreja e muitos mais autores agora procuram, como Inácio já tinha feito dois séculos antes, que o bispo seja um digno porta-voz do cristianismo, e que ele aja como um modelo para suas comunidades Conforme diz Franco Juniorxviii a Igreja é a herdeira do império, por isso precisava ter sua própria hierarquia, realizando e supervisionando os ofícios religiosos, orientando sobre os dogmas, executando obras sociais e combatendo o paganismo. Todas essas atividades se concentravam nas mãos de poucos cristãos , segundo o autor isso era aceito com naturalidade pelos demais fieis , pois acreditavam que esse poder lhes era concedido pela própria divindade, tal como se encontra nos textos bíblicos em que Cristo delegou funções aos seus apóstolos e os mesmo aos anciãos das comunidades que por sua vez fizeram o mesmo com outros. Por isso destaca Franco Junior: “Desde o principio por sua própria natureza, o clero estava distanciado dos demais cristãos”xix A Igreja , dentro de um império em crise, será ,como citado anteriormente, aquela que fornecerá quadros para compor a administração imperial e também a se aproveitar da estrutura romana. O episcopado cristão durante esse período, captará o que sobrou do arcabouço urbano romano de tal modo que a função episcopal será investida pela aristocracia, é o que Baschet denomina “aristocratização da Igreja”xx.

A distinção teórica do ofício episcopal – Compreensão da autoridade episcopal Ao se analisar a história do cristianismo o seu processo de organização se dá através da distinção de funções na comunidade, no caso do ofício episcopal ele se

1392

sobressai ainda no inicio da era cristã, mas ele se encaixa em um processo que ressalta Gibbon: O avanço da autoridade eclesiástica deu origem à memorável distinção entre laicato e clero, distinção que gregos e romanos haviam desconhecido. A primeira dessas denominações abrangia o conjunto da comunidade cristã; a segunda em conformidade com a significação da palavra se adequava à porção seleta e reservada para o serviço da religião, uma célebre ordem de homens que forneceu a história moderna os assuntos mais importantes, embora nem sempre os mais edificantesxxi.

Sobre esse processo de distinção entre clérigos e leigos, podemos encontrar referência em Bourdieu o autor, destaca esse processo como a monopolização dos bens de salvação por um corpo de especialistas, tal conceito que o autor toma de Weber, esses especialistas seriam os únicos capazes de gerir esses bens. Bourdieu destaca que o desenvolvimento das cidades provoca transformações em particular no campo da divisão do trabalho material do intelectual isso abre espaço para a constituição de um campo religioso relativamente autônomo e desenvolve uma necessidade de moralização e sistematização da religião. As grandes religiões universais, o cristianismo é uma delas, segundo Bourdieu tem o seu aparecimento e desenvolvimento associado à urbanização e a oposição entre cidade e campo, que marcam uma ruptura essencial na história da religião e traduzem uma das divisões religiosas mais importantes em toda a sociedade afetada por esse tipo de oposição. Bourdieu ao analisar a condição do sujeito no campo, tendo com referência Marx, nos dirá que pela sua própria condição de trabalho, ele está subordinado ao mundo natural, o que o leva a “idolatria da naturezaxxii”, também tem a dispersão da população rural, o que dificulta as trocas econômicas e simbólicas e em consequência a consciência de coletividade. No entanto, ao tratar das transformações vindas com a urbanização nos dirá o autor: Ao contrário, as transformações econômicas e sociais correlatas à urbanização seja o desenvolvimento do comércio e sobretudo do artesanato , atividades profissionais relativamente racionalizadas ou racionalizáveis , seja o desenvolvimento do individualismo intelectual e espiritual favorecido pela reunião de indivíduos libertos das tradições envolventes das antigas estruturas sociais , só podem favorecer a “ racionalização” e a moralização” das necessidades religiosasxxiii.

O corpo de sacerdotes está ligado diretamente nesse processo de racionalização da religião a sua legitimidade, está edificada numa teologia em dogmas cuja validade e perpetuação é ele mesmo quem garante, além disso, diz Bourdieu:

1393

O trabalho de exegese que lhe é imposto pelo confronto ou pelo conflito de tradições mítico-rituais diferentes, desde logo justapostas no mesmo espaço urbano, ou pela necessidade de conferir a ritos ou mitos tornados obscuros uma sentido mais ajustado às normas éticas e à visão do mundo dos destinatários de sua prédica, bem como a seus valores e a seus interesses próprios de grupo letrado, tende a substituir a sistematicidade objetiva das mitologias pela coerência intencional das teologias, e até por filosofiasxxiv.

O monopólio dos bens de salvação exercido por esse corpo de especialistas, em nosso caso os bispos, faz com que, segundo Bourdieu: Enquanto resultado da monopolização da gestão dos bens de salvação por um corpo de especialistas religiosos, socialmente reconhecidos como os detentores exclusivos da competência específica necessária à produção ou a reprodução de um “corpus” deliberadamente organizado de conhecimentos secretos (e portanto raros), a constituição de um campo religioso acompanha a desapropriação objetiva daqueles que dele são excluídos e que se transformam por esta razão em leigos ( ou profanos , no duplo sentido do termo)destituídos do capital religioso ( enquanto trabalho simbólico acumulado) e reconhecendo a legitimidade desta desapropriação pelo simples fato de que a desconhecem enquanto tal.xxv

È possível a partir do que nos traz Bourdieu , retomarmos o modelo de análise da autoridade episcopal, de Rapp , quando o autor nos diz que esse monopólio é “socialmente reconhecido”, isso dialoga com o conceito de autoridade ascética , em que nesse, os fieis reconhecem que seu Bispo é alguém de vida reta, e que por isso devem imitá-lo e obedecê-lo . Alguns autores cristãos distinguiram os epíscopos até mesmo dos demais que compõem a hierarquia eclesial, se tomarmos como exemplo, a afirmação que traz Inácio: o Bispo é sucessor dos apóstolos , que por isso recebeu o mesmo Espírito derramado sobre esses. Isto os inclui num grupo específico que tem a competência, segundo a ideia de Bourdieu de produzir e reproduzir um corpus organizado de conhecimentos secretos. Bourdieu também tratará sobre a questão da distribuição do capital religioso, que pode atender a polos extremos o auto consumo de um lado e a monopolização de outro, esses tipos de estruturas de distribuição vão corresponder a tipos distintos de relações objetivas com os bens religiosos. O domínio prático dos bens religiosos, é aquele que é comum a todos os membros de um grupo, é adquirido em estado implícito por familiarização e praticado no modo pré-reflexivo, esses são os consumidores, os leigos. Já o domínio erudito é reservado aos especialistas, o clero, pertencentes a uma instituição que é incumbida de reproduzir o capital religioso através de uma ação pedagógica, tem a propriedade de composto de normas e conhecimentos explícitos sistematizados. Os bispos são o corpo de especialistas no cristianismo, aqueles que detêm esse domínio erudito que fala Bourdieu. No processo de organização da Igreja esses homens

1394

terão um papel fundamental, debaixo de sua autoridade as comunidades se estruturam e passaram a formar um corpo mais coeso, é o início de uma instituição que no século IV passará a integrar o império romano. A partir do século IV, os bispos terão cada vez mais a sua autoridade reconhecida e exercida, diante das suas comunidades e da sociedade romana, a relação igreja e império é cada vez mais próxima a ponto de um se apropriar do outro. O corpo de especialistas do cristianismo nessa relação simbiótica cada vez mais se aristocratiza, a seita perseguida se torna a Igreja perseguidora, os lideres das comunidades, agora são magistrados romanos instalados em basílicas, o império romano nesse processo se tornou cristão. .

i

Graduado em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, com especialização em curso em História Antiga e Medieval pela Faculdade São Bento do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]. ii

Segundo Mondoni, trata-se do prognóstico do futuro feito por meio das entranhas dos animais. MONDONI, Danilo. Relação Igreja-Estado na Antiguidade. In: História da Igreja na Antiguidade. Edições Loyola, São Paulo 2001. PP 43-57. iii

VEYNE, Paul. Um século duplo: o Império pagão e cristão. In: Quando nosso mundo se tornou cristão. Tradução Marcos de Castro. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2010. P.155-156. iv MONDONI, Danilo. Relação Igreja-Estado na Antiguidade. In: História da Igreja na Antiguidade. Edições Loyola, São Paulo 2001. P. 51. v

Brown diz que a palavra basiliscas , significa “salões reais” , já que o nome basílica vem de basileus que implica em rei. (BROWN, Peter. Tempora Christiana: Tempos Cristãos In: - A Ascensão do Cristianismo no ocidente. Direção de Jacques Le Goff , Coleção Construir a Europa, tradução de Eduardo Nogueira , revisão PR Saul Barata , 1ª edição , Lisboa : Editorial Presença , 1999. P. 55-56). vi

BROWN, Peter. Tempora Christiana: Tempos Cristãos In: - A Ascensão do Cristianismo no ocidente. Direção de Jacques Le Goff, Coleção Construir a Europa, tradução de Eduardo Nogueira, revisão PR Saul Barata , 1ª edição , Lisboa : Editorial Presença , 1999. P. 56. vii

Idem viii

viii

Capdevila , diz que essa constituição encontrada no Código Teodosiano 1, 27,1 , reconhece a autoridade judicial do bispo , e confere jurisdição e caráter executivo a sentença. (CAPDEVILA, Pere Maymó i. La episcopalis audientia durante la dinastia teodosiana.Ensayo sobre el poder jurídico del obispo en la sociedad tardorromana”. Congresso Internacional La Hispania de Teodósio I, Salamanca 1997, P. 165). ix

CAPDEVILA, Pere Maymó i. La episcopalis audientia durante la dinastia teodosiana.Ensayo sobre el poder jurídico del obispo en la sociedad tardorromana”. Congresso Internacional La Hispania de Teodósio I, Salamanca 1997, P. 166. (Tradução nossa). x xi

Idem iv P.55. Idem x

1395

xii

Idem xi P.56 BOURDIEU, P. Gênese e Estrutura do Campo religioso. In : - A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva. 1992. pp 27-78. xiii

xiv

BUENACASA PEREZ, C. La Figura del obispo y la formación del patrimônio de las comunidades cristianas según la legislación imperial del reinado de Teodosio I ( 379-395). Studia Ephemeridis Augustianum 58(1997), I , P. 1 ( Tradução nossa). xv xvi

Idem xvi P.3. ( Tradução nossa) Ibidem xvi P.4. (Tradução nossa)

xvii

RAPP, Claudia. Holy bishops in late antiquity: the nature of Christian leadership in an age of transition University of California Press Berkeley and Los Angeles, California University of California Press, Ltd. London, England , 2005. FRANCO JÚNIOR, Hilário. – A Idade Média , nascimento do ocidente – São Paulo: Brasiliense, 2006. xix Idem xx. P. 68. xviii

xx

BASCHET , Jérôme . Gênese da sociedade cristã: A Alta Idade Média. In : A civilização feudal .Do ano mil à colonização da América . Tradução Marcelo Rede. São Paulo : Editora Globo , 2006 xxi GIBBON , E. O avanço da religião cristã e os sentimentos, costumes, número e condição dos cristãos primitivos. In: Os cristãos e a queda de Roma; tradução de José Paulo Paes e Donaldson M. Garschagen; notas suplementares de José Paulo Paes – 1ª edição – São Paulo :Penguim Classics Companhia das letras , 2012. P. 59. xxii

Marx,1968 apud Bourdieu , org. 1992 Idem xv P.35 xxiv Idem xv P.38 xxv Ibidem xv P.39 xxiii

1396

Mistério e Religiosidade no Hipólito de Eurípides Jorge Steimback Barbosa Junior (Mestrado – UFRJ) Resumo Diferentes interpretações sobre as relações entre a tragédia clássica ática e religiosidade ateniense têm sido desenvolvidas pela historiografia. Quanto a isto, Eurípides geralmente é considerado um ponto de inflexão, na medida em que os deuses homéricos são problematizados e em suas peças as questões da interação entre o divino e o humano revestem-se de uma tônica proposta pela reflexão sofística e filosófica. No presente trabalho propomos a análise do Hipólito sob a perspectiva de uma aproximação aos cultos de mistério. Palavras-chave: Euripides, Orfismo, Tragédia. Abstract Historiography has proposed several different interpretations concerning the relations between the classical atic tragedy and Athenian religiosity. Regarding that matter, Euripides is generally considered to be a turning point, since he problematizes Homeric gods and his plays are invested by a tonic proposed by sophistic and philosophy. In this paper, we intend to examine the Hyppolitus under the optics of an approximation to the mystery cults. Keywords: Euripides, Orphism, Tragedy.

É um fato curioso que, mesmo considerando a distância temporal que separa as tragédias gregas de seus espectadores modernos, estas ainda possam, instintivamente, provocar os sentimentos de terror e compaixão, cuja catarse, segundo Aristóteles, (Poética 1449b) constitui a finalidade da tragédia. Fenômeno esquivo, o auge da tragédia não durou mais que um par de décadas, e a mesma teorização aristotélica a que aludimos pode ser reivindicada como marco de uma necessidade explicativa; necessidade que os contemporâneos de Aristóteles, homens do século III AEC, tinham,

1397

pois já estavam eles próprios distanciados grande medida do “espírito trágico” que animava seus antecessores. Dentre as diferentes tradições historiográficas que se constituíram em modelos que visam a dar conta do fenômeno trágico, poderíamos distinguir três linhas gerais, segundo as articulações explicativas que tendem a ser preferidas por seus autores: a questão da relação entre tragédia e democracia ateniense, ou entre tragédia e o “universo espiritual da polis” (da qual citaríamos como representante Jean-Pierre Vernant); a relação entre tragédia e religiosidade cívica (da qual citaríamos como representante Christiane Sourvinou-Inwood) e, por fim, a relação entre tragédia e um conteúdo filosófico intrinsecamente trágico, que se subdivide em diferentes categorias, mas que, em sua abstração serve, em alguma medida, de modelo para a tragédia moderna (tendência personificada por Albin Lesky). Vernant aponta como “mola trágica” a ambigüidade existente entre diversos níveis do direito, da tradição religiosa e da palavra. Tais tensões viriam à tona na constituição da polis democrática e na passagem que esta supõe entre um direito de estirpe (genos), aristocrático, religiosamente fundado no culto aos heróis e às divindades fundadoras de famílias, apoiada na palavra de poder, palavra eficaz, restrita ao conhecimento de poucos ao direito publicizado e à isegoria e à responsabilidade coletiva das decisões em assembléia. A perspectiva em certo sentido institucionalista de Vernant, privilegiando o estudo dos órgãos oficiais e dos cidadãos da polis explica-se, em parte, por sua filiação ao projeto intelectual de investigação da antropologia do direito nas sociedades antigas, começado por seu antigo professor, Louis Gernet. Assim, na interpretação de Vernant, a tragédia nasce em “um período de crise em que mudanças e rupturas, mas também continuidades, estão bastante misturadas para que um confronto, às vezes doloroso, se estabeleça entre as antigas formas do pensamento religioso, sempre vivas nas tradições legendárias, e as novas concepções ligadas ao desenvolvimento do direito e das práticas políticas” (VERNANT, 2008, p. 49)

Ou ainda “O momento da tragédia é, pois, aquele em que se abre, no coração da experiência social, uma distância bastante grande para que, entre o pensamento jurídico e social, de um lado, e as tradições míticas e 1398

heróicas, de outro, as oposições se delineiem claramente” (Idem, p.4). Numa frase lapidar, a tragédia consiste no momento em que os mitos são vistos desde a óptica do cidadão (VERNAT, 2008, p. 10). Entretanto, Vernant admite que não há “universo espiritual” autônomo e, nesse sentido, as práticas cotidianamente desenvolvidas, renovadas (e, diríamos, contestadas) o constituem. A poderosa afirmação não é, no entanto, levada às suas plenas conseqüências na medida em que Vernant opta por privilegiar o aspecto institucional políade da tragédia, em entendê-la “como instituição social (...) que a cidade coloca ao lado de seus órgãos políticos e judiciários” (Idem, p. 10). Portanto, apesar de concordarmos, em linhas gerais, que a chave interpretativa do trágico consiste nas ambigüidades que encerra e que o modelo adéqua-se de maneira bastante razoável às obras de Ésquilo e Sófocles (algo que também o historiador francês parece ter notado, na medida em que se reporta a exemplos dos dois trágicos supracitados em bastante maior medida que a Eurípides), não poderíamos concordar, ao menos não totalmente, que o modelo aplica-se ao Hipólito porquanto, apesar de os caracteres representados serem da realeza fundadora de Atenas (o caráter “elevado” dos personagens, aliás, é uma das indicações da teorização aristotélica na Poética, 1449b), o conflito desenvolvido na peça não opõe um direito ancestral ao direito político (como na Antígona) ou um direito cívico ao direito de sangue (como na Orestéia). A oposição cerne desta tragédia é aquela entre duas potências divinas: uma enquanto engendradora e mantenedora da vida por meio da reprodução e outra enquanto natureza contida, oposição esta que resvala para o domínio humano acarretando o desejo não correspondido de Fedra, a intriga palaciana com a acusação contida nas mãos da rainha suicida e a exigência de uma retribuição através tomada de uma vida por conta do suposto atentado contra o leito paterno. Não há aí conflito de direitos, há um direito humano sendo tomado como mote na punição de um mortal pela hamartía da nãoadoração de Cípris. Mais próxima nos parece a proposta de Christiane Sourvinou-Inwood, no sentido de que a tragédia possa ser considerada uma “exploração religiosa da polis”. Por meio da expressão a autora afirma que, devido a certos mecanismos incorporados pela mimese teatral, os temas candentes à constituição da polis enquanto comunidade de culto no momento histórico de autoria das peças são apropriados e, pelo mecanismo de

1399

projeção na mimese, lançados para longe no tempo e no espaço, de forma que existiria uma minoração das paixões partidárias envolvidas. Os mecanismos incorporados à mimese consistem, grosso modo e usando a terminologia da estudiosa, em aproximação (zooming) e distanciamento (distancing), que podem aproximar ou afastar o caracter mimetizado do mundo do espectador: Nessas circunstâncias, a dupla perspectiva entre o mundo da audiência e o mundo da peça , gerados quando o cenário é a idade heróica por causa da natureza dessa era e de sua relação com o presente, era claramente fundamental permitir que a tragédia explorasse tanto as questões à distância quanto os relacionasse diretamente às experiências dos espectadores, com as distâncias manipuladas através de artifícios de distanciamento e aproximação (SOURVINOU-INWOOD, 2003, p.

23, tradução nossa). Sourvinou-Inwood tem o mérito de criar uma hipótese explicativa que relaciona a ambiência social ao texto de forma arguta, mas opta por centrar sua pesquisa na relação desenvolvida entre as instituições religiosas da polis e a tragédia, portanto, seus exemplos tendem a privilegiar aspectos da religião “formal”, como as etiologias de rituais e cultos, por exemplo, quando se estende longamente sobre a cena, nunca presente, mas sempre pairante, do sacrifício humano em Ifigênia em Áulis para fazer menção ao estabelecimento do sacrifício cívico de animais (e, poderíamos acrescentar, do Prometeu Acorrentado para a partilha das partes sacrificadas). Sua perspectiva, portanto, não é totalmente distante da de J-P. Vernant, na medida em que ambos consideram que a representação trágica teria por fim a confrontação do cidadão com a origem mítica das linhagens e instituições políades, seja no sentido de confrontá-los (confrontar seus direitos), reafirmá-los, explicá-los. As críticas que fizemos acima a Vernant, são portanto, co-extensivas a Sourvinou-Inwood. Ambos, ao privilegiarem o ponto de vista do cidadão e das instituições políades, parecem reinscrever-se numa visão historiográfica que remonta a Werner Jaeger, com sua venerável obra, a Paideia, na qual o filósofo alemão desenha uma relação entre a assistência aos espetáculos trágicos e a educação, a formação, do cidadão. Neste ponto parece-nos necessário retomar a dicotomia formulada por Marta Mega de Andrade entre a “polis dos habitantes” e a “polis dos cidadãos”: certamente a audiência dos teatros não era composta apenas por cidadãos, nem mesmo só por homens; ousaríamos dizer até mesmo que possivelmente os cidadãos não fossem maioria, pois o espaço social, o espaço cotidiano, da polis vivida, supunha um conjunto

1400

de trocas e diálogo entre cidadãos e não cidadãos (a este espaço de fronteiras fluidas a estudiosa chama “polis dos habitantes”), fato que tende a ser obliterado pelo discurso oficial ou pelo discurso prescritivo, filosófico, de tendências oligárquicas (a “polis dos cidadãos), preocupados que estão na reafirmação das diferenças entre os dotados do estatuto de cidadania e os dele privados ou na plasmação de uma imagem ideal. De fato, a própria necessidade de reafirmação das diferenças depõe como argumento de que a prática as contesta e que, portanto, devem ser constantemente reiteradas no nível ideológico. Prosseguiremos nosso trabalho tentando ter em mente que a religiosidade abordada pela tragédia não tem porquê necessariamente restringir-se àquela oficial e que as audiências compreendiam grupos outros que o cidadão, portanto. A menção explícita a Hipólito como seguidor de Orfeu surge nos versos 952955, quando da ocasião de um ágon entre Teseu e Hipólito. O pai, informado por um bilhete encontrado nas mãos de sua esposa morta de que o filho a teria seduzido, diante da negativa do jovem afirma: “Bem pode vangloriar-te. Apregoa a tua alimentação de regime vegetariano e, sob a inspiração de Orfeu, entra em delírio e presta honras a tantos escritos que não passam de fumo. Foste apanhado. Que todos fujam de pessoas desta espécie é o que eu proclamo”. Chamamos a atenção para o quanto esta passagem se aproxima da de Platão em República, 364b-365, na crítica que o filósofo faz aos andrajosos “iniciadores de Orfeu” que vagam de cidade em cidade para vender escritos revelados e purificar os habitantes de suas faltas; o que se coaduna com a referência no verso 102; quando, ao ser admoestado por um servo sobre o devido culto a Afrodite, Hipólito contesta “de longe a saúdo, pois sou puro”. Consideremos que na religião políade o contato sexual não era encarado como transmissor de uma mácula, mas talvez pudesse sê-lo para os ascéticos órficos. Nas notas que foram junto à tradução portuguesa, Bernardina de Sousa chama a atenção para o debate sobre o “orfismo” de Hipólito, fazendo um breve excurso pela bibliografia, mas sem chegar a uma conclusão. Como principal argumento em contrário, retoma estudo de E.R. Dodds ao afirmar a implausibilidade de que Hipólito fosse um iniciado, visto que a narrativa a todo o tempo enfatiza seu papel de caçador e que o sacrifício cruento ou mesmo a caça seriam incompatíveis com a crença órfica, pois a metempsicose poderia causar que, ao sacrificar ou caçar um animal, se estivesse matando o outro corpo de um amigo ou familiar já falecido.

1401

Argumentaremos, no entanto, que não há nenhuma cena que sugira um dispositivo visual para representar a caça no teatro e que, portanto, não temos como saber se o que Eurípides tem em mente diz respeito à morte posterior do animal caçado ou se seria algo mais próximo ao que modernamente chamaríamos de “caça esportiva”, uma espécie de exercício que incluiria o engenho e as habilidades físicas necessárias para a captura, mas poderiam comportar a libertação da presa. Adicionalmente, e o que nos parece fazer mais sentido, deve-se ter em mente que a figura do caçador é uma referência importante na ideologia etária da polis na época em que Eurípides escreve. A figura do caçador está associada ao estágio etário imediatamente anterior àquele da efebia; e se esta supunha participação nas campanhas militares e na defesa da polis, os exercícios de caça estavam destinados a familiarizar o jovem com o manejo preciso das armas. É-nos lícito considerar que a retratação de Hipólito com características órficas insere-se em um conjunto de tensões que estruturam a tragédia em questão. Aludimos já a uma delas quando tratamos da questão etária. Podemos imaginar o jovem príncipe ateniense “recusando-se a cultuar Cípris”, o que implica um impedimento em que contraia casamento e gere uma descendência legítima, com isto, definitivamente instalando-se na idade adulta. Igualmente pode-se imaginar que a hamartía de Hipólito consiste na negação de Afrodite enquanto daimon propiciador da continuidade da vida, materializada na escolha de Ártemis como deusa patrona, sendo esta, uma deusa virgem, segundo a tradição; escolha esta que retoma a metonímia da caça e da ideologia etária da polis. A proximidade com Ártemis faz com que se desvele um outro núcleo de tensões contidas na narrativa. Se ao negar Afrodite e a potência de continuidade de vida que esta representa, Hipólito em alguma medida destaca-se da esfera do ordinariamente humano; também o faz a amizade especial que lhe é votada pela deusa de Brauron, que inclusive o assiste em sua agonia e lhe institui um culto em Tresena, a ser celebrado pelas donzelas antes do himeneu. Hipólito não está destinado ao Hades, mas, nos versos 1415-1417, a deusa assegura-lhe que “nem mesmo nas trevas subterrâneas se abaterá impunemente sobre teu corpo (..) a cólera por tua piedade e retidão de espírito”. Igualmente há tensão espacial: os campos e espaços de caça opõem-se ao palácio enquanto espaço de condução dos negócios da cidade. No espaço palaciano, os

1402

cortes da dimensão física somam-se à ideologia de gênero políade: os aposentos de Fedra abrigam a maquinação, ardil desprovido de prudência, métis sem phrônesis, personificadas as características da funesta estirpe de Pandora não na jovem rainha, mas na ama que conspira contra o tálamo de seu senhor para a consecução do fruto da loucura inspirada por Afrodite à sua senhora; nos aposentos de Hipólito, a honra que rejeita a traição e a ameaça à soberania paterna. Mencionemos ainda a temática do desejo proibido, ou desejo indizível, cara a Eurípides: a mania enviada por um deus não necessariamente toma a forma do terror externo que se impinge à mente do acometido (como aquele que as Fúrias instilam em Orestes), mas comumente trata-se do afloramento do desejo de uma imersão total na alteridade: tal é o caso de Penteu, que, ao ser convencido por Dioniso sob as vestes de sacerdote estrangeiro, traveste-se de mulher e aproxima-se a ver o que faz o tíaso. Penteu tem uma irresistível vontade de saber ou, antes de confirmar o que pensa saber; de testemunhar as mulheres que pensa estarem entregues aos prazeres sensuais. Sua autoridade real não lhe basta para se acercar e, portanto, precisa tomar formas que não sejam reconhecíveis pela mênades e, ao fazer-se uma delas, abraça a aniquilação. Não é isto o que se passa em Hipólito. Se Penteu, que cometeu a hamartía, é acometido pelo desejo destruidor, Hipólito não é por ele acometido (diríamos que porque Hipólito já está sob o signo do Outro). Para que a ação atinja o ponto que Lesky denomina o conflito trágico cerrado (LESKY, 1971, pp. 17-45), a loucura divina deve recair sobre Fedra; não apenas porque sua família comporte o miasma da relação sexual entre Pasífae e o Touro; mas porque Hipólito pode resistir aos rogos de Fedra, transmitidos pela ama; mas, considerando o discurso grego clássico sobre o gênero feminino, seria de estranhar, caso a situação fosse invertida, que Fedra pudesse resistir a um Hipólito tomado de paixão divinamente inspirada. Penteu soçobra por ceder ao desejo que o consome; Hipólito o faz por não aquiescer ao desejo de outrem. Aristóteles, entre as passagens 1450b e 1451a da Poética, define o enredo trágico como uma composição de ações ou trama de feitos, una e de certa extensão, cujas partes estão ligadas por relações de causalidade. Igualmente o estagirita define o mito como substrato sobre o qual a tragédia elabora na passagem 1447a. A nosso ver, isto pode significar que, dado um universo de narrativas circulantes sobre um conjunto de caracteres, cabe ao poeta, sem violar os dados mais essenciais que são de conhecimento

1403

comunitário, suscitar o terror e a piedade (cuja catarse é o objetivo da mimese trágica), mas podendo encadear o enredo de forma relativamente livre. Demos um exmplo, ao tratar da linhagem labdácida, Sófocles mantém os dados básicos da recensão mítica em que se apóia (o miasma de Édipo pelo assassinato do pai, o casamento com a mãe, a peste que se abate sobre Tebas, o ato de furar os olhos, etc), mas impõe uma organização própria aos elementos tradicionais do mito: ao enquadrar a narrativa sobre Édipo num esquema que segue um inquérito jurídico, o trágico ateniense remodela o mito, incluindo-lhe um elemento estranho (pois o inquérito não poderia existir nas versões mais antigas, que remontam ao período arcaico, onde predominava a palavra mágico-eficaz e não a palavra verdadeira, para usar a distinção de Foucault), mas que parte de seu próprio tempo. Com isto, às diferentes possibilidades de elaborar sobre um mesmo mito de base, corresponderiam formas melhor ou pior sucedidas de suscitar terror e piedade, formas sobre as quais a Poética visa teorizar, mas que difeririam em certo sentido na sensibilidade com que poderiam ser recebidas junto ao público, como poderiam causar-lhe uma empatia por aisthesis. Considerando o que expusemos acima, Eurípides dispunha de um mito, cujos elementos gerais eram conhecidos de sua audiência, mas cujo enredo moldou de forma a atingir uma empatia capaz de provocar a catarse do terror e da piedade, no que, diga-se de passagem, foi bem sucedido, pois o Hipólito ganhou o primeiro prêmio na Grande Dionísia de 428 AEC. Para tal, possivelmente projetou na distância do passado mítico alguns dos temas que lhe eram caros em seu presente. Neste sentido, as ordens de dualidades que viemos apontando na tragédia Hipólito podem referir-se, em alguma medida, embora não totalmente, à ambiência social de produção e recepção; notadamente no sentido de indicar uma tensão entre o que era socialmente esperado do personagem principal da tragédia (a transição etária, sinalizada pela fase reprodutiva da vida, metaforizada no culto a Cípris; uma futura sucessão ao governo paterno) e a visão de mundo religiosa que o impregna, não permitindo que concretize a primeira ordem de expectativas e, com isto, conduzindo a trama na direção de um “conflito cerradamente trágico” (LESKY, 1971, p. 30). Podemos especular o quanto a peça contém os ecos de uma tensão na Atenas clássica entre as crenças particulares de iniciados nos cultos órficos e os encargos sócioreligiosos específicos que lhes eram atribuídos pela comunidade políade (caso se tratasse de cidadãos). Ainda mais inferencial seria tirar conclusões respeitantes a não-

1404

cidadãos (ao menos no âmbito desta peça). Entretanto, como afirmamos acima, não há necessidade da busca de uma correlação mecânica entre os temas trágicos e o grand monde dos feitos políticos e militares, das instituições da cidade, pois as obras podem, segundo a mirada que se lhes dirija, pulverizar-se num caleidoscópio de microrrelações que nos permitem vislumbres da dinâmica da vida social na cidade antiga. Centramonos em uma peça e, mesmo assim, em um determinado aspecto da peça. Poderíamos ter escolhido, por exemplo, a métis da criada de Fedra e, digamos, tê-la comparado à métis da criada de Medeia, entre muitas outras possibilidades. Faz-se necessário o exercício de ampliar a visão no sentido de contemplar um horizonte de possíveis na história e com isto, a contrapelo de Aristóteles, aproximá-la da poesia.

Fontes ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Ana Maria Valente. Lisboa: Fundação CalousteGulbenkian, 2008. EURÍPIDES. Hipólito. Introdução, versão e notas de Bernardina de Sousa Oliveira. Brasília: Editora UnB, 1997. PLATÃO. República. Versão on-line disponível http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus:text:1999.01.0168.

Referências Bibliográficas ANDRADE, M. M. A vida comum. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2007. LESKY, A. A tragédia grega. São Paulo: Perspectiva, 1971. SOURVINOU-INWOOD. C. Tragedy and Athenian Religion. Lanham: Lexington Books, 2003. VERNANT, J-P. e NAQUET, P. Mito e tragédia na Grécia antiga. São Paulo: Perspectiva, 2008.

1405

em

O espectro vermelho: Cultura política e representações anticomunistas em jornais do agreste pernambucano (1950-1960) José Adilson Filhoi

Resumo

Este texto procura analisar os impactos do espectro comunista sobre algumas paisagens sociais do Nordeste brasileiro entre as décadas de 1950 e 1960. Para isso direcionamos nosso olhar no combate exercido pela Igreja Católica ao consumismo no agreste pernambucano, através do seu jornal A Defesa. A leitura e interpretação de estigmas e preconceitos veiculados no jornal fornece elementos para a compreensão da influência da igreja no imaginário social assim como na legitimação de uma cultura política conservadora. Palavras-chave: Anticomunista, imprensa católica, Nordeste. Abstract This text try to analyzes the impacts of the communism ghost over some social situations in the Northest of Brazil between the decades of 1960-1970. For this we have directed our vision over the fight of the Catholic Church against the comunism. Aspects of this fight, that occurred in the center of Pernambuco, was showed on pages of “A Defesa”, a catholic newspaper, published by the Diocese of Caruaru. The Reading and the interpretation of stigmas and prejudice served by newspaper give us some elements for a comprehension of the influence of the Church in the social imaginary as well in the legitimacy of a conservative political culture. Keywords: anti-comunist, catholic press, northeast

Há muito tempo os fantasmas rondam a história, porém, suas formas de aparição e recepção social assumem significados diferentes, já que são fabricados de acordo com as questões e tramas de cada época e sociedade. A despeito de quaisquer classificações ou juízos de valor, os fantasmas atuam na história como uma força viva e impactante. No Manifesto Comunista de 1848, o jovem Marx chamava a atenção dos seus contemporâneos para o medo e as conspirações das classes dominantes contra o fantasma vermelho, que naquele momento era pouco reluzente e sensível

às

experiências sociais e políticas. Não foi preciso esperar muito tempo para que tal fantasma viesse a conquistar visibilidade. Na segunda metade do século 19, o comunismo tal qual um pesadelo passava a atormentar os cérebros de burgueses, aristocratas, nobres, clérigos e até intelectuais. Era complicadíssimo para a nova sociedade capitalista

1406

ter que conviver

com a presença desconcertante deste que seria seu mais vigoroso inimigo. Combater, admoestar e erradicar definitivamente esse novo mal-estar da cultura moderna, fora algo sistematicamente buscado pelas classes dominantes e seus aliados. Contudo, ao longo do século XX, o comunismo torna-se ainda mais forte e temido, uma vez que passa a circular pelas mais variadas sociedades e geografias do planeta. Em países que foram sacudidos por processos revolucionários como a Rússia, a China e Cuba, o comunismo avançou do apenas fantasmagórico para a condição de sistema sociopolítico e econômico. Durante a chamada Guerra Fria (1947-1991) ampliaram-se enormemente as atenções e preocupações em torno da agenda comunista. Na maioria dos países ocidentais, guiados pelo capitalismo, o lado fantasmagórico prevalecerá e contribuirá para instituir imaginários, medos e conspirações. Na América Latina, a Revolução Cubana (1959) e o seu alinhamento à União Soviética produziu um longo surto anticomunista, que ajudaria a motivar golpes de estado e

legitimar

ditaduras militares. O Brasil, a maior nação latino-americana fora um destes casos. Mesmo, hoje, passados mais de 50 anos desde o Golpe de 1964, o tema do comunismo, e da sua associação ao medo, continua forte no imaginário social brasileiro. Podemos atestar tal fato nas recentes manifestações realizadas por alguns segmentos da sociedade contra o governo da presidenta Dilma Rousseff. Muitos dentre os que protestavam contra o governo associavam-no ao comunismo, de maneira que até mesmo um golpe de estado fora defendido para libertar o país do “perigo vermelho”. Tais protestos contaram com a ampla cobertura dos meios de comunicação e das novas redes sociais (facebook e twitter) Ecos do Comunismo no Nordeste O que hoje definimos geograficamente como região Nordeste deriva, em parte, de um longo processo de decadência econômica e política das suas principais oligarquias, o qual se consolida durante a primeira metade do século XX, porém, articulado a um feixe de imagens, discursos, práticas sociais e culturais operadas, simultaneamente, em diferentes instâncias e por múltiplos atores que serão imprescindíveis para a sua configuração identitária (Albuquerque Jr. 2006)ii O Nordeste brasileiro é desenhado e esculpido num contexto de transições e transações entre o que seria entendido como pertencendo ao velho e ao novo, ao moderno e ao antigo. Portanto, sua emergência como uma outra realidade geográfica dá-

1407

se num momento em que algumas elites e classes médias buscam atualizar o país com relação às nações do mundo desenvolvido. Nesta batalha, o pêndulo do progresso oscilará para as regiões Sul e Sudeste. Como contraponto lógico, ao Nordeste restará a associação ao velho e ao atrasado. Ou seja, essa região se constituirá como um alter ego problemático, porque feito de precariedades e descontinuidades econômicas, políticas e socioculturais em relação ao dinamismo e prosperidade de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas gerais e Rio Grande do Sul, por exemplo. Essa região tem sido interpretada principalmente em função de seus contrastes e desigualdades sociais. E é por esse motivo também que ela gera tensões, conflitos e mal-estares. Daí compreendermos melhor o medo que pairou sobre as elites, clérigos e militares quanto à recepção das ideias comunistas em tais paisagens. Até porque desde as décadas de 30 e 50 do século passado, a atuação do partido comunista brasileiro e de organizações de esquerda como sindicatos, associações comunitárias, ligas camponesas haviam tido papel destacado no processo de acirramento ideológico e em conquistas políticas, a exemplo das vitoriosas eleições à prefeitura do Recife sob o comando de figuras como Miguel Arraes e Pelópidas Silveira, ou ainda da participação emblemática de Natal e do Recife no chamado Levante Comunista, em 1935. As preocupações dos Estados Unidos com o clima político que reinava no Nordeste podem, simbolicamente, ser capturadas pelo documento elaborado por Arthur Schlesinger, importante membro do governo Kennedy, acerca do que vinha acontecendo na região. Um pequeno trecho desse documento, consta na obra de Vandeck Santiago e se refere ao advogado Francisco Julião:

O agitador Francisco Julião, que estava organizando as ligas camponesas e convencendo os camponeses a tomarem terras’. Confessa-se ‘impressionado com a magnitude do problema’ e considera que a situação em que se encontra a América Latina inteira “encerra uma crise para os EUA”. iii

O trecho não deixa dúvidas sobre os riscos que, na visão do funcionário do governo norte-americano, um descuido com Brasil podia significar para os Estados Unidos. Diante disso, a preocupação estadunidense com a América Latina, com o Brasil e, em especial, com o Nordeste não é de estranhar. Isto fica evidente na atuação dos governos norte-americano com ações e programas direcionados para a inserção na realidade social da região e, logicamente, para a prevenção de possíveis conflitos e

1408

revoluções em algumas áreas específicas (o nordeste das Ligas Camponesas entre elas). O temor ao comunismo e a seus correlatos atingirá todas as latitudes e longitudes do país. O comunismo será alçado à categoria de principal inimigo da nação, e por esta razão se abaterá sobre ele os mais variados tipos de preconceitos, estigmas e associações extravagantes com arquétipos e mitos das culturas brasileiras. Mudanças e permanências nas terras do mestre Vitalino A cidade de Caruaru, localizada no agreste central de Pernambuco ocupa uma posição privilegiada, pois fica entre o sertão e a capital do estado. Há mais de meio século tornou-se um importante e influente empório comercial no interior, atraindo milhares de pessoas das cidades interioranas para comprar e também para residir nela. As décadas de 50 e 60 do século XX foram determinantes para a projeção da cidade no cenário estadual. Em 1957, ano do seu centenário, suas elites buscam consagrá-la com uma série de eventos festivos, inaugurações de obras públicas, esculturas dos que eram então entendidos como seus fundadores, procissões, produções de livros, sem falar da presença e/ou colaboração de renomados escritores nacionais, alguns filhos naturais, a exemplo de Austregésilo de Athayde e João Condé. Havia também um efervescente processo de modernização que se materializava por meio da chegada de indústrias, serviços telefônicos, cinemas, bancos, restaurantes, de faculdades, entre outros. Isso sem contar que, em 07 de agosto de 1948, o então Papa Pio XII assinou, em Castel Gondolfo, a bula “Quae Maiori Christi-Fidelium” elevando, oficialmente, Caruaru à condição de cidade episcopal. A ereção canônica da cidade facilitava, por sua vez, a organização da Arquidiocese de Olinda e Recife, já que criava uma diocese que contemplava de forma direta as demandas religiosas de parte da população do agreste pernambucano. Toda essa miscelânea de transformações fazia a cidade vibrar. Uma nova atmosfera plasmada por novos desejos, signos e linguagens passavam a fazer parte do cotidiano dos citadinos. Claro que enredados numa trama que envolvia continuidades históricas como os problemas da pobreza e da miséria, das epidemias, do desemprego e do analfabetismo tão presente, por exemplo, na comunidade estigmatizado como “bairro do Lixo”. Sob os auspícios das comemorações de 1957, ele passou a ser denominado bairro Centenário, numa clara alusão à data emblemática. Todavia, a pobreza e a marginalidade dos seus moradores não foram resolvidas com o passar dos anos. O progresso vivido pelas elites e classes médias caruaruenses não transbordava para a maioria da população, o que gerava tensões e medos. À cidade dos comerciantes, 1409

advogados, médicos, professores, políticos, senhores e senhoras aristocráticas juntavamse mendigos, prostitutas, pobres, negros e crianças de rua. As diferenças e descontinuidades sociais quebravam a linearidade do discurso do progresso das elites, ao instituir novas formas de mal-estar no contexto das relações e das sociabilidades ensejadas por certos indivíduos e grupos sociais. Tal mal-estar se amplia e se recrudesce com a disseminação do discurso anticomunista. Este pretenso inimigo sintetizará um conjunto de coisas negativas, ao passo que será elevado a categoria de inimigo número um da nação (Rodeghero 1998)iv. Fosse como fosse, a cidade do ceramista Mestre Vitalino, aos poucos, ia perdendo seu caráter de cidade rural e se transfigurando numa sociedade de feições urbano-mercantil. Sua privilegiada localização no espaço pernambucano, não apenas por estar encravada entre o sertão e o litoral do estado, mas por ser, também, parte de quadrilátero equidistante que a une às cidades de Recife-João Pessoa-Campina Grande contribuía para transformá-la numa área de atração diante dos municípios circunvizinhos. Igreja e anticomunismo em Caruaru no jornal A DefesaDepois do Concílio Vaticano II, a Igreja Católica absorveu parte das lutas pela promoção da justiça social, transformando-se num dos atores coletivos mais respeitados pelos movimentos sociais, lideranças e governos municipais, estaduais e federais. A Diocese de Caruaru seria influenciada, logicamente na sua devida proporção pela atmosfera gerada pelo processo de renovação que afetava a Igreja após o Concílio do Vaticano II. O segundo bispo diocesano, Dom Augusto Carvalho, ordenado em 1959, vivenciaria seu episcopado neste clima de lutas, sonhos e redefinições. Nas suas ações anticomunista a Igreja Católica assumiu um papel fundamental, já que se trata de uma instituição respeitada e admirada há séculos, e que interfere na estruturação de valores, comportamentos e imaginários sociais. Pelo fato de estar enraizada em todo território nacional e conhecer bem os seus aspectos antropológicos, sua luta adquire uma dimensão muito mais consistente e impactante do que as de outros aliados nesta tarefe de esconjuração das ditas “forças do mal”. No episcopado de Dom Augusto em Caruaru, a Igreja assumiu uma postura anticomunista. O lema adotado pelo bispo “para que seja um” era movimentado como um leitmotiv para justificar sua atuação, em nome da unidade da Igreja, contra as ameaças externas, o que incluía, obviamente, o comunismo.

1410

Na terra do Mestre Vitalino, a igreja Católica usou de diversos mecanismos para admoestar o inimigo comunista. Homílias, missas, procissões, festas religiosas, batizados, casamentos, primeira comunhão, programas de rádio, entidades católicas voltadas para jovens e adultos, sindicatos rurais, círculos operários e o jornal A Defesa são exemplos de alguns destes dispositivos que a Diocese tinha em suas mãos para desqualificar aquele que considerava o principal problema para seus interesses e os da sociedade na qual atuava. O Jornal A Defesa, que circulou de 1932 a 1984, uma das nossas principais fontes para pensar a relação “medo X comunismo”, foi fundado e dirigido sob os auspícios da Igreja Católica, e, portanto, bem antes da ereção da Diocese na cidade de Caruaru (1949). Durante mais de meio século esse semanário se constituiu como um dos principais canais de produção de sentidos da igreja, cuja área de circulação abrangia desde as cidades pertencentes à Diocese como também Pesqueira, Arcoverde (sertão), Recife e Campina Grande (PB). Desde as suas primeiras edições adotou uma perspectiva ideológica explicitamente anticomunista. Fosse no plano internacional, nacional, regional ou local o tal inimigo seria combatido sem trégua. Mas foi no período áureo da Guerra Fria, ou melhor, durante os anos 1950 e quase toda a década de 1960 que as críticas e denúncias se tornaram mais frequentes e contundentes. As manchetes, opiniões e artigos com viés anticomunista, principalmente os de natureza internacional eram de repórteres de agências estrangeiras. Nesses, nem sempre o nome do autor era apresentado. Jornalistas, políticos, clérigos, circunscritos à área de abrangência da Diocese, também contribuíam com o jornal. Os temas e análises procuravam questionar a legitimidade dos regimes relacionados ao bloco soviético. Em tais reportagens, via de regra, usam-se os mecanismos taxonômicos para comparar, medir, pesar, classificar e hierarquizar os dois mundos. Não é preciso dizer que os valores da civilização cristã ocidental eram em todos os aspectos destacados como superiores aos do seu rival. No campo político, por exemplo, comparavam-se o funcionamento da Democracia com o Socialismo real, para logicamente enfatizar o lado precário e essencialmente mal do último. Apesar de alguns destacarem ambos como criações humanas e, portanto, históricas, havia sempre um jeito de essencializar o comunismo. Num artigo de 06 de dezembro de 1964, intitulado “Democracia e Comunismo”, no qual não aparece o nome do autor, se reconhece os efeitos “positivos” da chegada do comunismo para melhorar às condições de vida dos

1411

trabalhadores e, a própria relação capital e trabalho. Neste caso há males que vem para o bem: O comunismo tem uma razão de ser. Essa doutrina não é uma invenção de Satanás. Ele é uma invenção do próprio homem, para combater o egoísmo do homem. Se não vejamos, entre nós o povo brasileiro e a experiência de quanto mudou a ordem natural, do que se refere à assistência social, as relações de EMPREGADOR e EMPREGADO, “depois que o OLHO DE MOSCOU”, voltou suas vistas para as Américas, para o Brasil, para o mundo ocidental. O comunismo em si, é uma doutrina do mal. Os chefes se apercebem disso e é bem por esse motivo que ninguém diz que é comunista quando quer sovietizar uma nação, quando começa a soltar seus tentáculos sobre um povo. Na Rússia, o comunismo entrou bastante dissimulado [...] Em Cuba, o comunismo entrou disfarçado de revolução democrática para derrubar o ditador Fugêncio Batista que mantinha um governo sanguinolento e corrupto. O povo apoiou de boa vontade e quando Fidel se viu bem apoiado no poder, pôs as unhas de fora e disse “ Eu sou comunista” v.

Conforme o artigo, o triunfo das revoluções comunistas prescindira dos velhos artifícios da mentira e da dissimulação. Sem esses ingredientes, dificilmente o povo se deixaria enganar. Apesar de ser dito que o comunismo não era um produto de “Satanás”, ele era paradoxalmente tratado como mal em si. Implicitamente queria-se dizer que os comunistas e aliados usavam das mesmas astúcias do diabo para conquistar o povo: Ou seja, a sedução, a intriga, o ódio e a mentira seriam aspectos fixos e indissolúveis do seu modus operandi. Um modo de agir como esse não poderia estar em harmonia com os ensinamentos da Igreja, porque fundado em desvios, como a mentira e a dissimulação. No mesmo texto se faz referência à presença do partido comunista na Itália, que nesta época era o mais organizado e forte da Europa Ocidental. Mas mesmo ali “ele não pode fazer o que quer, porque tem pela frente o adversário mais poderoso contra o comunismo: A RELIGIÃO CRISTÔ.vi Pois como se sabe ”a Itália é a SEDE DO CRISTIANISMO e este é ainda a barreira intransponível do comunismo”. Apenas a força da igreja Católica seria capaz de combater o “mal” vermelho que se multiplicava a partir de Moscou. Somente ela poria um fim às tentativas de sovietização do ocidente. Ainda no plano internacional, os articulistas do jornal A Defesa se esforçavam para estigmatizar ao máximo seus antípodas, mediante matérias que buscavam questionar e deslegitimar seus líderes (Lênin, Stálin, Fidel Castro, Mao etc) e, sobretudo, a violência e autoritarismo dos regimes. Assim, em cada nova edição sempre havia matérias lançando farpas sobre a Rússia, Cuba e Alemanha Oriental ou à perseguição e morte de intelectuaisvii e dissidentes políticos como Inry Naguy (líder

1412

húngaro). Ou, quando menos, fazendo contrapontos através da referência às derrotas sofridas pelos comunistas no Chile para a chamada democracia cristã ou dando ênfase a protestos feitos contra o inimigo, como os realizados por jovens austríacos. Sem falar ainda daquelas matérias que associavam tais regimes à corrupção moral e política e até mesmo ao racismo. Numa delas denuncia-se o racismo dos comunistas em relação aos estudantes de origem africana. E não somente isso, mas a própria ciência – um dos bastiões do comunismo – também era colocada sobre suspeição. Já com relação às esferas nacional e local, as matérias do jornal, A Defesa, sobretudo as produzidas antes do golpe de 1964, notadamente durante o governo de João Goulart, se voltam diretamente para sua desqualificação e a de seus aliados de esquerda. E repete a mesma cantilena udenista contra Jango, ao representá-lo como um presidente fraco, incompetente e como assecla do regime soviético. Em síntese, o governo de Jango era tratado como responsável direto por certa instabilidade econômica e desordem social vigente no país. As ações de Jango eram interpretadas como algo previamente pensado e orquestrado a favor do comunismo. Em nível estadual eram criticados os propósitos político-ideológicos da atuação das ligas camponesas e do PCB junto aos trabalhadores rurais. A igreja Católica através de alguns padres e de sindicatos rurais exercia forte influência ideológica sobre camponeses e pequenos proprietários de terra, e igualmente aos outros defendia a reforma agrária, mas numa perspectiva diferente das defendidas por líderes populares como Francisco Julião e Gregório Bezerra. (Abreu e Lima 2005)viii Havia, por sua vez, uma elevada preocupação, porém nem sempre explícita, com o governador Miguel Arraes (1963-64), cuja relação com os movimentos sociais e comunistas advém desde a sua vitoriosa eleição para prefeito do Recife, em 1959. Devido, talvez, às alianças locais tal oposição se expressasse de maneira mais moderada. Contudo logo após o golpe, aparecerão matérias lançando críticas e dúvidas sobre suas alianças e seus objetivos ideológicos. No que tange ao município de Caruaru e os do agreste, são escassas as matérias deste jornal sobre a atuação de comunistas e simpatizantes. Pois a presença destes atores nas cidades interioranas do agreste central foi menos expressiva e densa, em comparação com a região metropolitana ou nas regiões da mata sul, ligadas à atividade açucareira, como os municípios de Água Preta e Palmares. Talvez um dos motivos para isso, seja o profundo conservadorismo político que até hoje se faz latente entre os 1413

habitantes destas paisagens sociais, uma realidade alimentada pela própria diocese de Caruaru que, desde a sua fundação até boa parte da década de 60, esteve alinhada com o pensamento de oligarquias e chefes locais retrógrados. A expressão máxima deste conservadorismo ocorreu durante a derrubada do governo Jango pelos militares. Na primeira edição do mês de abril, o jornal A Defesa, estampava uma manchete na qual definia aquele evento como responsável pela libertação do Brasil. Apesar do seu caráter violento, o evento e o novo regime que se iniciava eram qualificados como produtores de uma ‘revolução democrática’, cujo maior mérito foi ter eliminado o maior inimigo da nação e devolver a ordem e a paz aos brasileiros. Dias depois é noticiado a cassação dos mandatos dos suplentes de vereadores Manoel Messias e José Rabelo (ambos ligados às forças de esquerda) pela câmara de vereadores de Caruaru, além de destacar com certo júbilo a presença de tropas do exército na cidade. A nova ordem será celebrada em Caruaru por meio de elogios, lembranças, festas cívicas, homenagens e passeatas, sempre muito bem documentadas pelo jornal da Diocese. Numa das matérias publicadasix, observamos uma fotografia em plano geral. Nela, centenas de trabalhadores, vestidos à caráter, no Círculo Operário Católico para homenagear o Coronel Justo Moss, responsável pelo 22° Comando Regional Militar. Embora o golpe tenha sido arquitetado pelas elites civis e militares, ele contou desde o início com amplo e variado apoio popular. São homens simples, explorados pelo sistema capitalista, mas antes de tudo influenciados pela fé e imaginário produzido pela igreja Católica. Outro evento importante a favor dos militares, anunciado pela A Defesa foi a “Marcha com Deus pela liberdade” que deveria acontecer justamente no dia do trabalho. Mas numa matéria do dia 02 de maio o jornal repetia a chamada, agora para o dia 10 de maio, justificando sua não realização na data anteriormente prevista, devido à necessidade de ampliar o número de organizadores, antes orquestrado pelo movimento secundarista de Caruaru. Mas é provável que tal marcha mais uma vez não tenha acontecido, pois, não vemos durante todo o ano em curso outras referências a ela. A Defesa era, pois, um jornal católico que faz jus ao nome. Não se sabe ao certo a razão para que tenha sido nomeado assim, mas podemos deduzir que se tratava de defender os princípios da fé católica e combater seus adversários religiosos e políticos. Preservar a “sagrada” família, a propriedade privada e a integridade do corpo da nação da presença corrosiva do “mal vermelho” foi sua maior missão. 1414

De qualquer modo fica evidente que o anticomunismo plantado historicamente pela Igreja Católica e por outros atores coletivos nas pequenas e médias cidades do Brasil serviu para criar um clima propício ao golpe, e garantir durante algum tempo amplo e fundamental apoio popular ao regime militar. Sem o respaldo conservador de tais localidades seria muito difícil à sustentação do regime, uma vez que este prescindiu de uma cultura política hegemônicax. Notas e Referências i

Mestre em História pela UFPE e Doutor em Sociologia pela UFPB. Professor nos departamentos de história da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) e da Fafica-PE ii Albuquerque Jr, Durval Muniz de. 1996. A invenção do Nordeste e outras artes. Recife: FJN/Cortez iii SANTIAGO, Vandek apud Lira, José Carlos Batista de. 2013. In. O golpe civil-militar de 1964 em Palmares: agitações, medo e comunismo no interior pernambucano. Dissertação de Mestrado UFPE, 2013, p. 15 iv Rodeghero, Carla Simone. 2003. O diabo é vermelho: imaginário anticomunista e a igreja Católica no Rio Grande do Sul (1945-1964). Passo Fundo: EPF. v

A Defesa, 06 de dezembro de 1964, p. 2)

vi

A caixa alta usada nessas passagens faz referência direta ao tipo de fonte usado no documento original.

vii

Numa reportagem de 04 de julho de 1964, intitulada Calvário dos Intelectuais, chamava-se a atenção para o “drama” dos intelectuais que viviam nos países comunistas. viii

Abreu e Lima, Maria do Socorro de. 2005. Construindo o Sindicalismo Rural: Lutas, partidos, projetos. Recife: Editora Universitária da UFPE ix A matéria foi publicada no dia 23 de maio e saiu na página 3 com o título “Prestou Vibrantes homenagens às Forças Armadas”. x

Sobre cultura política e suas formas de expressão, ver de SÁ MOTA, Rodrigo Patto. Culturas políticas na História. Novos Estudos. Belo horizonte: Fino Traço, 2012.

1415

A HISTORIOGRAFIA SOBRE INDEPENDÊNCIA DA AMÉRICA ESPANHOLAi José Lúcio Nascimento Júniorii Orientadora: Dra. Maria de Fátima Gouvea (in memoriam) Resumo Este trabalho analisa a produção historiográfica acerca da Independência da América Espanhola na América do Sul (1808-1830). Esta pesquisa valeu-se de artigos e livros de historiadores de diferentes nacionalidades e que foram escritos entre 1980 e 2010. Como critério de escolha considerou-se produções que analisavam a Independência das Colônias hispânicas da América do Sul em conjunto, não sendo utilizadas obras que considerassem o processo singular de um novo país surgido após a independência. Após a análise, concluiu-se que havia duas correntes historiográficas, uma estadunidense e outra latina, e que estas diferenças estavam ligadas aos referenciais teóricos utilizados. Palavras-chave: Historiografia – Independência da América – Teoria da História Resume This paper analyzes the historiography about the Spanish American wars of independence in South America (1808-1830). This research took advantage of articles and books of historians of different nationalities and that were written between 1980 and 2010. As a criterion of choice was considered productions that analyzed the Independence of Spanish colonies of South America together works not being used to consider the unique process of a new country emerged after independence. After analysis, it was concluded that there were two current historiography, an American and one Latino, and that these differences were related to theoretical frameworks used. Keywords: Historiography - American Independence - History Theory A independência da América Ibérica tem uma face muito bem estudada no Brasil, a visão sobre o processo lusitano. Neste processo a colônia portuguesa na América do Sul, ao longo da primeira metade do século XIX se tornaria um Estado-nação independente. Contudo, a face hispânica tem sido pouco estudada por historiadores no Brasil (PRADO:

1999;

PRADO 1994). Este ano em que se comemora a elevação do Brasil a Reino Unido de Portugal e pouco se tem tocado no assunto. Mesmo ainda tem se falado sobre a independência dos países hispano-americanos. O fato de poucos pesquisadores terem se dedicado sobre o tema não fez com que a produção acadêmica fosse nula. Ao longo do século passado e nos primeiros anos de novo século, questões importantes foram levantadas acerca das transformações que originaram os Estados-Nação na América Latina, seja ela de colonização francesa, portuguesa ou espanhola (BETHELL: 2001; CHAUNU: 1991; GUERRA: 1999/2000; GUERRA: 2003;

MORELLI:

2004; PIMENTA: 2002; PRADO: 1994; PRADO:1999). Neste trabalho, analisamos a historiografia sobre o processo de independência da América do Sul Hispânica. De acordo com Guerra (2003) existem três tipos de estudos sobre o decurso da Revolução de Independência da América Hispânica. O primeiro se caracteriza pelos

1416

estudos

das causas da independência; o segundo, pela análise dos resultados; e o terceiro pela análise do processo propriamente dito. Neste espaço, mais que buscar causas, conseqüências e o desenrolar do processo, nos deteremos sobre como os diversos historiadores analisaram estes conjunto as transformações como um conjunto, tais como Bethell (2001), Chaunu (1991) e Guerra (1999/2000; 2003a; 2003b). O critério de escolha para a seleção das fontes partiu do conceito de cultura política (BERSTIEN: 1998; GOUVEA: 1998) para buscarmos interpretações sobre processo de independência da América do Sul como um todo. Tal escolha ligasse as transformações que se passaram na historiografia no início do século XXI. Sobre estas transformações temos que houveram transformações na (i) historiografia, sendo o século XIX redescoberto, rompendo com as visões do século XIX e início do século XX; (ii) na conjuntura política, que passou a ser marcada pela atuação de organismos internacionais que quebram a soberania nacional e a influência dos Estados Unidos da América; e (iii) na conjuntura jurídico-cultural, uma vez que a busca pelos direitos das minorias marcou a visão da população latino-americana que percebe o governo como o garantidor da harmonia entre a pluralidade de sujeito e de forças, assim como era visto na visão pré-absolutista (MORELLI: 2004, p. 759-760). Podemos dividir as produções historiográficas em duas vertentes que apresentam características distintas. Estas vertentes seriam a visão Anglo-saxã e a visão latina. Os historiadores destas duas vertentes apresentam visões distintas para o mesmo processo, indicando que o lugar de fala do historiador, o contexto histórico onde está inserido e a produção anterior auxiliam a compreender as visões produzidas para a Independência da América Latina (MORELLI: 2004) Nas linhas subseqüentes apresentamos as visões de cada vertente iniciando pela vertente estadunidense.

A VERTENTE ESTADUNIDENSE. Para historiadores Stein & Stein o período chave para se compreender a independência da América Espanhola está compreendido entre novembro de 1807, com a invasão das tripas francesas a Espanha, e setembro de 1812, com a promulgação da Constituição de Cádiz (STEIN; STEIN: 1977). Para eles, as elites criollas já tinham um

sentimento

de

independência que tinha como propulsores os exemplos das revoluções das Treze colônias e da Francesa, conforme destacam: Por último não se deve subestimar o sentimento de independência existente entre a elite criolla após a bem sucedida rebelião contra a dominação inglesa na América do Norte e as possibilidades de controle político criollo inerente à ideologia da Revolução Francesa

1417

[...] Entrando em colapso a autoridade da Monarquia espanhola - a partir da abdicação dos Bourbons -, a elite colonial mostrou sinais de impaciência em torno do controle político efetivo, dentro e fora de um estrutura imperial. Essa elite percebia, por fim, que uma política de tardios ajustamentos constituía um processo irreversível. Poderia ser condenado ou mesmo posto de lado por algum tempo mas, inevitavelmente, acabaria por romper todas as barreiras. Pelo menos assim se pensava entre 1808 e 1810 (STEIN;STEIN: 1977, 83).

Caso até 1812 houvesse alguma dúvida pairando a mente das elites criollas, neste ano, com a Constituição da Cádiz a independência seria fruto da a liderança que esta elite realizaria frente as “castas e estratos” inferiores e oprimidos da sociedade, realizando seu desejo (STEIN;STEIN: 1977: 89). Estes historiadores indicam como motivador da revolução o conflito de interesses entre as elites criollas e peninsulares, além de apontarem que a influência das Revoluções Francesa e Estadunidense são relevantes para se compreender o processo (STEIN;STEIN: 1977). A participação popular não aparece como relevante tanto na visão de Stein & Stein (1977) como na desenvolvida por Lockhart & Schwartz (2002). A análise levada a cabo por James Lockhart e Stuart B. Schwartz tem como objetivo analisar as características do Período Colonial na América Espanhola e Portuguesa (LOCKHART; SCHWARTZ: 2002). Para eles o período colonial se iniciou com as conquistas de territórios americanos pelos europeus, este se encerra com a independência. A independência consiste no tema do último capítulo da obra. Para Lockhart e Schwartz (2002) as revoltas do final do século XVIII não apresentam ligação nenhuma com a independência da América espanhola, sendo suas causas encontradas em transformações e eventos externos. Destacam a influência do pensamento iluminista na elite criolla, uma vez que alguns líderes do Movimento de Independência terem estudado na Europa, como é o caso de Francisco Miranda, Simon Bolívar e José de San Martín. Além disso, destacam que a deteriorização na relação entre criollos e peninsulares levaram a formação das juntas revolucionárias, em ambos os lados do oceano Atlântico. Restaram duas opções para as elites criollas: apoiar o rei ou proclamar um regime substituto (LOCKHART; SCHWARTZ: 2002). Em sua análise, Lockhart e Schwartz apresentam duas fases para o processo de Independência. A primeira iria de 1796 a 1808, se caracterizava pela necessidade de comércio neutro, o que gerou a independência econômica; e outro entre 1817 a 1825, onde ocorreram de fato as independências dos novos Estados Latino-americanos (LOCKHART; SCHWARTZ: 2002). Na construção de sua narrativa histórica, estes americanistas destacam a independência da América do Sul como resultado da ação dos líderes José de San Martín e Simon Bolívar. A independência do México e de parte da América Central (que esteve ligada ao México no período da monarquia mexicana) seria resultado das às reformas liberais de

1418

1820, uma vez que as ações dos padres Hidalgo e Morelos haviam sido exterminadas por uma junção de forças peninsulares e criollas locais. Outra questão levantada por estes historiadores consiste em perceber que o movimento de independência foi o contrário do de colonização: das áreas periféricas para as centrais, que se explicaria pelo crescimento destas nos últimos anos antes da independência (LOCKHART; SCHWARTZ: 2002). Na década de 1980 Leslie Bethell organizou a coleção História da América Latina. Esta coleção se divide em volumes dedicados aos diferentes períodos históricos da América Latina, onde, no caso da tradução brasileira, cabe ao volume três o período compreendido entre as independências e a década de 1870. Para Bethel a escolha destes marcos cronológicos liga-se ao fato de se analisar não apenas o processo de independência relacioná-lo a construção dos Estados Nacionais ao longo do século XIX (BETHEL: 2001). Neste volume coube ao historiador David Bushnell analisar a independência da América do sul (BUSHENELL: 2001, p. 119 – 186). Em seu artigo, Bushnell constrói sua narrativa procurando demonstrar

a

simultaneidade entre os diferentes movimentos de independência na América do Sul, assim como a ação dos grandes heróis da independência, Simon Bolívar e José de San Martín (BUSHNELL: 2001). Diferencia sua análise da realizado por de Pierre Chaunu, Stanley e Bárbara Stein, e James Lockhart e Stuart Schwartz por tratar da independência do Paraguai e do Uruguai (BUSHNELL: 2001; LOCKHART; SCHWARTZ: 2002; STEIN;STEIN: 1977). Para este americanista estadunidense ocorreram dois períodos distintos, um entre 1808 e 1817, onde predominou a derrota das forças revolucionárias; e outro de 1817 a 1825, que marca a vitória, ou seja, a independência da América do Sul, destacando, porém, o caso singular do Rio da Prata em 1817 (BUSHNELL: 2001). Destaca um sentimento protonacionalista e a formação de uma identidade própria, anterior ao processo de independência, além de considerar como fator relevante a influência externa através da idéias iluministas (BUSHNELL: 2001, p. 132 – 133). Termina destacando a mudança ocorrida na opinião acerca dos “libertadores”. Para os americanos, diz Bushnell, “com muita freqüência, os libertadores de um dia eram vistos como conquistadores no dia seguinte” (BUSHNELL: 2001, p. 177). Por fim, destaca a tentativa não bem sucedida de Bolívar em criar uma Liga Americana Espanhola, uma vez que este libertador salientava a homogeneidade histórica e cultural na ex-colônia hispânica (BUSHNELL: 2001). Ainda no livro organizado por Bethell (2001) temos o artigo escrito por John Lynch, intitulado As origens da Independência da América Espanhola (LYNCH: 2001). Neste capítulo, o objetivo do autor é analisar as causas da independência da América hispânica. Para 1419

tanto, analisa as transformações motivadas pelo governo dos Bourbons, em especial, as transformações pós-1750. Neste contexto de transformações é que o autor vai indicar as causas da independência (LYNCH: 2001). Para compreender este conjunto de transformações, para Lynch (2001) temos que olhar para o governo de Carlos IV (1759-1808) e para a revolução francesa (1789-1801). No período anterior a Independência, Lynch destaca a existência de um nacionalismo cultural (assim como uma identidade regional) e a influência do pensamento iluminista. Este conhecimento das idéias iluministas liga-se também ao comércio com os anglo-americanos. Este historiador retoma a idéia de que existe uma ligação entre as revoluções do século XVIII e o processo desencadeado em 1810 (LYNCH: 2001) No entanto, embora não tenham formulado as idéias da independência, os rebeldes ajudaram a criar um clima de convicções, que representava um desafio fundamental aos preceitos tradicionais. [...] Nesse, sentido, constituíram mais um degrau no desenvolvimento da autoconsciência colonial, embora inexplicado, de um nacionalismo incipiente, uma defesa eloqüente da identidade e dos interesses que eram diferentes dos da metrópole (LYNCH: 2001, p. 60 – 61. Grifos nossos).

O que ocorreu a partir de 1808, e principalmente a partir de 1810, foi à busca dos criollos em ocupar o vácuo de poder deixado pela invasão francesa, o que fica confirmado para este historiador no combate as revoltas de 1810 no México, onde os criollos se mostraram guardiões da ordem social, a qual estes não queriam alterar (LYNCH: 2001). Por fim, destaca Lynch (2001) que os hispano-americanos seguiram o exemplo do federalismo estadunidense ao criar as diferentes repúblicas.

A VERTENTE LATINA. Como característica desta vertente historiográfica, os historiadores para compreender as transformações do século XIX recorrem às transformações do século XVIII e, em especial, as mudanças provocadas pelas reformas bourbônicas. Ao explicar a independência, utilizam a divisão do período em duas fases: a primeira de 1795 a 1815, onde temos a liberdade de comércio e a restauração do monarca espanhol; e 1815 a 1825, onde temos a revolução de independência, este segundo período tem como principal característica a separação de fato entre as ex-colônias e a metrópole espanhola (DONGHI: 1975; ANNINO; GUERRA: 2003; GUERRA: 1999/2000; CHAUNU: 1991). Iniciamos a análise da vertente latina analisando a obra do historiador argentino Túlio Halperín Donghi. Para este historiador não existe ligações entre as rebeliões do final do século XVIII com a independência. Tais rebeliões apenas mostrariam o descontentamento de

1420

grupos restritos e não de uma parcela significativa da sociedade colonial que pudesse representar algum indício de uma busca por uma ruptura com o regime vigente (DONGHI: 1975.). Porém, o século XVIII apresentariam algumas das influências para a independência que se seguiria no século seguinte: o iluminismo, as revoluções francesa e a das treze colônias. Tais influências auxiliam a compreender, mas não explicam a independência, pois esta é "conseqüência da desagregação do poder espanhol iniciado por volta de 1795 e que assumiu um ritmo cada vez mais intenso" (DONGHI: 1975, p. 50). As transformações iniciadas a partir de 1795 têm como conseqüência liberdade de comércio para a colônia americana e o rompimento dos vínculos administrativos. Além disso, historiador destaca a oposição entre os criollos e os peninsulares; esta se ampliava com a liberdade de comércio e a não participação dos primeiros na administração local (DONGHI: 1975.). De acordo com o historiador argentino, "o problema da posição dos peninsulares na América espanhola tornava-se, ao contrário, cada vez mais agudo: as revoluções se haviam iniciado com a tentativa das oligarquias locais urbanas de substituir os espanhóis no poder político" (DONGHI: 1975., p. 55). Na segunda fase, porém, a luta pela liberdade tem características distintas da primeira. Tanto os Estados Unidos da América quanto a Inglaterra facilitam a compra de armas e apoiam a independência da América Espanhola (DONGHI: 1975.). Em 1823, a ex-colônia inglesa da América do Norte lançava a Doutrina Monroe, onde se colocava diretamente contra a dominação colonial espanhola e uma possível reconquista. Além disso, a Espanha Liberal tentou modificar, sem sucesso, as bases de sua dominação (DONGHI: 1975.). Por fim, Donghi vê nos libertadores, José de San Martín e Simon Bolívar, as características de libertadores mesmo antes do processo revolucionário, o que demonstra uma continuidade com algumas visões apresentadas anteriormente pela vertente anglo-saxã (DONGHI: 1975.; BUSHNELL: 2001; LOCKHART; SCHWARTZ: 2002). O historiador argentino, Jorge Miers seguiu o caminho apresentado Donghi (1975) para compreender a independência (MIERS: 2007). Este historiador apresenta os fatores sociais e culturais locais para como base para se compreender as transformações globais na América Hispânica, além da construção da nacionalidade e da identidade comunitária (MIERS: 2007). Isso não quer dizer que este historiador veja no decurso da revolução de independência a formação da nação, pelo contrário reconhece que a construção da nação se faz ao longo do século XIX. O que marca sua escrita não consiste apenas no estudo das causas, mas na análise da construção da nacionalidade no decurso do século XIX, que como

1421

Miers bem coloca para o caso argentino, esteve relacionado ao movimento romântico e a formação dos estabelecimentos de ensino (MIERS: 2007). Rompendo com a visão dos historiadores anteriores aqui analisadas, temos a proposta do historiador francês François-Xavier Guerra. Seus estudos consistem em um apanhado geral que analisa as causas da independência. Sua análise baseia-se nas transformações institucionais pelas quais passaram à monarquia espanhola entre 1808 e 1825 (GUERRA: 1999/2000; 2003a; 2003b). Para este historiador, o processo de independência se divide em dois períodos claros e distintos. O primeiro entre 1808 e 1810 e o segundo entre 1810 e 1825 (GUERRA: 2003a; 2003b). Ao contrário dos historiadores que percebem o início da Revolução de Independência antes de 1808, Guerra nos diz que apenas em 1808 é que temos a causa do início do processo: a monarquia hispânica ao perder seu monarca (Carlos IV foi obrigado a abdicar em favor de seu filho Fernando VII, que, por sua vez, foi obrigado a abdicar em favor de José Bonaparte, sob as ordens de Napoleão Bonaparte) a monarquia espanhola ficou acéfala, ou seja, sem seu principal membro, o imperador que representava a cabeça (GUERRA: 1999/2000; 2003a; 2003b) O processo revolucionário é singular, pois não houveram revoluções de independência, mas uma revolução de independência que resultou nos diferentes Estados nacionais latino-americanos (GUERRA: 1999/2000; GUERRA: 2003a; GUERRA: 2003b). O processo é único, uma vez que teve início com a invasão das tropas francesas ao território espanhol. A crise colocou uma questão primordial para os hispano-americanos e peninsulares, a questão da igualdade jurídica entre ambos. A legitimidade na formação das juntas demonstrou que esta igualdade não existia. Além disso, a formação das juntas encaminhava para a independência, uma vez que não existia um sentimento nacionalista, como pretendiam as visões de Donghi (1975.) , Miers (2007) e outros. Fazer dos Estados surgidos com a independência herdeiras dos antigos Estados coloniais, nada mais é do que retórica para justificar a separação entre a colônia, a América, e sua Metrópole, a Espanha (GUERRA: 2003a; GUERRA: 2003b). Buscando construir a história da América Latina com menos influência da visão eurocêntrica de história, as novas correntes historiográficas buscam demonstrar que no caso dos países latino-americanos a independência é anterior ao nacionalismo (GUERRA: 1999/2000; GUERRA: 2003a; GUERRA: 2003b; MIERS: 2007; PAMPLONA; MÄDER: 2007; PIMENTA: 2002; PIMENTA: 2007). Neste sentido, o sentimento nacionalista surgiu em resposta à crise que desencadeou a independência. 1422

Ao estudar a independência e a formação da identidade uruguaia no período compreendido entre 1808 e 1828, este Pimenta (2002 e 2007) destaca as transformações não apenas no império hispânico, mas, também, no império português, ou seja, nos impérios ibéricos. Pois para ele temos que: Tanto no mundo hispânico quanto no mundo português, a colonização das terras americanas engendrou um estado de coisas cuja complexidade se expressava e tinha plena correspondência no plano das identidades coletivas, isto é, de expressões de reconhecido e abrangente uso coeso que funcionavam como mecanismos de autodefinição grupal e de diferenciação recíproca (PIMENTA: 2007, p. 31).

Por fim, para Pimenta, neste contexto de identificação temos a monarquia e a cristandade como os dois elementos principais para se compreender o movimento de independência. Especificamente sobre a independência do Uruguai, para se compreender os caminhos tomados pelos atores na época, deve-se observar as transformações na monarquia hispânica e na região do Rio da Prata (PIMENTA: 2002; PIMENTA: 2007). Em 1808, tanto as elites de Buenos Aires quanto as de Montevidéu convocaram suas Juntas de Governo; tais juntas eram independentes entre si. No primeiro momento, as ações de Montevidéu eram em oposição as transformação ocorridas em Buenos Aires. Tal ação levou a monarquia portuguesa a apoiar as elites de Montevidéu. Com o domínio português, seguido pelo brasileiro (uma vez que o Brasil se tornou independente de Portugal em 1822), a próxima oposição dos moradores da Banda Oriental é contra os luso-brasileiros, porém sem esquecer a oposição a Buenos Aires (PIMENTA: 2002; PIMENTA: 2007).

BIBLIOGRAFIA AYMES, Jean-Remé. La crise de l’ancien regime et l’avènement du liberalisme em Espagne (1808 – 1833). Paris: Ellipses, 2005. ANNINO, Antonio & GUERRA, François-Xavier (dir.) Inventando la Nación. Iberoamérica. Siglo XIX. México: Fondo del Cultura Econômica, 2003, BAEZA, Rafael S. Nação, espaço e representação. Chiloé: de ilha omperial a território continental chinelo. in.: PAMPLONA, Marco Antônio & MÄDER, Maria Eliza (orgs.) Revoluções de Independências e nacionalismos nas Américas: Região do Prata e Chile. RJ: Paz e Terra, 2007, 131 – 147. BERSTIEN, Serge. A Cultura Política. in.: RIOUX, Jean-Pierre & SIRINELLI, Jean-François (dir.) Para uma História Cultural. Portugal: Estampa, 1998. p. 349 – 363. BETHELL, Leslie (org) História da América Latina: da Independência a 1870. SP: USP, 2001. BURKE, Peter. A história dos Acontecimentos e o renascimento da narrativa. in.: BURKE, Peter (org.) A Escrita da História: novas perspectivas. SP: UNESP, 1992. . (org.) A Escrita da História: novas perspectivas. SP: UNESP, 1992 BUSHNELL, David. A independência da América do Sul espanhola. in.: BETHELL, Leslie (org) História da América Latina: da Independência a 1870. SP: USP, 2001, p. 119-186. CHAUNU, Pierre. Histoire de l’Amerique Latine. 11º ed. Paris: Histoire de L’Amerique Latine. Paris: Press Universitaisres de France, 1991. 1423

. Interpretación de la independência de América Latina. in.: CHAUNU, Pierre; VILAR, Pilar; & HOBSBAWN, Eric J. La Independencia de América Latina. Buenos Aires: Nueva Visión, 1973, p. 9 – 41. ; VILAR, Pilar; & HOBSBAWN, Eric J. La Independencia de América Latina. Buenos Aires: Nueva Visión, 1973 CHIARAMONTE, José Carlos. Modificaciones del pacto Imperial. in.: ANNINO, Antonio & GUERRA, François-Xavier (dir.) Inventando la Nación. Iberoamérica. Siglo XIX. México: Fondo del Cultura Econômica, 2003, p. 85 – 116. DEMELAS, Marie-Daniele & SAINT-GEOURS, Yvés. Introdução. La vie Quotidienne em Amérique du Duda u temps de Bolívar (1809 – 1830). France: Hachette, 1987. DONGHI, Túlio Halperín. História da América Latina. RJ: Paz e Terra, 1975. GOUVÊA, Maria de Fátima da Silva. A história política no campo da história cultural. Revista de História Regional. Vol. 03, nº 1, 1998, p. 1 – 7. (exemplar mimeo). ; ABREU, Martha; & AZEVEDO, Cecília. Uma História em três tempos: experiências de pesquisa e ensino de história das Américas. Revista Diálogos, v. 8, nº 2, 2004, p. 105-132. GUERRA, Francois-Xavier. A Invenção da Nação na América espanhola: a questão das origens. Revista Maracanã, nº 1, ano I, 1999/2000, p. 9 – 30. . El caso de la Monarquia Hispânica. in.: ANNINO, Antonio & GUERRA, François-Xavier (dir.) Inventando la Nación. Iberoamérica. Siglo XIX. México: Fondo del Cultura Econômica, 2003a, p. 117 – 151. . Lãs mutaciones da la indetidad en la América hispánica. in.: ANNINO, Antonio & GUERRA, François-Xavier (dir.) Inventando la Nación. Iberoamérica. Siglo XIX. México: Fondo del Cultura Econômica, 2003b, p. 185 – 220. LYNCH, John. As Origens da independência da América hispânica. in.: BETHELL, Leslie (org) História da América Latina: da Independência a 1870. SP: USP, 2001, p. 60 e 61. LOCKHART, James & SCHWARTZ, Staurt B.. A América Latina Colonial. RJ: Civilização Brasileira, 2002. MIERS, Jorge. A revolução de independência no Rio da Prata e as origens da nacionalidade argentina (1808-1825). in.: PAMPLONA, Marco Antônio & MÄDER, Maria Eliza (orgs.) Revoluções de Independências e nacionalismos nas Américas: Região do Prata e Chile. RJ: Paz e Terra, 2007, 69 – 130 (Margens, América Latina). MORELLI, Federica Entre Ancién et nouveau régime: l'histoire politique hispano-americaine du XIX siecle. Revue des Annales HSS, nº 4, juillet-août 2004, p. 759 – 781. PAMPLONA, Marco Antônio & MÄDER, Maria Eliza. Introdução in.: PAMPLONA, Marco Antônio & MÄDER, Maria Eliza (orgs.) Revoluções de Independências e nacionalismos nas Américas: Região do Prata e Chile. RJ: Paz e Terra, 2007a, p. 27 - 68 (Margens, América Latina). . (orgs.) Revoluções de Independências e nacionalismos nas Américas: Região do Prata e Chile. RJ: Paz e Terra, 2007b, (Margens, América Latina). PIMENTA, João Paulo G. Estado e nação no fim dos impérios ibéricos no Prata (1808 – 1828). SP: Hucitec/Fapesp, 2002 (Estudos Históricos, 46). . Província Oriental, Cisplatina, Uruguai: elementos para uma história da Identidade Oriental; Fim dos impérios ibéricos no Prata (1808 – 1828). in.: PAMPLONA, Marco Antônio & MÄDER, Maria Eliza (orgs.) Revoluções de Independências e nacionalismos nas Américas: Região do Prata e Chile. RJ: Paz e Terra, 2007, p. 27 - 68 (Margens, América Latina). PRADO, Maria Ligia. À Guisa de Introdução: Pesquisa sobre História da América Latina no Brasil. Revista da Anphlac, nº 1, p. 5 – 6. (exemplar mimeo). . A formação das nações latino-americanas. 12º ed. SP: Atual, 1994 (Discutindo a

1424

História). . América Latina no século XIX: tramas, telas, Textos. SP: Edusc, 1999 (Ensaios Latino-americanos, 4). STEIN, Stanley J. e STEIN, Bárbara H. A herança Colonial da América latina. Ensaios de Dependência econômica.2º ed. RJ: Paz e Terra, 1977 (Estudos Latinos-Americanos). WASSERMAN, Claudia. A formação do Estado Nacional na América Latina: as emancipações políticas e o intricado ordenamento dos novos países. in.: WASSERMAN, Claudia (coord.) História da América Latina: Cinco séculos (temas e problemas). RS: UFRGS, 1975., 178 – 215. (coord.) História da América Latina: Cinco séculos (temas e problemas). RS: UFRGS, 1975., 178 – 215. i

Este trabalho é parte da pesquisa realizada para curso de Especialização do Programa de Pós-Graduação latu sensu em História Contemporânea da UFF sob orientação do Drª Maria de Fátima Gouvêa. ii Especialista em História Contemporânea pela UFF-RJ; Professor de História da Rede Estadual do Rio de Janeiro e de História aplicada ao turismo do Senac Rio; Email: prof.joseluciogmail.com.

1425

A relação entre o bom governo e a salvação no reinado de Dom João III José Vinicius da Costa Meneses Mestrando – UERJ/FFP – CAPES Orientadora: Célia Cristina da Silva Tavares.

Resumo: Este trabalho visa discutir os conceitos de bom governo e salvação nos deveres no reinado de Dom João III. Serão utilizados para análise dois espelhos de príncipe - Breve doutrina e ensinança de príncipes, do Frei Antônio de Beja e o Tratado moral de louvores de alguns estados seculares, de Dom Sancho de Noronha. A comparação será feita a partir das virtudes que o rei deve possuir para bem dirigir a comunidade, observando se é discutida a proposta de salvação. Palavras Chaves: Dom João III, Salvação, Bom governo. Resume: This work aims at to argue the concepts of good government and salvation in the duties in the reign of João III. For this, will be used two mirrors of prince: Breve doutrina e ensinança de príncipes, of Antônio de Beja and Tratado moral de louvores de alguns estados seculares of Sancho de Noronha. The comparison will be made from the virtues that the king must possess to direct the community well, observing if it is argued the salvation proposal. . Keywords: João III, Salvation, good government.

Este trabalho tem como objetivo observar as relações entre o bom governo e a salvação a partir dos espelhos de príncipes produzidos no governo de Dom João III. A proposta é utilizar dois desses espelhos – Breve doutrina e ensinança de príncipes (1525), do Frei Antônio de Beja e o Tratado moral de louvores de alguns estados seculares (1549), de Dom Sancho de Noronha – sendo o primeiro oferecido ao próprio Dom João III e o segundo, oferecido ao seu filho Dom João Manuel. Surgidos durante a Idade Média, os espelhos de príncipe eram utilizados para oferecer conselhos aos magistrados e mandatários das cidades 1, sendo sua efetiva produção como gênero dando-se a partir do século XIII na corte capetíngia, o que acabou servindo também como propaganda da própria instituição monárquica 2. Um problema, segundo Ana Isabel Buescu, que poderia suscitar dos espelhos de príncipe pelo fato de serem participantes de uma literatura normativa, seria a diferença entre norma instituída e a realidade presente. Porém, privilegiando um caráter de exemplaridade

1426

“que configura modelos e práticas de comportamentos considerados idealmente virtuosos. O caráter «virtual» dessa representação não retira, portanto, importância e alcance ideológico a um discurso que se pretende ordenador de uma realidade que, nessa medida, acaba por ser o seu objeto central” 3.

Nem sempre, os espelhos de príncipe são chamados assim por seus próprios autores. A obra de Dom Sancho de Noronha, que traz o título de “Tratado moral de louvores de alguns estados seculares”, é classificada como espelho de príncipe, segundo Martim de Albuquerque4. João Adolfo Hansen diz que o espelho de príncipe, por vezes chamado “regimento de príncipes”, “aviso de príncipes” e também “suma política”, inclui-se na longa duração retórica do gênero deliberativo, que aconselha quanto ao futuro, e do epidítico ou demonstrativo, que elogia o bem e vitupera o mal.5

A principal característica dos espelhos de príncipe, segundo João Adolfo Hansen, era o de apresentar o elenco completo das virtudes cristãs que permitem o bom governo. Havia algumas diferenças na classificação dessas virtudes. Elas poderiam ser cardeais ou principescas. As virtudes cardeais eram aquelas que o rei e outros magistrados deveriam cultivar e que eram dadas pelos moralistas da Antiguidade. Eram a Justiça, Fortaleza, Temperança e Sabedoria. As virtudes principescas eram mais um grupo de virtudes que os escritores de espelhos de príncipe enfatizavam. Eram elas a Liberalidade, Clemência e Fidelidade6. Em Portugal, segundo Nair de Nazaré Castro Soares, “desde Álvaro Pais, ou mesmo São Martinho de Braga, a Diogo Lopes Rabelo, a Frei Antônio de Beja, Dom Jerônimo Osório ou Bartolomeu Felipe, as quatro virtudes cardeais são enaltecidas, a par de muitas outras que lhe são indissociáveis” 7. Isso pode ser confirmado quando se observam as duas obras deste trabalho. A obra Do Frei Antônio de Beja, a Breve doutrina e ensinança de príncipes é, por exemplo, composta em três partes, cada parte para explicar as virtudes da sabedoria, justiça e prudência – “a primeira é a sabedoria, para comum regimento; a segunda, justiça, para público castigo; a terceira, prudência, para seu viver e próprio sustentamento” 8 – e conta ainda com uma carta de apresentação direcionada à Dom João III, na qual Frei Antônio de Beja diz que “pus em mãos de meus maiores, conforme aquilo que me ficou e em que me criei, que é o exercício das santas letras que aprendi, [...] fabriquei em meu pobre e secreto artifício, um novo ajuntamento de preciosos esmaltes de virtudes, e tirei, por nova composição de

1427

muitos antigos doutores, esta breve doutrina e lembrança de príncipes, que humildade e leal vontade a Vossa Alteza ofereço” 9.

com

Interessante notar que, uma virtude recorrente na época, a da Fortaleza, não aparece com destaque maior nas virtudes do Frei Antônio de Beja. Ela, segundo Perdo Capos Franke, só “é mencionada apenas para inferir a utilidade da sabedoria para as campanhas militares” 10. Por outro lado, na obra de Dom Sancho de Noronha na qual são expostas várias virtudes – entre elas a sabedoria, justiça, fé, prudência, entre outras –, a fortaleza, aparece confrontada com a Justiça. E usando um exemplo de Plutarco, ele diz que não há nenhum valor na fortaleza sem a justiça. Esta última seria a mãe de todas as outras virtudes11. O contexto da produção de espelhos de príncipes em Portugal deve-se voltar à Idade Média, pois essa produção foi esparsa ao longo dos anos. A produção deste gênero em Portugal somente encontra no governo de Dom João III a sua maior expressão de atividade 12. No que foi produzido na Idade Média, como é o caso do Speculum Regum (1343) do Frei Álvaro Pais, os preceitos morais e políticos partem da proposta de submeter o príncipe secular ao príncipe eclesiástico, o Papa. O rei, como ungido do Senhor, seria predestinado por Deus para o governo e agiria também como responsável pela espiritual da comunidade, tendo como finalidade a salvação eterna dos seus súditos 13. Quentin Skinner também ressalta que é característica entre os humanistas do Norte 14 a presença da discussão nos espelhos de príncipe da virtude da Devoção. Era uma virtude tida como essencial, e que é grandemente discutida na obra de Antônio Guevara, no Relox dos Príncipes 15, obra esta que teve a edição ordenada por Dom João III quase simultaneamente com a sua primeira edição em castelhano16. Neste trabalho é possível observar o quão é importante a Fé para o bom cumprimento do oficio real. Tanto na obra do Frei Antônio de Beja como na obra de Dom Sancho de Noronha, o rei seria um ministro de Deus. Para Frei Antônio de Beja, que era da Ordem de São Jerônimo e escreveu o seu espelho para Dom João III na ocasião do casamento deste com D. Catarina, irmã do Imperador Carlos V, os reis são ministro de Deus “para evitarem todo mal e ordenar maneira e modo em si para que todo bem se faça. E por isto tem os reis o poder de dar penas aos maus e de fazer mercês aos bons para que incite a perseverar com maior cuidado em todo bem e virtude, porque a bondade favorecida cresce e o mal não castigado dana” 17.

Para Dom Sancho de Noronha – que foi deão da capela real e teve outros cargos eclesiásticos – tendo inclusive feito a Oração de abertura das Cortes de Almeirim (1544), na qual foi jurado

1428

o príncipe Dom João, para quem dedicou seu Tratado moral de louvores de alguns estados seculares – também é visto como um ministro de Deus, no qual os reis e príncipes devem sempre estar trabalhando “por seu louvor [de Deus], acrescentando o bem comum, guardando em tudo a justiça” 18. O prêmio esperado pelos reis e príncipes não pode ser a glória mundana, entre os homens, mas o prêmio verdadeiro deve dar-se “que se por merecimentos e virtudes dá, é ver a Deus que é sumo bem, em que a bem aventurança consiste e a verdadeira felicidade se possui” 19. Observa-se com isso, que, segundo João Adolfo Hansen, “os autores desses textos são letrados, geralmente eclesiásticos e aristocratas nas imediações do poder, como diplomatas, confessores reais, bispos, secretários, mestres de infantes, que costumam dedicá-los a crianças e jovens da casa real, muitas vezes ao rei já homem feito, representando-se a si mesmos como autoridades em um saber do poder” 20.

Seriam esses homens que têm o saber do “dever ser”, e que por amizade do bem comum escrevem para o rei21. Segundo Nair de Nazaré Castro Soares, “a elaboração teórica do modelo de governante no humanismo renascentista português não é alheia às novas concepções filosóficas do mundo do direito e do Estado” e prendia-se a realidade histórica da época22. Esta realidade histórica, segundo a autora, é que marca a originalidade do modelo de príncipe português: com a independência nacional bem firmada e certa coesão do povo, “favorecida pelo alto conceito de pátria, que mais se arraigava com a distância dela”

23

. Com isso, “o

monarca era tido como símbolo de uma unidade, como o mandatário de Deus na terra, para levar a cabo a missão civilizadora da raça lusa” 24. Contudo, também pesava as limitações impostas pela problemática de suas políticas internas e externas. A própria complexidade da máquina administrativa que os descobrimentos causaram fez ascender a altos cargos homens especializados que vinham da burguesia endinheirada e cultivada. Os membros do clero estavam em busca de um espaço no paço real, sendo acolhidos como confessores, pregadores, capelães, aios e preceptores de príncipes. A nobreza buscava na corte apoios para realizar suas aspirações. A nobreza rural lutava contra a queda de suas prerrogativas, pois a agricultura era desprezada e não havia fontes de produção, “a não ser o comércio dos produtos orientais que se esvaem na troca de bens de primeira necessidade”. 25 Os tratadistas do Renascimento português, segundo Nair de Nazaré Castro Soares, ainda estavam vinculados à tradição medieval

26

1429

. Porém, a partir da obra de Diogo Lopes

Rebelo – De republica gubernada per regem (1496) – marca-se uma mudança, pois esse autor defendia a transmissão direta do poder, aproximando o rei de Deus 27. Essa mudança também é uma característica que reflete “a evolução política europeia e prenuncia a tendência para a afirmação do poder absoluto dos reis”

28

. Há também de importante nesta obra, um

incremento no sentido de realidade que aborda discussões de aspecto relevante da época, como as guerras justas e a atitude a ser tomada pelo rei frente a presença dos judeus no reino 29

. Importante ressaltar que nesse caso que a concepção teocêntrica medieval ia cedendo

espaço à visão antropológica da vida, mas sem que a ortodoxia religiosa fosse posta em causa. Nair de Nazaré Castro Soares diz que a “laicização progressiva da cultura nacional está bem refletida nos tratados portugueses do Renascimento, apesar do caráter convencional de que se reveste este gênero literário”

30

. Com isso, pode ser observado também nos espelhos de

príncipe no Renascimento português o uso de autores medievais como Egídio Romano – discípulo de São Tomás de Aquino e também seguidor de Aristóteles – pois a mensagem dos autores medievais ainda era válida31. Como exemplo, nota-se que Frei Antônio de Beja usa ao longo de toda a obra – e principalmente na sua apresentação – a obra de Pico de La Mirandola, De hominis dignitate (1486). Observa-se ainda uma vasta utilização das Sagradas Escrituras e dos Padres da Igreja, sobretudo Santo Agostinho. Além da já comentada utilização da obra de Pico de La Mirandola – para com outras fontes explicar e exaltar o livre-arbítrio e de se fazer escolhas corretas –, Frei Antônio de Beja faz a seguinte pergunta: “Que coisa é rei, Senhor Ilustríssimo, se não um regedor e governador de Deus na terra?” 32. Nesse sentido há um alerta feito pelo Frei Antônio de Beja, no qual algumas vezes os príncipes encontram-se ocupados com “coisas de seu temporal contentamento” e esquecem-se do dom “a eles sobre todos concedido para satisfazerem a cada um segundo o seu merecer e buscarem com isto as doutrinas e ensinanças necessárias a perfeição de suas pessoas e a real governaça e regimento de seu ofício”. Com isso surge a necessidade de ter-se por perto “prelados, doutores eclesiásticos e seculares sábios” que “mostrem por palavra ou escritura, o que hão de fazer porque não errem” 33. Importante ressaltar que há um limite. Como observa Pedro Campos Franke, “a partir da formulação tomista sobre a maior obrigação dos reis em fazer reverência a Deus – ‘a primeira, porque o fez homem; a segunda, porque é senhor; a terceira, porque é rei’ – Frei Antônio busca nas escrituras os exemplos para cada uma destas razões” 34. E como o rei é um

1430

homem, este não deve ser adorado como um Deus. Para exemplificar, ele usa os Romanos dizendo que “daqui veio que movido César Augusto Otaviano por esta consideração, como contam as histórias, não podendo sofrer as honras divinas que do povo romano lhe eram feitas, assim pela formosa disposição de seu corpo, como por a bondade de seu coração, buscou seu fazedor e criador, perguntando por ele a sibila Tiburtina; e, depois de achado, o adorou, e defendeu, por mandado público, que nenhum mais adorasse sua mortal pessoa, nem o chamasse Deus, nem Senhor” 35.

Durante a maior parte do livro, nas explicações das virtudes, é dada maior ênfase na obrigação que os reis têm em honrar a Deus por este ter sido provedor de cargo e que se o rei for amigo de Deus, isso lhe trará vantagens para governar o povo. Na explicação da virtude “prudência”, ele reserva o último capítulo para explicar a relação entre o ser prudente e ter um bom regimento para o povo. Para tal, deve o rei se preocupar em satisfazer o povo, “cumprindo a vontade comum; se não for severo em extremo, mas humano; se sua gente for ensinada e cortês; se tiver sábios conselheiros; se prouver com muita diligência o reino em suas necessidades; se aos bons der galardão e fizer mercês e aos maus castigar com justiça e penas” 36.

Para incrementar seus argumentos, Frei Antônio de Beja utiliza como referência a obra de Virgílio, Eneida, e Santo Agostinho, a Cidade de Deus. Com este último, ele usa praticamente todo o capítulo XXIV do livro V. Expõe que “não se chamaram os reis cristãos ditosos e bem aventurados nesta vida” por terem no seu governo alcançado “galardões e prazeres desta miserável e triste vida”, pois estas coisas não pertencem “nem são necessárias à bem aventurança e reino de Deus, para que os cristãos foram criados”. Só poderiam ser os ditos reis bem aventurados se estes fossem “reis por bom título e fizerem justiça; se não forem soberbos, lembrando-se que são homens nascidos da fraqueza para que não se levantem em desprezo dos outros; se o seu poder real exercitarem em divulgar o nome de Cristo e as coisas que pertencem a honra de Deus” 37. A relação com a salvação é mencionada por Frei Antônio de Beja, mas nesse caso seria dada ao rei, obtendo nesta vida gloriosa fama e na outra, vida eterna

38

. A título de comparação, na Cidade de Deus, Santo Agostinho termina dizendo –

depois de uma longa relação do que os imperadores devem fazer para serem felizes – que “tais imperadores cristãos dizemos nós que são felizes, por ora, na esperança, e depois, na realidade, quando chegar o reino que aguardamos” 39.

1431

Ao encerrar o seu livro, no epílogo, Frei Antônio de Beja faz menção ao que Dom Sancho Noronha vai exaltar bastante em seu livro, o real estado: “Não ponho aqui mais doutrinas, Príncipe Excelente, porque não é minha intenção ensinar tão douta e sábia pessoa, como é Vossa Alteza; nem minha pouquidade tem tanta ousadia e poder. Mas somente escrevia algumas juntas para lembrança de vosso real estado, as quais, com a muita ocupação do novo regimento, por estarem em muitos livros derramados, não facilmente se podiam ler, com propósito e desejo de, em tempo de maior repouso, suprir com maior escritura, o que nesta pequena faltar” 40.

Observamos que o livro do Frei Antônio de Beja propõe que o rei seja virtuoso para que seja exemplo para seu povo, e vemos também essa concepção, na obra de Dom Sancho de Noronha – Tratado moral de louvores de alguns estados seculares [1549]. Segundo Martim de Albuquerque, a obra de D. Sancho de Noronha reforça o bem comum pela lei de Deus, e sua originalidade é compensada pela ortodoxia religiosa, em uma “época em que se sentem já soprar os ventos nefastos da doutrina de Maquiavel” 41. Quanto à biografia de Dom Sancho de Noronha é difícil de apurar. Como foi dito anteriormente ele seguiu carreira eclesiástica, sendo deão da capela real, tendo frequentado a Universidade de Coimbra e feito seu Ato de Teologia na presença de Dom João III, e, além disso, teria sido Bispo de Leiria, sendo que esta última dignidade se mostre discutível entre aqueles que fizeram sua biografia 42. Sua obra retoma tópicas recorrentes na época, como a origem do poder, a forma e o fim do governo, o papel dos julgadores e dos conselheiros. Diferentemente de como foi esquematizada a obra de Frei Antônio de Beja, ele não separa seu livro de acordo com as virtudes. Ele fez ao longo do livro a relação entre a raiz divina e pecaminosa do poder, apresentando a paz e a justiça como fins dos governantes43. Os grandes três temas que ocupam o livro são as obrigações dos reis, a justiça e o papel dos conselheiros. Por exemplo, ele utiliza na sua obra a virtude da prudência, sendo esta “uma virtude própria dos príncipes” e muito necessária para os príncipes escolherem seus conselheiros e juízes e de executar suas obrigações 44. Com uma obra de forte apelo moral, ao longo de todo o seu prefácio, ele expõe o perigo de se prender a bens materiais e aos vícios e não cultivar as virtudes, pois estas “aos vivos não desamparam e aos mortos acompanham por que como sejam bens interiores da alma a ela seguem até o lugar onde verão os que a ela se hajam dado o preço de seu valor, e verão quanto mais bem aventurados foram nesta vida os que foram ricos de virtudes e pobres de bens temporais” 45.

1432

Logo no primeiro capítulo, onde Dom Sancho de Noronha observa a grandeza do “estado” – visto como status, posição – dos reis e suas obrigações e perigo, ele diz que os reis “representam na terra o poder do muito alto Deus nos Céus” 46. A grandeza do “estado” do rei também implica que por ser tão grande mais grave será o pecado cometido. A base de argumentação para essa ideia é São Tomás de Aquino e Santo Isidoro, expondo quatro razões: os maiores podem resistir melhor ao mal; seria uma ingratidão com a Divina misericórdia, pois dela se recebeu um “estado” tão grande; seria causa de escândalo, quando este deveria dar bom exemplo e o mal obrar de seus deveres o caracterizará como um príncipe que não exerce bem a justiça47. Para isso, há a necessidade do rei ter em sua alma, segundo Dom Sancho de Noronha, a virtude da Fé. Esta seria o fundamento de todas as outras. Nesse capítulo, Dom Sancho de Noronha diz que “no ânimo do rei e príncipe deve estar muito perfeitamente e com muita grã constância a virtude da santa Fé Católica, e serem muitos zelosos dela conhecendo a Deus universal Senhor, protestando toda virtude na terra, e poderes procederem, de sua divina misericórdia, conhecendo por superior e assim por ministros escolhidos para a dignidade real trabalhando com tanta perfeição e veneração celebra-se o culto divino” 48.

Como exemplo, Dom Sancho de Noronha utiliza reis bíblicos que guardaram a Fé – no qual os povos destes reis prosperaram e gozaram de alegrias do sossego e que trouxe consigo a paz – e os que não guardaram a Fé, mostrando o que de ruim aconteceu a estes últimos 49. Praticar a virtude da Fé, também seria uma forma dos reis e príncipes de reconhecer e serem gratos a Deus por terem recebido tamanho “estado” 50. Dom Sancho de Noronha traça um paralelo entre o que os reis e príncipes devem fazer para merecer Deus e para cumprirem seus ofícios. Para isso, há a necessidade do rei em controlar seus vícios, em ser senhor de si para depois ser senhor de seus súditos. Para isso, é necessária a prática das virtudes e das boas obras, sendo estas últimas “dignas de louvor, que a nosso Senhor mereça prêmio, e entre os homens, delas fique imortal memória.” 51. O grande bem que é consequência dessas boas obras é que o povo passa a imitar o seu rei também nas boas obras, assim como, se o príncipe faz obras ruins, isso pode ser uma consequência ruim para o seu povo. Ao longo deste trabalho, foi possível observar que em ambos os espelhos de príncipes – feitos por pessoas que participavam de alguma maneira do clero – houve uma proposta de criar um modelo de rei e príncipe que dessem conta tanto dos deveres temporais quanto de

1433

deveres religiosos, visando – de forma mais explícita na obra de Dom Sancho de Noronha – o bem comum e o bom governo, sem deixar de lado das propostas de ser um bom cristão Católico. Portanto, foi interessante perceber como as virtudes foram trabalhadas e resignificadas pelos autores dos espelhos de príncipes aqui trabalhados. Com isso, percebe-se que, embora aqui tenham sido escolhidos os temas salvação e bom governo, as possibilidades de temas para futuras pesquisas são bem vastas. 1

SKINNER, Quentin. Quentin. As fundações do pensamento político moderno. Tradução: Renato Janine Ribeiro e Laura Teixeira Mota. 5° reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras. 2006. p. 52. 2 BUESCU, Ana Isabel. Um discurso sobre o príncipe. A «pedagogia especular» em Portugal no século XVI. In: Penélope - Fazer e Desfazer a História. Lisboa: n° 17. pp. 33 - 50. 1997. Online: http://www.penelope.ics.ul.pt/indices/penelope_17/17_05_ABuescu.pdf. Último acesso: 03/01/2015. p. 35. 3 BUESCU, Ana Isabel. Op. Cit. Nota 2. p. 34. 4 ALBUQUERQUE, Martim de. Introdução. In: NORONHA, Sancho de. Tratado moral de louvores e perigos de alguns estados seculares [1549]. Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar. 1969. p. 19. 5 HANSEN, João Adolfo. Educando príncipes no espelho. In: Floema: Caderno de Teoria e História literária. Bahia: n° 2A, pp. 133-169. 2006. Online: http://periodicos.uesb.br/index.php/floema/article/viewFile/81/89. Último acesso: 13/09/2015. p. 144. 6 SKINNER, Quentin. Quentin. Op. Cit. Nota 1. pp. 247-248. 7 SOARES, Nair de Nazaré Castro. O príncipe ideal no século XVI e a obra de D. Jerónimo Osório. 1° edição. Coimbra: Instituto Nacional de Investigação Científica. 1994. p. 249. 8 BEJA, Antônio de. Breve Doutrina e Ensinança de Príncipes. Reprodução fac-similada da edição de 1525. Lisboa: Instituto de Alta Cultura. 1965. p.115. As citações que se seguirão, de ambas as obras, se encontrarão com a grafia modernizada. 9 Idem. Ibidem. p. 111-112. 10 FRANKE, Pedro Campos. O ofício dos sábios: filosofia e ação na obra de Frei António de Beja. Rio de Janeiro: UFRJ/ IFCS, 2010. p. 65. 11 NORONHA, Sancho de. Tratado moral de louvores e perigos de alguns estados seculares. Coimbra: por Francisco Correia. 1549. fl. XLI. 12 BUESCU, Ana Isabel. Op. Cit. Nota 2. p. 39. 13 SOARES, Nair de Nazaré Castro. Op. Cit. Nota 6. pp. 249-250. 14 Segundo Renato Janine, por “Norte da Europa” o autor entende os países além dos Alpes, incluindo Portugal e Espanha. SKINNER, Quentin. Op. Cit. Nota 1. p. 71. 15 SKINNER, Quentin. Op. Cit. Nota 1. p. 249. 16 BUESCU, Ana Isabel. Op. Cit. Nota 2. p.41. 17 BEJA, Antônio de. Op. Cit. Nota 8. p.109. 18 NORONHA, Sancho de. Op. Cit. Nota 11. fl. XXXI. 19 Idem. Ibidem. fl. XXXII. 20 HANSEN, João Adolfo. Op. Cit. Nota 3. p. 146. 21 Idem. Ibidem. p. 146 22 SOARES, Nair de Nazaré Castro. Op. Cit. Nota 6. p. 246. 23 Idem. Ibidem. p. 246. 24 Idem. Ibidem. p. 247. 25 Idem. Ibidem. pp. 247-248. 26 Idem. Ibidem. p.250. 27 Idem. Ibidem. p.250. 28 Idem. Ibidem. p.250. 29 Idem. Ibidem. p.251. 30 Idem. Ibidem. p.251. 31 Idem. Ibidem. p.251. 32 BEJA, Frei Antônio de. Op. Cit. Nota 8. p.109 33 Idem. Ibidem. p.109. 34 FRANKE, Pedro Campos. Op. Cit. Nota 10. p. 65. 35 BEJA, Frei Antônio de. Op. Cit. Nota 8. p. 164. 36 Idem. Ibidem. p. 187.

1434

37

Idem. Ibidem. p. 187. Idem. Ibidem. p. 187. 39 AGOSTINHO, Santo. A cidade de Deus. Tradução: J. Dias Pereira. 2° edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 1996. p. 542. 40 BEJA, Frei Antônio de. Op. Cit. Nota 8. p. 187. 41 ALBUQUERQUE, Martim de. Op. Cit. Nota 4. p. 23. 42 Idem. Ibidem. pp. 12-16. 43 Idem. Ibidem. p. 21. 44 NORONHA, Sancho de. Op. Cit. Nota 11. fl. XVIII. 45 Idem. Ibidem. fl. IV. 46 Idem. Ibidem. fl. VIII. 47 Idem. Ibidem. fls. XXVI-XIX. 48 Idem. Ibidem. fl. XXXIV-XXXV. 49 Idem. Ibidem. fl. XXXVIII. 50 Idem. Ibidem. fl. XXXIX. 51 Idem. Ibidem. fl. LVI. 38

1435

TEMPO E ACONTECIMENTO NA CRÔNICA DE D. JOÃO I, DE FERNÃO LOPES Josena Nascimento Lima Ribeiro (Mestrado em História – UNIRIO/CAPES) [email protected] Orientadora: Prof. Dra. Miriam Cabral Coser RESUMO: A dinastia de Avis, na sua ascensão em 1383, encomendou ao guarda-mor Fernão Lopes a escrita de crônicas sobre os feitos dos reis portugueses. A sua obra aqui analisada é a Crônica de D. João I, dedicada ao novo monarca, D. João I. Por Lopes, o acontecimento é retratado como uma nova era milenarista, onde o presente de instabilidade seria deixado para trás e o passado bíblico seria revivido. Assim, intencionamos apresentar as concepções de tempo e acontecimento na crônica. PALAVRAS-CHAVE: Portugal – Crônica – D. João I ABSTRACT: The dinasty of Avis, in its ascension in 1383, ordered to the head of the royal archives Fernão Lopes the writing of chronicles about the deeds of portuguese kings. Here, we analyze the Chronicle of King John I, dedicated to the new monarch, D. John I. By Lopes, the event is treated as a new millenariam era, where the present of instability would be left behind e the biblical past would be relived. Therefore, we have the intention to present time and event concepts in the chronicle. KEYWORDS: Portugal – Chronicle – King John I A revolução de Avis (1383 – 1385) é um assunto bastante discutido pela historiografia portuguesa. Normalmente, o que pode ser observado é uma interpretação que prefere perceber o momento como um grande descontínuo da história do reino de Portugal, onde uma nova dinastia assume o poder juntamente com uma outra classe de nobres que apoiaram D. João I em conflitos bélicos com Castela. Onde escutou-se as vozes dos povos miúdos e que apresentou os monarcas avisinos como os responsáveis por tal momento; que desemboca na expansão marítima pioneira. No acontecimento 1383 – 1385 existe uma vacância de trono que provoca conflitos bélicos. D. Fernando, último rei da Dinastia de Borgonha, morre sem deixar herdeiros masculinos. Sua filha, D. Beatriz estava unida em matrimônio com o rei de Castela, D. Juan. Segundo o Tratado de Salvaterra dos Magos, enquanto o casal real não tivesse um herdeiro, ficaria no trono português em regime de regência a rainha D. Leonor Teles, esposa de D. Fernando. Porém, os eventos não ocorrem de forma assinada e o rei de Castela invade Portugal com a intenção de reclamá-lo ao domínio de si e de sua mulher. D. João, Mestre da Ordem Militar de Avis e irmão bastardo do rei falecido, defende o reino português através de

1436

três conflitos a Batalha de Atoleiros (1384), o cerco de Lisboa (1384) e definitivamente, a Batalha de Aljubarrota (1385), onde as forças castelhanas são derrotadas. Produções historiográficas menos recentes construíram a noção dos acontecimentos entre 1383-1385 como de uma revolução burguesa 1. D. João I, monarca que assume o trono neste momento ficou marcado na história como uma figura heroica e que teria salvado Portugal da perda de independência para os castelhanos e da pobreza em que se encontrava. O discurso dinástico foi forte, entretanto, historiadores passaram a rever o reinado de D. João I como um momento em que a vida dos portugueses não foi fácil. Segundo Armindo de Sousa e José Mattoso 2, até 1411 – durante o reinado de D. João I o país viveu em guerra; a inflação monetária atingiu altos níveis; as queixas contra os privilegiados recrudesceram e por fim, a grande carga de impostos que era exigida da população aumentou. Apesar de já haver um pequeno início da descaracterização do reinado de D. João I como de um governo “sem falhas”, não existem estudos aprofundados que desconstruam a noção de “revolução burguesa”. Ademais, não é de nossa intenção aqui fazer isso. Neste trabalho temos por objetivo apresentar as conotações de tempo e acontecimento para o caso do movimento social de 1383-1385. E fazer isso por meio da Crônica de D. João I, escrita por Fernão Lopes. D. Duarte, filho de D. João e rei após sua morte em 1434, encomenda ao guarda-mor da Torre do Tombo a escritura da história e grandes feitos dos reis portugueses. Fernão Lopes passou a exercer a função de cronista real e a receber uma tença anual de 14 mil reis pelo seu trabalho. A obra, por estar inserida no decorrer histórico transmitiu e influenciou as representações do tempo e as interpretações do acontecimento. Portanto, não são as sequências de acontecimentos que mais nos interessam nessa pesquisa e sim as representações de tempo e evento, como estas ficaram refletidas na obra de Fernão Lopes. Ao lidar com tais conotações, o cronista resgatou e selecionou memórias.

O tempo na idade média e a escrita do cronista O referencial do tempo e do acontecimento são sempre o espaço do vivido 3. O tempo, no decorrer das eras humanas, faz parte do domínio da evidência

4

e para o homem da Idade

Média, tempo é a representação de sua inserção na cristandade medieval. O tempo medieval, essencialmente cristão caracteriza-se pela grande multiplicidade dos momento vividos. Tal conotação privilegia o passado. É tempo da memória por conta da conquista do espaço do

1437

cristianismo na Europa. É também o momento da linearidade, já que o cristianismo é uma religião histórica, ancorada na História. Logo, a mesma insere um noção de tempo linear começa com o nascimento de Jesus Cristo e que teria fim com o Juízo Final - e que consagrou-se na historiografia, na forma ocidental de ver o tempo linear nas eras históricas. Jacques Le Goff aponta ainda que a “história cristã é orientada para um fim, seguindo um curso linear do tempo, esta tendência dominante do pensamento judaico-cristão operou uma mudança no pensamento da história” 5. A concepção de tempo é extremamente importante para a história e os primeiros historiadores cristãos tiveram influência no enquadramento cronológico da história e dos trabalhos advindos dela. Entre esta multiplicidade de tempos está o religioso, que administra boa parte das atividades realizadas durante o ano litúrgico. É o tempo da Páscoa, da Quaresma e do Carnaval, que regulam as atividades de plantação e colheita de acordo com as estações. Tal construção litúrgica também organiza a vida espiritual, enquadrando o homem cristão e as atividades do seu corpo dentro das festas litúrgicas ao longo do ano. Com o lento crescimento do poder real no fim da Idade Média e a afirmação das monarquias, o tempo medieval se torna o da sucessão. O tempo dos reis passa a distinguir sucessores e antecessores, tempo dos seus feitos, dos povos e das dinastias. Idade de confronto político e de poder 6. No caso analisado, existe uma pequena diferença entre o tempo vivido e o tempo da narrativa. A Crônica de D. João I, escrita provavelmente logo após o início do reinado de D. Duarte, deflagra que o tempo de escrita de Fernão Lopes é posterior ao tempo vivido. O autor da fonte a qual é utilizada neste trabalho nasceu por volta dos anos 1380 e 1390, o que significa dizer que chegou a vida no momento que a “Revolução de Avis” tomava a cena política, social e econômica em Portugal. A revolução é justamente o processo mencionado em que D. João I assume o trono. Juntamente com ele, ascende socialmente uma nova camada que o havia apoiado nos conflitos bélicos e que, a partir dos acontecimentos da Revolução Avis; contribuíram com o processo da Expansão Marítima pioneira de Portugal. Assim, não pode ser deixado de lado que a crônica de Lopes é antes de tudo uma obra encomendada. A Crónica de D. João I esconde conflitos e interesses. Reflete sobre Dinastia de Avis somente aquilo que a mesma desejava que fosse propagado. Na Crônica de D. João I existe um passado idealizado, presente menosprezado e um futuro anunciado 7. Fernão Lopes apresenta uma completa preocupação com a administração

1438

do momento em que e sobre qual escreveu e exprimiu ainda noções de continuidade, simultaneidade, posterioridade e anterioridade de narrativas e acontecimentos. Lopes e sua escrita são historiográficas porque inauguram a interpretação do acontecimento, influenciando toda a historiografia produzida posteriormente. O cronista colocou-se no momento dos conflitos bélicos e o recriou, deu-lhe nova conotação, registrando-o na memória política portuguesa. Na Idade Média o texto era lido, narrado e ao mesmo tempo ouvido e apreciado, escrito pela pena e nas lembranças.

A representação das durações na literatura-histórica O passado em Lopes não era encarado enquanto tempo do esquecimento, mas era revivido e estabelecido no presente 8. Existe um passado em que a memória dos reis portugueses da dinastia de Borgonha era ressaltada, porém não regozijada. A imagem da família anterior não poderia ser diminuída pois o monarca que assumiu o trono era descendente colateral da casa borgonhesa. D. João I era um rei inaugurador de novos tempos, de acordo com o cronista. Em uma outra configuração de passado, existe o passado bíblico que projetou-se no presente, transformando as lutas entre Portugal e o reino de Castela como a repetição de combates presentes na Bíblia 9. Logo, a mesma torna-se mais do que uma autoridade, o cronista Fernão Lopes encontra nela a maior fonte das analogias das quais faz uso em seus escritos. D. João passa a ser comparado com os reis do Antigo Testamento. Em um dos momentos do conflito do cerco, Lisboa é comparada à cidade de Jerusalém

10

- que foi cercada por Senaqueribe, rei de Assir - e D. João I ao rei Ezequias, líder de Jerusalém. Ao fazer isso, o cronista compara o povo de Portugal ao povo de Israel, como escolhido; denota o rei de Castela como o Anticristo e D. João como um messias encarnado, inserindo a conotação de tempos futuros. Um outro exemplo é o da peste negra, que faz sua aparição na crônica no cerco. Uma peste acomete somente as forças castelhanas, deixando mesmo os prisioneiros portugueses intocados. Uma interpretação é feita por meio da figura de um frei, Frei Rodrigo de Sintra, que completa com uma profecia: e assi ha dacomteçer a elRei de Castella, que sse ell tornar a este rreino com a emtẽçom que leva, que Deos lhe matara tantos do seus primogenitos, que ssom os gramdes e homrrados de seu rreyno, com que britou a verdade que prometida tiinha, que numca mais avera voomtade de tonar esta terra. Ell poem sua esperamça em multidõ de muita gemte, pera nos destroir sẽ por que, e nos esperemos em huũ sso Deos que nos livrara de suas maãos; o quall nos leixou padeçer tamtas pressas e tribullaçoões como vistes por teermos rrazom de os mais amar quamdo nos dellas livrasse (CDJ, I, cap. CLI, p.319).

1439

O episódio é igualado às Dez Pragas do Egito. D. Juan de Castela é equiparado ao faraó, que não aceita os conselhos sobre abaixar o cerco e só faz o mesmo após a doença atingir sua mulher por meio da vontade divina, que estava ao lado do reino português. Vale destacar que segundo o pensamento cristão medieval, a providência divina pertence a Deus, senhor do tempo. No caso do presente, percebemos um presente de sofrimento, de conflitos e de guerra. Um presente em que o reino de Portugal estava situação de instabilidade. A época em que o cronista realiza os seus escritos perpassa por dificuldades no centro da Igreja Cristã, o Cisma do Ocidente (1378–1417), que se torna um elemento de bipolarização das vontades

11

. O

cronista apresentou um reino dividido, e essa separação diz respeito à divisão social presente nos fins do século XIV. D. João I foi apoiado principalmente por nobres secundogênitos, setores urbanos de Lisboa e da população pobre das cidades que sofriam pela situação de desprivilegio em que se encontravam. Enquanto que a maior parte da nobreza apoiou o rei de Castela. Isso aconteceu porque até então existia uma fidelidade maior aos ideais da nobreza do que aos compromissos para com o território. Aqueles que seguiam D. João e que o apoiaram nos conflitos contra Castela são denominados de verdadeiros portugueses. Lopes aponta que sobre estes podemos em outra hordem nomear por martires os moradores de Lixboa, e aquelles que com o Meestre seemdo cercado, esteverom em sua cõpanha, e esto com justa rrazom; porque nom soomente som mártires, os que padecem por nom adorar os idollos; mas aimda aquelles que dos hereges e sçismaticos som perseguidos por nom desemparar a verdade que tem (CDJ, I, cap. CLX, p. 342).

Enquanto que de outro lado se tinha os que ficaram contra o Mestre de Avis, tomando partido por Castela. Estes foram emduzidos de todo per spiritu de Sathanas, e maao comsselho de falssos Portugueeses, poucos e poucos leixarom seu boõ propósito, tornamdo a fazer seus sacrifícios, e adorar os idollos em que amte criiam. E de alguũs delles isto fazerom, sem damdo tall fruito quaaes folhas mostravom suas pallavras, nom som tamto de culpar, pois que eram exertos tortos, nados dazambugeiro bravo. (CDJ, I, cap. CLX, p. 343).

Mas as analogias com as histórias bíblicas e a influência do Apocalipse também se faz presente de outra forma, através do advir. As concepções sobre a figura de D. João I construídas pelo cronista possuem caracterizações de origem milenaristica e messiânica. Ao analisar os casos isolados da Península Ibérica, José Manuel Nieto Soria denota a terminologia messianismo régio que é operacionalizada por um tipo de rei com atributos

1440

messiânicos. De acordo com o historiador espanhol, o monarca messiânico é apresentado como um chefe político escolhido por Deus e que possui aproximações com os reis do Antigo Testamento. Tal rei é uma figura que atua como uma espécie de instrumento do poder divino na Terra. É antes de tudo uma personagem escolhida e governa um povo também escolhido 12. O futuro apresentado por Fernão Lopes é promessa de novos tempos e apontam a absorção e adaptação de teorias que circulavam no tempo de escrita do cronista. Com Beda (672-735) Fernão Lopes cria a Sétima Idade. Beda dividiu o curso da história do reino de Deus em seis idades. A primeira de Adão a Noé, a segunda de Noé até Abraão e assim por diante, até a sexta idade, após a vinda do Salvador, Jesus Cristo. A Sétima Idade portuguesa é a inserção do reinado de D. João I como um tempo que se levantou novas gentes e um novo mundo. Um tempo de felicidades e bonanças em o monarca é comparado a Jesus Cristo e os que o seguiam aos apóstolos, incluindo que o mesmo duraria o tempo da vontade divina, até o fim das eras criadas por Deus

13

. A Sétima Idade messiânica e milenarista como o fim o da

história portuguesa. Fernão Lopes inaugura o acontecimento. Dá ao reinado de D. João uma cronologia e começo glorioso, na qual se levamtou outro mumdo novo, e nova geeraçom de gemtes; porque filhos dhomeẽs de tam baixa comdiçom que nom compre de dizer, per seu boom serviço e trabalho, neste tempo forom feitos cavalleiros, chamamdosse logo de novas linhageẽs e apellidos. [...] Este Senhor seemdo Meestre, e depois que foi Rei, pos, montarom tamtoao deamte, que seus deçendemtes oje em dia se chamam doões, e som theudos em gram comta. E assi como o Filho de Deos chamou os seus Apostollos, dizemdo que os faria pescadores dos homeẽs, assi muitos destes que o Meestre acreçemtou, pescarom tamtos pera ssi per seu gramde e homrroso estado. [...] Assi que esta hidade que dizemos que sse começou no feitos do Meestre, a quall pella era de Çesar per que esta crônica he cõpillada, há agora seseemta annos que dura; e durara ataa fim dos segres ou quamto Deos quiseer que as todas criou (CDJ, I, cap. CLXIII, p. 350).

Fernão Lopes, ao escrever a crónica, a coloca como parte de um conjunto. D. João passa a ser apresentado como o escolhido e messias também em comparação com aqueles que o sucederam. A legitimação da nova Dinastia encontram-se presente na noção de “shadow king” criada para o último monarca afonsino, D. Fernando. Tal figura histórica é a todo o momento apresentada por Lopes como um rei que teria sido levado pelas paixões e destruído importantes ações políticas do reino ao ser enfeitiçado por Dona Leonor Teles, mulher castelhana, casada e com filho. Para tentarmos uma compreensão da utilização de tais acontecimentos na escrita de Lopes, concordamos com Luiz Costa Lima quando o mesmo expõe que “para o homem

1441

medieval não há qualquer marca distintiva entre História e ficção. Desde que não se oponham à verdade religiosa, ambos são confiáveis, porque ambas são tomadas como verdadeiras” 14. Costa ainda reitera que Fernão Lopes teria marcado uma ruptura na tradição medieval. O fato de um rei bastardo ter sido levado ao poder por uma burguesia mercantil e contra os anseios da nobreza teria permitido ao cronista uma maior liberdade de escrita. Isto tornou possível que intercambiasse a história com elementos ornados e fabulosos 15.

O acontecimento por Fernão Lopes e a produção historiográfica Explorando o evento, a Crônica de D. João I de Fernão Lopes é a única fonte em que podem ser encontradas informações sobre o que aconteceu no movimento de 1383-1385. Tal situação deu a possibilidade para que fosse tomada como verídica. A narração cronológica é levada a cabo por Fernão Lopes com bastante dedicação. É importante ter em mente, porém, que com a ascensão da nova Dinastia, o cronista recebe título de nobreza e passa a ser encarado como vassalo do rei. Logo, “não é em nome dos vilãos que ele deixa a sua acção registrada nas crónicas, mas em nome da adesão e fidelidade à causa de um senhor que é também seu” 16. No início do prólogo, Lopes deixa claro porque e para quem está a escrever a crônica: Rei da boa memoria dom Joham, cujo rregimento e rreinado se segue, ouve com ho nobre e poderoso Rei dom Joham de Castella, poemdo parte de seus boõs feitos fora de louvor que mereçiam, e emademdo em alguũs outros, da guisa que nom acomteçerom, atevemdosse e pubricar esto, em vida de taaes que lhe forom companheiros, bem sabedores de todo o comtrairo. Nos certamente levamdo outro modo, posta adeparte toda afeiçom, que por aazo das ditas rrazoões aver podiamos, nosso desejo foi em esta obra escprever verdade, sem outra mestura, leixamdo nos boõs aqueeçimentos todo fimgido louvor, e nuamente mostrar ao poboo, quaaes quer comtrairas cousas, da guisa que aveherõ (CDJ, I, Prólogo, p.2).

Em contrapartida, Fernão Lopes demonstra sua própria leitura dos acontecimentos; a narração é tendenciosa. Em relação à história, António Saraiva aponta que foi “Fernão Lopes quem lhe deu o caráter de cataclismo social, o carácter ‘revolucionário’ que seduz os historiadores modernos”

17

. D. João I é apresentado como um monarca messiânico e que

instaurou uma nova era no reino de Portugal, “cobiçoso domrra, per sua ardẽte natureza e gramde coraçom” (CDJ, I, cap. VI, p.14). A necessidade de escrita de uma crônica declarando os grandes feitos no primeiro monarca, deflagra a relativa fragilidade presente nos primeiros anos da Dinastia de Avis como. Antes de tudo buscava-se afirmação política; deixar escrito os

1442

feitos dignos de lembrança, “por ficar em memoria por sempre aquelles que depois vehessem” 18

. A literatura régia colocada a cabo inicialmente por Fernão Lopes possui antes de tudo um

papel educativo e moralizador. A partir do movimento político presente em Portugal em 1385, novos homens reivindicavam por antigos privilégios e o rei é apresentado como o guia de uma nova nobreza. Ademais, essas construções, ao serem observadas, podem ser consideradas como uma confirmação de que nos anos 1383 e 1385 há um grande indício de que os habitantes do reino português possuiriam já uma latente “identidade nacional”, como a historiografia portuguesa tradicional intencionou representar. José Mattoso foi um dos primeiros a começar a repensar tais premissas. Tal autor defende a ideia de que o reino português não emerge de nenhuma formação étnica preponderante, mas sim da gradativa mudança obediência ao rei e não mais aos senhores feudais. Porém, este processo não é levado a cabo de maneira forte e rápida com a ascensão de D. João I ao poder 19

. Em 1383, tem-se um Portugal divido. As naturalidades são colocadas em oposição e a

autoridade régia não era acatada da mesma forma em todas as partes do reino. Decerto, é a tentativa de forjar-se uma identidade portuguesa que tem no rei o seu centro e que acaba por estar presente em toda a narrativa do cronista. No caso dos estudos específicos sobre o D. João I, a historiografia o julgou por meio dos acontecimentos e de suas ações. Sua imagem foi retomada por meio dos interesses que cada época via em ressaltar com intenções políticas. No momento da Restauração foi resgatada sua imagem de mitificação por meio do epíteto de Rei da Boa Memória, garantindo à dinastia de Bragança uma nobre origem na família de Avis, já que tais casas reais são descendentes por via colateral. Aproximadamente trezentos anos depois, com o Estado Novo, os intelectuais da república e do Integralismo lusitano estiveram mais interessados em resgatar a figura do comandante militar de D. João I, o cavaleiro Nuno Álvares Pereira, pessoa que incorporou ares de herói segundo a narrativa de Lopes 20. É importante ter em vista que a história de um fenômeno ou acontecimento é representativa da história das forças que se apossam do mesmo e modificam o seu significado. Na interpretação dos acontecimentos, os historiadores perspectiva mais tradicional retiraram a conotação religiosa, porém a exaltação da imagem de D. João I e do movimento que o legitima permanece. Houve a percepção que a busca de outras “verdades” era inacessível e aceitou-se a narrativa de

Lopes como verídica. A historiografia portuguesa, em seus estudos

1443

específicos sobre a Dinastia de Avis, salienta os escritos sobre o caráter legitimador do soberano e de grandes manuais cronológicos e biográficos. O descuido da historiografia produzida até então foi confiar-se na tradição e utilizar a escrita de Fernão Lopes na intenção de dar luz às identidades e autenticidades de poder em Portugal. Foi interpretar o cronista como o autor da irrupção de um acontecimento verdadeiro, o que não é aceitável. Foi deixar de ver em sua escrita a construção de modelos de rei, de cavaleiro, de mulher, de bom-cristão, de português. Foi deixar de ver a sua intencionalidade e contexto produtor. Situações que foram possíveis por conta desta ser a única fonte à qual os historiadores tiveram acesso.

Considerações finais Uma mesma obra literária pode dar abertura a mais de um tipo de discurso. De 1383 a 1385, vemos uma camada de origem secundogênita e um filho fora do casamento ascendendo aos mais altos espaços da sociedade que se renovava em torno da nova dinastia. A chegada ao poder de um rei bastardo e a legitimação de seus herdeiros abriram por demais as oportunidades de escalada social para o grupo que o apoiou e que estava em situação de desprivilegio. A história escrita por Fernão Lopes representa a confirmação da escalada ao poder dessa nova camada, que criara novas casas senhoriais e linhagens. O discurso que legitima a casa de Avis pertence também a esses novos senhores. Dá sentindo à nova ordem social. As camadas urbanas e os mercadores passaram a ter acesso ao poder através das câmaras, Conselhos e até mesmo como conselheiros pessoais do rei. Era necessário oferecer pressupostos lógicos para explicar e justificar o porquê de pessoas pertencentes a camadas menos privilegiadas haviam chegado a altos cargos. Pela intencionalidade da escrita, salta aos olhos a percepção que o discurso já estava formulado antes mesmo da escrita de Fernão Lopes. Muitas dessas ideias já circulavam e estavam presentes no projeto da Dinastia de Avis. A crônica de Fernão Lopes, escrita como documento, dá a esse discurso a condição de possibilidade para o seu encaixe na história, da memória para o devir. O final da Idade Média, os séculos XIV e XV, assiste ao desenvolvimento de novas condições de mecenato; principalmente a partir do aumento do número de letrados e da institucionalização do ensino. As cortes de diversos reinos passaram a demandar a escrita em função dos centros em que a mesma se desenvolve. Escrever em prosa sobre uma corte e seu

1444

monarca era prestar-se à expressão das mais altas verdades. Para os medievos, a prosa é um discurso em linha reta, demonstra a expressão mais fiel do pensamento. É nesse sentido que é utilizada a crônica medieval 21. E é exatamente a partir da desconstrução dessas verdades que devem pensar os historiadores, ressaltar as rupturas e dar luzes às singularidades.

NOTAS

1

COELHO, António Borges. A Revolução de 1383. Lisboa: Portugália Editora, 1965. SOUSA, Armindo; MATTOSO, José. História de Portugal: a monarquia feudal. Lisboa: Editorial Estampa, 1997, p. 411-419. 3 ARAÚJO, Renata. Lisboa – A cidade e o espetáculo na Época dos descobrimentos. Lisboa: Livros Horizonte, 1990, p. 5. 4 BASCHET, Jérôme. A civilização feudal. Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Editora Globo, 2006, p. 301. 5 LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas,SP: Editora da Unicamp, 2013, p. 78. 6 LE GOFF, Jacques. Tempo. In.: LE GOFF, Jaques; SCHMITT, Jean Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru, SP: EDUSC, 2002, p. 537. 7 BASCHET, Jérôme. A civilização feudal. Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Editora Globo, 2006, p. 319. 8 LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas,SP: Editora da Unicamp, 2013, p. 207. 9 BASCHET, Jérôme. A civilização feudal. Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Editora Globo, 2006, p. 328. 10 LOPES, Fernão. Crónica de D. João I. Primeira Parte. Lisboa: Livraria Civilização, 1990, cap. CLI. 11 VENTURA, Margarida Garcez. O Messias de Lisboa: Um Estudo de mitologia política (1383-1415). Lisboa: Edições Cosmos, 1992, p. 21. 12 NIETO SORIA, José Manuel. Fundamentos Ideológicos del Poder Real en Castilla (siglos XIII-XVI). Madrid: EUDEMA Universidad, 1988, p. 71-77. 13 LOPES, Fernão. Crónica de D. João I. Primeira Parte. Lisboa: Livraria Civilização, 1990, cap. CLXIII. 14 LIMA, Luiz Costa. Sociedade e Discurso ficcional. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1986, p. 23. 15 LIMA, Luiz Costa. Sociedade e Discurso ficcional. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1986, p. 25. 16 BEIRANTE, Maria Ângela. As estruturas sociais em Fernão Lopes. Lisboa: Livros Horizonte, 1984, p. 98. 17 SARAIVA, António José. O crepúsculo da Idade Média em Portugal. Lisboa: Gradiva, 1998, p. 178. 18 LOPES, Fernão. Crónica de D. João I. Primeira Parte. Lisboa: Livraria Civilização, 1990, cap. CLIV, p. 326. 19 MATTOSO, José. A Identidade Nacional. Lisboa: Gradiva, 1998, s/p. 20 COELHO, Maria Helena da Cruz. D. João I: o que re-colheu Boa Memória. Lisboa: Temas e debates, 2008, 2008, p.13. 21 ZINK, Michel. Literatura. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru: EDUSC, 2002, p. 91. 2

1445

FILINTO JUSTINIANO FERREIRA BASTOS: ABOLICIONISMO E BIOGRAFIA NA TRAJETÓRIA DE UM INTELECTUAL (1880-1939)

Josivaldo Pires de Oliveira1 A presente comunicação constitui uma amostra de uma investigação em andamento sobre a trajetória de Filinto Justiniano Ferreira Bastos (1856-1939), abolicionista, intelectual e ativista social baiano. Utilizando fontes variadas, procuro evidenciar sua experiência como abolicionista e protagonista intelectual no pós-abolição, com destaque para as biografias que escreveu sobre algumas personalidades, através das quais as críticas sociais que sempre marcaram sua vida são insinuadas. Ou seja, procuro evidenciar que Filinto Bastos tratava das suas próprias experiências através da biografia de outros. Palavras-chaves: História social; Biografia; Abolicionismo The present Communication constitutes a sample of an ongoing investigation about the trajectory of Filinto Justiniano Ferreira Bastos (1856-1939); abolitionist, intellectual and Bahia social activist. Utilizing various sources, I ttempt to demonstrate his experience as an abolitionist and intellectual protagonist of the postabolition era, while highlighting some of the biographies he wrote, where his own social criticism can br found. In other words, I Filinto Bastos addresses his own experiences, through the biography of others. Keywords: social history; biography; abolitionism

Em apresentação a um livro sobre a trajetória do político jacobino Ezequiel Corrêa dos Santos, Francisco Calazans Falcon deixa entender que a atual produção sobre o gênero biográfico em História não representa o “retorno” puro e simples da biografia e sim o estudo de natureza histórica ancorado na trajetória de personagens significativas fortemente inseridas no seu espaço-tempo concretos.2 Este é um argumento que posso me apropriar para justificar o estudo de natureza biográfica sobre Filinto Justiniano Ferreira Bastos. Abolicionista, poeta, professor e jurista baiano, nascido em Feira de Santana em 1856 e falecido em Salvador em 1939, a trajetória de Filinto Bastos foi marcada pelo protagonismo social em defesa da liberdade. Durante sua vida estudantil, atuou de forma veemente no movimento abolicionista que tinha lugar nas Faculdades de Direito de São Paulo e Recife. Voltando para Bahia, após bacharelar-se em Direito, Filinto Bastos atuou como juiz nas comarcas do interior, até que foi aprovado em concurso do antigo Tribunal de Apelação e Revista, exercendo a partir de 1897 o cargo de desembargador na capital baiana. Em Salvador, além de juiz desembargador e professor da Faculdade Livre de Direito da Bahia, Filinto Bastos foi membro do Instituto Geográfico e Histórico, no qual se revelou como competente biógrafo, tendo escrito sobre a experiência de personagens que em suas biografias lembravam a atuação do próprio Filinto Bastos.

1446

Desta forma, a biografia será aqui, não apenas um instrumento de narração da trajetória do biografado, mas também uma apropriação do mesmo que termina revelando nas entrelinhas do texto biográfico de sua autoria, o seu próprio testemunho. Advirto ainda que, pelo limite de espaço deste trabalho não discorrerei aqui sobre minhas escolhas de ordem teórica e conceitual sobre o gênero biográfico em história, assim como a categoria intelectual. Para título de referência recomendo a consulta de alguns ensaios bastante esclarecedores sobre as orientações que optei para o trabalho aqui proposto.3 O jovem abolicionista Em 1880, Filinto Bastos e outros estudantes de Direito fundaram a Sociedade Emancipadora Acadêmica, possivelmente o primeiro clube abolicionista no universo da academia da província paulista. Fundada em 14 de junho de 1880, inicialmente sob a denominação de “Sociedade Abolicionista”, teve seu nome alterado para “Sociedade Emancipadora Acadêmica de São Paulo”, tendo como presidente Filinto Bastos e como vice-presidente

o

acadêmico Lopes da Costa e mais 10 componentes compondo sua diretoria.4

A Emancipadora Acadêmica estava composta por jovens intelectuais dispostos e preparados para necessários enfrentamentos que a sociedade escravagista exigia. Por mais que pouca referência tenha sido feita na historiografia à existência e atuação desta sociedade abolicionista, ela contava com alguns membros bastante articulados entre os segmentos próabolição da província de São Paulo, a exemplo de Brasil Silvado, o qual tinha um trânsito entre outras entidades de mesma natureza e contato direto com o universo de abolicionistas que os antecederam, a exemplo do notório Luiz Gama.5 Em 04 de agosto de 1881, o Correio Paulistano, informou a realização de uma das várias Conferencias Emancipadoras, idealizadas pelo referido grupo e proferidas, principalmente, por Brasil Silvado. Nesta conferência, os benefícios seriam em “favor de uma velha escrava e dos cofres da Caixa Emancipadora Luiz Gama”. 6 As conferências continuaram para além de 1881, quando Filinto Bastos já não presidia a Emancipadora Acadêmica e nem fazia mais parte do seu corpo de membros, em função de sua transferência para a Academia de Direito do Recife, na província de Pernambuco. Entretanto, sob a gestão de Filinto Bastos, a Emancipadora Acadêmica se fez representada em diferentes eventos, alguns dos quais apontavam para a constituição de redes abolicionistas entre as províncias. 7 Um exemplo da configuração dessas redes, ainda em 1881, foi à participação da Emancipadora Acadêmica nos festejos em homenagem à Castro Alves, pelos seus dez anos

1447

de passagem fúnebre, organizados pelos abolicionistas da Academia de Medicina, da província da Bahia. S. Paulo, 26 de junho de 1881 Illms. E Exms. Srs. A Sociedade Emancipadora Academica, em S. Paulo, quer também associar-se ao festival com que a província da Bahia vae comemorar o decenário de morte do infeliz poeta Antonio de Castro Alves. Vivendo na mesma terra que ao estro vigoroso do vate morto inspirou tantas estrofes sentidas e patrióticas, abraçando a causa dos desgraçados captivos que fez vibrar a corda delicadíssima da gusla maviosa do autor de “Cachoeira de Paulo Affonso”, a Emancipadora Academica, pede que a representem na festividade da liberdade e da poesia e desde já vos agradece o concurso à idéa emancipadora, idéa de seu programma, programma de suas convicções. Deus guarde Vs. Exms. – Illms. E Exms. Srs. Drs. Manuel Vctorino Pereira e Alexandre Evangelista de Castro Cerqueira e acadêmicos Henrique Avelino Mendes, Octaviano Muniz Barreto e José Garcia Loureiro. Filinto Justiniano Ferreira Bastos, presidente Leocadio Leopoldino da Fonseca, 1º secretáro Manuel Alvaro de Souza Sá Vianna, 2º dito.8

O oficio assinado por Filinto Bastos e os respectivos secretários da Emancipadora Acadêmica de São Paulo, foi publicado na íntegra por órgão da imprensa baiana, o que demonstra a cumplicidade da imprensa com a causa abolicionista. A realização do evento parece ter atingido o sucesso esperado com a participação de representantes das várias províncias do império. O evento foi aberto com o ato simbólico da “coroação do busto [de Castro Alves] por dous ingênuos, filhos de uma escrava alforriada pela commissão” que organizou o festival.9 Além dos fervorosos discursos como o que proferiu o Dr. Ruy Barbosa, pôde-se contar ainda com declamação de poesias, entoação do hino elaborado para homenagear Castro Alves e conferências de representantes de associações literárias e abolicionistas, presentes no festival. De outras províncias estiveram representantes do Club Literário da Paraíba do Norte; do Diário do Grão-Pará e da Academia do Recife. Não faltou, obviamente, a Sociedade Emancipadora Acadêmica de São Paulo, que se fez representada por Octaviano Barreto, como já indicado por Filinto Bastos, em ofício citado anteriormente. É importante salientar que este tipo de evento não se justificava apenas pela manifestação de sentimento e apreço ao poeta dos escravos, como era chamado Castro Alves, pelos seus pares. Tratava-se também de uma oportunidade de congregar abolicionistas de diferentes províncias, o que funcionava como uma importante troca de experiência socializando seus projetos de ações em prol da liberdade dos cativos em suas respectivas províncias. Filinto Bastos esteve na presidência da Emancipadora Acadêmica desde sua fundação, em junho de 1880, tendo ficado à frente desta entidade até final de 1881, quando

1448

fora transferido para a Academia de Recife para a conclusão do curso de Direito e no terreno pernambucano o jovem baiano de Feira de Santana iria enfrentar bons embates com os abolicionistas locais. Em 1882, o Club Abolicionista, convidou a Academia de Direito para que se fizesse representada no festival abolicionista daquele ano, o qual deveria ocorrer em 28 de setembro, aniversário da Lei do Ventre Livre, como de praxe. A Academia, então, em resposta ao convite, elaborou um pleito para eleger um representante entre seu corpo estudantil. Constituíram-se duas candidaturas: de um lado o pernambucano José Isidoro Martins Junior, aluno matriculado no 4º ano do curso; do outro o baiano Filinto Bastos, estudante matriculado no 5º, oriundo da Faculdade de Direito de São Paulo e do movimento abolicionista daquela província. O resultado do pleito não foi nada satisfatório, tanto para os acadêmicos quanto para o Club Abolicionista. O fato é que o embate entre os candidatos e seus pretendentes foi tomado por uma celeuma de tamanha proporção que provocou o Club cancelar a realização da festa, criando uma polêmica maior ainda. Neste bipartidarismo, Filinto Bastos tinha o apoio do também baiano José Joaquim de Seabra, professor do curso de Direito, e mais estudantes oriundos de outras províncias do Império.10 José Isidoro Martins Junior era pernambucano e contava com o apoio do também professor Tobias Barreto, o qual reunia uma legião de estudantes que o tinham como grande referência intelectual, dentre os quais: Clovis Bevilaqua, Arthur Orlando, Gumercindo Bessa, Fausto Cardoso, Francisco Viveiro de Castro e Graça Aranha.11 Este grupo, de apoio irrestrito ao candidato pernambucano, alegou fraude no processo de votação para escolha do orador da Academia no festival do Club Abolicionista. O primeiro resultado do pleito deu empate entre os candidatos, ao se realizar uma segunda eleição, o grupo de apoio a Martins Junior questionou a lisura do processo. O grupo se apropriou então da urna e abortou o processo eleitoral, realizando um abaixo assinado com os nomes dos acadêmicos favoráveis à candidatura de Martins Junior e publicaram a lista de assinaturas na imprensa local, a qual divulgou a quantidade de votos, garantindo vitória para o candidato pernambucano, indicando assim Martins Junior para orador representante da Academia no Festival Abolicionista de 28 de setembro de 1882. Foram “as assinaturas em numero de 334, maioria absoluta da Academia, pois que ella consta 635, contados os 8 que acham-se fora do numero por morte e ausência temporária da província”.12 Os resultados desse pleito alternativo foi reconhecido pela Comissão

1449

do

festival, mas depois de ácidos questionamentos da imprensa local, o Clube Abolicionista indefere este resultado e opta por cancelar o festival por conta da celeuma atribuída aos conflitos internos da Academia. Tendo em vista o cancelamento do festival pelas razões já aludidas, Filinto Bastos publicou o discurso que iria fazer no festival na noite de 28 de setembro daquele ano, caso fosse eleito. Inicia o texto fazendo menção “aos leaes e bons amigos da Academia do Recife” e, obviamente, a “Emancipadora Acadêmica de S. Paulo”, sua escola abolicionista, como vimos anteriormente. Não deixa, no entanto, de fazer honrarias ao professor Dr. José Joaquim de Seabra, identificado por ele como seu “distintíssimo mestre, presado amigo e comprovinciano”. Entretanto, o que evidencia maior acidez no documento é uma nota de advertência que antecede o conteúdo que seria falado em seu discurso, intitulado “Duas Palavras”, na qual ele esclarece as razões pelas quais o festival fora cancelado. “Ahi fica o cadáver do meu discurso”. Esta é a primeira linha que pode ser lida no discurso composto de 12 páginas, publicado pela imprensa local e pela Typographia Mercantil do Recife.13 Continua afirmando que o “brilhantismo da festa do Club Abolicionista exigiu que me abstivesse de proferir o que havia escripto”, e ao concordar sentencia o experiente militante: “abolicionista de coração, não podia proceder diversamente”. Entretanto, Filinto Bastos não deixou de registrar para a história suas intenções para aquela noite de 28 de setembro de 1882. No seu discurso, ele trata de forma erudita sobre o desserviço da escravidão no Brasil; e dos caminhos trilhados pelo movimento abolicionista para promover a liberdade definitiva dos seres humanos escravizados: “para mim, as sociedades emancipadoras representam o fator mais notável, consciente, e scientifico do progresso do nosso paiz”. 14 Filinto Bastos, não apenas frisou sobre a importância do sentimento de emancipação e das sociedades abolicionistas, ele atacou também as correntes teóricas e ideológicas que predominavam no ambiente da academia do Recife, a exemplo do positivismo e da mefísica: “Certamente, meus senhores, nem o positivismo por si só, nem a metaphysica, se podem dizer triumphantes para resolver certas questões sociaes mais elevantadas”. 15 Citando Pasteur, em seu Discurso à Academia Francesa, ainda na crítica a essas correntes teóricas, ele afirma que “O positivismo aplicado à política não vio realizadas suas profecias. A condição de profeta tornou-se hoje singularmente difícil”.16 Esta afirmação tinha endereço certo. Tratava-se de uma crítica a José Isidoro Martins Junior, seu concorrente e adepto do

1450

pensamento positivista, o qual tinha largo espaço na Escola do Recife, sob influência das teses de Sylvio Romero. Segundo Graça Aranha, “Martins Júnior era republicano e vinha do positivismo. Clovis Beviláqua também recebera na iniciação positivista o toque da emancipação. Para ambos, a sociologia era a sciencia instituída por Auguste Comte e jamais a repudiaram”.17 Clovis Beviláqua, Graça Aranha e outros mais constituíam o grupo de apoio a Martins Junior na citada disputa pela vaga de orador e se identificavam com o positivismo, sistematicamente criticado por Filinto Bastos, em seu discurso. A experiência do jovem Filinto Bastos com o movimento abolicionista nas academias de Direito se encerraram no ano de 1882, quando se formou bacharél e retornou para sua terra natal. Retomando sua vida pacata na vila de Feira de Santana, escrevendo suas poesias de inspiração do cotidiano simples que lhe cercava. Filinto Bastos passou a atuar como advogado e juiz nas comarcas das vilas do interior baiano. No pós-abolição: protagonismo intelectual e biografia Voltando para Bahia, em 1883 inicia Filinto Bastos sua carreira de bacharél em Direito. Atuou como juiz nas vilas de Camisão, Caetité e Amargosa. Já reconhecido como competente juiz foi convidado, talvez por indicação do próprio J. J. Seabra, seu antigo professor, para compor o quadro docente assumindo inicialmente a cadeira de Direito Romano, da Faculdade Livre de Direito, fundada em 1891.18 Sua atuação como professor da Faculdade de Direito lhe permitiu determinadas inserções no meio intelectual baiano o que lhe rendeu um convite para constituir o grupo de membros-fundadores do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB), em 1894, assumindo o cargo de Suplente de Orador.19 Em dezembro de 1897, Filinto Bastos foi nomeado desembargador do Tribunal de Apelação e Revista do Estado da Bahia, passando então a vivenciar o cenário intelectual de uma elite letrada na capital baiana, no pós-abolição. Como desembargador, Filinto Bastos não deixou de ter assento em comissões de interesse científico e cultural. Por exemplo, foi ele quem liderou a competente comissão responsável pela reinstalação da Sociedade de Medicina Legal e Criminologia da Bahia, em 1914. Tratava-se da refundação da antiga Sociedade Médico Legal, criada por Nina Rodrigues no século XIX e reativada por iniciativa de Oscar Freire com a nova denominação e estatutos. Como resultado dos trabalhos da Comissão teve a composição da Diretoria, a qual aclamou Filinto Bastos como presidente e nomeou importantes nomes da ciência e da

1451

política da Bahia, a exemplo de Oscar Freire, Costa Pinto, Bernadino Madureira de Pinho e Severino Vieira, como membros da Diretoria. 20 Sua atuação como membro de uma elite intelectual atuante na capital baiana não era meramente científica e burocrática. Filinto Bastos estava sempre presente em situações e eventos que apontavam o seu protagonismo social enfatizando suas escolhas políticas e ideológicas muito bem definidas durante a campanha abolicionista, enquanto acadêmico, como discutido anteriormente. Em fevereiro de 1910, por exemplo, um grupo de exabolicionistas liderados pelo conhecido ativista Luiz Anselmo Fonseca, se reuniu na capital baiana para celebração de uma homenagem ao saudoso abolicionista Joaquim Nabuco. Reunidos no salão nobre do Grêmio Literário, espaço notório dos eventos abolicionistas no século XIX, este grupo constituiu uma comissão, sendo grande parte dos seus membros os mesmos que atuaram em outra comissão, citada anteriormente, que criou a Sociedade Médico Legal e Criminologia, por tanto, o desembargador e ex-abolicionista não poderia faltar a mais esta comissão de destacada relevância para as pautas sociais com as quais Filinto Bastos sempre se identificou. O jornal A Província, da capital pernambucana, reproduziu na íntegra uma matéria do Jornal de Notícias (Bahia), na qual informa detalhe da reunião de constituição desta comissão, enfatizando as propostas a serem votadas e levadas para apreciação das autoridades do Estado. Dentre as diferentes propostas, a mais ousada tratava da atribuição do nome de Joaquim Nabuco ao Ginásio da Bahia (atual Colégio Central, de Salvador), o qual seria definido a partir daquele momento como: “Gymnasio dr. Joaquim Nabuco”.21 A participação de Filinto Bastos nestes eventos revelava, de forma sutil, que ele não havia abandonado as questões sociais com as quais se identificou desde os tempos de estudante, inclusive já em sua maturidade intelectual não as deixou de problematiza-las, pois admitia que “não se pode bem ajuizar da civilização de um povo, sem o pleno conhecimento de sua história”.22 Sua experiência como emancipacionista que lutou pelo fim do cativeiro, defensor aguerrido da abolição imediata, não deixou de influenciar sua atuação como juiz, professor e intelectual no pós-abolição. Entretanto, foi no Instituto Geográfico e Histórico da Bahia que essas questões melhor foram publicizadas, mesmo que de forma indireta. Filinto, não foi autor de trabalhos que tratasse destas questões diretamente, mas suas escritas sobre a experiência de outros revelava muito dele próprio. Desta forma pode-se identificar nas

1452

biografias de sua autoria textos que diziam muito das suas próprias experiências. Este foi o caso do seu protagonismo na campanha abolicionista. O texto de caráter biográfico era uma das principais características narrativas da produção realizada pelos intelectuais vinculados aos institutos históricos, não apenas na Bahia. Ainda em 1839, já podia se identificar esse tipo de produção no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB/RJ), primeiro instituto histórico do país.23 A partir de então, o relato biográfico ocuparia importante espaço nos periódicos que veiculavam a produção dos membros dos institutos. Na Bahia, a biografia era o tema que ocupava o terceiro lugar no índice de produção da Revista do seu Instituto Geográfico e Histórico, perdendo apenas para os temas de História, Geografia e Geologia.24 Das biografias publicadas pela Revista do IGHB, Filinto Bastos assina algumas, entre as quais se encontram a do jurista Augusto Teixeira de Freitas, do educador Pe. Ovídio de São Boaventura e do médico Joaquim dos Remédios Monteiro, todos de tendência abolicionista, causa sobre a qual Filinto Bastos foi adepto fervoroso, como discutido anteriormente. Destas biografias, merece destaque, a título de exemplo, a de Joaquim dos Remédios Monteiro (1827-1901), pela grande repercussão quando da sua divulgação. Publicado em 1898 na Revista do IGHB, o texto foi veiculado inclusive na imprensa local, por conta da ênfase dada pelo seu autor em destacar a importância da atuação de Remédios Monteiro em nome da liberdade dos cativos, como sintetizado na seguinte passagem: Sua pena e sua palavra foram lategos de fogo contra os senhores obstinados. Estava ele convencido de que era insuficiente uma compaixão platônica pelas victimas do captiveiro. Não bastava acenar aos tristes habitantes das senzalas infectas com uma fugidia esperança de tardia liberdade. Era preciso fazer chegar a consciência dos senhores a certeza de sua ironia, ora, a consciência estava calejada, a legalidade amordaçava o direito, e nos senhores só despertava a humanidade quando o azorrague (sic) lhes fazia chegar dolorosamente o sangue as faces.25

No trecho acima Filinto Bastos não poupou esforços para enfatizar a atuação abolicionista de Remédios Monteiro e estas ênfases irão se repetir em outros momentos da biografia que não ficou restrita aos leitores na Revista periódica do IGHB. Além de ter sido publicado nos periódicos jornalísticos que circulavam na capital baiana, a imprensa de Feira de Santana, cidade que residia Remédios Monteiro, fez questão de republicar o texto alguns anos após a morte do saudoso médico e abolicionista indiano naturalizado brasileiro. Publicado em edição de 24 de março de 1940, trata-se da edição periódica de uma coluna

1453

intitulada Vida Feirense, a qual informa sobre acontecimentos relevantes na história da cidade. Desta forma, o jornal reconhece a importância desta monografia, do biógrafo e do biografado para a história do município e, por conseguinte, da Bahia: “continua a despertar commentarios elogiosos na cidade o bello estudo biográfico do dr. Remédios Monteiro, da autoria do dr. Filinto Bastos”.26 O texto ocupa duas grandes colunas da referida edição do jornal Folha do Norte e não apenas enfatiza a importância de Remédios Monteiro, mas também do seu biógrafo, o qual se destacou na campanha abolicionista e na luta por preciosas causas sociais no pós-abolição. Filinto Bastos faleceu em 1939, em Salvador, capital baiana. Sua obra como grande ativista e intelectual brasileiro, talvez ainda tenha que aguardar um pouco mais para o merecido reconhecimento. Pois, o próprio Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, do qual ele fora sócio fundador e destacado orador, reconheceu que o tempo se encarregou de conduzi-lo ao esquecimento.27 Considerações finais Filinto Bastos deixou um importante legado como ativista social tendo protagonizado a campanha abolicionista na sua fase de radicalização, assim como apoiado os diferentes projetos dedicados às questões das liberdades, da cidadania e da cultura no pós-abolição. Na condição de desembargador, Filinto Bastos atuou em muitas frentes sociais. Sua atuação como educador e agente da justiça sempre foi aplaudida por aqueles que o conheceram e que dele precisou de uma apreciação. Para além de professor de Direito, desembargador, operador da justiça junto ao Tribunal de Apelação e Revista do Estado da Bahia, Filinto Justiniano Ferreira Bastos, foi um proeminente estadista brasileiro.

1

Professor Adjunto da Universidade do Estado da Bahia - UNEB. A presente comunicação constitui o primeiro exercício sobre o trabalho que estou desenvolvendo como estágio de pós-doutorado junto ao Departamento de História da UNESP/Assis, sob a supervisão da professora Dra. Lúcia Helena Oliveira Silva. 2 FALCON, Francisco Calazans. Apresentação. In: BASILE, Marcello Otávio. Ezequiel Corrêa dos Santos: um jacobino na corte imperial. 1ª edição. Rio de Janeiro: FGV, 2001. 3 RAVEL, Jacques. Jogos de escala: a experiência da microanálise. 1ª edição. Tradução Dora Rocha. Rio de Janeiro: FGV, 1998; GINZBURG, Carlo. A microhistória e outros ensaios. 1ª edição. Tradução de António Narino. São Paulo: DIFEL, 1989; AMADO, Janaina e FERREIRA, Marieta de Moraes (org). Usos e abusos da história oral. 1ª edição. Rio de Janeiro: FGV, 1996; PRADO, Maria Emília (org). Intelectuais e ação política. 1ª edição. Rio de Janeiro: REVAN, 2011. 4 Correio Paulistano, São Paulo, 16/06/1880, p. 1 5 Amigo particular de Brasil Silvado e apoiador das ações do grupo liderado por Filinto Bastos, Luiz Gonzaga Pinto da Gama, nasceu na província da Bahia, em 1830. Filho da africana Luiza Mahin fora vendido como escravo para a província de São Paulo em 1840, onde conseguiu driblar a realidade de cativo e adquiriu sua

1454

liberdade. Dedicou-se, então ao mundo das letras atuando como jornalista, literato e oficiante do direito. Sua atuação em defesa dos escravizados o tornou um baluarte do abolicionismo no Brasil. 6 Correio Paulistano, São Paulo, 04/08/1881, p. 2. 7 ALONSO, Ângela. “O abolicionismo como movimento social”. In: Novos Estudos Cebrap, n. 100, 2014, pp. 115 – 137. 8 O Monitor, Bahia, 07/07/1881, p. 1. 9 O Paiz, Maranhão, 24/07/1881, p. 1. Imprensa de diferentes províncias informou sobre o aplaudido festival em homenagem ao poeta dos escravos. Nesta edição de O Paiz, periódico da província do Maranhão, foi publicada a programação do evento, de forma bastante cuidadosa para esclarecimento do leitor. 10 José Joaquim de Seabra, intelectual e político baiano, foi professor da Faculdade de Direito do Recife e amigo particular de Filinto Bastos, os quais mantinham afinidades políticas e ideológicas. Era ferrenho combatente ao grupo de Tobias Barreto, ao qual participava, Isidoro Martins Junior. Sobre Seabra, ver: SRMENTO, Silvia Noronha. A raposa e a águia: J. J. Seabra e Ruy Barbosa na política baiana da Primeira República. Dissertação de Mestrado em História. Salvador: UFBA, 2009. 11 ARANHA, Graça. O meu próprio romance. 1ª edição. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1931, p. 56-61 12 Jornal do Recife, 27/09/1882, p. 2. 13 BASTOS, Filinto. Discurso que tinha de ser pronunciado por Filinto Justiniano F. Bastos. Recife: Typographia Mercantil, 1882, s/n. 14 BASTOS, Filinto. Discurso, p. 7. 15 Idem. 16 Idem. Sobre o positivismo e o movimento abolicionista, ver: RIBEIRO, Maria Thereza Rosa. Controvérsias da questão social: liberalismo e positivismo na causa abolicionista no Brasil. 1ª edição. Porto Alegre: Zouk, 2012. 17 ARANHA, Graça. Meu próprio romance, p. 160 18 Almanak Administrativo Mercantil, e Industrial da Bahia (1891-1941), p. 2309. Constava ainda da equipe de instalação J. J. Seabra como Bedel da Faculdade de Direito. 19 Idem, p. 225 20 A Notícia, Salvador, outubro de 1914, p. 1 21 A Província, Recife, 20/02/1910, p. 1. 22 BASTOS, Filinto Justiniano F. Elementos de instrucção e educação cívicas e direito público e de direito constitucional brasileiro. 1 edição. Bahia: Livraria Duas Américas, 1916, p. 7. OLIVEIRA, Maria da Glória de. “Traçando vidas de brasileiros distintos com escrupulosa exatidão: biografia, erudição e escrita da história na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1839-1850)”. In: Revista de História, São Paulo, v. 26, n. 1, p. 154-178, 2007. 24 SILVA, Aldo José Morais. Instituto Geográfico e Histórico da Bahia: origem e estratégias de consolidação institucional (1894-1930). Tese de Doutorado. Salvador: UFBA/PPGH, 2006, p. 77. 25 BASTOS, Filinto. “Dr. Joaquim dos Remédios Monteiro”. In: Revista do IGHB, Salvador, Vol. 17, 1898, p. 491. 26 Folha do Norte, Feira de Santana, 24/03/1940, p. 1. 27 PONDÉ, Consuelo. “Filinto Bastos, um baiano ilustre esquecido”. Disponível: http://www.ighb.org.br [citado em 09/10/2015. 23

1455

PIN UP GIRLS: O poder das ilustrações americanas durante a Segunda Guerra Mundial Joviana Fernandes Marques1

RESUMO A entrada do governo norte americano na Segunda Guerra Mundial seguiu-se de uma postura de patriotismo disseminado amplamente através de imagens. As ilustrações de atraentes garotas, as ditas “pin ups”, revelaram-se agentes potentes da propaganda americana durante o período belicoso, funcionando como metáfora visual carregada de simbolismo e de um erotismo suavizado. Criando forte parceria política entre arte e Estado, as pin ups surgem como importante elemento propagandístico de guerra, firmando-se como campo profícuo de análises desdobradas na presente comunicação. ABSTRACT The US government entry into the Second World War was followed by a patriotic stance disseminated widely through images. The attractive so-called pin up girls proved to be powerful agents of American propaganda during the warlike period, working as a visual metaphor charged with symbolism and a mild eroticism. Creating strong political partnership between art and State, pin ups emerge as an important element of war propaganda, establishing itself as fruitful field of analyzes that we’ll seek unfold in this paper. Palavras - Chave: pin up, segunda guerra, americano.

1456

1. INTRODUÇÃO Os anos que delinearam a participação dos Estados Unidos na Segunda Guerra viram o front americano ser preenchido em suas fileiras não apenas com rostos de jovens e destemidos soldados, mas também, de uma poderosa e sutil ferramenta: a propaganda ilustrada. Segundo o pesquisador Robert Westbrook, salvo raras exceções, o sentimento patriota que impelia os cidadãos a participarem do esforço de guerra não partia de uma fonte de obrigações políticas, mas sim, de argumentos morais universais, como liberdade e democracia, além de interesses privados, relacionados à família e o sentimento de proteção dos mesmos2 Afim de criar uma conexão entre os cidadãos americanos, tão afastados da guerra “real” que se desdobrava em território europeu, e uma necessidade de alistamento em defesa do Estados americano, a propaganda agiu de forma intensa por meio de agentes como o Departamento de Informação de Guerra (OWI), encabeçado por Elmer Davis. Através de pôsteres, imagens em jornais e revistas bem como outros bens culturais, o OWI se apegava às obrigações morais levantadas por Westbrook, alinhavando uma trama complexa que abordava sentimentos relacionados à pátria e princípios pessoais privados. Não por acaso, a maioria dos filmes hollywoodianos produzidos em 1943 incorporavam sugestões do departamento, veiculando mensagens pautadas na afirmação de valores como democracia e liberdade3. Segundo William Chafre, provavelmente o vínculo mais efetivo para atingir os cidadãos e proporcionar maior adesão popular ocorreu no âmbito de imagens relacionadas ao sacrifício e humanidade.4.Tais temas surgiam abundantemente na mídia impressa, fazendo das imagens um forte aliado na formação da opinião pública. O ataque à Pearl Harbor por forças japonesas, por sua vez, auxiliou na ligação do cidadão com o discurso de guerra, permitindo que o medo real de que a América sofresse com ataques e bombas proporcionasse uma adesão familiar e privada dos americanos que, neste momento, passavam a contribuir para o esforço de guerra com novas disposições 5. Disposições estas que se encontravam profundamente influenciadas pela propaganda, como nos diz o pesquisador George Hoeder Jr:

O que era visto importava. A despeito da dificuldade em valorar o quanto imagens visuais afetaram atitudes individuais e coletivas, várias pesquisas de opinião pública, estudos em tempos de guerra por agências como o OWI e outras evidências sugerem que os temas abordados nos pôsteres de guerra, filmes e novas fotografias influenciaram sim os americanos6.

1457

Inseridos neste panorama é possível perceber que, rumo ao auxílio da propaganda, a prática ilustrativa agiu, assim como o cinema americano, afim de garantir que certos valores e estímulos circulassem. Para manter um ambiente de patriotismo, veicular ideologias relacionadas à gênero e incentivar determinadas posturas e adesões, um ícone extremamente popular emergiu, então, como interessante ponto de análise, visto sua atuação como “arma de guerra” na história americana dentro do conflito: as imagens de pin ups. Também conhecidas como cheesecakes7, as pin ups já haviam se estabelecido como gênero ilustrativo reconhecível mesmo antes da entrada dos Estados Unidos na guerra, podendo também figurar em fotografias, no cinema e teatros. Significando literalmente algo que é afixado, “pinned up”, o termo nasce e se consagra através do hábito de se pregar os pôsteres de belas garotas semi-nuas nas paredes. Povoando o imaginário do público masculino e sendo emuladas pelas mulheres, o gênero apresenta características formais marcantes e reconhecíveis:

A mulher pin up está normalmente vestida com uma roupa que revela as formas, quer sejam de utilização em público, como um maiô, vestido de praia ou vestido muito curto, quer mais provocante e íntima, com lingerie.8

Mas como imagens, a princípio, inocentes de belas garoas insinuantes poderiam servir como estímulo de alistamento e manutenção da vontade de lutar contra as forças do Eixo? Tal questionamento direcionará as linhas do presente artigo, visando contribuir para o debate acerca da influência e participação ativa da ilustração americana no segundo conflito mundial.

2. INDEFESAS E PROVOCANTES: UMA IMAGEM PELA QUAL LUTAR

Através de uma propaganda que apelava para os valores individuais e afetivos dos jovens soldados americanos, a popularidade das garotas pin up passa a ser vista como possibilidade de atingir um sentido de familiaridade na propaganda voltada, principalmente, ao observador masculino. Criava-se uma espécie de urgência em se defender as mulheres americanas reais, mesclando o dever para com a própria pátria à uma roupagem de “defensor”. Propagandas utilizando a figura feminina começaram a ser tornar recorrentes, mobilizando a velha questão de gênero na qual o homem deve portar-se como protetor, e as mulheres como protegidas. Elas preencheriam o vazio do “para quê” e “por quem” lutar: “Quando os soldados americanos disseram que era pelas mulheres norte-americanas que

1458

estavam lutando [...] o ‘lutar para’ significava ‘lutar por quem’ ou ‘em nome de’. Eles foram articulando a obrigação moral do ‘protetor’ para a ‘protegida’”9. Através de imagens familiares e reconhecíveis da “garota americana” personificada pelo modelo pin up, o Estado consegue uma aproximação mais efetiva com obrigações privadas e pessoais para que o indivíduo se sentisse impelido à adentrar a guerra. Incorporando por vezes a lembrança de uma namorada ou noiva deixada para trás, não raro as pin ups personificavam o estereótipo da garota americana, uma figura reconhecível da América. Impressas em cartas de baralho, pôsteres, blocos de notas decorados, cigarros e toda sorte de produtos, elas carregavam a incumbência de melhorar a moral da tropa, como afirmaram o general Eisenhower e MacArthur, ao citar o apoio que tais imagens proporcionavam aos homens10. Essa ligação moral de proteção veiculada pelas imagens de mulheres soma-se, na figura da pin up, à uma nova faceta bastante explorada e de caráter erótico. Disseminadas no campo de batalha por meio das mídias impressas, a imagem destas garotas sensuais ocupavam-se, também, em induzir um auto erotismo e prevenir a disseminação de doenças venéreas e a prática de atos sexuais dos soldados entre si. Como incentivo, “Durante a Segunda Guerra Mundial, a Marinha dos Estados Unidos sanciona o uso de pinturas de mulheres semi-nuas na fuselagem de aviões de guerra. Assim como as imagens de pin ups que forravam os armários dos soldados, esta chamada “nose art” 11 procurava aumentar a moral e incentivar fantasias heterossexuais em um ambiente militar segregado por sexo”12

Ornar aviões com a “nose art” durante a Segunda Guerra Mundial acabou tornando-se uma prática de personificação afetiva. Ao pintar, de forma pessoal, seus veículos de guerra com imagens de pin ups, os soldados criavam um sentido de proximidade com a arma de matar que pilotavam, objeto com o qual estariam ligados por dias, meses ou anos. O ato de associar arte com a prática de guerra é uma postura bastante antiga, remontando, de fato, a própria história do homem:

Instrumentos de guerra decorados existem desde a pré-história chegando até os dias atuais: tacos pré-históricos, carruagens egípcias, barcas fenícias, escudos espartanos, capacetes gregos, estandartes romanos, navios vikings, emblemas zulus, cavalos indígenas americanos e pinturas de guerra. A lista continua por todas as culturas, revelando o que antropologistas e psicólogos identificaram como uma necessidade humana de personalizar, confiar e sentir afeição por instrumentos que os salvarão da destruição ou levarão em direção à ela13.

1459

A imagem de pin ups rosadas e sorridentes já eram muito populares na América quando homens começam a personalizar fuselagens de aviões com suas ilustrações, “[...] o beliche militar envolto em imagens de pin ups se tornou um clichê durante a guerra14”. Esta popularidade foi um dos fatores que as possibilitou atuar como arma de persuasão e patriotismo potente no que tange a criação de ícones fortes. Ilustrações simulando obras de artistas de pin ups consagrados, tais como Alberto Vargas e George Petty, eram reproduzidas pelos soldados em tamanho ampliado na lataria do avião e, junto com as imagens femininas, não raro encontram-se palavras de incentivo e significado relevante para o recruta, personalizando e individualizando ainda mais o veículo de cada um. A padronização própria da guerra, que acaba por culminar em uma espécie de perda da personalidade, era compensada por tais ilustrações de mulheres sensuais que, como coloca Despina Kakoudaki, agiram durante a Segunda Guerra Mundial como uma espécie de “talismã”, uma imagem dotada de poder15. Para os homens que estavam comprometidos com a guerra, em uma situação hostil e instável, a dominação masculina poderia ser algo buscado através da arte da ilustração personalizada seguida por frases particulares de identificação. Como afirma Farmer: “este tipo de arte [...] está profundamente relacionado com uma noção mágica muito primitiva de que, uma vez que você nomeou uma coisa, você tem controle sobre isso. Uma vez feito isso, [...] Você terá afirmado domínio sobre a coisa16”. A respeito da relação do ser humano com as coisas, Merleau-Ponty diria se tratarem não de simples objetos neutros, mas sim, símbolos que evocariam, em suas palavras “uma certa conduta, provoca de nossa parte reações favoráveis ou desfavoráveis, e é por isso que os gostos de um homem, seu caráter, a atitude que assumiu em relação ao mundo são lidos nos objetos que ele escolheu para ter a sua volta [...]17”. Ao contemplarem os vários calendários de pin ups distribuídos para eles e pintarem as fuselagens de seus aviões com interpretações pessoais dessas imagens, os combatentes americanos se cercavam de representações afetivas, patriotas e sexuais potentes, capazes de agir como ponto de canalização para os mais diversos sentimentos de pertencimento. Curiosamente, enquanto o Estado veiculava e estimulava a sexualidade masculina por meio de imagens de pin ups sensuais, a propaganda americana criticou duramente a mesma sexualidade em mulheres, responsabilizadas por disseminar doenças. A mídia impressa se ocupou de alertar os homens sobre os perigos de encontros com o que chamavam de “mulheres promíscuas”, enquanto alguns artigos as identificavam como perigosas, doentes e até mesmo traidoras, caso contagiassem as Forças Armadas18.

1460

As mulheres, no entanto, não foram apenas representadas como sinônimo de perigo e cautela pela propaganda dos Estados Unidos. Funcionando como uma espécie de registro patriótico e de cariz familiar de americanismo, o advento da “pin up” tornou-se o primeiro canal da propaganda pró-guerra.”19, abrangendo também um público feminino como alvo importante dentro do processo de adesão. Ora personificando uma postura mais aberta com relação às esferas separadas de gênero, ora reafirmando condutas conservadoras relacionadas à elas, diversos pôsteres e imagens de pin ups também se destinaram à atingir a mulher americana, visando conquistar o apoio delas para o esforço de guerra. Mesmo imagens produzidas para o olhar do homem, como calendários publicados em revistas masculinas foram, em alguns momentos, reapropriadas por mulheres que encontraram algum tipo de expressão ali.

3. WE CAN DO IT! PIN UPS E AS MULHERES AMERICANAS DURANTE A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL Mais do que meras imagens inofensivas, ilustrações de pin ups carregavam discursos políticos, sociais e de gênero. Como aponta Luciana Grupelli Loponte, produções artísticas, assim como o conteúdo que em torno delas gravita, contribuem para produzir e fixar identidades sexuais e de gênero20. A mulher pin up, divulgada amplamente como objeto de desejo, agia como uma espécie de obrigação moral para o jovem soldado que, por sua vez, exercia, ao mesmo tempo, papel

de

dominador e protetor sobre tais representações. Mas mulheres também se viam cercadas dessas imagens por todos os lados, fossem dirigidas especificamente para elas, ou não. Ilustrações como as pin ups de Alberto Vargas21, apesar de desafiar as próprias possibilidades anatômicas reais ao mostrar mulheres com pernas de tamanhos impossíveis, de desproporção voluptuosa, pareciam traçar um canal comunicativo também com o público feminino. Como afirma a pesquisadora Maria Elena Buzsek, as chamadas Varga Girls faziam florescer um diálogo com leitoras femininas de revistas assumidamente produzidas para homens, tais como a Esquire magazine, possibilitando às leitoras se sentir mais livres para pensar e expor o próprio corpo: “[...] apesar das proporções impossíveis, as Varga Girls eram parte do diálogo que deu às mulheres uma linguagem para a auto expressão sexual22”. Os homens pareciam ver essas representações femininas que as pin ups encarnavam como objetos de desejo sexual e afeição, enquanto as mulheres encontravam maneiras mais livres de expressarem sua própria sexualidade. As garotas de Vargas funcionaram também como auxílio ao Estado no que tange à chamada às mulheres para o esforço de guerra à medida que o artista passou a produzir pôster para as WACs23 e

1461

WAVES24. Algumas de suas imagens associavam pin ups ao trabalho feminino de assistência na guerra valendo-se de organizações como a WAVES, por exemplo, para inspirar muitas mulheres a vestir seus uniformes e tomar lugar na proteção dos EUA. Uma delas trata-se de Ruby Messer Barber, nascida no sul de Atlanta e fascinada com a possibilidade de servir a América durante os períodos difíceis do conflito mundial. Ruby fala de forma empolgada sobre adentrar o esforço de guerra: “Eu não tenho irmãos. E imagino que há algo que eu possa fazer, uma maneira de dar minha contribuição”25.

Valendo-se da beleza e força patriótica que este gênero ilustrativo possuía, órgãos de propaganda também utilizaram o estereótipo da pin up para tentar levar mulheres a preencherem os espaços vazios deixados pelos homens nas fábricas. A força estampada na famosa ilustração Rosie de Riveter, de J. Howard Miller “parecia desafiar a noção de ‘lugar certo para mulheres’ na sociedade, aparentando ser uma ameaça aos papéis tradicionais de gênero”26. Representadas como fortes e capazes de atuar com certa mobilidade, imagens como as da Rosie passaram a “simbolizar o papel que seis milhões de mulheres americanas incorporaram na expansão da capacidade industrial dos Estados Unidos27”. Entretanto, enquanto preenchiam as fábricas, as mulheres trabalhadoras passam a ser vistas como uma ameaça aos homens que esperavam encontrar seus empregos novamente disponíveis ao retornar da guerra, mantendo as esferas de gênero bem delimitadas. Como esclarece Cynthia Epstein, indivíduos podem se apegar a certas designações por verem suas identidades em risco, ou por acreditarem em um sistema que os convenceu de que tais distinções são naturais28. Com isso, apesar de muitas vezes serem retratadas como fortes e independentes, diversos pôsteres abordavam a importância da aprovação familiar e da figura masculina para que as mulheres pudessem se alistar ou ocupar um lugar nas fábricas americanas. Um dos argumentos que surgem dentro das ilustrações de alistamento feminino visa afirmar a importância da contribuição feminina pautada na conquista da aprovação dos homens29. Outro ponto de conflito para a aceitação de uma postura mais ativa por parte das americanas tratava-se da preocupação de que o trabalho tornaria as mulheres “muito masculinas”. A aparência feminina era uma abordagem constante e preocupação da propaganda de guerra onde unhas, lábios e até mesmo a pele da mulher coexistiam com a força e determinação, uma dualidade que visava atrair o público feminino para o esforço de guerra, mas sem romper papéis pré-estabelecidos. As pin ups que figuravam nos cartazes e chamadas destinadas às americanas estavam impecavelmente maquiadas, com bochechas rosadas e unhas vermelhas brilhantes, sempre a ostentar uma beleza delicada que colocava em

1462

alto grau de importância a aparência para a mulher enquanto esta trabalhava em fábricas ou em organizações de guerra como o WAVES ou WACS: [...] propaganda e mensagens publicitárias convocaram as mulheres a demonstrar sua força física e competência mecânica enquanto lhes dizia para serem femininas, atraentes e dependentes dos homens, idealizando noções de domesticidade, casa e família30.

Pôsteres elevando características como a força física feminina espalhavam-se pelas ruas, enquanto, paralelamente atributos associados à uma concepção conservadora de feminino eram incentivados afim de estabelecer que “(...) o perigo poderia ser neutralizado ao se representar a trabalhadora de guerra como uma extensão do papel tradicional da mulher, como esposa, e mãe31”. Com isso, percebemos que, fosse reafirmando tradicionalismos arraigados de gênero, ou servindo como possibilidade de reapropriação feminina para novas visões da mulher acerca de sua sexualidade, a pin up atuou como importante artifício visual na propaganda de guerra americana.

4. CONCLUSÃO A grande popularidade de imagens de belas pin ups possibilitou à propaganda americana de guerra uma ferramenta simbólica de grande eficiência, fosse ao se dedicar à atingir um público masculino, quanto feminino. Articulando-se como lembrança, uma imagem reconhecível da América deixada para trás, ou assumindo caráter de válvula de escape para a sexualidade reprimida no campo de batalha, as pin ups possibilitavam a criação de laços embebidos na determinação e patriotismo. A mídia impressa, por meio da propaganda, utilizou estas “inocentes” ilustrações de belas garotas como uma espécie de “arma secreta de guerra” para garantir a vivacidade e um pleno funcionamento do sentimento de obrigação para com a pátria. A sensualidade da pin up surge para garantir esta relação entre “protegida” e “protetor” ressurja, fazendo com que as mulheres se construíssem “dentro das maneiras prescritas para prover os militares tanto com motivação quanto com moral 32”. Por outro lado, também foram exploradas como elemento a ser utilizado na propaganda destinada ao público feminino. As mudanças ocorridas através da utilização da mulher e sua sexualidade em propagandas durante a guerra “[...] enquanto certamente assustadora para muitos, também encorajou outros a explorar os prazeres de sua consciência sexual recémdescoberta e confiança33”. As pin ups transformaram não somente a forma como os homens

1463

viam a mulher americana, mas também auxiliaram na transformação da visão desta mulher a respeito de si própria, com isso, emergem como fértil objeto de análises sobre o comportamento da propaganda impressa americana durante os anos de participação na Segunda Guerra Mundial.

1

Mestranda em Artes, Moda: História e Cultura pelo programa de Pós Graduação em Arte, Cultura e Linguagens da faculdade de Artes e Design, Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Bolsista CAPES. Orientadora: Maria Claudia Bonadio. E-mail: [email protected]. 2 WESTBROOK, Robert. I want a girl, just like the girl that married Harry James: american women and the problem of political obligation in World War II. American Quarterly. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, vol. 42, no. 4, p. 587-614, dec, 1990. 3 NASH, Gerald D. The american west transformed: the impact of Second World War. Nebraska: University of Nebraska Press, 1990. 4 CHAFFRE, Willian H. The unfinished journey: america since World War II. 7° edição. Oxford: Oxford University Press, 2010. 5 DUIS, Perry R. No time for privacy: World War II and Chicago’s families. In ERENBERG, Lewis A. & HIRSCH, Susan E. The war in american culture: society and conciousness during World War II. Chicago: The University of Chicago Press, 1996. 6 RHOEDER JR, George H. Censoring disorder: american visual imagery of World War II. In In ERENBERG, Lewis (ed.) A. & HIRSCH, Susan E. (ed.). The war in american culture: society and conciousness during World War II. Chicago: The University of Chicago Press, 1996, p.47, tradução nossa. 7 Com tradução literal “bolo de queijo”, o termo cheesecake passa a se tornar sinônimo de pin up a partir da década de 1930, sendo utilizado para designar mulheres bonitas, “melhores que bolos de queijo”. 8 MARTIGNETTE, Charles G. & MEISEL, Louis K. The great american pin up. Taschen do Brasil, 2011, p.48, tradução nossa. 9 WESTBROOK, Robert. Op. cit., p.592, tradução nossa. 10 MARTIGNETE, Charles G. & MEINSEL, Louis K. Op. Cit. 11 A chamada “nose art”, em tradução literal “arte no nariz”, referia-se a região da fuselagem de aviões, “nariz dos aviões”, onde os soldados pintavam suas imagens preferidas de pin ups. 12 D’EMILIO, John & FREEDMAN, Estelle B. Intimate matters: a history of sexuality in américa. 2° edição. Chicago: University of Chicago Press, 1998, p.274, tradução nossa. 13 ETHELL, Jeffrey L. Aircraft nose art: from World War I to today. New York: Zenith Press, 2003, p.8, tradução nossa. 14 McEUEN, Melissa A. Making war, making women: femininity and duty on the American home front, 19411945. 1° edição. Georgia: University of Georgia Press, 2011, p.81, tradução nossa. 15 KAKOUDAKI, Despina. Pin up: the american secret weapon in World War II. In WILLIAMS, Linda (org.). Porn studies. 1° Edição. Carolina do Norte: Duke University Press, 2004, p.340, tradução nossa. 16 FARMER apud ETHEL, Jeffrey. Op.cit, p.8, tradução nossa. 17 MERLEAU-PONTY, Maurice. Conversas – 1948. 1° edição. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p.23. 18 HEGHARTY, Marylin E. Patriot or prostitute? Sexual discourses, print media and american women during World War II. Journal of Women's History. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, vol. 10, n°. 2, p.112136, 1998. 19 KAKOUDAKI, Despina. Op. cit., p.337, tradução nossa. 20 LOPONTE, Luciana Gruppelli. Sexualidades, artes visuais e poder: pedagogias visuais do feminino. Revista Estudos Feministas. Florianópolis: publicação eletrônica v. 10, n. 2, p. 283-300, 2002. 21 Influenciado pelo pai, o peruano Alberto Vargas, nascido em Arequipa em 1898, começa a estudar fotografia e conclui em seu país os estudos referentes à arte. Em 1916, durante a Primeira Guerra Mundial, Vargas muda-se para os Estados Unidos, país que passaria a amar, decidindo se estabelecer permanentemente. Escolhido para substituir o grande nome das pin ups, George Petty, Vargas começou a trabalhar para a Esquire em 1940, tornando suas Vargas Girls um dos grandes expoentes e referência mundial sobre este gênero ilustrativo no mundo. 22 BUSZEK, Maria Elena. Pin-up grrrls: feminism, sexuality, popular culture. 1° edição. Carolina do Norte: Duke University Press, 2006, p.227, tradução nossa. 23 Sigla americana para “Brigada Feminina do Exército”.

1464

Sigla americana para “Mulheres Aceitas para Serviço Voluntário de Emergência (Marinha da Mulher)”. YELLIN, Emily. Our mothers' war: american women at home and at the front during World War II. New York: Free Press, 2004, p.139, tradução nossa. 26 YESIL, Bilge. ‘Who said this is a man's War?’: propaganda, advertising discourse and the representation of war worker women during the Second World War. Media History. New York: Carfax Publishing, volume 10, p. 103-117,2004 p.103, tradução nossa. 27 ALVES, J. Alves. & ROBERT, Evan. Rosie the Riveter’s job market: adversiting for women workers in World War II Los Angeles. Labor: studies in working class history of America. North Carolina: Duke University Press, vol. 9, n°3, p. 53-68, 2012, p.54, tradução nossa. 28 EPSTEIN, Cynthia Fuchs. Tinkerbells and Pinups: the construction and reconstruction of gender boundaries at work. In FOURNIER, Marcel (ed) & LAMOUNT, Michèle (ed). Cultivating differences: symbolic boundaries and the making of inequality. 1° edição. Chicago: The University of Chicago Press, 1993. 29 YESIL, Bilge. Op. cit., p. 111, tradução nossa. 30 Ibidem, p.108, tradução nossa. 31 RUPP, Leila. Woman’s place is in the war: Propaganda and public opinion in the United States and Germany, 1939-1945. In NORTON, Mary Beth. & RUTH, Carol (org.). Women of America: A History. 1°edição. Boston: Houghton Mifflin, 1979, p. 348, tradução nossa. 32 HEGARTY, Marilyn E. Op. cit., p117, tradução nossa. 33 BUZSEK, Maria Elena. Op. cit., p.216, tradução nossa. 24 25

1465

Sobre a emergência de uma Fidalguia Coletiva em Biscaia Julian Abascal Sguizzardi Bilbao *

Resumo: Nesse texto buscamos compreender as condições de possibilidade de uma fidalguia coletiva (também chamada pela historiografia de fidalguia universal) na região basca de Biscaia. Parte-se de questões suscitadas na legislação denominada Foro Novo (1526) que estabelece o privilégio nobiliárquico (e suas prerrogativas) a todo indivíduo "natural" deste território. Além dessa fonte, mobilizar-se-á uma ampla rede documental colateral a ela, a qual propicia um contato com o campo discursivo, os lugares de fala e as práticas das nobrezas na Monarquia Católica. Palavras-Chave: Nobreza na Europa Moderna, Monarquia Católica, Estudos bascos. Abstract: This text aims to study the conditions of possibility on the construction of a collective nobility in the Basque region of Biscay. Starting by certain questions raised over the legislation called Fuero Nuevo (1526) that had established the privilege of nobility to all Biscayan’s “individual natives”. Besides that document, it is utilized an extensive network of historical sources, which allows the contact with the discursive field, the spaces of enunciation and the nobility practices in the Catholic Monarchy. Keywords: Nobility in Modern Europe, Catholic Monarchy, Basque studies. “A história, genealogicamente dirigida, não tem por fim reencontrar as raízes de nossa identidade, mas ao contrário, se obstina em dissipá-la, ela não pretende demarcar o território único de onde nós viemos, essa primeira pátria a qual os metafísicos prometem que nós retornaremos; ela pretende fazer aparecer todas as descontinuidades que nos atravessam”. Michel Foucault 1

“(...) Que todos los naturales, vecinos y moradores de este dicho señorío de Vizcaya, (…), eran notorios Hijosdalgo y gozaban de todos los privilegios de hombres Hijosdalgos;(...) que cualquier hijo natural vizcaíno (...) moradores fuera de esta tierra de Vizcaya en cualesquier partes, lugares y provincias de los reinos de España (...) les fuesen guardados los privilegios, franquezas y libertades que a hombre Hijodalgo, según el Fuero de España, debían ser guardados (...).”2

Introduzimos esta análise histórica anunciando um fragmento de um documento escrito no ano de 1526 (impresso em 1528) conhecido como Foro Novo, conjunto de leis que estabeleceu os Privilégios, Liberdades e Franquezas aos vizinhos da região basca de Biscaia 3 durante o mandato do primeiro rei da dinastia Habsburgo, Carlos V - imperador do Sacro Império Romano-Germânico e monarca dos reinos de Castela e Aragão, reunidos nesse momento como uma Monarquia Católica Hispânica. No excerto destacado, há enunciados que se relacionam com nosso problema de pesquisa: quais as condições de possibilidade4 para a emergência de uma nobilitação coletiva estendida à toda uma população na aurora do século XVI no contexto ibérico?

*

Mestrando em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP) sob orientação da Profª. Dra. Karen Macknow Lisboa com apoio da Profª Dra. Iris Kantor. A pesquisa conta com o apoio institucional da CAPES.

1466

Tal legislação fora escrita em substituição a outra que após essa reformulação de 1526, precisamente, ficou conhecida como Foro Velho (1452). No preâmbulo desse novo foro, lêse: “Que ellos habían pasado el Fuero Viejo lo mejor que les habían parecido y reformado, quitando lo que era superfluo, y asentado y escrito otras cosas que tenían de Fuero, y costumbre que no estaban primero escritos (...).” 5 Dessa maneira, aquele conjunto de leis foi transformado e elementos novos foram inseridos. O que chama a atenção no Foro Velho é que havia uma distinção social explícita, (ao contrário do Foro Novo), entre um estamento6 que compreendia os chamados labradores7 [lavradores] e outra camada que compreendia os hidalgos [fidalgos], (dispomos de uma versão crítica desse documento que está traduzida ao inglês, haja vista sua publicação pela Universidade de Nevada). Nessa legislação de meados do século XV, está descrita uma prática que consistia na fuga desses lavradores de zonas taxadas [Census-emcubered farms] por certos impostos (Censos) para outras terras nas quais habitavam apenas nobres, isentos de determinadas cargas: “Futhermore they said that the said Lord King, as Lord of Bizkaia 8, had taxed, assessed and imposed upon the labradores of Bizkaia, and those labradores who were living in the aforementioned census-emcubered farms go to inhabit and live on the lands of the nobility, [and they do so] with ill intent in order not to pay which befell them in the tax list of the Lord of Bizkaia, and in order not to pay as much as they should, those censusemcubered farms are abandonated by people who live on them. (….). And what [is] worse [is] that the labrador will not be distinguished from the hidalgo after he lives for a long time on the hidalgo’s property”9

Nessa mesma disposição, lê-se que as cargas de impostos recaem sobre os lavradores remanescentes nas terras taxadas: constituindo um grande dano não só aos fidalgos do condado e à monarquia, mas também, àqueles camponeses supracitados que têm de se responsabilizar pelos tributos sozinhos (no valor de cem mil maravedís pagos ao senhor de Biscaia). Em uma provisão do Conselho Real datada de 1480 (ratificada pelos Reis Católicos, Fernando e Isabel), foi mobilizada a queixa de alguns lavradores [Buenos homes labradores] contra outros lavradores, (os quais se utilizam de subterfúgios estratégicos para se livrarem de cargas tributárias determinadas pela coroa), passando-se por nobres, fomentando prejuízos àqueles: “(...) Sepades que por parte de algunos buenos homes labradores de las dichas merindades10 é partidos nos fue hecha relación por su petición diciendo que por causa de los grandes fraudes é encubiertas que algunos de los labradores é homes pecheros 11 (…) hacían, á fin de se sustraer de non pechar nin contribuir de los pedidos12é otros pechos Reales que les eran repartidos, dejaban los solares é casas propias pecheras que tenían y se iban á vivir á tierras de infazonazgo 13, donde dis que hacían chozas é casas en que vivir é estaban: é asi mismo por que dis que otros vendían é empenaban sus haciendas é heredades pecheras à homes fidalgos en tal manera que por cargarse

1467

los tales pechos é pedidos á los pecheros que quedaban se les recrescian muy grandes costas é daños é fatigas (…)”14

A situação jurídica e social desses lavradores ainda constitui um problema para a historiografia (especialmente no que tange o século XV): “The question of the juridical status of labradores appearing on the tax rolls of medieval Bizkaia is far for clear. The matter requires futher study, a most difficulty undertaking given the scarcity of available documentation regarding truly interesting question.”15 O excerto documental mobilizado, entretanto, sugere que alguns desses lavradores, mesmo abandonando suas terras ou as vendendo aos nobres para se livrarem do fisco, possuíam solar próprio, ou seja, propriedade familiar, de modo que a principal distinção entre os estamentos, de acordo com esse corpus documental, fica por conta dos tributos devidos ao rei, sendo os fidalgos completamente isentos de pechos [Ver Nota 8]. Segundo Fernández de Pinedo: “(...) bajo el termino de labrador se esconden diversas situaciones reales. En general, se trata de pecheros del rey –los censuarios – sujetos al pago de ciertos cánones o prestaciones, que unas veces pueden trasladarse libremente y otras encuentran dificultades para abandonar el solar. En peores condiciones sociales, económicas y jurídicas estarían los labradores de los hidalgos, (…), de los que apenas si tenemos noticias.”16

Os documentos mobilizados, tratam essencialmente da categoria dos labradorescensuarios. Apesar de haver essa importante distinção entre fidalgos e labradores no século XV (é justamente isso que nos diz respeito de acordo com nosso problema), é certo que em Biscaia havia um regime de distribuição de privilégios bastante complexo e amplo. Ao que tudo indica, existia uma conjuntura social na qual as liberdades concedidas

eram

relativamente extensas (processo capitaneado pelos senhores de Biscaia), escapando ao modelo feudal outrora vigente na historiografia da Europa Medieval e Moderna de servidão, ou seja, de dominação vertical de “senhores” em relação à “servos” 17. Por outro lado, a documentação nos traz certas informações relevantes acerca da conduta dos hidalgos em relação aos labradores. Após a conhecida crise de produção no Ocidente Europeu no século XIV, há relatos de abusos daqueles pequenos nobres (empobrecidos pela crise, alta de tributos e baixa nos preços de cereais) em relação aos camponeses. Cabe introduzir aqui um tema bastante debatido pela historiografia basca, a prática de alianças entre esses fidalgos, constituindo ligas ou bandos (alianças contingentes de linhagens, organizadas por consanguinidade e por via masculina): suas disputas –violentaspor influência política foram denominadas lutas de bandos. Tais contendas foram levadas a cabo tanto na chamada Tierra Llana (núcleos rurais povoados, não-amuralhados, organizados politicamente pelas paróquias, também chamadas de anteiglesias) como nas Villas (núcleos

1468

urbanos povoados, cercados por muralhas). Muitas das Vilas de Biscaia foram fundadas, inclusive, pelo Senhor deste condado com o intuito de proteger a população contra a violência constituída por esses nobres: “Hacia 1376 hidalgos y lacayos18 del Señorío de Vizcaya andaban ‘por las casas de los labradores, e de las ferrerías’ pidiendo ‘pan é vino, é carne, é otras viandas, é dineros para ellos, amenazandolos é feriendolos hasta que gelo (sic) hacen dar, é esto es manera de robo’19. Las villas de Larrabezúa, Munguia y Rigoitia se fundaron para agrupar y defender a los labradores de la merindad de Uribe y Busturia porque eran robados por los hidalgos, hombres poderosos y Lacayos.”20

De modo que no século XIV a fundação de tardia de Vilas (se comparada com outros territórios ligados à Coroa de Castela) torna-se um instrumento estratégico aos senhores de Biscaia para lutarem contra os fidalgos organizados em alianças, os quais tanto lutavam entre si, quanto roubavam e ameaçavam o cotidiano dos labradores com violências. A criação dessas vilas reforça o poder do senhor de Biscaia, ao mesmo tempo que garante a segurança de súditos não-nobres e lhes concede privilégios (atraindo povoadores).21 No século XV, a atividade desses nobres organizados em bandos continuou muito intensa para prejuízo do Bem Público, segundo os documentos oficiais. Tais contendas atrapalhavam o desenvolvimento de uma sociedade mercantil capitaneada por Bilbao, importante porto e polo regional de comércio. A partir da década de 1480, especialmente, os Reis Católicos iniciam uma campanha de enfraquecimento das esferas de poder desses fidalgos através de procedimentos jurídicos. Em 1484, os Reis através de Ordenança, atribuíram a tarefa ao Corregedor (funcionário real com funções governativas) Chinchilla da proibição de sobrenomes [apellidos] ligados aos bandos em Bilbao, os quais eram distribuídos às suas linhagens consanguíneas nas políticas de aliança: “Que de aqui adelante en tempo algun e nombre en esta dicha villa de Bilvao apellidos nin vandos (...) et que qualquer de los vezinos et moradores de dicha villa que (...) lo quebrantaren o pasaren contra el que por el mismo caya en mal caso et muera por ello como deservidor del rrey e de la rreyna nuestros señores et enmigos de la paz et bien comum de su pátria (...)”22 Ao longo dessa década, várias disposições foram tomadas contra os bandos e seus líderes (também conhecidos como Parentes Mayores): em 1485 é solicitado ao corregedor por Carta Patente que retomasse a irmandade em Biscaia, dividida pelas disputas entre esses fidalgos. Em 1489, por provisão real, os reis estabeleceram proibição que os líderes dos bandos fossem às Juntas Gerais do Senhorio. Na década seguinte, em 1494, por Carta Patente, se proíbem os bandos, parentelas e ligas na região das Encartaciones. No início do século XVI, é perceptível a diminuição da importância da influência dos bandos, haja vista o decréscimo de pleitos reais contra essas agremiações, apesar de que não se pode falar, em

1469

absoluto, de sua desaparição ou ausência dessas linhas de força. Uma prova disso é que o governo da Municipalidade de Bilbao, segundo cédula Real de 1544, divide seus regedores entre duas parcialidades (Oñacinos e Gamboínos), ou seja, grupos remanescentes dos antigos bandos, indicando uma estratégia de institucionalização legal dessas divisões ao nível do município23. A despeito desta última nuance, é possível estabelecer uma hipótese nesse momento: levando em conta a luta secular das esferas reais contra os desmandos desses bandos em Biscaia, não teria sido a emergência de uma Fidalguia Coletiva em 1526, ente outros fatores, uma dessas estratégias para minar o poder dos velhos fidalgos banderizos? Os documentos da passagem do século XV para o século XVI indicam, como vimos, uma tentativa de obliterar o poder e a distinção social dessas agremiações tendo como efeito uma tendência a equiparação do status jurídico dos biscainhos. De modo que, a fidalguia coletiva pode ser vista, entre outras coisas, como mais uma peça na guerra jurídica real contra os poderosos em Biscaia. Deve-se pontuar que o status de labrador desaparece completamente da norma jurídica em Biscaia com o advento do Foro Novo e a fidalguia coletiva24. Outro aspecto que não podemos deixar de abordar é a formação de uma Monarquia Católica na Espanha: fator que influenciará diretamente os argumentos mobilizados em prol da institucionalização de uma fidalguia coletiva em Biscaia por meio do Foro Novo. Após o casamento de Isabel de Castela e Fernando de Aragão em 1469, esses monarcas levaram a cabo certas tecnologias de poder que procuravam investir em um sentimento coletivo ligado à religião católica: “La monarquía que fundaron los Reyes Católicos no tenía unidad política. Era un conjunto de territorios que conservaron su fisonomía y que tenían la característica común de ser gobernados por el mismo rey. La unidad religiosa garantizaría la unidad (...). El instrumento sería la Inquisición.”25

Desde meados do século XIV e mais especialmente ao longo do século XV (e ainda com mais ênfase na segunda metade deste século), tem-se notícia de grandes motins contra populações de origem judaica na Península Ibérica. Sabe-se que desde o medievo havia uma grande desconfiança para com os seguidores da lei mosaica do ponto de vista do imaginário cristão: eram identificados como agentes diabólicos, não reconheciam a Boa Nova e esperavam a chegada de um “falso messias”, prontamente relacionado com o Anticristo26. Em Biscaia, a situação não foi

diferente: apesar da quantidade de semitas não ser muito elevada, haviam juderías ou aljamas, ou seja, lugares reservados à habitação dessas populações, (apenas) nos municípios de Orduña e Valmaseda27. Nessa última vila, os vizinhos católicos levantaram-se contra os judeus em 1483 e em 1486 estes foram expulsos. Anteriormente em 1476, a vila de Bilbao

1470

mobilizando determinado corpus jurídico, conseguiu que os judeus de Medina de Pomar fossem proibidos de comercializar e pernoitar nesse município28. Isabel e Fernando souberam utilizar desse sentimento religioso, aproveitaram-se dele, reforçando e institucionalizando-o através de um governo monárquico estabelecido como um sistema de religião única. Na Espanha, especialmente a partir da segunda metade do século XV, constituiu-se um diálogo intrínseco entre pertencimento territorial e religião cristã católica: reconhecer-se católico estava relacionado discursivamente com reconhecer-se súdito do rei, e ser reconhecido por ele como súdito. Ser cristão de linhagem antiga supunha uma série de privilégios, de maneira que foi conformado todo um sistema de identificação e reconhecimento baseado na antiguidade de sangue cristão, conhecido como limpeza de sangue (relacionado à ausência de parentesco com judeus ou mouros). Essa questão ganha relevo com a criação da Inquisição e

seus tribunais em 1478 e toma proporções ainda maiores com a expulsão da população judaica dos territórios governados pelos reis católicos em 1492, após a tomada do último bastião mouro na Península, o Reino de Granada (completando o processo de Reconquista). A população judaica começou a ser vista como uma grande ameaça ao Reino, como inimigos da fé e do Estado, após sua expulsão advém um outro problema: “Con el edicto de 1492 el problema judío dio paso al problema converso”29. Dessa maneira, a distinção entre Cristãos Velhos e Cristãos Novos adquire lugar de destaque na Espanha na passagem do século XV para o século XVI30. Os Cristãos Velhos possuíam grandes vantagens sobre os conversos, os quais foram relegados a uma condição social inferior, sendo excluídos ativamente de diversos cargos administrativos em diversos níveis. 31 Essas prerrogativas eram levadas a cabo através dos estatutos de limpeza de sangue, ou seja, a obrigação de provar sua ascendência cristã antiga para assumir certos cargos e também como mecanismo de distinção social e honradez ligada a uma fama pública de ser de linhagem cristã: “A partir del siglo XV hay una intensa preocupación por este tema, consagrándose en la sociedad española el sistema de los estatutos de limpieza de sangre para excluir los cristianos ‘impuros’. Junto a la idea de limpieza estaba muy presente también el concepto de hidalguía” 32

Assim surge uma novidade no Foro Novo em relação ao Foro Velho, novidade completamente atrelada à emergência da fidalguia dos biscainhos, ou seja, os estatutos de limpeza de sangue relacionados à sua antiguidade cristã: “Que por cuanto todos los dichos vizcaínos son hombres Hijosdalgo, y de noble linaje y limpia sangre, y tenían de Sus Altezas merced y provisión real sobre y en razón que los nuevamente convertidos de judíos y moros, ni descendientes, ni de su linaje, no puedan vivir ni morar en Vizcaya (…)”33

O excerto supracitado é a Lei XIII do Título I do Foro, após essa disposição encontramos nessa legislação uma Provisão Real de 1511, emitida pela rainha Joana de

1471

Castela (mãe de Carlos V), demostrando que a proibição dos conversos em Biscaia é anterior mesmo à escrita do Foro (que inaugura a nobilitação coletiva): “Que ninguna de las dichas personas, así cristianos nuevos de moros y judíos como del linaje de ellos, no se puedan avencindar en ninguna de las dichas ciudades, villas y lugares del dicho Condado y Señorío de Vizcaya ni en sus términos; y si hubiese avencidados, los mandase salir (…)”34

Na sequência do Foro, há outra disposição que destaca a importância extrema da questão da limpeza de sangue para essa nova legislação, ou seja, a ligação intrínseca entre catolicismo e fidalguia para Biscaia: “Y si por ventura, alguno o algunos de los tales nuevamente convertidos, o sus hijos o nietos, negociarían de haber alguna cédula o merced de Sus Majestades, para que estén y vivan en el dicho Condado, sin embargo de la dicha Provisión Real; y esto será deservicio de Dios y Sus Majestades y grande prejuicio y daño de los vecinos de Vizcaya. (…) que si alguno de los susodichos, tales cédulas o provisiones tienen ganadas o ganaren y mostraren, que sea obedecida y no cumplida, (…)” 35

Ou seja, essa lei é uma “cláusula” preventiva: mesmo que os conversos negociem com os reis, por via legal, a possibilidade de irem habitar em Biscaia, as leis do Condado não cumprirão tal disposição real (“(...) que sea obedecida y no cumplida (...)”: “(...) supone que jamás tendrá efecto. El lenguaje medieval obliga a respectar la soberanía del señor por ello se obedece formalmente, pero no se cumple, lo que significa que (...) no tendrá efecto alguno”36). A esfera de poder monárquica é mesmo virtualmente confrontada, apesar de que tal virtualidade ser efetivamente conhecida pela coroa, considerando que os Foros regionais, inclusive os de Biscaia, eram ratificados pela monarquia. Cabe notar, finalmente, que o conceito de Biscainho e, portanto, a extensão de sua fidalguia se dava por linhagem paterna masculina, ou seja, biscainho era aquele que descendia, por parte de pai, de linha genealógica biscainha – o que garantia, segundo campo discursivo da época, sua pureza cristã.37 Desse modo, vimos como os Senhores de Biscaia, principalmente com os reis Isabel e Fernando, lançaram mão de diversos mecanismos contra a formação de bandos e seus líderes nos territórios de Biscaia, bandos esses que disputavam zonas de influência com os poderes da Coroa em formação. O complexo processo de nobilitação coletiva, desde nosso ponto de vista particular, também emerge como estratégia conjunta de enfraquecimento do poder dos chamados Parentes Mayores em prol de um regime monárquico baseado em regras jurídicas claras, estabelecidas entre Biscaia e a Monarquia. O processo de nobilitação coletivo se dá em um momento preciso no qual as regras de limpeza de sangue adquirem um estatuto central no ordenamento social da Península Ibérica. Pode-se dizer que havia um afã coletivo (o que supunha uma série e privilégios e distinções) por Nobreza38, poderíamos dizer uma Vontade de Nobreza. Isso se fazia notar através de 1472

estratégias empreendidas por camponeses em toda a Espanha nos séculos XVI e XVII (em zonas onde subsistia uma forte hierarquização jurídica), comparáveis àquelas empreendidas em Biscaia anteriormente à nobilitação coletiva: lavradores deixavam suas casas em zonas pecheras para introduzir-se em áreas onde habitavam fidalgos com o intuito de introduzir-se na fidalguia por meios marginais39. Também, foram vendidos na Espanha durante o governo dos Habsburgos, Títulos de Nobreza: maneira pela qual a Monarquia procurou arrecadar dinheiro, estratégia essa que não obteve o êxito esperado, pois a hidalguía comprada era considerada de segunda categoria se comparada com a nobreza de linhagem40. A fidalguia coletiva dos biscainhos aparece nesse contexto, utilizando-se estrategicamente de um discursivo e de práticas prementes à época. A fidalguia emerge sob um determinado regime de verdade, fundamentado em um campo de inclusões e exclusões, constituído em torno de certos problemas específicos dessa sociedade (de que lugar fala o nobre?). Dessa maneira se constitui, por exemplo, um regime de diferenciação que vai se basear na distinção das boas imagens do Cristão (o Cristão Velho) das imagens decaídas do Cristão (o Cristão Novo, sempre em suspeita, sempre em falta) 41. É nesse campo enunciativo que se tornou possível dizer: “(...) todos los naturales, vecinos y moradores de este dicho señorío de Vizcaya, (…), eran notorios Hijosdalgo”. FOUCAULT, M. “Nietzsche, a genealogia e a História” in Microfísica do Poder. Trad. R. Machado. São Paulo, Graal, 2011. (p.35). 1

El Fuero, Privilégios, Franquezas y Libertades Del M.N y M.L señorio de Vizcaya – con una introducción de Dario Areitio y Mendiolea -. Bilbao, Imprenta Provincial de Vizcaya. 1977? [1528]. (Lei XVI, Título I, p.25). 2

3

O senhorio de Biscaia formou-se através de incorporações de territórios ao longo da Idade Média que se juntaram a Biscaia nuclear no século XIII, denominando-se Encartaciones e Duranguesado. Essa divisão manteve-se formalizada, tais regiões além de possuírem esferas jurídicas locais, tinham representação nos foros gerais de Guernica. Ver OSORO, Elena. Formación territorial (s. VIII – XV) in AGIRREAZKUENAGA, Joseba (dir.). Nosotros, los vascos. Grán Atlas Histórico de Euskal Herria. Lur Argitaletxea, 1995? 4

FOUCAULT, M. A Arqueologia do saber. Trad. Luís B. Neves 8ªed.Rio de janeiro: Forense Universitária, 2012. El Fuero, Privilégios, Franquezas y Libertades Del M.N y M.L señorio de Vizcaya – con una introducción de Dario Areitio y Mendiolea -. Bilbao, Imprenta Provincial de Vizcaya. 1977? (p.10). 5

“(...) entre nosotros las clases sociales se basan en criterios preferentemente económicos, que no jugaban en la determinación de los antiguos estados o estamentos; estas diferencias estamentales estaban reconocidas por la ley (...): nuestras diferencias de clase son, pues, de hecho, no de derecho.” (DOMÍNGUEZ ORTIZ, A. Las clases privilegiadas en el Antiguo Régimen. Madrid: ISTMO, 1985. p.10). 6

7

Os labradores eram pessoas que cultivavam os campos, sujeitos a determinados tributos, dos quais os fidalgos estavam isentos. Ver FERNADEZ DE PINEDO, E. “LUCHA de bandos; o conflicto social?” in La Sociedad Vasca Rural y Urbana en el marco de la crisis de los siglos XIV y XV. Bilbao: Imprenta Provincial de Vizcaya, 1975. (p.33).

1473

8

Nesse momento, o rei de Castela [Lord King] é também o Senhor de Biscaia [Lord of Bizkaia], coincidência que se dá definitivamente a partir de 1379: “ (...) En 1379, ocupaba el trono el infante Don Juan, incorporando definitivamente a la Corona el Señorío de Vizcaya.” MONREAL CIA, G. Las Instituciones Públicas del Señorío de Vizcaya (hasta el siglo XVIII). Bilbao: Imprenta provincial de Vizcaya, 1974? (p.49). The Old law of Bizkaia (1452) – Foro velho de Biscaia (1452) in MONREAL CIA, G. The Old Law of Bizkaia (1452). Introductory study and critical edition. Center of Basque studies, University of Nevada, 2005. (pp.279 & 280). 9

“Se llamaron merindades en la Edad Media los distritos administrativos que estuvieron gobernados por merinos. Estas circunscripciones nacieron probablemente al alterarse y ampliarse las funciones de los merinos (…). La merindad fue, sobretodo, un distrito típico de Castilla (…)”.BLEIBERG, G. (dir). Diccionário de Historia de España. Madrid: Ediciones de la Revista de Occidente, 1968. (p.1022). [Merindades]. 10

11

Homens pecheros eram não-nobres que pagavam certos tipos de impostos pessoais diretos, em contraposição estão os fidalgos: “Los documentos oficiales consideraban hidalgos a todos que no contribuían con pechos es decir, con impuestos personales directos” DOMÍNGUEZ ORTIZ, A. História de España: El Antiguo Régimen: Los Reyes católicos y Los Austrias. V.3. 5ª ed. Madrid: Alianza editorial, 2006. (p.160). “Pedidos y servicios eran los pagos que debían hacer los súbditos a petición del soberano. CELAYA, A. El Fuero de Vizcaya. Bilbao, Editorial Vizcaína, 1975. (Nota 11, p.25). 12

O termo Infanzonazgo faz referência às terras de Infanzones: “Se dio en España este nombre durante la edad Media a los nobles de segunda categoría, que solo fundaban sus privilegios en la sangre y en su cualidad de combatientes a caballo (...).” BLEIBERG, G. (dir.), 1968. (pp. 474 & 475). [Infanzones]. 13

14

Provisión del Consejo Real sobre sustraerse algunos labradores de las merindades de pechar, huyendo á tierras de Infanzonazgo, y proveyendo de remedio a este abuso (Biblioteca Nacional, Madrid) in GONZÁLEZ, T. Colección de cédulas, cartas-patentes, provisiones, reales órdenes y otros documentos concernientes a las provincias vascongadas, copiados de orden de S. M. de los registros, minutas y escrituras existentes en el Real Archivo de Simancas, y en los de las Secretarías de Estado y del Despacho y otras oficinas de la corte. Tomo I: Condado y señorío de Vizcaya. Madrid: Imprenta Real, 1829. (Fols. 74r-76v). Disponível em Legislación Histórica de España[base de dados online] 4ª ed. Julio 2010: http://www.mcu.es/archivos/lhe/servlets/VisorServlet.jsp?cod=012038. 15

MONREAL CIA. G. The Old Law of Bizkaia (1452), 2005. (p.61).

16

FERNANDEZ DE PINEDO, E., 1975. (pp.35 & 36).

17

Os estudos de Le Goff contribuíram para problematizar o modelo historiográfico acerca da Servidão, ressaltam que o crescimento das cidades na França a partir do século XII, principalmente, foi um importante mecanismo de ampliação de liberdades e franquias: “(...) a base da sociedade urbana, é a liberdade pessoal – liberdade no interior da cidade, como em Lille, onde no fim do século XII, a liberdade pessoal (...) estendeu-se aos ‘buscadores de trabalho’, cada vez mais numerosos após 1175, e transbordou para os campos: após 1209, já não se encontra menção de servos na região. ” LE GOFF, J. O Apogeu da Cidade Medieval. Trad. A.P. Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1992. (p.81). Citando P. Michaud-Quantin, afirma: “‘(...). Essencialmente, a liberdade na Idade Média opõe-se ao arbítrio de um superior, o homem medieval julga-se livre na medida em que as obrigações impostas a ele são objeto de uma definição contratual ou legal que vem substituir sua determinação unilateral e arbitrária (...)’”. Idem. Ibidem. (p.88). “(…) se llamaba lacayos a ciertos criados y más especialmente, como dice Covarrubias (Tesoro de la lengua castellana), a los mozos de espuela que van delante del señor cuando este monta a caballo, [P.A.B]” BLEIBERG, G. (dir.). Diccionario de Historia de España. Tomo II. Madrid: Ediciones de la Revista de Occidente, 1952. [Lacayo]. 18

19

ITURRIZA, J.R. Historia General de Vizcaya y epitome de las Encartaciones. Bilbao, 1967, I, p.128 apud BASAS FERNANDEZ, M. “La institucionalización de los Bandos en la Sociedad Bilbaína y Vizcaína al comienzo de la Edad Moderna” in La Sociedad Vasca Rural y Urbana en el marco de la crisis de los siglos XIV y XV. Bilbao: Imprenta Provincial de Vizcaya, 1975. (p.37).

1474

BASAS FERNANDEZ, M. “La institucionalización de los Bandos en la Sociedad Bilbaína y Vizcaína al comienzo de la Edad Moderna” in La Sociedad Vasca Rural y Urbana en el marco de la crisis de los siglos XIV y XV. Bilbao: Imprenta Provincial de Vizcaya, 1975. (p.37). 20

21

Idem.Ibidem. (p.123).

22

Ordenanza confirmada por los Reyes Católicos a la villa de Bilbao donde se ordena que ningún vecino de aquí en adelante pertenezca a ningún bando en la dicha villa de Bilbao ni en todo el condado de VIzcaya, actuando si lo hicieran contra su juramento y su patria so pena de muerte como deservidor del rey y la reina y perdiendo la mitad de sus bienes muebles (Real Academia de la Historia, Madrid) in GUARD LARRAURRI, T.Historia de la noble villa de Bilbao. (1300-1600). Tomo I. Disponível em Legislación Histórica de España[base de dados online] 4ª ed. Julio 2010: http://www.mcu.es/archivosservlets/VisorServlet.jsp?cod=039781. (pp.139 & 140). 23

BASAS FERNANDEZ, M., 1975. (p.149-157).

24

Os labradores que outrora forma taxados com detrminados impostos, como foram elevados todos à categoria de hidalgos estavam isentos de qualquer imposto direto (pechos): “(...) todos los vizcainos (...) son libres y exentos, quitos y franqueados de todo pedido, servicio, moneda y alcabala (...)”. El Fuero, Privilégios, Franquezas y Libertades Del M.N y M.L señorio de Vizcaya – con una introducción de Dario Areitio y Mendiolea -. Bilbao, Imprenta Provincial de Vizcaya. 1977? [1528]. [Lei IV, Título I] (p.17). REGUERA, I. “La Inquisición en el País Vasco: El periodo fundacional” in Clio & Crimen: Nº 2 (2005), pp. 237-255. 25

26

NOGUEIRA, C. R. F. O Diabo no imaginário cristão. Bauru: EDUSC, 2000. (p.80).

27

Idem.Ibidem. (p.247).

28

Idem. Ibidem. (p.247).

29

Idem.Ibidem. (p.246).

30

DOMÍNGUEZ ORTIZ, A. 1985. (p.12).

31

BETHENCOURT, F. História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália - Séculos XV-XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. (p.298). 32

REGUERA, 2005. (p.246). El Fuero, Privilégios, Franquezas y Libertades (…).1977? [1528]. [Lei XIII, Título I]. (p.22).

33

34

Idem. Ibidem. [Lei XIV, Título I]. (p.23 & 24).

35

Idem.Ibidem. [Lei XV, Título I]. (p.25).

36

CELAYA, A. El Fuero de Vizcaya. Bilbao: Editorial Vizcaína, 1975. (p.21).

37

El Fuero, Privilégios, Franquezas y Libertades (…). 1977? [1528]. (Lei XVI, Título I, p.26).

38

DOMÍNGUEZ ORTIZ, A, 1985. (p.35).

39

DOMÍNGUEZ ORTIZ, A,1985. (pp. 34 & 35).

40

Idem.Ibidem. (p.41).

41

DELEUZE, G. Diferença e Repetição. Trad. L. Orlandi & R. Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1988. (pp.210 & 211).g

1475

União das Rosas de Dona Clara: Cor, Identidade e Moralidade em um clube dançante do subúrbio carioca (1912-1914).

Juliana da Conceição Pereira Mestranda em História pela Programa de Pós Graduação da Universidade Federal Fluminense [email protected] Orientadora: Martha Campos Abreu

Resumo: Entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, surgia no Rio de Janeiro dezenas de pequenos clubes destinados à dança. Frequentado por trabalhadores diversos era a partir de suas experiências que se desenvolviam seus laços de identidade. Voltando sua atenção para a Sociedade Dançante Carnavalesca e Familiar União das Rosas de Dona Clara esse trabalho busca analisar as regras de comportamento e os códigos de conduta que contribuíam para a formação desses clubes. Palavras Chave: trabalhadores – clubes - identidade

Abstract: Between the late nineteenth century and the first decades of the twentieth century, dozens of small dance clubs were founded in Rio de Janeiro. Frequented by workers from several areas, it was from their experiences that their identity bonds were formed. Focusing on attention the Sociedade Dançante Carnavalesca e Familiar União das Rosas de Dona Clara (Ms Clara’s Family Group of Carnaval ), this text analyzes the rules of behavior and the codes of conduct that contributed for formation of these clubs. Keywords: workers – clubs - identity

No dia 01 de janeiro de 1912 fundou-se na Rua Antonieta, Estação de Dona Clara a Sociedade dançante, carnavalesca e familiar “União das Rosas” 1. De acordo com seus Estatutos aprovados em assembleia geral em 06 de janeiro do mesmo ano e assinado pelo presidente Augusto José dos Reis, a sociedade tinha como finalidade “divertir os sócios com reunião familiar carnavalesca e nos dias de forguedo (sic) carnavalesco saírem corporados (sic) em passeios”. Alguns desses divertimentos chegaram a ser descritos na coluna “Nos subúrbios” da Sociedade Anônima a

1476

Época,

como a participação da diretoria em soirées2 realizadas por outros clubes vizinhos e passeios a outros bairros feito pelos sócios: “ D. Clara - O rancho União das Rosas deste local fez no domingo último um picnic na Penha, o que encantou por completo a população daquele pitoresco arrabalde. O União das Rosas quando saiu de D. Clara com destino a Penha, foi executando uma marcha esplêndida, chamando a atenção dos passageiros que viajavam no mesmo trem do subúrbio. Quando em Lauro Muller embarcou no trem da Leopoldina, reinava sempre a mesma alegria e harmonia.”3 O redator da coluna não deixa de expressar uma opinião depreciativa sobre o subúrbio, que nas suas palavras tratava-se de um “pitoresco arrabalde”. Mas, para além de uma visão preconceituosa a respeito das áreas mais afastadas do centro da cidade, é importante ressaltar o elogio à alegria dos foliões e ao esplendor de suas marchas durante a viagem de trem e, ainda, a relevância que notícias como esta tinham para associações recreativas como a União das Rosas. Frequentada por trabalhadores de baixa renda e situadas nos subúrbios e bairros de maior presença negra do Rio de Janeiro4, clubes como este estavam sob constante suspeita tanto policial quanto dos meios letrados. Outrossim, a notícia de uma saída dos sócios para fazer um picnic, reafirma o caráter familiar que os sócios propunham em seus estatutos. Principalmente porque segundo o redator do jornal além dos diretores e sócios, têm-se no passeio a presença de senhoras que também compunham tal agremiação, como a porta bandeira Carlinda Magalhães Couto e as caçadoras Eugenia Fernandes da Silva, Eulina Marcolina Pereira, Ordalina Soares de Freitas, Esidora Marcolina Pereira e Maria Felix Dias da Silva.5 Estar associado a uma imagem familiar, isto é, a uma imagem moral, durante a Primeira Repúbica, aparecia como uma característica importante tanto para os frequentadores dos pequenos clubes dançantes quanto para outros moradores da Capital Federal. O objetivo desse trabalho é entender a importância social da moralidade na formação da identidade dos sócios dos pequenos clubes dançantes a partir do cotejamento das fontes e da leitura da produção historiográfica sobre o universo dos clubes em diálogo com os outros setores da sociedade.

Clubes dançantes na Capital Federal Foi entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX que todo o Rio de Janeiro foi tomado por um novo fenômeno social que varria o Mundo Atlântico: a “febre dançante”6. Nestes clubes, trabalhadores de origens diversas aproveitavam

1477

o

tempo livre e constituíam seus laços de identidade e solidariedade, articulando de maneira própria suas identidades a partir de relações de vizinhança e de ofício.7 A expressão desse fenômeno é visível na documentação da Repartição Central de Policia, guardadas no Arquivo Nacional, onde estão arquivados os pedidos de licença e estatutos de dezenas de associações. Todos os anos, essas sociedades precisavam obter do Chefe de Polícia do Distrito Federal uma licença de funcionamento, que era conseguida mediante a apresentação dos Estatutos que regiam a vida social dos clubes. Dentre as características das sociedades forjadas em meio a este processo, ressalta-se, desde seu início, a força da moralidade8 própria aos sócios desses pequenos clubes. Era o que demonstravam os foliões da União das Rosas; no 10º artigo de seus estatutos, que assim dizia: “serão eliminados os que faltarem com o devido respeito a qualquer pessoa quer no recinto da sociedade, quer fora quando estiverem incorporados ou em uma representação”9, demonstrando que o tratamento respeitoso era algo valorizado, tanto dentro quanto fora da sede social. A desobediência de tal regra seria motivo para possível exclusão social. Sem ser algo singular a União das Rosas no ano de 1906 no bairro de São Cristóvão, a Sociedade Dançante Flor da Mocidade10 informavam em seus estatutos, que não se admitiria como sócia “as senhoras que não tenham moralidade”. Ao definirem quais tipos de senhoras eles desejavam ter presente em sua agremiação, acabavam afirmando que o clube era composto só por pessoas de boa conduta moral. Ter em seus estatutos a garantia de que ali era um ambiente de respeito, era para esses sócios um importante passo para a possibilidade de concessão da desejada licença de funcionamento e para obter o reconhecimento da imprensa, que publicava nos jornais seus dias de bailes e reuniões.

Uma nova ideologia: O Cientificismo e a República A decência, o respeito e a moralidade estavam profundamente ligados ao projeto republicano, como demonstra Sueann Caulfield no livro Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940)11 Segundo a autora no período Republicano havia um consenso entre os juristas de que a sociedade moderna trouxera uma degeneração moral. Diante disso, “os juristas da virada do século propunham educar a população para adotar valores morais ‘civilizados’, incluindo a valorização da honra sexual feminina, como uma medida de estabelecer a ordem e o progresso.”12 Em busca da civilização do país, a moral aparecia como um referencial na sociedade que se desejava formar. Civilização e progresso estavam, assim, diretamente

1478

ligados à defesa da honra.13 Para juristas, médicos e reformadores a civilização do país dependeria da propagação para as “classes populares” de hábitos morais civilizados. Coube às elites o papel de zelar pela moral e pelos bons costumes, e esse zelo estava na tentativa pedagógica de disciplinar o mundo dos trabalhadores. Esta ideia de uma Nação vinculada a moral que estava sendo gerada, teve início com a chegada das teorias científicas europeias que vieram para o Brasil a partir da década de 1870 e eram baseadas no positivismo, evolucionismo, e no darwinismo. 14 A produção do conhecimento no país nessa época tinha como expoente as Faculdades de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro, influenciadas pelas novas teorias, o discurso em torno da raça se fazia presente. Era desses espaços que saíram a noção da nação como um corpo que precisava ser aperfeiçoado. O problema principal no caso brasileiro era a mestiçagem; tal tema se tornava argumento para justificativa do sucesso ou fracasso do projeto de Nação. Era o que sugeria o médico baiano Nina Rodrigues:15 “A julgar por certos fatos, a mistura entre raças de homens muito dessemelhantes parece produzir um tipo mental sem valor, que não serve nem para o modo de viver da raça superior, nem para o da raça inferior, que não presta enfim para gênero algum de vida. ” Resultado da mistura entre uma raça superior e outra inferior, para Nina Rodrigues a inferioridade do mestiço era algo inato, fruto da própria mistura. Para outros teóricos que compartilhavam da mesma ideia, o progresso estaria restrito as sociedades “puras”, livres de um processo de miscigenação. Como afirmava o próprio Nina Rodrigues, no “Brasil a maior parte da população é de mestiços”16. Um desafio para esses pensadores era lidar com o mestiço e formar uma identidade comum a todos a partir dos ideais de civilização e de progresso17. Legitimando as diferenças sociais que eram impostas pela antiga ordem escravocrata, o cientificismo passou a se configurar como nova ideologia de classe. Antonio Sergio Guimarães, em seu trabalho Racismo e Anti-Racismo no Brasil18, afirma que a imagem de uma nação mestiça fez com que a noção de raça como um conceito biológico fosse substituído. Para o autor “a cor passou a ser uma marca de origem, um código cifrado para a raça”. No Brasil raça não se definia pela regra da ancestralidade, isto é, “uma gota de sangue negro faz de alguém um negro”19, mas sim, com o somatório de uma série de características de aparência física e sociais que classificam os

1479

indivíduos como negros ou não, permitindo que até aqueles que apresentassem graus variados de mestiçagem pudessem ser qualificados como brancos. Trabalhando com o conceito de “grupos de cor”, Antônio Sérgio Guimarães escreve que “... alguém só pode ter cor e ser classificado num grupo de cor se existir uma ideologia em que a cor das pessoas tenha algum significado. Isto é, as pessoas têm cor apenas no interior de ideologias raciais. ” Por ser a raça um mecanismo de legitimação da inferioridade20, os lugares sociais de subalternidade vividos pela população negra e mestiça para Antônio Sérgio Guimarães são frutos do preconceito em torno da cor vivenciado no pós abolição.21 A dimensão que a palavra cor, como um conceito, tomou em relação ao de raça, apareceu em alguns dos estatutos transcritos. De modo que, em nenhum deles foi encontrado o conceito raça; somente a palavra cor. Do material pesquisado apenas três clubes traziam em seus estatutos a proibição de entrada na sede social “de indivíduos de cor preta”22, os outros nove onde está incluída a Sociedade Dançante Carnavalesca e Familiar União das Rosas de Dona Clara23 diziam que a agremiação seria “composta de um ilimitado número de pessoas de qualquer nacionalidade, estado, cor e profissão.” Artigos como esse nos dão indícios de que além de uma possível diversidade na composição dos sócios, havia uma fluidez na determinação da cor dos indivíduos. Isto só era possível pelo significado que o termo cor ganhou no país. Logo ao olhar uma foto circulada na Revista da Semana, no ano de 1911, de uma agremiação homônima ao União das Rosas, mas com sede na Praia do Pinto, vemos o perfil dos trabalhadores que costumavam frequentar associações como estas:

Revista da Semana, 18 de fevereiro de 1911

1480

Com uma sede simples, sem ornamentações vemos na imagem uma maioria de pessoas que aos nossos olhos são de “cor preta” e alguns mestiços. Bem arrumados; as senhoras e as meninas estão com adereços e vestidos recatados e os senhores de terno com colarinho e gravata, pela fluidez do termo cor não podemos saber se esses indivíduos se consideravam pretos ou não. Mas para aqueles que aos olhos elitizados eram considerados de cor preta, viviam sendo associados às classes “viciosas”24 Tidos como alienados politicamente, até a historiografia, por muito tempo, dava para esses sujeitos o lugar da subalternidade. Porém, até nos espaços de lazer podemos observar uma preocupação e um posicionamento com os debates nacionais. A diretoria da União das Rosas de Dona Clara informava em seus estatutos que a data de comemoração do aniversário de fundação da Sociedade seria no dia 13 de maio. A Data que marcava a assinatura da Lei Áurea pela Princesa Isabel, seria também o dia escolhido pela diretoria para festejar sua fundação. Assim vemos que os pequenos clubes se configuravam como espaços de articulação de identidade entre os trabalhadores, e esta se forjava a partir de forças e influências diversas – como as experiências compartilhadas por seus sócios ou a tentativa de enfrentar os preconceitos ou a opressão sobre eles lançados.

Pelo olhar dos outros: Orestes Barbosa e as sociedades dançantes Olhados do ponto de vista do mundo letrado, no caso das crônicas as atividades destes pequenos clubes também ganhavam a marca da suspeita – em especial no que se refere aos códigos de moralidade adotados pelos clubes. É o que mostra, por exemplo, uma crônica escrita pelo cronista carioca Orestes Barbosa em 1923 no livro Bambambã, intitulada “Um Baile na S.D.F. Caprichosos da Estopa”25 A forma pela qual o autor apresenta a sociedade que dá título à crônica, formada por trabalhadores de Botafogo, é significativa do modo e do padrão pelo qual se propõe a analisá-la. “A sede do club, a exemplo dos Tenentes do Diabo26, que se denomina a Caverna, chama-se Tear. Eu cheguei ao tear quando o baile estava quente, às duas horas da manhã”, afirma Barbosa. O autor deixa claro, assim, que na sua visão os pequenos clubes seriam espécies de cópias dos modelos firmados das grandes sociedades. Porém, existe uma distância entre esses dois ambientes que se expressaria, para o autor, no perfil dos frequentadores do clube - que, no caso do clube de Botafogo, seriam segundo ele, negros e mulatos que “mal se equilibravam nos sapatos de raro

1481

convívio com os pés chatos”27. A descrição do autor dos frequentadores e do espaço do dia do baile é construída a partir de uma ironia também presente no modo pelo qual apresenta os instrumentistas que estavam presentes na noite do baile. Embora com uma orquestra composta pelos mesmos instrumentos que se faziam presentes nos salões elegantes, chamava a atenção do cronista o perfil pouco refinado dos músicos que o executavam: “O do trombone era um negro gordo, de coco raspada, que, de vez em quando, tirava o bocal do instrumento e escorrupichava ali mesmo no chão uma baba abundante”.

Ao comparar o

clube com o modelo das Grandes Sociedades, o cronista marca

para este, a precariedade e a inferioridade que se expressam na descrição da sua composição; onde seus sócios são caracterizados de forma negativa. Ali moralidade não fazia sentido. Por serem locais frequentados por uma maioria negra e mestiça, esses espaços tendem na visão dos letrados a ser o espaço da desordem. Sem tomar a moralidade como um padrão universal, como queria Orestes Barbosa, cabe assim buscar, na experiência dos sócios desses pequenos clubes dançantes e carnavalescos, indícios que nos permitam entender a lógica desse padrão moral próprio aos trabalhadores cariocas do período.

Uma moralidade incomum Bem diferente, no entanto, era a concepção de moralidade e decência que os próprios clubes tentavam afirmar através de seus estatutos. Ela se configurava, de modo especial, em artigos relativos ao comportamento das mulheres em meio aos bailes. Era o que mostrava o caso do Grupo Dançante Carnavalesco Bateria do Inferno 28, localizado no Morro da Providência: nas “disposições gerais” de seus estatutos, afirmava-se que era “expressamente proibido qualquer dança imoral ou desconhecida” em sua sede social, bem como que seriam “eliminados, os que no recinto social portarem-se sem a devida decência ou moral”, ou mesmo na definição de padrões de conduta a serem respeitados por todos os sócios; a União das Rosas, a fim de garantir a compostura até nos festejos de Momo determinava que era proibido nas passeatas de carnaval “cantar hulas alusivas e ofensivas a qualquer pessoa”. Sem ser simples cópia de um modelo que lhes era exterior ou uma estratégia para conseguir a tão esperada licença para seu funcionamento, artigos como esses mostram que era a partir de suas próprias experiências e visões de mundo que, os sócios faziam de seus bailes um meio poderoso de articulação de seus laços de solidariedade. 1482

A decência e o respeito apareciam como

um meio de afirmação de distinções sociais onde “posicionamentos, práticas e valores construíram seus laços cotidianos”29 e marcavam uma identidade para os sócios dos clubes. Um meio de afirmar esta decência era, para muitos destes clubes, atentar para a vestimenta adequada à frequência nos bailes - nos quais “todos os sócios em dias de festa da sociedade deverá [sic.] se apresentarem decentemente vestidos como é de praxe em as sociedades congêneres”30 como diz um artigo dos Estatutos da Sociedade Carnavalesca As Meninas Vaidosas. Do mesmo modo, no capitulo 8º dos Estatutos do Grupo Carnavalesco Rei das Mattas, afirmava-se que não seria permitida “a entrada em dias de festa no grupo a todo e qualquer sócio que não se apresentar decentemente vestido”31. Em tais artigos, a vestimenta aparece como um meio de afirmação de certo padrão moral capaz de afirmar para seus sócios a marca da respeitabilidade que muito afastava esses clubes da imagem afirmada por alguns cronistas do período, mas que de alguma forma reproduzia, o prestígio associado aos clubes de maior renda e ao mesmo tempo lhes afastava dos padrões que eles consideravam inferior.32 Em uma das marchas cantadas pela Sociedade União das Rosas, escritas pelo “cutubaça” Mario José da Silva e circulada no jornal O imparcial33 o autor nos insinua uma igualdade entre essas agremiações admiradas. As pastoras que saúdam a União das Rosas são convidadas a assistir a festa na floresta e admirar não só as rosas como os mimosos bogaris: “Era tarde bem tarde E o sol recolhia Lá no horizonte; Os passarinhos Sobre o monte no belo ramo vão pousar. Vejo ao longe Um bando de pastoras. Que cantavam com voz sonora Saudando com alegria a União das Rosas. Vamos pastoras com todos Primores Assistir a festa na bela Floresta Vamos passeiando pelo jardim Admirar rosas e Mimosos bogaris. ” Conclusão A Sociedade União das Rosas de Dona Clara, assim como outros pequenos clubes da Capital Federal eram além de espaços de lazer, lugares de expressão de uma

1483

moralidade própria dos trabalhadores que os compunham. O controle das ações dos sócios e da vestimenta nos bailes demonstrava como havia neles a preocupação com a moralidade, e esta era resultado de suas escolhas frente aquilo que vivenciavam cotidianamente34. A moralidade afirmada pelos trabalhadores pobres e pretos da Capital Federal adquiria sentido diferente daquele imposto pela elite. Em seus momentos de lazer deixavam isso claro, evidenciando em seus estatutos, por exemplo, aqueles que poderiam participar consigo dos seus festejos. Por mais despretensiosos que fossem, clubes como esses se convertiam assim em espaço de expressão das visões de mundo e culturas próprias de seus sócios e que não deixavam de dialogar com debate em torno da construção da identidade nacional. Arquivo Nacional, GIFI 6C 365 (“Sociedade Dançante Carnavalesca e Familiar União das Rosas de D. Clara”, 1912). 2 “Nos subúrbios”. A Época, 23 de dezembro de 1912. 3 “Nos subúrbios”. A Época, 13 de março de 1913. 4 PEREIRA, Leonardo A. Miranda. “O Prazer das Morenas: bailes, ritmos e identidades nos clubes dançantes da Primeira República.” In: Vida Divertida: histórias do lazer no Rio de Janeiro (1830-1930). Rio de Janeiro: Apicuri, 2010. 5 “Nos subúrbios”. A Época, 13 de março de 1913. 6 PEREIRA, Leonardo. “Os Anjos da Meia-Noite: trabalhadores, lazer e direitos no Rio de Janeiro da Primeira República”. Revista Tempo, Rio de Janeiro, Vol. 19, n° 35, 2013, pp. 97-116. 7 PEREIRA, Leonardo A. Miranda. “O Prazer das Morenas: bailes, ritmos e identidades nos clubes dançantes da Primeira República.” Op. Cit. 8 Dentre os 115 estatutos transcritos, em 50 deles aparece artigos sobre o comportamento moral e decente. 9 Arquivo Nacional, GIFI 6C 365 (“Sociedade Dançante Carnavalesca e Familiar União das Rosas de D. Clara”, 1912). 10 Arquivo Nacional, GIFI 6C 168 (“Sociedade Dançante Flor da Mocidade”, 1906). 11 CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro, 19181940. Campinas, Ed. da UNICAMP, 2000. 12 Ibidem (pag. 172) 13 Conf. ESTEVES, Martha de Abreu; CAUFIELD, Sueann. “50 anos de virgindade no Rio de Janeiro: políticas de sexualidade no discurso jurídico e popular (1890-1940)”. Caderno Espaço Feminino, Uberlândia, vol. 2, ano 2, n. 1, 1995, pp. 15-52 14 Conf. SCHWARCZ, Lilia Moritz. “Uma História de ‘Diferenças e Desigualdades’ – as doutrinas raciais do século XIX”. In: O Espetáculo das Raças – cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. 15 RODRIGUES Nina. As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil, Bahia: Imprensa Econômica, 1894. 16 Ibidem. 17 Para um analise mais completa ver em: GUIMARÃES, Manoel Salgado. "Nação e Civilização nos Trópicos: o Instituto Histórico Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história nacional". Estudos Históricos, n.1, 1988. Rio de Janeiro, FGV. 18 Conf. GUIMARÃES, Antonio Sergio A. “Racismo e Anti-racismo no Brasil”. In: Racismo e Antiracismo no Brasil. São Paulo: Editora 34 , 1999. 19 Ibidem. 20 Conf. SAID, Edward Wadie . “Cultura e Imperialismo” São Paulo: Companhia das Letras , 1995. 21 Ver tambérm: SANTOS, Lucimar Felisberto dos. “Cor, identidade e mobilidade social: crioulos e africanos no Rio de Janeiro (1870-1888)”. 2006. 131f. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal Fluminense, Departamento de História. 2006. 22 Arquivo Nacional, GIFI 6C 102 (“Novo Congresso Nacional”, 1903). 1

1484

Arquivo Nacional, GIFI 6C 365 (“Sociedade Dançante Carnavalesca e Familiar União das Rosas de D. Clara”, 1912). 24 O termo “classes viciosas” é trabalhado por CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. De acordo com o autor a expressão “classes perigosas” parece ter surgido na primeira metade do século XIX. O termo se referia principalmente aos indivíduos que viviam na pobreza. A principal virtude do bom cidadão seria o gosto pelo trabalho, e este levaria necessariamente ao hábito da poupança, que, por sua vez, se reverte em conforto para o cidadão. Desta forma o indivíduo que não consegue acumular, que vive na pobreza, torna-se imediatamente suspeito de não ser um bom trabalhador. Logo, o maior vício possível em um ser humano seria o não trabalho, a ociosidade, segue-se que aos pobres falta a virtude social mais essencial; em cidadãos nos quais não abunda a virtude, grassam os vícios, e logo, dada a expressão “classes pobres e viciosas”. De acordo com o autor a adoção de tal conceito no Brasil, de classes viciosas (ou perigosas) tinha como suspeitos preferenciais os negros. Tais vícios eram resultado de seu “antigo estado”, isto é, as condições de vida no cativeiro seriam as responsáveis pelo suposto despreparo dos ex-escravos para a vida em liberdade. 25 BARBOSA, Orestes. “Um Baile na S.D.F. Caprichosos da Estopa”, Bambambã, Rio de Janeiro: Coleção Biblioteca Carioca, Secretária Municipal de Cultura, 1993. pp. 75 26 As Grandes Sociedades foram criadas na década de 1860, e eram formadas principalmente pelos grupos dos Fenianos, Democráticos e Tenentes do Diabo. Estas se destacavam como os baluartes do Carnaval carioca no final do século XIX. Para uma análise completa sobre essas sociedades ver em: PEREIRA, Leonardo. O Carnaval das Letras. 2ª ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2004. e CUNHA, Maria Clementina Pereira. Ecos da Folia: uma história social do carnaval carioca entre os anos de 1880 e 1920. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. 27 BARBOSA, Orestes. Bambambã. Op. Cit. 28 Arquivo Nacional, GIFI 6C 213 (“Grupo Dançante Carnavalesco Bateria do Inferno”, 1912). 29 CRUZ, Alline. “Solidariedades e diferenças em Madureira”, Suburbanização e racismo no Rio de Janeiro: uma leitura de Madureira e Dona Clara no contexto pós-emancipação (1901-1920), Dissertação de Mestrado, IPPUR/UFRJ, 2007, pp. 64-119. 30 Arquivo Nacional, GIFI, 6C 251 (Sociedade Carnavalesca As Meninas Vaidosas”, 1908) 31 Arquivo Nacional, GIFI 6C 250 (“Grupo Carnavalesco Rei das Matas”,1908) 32 Para uma análise mais completa sobre a questão da vestimenta nesses clubes ver: PEREIRA, J. C. “Aqui dentro é respeito! O associativismo recreativo e a questão da moralidade entre os trabalhadores do Rio de Janeiro da Primeira República”, Monografia de conclusão de curso , PUC-Rio. 2014. 33 União das Rosas de D. Clara”. O Imparcial, 23 de fevereiro de 1914. 34 ESTEVES, Martha Abreu. Meninas Perdida: os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle Époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. 23

1485

Do porto ao monumento: Preservação e ruína como interações do patrimônio portuário em Antonina-PR Juliana Regina Pereira mestranda em História pela UNICAMP e-mail: [email protected] Orientadora prof. Dra. Cristina Meneguello

RESUMO Reflexões sobre a ruína como objeto para a compreensão da deterioração material e simbólica do patrimônio, a partir do complexo das Indústrias Matarazzo junto ao porto de Antonina-PR. Questões relacionadas ao tombamento do conjunto da cidade conduzem à análise de especificidades no tratamento do patrimônio portuário a partir de transformações da tecnologia e seus efeitos sobre o espaço urbano. Por fim, destaca-se a importância do diálogo entre preservação e planejamento no sentido de (re)significar atribuições memoriais da ruína portuária. Palavras chave: patrimônio portuário, ruína, cidades portuárias.

ABSTRACT Discussion on the ruin as a mean to understand physical and symbolic forms of decay in port heritage based on the analysis of Indústrias Matarazzo buildings by the port of Antonina, Paraná. Discussions related to the preservation of this coastal town lead us to investgate the effects of technologycal transformation on the urban space. Finally, we point the importance of the dialog between preservation and project with the intention of reframing memorial atributions of port ruins. Keywords: port heritage, ruin, port cities.

As

áreas

portuárias

representam

uma

arena

privilegiada

de

interações

socioeconômicas, desenvolvimento técnico e apropriações simbólicas que oferecem uma série de possibilidades ao estudo do patrimônio industrial. Enquanto representações materiais de proezas da tecnologia e pujança econômica de tempos passados, estruturas portuárias abandonadas ou esvaziadas de função se vêem atribuídas de um valor de rememoração que não está vinculado a seu estado original, mas à representação do tempo decorrido desde sua criação, denunciado pelas marcas da idade. Diante deste quadro, o presente trabalho propõe uma breve reflexão sobre a ruína como objeto para a compreensão do processo de deterioração da matéria edificada como interação simbólica do patrimônio portuário, tomando por objeto de análise o complexo fabril das Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo, construído às margens da baía de Antonina, Paraná. Entendido como ruína contemporânea, o

1486

complexo se encontra em severas condições de deterioração em razão do abandono desde o encerramento de suas atividades em 1972. Sua propriedade é objeto de disputa entre os herdeiros da família Matarazzo, e os entraves judiciais vieram a público em razão da conclusão do processo de tombamento federal do conjunto histórico e paisagístico da cidade de Antonina, que abrange a área de construção da indústria e do porto da cidade. O intenso fluxo de pessoas e mercadorias nas zonas portuárias, percebido como efeito de lugar, imprime sua marca sobre a região do porto e a cidade contígua em aspectos diversos, seja através do cosmopolitismo, característica indissociável de diversas cidades portuárias de trânsito internacional, ou de um aspecto generalizado de degradação material e simbólica do espaço portuário em um contexto histórico na qual o acelerado ritmo de transformações da tecnologia e da sociedade se imprime fortemente na paisagem visual. Com relação à dimensão material, novas políticas para o desenvolvimento urbano, salvaguarda e reabilitação do patrimônio têm trazido à tona o porto como objeto de estudos, conforme se observa em diversos projetos de intervenção centros históricos e waterfronts que têm retomado importância de territórios portuários em localidades diversas na Europa e América. Diante disto, colocam-se importantes questionamentos: Em que medida projetos de salvaguarda do patrimônio que têm como objeto central o porto são capazes de trazer para um contexto de desenvolvimento urbano atual a leitura das interações e processos que ali tomaram lugar ao longo tempo? De que maneira é possível ressignificar a relação dialógica entre o porto e a cidade em seus aspectos de materialidade e simbologia memorial? Para pensar tais questões, propomos, após traçar um breve retrospecto da formação econômica e urbana da baía de Antonina, analisar a reinterpretação de sua importância no momento do tombamento federal, tombamento esse que não pode impedir um processo de deterioração para o patrimônio industrial da cidade. Uma das primeiras áreas exploradas economicamente pela coroa portuguesa na região sul do Brasil, a baía de Paranaguá era tida como local estratégico para o controle da região e para a busca por índios e metais preciosos em razão de sua extensa entrada para as terras do continente. A ocupação de Antonina, bem como de suas localidades vizinhas, como Paranaguá, Morretes e Guaraqueçaba, impulsionada pela exploração do ouro no início do século XVIII, passou por um processo de desaceleração quando das primeiras descobertas de jazidas de minerais preciosos em Minas Gerais, fazendo com que as povoações instaladas no litoral paranaense voltassem suas atividades produtivas para a subsistência. Em 1798 Antonina é elevada à categoria de vila, e a reabertura dos portos brasileiros dez anos mais

1487

tarde traz fôlego à atividade portuária na região, cujo controle é disputado entre os portos de Antonina e Paranaguá. Como consequência do acirramento desta disputa, o Caminho da Graciosa, via que liga o planalto paranaense ao litoral através da Serra do Mar, é reaberto para facilitar o escoamento da produção agrícola, em especial de erva-mate, do interior do estado para o litoral. Com a industrialização do processo de beneficiamento da erva-mate, desenvolvida a partir do século XIX, o crescimento do volume de exportações impulsiona um rápido desenvolvimento urbano, observado na abertura de novas ruas, construção das igrejas de São Benedito e Bom Jesus do Saivá, do trapiche, e do mercado de Antonina, ao passo que obras para tornar carroçável o Caminho da Graciosa e a construção da estrada de ferro CuritibaParanaguá intensificaram a comunicação entre Antonina e as demais cidades do Paraná. O ano de 1917 marcaria, então, o surgimento de um novo período de crescimento na cidade. Em um vasto terreno junto ao atracadouro Itapema foi instalada primeira unidade paranaense das Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo, dedicada a moagem de trigo, sal e açúcar. O conjunto foi construído sob o padrão arquitetônico de inspiração manchesteriana característico de edifícios fabris das Indústrias Matarazzo1, cuja ornamentação é construída com ênfase em elementos da estrutura, com uso decorativo de materiais e texturas dos tijolos cerâmicos e das pedras de fecho, e destaque para as cintas entre os pavimentos e lanternins de motivo ornamental. O complexo abarca além dos edifícios fabris, os casarões da administração, uma escola nomeada em homenagem a seus fundadores, e uma vila operária formada por 50 casas de quatro peças pertencentes à empresa, onde os funcionários residiam sem custo. O moinho foi mantido em atividade pelas seis décadas seguintes, fornecendo farinha de trigo, sal e açúcar por via marítima para diversas localidades do Brasil, e há indícios de que no terminal portuário2 da empresa se operava também o despacho de cargas por contrato. Entretanto, o desenvolvimento da atividade industrial e portuária na região foi severamente afetado pelo assoreamento dos canais da baía, conforme noticia o jornal O Diário do Paraná em edição de 1972: “Base de toda a economia do município, o ancoradouro recebe cada vez menos navios e navios cada vez menores, pois anualmente perde calado, devido ao depósito de detritos e lodo trazidos pelos rios que descem a serra do mar, desembocando na baía. Atualmente o calado está na marca dos 18 pés. O porto de Antonina estava acostumado a receber uma média de 200 a 300 navios por ano, até 1960. O número foi descrescendo constantemente. Em1969, atracaram 122 navios; em 1970, apenas 110, e em 1971, só 73. Neste mês de janeiro, quatro navios passaram pelo trapiche e as perspectivas não são das melhores.”3

1488

Em face do declínio que experimentava já há alguns anos, as atividades fabris no complexo das IRFM foi encerrado no mesmo ano. Na ocasião, todos os 180 funcionários foram indenizados, porém os imóveis que ocupavam foram devolvidos e subsequentemente demolidos. Objeto de disputa entre seus herdeiros, o complexo permanece desde então em completo abandono, e os entraves judiciais pelos quais passa vieram a público no ano de 2012 em razão da conclusão do processo de tombamento do conjunto histórico e paisagístico de Antonina4, que abrange parte da área de construção do complexo e do porto. Apesar de o tombamento prever a retomada da atividade portuária atrelada à recuperação de determinados imóveis pertencentes ao conjunto, a viabilização do plano esbarra na querela familiar sobre a propriedade, e os meios de sua realização ainda são incertos. Oficializado em 2012, o tombamento federal do conjunto arquitetônico e paisagístico da cidade de Antonina supõe que a evidenciação do valor patrimonial atribuído ao local histórico esteja articulada à valorização dos laços identitários que o vinculam à cultura local. Todavia, suas demandas de desenvolvimento urbano são vagas, senão inexistentes. Na leitura do Plano Diretor constante na documentação dos arquivos do IPHAN Paraná poucas são as menções à necessidade de se elaborar um planejamento de longo prazo para a revitalização das áreas do porto, de modo que o estudo de meios de instrumentalização do próprio território como forma de valorizar o desenvolvimento histórico do tecido urbano envoltório ao porto à fábrica permanece em segundo plano se comparado ao enfoque que o estudo, encomendado pelo próprio IPHAN Paraná, confere a elementos pontuais da arquitetura histórica na cidade. Elemento estruturante da configuração econômica moderna, a indústria portuária pode ser percebida como elemento simbólico no sentido de construir um senso de identidade, seja nacional ou regional, na forma de monumento do trabalho e do movimento de pessoas e mercadorias. Deste modo, o crescimento da representatividade social do porto enquanto parte de um corpus patrimonial demonstra gradativa conscientização da importância de se compreender os processos evolutivos da tecnologia e transformação das atividades que predominam nas cidades e áreas portuárias, bem como sua ação sobre o espaço, o que torna necessário compreender também em que em diferentes contextos históricos e geográficos, as áreas

portuárias

representam

espaço

privilegiado

de

interações

socioeconômicas,

desenvolvimento técnico e apropriações simbólicas que oferecem uma série de possibilidades ao estudo do patrimônio industrial. Para que possamos interpretar a contribuição da indústria sobre a formação atual da sociedade e entendê-la como parte fundamental de seu patrimônio cultural é

1489

preciso

compreender a especificidade das marcas que definem o espaço e constroem o imaginário através de representações simbólicas – estruturas arquitetônicas e de maquinaria, como chaminés, fachadas em tijolos, telhados em shed e as gruas dos portos – tendo em mente que este desenvolvimento toma lugar num contexto em que as transformações dos meios de produção e distribuição de mercadorias tendem a promover o afastamento cada vez maior das atividades portuárias em relação aos núcleos urbanos, esvaziando de função significativos espaços outrora dedicados à atividade industrial. Sob o sentido memorial, a simbologia da qual é inbuída o espaço do porto através de representações iconográficas estruturadas em características “frequentemente identificadas a partir da paisagem construída no diálogo com o mar, como que a demonstrar a conflitante relação entre interioridade e exterioridade, identidade local e informação estrangeira, em territórios tão fortemente marcados pelo portal simbólico para o que vem de fora.”5

Assim, em consonância com as transformações que se operam no espaço, a representação simbólica do porto também se preserva na forma de valores que consolidam um imaginário da navegação e da geração de riquezas fortemente ligado à expansão da indústria, à navegação a vapor, e ao trânsito constante de mercadorias e pessoas nas cidades portuárias de modo que, neste campo, o estudo das transformações nas áreas envoltórias ao porto encontra respaldo nos movimentos políticos, econômicos e sociais que mantêm em constante mudança as relações entre o porto e a cidade, as quais na dimensão material ganham corpo visível através do traçado urbano da região portuária, vias e ferrovias para o escoamento de cargas, técnicas construtivas e aspectos arquitetônicos dos edifícios, além de guindastes e demais maquinarias empregadas no porto, elementos que se encontram indissociavelmente relacionados aos usos, saberes e sociabilidades exercidas no espaço do porto. No entanto, ao longo das últimas décadas extensas porções destas áreas têm sofrido processos de esvaziamento e abandono. A degradação funcional do porto, e suas invariaveis reverberaçõesno tecido urbano envoltório, pode ser compreendida como efeito provocado por um acelerado processo de obsolescência tecnológica percebido com maior intensidade a partir do último quartel do século XX, na medida em que transformações nos padrões da logística portuária, somados à modernização dos navios de carga, limitam, ou mesmo incapacitam, a operação em antigas instalações. A este respeito, de acordo com Del Rio (2001): “Por um lado, os modernos e gigantescos navios de carga, a conteinerização e a especialização do movimento portuário, as dificuldades de acomodar as novas logísticas portuárias às limitadas instalações e espaços das áreas centrais e a difícil acessibilidade dos meios de transportes de apoio – rodovias e ferrovias – foram fatores fundamentais para seu esvaziamento, em detrimento de novas instalações portuárias em grande portos mais afastados, tecnológica e fisicamente preparados para os novos

1490

tempos.”6

Rufinoni (2012) entende que o esvaziamento, segundo proposto pelo autor, provoca “a degradação funcional não apenas dos portos propriamente ditos, mas também de grande parte dos tecidos envoltórios”7, sendo as áreas contíguas à zona do porto em abandono também expostas ao processo de deterioração pela ação do tempo. Neste sentido, elementos de infraestrutura presentes na malha urbana, tais como ferrovias e vias de acesso, podem dificultar a renovação de dinâmicas de integração com o entorno em razão de sua caracterização fundiária, algo que faz destas estruturas alvos preferenciais de especulação, além dos entraves impostos pela sobreposição da administração do espaço em diferentes esferas tanto do poder público quanto do poder privado. Diante do labirinto de atribuições administrativas criado nas mencionadas esferas, cria-se, ao redor do porto e da renovação de seus usos e interações simbólicas no âmbito da cidade portuária, uma arena na qual proliferam discussões e diferentes proposições no sentido de coordenar renovação e preservação do patrimônio edificado. Abordando diferentes possibilidades de reapropriação do espaço portuário, estas discussões têm ganhado terreno no sentido de ressignificar atribuições econômicas, políticas e simbólicas destes territórios a partir de propostas de intervenções modernizadoras que, em diferentes escalas, buscam possibilidades de adaptação de antigos edifícios a novos usos, além da renovação da paisagem nos waterfronts. Projetos de maior envergadura, chegam a propor a inserção de arquiteturas espetaculares no conjunto de edificações do porto, para servir como protagonistas das novas paisagens urbanas, pontos focais a partir dos quais se “irradia” a revitalização para o entorno. Convém aqui destacar, ainda que possuam uma escala urbana muito maior, a importância de projetos como os levados a cabo nas Docklands londrinas, o museu Guggenheim em Bilbao, Puerto Madero em Buenos Aires, e projetos de renovação das cidades de Barcelona, Nova York, Boston, Baltimore, e Rio de Janeiro, dentre outras. Tendo em vista a diversidade de possíveis intervenções, e as ainda mais variadas possibilidades de impacto a ser exercido sobre o tecido urbano portuário, cabe questionar em que medida estas propostas de intervenção são capazes de reconhecer no território portuário sua dimensão documental enquanto locus da história urbana. No âmbito dos projetos, embora nos casos mencionados anteriormente possam ser medidos retornos econômicos positivos a partir da atribuição de novos usos comerciais, atividades culturais e turísticas em zonas portuárias degradadas, a preservação da identidade histórica, ainda que circunscrita ao espaço do porto, representa um desafio à integração entre as áreas modificadas e suas regiões

1491

envoltórias na medida em que a intervenção transcende a reabilitação física, e atinge também o aspecto moral do espaço. Neste sentido, o espaço social é igualmente submetido ao processo de degradação, e se torna, ele mesmo, arena na qual usos e significados são reconstruídos de acordo com a conveniência da restauração sobre o espaço físico. Enquanto representações materiais de proezas da tecnologia e pujança econômica, as estruturas portuárias abandonadas ou esvaziadas de função se vêem atribuídas de um valor de rememoração que não está vinculado a seu estado original, mas à representação do tempo decorrido desde sua criação, denunciado pelas marcas da idade8. Tida corpo visível da degradação irrefreável da obra do homem pelo tempo, a ruína se oferece, na concepção de Riegl (1904), como chave para trazer à consciência do espectador o contraste entre a grandeza do passado e o presente, exprimindo um remorso de natureza romântica de queda profunda, e nostalgia de um passado que sonharia ser conservado9. Deste modo, as aspirações românticas associadas a esta leitura do monumento em ruínas sugerem que a atribuição simbólica construída pela representação imagética da decadência ocasionada pela ação do tempo atue dialogicamente com o esvaziamento do valor de uso, possibilitando a um só tempo a construção de um novo sentido de existência ao monumento, e constantemente ressignificando suas atribuições originais. Por outro lado, ao se pensar o patrimônio sob o ponto de vista da temporalidade, seu movimento de expansão e universalização pode ser compreendido, segundo a visão de Hartog (2006), como marca de um regime de historicidade fortemente nostálgico, que se volta para um tipo de compreensão de preservação do passado há muito em desuso10. De que maneira, então, o retorno desta visão tradicional poderia articular com um regime moderno voltado para o futuro? Em consonância com a ideia transição entre história-memória e históriapatrimônio defendida por Nora, o autor aponta que o patrimônio se torna ele mesmo memória da história e passa a ser entendido como símbolo de identidade, de tal maneira que “memória, patrimônio, história, identidade e nação se encontram reunidos na evidência do estilo direto do legislador”11. Segundo esta nova forma de organização, o patrimônio se encontra associado tanto ao território quanto à memória, elementos estes que atuam como vetores de uma construção identitária fortemente marcada pela obliteração: a identidade em busca de si própria. No âmbito deste constante processo, “o patrimônio define menos o que se possui, o que se tem e se circunscreve mais ao que somos, sem sabê-lo, ou mesmo sem ter podido saber”12, atendendo à anamnese coletiva na forma de seu dever com a conservação, a comemoração e reabilitação da memória.

1492

No entanto, o predomínio da variante funcional, como é o caso do patrimônio edificado, frequentemente indissociável da característica topográfica, expressa a manutenção de uma experiência intransmissível, e que desaparece com aqueles que a vivenciaram. No que toca ao lugar de memória da ruína, cabe problematizar a relação entre lugares dominantes e lugares dominados, sendo os primeiros marcados pela imponência de uma intencionalidade imposta, em oposição à aos “lugares refúgio, santuários das fidelidades espontâneas e das peregrinações do silêncio”13. Entendido como fonte histórica, o lugar de memória encontra na leitura historicizada a monumentalização do patrimônio, e de modo complementar, a categorização de suas tipologias evidencia a existência de uma rede articulada de identidades, momentos e locais diversos que fazem parte de uma organização insconsciente da memória coletiva que nos cabe tornar consciente de si mesma14. O olhar historicizado sobre vestígios históricos em ruínas, especialmente remanescentes arquitetônicos, encontra em John Ruskin (1849) importante defesa. Opositor ferrenho das ações de intervenção e restauro, o autor exorta a qualidade estética da ação do tempo sobre a construção do edifícios, e atribui de um valor romântico moralizante a intenção de legar o monumento tal como é às gerações futuras. Em um trecho bastante conhecido de seu capítulo A Lâmpada da Memória, o autor defende que: “O pitoresco ou a sublimidade extrínseca terá exatamente esta função, mais nobre nela que em qualquer objeto: a de evidenciar a idade do edifício – aquilo que, como já foi dito, constitui sua maior glóriatendo poder e finalidade mais importantes do que quaisquer outros pertencentes à mera beleza sensível.”15

A abordagem proposta visa também refletir por via da historiografia do patrimônio a chamada Retórica da Perda, segundo a qual instituições, valores e vestígios associados a uma determinada identidade cultural têm como destino a perda, compreendendo como efeito dessa visão um enquadramento mítico para o processo histórico condicionado de modo absoluto à destruição e homogeneização do passado e das culturas16. Pensada nessa chave, a ruína contemporânea se coloca em conflito com a noção vitoriana de pitoresco, derivada de uma visão estritamente formal de natureza. De acordo com Smithson (1973), com base apenas na materialidade, a noção que se apresenta como dada, é limitada no sentido de apreender subjetividades sociais. Esta limitação prejudica a compreensão do objeto, que não deve ser compreendido como “algo-em-si”, mas sim dentro de um conjunto de relações em processo existindo numa região física, tornando-se assim “algo-para- nós”17. O mesmo autor defende que a ruína imiscuída em sua paisagem é capaz de conter em si o senso de monumento. Dedicando sua análise a estruturas industriais abandonadas, especialmente manilhas

1493

industriais, bombas de sucção de petróleo e pontes metálicas na cidade de Passaic, em New Jersey, o autor compreende nelas o sentido de ruínas em reverso, uma concepção segundo a qual a ruína é uma potencialidade contida em todo edifício que foi ou será construído: “Esse panorama zero parecia conter ruínas às avessas, isto é, todas as novas edificações que eventualmente ainda seriam construídas. Trata-se do oposto da 'ruína romântica' porque as edificações não desmoronam em ruínas depois de serem construídas, mas se erguem em ruínas antes mesmo de serem construídas."18

À guisa de conclusão, este trabalho propõe a abordagem de novas perspectivas metodológicas como meio de investigação da condição de ruína da matéria edificada sob a óptica da preservação no caso do complexo industrial Matarazzo na paisagem portuária de Antonina-PR, pois, tendo como alvo a compreensão de relações estruturais entre formas e funções, e ampliar possibilidades de reflexão sobre a ação de circunstâncias externas – tais como fatores ambientais e transformações da logística de escoamento de produtos – sobre a força interna de desenvolvimento da arquitetura tecnologia portuária, enfatiza-se a importância do estudo de tipologias funcionais como forma de operar conceitos relacionados ao patrimônio portuário e à história urbana de maneira a enfatizar sua complementaridade. Portanto, percebida como parte fundamental do tecido urbano em um contexto histórico na qual o acelerado ritmo de transformações se imprime fortemente na paisagem visual, a permanência da ruína oferece um vislumbre de interações sociais e padrões de ocupação do espaço que se choca com as percepções modernas de uso, denunciando com maior intensidade a aceleração do tempo da tecnologia e o rápido crescimento das demandas de produtividade, além de simbolizar o colapso das barreiras físicas que isolam o espaço e o protegem da ação irrefreável da natureza e do tempo. Enquanto lugar de memória em constante desconstrução e reconstrução, o espaço da ruína é constituído elementos que, desagregados pela ação do tempo, persistem na forma de fragmentos materiais e simbólicos que se oferecem ao olhar acurado do historiador como fragmentos da própria História. 1 Sobre este tema ver: VICHNEWSKI, Henrique Telles. As Indústrias Matarazzo no Interior Paulista: Arquitetura Fabril e Patrimônio Industrial (1920-1960). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2004. 2 Neste ponto, se faz imprescindível esclarecer que a função privada do terminal portuário (ou terminal de uso privativo – TUP) o diferencia da orientação de uso público do porto. Para fins de distinção, trataremos por 'terminal portuário' o espaço circunscrito ao complexo industrial das IRFM. 3 QUEIRÓS, Luiz Fernando. “Antonina, como será agora seu futuro?” Diário do Paraná: Órgão dos Diários Associados (Ed. 4961). Curitiba, 21 de janeiro de 1972. p. 7. 4 BELO, Carolina Gabardo. “Complexo Matarazzo é área de conservaação – Conjunto centenário de barracões do primeiro porto particular do país está no centro de uma disputa familiar”. Gazeta do Povo. Curitiba: 26 de agosto de 2012. Disponível em Acesso em 14/07/2014.

5 RUFINONI, Manoela Rossinetti. “Territórios portuários, documentos de história urbana: as intervenções no

1494

6

7 8 9 1 1 1 1 1 1 1 1 1

porto de Gênova e os desafios da preservação”. Cidades, Comunidades e Territórios. Lisboa: ISCTE, nº 029, p. 13, 2012. DEL RIO, Vicente. “Voltando às origens, A revitalização de áreas portuárias nos centros urbanos”. Arquitextos. São Paulo: Vitruvius, ano 02, nº01506, 2001. Disponível em: Acesso em 15/06/2014. RUFINONI, Op. Cit. pp.14. RIEGL, Aloïs. O Culto Moderno dos Monumentos: sua Essência e sua Gênese. Goiânia: Editora UCG, 2006. p.50. Idem, p. 63. 0 HARTOG, François. “Tempo e Patrimônio”. Varia Historia: Belo Horizonte, vol. 22, nº 36, p.265, 2006. 1 Ibid. p.266. 2 Idem. 3 NORA, Pierre. “Entre Memória e História”. Projeto História. São Paulo: PUSCP, nº10, p.26, 1993. 4 Ibid. pp.27. 5 RUSKIN, John. A Lâmpada da Memória. Tradução: Maria Lucia Bressan Pinheiro; revisão Beatriz e Gladys Mugayar Kühl. Cotia-SP: Ateliê Editorial, 2008. pp. 77 6 GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A Retórica da Perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; IPHAN, 1996. p. 22 7 SMITHSON, “Robert. Um Passeio pelos Monumentos de Passaic, Nova Jersey”. Arte & Ensaios. Rio de Janeiro: UFRJ, nº22, p 165, 2011. 8 Idem.

1495

A liturgia das letras: a trajetória intelectual e política de Arnold Ferreira da Silva através do Jornal Folha do Norte – Feira de Santana-Ba (1909-1930) Juliano Mota Camposi

RESUMO: Arnold foi intendente de Feira de Santana(1924-1926), vereador (1928-1930) escreveu crônicas e editoriais, foi rábula, contabilista, orador de filarmônicas, membro de grêmio lítero-dramático e grupos de teatro. Discutiremos qual a relação que as produções intelectuais de Arnold possuíam com o projeto político de poder/progresso do grupo(s) dominante na referida urbe do período de 1909-1930, e quais reflexos diretos seu discurso intelectual e práticas políticas tiveram no quadro cultural/político da sociedade feirense. Fontes: Jornal Folha do Norte, crônicas e editoriais.

PALAVRAS CHAVE: Trajetória intelectual, progresso, Feira de Santana.

ABSTRACT: Arnold was mayor of Feira de Santana (1924-1926) , councilor (1928-1930) chronicled and editorial, was shyster , accountant , philharmonic speaker , member of literarydramatic guild and theater groups.We discuss what relationship the intellectual productions of Arnold had with the political project of power / group progress (s) dominant in that metropolis of the 1909-1930 period and which directly reflected his intellectual and political practices had speech in the cultural context / Feirense of political society. Sources: Newspaper Folha do Norte, chronicles and editorials. KEYWORDS: intellectual trajectory, progress, Feira de Santana. Como disse Mary Del Priore, no início era o verbo e o verbo, a narrativa, e esta por excelência a biografiaii. Esta escrita da vida transformou-se ao longo dos tempos. Superada a rejeição dos anos 70 e 80, ela chegou nos anos 90 a uma “idade hermenêutica” na qual o objetivo seria capturar “a unidade pelo singular”iii. Assim, o indivíduo encontrava a história, e esta, a partir do olhar singular mas também plural da biografia, formavam um mosaico de conhecimentos sobre as realizações humanas, refletindo as mais diversas tensões, contradições e correntes de pensamento. É a partir do indivíduo que teremos acesso ao estabelecimento de questões mais amplas, transitando do particular ao geral, do específico ao problema global, pois o que

1496

se pretende é privilegiar o enfoque social e integrador iv. Assim, o estudo das trajetórias singulares devem demonstrar o que não volta ao quadro geral, hesitações, incoerências, incertezas, transformações, permitindo ao biógrafo por sua feita transitar por distintas temporalidades, ganhando forma o tempo “contextual” (o cenário político, econômico, cultural), o tempo familiar, o tempo interior, o tempo da memóriav. Com a evidência dada as trajetórias individuais a partir dos anos 90, as crises e tensões vividas pelo sujeito estão mais expostos aos holofotes da história. Suas escolhas nem sempre coerentes ou previsíveis, mas muitas vezes compreensíveis se levadas em consideração suas relações com os problemas conjunturais que os envolvem, fazem estes indivíduos dialogar com o presente e as múltiplas possibilidades que nele se apresentam, seguindo caminhos não raramente ambíguos e inesperados. Isto permite que tomemos suas atitudes em diferentes enfoques, compreendendo-as como estratégias de sobrevivência ou ainda como motivações individuais (profissionais, sociais, econômicas...) imbricadas por redes de sociabilidadevi. Nas trilhas dos estudos da trajetória, colocaremos as luzes da pesquisa histórica sobre Arnold Ferreira da Silva. Buscaremos acompanhar o “fazer-se” este indivíduo ao longo de parte da sua vida intelectual e política (1909-1930), levando em conta os diferentes espaços sociais por onde ele se movimentou, mas também suas percepções subjetivas, oscilações, hesitações e mesmo o acaso vii. Neste artigo o foco é parte de sua caminhada intelectual enquanto redator, colunista e proprietário do jornal Folha do Norte em Feira de Santana-Bahia. Arnold viveu em Feira de Santana, Bahia, entre 1894 e 1965. Antes de seguir a vida político-partidária iniciou-se na liturgia das letras como secretário do jornal Folha do Norteviii, no momento de sua fundação em 1909. Escreveu as colunas: Chronicando, Effigies, Bric-a Brac, editoriais e a Chrônica da vida feirense que depois viria a chamarse Coluna da Vida Feirense. Adotamos como recorte temporal inicial o ano de 1909 quando saiu a sua primeira produção (Chronicando) e o ano de 1930 como o último de atuação política no parlamento local. A partir do ano de 1924, Arnold iniciou sua carreira política enquanto intendente da pólis feirense, reelegendo-se até 1926, e assumiu outro mandato no ano de 1959, mas afastou-se do executivo em 1962 para tratamento médico e não mais retornou. Entre 1928 e 1930 tornou-se Conselheiro Municipal e presidente do Conselho, ocupou também a direção de diversas instituições na cidade como: Montepio dos artistas feirenses, Santa casa de Misericórdia, Tiro de Guerra, exerceu a função de orador e secretário das

1497

filarmônicas Vitória e 25 de março, além de ter atuado enquanto rábula e membro de Grêmio Lítero-dramático e de grupos de teatro locais. Neste trabalho discutiremos qual a relação que as produções intelectuais de Arnold Silva possuíam com o projeto político de poder/progresso do grupo(s) dominante na referida urbe do período de 1909-1930, e quais reflexos diretos o seu discurso intelectual e suas práticas políticas tiveram no quadro cultural/político da sociedade feirense.

ARISTEU NEMÉSIO E GIL MONCÔRVO: PSEUDÔNIMOS PARA O PROGRESSO Como mercadoria, a crônica veiculada pelo jornal ou pela revista não é feita para durar. Redigida para informar, chama a atenção do leitor para detalhes da cotidianidade ou grandes eventos, a crônica aspira a ser comentada, mas não tem a força de permanência de um romance ou conto. Esse gênero “mais ligeiro” tira de sua “leveza de ser” a própria força. Registrando o detalhe e captando os valores de uma época, a leitura da crônica é, para o historiador, uma das formas pelas quais ele pode atingir, por outros meios que não os tradicionais, a representação do passado. E, por irônicos caminhos, dá “permanência” aquilo que seria um produto descartávelix. Espectador do processo que narra, o cronista é, ao mesmo tempo, ator deste processo, que se esforça para “dizer” o urbano, recolhendo o que vê e sente e o que intui que os demais vêem e sentem. Mas, recorremos ao que foi enunciado antes: sua tarefa de cronista, sem pretensões de perenidade, é extremamente significativa para o olhar de quem, ex-post, intenta recuperar sensibilidades passadasx. Em geral, as crônicas de jornais e revistas apresentam uma exacerbação da tendência progressista, que se configura como central para a definição do novo padrão identitário da nação. O caçula dos irmãos Silva, o jovem Arnold, com o pseudônimo de Arísteo Nemésio e depois com Gil Moncorvo começou a escrever crônicas, colunas e editoriais. Com o primeiro codinome, este autor escreveu seis crônicas no ano de 1909 no Folha do Norte, denominadas Chronicando. Nelas o jornalista tratou de temas diversos como: a pena de morte e a condição de atraso da indústria nacional. Nas suas primeiras edições, esse jornalista filia-se a corrente que apoia as candidaturas de Hermes da Fonseca, para a Presidência e de Wenceslau Braz para a vice-presidência da República, lançando-se no combate ao situacionismo local.

1498

Com um discurso de ‘denúncia’ da má utilização dos recursos públicos em virtude da aquisição de assinaturas do jornal (da mesma linha ideológica da situação) para os correligionários do governo Municipal, Arnold ironiza a negligência do poder público através do atraso que configura o cenário feirense:

Ninguém mais quer saber que os cofres municipais gemeram com algumas dezenas, senão centenas de mil reis, pagando assinaturas do “Jornal da Manhã” para os adeptos da situação. Muita gente, entretanto, estranhou o caso. Mas ... eu, não. Julgo até que é um benefício que a municipalidade despensa aos feirenses. Senão vejamos: Nós todos pagamos aos srs. Governantes uma boa porção de dinheiro. Compensando, eles nos dão uma paupérrima iluminação e um asseio, o porco que se pôde imaginar. Há de, portanto, sobrar dinheiro e razão para mui honestamente aos nossos governantes pagarem uma porção das aludidas assinaturas e distribuírem aos munícipes. Quanto ao facto de não serem todos contemplados, justifica-se velho adagio: “Matheus, primeiro aos teus”xi.

No ano de 1912, as quatro crônicas nominadas de Effigies apresentavam-se enquanto indicativo de interesse do autor pela política. Talvez uma espécie de justificação para a carreira que ele começava a anunciar na política, haja vista que a crônica é de 1912 e ele vai estar na intendência só em 1924. Com uma linguagem metafórica e satírica, Arnold apresenta a sociedade seu autorretrato: É de ver a loquacidade com que, no balcão, prova a superioridade do artigo, o desejo de bem servir ao freguês lucrando quase nada. Fala, discute, compara, convence. Às vezes, entretanto, desvia o olhar das vitrinas, das fazendas, das fitas e vara a alta região política. Vê, então, tanta lepra a corroer caracteres, tanta miséria e tanta desonra que se revolta e que se exalta ...: “se eu fora um soldado com o exército revolucionaria isto! Uma revolução fragorosa ele teria, entretanto si pudesse. E, á ação terrifica do seu poder, o mundo todo, um dia, despertaria surpreso, atônito ante aguerridas hostes conduzindo berrantes estandartes de guerra, e runfos tonitroantes de tambores, e violento clangorar de clarins, tudo gritando a “superioridade dos seus artigos de negócio” o seu “desejo de bem servir ao freguês”. Sim. Porque esta Effigie é, antes de tudo, dum negociante inteligente, que compreende a propaganda como alma do negócioxii.

A partir de uma primeira leitura desatenta, poderia a crônica Effigies estar tratando de um aspirante a revolucionário político, defensor de mudanças estruturais significativas na sociedade, no entanto, ele não queria revolução alguma, nenhum comerciante quer, principalmente ele que está com o olhar sob “as vitrinas e fazendas”. Na análise desta fonte podemos inferir que o termo “soldado” e “exército” querem dizer cargo político e a máquina pública respectivamente, logo, a demonstração de bem servir ao freguês, no caso o cidadão, é um interesse pessoal do autor desta crônica em entrar para a política.

1499

Ainda utilizando a ironia como recurso de linguagem, Arnold continua a criticar o cenário político e preparar o próprio terreno politicamente, sendo que para isso utilizase agora de outra coluna a Bric-á-Brac. Publicada apenas em algumas edições durante o ano de 1914, a política local, nacional e internacional, além de acontecimentos no campo da cultura e religião, são dentre outros, temas desta coluna:

Retribuindo, pela imprensa, votos de boas-festas aos seus amigos e conterrâneos o exmo.Sr.Dr. Governador do Estadoxiii julgou conveniente declarar que, no balanço de seus haveres particulares, acaba de verificar, após dois anos de governo, um saldo de oitenta e tantos mil reis. Depois disto já se não pode contestar a influência preponderante da cinematografia na sociedade atualxiv.

Segundo o memorialista Carlos Mello, em entrevista concedida a Rádio Sociedade de Feira, Arnold herdou do ex-intendente, Tito Ruy Bacelar, a sua biblioteca com livros de diversas áreas do conhecimento, inclusive clássicos da literatura nacional e estrangeira. O caçula dos Silva tinha o perfil padrão do intelectual desse período. Fazia citações em língua estrangeira (inclusive latim), era conhecedor da literatura francesa e comumente fazia referência a intelectuais franceses em artigos jornalísticos, como foi o caso deste pensamento utilizado ao final da coluna citada anteriormente: “O trabalho intelectual é o melhor remédio contra os desgostos da vida; não há magoa que não se acalme com uma hora de leitura, Montesquieuxv”. Paralelo as diversas atividades que realizou, (orador, secretário, provedor, presidente, tesoureiro de diversas instituições culturais e filantrópicas da cidade) ele, utilizando-se de tal prestígio, atentava para problemas de toda natureza, desde questões sanitárias...

A Feira vai ter um serviço de higiene municipal. Vai ter. É uma questão de tempo. A peste branca, por si só, na dilatação assustadora que enche as estatísticas, acabará ditando aos homens do governo essa medida irrevogável. A Feira vai ter um serviço de higiene municipal. E então não haverá mais armazéns de fumo encravados no coração da zona urbanaxvi.

Passando, pelas questões da mobilidade e sociabilidade, como a construção da nova avenida Sr. Dos Passos: “... que espíritos progressistas como devem ser, não criarão óbices a tão louvável e grandioso tentame, que proporcionará novo e verdadeiro encanto a nossa urbexvii”. Até o cumprimento do código de posturas e da fiscalização municipal, sempre em comunhão com o progresso, selada por uma liturgia de apoio ao poder público municipal, fazendo apologia as suas realizações:

1500

Cerimônia da posse do intendente, franqueada a palavra, o nosso colega Arnold Silva pronunciou um discurso analisando factos, formulando votos e aspirações da cidade e dos distritos no continuado desejo de progredir, sem esquecer-se de salientar o mérito e valor dos serviços prestados à comuna pela administração cujo mandato se findaraxviii.

E defendendo o gestor, dos ataques disseminados pela oposição através dos

jornais, enaltecendo virtudes pessoais necessárias a condução do progresso, conforme segue no trecho do editorial Pé de guerra:

O coronel Bernardino Bahia é ali uma das tradições de homem público o mais digno desdobramento de sua conduta modelar como cavalheiro distinto, chefe da família acatadíssimo e cidadão amantíssimo da terra onde reside e a que tem prestado serviços os mais relevantes. Esta é a que é a verdadexix.

Arnold construiu a partir de múltiplas temáticas sua relação com a comunidade feirense, tratava de diferentes assuntos, ainda que todos eles se articulassem em torno ou com fins políticos. A forma de comunicação a que estamos nos atendo inicialmente é escrita, haja vista que ela era emanada de um lugar de dominação política completa, com uma potencialidade de reter o passado, arquivamento e criação do real. O pseudônimo Gil Moncôrvo também foi utilizado para registrar em forma de diário a liturgia do cotidiano da vida feirense, a partir de uma cronologia diária, conforme o dia de publicação do jornal, ano, após ano. Esta publicação chamou-se Coluna da vida feirense e existiu de 1923 a 1952, lembrando também que, a princípio, a coluna se chamava Crônica feirense. Nessa seção do jornal ele organizou registros sobre a história da cidade, anotando eventos e datas que marcaram a trajetória histórica feirense. Apresentou dados aos quais teve acesso principalmente em arquivos de Feira de Santana e de Salvador. Sobre esta coluna, Morais afirma que: Arnold Silva foi, no jornal, além de fundador, diretor durante muitos anos (19231952), jornalista e escritor de crônicas e contos. Durante esse período, escreveu cerca de 250 crônicas-relatos, publicadas semanalmente. Ele dedicou uma boa parte de sua vida (três décadas) à pesquisa sobre o município e a cidade de Feira de Santana, visitando, cotidianamente, os arquivos públicos e particulares, as bibliotecas municipal e nacional, os grêmios literários, as filarmônicas, cartórios, batistérios e demais órgãos públicos de Feira de Santana e de outras capitaisxx.

O nosso interesse é atentar apenas para os dois primeiros anos que ela foi reproduzida (com o nome de Crônica Feirense): 1923-1924, já que tendo sida publicada novamente apenas a partir de 1931, foge então do período proposto para a discussão.

1501

Percebemos na Crônica, uma preocupação em legitimar uma Feira enquanto importante centro, não apenas econômico, mas sobretudo cultural e intelectual. O primeiro passo, para consolidar o discurso iniciado em 1909, era ir na mesma toada vivida pelos grandes centros, que buscavam no alvorecer da República, enaltecer seus heróis, reescrever suas histórias, publicizar seus mitos e lendas urbanas. Arnold a partir de um contato com fontes oficiais: como processos crimes, cíveis, Atas, etc., trata de detalhes da prisão e julgamento de Lucas da Feira, a repercussão que as suas práticas tinham na cidade e o início da sua mitificação na sociedade local. Sobre Maria Quitéria, Arnold desfez dúvidas quanto à vida da heroína Maria Quitéria de Jesus, enfatizando o seu ponto de origem e a nacionalidade de seu pai como brasileiro, baiano e feirense. O envolvimento em querelas políticas, como a defesa da candidatura de Ruy Barbosa, as passeatas e conferências a seu favor ocorridas na cidade, a anulação das eleições municipais de 1908, o acordo político entre governistas e oposicionistas para as eleições municipais (1911) e a nomeação do coronel Bernardino Bahia pelo governo do estado para intendência municipal, foram formas de marcar terreno não apenas no plano político, mas também de tentar registrar junto à população o apoio a determinado segmento político, e estes enquanto operários da urbanização e arquitetos da civilidade. As ações destes operários e arquitetos, auxiliam na legitimação do discurso de desenvolvimento da cidade e da condição de benfeitores atribuídas a esses “trabalhadores”. São apresentadas por Arnold na liturgia do cotidiano, no decorrer da Primeira República, inúmeras notas sobre obras no município, como o início dos trabalhos da estrada de rodagem, inauguração da avenida Araújo Pinho, apresentação de projeto da praça Froes da Motta no conselho municipal, projeto de lei estadual que manda construir ponte sobre o rio Jacuípe, inauguração das últimas obras do governo de Agostinho Froes (1919) , inauguração da estrada de rodagem ligando Feira de Santana a cidade de Camisão, a conclusão das obras do matadouro público municipal em 1890,inauguração da iluminação elétrica da Praça da matriz, inauguração do trafego de automóveis para o distrito de Santa Bárbara e para o Bonfim. Vale destacar, que a grande maioria das obras em favor de uma cidade com ares de capital do interior, foram realizadas por Agostinho Fróes e Bernardino Bahia, aliados políticos de Arnold. A dinâmica de uma cidade moderna e em processo de superação do rural para o urbano é apresentada como muito intensa. Por isso todos os elementos que compõem a transição de um patamar a outro são enaltecidas por Gil Moncôrvo na Crônica Feirense. Além dos vultos históricos, das origens da cidade, das figuras políticas e suas respectivas 1502

obras, que marcaram um conjunto de mudanças sociais, o contexto cultural também merece destaque. Não é possível ser civilizado, moderno e estar na trilha do progresso, se não consumir o que é produzido pelos grandes centros econômicos, culturais e sociais, não apenas do Brasil, mas também do mundo. Um dos indicativos de consumo do produto da modernização mais citada na Crônica é o surgimento e desaparecimento de semanários locais, normalmente com curta duração e tiragem, parca estrutura física e financeira para sobreviver por mais tempo. Podemos citar como exemplos: A flor, O Município, O Progresso, O Feirense, Do povo, Gazeta do povo, O Motor, O Propugnador, Propulsor, O correio da Feira, A Evolução e A República. Vale destacar que a efemeridade destes jornais, deu-se em virtude de uma população ainda predominantemente rural e analfabeta, limitando-se o consumo aos sujeitos dos grupos sociais mais abastados economicamente e com forte influência política. A presença de intelectuais na cidade, como a de um escritor belga, de um jornalista oposicionista, redator chefe do Diário da Bahia, e de intelectuais locais como Gastão Guimaraes e Edith Mendes expõem essa cidade como um lócus de produção e disseminação do conhecimento, palavra esta sinônima de progresso. Os lugares e instituições citadas no decorrer da Crônica, reafirmam esse discurso de uma cidade que não exclui o seu passado agrícola, mas que avança em perfeita sintonia com o presente de novidades e o futuro de prosperidade. Essa dialética passado rural e presente/futuro urbano, pode ser exemplificada pelas notícias dadas sobre as condições climáticas de março de 1922, em que se reportava as repetidas chuvas após prolongada estiagem, a variação do valor da farinha de mandioca e a reabertura do Hipódromo Jockey Club Feirense, lugar de sociabilidade dos mais abastados, que disciplina, a partir dos lugares sociais que os indivíduos ocupam, suas vestes, comportamentos, linguagensxxi. Os espaços de entretenimento, como as sedes das filarmônicas, grêmios dramáticos e Cine Teatro Santana (palco de importantes conferências e concertos musicais na cidade) estavam dispostos a atender a uma dupla função no cenário do progresso urbano de Feira de Santana. O primeiro objetivo pelo qual a maioria dos eventos eram organizados, era a de que estes funcionassem como uma rede de solidariedade que “alimentava” instituições vitrines (Santa Casa de Misericórdia, Montepio dos Artistas Feirenses, etc.) para a atuação dos grupos políticos dominantes e depois como espaços de doutrinamento dos espíritos para os bons modos da sociedade civilizada e em franco progresso. Por isso, ter em evidencia na Crônica espaços como

1503

esses, consolidava no imaginário popular a presença “sadia” daquilo que

é útil ao bom

convívio, logo civilizado e moderno. Em uma crônica, além dos sujeitos, instituições e lugares, o cotidiano é fundamental para a compreensão da sua estrutura e dos objetivos que ela almeja alcançar. É no cotidiano que a maioria da população se vê inserida nesse processo de transformação da urbe, é no dia a dia que a violência e a paz dividem espaço (inclusive no jornal), que as instituições e órgãos trocam de comando, que as medidas disciplinadoras e saneadoras são aplicadas ao espaço público, como a construção do Mercado Municipal no Governo de Bernardino Bahia, ou medidas governamentais contra a varíola e peste bubônica são tomadas: “tendo aparecido neste município casos suspeitos de peste bubônica, o intendente pediu providencias a higiene estadual”xxii. Com o uso de uma linguagem rebuscada, aponta-nos o público que o periódico pretendia atingir em uma cidade com altos índices de analfabetismo, o que era a realidade em boa parte do Brasil dessa época. Esses elementos acerca da origem do jornal são pertinentes para historicizar a fonte e para o procedimento de sua análise. Tratava-se de um veículo formador de opinião, do qual um dos donos é um político influente em Feira de Santana e foi uma das principais produções jornalística da época.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Arnold a pesar de não estar vinculado a nenhuma universidade, instituto histórico e geográfico ou academia de letras, espaços formais da intelectualidade, ele participava da organização da cultura da elite, atuando principalmente como orador, e articulista de jornal, atividades que lhe propiciaram a evidência necessária para aproximar-se cada vez mais do poder político municipal. Foi com textos de cunho político, criticando em um primeiro momento (1909) através do jornal o grupo que estava no poder e no segundo momento (1915) saindo em defesa do grupo político dos Motta e Bahia e de suas práticas modernizadoras que Arnold ganhou maior visibilidade e prestígio na urbe.

Ao utilizar o periódico jornal Folha do Norte, o único a ter exemplares seriados desde 1909, período de sua fundação e, por pertencer ao grupo familiar/político do nosso objeto de estudo, tivemos um lócus por excelência dos registros intelectuais (principalmente as crônicas e editoriais) de quem nos debruçamos. Estas são importantes para a pesquisa porque apresentam a sua percepção sobre as mudanças sociais ocorridas

1504

no espaço em questão, bem como inicialmente tem evidenciado interesses, negociações, relações de força, motivações pessoais ou coletivas na construção dos diversos segmentos da política, cultura, arte e filantropia da cidade de Feira de Santana. Aparentemente ao nos depararmos com a figura de Arnold Silva, nos é passada uma primeira impressão de que se tratando de um coronel do sertão/agreste nordestino, tendo o ápice de sua força política na república velha, fosse alguém rude, patriarcal, violento ou “coisa que o valha”, mas no diálogo com as fontes percebemos que sua identidade não é fixada nesse modelo estanque e engessado de líder político, que o trato com as letras não é um detalhe mínimo nas relações de poder, haja vista que suas “reivindicações e críticas” influenciaram na construção de uma imagem urbana de lugar do progresso e de uma modernização mais próxima possível.

i

Mestrando em história pela Universidade Estadual de Feira de Santana. Bolsista Capes, sob orientação do Prof. Dr. Aldo José Morais Silva. E mail: [email protected] ii DEL PRIORY, Mari. Biografia: quando o indivíduo encontra a história. Topoi, v. 10, n. 19, jul-dez. 2009, p.07 iii Idem, p.09 iv AVELAR, Alexandre de Sá. Figurações da escrita biográfica. ArtCultura, Uberlândia, v. 13, n. 22, janjun. 2011, p. 140. v MARKENDORF, Marcio. A decadência da ilusão ou a morte da biografia. Revista Rascunhos Culturais, Campo Grande, v. 1, n. 1, jan-jun. 2010, p. 148. vi PEREIRA, Aline Pinto; SILVA, Ana Paula Barcelos da. Passagens. Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica, Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, mai-ago. 2013, p293. vii SCHMIDT, Benito Bisso. Biografia e regimes de historicidade. Revista MÉTIS: história & cultura, Cidade, v. 2, n. 3, jan-jun. 2003, p. 67. viii Este jornal tinha como proprietário Tito Ruy Bacellar, ex-intendente de Feira de Santana. Conforme o memorialista Gastão Sampaio afirma em sua obra: Feira de Santana e o Vale do Jacuípe, o político citado seria padrinho de Arnold Silva. ix PESAVENTO, Sandra. O imaginário da cidade - Visões literárias do urbano. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002, p. 181. x Idem, p.183. xi NEMÉSIO, Arísteo. Folha do Norte, Feira de Santana, Nº 03, ano I, 01 de out. 1909, p.01 xii MONCORVO, Gil. Folha do Norte, Feira de Santana, Nº 133, ano IV, 24 de ago. 1912, p. 02 xiii O Governador citado é José Joaquim Seabra xiv FOLHA DO NORTE. Feira de Santana, Nº 204, ano VI, 10 de jan. 1914. xv MONCORVO, Gil. Folha do Norte, Feira de Santana, Nº 206, ano VI, 24 de jan. 1914, p.01. xvi FOLHA DO NORTE. Feira de Santana, Nº 422, ano X, 04 de mai. 1918a. xvii FOLHA DO NORTE. Feira de Santana, Nº 549, ano XII, 16 de out. 1920a. xviii FOLHA DO NORTE. Feira de Santana, Nº 510, ano XII, 17 de jan. 1920b. xix SILVA, Arnold Ferreira da. Folha do Norte, Feira de Santana, Nº 671, ano XV, 24 de fev. 1923a. xx MORAIS, Ana Angélica Vergner de. Sant’Anna dos Olhos D’Água: resgate da Memória cultural e literária de Feira de Santana (1890-1930). Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1998, p.34. xxi MONCORVO, Gil. Folha do Norte, Feira de Santana, Nº 722, ano XVI, 07 de mar. 1924, p. 01. xxii MONCORVO, Gil. Folha do Norte, Feira de Santana, Nº 723, ano XVI, 14 de mar. 1924, p. 01

1505

A quem pertence a arte de curar?: a disputa pela autoridade médica no Portugal das Luzes Julie Hamacher Liepkaln1

RESUMO: O presente trabalho propõe-se à reflexão sobre as prerrogativas do exercício da medicina em Portugal, durante a segunda metade do século XVIII. Neste período foi estabelecida a reforma da Universidade de Coimbra (1772), que teria representado a consolidação institucional da medicina. Neste sentido, pretendemos reavaliar justamente tal processo de institucionalização, o qual foi marcado por uma série de dificuldades, tensões e ambiguidades, culminando por fim em uma relação de interdependência entre o poder político e a medicina acadêmica. Palavras-chaves: Autoridade médica; Poder político; Portugal Setecentista. ABSTRACT: This work aims at the reflection about the Medicine’s exercise prerogatives in Portugal during the second half of the 18th Century. In that period one has been established Coimbra University reform (1772), which would have represented medicine’s institutional consolidation. In this sense, we intend to discuss such institutionalization process that was marked by difficulties, tensions and ambiguities culminating finally in an interdependent relationship between political power and academic medicine. Keywords: Medical authority; Political power; 18th Century Portugal. “Ils savent la plupart de fort belles humanités, savent parler em beau latin, savent nommer em grec toutes les maladies, les définir et les diviser; mais pour ce qui est de les guérir, c’est qu’il ne savent point de tout.”2 A citação acima encontra-se na obra O doente imaginário, escrita em 1673 pelo dramaturgo francês Molière (1622 – 1673), e corresponde à fala de Béralde dirigida a seu irmão, Argan, personagem à qual o título faz referência. Béralde, indignado com a situação de Argan - que, acreditando estar doente, abandona-se completamente aos cuidados de seus médicos -, busca convencer seu irmão da ineficácia do saber dos médicos: estes não dominam de forma efetiva as artes de curar, porém, munidos de uma suposta erudição, tais médicos acabam por se beneficiar da credulidade de seus pacientes. É justamente na opinião de

1506

Béralde que reside a tônica de O doente imaginário, comédia de costumes que satiriza os médicos seiscentistas, sobretudo suas linguagens e suas pretensões. No século seguinte, mais especificamente em 1738, o escritor português Francisco Xavier de Oliveira (1702 – 1783), também conhecido como Cavaleiro de Oliveira, escrevera em uma carta à Condessa de N. a respeito dos médicos e boticários:

Ainda que com o socorro da anatomia se podem conhecer, como êle dizia, tôdas as diferentes partes do corpo humano e tôdas as suas diversas funções, como é possível que se conheça a origem de todas as enfermidades? (...) Se o médico não pode chegar a descobrir o particular do mal, como é que poderá aproveitar na aplicação do remédio?3

Não obstante escreverem em momentos e locais distintos, tanto Molière, quanto Oliveira nos fornecem, de maneira geral, elementos relacionados à medicina europeia, a qual se fundamentava na teoria humoral, elaborada por Hipócrates (460 a.C - ?) e, posteriormente, sintetizada por Galeno (130 – 201 d.C.)4. Na Europa da Idade Moderna, a longevidade da teoria humoral refletiu-se no ensino da ciência médica, de caráter marcadamente livresco, através da leitura das obras de Hipócrates e Galeno, autores considerados cânones. A preponderância deste conhecimento teórico, em detrimento do prático, acarretou um padrão de ensino médico o qual prescindia de atividades práticas, como a cirurgia e anatomia. No que tange às modalidades terapêuticas, a expressão latina “Saignare, purgare et clysterium donare” resume os mais recorrentes procedimentos empregados pelos médicos eruditos5. Através de sangrias, purgações e clísteres, os médicos estimulariam a secreção dos humores corrompidos, eliminando assim a causa da enfermidade. A esses procedimentos, podemos adicionar o uso de poções, unguentos e emplastros feitos a base de componentes de origem animal e, principalmente, vegetal. Também vale assinalar que, da colheita à preparação de tais medicamentos, seguia-se uma série de critérios, inclusive astrológicos e religiosos6. Contudo, tais tratamentos não eram aplicados apenas pelos profissionais da medicina acadêmica – essencialmente, médicos, boticários e cirurgiões -, sendo também utilizados por parteiras, curandeiros, sangradores e empíricos, os quais compunham a esfera da medicina popular. Conforme Mary Lindemann aponta, “ (...) a sobreposição das medicinas “popular” e “elitista” representava um largo substrato de crenças comuns sobre a saúde, a doença e as terapêuticas, que a maior parte da sociedade partilhava, e que caracterizava justamente a medicina na Idade Moderna.”7. Se havia uma diferenciação entre estes dois grupos, esta se justificava menos por questões de conhecimento e mais por aspectos de distinções social8.

1507

Diante deste cenário eclético de prestadores de cuidados de saúde, deparamo-nos com a fluidez das fronteiras entre o erudito e o popular. No Portugal do Setecentos, recorte espacial e temporal do qual nos ocuparemos no presente texto, a situação não foi diferente. Segundo Timothy Walker, durante o reinado de D. João V (1707 – 1750), os médicos licenciados pela Universidade de Coimbra valiam-se tanto de métodos aprendidos no curso de medicina, quanto de rituais comumente realizados por curandeiros9. Isto posto, o procedimento de considerar a apropriação de práticas populares por médicos acadêmicos, assim como o contrário, mostra-se fundamental à compreensão das disputas em torno das artes de curar no século XVIII. Neste sentido, Tânia Pimenta, historiadora que analisou os documentos da Fisicatura-mor com o intuito de ponderar sobre a relação entre aquela instituição e os diferentes agentes de cura, nos coloca uma importante observação: “Mas a relação entre essas medicinas não acontecia apenas como imposição, por um lado, e resistência por outro. Alguns medicamentos preconizados pelos médicos acadêmicos podiam ser utilizados pelos praticantes da medicina popular e, certamente, o oposto também ocorria”10. Em meados do século XVIII, este intercâmbio de práticas entre as esferas médicas erudita e popular, além de criticado por letrados portugueses, passa a ser combatido por meio de modificações dirigidas ao ensino universitário e aos órgãos responsáveis pela regulamentação das atividades médicas. Autores como Luís Antônio Verney (1713 – 1792), Jacob de Castro Sarmento (1692 – 1762) e Antônio Nunes Ribeiro Sanches (1699 – 1783) alertaram sobre a escassez de médicos licenciados, e, consequentemente, para o predomínio de empíricos e outros tipos de profissionais sem formação nas atividades de assistência à saúde. Diante de tais circunstâncias, propuseram como soluções novas diretrizes para o ensino superior e também novas políticas de regulamentação e fiscalização das atividades médicas e de seus agentes. Dentre os três letrados, atentaremo-nos a Ribeiro Sanches e sua produção bibliográfica, cuja análise nos permite identificar um discurso médico marcado por todo um viés político. Mais do que intentar circunscrever e legitimar a atividade médica acadêmica, estabelecendo assim um monopólio da prática, Sanches entende a saúde pública como um projeto político, pois insiste em uma relação intrínseca entre o poder de um Estado e a saúde de seus súditos. No que concerne tal relação, a introdução de sua obra Tratado da Conservação da Saúde dos Povos mostra-se emblemática:

1508

Todos sabem que a mais sólida base de um poderoso Estado consiste na multidão dos súbditos, e no seu aumento, e que desta origem resultam as suas forças, poder grandeza e majestade (...). Mas como poderá aumentar-se sem leis, e regramentos a Conservação da Saúde dos Povos, e curar as enfermidades a que estão expostos? 11

A ressonância dos escritos de Sanches pode ser observada, por exemplo, na reforma da Universidade de Coimbra, em 1772, para a qual contribuiu com o seu o Método para aprender e estudar a medicina12. Com efeito, tal reforma é um claro exemplo de esforço de uma consolidação institucional e de uma reformulação das bases da ciência médica, adotandose novos métodos e linguagens, entre eles, o iatromecanicismo, sistema de explicação dos fenômenos fisiológicos através de modelos mecânicos, e os estudos anatômicos13. Ainda sobre a reforma universitária de Coimbra, igualmente importante foram as edificações de três espaços para o aprendizado médico: o dispensatório farmacêutico, o teatro anatômico e o hospital escolar14. Este último merece especial atenção. Para Michel Foucault, mais do que um local de formação de um saber específico, o hospital se torna um local de exercício de poder, onde observar, diagnosticar e corrigir são procedimentos exclusivos ao médico, profissional capaz de intervir sobre os indivíduos.15 Dialogando com o filósofo francês, o historiador Roy Porter complementa: “(...) quanto mais a profissão médica afirma sua capacidade de intervir sobre o corpo dos indivíduos, mais a sua ambição de também cuidar da sociedade como um todo também aumenta.”16. Mais adiante neste trabalho, ponderaremos sobre a relação entre o saber científico e poder, antes contudo, devemos nos deter sobre a questão da normatização da atividade médica. Retomando Sanches, de modo semelhante ao Tratado e ao Método, obras em que é possível notar uma acentuada preocupação com a saúde pública - pois, para Sanches, um ensino médico bem fundamentado é condição básica para a manutenção da saúde da população -, em seu texto Apontamentos para estabelecer-se um Tribunal e Colégio de medicina constata-se toda uma atenção ao “bem-estar” dos súditos. Nele, Sanches propõe a criação de um Tribunal e um Colégio de medicina, que seriam incumbidos principalmente de avaliar os agentes de saúde, distribuí-los pelas diversas regiões do país e recolher informações sobre as principais doenças e epidemias17. Para Sanches, Tribunal e Colégio prestar-se-iam a substituir a Fisicatura-Mor, instituição criada em 1515 e que tinha a sua frente o Físico-mor, cargo normalmente ocupado pelo primeiro médico-régio, responsável pela fiscalização e concessão de licenças aos agentes de cura, os quais eram avaliados segundo seus conhecimentos teóricos e práticos. A Fisicatura-mor não foi considerada malograda apenas por Sanches. Antes disso, já em 1589,

1509

médicos diplomados pela Universidade de Coimbra reivindicavam a suspensão da autoridade do Físico-mor, alegando que este, mais preocupado com as contrapartidas financeiras do que com o exercício da medicina, concedia licenças a empíricos, alimentando assim o mercado paralelo e concorrencial dos médicos. A Coroa, dividida, buscava manter um equilíbrio, ora investindo no ensino médico, ora conferindo títulos e honrarias ao Físico-mor18. A partir deste panorama, gostaríamos de reavaliar o processo de institucionalização do saber médico. Se tal processo foi condição essencial para demarcar as diferenças entre as medicinas acadêmica e popular e a “superioridade” da primeira sobre a segunda, ele também foi marcado por uma série de dificuldades, tensões – mesmo entre os próprios médicos acadêmicos – e ambiguidades. Primeiramente, a realidade sanitária portuguesa na Idade Moderna configurava-se como um verdadeiro obstáculo ao combate à medicina paralela. Devido às más condições higiênicas, à alimentação deficiente e, especialmente, à ausência de médicos nas vilas mais isoladas, o trabalho de cura e alívio dos achaques era exercido por médicos empíricos, curandeiros e outros tipos de profissionais não licenciados. Mais tarde, à medida em que o ensino médico-cirúrgico foi sendo organizado institucionalmente, todos estes profissionais serão referidos indiscriminadamente como “charlatães” pelos médicos acadêmicos, em uma estratégia clara de desprestigiar seus principais concorrentes nas artes de curar 19. Segundo Jorge Crespo, neste campo de disputas pelo monopólio da atividade médica, os médicos licenciados encontravam-se em uma posição bastante instável, uma vez que os próprios enfermos desconfiavam de seus métodos, que “(...) nada de novo acrescentavam ao que os curandeiros invariavelmente recomendavam.”20. Para além disso, devido à sua posição social os agentes da medicina popular tinham ao seu favor o fato de compartilharem o mesmo léxico da maioria da população. Em segundo lugar, a despeito da reforma de Coimbra ter sido uma medida significativa para a organização institucional do ensino médico-cirúrgico, ela não foi capaz de consolidar a unificação das práticas médicas em Portugal. De fato, muitos médicos e cirurgiões lusos – e também de outros países europeus - tinham, além de Coimbra, a opção de estudarem em outras universidades, sendo as mais célebres as de Pisa, Bolonha, Paris, Montpellier, Leiden e Edimburgo. Além de cada curso de medicina fundamentar-se sobre um currículo específico, os médicos filiavam-se às correntes teóricas as mais diversas – por exemplo, o mecanicismo, o animismo e o vitalismo. Consequentemente, no discurso médico, distintas concepções de doença e saúde conviviam entre si, o que dificultava o estabelecimento de uma autoridade homogênea e coerente.

1510

A título de exemplo, no supracitado Tratado da Conservação da Saúde dos Povos, Ribeiro Sanches pauta-se tanto em cientistas modernos, quanto em Hipócrates, unindo a teoria da irritabilidade das fibras musculares, de Albrecht von Haller, e a teoria hipocrática dos humores: “[A aguardente] Tomada na quantidade que determinamos fortifica todas as fibras do corpo e principalmente as do estômago, já relaxado nos tempos da calmaria e calor excessivo: embalsama os nossos humores.”.21 Se o médico português dialoga tanto com a ciência moderna, cujas premissas e métodos são assentados no racionalismo e no empirismo, quanto com as teses hipocráticas, isto não indica um abandono de crenças ou mesmo de explanações baseadas no divino. Sanches, por exemplo, discorrendo sobre a corrupção do ar e uma das maneiras de evitá-la, através da utilização de arômatas, afirma que “somente entre os trópicos nascem os aromas e toda a sorte de especiarias: é admirável a providência do Altíssimo que naqueles lugares (...) se geram os mais fragantes aromas, e na maior abundância (...). 22”. No debate específico sobre a relação entre o ar e as enfermidades, Sanches adequa três diferentes perspectivas – a tradicional, a moderna e a religiosa. Gesto imprescindível, identificar as divergências e a coexistência de diferentes teorias no discurso médico setecentista permite ao historiador “des-singularizar” a ciência médica, ou seja, romper com a visão desta como um bloco, que repousa sobre bases sólidas e estáveis. Aqui, cabe retomar a perspectiva epistemológica de Ludwik Fleck, autor que ressalta o dinamismo do processo de construção do conhecimento científico: “Le savoir ne repose sur aucun substrato; les idées et les verités n’existent que grâce à des mouvements et des interactions constants.”23. Para Fleck, posto que a doença, enquanto objeto de estudo, corresponde a um processo complexo, sobre o qual não há um entendimento unânime, o saber sobre ela, a medicina, constitui-se como um emaranhado de teorias e concepções, compartilhadas por diferentes grupos, que podem ser “esotérios” – indivíduos internos à esfera científica – ou “exotéricos” – neste caso, indivíduos externos. As ideias científicas não somente circulam por estes grupos, como também são reinterpretadas e “traduzidas” para outras linguagens. Neste sentido, a reorganização do ensino médico universitário, enquanto iniciativa da Coroa Portuguesa, foi um dos primeiros passos que mirava certo consenso entre os médicos licenciados. Todavia, o processo de institucionalização da medicina acadêmica em detrimento da medicina popular apenas impulsionar-se-ia alguns anos mais tarde, durante o período mariano (1777 – 1792), com a maior intervenção do Estado nos assuntos de saúde pública. Por exemplo, em 1780 a rainha D. Maria I decretara a ampliação das responsabilidades da

1511

Intendência Geral da Polícia - órgão que outrora se ocupava da insegurança nas ruas lisbonenses -, sendo elas: o saneamento urbano, o abastecimento e controle de qualidade dos alimentos, o acompanhamento de surtos epidêmicos, o auxílio aos doentes, o recolhimento das listas dos povos e a qualificação dos agentes da saúde. Trata-se de um momento em que a condenação ao chamado “charlatanismo”, tanto reiterada no discurso médico, passa a ser apoiada pela Coroa, e, mais do que isso, torna-se uma política pública, implicando punições e até mesmo degredo dos “intrusos da medicina e da Cirurgia”, conforme o próprio Sanches designava curandeiros e empíricos.24 Na Europa do Setecentos, a aproximação entre o poder político e a ciência, era vista pelos monarcas segundo uma ótica pragmática. Nas palavras de Robert Fox, as monarquias que incentivaram a atividade científica o fizeram por “(...)a belief in the value of scientific knowledge (…) whose promotion would lend luster to any regime seeking to parade its adjustment, however cautious, to the beneficent forces of enlightenment and modernity.” 25. No caso da ciência médica, a aproximação entre esta e o Estado seria capaz de garantir melhores condições de vida para a população, e, consequentemente, um fortalecimento da Coroa portuguesa, já que, naquela época, a importância dos Estados passou a ser avaliada pela grandeza que seus números demográficos demonstravam.26 Se antes a autoridade médica limitava-se à esfera privada, à assistência destinada exclusivamente ao corpo individual e ao controle do processo patológico, a partir de tal aproximação, a medicina passa a se ocupar do corpo social, a intervir em problemas de saúde pública e a possuir prerrogativas embasadas em medidas do Estado27. Por conseguinte, mais do que uma mera aproximação, a relação entre o campo médico e o campo político torna-se simbiótica, promovendo a reconfiguração tanto de um campo, quanto de outro. A partir de tal relação, ao passo em que o campo político redefine o seu poder, destinado menos ao território e mais à gestão da vida da população, o campo médico, tem garantida a legitimidade de seu saber, complementando-se assim o processo de circunscrição e oficialização da medicina acadêmica em relação à medicina popular 1

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História (Área de Política, Memória e Cidades) da Unicamp e bolsista FAPESP. E-mail: [email protected] 2 MOLIÈRE; HUCHER, Yves (org.). Le malade imaginaire. Paris: Librairie Larousse, 1970. p. 103. “Eles [os médicos] conhecem a grande maioria das humanidades clássicas, sabem falar fluentemente o latim, sabem nomear em grego todas as doenças, defini-las e classificá-las, mas, quanto a curá-las, eles não sabem de nada.” (Tradução nossa). 3

OLIVEIRA, Francisco Xavier de; RAMOS, Vitor (compil.). Cavaleiro de Oliveira: trechos escolhidos. Rio de Janeiro, RJ: Agir, 1968. p. 60 4 PORTER, Roy; VIGARELLO, Georges. “Corpo, saúde e doenças” In: CORBIN, Alain; COURTINE, JeanJacques; VIGARELLO, Georges. História do corpo: Da Renascença às Luzes. Petrópolis: Vozes, 2008. Hipócrates (460 a.C -?) foi considerado o “pai da medicina”, posto que elaborou um conhecimento médico

1512

racional, alicerçado na observação da natureza e destituído de justificativas mágicas ou religiosas. Sua teoria humoral fundamentava-se na relação entre o homem e a natureza. Isto posto, a saúde humana poderia ser afetada simultaneamente por fatores internos – sua constituição física e seu regime de viver – e externos – clima, ar, alimentação, etc. Tais fatores suscitariam efeitos patológicos tanto positivos, quanto negativos, promovendo ou prejudicando o equilíbrio dos humores, componentes fundamentais do organismo. 5 Na bibliografia sobre o tema, encontramos os adjetivos erudita, acadêmica e elitista utilizados para caracterizar a medicina dita “oficial”. Por oposição, os adjetivos popular e paralela são utilizados para qualificar a medicina não-oficial, a qual não se fundamentava em um conhecimento supostamente alicerçado sobre bases racionais e institucionalizado (Universidades ou Escolas de Cirurgia). 6 GRMEK, Mirko (org). Histoire de la pensée médicale en Occident: de la Renaissance aux Lumières. Paris: Seuil, 1995. 7 LINDEMANN, Mary. medicina e sociedade no início da Europa moderna. Lisboa: Replicação, 2002. p. 11 8 LEBRUN, François. Se soigner autrefois: médecins, saints et sorciers aux XVIIe et XVIIIe siècles. Paris: Seuil, 1995, p. 35 9 WALKER, Timothy Dale. Doctors, folk medicine and the Inquisition: the repression of magical healing in Portugal during the Enlightenment. Leiden; Boston: Brill, 2005. P. 117 10 PIMENTA, Tânia. Artes de curar: um estudo a partir dos documentos da Fisicatura-mor no Brasil do começo do seculo XIX. 1997. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciencias Humanas, Campinas, SP. Disponível em: . Acesso em: 02 de setembro de 2015. Pp. 85 - 86 11 SANCHES, Antônio Nunes Ribeiro. Tratado da Conservação da Saúde dos Povos. Covilhã: Universidade de Beira Interior, 2003 [1757]. P. 3. 12 SANCHES, Antônio Nunes Ribeiro. Método para Aprender e Estudar a medicina. 2003. [1763]. 13 ABREU, Jean Luiz Neves .“Ilustração, experimentalismo e mecanicismo: aspectos das transformações do saber médico em Portugal no século XVIII”, publicado na Revista Topoi (São Paulo, v. 8, nº 15, jul.-dez. 2007, p. 80-104). O trabalho de William Harvey (1572 – 1657), De Motu Cordis, em que o autor descreve o sistema circulatório cujo centro é o coração, bomba que estimula todo um sistema de válvulas, é representativo da aquisição de uma nova linguagem nos trabalhos e tratados médicos. 14 PITA, João Rui. medicina, Cirurgia e Arte farmacêutica na reforma pombalina da Universidade de Coimbra, IN: ARAÚJO, Ana Cristina (org.) O Marquês de Pombal e a universidade. Coimbra : Impr. da Universidade, 2000. 15 FOUCAULT, Michel. O nascimento da clinica. 5. ed. Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária, 1998 ; ROSEN, George. Uma história da saúde pública. São Paulo, SP; Rio de Janeiro, RJ: Hucitec: Editora da UNESP: Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, 1994. 16 PORTER, Roy. “Les stratégies thérapeutiques” In: GRMEK, Mirko D. Op. Cit., p. 223. [ Tradução nossa] 17 SANCHES, Antônio Nunes Ribeiro. Apontamentos para estabelecer-se um Tribunal e Colégio de medicina. 2003. [1763]. 18 ABREU, Laurinda. O poder e os pobres: dinâmicas políticas e sociais da pobreza e da assistência em Portugal (séculos XVI – XVIII). Lisboa: Gradiva, 2014. pp. 39 - 161 19 “Médicos, cirurgiões e boticários”, In: PIMENTA, Tânia. Op. Cit. 20 CRESPO, Jorge. A história do corpo. Rio de Janeiro; Lisboa: Bertrand Brasil: DIFEL, 1990. P. 108. 21 SANCHES, Antônio Nunes Ribeiro. Op. Cit. p. 74. 22 Idem, Ibidem. p. 14. 23 FLECK, Ludwik. Genèse et développement d'un fait scientifique. Paris: Les Belles Lettres, 2005 [1935]. P. 94. “O saber não repousa sobre nenhum substrato. As ideias e verdades existem somente graças a movimentos e interações constantes.” (Tradução nossa). 24 SANCHES, Antônio Nunes Ribeiro. Op. Cit. P. 3 25 FOX, Robert. “Science and government” In: PORTER, Roy (org.). The Cambridge History of Science: Volume 4 Eighteenth Century. Cambridge University Press, 2003. p. 107 “(...) uma crença no valor do conhecimento científico (...), cuja promoção daria brilho a qualquer regime, buscando o seu reajustamento, porém de forma cautelosa, através das forças benéficas do iluminismo e da modernidade.” (Tradução nossa). 26 FERRO, João Pedro. A população portuguesa no final do antigo regime, 1750-1815. Lisboa: Presença, 1995. p.15 27

FASSIN, Didier. L'espace politique de la santé: essai de genealogie. Paris: Presses Universitaires de France, 1996.

1513

A imprensa como fonte de pesquisa na reconstrução da trajetória do traficante de escravos Manuel Antonio Victorino de Menezes

Jurama Bergmann Vieira1 Resumo: O presente texto pretende analisar a relevância da imprensa, sobretudo o jornal impresso, enquanto fonte de pesquisas que utilizam uma abordagem micro-histórica. Manuel Antonio Victorino de Menezes, traficante de escravos mais atuante de Desterro, capital da província Catarinense, foi casado teve duas filhas, além de ter tido um filho ilegítimo com uma de suas escravas. Sabemos detalhes de sua vida pessoal e atuação profissional por meio desta fonte que, inclusive, nos fornece informações sobre o “paradeiro” de seu filho ilegítimo. Palavras-chave: escravidão; imprensa; trajetória. Abstract: The present text intends to analyze the relevance of the press, especially the printed newspaper, as a source of research using a micro-historical approach. Manuel Antonio VIctorino de Menezes, the most active Desterro slaver, capital of the province of Santa Catarina, was married, had two daughters, besides having had an illegitimate child with one of his slaves. We know details of his personal life and professional work through this source who even gives us information about the "whereabouts" of his illegitimate son. Key-words: slavery; press; trajectory.

Escravos Quem tiver crioulos de 10 a 26, e crioulas de 8 a 14 annos de idade, se os quiser vender por muito bom preço, sendo sadios e vistosos, dirija-se ao Largo da Praça n. 24, sobrado, aonde se comprão estes escravos para seguirem para o Rio de Janeiro. Victorino de Menezes.2

Nos jornais que circulavam pelo Brasil durante o século XIX é fácil encontrarmos anúncios de compra e venda de escravos. O trecho exposto acima data de 21 de julho de 1868, onde Manuel Antonio Victorino de Menezes anuncia, no jornal O Despertador, a compra de cativos para serem revendidos no Rio de Janeiro, confirmando sua atuação no tráfico interprovincial. Victorino de Menezes, como o chamarei neste texto, atuou no comércio envolvendo a região Sul e Sudeste do Brasil, tornando-se o traficante mais atuante da capital da província de Santa Catarina. Afirmaram esta atuação, e posição, os conhecidos historiadores catarinenses Oswaldo Cabral e Walter Piazza3 e, posteriormente, os estudos de Rafael da Cunha Scheffer que analisou anúncios de compra e venda de cativos e procurações em nome de Victorino de Menezes comparando-o com outros comerciantes4.

1514

Rafael da Cunha Scheffer, ao estudar o tráfico interprovincial de cativos entre as regiões Sul e Sudeste do Brasil deu atenção, também, aos comerciantes envolvidos nessa atividade com o propósito de compreender como atuavam no mercado, investigar sua posição social e relações que estabeleciam dentro da sociedade em que viviam. Já em sua dissertação de mestrado, a análise feita de Victorino de Menezes é profunda e Scheffer apresenta sua trajetória. As fontes utilizadas pelo autor são diversas, dentre elas os jornais e periódicos forneceram importante contribuição, principalmente a partir do cruzamento com outras fontes como os registros de movimentação do porto de Desterro, fontes judiciais, registros cartoriais de compra e venda de cativos, procurações dentre outras. O meio encontrado por Victorino de Menezes para divulgar seu negócio, bastante lucrativo, foi o anúncio em jornais.

A imprensa enquanto fonte A imprensa e seus múltiplos meios de comunicação têm permitindo aos historiadores importantes avanços em pesquisas, mas, apesar de hoje seu uso estar disseminado entre os trabalhos acadêmicos permitindo a abordagem de temas e períodos variados sua utilização, enquanto fonte de pesquisa foi, por muito tempo, condenada por acreditar que lhe faltava credibilidade. Sabemos o quanto a imprensa detém poder, tanto econômico quanto político, além de ter influencia no espaço público. Segundo Heloísa Cruz e Maria do Rosário Peixoto5, isso já acontecia desde os primeiros jornais. Embora muitas vezes a imprensa tente ser imparcial ela é capaz de mobilizar opiniões e consensos de acordo com seus próprios interesses. Mas, com o movimento da Escola dos Annales ou ainda posteriormente, com a chamada Nova História, o interesse por novas fontes surgiu, juntamente com novos métodos de pesquisa. Dentro disso podemos citar o olhar “micro”, onde a redução das escalas de observação e pesquisa permitiram aos historiadores acompanhar diferentes indevidos dos mais diversos estratos sociais, chegando a novas conclusões. Diante essa nova onda, o receio em utilizar a fonte impressa foi sendo abandonado e ela surge como uma fonte rica e diversificada de conhecimento que possibilita novos estudos ao historiador. A pesquisadora Tânia Regina de Luca em A história dos, nos e por meio dos periódicos, escreveu sobra a utilização da imprensa enquanto fonte histórica, apresentandonos indicações de como melhor trabalhar com esta fonte. Segundo a autora, o pesquisador que opta em trabalhar com ela deve ter a preocupação em compreender todo o seu processo de construção, ou seja, analisar a escrita, quem escreve, para quem o texto está sendo construído,

1515

quem são os indivíduos que formam o grupo responsável pelo editorial, de que maneira os jornais chegam até seus leitores e, quem são esses leitores. A história está implícita em cada um desses estágios6. No trabalho desenvolvido por Humberto Machado, sobre o movimento abolicionista a partir da atuação de José do Patrocínio na imprensa carioca, nos fica fácil perceber cada um desses ditos “estágios” da imprensa nos informando sobre o período estudado 7. Embora a discussão da obra seja o movimento de abolição na Corte, diversos aspectos do período de escravidão de todo o Brasil pode ser observado a partir da análise da imprensa. Além de acompanharmos a atuação do movimento abolicionista e suas nuances, esta fonte nos fornece ainda indícios de como eram comercializados os cativos, quais suas atividades profissionais desenvolvidas, tipos físicos preferidos, preços e, até mesmo, estratégias de sobrevivência, como as revoltas, fugas e tentativas de suicídio, constantemente noticiadas. No caso do tráfico interprovincial, nos são apresentados os comerciantes nele envolvido, de que maneira atuavam e quais as redes de sociabilidade que faziam parte. A reconstrução da trajetória de Victorino de Menezes teve a imprensa como forte aliada. Tanto os negócios empreendidos pelo traficante mencionado como detalhes de sua morte, foram noticiados em jornais de Desterro (SC) e de Campinas (SP). Foi-nos possível ainda encontrar informações sobre seu filho ilegítimo, Hercílio Victorino de Menezes, nos levando a outros caminhos e fontes, permitindo então que esta pesquisa tenha continuidade.

Manuel Antonio Victorino de Menezes: o mais importante comerciante de escravos da cidade de Desterro

Em testamento realizado no ano de 1874, Manuel Antonio Victorino de Menezes declara ser natural da Província do Rio de Janeiro e filho de pais incógnitos. Segundo Rafael Scheffer, os primeiros registros de Victorino em Desterro são encontrados nos anúncios de jornais da cidade, onde detectamos seu envolvimento com o tráfico de cativos entre as províncias brasileiras. O tráfico interprovincial já era realidade antes mesmo da proibição do tráfico atlântico em 1850, entretanto, foi a partir dessa data que suas atividades ganharam maior impulso, alcançando seu ápice durante a década de 1870 quando a mão de obra cativa estava sob risco de extinção, justamente no momento em que as lavouras de café da região Sudeste passavam por um período de expansão. Nesse momento as regiões Sul e Nordeste do Brasil

1516

tornaram-se exportadoras de cativos a fim de que a falta de mão de obra no Sudeste pudesse ser suprida.8 Algumas circunstâncias tornavam a venda de cativos necessária, o que contribuiu para o tráfico interprovincial. Podemos, como exemplo, citar dívidas contraídas pelo senhor, situações envolvendo inventários e as partilhas de bens, escravos doentes ou em idade já avançada, que traziam mais despesas que lucros ao seu senhor. A venda dos escravos poderia ainda possibilitar investimento em outra atividade econômica com o valor que se arrecadaria dessas vendas. Na elaboração de sua dissertação, Rafael Scheffer encontrou alguns anúncios curiosos: “Na casa n. 1 da rua do Ouvidor há para vender uma escrava, que pede para ser vendida”.9E outro: Vende-se uma escrava sadia, sem vícios, bonita figura, sabendo lavar, engomar e cozinhar, e o mais serviço de casa, por ser muito fiel, o motivo da venda he por ella não querer servir; para tratar com o abaixo assignado e para vel-a na Cadeia d’esta Cidade.10

Com estas citações podemos notar a imprensa nos trazendo informações curiosas sobre o período de escravidão no Brasil. O anúncio acima mostra que a iniciativa de venda parece mesmo ter partido da própria cativa. Já o segundo anúncio apresenta uma cativa dotada de inúmeras qualidades e, mesmo sendo descrita como “muito fiel”, o motivo de sua venda é por ela “não querer servir”. O jornal foi um importante meio de divulgação do século XIX. Victorino

de

Menezes ao anunciar que comprava cativos, ele chamava a atenção daqueles senhores que buscavam se desfazer dos seus escravos por questões já comentadas anteriormente. Agindo dessa maneira os comerciantes além de ajudarem os senhores que queriam vender seus escravos, ainda contribuíam em suprir a mão de obra da região Sudeste, sendo os responsáveis por garantirem essas transferências que lhe traziam grande lucro. Quanto ao tipo de cativos que eram comercializados pelo tráfico interprovincial, a preferência estava nos jovens do sexo masculino, pois seriam os mais adequados para desempenharem as atividades da lavoura de café, concentrando nas regiões exportadoras de escravos, grande número de mulheres e idosos. Assim como o tráfico atlântico, para o tráfico interprovincial também foram criadas leis e impostos na tentativa de extingui-lo, porém muitas dessas medidas foram burladas pelos comerciantes. Parlamentares e outros indivíduos expressaram seu desgosto em relação à exportação de cativos da província catarinense apresentando projetos que pudessem coibir tal

1517

atividade, tentando impedir, dessa forma, a extinção de escravos na região. Logo, os comerciantes que eram vistos como corajosos passaram a sofrer certa discriminação, inclusive na imprensa.

Especuladores que fazem commercio com carne humana, commercio que nem é honroso, nem humanitário para quem dele usa. Não é honroso, Sr. Presidente, por que esses especuladores procurão sempre illudir as repartições fiscais, em prejuiso de nossas rendas; não é humanitário porque com ele, separão-se os filhos dos pais, os irmãos dos irmãos, entes que na faília são bem caros; separação Sr. Presidente, que muitas vezes equivale a morte, pó que esses entes jamais se avistam. (O Sr. Deputado Caldas: apoiado, muito bem.)11

Esta foi a fala do deputado João José Ribeiro, noticiada no jornal O Conservador, tendo como intuito, lançar lei para proibir a saída de cativos da província de Santa Catarina.

Estes assim seduzidos começão por desagradar os seus senhores tornando-se malandros e insubordinados, de modo que os senhores para não se encommodarem mais com os escravos, visto que eles não lhes querem mais obedecer, vêem-se na necessidade de os vender: então o agente tem conseguido seu intento: os escravos vai logo parar nas mãos desses especuladores que ou mandão ou vão com eles barra fora em procura dos mercados do Rio de Janeiro ou S. Paulo, onde os vendem por bom preço.12

A partir de 1880 o tráfico interprovincial entrou em declínio e, no ano de 1885, uma lei o extinguiu definitivamente. Apesar de tais declarações terem sido divulgadas pela imprensa, o comércio foi responsável em arrecadar uma boa quantia monetária para a província de Santa Catarina, pois cada cativo que era exportado gerava uma taxa de, mais ou menos, 30 mil réis além de contribuir para o acúmulo de riquezas dos comerciantes que com ele se envolveram. O cruzamento de fontes como o jornal e seu processo de inventário, nos permite conhecer mais sobre Victorino de Menezes que se beneficiou com este comércio interprovincial. O traficante de escravos Victorino foi casado com D. Izabel Francisca de Menezes com quem teve duas filhas: Maria, que ele declara já ser falecida quando realizou seu testamento no ano de 1874, e Leonor, casada com Sebastião Pereira da Silva. Menezes declara que sua esposa e filha estão no Espírito Santo, no município de Itapemirim. Além de ter comercializado cativos, Victorino fora também senhor de escravos. Em seu testamento menciona possuir quatro: dois que, no momento em que redigiu o testamento estavam na companhia de sua esposa no Espírito Santo, Ignácio e Mariano; outros dois que estavam com ele em Desterro, Manoel e a parda Maria, já liberta por ele sob condição. Maria é a única dentre os cativos que recebeu alforria de seu senhor.

1518

O título de liberdade de Maria foi realizado em 22 de abril de 1873; a escrava parda é descrita como solteira, de mais ou menos dezesseis anos de idade, e ainda sem filhos. Victorino fala de seus bons serviços prestados e dá a ela liberdade condicional: deveria servir ele por mais cinco anos. Ele especifica que, caso ele morra durante esse período de condição, suas herdeiras não poderão questionar esta liberdade concedida.13 Maria vivia na companhia de Victorino, e talvez fosse responsável pelas atividades da casa. A liberdade de Maria foi dada próximo ao momento em que a família do traficante decide se transferir para Desterro. Victorino de Menezes mencionou no documento que a escrava prestava bons serviços, o que também poderia influir na decisão do traficante em conceder liberdade àquela cativa, mas sabemos que Victorino teve com ela um envolvimento extraconjugal, do qual nasceu seu filho ilegítimo Hercílio Victorino de Menezes. Além da certidão de batismo comprovar a paternidade de Victorino de Menezes, doações feitas por ele ao menor nos mostram a estreita ligação que envolvia pai e filho, muito embora o menino nunca tenha sido legitimado por seu pai.

Certifico que a folha 85 do livro 23 de batismo desta paróquia acha assento seguinte Hercílio aos trinta de dezembro de 1875 nesta matriz batizei solenemente Hercílio nascido nesta paróquia a 13 de julho do ano passado, filho natural de Manuel Antonio Victorino de Menezes natural do Rio de Janeiro e Maria Margarida Duarte Menezes, natural desta província. Neto materno e paterno de avós incógnitos. Foram padrinhos Nossa Senhora do Parto e o senhor Francisco Duarte Silva do que fiz este termo. Vigário Padre Sebastião Antônio Martins. Nada mais se contém no referido assento ao qual me reporto e afirmo in pode perochim. Florianópolis, 12 de julho de 1895.14

Embora a atividade desse comerciante pudesse ser muito lucrativa ela apresentava alguns riscos como, por exemplo, o pagamento por seus serviços já que muitas vezes ele era feito a crédito. Victorino de Menezes por diversas vezes viajou para fazer cobranças. Após uma viajem a cidade de Campinas, sua família estranhou a demora de seu regresso e comunicou seu desaparecimento no ano de 1884, solicitando aos jornais, tanto de Desterro quanto de Campinas, que noticiassem o sumiço.

Desapparecimento Pedem-nos que chamemos a atenção das autoridades para o desaparecimento de Manuel Antonio Victorino de Menezes, que d’aqui sahiu, há quatro mezes, para São Paulo. Esperamos que a ilustre imprensa paulistana tome em consideração o facto com a sua publicidade. (O Conservador, 17/01/1885).15

1519

A partir de então teve início grande investigação sobre o paradeiro de Victorino de Menezes, com início no mês de outubro de 1884, findando com a descoberta de seu assassinato no ano seguinte. A imprensa paulista e catarinense deram ampla cobertura sobre o caso. Depoimentos foram colhidos, seu testamento divulgado no jornal. Foi através de depoimentos colhidos e divulgados nos jornais que temos informações quanto à aparência e personalidade de Victorino. Mais uma vez, o jornal nos fornecendo importantes informações.

...era Victorino de Menezes de estatura um pouco acima do regular, busto algum tanto curvo e de presença agradável. Tinha fronte espaçosa, rosto oval, nariz levemente aquilino, olhos castanhos e tez morena. Usava cabelo curto, bigode e cavaignac, o que lhe dava certa aparência militar. Os fios do cabelo eram grisalhos e os das barbas quase todos brancos, pelo que costumava Victorino pinta-los a miúdo. Nunca trazia consigo armas, confiando em sua robustez, no caso de ser preciso defenderse de qualquer agressão. Era afável no trato, denunciando bonhomia [?] e gostava de conversar, manifestando então humor alegre. Possuía alguns conhecimentos e apreciava muito observações astronômicas. Na sua casa em Santa Catarina existe um telescópio de que ele fizera aquisição, afim de contemplar os astros. Muito metódico em todos os atos da sua vida e pontual em satisfazer as suas dividas, incomodava-se sempre que era forçado a alterar os seus hábitos ou quando alguém deixava de solver á risca os compromissos que com ele tinha. Quando algum devedor deixava de pagar-lhe o débito, preferia resolver imediatamente as dificuldades, recebendo qualquer quantia a uma espera prolongada, ou a recorrer aos meios judiciais.16

Após todo o processo de investigação e repercussão nos jornais, o crime foi esclarecido: Victorino de Menezes fora assassinado cruelmente por João Pinto de Almeida Junior, funcionário do Banco Mercantil de Santos, última pessoa a estar com Victorino, segundo a investigação. Ele foi morto a golpes de martelo e seu corpo jogado à latrina da residência de Almeida Junior. Após reclamações feitas por vizinhos sobre mau cheiro, uma busca foi feita na casa do suspeito, onde encontraram o defunto. O reconhecimento do corpo de Victorino de Menezes foi feito por seus sócios e por um joalheiro, visto que junto ao corpo estava um anel que a vítima havia comprado. A crueldade do crime deixou todos assustados, ganhando dessa forma, grande espaço de divulgação nos jornais de Desterro, Campinas e, chegando inclusive, a ser noticiado na Corte. Almeida Junior foi preso na capital paulista e julgado em Campinas, mas os reais motivos desse crime não nos são conhecidos.

A imprensa ajudando a reconstruir a trajetória do filho ilegítimo de Victorino de Menezes Assim como os jornais foram importante fonte na reconstrução da trajetória do traficante de escravos Victorino de Menezes, esta mesma vêm nos dando valiosas pistas para sabermos mais sobre seu filho, Hercílio Victorino de Menezes. Documentos nos mostram que o menor residia na Corte em

1520

companhia de seu tutor, José Delfino dos Santos. Em buscas feitas pelos jornais cariocas sabemos que Hercílio alistou-se no exército de Petrópolis, no ano de 1893. Anos depois ele anuncia que vende folhas de fumo, também no Rio de Janeiro. Embora a pesquisa sobre Hercílio ainda esteja na fase inicial, mais uma vez, a imprensa nos fornece importantes indícios sobre sua trajetória, levando-nos à novas fontes e análises. Esse olhar “micro” lançado sobre o caso nos possibilita compreender melhor a experiência de indivíduos que tiveram sua vida pautada, de alguma forma, na escravidão, em especial nos anos finais da mesma e no período pós-abolição. Este caso, permite-nos ainda, refletir sobre o comércio de cativos envolvendo as províncias brasileiras e conhecer mais da história de Desterro já que, por muito tempo, a historiografia não considerou a presença de africanos e seus descendentes nesta região. Podemos refletir também sobre os filhos ilegítimos e suas possibilidades para aquela sociedade patriarcal e excludente.

1

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense sob a orientação do Prof. Dr. Jonis Freire. E-mail: [email protected] 2

O Despertador, Desterro, 21 de jul. 1868. p. 4. Disponível em Hemeroteca Digital < http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=709581&pasta=ano%20186&pesq=Vict orino%20de%20Menezes>. Acesso em 21 de jul. 2014. CABRAL, Oswaldo R. Nossa Senhora do Desterro. V 2 – Memória. Florianópolis: UFSC, 1972. PIAZZA, Walter F. O escravo numa economia minifundiária. São Paulo: Resenha Universitária, 1975. 3

4

SCHEFFER, Rafael da Cunha. Comércio de escravos do Sul para o Sudeste, 1850-1888: economias microrregionais, redes de negociantes e experiência cativa. 2012. 329p. Tese (Doutorado em História). Universidade Estadual de Campinas, Campinas. CRUZ, Heloisa de Faria.; PEIXOTO, Maria do Rosário da Cunha. “Na oficina do historiador: conversa sobre história e imprensa”. Projeto História – Revista do Programa de estudos pós-graduados de História. v. 35. PUC- São Paulo, Ago-dez. 2007. p. 253-270. 5

LUCA, Tania Regina. “A história dos, nos e por meio dos periódicos”. In: PINSKY, Carla. (org). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2005. 6

7

MACHADO, Humberto F. Palavras e brados: José do Patrocínio e a imprensa abolicionista do Rio de Janeiro. Niterói, Editora da UFF, 2004. 8

SCHEFFER, R., Op. Cit.

9

BPESC. O Conservador, n. 373, 16 de novembro de 1855. Apud SCHEFFER, R., Op Cit. p. 67. 10

BPESC. O Conservador, n. 350, 21 de agosto de 1855. Apud Ibidem, p.66.

11

UFSC/BU. O Conservador, n. 321, 12 de abril de 1876. Apud SCHEFFER, R. Op. Cit.

1521

12

UFSC/BU. O Conservador, n. 321, 12 de abril de 1876. 167. Apud SCHEFFER, R. Op. Cit. p. 79. 13

Cartório Kotzias – Florianópolis, SC. Livro de notas n. 35 (1872-1873), fls 121.

14

Grifo meu; na transcrição do documento não utilizei o português da escrita original. Inventário postmortem. Inventariada: Maria Margarida Duarte. Juiz de Órfãos e Ausentes da Cidade do desterro, 1890. Fundo: Documentos judiciais não catalogados. Museu do Judiciário Catarinense, fls. 186. 15

SCHEFFER, Rafael da Cunha. Victorino de Menezes: um comerciante de escravos em Desterro. In: MAMIGONIAN, Beatriz; VIDAL, Joseane (org). História Diversa: africanos e afrodescendentes na Ilha de Santa Catarina. Florianópolis: Editora da UFSC, 2013. p. 177. 16

AEL. Diário de Campinas, 9 de Abril de 1885 Apud Ibidem, p. 291-292.

1522

O 1º Concurso literário da revista Mensagem: o discurso de memória e identidade nos versos de seus vencedores The 1st Contest literary magazine Mensagem: discourse of memory and identity in the verses of the winners Karina Helena Ramos Resumo Embebida pela lógica do projeto do Movimento dos Novos Intelectuais de Angola (MNIA), a revista Mensagem serviu como instrumento de construção de uma memória que buscou refutar a imagem reificada do negro angolano balizada pela literatura colonial salazarista. Neste artigo, refletiremos acerca do projeto mensageiro de desvelamento de uma nova identidade cultural angolana tendo em vista os poemas e contos vencedores do 1º Concurso Literário Bienal (1951) promovido pela Associação dos Naturais de Angola em conjunto com a direção da revista. Palavras-chave: Revista Mensagem; literatura; memória; identidade.

Abstract Imbued with the logic of the New Intellectual Movement of Angola (MNIA) project, Mensagem served as a tool to build a memory that sought to refute the reified image of Angolan black demarcated by Salazar colonial literature. In this article, we reflect on the messenger project of unveiling a new cultural identity considering the poems and tales winners of the 1st Biennial Literary Contest (1951) promoted by the Association of Natural Angola together with the direction of the magazine. Keywords: magazine Mensagem; literature; memory; identity.

*** Nalguma dessa poesia, de autores vários, havia uma matéria insidiosa e que o poder temia. [...] porque confirmava uma suspeita terrível: a de que, para além de uma vontade angolana, levada à sua extrema consequência com o levantamento armado, havia uma alma angolana. E contra essa não tinha defesa. Para quem a temia, era a derrota decretada em verso.

Ruy Duarte de Carvalho

1523

⃰Mestranda em História Social pelo Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atua no campo da História Intelectual na África. Bolsista do CNPq.

Introdução Sob responsabilidade do departamento cultural da Associação dos Naturais de Angola (ANANGOLA), Mensagem – A Voz dos Naturais de Angola (1951-1952) foi conceituado um periódico paradigmático no campo cultural angolano ao propor uma renovação da concepção de poesia, ambicionando reeguer o panorama cultural de Angola. Embora nomeadamente de cunho poético, apresentou uma abordagem heterogênea em que veicularam desde informes a respeito da situação médico-assistencialista até ensaios sobre linguística bantu, outrossim oferecendo a publicação de poesias e contos que, predominantemente, incitavam reflexões sobre Angola e demais países do continente africano. Seu destaque no campo cultural, à parte de qualquer oficialidade, se deveu à colaboração de intelectuais de renome no cenário africano, tais como Viriato da Cruz, Mário Pinto de Andrade, Agostinho Neto, Alda Lara, António Jacinto, Óscar Ribas, Mário António Fernandes de Oliveira, José Craveirinha, Bandeira Duarte, António Neto, Noémia de Sousa, José Mensurado, Ermelinda Pereira Xavier, Eduardo Castelbranco, entre outros. Outrossim, por apresentar obras de intelectuais em destaque no cenário internacional. Engendrada em uma das encruzilhadas da trajetória colonial, cada entrega de Mensagem, a priori, de periodicidade trimestral, girava em torno de 15 páginas e, conquanto – em virtude das deficiências tipográficas de Angola –editada e impressa em Lisboa, era genuinamente produzida em terras africanas. Apesar de seu precipitado encerramento por força da censura oficial do governo salazarista1, o nível do material publicado é delator da fecunda atividade de seus colaboradores que, em tom enaltecedor, consideravam-na o “marco iniciador de uma Cultura Nova, de Angola e por Angola, fundamentalmente angolana, que os jóvens da nossa Terra estão construindo”2.

1

A censura prévia sofrida por Mensagem esteve a cargo da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE). Constituía a polícia política do Estado Novo salazarista, um forte órgão de repressão oficial fundado no ano de 1945. É apenas a partir da segunda metade da década de 1950 que a PIDE se instala em Angola, aumentando com isto seu poder de controle, haja vista o acirramento da censura prévia ao material de imprensa a partir de 1957. Grosso modo, trata-se de um organização de paramilitares, um aparelho depressivo própria da estrutura do Estado Novo salazarista. 2 Mensagem – A Voz dos Naturais de Angola, Luanda, ano 1, julho/1951, nº 1, p. 2.

1524

Diante disto, cabe-nos apenas a concordância com Mário Pinto de Andrade em perceber a revista Mensagem como parte integrante senão fundamental de uma década de culminante atividade intelectual. A virada cultural angolana dos anos 50 foi alavancada pela eclosão de um movimento e, neste sentido, Mensagem se inscreveu em um cenário e como força motriz de ações dentro deste furação que deflagraria a tomada de consciência pelos angolanos. Apresentando Viriato da Cruz como mentor e o lema “Vamos descobrir Angola”, insurgia em Luanda, no ano de 1950, o Movimento dos Novos Intelectuais de Angola (MNIA). Este movimento literário “original no âmbito das literaturas africanas” (ERVEDOSA, 1979, p. 105) empreendeu a publicação da primeira “Antologia dos novos poetas de Angola”, no seu ano inaugural, e promoveu a reunião de seus integrantes em torno de um centro difusor editorial promissor: a revista Mensagem. Identificada como fundamental no processo de racionalização da identidade cultural angolana (SERRANO, 2002), podemos previamente afirmar que Mensagem esteve orientada pelas propostas de um projeto literário cuja premissa capital era revelar “uma angolanidade subjacente”3. Revelando a primeira face do processo de angolanização da literatura (CHAVES, 2005, p. 71), o MNIA buscou, em meio a uma profusão de atividades político-culturais, “descobrir” Angola. A volta ao passado, sem pretensões imaculadas, pretendia revelar um passado no qual fosse permitido ser o que se era. O desvelo não pretendia revestir a cultura angolana de uma pureza de costumes e de uma exaltação ensimesmada, mas sim revogar a lógica da exclusão enquanto regra. De acordo com a historiografia recente, foram esses Novos Intelectuais que aqui aproximando-os de Fanon - perceberam a armadilha imobilizante do colonialismo: a cegueira sobre o que se é e sobre o que se pode ser. Envolvidos pelo MNIA, os mensageiros4, a priori, buscaram posicionar-se contra o sistema de valores culturais vigente e, neste sentido, versariam sobre essa condição. Naquela dada conjuntura, o reconhecimento dessa condição pressupunha um processo de descolonização do saber na medida em que suscitaria o desvelamento das estratégias do poder colonial em

3

Aqui se compreende o conceito de angolanidade à luz de sua definição etimológica, ou seja, significando valores ou qualidades angolanas. Para um aprofundamento acerca do mesmo, as discussões propostas por Patrício Batsîkama são valiosas. Cf. BATSÎKAMA, Patrício. Leitura antropológica sobre angolanidade. SANKOFA: Revista de História da África e de Estudos da Diáspora africana, nº 11. 4 Tomamos a liberdade de denominar os colaboradores de Mensagem de “mensageiros”. Isto se deve a profusão de nomenclaturas para a geração intelectual de 1950. Com os “mensageiros”, portanto, evitamos generalizações, definindo pontualmente sobre quais membros dos MNIA estamos a analisar.

1525

Angola. Arraigado material e simbolicamente, o poder colonial poderia portanto ser desmantelado também através das Letras na medida em que contestasse as estratégias de uma política de despersonalização cultural. Neste sentido, compreende-se como o movimento foi resultante de uma combinatória cultural sob o prisma do processo histórico angolano (WHEELER, op. cit.). Ao admitir o encontro colonial, o sincretismo dos mensageiros foi uma resposta à multiplicação das formas de expressão que por eles, sim, poderiam ser manejadas em função do seu próprio projeto de renovação cultural. A revogação da exclusão como regra pretendia romper com a lógica colonial da inferiorização tanto quanto permitir que este raciocínio de superação lhes permitisse o diálogo com propostas políticas e estéticas advindas dos quatro ou mais cantos do mundo. Apesar dos contrapontos que isso possa suscitar, foi embebido pela lógica do MNIA que o projeto da revista Mensagem pretendeu revogar a condição imposta pelo colonialismo. Ao resistir à diluição de sua identidade cultural em um momento de reorientação do discurso oficial, Mensagem dedicou-se a construção de uma literatura “autônoma”, manifestando-se como um potencial lugar de resistência no processo de luta contra manipulações exercidas através do universo simbólico. Liberdades à parte, no entanto, há de se pontuar que Mensagem deve ser percebida também como fruto da ANANGOLA. O percurso desta pode, a priori, oferecer indícios sobre a maneira através da qual foi produzido e recebido o discurso dos mensageiros. Diferentemente de sua fase incial, foi na década de Mensagem que a Associação alargou sua perspectiva em um movimento de dentro para fora. De acordo com o estudo empreendido por Bosslet (2013), a Associação funcionou como espaço de sociabilidade permissivo a ideias nacionalistas e de independência. Esta virada pôde ser observada ao longo dos números de Mensagem, especialmente se observadas as estratégias de ação declaradas no programa da revista. Os objetivos aclarados no programa de Mensagem indubitavelmente ratificam a tônica integradora e mobilizadora a fim de alargar sua base – e com base –, tais como a realização de uma campanha de alfabetização das massas indígenas, a fundação de escolas primárias e técnicas; criação de bibliotecas; etc. Apesar da heterogeneidade da Associação e de ter sido acusada, especialmente a partir da luta de libertação, de uma postura colaboracionista com o colonizador, a revista por ela

1526

publicada traz indícios da luta contra o colonialismo através do campo literário 5. Mensagem, enquanto responsabilidade de seu departamento cultural, buscou valorizar os poetas naturais de Angola, abrindo espaço não apenas para aqueles renomados, mas também para os novos poetas que despontavam. Evidência da preocupação com a gestão de uma angolanidade é o concurso literário bienal apoiado pela ANANGOLA, levado a cabo ao longo do ano de 1951. O número triplo de Mensagem, publicado no seguinte ano, é composto majoritariamente pelo resultado do mesmo. Não obstante as críticas técnicas realizadas pelo júri, os perfis dos competidores – uma espécie de prólogo das obras vencedoras – demonstram a intencionalidade de valorizar o crescimento artístico daqueles que viriam a fomentar a nova cultura de Angola. O 1º Concurso bienal de literatura Conforme indicado no programa da revista, o 1º Concurso bienal de literatura foi realizado entre os dias 1 e 4 de agosto de 1951. Embora o resultado tenha sido consagrado no Sarau um mês após a realização do concurso, a publicação das obras premiadas ocorreu no número triplo de Mensagem, em 1952, em função dos inúmeros impasses tipográficos de Angola. Considerado exitoso não apenas pelo número de participantes – 28 em prosa e 30 em verso –, mas também pela suposta “revelação de novos valores”,6 o concurso compôs o conjunto expressivo de realizações artístico-cultural empreendido por Mensagem, cujo um dos objetivos assumidos era a correção de hábitos mentais defeituosos para que fosse concebida “a verdadeira Cultura Angolana”. Diante disto, o material selecionado pelo concurso é aqui entendido tanto como um instrumento quanto como uma das formalizações do processo de construção de memória empreendido pelo projeto dos mensageiros, podendo assumir um “lugar de memória”7 não apenas pela sua institucionalidade, mas pelo sentido que lhe fora atribuído.

5

Esse comportamento não é percebido exclusivamente na revista Mensagem. O Jornal de Angola, periódico inaugurado em 1955 e também sob responsabilidade da ANANGOLA seguiu essa mesma orientação. Para mais ver o trabalho elaborado por BOSSLET. Cf. BOSSLET, Juliana. A cidade e a guerra. Relações de poder e subversão em São Paulo de Assunção de Luanda (1961-1975). Rio de Janeiro, 2014, 263p. Dissertação (Mestrado em História). Programa de pós-graduação em História, Universidade Federal Fluminense, 2014. 6 Mensagem – A Voz dos Naturais de Angola, Luanda, ano 1, julho/1952, nº 1, p. 2. 7 Conceito cunhado por Pierre Nora. Cf. NORA, Pierre. “Entre memória e História: a problemática dos lugares”. Projeto História 10 (1993), pp. 7-28.

1527

Neste sentido, o concurso empreendido por Mensagem serviu como um canal aberto, uma escuta àqueles que antes não puderam ser ouvidos, auxiliando na percepção dos elementos que naquele momento constituíam o imaginário angolano. Isto quer dizer que ele funcionou como mais um das ações do planejamento de reorganização da memória perante o vasto “campo de possibilidades” de seus elaboradores. Destarte, levando-se em conta não apenas a censura oficial, mas aquela exercida pelo júri, o material do concurso pode dimensionar o espaço de negociação da realidade entre diferentes atores sociais. Intersubjetivamente, a exposição das 12 obras premiadas – entre contos e poesias – indicaria, portanto, a articulação das aspirações dos indivíduos que participariam de todas as instâncias deste processo. Haja vista a necessária resposta às demandas de um presente de convulsão políticosocial, claro está que este processo de seleção se deu em disputa, posto que a memória funciona como um propulsor dos sentimentos de identidade e pertencimento ao brindar noções de continuidade, coerência e consequente coesão. Esta memória, portanto, haveria de ser seletivamente construída de forma que perpetuasse valores compatíveis com os pressupostos de uma nova cultura angolana (POLLAK, 1992). Projeto, memória e identidade entre críticas e premiações Realizado o esquadrinhamento do que pretendeu ser o projeto dos mensageiros, nos ateremos à análise das obras vencedoras, devidamente seccionadas nas duas categorias determinadas pela acta do concurso. Aqui, para além de perceber o sentido dos versos louvados pelos mensageiros – sem perder de vista a noção de projeto à qual nos vinculamos –, a relevância do parecer crítico dos jurados não deverá ser negada. Embora majoritariamente nãocolaboradores efetivos de Mensagem, os quatro jurados foram, a priori, admitidos pelo periódico e pela direção da ANANGOLA como hábeis na avaliação das obras competidoras. E isto não deve ser ignorado. A incipiência da pesquisa não nos permite explicar, por ora, a exigência em se expôr um parecer crítico incisivo. Tampouco podemos afirmar as razões pelas quais o júri não foi composto de maneira integral por colaboradores do periódico8, excetuando-se a hipótese do imperativo ético de isenção, de imparcialidade nas avaliações.

8

O júri era composto pelos portugueses Dr. João de Barros, Augusto Casimiro, Julião Quintinha; e por Lília da Fonseca, única angolana e colaboradora de Mensagem.

1528

Diante disto, perceber com quais fragmentos foi construída a memória para a nova identidade cultural angolana, tal como estar atento à maneira como foi recebida essa memória torna-se – apesar de e admitidas as nossas falhas – fundamental. Os poemas Comecemos, então, pelo primeiro grande valor de Angola. Mário António Fernandes de Oliveira foi nomeado não apenas o melhor poeta do biênio, mas o vencedor do terceiro lugar em poesia, além de receber uma menção honrosa. O jovem angolano de 17 anos foi considerado, e não é de se espantar, como a revelação do biênio. Ainda de acordo com o parecer do júri, apesar das deficiências técnicas, a obra de Oliveira é “liberta de formalismo rígido” 9, sendo comparável a poetas como Viriato da Cruz e Agostinho Neto. “Poesia”, o primeiro lugar na categoria, tem como tema central o passado da escravidão. De estrofe em estrofe, através do confronto entre o eu-lírico lírico e uma ex-escrava negra, Oliveira revela um passado forçosamente esquecido, silenciado. Esperando ser compreendida pela tristeza de seus olhos, a ex-escrava traduz o indizível de um passado entre viagens transatlânticas e maus tratos físicos. O eu-lírico, por sua aparente sensibilidade, apreende e toma consciência da necessidade de pronunciamento sobre o tema, demonstrando a intenção de depuração sobre esse passado trancafiado nos porões da história de Angola. Revelada através da memória da ex-escrava, o poema transparece o desconforto e arbitrariedade da condição e, muito embora o eu-lírico não tenha sofrido – por uma diferença geracional ou social – os males físicos, morais e sociais daquela realidade, demonstra-se solidário à situação: Os seus olhos tinham uma expressão parada, e eu vi que se fixavam no passado [...] /E vi... e vi filas de escravos no sertão, e vi negros chorando no porão do negreiro./[...] E os meus lábios se abriram, temerosos, para contar a grande história, a história triste...e contei.../Então vi que ela tudo sabia e que o que eu sabia de ter lido ela tinha gravado em sua carne! 10

A partir do trecho selecionado e da perspectiva analítica adotada, percebe-se a interface entre dois elementos constitutivos da memória: os acontecimentos vividos pessoalmente e aqueles vividos por um coletivo ao qual o eu-lírico, no caso, sente pertencer. Há um fenômeno,

9 10

Mensagem – A Voz dos Naturais de Angola, Luanda, ano 2, out/1952, nº 2-4, p19. Mensagem – A Voz dos Naturais de Angola, Luanda, ano 2, out/1952, nº 2-4, p. 4.

1529

portanto, de projeção e identificação com o passado histórico, com algo que é empiricamente irrefutável e um acontecimento valorizável, demonstrando uma busca por pertencimento, coesão (VELHO, Op. Cit, 122). No caso desta memória herdada, há o agravante da ligação fenomenológica por ela reforçada, estreitando os elos entre memória e sentimento de identidade no sentindo de imagem de si, para si e para os outros, ou seja, diz respeito a uma auto representação e a percepção de si em relação aos outros (POLLAK, Op. Cit, 204). Essa identificação, portanto, prevê uma intrínseca relação dialógica com o outro e a sua transformação e reconstrução na dependência do sentimento gerado por esta memória. Há de se sublinhar a tentativa de Oliveira em reverter a amnésia política e histórica de Angola. A poesia, um caminho alternativo de representação, apresenta-se a fim de reformular o passado. Neste sentido, percebendo a memória enquanto alicerce da identidade cultural a ser construída, a retomada das marcas do passado tanto quanto o entendimento desses fragmentos enquanto lugar de luta e resistência são características não negligenciáveis (COLMEIRO, 2014). O que antes fora silenciado, através dos versos de Oliveira, retorna no sentido de se recuperar não apenas a alma, mas a personalidade histórica de Angola. Os versos de “Poema” permitem ver como a memória é feita de fragmentos, tal como segmentado é o passado. Neste sentido, portanto, não é redundante afirmar que a organização dessa memória mantém relação direta com a reconstrução daquele passado para que, bem articulados, viessem a garantir a legitimidade do projeto empreendido. Há de se reiterar que, ao longo de toda a nossa análise, nos utilizaremos da noção de projeto enquanto “conduta organizada para atingir finalidades especificas”

11

. A valorização de uma identidade cultural

angolana demandava a construção de uma memória, dado que sem este alicerce a condução do projeto tornar-se-ia inviável. Haja vista essa valorização, cabe retomar e destacar o mecanismo comparativo realizado pelo júri. Reiteradamente presente na maior parte das análises críticas, a comparação dos novos poetas de Angola com renomados poetas angolanos é sintomático. Apesar da expressa referência à literatura do Velho Mundo e da declarada inferioridade das condições literárias do

11

Tomamos de empréstimo a noção de Alfred Schultz indicada por Gilberto Velho. Para mais, ver VELHO, G. “Memória, identidade e projeto”. In: Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, nº 95, out-dez, 1988, p. 123.

1530

escritor angolano, os cânones da e para a literatura angolana são Viriato da Cruz e Agostinho Neto. O que, em certa medida, demonstra tanto o conflito quanto a atitude de superá-lo. Superação e demanda por uma memória construída parecem ter sido necessidades do projeto de Mensagem, e puderam ser notoriamente percebidas através dos versos angolanos de Humberto da Silvan. “África”, o segundo lugar na categoria de poesia, traz versos que nos levam a refletir sobre aquilo que Pollak considera o trabalho de enquadramento da memória 12. Atento a necessidade de reinterpretação do passado em função das demandas do presente, Silvan não convoca os historiadores angolanos a “cantarem” uma África de exotismo, puro “manancial de sensualismo” 13, mas que venham a reconstruir um passado africano revelador da irredutibilidade de seu povo, do seu caráter construtivo, atuante: Ô historiadores da minha esperançosa terra,/por onde andas, vós, que não vindes a contar aos poetas,/esses factos que guardais, ciosamente, na memória!/E, vós, ó talentosos pintores, vinda também ouvir,/ trazei vossas paletas, trazei vossos pincéis,/ Já vai sendo tempo de abandonar os rios e as queimadas e de pintar factos mais humanos e fiéis![...] cantai, espalhai pelos sulcos da terra/ as sementes do poema novo!/ Que seja tão profundamente humano/ que, ao lê-lo, todos digam:/ aqui está a evolução dum continente,/ aqui está o drama dum grande povo!14

O discurso de Silvan torna-se aqui coerente se percebido o relato em verso realizado em “Poesia”, o que lhe garante eco e credibilidade em relação aos fragmentos do passado, elementos exigidos em qualquer trabalho de enquadramento de memória. Apesar de toda a coerência com o passado, segundo o parecer crítico “África” carece de unidade e carrega excessivo sentido de identidade com apelação individual, dado que, segundo o júri, a poesia peca pelo “predomínio do eu sobre o nós; [pela] constante e quase doentia preocupação com que Humberto se aponta a si próprio como se fora messias iluminado” 15. De todo modo, apesar do realce negativo dado a trechos como o supracitado, o júri considera Silvan um poeta que, tal como Oliveira, se presta a busca da verdade, desvelando-a ao se contrapor a todo “lugar comum”. Não anulado por sua “fachada vaidosa”, nas palavras dos jurados, o poema “África” estaria, sim, apto a funcionar como instrumento para a

12

Para um melhor entendimento, ver POLLAK, M. “Memória, esquecimento e silêncio”. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2, nº 3, 1989, p. 10. 13 Mensagem – A Voz dos Naturais de Angola, Luanda, ano 2, out/1952, nº 2-4, p. 7. 14 Mensagem – A Voz dos Naturais de Angola, Luanda, ano 2, out/1952, nº 2-4, p. 7. 15 Mensagem – A Voz dos Naturais de Angola, Luanda, ano 2, out/1952, nº 2-4, p. 7.

1531

construção da memória do negro africano como agente ativo no processo de luta, capacitado a superar as caricaturas forjadas a seu respeito. No entanto, neste ponto nos chama atenção a maneira como é construída a crítica. Legitimado por Mensagem e pela ANANGOLA como hábil em seu julgamento, o júri emprega termos com caráter homogeneizantes, potencialmente capazes de anular particularidades de grupos diferentes, tal como o reiterado termo “universal” ou “universalismo”. O ativismo intencional e ideológico dos termos disponíveis naquele idioma cultural, a história analítica dos termos não podem ser desconsiderados (SAVARESE, 2006; APPIAH, 1997). Àquela altura, não podemos perder de vista a noção de particularismo enquanto premissa para a construção de uma literatura autônoma, debruçada sobre seu povo, isto é, característica típica de um discurso de resistência. A definição de um poeta moderno e de verdade, de acordo com os jurados, se daria a partir de dois pressupostos conflitantes: particularismo e universalismo. Operando com conceitos próprios do sistema cultural vigente ao qual, a priori, o periódico se opunha, o júri corrobora com uma visão colonialista na qual a literatura dos escritores africanos se perpetuaria sem personalidade, cada vez mais vinculada a um conceito de universalismo forjado pela cultura européia (APPIAH, Op. Cit). Ainda neste debruçar-se sobre o seu povo, é no terceiro lugar da categoria poesia que Oliveira, segundo o júri, reitera seu valor enquanto poeta moderno. Em “Um negra convertida”, o eu-lírico revela a aparente tristeza de sua avó ao rememorar as suas velhas tradições, uma vez submetida a um outro complexo cultural. A nostalgia traz uma personagem decadente, cujo o não lugar perpetua o ocultamento das tensões existentes dentro de uma cultura selada pelo estatuto colonial. No entanto, a maneira como Oliveira conduz a nostalgia, a partir de determinado momento de sua poesia, lhe revela um potencial de deformar a configuração, digamos, hegemônica do poder estabelecido. Parece ter sido graças a este sentido dado por Oliveira que o júri lhe considerou um poeta combativo e livre do exotismo exacerbado promovido pela pedagógica literatura colonial, um dos instrumentos da política assimilacionista de Portugal. A crítica direcionada ao mais novo poeta de Angola indica que sua obra está livre da lógica vazia “que os compêndios liceais, bolorentos e de horizontes limitados ensinam a ver apreciar sem compreender e a engolir sem

1532

sentir, como que numa deliberada atitude de desajustamento da realidade”16 As ressalvas feitas, pouco ou não fundamentadas, dizem respeito a uma deficiência técnica da qual não poderíamos afirmar que seja, de fato, alheia às estruturas literárias européias. Os contos “Sonho realizado”, o primeiro lugar na categoria, tem António Mendes Correia como autor. O conto nos traz Tichuele, um mecânico negro como protagonista. Ao longo da saga que lhe leva à prisão pelo uso indevido de uma moto da oficina em que trabalhava, Correia traduz a tensão existente em uma sociedade dividida racialmente, muito embora o discurso oficial venha a dissimular tal condição. Orientados neste sentido, a temática e a condução do conto nos encaminham para as asserções de Fanon sobre realidade cindida em dois própria do mundo colonial. O título do conto, em si, nos remete à discussão. O sonho de ambição, de posse sobre os domínios do colonizador se mostra através de Tichuele, claramente, como reflexo da inerente violência da relação conflituosa entre duas posições de poderes desiguais. E, ainda sob outro aspecto, Correia revela o sonho de realização, de liberdade alcançado unicamente na noite, momento em que o colonizado aprisionado através de seus sonhos musculares encontra a sua realização. A linguagem empregada por Correia revela a tensão vivida pelo protagonista. Na prisão, Tichuele flutua “na nebulosidade de um sonho estranho” no qual um homem branco executa com um golpe de espada negros em fila indiana, um após o outro, cada decepar mais próximo da cabeça de Tichuele. No sonho, a representação de sua realidade é rememorada. O desfecho, no entanto, o liberta da costumeira opressão. Tichuele, antes de ter sua cabeça decepada pelo homem branco, é despertado pelos demais prisioneiros que lhe anunciam sua liberação. “Os últimos serão os primeiros”, de Fanon, viria a calhar. O desconforto silenciado torna-se um silêncio desconfortável e, através das ações de Tichuele, há a indicação da necessidade de se contestar o status quo, com isto possibilitando a revisão do contrato social imposto (COLMEIRO, Op. Cit).

16

Mensagem – A Voz dos Naturais de Angola, Luanda, ano 2, out/1952, nº 2-4, p. 19.

1533

No entanto, antes da subversão da ordem promovida por Tichuele, verifica-se um processo de vitimização, entrevendo a subjetivação ambivalente da estrutura social que se orienta a partir da lógica colonial (BAYART, 1996, apud SAVARESE, 2006). Esse mesma subjetivação pode ser observada em “Poesia africana”, do angolano Leston Martins. Configurando o segundo lugar na categoria, a obra de Martins traz um dedicado trabalhador negro, conformado e supostamente satisfeito com sua vida de labuta. A redenção de Tuidilli, após ser acometido por uma misteriosa cegueira, manifesta-se sob uma forma mística. Martins emprega termos místicos do universo cristão ao abordar o falecimento de Tuidilli após a repentina cegueira incurada pelo quimbanda local. Tendo a sua alma de santo elevada aos céus, Tuidillli é livrado do seu corpo esguio e negro. De acordo com o júri, Martins foi considerado um poeta de luta, potencialmente um dos que figurariam no patamar dos grandes poetas de Angola, no entanto, Martins é convidado a ser mais amplo, mais humano, mais real e mais verdadeiro. A definição desses conceitos não é clara em nenhum parece crítico, excetuando-se a relação aparente dos termos “verdade”/”verdadeiro” no combate à caricaturização do homem negro. Esse clima de combate aos vestígios e efeitos de um exotismo exagerado, a princípio, parece ter quisto ser o tema do terceiro e último lugar na categoria conto, entretanto, uma análise mais aprofundada levanta questões que indicam o sentido contrário. “Se não fosse a Victória”, conto da angolana Maria de Jesus da Silva, é uma obra que traz a figura do negro enquanto agente social, no entanto, o sombreado remete a uma visão colonialista. Sr. Cunha, um português degredado, é contestado por um outro homem branco em virtude de seu relacionamento com uma mulata, a Victória. A defesa do primeiro pode ser interpretada à luz da teoria luso-tropicalista de Gilberto Freyre – apropriada pelo discurso salazarista a partir dos anos 50 –, apresentando uma série de argumentos que se relacionam diretamente com a noção de amálgama de raças. As falas de exostimo, de sensualidade da mulher negra disputam espaço com a de adaptabilidade do português nos trópicos. Nota-se que, embora o tema seja a mulata Victória, ela é secundarizada ao longo de todo o diálogo. Antes mesmo de qualquer discussão sobre sociedade patriarcal, quem se senta à mesa e dá as ordens são dois homens brancos. A mulata, representação da “bem-sucedida” multiracialidade angolana, tem seu fulgaz momento

1534

de aparição apenas quando Sr. Cunha lhe ordena, “num tom tão peculiar ao português de raça”17, que lhes sirva um café. A conclusão do protagonista do conto (Sr. Cunha, obviamente) corrobora com a conclusão do conto: “Brancos, pretos e mulatos…São Angola!”18 . Diante disto, a subserviência do negro, discursiva e invariavelmente permanece compondo Angola, dado que esse status quo em momento algum é contestado de maneira assertiva. A lógica de apaziguamento, de equilíbrio social é orientada pela questão racial sem que se faça uma revisão dos demais campos que, inevitavemente, se constroem de maneira interligada. O cenário conflituoso de Angola, haja vista o acirramento da questão racial, não é questionado pela imagem construída por Maria de Jesus da Silva, impossibilitando com isto qualquer processo de descentralização do poder e da lógica cultural vigente. Debruçada sobre si – e sobre seu povo – de tal modo a não se enxergar, faz com que resista na memória todos os elementos construídos pelos e no imaginário europeu acerca do outro. Diante disto, a crítica admite que, apesar da pouca cultura, a autora já intui o que deve ser o conto angolano... Conclusão A análise das obras e das críticas realizadas pelo júri indicou, antes de qualquer avaliação diretamente correlacionada ao projeto dos mensageiros, a inviabilidade de se entender produção cultural desvinculada da ideia de poder. Dialogando com a legalidade, tanto Mensagem quanto a direção da ANANGOLA – envolvidos diretamente no empreendimento do concurso literário – tiveram a suposta postura de ruptura plena com os pressupostos da política e doutrina colonial dissolvida em meio a falas e versos de submissão. O primeiro poder ao qual nos referimos refere-se à censura prévia exercida pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE)19. Embora ainda não estabelecida em terras angolanas, todo o material publicado por Mensagem era avaliado. É valido lembrar que Angola, por maiores que fossem as pressões internacionais do processo de descolonização

17

em

Mensagem – A Voz dos Naturais de Angola, Luanda, ano 2, out/1952, nº 2-4, p. 29. Mensagem – A Voz dos Naturais de Angola, Luanda, ano 2, out/1952, nº 2-4, p. 29. 19 Constituía a polícia política do Estado Novo salazarista, um forte órgão de repressão oficial fundado no ano de 1945. É apenas a partir da segunda metade da década de 1950 que a PIDE se instala em Angola, aumentando com isto seu poder de controle, haja vista o acirramento da censura prévia ao material de imprensa a partir de 1957. Grosso modo, trata-se de um organização de paramilitares, um aparelho depressivo própria da estrutura do Estado Novo salazarista. 18

1535

andamento pela Ásia, Oriente Médio e noutros países africanos, ainda encontrava-se como colônia, ou melhor, província ultramarina de Portugal. O segundo poder, sem tom hierárquico ou cartesiano, é aquele exercido por um sistema de conhecimento, por uma lógica imperativa de cultura. Não pretendemos com isso ignorar as estratégias de resistência – aplicadas e identificadas nas obras vencedoras do concurso –, a falência e a falácia da política de assimilação portuguesa. O que pretendemos também é assinalar o quão tendenciosa e silenciosa pode ser a lógica supostamente binária do poder. E, outrossim, afirmar que o que se manteve vivo nesse “lugar de memória” foi o conflito. Esses diferentes sentidos e orientações, em diversos momentos e sob diferentes vestes, se destacam. Seja ao longo dos poemas e contos; seja ao longo da superficial análise crítica do júri. Observa-se o protagonismo oferecido ao negro ao lado de falas de exostismo, sendo ainda permeado pelo reconhecimento de um passado condenável e diante do silêncio sobre o status quo; lado a lado, a valorização do escritor angolano e a declaração de sua imaturidade espiritual em comparação a produção do Velho Mundo20; a mímesis européia através dos termos empregados pelo júri ao valorizar a poesia angolana; essas entre outras visíveis fragmentações da auto-representação coletiva e não unitária traduzidas pelo material analisado. Sob esta viciosa condição, por mais que à elite intelectual fosse exigido o silenciamento das diferenças do tecido social em prol da identidade cultural de uma Angola imaginativamente unificada, as tomadas de consciência se deram de maneira difusa e, diante disto, incompreensível não seria que isto resultasse em construções de memórias que muitas das vezes se antagonizavam. Memória de resistência coexistindo na mesma página ou ainda na estrofe seguinte a uma memória que alimenta um sentimento de apaziguamento. O que seletivamente foi recordado e silenciado, mais que uma preferência por uma determinada memória, nos revelou a relações de reciprocidade das relações de poder que subsistem em uma cultura. Não à toa, o conflito é pano de fundo de todas da temática de todas as obras selecionadas pelo concurso. Negar o conflito, como pôde ser visto em, por exemplo,

20

Tal declaração consta nas Actas do júri da proclamação e entrega dos prêmios. Cf Mensagem – A Voz dos Naturais de Angola, Luanda, ano 2, out/1952, nº 2-4, p.2.

1536

“Se não fosse a Victória” é negar a própria identidade, é não permitir à memória angolana que ela admita a sua multiplicidade de heranças culturais. Neste sentido e a título de conclusão, o material promovido pelo 1º concurso literário bienal possibilitou entrever a tensão da condição – imposta ? – à qual estavam submetidos todos os atores nele envolvidos. Dentro dessa lógica, o desvelamento das marcas do passado expressas no presente e, ainda sob jugo colonial, propiciou diferentes memórias e em fragmentos. Montar o quebra-cabeça, de fato, depende e exige que, além das obras analisadas, estejamos a par da integralidade do material publicado por Mensagem. De todo modo, por mais que peça a peça tenhamos o veredicto sobre uma representação coletiva, a marca do encontro entre cada uma delas nunca se apaga.

1537

Referências biográficas APPIAH, Kwane Anthony. Na casa de meu pai. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

BOSSLET, Juliana. A cidade e a guerra. Relações de poder e subversão em São Paulo de Assunção de Luanda (1961-1975). Rio de Janeiro, 2014, 263p. Dissertação (Mestrado em História). Programa de pós-graduação em História, Universidade Federal Fluminense, 2014.

BATSÎKAMA, Patrício. Leitura antropológica sobre angolanidade. SANKOFA: Revista de História da África e de Estudos da Diáspora africana, nº 11. Disponível em: < https://sites.google.com/site/revistasankofa/sankofa-11/leitura-antropologica-sobreangolanidade > Acesso em: 10/ago./2013.

CATROGA, Fernando. Memória, História e Historiografia. Coimbra: Quarteto, 2001, pp. 15-51.

CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Lisboa: Sá da Costa editora, 1978.

CHAVES, Rita. Angola e Moçambique: experiência colonial e territórios literários. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005.

COLMEIRO, José. “¿Una nación de fantasmas?: apariciones, memoria histórica y olvido en la España-franquista”. Revista electrónica de teoría de la literatura y literatura comparada, 4 (2011): 17-34. Disponível em: < http://452f.com/index.php/es/josecolmeiro.html > Acesso em 10/out./2014.

1538

CONFINO, Alon. “Colective memory and cultural history: problems of method”. American Historical/Review102, 5 (1997): 1386-1403.

HALBAWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo, Vértice, 1990.

FANON, Frantz. Os condenados da Terra. Juíz de Fora: Editora Ufjf, 2010.

MUDIMBE, Valentine. Y. The invention of África. Bloomington: Indiana University, 1988.

NORA, Pierre. “Entre memória e História: a problemática dos lugares”. Projeto História 10 (1993), pp. 7-28.

POLLAK, Michael. “Memória, esquecimento e silêncio”. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2, nº 3, 1989, p. 3-15.

. “Memória e Identidade social”. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 5, nº 10, 1992, p. 200-212.

SAVARESE, Eric. “After the algerian war: reconstructing identity among the Piedsnoirs”. Internacional Social Science Journal 58 (2006): 457-466.

SERRANO, Carlos M. H. Angola: a geração de 50, os jovens intelectuais e a raiz das coisas. In: Caniato, Benilde Justo e Miné, Elza. (Org.). Abrindo caminhos: homenagem a Maria Aparecida Santilli. São Paulo: FFLCH/USP, 2002.

1539

SIRINELLI, Jean-François. Elogio da complexidade. In: RIOUX, JeanPierre & SIRINELLI, Jean-François (dir.). Para uma história cultural. Trad. Ana Moura. Lisboa: Editorial Estampa, 1998.

TAYLOR, Charles; et al. Multiculturalisme. Différence et démocratie. Paris: Flammarion, 1994.

VELHO, Gilberto. “Memória, identidade e projeto”. In: Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, nº 95, out-dez, 1988, p. 119-126.

WHEELER, Douglas; PELESSIÉR, René. História de Angola. Lisboa: Tinta da China, 2009.

1540

Arte e sociedade: a produção visual de Paulo Werneck na década de 1940 Karina Pinheiro Fernandes1 Resumo: Este artigo analisa a obra de Paulo Werneck (1907-1987) e sua relação com uma arte pública de grande alcance social, no Rio de Janeiro na década de 1940. O artista teve larga produção visual em diferentes suportes, mas manteve a ligação com a sociedade. Enquanto membro do PCB ilustrou jornais e revistas ligados ao partido. Seus desenhos compuseram ainda livros e outros periódicos, além de produzir murais para edifícios. Este ensaio problematizará o uso de fontes iconográficas em um contexto histórico específico, discutindo a produção e a circulação das imagens. Palavras-chave: PCB; Paulo Werneck; arte e política. Abstract: This paper analyses the production of Paulo Werneck (1907-1987) and his relationship with a public art of great social impact in Rio de Janeiro in the 1940s. The artist was widely visual production in diferente media, but maintained the connection with the society. While he was member of PCB, ilustrated newspapers and magazines related to the party. His drawings also composed books and others periodicals, as well as producing murals for buildings. This essay will analyse the use of iconographic sources in a specific historical context, dicussing the production and the circulation of images. Key-words: PCB; Paulo Werneck; art and politics

A produção de Paulo Werneck (1907-1987) na década de 1940 era destinada a um grande público, independentemente de ser apresentada em diferentes suportes como jornais, revistas, livros e murais. Sua preocupação com uma arte de amplo alcance social pode ser observada no perfil destes suportes aos quais recorria. Já os conteúdos podiam ser variados, de acordo com a destinação proposta, abrangendo desde temas sociais, até indigenistas ou abstratos. No início de sua carreira, na década de 1930 e de 1940, dedicou-se a ilustração de obras literárias2. Na década de 1930 sua produção refletia preocupações sociais principalmente na dedicação a ilustrações de revistas e jornais de esquerda. Em 1935, também participou da organização e fez ilustrações para a revista Movimento, que mantinha afinidade com Prestes e a ANL (Aliança Nacional Libertadora), mostrando seu caráter social e buscando levar o tema a debate. Concomitante a atividade de ilustrador, manteve a de desenhista técnico para arquitetos, o que seria indispensável para sua subsistência3. Dentre estes arquitetos estavam os

1541

renomados Oscar Niemeyer (1907-2012) e os irmãos Milton (1914-1953) e Marcelo Roberto (1908-1964), do Rio de Janeiro. Werneck estudara com Niemeyer e Marcelo Roberto no final do período escolar e com eles iniciaria uma longa parceria, que na década de 1940 se estenderia a realização de murais para projetos arquitetônicos. Ao longo de sua carreira, produziu mais de duzentos murais no país, dos quais noventa e oito ainda existiriam em cidades do Rio de Janeiro, Brasília, São Paulo, Belo Horizonte, Cataguases, Niterói e Recife 4. São obras de destaque nas edificações e com estética predominantemente abstrata, embora alguns mostrem elementos da natureza e indígenas brasileiros. O momento inicial do modernismo na arquitetura brasileira5 mostrou a cooperação estreita entre a construção e as artes plásticas, devendo ser pontuados os painéis em pastilhas vitrificadas nas fachadas e nos interiores das obras. Paulo Werneck se destacava na produção destes painéis aplicados à arquitetura neste período e de acordo com Lauro Cavalcanti: Hoje percebemos que a contribuição de sua obra ultrapassa o campo restrito da arte relacionada à construção, pois a sua qualidade no momento em que foram produzidos o credencia como pioneiro do abstracionismo não-geométrico entre nós, apresentando refinamento, ousadia e radicalidade nas formas e cores raros na arte brasileira dos anos 19406.

Nesta perspectiva, Werneck levaria singularidade às edificações, rompendo com o usual e comunicando na escala visual dos transeuntes. Apresentaria uma parceria “elegante e adequada com a arquitetura”, mostrando-se de grande qualidade7. Paulo Werneck considerava ser função de painéis e pinturas murais decorar complementando a arquitetura e foi inovador ao inserir a abstração na arte brasileira8. A demanda por novos painéis crescera na década de 1940, principalmente a partir do convite de Rubem Serra, arquiteto do Banco do Brasil, para projetar e executar murais em agências de diversas cidades brasileiras. A utilização de mosaicos de pequenas pastilhas se mostraria versátil, eficiente e resistente às intempéries da natureza. Fácil de cortar e aplicar permitia se adequar a espaços amplos, planos ou curvilíneos, tornando-se preferencial por Paulo Werneck para a execução de seus painéis9. A estes projetos, seguiram-se produções de murais em diferentes prédios. Muitos eram de circulação pública, alcançando grande visibilidade para as obras no interior ou no exterior das edificações. Em 1946 realizou dois painéis para a sede do Banco Boavista no centro do Rio de Janeiro em projeto de Oscar Niemeyer. Um deles fica na fachada no prédio ao lado da porta principal e faz parte do cotidiano de muitas pessoas que ali circulam. Deste modo, breves transeuntes ou aqueles que estabelecem alguma relação com o edifício em questão ou com

1542

seus vizinhos, passam pelo mural e têm a possibilidade de visualizá-lo, mesmo que de relance.

Painel de Paulo Werneck para Banco Boavista, Rio de Janeiro. 1947. Arquitetura de Oscar Niemeyer. Fonte: Catálogo Paulo Werneck: muralista brasileiro. Paço Imperial, 2008.

As formas curvas em azul, marrom e branco, são representativas da estética adotada em outras de suas obras com finalidade semelhante, prédios públicos. Com formas dinâmicas, que sugerem movimento e, ao mesmo tempo, apresenta cores discretas, mas em grandes dimensões (cerca de 4,5 m de altura). Sua extensão e a sua localização na fachada do edifício aproximam a obra de quem passa tanto na mesma calçada, e vê o painel na altura dos olhos, quanto quem do outro lado da rua e tem uma visão mais completa da obra. A relação estabelecida com a obra é, certamente, diferente em cada observador. No entanto, este mural rompe com a estética sóbria comum, até então, às sedes bancárias. Isto já proporciona um ambiente diferente para o expectador, que mantem um contato desmistificado com a obra de arte, na medida em que ela não está isolada em um espaço destinado a sua contemplação. Esta aproximação da arte com o público em um ambiente do cotidiano, traz a beleza das formas e das cores para o olhar cotidiano. O painel para o Edifício Maracati de 1949 no bairro do Leme, na Zona Sul do Rio de Janeiro, é exemplo da junção de elementos figurativos associados a traços abstratos ao fundo. Assim como havia feito em outros painéis realizados em 1943 para o Ministério da Fazenda (RJ), apresentou a figura de um indígena brasileiro e de árvores que compõem o cenário 10. A temática principal segue a linha de resgate das figuras nativas nacionais, fortalecida com o movimento modernista.

1543

Painel em mosaico cerâmico de Paulo Werneck para Edifício Maracati, Leme – Rio de Janeiro. 1949. Fonte: Catálogo Paulo Werneck: muralista brasileiro. Paço Imperial, 2008.

O painel é localizado próximo à entrada do edifício, na portaria. A função residencial do prédio acaba restringindo, em certa medida, o contato do público com a obra, se compararmos com o caso anteriormente analisado. No entanto, a circulação dos moradores e outros frequentadores permite o convívio constante com o painel. Em ambiente interno, é possível maior tempo de observação, contínua ou fragmentada, e estabelecimento de afetividade com a obra. É possível a apreciação dos detalhes da obra, das figuras centrais: o índio, a cesta que carrega e as árvores que o cercam. O pertencimento ao coletivo também contribui para o acesso livre e não proposital, como as obras expostas em museus para contemplação do público. A recorrência da visualização também complexifica a relação estabelecida entre observador e obra, visto que permite interpretações e reinterpretações, mesmo para os que olham a obra apressadamente. De toda forma, em ambos os painéis o acesso amplo permite o contato de diferentes formas e compreensões da obra. Seu papel continua a ser de levar uma estética bela ao ambiente de passagem, ou de estadia breve. Neste caso, a escolha do indígena como temática central mostra sua tentativa de manutenção deste personagem como símbolo nacional. A produção de ilustrações por Paulo Werneck, que se iniciou na década de 1930, teve continuidade na década de 1940. Neste período, se destacariam os desenhos para o jornal Tribuna Popular a partir de 1945 e seu sucessor Imprensa Popular a partir de 1948. Ao todo, entre 1945 a 1958, foram cerca de 300 ilustrações apenas para estes dois periódicos. Em relação ao período estrito de 1945 a 1947 a produção de ilustrações feita pelo artista plástico Paulo Werneck se destaca primeiramente pela quantidade, podendo ser encontradas mais de

1544

60 ilustrações com temas variados apenas nos breves três anos em que o jornal Tribuna Popular circulou. O conteúdo das ilustrações se coaduna com os temas das matérias publicadas no jornal, e variam de tamanho e de destaque nas páginas. É importante ressaltar que eram de circulação diária e Werneck produziu ilustrações com frequência. O Tribuna Popular, como seu sucessor Imprensa Popular, era vinculado ao Partido Comunista do Brasil (PCB). A intensa atividade de Paulo Werneck como militante e o grande vulto de sua produção para o partido, mostram a importância das ideias comunistas para o artista. É incerta a data da entrada oficial de Werneck no PCB, mas há registros de que colaborava com desenhos para o jornal A Manhã, que era vinculado ao partido, já em 1933 e 193511. Sua relação com o partido neste período era abrangente, figurando entre Candido Portinari, Alcides Rocha Miranda e Silvia Chalreo no Comitê Democrático Artistas Plásticos12sediado no Instituto dos Arquitetos13. Seu ateliê, no subsolo do prédio onde morava em Laranjeiras14, servia para encontros com outros artistas filiados ao PCB como Candido Portinari, Carlos Scliar, Chlau Deveza, Glauco Rodrigues, Israel Pedrosa e Oscar Niemeyer para debater sobre arte, arquitetura, política internacional e nacional15. A partir de 1945, então, sua atuação no PCB se intensificou, constando no seu prontuário produzido pela polícia política do Rio de Janeiro que fora “recrutado pelo PCB na campanha eleitoral de 1945”, na qual o partido obteve significativos resultados16. Ao observar este conjunto de ilustrações notamos que o contexto que as envolve é concernente a questões gerais sobre política nacional e internacional, denúncias sociais relativas à vida cotidiana, moradia, condições de trabalho, além de eventos e manifestações promovidas pelo partido. Os desenhos se aproximam da proposta do realismo socialista, mantendo o caráter didático, com clareza do conteúdo e explorando temas concernentes aos trabalhadores rurais e urbanos17. Nas imagens a seguir pode-se perceber estas características. Na imagem à esquerda, mulheres carregam latas d’água na cabeça referindo-se a uma matéria que trata da ausência de distribuição de água em favelas, obrigando os moradores a buscar água em locais distantes de suas residências18. Os traços e sombreamentos escuros mostram a dureza nos rostos das mulheres, bem como os braços fortes da mulher à frente que denotam sua atividade física de trabalho.

1545

Paulo Werneck. Tribuna Popular, 18-01-1946. Paulo Werneck. Tribuna Popular, 26-12-1947.

A imagem à direita se refere à Luís Carlos Prestes, então secretário-geral do PCB. Sua aparência na imagem, no entanto, faz alusão ao período em que esteve na Coluna Prestes19, com longa barba, o uso do chapéu e com roupas militares. Ambos desenhos apelavam para a identificação do público com as figuras representadas. De um lado uma cena comum nas favelas da época, e no imaginário visual de modo geral, mulheres subindo os morros com latas de água na cabeça; de outro um ícone nacional, facilmente reconhecido em diversos meios sociais. Além da estética de fácil compreensão dos traços, as temáticas são próximas aos leitores do jornal. Paulo Werneck mostrava em suas ilustrações a preocupação com temáticas de apelo social, com conteúdo ligado ao cotidiano do leitor. O público alvo era amplo, visto que o Tribuna Popular obteve grande tiragem no período de legalidade do PCB (1945-1947), chegando a ser o segundo lugar no Rio de Janeiro com cerca de 150 mil exemplares nos fins de semana e 80 mil nos dias úteis20. Desta forma, o artista era consciente da grande circulação de suas obras, alcançando pessoas que as viam como meras ilustrações das matérias as quais se vinculavam, ou em sua singularidade. De toda forma, um grande público estabelecia contato com o olhar do artista Paulo Werneck sobre os temas e suas intencionalidades, e ressignificando as obras a partir de suas vivências21. Do mesmo modo que ocorria com os murais que produziu, eram obras que atingiriam um grande público. Desta forma, a princípio, poderia parecer que seus murais abstratos

1546

destoavam de sua prática de ilustrador de temas sociais aliada a suas convicções políticas de esquerda. No entanto, todo o trabalho do artista foi direcionado, de alguma forma, para a coletividade e teria alcançado essa expectativa: (...) uma vez que suas ilustrações atingiram milhares de leitores das mais diversas camadas sociais e de diferentes idades, e que seus painéis até hoje conferem um caráter diferenciado aos edifícios que sobreviveram e se distinguem no desordenado crescimento urbano das principais cidades brasileiras22.

Paulo Werneck preferiu se manter fora do circuito de exposições e galerias e, ao contrário, optar pela arte aplicada alcançando o cotidiano das pessoas23. Sua proposta era disponibilizar a arte para a população, e isto se daria pelas dimensões de suas obras em locais públicos ou pela reprodutibilidade dos jornais, revistas ou livros em que se apresentaram. A obra do artista mostra, portanto, sua intencionalidade de alcançar grandes públicos, de levar a arte que produzia para o cotidiano das pessoas comuns. Ao mesmo tempo, observase a preocupação com temas sociais em suas ilustrações, bem como a inserção de figuras brasileiras como o indígena e a vegetação nativa brasileira, além do recurso ao abstrato. Desta forma, o artista manteria sua ligação com a sociedade de modo amplo, ao valer-se de suportes que permitiam a grande circulação das obras ou o largo acesso do público em seu dia-a-dia.

1

Doutoranda no Programa de Pós Graduação em História Social/UFRJ. Orientadora: Prof. Dr.ª Andrea Casa Nova Maia. Email: [email protected]. O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Brasil. 2 Paulo Werneck ilustrou obras como A lenda da carnaubeira de Margarida Estrela Bandeirante Duarte (1939) e O negrinho do pastoreio – lenda gaúcha de Paulo Werneck (1941). 3 MARTINS, Carlos. “Paulo Werneck- arte nos muros”. In: CATÁLOGO PAULO Werneck: muralista brasileiro. Rio de Janeiro: Paço Imperial. 2008. P. 19. 4 SALDANHA, Claudia. “Paulo Werneck: muralista brasileiro”. In: CATÁLOGO PAULO Werneck: muralista brasileiro. Rio de Janeiro: Paço Imperial, 2008. P.7. 5 O modernismo seria inaugurado na arquitetura brasileira com o edifício da sede do Ministério da Educação no Rio de Janeiro, com suas obras iniciadas em 1937 e concluídas em 1943 é considerado o marco desta nova tendência. Cf. SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil 1900-1990. São Paulo: Edusp, 2010. 6 CAVALCANTI, Lauro. “Arte e arquitetura”. In: CATÁLOGO PAULO Werneck muralista brasileiro. Rio de Janeiro: Paço Imperial, 2008. P.16. 7 CAVALCANTI, Lauro. “Arte e arquitetura”. In: CATÁLOGO PAULO Werneck muralista brasileiro. Rio de Janeiro: Paço Imperial, 2008. P.17. 8 MARTINS, Carlos. “Paulo Werneck- arte nos muros”. In: CATÁLOGO PAULO Werneck muralista brasileiro. Rio de Janeiro: Paço Imperial, 2008. P. 25. 9 SALDANHA, Claudia. “Paulo Werneck- muralista brasileiro”. In: CATÁLOGO PAULO Werneck muralista brasileiro. Rio de Janeiro: Paço Imperial, 2008. P. 5. 10 Cf. CATÁLOGO PAULO Werneck muralista brasileiro. Rio de Janeiro: Paço Imperial, 2008. 11 Bem como consta ter contribuído para Correio da Manhã, Fon-Fon e Diário de Notícias como jornalista. Prontuário Paulo Werneck. Numeração: 21640. Fundo Polícia Política do Rio de Janeiro. Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro. No seu prontuário constam registros de 1936 a 1953. 12 Setor Geral. Notação 26J, dossiê 1. Folha 2305. Fundo Polícia Política do Rio de Janeiro. Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro. UFRJ/IFCS/PPGHC. Rio de Janeiro, 2007.

1547

13

O Comitê Democrático Artistas Plásticos era sediado no Instituto dos Arquitetos na Rua Marechal Floriano, número 7. Cf. Setor Político, notação 3B.folha 421. Fundo Polícia Política do Rio de Janeiro. Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro. A respeito dos comitês populares democráticos do PCB Cf. PINHEIRO, Marcos Cesar de Oliveira. O PCB e os comitês populares democráticos na cidade do Rio de Janeiro (1945-1947). Dissertação de Mestrado. UFRJ/IFCS – PPGHC. Rio de Janeiro, 2007. 14 Durante um período de 1945 foi obrigatório construir abrigos antiaéreos em edifícios residenciais, devido às tensões beligerantes internacionais, o que foi o caso do prédio onde Paulo Werneck morava com sua família. Esta característica conferia privacidade, mas também discrição e segurança em vista a repressão da polícia política à época. 15 SALDANHA, Claudia. “Paulo Werneck - muralista brasileiro”. In: CATÁLOGO PAULO Werneck muralista brasileiro. Rio de Janeiro: Paço Imperial, 2008. P. 5. 16 Prontuário Paulo Werneck. Numeração: 21640. Fundo Polícia Política do Rio de Janeiro. Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro. 17 Sobre o realismo socialista Cf. BOWN, Mathew Cullerne. Art Under Stalin. Holmes & Meier. Nova York, 1991; STRADA, Vittorio. Da “revolução cultural” ao “realismo socialista”. In: HOBSBAWM, Eric. (org.). História do Marxismo. Paz e Terra, 1989. Volume XI. 18 Paulo Werneck. Tribuna Popular, 18-01-1946. 19 A Coluna Prestes teve grande participação tenentista e ficou famosa por promover comícios e manifestos com denúncias às condições políticas e sociais do país. Unindo muitos tenentes percorreu longas distâncias à cavalo pelo território nacional entre 1925 e 1927. Devido a esta empreitada, Prestes ficou conhecido como “Cavaleiro da Esperança”. Cf. PRESTES. Anita L. A Coluna Prestes. São Paulo: Brasiliense, 1991. 20 HONS, André de Seguin des. Os diários do Rio de Janeiro, 1945-1982. Dissertação de Mestrado. IFCS/PPGHIS- UFRJ. Rio de Janeiro, 1982. 21 Cf. BAXANDALL, Michael. Padrões de Intenção: a explicação histórica dos quadros. Companhia das Letras, 2206. 22 MARTINS, Carlos. “Paulo Werneck- arte nos muros”. In: CATÁLOGO PAULO Werneck muralista brasileiro. Rio de Janeiro: Paço Imperial, 2008. P. 20. 23 MARTINS, Carlos. “Paulo Werneck- arte nos muros”. In: CATÁLOGO PAULO Werneck muralista brasileiro. Rio de Janeiro: Paço Imperial, 2008. P. 25.

1548

D’Oultremer à Indigo: entre a crônica e a ficção, a reinvenção do folclore como metodologia na construção de um novo e tropical paradigma de civilização KARLA ADRIANA DE AQUINO1 Resumo: Em D’Oultremer à Indigo, Blaise Cendrars escreve o que ele chama de “histórias verdadeiras”, para falar do Brasil que conheceu em três longas viagens nos anos 20. Nesse livro, o autor faz tábula rasa do seu estilo inicial de poeta vanguardista, para recriar lendas que fazem parte das tradições folclóricas do país, usando a ficção no sentido de afirmar um novo modelo de civilização que se opõe frontalmente ao paradigma civilizatório europeu, incorporando tudo aquilo que se considerava “primitivo”. Palavras-chave: Blaise Cendrars; civilização; utopia. Abstract: In D’Oultremer à Indigo, Blaise Cendras speaks about what he calls “true stories”, in order to comment the Brazil he met in three long trips in the 1920’s decade. In this book, the author reduces his initial style as a vanguard poet to recreate legends which make part of the folklorical traditions of the country, using fiction to bild the statement concerning the civilization’s new model that frontaly oposes to the European civilizatory paradigma, thus embedding everything considered “primitive”. Keywords: Blaise Cendrars; civilization; Utopia. D’oultremer à Indigo é lançado em 1939, sob a classificação de “recueil de nouvelles”, mas que Blaise Cendrars classifica como “histoires vraies” 1, nas quais o autor se dedica à exaltação das viagens de aventura, num registro que se assume como autobiográfico, mas se livra frequentemente à ficção. Trata-se da questão da “travessia iniciática”, da qual o autor sai renovado. O lugar mítico onde Cendrars se submete a um novo batismo é o Brasil, sua “Utopialand”. Seu novo projeto literário confirma nesse livro a redefinição de sua posição no tabuleiro intelectual como “repórter” de “histoires vraies”, fazendo tábula rasa de seu papel anterior de poeta vanguardista, e preparando a via do novo estilo que ele desenvolverá nos volumes de memórias após a Segunda Guerra, misturando de vez seus numerosos estilos em rapsódias. Consideramos que Cendrars cria uma utopia, mas não uma utopia de um mundo perfeito. Ao contrário, uma utopia que incorpora o avesso de uma civilização perfeita,

1

Doutoranda PPGHIS/UFRJ. Orientadora: Profa. Dra. Andréa Daher. Email: [email protected]

racional, ideal, criando um mundo novo, “cifrado”, através da transfiguração do pitoresco 1549

experimentado em suas viagens ao Brasil pelas “proezas imaginárias” do autor2. Não se trata nas “histoires vraies” de Blaise Cendrars “não de história verdadeiramente verdadeira”.3 Mas, de “coisas vistas” segunda uma mirada transfiguradora de “visionário”. Tratar-se ia, assim, de “reportagens” de um “estranho jornalista”, que se confessa “malgré lui”/ “apesar de si mesmo”.4 Logo no início de “S.E. L’Ambassadeur”, primeira “histoire vraie” de D’Oultremer à Indigo, que não trata “nominalmente” do Brasil, Blaise Cendrars adverte o leitor sobre o aspecto inventivo dessas histórias que chama de “verdadeiras”, em que, apesar de se colocar “nominalmente em cena” para “garantir a autenticidade” de seu texto e de pretender contar com exatidão o que lhe teria ocorrido, camufla nomes de personagens e locais.5 Em “Le ‘coronel’ Bento”, segunda “histoire vraie” de D’Oultremer à Indigo, Blaise Cendrars elabora um texto sobre a tensão entre o mundo “civilizado” europeu e o mundo dos “confins da civilização” que é o Mato Grosso do “coronel” Bento, uma espécie de “duplo” do escritor: enquanto o “primitivo” Bento vai se refugiar em Paris para evitar ser assassinado em seu país, Cendrars vem ao Brasil conhecer o mundo-outro de onde vem o “selvagem”, que descreve. O episódio que conta a estadia do “coronel” Bento em Paris reforça a dicotomia entre selvagem e civilizado na obra de Blaise Cendrars. Assim como o autor é cercado pelos intelectuais brasileiros curiosos de receber um “mestre” vanguardista da civilização europeia. O “coronel” Bento, seu duplo, repete a cena da apresentação dos índios “selvagens” na França contada por Montaigne, séculos antes. No choque entre dois mundos antagônicos, a novidade é o mundo às avessas que o Brasil profundo de Mato Grosso representa na obra de Cendrars, que, eventualmente, o autor chama de “paraíso”, local onde ele se submete a um verdadeiro “batismo” físico ao se integrar à natureza local. Mais que isto, essa terra mesma parece testemunhar o nascimento do mundo. Sempre o tema das “origens” marca o texto de Cendrars, construindo, passo a passo, sua “utopia” como uma nova ideia de civilização. É interessante observar que suas referências ao clima, às altas temperaturas da Amazônia são topoi que se encontram também nos relatos de viagem de Mário de Andrade - amigo e companheiro de Cendrars na chamada viagem “de descoberta do Brasil”, a Minas Gerais, em 1924 - e conformam sua ideia do que André Botelho chama de “civilização tropical”6. Cendrars encontra no Brasil um território novo para exprimir a novidade que ele expressa em sua obra, a partir de suas viagens ao país. Um país onde tudo é possível, um país de uma vida inesgotável, de caçadas e

acontecimentos

extraordinários, de misteriosas florestas e cidades cosmopolitas que realçam a dicotomia entre “selvagem” e “civilizado”. 1550

Lembrando aquilo que André Botelho, baseando-se em Gilda Mello Sousa, classifica como ‘a longa tradição de “levantamento da realidade” pela arte’, que teria assumido sentido missionário na confluência entre “vanguarda” e “nacionalismo” no Brasil dos anos 20, especialmente na obra de Mário de Andrade7. O uso que Cendrars faz do gênero híbrido que ele cria em suas “histórias verdadeiras”, entre ficção e crônica, colocando-se no texto como narrador que viveu as experiências contadas, testemunha, lhe serve para fazer um implante da “realidade” no seu sonho de uma utopia que conforma, desterritorializa e reterritorializa, a noção de civilização, do paradigma cartesiano para a afirmação de um novo paradigma, onde todos os homens, mesmos os marginais e “selvagens”, encontrem sua expressão: um mundo sem os maniqueísmos entre o bem e o mal, entre o sano e o doente, entre o homem de bem e o criminoso, entre o sábio e o “primitivo”, entre o culto e o “selvagem”. Em D’Oultremer à Indigo, Cendrars realça esses contrastes, torna mais agudas essas dicotomias, para superá-las com a valorização de uma nova síntese cultural, que afirma a circularidade entre a cultura erudita, de origem europeia, e a cultura popular, das periferias do mundo. Essa circularidade é o mote mesmo de suas narrativas: o encontro de um poeta europeu, “civilizado”, cansado de guerra, e os homens e as coisas de um mundo não reconhecido como civilizado, mas “primitivo”. Grande parte de suas narrativas contam os diálogos entre Cendrars e esses homens dos “confins da civilização”. A construção de uma nova ideia de civilização se faz dialogicamente, de forma que o leitor se coloque na posição do autor-narrador, experimentando o aprendizado do outro enquanto alteridade. É o que Cendrars alcança nesses diálogos e na observação do pitoresco que ele encontra em suas viagens. Além disso, ele dá voz aos excluídos pelo modelo eurocêntrico de civilização. Não se trata de um espaço acabado, definido, mas de um território incompleto, que se recria pela própria diferença entre as partes que dialogam, pela adesão das diferentes identidades à construção de um novo pensamento sobre si mesmo e o outro. Cendrars coloca, assim, em cena o conflito entre o “civilizado” e o “primitivo” especialmente em D’Oultremer à Indigo. O diálogo estabelecido não pretende reduzir a diferença do “outro”, para assimilá-lo, mas para aprender com ele, recriando-se e recriando-o, a partir desse conhecimento que se dá entre as diferentes partes. O Brasil se constitui como uma alternativa ao impasse que desafia Blaise Cendrars a sair do ceticismo do pós-Primeira Guerra Mundial. O autor oscila entre esse ceticismo e

1551

o

ceticismo do pós-Segunda Guerra, notável nas suas memórias, como em Le Lotissement du Ciel. Entre uma desilusão e outra, nas “histoires vraies” dos anos 30, ele se abre à uma ideia de “civilização tropical”, de “utopia”, radicalmente diferente do modelo de utopia como civilização perfeita, que tem raízes gregas, mas se torna exemplar com Thomas More e extremamente popular no século XIX, definindo a diferença que está na raiz da bipolaridade do pós-Segunda Guerra Mundial. Quando esteve no Brasil, Blaise Cendrars conheceu Sérgio Buarque de Holanda, bem antes de o brasileiro escrever seu livro seminal, Raízes do Brasil, bem como de Visão do Paraíso, de 1959. É possível que o franco-suiço tenha lido o primeiro livro antes de escrever D’Oultremer à Indigo, lançado em 1939. De qualquer forma, na descrição de Cendrars do personagem “coronel” Bento, há um traço que se destaca, aliás, um traço sociológico que se apresenta também no personagem de Oswaldo Padroso, em Le lotissement du ciel: a “cordialidade” desses dois fazendeiros que teriam hospedado o escritor em suas fazendas, conceito que baseia a obra de Buarque de Holanda. Como se sabe, Sérgio Buarque de Holanda não pretendeu fazer da “cordialidade” uma qualidade positiva do brasileiro, mas destacar um traço sociológico, com aspectos positivos e negativos, que explica a sociedade brasileira. A “cordialidade” do brasileiro seria

uma

herança do desenvolvimento histórico do país, particularmente do patrimonialismo dos portugueses, que teria conformado o brasileiro como um sujeito informal, generoso, hospitaleiro, caloroso, mas também vingativo quando se trata de defender seu grupo. Em “Le ‘coronel’ Bento”, de D’Oultremer à Indigo, Cendrars destaca essa “cordialidade” do brasileiro do interior, na generosidade, na hospitalidade, na valorização e na proteção da família e do grupo, num quadro patriarcal. A “cordialidade” de Bento está também no seu lado “selvagem”, descrito como um sujeito “autoritário”, “tirano”, um “caudilho”, com muitos inimigos, que alcança e mantém seu domínio com o uso não só do que há de positivo na “cordialidade”, mas, também, com a força que lhe é particular conforme o paradigma buarqueano. Note-se, além disso, o valor dado por Cendrars à miscigenação entre os patrões brancos e os índios ou caboclos da floresta equatorial. Outro ponto que Cendrars desenvolve em “Le ‘coronel’ Bento” é o folclore. Seria mais correto falar em invenção ou recriação do folclore nesse gênero híbrido que são suas “histórias verdadeiras”. Faz-nos lembrar o uso do folclore por Mário de Andrade, especialmente, no seu relato da viagem à Amazônia, em que ele inventa alguns costumes indígenas nos episódios dos Pacaás Novos e dos Índios Dó-Mi-Sol, o que André Botelho 1552

chamou de “etnografia imaginária”8. Repetindo uma das características mais presentes nos personagens “limítrofes” de Cendrars, que marcam a transição entre civilização e seus “confins”, Bento tem marcas aparentes, no caso do “coronel”, uma cicatriz feita pelo lobisomem. Como num espelho de si próprio, o aleijado de guerra, o mensageiro entre dois mundos, esses personagens, marcados por suas experiências com o “primitivo”, costumam introduzir histórias lendárias, folclóricas, nos relatos de Cendrars. Trata-se aqui do episódio do lobisomem que aterrorizava a fazenda do “coronel” Bento, que marca a tensão entre “civilização” e esse espaço-outro “primitivo”, “selvagem”. Note-se, nesse episódio, que, à sua reinvenção do folclore, da lenda do lobisomem, Cendrars relaciona a mediação dos costumes cristãos, recriando, ou melhor, transfigurando o universo patriarcal e religioso do interior do Brasil à sua época. Observe-se, nessa recriação da lenda, a transfiguração do espaço brasileiro num universo mágico, místico, no qual o “primitivo”, o reverso de tudo, domina. Bento precisa exorcisar o monstro para livrar a região de todo tipo de infortúnios causados por ele.9 Vemos aí o uso do folclore como metodologia para abordar a cultura popular brasileira, assim como, em outras partes de suas “histoires vraies”, Cendrars usa a etnografia para o mesmo fim. Como Mário de Andrade, ele extrapola as lendas propriamente ditas, se valendo da hiperbóle e da fantasia, para sublinhar a alteridade radical que quer representar. Por isso, poderíamos usar o conceito de André Botelho para definir o uso paródico da etnografia por Mário de Andrade, o de “etnografia imaginária” 10, para caracterizar os relatos fantásticos de Blaise Cendrars, em que recria registros etnográficos ou folclóricos, como as lendas brasileiras, em termos paroxísticos. A cena da luta de Bento com o lobisomem é antológica, demonstrando como Cendrars se apropria da lenda para transfigurar o Brasil numa terra onde o topoi do drama das origens se repete inúmeras vezes.11 Vemos como a transfiguração do Brasil não se faz em Cendrars somente de imagens idílicas, ainda que ele mesmo se refira ao “paraíso” para descrever o Mato Grosso do “coronel” Bento. O paraíso de Cendrars é feito de “quedas”, de encontros com as “trevas” de um mundo de ponta-cabeça. No final dessa “história verdadeira”, a menção aos trópicos paradisíacos, cuja visão Cendrars compara à felicidade de assistir ao “nascimento do mundo” (quando tem-se a impressão de “viver pela primeira vez”, de que tudo é novo e “que se é feliz de existir”), dá ensejo ao derradeiro confronto do “coronel” Bento com os animais ferozes, do qual não sobrevive. Nascimento, morte e renascimento repetem o tema do mito das origens nos trópicos. 1553

Traçando um paralelo, esse “outro” que Cendrars conhece no Brasil, lhe serve como um alter ego que desterritorializa definitivamente o “mesmo” europeu do autor, desde o deslocamento de sua “expatriação” a partir de sua experiência da diferença no país, ao deslocamento de sua posição de escritor no mundo no retorno à origem. Esse “outro” cola na persona do autor, que passa a carregar para sempre essa diferença em si mesmo. De modo, que a posição inicial é superada por uma trajetória que se constroi dialogicamente, em reação permanente àquilo que o diferente lhe propõe, num diálogo que não só desestabiliza tudo que lhe era norma (suas insuficiências pessoais e os “vícios” dos costumes e das instituições), como não se fecha mais numa identidade estável e definitiva. Mas, ao contrário dos universais que a revolução iluminista buscou impor como modelo, Cendrars se insurge contra esse paradigma racionalista, propondo sua superação por um modelo que lhe é oposto e valoriza o que é pitoresco, autêntico, do novo território escritural do autor. Trata-se em Cendrars de uma atualização do que Sandra Sacramento chama de “locus enunciativo”, referindo-se a Mário de Andrade12. Como o amigo paulistano, Cendrars assume um novo local de fala, através do uso da narrativa fantástica e de sua mirada etnográfica. No caso da “histoire vraie” do “coronel” Bento é, sobretudo, através do uso da

narrativa

fantástica que Cendrars propõe um processo “crítico-revisionista” da formação europeia, assim como o faz Mário de Andrade em relação à formação cultural brasileira. A ideia do Brasil como utopia inscreve-se na categoria de uma alteridade fundadora no seu novo paradigma de civilização. Embora o conceito de “Utopialand” só apareça em Trop, c’est trop (1955), o tópico do Brasil como terra de utopia surge desde Feuilles de Route, de 1924, variando de recorrências como um verdadeiro paraíso, mais ocasionais, à definição de um novo modelo de utopia, que se apropria de tudo o que permanecia excluído do modelo utópico moderno, isto é, de tudo o que sempre foi considerado “primitivo”, dos instintos aos criminosos, mas, sobretudo, com a inclusão daqueles que nunca foram considerados “sujeitos” da história pela “civilização” europeia. A diferença é exaltada nesse novo modelo civilizatório, quebrando a hierarquia dos valores eurocêntricos, superando qualquer afirmação de uma evolução em direção a uma civilização ideal, perfeita. Ainda que possa haver uma afirmação de um telos brasileiro, este seria construído historicamente, seria um telos no sentido de uma evolução para uma civilização “imperfeita”, mas integradora, nos moldes do mundo às avessas que Blaise Cendrars conhece e exalta no Brasil. A ideia de paraíso em Cendrars deixa de ser excludente e autocentrada, abrindo-se à diferença radical. Sua “utopia” não é refém da ideia de perfeição. O ceticismo do autor o impede de pensar numa ideia de mundo perfeito. Nesse sentido sua “utopia” difere fundamentalmente daquela tradição de Thomas More. Blaise Cendrars se 1554

insere, antes, numa tradição cética que valoriza a alteridade, como em Montaigne. Nesse sentido, a “utopia” de Cendrars não se restringe às descrições idílicas do novo território escritural do autor, ao incorporar o que era marginal no paradigma civilizatório europeu, ela se opõe sobretudo a essas exclusões, especialmente do que seja “diferente”. A nova matriz de civilização que propõe inscreve-se pois num novo paradigma étnico, que usa como metodologia uma nova mirada etnográfica, e encontra como fundamento uma visão antieurocêntrica, multicultural e inter-étnica, na qual a diversidade social é o maior valor. Como diz Claude Leroy, “Se a utopia consiste em recusar o mundo como ele é para reformá-lo sob um modo ideal, Cendrars não tem nada de utopista.”13 Ele recusa a ordem estabelecida na Europa ocidental, mas tampouco adere ao comunismo. Opõe-se ao poder em todas as suas formas. A Primeira Guerra Mundial e sua mutilação consolidaram sua convicção de que o homem é o lobo do homem, que será confirmada nas autobiografias do pós-Segunda Guerra. Para ele, tanto conservadores como revolucionários são movidos pela vontade de uniformizar a natureza humana e as formas de organização social, tudo quanto o que ele tem ojeriza. Nesse sentido, a nosso ver, a viagem é um projeto de vida e um programa literário, para quem reivindica a margem e assume sua dissidência. Nesse sentido, como Leroy afirma, para quem não acredita no pensamento utópico, escolher um país como sua “Utopialand” é um gesto ainda mais singular, já que o Brasil não é um país inventado por Blaise Cendrars14. Portanto, não há nada em comum com a ilha imaginária da Utopia, de Thomas More, que não obedece a nenhum critério de “realidade”. Reivindicando para si o papel de testemunha, em sua transfiguração do Brasil, Blaise Cendrars recorre como metodologia tanto à historiografia, quanto à etnografia, disciplinas que tem como princípio o estudo de uma suposta “realidade”. Ainda que o autor recorra, pois, inúmeras vezes, a um poroso “princípio de realidade”, ele não parece submeter seus textos a ele. Apesar de, ocasionalmente, parecer prometer uma suposta “verdade”, e de usar essas disciplinas referenciais nos diversos gêneros que desenvolve desde sua primeira viagem ao Brasil, do poema autobiográfico a suas memórias do pós-Segunda Guerra, ele parece deliberadamente misturar “realidade” e “ficção”. Até mesmo, suas “histoires vraies”, nas quais, quase sempre, parte de um fato jornalístico ou vivido nas suas viagens, mistura-os com mitos ou lendas coletados em suas experiências no Brasil ou mesmo recriados ou totalmente inventados, como por exemplo em “Le ‘coronel’ Bento”. De forma que, mesmo “inventando” “realidades”, fazendo “ficção”, Cendrars parece estar constantemente recorrendo a uma dialética entre “real” e “fictício”. Quando constrói um novo modelo de civilização ou inventa um novo tipo de utopia, ele dialoga com a “realidade”, os fatos vividos ou aprendidos com a história e a etnografia. Mesmo quando “reinventa” ou 1555

“inventa” completamente lendas folclóricas, ele as localiza num território existente, o Brasil que conheceu. Ele pode não “submeter” sua obra a um critério de “realidade”, mas recorre constantemente a ele, embaralhando-o com a “ficção”. Parece querer deliberadamente produzir uma obra que confunda o leitor sobre o que é fato e o que não é mais que imaginação. Pode-se objetar como um cético, célebre mentiroso e ficcionista

de

grande

imaginação, como Cendrars, recorreria a um “princípio de realidade”, por mais poroso que esse seja. Como utilizar esse conceito de “realidade” ou mesmo “realidade cultural” para explicar sua obra? Recorremos a Ginzburg e, faute de mieux, ao termo “realidade externa”15, para explicar as referências nos textos em que Cendrars faz uso da etnografia e da história, tendo em conta os aspectos textuais desses gêneros, contra qualquer resquício positivista. Sua impostura está em desafiar o status quo eurocentrista e mesmo o conflito estabelecido no mundo entre a democracia ocidental, os regimes fascistas e as utopias comunistas, com a afirmação de uma terra de utopia que existe, é imperfeita e profundamente marcada por aspectos classificados como “primitivos” pelos europeus. Afirma, pois, uma civilização onde o “primitivo” tem papel preponderante e garante um eterno retorno às origens e a possibilidade da renovação, do renascimento da civilização em moldes completamente novos. Afirmar uma utopia de uma terra “de verdade” é ir contra qualquer “utopia” de perfeição. Cético, como poucos intelectuais de sua época, ao recusar tomar o partido das democracias ocidentais ou dos países comunistas, bem como, antes, dos regimes fascistas, Blaise Cendrars certamente vê nas utopias de perfeição o perigo da aspiração à perfeição, tão própria do racionalismo universalista, e que, para os críticos, teria levado a regimes totalitários no século XX. Cendrars toma o partido, no entanto, dos países latino-americanos, cujo modelo é para ele o Brasil, país cujas representações estereotipadas ele analisa: um clichê passadista, identificado à imagem de um “paraíso sobre a terra”, e outro futurista, relacionado à imagem de um “país do futuro”. A reafirmação do país como lugar mítico de renascimento, de “descoberta”, abre-se à afirmação de uma Utopialand e do advento de um novo paradigma civilizatório, onde a sociedade é produto das diferenças culturais e onde o novo homem nasce da miscigenação,

1556

admitindo até os criminosos como “agentes civilizatórios”, apesar de seus crimes, mas, na medida em que eles alargam o sentido de civilização ao confrontarem o homem com suas origens primitivas. Talvez, possamos mesmo falar de um “humanismo” cendrarsiano, um humanismo malgré soi, posto que exalta em sua obra o homem e a vida, que exalta inclusive aqueles homens marginais no modelo clássico de civilização, ainda que seja cético quanto à bondade do ser humano. A cada elogio que faz do primitivo, do brasileiro e do Brasil, Cendrars faz uma crítica intrínseca do racionalismo, do complexo europeu de “superioridade” e da hegemonia cultural da Europa, moldando sua utopia pela inversão dos valores consagrados no modelo civilizatório europeu. Nesse sentido, podemos mesmo dizer que suas aventuras nos trópicos propõem como um dos seus topói a reflexão sobre o presente e mesmo o futuro da humanidade, assim como do passado como chave para a compreensão desse presente e do futuro no qual o autor acredita. A utopia que Cendrars reterritorializa no espaço brasileiro é o desejo de uma civilização que respeite as diferenças, cujos contornos ele retira da sociedade que ele conhece no Brasil. Nesse sentido podemos dizer que no centro da utopia cendrarsiana está o “homem novo” brasileiro, que tem como referência o brasileiro comum. É dessa forma que a utopia cendrarsiana, ao contrário daquele paradigma de Thomas More, guarda, apesar e mesmo com todo recurso à fantasia, a referência a um princípio de “realidade”, de “realidade externa” 16, que o franco-suiço conhece, experimenta, em suas viagens ao Brasil, e descreve em suas narrativas, ora com cenas bem “concretas”, sob uma perspectiva etnográfica ou historiográfica, ora com uma fantasia desmesurada, recriando ou mesmo inventando mitos e lendas. Sendo que esses dois estilos aparecem e mesmo se misturam no que ele mesmo classifica como “histoires vraies”, ainda que em La vie dangereuse e em Histoires Vraies predomine a perspectiva etnográfica e em D’Oultremer à Indigo a fantasia e a recriação de lendas prevaleça sobre os estilos referenciais, apesar de que a cada uma dessas fantasias e lendas correspondam alusões à organização social e à história do Brasil. CENDRARS, Blaise. D’Oultremer à Indigo. Paris: Denoël/Folio, 2006, p. 151. LEROY, Claude, “Préface” in CENDRARS, Blaise. D’Oultremer à Indigo. Paris: Denoël/Folio, 2006, p. XIII. 3 Idem, ibidem, p. XIV. 4 Idem, ibidem, p. XIV. 5 CENDRARS, Blaise. Op. cit., 2006, p. 14. 6 BOTELHO, André. “A viagem de Mário de Andrade à Amazônia: entre raízes e rotas”, Revista do Instituto de Estudos Brasileiros nº 57, Dossiê Mário de Andrade, São Paulo, dec. 2013, in HTTP://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i57,p. 27. 7 Cf. BOTELHO, André. De olho em Mário de Andrade: uma descoberta intelectual e sentimental do Brasil. São Paulo: Claro Enigma, 2012, p. 24. Cf. MELLO E SOUZA, Gilda de. O tupi e o alaúde: uma interpretação de Macunaíma. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2003. 1 2

1557

8

BOTELHO, André. Op. cit., dec. 2013, p. 34. CENDRARS, Blaise. Op. cit., 2006, p. 49-50. 10 BOTELHO, André. Op. cit., dec. 2013, p. 34. 11 CENDRARS, Blaise. Op. cit., 2006, p. 51-52. 12 SACRAMENTO, Sandra. “Cartografias simbólicas: o mesmo e a diferença na literatura”. SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 11, n. 20, p.99-112, 1º sem. 2007, p. 9. 13 LEROY, Claude. “Préface”, in CENDRARS, Blaise. Aujourd’hui, suivi de Jéroboam et la Sirène, Sous le signe de François Villon, Le Brésil et Trop c’est trop. Tout autour d’aujourd’hui 11 (Obras completas nº 11). Paris : Denoël, 2005, p. XXV. 14 Idem, ibidem, p. XXV. 15 GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros. Verdadeiro, Falso, Fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 288. 16 Idem, ibidem, p. 288. 9

1558

Água Santa: Do Não ao Lugar – Reflexões sobre a importância do ensino de história nos dia de hoje. Karla Rodrigues da Costa Mestranda em Ensino de História ProfHistória- UERJ Professora do Ensino Fundamental – Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro Professora do Ensino Médio – Governo do Estado do Rio de Janeiro Orientador: Prof. Dr. Marcus Dezemone E-mail: [email protected] Financiamento: CAPES Resumo: Estudar história deve “abrir espaço” para construção da criticidade acerca da realidade em que se vive, uma vez que o passado e o presente servem como referência para o processo de construção da identidade. Neste sentido, a proposta deste trabalho pensa a importância do ensino de história nos dias atuais, ligado a uma perspectiva do ensino de história do lugar na Escola Municipal Brigadeiro Faria Lima, localizada no bairro de Água Santa, subúrbio do Rio de Janeiro. Palavras – Chaves: Ensino de história, memória, história do lugar. Abstrat: The study of history must “open space” for the construction of a critic view about de reality that the student lives, once that past and present are references for de process of identity construction. In that way, this work proposal is to think the relevance of history teaching in now days, connected a proposal of history of the place in the school Brigadeiro Faria Lima, located in Água Santa, Rio de Janeiro. Key words: history teaching, memory, history of the place

O que faz a grandeza da história, o que impede de ser um mero objeto de conhecimento, é que ela é a expectativa de uma resposta. François Bédarida.

A fonte de inspiração para o presente escrito, que levanta algumas questões que venho buscando responder em minha pesquisa de dissertação do mestrado, ainda em andamento, diz respeito a uma inquietação, uma pergunta, que aparece nos rostinhos dos alunos do sexto ano em todo início de ano letivo: Por que aprender história hoje? Muitos deles chegam ansiosos nessa nova empreitada, que embora não seja o início de sua vida escolar, representa um novo momento, com muitos e novos professores,

1559

normalmente uma nova escola e, na especificidade do saber histórico, uma nova proposta de como se constrói o conhecimento histórico O cenário dessas reflexões é a Escola Municipal Brigadeiro Faria Lima, localizada no bairro de Água Santa, subúrbio do Rio de Janeiro. Tal proposta visa mobilizar questões ligadas à memória e a importância da história do lugar para a construção da identidade local, de uma aprendizagem significativa e de habilidades e competências que instrumentalizem o aluno agir para além da sala de aula. Água Santa é um bairro localizado na Zona norte do Rio de Janeiro – RJ. Administrativamente pertence a região do Grande Méier. Embora seu nome tenha sempre causado certa curiosidade, a percepção e o interesse pelo bairro sempre forma restritos. Desde seu surgimento, discreto, exprimido em meio a outros bairros mais proeminentes. Passando pela construção do presídio Ary Franco, marco na percepção externa do bairro, tanto que o referido presídio é conhecido no Rio de Janeiro como “presídio de Água Santa”. E mais recentemente, a construção da Linha Amarela, via expressa de ligação com outros bairros e com sede no bairro de Água Santa, marcando esse local, como um “lugar de passagem”. Minhas reflexões giram em torno da memória, em especial como a memória do lugar pode se tornar um recurso privilegiado para problematizar o ensino de história, contribuindo para que os alunos se reconheçam como sujeitos históricos e agentes de transformações sociais. Para começarmos a trilhar esses caminhos, Manoel Luiz Salgado Guimarães aponta o início do desafio para “aqueles que se ocupam de narrar o passado em tempos de presentismo”1. Em tempos em que parece que o passado não passa, e sua evocação está na ordem do dia, em espaços formais e não formais de educação, em políticas públicas, nos meios de comunicação de massa. Como, então, orientar a prática docente e a escolha de conteúdos nos dias de hoje? Primeiramente, devemos refletir o quê esse hoje representa, como ele é apreendido e sentido. Qual relação estabelecemos com o tempo em que vivemos, o tempo que passou e aquele que estar por vir. Neste sentido, François Hartog, em seu livro Regimes de historicidade nos ajuda a problematizar o tema. O argumento do autor pressupõe que existem, ao longo da história, formas diferentes da experiência do tempo. Da relação com o tempo, hoje e ontem. Maneiras distintas de ser no tempo, que ele define como regimes de

1560

historicidade. Na definição do autor, regime de historicidade serviria para designar “a modalidade de consciência de si de uma comunidade humana”2 Hoje viveríamos uma mudança de regime de historicidade. Após a perda das grandes narrativas nacionais, e das grandes utopias que mobilizaram o mundo, o ser humano não lida mais com o tempo da mesma forma que lidava: “a ordem do tempo foi posta em questão”3 Nossa relação com o tempo é hoje marcada por uma ampliação do presente, um presente massivo, onipresente, que invade o passado e o futuro, e tem como horizonte somente ele mesmo, “um presente já passado antes de ter completamente chegado”.4 Mas este presente não é calmo e seguro, ele se mostra inquieto, gerando uma ansiedade por viver cada momento, pois este se torna passado rapidamente. Esta ansiedade desencadeia uma busca por raízes e identidade, uma obsessão pela memória: “À confiança no progresso se substituiu a preocupação de guardar e preservar: preservar o quê e quem? Este mundo, o nosso, as gerações futuras, nós mesmos” 5. Neste sentido, o dever de memória, a obrigação do patrimônio, que deve ser conservado e reabilitado, as comemorações tem relação com o presente e são uma manifestação do presentismo. Hartog, ao analisar as relações entre patrimônio e turismo, exemplifica o argumento: O patrimônio não deve ser visto a partir do passado, mas a parir do presente, como categoria de ação do presente e sobre o presente. Enfim, o patrimônio, ao tornar-se um ramo principal da indústria, é objeto de investimentos econômicos importantes. Sua ‘valorização’ se insere, então, diretamente, nos ritmos e temporalidades rápidas da economia de mercado de hoje, chocando-se e aproximando-se dela. 6

Guimarães traz a mesmas reflexões para pensar a história das “formas de lembrar”, trabalhando assim, com regimes de escrita. Primeiramente, declara o fim do regime em que a escrita do passado tinha a pretensão de ser exatamente o ocorrido, visto sua impossibilidade, no sentido em que “toda escrita é já um trabalho a posteriori de significação da própria experiência”. 7 Em seguida, salienta a importância da evocação para o trabalho do historiador, visto que a “atitude ativa de uma comunidade no presente que, ao se interrogar sobre sua existência, produz igualmente a possibilidade de uma interrogação acerca do passado”8. Ressaltando ainda que a memória, a lembrança e a recordação são atos de força na “formulação de projetos sociais, para a organização da ação social”9, e que a historicização da memória é primordial para entender o lugar da história e a história de determinada sociedade.10

1561

Essas interrogações estão presentes na sala de aula, mas muitas vezes buscam ser silenciados por uma escola ainda baseada no controle social, como afirma Thompson, e construída baseada em seleções de conteúdos de ensino distantes, que não superam ainda um regime de escrita da história baseada num acúmulo factual de informações que produzem muito pouco sentido para as experiências passadas. É imperativo questionar os sentidos que estamos construindo em tempos de presentismo e multiplicidade indenitária quando estamos diante de uma turma com o objetivo de ensinar a disciplina história. Temos que nos perguntar a natureza da História que queremos ensinar, quais os sentidos buscamos construir junto os alunos, sabendo que os sujeitos são ativos em seus percursos de aprendizagem. Depois que opções e decisões sobre o método vamos seguir, e por último, visto que nos propomos a lecionar história, as especificidades desta disciplina, visto que o professor é protagonista em promover situações que favoreçam o desenvolvimento de habilidades de pensamento e competências cognitivas.11 Transpondo as reflexões de Guimaraes para o universo escolar, e tomando como ponto de partida a tríade de Caimi, estudar história local visa pensar numa história que recuperar

a

historicidade

de

valores

silenciados,

dominados,

tornando

os

acontecimentos do passado em uma narrativa significativa, em que as experiências individuais e coletivas sejam percebidas na construção das diferentes identidades, tornando o presente inteligível para o aluno, empoderando este para uma ação mais consciente na sociedade, conferindo uma expectativa de futuro. Somemos a este quadro que começamos a esboçar as concepções da educação histórica que busca reconhecer “as ideias históricas que os sujeitos constroem a partir das suas interações sociais, o que leva os pesquisadores a ressaltar a natureza situada dessa construção e a relevância do contexto social nos percursos da aprendizagem.” 12. Neste sentido, Rusen defende que a organização do ensino deve ser pautado em conteúdos culturais, construindo a consciência histórica relacionando o ser (identidade) e dever (ação) para a orientação em uma situação presente que demande desses sujeitos uma atitude. Maria Auxiliadora Schmidt defende o ensino de história local como indicativo da construção da consciência histórica, pois possibilita identidade aos sujeitos e fornece a realidade que eles vivem uma direção temporal, uma orientação para ação por meio da memória histórica.13 Mais uma vez recorro a Guimarães, e seu argumento de que para a convivência em sociedade é necessário convocar as memórias silenciadas, dar voz a grupos que

1562

muitas vezes foram excluídos do discurso oficial e não estão comtemplados nas escritas do passado que lotam nossas escolas. Reinventar o passado permite possibilidades de elaboração do vivido, de transformação pela ação humana, condição de produção de presentes e futuros.14 “Revisitar o passado não pode ser desvinculado das demandas e exigências de um

tempo

presente e, nesse sentido, sua compreensão é também parte da inteligibilidade de uma cultura histórica que aciona experiências, imagens e atores do passado para uma contemporaneidade que busca nesse tempo que ficou para trás referências para imaginar o mundo em que se vive”15

Ao estudarmos a história do Rio de Janeiro, percebemos seu papel simbólico de condição de sede da nação, de cidade-capital. Neste papel memorial desempenhado pelo Rio de centro do Brasil e guardião da perspectiva nacional, claramente a memória suburbana como parte constituinte da cidade e da nação perde a disputa da memória construída e propagada nos meios culturais e acadêmicos, instituída nos livros didáticos e até mesmo na percepção de alguns moradores destes subúrbios, como Água Santa, que desde a sua “descoberta”, até os dias atuais, permanece esquecido e desconhecido para seus próprios habitantes, sendo poucos os que sabem sua história e origem. Contudo, mesmo silenciada, a memória de Água Santa, resiste, persiste, revestida de ausência pelo discurso oficial, aparentemente sem lugar no dia a dia da cidade e na construção da identidade de seus moradores, mas ainda assim permanece viva, buscando meios de se fazer notar. E a sala de aula se torna um local privilegiado para esta busca de significado. Para que reinventemos o passado a fim de possibilitar uma consciência histórica, presentes e futuros construídos fora de casca de ovo e que contemple as múltiplas identidades em questão na atual sociedade, devemos reinventar a função da história na escola, seus sentidos e sua escrita. Esse caminho já está sendo traçado e muitas produções argumentam neste sentido. Em termos historiográficos, a Escola dos Annales denunciava um ensino fortemente voltado ao político e ao acontecimento, que ignorava a longa duração e outros sujeitos da história. Os pedagogos denunciavam a memorização e a passividade deste método de ensinar. Assim, a ideia de progresso como construtor da felicidade é abalado e a história como guardiã da memória da nação perde seu valor. No ensino, os programas “respondem a ideia de que a história contemporânea deve ajudar na compreensão do mundo de hoje, e que ele é, portanto, indispensável para preparar ao exercício da

1563

profissão de cidadão”.16 Há um deslocamento da função cívica, de construção da nação para a construção de identidades, fragmentadas, múltiplas, livres da globalizante nacional. Pedagogicamente, o aluno deve construir o seu próprio conhecimento, refletir, trabalhar a partir de documentos e problemas. Thompson ao analisar a educação após a revolução francesa, na perpectiva das classes trabalhadoras, argumenta que o sistema educacional passa a anular a espontaneidade da criança, com medo da cultura popular autentica fora do controle de seus superiores, deixando-a em servidão moral e mental, educando para a obediência. “O desejo de dominar e de moldar o desenvolvimento intelectual e cultural do povo na direção de objetivos predeterminados e seguros permaneceu extremamente forte durante a época vitoriana e continua vivo até hoje”17 Nas universidades a educação tira as pessoas de sua identidade cultural, a experiência é reprimida, o resultado é que educação e experiência herdade serão componentes distantes, até mesmos opostos na concepção de formação escolar. A proposta do autor é que não é possível uma educação que despreze a experiência prévia dos alunos. Esta experiência influi sobre todo o

processo

educacional. Nas palavras do mesmo, é necessário promover um equilíbrio entre “rigor intelectual e respeito pela experiência”.18 Gostaria de situar as reflexões sobre o estudo da história local nesta perspectiva que valoriza a experiência, que busca atender as demandas das inúmeras experiências e trazer mais para vida. Entendendo que essa construção se faz entre o confronto do sentimento com a consciência intelectual. É necessário problematizar a identidade, as crenças e os hábitos. A valorização da experiência não é um caminho para se fechar em si mesmo e valorizar localismo e se deixar envolver pelos perigos do etnocentrismo, utilizando a história local com um fim em si mesmo. Ao contrário, é um caminho para a desnaturalização, a possiblidade de historicizar diferentes memória e vozes e perceber a construção social como uma teia multifacetada de identidades e possibilidades de ações em meio a estrutura social. Caimi, ao pensar nos desafios de ensinar e aprender história nos dias atuais, posiciona as barreiras entre memória e história. Entende que a memória pode ser um ponto de partida para construção do pensamento histórico, pois é a base do conhecimento prévio do estudante, mas o ensino de história deve ter por base a busca dos historiadores em dar sentido ao passado, utilizando métodos de investigação histórica, levando em conta nossa matriz disciplinar.

1564

“o ensino de história deve ter como parte de suas preocupações a administração de recordações, relatos e transmissões do passado, auxiliando os alunos a desenvolverem habilidades de pensamento e instrumentos para evitar as naturalizações do passado e mera recepção das tradições herdadas”.19

Como instituição colaborativa da formação humana e cidadã, a escola deve se colocar e refletir sobre as problemáticas levantadas pelos diversos autores, como a globalização, as reavaliações do passado nacional, a emergência das multiplicidades regionais e locais, o sentimento de identidade, as disputas de memória, a valorização da experiência e como e se essas variáveis podem ou devem se articular. Huyssen problematiza a questão: As contrastantes e cada vez mais fragmentadas memórias políticas de grupos sociais e éticos específicos permitem pergunta se ainda é possível, nos dias de hoje, a existência de formas de memória consensual coletiva e, em caso negativo, se e de que forma a coesão social e cultural pode ser garantida sem ela. 20

O próprio Hyussen nos aponta caminhos, ao argumentar que muitas das práticas atuais de memória buscam atuar politicamente contra a teoria globalizante, demostrando uma necessidade de ancoras espaciais e temporais, num tempo e espaço cada vez mais comprimido. As atuais demandas das minorias e a reavaliação dos passados nacionais e internacionais garantiriam o futuro da memória. Pois, representam um impulso favorável, escrevendo a história de um modo novo, expandindo a natureza do debate público acerca de democracia, cidadania e direitos humanos, além de outras necessidades ainda não alcançadas no mundo globalizado. 21 “A rememoração dá forma aos nossos elos de ligação com o passado e os modos de rememorar nos definem no presente. Como indivíduos e sociedades, precisamos do passado para construir e ancorar nossas identidades e alimentar uma visão de futuro.”22 Numa tentativa ainda de pensar sobre as questões que fomentaram estas reflexões, estudar história deve “abrir espaço” para construção da criticidade acerca da realidade em que se vive, uma vez que o passado e o presente servem como referência para o processo de construção da identidade. A partir do momento em que o aluno compreende a história e reflete sobre ela, perceber-se enquanto sujeito histórico que pode construir ou transformar a própria realidade, evidenciando aspectos políticos, sociais e culturais do seu entorno e que estão diretamente ligados ao seu modo de vida, condições e ambiente. Desta maneira, trabalhar com a memória do lugar na escola é estar ligado as demandas do presente, conscientes ou inconscientes, ao dia a dia dos alunos, suas aspirações, lutas e busca de significados, pois “a memória é incontestavelmente da atualidade” .23

1565

Em outras palavras, para se perceber como de Água Santa, tem que se lembrar de pertencer a Água Santa e disputar em outras esferas públicas o direito de habitar um lugar, legitimo e válido em todas as suas tradições e experiências, em suas memórias. Trabalhar em sala de aula com a memória do lugar é abrir possibilidades de percepção de si mesmo, do outro, de empoderamento político e social. Neste momento, é importante perceber os usos da memória como instrumento de reivindicação e emergência de consciência política e lutas sociais. Conhecer suas origens, se ligar ao lugar aonde habita ajuda a despertar um sentimento de relevância e pertencimento, no qual cuidar e preservar ganham um outro significado perante a si e aos outros. Não só é necessário lembrar o passado, mas entender as dinâmicas socais e econômicas que silenciaram essa memória. Para perceber Água Santa como um lugar de memória é preciso expressar uma vontade de memória, uma busca por sinais de reconhecimento e pertencimento, um desejo de reclamar pela própria história, uma intenção de apreender aquele lugar, de tornar ele parte constitutiva de sua identidade e do sujeito se vê como construtor de suas memórias locais Trabalhar com esses valores em sala de aula, é permitir que o aluno saía de sua zona de conforto. É instigar, despertar curiosidades, instrumentalizar o sujeito para reflexões mais críticas sobre seu entorno e da constituição de si mesmo. É poder encher de significado o estudo do passado e sua ligação com dias contemporâneos. É dar condições de ampliar seu raio de ação para além dos muros da escola, e poder se perceber como agente construtor de sua identidade e do lugar em que habita. Pollak finaliza o argumento: “guiado pela preocupação não apenas de manter as fronteiras sociais, mas também modificá-las, esse trabalho reinterpreta incessantemente o passado em função dos embates do presente e do futuro”.24 Para entendermos o estudo da história do lugar como uma possibilidade para se pensar por que ensinar história hoje, temos que nos mostrar atentos a algumas questões da praxis da história e evitar os perigos de trabalhar uma história fechada em si mesma. Não é substituir o conteúdo básico do currículo por conteúdos de história local, mas propiciar um novo sentido aos conteúdos que encontram referencias individuas e coletivas da comunidade, trabalhando a história-problema e a narrativa contextualizada, como defende Caimi, pois “conceitos se constroem sobre conteúdos e experiências, não sobre o vazio. Então, problematizar a história consiste em mobilizar conteúdos que não tem caráter estático, desvinculado no tempo e

1566

no

espaço, como fins em si mesmos, mas que, permitam aos estudantes (...) situarem-se como sujeitos da história, porque a compreendem e nela intervêm”.25

A proposta de estudar Água Santa como um lugar, em nenhum momento tem como objetivo isolar os alunos em sua realidade cotidiana, mas pelo contrário, instrumentaliza-los, a partir da percepção das diferenças, a pensar e agir em diferentes demandas de suas vidas como um todo. Despertando um sentimento de pertencimento que não restringe, mas que empodera o sujeito a perguntar, recortar, buscar informações a fim de formar um aluno mais crítico e preparado para atuar no mundo de forma mais consciente, em busca de sua felicidade e de uma perspectiva de futuro.Buscamos pensar a memória como objeto da história. Não basta conhecer, tem que haver uma intenção neste conhecimento para que haja verdadeira apreensão de seus sentidos e estimulo na construção de um novo olhar para a realidade que o cerca. Um olhar atento, que vê significado e importância, que se torna curioso, sensível, indagador. Não é suficiente dar voz aos silenciados, é necessário refletir por que é silenciada? Por quem? Qual o ganho? A partir deste exercício já se pode trabalhar em sala o pensamento histórico, trabalhando em perspectiva crítica a história do lugar, mas sem esquecer o todo da sociedade, buscando dar sentido ao ensino de história hoje. Neste sentido, valorizando a experiência defendida por Thompson, podemos partir dos conhecimentos que os alunos já trazem sobre seu bairro e propormos questões reflexivas mais aprofundadas para nortear suas pesquisas, com questionamentos como, o quê é Água Santa? Onde fica? O quê tem? Com base nas respostas dos alunos, alguns aprofundamentos podem ser propostos: O quê é ser um bairro de subúrbio? Água Santa é importante? Saber a história do nosso bairro é importante? Ao retornar aos lugares que passam cotidianamente, mas imbuídos de outro olhar, um olhar atento, que vê significado e importância, que se torna curioso, sensível, indagador, a paisagem histórica se transforma. Água Santa passa do não lugar ao lugar e os alunos podem se perceber como atuantes na construção desse lugar. O cotidiano se torna expressão concreta de problemas mais amplos, o aluno se insere pelo pertencimento a uma ordem de vivencias múltiplas no espaço nacional e internacional, possibilitando a relação do cotidiano do aluno com o cotidiano de outras pessoas em outros tempos e espaços. Schmidt defende que o ensino de história local permite uma nova forma de captação e didatização dos conteúdos, que evidenciam formas diferentes da construção

1567

de narrativas da história da cidade, gerando uma reapropriação a partir da própria experiência,

uma

contranarrativa

ao

conhecimento

dos

materiais

didáticos,

homogeneizados e sem sujeitos26. Desta maneira, inaugura-se para o aluno uma história com conteúdos encontrados em todos os lugares e na experiência humana, novas reflexões e construção de um conhecimento mais significativo, mais próximo de sua realidade, unindo teoria e a materialidade da vida concreta, enfim, buscando responder a questão mencionada no início desse artigo e que salta dos rostos curiosos dos alunos em seus embates com a história. Para respondê-la é preciso perguntar, recortar, buscar informações a fim de formar um aluno mais crítico e preparado para atuar no mundo de forma mais consciente e em busca de sua felicidade. 1

GUIMARÃES, Manuel Luiz Salgado. O presente do passado: as artes de Clio em tempos de memória. IN: ABREU, Martha; GONTIJO, Rebeca; SOIHET, Rachel. Cultura, política e leituras do passado: historiografia e ensino de História. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, pág 23 2 HARTOG François. Regimes de Historicidade – presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013, pág 28. 3 Ibd, pág 19. 4 HARTOG, HARTOG, François. Tempo e Patrimônio. In: Varia História, Belo Horizonte, vol 22, n. 36, Jul/dez 2006.pág 270. 5 Ibd pág 271. 6 Ibd pág 270. 7 GUIMARAES, op cit pág 29. 8 Ibd pág 33 9 Ibd pág 33 10 Idb pág 34 11 CAIMI, Flávia. História escolar e memória coletiva: como se ensina, como se aprende. IN: ROCHA, Helenice, et al (orgs). A escrita da história escolar: memória e historiografia. Rio de Janeiro: FGV, 2009. 12 Idb pág 70. 13 SCHMIDT, Maria Auxiliadora. O ensino de história local e os desafios da formação da consciência histórica. IN: MONTEIRO, Ana Maria; GASPARELLO, Arlette Medeiros; MAGALHÃES, Marcelo de Souza. (org). Ensino de História: sujeitos, saberes e práticas. Rio de Janeiro: Mauad X: FAPERJ, 2007. Pág 189192. 14 MAGALHAES, op cit pág 38. 15 Idb, pág 39. 16 BORNE, Dominique. Comunidade de memória e rigor crítico in Passados Recompostos, 1997, pág 136. 17 THOMPSON, E.P. Educação e experiência. In: os românticos: a Inglaterra na Era Revolucionária. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. Pág 31 18 Idb, pág 46 19 CAIMI, op cit pág 73. 20 HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela Memória: arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000, pág 19. 21 HUYSSEN, Op cit, pág 34 e 35. 22 Ibd, pág 67. 23 ROUSSO, Henry. A memória não é mais o que era. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína. Usos e abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Editora FVG, 2006, pág 94. 24 POLLAK, op cit, 1989 pág 9 e 10. 25 CAIMI, op cit pág 76. 26 SCHMIDT, op cit pág 194-196

1568

Ciência e tecnologia na Assembleia Nacional Constituinte de 1987 Katherine Nunes de Azevedo1 Resumo: Esta comunicação visa refletir sobre as discussões de Ciência e Tecnologia realizadas na Assembleia Nacional Constituinte (ANC) de 1987, por meio das proposições das instituições e atores políticos envolvidos. Consideramos que a ANC demarca uma importante etapa nas políticas de transição do regime civil militar para um sistema democrático. Desta forma, os debates desta assembleia em torno das questões que envolvem C&T são fontes que evidenciam ao pesquisador a estreita ligação de poder entre instituições científicas e Estado, em que cada agente almeja delimitar seus espaços, funções e ingerências no momento de redemocratização. Palavras-chave: Assembleia Nacional Constituinte de 1987; Ciência e tecnologia; Comunidade científica. Abstract: This Communication aims to reflect on the discussions of Science and Technology held in the National Constituent Assembly (ANC) of 1987, through the propositions of institutions and political actors involved. We believe that the ANC marks an important step in the transition policies of military civilian rule to a democratic system. Thus, assembly of the debates, on issues involving S & T are sources that show the researcher to the close connection of power between scientific institutions and state, in which each agent aims to demarcate their spaces, functions and interference at the time of democratization. Keywords: National Constituent Assembly of 1987; Science and Technology; Scientific community.

1- Introdução A apresentação exposta a seguir tem como objetivo trazer as reflexões iniciais da pesquisa de mestrado que visa analisar as discussões de Ciência e Tecnologia realizadas na Subcomissão da Ciência e Tecnologia e da Comunicação que integrava a Comissão da Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação da Assembleia Nacional Constituinte (ANC) de 1987. Devemos levar em consideração que as políticas governamentais voltadas para a ciência e tecnologia foram contempladas, em grande medida no governo civil militar no período de 1964 a 1985, momento em que o Estado brasileiro voltava-se de forma sistemática para questões referentes à possibilidade de desenvolvimento econômico por meio dos avanços científicos e tecnológicos. Como exemplo, podemos citar, dentre outras 2, a reforma universitária de 19683 e a modernização da CAPES e do CNPq4, enquanto principais

1569

agências financiadoras dos institutos de pesquisa e das universidades e instituições nos quais os cientistas tinham certo predomínio de ação. É oportuno frisar que as mesmas eram dirigidas por membros indicados pelo presidente garantindo assim, o domínio do que estava sendo desenvolvido no âmbito da C&T, demonstrando o caráter estratégico desse campo para a defesa dos interesses nacionais5. Com a economia em expansão, o regime militar impulsionou uma série

de

programas visando, sobretudo, o estímulo às técnicas por meio da importação de tecnologias que trouxesse maior dinamismo para a indústria, bem como a vinda de profissionais que pudesse ensinar o funcionamento das máquinas. Exemplo disso pode ser evidenciado nos planejamentos que objetivavam por em prática medidas gerais e setoriais. De acordo com os economistas Eduardo Guimarães, José Araújo e Fábio Erber foi através do Programa Estratégico de Desenvolvimento (PED) no governo Costa e Silva (1967-1969) que pela primeira vez realizou-se um planejamento explícito voltado para uma política científica e tecnológica para o país. A partir deste plano, outros foram desenvolvidos e aperfeiçoados tendo como marca principal o estímulo às políticas de C e T no plano econômico. Cabe destacar que não nos deteremos a explicar o teor e a aplicação dos diferentes planos estratégicos, no entanto, é relevante reconhecer que, o discurso sobre a importância do desenvolvimento da ciência e, sobretudo da tecnologia, atrelado a economia em expansão, foram utilizadas para legitimar o novo regime e trazer à tona demandas da comunidade científica, sobretudo, por maior participação na tomada de decisões e o incremento de investimentos em C e T. Segundo Regina Morel, a ciência está vinculada tanto à política quanto à economia, sendo o Estado o principal agente motivador da manutenção de uma comunidade científica competitiva a nível internacional 6. Essa percepção de que as políticas públicas voltadas para o fortalecimento de uma comunidade científica no Brasil teriam um impacto na criação de novas tecnologias nacionais configurou-se como uma etapa relevante na história da C&T no Brasil, culminando em 1985 no governo de Tancredo Neves a criação do Ministério da Ciência e Tecnologia7 a partir de pressões advindas de membros da comunidade científica e políticos, como Renato Archer8. A ideia da criação de um ministério que centralizasse e coordenasse os programas e ações voltadas para uma política nacional de Ciência e Tecnologia não era unânime entre os cientistas devido especialmente, a possibilidade de perda de poder e de autonomia nas decisões do CNPq. Estes dissensos foram evidenciados por Ana Maria

1570

Fernandes em seu estudo sobre a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), cujas análises dos encontros anuais e boletins demonstram que entre a comunidade científica, não havia um consenso sobre a criação de um ministério de C e T.9 A partir disso, podemos inferir por meio dos trabalhos da Maria Forjaz e Ana Maria Fernandes que as opiniões desfavoráveis à criação de um ministério específico para esta área modificam-se depois das transformações estruturais ocorridas no CNPq em 1975 que teve sua sede do Rio de Janeiro transferida para Brasília e ficou subordinada à Secretaria de Planejamento (SEPLAN) abrindo, portanto, seu escopo de atuação e abrangência para outros estados brasileiros. Além disso, percebem-se certas alterações nas demandas de uma comunidade científica não homogenia que cresceu significativamente e que passava por transformações, sobretudo, depois da inserção das Ciências Humanas e Sociais nas discussões que ocorriam na SBPC e a destinação de mais recursos do CNPq para essa área. Até o presente momento são poucos os estudos que tiveram como tema e problema a criação do Ministério de Ciência e Tecnologia, motivo pelo qual, contemplaremos no desenvolvimento da dissertação este aspecto, tendo em vista que a criação do novo ministério possibilitou a centralização das agências financiadoras que, apesar de terem mantido suas autonomias, tiveram que se reorganizar diante do planejamento e execução de projetos em C e T. No desenrolar destas mudanças pós-ditadura militar foi incluída, pela primeira vez, em 1987 uma subcomissão na Assembleia Nacional Constituinte com a finalidade de discutir os rumos do desenvolvimento da C&T em longo prazo. A partir destas mudanças ocorridas no âmbito da C&T, a ANC enquanto espaço aberto para debates em torno não só de formulação de leis, mas da defesa de uma identidade do campo científico, apresentou a determinadas instituições a oportunidade de reorganizar as relações entre cientistas e o Estado a partir de uma lógica democrática. Desta forma, o momento de redemocratização é visto nesse projeto, como uma possibilidade de diferentes agentes se inserirem nos debates, antes estritos às poucas possibilidades de negociações realizadas com governo ditatorial. Cabe ainda o questionamento acerca das possíveis mudanças ou permanências na área de C e T na transição de uma ditadura para a democracia e como estes aspectos parece nas discussões da ANC em 1987.

1571

2- A dinâmica da Assembleia Nacional Constituinte e as instituições científicas e agências de fomento participantes

Em relação à Assembleia Nacional Constituinte, os preparativos que precederam as discussões e votações da Constituição Federal promulgada em 1988 iniciaram-se em novembro de 1985 com a aprovação pelo Congresso da emenda constitucional nº 26 que convocaria a ANC a ser iniciada no ano de 1986. Entretanto, a mesma só começou a deliberar em 1 de fevereiro de 1987 composta por 559 membros, sendo 487 deputados federais e 72 senadores10sob a Presidência do então Presidente do Sistema Tribunal Federal, Ministro José Carlos Moreira Alves tendo como maioria senadores e deputados ligados ao Partido do Movimento Democrático do Brasil – PMDB11 De acordo com Daniel Sarmento, a transição do regime autoritário para a democracia foi realizada pelos setores mais moderados da parcela política, que em boa parte, se mostravam favoráveis às decisões tomadas no governo militar. Desta forma, as mudanças – que não foram resultados de uma ruptura violenta de regime político – ocorreram de acordo com a pressão da maioria dos partidos “moderados”, que apesar de não constituírem uma forma hegemônica de poder, representavam um número significativo diante dos demais partidos considerados de esquerda como o PT, PC do B e PCB12. Deve-se esclarecer que tal caracterização dos partidos políticos não condiciona o comportamento dos parlamentares atuantes na ANC, na medida em que estes também atuavam de acordo com diferentes interesses, que iam além dos programas partidários. Da mesma forma que, a ligação partidária não excluiu o papel de instituições públicas e privadas no processo de transição, sendo estes importantes agentes de mobilização. Além disso, como argumentou Sarmento, ser de “esquerda” ou “direita” naquele momento, representava estar ou não associado ao regime autoritário, não constituindo, portanto, um elemento decisivo no que diz respeito ao direcionamento liberal ou conservador dos constituintes diante das deliberações13. Dentre as tarefas para a elaboração da Constituição, foram criadas oito comissões temáticas, cada uma agrupando três subcomissões, totalizando 24 subcomissões temáticas14 compostas por 21 titulares e 21 suplentes que elaboraram propostas advindas de discussões que duraram 45 dias. As oito comissões apresentaram um texto final para a Comissão de Sistematização, que por sua vez, elaborou um projeto

1572

com a finalidade de ser submetido ao Plenário da Constituinte em dois turnos de votação15. Este trabalho adotará a ciência como parte integrante da cultura, mantendo, portanto, estreitas relações entre as esferas do político, do social e do econômico. Segundo Pestre, a ciência “é por definição, uma atividade coletiva, uma atividade organizada em locais e através de instituições”16. Nesse sentido, devemos ressaltar que nem todos os grupos tiveram a mesma legitimidade de argumentações perante distintos atores políticos, motivo pelo qual, percebe-se que são as instituições consolidadas e reconhecidas nacionalmente que fizeram parte das principais discussões. Isso demonstra que o universo da ciência é um campo passível de disputas. A “autoridade científica”, portanto, é capaz de autenticar quais pessoas e instituições têm competência, ou seja, têm “autoridade” dentro do campo científico para propor intervenções pertinentes aos interesses da nação no que tange as proposições acerca da C&T17. Além disso, apesar de ser analisada em muitos casos como comunidade científica, Bourdieu rejeita a ideia de que existe uma unidade produtora, desinteressada e neutra. A ideia de comunidade, portanto, perde sentido na medida em que o que está em jogo são os conflitos advindos da busca pelo crédito científico18. Exemplos dessas disputas de autoridade podem ser vistos nos Anais

da

Comissão de Ciência e Tecnologia e da Comunicação, cujas principais entidades e ministérios convidados para as audiências que ocorreram durante os 45 dias de reuniões foram a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Associação Nacional dos Docentes do Ensino Superior (ANDES), Federação Nacional dos Engenheiros, Ministério de Ciência e Tecnologia, Federação Nacional dos Arquitetos, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Secretaria de Tecnologia da Informação (PRODASEN), Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), Secretaria Especial de Informática (SEI), Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP), Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA); Instituto Nacional de Tecnologia (INT), Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN)19.

1573

3- Considerações finais

Partindo do pressuposto que políticas científicas não são neutras e que refletem implicitamente ou não interesses sociais bem definidos 20 este projeto visa investigar, especialmente, quais foram as demandas da comunidade científica no período de redemocratização levando em consideração as transformações empreendidas pelos distintos governos miliares. Além disso, buscamos refletir também como os deputados e senadores definiam a comunidade científica destacando quem possuía mais autoridade de discurso em relação aos outros agentes, além de evidenciar como ciência e tecnologia eram concebidas pelos agentes que compuseram a Assembleia. Para finalizar, é relevante destacar, de maneira geral, alguns temas que foram discutidos na ANC. Dentre eles, podemos citar os embates sobre a divisão de recursos para medidas que beneficiassem tanto a ciência, quanto ao desenvolvimento de tecnologias. Fica evidente a pressão por parte das associações voltadas para a pesquisa e ensino na defesa de maiores recursos para a ciência enquanto saber desenvolvido nas universidades. Em contra partida, também foi debatido sobre a entrada de tecnologias e o aproveitamento destas para a criação de novos saberes locais. Além disso, levando em consideração o caráter nacionalista típico de em uma Constituição Federal, discutia-se também acerca do papel da comunidade científica brasileira no cenário internacional, bem como os planos estratégicos visando o desenvolvimento nacional. Como exemplo, podemos citar o caso da negociação do projeto de geração de luz Síncrotron, que trouxe visibilidade ao Brasil no cenário internacional na área de C e T21. Fica claro, portanto, que analisar os discursos de diferentes instituições científicas em um momento de relevância política para a História do Brasil no que tange a abertura de espaços democráticos de negociação contribuirá para o entendimento das relações entre atores ligados à C&T e o Estado, evidenciando algumas reflexões dos agentes envolvidos na defesa de certas políticas científicas nacionais visando reverter certos problemas sociais pelo uso da tecnologia e estimular a expansão do Brasil como um país com potenciais de ser uma nação “desenvolvida”.

1574

1

Graduada em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Especialista em Preservação e Gestão do Patrimônio Cultural das Ciências e da Saúde pela Fundação Oswaldo Cruz/Casa de Oswaldo Cruz (FIOCRUZ/COC); Mestranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e Saúde pela Fundação Oswaldo Cruz/Casa de Oswaldo Cruz (FIOCRUZ/COC). Bolsista da Capes. Orientação: Prof.ª Dr.ª Nara Azevedo. E-mail: [email protected] 2 Cf. MOREL, Regina. Ciência e Estado: a Política Científica no Brasil. T. A. Queiroz, São Paulo, 1979. 3 Cf. MOTTA, Rodrigo Patto Sá. As universidades e o regime militar. Cultura política brasileira e a modernização autoritária. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. 4 CNPq foi criado pela Lei nº 1.310, de 15 de janeiro de 1951 e a CAPES foi instituída pelo Decreto nº 29.741, de 11 de julho de 1951. Sobre as alterações nas quais essas agências financiadoras passaram no regime militar Cf. MOREL, Regina. Ciência e Estado: a Política Científica no Brasil. T. A. Queiroz, São Paulo, 1979, p. 73-90. 5 MOREL, Regina. Ciência e Estado: a Política Científica no Brasil. São Paulo: T. A. Queiroz, 1979, p.51. 6 MOREL, Regina. Ciência e Estado: a Política Científica no Brasil. São Paulo: T. A. Queiroz, 1979. 7 Atualmente Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. 8 Renato Archer tornou-se o primeiro ministro do então Ministério de Ciência e Tecnologia. 9 FERNANDES, Ana Maria. A construção da ciência no Brasil e a SBPC. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2000. 10 Entre os constituintes, todos os deputados federais e 49 dos senadores haviam sido eleitos em 1986. Os demais 23 senadores eram “biônicos”, eleitos indiretamente nas eleições de 1982. 11 Sobre a composição partidária do Congresso Brasileiro durante o período da Assembleia Nacional Constituinte, Cf.: MAINWARING, Scott, LIÑAN, Aníbal Pérez. Disciplina partidária: o caso da Constituinte. Lua Nova, São Paulo, n. 44, p. 97-136, abr. 1998. P. 109. 12 SARMENTO, Daniel. 21 Anos da Constituição de 1988: a Assembleia Constituinte de 1987/1988 e a Experiência Constitucional Brasileira sob a Carta de 1988. Brasília, Defensoria Pública da União, n.30, Nov./Dez. 2009, p. 11-14. 13 Idem, p. 14. 14 As 8 comissões e 24 subcomissões temáticas foram as seguintes: Comissão de Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher (Subcomissão da Nacionalidade, da Soberania e das Relações Internacionais; Subcomissão dos Direitos e Garantias Individuais; Subcomissão dos Direitos Políticos, dos Direitos Coletivos e Garantias); Comissão da Organização do Estado (Subcomissão da União, Distrito Federal e Territórios; Subcomissão dos Estados; Subcomissão dos Municípios e Regiões); Comissão da Organização dos Poderes e Sistema de Governo (Subcomissão do Poder Legislativo; Subcomissão do Poder Executivo; Subcomissão do Poder Judiciário e do Ministério Público); Comissão da Organização Eleitoral, Partidária e Garantia das Instituições (Subcomissão do Sistema Eleitoral e Partidos Políticos; Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança; Subcomissão de Garantia da Instituição, Reformas e Emendas); Comissão do Sistema Tributário, Orçamento e Finanças (Subcomissão de Tributos, Participação e Distribuição de Receitas; Subcomissão de Orçamento e Fiscalização Financeira; Subcomissão do Sistema Financeiro); Comissão da Ordem Econômica (Subcomissão Princípios Gerais, Intervenção do Estado, Regime de Propriedade do Subsolo e Atividade Econômica; Subcomissão da Questão Urbana e Transporte; Subcomissão da Política Agrícola e Fundiária e Reforma Agrária); Comissão da Ordem Social (Subcomissão dos Direitos dos Trabalhadores e Servidores Públicos; Subcomissão de Saúde, Seguridade e do Meio Ambiente; Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias); Comissão da Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação (Subcomissão de Educação, Cultura e Esportes; Subcomissão da Ciência e Tecnologia e da Comunicação; Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso). 15 SARMENTO, Daniel. 21 Anos da Constituição de 1988: a Assembleia Constituinte de 1987/1988 e a Experiência Constitucional Brasileira sob a Carta de 1988. Brasília, Defensoria Pública da União, n.30, Nov./Dez. 2009, p. 17. 16 PRESTE, Dominique. Por uma nova História Social e Cultural das Ciências: novas definições, novos objetos, novas abordagens. In: Cadernos IG0- UNICAMP: Campinas, vol.6, nº 1, 1993, p.38. 17 BOURDIEU, Pierre. O campo científico. In: ORTIZ, Renato (org.). Pierre Bourdieu. São Paulo: Ática, 1983, p. 123-133. 18 Idem. 19 BRASIL. Assembleia Nacional Constituinte (1987). Comissão da Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação. Brasília: Senado Federal. Centro Gráfico, 1987.

1575

20

MOREL, Regina. Ciência e Estado: a Política Científica no Brasil. São Paulo: T. A. Queiroz, 1979, p.23. 21 Cf. CARLOTTO, Maria Caramez. Veredas da mudança na ciência brasileira: discurso, institucionalização e práti8cas no cenário contemporâneo. São Paulo: Associação Filosófica Scientiae Studia/ Editora 34,2013.

1576

A Revista Americana como veículo de sonhos: representações de pan-americanismo nos artigos de Norberto Piñero (1909-1919) Larissa Milanezi Fabriz1 Resumo Este estudo tem o objetivo de analisar os artigos do intelectual argentino Norberto Piñero, publicados na Revista Americana entre 1909 e 1919, espaço de sociabilidade na qual figuras proeminentes divulgavam propunham soluções para problemas do continente. Nessa revista, circularam representações de pan-americanismo e medidas no sentido de fomentar uma paz e solidariedade americana. Utilizaremos os conceitos de apropriação e representações de Chartier (1990), horizontes de expectativa e campos de experiência de Koselleck (1990) e intelectuais de Sirinelli (1998). Palavras-chave: Revista Americana; Norberto Piñero; paz e política internacional.

Abstract The present paper analyses the articles written by the argentine Norberto Piñero published at Revista Americana between 1909 and 1919, aiming to comprehend which representations of pan-americanism circulated and which measures the author suggested to foment the American peace and solidarity. We base our research at the conceptual scheme of representation and appropriation developed by Chartier (1990, 1991, 2009, 2010); space of experience and horizon of expectation from Koselleck (1990) and intellectual proposed by Sirinelli (1996, 1998). Keywords: Revista Americana; Norberto Piñero; peace and International politics. “A América conhecêmo-la aos fragmentos.” 2 Assim se inicia o texto da Redacção do primeiro número da Revista Americana, em Outubro de 1909. A revista foi criada no momento em que José da Silva Paranhos, o Barão do Rio Branco ocupava o cargo de Ministro das Relações Exteriores do Brasil e acabara de resolver questões lindeiras do país sem o recurso da guerra. Este periódico circulou de forma não contínua até o ano de 1919 e ao que parece, tornou-se espaço de circulação de representações de América e Brasil, em um momento em que a diplomacia brasileira passava a ganhar novos contornos e objetivos.

1577

O contexto histórico da criação desse periódico foi analisado por Castro (2008; 2012) 3; Bueno e Cervo (2008) 4; Pereira (2005) 5; Carvalho (2006) 6 e Santos (2010) 7. Todos esses autores destacam a mudança do eixo diplomático brasileiro da Europa no sentido de um favorecimento de relações e aproximação com os Estados Unidos e de forma mais lenta com outros países da América Latina. Esse novo direcionamento, no entanto, não significou um descarte das relações com o velho continente. O período também foi marcado pela ascensão econômica dos Estados Unidos no cenário internacional e conflitos na Europa decorrentes do Imperialismo e houve uma tentativa por parte do Ministro das relações exteriores de abrir o leque

das

relações

internacionais. Segundo Castro (2012), Rio Branco quebrou a quase exclusividade europeia e buscou solucionar os conflitos fronteiriços (ver CARVALHO, 2006 e BUENO8, 1995) com os países vizinhos sul-americanos, em uma tentativa de aumentar a influência geopolítica do Brasil. Ao mesmo tempo, tentou uma aproximação com os norte-americanos. Dentro dessa perspectiva, Rio Branco teve clareza da importância que os Estados Unidos vinham adquirindo no século que se anunciava e uma de suas medidas foi a elevação da legação em Washington à categoria de Embaixada e a escolha de Joaquim Nabuco para ocupar o cargo de embaixador brasileiro nesse país. Acreditamos que foi a partir da publicação da Revista Americana que o ministro José da Silva Paranhos, fundamentou o princípio do pacifismo que permaneceu vigente na política externa brasileira. Não é absurdo supor que este princípio também norteou os artigos divulgados na publicação e que Rio Branco quisesse atrelá-lo à imagem do Brasil; o mesmo justificaria a criação da Revista. Acreditamos que o periódico em questão se tratava de uma publicação oficial, visto que a maior parte dos colaboradores tinha algum vínculo com o Itamaraty, e também de um espaço de sociabilidade no qual diplomatas e intelectuais proeminentes da América Latina pensavam problemas contemporâneos a eles, bem como projetos de um continente unido não apenas pelo território, mas também a partir de aspectos culturais. Nossa hipótese é de que o periódico era uma estratégia para garantir prestígio para o Brasil, juntamente com a cooptação de recursos simbólicos por meio da aproximação com os norte-americanos: a materialidade de uma aproximação com os Estados Unidos aumentaria a capacidade de manobra do Brasil no jogo diplomático sul-americano, conforme estudos anteriores (FABRIZ, 2014) 9. Com esta estratégia, o

1578

Itamaraty

procurou dotar o Brasil da capacidade de defender apropriadamente os seus interesses, atuar autonomamente no meio internacional e negociar a paz. Pensamos dessa maneira por acreditar que o Barão via o Brasil como em uma situação diferenciada dentro do continente e que, sendo assim, o país deveria ocupar um lugar devido no mundo. Não é absurdo supor que poderemos encontrar esse espaço privilegiado que se queria conquistar para o Brasil nas páginas da Revista Americana. Para além de compreender os objetivos da criação da Revista, é possível perceber que este objeto cultural se transformou em um espaço de sociabilidade em que as representações de pan-americanismo circularam. Tratava-se de um espaço em que representantes da intelectualidade latino-americana tiveram a preocupação de discutir questões concernentes ao continente e de alguma maneira contribuir para o fomento de uma nação pan-americana. Assim, ora sugerindo o pan-americanismo sob liderança dos Estados Unidos e apontando a Doutrina Monroe como um aspecto positivo; ora olhando os norte-americanos com desconfiança, de uma maneira geral, o que estes intelectuais propunham era a constituição de uma união pan-americana como sinônimo de paz, solidariedade e modernidade. O argentino Norberto Piñero foi um dos intelectuais que publicou artigos10 na Revista Americana com o intuito de esclarecer e justificar a política internacional argentina daquele momento a partir de narrações históricas e projetos de futuro, nos quais era reservado à Argentina o papel de país diferenciado dentro do continente: “Si no me engano, el papel histórico de la Argentina es el de la creación de una raza 11 y de una civilización, que ha de difundirse en la paz y por medios pacíficos.” ·· Nesses artigos, o autor emitiu opiniões a respeito da importância da Doutrina Monroe para os latino–americanos, desde que contextualizada em seu período de criação e como deveriam ser as relações diplomáticas entre estes países naquele contexto específico. O mesmo iniciou sua série de artigos qualificando a guerra como um modo de expansão territorial de primitivos, que se antes tinha o propósito de conquistar bons pastos, a partir daquele momento teria o propósito de estender sua soberania e sua influência “por ideales religiosos, por antagonismos de sangre y de raza, por el acaparamiento de médios de subsistência [...] por la preponderância mercantil o marítima ó para llevar fuera de las fronteras su excedente de vida y fuerza. [...] La lucha por buenos pastos ha sido substituída por la conquista pacifica ó armada de buenos mercados”.12

1579

Ao relacionar guerra à falta de civilidade, é possível compreender que o autor descartava qualquer uso de violência na resolução dos conflitos, visto que o projeto era o de se igualar às grandes nações: “si en dia remoto há de representar la fuerza en el mundo que , en diferentes momentos y en períodos de duración variable, han representado en la historia Roma, Venecia, Holanda, España, el Império Britânico, etc, y que hoy compartem varias grandes naciones, sólo entonces habrá llegado el instante de que se preocupe de los elementos bélicos con que há de desempeñar su función fuera de sus limites territoriales.” 13

Segundo o autor, em virtude dessas disputas, muitas das rivalidades que subsistiam tinham a intenção de manter a posição conquistada e garantir sua esfera de ação, adquirindo novos mercados e matéria prima ou terras para o excedente populacional. Com essa justificativa, segundo Piñero, as nações europeias sustentavam e preparavam suas esquadras e exércitos sob um discurso paradoxal de paz. Nas palavras do autor Aunque parezca paradogico, los armamentos no respondem á la idea de la guerra, sino à la conservación de la paz. Las declaraciones de los gobiernos y de los hombres de estado lo dicem explicitamente. Cada vez que solicitam fondos para el aumento de las flotas militares y el equipo de mayor numero de soldados – y los solicitan constantemente – asseguram que armamentos son indispensable para preservar la paz.14

Sobre essa suposta atmosfera de paz que envolvia a comunidade internacional, o autor defende não seria consequência dos armamentos, mas sim um efeito do avanço da civilização e da atuação diplomática, características que poderiam ser percebidas no continente americano. Isso também justifica o posicionamento do mesmo em relação ao não investimento bélico, no sentido de não criar animosidades com os países vizinhos, visto que ainda havia o que ser feito dentro de seus próprios territórios. Nas palavras do autor, Si no me engano, el papel histórico de la Argentina es el de la creación de una raza y de una civilización, que há de difundirse en la paz y por medios pacíficos. Su expansión, durante largo tiempo, deberá operarse dentro de su propio território en todas direcciones y especialmente [...] hacia las regiones frías, porque la irradiación de la cultura es mayor. [...] su obra es vasta y compleja. Necesita ante todo conquistarse a sí misma; poblar sus desiertos con millones de hombres.15

Ao utilizar estes argumentos, fica subentendido que o autor não via com maus olhos que os países Europeus praticassem o Imperialismo, visto que, supostamente, os mesmos já teriam dado conta de todas as suas peculiaridades internas. Isso não significava que ele visse a possibilidade da recolonização do continente americano.

1580

Outro recurso utilizado pelo autor foi a apropriação de acontecimentos históricos para explicar a atuação diplomática argentina, na qual reconhece três momentos, quais sejam: i) a conquista da independência; ii) defesa e garantia da soberania externa e; iii) resolução de questões lindeiras com os países vizinhos. Narra dessa forma com a intenção de asseverar que a diplomacia argentina de maneira alguma seria belicosa. O recurso das narrações históricas não é exclusivo deste autor. Na verdade, parte considerável dos artigos publicados na Revista Americana segue uma estrutura de argumentação semelhante, na qual se narra a história a partir de fontes históricas oficiais com a finalidade de justificar atuações do presente e também definir ações para problemas do continente. Igualmente, é comum encontrar nos artigos dos intelectuais explicações históricas que justificavam o direito as fronteiras específicas; ou seja, atribuindo legitimidade a determinadas decisões e acordos diplomáticos. O uso desta estratégia de retórica16, que chamaremos aqui de retórica pan-americanista, ligada a narrações históricas também foi utilizada pelo mesmo autor para demonstrar que os Estados Unidos deveriam demonstrar que os norte-americanos tinham a melhor vontade sob os povos sul americanos no sentido de manter relações mais amistosas e o comércio mais liberal entre os habitantes deste hemisfério. Além disso, afirma que este país tinha como interesse e obrigação comum manter um sistema de paz, justiça, boa vontade e independente da escolha da forma de governo. Ou seja, não é possível perceber algum tipo de projeto de distanciamento dos Estados Unidos, pois ainda que o autor tenha afirmado que os projetos de paz e amizade apenas serviram de fachada para garantir o estabelecimento de relações comerciais lucrativas, ele não menciona esta postura como problemática. Igualmente, não é possível afirmar que ele propusesse um projeto de aproximação com este país que fosse além das relações comerciais. Da mesma forma, afirmou que a política internacional em relação à Europa não deveria ser receosa, defensiva ou negativa, mas sim de Una franca y constante aproximación, que impuse el acrecentamiento de relaciones, que asegure a los mercados que necesitan; que franquee la entrada en el território nacional; cada dia en mayor escala y en mejores condiciones de hombres útiles, invenciones, de libros, de obras artísticas [...] de todo, enfin, lo que a Europa le sobra y a estas regiones les falta.17

Relativo à Doutrina Monroe (1823), o autor fala da necessidade de colocar a importância da mesma em seu devido tempo e espaço, ou seja relativizar este enunciado e também o papel atribuído aos norte-americanos em relação ao restante do continente:

1581

“De esta suerte, por el juego de las palavras, se há podido y se puede interpretar de distintos modos la Doctrina de Monroe, cuyo papel en el pasado, cuando fué expuesta, há sido bien claro y eficaz.”18 E adiciona que naquele contexto – o início do século XXas nações americanas já estavam qualificadas para se fazerem representar no cenário internacional não somente a partir do amparo da doutrina Monroe, como também a partir de seu próprio estado de civilização alcançado. Tal possibilidade seria reflexo da elaboração e aceitação da Doutrina Drago19, bem como da participação das nações americanas na Segunda Conferência de Haya. O autor reconhece que por iniciativa dos Estados Unidos, as nações americanas foram convidadas em igualdade de condições e direitos com os demais estados, o que significou um reconhecimento efetivo das nações hispano-americanas como parte da comunidade internacional “y qui tienen personeria para intervenir em el debate y decisión de las cuestiones que atañen a esta comunidad”20. Nessa sequência de artigos, o autor também faz um levantamento das medidas e resultados que foram consequência das Conferências Pan-americanas. Ao descrever a importância da Primeira Conferência Pan-Americana em Washington (1889), organizada pelo secretário de estado norte-americano, Mr. Blaine, Norberto pdestacou que o programa tratava de discutir medidas para conservar a paz, a adoção forçosa de uma moeda única, leis protetoras de patentes, entre outras. No entanto, apesar da iniciativa, a união aduaneira ficou na teoria, pois sofrera muitas críticas: as nações sulamericanas não poderiam aceitar entregar o manejo de seu comércio aos Estados Unidos e causar transtornos em suas relações com a Europa, além de perturbar profundamente sua economia. Dessa forma o autor destaca que a conclusão da conferência se resumia à recomendação de que governos representados celebrassem tratados parciais de reciprocidade, bem como a criação da União Internacional das Repúblicas Americanas, com sede em Washington. Afirmou também que já em 1899, depois de 10 anos sem mencionar os pontos discutidos na primeira conferência, o governo dos Estados Unidos, com o intuito de acalmar os ânimos em relação à disputa com a Espanha e seus resultados, promoveu a reunião da Segunda Conferência Pan-Americana, no México, em 1901 com duração de 3 meses. Dentre as conclusões, firmou-se a adesão às convenções de Haya de 1899, adotou-se uma arbitragem obrigatória para resolver os conflitos provenientes de

1582

reclamações pecuniárias e acordos que favoreceriam os meios de transporte e o estudo de questões aduaneiras. Finalmente, sobre a Terceira Conferência Pan-Americana ocorrida no Rio de Janeiro, em 1906, o autor destacou a precisão do evento em relação aos dois anteriores e elogiou os assuntos políticos discutidos a respeito da arbitragem geral e a Doutrina de Drago – assuntos que foram deferidos na segunda conferência de Haya. Nessa conferência, foi ratificada a adesão à doutrina Drago e recomendou-se às nações participantes da conferência que dessem instruções aos delegados presentes em Haya para que procurassem transformá-la em uma doutrina internacional, colocada em vigor por todas as nações. Além disso, sugeriu-se que fosse reexaminada a cobrança excessiva e compulsiva de dívidas públicas além de buscar diminuir os conflitos que fossem exclusivamente pecuniários. Segundo o mesmo autor, este congresso havia renovado com emendas as resoluções que haviam sido adotadas no anterior a respeito de marcas e patentes; ocupou-se especialmente dos meios de comunicação e transporte, da conclusão de tratados de comércio, da difusão de dados estatísticos e mercantis, da simplificação e unificação das leis aduaneiras e consulares e da política sanitária. Foi acordado que para a conferência seguinte fosse preparado um estudo detalhado sobre o sistema monetário vigente em cada uma das repúblicas americanas, sua história e flutuações. Além disso, criou uma comissão para estudar os princípios do direito internacional, público e privado, comuns na prática dos Estados americanos além de preparar um projeto de código referente a esta matéria. Finalmente, reorganizou, de forma ampla e duradoura a oficina das repúblicas americanas. Ou seja, o que Piñero pretendeu demonstrar foi a tendência do programa das conferências americanas de se ater aos interesses econômicos e financeiros, aos meios de comunicação e às relações mercantis e jurídicas, científicas e de política sanitária. Este programa havia ganhado terreno como um efeito da expansão industrial dos Estados Unidos e de sua necessidade de novos mercados para colocar parte de sua produção que o mercado interno não dava conta de absorver. Seria justamente sobre o ponto das trocas comerciais que se coincidiriam os projetos argentinos e norteamericanos. Da mesma maneira, em relação aos outros países sul-americanos

1583

a

tendência seria de uma aproximação favorecida pela construção de vias de transporte e de comunicação. A partir desse resgaste dos pontos de discussão das conferências pan-americanas, o autor reitera a importância de promover uma aproximação entre os países latinoamericanos, sem o descarte das relações com a Europa e Estados Unidos, principalmente entre Brasil, Chile e Argentina. “Los ferrocarriles internacionales a Chile, Bolivia, Paraguay, Brasil y aun en Uruguay: he ahi el mejor punto de aplicación de la diplomacia em estas regiones. Las vias de coomunicación allanarán total o parcialmente las dificultades que se opongan a las inteligências de índole comercial o a los acuerdos arancelarios, em razón del menor costo de los fletes. Por los caminhos que vayan y vengan hacia la frontera viajarán los hombres y los produtos, el intercambio crecerá y será continuo, las naciones vecina llegarán a conocerse mejor, se inspirarán confianza y podrán ayudarse em la obra comun de su adelanto y de su cultura.”21

Em adição, autor também propôs que a política internacional da Argentina era fundamentalmente industrial e não militar, visto que não era necessário investir em armas. Naquele momento ele considerava a política internacional como buscando solução tranquila para a resolução dos conflitos e a diplomacia dos direitos deveria prevalecer sob a diplomacia do equilíbrio de forças. Nesse ponto do artigo podemos asseverar que Pinero se apropriou da representação de pan-americanismo enquanto projeto de paz e solidariedade continental. O autor acrescentou que seria um erro se as nações da Argentina, Brasil e Chile iniciassem a aquisição excessiva de armamentos. Primeiro porque entre elas não havia questão conflituosa o suficiente que fosse capaz de conduzi-las a uma guerra e segundo porque se fosse possível um conflito armado pelos governantes, os quais são responsáveis por manter a paz, este não se realizaria, visto que os Estados Unidos e as nações europeias mediariam até evitá-lo para o bem desses países e do interesse de seus súditos. Portanto, a única ingerência aceitável, seria aquela de cooperação para manter a paz e facilitar aos integrantes a resolução de seus litígios. Ou seja, os Estados sul-americanos deveriam limitar seus armamentos às necessidades internas, visto que os conflitos com as nações vizinhas não era plausível. Finalmente, o autor se dedicou a analisar papel histórico da Argentina, qual seja a criação de uma raça e de uma civilização que se difundiria na paz e por meios pacíficos. Tal expansão levaria um longo tempo, pois deveria operar-se em cada parte do território Argentino. Portanto, esta nação, apesar de seu desenvolvimento já alcançado ainda estaria apenas no começo de sua tarefa interior e não deveria preocupar-se

1584

com

territórios estrangeiros. Acreditamos que essas afirmações foram feitas no sentido de insinuar que as outras nações sul-americanas também devessem adotar postura semelhante, visto que a ausência de conflitos era o que distinguia a América do restante do mundo. Conclusão A partir da leitura atenta dos artigos publicados por Norberto Piñero na Revista Americana, é possível asseverar que o autor, assim como outros intelectuais contemporâneos seus, utilizou-se da narrativa histórica – ou o campo de experiência – para delinear os aspectos que a diplomacia argentina deveria tomar a partir daquele momento, qual seja medidas que facilitassem o comércio com a Europa e Estados Unidos e o estabelecimento de relações permanentes com o restante do continente, atribuindo papel de destaque ao Chile e Brasil. Não foi possível perceber propostas de integração continental que fossem além de questões econômicas, mas não é absurdo asseverar que as constatações feitas pelo autor faziam parte de um projeto que colocava a Argentina em posição de destaque em relação aos outros países do continente. São essas proposições que chamamos aqui de sonhos portados pela Revista Americana, no sentido de que fomentariam a qualificação de continente americano como sinônimo de paz e de solidariedade.

1

A autora é Doutoranda do PPGHIS/UFES (Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações Políticas da Universidade Federal do Espírito Santo), sob orientação da Profa. Dra. Juçara Luzia Leite e tem sua pesquisa financiada pela CAPES. É Mestre pela mesma instituição. E-mail: [email protected]. 2 Ver página 19 da Revista Americana: uma iniciativa pioneira de cooperação:1909 – 1919. Ed. Facsimilar. – Brasília: Senado Federal, 2001. 3 CASTRO, Fernando Vale. Uma Revista para pensar o continente Americano. In: Revista Espaço Acadêmico. N. 86, 2008. Disponível em: . E . Um projeto de Diplomacia Cultural para a República: a Revista Americana e a construção de uma nova visão continental. Rev. Bras. Hist. [online]. 2012, vol.32, n.63, pp. 301-324. ISSN 1806-9347. . Pensando um continente: a Revista Americana e a criação de um projeto cultural para a América do Sul. Rio de Janeiro: Mauad X: FAPERJ, 2012. 4 CERVO, Amado Luiz & BUENO, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008. 5 PEREIRA, Paulo José dos Reis. A política Externa da Primeira República e os Estados Unidos: a atuação de Joaquim Nabuco em Washington (1905-1910). In: Revista Brasileira de Política Internacional. Número 48. Páginas 111-128. 2005 6 CARVALHO, Elizabeth dos Santos de. O Barão do Rio Branco e a política de aproximação com os Estados Unidos. In: Anais da Biblioteca Nacional, v. 126, 2006. Páginas 69-138. 7 SANTOS, Luís Cláudio Villafañe G. O dia em que adiaram o carnaval: Política Externa e a Construção do Brasil. São Paulo: Editora UNESP, 2010. 8 BUENO, Clodoaldo. A República e sua política exterior (1889-1902). São Paulo: Unesp/IPRI, 1995.

1585

9

FABRIZ, Larissa Milanezi. Joaquim Nabuco: pan-americanismo, circulação de representações e relações de poder (1905-1910). Orientadora: Juçara Luzia Leite. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Espírito Santo. Centro de Ciências Humanas e Naturais, 2014. 10 Ver PIÑERO, Norberto. La politica Internacional Argentina. In: Revista Americana: uma iniciativa pioneira de cooperação:1909 – 1919. Ed. Fac-similar. – Brasília: Senado Federal, 2001. Página 291-334. 11 O autor se refere à raça como uma questão de eugenia. Propôs a restrição das correntes migratórias da Ásia e da África para impedir a entrada na nação de “delincuentes, prófugos, processados por delitos comunes, inválidos, vagos, mendigos, imbecíles, locos, enfermos contagiosos o repugnantes [...]” (Idem, p. 326) e não excluir a imigração europeia. Foi veemente na questão da necessidade de proibir a imigração síria a qualquer custo, que, nas palavras do autor “lejos de ser benéfica, es nociva a la salud nacional. Sus membros, excepción hecha a una minoria muy exígua, no vienen a labrar la tierra, mejorar las industrias ni enseñar las ciencias y las artes. Vienen a ejercer un trafico mezquino que confina con la vagância, y viven aislados, en barrios separados o andan errantes por todo el país, a través del cual pasean sus baratijas y el ejemplo de su vida inferior.” (Idem, p. 326) 12 Idem, página 292. 13 Idem, página 334. 14 Idem, página 294. 15 Idem, página 334. 16 Entendemos nesse trabalho o conceito de retórica concordando com Reboul (2004), como uma ferramenta intelectual a favor da argumentação, como a arte de persuadir pelo discurso. Em outras palavras, acreditamos os intelectuais da Revista Americana utilizaram a retórica como estratégia para levar o seu público a concluir de maneira semelhante a eles, a partir de uma trama de argumentações, que defendemos ser a narração histórica. Ver REBOUL, Olivier. Introdução à retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2004. 17 Ver PIÑERO, Norberto. La politica Internacional Argentina. In: Revista Americana: uma iniciativa pioneira de cooperação:1909 – 1919. Ed. Fac-similar. – Brasília: Senado Federal, 2001. Página 291-334. Página 324. 18 Idem, página 314. 19 A Doutrina Drago, valorizada por este autor, foi proferida no contexto em que Venezuela atravessava uma situação anormal em 1902. Fazia tempo que não pagava sua dívida externa e as revoluções ocorridas em seu território haviam causado prejuízos aos estrangeiros residentes. Nesse ínterim, os governos europeus da Alemanha e da Grã-Bretanha se alarmaram e reclamaram indenização para os danos causados, bem como o pagamento dos serviços atrasados da dívida pública. Como a Venezuela recusou o pagamento, as duas nações bombardearam um dos portos venezuelanos e bloquearam as costas desse país. Frente a esse feitos, o ministro das relações externas da Argentina, Luis Drago enviou uma nota diplomática anunciando que considerava: “el principio que quisiera ver reconocido es el de que la deuda publica no puede dar lugar á la intervención armada, ni menos la ocupación material del suelo de las naciones americanas.” 20 Ver PIÑERO, Norberto. La politica Internacional Argentina. In: Revista Americana: uma iniciativa pioneira de cooperação:1909 – 1919. Ed. Fac-similar. – Brasília: Senado Federal, 2001. Página 324. 21 Idem, Página 331.

1586

Um breve estudo de fonte: o Mishné Torá e o Guia dos Perplexos de Maimônides em perspectiva (séc. XII d.C.). Layli Oliveira Rosado1 Resumo Moisés ben Maimon (1145-1204), também conhecido como Maimônides, foi o líder espiritual judaico da comunidade de Fustat, região do Egito. Polímata judeu, produziu escritos nas mais diversas áreas do conhecimento, principalmente na medicina, na filosofia e na literatura talmúdica. O Mishné Torá (1180) e o Guia dos Perplexos (1191) são considerados como seus principais trabalhos no que concerne a filosofia e tradição judaica, e tanto pela suas formas, quanto pelo seus conteúdos, geraram severas polêmicas no seio do Judaísmo medieval. O presente trabalho tem como objetivo realizar um breve estudo desses dois escritos que formam o ponto de partida para a pesquisa que está sendo realizada durante o

curso

de

doutorado.

Palavras-

chave: Judaísmo; Idade Média; Maimônides; Livro da Sabedoria; Guia dos Perlexos.

Abstract Moses ben Maimon (1145-1204), also known as Maimonides, was the Jewish spiritual leader of the community of Fustat, a region of Egypt. A Jewish scholar, he wrote about the most diverse areas of knowledge, mainly about medicine, philosophy and Talmudic literature. The Mishne Torá (1180) and The Guide for the Perplexed (1191) are considered his most important achievements concerning philosophy and Jewish tradition, and both by theirs forms and contents rise severe polemic issues on the heart of medieval Judaism. The aim of this article is to briefly study these two writes, which are the starting point to the research being developed during this doctorate. Keywords: Judaism; Middle Ages; Maimonides; Book of Wisdom; The Guide for the Perplexed. ***

1587

Maimônides foi um rabino do século XII, nascido no ano de 1135 d.C., em Córdoba (Andaluzia), e marcou profundamente a história do pensamento judaico medieval. Quando Maimônides era muito jovem sua família foi exilada da Andaluzia, e em 1160, após deslocar-se por toda a região da Península Ibérica e Oriente Próximo, sua família fixou-se em Fustat, onde atualmente é o Cairo. Ele viveu no Egito por toda a sua vida, até o seu falecimento em 1204. Maimônides era proveniente de uma família de juízes judeus, e em seus escritos demonstrou grande conhecimento da Lei judaica, sendo considerado pela comunidade judaica de sua época uma das maiores autoridades rabínicas pós-talmúdicas.2 Foi um rabino proeminente e, na posição de líder espiritual da comunidade judaica de Fustat, não agiu apenas no campo religioso, mas também teve grande influência política, podendo exercer a proteção de judeus perseguidos e favorecer o desenvolvimento cultural em sua comunidade e, por vezes, em regiões circunvizinhas. O principal objetivo de Maimônides em seus escritos era realizar a conciliação entre a razão e a fé. De fato, ele não foi o primeiro nessa tentativa de aproximar religião e filosofia, pois era uma tendência já presente no pensamento judaico medieval desde o século X. No entanto, seus escritos foram aqueles que deram mais vigor ao diálogo entre filosofia grega e tradição judaica, o que resultou em diversas polêmicas e dificultou a aceitação imediata de suas concepções pelos círculos judaicos mais tradicionalistas, os quais não compreendiam esse diálogo. Dentre suas principais obras temos o Comentário da Mishná, do qual não falaremos aqui, o Mishné Torá e o Guia dos Perplexos, os quais constituem o corpo documental da pesquisa que está sendo feita no doutorado. Maimônides iniciou o Mishné Torá por volta de 1170 e, em 1180, ele foi devidamente terminado e enviado para os estudiosos mais próximos. Quando do seu término, o Rambam já tinha compreensão do papel que desempenhava para as comunidades judaicas do Egito e como suas palavras eram consideradas importantes e, por isso, lidas pela maioria dos estudiosos. Maimônides percebeu que um dos entraves da resistência cultural da minoria seria assim o denominado “mar do Talmude”. Para um judeu comum, a imensidão de legislações e a complexidade jurídica era um empecilho para a prática cotidiana judaica. O Rambam, para tanto, queria reordenar e facilitar o acesso e a compreensão do 1588

Talmude pelo judeu comum e pouco culto. De acordo com Haddad (2003), o reconhecimento que Maimônides recebeu dos judeus como um dos maiores talmudistas da história do Judaísmo foi resultado de seu domínio nesse campo. Segundo Falbel (1984, p. 61), por exemplo,

Seshet ben Isaac dizia que antes do Mishné Torá toda a matéria legalística era muito confusa, e aqueles que não conheciam o Talmud se sujeitavam às decisões e opiniões absolutas dos juízes. [...] O livro de Maimônides, por sua clareza, tornou-se um código aberto a todos.

O Mishné Torá foi escrito originalmente em árabe e posteriormente traduzido para o hebraico. E recebeu este título por seu autor o considerar uma “Repetição da Lei Oral”. De forma que “[...] uma pessoa que leia a Lei Escrita, e depois esta recompilação, saberá dela a íntegra da Lei Oral, sem precisar consultar ou estudar outro livro qualquer” (Mishné Torá, Intr.). O Mishné Torá demorou dez anos para ser concluído, tendo como objetivo principal tornar a Lei Oral conhecida por todos os judeus e exposta em linguagem clara, deixando de lado as diferenças e as dificuldades. Com esse código, Maimônides queria orientar as comunidades judaicas na Diáspora, e inseriu nele seu repúdio pela aceitação dos preceitos sem o devido estudo (DUJOVNE, [s.d.], p. 13). No entanto, a motivação inicial que levou Maimônides a escrever seu código pode ser encontrada na carta que enviou ao seu discípulo Iossef ibn Aknin. Nela ele afirmou:

Em primeiro lugar, você deve perceber que eu não escrevi a minha obra [Mishné Torá] para me sobressair ou para ser glorificado pelos meus companheiros judeus. O Todo-poderoso sabe que o meu esforço inicial ao escrever o livro foi dirigido ao meu uso pessoal. Eu queria me aliviar das longas investigações e das sutis complexidades necessárias para descobrir um ponto importante. Quando fiquei mais velho, percebi que o meu povo estava sem um livro de leis compreensível, que abrangesse conceitos definidos, sem controvérsias e erros de texto (Epístolas, 6:3).

O Mishné Torá é uma obra de tamanho monumental. Sua forma e divisão têm como base os seiscentos e treze mandamentos do Pentateuco, os quais estão subdivididos em catorze grupos e, por isso, a obra é constituída por catorze volumes. São eles: 1. Livro da Sabedoria; 2. Livro do Amor; 3. Livro dos Períodos; 4. Livro das Mulheres; 5. Livro da Santidade; 6. Livro da Magnificência; 7. Livro das Sementes; 8. Livro do Serviço

1589

Divino; 9. Livro dos Sacrifícios; 10. Livro da Pureza; 11. Livro dos Danos; 12. Livro das Aquisições; 13. Livro dos Julgamentos; 14. Livro dos Juízes. Maimônides não tinha o intuito de apenas classificar por categoria e formular os preceitos a serem incluídos em cada volume. Ele pretendeu, também, desenvolver um conjunto doutrinário, de forma a especificar certas crenças e dogmas (GUINSBURG, 1968). O Livro da Sabedoria, o eixo do presente estudo, é o volume de maior interesse doutrinário. Ele foi o primeiro volume do Mishné Torá e nele são nítidas a amplitude temática e a preocupação filosófica do seu autor. Sendo assim, o Livro da Sabedoria não foi apenas uma exposição de princípios no sentido de compilação, mas uma verdadeira introdução ao pensamento de Maimônides. Esse Livro, por sua vez, está dividido em cinco seções: 1. Leis fundamentais da Torá; 2. Leis sobre o comportamento; 3. Leis sobre o estudo da Torá; 4. Leis sobre a idolatria e a conduta dos idólatras; 5. Leis sobre o arrependimento. Em cada grupo temático, encontramos capítulos, divididos em parágrafos razoavelmente curtos e sistemáticos. O Rambam, em seu tempo, constatou que “[...] o conhecimento dos sábios desapareceu e não existia mais a compreensão dos homens prudentes” (Mishné Torá, Intr.). Os gueonim se dedicavam a esclarecer questões acerca da Lei Oral. Contudo, Maimônides concluiu que seus comentários e suas compilações se tornaram de difícil compreensão, e poucos eram aqueles que compreendiam apropriadamente determinado texto produzido por eles. No Mishné Torá, o Rambam se propôs a estudar toda a obra literária que governa a vida religiosa judaica, com o intuito de escrever um livro que esclarecesse o que é proibido ou permitido, puro ou impuro e as outras normas da Torá. Como ele afirma na introdução de seu código:

Objetivei, com este livro, que todas as normas sejam acessíveis a jovens e velhos, quer pertençam aos preceitos toraicos ou às ordenações estabelecidas pelos sábios e profetas, de modo que nenhuma outra obra seja necessária para definir qualquer uma das Leis do Povo de Israel, e que este livro possa servir de compêndio da Lei Oral em sua íntegra, incluindo as ordenações, costumes e decretos instituídos desde os dias de Moshé Rabenu até a compilação do Talmude, conforme nos foi explicado pelos “gueonim” em todas as obras por eles compostas desde a compilação do Talmude. [...] Procurei organizar este compêndio nas divisões das leis, segundo os seus vários tópicos. [...] Cada

1590

capítulo é subdividido em parágrafos menores, para que possam ser sistematicamente memorizados (Mishné Torá, Intr.).

No entanto, apesar do caráter didático que Maimônides demonstrou em sua introdução, o Mishné Torá foi alvo de severa crítica. O código suscitou violenta oposição dos círculos rabínicos mais conservadores, principalmente dos gueonim de Bagdá. Tanto a oposição quanto a aceitação ao texto de Maimônides teve sua reação por meio de correspondências enviadas ao autor, ou tratados e comentários que concordavam ou refutavam as suas concepções. Dentre as principais críticas que fizeram ao compêndio da Lei Oral, temos aquelas feitas pelo fato de Maimônides ter reunido os preceitos sem mencionar a fonte das suas afirmações e decidir questões talmúdicas sem justificar as soluções. Além do mais, alguns estudiosos entenderam que o Rambam tinha a pretensão de apresentar o código no lugar do próprio Talmude (KOOGAN; ROSS, 1967). Maimônides respondeu várias das críticas que recebeu, inclusive aceitando algumas delas e realizando edições e adições ao texto original (GUINSBURG, 1968). Como podemos ver no seguinte trecho:

Eu colhi material espalhado a partir de várias fontes e tentei arranjá-los em um código sistematizado e metódico. Seria então de admirar que alguns erros tenham se insinuado dentro deste estudo complicado, especialmente na minha idade, quando a pessoa tem a tendência de esquecer certas referências? Por estas razões, eu aconselharia todo estudioso do meu trabalho a investigar escrupulosamente o texto e a conferir o conteúdo e as conclusões às quais chegamos. Que nenhuma pessoa se sinta restringida em examinar criticamente todos os detalhes do livro. [...] Desta forma, toda a ambiguidade e confusão serão retirados do texto e o meu principal motivo para escrever o “Código” estará concluído (Epístolas, 8:7-8).

Apesar da oposição ao Mishné Torá, o código permaneceu, até os dias atuais, como a maior obra de jurisprudência rabínica, reconhecida até mesmo por aqueles que combateram as concepções maimonidianas (HADDAD, 2003). Entretanto, a circulação desse código, a partir de 1180, deflagrou uma das maiores polêmicas internas que o Judaísmo enfrentou. Tal polêmica intensificou-se posteriormente com o término e a tradução para o hebraico do Guia dos Perplexos. Simultaneamente ao exercício da medicina e às responsabilidades de nagid, Maimônides continuou desenvolvendo seus estudos teológicos. No entanto, baseando-se 1591

num maior aporte filosófico. Ele pretendeu continuar as demonstrações dos princípios que haviam sido desenvolvidos no seu Mishné Torá. Como resultado desses estudos, Maimônides compôs sua obra máxima, o Guia dos Perplexos,3 a qual lhe deu renome universal. O Guia é reconhecido pela maioria dos estudiosos judeus como o ápice do pensamento especulativo e da filosofia judaica medieval. O Guia dos Perplexos foi terminado em 1190, originalmente em árabe, sendo traduzido para o hebraico pouco tempo depois. É particular tanto pela forma quanto pelo conteúdo, constituindo uma leitura razoavelmente difícil. Nesse escrito, Maimônides procurou realizar sua grande aspiração intelectual: a conciliação entre a filosofia grega e a religião judaica. O principal objetivo do Rambam era mostrar que existe entre a filosofia grega e a tradição judaica uma relação de identidade essencial. Sendo que, para ele, era necessário compreender tal identidade. Talvez essa tenha sido a contribuição mais relevante do Guia dos Perplexos (FALBEL, 1984). De acordo com Dujovne ([s.d.]), nesse trabalho, Maimônides manifestou sua fidelidade ao Judaísmo, assim como seu profundo conhecimento, tratando não apenas das questões de um sistema filosófico, mas também de teologia, metafísica e ética. O Guia dos Perplexos está dividido em três volumes e possui cento e setenta e seis capítulos. O tema central do primeiro volume é a análise de certas expressões bíblicas como introdução para o estudo do problema dos atributos de Deus. O segundo volume dedica-se, essencialmente, às provas da existência de Deus e à crença na Profecia. Nesse volume, Maimônides tratou também sobre a unicidade de Deus, o que, junto à prova de Sua existência, constituem o que ele entendia por duas verdades absolutas. No terceiro volume, sua atenção foi dedicada à questão escatológica, e afirmou que não se deveria buscar a causa final ou calcular quando seria o fim do Universo. O objetivo principal do Guia dos Perplexos era acompanhar o aluno no caminho até o verdadeiro conhecimento divino. Contudo, não se tratava de um aluno qualquer. De acordo com Maimônides, “O objetivo deste tratado é ilustrar um homem religioso que foi educado para acreditar na verdade de nossa santa Lei, que conscientemente cumpre seus deveres morais e religiosos, e ao mesmo tempo foi venturoso em seus estudos filosóficos” (Guia dos Perplexos I, Intr., tradução nossa).

1592

Sendo assim, o Guia dirigia-se à elite intelectual, enquanto que o Comentário sobre a Mishná e o Mishné Torá são destinados às massas e aos rabinos que estudavam a legislação talmúdica. Maimônides visava atingir os estudiosos que ele reconhecia como perplexos diante dos desafios da convivência na Diáspora. Dessa maneira, do Comentário ao Guia, passando pelo Mishné Torá, Maimônides deixa implícita uma hierarquia a ser seguida em direção ao verdadeiro conhecimento divino. Isso deflagra a existência de um discurso político inserido nesses escritos, em que cada um deles tem seu público-alvo e aponta determinadas problemáticas, tanto na forma quanto na profundidade, que envolvem níveis intelectuais específicos e diferenciados, assim como eram compreendidos pelo autor. Com esse intuito, Maimônides afirmou que não existe oposição entre filosofia grega e o ensinamento rabínico, e sim um apoio mútuo. Tratava-se, dessa forma, de uma harmonização teológica, dirigida para as dúvidas de um grupo específico. Esse grupo era o dos judeus eruditos, os quais eram iniciados nas disciplinas profanas e religiosas, mas que discordavam da possível junção entre a ciência e a filosofia com os escritos bíblicos, talmúdicos e rabínicos (GUINSBURG, 1968). Na introdução do Guia, Maimônides afirmou:

[...] o significado oculto, inclusive no sentido literal, é similar a uma pérola perdida em um quarto escuro, cheio de móveis. É certo que a pérola está na sala, mas o homem não consegue a enxergar ou saber onde ela se encontra. É como se a pérola não mais estivesse em sua posse, pois, como já foi dito, não lhe dá nenhum benefício até que ele acenda uma luz (Guia I, Intr., tradução nossa).

Nessa passagem, temos a pérola como o profundo sentido das palavras da Lei judaica, e a interpretação literal não tem valor em si. Logo, Maimônides colocou a luz que se acende como todo o conhecimento necessário para o entendimento verdadeiro dos mistérios divinos. A filosofia é, então, incluída e tida como fundamental para o estudo da tradição judaica. Sendo assim, no Guia dos Perplexos, Maimônides procurou demonstrar que as Escrituras e o Talmude, corretamente interpretados, harmonizam com a filosofia aristotélica, tendo como fundamento a metafísica de Aristóteles. Segundo Wolfson (1977), Maimônides foi um verdadeiro aristotélico medieval, o qual usou a religião

1593

judaica como uma ilustração dos conceitos filosóficos aristotélicos. O Guia dos Perplexos foi recebido com debates e polêmicas, tanto pelas conceituações quanto pelas posições adotadas por Maimônides. No início do século XIII, os debates em torno do Guia foram intensificados, uma vez que a reação antirracionalista e mística crescia na vida intelectual religiosa judaica. Maimônides provocou sérias disputas internas no Judaísmo medieval, ao tentar conciliar a religião judaica e a filosofia grega. A polêmica gerada em torno dos seus escritos ficou conhecida na história do Judaísmo como “controvérsia maimonidiana”, na qual a historiografia convencional identificou três momentos importantes: a) de 1180 a

1204;

b) de 1230 a 1232; c) de 1300 a 1306. Esses três períodos são marcados por amplo debate e discussão entre Maimônides e aqueles que defendiam suas concepções e seus opositores. A controvérsia maimonidiana foi uma série de disputas culturais, religiosas, sociais e políticas, concentrada em diversos temas centrais. Alguns dos temas do conflito são anteriores ao Rambam, enquanto outras questões foram suscitadas por suas ideias e escritos. Diversos campos da experiência humana e do pensamento religioso judaico foram abrangidos pela controvérsia. Como, por exemplo: a relação entre a razão e a filosofia grega com a fé e a tradição judaica; o que é proibido ou permitido na educação de um homem seguidor da Torá; qual é o entendimento adequado em torno do conceito de Deus expressado na Bíblia e no Talmude; conceitos teológicos como a ressurreição dos mortos;4 e o discurso de Maimônides no seu Mishné Torá quanto à especulação talmúdica e seu procedimento. Nesse sentido, importante frisar que não foi apenas o Judaísmo que percorreu esse caminho de transição. Todas as grandes religiões monoteístas também tiveram suas etapas e fases de debates, até a aceitação final de uma síntese harmônica entre a razão e a fé. No Judaísmo, Maimônides não foi o único a propor essa síntese no século XII. Abraão ibn Daud, por exemplo, também tentou conciliar filosofia com a religião anteriormente, o qual foi precedido, por sua vez, por Saadia Gaon e Samuel ibn Hofni (BEN-SASSON, 1988).

1594

Referências Bibliográficas BEN-SASSON, H. H. Historia del pueblo judío: la Edad Media. Madrid: Alianza, 1988. DUJOVNE, L. Maimônides. São Paulo: Federação Israelita de São Paulo, [s.d.]. FALBEL, N. Aristotelismo e a polêmica maimonidiana. Leopoldianum, v. XI, n. 32, p. 59 - 70, dezembro de 1984. GUINSBURG, J. (Org.). Do estudo e da oração: súmula do pensamento judeu. São Paulo: Perspectiva, 1968. HADDAD, G. Maimônides. São Paulo: Liberdade, 2003. KOOGAN, A; ROSS, R (Orgs.). Enciclopédia judaica. Rio de Janeiro: Tradição, 1967. MAIMÔNIDES. Epístolas. São Paulo: Maayanot, 1993. MAIMÔNIDES. The guide for the perplexed. 2ª ed. London: University of Chicago, 1974. MAIMÔNIDES. Mishné Torá: o livro da sabedoria. Rio de Janeiro: Imago, 2000. SHAILAT, I. Igerot ha-Rambam. 2 Vols. Maale, Israel: Adumim, 1988. WOLFSON, H. Maimonides and Halevi: a study in typical Jewish attitudes towards Greek philosophy in the Middle Ages. In: TWERSKY, I; WILLIAMS, G. (Orgs.). Studies in the history of philosophy and religion. v. 2. Cambridge: Harvard University, 1977. p. 297–337. 1

Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História Política da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, sob orientação do prof. Dr. Edgard Leite e bolsista CAPES. Email: [email protected] 2 Após a compilação do Talmude. O Talmude é um registro das discussões rabínicas quanto a Lei, costumes e história judaica. Em setores da Cristandade que almejavam atingir o status judaico de minoria tolerada por ser “receptora” do Antigo Testamento, o Talmude foi muito criticado por ser uma obra pósbíblica. O código talmúdico é composto por duas partes: a Mishná que é um compêndio escrito da Lei Oral judaica; e a Guemará, que é, por sua vez, uma discussão da Lei Oral e de temas expostos no Tanach. O Tanach consiste no conjunto mestre de livros sagrados, o que é o mais próximo do que se denomina Bíblia Judaica. Esse, por sua vez, é formado pelos escritos contidos na Torá, em Profetas (Neviim) e em Escritos (Ketuvim). Seu conteúdo é equivalente ao Antigo Testamento cristão, mas com uma divisão diferente. Basicamente, Torá é o nome dado aos cinco primeiros livros do Tanach, constituindo o texto central do Judaísmo. Os cinco livros são: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. 3 O título original no árabe é Dalalat al-Hairin. Foi traduzido para o hebraico por Samuel ibn Tibbon como Moré Nevuchim. 4 É importante destacar que a Epístola sobre a ressurreição dos mortos, de Maimônides, também foi alvo de críticas durante a primeira fase da controvérsia. No entanto, tais críticas tinham uma abordagem maisteológica, envolvendo conceitos filosófico-religiosos, e por isso não serão detalhadamente discutidas neste trabalho.

1595

Os “castelistas” e o Golpe de 1964 Leandro Arraes Liberali Mestrando em História na Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ Orientador: Prof. Dr. Ricardo Antonio Souza Mendes Coorientadora: Profª. Dr.ª Beatriz de Moraes Vieira e-mail: [email protected] O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Brasil.

O presente texto tem como objetivo apontar autores que de alguma maneira fizeram referência aos militares que ficaram conhecidos na historiografia como o grupo “castelista”. Assim, veremos como de diferentes formas os estudos indicados se entrelaçam e possibilitam entrever as estratégias, ideologia e práticas do referido grupo. No que tange à proeminência em termos de liderança que nos cabe apontar aqui, nos referimos à díade Golbery do Couto e Silva e Ernesto Geisel. Figuras que presentes na preparação e instalação do regime ditatorial, foram também responsáveis pela dissolução do regime militar brasileiro. René Armand Dreifuss, em 1964, A Conquista do Estado: ação política, poder e golpe de classe, busca demonstrar que a queda do governo João Goulart ocorreu pela culminância de um movimento civil-militar estrategicamente construído. Desde o final da década de cinquenta, o peso econômico dos interesses multinacionais já havia se tornado um fator político central na economia brasileira, fazendo com que se desenvolvesse uma intelligentsia política, militar, técnica e empresarial – diga-se, seus intelectuais orgânicos – com capacidade de organizar e influenciar as diretrizes políticas brasileiras. Na década de sessenta, o capital transnacional e a consolidação das corporações multinacionais já haviam se tornado a força econômica dominante no país. A partir daí, sua inserção no interior do aparelho de Estado e suas formas de imposição de interesses de classe se tornaram questão de tempo, com a criação de centros de formulação de estratégias e de tomada de decisões.1 Ao mesmo tempo, um pequeno número de oficiais dentro das Forças Armadas passou a constituir um núcleo político e ideológico modernizante-conservador – defensor de um desenvolvimento

industrial

completamente

integrado

ao

capitalismo

internacional,

especialmente no que diz respeito a suas práticas oligopolistas – que tinha a ESG (Escola Superior de Guerra) como reduto – e da qual foram co-fundadores.2 Devemos lembrar que antes de se tornar presidente Geisel ocupara a chefia do Gabinete Militar de Ranieri Mazzilli

1596

quando este assumiu a presidência em 1961 na crise da renúncia de Jânio Quadros e primeira tentativa de impedimento de João Goulart. Geisel voltaria a ocupar este cargo com o golpe de 1964 e a posse do marechal Castello Branco. Antes de assumir a presidência foi ministro do Superior Tribunal Militar (STM) e presidente da Petrobras, respectivamente nos governos Costa e Silva e Médici. Estagiário em Fort Leavenworth em 1944, onde se preparou para integrar a FEB como oficial de informações, Golbery do Couto e Silva era tenente-coronel quando se tornou adjunto do Departamento de Estudos da Escola Superior de Guerra em março de 1952. Sua primeira aparição política importante na vida nacional foi em fevereiro de 1954, quando redigiu um memorial que ficou conhecido como o Manifesto dos coronéis. Assinado por um grupo de 82 coronéis e tenentes-coronéis e remetido ao então ministro da Guerra, general Ciro do Espírito Santo Cardoso, manifestava críticas ao aumento de 100% no salário mínimo – o documento destacava possíveis efeitos negativos no recrutamento dos quadros inferiores do Exército, já que o novo mínimo superava o soldo dos soldados – sugerido naquele mês pelo ministro do Trabalho de Getúlio Vargas, João Goulart. Embora a manifestação tenha ocasionado a demissão de Jango, o aumento do mínimo foi ratificado por Vargas no dia 1º de maio daquele ano. Em fins de 1955 participou dos movimentos ilegais que tentaram impedir a posse do presidente eleito Juscelino Kubitschek, sendo preso por oito dias após a vitória dos legalistas liderados pelo general Lott. Nomeado chefe de gabinete da secretaria geral do Conselho de Segurança Nacional no governo Jânio Quadros, tornou-se elemento de confiança do presidente, com quem trocava quase que diariamente informações de caráter sigiloso. 3 Na crise de 1961, envolvendo a tentativa de veto à posse de Jango com a renúncia de Quadros, novo manifesto redigido por Golbery expunha as razões apontadas pelos então ministros militares para justificar outra tentativa de golpe novamente frustrada. Após a nova derrota com a posse de Goulart, Golbery pediu transferência para a reserva, passando a dedicar-se ao Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPÊS). Com o golpe bem sucedido de 1964, Golbery assumiu a chefia do Serviço Nacional de Informações (SNI), órgão recém criado pelo governo Castello Branco. Com a ascensão de Costa e Silva em 1967, Golbery foi afastado do centro do poder, assumindo a função de ministro do Tribunal de Contas da União. Aposentou-se do cargo em 1969 com a nomeação do general Emílio Garrastazu Médici para a presidência da República. Mesmo fora do centro de decisões, Golbery mantinha intensa atividade política objetivando o retorno ao centro do poder. Em 1972 se tornou presidente da multinacional Dow Chemical para a América Latina, função que viria a acumular com a de chefe do Gabinete Civil após trabalho nas articulações

1597

que culminariam com a indicação de Ernesto Geisel para a presidência da República em 1973. Segundo Dreifuss, a ESG havia se tornado um centro político-ideológico onde empresários e tecnoempresários eram conferencistas assíduos – alguns dos quais viriam a ocupar cargos importantes no primeiro e segundo escalões dos governos militares. Tornou-se um centro de difusão dos valores desenvolvimentistas dos interesses multinacionais e associados. Em meados da década de cinquenta e mais na de sessenta, a participação de oficiais militares na empresa privada já era uma realidade. Após o golpe, sua participação em diretorias de corporações multinacionais e associadas foi difundida, exercendo eles funções chave. Além disso, havia os que eram acionistas de empresas privadas.4 Além da ESG, de localização estratégica clara, os intelectuais orgânicos que determinavam as diretrizes formaram um complexo político-militar com o objetivo de atuar contra o governo de João Goulart e o alinhamento de forças sociais que apoiavam sua administração. Tratava-se do complexo IPES/IBAD (Instituto Brasileiro da Ação Democrática). O IPES foi criado no início da década de 60 por um reduzido número de empresários e logo iniciou sua campanha de recrutamento de proeminentes homens de negócios e a contratação de uma elite orgânica que tivesse a capacidade de organizar e por em prática seus interesses de classe – Dreifuss aponta Golbery como uma espécie de encarregado geral pelas operações desse movimento golpista. Instituído como uma agremiação apartidária de objetivos educacionais e cívicos, encobertava uma sofisticada campanha política, ideológica e militar, dedicada à manipulação de opiniões e à guerra psicológica. Além disso, tinham como objetivo a fusão e centralização dos grupos antigovernistas que se encontravam dispersos, além da organização de uma rede de financiamento empresarial para sustentar as atividades do Instituto.5 O IPES era inspirado no Industrial College of the Armed Forces, espécie de “colégio de aplicação” existente a par do National War College que servia para divulgar a teoria das Escolas superiores de modo mais extenso, servindo ainda para aproximar civis e militares. Enquanto o Industrial promovia seminários quinzenais em todas as cidades americanas o IPES formulou estratégias próprias para difundir sua ideologia pelo território nacional e todos os setores sociais.6 O IBAD foi o primeiro grupo de ação política e ideológica a ganhar notoriedade nacional, isso já em fins da década de 50. Constituído com a alegada finalidade de “defender a democracia”, reuniu forças econômicas nacionais e internacionais e importantes associações de classe e organizações anticomunistas, inclusive algumas paramilitares. Foi apontado como um dos principais centros de operações políticas da CIA – Agência Central de Informações dos EUA – no Rio de Janeiro. Enquanto o IPES atuava de forma subterrânea, como centro

1598

estratégico e de preparação, o IBAD agia como unidade tática que desenvolvia campanhas e assumia os sucessos ou insucessos das atividades praticadas, expondo-se mais, até por que contava com figuras relevantes da política nacional,

7

como um já conhecido golpista civil

apontado por Fidel Castro como “el hombre más reaccionario de este continente, um señor que, incluso, como solución al problema de la mendicidade em el Estado de Río de Janeiro donde es gobernador (...) propugnaba la eliminación física de los pordioseros (...) un señor de mentalidade fascista, el gobernador del Estado de Guanabara (Carlos) Lacerda, “o el cerdo”, como lo quieran llamar”.8

Entre os grupos de pesquisa e ação que faziam parte do IPES estava o GOP – Grupo de Opinião Pública. Formalmente dedicado à disseminação dos resultados de suas pesquisas e estudos e de seus objetivos e atividades, tinha a função manifesta de manipular a opinião pública por todos os meios disponíveis, tendo como objetivo a massificação de uma chamada “doutrina democrática”. Esse grupo era considerado por lideranças do movimento golpista como “a base de toda engrenagem”, a conquista da opinião pública era a essência de sua ação política. A projeção da doutrina teve seu esquema preparado pelo general Golbery, “o dissimulado Chefe Geral de Opinião Pública”, e se baseava numa guerra psicológica e ideológica desenvolvida como suporte para as atividades das unidades de ação nos sindicatos e no campo, e na mobilização militar e das classes médias. Teve alcance considerável no interior e mesmo em áreas pobres com diferentes formas de abordagem. Passando pelo envio de cartas, telegramas e telefonemas, distribuía livros e revistas de caráter anticomunista que, de acordo com o nível político, social, cultural e educacional do público, variava das formas mais maniqueístas de apresentação do comunismo até as mais teoricamente elaboradas de críticas aos sistemas socialistas – deve se levar em conta ainda o contraponto do american way of life. Confluindo na intensa campanha de imprensa e mobilização social, o grupo lançou as bases para o que culminaria na crise de Estado de 1964. 9 Tal estratégia partia da experiência de Golbery, que assegurava que o que impediu o sucesso do golpe em 1961 foi a falta de preparo ideológico, “e não se esqueceu da lição”10. Essa experiência deu a Golbery a consciência de que a ação direta não poderia se concretizar enquanto as várias lideranças golpistas estivessem disputando a chefia do movimento e respondendo a pressões pontuais – não há indícios de que esse tipo de reflexão tenha feito parte da estratégia das esquerdas brasileiras como um todo, e dos comunistas revolucionários em particular. Sabia também que nada poderia ser feito enquanto os militares não aceitassem em massa o movimento do golpe contra João Goulart, e isso só poderia ocorrer se fosse criado o imaginário de que a intervenção era legitimada pelos civis e pela

1599

ausência de controle social por parte do governo central. Tudo foi feito no sentido de criar uma atmosfera de “tensão política e a condenação pelas classes médias de diretrizes políticas do Executivo e dos projetos dos militares da esquerda e do trabalhismo”. Essa estrutura social deveria ser conduzida a um “ponto de crise” onde as Forças Armadas – cujo apoio fora simultânea e intensivamente aliciado – fossem levadas a intervir de maneira coordenada, desfechando um golpe.11 Mesmo com todo esse esforço, os resultados alcançados foram mistos nas diversas áreas de ação. Com exceção das classes médias, de importância política fundamental pelo seu peso social, onde sua influência foi ampla, as ações do complexo IPES/IBAD sofreram forte resistência e derrotas em setores tradicionalmente politizados, especialmente no movimento estudantil. Nos setores camponeses e entre as classes trabalhadores foram capazes de ocupar vácuos deixados pelas organizações da esquerda trabalhista de porte nacional, mas foram incapazes de bloqueá-las. Alcançaram sucesso parcial com a eleição de grande número de políticos conservadores, mas sem conseguir impedir a ascensão e eleição de políticos e figuras importantes do bloco nacional-reformista. Se os resultados alcançados não foram plenos, suas atividades estimularam a crise política que terminou com êxito ao conseguir que a intervenção das Forças Armadas para a derrubada de João Goulart tivesse forte apoio de importantes setores sociais.12 Junto às Forças Armadas o complexo IPES/IBAD se estruturava em conjunto com seus pares da ESG, formando o núcleo da campanha antijango. O objetivo era neutralizar o dispositivo popular de J. Goulart e minimizar as diretrizes políticas socialistas ou ditas populistas existentes no meio militar. Golbery, executivo do Instituto e formulador da ESG, se encarregou, entre outras atividades, da coordenação geral das Operações Militares e de Informação do IPES, buscando estar informado sobre as ações de todos os grupos que conspiravam contra o governo, tentando sua contenção e controle em torno da unidade coordenadora centrada no Instituto, além de monitorar militares que não aderiram ao movimento golpista. É interessante notar que nos governos de Quadros e Goulart havia dentro do CSN o Serviço Federal de Informação e Contra-Informação (SFICI), órgão encarregado de produzir informações estratégicas para o governo, porém muito pouco valorizado e utilizado. Vimos que Golbery foi o chefe desse órgão no governo Quadros. Indícios apontam que a estrutura desse órgão foi utilizada na construção da rede criada pelo IPES, e que foi também a base para a criação do SNI – Serviço Nacional de Informações – por Golbery durante o governo Castello Branco13. Outra tática era a de incitar a nomeação de militares próximos para a ocupação de postos chave nos Comandos Militares. Seu grupo civil-militar

1600

era

consultado em todas as questões militares e políticas de relevância, compondo e centro difusor da preparação estratégica e das ações táticas da elite orgânica. Assim, o papel fundamental do complexo no setor militar era o de “fazer das Forças Armadas um instrumento” e liderar um movimento que causaria a destituição do Presidente.14 Dessa forma, “o complexo IPES/IBAD se tornara o verdadeiro partido da burguesia e seu estado-maior para a ação ideológica, política e militar”. O líder ipesiano Glycon de Paiva recomendava que a ação política tinha que ser sigilosa – legal ou ilegal –, com o objetivo de criar o caos econômico e político, fomentar a insatisfação e o profundo temor ao comunismo entre patrões e empregados, bloquear as forças de esquerda no Congresso, organizar demonstrações de massa e comícios, e ,se necessário, atos de terrorismo tudo da maneira mais discreta possível. Na criação do IPES Glycon chegou a propor a ideia de que o Instituto fosse apenas uma estrutura informal para não despertar suspeitas, mas a opção de seu estrategista acabou sendo pela atuação reservada. Esta era a razão pela qual quaisquer militares que não estivessem previamente ligados ao grupo desconhecerem sua existência e atuação, o que era a maioria esmagadora. Ao mesmo tempo isso os tornava mais suscetíveis à sua campanha. O general Golbery se afirmava assim como o chefe de estado maior do bloco de poder multinacional e associado – nas palavras de Dreifuss. Não foi à toa que o próprio Glycon apontou que quem realizou a parte cerebral do golpe foi Golbery, chegando a enfatizar que “sem seu trabalho, a Revolução de Março não teria sido possível”.15 Nesse momento seria interessante fazer indicações do tipo de ideologia que era formulada pela ESG e circulava entre esta, o IPES e o IBAD, além de setores conservadores como a UDN (partido de direita União Democrática Nacional), centros que nos momentos anteriores ao golpe se encontravam entrelaçados – embora com perspectivas distintas. Ricardo Mendes, em Visões de direitas no Brasil (1961-1965), nos mostra que entre as ideias centrais se encontrava a ênfase contra o totalitarismo comunista, eliminador da liberdade religiosa, associando-se lideranças da esquerda brasileira – incluindo Getúlio Vargas, embora a filmografia do IPES tenha se apropriado positivamente desta figura para atingir as camadas mais pobres da sociedade – a Fidel Castro e à Revolução Russa. Sendo estas referências relacionadas ao anticomunismo. Ideologicamente, o nacionalismo era considerado uma ameaça à democracia pela ampliação do papel do Estado na economia 16. A crença no Estado como provedor da felicidade estaria contribuindo para que a livre iniciativa fosse cerceada. Isso seria fruto de um nacionalismo “complexado”, associado a um estatismo que, visto como um “nacionalismo estatizante”, podava a iniciativa privada. Consideravam o setor estatal incompetente e personalista, como se isso não dependesse do interesse e competência do

1601

governo no gerenciamento das empresas estatais. A presença aceitável do Estado estaria em disciplinar o mercado, impedindo o abuso do poder econômico, da sonegação e garantindo a livre concorrência. Esse tipo de presença não seria vista como intervencionismo, pois era uma forma de assegurar e conservar a propriedade privada. Esse modelo garantiria a busca pelo lucro, e geraria a capacidade de reinvestí-lo na economia. O enxugamento do corpo burocrático estatal contribuiria para isso. Esse modelo também aumentaria a capacidade de acúmulo de capitais pela maior penetração de capital estrangeiro, com a flexibilização das regras de funcionamento do mercado, da maior produtividade econômica e, principalmente, pelo controle da inflação. A busca de tal patamar de desenvolvimento não deveria ocorrer de forma desenfreada, como ocorrera nos governos considerados populistas, pois isso era visto como fator de instabilidade financeira. A defesa da democracia era apresentada como elemento prioritário para a existência desse sistema, ou seja, os interesses econômicos estariam intrinsecamente atrelados à solução dos problemas brasileiros. A legislação social existente no Brasil significava para eles o equívoco da interferência do Estado nas relações entre capital e trabalho. Foi desenvolvida no IPES, por exemplo, a ideia de que o empresário era qualquer um que trabalhasse numa empresa, eliminando a distinção de status entre patrão e empregado. Portanto, reivindicava-se a alteração da legislação trabalhista objetivando a aplicação de uma legislação de justiça social que fosse congruente com inspirações cristãs. No que tange à reforma agrária havia projetos próprios que, em geral, visavam no máximo diminuir, mas não eliminar a pobreza, vista como inevitável. A questão agrária parece ser a que gerou maiores divergências entre as direitas. A produção fílmica do IPES também se apropriava da forte religiosidade cristã presente no Brasil, vinculando-a à existência da livre iniciativa e da democracia. Quanto ao “entreguismo” de que eram acusados pelos nacionalistas de esquerda, os liberais respondiam que se deveria utilizar todos os recursos possíveis para o desenvolvimento do país, incluindo os de origem estrangeira, e que essas críticas eram feitas por uma esquerda irracional e “pseudo-nacionalista”17. Nos setores em que não houvesse interesse da iniciativa privada, o Estado deveria fazer o investimento até que isso ocorresse, então a atividade seria transferida para a livre iniciativa. 18 Basicamente, esse era o projeto dos liberais que dominavam a ESG e o IPES19, e que contava com variações dentro do próprio campo. É preciso lembrar que apesar da difusão do programa liberal, jamais houve um consenso ou preponderância militar em torno desse projeto de governo. Por exemplo, nas eleições de 1962 para o Clube Miliar o candidato nacionalista perdeu por uma pequena margem de 4.884 votos contra 4.31220. Além disso, devemos lembrar que o golpe se deu não

1602

em favor de um projeto, mas contra o projeto de Jango e as amostras de apoio às ebulições sociais e militares que terminaram por ratificar o discurso dos golpistas. De acordo com estudo realizado por Stepan Alfred, em Brasil: los militares y la política, uma pesquisa realizada em 61 logo após a tentativa frustrada, indicava que 91% dos entrevistados eram partidários de que Goulart assumisse a presidência. Entre 1961 e 1964 fica perceptível o avanço da campanha antijango que atingiria êxito em reunir as camadas de centro e de direita contra o presidente, e que só alcançaria plenitude no famoso – e celebrado pela esquerda – comício de 13 de março. Lideranças da direita como o governador de Minas Gerais, Magalhães Pinto, e de outros Estados que eram membros da UDN e foram favoráveis à manutenção da legalidade em 61, tornaram-se golpistas em 64. O periódico Correio da Manhã, que em 61 havia denunciado o golpe como uma tentativa de abolir o regime republicano de governo no Brasil e impor uma ditadura militar, em 1964 apoiava a derrubada de Goulart por considerar que sua atuação estava contribuindo para a acentuação da radicalização social. Isso também ocorreu com periódicos classificados como neutros, ou moderados, por ausência de uma ideologia específica, como o Jornal do Brasil. Entretanto, é digno de nota que o apoio à derrubada de Jango não significasse o apoio à permanência dos militares no poder, o que foi atacado nos momentos iniciais após o golpe e ao longo da militarização do Estado.21 Segundo Alfred, “no sería erróneo afirmar que la táctica de Goulart – de aproximação das massas e do apoio aos movimentos de militares de baixa patente, e sem fazer qualquer esforço para manter aliados de centro e centro-esquerda – no hizo sino disminuir el apoyo que recibía y tendió a aumentar las posibilidades de un golpe militar respaldado por buena parte de la opinión civil”. Entre a elite conspiradora da ESG e do IPES a estratégia fundamental para o desfecho do golpe era a tática de fazer crer que a derrubada de Jango seria uma atitude defensiva, que a ameaça ao estado de direito vinha de Goulart, era isso que impulsionaria a opinião pública a respaldar o golpe, o que ocorreu. 22 Porém, entre a derrubada e o apoio à militarização da vida nacional havia uma grande distância, razão pela qual o acesso ao poder foi se tornando cada vez mais restrito e a base golpista se dissolvendo, ficando restrita aos civis e militares aliados ao projeto liberal da ESG, pelo menos durante o governo Castello Branco. É importante frisar ainda que esse levantamento feito por Stepan Alfred se encontra em harmonia com os depoimentos deixados pelos militares que tiveram alguma participação no desenrolar do golpe.23 Em suas apresentações sobre esse período, o professor José Murilo de Carvalho, cientista político e membro da Academia Brasileira de Letras, além de testemunha viva dos

1603

acontecimentos, chegou a se referir às atitudes de Jango da seguinte forma: “olhando para trás eu fico com a impressão de que ele quase que fazia tudo que os inimigos gostariam que ele fizesse”24. Ao mesmo tempo que sua base era escassa, mesmo entre a esquerda, Jango tentava se aproximar de todos os setores. Entre os militares, ao mesmo tempo que se reunia com generais se aproximava de movimentos de praças, fato gerador de desconfiança e que representava para a oficialidade o risco de quebra da hierarquia, fator fundamental de aglutinação militar entre os oficiais. Enfim, Jango se recusava a tomar uma decisão definitiva sobre ao lado de quem estar e sobre como encaminhar o governo. Tudo isso contribuiu para que na oficialidade se criasse a ideia de que fosse um “fraco” sem capacidade de liderança e portanto passível de ser engolido por movimentos ou lideranças comunistas. Ou, em termos da ideologia de segurança nacional no quadro da Guerra Fria, também desenvolvida na ESG e disseminada pelo IPES25, tornava o Brasil suscetível à ameaça de infiltração comunista com o objetivo de subverter a ordem interna. No meio militar, e de acordo com indicações militares de maneira geral, entre conquistas expressivas a principal havia sido a do chefe do Estado-Maior do Exército, o general Castello Branco. Apontado como figura de mentalidade “fielmente udenista” era considerado um legalista arraigado. Segundo Abreu, até 1963 a opinião de Castello era a de que apesar de ser muito ruim, Goulart deveria ser mantido até o fim do mandato, em pouco mais de um ano. Ele só teria mudado de ideia devido ás últimas “loucuras” do governo, como a tentativa de decretação de estado de sítio, o envolvimento na revolta dos sargentos em Brasília e as ameaças ao Congresso – “reformas na lei, ou na marra” –, fatores que teriam o sensibilizado como chefe militar. Estudos importantes, além de depoimentos, indicam ainda que o estopim para o engajamento de Castello foi o comício de 13 de março, na Central do Brasil, mas também quase em frente ao Ministério da Guerra do outro lado da rua, onde o mesmo se encontrava naquele momento, engajando-se finalmente no movimento26. De acordo com Phyllis Parker, Castello teria tomado essa decisão ao ouvir e contemplar a multidão e os discursos exigindo reformas radicais que atacavam as instituições básicas, a propriedade privada e pediam a legalização do Partido Comunista. Segundo o adido militar da embaixada norte-americana, Vernon Walters, Castello, seu amigo pessoal desde a Segunda Guerra Mundial27, teria dito o seguinte: “os únicos símbolos que eu vi foram foices e martelos”.28 1 73. 2 3

4

DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado: ação política, poder e golpe de classe. p. Ibid. p. 85. FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS. Op. cit. Verbete: Golberi do Couto e Silva. DREIFUSS, René Armand. Op. cit. p. 86.

1604

5

Ibid. Op. cit. p. 173-176. COMBLIN. Pe. Joseph. A Ideologia de Segurança Nacional. p. 131-132. 7 DREIFUSS, René Armand. Op. cit. p. 111-114, 176, 179. 8 Citação feita por FICO, Carlos. O grande irmão: da Operação Brother Sam aos anos de chumbo. O governo dos Estados Unidos e a ditadura militar brasileira. p. 170. Retirada do “Discurso de Fidel Castro durante a celebração do terceiro aniversário da vitória do povo de Cuba na Praia Girón”, em 19 de abril de 1964. 9 DREIFUSS, René Armand. Op. cit. p. 208-210. 10 Ibid. 11 Ibid. p. 298-299. 12 Ibid. p. 357. 13 Entrevista de Enio Pinheiro dos Santos: D’ARAÚJO, Maria Celina ; SOARES, Glaucio A. D.; CASTRO, Celso. Os anos de chumbo: a memória militar sobre a repressão. p. 127-128. Ver também: GÓES, Walder de. O Brasil do general Geisel. p. 54. 14 DREIFUSS, René Armand. Op. cit. p. 381-383, 389. 15 Ibid. p. 177, 247, 226, 383. 16 Embora houvesse grupos nacionalistas de direita, cujo caráter do nacionalismo mereceria uma atenção específica, o objetivo aqui é destacar o liberalismo do grupo que viria a assumir o poder no primeiro governo militar, ocupando os principais cargos no governo. 17 STEPAN, Alfred. Brasil: los militares y la política. p. 216. 18 Essas referências ao liberalismo foram extraídas de: MENDES, Ricardo. Visões das direitas no Brasil (1961-1965). pp. 30, 32-33, 39, 45-47, 51-53, 55, 72, 85, 113, 184, 201. 19 Rouquié que chega a afirmar que “no Brasil, o golpe de Estado de 1964 instaura um regime autoritário, ultraliberal economicamente. Um bom número de observadores acredita, aliás, que o fim do setor público ou pelo menos de parte deste era uma ideia bem cotada entre os objetivos do novo poder. Com efeito, a fração castelista ou febista que se apossou do Estado nutre um entusiasmo aparentemente sem limites pelos valores da livre iniciativa”, embora reconheça que “entretanto, a expansão do setor público e do capitalismo de Estado, parece ser uma das marcas que distinguem o regime militar brasileiro”. Sobre essas questões ver: ROUQUIÉ, Alain. O Estado militar na América Latina. 352-353; e BEIGUELMAN, Paula. O pingo do azeite: a instauração da ditadura. p. 73, 95. 20 STEPAN, Alfred. Op. Cit. p. 57-58. 21 Essas informações foram retiradas de: STEPAN, Alfred. Op. Cit. pp. 115-117, 125, 133, 259-261. 22 Ibid. p. 121-217-230. 23 Me refiro especialmente a: D'ARAUJO, Maria Celina; SOARES, Gláucio Ary D. S.; CASTRO, Celso. Visões do golpe: a memória militar sobre 1964. 24 Há um vídeo sobre uma aula 1964: 50 anos do Golpe – José Murilo de Carvalho (altura 30’) 25 DREIFUSS, René Armand. Op. cit. p. 214. 26 ABREU, Hugo. Tempo de Crise. p. 250. 27 Na compilação MOTTA, Aricildes (Coord.). 1964 – 31 de março: o movimento revolucionário e a sua história. t. 9. Walters fala sobre essa amizade, porém não faz grandes revelações. 28 PARKER, Phyllis R. O papel dos Estados unidos no golpe de Estado de 31 de março. p. 87. 6

1605

História Social e Arquivos: breves considerações sobre os novos usos e apropriações Leandro Coelho de Aguiar Doutorando do PPGHS UERJ / Bolsista CAPES Resumo Para Hebe Castro, a história social seria uma especialidade com problemas e métodos próprios, e cujo problema central seria as reflexões acerca da constituição dos atores históricos coletivos, os comportamentos e relações entre os diversos grupos que formam as estruturas sociais. Diante deste aspecto é que se pretende chamar atenção acerca das mudanças de perspectivas e apropriações dos arquivos públicos, possibilitando pensa-los enquanto instituição construídas dentro de interações políticas e relações de poder no espaço e no tempo, devendo, para além de simples depósito de prova de uma “verdade”, ser também entendidos como possíveis objetos de estudo da História.

Abstract To Hebe Castro, the social history would be a specialty in trouble and own methods, and whose main problem would be the reflections about the constitution of collective historical actors, behaviors and relationships between the various groups that form the social structures. In the face of this is that if you want to draw attention about the change in perspective and appropriations of public files, allowing think them as an institution built within political interactions and power relations in space and time and must, in addition to simple proof of deposit a "truth", also be understood as possible objects of study of history.

TENDENCIAS DA HISTORIOGRAFIA O ofício do historiador vem passando por inúmeros processos, que podem ser entendidos como perda - ou crise - de sua identidade para alguns, ou como um processo contínuo e natural de amadurecimento da área para outros. Fato é que esse processo histórico do próprio fazer historiográfico vem merecendo observações de importantes teóricos da área. Cardoso e Vainfas organizaram dois importantes trabalhos na recente historiografia brasileira, Domínio da História (1997) e Novos domínios da História (2012), e que servem de referência aos estudos de teoria e metodologia da ação do

1606

historiador, possibilitando um panorama geral dos estudos e campos de investigação na história até início do século XXI. Especificamente no texto introdutório do livro de 2012, Cardoso possibilita pensar estes diferentes processos do fazer histórico ao buscar definir as modalidades básicas da epistemologia da história moderna. Para Cardoso, é possível dividir o pensar historiográfico em três modalidades: reconstrucionista, construcionista e desconstrucionista. O autor ainda ressalta, primeiro, não ser possível afirmar que acham apenas estes três modelos, mas que estas seriam “modalidades básicas ou principais”. Assim como o fato de que não são excludentes, pelo contrário, “agem umas sobre as outras, podem mesclar-se até certo ponto e, em função das trocas e debates, afastam-se do que seria, em cada uma delas, um estado mais ‘puro’” (CARDOSO, 2012, p. 3) Fato é que essa divisão proposta por Cardoso, serve como um recurso metodológico pertinente para este trabalho ao possibilitar de forma didática, elencar e observar as principais tendências da historiografia, possibilitando assim, uma análise acerca das mudanças dos usos e apropriações das fontes documentais arquivísticas, e do próprio arquivo, enquanto local de guarda desta documentação. Não será o foco aqui descrever pormenorizadamente cada uma destas três modalidades, mas sim, realizar um duplo trabalho de contextualiza-los no tempo e espaço e de compreende-los dentro da perspectiva dos novos usos e apropriações dos arquivos pela historiografia. O reconstrucionismo, seria o princípio da história enquanto campo científico moderno. Já vinha se formando desde o século XVII e vai se consolidar no século XIX, com Ranke, denominando-se de “escola metódica”, por buscar sua profissionalização através de regras, métodos centrados na manipulação rigorosa e imparcial das fontes primárias, acreditando assim, ser possível um conhecimento verdadeiro. Como chamou atenção Albuquerque Junior (2007), tratava-se de um período em que o “paradigma realista metafísico tenta tornar a história uma ciência da verdade exata de leis universais” (ALBUQUERQUE Junior, 2007, p. 54). Em outras palavras, através dos seus métodos científicos a história conseguia reconstruir a verdade. Duas foram as escolas importantes deste modelo, a francesa (positivistas) e a alemã (historicistas), e que estavam particularmente interessadas na dimensão política do fazer histórico. Já em meados do século XIX, acontecem importantes críticas ao fazer histórico baseado no indutivismo empirista (o que seria a base do reconstrucionismo), passando a prevalecer um caráter hipotético-dedutivo ao método científico. Esse novo caráter 1607

científico, foi uma das bases da segunda modalidade explicitada por Cardoso,

o

construcionismo. O construcionista, além de sua característica hipotético-dedutivo, possui outro princípio muito importante que o difere totalmente do reconstrutivismo, a concepção de que o sujeito cognoscente intervém ativamente no processo de construção do conhecimento por ele produzido. Em outras palavras, o historiador não só produz o conhecimento histórico, como tal produção é resultado de suas intervenções, através de seu conhecimento adquirido previamente, na delimitação dos dados e fatos utilizados enquanto fonte, resumindo, seria o “lugar social” descrito por Michel de Certeau (1995), onde tais princípios negam a ideia de “neutralidade” e “verdade histórica”. Todavia, cabe ressaltar ao fato, como fez Cardoso, de que tal intervenção do historiador “não anula a reinvindicação de objetividade quanto ao processo de conhecimento, mas sim torna necessário que se leve em conta o caráter ativo do sujeito epistêmico” (CARDOSO, 2012, p. 5). Acerca desta forma de pensar, Adam Schaff tem um excelente pensamento, para quem, a história sempre será reescrita “porque os critérios de valoração dos acontecimentos passados variam com o tempo e, por conseguinte, a percepção e seleção dos fatos históricos mudam para modificar a própria imagem da história” (SCHAFF, 1974, p. 326, apud CARDOSO, 2012, p. 8). Inúmeras foram as tendências que compartilham desta premissa construcionista, lógico que cada uma com suas especificidades. De acordo com Pizzetti (2003) as principais seriam: as de matrizes francesas (generalizada com nome de escola dos Annales), as anglo-saxônicas, de inspiração marxista (History Workshop, Labour History), a norte-americana (Herstory) e a alemã (Neue Sozialgeschichte). Por fim a terceira e última modalidade, o desconstrutivismo – ou pós-moderna. Para Cardoso – que vê de forma crítica tal perspectiva histórica – uma das bases desse pensamento pós-moderno vem das considerações de Friedrich Nietzsche, para quem a razão seria vontade de poder, onde um pensamento ou teoria não passaria de uma interpretação e escolha das coisas dentro de uma determinada realidade. Em outras palavras, Nietzsche criticava o discurso de que a razão/conhecimento não seria a única via de explicação, pois a própria razão não passa de um discurso, que só teria sentido dentro das suas lógicas racionais, abrindo assim a possibilidade de pensar que tudo é relativo.

1608

Ter em mente esta perspectiva baseada no pensamento de Nietzsche, e outros como Foucault, Lacan e Heidegger, ajuda a compreender um dos principais percursores do modelo desconstrutivista na construção do conhecimento histórico, Hayden White, para quem o discurso histórico tem que ser visto como uma interpretação do passado construído pelo historiador, podendo variar de contexto para contexto, mas que tem como princípio ser um modo narrativo de representação. De acordo com Cardoso, a noção de discurso como padrão de significado torna-se central para a concepção de conhecimento histórico pós-moderno. Para Albuquerque Junior (2007), que demonstra ter um posicionamento mais aceitável do paradigma pós-moderno no fazer histórico, a base do pós-modernismo tem seu início já com o fim da Segunda Grande Guerra Mundial, onde, Todas as promessas das filosofias da história do século 19, de uma história teleológica, atravessada pela razão, em direção à civilização, ao progresso, à liberdade e à fraternidade são calcificadas junto com milhares de japoneses (ALBUQUERQUE Junior, 2007, p. 56) Assim

sendo,

Albuquerque

Junior

busca

relativizar

toda

construção

historiográfica calcada no cientificismo e o racionalismo moderno, chamando atenção de que tudo não passa de narrativas e que ao perceber tal situação o historiador de hoje conseguirá passar a observar seus textos, não como verdade absoluta, mas como construção narrativa em um determinado lugar e tempo histórico. Acerca destes três modelos interpretativos da prática historiográfica reconstrucionista, construcionista e desconstrucionista –, cabe ressaltar que não podem ser vistos como processos evolutivos da prática historiográfica, onde um iria sobrepondo ao outro até que o anterior deixe de existir, pelo contrário, como bem chamou atenção Vainfas no texto que fecha o Novos Domínios da História (2012), é bem possível que estes modelos coexistam dentro do fazer historiográfico, “por vezes de forma harmoniosa e coerente, outras vezes de maneira desconexa”, corroborando com o próprio Cardoso, deixando a entender o caráter hibrido do que comumente chamamos de nova História, “a meio caminho do construcionismo e do desconstrucionismo” (VAINFAS, 2012, p. 320). O objetivo de utilizar o modelo proposto por Cardoso e de chamar atenção às ponderações de Vainfas é justamente a de observar alguns dos diferentes processos de criação do fazer histórico, o que em tese, ajuda a compreender também a sua ligação com a concepção de documento e de fonte histórica, o que nos remete ao objetivo deste artigo,

1609

observar os arquivos - enquanto locais de guarda documental - ao longo deste processo do fazer historiográfico, já adiantando, não apenas enquanto local de guarda dos documentos, mas também, enquanto objeto de estudo. Quando Vainfas chama atenção ao fato de que nas últimas décadas tem havido um retorno aos documentos e à pesquisa arquivística onde a ênfase do estudo recai sobre a análise da documentação que ali se encontra (não apenas pela corrente neo-historicista, mas também pelos próprios construcionistas através da influência mútua devido a convivência destes diferentes modelos), torna-se importante então realizar um trabalho de reflexão sobre as reais permanências e mudanças desta perspectiva metodológica do fazer historiográfico junto aos arquivos. O próprio autor chama atenção acerca dos retornos – que alguns veem como renovação - de alguns campos tradicionais da historiografia, como é o caso da história das relações internacionais, agora mais próxima do conceito de globalização do que dos Estados nacionais; da nova história da guerra, que trabalha numa perspectiva sociocultural das batalhas e até dos conflitos contemporâneos ligado ao tempo presente; da biografia histórica, que, mesmo com forte tendências de suas perspectivas tradicionais, acaba tendo uma forte mudança com os estudos biográficos; e da nova história política, deixando de lado as narrativas tradicionais e se aproximando das ciência política. Fato que estes retornos não ficaram segregados ao campo do debate historiográfico, mas também se ampliaram naturalmente para os dilemas metodológicos dos usos dos documentos “tradicionais” e dos arquivos. Acerca do pensamento dos historiadores do início do século XX sobre o uso e da importância dos documentos para a história, o trecho a seguir, retirado de um dos primeiros manuais didáticos sobre estudos históricos do Brasil, consegue sintetizar bem o pensamento da época. A História se faz com documentos. Documentos são trações que deixaram os pensamentos e os atos dos homens do passado. Entre os pensamentos e os atos dos homens, poucos há que deixam traços visíveis ... [...]. Por falta de documentos, a História de enormes períodos do passado da humanidade ficará sempre desconhecida. Porque nada supre os documentos: onde não há documentos não há História (apud SAMARA e TUPY, 2010, p. 16-17).

1610

Este modo de pensar do século XIX e início do XX está centrado em dois paradigmas fundamentais na época: “a História como a ciência da reconstituição do passado e o documento impresso e/ou manuscrito como a fonte fidedigna, inquestionável, das informações obtidas”. Uma visão baseada na perspectiva cientificista que era a base do pensamento positivistas e historicistas (ou do modelo Reconstrucionista, descrito por Cardoso), onde “iniciava-se o trabalho pela pesquisa nos arquivos em busca da verdade propriamente dita, que emergiria impoluta dos documentos consultados” (SAMARA e TUPY, 2010, p. 16. Destaque em negrito nosso). O século XX marcou uma profunda alteração social, principalmente com os avanços tecnológicos e questionamentos dos resultados das duas guerras mundiais. Pizzetti (2003) chama atenção ao fato de que no pós-guerra pairou-se sobre a sociedade a crise do “positivismo comtiano ou spenceriano que seguramente suportava a ideia de uma evolução progressiva da humanidade”, onde a crise destes grandes paradigmas evolucionista provocou o fim da “idade da fé no progresso humano”, dando início “a era do pensamento frágil” (PIZZETTI, 2003, p. 25). Um período de efervescência social que refletiu no próprio fazer histórico, onde “ninguém se atrevia mais a escrever história universal” (PIZZETTI, 2003, p. 25), dando abertura ao surgimento do que Cardoso chamou de modelo construcionista, tanto nas práticas científicas quanto nas suas práticas metodológicas, principalmente com o aumento da produção de informação e de tipos de documentos, possibilitando assim novos questionamentos dos historiadores. Esta nova característica do fazer histórico possibilitou a realização de importantes reflexões também acerca do conceito de “documento histórico” e assim o próprio papel dos arquivos. Duas

coisas

tornam-se

necessário

dizer.

Primeiro,

que

o

modelo

desconstrucionista, como exposto por Cardoso, foi realmente importante dentro de uma perspectiva mais teórica de pensar o fazer historiográfico, mas que, como chamou atenção Vainfas, pouco influenciou nas práticas de pesquisa no fazer histórico. Segundo, seguindo esta compreensão acima mencionada, justifica-se então que o modelo desconstrutivista acaba influenciando pouco nesta analise acerca das novas possibilidades e apropriações dos arquivos pela historiografia. Pois o foco acabou sendo a comparação entre a visão da historiografia tradicional e a nova história social, que se aproxima com o modelo construcionista proposto por Cardoso.

1611

O próprio conceito de história social passou por transformações e mudanças de sentido ao longo das práticas e modelos historiográficas. Eric Hobsbawm apresenta um modelo explicativo do entendimento da expressão história social pela historiografia até fins do século XX, dividindo em três períodos históricos (apud CASTRO, 1997). Entre 1930 e 1940, com foco nos costumes e tradições nacionais e muito ligado ao modelo reconstrucionista rankiano da história política tradicional. Dentro deste momento começou também a se despontar aquilo que se chamou escola dos Annales que se deslocava para uma “história econômica social”, que, mesmo dando ênfase para seu viés econômico, o social se encontrava presente e servia de oposição à historiografia tradicional. Entre 1950 e 1960, a história social, fortemente influenciada pelos Annales da primeira geração, já enquanto especialidade se encontrava forte dentro de uma nova postura historiográfica. Dentro de uma concepção estruturalista, ligada a antropologia de Lévi-Strauss, cresceu dentre o fazer historiográfico campos como história econômica, demográfica, e das mentalidades enquanto possibilidade de compreender problemas e questões sociais da época. Por fim pós 1970, onde a crise do estruturalismo e a expansão do entendimento de que as realidades sociais não são possíveis de serem explicados em modelos preestabelecidos, a história social passou, com forte influência da antropologia cultural, a buscar responder às novas questões com ênfase na construção de identidades e relações sociais, principalmente das “pessoas comuns”, criando assim uma fragmentação de temas e objetos dos estudos históricos. Uma importante definição de história social é proposta por Hebe Castro (1997), sob a égide de Ernest Labrousse, para quem a história social seria uma especialidade com problemas e métodos próprios, e cujo problema central as reflexões acerca da constituição dos atores históricos coletivos, os comportamentos e relações entre os diversos grupos que formam as estruturas sociais. Todas estas mudanças na forma de pensar o fazer histórico, agora pautado na história social, possibilitou significativas mudanças e aberturas de temas, objetos e fontes. Para Falcon (1997) uma importante vertente desta nouvelle histoire seria a temática ligada a concepção de poder, ou poderes, os saberes enquanto poderes e as instituições enquanto prática de poderes. Sem sombra de dúvida, Foucault foi um dos maiores expoentes do estudo deste novo objeto, que, podendo se transpor tanto para uma nova história política quanto para a história social, teve sua obra Microfísica do poder 1612

como sendo um dos marcos do pensar o poder enquanto objeto de estudo, ao pensar as múltiplas possibilidades das relações dos poderes em lugares cotidianos, como família, escola, prisão, hospital, fábrica e, puxando para o objeto deste artigo, as instituições, mais especificamente os arquivos públicos estaduais. Outra possibilidade nesta nova história seria, como descreveu Ana Canas Delgado Martins (2006), o estudo da história administrativa institucional e mais especificamente a história das práticas e instituições arquivísticas. A autora, que esteve no Brasil em 1997 integrando uma missão técnica de arquivistas e historiadores portugueses com objetivo de “identificar a documentação criada por órgãos da administração central no período colonial, existentes em instituições brasileiras”, centrando naquele primeiro momento na documentação que veio para o Brasil com a Corte portuguesa em 1808 e aqui permaneceu. Tal pesquisa documental foi a base de sua tese em Portugal e que virou livro (MARTINS, 2006. P. XIII - Introdução). Dentre as várias dificuldades encontradas pela missão portuguesa nos arquivos do Brasil, Martins chama atenção o fato da existência de lacunas “deixada pela ausência de história custodial e arquivística bem como da história administrativa e biográfica dos organismos e dos indivíduos ou famílias, o que não permite a total reconstituição das séries documentais” (MARTINS, 2006, p. XIII - Introdução). A autora cita José Honório Rodrigues, historiador e presidente do Arquivo Nacional do Brasil entre 1958 a 1964, para quem tais “ausências” e limitações são provocadas devidas “à profunda indiferença pelos arquivos em ambos os lados do Atlântico” (MARTINS, 2006, p. XIV - Introdução). BREVES CONSIDERAÇÕES FINAIS Como foi apresentado inicialmente, este artigo tem como objetivo refletir algumas considerações acerca das novas possibilidades de apropriações dos arquivos, enquanto lugar de guarda dos documentos, pela historiografia contemporânea, principalmente na história social. Inicialmente buscou-se observar as mudanças do próprio pensar e fazer historiográfico ao longo da modernidade, em decorrência dos próprios questionamentos da sociedade. Tais mudanças de paradigmas sociais influenciaram não apenas o pensar historiográfico como também suas práticas e metodologias, no estudo em questão, dos usos e apropriações dos arquivos pela historiografia. Assim sendo, pode ser observado que os arquivos, enquanto lugar de guarda de documentos que corroboram uma ação e que se transformam, aos olhos dos historiadores, 1613

possíveis fontes de pesquisa para suas indagações, também se coloca como possível objeto de estudo por este historiador na atual historiografia, deixando o estigma de um lugar de guarda da verdade, para serem analisados e refletidos enquanto instituição e objeto dentro de um processo de formação social. Por fim, buscou chamar atenção para duas possibilidades de apropriações dos arquivos enquanto objeto de estudo. Primeiro dentro de uma perspectiva das relações de poderes na construção da própria sociedade. Em segundo lugar do ponto de vista da própria análise crítica e reflexiva, das estruturas e dos documentos guardados pelos mesmos, numa tentativa de explicar possíveis escolhas e ausências dos seus acervos. BIBLIOGRAFIA ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. In: ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. Bauru: Edusc, 2007, p. 53-65. CARDOSO, Ciro Flamarion. História e conhecimento: uma abordagem epistemológica. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (Org.). Novos domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 01-20. CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (Org.). Domínio da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (Org.). Novos domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. CASTRO, Hebe. História Social. In: Cardoso, Ciro Flamarion; Vainfas, Ronaldo (Org.). Domínio da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 45-60. CERTEAU, Michel de. Operação histórica. In: Le Goff, Jacques e Nora, Pierre (Org.). História: novos problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995, p. 17-48. FALCON, Francisco. História e Poder. Cardoso, Ciro Flamarion; Vainfas, Ronaldo (Org.). Domínio da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 61-90. MARTINS, Ana Canas Delgado. Governação e Arquivos: d. João VI no Brasil. Lisboa: Torre do Tombo / Ministério da Cultura (Portugal), 2006. PIZZETTI, Silvia. Os fundamentos epistemológicos e metodológicos do conhecimento histórico. Algumas reflexões entre passado e futuro. Revista História Social, n. 10, 2003, p. 13-34. SAMARA, Eni de Mesquita; TUPY, Ismênia S. Silveira T. História & Documento e Metodologia de pesquisa. – 2° ed. – Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010.

1614

VAINFAS, Ronaldo. Avanços em xeque, retornos uteis. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (Org.). Novos domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 319-335.

1615

As Diferentes Rainhas em Fernão Lopes *Leandro Cordeiro de Souza• *Maria do Carmo Parente Santos

Resumo: O trabalho se utiliza da Crônica de D. João I, escrito por Fernão Lopes, para compreender o modelo de rainha descrito na crônica e os subterfúgios utilizados para legitimar o poder real na Dinastia de Avis. Tais personagens, são D. Felipa de Lancaster e D. Leonor Teles. A partir dessa análise, refletiremos como essas construções servem a um propósito de justificativa de poder para o rei D. João I. Palavras Chaves: Poder, Rainha, Portugal

This paper uses the Crônica de D. João I, written by Fernão Lopes, to understand the Queen model described in chronic and subterfuge used to legitimize the real power in the Avis Dynasty. Such characters are D. Felipa de Lancaster and D. Leonor Teles. From this analysis, we will reflect how these models serve a purpose of justification power in Fernão Lopes, for the king to inaugurate a new dynasty: John I. Keywords: Power, Queen, Portugal

Dentro do campo da história política, a busca por elementos que justifiquem o poder do líder são, em sua maioria, construídas e pensadas para que a população reconheça atributos que considerem positivas. A historiografia, normalmente baseada no modelo francófilo, acaba por traduzir esses atributos como algo reproduzível em outros Estados modernos europeus. No entanto, dentro da sociedade da península hispânica, conforme a autora Rucquoi1, esse modelo de justificativa não possuía validade, ou havia pouca representatividade. Ficando a pergunta, qual seria esse modelo de justificativa de poder real no final do período medieval dentro dos reinos hispânicos? Como esse modelo é apresentado dentro do Estado português no final do século XIV? Entre os exemplos possíveis de construção de justificativa de poder está o período da Dinastia de Avis que, após uma crise dinástica, ascende ao poder. Dois autores contribuíram para retratá-la: Fernão Lopes (1380/1390 – 1460) e Eanes Gomes de Zurara (1410 - 1474). Nestes autores, que elementos podemos identificar que serviram para construir um modelo que respeitasse a realidade social e legitimasse o poder real?

1616

Tentando investigar esses diferentes elementos, tal artigo tentará abordar a Crônica de D. João I2, escrita por Fernão Lopes, e identificando quais elementos o autor utilizou que podem responder ao nosso questionamento. Desse modo, acreditamos que a construção de uma imagem legitimadora de um monarca foi de fundamental importância entre essas representações a que cabe a rainha teve um igual peso. Portanto, discutiremos as diferentes representações inerentes da rainha no período por nós focalizado, qual seja, o final do século XIV e início do século XV, com uma atenção pormenorizada na crise dinástica do final do século XIV. O trabalho que aqui se desenha faz parte do projeto de pós graduação lato sensu do Núcleo de Estudos da Antiguidade (NEA) da UERJ, no qual avaliaremos D. Leonor Teles (aprox. 1350 - 1386) e D. Felipa de Lancaster (aprox. 1360 - 1415) dentro da Crônica de D. João I e como a construção dessas personagens serve para entender a própria construção a respeito do rei, ou seja, a ideia de que um modelo de rainha serve para construir um modelo de monarca e, portanto, serve como justificativa para o mesmo. Para esse artigo recorremos a um pequeno recorte do tema, qual seja, a presença de D. Leonor Teles no discurso legitimatório de João das Regras constante na obra acima citada e por outro lado a maneira como o cronista apresenta D. Felipa de Lancaster e as passagens da mesma na referente crônica de Fernão Lopes. Ao tratar das duas rainhas é necessário incluá-las no contexto histórico da época, o final do século XIV, período que trata a Crônica de D. João I em Portugal, assim como compreender o período da produção da própria crônica, ou seja, século XV. O reino, no século XIV viveu um período conturbado com criação de alianças políticas e posterior quebra das mesmas, pois gravitava Portugal entre dois pólos, de um lado Inglaterra e do outro a França, de um lado o Papado de Roma e do outro o Papado de Avignon. Tais guerras levaram a dilapidação dos recursos herdados por D. Fernando I (1345 - 1383) do governo do seu pai, D. Pedro I(1320 - 1367). No aspecto interno do reino português, a relação com D. Fernando I com a burguesia e com a nobreza, mantinha-se de forma ambígua, pois ora auxiliava com leis que ajudavam a economia nobre, como a lei das sesmarias que impedia a aquisição de novas terras pela população mais pobre e, dessa forma, permitindo que a mão de obra campesina fosse barateada, o que auxiliava a burguesia. De outro modo, leis náuticas 3 permitiu uma organização maior das embarcações portuguesas, que ocasionou um desenvolvimento da economia que favorecia os burgueses.

1617

É nesse cenário que se encontra D. Leonor Teles, oriunda de uma família nobre portuguesa. D. Fernando I se casou com a mesma, mas conforme a Crônica de D. João I, D. Leonor já estava casada, havendo até mesmo indício da mesma ter tido um filho 4. Não obstante, conforme o mesmo autor, após o casamento acabou mantendo uma relação extraconjugal com o Conde D'Andeiro, fato que se tornara público. Fica aqui o questionamento, porque D. Fernando I, rei de Portugal, acabou por escolher uma mulher que era casada, não defendo aqui que o mesmo sabia, porém, entre tantas infantas e, partindo da concepção de que o casamento no período era um enlaçamento político, mais do que amoroso, escolheu logo uma casada? No momento da morte do rei, todas as tensões políticas e sociais, mantidas dormentes até a morte de D. Fernando, foram liberadas, assim como o fato conhecido da rainha ser uma rainha desonrada, somente aumentou a polêmica ao redor, combinando, assim, fatores econômicos e políticos, com um desgaste de uma figura pública, que não era vista como uma herdeira do trono possível. Assim sendo, após a morte de D. Fernando I a disputa pelo trono português acabou se polarizando entre duas personalidades, de um lado D. Leonor Teles, que através de um tratado, entregaria a mão de sua filha para o rei de Castela e do outro lado, D. João I (1357 - 1433), que fora alçado como regedor e defensor de Portugal pela população de Lisboa após a morte do Conde D'Andeiro. Do outro lado, D. Felipa de Lancaster surge na Crônica de D. João I apenas ao final, como uma forma de acordo político entre D. João I e a linhagem dos Lancaster, neta do rei Eduardo III da Inglaterra. É sensível a falta de participação da mesma na crônica, seu aparecimento é sempre nublado pela própria figura de D. João I. Esse casamento se enquadra em uma política entre os reinos, em que Portugal se alinhava com o Papado de Roma e, por conseguinte, com a Inglaterra, se opondo diretamente a Castela e a sua aliança com a França, que se configura, no quadro geral da Guerra dos Cem Anos, que era travada entre Inglaterra e França. Esse é o período tratado por Fernão Lopes, arquivista da Torre do Tombo e cronista da Dinastia de Avis, alçado ao último cargo por D. Duarte, em 1418. Teve por dever escrever uma série de crônicas que chegassem até o rei D. João I, mas se manteve apenas nos escritos de D. Pedro I, D. Fernando I e D. João I, sendo estas as principais obras do autor. O último livro é dividido em dois volumes. No primeiro volume é discutida a luta para se alçar ao poder D. João I. O segundo volume destaca o período de reinado de D. João I. Por certo, Fernão Lopes escreveria um terceiro volume, mas dada

1618

a avançada idade do cronista não pôde continuar5, deixando a cargo de Eanes Gomes de Zurara que o sucedeu em 1452. Escolhemos essas duas personagens, primeiro, porque, D. Filipa de Lancaster foi, em seu tempo, descrita como uma rainha modelar, ou seja, constituída como um modelo de Rainha, oriunda de uma família nobre, instauradora de novos hábitos, sempre piedosa, pura e religiosa, porém se fazendo pouca referência da mesma na Crônica. Mesmo uma descrição física não existe, assim como quanto por atitudes, vivendo sempre a sombra de um rei, do qual a Crônica se ocupa em descrever. Enquanto o autor é generoso na descrição de episódios em que Leonor Teles aparece como integrante da cena, ou como protagonista, D. Leonor Teles e suas ações se encontram presente em muitos episódios, até mesmo no recorte proposto pelo artigo, em que retrata os diferentes candidatos ao trono. D. Leonor não é considerada uma opção, mas se encontra, ao menos citada em um dos capítulos que retrata a reunião das Cortes. A comparação entre essas duas rainhas ocorre pela oposição, entre uma Rainha interina, D. Leonor Teles, que se mantém no poder e se associa aos interesses de Castela, enquanto que D. Filipa é caracterizada se aproximando de uma santa

e

devotada aos assuntos religiosos. A oposição entre elas ajuda, nesse sentido, não apenas a busca a entender uma questão de gênero dentro das cortes religiosas no período medieval português, mas também auxilia à compreender em relação entre os gêneros e como isso se configurava dentro da representatividade que o próprio rei possuía. A pesquisa assim se enquadra em uma história social com um enfoque tanto na história dos gêneros, um espectro da história social, quanto na história política. O campo da história de gênero começou como um campo a ser estudado a partir da década de 70 e 80 e se fixou como um campo de estudos históricos. Porém, associar esse mesmo campo historiográfico com a política e correlacionar os diferentes gêneros para construção de modelos de justificativa de poder se mostra, ao mesmo tempo, como o desafio dessa pesquisa, tanto quanto, o diferencial que a mesma tenta trazer para o cenário acadêmico que estuda a Crônica de D. João I de Fernão Lopes. Por si só a Crônica de D. João I de Boa Memória merece uma análise aprofundada. Para nós, a Crônica de D. João I será a nossa fonte primária e nela se vai buscar o rei que se tenta legitimar. Não entendemos, no entanto, que a fonte seja uma detentora da verdade, mas antes, queremos demonstrar como o próprio texto é por si só não ausente de intenções. Para tal efeito, vários estudiosos se debruçaram sobre essa crônica, entre eles Luis Souza Rebello que tenta mostrar que a Crônica de D. João I é

1619

constituída de três grandes linhas argumentativas: ético-política, a jurídica e a providencial. José Antônio Saraiva, que pontua a relação entre os espaços geográficoshistóricos da Vila e da Cidade. No Brasil, os estudos a respeito da dinastia de Avis, efetuados pelo grupo Scriptorium6 e capitaneado pela Professora Doutora Vânia Fróes Leite, que se discute, como hipótese geral, a ideia de um discurso do paço, em que a dinastia de Avis utilizou de inúmeras formas de produção cultural para se reafirmar no poder, entre eles estando a Crônica de D. João I. Demonstra-se, assim, que a fonte foi discutida e revisitada inúmeras vezes, propondo antes, que não há inteiramente uma isenção na produção textual da Crônica, mas que a mesma serve como um discurso. A metodologia empregada será a Análise do Discurso, através de uma tabela que será desenvolvido para ressaltar os elementos presentes no discurso do próprio autor. Essa tabela foi desenvolvido pelo NEA, tendo como base a discussão metodológica apresentada pela autora Eni Orlandi7, no qual será observada tanto o texto propriamente dito, quanto o contexto social inserido a partir de uma historiografia concernente. A historiografia ajudará a criar o invólucro que se desenhará tanto o ambiente que a crônica descreve, quanto o período que o autor apresenta. A teoria que melhor se enquadra na pesquisa é sobre o Imaginário Social de Bronislaw Brackzo8. Nele, o autor desenvolve e fica-se ciente de que a construção da justificativa de poder deve ser construído a partir de um imaginário, não tomando para si a possibilidade da justificativa, mas antes, reafirmando o poder que já se tem estabilizado. Conforma-se, também, que a teoria abarca que, para validar um determinado posicionamento, pode se atacar um adversário, deslegitimando, realçando, por contraste, dessa forma, a quem se deseja legitimar. Nesse caso, D. Leonor Teles se apresenta a quem se deseja atacar e por isso, representa, os interesses de Castela, enquanto que D. Felipa de Lancaster, acaba por ser enaltecida pelas suas qualidades religiosas e associada diretamente ao rei que irá fundar a nova dinastia portuguesa. Ao reconhecermos os limites da fonte, acabamos por traçar também uma hipótese que abarca, de forma geral, a ideia da justificativa de poder como traço importante na criação da Crônica de D. João I. Dentro dessa hipótese geral, temos uma hipótese restrita em que, ao mesmo tempo que D. Leonor Teles é desforizada pela Crônica, a sua descendência acaba sendo renegada, logo, deslegitimando a filha e o contrato com o rei de Castela, que não teria nenhum direito em Portugal, por não ser D. Beatriz, filha legítima. Enquanto que uma família poderosa no campo político, como os

1620

Lancasters, seriam o diferencial necessário para D. João I, a sua esposa geraria filhos legítimos, permitindo que criasse uma dinastia para o então monarca. É no debate referente a quem pode se candidatar ao trono português, feito dentro da corte9 que o argumento a respeito da legitimidade dos herdeiros se pontua, negando assim D. Beatriz e reafirmando, sem mencionar, D. João I. Para reafirmar D. João I, o autor, através da fala de João das Regras, deslegitima todos os outros candidatos ao trono, começando por D. João de Castela, reservando ao mesmo dois capítulos da Crônica. No primeiro capítulo deslegitima D. Beatriz, a partir da mãe, D. Leonor Teles e, posteriormente somente o próprio rei de Castela. João das Regras lista ao menos 4 herdeiros possíveis ao trono, sendo eles: Dona Beatriz, D. João, rei de Castela, o infante D. João, filho de D. Pedro I e D. Inês de Castro e D. João, Mestre da ordem de Avis. Apesar de nenhum momento o autor pontuar, através da fala de João das Regras, a possibilidade da tomada de poder de Dona Leonor Teles, é através dela que começa a sua argumentação que nega qualquer legitimidade tanto de Dona Beatriz, quanto de D. João de Castela. O processo de desforização de Dona Beatriz e, por conseguinte, Dona Leonor Teles se dá ao menos em um capítulo, primeiro tenta negar a legitimidade do casamento de D. Fernando I com ela, e posteriormente a negativa se estende a própria legitimidade do fruto deste casamento. No segundo momento, apresenta-a como uma bígama, tendo dois casamentos

e,

portanto,

indigna,

como

se

segue

abaixo:

". Acesso em: 8 dezembro de 2014. 13 CARDIM, F., Tratado de terra e gente do Brasil. Rio de Janeiro: Ed. J. Leite e Cia, 1925 . p.434 14 SOUZA, Flavia. Esqueletos de moradores de sambaqui possuem muitas marcas de infecções. São Paulo, 2014 Disponível em Acesso em 13 de outubro de 2014. 15 PINTO, Diogo Cerqueira. Concha sobre concha: construindo sambaquis e a paisagem no Recôncavo da Baía de Guanabara. 2009 161 p. Dissertação Mestrado Arqueologia-PPGA , Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009 16 GASPAR, Maria Dulce. Sambaqui: Arqueologia do litoral Brasileiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.p. 12 17 BELEM, Fabiana Rodrigues. Do Seixo ao Zoólito. 2012. 237.p, Dissertação de Mestrao Arqueologia-MAE, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012 18 WIENER, Carlos. Estudos sobre os sambaquis no Sul do Brasil. Rio de Janeiro: Arquivos do Museu Nacional, 1876.p.15 19 GASPAR, Maria Dulce. Sambaqui: Arqueologia do litoral Brasileiro. Rio de Janeiro:Jorge Zahar, 2000 20 PROUS, André. Arqueologia Brasileira. Brasilia:UNB, 1992 21 NETO, Jandira. Série História da Arqueologia-PRONAPA. Rio de Janeiro, 2013.Disponível em:< http://www.arqueologia-iab.com.br/publications/download/28> Acesso em 20 de dezembro de 2014 22 MAGALHÃES, Erasmo Dalmeida. Sambaquis brasileiros (Orientação bibliográfica). Dedalo. Rio de Janeiro. N1. P.93-111.1965. 23 NETO, Jandira. Série História da Arqueologia-PRONAPA. Rio de Janeiro, 2013.Disponível em:< http://www.arqueologia-iab.com.br/publications/download/28> Acesso em 20 de dezembro de 2014 24 GASPAR, Maria Dulce. Sambaqui: Arqueologia do litoral Brasileiro. Rio de Janeiro:Jorge Zahar, 2000 25 TENÒRIO, Maria Cristina. O Lugar dos Aventureiros: identidade, dinâmica de ocupação e sistema de trocas no litoral do Rio de Janeiro há 3500 anos antes do presente. 2003, Tese de doutoramento apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Filosofias e Ciências Humanas da Pontifícia Universidade Católica doRio Grande do Sul – PUCRS, Porto Alegre, 2003 26 GASPAR, Maria Dulce. Sambaqui: Arqueologia do litoral Brasileiro. Rio de Janeiro:Jorge Zahar, 2000 , p..26 27 GASPAR, Maria Dulce. Sambaqui: Arqueologia do litoral Brasileiro. Rio de Janeiro:Jorge Zahar, 2000 , p. 11 10 MADRE

2079

Muhammad Ibn Tümart, o Mahdi e Al-Andalus Almohada

Marta Bezerra de Almeidai

Resumo: Esta pesquisa tem por objetivo analisar os aspectos da Dinastia Almohada, presente nos séculos XII-XIII em Al-Andalus. Dinastia de origem berbere também dominou extensa região do Nordeste da África, provocando uma série de mudanças

formuladas

por

Muhammad Ibn Tümart, seu mentor intelectual. Seu auge e queda transcorreram em um curto período de tempo, marcados por momentos de efervescência cultural, rigor nas normas religiosas, conversões forçadas e fragilização do poder. Palavras-chave: Almohadas, Al-Andalus, Ibn Tümart. Abstract: The goal of this research is to aims to analyse aspects of Almohada Dynasty, present in XII-XIII centuries in Al-Andalus. Dynasty of Berber origin, they dominated extensive African Northeast region triggering a series of changes made by Muhammad Ibn Tumart, their intellectual mentor. They passed its peak and fell in a short period of time, marked by moments of cultural effervescence, rigor in religious rules, forced conversions and weakening of power. Keywords: Almohads, Al-Andalus, Ibn Tümart.

O Islã ao longo dos séculos se propagou por diversas regiões, sua fé divulgava a unicidade, isto é, a crença em um único Deus e seus impérios que eram representantes de uma multiplicidade que englobava diferentes povos, idiomas, culturas, uma gama de elementos que formaram não apenas um Islã, mas muitos que mantinham seus principais preceitos inalteráveis, como os cinco pilaresii, mas que também absorveu muitos aspectos do que existia ao seu redor, desenvolvendo em seu interior pensadores que incorporaram a filosofia legando ao Ocidente nomes como Ibn Sina (Avicena), Al-Farabi e Ibn Rushd (Averróes), esse último o qual veremos teve um papel relevante na Al-Andalus Almohada. Pretende-se abordar nessa pesquisa alguns aspectos do Império Almohada, que dominou Al-Andalus entre os séculos XII e XIII, que estão delimitados ao status

2080

de

Muhammad Ibn Tümart, o homem que idealizou o movimento que mais tarde seria transformado em uma dinastia por seu sucessor ‘Abd al-Mu-min, a formação de uma identidade própria, alicerçada em um passado que tentou remontar aos primórdios do Islã e como a identidade berbere foi substituída pela árabe por um de seus califas como forma de legitimar e dar legalidade aos seus descendentes. O fim do Império Almohada que dominou uma parte da Europa no Medievo, deixou dentre muitos legados a arquitetura que até os dias atuais ainda é presente, como observamos La Giralda e La Torre del Oro, ambas localizadas em Sevilha. Al-Andalus islâmica está interligada a um passado berbere fundado por uma dinastia originária do Norte da África, cujo mentor intelectual nasceu na região montanhosa do Atlas. Alguns elementos estão intrinsecamente ligados a Al-Andalus como a região que hoje conhecemos como Magreb, a Ibn Tümart cuja legitimação de poder se fundamentou na genealogia do Profeta Muhammad, o movimento de reforma e a dinastia Almohada. Várias são as questões que surgem desses encontros. Foi um império em muitos aspectos contraditório. Os Almohadas foram o primeiro e único sistema de governo islâmico na história a controlar a Cordilheira do Atlas no Norte da África. Toda a região da Tunísia até o sul do Marrocos e Andaluzia foi unida sob o seu governo (FROMHERZ, 2013). Para conhecermos a presença da Dinastia Almohada em al-Andalus será preciso conhecer o fundador do movimento que se tornaria mais tarde dominante em grande extensão do Norte da África e al-Andalus. Muhammad Ibn Tümart nasceu na região do Anti-Atlas entre 1078 e 1082, era originário da tribo Harga. Faleceu em 1130, sem ver a extensão que o Império Almohada tomaria nos anos seguintes, quando em 1145 as primeiras tropas desembarcaram em al-Andalus. A palavra Almohada tem origem no árabe al-muwahhidün, os unitários. Ibn Tümart de acordo com Ibn Khaldun, Deu aos seus partidários o nome de Mwahhidün (Almohadas ou Unitários), maneira indireta de condenar a doutrina dos Almorávidas iii. Professava a mesma teoria que os partidários da família do Profeta sobre o imame impecável “cuja existência dizem, é absolutamente necessária, em todos os tempos, para a manutenção da ordem do universo.”iv

Remetia assim a crença islâmica da Unicidade, de que só existe um único Deus e a crença Xiita no Imamato em “Que o Profeta ou o Imam de cada comunidade distingue-se pela nobreza de espírito e pela elevação moral, com a missão de orientar a humanidade em sua

2081

vida.”v Mas Maribel Fierro levantou uma questão referente ao nome do movimento, de que na realidade seu nome original era “al-mu’minun”, os “crentes”, El próprio nombre del movimiento almohade, al-muwahhidün , debe ser considerado parte de la propaganda e ideologia revolucionarias: los almohades eran los verdaderos creyentes, los que creían em Dios único, los que encarnaban el verdadero mensaje del Islam. De hecho, algunas fuentes nos informan de que el nombre original del movimiento no fue “los unitários” (al-muwahhidün), sino simplemente “los creyentes” (al-mu’minün), lo que implicaba que el resto de los musulmanes se habían apartado de la verdadera fe y era necesario, por tanto, hacerles volver al camino recto.vi

Mas também levantamos outra questão, o nome al-mu’minu “Como princípio de forma (muf’il) este termo pode ter dois sentidos, ambos encerrados na raiz a-m-n (‘estar em segurança’ e ‘crer’). Por isso pode significar tanto ‘protetor’ como ‘fiel’ ou ‘crente’.” vii Descartando o significado de protetor, também temos o de fiel, fiel a Deus, fiel a Ibn Tümart, fiel ao movimento Almohada. Para Maribel Fierro os Almohadas consideravam que a comunidade islâmica havia perdido há muito seu elo com aquela na qual viveu o Profeta Muhammad no século VII d.C, vivendo assim em uma época de corrupção. Dessa forma os Almohadas romperam com esse passado de corrupção através de mudanças nas instituições políticas, nas moedas, nas mesquitas, nas elites intelectuais e em algumas práticas religiosas.viii Ibn Khaldun na Muqaddimah, o documento no qual a pesquisa é baseada, escreveu que, [...] a genealogia pela qual o Mahdi ligava sua origem a Fátima, filha de Muhammad, não era o único título que lhe dava direito ao comando supremo, nem tampouco a dita genealogia constituía o motivo que levava a multidão a segui-lo.ix O Mahdi que apareceu em seguida aos Almorávidas, convidou os homens a sustentarem a causa da verdade, e censurou vivamente aos habitantes do Magreb seu alheamento para com as doutrinas de Al-Achari, teólogo de quem se tinha tornado partidário.x

Muhammad Ibn Tümart se autodenominava o Mahdi, descendente de Fátima e Ali, filha e genro do Profeta Muhammad. A forma pela qual Ibn Tümart legitimava seu poder era através de uma genealogia árabe que remontava ao Profeta Muhammad. Mas existiam outras formas de legitimação de seu poder, uma delas foi através de Al-Ghazzali, importante teólogo muçulmano nascido na cidade de Tüs no Irã em 1058. Ibn Tümart estudou em Al-Andalus no período de 1106/7 e em seguida partiu para Bagdá onde de acordo com uma lenda (KENNEDY, 1999) foi aluno de Al-Ghazzali, Al-Ghazzali publicara recentemente o seu famoso Ihyä’ ‘Ulüm al-Dïn (O Renascimento das Ciências Religiosas) e Ibn Tümart estava na sua presença quando chegaram notícias de que a sua grande obra fora queimada publicamente pelos Almorávidas. Ao ouvir tal, al-Ghazzälï vaticinou que o jovem Ibn Tümart poria termo a esta dinastia obscurantista e ímpia. É evidente a mensagem da história: Ibn Tümart era o pupilo preferido do maior

2082

intelectual muçulmano da sua época e o seu mestre vaticinara a sua futura grandiosidade: Era um tipo de legitimidade importante.xi

Alguns elementos mais fizeram com que Ibn Tümart se tornasse um guia para um pretenso retorno ao Islã dos primeiros séculos quando a comunidade islâmica era dirigida pelo Profeta Muhammad. Um deles nos chama a atenção, além das formas de legitimação mencionadas anteriormente, percebe-se também as similaridades das duas histórias, tanto a do Muhammad berbere quanto a do Muhammad árabe do século VII, seus companheiros que estiveram todo o tempo ao seu lado nas predicações contra todas as formas de corrupção que eles consideravam como tais, seu fiel companheiro e sucessor ‘Abd al-Mu-min, podemos comparar o significado de sua amizade a de Abü Bakr xii, companheiro do Profeta Muhammad. Como bem escreveu Ibn Khaldun no século XIV não era apenas a genealogia que levava multidões a segui-lo. Em umas das passagens da sua Muqaddimah, percebemos o quanto seus seguidores estavam ao seu lado, pois o “Mahdi, na sua empresa, perdeu um grande número de combatentes que se tinham comprometido a morrer por sua causa, a merecer o favor de Deus e a sacrificar a vida ao triunfo e manutenção da doutrina almohada.”xiii Guia, líder, criador de um movimento de reforma dentro do Islã, carismático pois conseguiu muitos seguidores ao longo de sua jornada. Para Max Weber quem é portador do carisma “toma a tarefa que lhe é adequada e exige obediência e um séquito em virtude de sua missão . [...] é o dever daqueles a quem dirige sua missão reconhecê-lo como seu líder carismaticamente qualificado.”xiv Como um líder carismático conseguiu aglutinar forças que tornaram o movimento Almohada em um Império. A crença de Ibn Tümart não se fundamentava no Xiismo, mas parece uma junção de vários pensamentos que incluíam entre eles o asharita. O que observamos é que Ibn Tümart criou uma forma particular de Islã, que misturava elementos árabes e magrebinos e também elementos culturais que ajudaram a criar uma nova identidade para os muçulmanos da região do Magreb e de Al-Andalus. Fromherz destaca que, Os Almohadas não podem ser classificados como sunitas ou xiitas, ortodoxos ou heterodoxos. Embora influenciados por várias vertentes do Islã, Ibn Tümart proclamou uma única forma de Islã, que ele acreditava que completaria a chamada do Profeta Muhammad e encheria o mundo com justiça. De acordo com as fontes Almohadas, Ibn Tümart e os Almohadas não eram Shiitas, Sunitas Malikitas, ou Kharajitas, que são as três vertentes que eram proeminentes no Islã no Oriente Médio e na história Árabe. Os Almohadas, sob a liderança de Ibn Tümart tentaram criar uma versão do verdadeiro Islã na sociedade berbere magrebina.xv

Uma versão particular de Islã que foi levada pelos Almohadas a Al-Andalus quando derrotaram os Almorávidas.

2083

Alguns autores fazem referência a uma reforma Almohada, mas o que foi essa reforma exatamente? Tanto Maribel Fierro, como Fromherz e Viguera Molíns abordam essas mudanças como uma Reforma, La organización espiritual es muy importante em el movimiento, pronto império, Almohade, pues predicaba uma reforma de costumbres que restaurara la situación para ellos deteriorada a que habían llegado los Almorávides. Organizaron uma corporación de censores de costumbres, devolviendo el sentido puro y primero a la institución del muhtasib, encargados de velar pela moralidad.xvi

Os Almohadas realizaram uma série de reformas, as moedas foram cunhadas em formato quadrado, com a seguinte inscrição “Deus é nosso Senhor, Muhammad é nosso Profeta, o Mahdi é nosso imam (Allahu rabbu-na Muhammad rasulu-na al-mahdi imamu-na) e que ‘Abd al-Mu-min e seus descendentes eram os novos califas”xvii, a letra nasjí, substituiu a cúfica para copiar os versos corânicos, as mesquitas Almorávidas foram modificadas em suas decorações e arquitetura pelas dos Almohadas, houveram mudanças na chamada para a oração, “as profissões de fé ou credos atribuídos a Ibn Tümart deviam ser aprendidos pelos novos muçulmanos”xviii. Além dessas mudanças, os Almoahadas impuseram a conversão aos judeus e cristãos e dessa forma perderam um dos seus importantes impostos que era pago por essas comunidades, “Os Almohadas aboliram o estatuto de proteção (dhimma), obrigando a conversão judeus e cristãos que não elegessem a possibilidade do exílio. Esta política se apartava da doutrina legal predominante até então” xix. Mas não eram apenas esses grupos forçados a se converterem, a própria comunidade muçulmana precisou se “converter” ao credo de Ibn Tümart. Interessante observar que os Almohadas, que procuravam se aproximar dos primeiros tempos do Islã, contrariavam assim um dos versículos do Corão que estabelece que “Não há imposição quanto à religião”xx. Mas existiram momentos de fomento em relação à cultura, às artes e às ciências, Ibn Rushd, conhecido no Ocidente como Averróes foi um dos mais importantes filósofos desse período, protegido do califa Abu Ya’qüb Yüsuf que foi considerado um mecenas, cercado de sábios, entre eles Ibn Tufayl. Averróes foi juiz de Sevilha, de Córdoba, médico e filósofo e comentador de Aristóteles. De acordo com Fromherz, O Almohadas também dominaram as ricas planícies costeiras do Marrocos e as cidades cosmopolitas e luxuosas do sul da Espanha, uma das regiões mais culturalmente e intelectualmente avançados da Europa medieval nesse período. [...] Alguns dos estudiosos mais famosos da Europa no momento, incluindo os médicos e filósofos Abubacer e Averróes, foram Almohadas. Acadêmicos, pensadores, místicos, santos, poetas e filósofos faziam parte dos dicionários biográficos desse período.xxi

Os califas, em sua maior parte, viveram afastados do centro de poder em al-Andalus, concentrado-se em manter seu domínio no Magreb, alinhavando acordos com as tribos do seu

2084

entorno, sendo assim não se envolviam diretamente com os problemas de al-Andalus, vindo em seu socorro apenas quando enfrentavam a perda de um território e reuniam forças e faziam acordos com lideranças andaluzas para não perdê-lo. Em 1212, uma derrota diante de Alfonso VIII na batalha conhecida como Las Navas de Tolosa, enfraqueceu a dinastia a tal ponto que não se recuperaram somando-se vários incidentes como o assassinato de al-Nasir, um de seus califas, lutas parentais pelo poder e conflitos dinásticos. Internamente os Almohades se desintegravam e em 1223 a doutrina Almohade foi abolida. Enfraquecidos política e militarmente não podiam mais controlar o interior e as fronteiras e muito menos o avanço cristão, A finales de 1228 algunas autoridades almohades seguían resistiendo em la Península por si mismas, aisladas, porque su poder central ya no existe: um texto del gran compilador Ibn Idari recuerda, um siglo después: se prendió y ardió la revuelta em alAndalus; la mayoría del país y de sus notables y de sus soldados habían reconocido obediência a Ibn Hud, retirándosela a los Almohades, a quienes atacaban por todas partes y expulsaban y exterminabam, salvándose solo aquellos que com ayda de Dios lograban esconderse.xxii

Em al-Andalus e na região do Magreb os Almohadas começaram a perder suas forças. Marrakech foi conquistada por outra dinastia, os Benimerines. E assim deu-se o fim dos Almohadas que em pouco tempo vivenciaram o auge e a queda de seu império. Em 1248 os Almohadas foram definitivamente expulsos de Al-Andalus. Da presença islâmica, em um império de oito séculos, governada por diversas dinastias, com as mais variadas origens, árabes ou berberes, restou apenas o reino de Granada, com a dinastia Nasrí. Um Islã de muitos Islãs surgiu em seu território, os Almohadas tentaram inicialmente reconstruir a primeira comunidade islâmica de acordo com o mentor intelectual do movimento, reinventando sua identidade, legitimando seu poder através de genealogias, através de encontros com pensadores importantes, através do carisma, recorreram a muitos elementos para dar legalidade aos seus sucessores e a continuação do Império.

i

Pós-graduanda em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, CEHAM. Orientadora: Maria do Carmo Parente. E-mail: [email protected] ii São cinco os pilares do Islã: A Shahada, que é a declaração de que não há nenhuma divindade além de Deus e que Mohammad é seu mensageiro; Salat, as orações; o Zakat, imposto da caridade; o Saum, o jejum e o Hajj,a peregrinação que todo muçulmano deve fazer ao menos uma vez na vida. iii Almorávidas eram berberes que dominaram o Norte da África e al-Andalus entre os séculos XII e XII e foram derrotados pelos Almohadas em ambos os domínios. iv KHALDUN, Ibn. Prolegômenos ou Filosofia Social. Tomo I. São Paulo: Safady, 1958, p. 420.

2085

v

AL-TABATABAÍ, Assayed Mohammad Hussein. AL-ODHMAH, Allamah Ayyatullah. O Xiismo no Islam. São Paulo: Arresala, 2008, p. 142. vi FIERRO, Maribel. Revolución y Tradición. Disponível em: http://digital.csic.es/handle/10261/13900. Acesso em: 20 mai. 2015. vii MANDEL, Gabriele. Os 99 Nomes de Deus no Alcorão. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999, p. 33. viii FIERRO, Maribel. Doctrina y Prácticas Jurídicas bajo los Almohades. FIERRO, Maribel. CRESSIER, Patrice. MOLINA, Luis. Los Almohades: Problemas y Perspectivas. Volumen II. Disponível em: < https://www.academia.edu/1221413/_Doctrina_y_práctica_jurídicas_bajo_los_almohade> Acesso em: 24 mai. 2015. ix KHALDUN, Ibn. Prolegômenos ou Filosofia Social. Tomo I. São Paulo: Safady, 1958, p. 66. x idem, p. 295. xi KENNEDY, Paul. Os Muçulmanos na Península Ibérica: História Política do al-Andalus. Portugal: Forum da História, p.224. xii Foi o primeiro dos quatro primeiros califas “corretamente guiados” que dirigiram a comunidade islâmica após a morte do Profeta Muhammad. xiii KHALDUN, Ibn. Prolegômenos ou Filosofia Social. Tomo I. São Paulo: Safady, 1958, p. 65. xiv WEBER, Max. Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro: LTC, 1982. p. 283. Disponível em http://www.ldaceliaoliveira.seed.pr.gov.br/redeescola/escolas/18/1380/184/arquivos/File/materiais/2014/soc iologia/Ensaios_de_Sociologia_-_Max_Weber.pdf >Acesso em 27 jun. 2015. xv FROMHERZ, J. Allen. The Almohads: The rise of an Islamic empire. New York: Tauris, 2013, p. 137. xvi VIGUERA MOLÍNS, María Jesús . Los Reinos de Tifas Y las invasiones Magrebíes. Madri: Mapfre, 1992. p. 209. xvii FIERRO, Maribel. Revolución Almohade y su contexto. Disponível em https://www.academia.edu/1279455/Revoluci%C3%B3n_y_tradici%C3%B3n_algunos_aspectos_del_mundo_de l_saber_en_%C3%A9poca_almohade. Acesso em 27 set. 2015. xviii Idem. xix FIERRO, Maribel. Historia Islámica en la Península Ibérica. Revista Awraq nº 9, 2014. Disponível em: < http://issuu.com/casaarabe/docs/awraq_9_2014> Acesso em: 25 mai. 2015. xx Alcorão Sagrado, Surata 2, versículo 256. xxi FROMHERZ, J. Allen. The Almohads: The rise of an Islamic empire. New York: Tauris, 2013, p. 3. xxii MOLINS, María de Jesus Viguera. De las taifas al reino de Granada: Al-Andalus, siglos XI-XV. España: Historia 16, 1999, p. 53.

2086

A ausência do negro no Museu da República Marta Cristina Soares Dile Robalinho1 Instituição: UERJ - Mestrado Profissional em Ensino de História (ProfHistória) Orientadora: Professora Dra. Carina Martins Costa Orientanda: Marta Cristina Soares Dile Robalinho ([email protected]) Resumo: O artigo trata da ausência do negro no Museu da República partindo das reflexões sobre as exposições, acervo e material produzido pelo museu para professores e alunos. Elencamos algumas ações pedagógicas para colaborar com o Ensino de História naquele espaço museal em relação a essa ausência. Palavras-Chave: Educação Patrimonial – Museu - Ensino de História Abstract: The article deals with the absence of black at the Museum of the Republic starting from the reflections on the exhibitions, collections and material produced by the museum for teachers and students . We list some pedagogical actions to collaborate with the Teaching of History at the museum space in relation to this absence. Keywords : Heritage Education – Museum - History Teaching

O presente artigo tem como tema principal a ausência do negro nas exposições do Museu da República. Entendemos que esse tema seja relevante para discutirmos como um museu histórico trata essa questão na atualidade e como o Ensino de História deve abordar esse tema. Nas inúmeras visitas em que fomos ao Museu da República, cursos feitos voltados para o professor, leituras sobre esse bem patrimonial, o negro não aparece, pelo menos, em objetos ou imagens. Aparece em uma fotocópia de uma instalação da primeira sala do museu que trata da família do Barão de Nova Friburgo. Dessa ausência, surgiu uma necessidade de investigar onde estaria esse negro presente na sociedade brasileira e que desaparece no Museu da República. Porque essa memória não está presente no museu? Porque esse apagamento?

2087

O Museu da República é um bem patrimonial com tempos

diversificados,

tempos entrelaçados. Também conhecido como Palácio do Catete, carrega em si as marcas de diversas temporalidades. Como uma casa que recebe periodicamente uma nova pintura – e com o passar do tempo formam-se camadas sobrepostas de tinta – o prédio que hoje abriga o Museu da República teve diversos usos e representações através do tempo. Inicialmente foi a residência do Barão de Nova Friburgo e consagrou-se como um monumento de grande importância histórica, arquitetônica e artística. Foi símbolo do poder econômico da elite cafeicultora escravocrata do Brasil oitocentista. Em 1889, vinte anos após a morte do Barão e de sua esposa, o palácio foi vendido à Companhia do Grande Hotel Internacional e, posteriormente, ao seu maior acionista, mas não chegou a ser transformado em um hotel. Em 1896, foi adquirido pelo Governo Federal para sediar a Presidência da República. Sofreu ampla reforma para receber os presidentes e seus familiares. Até 21 de abril de 1960, data em que a Capital Federal foi transferida para Brasília, no governo do então presidente Juscelino Kubistchek, o Palácio do Catete foi palco de importantes acontecimentos históricos. Um dos mais significativos e de grande impacto nacional foi o suicídio de Getúlio Vargas, em 24 de agosto de 1954, como desfecho de uma das mais contundentes crises republicanas. Com o Decreto Presidencial de 08 de março de 1960, o Palácio do Catete passou então a ser organizado para abrigar o Museu da República. Entender esse bem patrimonial é partir da premissa que é impossível conceber aquele espaço museal sem a presença dos negros. Mas essa memória é esquecida, apagada. E por quem? Ou por quê? Para pensarmos essa discussão entre memória e história trazemos à baila o pensamento de David Lowenthal2 que demonstra sua preocupação colocando em discussão os modos de se conhecer o passado. O autor faz uma importante apreciação sobre os objetos da memória e da história. Ambos se escoram no passado. Mas a maneira de lidar com o passado é que é diferente. Para Lowenthal, ter consciência do passado é essencial ao nosso bem estar. A memória é inevitável e indubitável. A história é contingente e empiricamente verificável. Memória é introspecção. História é reflexão. A partir dessa diferenciação entre memória e história o autor foi elaborando um caminho para explicar essa consciência do passado: “toda consciência atual se funda em percepções e atitudes do passado; reconhecemos uma pessoa, uma árvore, um café da manhã, uma tarefa, porque já

2088

os vimos ou já os experimentamos” (LOWENTHAL, 1998, p.74). Mas o que seria o passado? Para o autor, o passado nunca pode ser tão conhecido quanto o presente. Toda consciência do passado está fundamentada na memória. Essa memória é seletiva, e há também, o esquecimento. Afinal, não lembramos de tudo. Não lembramos de quase nada. Para o autor, “a necessidade de se utilizar e reutilizar o conhecimento da memória, e de esquecer assim como recordar, força-nos a selecionar, destilar, distorcer e transformar o passado acomodando as lembranças às necessidades do presente” (LOWENTHAL, 1998, p.77) O passado relembrado é tanto individual quanto coletivo. Mas para a consciência, a memória é totalmente pessoal, é sentida. Por isso que relembrar o passado é importante para nosso sentido de identidade. O autor nos oferece um estudo sobre os tipos de memória. memória instrumental e memória afetiva. “A recordação instrumental é um conjunto significativo de sinais e marcos que lembram um mapa rodoviário, um guia de viagem...” e a segunda seria, nas palavras do autor, “de maior intensidade, revela um passado tão rico e vívido que nós quase o revivemos” (LOWENTHAL, 1998, p.91). O esquecimento é necessário para que a memória exista. As lembranças precisam ser descartadas. É inevitável esquecer. Ademais, o autor segue sua reflexão para a análise das relíquias. Estas sobreviveriam na forma de características naturais ou artefatos humanos. Os objetos são escolhidos pela história e pela memória. Os artefatos são extintos cotidianamente, de formas naturais ou por guerras. Mas o que é interessante ressaltar nesse momento do pensamento de Lowenthal é que ele entende que todas as relíquias “existem simultaneamente no passado e no presente”. O que nos leva a identificar as coisas como antiquadas ou antigas varia de acordo com o meio ambiente e a história, com o indivíduo e a cultura, com a perspectiva e a percepção históricas” (LOWENTHAL, 1998, p.106). Para o autor, o passado tangível não tem vida própria. As relíquias são estáticas. Quem as faz falar é quem pergunta coisas a elas. Esse é o trabalho da História: perguntar para o objeto. Se pensarmos na memória, na história e no objeto tangível que foi tema do autor citado, que memórias, histórias e objetos são escolhidos para a narrativa do Museu da República e porque o negro não faz parte desse repertório?

Memória, História e Poder

2089

É preciso ter cautela quando falamos em patrimônio. Primeiramente encontramos uma associação intelectual que causa estranheza entre Memória e História. As duas são correlatas, mas há que se pontuar que são distintas. E esses tempos de rememorar praticamente tudo nos levam, muitas vezes, a uma não percepção do papel do historiador professor de História, é impossível dissociar um do outro, no que tange à educação do olhar patrimonial. O questionamento feito pelo autor Ulpiano Meneses em seu texto: “História, cativa da memória?“, nos empurra para uma reflexão daquilo que temos feito em sala de aula e em visitas a patrimônios. O que temos efetivamente ensinado aos nossos alunos? A memória não historiciza. A História tem a possibilidade da crítica. Mas o tempo é matéria prima da História. A memória é uma construção feita a partir do presente, ela é mutável de acordo com as solicitações do presente. Ela, segundo Meneses, é filha do presente. Encarar a memória como resgate do passado é algo que não se deve fazer, seria acabar com a História ou dizer para nossos alunos que o que fazemos não tem importância. É necessário apoiar o processo de rememoração, mas trabalhar com a ideia que esse rememorar vem a partir de escolhas feitas do presente para o passado. De demandas sociais, culturais, educacionais. É fundamental deixarmos esclarecido que a memória e toda essa carga que a envolve tem sua relevância, sem esse boom memorial não estaríamos aqui escrevendo sobre museus, patrimônios, educação. Existe, como bem disse Luciana Heymann (HEYMANN, 2006, p.27), um “devoir de mémoire”. A autora exerce sua fala sobre a França contemporânea. Segundo Heymann, o dever de memória é uma conquista, está associado à uma memória reivindicativa em que o Estado reconhece os erros e opera com formas de reparações. Os verbos usados pela autora são: reconhecer, reparar, criminalizar. O dever de memória seria manter vivo o passado. Esse dever de memória parte das demandas do presente. É interessante frisar que esse movimento memorial abriu caminho para a elaboração de leis sobre reconhecimento do Holocausto, reconhecimento de genocídios. A memória torna-se História. Pensar a História e sua construção a partir do olhar para o patrimônio nos leva a pensar numa outra questão inseparável do cotidiano de sala de aula. Teoria e prática precisam caminhar juntas. Para o historiador Manoel Salgado (GUIMARÃES, 2009, p.35), o ensino da história deveria ser um universo de pesquisa, a nossa prática deveria estar alinhada à nossa teoria,

2090

ao que entendemos como História, como Patrimônio. E ele ainda complementa seu pensamento dizendo que deveríamos pensar a sala de aula desse ponto de vista. E deveríamos sempre pensar o nosso fazer em sala de aula a partir deste olhar. Como uma construção de práticas e saberes teóricos. Estimular nossos alunos a perceber que essa construção do conhecimento pode e deve partir deles, com nossa colaboração é claro. “Afinal, ensinar história para quê?” O poder está presente no Museu da República e tantos outros bens patrimoniais que conhecemos. Memória e poder exigem-se, segundo Chagas (CHAGAS, 2009, p.136). Os museus nacionais operam como campos discursivos, centros de interpretação e arenas políticas. “Nos museus nacionais, sobretudo os históricos, está em pauta a preservação, o uso e a transmissão de determinada herança cultural, composta de fragmentos a que se atribui o papel de representação nacional, ou melhor, de representação de determinados eventos, narrados sob determinada ótica” ( CHAGAS, 2009, p.159)

E os silêncios tão presentes nos museus históricos? Sigo o caminho percorrido pelo autor citado para pensar a memória do Museu da República sobre o negro: “a memória não está nas coisas, mas na relação que com elas se pode manter, é sempre possível uma nova leitura, uma nova audição...”(CHAGAS, 2009, p.165). O esquecimento em instituições não deve ser visto como algo inocente, pois está no jogo do poder, do discurso. Por que o negro estaria ausente nas exposições do Museu da República? E como abordar essa questão com nossos alunos? Podemos partir da seguinte premissa: a construção da nacionalidade brasileira. Sabemos que existiu um processo de desafricanização do Brasil. Iniciado em 1888 com a Abolição e tendo tido continuidade com a instauração da República em 1889. Com a chegada da década de 1930 esse projeto fica ainda mais forte e que ainda ganha dois caminhos: o de que a mestiçagem seria nociva e danosa às raças ou que a miscigenação geraria um novo tipo de raça unindo o que havia de melhor. Os museus são entendidos como instituições capazes de levar esse discurso à população (BARBOSA, 2010, p. 278). A ideia de raça foi utilizada politicamente na construção da nação brasileira. A historiadora Hebe Mattos diz que “o conceito de raça apareceria pela primeira vez numa estatística no Recenseamento Geral do Brasil de 1872 (...). Depois disso, entretanto, a

2091

noção faria rápida, mesmo que sempre problemática carreira no Brasil” (MATTOS, 2000: 58,59). A tese do branqueamento teve muita força no Brasil no início do século XX, mas nessa mesma época o movimento negro já estava organizando sua luta contra o racismo. O historiador Amílcar Pereira cita uma fala de Correia Leite, um dos fundadores do jornal O Clarim d’Alvorada , em 1924, e da Frente Negra Brasileira (FNB), em 1931: “ Houve um tempo em que eu ouvia muita gente dizer que a nossa luta não tinha razão de ser porque o negro ia desaparecer. Foi uma ideia gerada por estudiosos” (LEITE, 1992:21). Essa frase nos chama à atenção por dois motivos: o primeiro é que o fundador de um jornal importante sobre a causa negra e depois de um partido se manifesta sobre o fato de que havia sido criada no Brasil essa política de embranquecer a raça negra. E, em segundo lugar, percebermos que desde há muito tempo os museus já estavam com a missão de corroborar nessa construção de ideal de nação. Segue abaixo um trecho do artigo das historiadoras Hebe Mattos e Martha Abreu: “O silêncio sobre a cor como símbolo de cidadania foi uma experiência construída nas lutas anti-racistas do século XIX, que combatiam as hierarquias de cor entre a população livre até então vigentes na sociedade colonial. A legitimação não racial da continuidade da escravidão então afirmada no Brasil teve conseqüências. Embaralhou a “linha de cor” na sociedade brasileira, porém sem impedir a adoção pública de projetos racistas de “branqueamento”, numa época em que tais discursos tinham estatuto de conhecimento científico no pensamento ocidental. Ao longo do século XX, nem a construção da noção de democracia racial, nem a crítica a ela desenvolvida pelos movimentos negros, conseguiram ainda reverter os sentidos hierarquizados e desiguais das designações de cor desde longo tempo presentes na sociedade brasileira. Não modificaram também o recurso ao silêncio como a forma mais usual de conviver com elas em situações formais de igualdade.” (ABREU e MATTOS)

Nesse projeto de nação, identidade e cultura brasileira, que foi desenvolvido desde o século XIX, e nesse momento, o Museu da República tem sua participação, pois seu acervo veio diretamente do Museu Histórico Nacional, que era o grande portador desse ideário elitizado brasileiro, dirigido por Gustavo Barroso, é de se esperar que não encontremos referências aos negros no acervo. Mas que olhar podemos ter para o Museu da República na atualidade sem esquecermos, claro de sua história e do acervo que foi recebido? Por que pensar o referido museu a partir dessa ausência, que consideramos grave, não apenas nos seus primórdios, mas no momento atual em que a sociedade exige essas referências do negro, do índio também nos museus? Em tempos que nossa sociedade pensa

2092

nas reparações. Como dizer ao nosso aluno que ele não se vê ali? Ou melhor, como responder a essa pergunta que eles nos fazem?

Reserva Técnica, Acervo e Arquivo do Museu da República:

Procuramos trilhar outros caminhos do museu que não fossem o das exposições. Em leituras realizadas na Revista do Professor do Museu da República , um artigo nos causou estranheza e curiosidade: “Notas sobre a República na literatura de Machado de Assis e de Lima Barreto” de Isabel Travancas. No final do artigo algumas fotografias de objetos que pertencem ao museu e que estiveram em gabinetes ou foram presenteados a alguns dos presidentes que por ali passaram. Um dos objetos nos chamou à atenção por ser um quadro de uma negra. O título do quadro é “Vendedora de Frutas”. Ele tem a assinatura de Debret e seria do início do século XIX. Segundo a revista, este quadro já esteve pendurado no gabinete do presidente Prudente de Moraes e foi fotografado por Augusto

Malta,

considerado o maior documentarista do Rio Antigo. A autoria do quadro não está confirmada.

Ilustração 1- Fonte: REVISTA DO PROFESSOR MUSEU DA REPÚBLICA, Ano 2010, nº2, p. 20.

Num segundo momento marcamos uma visita ao Arquivo do Museu da República para que pudéssemos iniciar uma pesquisa sobre fotografias de negros nas coleções de fotos que constam deste acervo. Escolhemos três coleções de fotografias pensando num recorte

2093

temporal do momento em que Getúlio Vargas ali esteve naquela casa como presidente da República. Por que essa escolha? Primeiramente pensamos em encontrar nessas fontes alguma menção aos membros do movimento negro da Frente Negra Brasileira que tiveram contato com Getúlio Vargas para obter dele autorização para a entrada de negros na Guarda Civil. Segundo Pereira, “embora os militantes do Centro Palmares tenham conseguido em 1928 a suspensão do decreto que proibia negros de entrarem na Guarda Civil do estado de São Paulo, somente em 1932 foi que os militantes da Frente Negra conseguiram, após reunião com o próprio presidente Getúlio Vargas, que negros fossem contratados para a Guarda Civil”(PEREIRA, 2013, p.118) .

Vargas ordenou de imediato que se alistassem 200 recrutas afro-brasileiros. Nos anos 30 foram 500 e um deles chegou a ocupar o cargo de coronel. Neste sentido, procuramos encontrar imagens no arquivo do museu em que a FNB estivesse sendo representada. Na busca por referências sobre negros no museu, que admitimos não estar esgotada, pesquisamos três coleções de fotos que se encontram no Arquivo do Museu da República. São elas: Coleção Getúlio Vargas; Coleção Ene Garcez; Coleção Geraldo Calmon. Das três coleções, que como dissemos, são do tempo de Vargas no Palácio do Catete, somam-se 502 fotografias. Apenas 11 fotografias tinham a imagens de negros ou pessoas afrodescendentes e duas com imagens de indígenas.

Os museus históricos e a ausência do negro: pensando em reparações e novas abordagens para o ensino de História (Repensando o Museu da República):

“Como no século XIX, dizer-se negro ainda é basicamente identificar-se com a memória da escravização, inscritas em práticas culturais e na pele de milhões de brasileiros. Esta é a base que empresta consistência histórica à discussão atual sobre políticas de ação afirmativa no Brasil a partir da auto-identificação como negro. No Brasil, nomear a cor ainda hierarquiza, pois implica quebrar o pacto de silêncio sobre o passado escravo, celebrado entre os cidadãos brasileiros livres em plena vigência da escravidão. Passados mais de cem anos da abolição, quebrar com a ética do silêncio, através de quilombos e jongos, apresenta-se paradoxalmente como caminho possível para reverter tal processo de

2094

hierarquização cristalizado no tempo e instaurar um universalismo almejado, mas não verdadeiramente atingido, desde o século retrasado.”

Já dissemos anteriormente que a ideia de raça foi uma construção e que ao longo do final do século XIX e início do XX o racismo reverberou em todos os museus históricos que haviam sido criados, pois esses tinham como dever construir uma ideia de nação brasileira abolindo o negro de sua composição. Segundo Costa, em 2003 foi apresentada uma proposta da Política Pública de Museus que reforçou o caráter polifônico da sociedade brasileira. Tal documento trabalhou com a premissa de valorização, preservação e fruição do patrimônio cultural brasileiro entendendo que essa seria uma das formas de inclusão social e cidadania. O meio a ser seguido seria de revitalização das instituições museológicas existentes (COSTA, 2010, p. 294). A autora deixa claro que os movimentos sociais, em inúmeros momentos, reivindicam o direito à memória e “suas vozes” em museus. Em análises feitas em três guias de museus em temporalidades diversas, Costa aponta para o fato das narrativas excludentes dentro desses museus e nos faz refletir sobre um exercício de procurarmos “o oculto, o silenciado, o não dito, o esquecido” (COSTA, 2010, p.301).3 A Lei Federal 10.639 tornou obrigatório o ensino de história e cultura africana e afrobrasileira no ensino fundamental e a colocação do item raça-cor em procedimentos censitários. Em 2005, segundo Barbosa, um relatório do PNUD Brasil 4 abordou o tema do racismo brasileiro e no que tange à cultura apresentou uma alternativa à segregação cultural dos negros oferecendo como premissa a adoção de ver o país com essas múltiplas identidades, a negra, por exemplo, como uma identidade de longa duração. Como, então, pensar numa proposta para o Ensino da História no Museu da República se não encontramos tais referências nas suas exposições? Na busca de uma alternativa pedagógica museal, pensamos em abordar o assunto com uma visita ao museu. Assim como Cunha, que nos sugere como uma das soluções para a ausência ou as formas de abordagens de museus históricos em relação ao negro como escravo, como exótico, “a solução implica, também, a busca de alternativas que eliminem as permanentes barreiras

2095

ideológicas e práticas que insistem em relações desiguais e ainda exploratórias de negros e seus descendentes, tanto na África quanto em outros territórios” (CUNHA, 2008, p.171). Para dialogarmos com nossa proposta resolvemos pensar o museu como um “laboratório da história” procurando exercitar as idéias de Meneses. O aluno que não se vê naquele museu nos indaga sobre essa ausência e como proposta lançamos um desafio. Ir ao Museu da República e se fotografarem ali, na exposição, com a exposição, com objetos, sem objetos, na entrada, do lado de fora, do lado de dentro, no jardim. A partir dessas fotografias reveladas da turma, montaríamos uma exposição (um painel dessas imagens) dentro da escola. Como sugestão, poderíamos escrever um texto coletivo da turma sobre a visão deles em relação ao museu e como eles entenderam a atividade proposta. Para finalizarmos o exercício entregaríamos o trabalho realizado na escola ao museu para que pudesse colaborar com suas reflexões sobre a questão no negro naquele espaço museal.

Notas: 1

Mestranda do Mestrado Profissional em Ensino de História- UERJ LOWENTHAL, David. Como conhecemos o passado? Projeto História, São Paulo, nov. 1998. 3 Os guias trabalhados pela historiadora foram: Museu Imperial, Guia da Seção Histórica do Museu Paulista e o Guia do Museu Imperial (COSTA, 2010 , p.300 e 301). 4 Tornando-se laboratório esse passado teria como ser questionado, pensado, ter outras leituras. 5 Relatório de Desenvolvimento Humano, 2005. 2

2096

Conflitos em torno de um ritual na Vila de São João Batista de Nova Friburgo no século XIX: o casamento de Clara Egrin e Amadée Sinner

Mateus Barradas Texeira Mestrando em História Social (UNIRIO) Orientadora: Profa. Dra. Claudia Rodrigues barradasmateus23@gmail

Resumo: Em 1824, proveniente do processo da política de imigração realizada pela Corte Imperial, se assentou na Vila de São João Batista de Nova Friburgo - localizada nos Sertões do Leste Fluminense - um grande número de imigrantes germânicos de origem luterana que, acompanhados pelo seu pastor Frederich Oswald Sauerbronn dão início a uma comunidade. Originalmente composta por portugueses e imigrantes suíços majoritariamente Católicos, a Vila de São João Batista de Nova Friburgo passou a conviver com elementos culturais não provenientes da estrutura cultural hegemônica baseada no catolicismo. O objetivo desta comunicação é analisar um conflito religioso que se instalou quando a imigrante católica Clara Heche se casou na igreja protestante com Amadée Sinner.

Abstract: In 1824, originated by the immigration political process accomplished by the Imperial Court, it was settled in the Vila São João Batista of Nova Friburgo - located at the West Fluminense hinterlands - a large number of german immigrants with Lutheran origins that, followed by their pastor Frederich Oswald Sauerbronn, gave birth to a community. Originally composed by portuguese and swiss immigrants, mostly catholic, the Vila São João Batista of Nova Friburgo began to live with cultural elements that weren't from the hegemonic cultural structure based on the Catholicism. The objective of this communication is to analyse a religious conflict that was placed when the catholic immigrant Clara Heche got married in the Protestant church with Amadée Sinner. No transcorrer do século XIX, como parte da política de imigração de Dom João VI, voltada para a interiorização e consolidação do território brasileiro, foi autorizada o estabelecimento de uma colônia nos Sertões do leste fluminense, por um decreto em 1818, comportando cerca de cem famílias agrícolas e um número suficiente

2097

de

carpinteiros, curtidores, tecelões, marceneiros e pedreiros que vieram por uma companhia de Emigração dos cantões de Friburg, na Suíça1. Para esse projeto, foi comprada a fazenda do Morro Queimado, que pertencia ao Distrito de Cantagalo. Era composta por quatro sesmarias, totalizando duas léguas de testada por três fundos, e foi adquirida por vinte vezes o seu valor e a infertilidade do solo foi omitida na transação. A partir daí, foram edificadas 100 casas provisórias, pontes, ruas, estradas, a casa do inspetor, depósito de víveres e utensílios, moinhos, fornos, enfermaria, botica e quartel de polícia. Com a primeira légua, foram demarcados 120 lotes. A metade da outra légua destinou-se à criação da vila de Nova Friburgo e na outra metade foi construída a fazenda São João do Ribeirão, que permaneceu sob o proveito da coroa2. Dessa forma, essa região acima descrita se chamaria “Vila de São João Batista de Nova Friburgo” que começaria a ser edificada dentro de um contexto maior, o Vale do Paraíba fluminense, em que a partir dos fins do século XVIII a finais do XIX se transformaria de uma região parcamente povoada a imensos e modernos cafezais, passando de lugar pouco explorado a centro econômico do império3. Em 1824, outros imigrantes, de origem germânica, saíram da Armação da Praia Grande em Niterói e seguiram rumo à Nova Friburgo em um número de aproximadamente 300 indivíduos. O trajeto teve um caráter de urgência tendo em vista a necessária reconstrução da estrada que dava o acesso, a reforma das habitações na Vila e acionamento dos fazendeiros da região, como a do Coronel Ferreira, para recebêlos em sua parada ao pé da serra. Chegando na sede da Vila foram alojados nas casas da Praça da Justiça.4 De acordo com os relatórios enviados por Monsenhor Miranda5 a Quévrémont6 após um levantamento das condições habitacionais e agrárias, os lotes de terras abandonados pelos suíços deveriam agora passar para as mãos dos alemães 7. A partir de 1840, a Vila de Nova Friburgo começou a expandir as fazendas de café em suas áreas adjacentes, mas também na sede, devido à conjuntura da economia fluminense que, a partir de 1821, se assentava na produção do café.

2098

Conflitos em torno de um ritual: o casamento de Clara Egrin e Amadée Sinner

No dia 12 de julho de 1824, cinquenta e quatro dias após a chegada dos imigrantes germânicos na Vila, Luiz José de Carvalho e Melo8 juntamente com seu secretário Antônio de Andrade remeteu a Monsenhor Miranda9 um ofício sobre diversos assuntos, incluindo aí o casamento de uma colona suíça, Clara Egrin, com o colono suíço protestante Amadée Sinner celebrado pelo Pastor Sauerbronn no dia trinta de maio do mesmo ano10. Esse assunto chegou as mãos de Luiz José por causa de uma acusação feita pelo Padre Joye notificando que Clara já teria sido casada anteriormente com David Heche, colono suíço católico11. Nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia continham as normas pelas quais os párocos deveriam se ancorar para denunciar algum impedimento ao matrimônio. Assim, era dever do Pároco denunciar o caso e investigar rapidamente, resolvendo a questão em menos de um mês. Contudo, se por algum motivo o pároco não denunciasse e torna-se o impedimento público, estaria sob a pena de excomunhão12. Neste mesmo ofício, Antônio Carvalho e Melo pediu ao Monsenhor Miranda que ele se dedicasse "aos mais escrupulosos exames para o esclarecimento da Verdade"13,ou seja, que Miranda pudesse instituir alguma investigação para dar cabo da situação, pois havia o "receio que não surja agora na colônia Alemã as mesmas desavenças que levou a ruína a colônia suíça"14. Deixou-se então a situação nas mãos da Secretaria dos negócios Estrangeiros na pessoa do próprio Miranda15. Dois dias depois, Monsenhor Miranda enviou um ofício para a Vila dizendo que "com a maior brevidade"16 iria fazer "todas as indagações necessárias"17 para saber se Clara estava impedida ou não de se casar com Amadée Sinner e que para isso se fazia necessária a comprovação se Clara e David eram casados anteriormente, pois tudo constava que David ainda estaria vivo. Miranda também disse que iria ouvir "o Pastor

2099

alemão Frederico Sauerbronn, perante quem foi celebrado o segundo matrimônio" e iria dar, "com seu parecer, uma informação individual"18 sobre o ocorrido. Por causa da natureza indissolúvel do matrimônio católico, o indivíduo que se relacionasse com outra pessoa estaria em um caso de "amancebamento" ou "fornicação", abandonando seu antigo cônjuge para se unir a outro19. E, na situação de Clara, o casamento protestante era considerado como nulo por parte da Igreja católica e também pelo próprio Império que só reconheceu o casamento entre católicos e protestantes em 1861 e deu base jurídica somente em 186320. Ou seja, para Joye e os demais membros dos negócios estrangeiros, a colona estava vivendo de forma licenciosa, já que o casamento realizado por um pastor era considerado nulo. Nesse sentido, Francisco de Salles21 enviou um ofício ao próprio Pastor Sauerbronn "vigário protestantes dos colonos alemães"22 no dia vinte de julho. A missiva continha o pedido para que ele informasse "rapidamente por escrito" uma declaração "informando se aquela colona é com efeito casada ou não com o dito Heche". Além dessa solicitação, Salles ainda admoestou o pastor dizendo que lhe havia entregado uma cópia da Constituição e do regulamento e que necessitava "com urgência as referidas informações"23. Dois dias depois, Sauerbronn enviou uma carta para Salles, respondendo as perguntas que ele lhe havia feito e se defendendo das acusações feitas por Monsenhor Joye: "Muito honrado senhor - Em resposta à honrada carta que me dirigiu Vossa Senhoria, em data de 20 de julho deste ano, tenho a honra de apresentar a seguinte resposta: O Criador da Religião Cristã diz: "Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus". Meu emprego de Pastor da Religião Cristã me impõe o mais sagrado dever, não somente de publicar e ensinar a vontade e as ordens de meu divino Mestre; mas também de segui-las pessoalmente, com exatidão. Em consequência disso, cada Pastor protestante, conscienciosamente, se apressará, com certeza, em respeitar, da melhor maneira, as leis das autoridades civis que podem, de direito, ter ordens para dar-lhe. No dia trinta de maio deste ano, uni Charles Amadée Sinner, protestante, morador do número 32 da Colônia, a Clara Egrin, católica; e não creio ter, de modo algum, transgredido as leis existente, porque até peritos em leis me asseguram tratar-se de um ato legal e permitido. O que, aliás, me convence, ainda mais desta verdade, é a certeza de que o Ministro de Culto inglês no Rio de Janeiro tem precedido várias

2100

vezes pela mesma forma. Além disto não está no uso e no exercício da Igreja protestante fazer prosélitos, e eu não mereceria a honra de ser Pastor protestante, se me permitisse um procedimento contrário. O senhor Vigário Católico de Nova Friburgo pretende que a Clara Egrin, do Cantão de Berna na Suíça, já era casada com outro indivíduo que ainda estava vivo; mas quanto a mim, estou inteiramente convencido do contrário, à vista de testemunhas as mais incontestáveis, eu não hesito em declarar formalmente esta acusação como contrária à verdade. Queira, honrado Senhor, aceitar a segurança, com que tenho a honra de ser, de Vossa Senhoria, o mais humilde servidor - Frederico Sauerbronn"24

Nesse sentido, Sauerbronn esclareceu em sua declaração que Clara era católica e que Amadée era protestante, além de ter marcado a diferença doutrinal entre as duas matrizes religiosas a partir da sua visão de que um protestante não poderia fazer nenhum tipo de proselitismo religioso e que por isso, casou os dois como estaria na natureza de seu ofício de pastor protestante. Nesse sentido, utilizou como álibi as práticas de um ministro de culto inglês que exercia seu ministério no Rio de Janeiro para justificar suas ações. Dois dias depois, houve a criação de uma espécie de tribunal para resolver a questão. Nele, estavam Mendelino Francisco de Oliveira como escrevente, o oficial de justiça Pedro Aguet como intérprete, e as perguntas foram realizadas pelo Diretor Francisco de Salles e direcionadas somente para Clara25. Amadée Sinner não estava presente no interrogatório pois estava no Hospital do Rio de Janeiro nessa época.26 Francisco de Salles então perguntou a Clara se ela era de fato casada com David Heche anteriormente e ela lhe respondeu que "não e nunca fora casada" com ele e que teria "vivido com ele desde que ele serviu ao exército, mas não como casada e sim como amiga há oito anos". Clara também respondeu dizendo que teve dois filhos com Heche e que ambos foram "batizados, um na suíça e outro pelo Vigário da Freguesia Joye". Disse também que quando quis casar com Sinner David Heche enviou "uma deliberação assinada com duas testemunhas" dizendo que "não era casado com Clara27". Junto dela, estavam duas testemunhas a seu favor: Jose Bard, "colono suíço natural do Canton de Friburg, casado e, no presente, com idade de cinquenta e cinco anos" e Cristino Hotz, "colono suíço, natural do Cantão de Berna, viúvo, de idade de

2101

cinquenta e seis anos"28. Ambos teriam "jurado pelos Santos Evangelhos" e "prometido dizer a verdade do que soubessem". Francisco Salles então perguntou a Jose Bard sobre o "conteúdo do interrogatório e de seu termo" e ele não teria dito nada sobre isso. Contudo, quando perguntado sobre o motivo de o terem chamado, disse que "conhecera bem Heche e que ele e que ele lhe dissera muitas vezes que nunca havia sido casado com a interrogada Clara e que só vivia com ele, em concubinato, podendo casar-se com quem quisesse", além disso, também disse que Heche teria dado "uma declaração feita e assinada com testemunha e por ele mesmo na sua casa, declarando não ser casado com Clara" e conduzindo Heche para o "Hospital do Rio de Janeiro, para ali tratar da saúde" teria dito no caminho que "deixava licença à sua amiga, para se poder casar com quem ela quisesse"29. Sendo assim, Francisco de Salles enviou um ofício para Monsenhor Miranda no mesmo dia, dizendo relatando o acontecido, dizendo que fez indagações para conhecer a verdade e que depois de ter "ouvido por escrito" o Pastor Sauerbronn, perguntou a Clara de sua situação e que ela teria provado que estava há "oito anos em amizade ilícita com Heche" e que dele teria tido dois filhos, mas que "não era casada com ele" como "disseram as testemunhas" dela "diante do Reverendo Jacob Joye"30. Também neste ofício, Francisco Salles disse que de acordo com três depoimentos, quando Amadée Sinner quis casar-se com Clara, "o Vigário não o queriam receber"31. Podemos perceber então que mesmo com uma "liberação" por parte de David Heche, além de duas testemunhas que validariam o caso, Monsenhor Joye se recusou em realizar o matrimônio pois ainda havia a suspeita de Clara ser casada anteriormente. Nesse sentido, em um espaço no qual a religião hegemônica em um sistema de cristandade tenha que conviver com a chegada de uma outra matriz religiosa com um líder especializado e legitimado, tornaria esse processo bastante conflituoso, pois Clara e David Heche eram protestantes suíços que abjuraram e passaram para as fileiras do catolicismo. Não há nenhum registro indicando que Amadée Sinner tenha abjurado e só o fato deles terem procurado Sauerbronn e ele ter realizado o casamento já demonstraria uma perda de poder por parte de Joye. Ou seja, podemos entender que por trás do ritual

2102

realizado pelo pastor, havia uma disputa de poder simbólico entre os dois líderes religiosos. Para analisar a posição dos poderes constituídos na vila sobre o caso, podemos observar que no mesmo ofício, Francisco de Salles escreve para Monsenhor Miranda dizendo que: "Se os elementos da intriga e dos espíritos débeis não influíssem nas queixas humanas estaria de convencer-me das puras intenções que os tinha na denúncia o Reverendo Vigário Jacob Joye contra o Vigário Protestante mas estas desavenças entre ambos e as diferenças são contrárias a almejada prosperidade dessa Colônia. Frederico Sauerbronn devia ter mais prudência e não acelerado em receber em matrimônio os referidos colonos, terá ouvir previamente o reverendo Jacob Joye o que era mais regular, mas este apresenta contra aquele uma denúncia que, tendo contrariado com as provas se pode julgar caluniosas"32

Nesse sentido, além de convocar e ficar responsável pelo inquérito sobre o caso, Francisco de Salles entendeu que havia intenções por parte da denúncia do pároco contra o pastor Sauerbronn, mas ao mesmo tempo, compreendeu que ele deveria ter sido mais prudente e ter contatado o líder da religião hegemônica primeiro antes de realizar qualquer ritualnaquelas possíveis condições de impedimento. Ou seja, por trás da denúncia de um impedimento matrimonial, as querelas entre Joye e Sauerbronn se evidenciariam. No dia dezoito de agosto, o secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, Luiz José de Carvalho e Mello enviou um ofício na tentativa de regulamentar as práticas dos dois vigários que seriam consideradas danosas para a vila. Depois de relatar o caso de Clara e Sinner, disse que depois de ter averiguado "todos os papéis", Joye "sabia que a referida colona não era realmente casada" com David Heche. A esse respeito disse que: "Não pode[riam] deixar de merecer a mais formal desaprovação de S.M.I tais procedimentos, que se tornam ainda mais repreensíveis quando recaem em pessoas que, pelo seu caráter e representação civil na sociedade, devem servir aos outros de exemplo no desempenho das suas respectivas funções, obedecendo às autoridades superiores e desprezando intrigas particulares que, de mais a mais podem ser nocivas à prosperidade da colônia"33.

Nesse sentido, podemos observar que Joye foi advertido justamente por causa da denúncia e nesse caso, o pastor Sauerbronn não foi advertido da mesma forma, ficando

2103

evidente que para os poderes institucionais, seja da vila, seja imperiais, foi justamente Joye o responsável pela querela. No mesmo ofício, Luiz José de Carvalho e Mello também faz uma advertência aos dois vigários, dizendo: "Sua Majestade Imperial espera que a situação se abata, daqui por diante, de semelhantes procedimentos, devendo cada um dos vigários conter-se pacificamente nas suas funções, procurando inspirar a paz e o sossego entre as suas ovelhas e evitar todo motivo de colisão entre si"34

A partir dessa questão, podemos analisar que embora a relativa liberdade religiosa implantada no Brasil com a Constituição de 1824 no seu parágrafo quinto colocasse a desproporcionalidade da legitimidade da igreja hegemônica e a que estava cerceada pela lei, no caso do matrimônio de Clara e Sinner, os dois vigários foram admoestados pelo poder instituído e o líder religioso católico ainda teve maiores advertências do que o pastor. Não obstante o tribunal, em 1825 houve o casamento de Clara e Amadée na Igreja católica no dia 3 de março: "Aos três dias do mês de março de mil oitocentos e vinte e cinco, de tarde, em visita episcopal nesta Igreja Episcopal de São João Batista da vila de Nova Friburgo, na presença do Reverendíssimo Ilustríssimo Bispo Capelão mor compareceram Amadée filho de [...] Manuel de Sinner e de Maria Margarida Fasnaeht, batizado na Igreja Paroquial de Signou Cantão de Berne da Religião protestante, e Clara Egrin filha de André Egrin e de Isabel sua mulher, Batizada em Amé na Paróquia da Religião Católica Romana os quais de suas livres vontades habilitaram o matrimônio que haviam contraído na presença do Pastor Protestante Frederico Sauerbronn sem licença competente; e prometeram e se obrigaram a educar na religião Católica Apostólica Romana todos os filhos nascidos desse matrimônio; [...] cerimônias desse ato assinam o Reverendíssimo Jacob Joye, pároco da dita Igreja sendo presentes o padre Rodrigo de Souza Bahia Miranda, Carlos Emmanuel, Francisco Quevremont, Pedro Aguet, todos os moradores nesta Freguesia. E para constar fiz este [...] em que todos assinaram Eu Francisco de Medeiros Teixeira escrivão, O Vigário Jacob Joye, Francisco Quevremont, Pedro Aguet"35.

Como se pode verificar através do texto acima, a cerimônia do casamento de Clara e Amadée foi explicitada por Jacob Joye em seu assento de forma bem diferente das demais. Sendo assim, mesmo que Monsenhor Joye, através de uma autorização do bispo, poderia habilitar casais considerados impedidos, houve a presença de um membro do episcopado. Devido a particularidade do caso, a presença do bispo daria a

2104

legitimidade ao processo tanto para os fiéis, quanto para as autoridades locais envolvidas nele e que assinaram o assento. Segundo Santirocchi, a Igreja católica fazia o casamento com os cônjuges em disparidade de culto porque ela acreditava que a união entre homem e mulher era natural e anterior a própria existência da religião36. Contudo, para que o matrimônio entre casais de religiões diferentes tenha efeito e garantir que a prole do casal fosse católica, se fazia necessária uma declaração dos cônjuges dizendo que iriam criar os filhos no catolicismo37 e neste caso, o assento nos diz que houve de fato essa promessa. Sendo assim, podemos perceber que segundo o assento de Joye, o casaral teriam habilitado "o matrimônio que haviam contraído na presença do pastor protestante Frederico Sauerbronn sem licença competente". Ou seja, o ritual do matrimônio feito por um membro do clero católico validaria e regulamentaria uma prática considerada fora das normas hegemônicas traçadas pela Igreja católica, evidenciando a prática ritual como elemento que marcaria uma diferença38. Verificando os outros assentos de casamento da Catedral de São João Batista, podemos perceber que esse é o único assento assinado por outras pessoas além de Jacob Joye, como Francisco Quevremont, que foi o responsável pelo tribunal e Pedro Aguet que seria provavelmente o intérprete. Contudo, há outro elemento importante neste assento que, ao meu ver, poderia ser considerado como a "testemunha" do matrimônio, caracterizado como "todos os moradores desta freguesia". Ou seja, ao invés de uma cerimônia de menor proporção com algumas testemunhas, além da presença do bispo, os moradores da vila estavam presentes, ressaltando o caráter disciplinar e exemplar deste ritual do matrimônio. Pouco menos de um mês, a filha do casal, Mariana Sinner foi batizada na Igreja católica e não há registro algum de batismo ou demais sacramentos na Igreja luterana: Aos dez dias do mês de maio de mil oitocentos e vinte e cinco, batizou o Reverendíssimo Padre Rodrigo de Souza Bahia Miranda nesta paróquia de São João Batista da Vila de Nova Friburgo Mariana filha legítima de Amadée Sinner e de sua mulher Clara Egrin. Foram padrinhos João Vilvner viúvo e Anna Maria

2105

Hebert solteira. Para constar fiz este [...] que por [...] assinei: O Vigário Jacob Joye"39

Podemos observar que o comprometimento do casal em educar os filhos na fé católica foi efetivamente cumprido e evidenciado através desse assento. Ou seja, houve o afastamento das práticas religiosas protestantes lideradas por Sauerbronn tanto dos cônjuges, quanto da filha do casal, demonstrando assim que a oficialidade da igreja católica, bem como sua relação com um conjunto de normas e práticas rígidas para lidar com o avanço do protestantismo contribuiu para disciplinar e relocalizar ambos para as fileiras da religião hegemônica. Nos livros de óbitos protestantes e católicos, não consta o nome de Amadée Sinner que provavelmente teria saído da cidade com seus filhos. Porém, o nome de Clara Egrin aparece em um registro de óbito no ano de 1838: "Aos nove dias do mês de junho do ano de mil oitocentos e trinta e oito, faleceu da vida presente Clara Egrin viúva de David Heche, casada com Amadée Sinner, moradora nesta freguesia; foi sacramentada e sepultada no cemitério da Irmandade do Santíssimo Sacramento no dia seguinte e, para contar atesto que por ser verdade assinei: O Vigário Jacob Joye"40

Clara então recebeu todos os sacramentos e foi sepultada no cemitério da irmandade, o que denota que continuou a ser católica até o fim de sua vida. Porém, Joye assinala que a mesma foi "viúva de David Heche, casada com Amadée Sinner", o que demonstraria que mesmo após o tribunal, os testemunhos e o casamento dos dois, ele documentou que Clara foi viúva de Heche. Ou seja, o seu ponto de vista sobre o fato prevaleceu no documento eclesial. Sendo assim, podemos perceber que esse conflito religioso foi também um conflito de legitimação41 que se manifestou em dois casamentos, o primeiro sendo protestante e o segundo sendo católico. Portanto, que estava em questão neste caso era muito mais a legitimidade do líder religioso e a linguagem autorizada 42 para presidir a cerimônia, do que um conflito simplesmente doutrinal entre duas matrizes religiosas diferentes.

2106

Notas 1

MAYER, J. M. Raízes e crise do mundo caipira: o caso de Nova Friburgo. 2003. 564 f. Tese

(Doutorado em História Social) – Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2003. p 100. 2

Idem. Idem. 4 Idem, pag 120. 5 MUAZE, Mariana. O Vale do Paraíba Fluminense e a dinâmica Imperial p. 297. Disponível emhttp://www.institutocidadeviva.org.br/inventarios/sistema/wpcontent/uploads/2010/12/15_mariana_muaze.pdf. 6 ARAÚJO, R. J.; MAYER, M. J. (Org.). Teia Serrana: Formação Histórica de Nova Friburgo. Rio de Janeiro: Editora Ao Livro técnico, 1999. p. 56 7 Responsável do Império pela organização da vila. 8 Encarregado de polícia. 9 ARAÚJO, R. J.; MAYER, M. J. (Org.) Op.Cit, p.57. 10 Conselheiro de Estado, ministro e secretário de Estado dos negócios Estrangeiros. 11 Responsável pela Vila de São João Batista de Nova Friburgo. 12 SOUZA Op.Cit. p.172 13 Tanto David quanto Clara teriam abjurado o Calvinismo com a chegada de Monsenhor Joye. Ver em: SOUZA Op.Cit. p.172 14 Idem. 15 Cx1 doc 322 16 Idem. 17 Idem. 18 cx1 326 19 Idem. 20 Idem. 21 Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. p.124 3

22

MINAMI, Edson. Casamentos católicos e luteranos: resistência, ecumenismo e liberdade religiosa no Brasil. In: Anais do XX Encontro Regional de História – ANPUH. São Paulo, setembro 2010.p.6 23

cx1 338 Idem. 25 Idem. 24

26

SOUZA, José Antônio Soares de. Os colonos de Schaeffer em Nova Friburgo. Revista do IHGB. Rio de Janeiro: 1976, vol 310. p.177. 27

Cx1 doc 341 SOUZA, Op.Cit. p.177 29 Idem. 30 Idem. 31 Idem. 32 Cx1 doc 342 33 SOUZA, Op.Cit. p.177 34 Idem. 35 Cx2 doc 368 36 SOUZA, Op.Cit. p.177 37 Arquivo Eclesiástico da Paróquia de São João Batista de Nova Friburgo. Livro de Matrimônio da Catedral de São João Batista, p.463 28

2107

38

.SANTIROCCHI, D. I. Matrimônio no Império do Brasil: uma questão de estado. In: Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, ano IV, n12, jan 2012. p.95.3 39 Idem. 40 BOURDIEU, PIERRE. Economia das trocas linguísticas. São Paulo: Edusp, 2008. pp. 97-98. 41 Arquivo Eclesiástico da Paróquia de São João Batista de Nova Friburgo. Livro de Batismo da Catedral de São João Batista, p.57 42 Arquivo Eclesiástico da Paróquia de São João Batista de Nova Friburgo. Livro de Óbito II da Catedral de São João Batista, p.102 43 BOURDIEU. P. Op.Cit. p.. pp. 95-96. 44 Idem, pp. 90-91.

2108

As Mimésis de D. Pedro II: Uma análise estética das biografias de Freyre e Calmon sobre o Imperador Mauro Henrique Miranda de Alcântarai Resumo: D. Pedro II é, provavelmente, um dos personagens mais biografados em nossa história. Ao ler algumas das biografias sobre ele, percebemos a importância da construção estética dessas, bem como das figuras de linguagem nessas narrativas. A estética possuí a função de modelar o personagem, construindo, assim, várias representações do monarca. O objetivo deste trabalho é analisar nas narrativas biográficas escritas por Gilberto Freyre e Pedro Calmon sobre o Imperador, a função e importância da estética nessas biografias. Palavras-chave: Análise biográfica; D. Pedro II; Estética narrativa. Abstract: D. Pedro II is probably one of the most biographees characters in our history. When reading some biographies about it , we realize the importance of aesthetic construction of these , as well as figures of speech in these narratives. The aesthetic possess to shape the character of function , thus building , various representations of the monarch. The objective of this study is to analyze the biographical narratives written by Gilberto Freyre and Pedro Calmon on the Emperor, the role and importance of aesthetics in these biographies. Keywords: Biographical analysis; D. Pedro II; Narrative aesthetics. Em 1925 o, à época, jornalista Gilberto Freyre, realizou uma conferência na Biblioteca Pública do Recife em celebração do centenário de nascimento de D. Pedro II. Freyre dá o seguinte título a sua conferência: “Dom Pedro II: Imperador Cinzento em uma terra de Sol Tropical”. Cinquenta anos depois, quando se celebrava o sesquicentenário do nascimento do segundo imperador, o Conselho Estadual de Cultura de Pernambuco, lançou a conferência em formato de livro. Neste mesmo ano, Pedro Calmon, historiador vinculado ao IHGB e professor no Colégio Pedro II, relançou, em edição especial comemorativa, a sua primeira biografia sobre D. Pedro II, cuja a primeira edição data de 1938. “A vida de D. Pedro II: O rei filósofo”, ganhou nesse ano de 1975 a sua terceira edição, chancelada como uma obra da Biblioteca do Exército. As memórias e histórias construídas sobre o Imperador são constantemente temas de trabalhos acadêmicos. No entanto, o que nos faz percorrer nas duas obras, muito além de uma coincidente data de publicação são as características que cada uma dá ao personagem biografado: para Freyre, o Imperador Cinzento; para Calmon, o Rei filósofo. Tais títulos apresentam a disposição e a intenção dos biógrafos em dotar o seu biografado de uma modelagem, para que possam apresentar em suas narrativas uma justificativa para a trajetória e destino do Imperador. Apesar das pesquisas em arquivos e leituras historiográficas (e biográficas), os biógrafos aqui analisados, usam e abusam do suporte ficcional, para biografar. Como argumenta Leonor Arfuch, a biografia faz um jogo duplo, “ao mesmo tempo história e ficção” ii. Utilizam-se de estratégias do ofício do historiador, mas ao modelar o seu personagem, buscando dar maior

2109

ênfase na sua interpretação, do que na análise das fontes e documentos levantados sobre o biografado, acaba por transformar a sua narrativa em um híbrido, entre história e romance. Portanto, a narrativa biográfica situa-se em um terreno indeciso, devido a esse hibridismo no qual se move: [A biografia] se moverá num terreno indeciso entre o testemunho, o romance e o relato histórico, o ajuste a uma cronologia e a invenção do tempo narrativo, a interpretação minuciosa de documentos e a figuração de espaços reservados que, teoricamente, só o eu poderia alcançariii.

Verifica-se, portanto, que a forma estética é uma estratégia do biógrafo para conseguir reunir em sua narrativa, essas características apresentadas por Arfuch: um relato ao mesmo tempo histórico e um romance, o ajuste da cronologia vivida pelo biografado e a invenção de um tempo narrativo. Ele cria uma organização em meio ao caos que é a trajetória de uma vida. Tais características se assemelham a construção do “herói” no romance, segundo Bakthin. Para ele o autor abre um caminho entre o caos das reações cotidianas de uma vida, buscando estabilizar, a partir dos valores os quais o autor acha primordiais no personagem, para que o “rosto” dele apresente as características necessárias para a compreensão de sua trajetóriaiv. A partir dessa perspectiva de Bakhtin, podemos verificar que tanto o Imperador Cinzento de Freyre, quanto o Rei Filósofo de Calmon, são construções dos biógrafos, buscando tal estabilização através dos valores captados no personagem biografado. E por vezes, a mesma característica pode ser apresentada como positiva em uma obra, e negativa em outra. É o caso da intelectualidade de D. Pedro II nas biografias mencionadas, como poderemos ver adiante. É importante fazer uma ressalva em relação a construção heroificada de D. Pedro II, em obras que narram sua vida. Bakthin, ao explicitar sobre o romance biográfico, afirmar que nesse tipo específico de narrativa, não se trata de uma construção abstrata de herói, pois “há um herói que se caracteriza indiferentemente por traços positivos ou negativos” v. Ou seja, esse herói é preconcebido, não há mudanças drásticas do seu comportamento. Os eventos vividos estão ali postos, narrados. Sendo assim, os fatos, são colocados afim de justificar o destino do biografado, e não para modelá-lo: (...) esses traços têm um caráter estratificado, preconcebido, são dados enquanto tal desde o início e, em toda a duração do romance, o homem permanece inalterado. Os acontecimentos não modelam o homem, mas seu destino (ainda que este seja criador)vi

Nas obras analisadas, os títulos são um tanto quanto sugestivos, e demonstram a perspectiva que os biógrafos adotam em relação ao seu protagonista: Freyre busca em sua narrativa, apresentar D. Pedro II como um Imperador Cinzento, contrastando com a realidade nacional: um país tropical. Calmon constrói uma representação de D. Pedro II como um mártir,

2110

amante das ciências e das letras, e que sacrifica sua vida sendo governante, para o bem do seu povo. Uma estratégia verificada nas duas biografias, é a apresentação dos fatos e eventos vividos que justifiquem o destino do biografado, dando forma a sua escolha estética. É o que Bakthin nos diz: “os acontecimentos não modelam o homem, mas seu destino”. Paul Ricoeur, a partir da concepção de mythos de Aristóteles, descreve que o objetivo de narrar uma história, composta de personagens, fatos e eventos, é de universalizar uma ideia, e dessa maneira, constrói personagens universalizantes: Compreende-se mais uma vez por que a ação prima sobre os personagens: é a universalização da intriga que universaliza os personagens, mesmo quando eles conservam um nome próprio. Donde o preceito: primeiro conceber a intriga, em seguida dar nomesvii.

Ao ler, compreender e posteriormente analisar as biografias de Freyre e Calmon, verificamos que elas objetivam justamente essa ideia proposta por Ricoeur: dotar as suas respectivas biografias de um significado universalizante sobre o personagem biografado. O sujeito diante do espelho é o mesmo, mas as descrições sobre o seu reflexo, torna-o diferente. Portanto, primeiro precisamos “conceber a intriga”, para posteriormente “dar nomes”, por mais que o objetivo dela seja narrar a trajetória de um “nome próprio”. A utilização de “inovações semânticas” para explicar a trajetória do biografado, nas duas obras, nos demonstra que essa é uma estratégia para amarrar a estória do personagem narrado, porém, apresentando algo novo, “inédito”, sobre essa vida. Esse é um artifício utilizado pelo biógrafo, para conseguir apresentar as características até aqui mencionadas: a estabilização e universalização do protagonista, por meio da intriga, e dotando-o de atributos heroificados, positivamente ou negativamente. Paul Ricoeur descreve que a “inovação semântica” é o resultado da síntese com a assimilação dos valores verificados no que está sendo narrado: É nessa mudança de distância no espaço lógico que a imaginação produtiva opera. Esta consiste em esquematizar a operação sintética, em figurar a assimilação predicativa da qual resulta a inovação semântica. (...) Ora, a intriga de uma narrativa é comparável a essa assimilação predicativa: ela “toma juntamente” e integra numa história inteira e completa os acontecimentos múltiplos e dispersos e, assim, esquematiza a significação inteligível vinculada à narrativa tomada como um todoviii.

Para o historiador, a utilização de figuras de linguagem é uma “imaginação produtiva”. Ela consegue integrar e completar os fatos e acontecimentos dispersos e contemplar uma explicação inovadora e organizada. Isso nos permite pensar que, as figuras de linguagem utilizadas pelos biógrafos é uma estratégia, tanto para conseguir justificar a forma estética que

2111

eles utilizaram para explicar a vida do biografado, quanto para apresentar, a partir dos mesmos fatos e acontecimentos, uma nova explicação e que justifique tal escolha. Diante do exposto, nossa intenção nesse trabalho é demonstrar como as construções estéticas nas narrativas biográficas, desenvolvem atividades miméticas, pois buscam uma “imitação” ou “representação” de D. Pedro II. O Imperador Cinzento do Gilberto Freyre A realização da conferência em comemoração aos cem anos do nascimento de D. Pedro II, em 1925, na Biblioteca Pública do Recife, para o seu ministrante, Gilberto Freyre, não poderia ter tido melhor escolha. Para o escritor pernambucano, biblioteca é o melhor pano de fundo para narrar a vida do segundo imperador, pois era entre os livros que ele se sentia mais à vontade: O ambiente, aliás, não pede outra atitude: nem o assunto pedia outro ambiente. O ambiente de uma biblioteca. A sombra dos livros. Entre os livros, mais que entre as casacas dos ministros e os decotes das viscondessas, viveu Dom Pedro II; e agora que ele é morto, e passa o centenário do dia em que nasceu, é justo que falemos de sua vida entre os livros que tanto amou. Entre os livros que amou demasiadamente. Entre os livros que no seu palácio recebia, como Pedro I às mulheres: antes dos grandes do Império ix.

A analogia que Freyre faz entre o lugar da sua conferência com o lugar de preferência do Imperador, entre os livros, demarca uma característica importante, e que será o mote principal da vida do monarca, para esse escritor: o amor às letras e a busca por se apresentar intelectualmente. Verifica-se, também, que ele compara o amor de D. Pedro II pelos livros, ao amor de D. Pedro I às mulheres. A excessiva libertinagem do primeiro imperador, o levou à ruína. O excesso de intelectualidade do segundo o levou para o mesmo caminho. A partir disso, outra característica que o escritor descreve como importante para um príncipe, apresenta-se: a necessidade de certa malemolência, típica dos brasileiros para ele. A intransigência e tirania da moralidade foi um dos maiores erros do D. Pedro II, segundo Freyre. Assim que toma as rédeas do seu reinado, a partir da maioridade, o monarca começa a moldar o país a partir das suas virtudes, delineando no Brasil uma “Era Vitoriana brasileira”, “projetando sobre a vida nacional uma sombra de governante inglesa fantasiada de imperador”x. O biógrafo apresenta as tendências e virtudes do Imperador como cinzentas. Inicialmente, aparenta-se uma característica interessante, inovadora e que traria benefícios para o país. No entanto, tal peculiaridade, acaba por se tornar uma “tirania da moralidade”, trazendo prejuízos para o seu governo, e para a sua posição de Imperador:

2112

Dizer-vos que o Segundo Reinado foi no Brasil, pela tirania moral de Pedro II e o seu lápis fatídico – que até ao um tanto boêmio Barão do Rio Branco dificultou a ascensão política – um período melancolicamente virtuoso, isto não hesito. Não é que a virtude não se possa aguçar em alegria artística. (...) Mas a estética da virtude dificilmente a conseguem os governantes que se parecem às governantes; ou que pretendem tiranicamente acinzentar em calvinistas os povos que governam. E é o que foi Pedro II com sua “ditadura da moralidade”, com suas preocupações de marcar a lápis azul o estadista que tinha amante, o senador que bebia, o político que jogava. (...) A tirania moral tem o inconveniente de dar saudade dos próprios excessos do pecadoxi.

Para Freyre, D. Pedro II pecou pelo excesso de moralidade, pelo excesso de intelectualidade. Parecia o monarca não compreender o país que governa: católico e tropical. Percebe-se nesse momento, que o escritor se utiliza de figuras de linguagem para apresentar os atributos do governante: é o Imperador Cinzento. É importante destacar essa metáfora, pois ela é o ponto central da narrativa: a busca em acinzentar o país tropical, será, ao mesmo tempo, a marca do reinado de D. Pedro II e o motivo para a sua derrocada. Constata-se nessa passagem, que o “pecado” é uma qualidade para o governante. Ao pecar na medida certa, o príncipe constrói um imaginário sacro, no qual ele é ao mesmo tempo divino e humano. E para Freyre, esse é um atributo importante para um Imperador, principalmente sendo ele do Brasil. Para ele os brasileiros queriam ver D. Pedro II de “cetro, reinando e a cavalo, como um São Jorge de verdade”. Não estaria disposto o povo brasileiro em “ouvir os discursos e as frases de censor moral, de Marco Aurélio medíocre”xii. O monarca deveria ter sido mais tropical e menos cinzento. Para o escritor, D. Pedro II deveria ter compreendido que governava o Brasil, um país escravocrata, latino-americano. Os seus atributos cinzentos caberiam para um país europeu, e não para o país que de fato governava: E de tanto manejar o lápis azul de censor moral, o falado lápis fatídico, Dom Pedro acaba quase perdendo o jeito de empunhar o cetro. Este, o seu drama – ou a tragicomédia? – da Monarquia no Brasil do século XIX: um Brasil predisposto ao governo de um ArquiPatriarca, cujo palácio fosse uma arqui-Casa-Grande e cuja figura só surgisse aos olhos do povo a cavalo, as esporas de ouro tilintando como as de um Carlos Magno de história de Trancoso xiii.

A excessiva preocupação com as artes, ciências e letras, em manusear o seu “lápis fatídico”, como um burocrata, ou como prefere o biógrafo, como um “censor moral”, D. Pedro II perdeu a habilidade de manusear os instrumentos majésticos, e com isso, não conseguiu atender aos reclamos do seu povo, segundo Freyre. Para este escritor, o monarca deveria ter honrado a “tradição do homem brasileiro do povo”, mais “senhor-de-engenho rústico”, “caboclo macho do Norte”, amigo dos “senhores poderosos, de caciques resistentes e astuciosos, de patriarcas duros e ao mesmo tempo paternais no exercício do mando”. Assim como foi o “Marechal de Ferro”, na repúblicaxiv.

2113

Apesar de tais descrições, para Freyre D. Pedro II era um “mártir”, pois sacrificou a sua “meninice” e “mocidade” para cumprir o seu papel de Imperadorxv. A partir dessas colocações, compreende-se o papel heroificado que o escritor concebe do seu biografado. Os atributos do protagonista evidenciado na obra, principalmente a intelectualidade, moralidade e estoicidade, pesquisados por Freyre em obras de escritores e historiadores de sua época e que escreveram sobre a vida do Imperador (caso de Oliveira Lima e Ferreira Vianna), jornais e outros arquivos, são direcionados na narrativa, negativamente. Tais características se chocavam com as necessidades do país, e como governante, o monarca colocou a sua vontade a frente da população que governava. Dentre vários períodos e momentos de um reinado de quase meio século. Dentre as várias e conflituosas qualidades do governante, Freyre escolheu os momentos finais do Império e as justificativas que circulavam os periódicos da corte, para construir a narrativa sobre o personagem narrado. Com isso, ele seguiu os passos descritos por Bakthin: utilizou de determinados adjetivos verificados nas pesquisas sobre o biografado para estabilizar o seu “rosto” e organizar o caos que é uma vida. Neste caso, o caos da vida de D. Pedro II, foi organizado pela sua (sempre) intransigente moralidade e estoicidade. Ao colocar o seu protagonista no espelho, é de casaca, cinzento, sisudo e nada popular que Freyre representa o seu D. Pedro II. A “ação prima sobre o personagem”, como diz Ricoeur, e o trágico destino do monarca é a justificativa. E são os desdobramentos semânticos do “cinza” (cinzento, acinzentado, acinzentar, etc.) que realiza a “síntese do heterogêneo”, conseguindo a partir de uma “imaginação produtiva” organizar as escolhas estéticas, das fontes, das leituras e da trajetória do biografado através de uma expressão metafórica: O Imperador Cinzento. O Rei Filósofo do Pedro Calmon Pedro Calmon, em sua biografia “A vida de D. Pedro II: O Rei Filósofo”, apesar de apresentar o seu protagonista diferentemente da perspectiva do Gilberto Freyre, também tem no amor do Imperador pelas artes, ciências e letras, o mote principal para sua narrativa. Afinal, era D. Pedro II, um Rei Filósofo, para Calmon. E assim como Freyre, Calmon destaca a biblioteca como um lugar central na vida do monarca. Para Calmon, D. Pedro II cumpriu com determinação e esmero seu papel de Imperador. Por mais entediante que pudesse ser suas funções. Mas sempre que era possível, fugia para sua biblioteca, devorava os livros, como se fosse brinquedos: Representou corretamente o seu papel. Fatigou-se dele muitas vezes. Aprendeu longamente a dissimular, conter-se, sacrificar-se, com o tempo retalhado pelo horário, escravo do protocolo, um pouco mecanizado pela etiqueta nova, que lhe mudara a vida,

2114

e fugindo disso quanto podia, para as leituras prediletas, o esquecimento de tudo, na ampla biblioteca, onde o esperavam, como brinquedos amados da infância interrompida, os livros que devorava...xvi.

É possível perceber nessa passagem, que ser Imperador para o sujeito Pedro de Alcântara, era um ofício fatigante, praticamente um sacrifício que fazia. Em diversas outras passagens da obra, essa argumentação é repetida, às vezes até mais enfática e efusivamente. Essa é uma estratégia do biógrafo, para demonstrar que o seu protagonista exercia sua função de monarca, como uma obrigação, e não pelo amor ao poder. Para Calmon, a vida ideal, a qual D. Pedro II sonhou para si, seria ser um professor, mestre-escola. As leituras, as curiosidades científicas, o amor as artes, era o que mais deixava o monarca feliz. E isso é perceptível na passagem acima. A biblioteca e os livros são a válvula de escape do personagem. E essas repetidas, são inseridas após Calmon descrever funções políticas, as quais o monarca as cumpria, mais sem grande entusiasmo. Para Calmon, D. Pedro II era um modelo humano, um “indivíduo raro”. Sua obra seria um retrato verídico da memória do Imperador. Este que presenciou e participou de mudanças importantes da realidade brasileira: É assim um diferente retrato da mesma severa fisionomia; uma outra projeção, da mesma vida laboriosa; um D. Pedro II que do nascimento à morte se acompanha do desenvolvimento, da crise, das transformações, da realidade brasileira. Oferecemo-lo ao público que aprecia os sinceros e velhos, os grandes e famosos modelos humanos, preferindo a verdade – na memória – à ficção – na fábula: a longa verdade sobre esse indivíduo raro, aos seis anos de idade imperador, aos 14, soberano, durante perto de cinquenta anos encarnação da autoridade – e árbitro do poderxvii.

Neste trecho Calmon descreve as qualidades que caracterizam o seu personagem: severa fisionomia; laborioso; modelo humano; indivíduo raro; soberano; árbitro do poder. Tais atributos estão presentes, juntos ou separados, em toda biografia. Todas as ações, reações, atitudes e até mesmo o destino do Imperador, são diretamente relacionado com esses adjetivos. O biógrafo recorre a tais características, mesmo quando o seu personagem aparece nas mais complicadas das situações. Quando do final da Guerra entre os países da Tríplice Aliança (Brasil, Argentina e Uruguai) e o Paraguai, D. Pedro II não aceitava a retirada das tropas brasileiras do país vizinho, até que o General Solano López, presidente do Paraguai, não fosse capturado: “Somente o Imperador permanecia implacável: não lhe falassem em paz antes da captura ou expulsão dele” xviii

. Tal atitude do monarca foi bastante criticada a época, e trouxe certo desgaste para ele junto

ao comando do exército, principalmente junto ao Duque de Caxias que não concordava com essa obsessão do D. Pedro II ao “El Mariscal”, como era chamado Solano López. Para Caxias, já havia terminado. O Paraguai já estava capitulado. 2115

Mas para Calmon, o grande problema da “caçada a López” foi a forma como se efetivou sua morte, e não a persistência do Imperador em caçá-lo. Destituir os chefes de estados do sul da América do Sul, que impossibilitavam a paz na região do Bacia do Prata, para trazer a estabilidade e harmonia a região, foi um dos grandes atos do D. Pedro II. E ele sonhava que López teria o mesmo destino de Estigarribia e Rosas, o exílio. A magnanimidade entrava no sistema de sua política, na sedução de sua diplomacia: Estigarribia vivia no Rio em liberdade, de uma pensão que lhe dava o Imperador, e frequentava o teatro... Não interessava ao equilíbrio platino o trucidamento do “Mariscal”: faria ele, na Inglaterra, boa companhia a Rosas. Disse-se mesmo que este, no seu exílio de Southampton conservava à mesa um lugar vazio, à espera do outro adversário de D. Pedro II...xix.

A magnanimidade do Imperador é visível até na sua política diplomática, segundo Calmon. Mas para um rei filósofo e pacifista, essa atitude seria a única condizente com a sua posição, alega o biógrafo. A posição imperial de só aceitar o fim da guerra, quando López fosse capturado, era mais um ato de grandeza, do que de tirania, para Calmon. Fora isso, tal atitude era uma marca do reinado do Imperador, que tinha na manutenção da paz e estabilidade suas principais preocupações para com o Brasil. Ele havia sacrificado sua vida para proporcionar tais condições para o seu país. Só mantinha o seu poder, só não renunciava ao seu cargo pois não era egoísta. Porque na verdade era um “democrata”, segundo Calmon. Eu sou republicano. Todos sabem. Se fosse egoísta, proclamava a república para ter as glórias de Washington... Somente sacrificava o Brasil à minha vaidade... Porque as pequenas províncias não têm pessoal para a federação, e seria um desgoverno geral, que acabaria pela separação. (...) República era, para ele, como para Montesquieu, a virtude civil, sem ambições e pompas da coroa, que é a glória. Poderia ser mais exato: era democrata. Que ninguém sobrepusesse à razão e ao povo um direito, mesmo que fosse o seu direitoxx.

Nessa passagem, verificamos que o biógrafo cita um trecho como se fosse de autoria do próprio imperador, se auto proclamando republicanoxxi. E ele corrige D. Pedro II, alegando que na verdade ele era um democrata. Ambas as colocações, estão para ratificar a posição que colocamos no início da análise da biografia escrita por Calmon: o desapego do Imperador ao poder, mas ao mesmo tempo seu cuidado com o país e presteza e zelo com suas funções políticas. E neste momento, o biógrafo insere, o que ele faz em diversos momentos da obra, qual seria o destino do protagonista: perder a sua coroa e a implantação da República. No entanto, esse advento não era algo inesperado ou contrário a vida do D. Pedro II, ao contrário, era um destino natural do país, e que ele vislumbrava que aconteceria, cedo ou tarde. Diferentemente do Gilberto Freyre, as qualidades do Imperador nesta biografia do Pedro Calmon, apresentam-se de forma positiva. Esses atributos estabilizam uma vida (como o próprio Calmon descreve) longa e como podemos perceber pela grandeza da sua obra e pela 2116

sua forma de narrar, repleta de eventos, fatos e episódios. Esses adjetivos, ao mesmo tempo, modelam o caráter do biografado, colaborando para o desfecho da sua vida. Mas não há rupturas. Todos os atos são condizentes com as suas virtudes e sair de cena, quando da proclamação da República, fora mais um ato de alívio, fim do sacrifício, do que uma perda para D. Pedro II: De política, falava o menos possível. Não combatia a república; achava-a natural e duradoura. “Oxalá mostre-se a minha gente digna do sistema republicano, não sentindo eu pena senão de não lho haver dado mais cedo” (trecho do diário do Imperador)xxii.

D. Pedro II não falava sobre política, após o exílio, pois ela nunca lhe interessou, na visão do Calmon. Neste fragmento, o qual apresenta uma interpretação do biógrafo e um trecho do diário do Imperador, para ratificar sua interpretação, percebemos que o exílio fora mais uma aposentadoria, ou até mesmo, um júbilo para o Imperador, do que um momento de angustiante tristeza ou sentimento de perda, na representação do Calmon. Para ele, o sistema republicano viria engrandecer o reinado do D. Pedro II, que não foi nada mais do que um momento de preparação da população brasileira, para a vida republicana. A descrição do reflexo do Imperador para Pedro Calmon, é a de um homem magnânimo, democrata coroado, republicano, visionário e, acima de tudo, filósofo. Tais características, verificadas em toda a obra, em todos os momentos, inclusive nos mais complexos, são as “inovações semânticas”, as quais Calmon utiliza para “universalizar” sua narrativa, e com isso, universalizar a sua ideia/percepção de um Rei Filósofo. Este é construído heroificadamente, e o seu destino, o exílio foi um presente para um homem que sacrificou sua vida pelo bem da nação que governava. Tanto foi um presente, que foi “agraciado pelo regime que o derrubou com os vencimentos de presidente da Nação”xxiii, insiste o biógrafo. Tais adjetivos é a representação da “imaginação produtiva” do Calmon, que através deles, consegue estabilizar uma longa trajetória, repleta de enigmas e situações de difícil explicação, para quem busca explica-la. Mas, a partir dessas palavras adjetivas, ele conseguiu fazer a “síntese do heterogêneo”, garantindo uma narrativa que, não somente explica a vida do seu protagonista, mesmo em situações difíceis de serem explicadas, em lugares, como diz Arfuch, que somente o “eu” poderia ter acesso, como também o representa como um modelo humano, um príncipe ideal. Uma típica biografia exemplar. Considerações Finais As duas biografias analisadas aqui representam algumas das mimeses narradas e publicadas sobre o D. Pedro II. Personagem este, um tanto quanto enigmático, por tantas obras terem sido, e ainda têm sido publicadas (ou republicadas) sobre ele. As obras do Gilberto Freyre 2117

e do Pedro Calmon, possui características diferentes: a primeira trata-se da publicação de uma conferência, curta, menos de trinta páginas, mais preocupada em apresentar a contradição entre o Imperador Cinzento da Terra de Sol Tropical, do que em explicar a trajetória da vida do protagonista. A segunda, ao contrário, busca justamente narrar a vida do monarca, aliás, narrar a “verdade” da sua longa vida, como enfatiza Calmon. Mesmo com tais diferenças, ambas utilizam de estratégias estéticas para explicar a vida do biografado. Mesmo partindo das mesmas características, as quais os biógrafos verificaram nas pesquisas que fizeram, o Imperador Cinzento do Gilberto Freyre, apresenta-se como um herói, mas com características negativas, o Rei Filósofo do Pedro Calmon, pelo contrário, ele é o que demais positivo poderia ter existido para o Brasil, em sua época. Sendo assim, percebemos que, como descreve Paul Ricoeur, há uma busca de universalizar a “intriga”, utilizaremos aqui a palavra narrativa, para posteriormente universalizar os personagens envolvidos nela. Freyre e Calmon, buscam a partir das suas escolhas documentais, e principalmente, das suas escolhas estéticas, apresentar uma narrativa que terá como finalidade, justificar o destino do biografado a partir das suas qualidades, das figuras de linguagens que eles acreditam representar (mimeticamente) o seu biografado. i

Professor do Instituto Federal de Rondônia. Doutorando em História pela Universidade Federal de Mato Grosso. Bolsista FAPERO/CAPES. Contato: [email protected] ii ARFUCH, L. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010. p. 117. iii Ibidem, p. 137-138. iv BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997. v Ibidem, p. 233. vi Ibidem, p. 233. vii RICOEUR, P. Tempo e narrativa. Vol. 1. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010. p. 73. viii Ibidem, p. 2. ix FREYRE, G. Dom Pedro II: Imperador Cinzento de uma Terra de Sol Tropical. Recife: Conselho Estadual de Cultura, 1975. p. 9. x Ibidem, p. 12. xi Ibidem, p. 13. Mantivemos os grifos existentes na obra. xii Ibidem, p. 16. xiii Ibidem, p. 16. xiv Ibidem, p. 15. xv Ibidem, p. 10-11. xvi CALMON, P. A vida de D. Pedro II, o rei filósofo. Edição especial comemorativa do sesquicentenário de seu nascimento. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1975. p. 36. xvii Ibidem, p. VIII. xviii Ibidem, p. 171. xix Ibidem, p. 173. xx Ibidem, p. 263. xxi No entanto, não há referências de qual fonte/arquivo foi retirado esse fragmento. xxii Ibidem, p. 295. xxiii Ibidem, p. IX.

2118

O CULTO AO TRABALHO NA CARTILHA “A JUVENTUDE NO ESTADO NOVO” Mayra Coan Lago** Resumo: Dentre os objetivos do Estado Novo, explicitados nos discursos políticos de Getúlio Vargas, figurava o da construção do "Brasil Novo". Para lograr o objetivo, todos os brasileiros deveriam trabalhar pelo "engrandecimento" do Brasil. As mais diversas formas para enaltecer o trabalho foram utilizadas no período. Dentre as formas utilizadas selecionamos a cartilha "A juventude no Estado Novo" a fim de analisar de que forma o discurso oficial, sobretudo relacionado ao culto ao trabalho, foi produzido. Que imagens sobre o trabalho foram produzidas? Qual o papel da juventude neste culto ao trabalho? Eis alguns dos questionamentos deste trabalho. Palavras-chave: trabalho; juventude; Estado Novo. Abstract: Among the objectives of the Estado Novo, explained the political discourse of Getúlio Vargas, included the construction of the "New Brazil". To achieve the goal, all Brazilians should work for the "enlargement" of Brazil. Many different ways to praise the work were used in the period. Among the forms used we select the book "A juventude no Estado Novo" to analyze how the official discourse, particularly related to the cult of the work was produced. What images about the work were produced? What is the role of youth in this service work? Here are some of the questions this work. Key-words: work; youth; Estado Novo. Introdução Educar não é, somente, instruir, mas desenvolver a moralidade e o caráter, preparando o homem para a comunhão, ensinando-lhe as artes necessárias para a mais alta das virtudes: o conhecimento das suas próprias forças. O melhor cidadão é o que pode ser mais útil aos seus semelhantes e não o que mais cabedais de cultura é capaz de exibir (A juventude no Estado Novo, s/p)1.

O projeto político explicitado nos discursos políticos de Getúlio Vargas, sobretudo nos 10 de novembro, tinha como principal objetivo a construção do “Brasil Novo”. Dentre as formas de atingir o objetivo estava o “trabalho” e a “educação”. No tocante ao trabalho, concordamos com Maria Helena Capelato (2009) quando afirma que, no Estado Novo, a dimensão privada e pública do homem era definida pela relação trabalhador/cidadão, isto é, membro socialmente útil do Estado. O trabalho, antes forma de escravidão, passara a ser visto como forma de emancipação da personalidade, que valorizava o homem e tornava-o digno de respeito e de proteção da sociedade. No tocante à educação, a mesma deve ser compreendida no sentido mais amplo, para além da educação formal, da alfabetização à educação técnica, de crianças e de adultos, ** Mestre em Ciências da Integração da América Latina, na área de concentração de Práticas Políticas e Relações Internacionais, pelo Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da Universidade de São Paulo (PROLAM/USP). Email: [email protected] 1 A cartilha está localizada no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro.

2119

incluindo também a perspectiva do homem em sua formação moral e cívica, levando em consideração as garantias não só de melhoria das condições físicas do trabalhador, mas também psíquicas e sociais. Assim, no Estado Novo, a educação também deveria ser entendida como uma forma de desenvolver nos brasileiros, no sentido de ensinar, uma “consciência ideal” do momento, do projeto varguista e do papel de todos, isto é, uma forma de promover o discurso oficial. A epígrafe da introdução, presente na primeira página da cartilha “A juventude no Estado Novo”, produzida pelo Estado Novo, estabelece uma relação direta entre a noção de utilidade do cidadão brasileiro, relacionada ao trabalho, e o papel da educação para lograr tal noção. Mais significativo é este trecho do discurso político de Vargas estar presente na primeira página de uma cartilha produzida para jovens. Capelato (2009), utilizando-se dos estudos de Luís Reznik sobre a presença dos elementos doutrinários expressos nos livros didáticos de segundo grau, afirma que a composição dos livros didáticos passou a ser orientada pelos objetivos estabelecidos pelo novo regime em relação à educação. Ainda de acordo com a historiadora, estes materiais constituíam elementos privilegiados para estabelecer conexões entre o Estado e a sociedade. Para nós, além de estabelecer conexões entre Estado e sociedade, estes materiais também eram espaços de propaganda política, que procuravam reproduzir a “nova” realidade dos brasileiros, os principais elementos do novo regime, os modelos ideais de pessoas e de comportamento, tal como a exaltação de determinados elementos do regime e do governante, a partir do próprio uso de seus discursos políticos. Ou seja, a cartilha procurava reproduzir imagens de uma determinada realidade: a do novo regime. A partir da epígrafe e do que foi comentado até o momento, pretendemos utilizar a cartilha “A juventude no Estado Novo”, a fim de analisar de que forma o discurso oficial reproduziu um dos elementos do novo regime, o trabalho, para os jovens. Para abordarmos as imagens sobre o trabalho na cartilha utilizaremos alguns dos aspectos da noção de imaginários sociais propostos por Bronislaw Bazcko (1985). O primeiro dos aspectos a ser mencionado é que os imaginários sociais não são, como dão a entender seu emprego corrente e uma das acepções do dicionário, aquilo que se opõe à realidade, completamente fictício e irreal. Como constatou Bazcko (1985), os sistemas de representação produzidos por cada época não isolaram o “verdadeiro” e o “ilusório”, pelo contrário, uniu-os por meio de um jogo complexo e dialético. A partir das ilusões que uma época alimenta de si própria, ela manifesta e esconde, ao mesmo tempo, a sua “verdade”, tal como o lugar que lhe cabe na história. 2120

O segundo aspecto a ser sublinhado é que os imaginários sociais são inventados, construídos, e não dados. Dizer que são construídos não significa afirmar que sejam construções sólidas, rígidas, senão que seus elementos são selecionados, relacionando significantes (imagens, palavras) e significados (representações) que fazem sentido para determinada sociedade, época, contexto e grupo. Todas as épocas tiveram as suas modalidades específicas de imaginar, reproduzir e renovar os imaginários sociais, tal como as modalidades específicas de acreditar, sentir e pensar. Neste sentido, as produções imaginárias não são isomorfas, senão polissêmicas e ambivalentes. O terceiro aspecto é justamente a multiplicidade e heterogeneidade destes imaginários sociais, que vão ter as particularidades e especificidades de acordo com as classes, sociedades, países e do contexto sócio histórico em que forem produzidos e (re) produzidos. Baczko (1985) constatou que no centro do imaginário social se encontra o problema do poder legítimo ou o problema da legitimação do poder. Assim, o quarto aspecto a ser sublinhado é a relação dos imaginários sociais com o poder. A elaboração de imaginários sociais é parte integrante de qualquer regime político e é por meio dos imaginários sociais que se pode atingir não apenas a cabeça, mas também o coração. Consideramos a cartilha estudada como um espaço de reprodução dos imaginários sociais forjados no período do Estado Novo. Desta forma, pretendemos refletir, sobretudo acerca dos imaginários sociais sobre o trabalho que estava sendo transmitido aos jovens. Vale dizer que a cartilha era formada por imagens coloridas e trechos dos discursos políticos de Vargas, não apenas do Estado Novo, mas do período mais amplo, desde os anos 1930. Desta forma, pretendemos analisar o conjunto, isto é, a combinação entre imagem e foto, a partir das imagens selecionadas por nós nesta cartilha. Por fim, vale dizer que o nosso critério de seleção das imagens corresponde às perguntas que procuramos refletir e ao objetivo do trabalho, isto é, o discurso oficial sobre o trabalho para os jovens. A reprodução do culto ao trabalho na cartilha “A juventude no Estado Novo” A partir da análise das imagens selecionadas, notamos que a reprodução do culto ao trabalho foi composta por aspectos mais amplos, que compunham o próprio regime varguista, e que podem ser observados nas imagens selecionadas. A partir das mesmas pretendemos refletir sobre seis aspectos presentes, de maneira direta ou indireta, relacionados às imagens e as frases dos discursos políticos de Vargas, sobre o culto ao trabalho e o trabalhador nas imagens, de maneira específica, e no regime varguista, de maneira geral. Dentre os aspectos

2121

presentes, figuram: a construção do Brasil Novo; o labor cotidiano; a noção de disciplina e de ordem; o trabalho e a dignidade humana; a importância das escolas profissionais; e Vargas como o exemplo de trabalhador. A primeira imagem está relacionada ao primeiro aspecto anunciado por nós,

a

“construção do Brasil Novo”.

Imagem 1: Construção do “Brasil Novo”. Fonte: A juventude no Estado Novo, s/p.

A imagem acompanha um trecho do discurso político de Vargas: Anima-me a certeza de que toda esta multidão entusiástica, desde os jovens estudantes até as suas classes trabalhadoras e industriais, é capaz de erguer comigo os alicerces da construção do Brasil Novo, que juramos empreender. Mas este esforço que nos empenhamos em realizar e estamos realizando não se pode desprender das tradições e dos fatos predominantes de sua história. Haveremos de engrandecer o Brasil, para sermos dignos da herança que nos legaram os nossos antepassados (A juventude no Estado Novo, s/p).

O trecho do discurso político e a imagem, combinados, compõem a “construção do Brasil Novo”. Observando o trecho do discurso político é possível notar a reafirmação da ideia de que todos devem trabalhar pela construção do novo país, envolvendo os jovens e os adultos, e os usos do passado, a partir dos heróis e de determinados fatos históricos, selecionados pelo regime varguista. No tocante à imagem, vale observarmos o uso de símbolos nacionais, como a bandeira do Brasil, e do herói nacional, Tiradentes. Ademais, os jovens uniformizados, segurando a bandeira brasileira e observando o herói nacional, confluem para a imagem de totalidade, da “nação”, para a “grande” obra nacional. Ao analisar este tipo de material, Capelato (2009) considera que a ênfase na unidade nacional era um elemento-chave na configuração da nova identidade nacional coletiva. Ainda de acordo com a historiadora, a composição de elementos das obras conformavam uma campanha cívica e patriótica, que procurava envolver toda a população brasileira. Em 1938

2122

foi criada a Comissão Nacional do Livro Didático, que definia, entre outras coisas, as causas que impediam a autorização do livro didático. De acordo com Capelato (2009), a comissão proibia o uso de livro que, de qualquer forma, atentasse contra a unidade, a independência e a honra nacional. Proibia-se o livro didático que inspirasse o sentimento de superioridade ou inferioridade do homem de uma região do país com relação aos demais, que apresentasse emprego abusivo de termos ou expressões regionais, que despertasse ou alimentasse a oposição e a luta entre as classes sociais, que incitasse o ódio contra as raças. Assim, na construção de uma moral nacional, associada à uma memória histórica, eram negados, enfaticamente, o regionalismo, o ateísmo, os conflitos sociais e outras ideias que fossem consideradas prejudiciais. Também estamos de acordo com a historiadora quando afirma que tais medidas pretendiam controlar não só o passado, indicando como ele deveria ser representado, como também o presente e o futuro, ao proibir qualquer afirmação ou sugestão que induzisse ao pessimismo, ao contrário, o esperado era que se estimulasse o otimismo nos dias vindouros do novo regime. A segunda imagem, relacionada ao aspecto do “labor cotidiano”, exerce uma continuidade na imagem de todos trabalhando pela pátria.

Imagem 2: Labor Cotidiano. Fonte: A juventude no Estado Novo,s/ p.

No canto inferior esquerdo da imagem, lê-se outro trecho do discurso político de Vargas: Brasileiros! Como vós, creio nos altos destinos da Pátria e, como vós, trabalho para realiza-los. De coração confiante e ânimo alevantado, consagrai-vos ao labor quotidiano e aos cuidados do lar, onde haveis guardado as esperanças de felicidade e encontrais o aconchego confortável dos entes queridos (A juventude no Estado Novo, s/d, s/p.).

A ideia de labor dentro e fora do lar, explicitada no trecho, é combinada à de família e à de felicidade. Com relação à imagem da cartilha, é possível observarmos uma casa de classe média ou alta, pelos objetos e trajes utilizados pelos personagens, representam o “novo” 2123

Brasil. Este aspecto é interessante para refletirmos as ausências das representações dos operários ou mesmo dos trabalhadores rurais que, embora compusessem os discursos políticos de Vargas, como uma das grandes preocupações do governo que, em teoria, era para os trabalhadores, não apareciam na propaganda do governo. A terceira imagem está relacionada ao terceiro aspecto, “noção de disciplina e ordem”.

Imagem 3: Trabalhadores e a noção de disciplina e ordem. Fonte: A juventude no Estado Novo, s/p.

No canto inferior direito, lê-se outro trecho do discurso político de Vargas: A hora é de ação clara e direta, de realizações úteis, de trabalho fecundo e criador. Dar todo o prometido à Nação, que espera diretivas sadias, conduzi-las sem tergiversações, resolver e executar acima de sentimentalismos e delongas, o nosso dever. Havemos de cumprí-lo integralmente, porque o Brasil está de pé, vigilante e disposto a tudo empenhar na conquista de seu destino imortal! (A juventude no Estado Novo, s/d, s/p.).

A reafirmação da noção de homem útil, relacionando-o com o trabalho e a própria criação e a modernização do país é combinada com as ideias de ordem, no sentido que as transgressões e os sentimentalismos devem ser afastados e aproximados à noção de dever dos brasileiros. A imagem também reforça os elementos de ordem e disciplina comentados, que podem ser relacionados aos dois tipos de relógio da imagem e à fila formada pelos personagens que representam os brasileiros. Além destes aspectos, também vale observarmos as diferentes funções dos trabalhadores na “grande obra”, de construção do Brasil Novo, a partir dos diferentes tipos de uniformes e de chapéus. Na imagem vale destacarmos a presença de uma única mulher, trajada de enfermeira. Tal imagem do mundo idealizado do trabalho está relacionada também com a ideia entre o bem, representado por aqueles que trabalham, e o mal, representado por aqueles que não trabalham. Concordamos com Eliana de Freitas Dutra (2012)- que embora analise os imaginários políticos sobre o trabalho, produzidos pelo governo de Vargas nos anos 1930, antes do Estado Novo- quando afirma que este mundo idealizado, do bem, da sociedade

2124

laboriosa, disciplinada estava contraposto ao do mal, que era tudo o que deveria ser expurgado: o desânimo, a ignorância, o desleixo, a indolência, a sensualidade, o vício, a corrupção, a doença, a indisciplina e a fraqueza. Desta forma, se configurava também para os jovens, a ideia de ordenação do mundo trabalho, para a construção de um trabalhador ideal, produtivo, ordeiro, patriota, higienizado e moralizado. O quarto aspecto, “o trabalho e a ideia de dignidade humana”, está relacionado com a imagem abaixo:

Imagem 4: O trabalho e à ideia de dignidade humana. Fonte: A juventude no Estado Novo, s/p.

Na imagem, o trecho do discurso político de Vargas diz: “O trabalho é o maior fator da elevação da dignidade humana!”. Analisando os discursos políticos de Vargas sobre o trabalho e o trabalhador, podemos observar que a ideia do trabalho como o maior fator de elevação da dignidade humana, estaria relacionada diretamente à “garantia” de, além da subsistência, da casa, do vestuário e da educação dos filhos dos trabalhadores. Deste modo, a imagem e o trecho do discurso político reforçavam a imagem positiva sobre o trabalho, que deveria ser ensinado, transmitido aos jovens desde cedo, como mostra a imagem da, provavelmente, mãe ensinando a filha. A quinta imagem oferece continuidade à ideia positiva do trabalho, a ser transmitido desde cedo, relacionada ao quinto aspecto, “importância das escolas profissionais”:

Imagem 5: Importância das escolas profissionais.

2125

Fonte: A juventude no Estado Novo, s/p.

No canto inferior esquerdo, lê-se o seguinte trecho do discurso político de Vargas: Havia abundância de doutores e falta de técnicos qualificados; o homem competente no seu ofício era raro; o artesanato decaiu diante da máquina, sem que pudéssemos dispor de trabalhadores industriais. O Governo Nacional resolveu empreender, a esse respeito, obra decisiva. Além de modernizar os estabelecimentos existentes, ampliando-lhes a capacidade e eficiência, iniciou a construção de grandes escolas profissionais, que deverão constituir uma vasta rede de ensino popular, com irradiações por todo o país (A juventude no Estado Novo, s/d, s/p.)

Como mencionamos na introdução deste estudo, para Vargas, o problema da educação era o magno problema dos brasileiros. No tocante ao aspecto “formal” da educação, o melhor cidadão era aquele que poderia ser útil aos seus semelhantes e não o que mais cultura poderia exibir. Essa ideia estava relacionada ao que comentamos anteriormente neste estudo sobre a relação estabelecida entre a educação e o trabalho, sendo que com níveis mais altos de qualificação do trabalhador, no sentido do ensino técnico, atingiriam níveis mais altos de produção. A reafirmação da ideia de útil, com relação ao trabalho na construção do “Brasil Novo”, combina tanto a importância dos doutores como de técnicos, cada um ocupando seu “papel” na sociedade e na construção do “novo” Brasil. A última das imagens selecionada por nós apresenta o último aspecto, Vargas como o exemplo de trabalhador.

Imagem 6: Vargas como exemplo de trabalhador. Fonte: A juventude no Estado Novo, s/p. No momento em que se providencia para que todos os trabalhadores brasileiros tenham casa barata, isentando-os dos impostos de transmissão, torna-se necessário ao mesmo tempo que , pelo trabalho, se lhes garanta a casa, a subsistência, o vestuário, a educação dos filhos (A juventude no Estado Novo, s/d, s/p.)

A figura de Vargas, combinada com o trecho do discurso político, reforça algumas imagens que se tentou reproduzir acerca de Vargas no período. A primeira delas é de Vargas como o “primeiro” trabalhador brasileiro. A autodenominação adveio da Carteira de Trabalho número 001 e, posteriormente, foi reforçada pelo aparato varguista. É interessante pensarmos o significado simbólico de primeiro trabalhador, pois revelava, por um lado, a tradição e a

2127

maturidade de seu trabalho e, por outro lado, o exemplo a ser seguido. Além desta imagem, outra que é sugerida, sobretudo pelo trecho do discurso político selecionado, é a de Vargas como “doador” das benesses sociais e trabalhistas (LAGO, 2015). Concordamos com Gomes (2002) ao afirmar que a imagem da doação apontava uma dupla dimensão. A primeira está relacionada à “dádiva” como, ao menos teoricamente, um ato voluntário, aparentemente livre, gratuito e generoso, ou em outras palavras, um procedimento que tem uma face desinteressada. Assim, a “clarividência” do presidente Vargas era o resultado da compreensão de seu dever e experiência histórica e também das consequências maléficas que poderiam advir de sua incompreensão do momento. Ademais, a outorga garantiria a almejada “ordem” e “paz” social, pois tais leis garantiriam a justiça social e, consequentemente, a sociedade harmônica. A segunda dimensão da “doação” é a do “receber”. De acordo com Gomes (2002), toda dádiva só se cumpre com a aceitação do que é dado. Desta forma, há uma lógica bilateral no ato, pois, assim como aquele que doa o faz também por “necessidade”, aquele que recebe “precisa” aceitar o benefício. A recusa de uma dádiva é o descumprimento de uma obrigação social, é um ato egoísta que pode acarretar graves consequências e, portanto, receber benefícios é, ao mesmo tempo, um direito e um dever. Em alguma medida, o trecho do discurso político selecionado pela propaganda varguista revela esta “reciprocidade” entre o governante e os trabalhadores.

Considerações Finais Procuramos apresentar algumas considerações sobre o discurso oficial sobre o trabalho para os jovens. Tomando a noção de imaginários sociais de Bazcko (1986), é possível notarmos a seleção de determinados elementos, imagem e texto, para se forjar uma determinada realidade: a do governo varguista. Vale lembrar que tal “realidade” procurava retratar uma imagem de família e sociedade feliz, apesar de viverem em uma ditadura. Ademais, sobretudo no período da entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial, a situação econômica dos brasileiros e, principalmente, dos trabalhadores urbanos e rurais se deteriorou, seja pela suspensão de alguns dos direitos trabalhistas devido ao esforço de guerra ou pela redução de salários. Para as imagens que se procurou reproduzir, notamos a presença de aspectos chave para o governo, que foram combinados com modelos físicos ideais de brasilidade, formas de comportamento, atuação da juventude nestes momentos e a importância da família. Mais do que as presenças, vale observarmos as ausências, isto é, os elementos que foram excluídos

2128

destas reproduções. No tocante aos modelos ideais de brasilidade, nota-se a ausência de negros, no momento em que o mito das três raças, da miscigenação, estava sendo apropriado pelo Estado2. O segundo elemento está relacionado à ausência das representações das classes populares, do próprio trabalhador, que foi representado apenas em uma foto, também idealizada. Deste modo, o cotidiano do trabalhador não apareceu. Assim, a partir da seleção de alguns elementos e exclusão de outros que o governo varguista procurou, a partir da propaganda, difundir imagens sobre o trabalho e o trabalhador para os jovens, relacionando-as com o governo, o governante e a atuação dos jovens para o “novo” país. Finalmente, com relação aos imaginários sociais apresentados, ainda que buscassem atingir os “corações” e “mentes” dos jovens e produzir imagens de apoio, coesão e legitimidade do governo varguista, vale assinalarmos que não consideramos recepções homogêneas, senão múltiplas, complexas e não lineares, justamente pela importância do sentido destas produções. Referências Bibliográficas BACZKO, Bronislaw. “A imaginação social” In: LEACH, Edmund. Anthropos-Homem. Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985. CAPELATO, Maria Helena Rolim. Multidões em cena: propaganda política no varguismo e no peronismo. São Paulo: Editora UNESP, 2009. FREITAS DUTRA, Eliana. O ardil totalitário. Imaginário político no Brasil dos anos 30. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012. DEPARTAMENTO DE IMPRENSA E PROPAGANDA. A juventude no Estado Novo: textos do Presidente Getúlio Vargas, extraídos de discursos, manifestos e entrevistas a imprensa,1937-1945. GOMES, Ângela de Castro. A invenção do Trabalhismo. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002. LAGO, Mayra Coan. Trabalhadores do Brasil, Mis Queridos Descamisados: a (re) invenção dos trabalhadores no varguismo e no peronismo. Dissertação de Mestrado (Mestrado em Integração da América Latina)- Programa de Pós-Graduação Interunidades em Integração da América Latina da Universidade de São Paulo-SP. 2015.

2

Segundo Capelato (2009), para os nacionalistas, a unidade nacional dependia também da resolução do problema étnico. Deste modo, houve uma mudança significativa no discurso sobre as raças na década de 1930. As teses baseadas nas ciências biológicas e na sociologia evolucionista orgânica, que justificara o racismo e a necessidade de branqueamento na sociedade até os anos 1920, foram sendo, paulatinamente, substituídas por outras perspectivas que acabaram por valorizar a miscigenação. Ainda de acordo com a historiadora, a necessidade de aproveitamento do trabalhador nacional explica, em parte, essa mudança. Não obstante, a justificativa desta nova postura aparecia relacionada à preocupação com a unidade étnica do país, elemento importante para a construção da consciência nacional. O negro, o índio e o mestiço, antes considerados excluídos da civilização e responsabilizados pelo atraso do país, passaram a ser enaltecidos como elementos de progresso. Nessa mudança de enfoque, o outro, tornou-se o nós, ou seja, parte integrante da comunidade nacional.

2129

SOMBRAS E SANGUE: DON CALMET E AS INVESTIGAÇÕES SOBRE VAMPIROS NA EUROPA ILUMINISTA. Maytê Regina Vieira1

O homem está sempre buscando dar significado e sentido ao mundo e usa para isto sua imaginação1. Desta maneira, o vampiro encarna dois dos principais medos: a morte e o tempo, e mais, o medo da noite, dos mortos, do sobrenatural, de tudo aquilo que não tem explicação. Sua imortalidade é ambígua, pois é vista como uma maldição. Se o medo da morte aterroriza os homens a imortalidade transmitida pelo vampiro é maldita, o preço a pagar é muito alto: vagar entre dois mundos, sem descanso e ter que beber sangue, desafiando as leis da morte e do tempo2. A manifestação e a divulgação de um surto de vampirismo ocorrido no século XVIII, no leste europeu, surpreendeu ao fazer surgirem questionamentos e discussões por toda a Europa a respeito da existência de vampiros. Este surto deu origem a nossa fonte de estudo, a obra Traité sur les apparitions des esprits et sur les vampires ou les revenans de Hongrie, Moravie, etc. escrita pelo frei beneditino Dom Augustin Calmet e publicada em 1751. Cerca de sessenta anos antes, explicava, na Hungria, Polônia, Silésia, Boêmia e Morávia assistia-se ao retorno de mortos que não apenas falavam e andavam, mas que infestavam os vilarejos, atacavam homens e animais, sugavam-lhes o sangue até torná-los doentes e matá-los. Depois de “vistos e reconhecidos”, eles eram exumados, processados, empalados, decapitados e, finalmente, queimados. A intenção do frei foi estudar os casos relatados e documentados de vampirismo na Europa para comprovar a inexistência destes seres e que, além disto, tudo não passava de uma espécie de histeria coletiva, mas acabou conseguindo o contrário; fez uma compilação de casos que foram lidas e discutidas por seus contemporâneos, acendendo ainda mais a questão e acabando por, involuntariamente, consagrá-los. O resultado desta discussão acabou por trazer o vampiro para os círculos literários europeus de onde ganhou o mundo, tornando-se universal. Os casos ocorrem em pequenas vilas, pequenas aldeias onde a comunidade é fechada, todos tem conhecimento dos acontecimentos comuns, todos sentem a morte de um membro e qualquer modificação naquele meio perturba a comunidade e causa histeria coletiva, ‘reações 1

Mestre em História pela Universidade Estadual de Santa Catarina (UDESC). Professora de História na Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). E-mail: [email protected]

2130

aberrantes’, como define Delumeau3. Os mortos revividos são a representação do medo de um determinado grupo. Eles encarnam o medo da morte, das epidemias, do desconhecido, daquilo que foge ao previsto, à rotina local. Ginzburg4 afirma que “toda morte é um acontecimento traumático para uma comunidade: uma verdadeira crise [...]”. Sendo assim, o medo coletivo se torna pânico coletivo, revolta, cria um clima de ansiedade e neuroses que acaba por “levar a explosões violentas ou perseguições de bodes expiatórios”5. Isto é o que ocorre com os vampiros; a partir do primeiro caso, toda a comunidade é tomada por um medo coletivo e todos os problemas passam a ser direcionados para o suposto vampiro que tende, desde então, a ser o culpado por todos os problemas da comunidade. O que vale ressaltar é que todos estes casos são relacionados ao leste europeu: Transilvânia, Hungria, Polônia, Silésia, Moravia, Boêmia6, que nos comprova a crença em vampiros como parte do folclore regional. A questão para a qual buscamos resposta é a permanência destas crenças e sua difusão de forma a extrapolar fronteiras e tornar-se tema de discussão na França do Século das Luzes, e também a permanência destas crenças no imaginário popular da Idade Moderna. Todos tidos como fatos verídicos visto que, ao longo dos casos documentados por Dom Augustin Calmet, poderemos observar que para os envolvidos não havia dúvidas: vampiros eram reais. Os vampiros sempre fizeram parte do imaginário nas crenças, na literatura,

no

cinema, em todas as produções humanas desde a Antiguidade, mas ao longo do tempo, principalmente a partir dos romances escritos nos séculos XVIII e XIX sua imagem mudou muito. A fusão entre registros históricos, lendas e literatura nos deu os elementos do vampiro que conhecemos hoje. As lentas transformações da literatura levaram o “vilão monstruoso” a tornar-se “quase um príncipe encantado”. O medo, o pavor que os vampiros causavam em nossos antepassados foram atenuados até quase deixarem de existir, isto ocorreu por sua familiaridade atual. Ao contrário de outras criaturas, o vampiro vive entre nós mostrando-se incessantemente “em filmes, livros, quadrinhos, desenhos animados e até pelas ruas das cidades. Ele é um ser plenamente adaptado ao século XXI, reconhecido, aceito e, até mesmo, venerado7.” Entretanto, os vampiros nem sempre foram conhecidos como tal, designados anteriormente por vários nomes dependendo da cultura local, em geral, eram defuntos, fantasmas, espectros, mortos ressuscitados ou encarnações de demônios diversos, inclusive lobisomens que se transformavam em vampiros após sua morte, visto que este era o nome dado a todos.

2131

O elo comum a todos era o sangue, pois “o sangue é a vida”, frase proferida em Drácula (STOKER, 1897), retirada de uma passagem bíblica8. Os homens perceberam desde cedo a ligação entre o sangue e a vida ao observarem que a vida esvaia junto com o sangue dos animais nas caçadas, os guerreiros morriam devido ao sangramento dos ferimentos. Desta forma, sendo o líquido que transportava a vida logo foram atribuídas propriedades mágicas e sagradas ao sangue que, era bebido, esfregado no corpo e manipulado em rituais. O Líquido vital que transporta a vida é a essência do vampirismo, e nos mitos é a representação das dualidades e das ambigüidades,

[...] não é simplesmente a maneira de conseguir a eterna juventude e força, mas também o veneno que não traz a morte, mas a perdição. O sangue está associado à violência e à sexualidade, em oposição ao amor e à vida, em um jogo de ilusões9.

Na Grécia antiga existem relatos sobre vários tipos de vampiros, um deles é a lamiai, que vem de Lâmia que se dizia ser uma rainha líbia amaldiçoada pela deusa Hera – esposa de Zeus, rei dos deuses do Olimpo, na mitologia grega – por ser uma das amantes de Zeus, como vingança Hera privou Lâmia de seus filhos e a baniu para uma caverna, amaldiçoada ela matou todos os bebês humanos sugando-lhes o sangue10. Contudo ela não era o único espírito grego que voltava dos mortos, havia também os vrykolakas que voltavam dos túmulos e transformavam-se em verdadeiros vampiros sugadores de sangue. Já na Roma antiga a crença em seres vampirescos não vinha de mortos, e sim de bruxas vivas para explicar a morte prematura dos bebês, mesmo fato que deu origem a crença nas lâmias gregas. Estas stregas eram acusadas de roubar crianças para beber seu sangue e tinham o poder de se transformar em pássaros para voar pela noite. Mais tarde, com a Inquisição, as acusadas por bruxaria foram identificadas com as stregas. Uma outra crença, ainda mais antiga originária da Assíria e da Babilônia, é a da vampira Lilith, ela aparece também nas antigas crenças hebraicas. Consta que ela foi a primeira mulher de Adão e ao se recusar a obedecê-lo o abandonou. Como punição seus filhos foram mortos e ela transformou-se em um demônio que perambulava pela noite, como vingança ela jurou matar todos os filhos de Adão e Eva, sendo a humanidade descendente de Adão e Eva, deve se proteger contra Lilith11. Na Romênia os vampiros são conhecidos por strigoi, uma “criatura demoníaca que dorme durante as horas do dia, voa à noite e pode tomar a forma animal de um lobo, um cão ou um pássaro, e chupa o sangue de crianças adormecidas” que pode ser tanto uma bruxa –

2132

que se tornará vampiro após a morte – como um vampiro morto, isto é, um revivido que retorna para atormentar e beber o sangue dos familiares e vizinhos ou dos animais 12. Os romenos acreditavam que uma pessoa poderia se tornar vampiro por várias razões, entre elas, uma criança de nascimento irregular ou o sétimo filho do mesmo sexo numa mesma família, ou ainda qualquer um que fosse mordido por um vampiro. Eles eram identificados a partir da morte de várias pessoas de uma família em seqüencia da morte de um parente, eles atacariam primeiro os familiares próximos, depois os animais domésticos e então, os vizinhos. Se não fosse detido poderia seguir para outra região e retomar uma vida normal. Os vampiros nesta região eram muito comuns. “[...] se comparava em grande parte à imagem popular do vampiro. Tratava-se de um morto retornado. Todavia as crenças em vampiros não se restringem somente à Europa e países próximos, existem relatos de crenças e histórias de vampiros por todo o mundo, das Américas à Asia praticamente todas as nações têm seus mitos que envolvem seres próximos ou vampiros propriamente ditos, seria fatigante relatar todos. Os vampiros nasceram do medo da noite, do medo dos mortos, do medo do sobrenatural que é aquilo para o que não se tem explicação. A partir dos séculos XVII e XVIII, a Europa assiste uma proliferação de relatos sobre vampiros, mas somente em 1732 a palavra “vampiro” surge em seu vocabulário para determinar o ser que conhecemos e eles são “definitivamente separados dos lobisomens e de outros espectros 13”, pois até então todo tipo de revividos eram considerados vampiros. Em 3 de março de 1732 a revista Le Glaneur Hollandais14 publicou em detalhes um caso que daria início, na França, à discussão sobre a existência ou não dos vampiros. A publicação também passou a usar o nome vampiro – em francês vampire, até então era grafado vampyre – pela primeira vez. A história de Arnold Paul teve repercussão imediata em toda a Europa. A investigação do caso foi comandada “pelo médico militar Flückinger e endossado por vários oficiais da companhia do arquiduque, o documento final foi apresentado ao conselho de guerra de Belgrado15.” O relatório intitulado Visum e repertum, informava sobre a abertura dos túmulos, exumação dos corpos e condições em que foram encontrados. Alguns anos depois em 1746, o “Traité sur les apparitions des esprits, et sur les vampires, ou les revenans de Hongrie, de Moravie de Dom Augustin Calmet trazia a descrição completa deste e de outros casos. A questão de ter sido uma investigação conduzida por oficiais militares com consentimento do Conselho de Guerra de Viena gerou todo um debate a respeito

2133

da

veracidade dos fatos. Afinal não se tratava de uma história contada por alguém de forma duvidosa em um dos inúmeros manuais e roteiros de viagens que circulavam na época, mas sim de uma história atestada por documentos oficiais. O fato é que o caso Arnold Paul levantou polêmica e discussões em toda a França, contudo não foi o único, já eram conhecidos outros casos. Este e outros relatos sobre vampirismo começaram a circular entre os eruditos e filósofos franceses despertando a curiosidade e fazendo correr muita tinta em discussões e debates, o que surpreende é que uma crença até então relegada ao povo, acabou tomando conta da elite erudita. O curioso é que estes relatos se espalham pela Europa no mesmo período do Iluminismo que, de certa forma, foi o ápice de movimentos anteriores como o Renascimento e o Humanismo, onde o homem tornou-se o principal objeto de estudos da ciência, que tenta se desligar do providencialismo e das concepções religiosas; “a alma é somente o pensamento e as idéias do homem, não sendo uma criação divina16”. No chamado Século das Luzes, estes homens das letras, filósofos, cientistas tinham como fim último o esclarecimento humano, a busca da explicação do mundo pelo racional, o entendimento da natureza e dos processos naturais independentes da providência divina. Não somente no que dizia respeito à religião, mas também em relação aos governantes e às formas de governo sob as quais viviam. Neste período toda a sociedade, sua estrutura e organização estavam sendo contestadas, analisadas, criticadas e, para eles, as soluções viriam da ciência, do progresso. Um dos homens de letras do Século das Luzes que mais se destacou foi Voltaire17 que publicou, por volta de 1764, uma de suas maiores obras: o Dicionário Filosófico. Um conjunto de verbetes organizados em ordem alfabética demonstrando sua visão sobre política, religião, filosofia, sem perdoar autoridades, crenças ou costumes; e um dos verbetes é Vampiro. Sempre mordaz em suas críticas ao Estado e a Igreja, Voltaire diz que os verdadeiros vampiros vivem em palácios sugando o sangue do povo, não em túmulos decrépitos e que, além disto, estão bem vivos18. Ainda faz uma crítica aos pontos principais da obra de Dom Calmet com a intenção de refutar suas palavras e julgamentos. Ele discute a crença nos vampiros, a incorruptibilidade dos corpos, o motivo para os mortos voltarem à vida e atormentar seus parentes e amigos, até mesmo as diferenças entre a crença das Igrejas ortodoxa e católica. Contesta as testemunhas e os casos que foram noticiados por jornais franceses e aqueles que Dom Calmet informa terem sido acompanhados por pessoas dignas de fé a mando de algum príncipe ou regente europeu.

2134

Segundo Voltaire (1764) as discussões sobre os vampiros na Europa duraram somente alguns anos e quanto mais vampiros eram mortos, mais vampiros surgiam. Ao usar a palavra “vampiro” em suas discussões e tentativas de ridicularizar Dom Calmet e sua obra, os filósofos iluministas ajudaram a difundir o mito e a crença nos vampiros. Na Alemanha, por exemplo, os vampiros já eram conhecidos – ainda que não fossem chamados de vampiros – e os estudiosos das universidades alemãs tentando entender o fenômeno concluíram que não era real. “Ajudando a iniciar o debate estavam as teses do teólogo Michael Ranft, De Masticatione Mortuorum in Tumilis Liber (1728) e a tese de John Christian Stock, Dissertio de Cadauveribus Sanguisugis (1732)19.” Estas obras ficaram conhecidas em sua maior parte por um grupo de cientistas e estudiosos alemães, aí reside a diferença do Tratado de Calmet. O interesse pelos contos sobrenaturais, a difusão das informações mais rápida pela circulação de jornais, revistas e panfletos e todo movimento cientifico e intelectual em busca de explicações racionais para todos os fatos e acontecimentos é o que justifica o chamado surto de vampirismo na Europa Iluminista. Até mesmo a Universidade de Sorbonne, já cheia de prestigio na época, se pronunciou sobre o caso, condenando a profanação de corpos e a maneira como os mortos estavam sendo violados20. E justamente no Século das Luzes é que os vampiros se espalharam como epidemia, pois para destruir este mito era preciso examinar, analisar, “dissecar as crenças antigas”. Claro que somente aqueles que não acreditavam anteriormente ficaram convencidos da inexistência destes seres21. Em 1755 a imperatriz Maria Tereza da Áustria, instituiu uma lei que proibia a exumação de corpos suspeitos de serem vampiros e retirou das mãos do clero estas investigações passando-as para altos funcionários do reino. Um dos maiores responsáveis pela propagação das historias e pelo mito do vampiro foi o abade beneditino Dom Augustin Calmet; se sua intenção foi desmistificar o vampiro e provar sua inexistência, a enorme compilação de casos que fez acabou por promover a crença e colocar de vez o vampiro no mundo moderno. O fato de ser preciso exumar e mutilar os corpos de cristãos para destruir os vampiros na Europa oriental chamou a atenção da igreja e esta, através do papa, apoiou-se no arcebispo Giuseppe Davanzati que depois de estudar durante cinco anos os casos de vampirismo, escreveu a tese Dissertazione sopra I Vampiri publicada em 1744 onde concluía que os vampiros eram fruto da imaginação e que os corpos não deveriam ser profanados22.

2135

Logo depois Dom Calmet, que também estava estudando os casos de vampiros, lançou em 1746 – após tomar conhecimento das discussões e debates a respeito dos casos de vampirismo na Europa Central, quando decidiu examinar os casos à luz da razão e da religião – a Dissertation sur les apparitions des anges, des demons et des esprits, et sur les revenans et vampires de Hongrie, de Bohême, de Moravie et de Silésie, uma longa compilação dos casos de vampirismo ocorridos na Europa Central, a repercussão de seu trabalho foi tamanha que uma nova edição revista e ampliada foi publicada em 1751 com modificações no título: Traité sur les apparitions des esprits et sur les vampires ou les revenans de Hongrie, Moravie, etc. Dom Calmet era um importante estudioso e seus trabalhos eram voltados para a interpretação e tradução bíblicas, sendo reconhecido pelos outros clérigos por estes trabalhos. Seus escritos bíblicos o estabeleceram como um dos principais acadêmicos do catolicismo, sendo assim, seu interesse nos casos de vampirismo que estavam ocorrendo na Europa Central e Oriental lhe rendeu repreensões, críticas e até mesmo, o escárnio de outros colegas do clero, dos cientistas e filósofos iluministas. Críticas estas que ele tenta justificar na edição de 1751, que foi revista e ampliada.

Minha intenção é tratar aqui a questão dos revividos ou vampiros da Hungria, Moravia, Silésia e Polônia, arriscando a ser criticado de alguma maneira: os que o crêem verdadeiros me acusarão de temeridade e presunção, por ter colocado em dúvida, ou mesmo ter negado sua existência e realidade, outros me repreenderão por ter empregado meu tempo a tratar desta matéria, que passa por frívola e inútil no espírito de muitas pessoas de bom senso. De alguma maneira penso que terei de boa vontade aprofundado uma pergunta, que parece importante para a religião: porque se o regresso dos vampiros é real, importa defendê-lo e prová-lo e, se é ilusório é do interesse da religião desenganar os que o crêem verdadeiro e destruir um erro que pode ter muitas conseqüências23.

As críticas surgiram pelo simples fato que, ao fazer sua compilação dos casos de vampirismo com a intenção de desacreditá-los e de acabar com o que considerava o sacrilégio de profanar os corpos e as sepulturas para destruir os suspeitos de serem vampiros, Dom Calmet acabou por endossar as crenças. Suas conclusões são, em alguns casos, ambíguas e, logo no prefácio da obra ele deixa claro que não há provas sólidas da existência ou não dos vampiros e da possibilidade dos mortos voltarem. Nestes relatos dos vários casos de vampirismo que o abade compilou, encontra-se a descrição de como identificar um vampiro e as formas de exterminá-lo. Um dos casos relatados é o ocorrido na “aldeia de Blow, perto da vila de Kadam na Boêmia24” de um pastor que, retornando após a morte chamava algumas

2136

pessoas que morriam “infalivelmente” após oito dias. Para livrar-se do vampiro atravessaram uma estaca em seu cadáver para mantê-lo preso a sua sepultura, não houve resultado, ele voltou a levantar zombando do método usado. Para acabar de vez com a perturbação, ele foi retirado de seu túmulo sendo posto

[...] sobre um carro para transportá-lo para fora da aldeia e queimá-lo. O cadáver gritou furioso, e agitou os pés e as mãos como vivo, e no momento em que o furaram, soltou muito gritos e derramou sangue muito vermelho e em grande quantidade. Por último, queimaram-no e esta execução pôs fim aos aparecimentos e às infestações deste espectro. Usou-se do mesmo método em outros lugares, onde foram vistos revividos semelhantes, e quando os tiravam da terra pareciam vermelhos, tendo os membros flexíveis e maleáveis, sem corrupção do corpo, mas não sem grande mau-cheiro. O autor cita diversos outros escritores, que atestam o que se diz destes espectros, que aparecem ainda, diz-se, freqüentemente nas montanhas da Silésia e Moravia. São vistos de noite e de dia, percebe-se as coisas que lhes pertenceram mexer e mudar de lugar, sem que nenhuma pessoa os toque. O único remédio contra estes aparecimentos é cortar a cabeça e queimar o corpo dos que retornam25.

Portanto a forma de identificar um vampiro é sempre a mesma: ao abrir o túmulo o morto encontra-se com aparência de vivo, com cor, cabelo, pele, unhas, parecendo ter acabado de morrer, ao ter sua cabeça cortada ou se atravessar uma estaca em seu coração, sangue vermelho e fluído sai do corpo que tem os membros perfeitamente flexíveis. Assim, cortar a cabeça e queimar o corpo é uma das formas de destruir definitivamente um vampiro e o método usado em vários locais para os vários casos. Da mesma forma que Dom Calmet, o racionalismo iluminista ao tentar refutar estas crenças como superstições do povo ignorante; conseguiu exatamente o contrário, difundiu os vampiros por toda a Europa de onde o mito ganhou o mundo. Como negar a existência destes seres fantásticos diante destas evidências? Sangue fresco e vermelho, unhas, cabelos, pele, tudo renovado e saudável e para garantir a veracidade, a exumação do corpo feita por um oficial do Imperador e por um vigário. Não constam na fonte os nomes destes renomados senhores, somente o nome do informante de Dom Calmet, que por sua vez, também tinha escrito sobre o assunto. Podemos observar ainda a repetição das formas de destruição do vampiro: estacas no coração e queima do cadáver para reduzi-lo à cinzas, desta maneira garante-se o retorno da paz à vila e a total destruição do morto inconveniente. Nesta mescla de relatos não consta evidência da realidade ou não dos vampiros e o próprio Calmet não deixa claras suas conclusões. Por todo o Tratado suas opiniões são contraditórias.

2137

Ao publicar o Traité sur les apparitions des esprits et sur les vampires ou les revenans de Hongrie, Moravie, etc. na França, Dom calmet trouxe a discussão para o centro do fenômeno iluminista, de onde ele ficou conhecido e se transformou num grande best-seller com a ajuda involuntária dos próprios filósofos iluministas. A obra teve duas versões, e inúmeras publicações e ficou conhecida em toda a Europa. Após a promulgação da lei instituída pela imperatriz da Áustria, Maria Tereza, os filósofos do Iluminismo passaram a discutir o assunto e finalizaram em consenso: era tudo irreal, fantasia da imaginação daquele povo. A lei também conseguiu atingir seu objetivo ao diminuir as violações de corpos e, lentamente, acabar com a histeria vampírica. Depois de o assunto ser rechaçado e ridicularizado por homens como Voltaire, Diderot, Rousseau, as autoridades seculares e eclesiásticas não viram mais necessidade de desmistificar os vampiros e a “obra de Calmet se tornou relíquia intelectual 26” e foi exatamente aí que a literatura popular pôde tirar proveito daquela série de histórias interessantes relatadas por Calmet e sobre as quais haviam tomado conhecimento com toda a discussão que se desenrolara.

A Europa voltava-se para o fenômeno [do vampirismo], na tentativa de dissolver os espectros nas luzes do Iluminismo. A publicidade em torno dos casos de vampirismo garantiu não só a exportação da palavra, mas também a disseminação da própria figura do vampiro nos círculos mais sofisticados e eruditos do coração cultural do mundo ocidental. [...] Uma vez instalado na alta cultura, a criatura já não podia ser impedida em sua expansão vitoriosa: primeiro, espalhou-se pela Europa para, nos séculos seguintes, ganhar o mundo27.

Porém somente em fins do século XVIII e início do XIX é que no encontro do modelo milenar com a estética da época – a dos contos de terror, da gothic novel que nos deu os grandes clássicos como Drácula, O médico e o monstro e Frankenstein, além das telas de Goya e os contos e poemas de Goethe – o vampiro ganhou o status literário28. Mesmo tendo sido produzidos uma série de histórias e contos de horror no século XVIII, poucos foram sobre vampiros, numa comparação com as outras temáticas sobrenaturais e, menos ainda, em comparação com a produção literária atual. A mudança viria em 1897 quando o vampiro finalmente se tornaria imortal pela pena de Bram Stoker. “Bem vindo à minha casa. Entre, por sua livre e espontânea vontade [...] e deixe um pouco da felicidade que traz29.” Com esta saudação que Drácula recebe Jonatham Harker em seu castelo, e que é uma das frases mais conhecidas da obra. Quando criou seu vampiro, Stoker iniciou a Era da ficção que continua até hoje.

2138

Para Lecouteux30 o vampiro é parte da “história desconhecida da humanidade, desempenha um papel e tem uma função; não brotou do nada no século XVII ou XVIII.” Além disso, ele faz parte de “um conjunto de representações da morte e da vida, que sobreviveu até nossos dias”. Sendo ainda, um “símbolo da intrusão da morte e do alémtúmulo por vias dissimuladas e brutais dentro de um universo que o exclui”, ele é a demonstração que algo não está seguindo seu caminho normal na natureza, o ciclo de vida e morte, deixando à mostra que há “uma ruptura da ordem, uma contradição.” Ele não é aceito no mundo dos mortos, tampouco no dos vivos, vagando eternamente entre os dois mundos. Desde o início de nosso entendimento da vida nos perguntamos o que ocorre após a morte, esta angústia e esta falta de conhecimento faz com que surjam todas estas especulações. Ao se apropriar de todas estas histórias e mitos a literatura transformou e moldou o vampiro original que deixou de ser um ser repugnante, que causava medo, aversão, nojo e o transformou num ser fascinante, belo, eterno, sobre humano, um ser invejável, afinal Drácula venceu aquilo que mais tememos: a morte. Ele representa a possibilidade de viver eternamente, bastando para isto, beber um pouco de sangue. O vampiro, mais que qualquer outro monstro, continua através dos séculos e das civilizações, em algumas aparece mais que em outras, mas está sempre presente, pronto a se revelar a qualquer momento.

1

PITTA, D. P. R. Iniciação à teoria do imaginário de Gilbert Durant. Rio de Janeiro: Atlântica, 2005. RONECKER, J. P. Vampiros. Lisboa: Hugin, 2000. 3 DELUMEAU, J. História do medo no Ocidente: 1300-1800, uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 4 GINZBURG, C. Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. 5 DELUMEAU, J. História do medo no Ocidente: 1300-1800, uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 6 Transilvânia – atual Romênia; Silésia – atualmente faz parte da Polônia; Moravia – atual Eslováquia; Boêmia – atual República Tcheca. 7 ARGEL, M. e MOURA NETO, H. (org.). O vampiro antes de Drácula. São Paulo: Aleph, 2008. 8 Deuteronômio, 12:23 porém, na passagem Deus proíbe que o sangue seja bebido. 9 FLORESCU, R. e MCNALLY, R. T. Em busca de Drácula e outros vampiros. São Paulo: Mercuryo, 1995. 2

MELTON, G. J. O livro dos vampiros – A enciclopédia dos mortos vivos. São Paulo: M. Books do Brasil, 2003. 11 FLORESCU, R. e MCNALLY, R. T. Em busca de Drácula e outros vampiros. São Paulo: Mercuryo, 1995. 12 Ibidem. 13 RONECKER, J. P. Vampiros. Lisboa: Hugin, 2000. 14 Le Glaneur Hollandais – Revista franco holandesa que circulava na corte de Versalhes (França). O caso Arnold Paul foi publicado na edição número 3 de março de 1732. 15 DEL PRIORE, M. Esquecidos por Deus: monstros no mundo europeu e ibero-americano, uma história dos monstros do Velho e do Novo mundo (séculos XVI-XVIII). São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 16 GRESPAN. J. Revolução Francesa e Iluminismo. São Paulo: Contexto, 2003. 10

2139

17

François-Marie Arouet mais conhecido pelo pseudônimo Voltaire, foi um escritor, ensaísta, deísta e filósofo iluminista francês conhecido pela sua perspicácia e espirituosidade na defesa das liberdades civis, inclusive liberdade religiosa e livre comércio. 18 VOLTAIRE. Dictionnaire Philosophique – Verbete: Vampires. Paris: 1764. 19 MELTON, G. J. O livro dos vampiros – A enciclopédia dos mortos vivos. São Paulo: M. Books do Brasil, 2003. 20 Ibidem. 21 LECOUTEUX, C. História dos vampiros – Autópsia de um mito. São Paulo: Unesp, 2005. 22 MELTON, G. J. O livro dos vampiros – A enciclopédia dos mortos vivos. São Paulo: M. Books do Brasil, 2003. 23 CALMET, Dom Augustin. Traité sur les apparitions des esprits et sur les vampires ou les revenans de Hongrie, Moravie, etc. Tomo II. Paris: 1751. 24 Ibidem. 25 Ibidem. 26 MELTON, G. J. O livro dos vampiros – A enciclopédia dos mortos vivos. São Paulo: M. Books do Brasil, 2003. 27 ARGEL, M. e MOURA NETO, H. (org.). O vampiro antes de Drácula. São Paulo: Aleph, 2008. 28 COSTA, F. M. (Org.) 13 melhores contos de vampiros. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002. 29 STOKER, B. Drácula. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002. 30 LECOUTEUX, C. História dos vampiros – Autópsia de um mito. São Paulo: Unesp, 2005.

2140

Relações de reciprocidade entre desiguais: os ritos fúnebres como forma de benefício. Michele Helena Peixoto da Silva Mestranda pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO. Orientadora: Claudia Rodrigues Email: [email protected]

RESUMO: Geradas através de uma estratificação de poder, as relações entre senhores e escravos poderiam suscitar em formas diferentes de tratamento. Assim, escravos pertencentes a determinadas famílias, desfrutariam de benefícios que poderiam ser recebidos em vida ou após a morte. Este artigo procura abordar a questão da reciprocidade senhorial a partir do momento derradeiro dos escravos. Trata-se de como a nobreza principal da terra, em Irajá, lidava com as questões sobre os sepultamentos e os rituais fúnebres dos seus cativos. PALAVRAS CHAVE: escravidão, morte e elite senhorial.

ABSTRACT: Generated by a stratification of power, relations between masters and slaves could give rise to different forms of treatment. Thus, slaves belonging to certain families would enjoy benefits that could be received in life or after death. This article seeks to address the issue of reciprocity manor from the time of the last slaves. It is as the main nobility of the earth in Irajá, dealing with questions about the burial and funeral rites of their captives. KEYWORDS: slavery, death and noble elite.

Baseada em uma hierarquia social impregnada de valores pertencentes ao antigo regime, a sociedade da capitania do Rio de Janeiro, apresentaria determinadas peculiaridades relativas à relação entre senhores e escravos que segundo João Fragoso, seria específicas da província. No topo dessa sociedade estaria a nobreza da terra, assim considerada por descenderem dos principais conquistadores. Os membros dessa elite eram possuidores de engenhos de açúcar e participantes da organização política da capitania. Esse é o caso de João Pereira de

Lemos,

proprietário do engenho Sacopema, na freguesia de N. Sra da Apresentação de Irajá. Apesar de ter sido uma criança exposta, recebeu o sobrenome do padre Luis de Lemos Pereira que segundo Manoela Pedroza, poderia ter sido filho de Luis de Lemos, e por esse motivo, ter tido o direito de receber as terras de Sacopema. João Pereira de Lemos era casado com Dona Anna Maria de Jesus e sua

2141

propriedade no inicio do século XVIII, já era considerada um dos maiores engenhos da região, possuindo uma capela e posteriormente um cemitério. Além de Sacopema, a freguesia também possuía outros engenhos importantes pertencentes à elite senhorial, como o Engenho Novo, que pertencia à família Gago, e que posteriormente foi vendida para o Doutor Francisco Xavier de Lima. Infelizmente, devido à pesquisa esta ainda no começo, não temos muitas referências a respeito deste engenho e proprietário, o que sabemos e que Engenho Novo possuía também uma capela.

A freguesia de Irajá, durante o período colonial, era considerada uma das mais prósperas da capitania do Rio de Janeiro. A região se estendia numa área que ia desde sesmaria jesuítica de Iguaçu e o rio Meriti, estendendo-se também pelo litoral ocidental da Baia de Guanabara até a baia de Sepetiba1, englobando assim, as atuais regiões de Jacarepaguá, Guaratiba, Campo Grande e Inhaúma que posteriormente foram sendo desmembradas. A região estaria no grupo das freguesias que tinham o maior número de engenhos em funcionamento, 12 no total. Era grande produtora de açúcar e aguardente e produtos alimentícios. De acordo com relatório de 1778 do Marques do Lavradio, os engenhos de Irajá em conjunto, produziam 170 pipas de aguardente e 300 caixas de açúcar. Por ano também produziam 3.500 alqueires de farinha, 850 de arroz e milho e 800 de feijão. Além disso, possuía uma população em torno de 3.496 moradores, sendo 2.240 escravos, distribuídos entre 274 fogos. Naquela época, além de ser descendente de conquistadores, havia outros requisitos e valores que poderiam elevar o status social das famílias do antigo regime: a generosidade desmedida, a devoção religiosa e a capacidade de mando sobre seus subordinados. Como já foi dito, os dois engenhos possuíam capela e isso demonstraria a devoção religiosa que tinha essa família e também sua importância dentro da sociedade, pois segundo Sergio Chahon, para pleitear a graça de possuir um altar doméstico, era indispensável a posse de certa parcela de cabedal e de poder; o que levava os solicitantes e autorizados a possuí-los, estarem incluídos nos círculos mais seletos da hierarquia social, ocuparem cargos prestigiosos no aparelho administrativo e/ou possuíssem patrimônio e riqueza. Estas condições eram exigidas para arcarem “com os investimentos necessários ao preparo e instalação de seus altares, de maneira a assegurar que as celebrações eucarísticas e demais cerimônias oficiadas perante” os mesmos “transcorressem com a decência requerida pelas autoridades do clero”. Mas além de ter o direito de ter seu próprio oratório, Sacopema ainda tinha autorização para realizar sepultamentos dentro da própria capela.

2142

Convém ao bom governo das igrejas que se não abra sepultura alguma nelas ou em seus cemitérios sem licença dos párocos, porque a eles pertence ver e examinar se há algum impedimento ou inconveniente, ou se toma alguma que seja alheia. Portanto, ordenamos e mandamos que, nas igrejas, capelas, cemitérios ou qualquer outro lugar sagrado de nosso arcebispado, se não abra sepultura para se enterrar algum defunto, posto que seja criança de pouca idade, sem licença do pároco da igreja; e o que o contrário fizer pagará cinco cruzados a fábrica da mesma igreja2

Podemos perceber através somente do requisito da devoção religiosa, o prestigio e o poder que o casal João Pereira de Lemos e Dona Anna Maria de Jesus e o Doutor Francisco Xavier de Lima tinham dentro daquela sociedade. Assim, por meio dessas informações, é que chego ao ponto principal deste trabalho, tentar entender como essa elite senhorial tratava a questão da morte entre os seus escravos e como o poder que essas famílias possuíam poderia influenciar no morrer de seus cativos. De acordo com Manolo Florentino e Roberto Góis, o escravo era definido como uma mercadoria, objeto das mais variadas transações mercantis: venda, compra, empréstimo, doação, transmissão por herança, penhor, seqüestro, embargo, depósito, arremate e adjudicação3. A relação estabelecida com o senhor era baseada na obrigação do escravo trabalhar, ser leal e obediente, enquanto da parte do senhor era de proteger o escravo, fornecendo-lhe alimentação e orientação para vida social. Na América lusa, a escravidão não era regulada por códigos produzidos pelo Estado, as relações entre senhores e cativos eram do âmbito da casa, cabia à família regulá-las4. Desta forma, uma boa relação baseada na obediência e na lealdade por parte do escravo poderia gerar determinados benefícios, que poderiam variar de um pequeno partido de terra como a própria alforria. A partir disso, é que aponto para a ideia de que esses escravos também poderiam ser beneficiados por sua lealdade, a te mesmo após a morte, através da realização dos devidos rituais fúnebre que ajudariam na salvação da alma do defunto. Dentro de uma sociedade, onde havia senhores que por plena falta de respeito às leis eclesiásticas, deixavam os corpos de seus escravos serem jogados em terrenos baldios ou sepultados em lugares não sagrados, vemos a elite senhorial de Irajá realizando algo completamente diferente do que era muito comum acontecer em muitas propriedades, escravos sendo sepultado nos moldes da fé católica. Através de alguns assentos de óbitos é possível verificar que havia por parte desses senhores um certo cuidado com os elementos que constituíam um sepultamento e até um cortejo fúnebre nos moldes da igreja católica igualitários aos dos livres.

2143

Aos quinze dias do mês de setembro de mil setecentos e setenta e nove faleceu da vida presente com todos os sacramentos JULIANA solteira escrava do Tenente João Ferreira de Lemos e Faria foi sepultada na capela de São João Baptista da fazenda de Sacopema do dito Senhor com licença do Reverendo Pároco desta freguesia e de tudo para constar mandei fazer este assento que assinei5 Aos vinte e dois dias do mês de setembro do ano de mil oito centos e oito faleceu da vida presente sem sacramentos por ser demente e morrer apressadamente de idade de cinquenta anos mais ou menos BOAVENTURA PRETO DE NAÇÃO GANGUELLA casado com Agueda crioula e ambos escravos do Engenho Novo do qual é senhorio o Doutor Francisco Xavier de Lima foi por mim encomendado com assistência da cruz da Fabrica e sacristão da paróquia e jás sepultado na quinta sepultura da segunda carreira pertencente a Fabrica veio amortalhado em branco o que para de tudo constar fiz este assento que assinei6.

Através destes registros de óbitos podemos perceber que os dois senhores não pouparam cuidados para que seus cativos tivessem uma boa morte, sepultando-os em local prestigiado, com assistência de um sacristão e acesso aos últimos sacramentos. Segundo as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, era uma honra conceder sepultura cristã a alguém, além disso, uma forma de caridade por parte daquela que se disponibilizava a prestar tal serviço.

Dentro das mais diversas sociedades, os funerais sempre tiveram uma grande importância, eram eles que ajudavam o morto na passagem para o além. Segundo Van Gennep:

As pessoas para quem não se observam os ritos funerários são condenadas a um penosa existência, pois nunca podem entrar no mundo dos mortos ou se incorporar a sociedade lá estabelecida. Estes são os mais perigosos dos mortos. Eles desejam ser reincorporados ao mundo dos vivos, e, porque não podem sê-lo, se comportam em relação a ele como forasteiros hostis, eles carecem dos meios de subsistência que os outros mortos encontram em seu próprio mundo e consequentemente devem obtê-lo à custa dos vivos. (...)

De acordo com a tradição católica, o funeral prevenia a transformação do morto em alma penada. Acreditava-se que os padres ao velar o corpo do defunto poderiam salvar a alma do inferno. As próprias Constituições obrigavam que os sacerdotes acompanhassem, encomendassem e sepultassem seus paroquianos7 Ao analisarmos minuciosamente os óbitos apontados anteriormente, encontramos vários elementos, que segundo a fé católica, eram de grande importância para o momento da passagem para o além.

Comecemos pelos sacramentos. Segundo a escatologia católica, os últimos sacramentos (eucaristia, penitência e extrema-unção), ministrados nesta ordem no momento derradeiro aos moribundos, ajudariam o moribundo a resistir às investidas dos demônios. Para

2144

recebê-las, o moribundo deveria estar em plena consciência. Depois da confissão, a penitência significaria o perdão dos pecados cometidos. A eucaristia seria considerada o momento em que o moribundo entraria em comunhão com o corpo de Cristo com o objetivo de garantir sua ressurreição. A extrema-unção era a unção com óleo sagrado para eliminar todos os sinais da presença do mal. Um dos efeitos desse sacramento seria consolar e trazer alívio à alma do doente, dando-lhe força e confiança para resistir às investidas dos demônios. Se o moribundo fosse escravo, o senhor ou o padre deveria prepará-lo para a morte fazendo-o memorizar frases que expunham a sua fé em Deus8.

O teu coração crê tudo o que Deus disse? R. [Resposta] Sim. O teu coração ama só a Deus? R. Sim9

O segundo elemento seria a mortalha. Era de grande importância para o momento da passagem, o seu uso seria uma forma de garantir uma “boa morte”, uma espécie de código que permitia a passagem para o outro mundo. Era uma forma de obter a salvação da alma. A cor branca da mortalha simbolizava para os cristãos a alegria da vida eterna, a ressurreição prometida a cada crente. Também tinha muito a ver com o tecido que envolveu Jesus Cristo, o santo sudário10 O local de sepultamento também era de extrema importância. Segundo João Reis, o local da sepultura era um aspecto importância da identidade do morto. Morrer sem ser enterrado era uma das formas mais temidas de morte dentro das mais diversas sociedades, o que não foi diferente dentro do cristianismo. O morto não poderia ser sepultado em qualquer lugar, o terreno deveria ser sagrado. Dentro do universo católico, as igrejas, conventos e cemitérios seriam os locais sagrados. As igrejas eram as mais prestigiadas, por serem consideradas a casa de Deus, onde também estavam os santos, os anjos, a igreja era um porta para o Paraíso.

Como são lugares, a que todos os fiéis concorrem para ouvir, e assistir as missas, e ofícios divinos, e orações, tendo à vista as sepulturas, se lembrarão de encomendar a Deus nosso Senhor as almas dos ditos defuntos, especialmente dos seus, para que mais cedo sejam livres das penas do Purgatório, e se não esquecerão da morte, antes [...] será aos vivos muy proveitoso ter memória dela nas sepulturas [...] 11

Vemos que em um dos óbitos o escravo foi sepultado em uma cova da fábrica, com acompanhamento da cruz e do sacerdote, segundo Adalgisa Campos, as covas de fábrica

2145

ficavam em lugar qualificado. Na matriz de N. Sra da Apresentação de Irajá os valores referentes a esses serviços seriam: para assistência de um sacristão era de 320 reis; a cruz 320 reis; os valores para uma cova de fábrica era de 1$000 de reis da porta principal até a travessa, 2$000 réis no forão, 4$000 da travessa até as grades e 8$000 das grades até o arco e para encomendação de um adulto ou inocente libertos, sendo enterrado dentro da igreja, 960 réis; sendo cativo, enterrando-se no adro, 320 réis12. Infelizmente não temos como saber o local especifico onde fora enterrado Ventura, mas o que importa dizer é que o doutor Francisco Xavier de Lima não poupou esforços para dar um funeral digno para seu escravo. Por ultimo temos as encomendações, ela poderia ser feita na igreja, no hospital ou no cemitério. Era o momento de despedida, "uma espécie de entrega da alma do morto a Deus"13. O sacerdote realiza algumas orações, reconhecendo a morte e a fé na ressurreição e pedindo a salvação da alma.

O Deus, vóis sois doador da vida e restaurador dos corpos e atendes as súplicas dos pecadores ouvi as preces que fazemos em nossa tristeza pela alma do vosso filho concedei-lhe que, liberta pela morte, seja acolhida com os vossos santos na felicidade do Paraíso14

Portanto, através da descrição de cada um dos elementos relacionados nos dois óbitos é possível perceber como uma sociedade cujo objetivo principal de sua fé era a salvação da alma, os rituais fúnebres também poderiam ser uma forma de retribuição dos senhores aos seus escravos pelos serviços prestados em vida. Assim como o batismo poderia ser para o senhor uma grande chance de diminuir a própria permanência no purgatório, dar auxílio aos escravos no momento derradeiro também poderia ser, pois estaria dando a oportunidade do cativo ter também a diminuição de seu tempo no purgatório e conseguir resistir as astucias do diabo nos últimos momentos de vida devido ao auxilio do pároco que por sua presença, poderia ajudar na salvação da alma do defunto devido à administração dos últimos sacramentos. Disponibilizar um funeral digno, como o do escravo de Boaventura, era uma forma de caridade. Segundo Marcio Soares, o gesto caritativo era algo precedido pelo princípio da reciprocidade, uma vez que, no imaginário católico, a obra pia produz para o doador uma recompensa na vida além-túmulo. A reciprocidade existente entre o senhor e o escravo no momento da morte beneficiaria a alma do cativo, mas também a de seu senhor que também estaria estabelecendo

2146

7

uma relação de reciprocidade com Deus, pois ao favorecer o escravo com uma boa morte Deus também o estaria o abençoando com a remissão de seus pecados veniais.

Desta forma, foi possível concluir que alguns escravos, talvez devido sua proximidade e pela formação de laços de amizade tiveram a oportunidade de terem acesso a um funeral o que beneficiaria a alma desses cativos, favorecimento que muitos escravos não tiveram. Assim, foi possível ver que o poder que esses senhores possuíam teria também a capacidade de decidir até sobre a morte de seus escravos no momento em que permitem ou não que esses homens e mulheres tivessem acesso a uma “boa morte” ou não.

1

ABREU, Mauricio de Almeida. Geografia Histórica do Rio de Janeiro (1502 a 1700), Volume 1. Rio de Janeiro: Andrea Jakobsson Estúdio e Prefeitura do Município do Rio de Janeiro, 2010. 2 VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707). Feitas e ordenadas pelo ilustríssimo e reverendíssimo sr. D. Sebastião Monteiro da Vide. Coimbra, Real Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1720 3

FLORENTINO, Manolo e GÓES, José Roberto. A Paz nas Senzalas: Famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c. 1790 – c.1850. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 169. 4 FRAGOSO, João. Elite das senzalas e nobreza da terra numa sociedade rural do Antigo Regime nos trópicos: Campo Grande (Rio de Janeiro), 1704-1741. In. FRAGOSO J. e MACHADO, C. O Brasil Colonial, v. 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. p. 245 5 (WWW.Familysearch.org – Freguesia de Nª Sª da Apresentação de Irajá - Livro de 1794 a 1809, Imagem 335) 6 Idem 7 REIS, João. op. cit. p.142 8 Ver João José Reis, Claudia Rodrigues e Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. 9 ABEPa, IT, nº 04/1590/2059/08, fl. 43; 05/2015/1486/02, fl. 04/1710/2180/05, fl.79-79v, apud REIS, João José 10 Reis, João José. op. cit. p. 118 11 Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. c. 843 12 ARAÚJO, José de Souza Azevedo Pizarro e. O Rio de Janeiro nas Visitas Pastorais de Monsenhor Pizarro: inventário da arte sacra fluminense. Rio de Janeiro. INEPAC (vol.1), 2008. 13

PEREIRA, José Carlos. Religião e exclusão: a dialética da exclusão e inclusão dos espaços sagrados da Igreja Católica na Metrópole. São Paulo: editora Santuário, 2009. 14 MIRANDA, Evaristo E. Agora e na hora: ritos de passagem à eternidade. São Paulo: editora Loyola, 1999. p. 81.

2147

Violência de gênero: quando a posse e o domínio são considerados prerrogativas masculinas Mirela Marin Morgante*

Resumo: Utilizando-se dos Boletins de Ocorrência registrados nos anos de 2002 a 2010, na DEAM/Vitória(ES), objetiva-se analisar os motivos percebidos e apresentados pelas mulheres para terem sido vítimas de violência por parte de seus companheiros ou ex-companheiros. Particularmente, o artigo se debruça sobre um aspecto bastante relatado pelas vítimas para terem ocorrido as agressões de gênero, que foi a desconfiança masculina de perder a posse e o domínio sobre elas, provocada por qualquer comportamento que fugisse à lógica da mulher submissa, passiva e recatada. Palavras-chaves: Violência de gênero, posse, identidades

Abstract: Using the police reports recorded in the years 2002-2010, in DEAM/Vitória (ES), the objective is to analyze the reasons perceived and presented by women to have been victims of violence from their partners or ex-partners. In particular, the article focuses on a fairly aspect reported by victims to have occurred gender aggression, which was male distrust of losing possession and mastery over them, caused by any behavior that escape the logic of the submissive woman, passive and maidenlike. Key-words: Gender violence; possession; identities

O presente artigo apresenta resultados parciais da dissertação de mestrado defendida pela autora em abril de 2015, na Universidade Federal do Espírito Santo, intitulada “Se você não for minha, não será de mias ninguém”: a violência de gênero denunciada na DEAM/VitóriaES (2002 a 2010). 1 Tendo como principal fonte documental os Boletins de Ocorrência (BOs) registrados na Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher de Vitória (DEAM/Vitória) no ano de 2002 a 2010, analisam-se as principais razões percebidas pelas *

vítimas para terem

Mestre em História Social das Relações Políticas pela Universidade Federal do Espírito Santo. Vitória, Brasil. Orientadora: Profª Drª Maria Beatriz Nader. E-mail: [email protected]

2148

sofrido agressões físicas, psicológicas, patrimoniais e sexuais por parte de seus companheiros/ex-companheiros, maridos/ex-maridos e namorados/ex-namorados. A seleção do recorte temporal da pesquisa obedeceu às limitações de arquivamento dos BOs na DEAM/Vitória, assim como às limitações de tempo da pesquisadora. Quanto à questão do arquivamento, somente teve-se acesso aos BOs registrados a partir de janeiro de 2002, pois os BOs registrados no ano de 1985, quando surgiu a DEAM em Vitória, até o ano de 2001 acabaram sendo deixados “[...] aos cuidados do Arquivo Morto da Superintendência de Polícia Civil” 2 e, portanto, tornaram-se inacessíveis à pesquisa. No que tange ao tempo da pesquisadora, deve-se levar em consideração a grande quantidade de denúncias efetuadas todos os anos, em uma média de 1.300 ocorrências por ano, e as precárias condições de coleta dos dados no espaço físico da DEAM/Vitória, o que faz necessitar de muita disponibilidade de tempo. Dessa maneira, o último ano dedicado à exaustiva tarefa de coleta e transcrição dos dados constantes nos BOs foi o ano de 2010, finalizando a década de 2000. Dos 12.085 casos de violência de gênero denunciados na DEAM/Vitória durante esses 9 anos, a pesquisa selecionou os BOs cujos agressores denunciados tinham ou já haviam tido algum tipo de relação afetiva com a vítima no momento da agressão. Essa escolha se deu por conta do potencial ofensivo que a violência no interior desse grupo social representa, dado que é comum a agressão se repetir e tornar-se mais grave, podendo chegar ao femicídio.

3

Além

disso, a quantidade de denúncias contra companheiros ou ex-companheiros registradas entre 2002 e 2010 chamou muito a atenção, são 7.974 casos, 66% do total de denúncias. Portanto, dado o potencial ofensivo da violência perpetrada por pessoas de estreita convivência afetiva com a vítima e por sua relevância numérica, a pesquisa optou por analisar especificamente esses casos. Assim, a pesquisa se voltou para o entendimento acerca das principais razões que levaram à reprodução, por companheiros afetivos das vítimas, de tantas agressões de gênero ocorridas na Região Metropolitana de Vitória e registradas na DEAM/Vitória. O ranking nacional em homicídios de mulheres, também chamados femicídios, realizado em 2010, demonstra a gravidade da violência de gênero no Espírito Santo e na sua capital, Vitória, e a necessidade de estudar os motivos pelos quais tantas mulheres são agredidas e assassinadas todos os dias no estado. O Espírito Santo figura na primeira posição em femicídios, de forma que, “[...] com sua taxa de 9,6 homicídios em cada 100 mil mulheres, mais que duplica a média nacional e quase quadruplica a taxa de Piauí, estado que apresenta o menor índice do país”.

2149

4

Da

mesma maneira, Vitória está na primeira posição no que tange às taxas de homicídios de mulheres dentre as capitais da federação. É alarmante o número de mulheres que são mortas todos os dias no Espírito Santo e em Vitória, isso sem mencionar a violência física, psicológica, patrimonial e sexual de que elas são alvos diariamente. Isso significa que há muito a ser pesquisado no que diz respeito às causas que levam à reprodução cotidiana da violência de gênero em Vitória, e é a isso que a pesquisa se propõe. Nesse sentido, utiliza-se o método monográfico a fim de realizar uma análise quantitativa e qualitativa dos BOs, o que possibilita fazer uma investigação empírica de “um fenômeno contemporâneo dentro de seu contexto da vida real, especialmente quando os limites entre o fenômeno e o contexto não estão claramente definidos”.

5

O contexto e sua relação com o

objeto de estudo são elucidados por meio da metodologia monográfica, que tem sempre uma perspectiva de totalidade, procurando compreender primeiramente “a vida do grupo na sua unidade concreta” 6, para evitar dissolver seus elementos antecipadamente. Com esse método, foi realizada a leitura dos relatos das mulheres vítimas de violência dadas às escrivãs da DEAM/Vitória. Notou-se que em muitos casos as vítimas procuravam justificar o motivo pelo qual elas acreditavam terem sido agredidas por seus companheiros ou excompanheiros. Elas frequentemente explicavam os pormenores de sua intimidade com o autor da violência, expondo os motivos pelos quais elas acreditavam terem levado às atitudes agressivas por parte do companheiro/ex-companheiro, marido/ex-marido ou namorado/exnamorado.

Posse e domínio masculino

Uma das razões amiúde apresentadas pelas vítimas, para aqueles que tinham ou já tiveram uma relação afetiva com elas no momento da agressão terem cometido a violência, notou-se a questão do sentimento de posse que muitos homens acreditavam ter sobre as mulheres, mesmo quando a relação afetiva já estivesse rompida. E a situação é ainda mais sintomática quando há a permanência do vínculo afetivo, com o homem se mostrando dominador, agressivo, possessivo e tirânico. Suas companheiras são alvos de um olhar severo, qualquer

2150

comportamento que fuja à lógica da mulher submissa, passiva e recatada, pode atingir a hegemonia e a honra masculinas. É o que se vê em grande parte dos BOs constantes na DEAM/Vitória do ano de 2002 a 2010. O BO de número 316/06, registrado no dia 28/03/2006, demonstra bem essa situação. A vítima de 21 anos, natural de Vitória (ES), parda, solteira, do lar, moradora do bairro Santo Antônio (Vitória/ES), denunciou seu amásio de 30 anos, natural do Espírito Santo, negro, lavador de carros, residente do bairro Santa Tereza (Vitória/ES). Segundo ela, havia 3 anos que convivia com o autor. Certo dia, quando ela chegava de uma festa de aniversário com a filha, o autor a acusou de estar com homens, ofendendo-a e partindo para o espancamento. Após a agressão, ele saiu de casa levando o fogão e a televisão. No BO de número 92/07, registrado no dia 29/01/2007, vemos outro relato que evidencia o mesmo sentimento de posse e a dominação que o companheiro muitas vezes exerce sobre a companheira. A vítima de 37 anos, natural de Colatina (ES), branca, casada, moradora do bairro Jardim Camburi (Vitória/ES), denunciou o marido de 44 anos, natural do Espírito Santo, branco, subgerente de padaria, que residia com ela. A vítima relatou que sofria torturas e pressões psicológicas por parte do autor que vigiava todos os seus passos e desconfiava de tudo o que ela fazia. A noticiante disse já não suportar mais as constantes ofensas e humilhações que o marido a submetia, como os filmes com cenas de violência que ele a obriga a ver. A desconfiança que permeia a vida desses homens no interior de uma relação afetiva está relacionada a tudo aquilo que possa remeter ao adultério feminino. O fato de a esposa sair de casa para ir à uma festa, ou simplesmente sair na rua para comprar qualquer coisa, ir ao posto de saúde ou à escola dos filhos, implica em uma relação da mulher com a esfera pública, pois fatalmente ela irá se deparar com outros homens, esses poderão olhá-la, ela poderá olhar para eles, e daí? O companheiro amiúde não admite tal fato, afinal, é a sua honra que está em jogo. Pierre Bourdieu (2010) explica que a honra masculina está subordinada à atuação sexual das mulheres, isto é, para os homens assegurarem sua honra, devem controlar a sexualidade feminina. E é justamente o que mais se vê nos relatos das vítimas de violência registrados nos boletins da DEAM/Vitória. Mas para os homens asseverarem sua honra, é preciso garantir também sua posição dominante na relação afetiva e, para isso eles se valem da violência, obrigando as mulheres a fazerem o que elas muitas vezes não querem – como ver filmes violentos esboçado no relato acima – e

2151

por meio de humilhações, ofensas e constrangimentos. O BO que segue é elucidativo da necessidade masculina de submissão da companheira e, frequentemente, dos próprios filhos, para fazer valer sua honra e sua posição de prestígio na família. No BO de número 1461/08, registrado no dia 15/12/2008, a vítima de 44 anos, natural de Linhares (ES), parda, casada, funcionária pública, com ensino médio completo, moradora do bairro Itaparica (Vila Velha /ES), relatou o sofrimento que vivia há muitos anos com o marido de 41 anos, natural de São Paulo (SP), branco, casado, músico, com ensino fundamental incompleto, residente do bairro Jardim Asteca (Vila Velha /ES). Segundo ela, há 9 anos é casada com o autor com quem tem uma filha de 8 anos. Ela disse que as agressões eram frequentes, desde a primeira semana de casada. Ele sempre foi muito agressivo, nervoso e ciumento e afirmava que “mulher tem que apanhar”. O marido não permitia que ela expressasse suas opiniões e quando ela o contrariava, ele a agredia fisicamente. Além disso, as humilhações eram constantes. Ela relatou que diversas vezes ficou com hematomas devido aos maus tratos por parte dele, e que a maioria das agressões era presenciada pela filha. A vítima confessou seu medo em denunciar o marido, pois ele a ameaçava. Depois de mais uma agressão por parte do marido, cuja vítima foi também sua filha, ela resolveu se separar. Ele então passou a ameaçá-la de morte e de sumir com a filha do casal, que está amedrontada e não quer ir para a casa do pai. A fala do marido de que “mulher tem que apanhar”, segundo o relato da noticiante, evidencia bem a percepção de muitos homens de sua relação afetiva. Eles acreditam deverem se utilizar da violência para manter e garantir a permanência dos papéis sociais de gênero no interior da família, qual seja, a mulher deve ser submissa, recatada e cuidadora, enquanto o homem deve dominar, ser viril sexualmente e prover a família. A tal ponto o marido do relato acima acreditava dever prezar pelo modelo de identidade de gênero, que ele não admitia ser contrariado, seja por a vítima falar algo que não era de seu agrado, seja no momento em que ela se decidiu pelo término do relacionamento, não obstante a recusa dele. Conforme Sócrates Nolasco7, “como produto da ideologia patriarcal, a relação entre os homens se funda na busca de identificações, [...] com o que neles há de comum com o modelo masculino socialmente definido”. Os homens se sentem cotidianamente na obrigação de assumir a sua identidade de gênero, apesar de saberem que nunca é possível alcançá-la plenamente. Nessa perspectiva, é comum que eles se utilizem da violência para se adequarem à sua identidade de gênero e para obrigarem suas companheiras a cumprirem seu papel social.

2152

Isto porque gênero é relacional, a identidade masculina depende da identidade feminina para existir, de forma que o homem só é “homem” se a mulher for de fato “mulher”. No BO de número 1822/09, registrado no dia 17/11/2009, a vítima de 26 anos, natural de Vitória (ES), negra, casada, sem profissão, com ensino médio incompleto, moradora do bairro Romão (Vitória/ES), denunciou o marido de 28 anos, natural de Vitória (ES), negro, casado, gari, com ensino fundamental completo, que residia com ela. Ela relatou que eles estão casados há dez anos e deste relacionamento tem dois filhos, um com 8 anos e o outro com 4 anos. O marido nunca a havia agredido fisicamente, mas naqueles dias os desentendimentos eram constantes devido ao ciúme excessivo dele. Aproximadamente um mês antes da denúncia, o agressor afirmou que um homem estava olhando para a noticiante dentro da Igreja. Nesta ocasião, o autor apertou o pescoço da vítima e fez ameaças contra ela. Ele então ficou ainda mais ciumento, chegando a controlar os programas de televisão que ela assistia e a mexer no celular dela. Em uma discussão, o autor afirmou que ela tem amantes e lhe desferiu socos pelo corpo. Ela disse que o relacionamento está insuportável, está com muitas dificuldades em conviver com o marido. E os relatos do ciúme excessivo e do controle que o companheiro procura exercer sobre a companheira se seguem. No BO de número 171/10, registrado no dia 03/02/2010, a vítima de 27 anos, natural de Duque de Caxias (RJ), parda, solteira, do lar, com ensino fundamental incompleto, moradora do bairro Santo Antônio (Vitória/ES), relatou a agressão por parte de seu amásio de 53 anos, natural de Conselheiro Pena (MG), pardo, viúvo, montador, que reside com ela. Segundo seu relato, eles convivem há 8 anos e tem três filhos (7 anos, 4 anos e 2 anos). As brigas e as agressões eram constantes, pois o autor era extremamente ciumento. Há um mês da denúncia, contudo, estavam tendo um bom convívio, o autor é um bom pai, mas há uma semana do registro do relato, ele viu um número de um homem registrado no celular da companheira e desferiu-lhe socos na costela. Ela disse que ele a agride sem motivos. Se ele escuta alguém falar o nome dela na rua, por exemplo, já parte para a agressão física. Certo dia, a sobrinha do autor falou para ele que a noticiante estava “se oferecendo” para um homem na praia, a vítima então correu para o quarto enquanto o agressor gritava “eu vou bater na cara dela... hoje ela me paga”. Ele foi embora e ela fugiu para a casa dos pais com medo do autor, que não parava de ligar para ela proferindo ameaças e a acusando de traição. Os casos desse tipo são frequentes nos BOs da DEAM/Vitória. É importante notar no relato demonstrado acima a cumplicidade de outra mulher na dinâmica da dominação masculina, no

2153

caso a sobrinha do autor, responsável por denunciar a conduta moral e sexual da mulher para o seu companheiro. Para Pierre Bourdieu8, essa é uma dominação simbólica que os homens – enquanto categoria social – exercem sobre as mulheres, fazendo com que a dominação masculina seja incorporada pelas mulheres de uma forma não consciente, mas por esquemas de percepção e de avaliação apreendidos por meio de um mundo social sexualmente diferenciado. Ele enfatiza que a dominação simbólica masculina não diz respeito à uma lógica consciente, mas às formas de perceber, avaliar e agir que constituem habitus. Para o autor, a dominação masculina e a submissão feminina constituem um paradoxo que, “[...] só pode ser compreendido se nos mantivermos atentos aos efeitos duradouros que a ordem social exerce sobre as mulheres (e os homens) [...]”. 9 Assim, muitas vezes as mulheres podem atuar como cúmplices da sociedade patriarcal, como foi o caso da sobrinha do agressor mencionado acima. Outra questão que merece destaque no relato acima é a ênfase dada pela vítima ao fato do agressor ser um bom pai. Ela contou para a escrivã muito de sua relação com o autor, expondo o caráter agressivo e ciumento dele. Contudo, a contraposição de tamanhos males foi a de que ele é um bom pai. O que caracterizaria um bom pai? O homem cumprir com o papel social masculino de provedor da família? Talvez seja a isso que ela estivesse se referindo, pois um homem ciumento e agressivo não parece ser o protótipo adequado de paternidade. O que para a vítima parece ser uma contradição, ou seja, o marido ser concomitantemente ciumento e agressivo, mas ser um “bom pai” é, em verdade, justamente a marca da identidade masculina como foi construída pela sociedade patriarcal. O homem deve ser o provedor, viril, dominador, mas também deve controlar a sexualidade feminina, daí o ciúme e a agressividade. No BO de número 243/10, registrado no dia 23/02/2010, a vítima de 42 anos, natural de Nova Venécia (ES), parda, casada, diarista, com ensino fundamental incompleto, moradora do bairro Santo André (Vitória/ES), denunciou o namorado de 29 anos, natural de Vitória (ES), pardo, solteiro, porteiro, com ensino médio incompleto, residente do bairro Santo André (Vitória/ES). Ela relatou namorar com o autor há 3 anos. Ele era nervoso e agressivo e já a agrediu, chegando a quebrar o dedo da vítima. Os desentendimentos ocorriam por ciúmes recíprocos. Dois dias antes do registro do BO, o autor não aceitou que a companheira fosse à praia, escondeu seu biquíni, empurrou-a e amarrou suas mãos com um cinto. Depois de meia hora de muita insistência da noticiante, ele aceitou soltá-la. No dia seguinte, eles discutiram e ela cogitou terminar o namoro, pois estava desconfiada de uma traição dele. Ele então ficou

2154

nervoso, desferiu socos pelos móveis, chamou a noticiante de “desgraçada”, empurrou-a para cima da cama e mordeu sua mão direita, deixando-a com hematomas. A vítima afirmou ainda que ele fazia ameaças constantes contra ela, falando que compraria um facão para matá-la. Ela disse ter conhecimento de que o autor de fato encomendou um facão e temia que ele cumprisse as ameaças. O relato acima deixa bastante evidente o sentimento de posse do homem em relação à sua namorada. E o autor se utilizou de todos os meios que dispunha para fazer valer a sua autoridade e a sua honra, como esconder o biquíni da vítima para ela não ir à praia, prender suas mãos com cinto, ameaçá-la e agredi-la. Para Durval Muniz de Albuquerque Júnior10, na sociedade contemporânea os homens veem as mulheres como objeto de domínio, de posse e de prazer imediato, eles a desejam sexualmente, mas também precisam gostar delas. Contudo, o autor salienta, “numa sociedade como a nossa, nessa máquina de fabricar machos, os machos só gostam é de si mesmos, pois só se pode gostar verdadeiramente, só se pode amar o que se admira, o que parece digno desse afeto”

11

. E, realmente, o que parece ao ler tantos

relatos que atestam o sentimento de posse e de domínio que os homens têm em relação às suas companheiras, é que eles não as amam, simplesmente precisam assegurar seu poder hegemônico na relação afetiva. Por fim, vale citar mais dois sintéticos boletins de ocorrência que demonstram bem o grau de domínio e posse que os homens querem exercer sobre a sua esposa, namorada ou companheira. No BO de número 1.215/03, registrado no dia 21/10/2003, a vítima de 34 anos, natural do Ceará, parda, solteira, vendedora, moradora do bairro Santo Antônio (Vitória/ES), denunciou seu amásio de 36 anos, natural da Bahia, negro, vendedor ambulante, que residia com ela. Segundo seu relato, ela convivia com o autor há um ano. Certo dia, ela queria sair sozinha com os amigos, ele então a agrediu e a xingou, trancando-a dentro de casa. Além disso, ele fez muitas ameaças e ela precisou sair de casa sem os seus pertences, pois o autor se negava a entregá-los. O BO de número 1.470/03, registrado no dia 13/10/2003, também é característico da extensão do poder que o companheiro afetivo procura a todo custo exercer sobre a companheira. A vítima de 27 anos, natural de São Paulo, parda, solteira, manicure, moradora do bairro Tabuazeiro (Vitória/ES), relatou o que passou nas mãos de seu amásio de 30 anos, natural do Espírito Santo, pardo, solteiro, instalador, que morava com ela. Segundo seu relato, ela convivia com o autor há 10 anos. Ele tinha um ciúme doentio da companheira, não permitindo

2155

até mesmo que ela trabalhasse fora de casa. Ela relatou que o autor sempre foi agressivo e na data do fato tentou enforcá-la com a corrente do cachorro, por não aceitar ser contrariado. Trabalhar fora, sair com os amigos, ir à praia ou mesmo questionar (contrariar) o companheiro, são condutas “inadequadas” ao papel social feminino e, portanto, passíveis de serem reprimidas pelos companheiros. Ou talvez seja até mesmo imprescindível para esses homens que exerçam um controle muitas vezes violento sobre a conduta feminina, na medida em que a identidade masculina só pode ser plenamente salvaguardada com a precisa normatização da identidade feminina. Na sociedade patriarcal que permanece na contemporaneidade, as identidades de gênero são produzidas como uma oposição binária. Como já se observou, as características e os papéis sociais masculinos precisam se opor aos femininos para garantir a ordem social. Para Heleieth Saffioti12, a ordem patriarcal vinculada com a ideologia de gênero, estabelece padrões de comportamentos femininos e masculinos, em que o homem é preparado para ser provedor e exercer o poder, e “as mulheres são socializadas para conviver com a impotência [...]”. Esse poder concedido ao homem o autoriza a julgar as categorias sociais e, caso apresente um desvio, a sociedade tolera que ele exerça a punição, sendo auxiliado pelo uso da violência. Os BOs da DEAM/Vitória atestam a veracidade dessa situação. Os agressores se sentiam no direito e com o poder necessário para julgar e “corrigir” a conduta feminina e, como negligenciar a legitimação social para tanto? “Neste sentido, os homens estão, permanentemente, autorizados a realizar seu projeto de dominação-exploração das mulheres, mesmo que, para isto, precisem utilizar-se de sua força física”.

13

A ordem patriarcal de

gênero, portanto, oferece um “caldo de cultura” no qual a violência contra a mulher tem um lugar resguardado, sendo até mesmo necessária para manter o status quo.

2156

NOTAS 1

MORGANTE, Mirela Marin. "Se você não for minha, não será de mais ninguém": a violência de gênero denunciada na DEAM/Vitória-ES (2002 a 2010). 131f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações Políticas, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2015. 2

NADER, Maria Beatriz. Mapeamento e perfil sócio-demográfico dos agressores e das mulheres que procuram a Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher Vitória (ES). 2003-2005. Fazendo Gênero. Florianópolis, p. 1-8, ago. 2010, p. 2. Disponível em: . Acesso em: 1 set. 2015, p. 3. 3

AGENDE– Ações em Gênero Cidadania e Desenvolvimento. 10 anos da convenção interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher: Convenção Belém do Pará. 3. ed. Brasília: Agende, 2005. 4

WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da violência 2012: atualização: homicídios de mulheres no Brasil. [S.I.]: CEBELA, 2012. Disponível em: . Acesso em: 24 jun. 2015, p. 11. 5

YIN, Robert K. Estudo de caso: planejamento e métodos. Porto Alegre: Bookman, 2005, p. 32. 6

LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Fundamentos de metodologia científica. São Paulo: Atlas, 1991, p. 108. 7

NOLASCO, Sócrates. O mito da masculinidade. 2 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1995, p. 58.

8

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 9. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.

9

BOURDIEU, 2010, p. 50.

10

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Máquina de fazer machos: gênero e práticas culturais, desafio para o encontro das diferenças. In: MACHADO, Charliton José dos Santos; SANTIAGO, Idalina Maria Freitas Lima; NUNES, Maria Lúcia da Silva (orgs.). Gênero e práticas culturais: desafios históricos e saberes interdisciplinares. Campina Grande: EDUEPB, 2010. p. 21-34. 11

ALBUQUERQUER JÚNIOR, 2010, p. 30.

12

SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero, patriarcado, violência. 2. ed. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2011, p. 84. 13

SAFFIOTI, 2011, p. 121.

2157

A associação entre o vetor militar e a intelectualidade para a construção da identidade nacional brasileira no primeiro quartel do século XX.

Misael Henrique Silva do Amaral

Doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Mestre em História pelo Programa de PósGraduação em História, Política e Bens Culturais do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC – FGV). Especialista em História Militar Brasileira (UNIRIO) e em História do Rio de Janeiro (UFF). É Bacharel em Ciências Navais pela Escola Naval com habilitação em Mecânica e Bacharel em Teologia pela Faculdade Unida de Vitória (ES). Email: [email protected] Orientador: Prof. Dr. Oswaldo Munteal Resumo O texto visa apresentar a participação de um importante intelectual das duas primeiras décadas do século XX, o poeta Olavo Bilac e sua mobilização para a implementação de uma identidade nacional no Brasil, sobretudo por meio do vetor militar como elemento formador do conceito de nação e sendo a educação da juventude elemento de fomento para a formação do ideário de nacionalidade brasileira. Palavra chave: Intelectuais, militar, nação, identidade nacional. Abstract The text aims to present the participation of an important intellectual of the first two decades of the twentieth century, the poet Olavo Bilac and their mobilization for the implementation of a national identity in Brazil, especially through military vector as the concept of nation-forming element and being the education of youth development element for the formation of a Brazilian national ideology. Keyword: Intellectuals, military, nation, national identity.

De certa maneira o Brasil tem sido qualificado como um “país novo” ou “o país do futuro”, sobretudo, a partir do advento da República em 1889, onde a expressão “país novo” foi apropriada de diversas formas por destacados intelectuais brasileiros, indicando distintas maneiras de imaginar e conceber a ideia de nação. Sendo que quase

2158

sempre o “novo” esteve articulado aos sentidos de potencialidade, esperança, futuro, bem como, a ideia de incompletude e imaturidade. Desse modo, tanto a intelligentsia brasileira, quanto setores do Estado, em especial os militares i buscaram construir o que seria a identidade nacional brasileira, principalmente, a partir da Primeira República (1889-1930) (HANSEN, 2007). José Murilo de Carvalho (2004) assinala que no Brasil, do início da República, não havia um sentimento de identidade coletiva ao qual pudesse significar, no sentido moderno, a valorização de se pertencer a uma nação, um sentimento nacional. Embora existissem alguns elementos que de maneira genérica estavam incorporados à identidade nacional, como a unidade da língua, da religião e até mesmo uma unidade política. Murilo enfatiza que a necessidade de se criar uma identidade coletiva para a nação deveria ser o alvo a ser buscado pela geração intelectual da Primeira República, haja vista que os próprios propagandistas e defensores do regime republicano já percebiam que esta não era a República que sonhavam e desejavam. Os próprios intelectuais da passagem do século, aliás, costumam ser classificados como otimistas ou pessimistas, sendo esta dicotomia exemplificada de um lado por aqueles que acreditavam incondicionalmente no potencial das riquezas naturais, no Brasil como “país do futuro”, e de outro, por aqueles que não viam possibilidade de progresso devido à condenação dos brasileiros pelos diversos determinismos. Além disso, é possível que tal polarização tenha se acentuado em razão das acirradas polêmicas da época, em meio às quais as posições tendiam a se radicalizar. De qualquer modo, o que estava em voga nas últimas décadas do século XIX e princípios do século XX no Brasil era a discussão acerca da identidade nacional. Ortiz (1994) sublinha que a noção de identidade nacional idealizada pela geração de 18701 teria fomentado no Brasil um sentimento de desagrado pela própria identidade, visto que no nosso país, um dos paradigmas de identificação nacional pressupunha a “raça”, que naquele período era considerada inferior, além da questão climática que criava pessoas pouco propensas ao trabalho e a racionalidade. Pode-se inferir que haveria então uma “construção” da categoria identidade nacional o que parece coadunar com o pensamento de Benedict Anderson2 que assinala as nações como construídas e imaginadas, o que não significa ser irreal, acerca do caráter real e irreal das comunidades nacionais imaginadas. O autor destaca que “as comunidades se distinguem

2159

não por sua autenticidade/falsidade, mas pelo estilo que são imaginadas” (ANDERSON, 2008, p. 33). Portanto, em determinados lugares a identidade nacional poderá ter como base a língua ou o passado, enquanto em outros pode ser a raça, os hábitos do povo, ou seja, cada lugar idealizou uma proposta de identidade que pode ser transformada no tempo e no espaço. A despeito das diversas interpretações da categoria identidade nacional, o estudo acerca do referido conceito traz à luz a discussão sobre quem seriam os agentes formadores da concepção nacional de um determinado povo, sendo que os intelectuais desempenhariam o papel de mediadores entre o que deveria ser nacionalismo para uma determinada população. Os intelectuais seriam, portanto, os agentes formuladores de modelos de identidade nacional. Sendo como representação de algo pouco palpável ou mesmo mais real, a concepção de identidade nacional foi construída sobre uma perspectiva de diversos interesses. E neste quesito o Estado seria um daqueles que teria sob a sua tutela o “poder simbólico”, cooptando os agentes formuladores da identidade nacional (os intelectuais), aglutinando estes a agentes estatais (professores, militares entre outros). Essa ideia parece ir ao encontro daquilo que Eric Hobsbawm dissertou acerca dos modelos nacionais se utilizarem de ferramentas como sentimentalismos, patriotismo, elementos de propaganda entre outros a fim de implantar a identidade nacional para um país, conforme assinala “O nacionalismo poderia se tornar um instrumento enormemente poderoso para um governo caso consiga ser integrado no patriotismo estatal, para tornar-se seu componente emocional central” (HOBSBAWM, 2008, PP 110,111). Para Ortiz (1994) seria importante gerar no povo um sentimento de lealdade em relação ao Estado e ao sistema dirigente. Se no passado a fidelidade ao Estado não era exigida do povo - seja porque era assegurada pelos dogmas religiosos que professavam a obediência aos superiores - seja porque o povo tinha seus direitos muito limitados e, portanto, não ofereciam ameaça aos governantes, o fato é que no fim do século XIX este sistema mudaria devido à democratização. Conforme acentua Hobsbawm:

[...] os interesses estatais dependiam agora da participação dos cidadãos, em um grau não considerado antes. Onde os Exércitos eram compostos de voluntários ou de serviço militar obrigatório, a boa vontade dos homens em servir era agora uma variável essencial nos caçulos do governo [...] a democratização da política – ou seja, de um lado a extensão crescente do voto (masculino) e de outro a criação de um Estado moderno – colocava a questão da nação e dos sentimentos do cidadão em relação aquilo que ele considerava como sua “nação” ou sua “nacionalidade” [...] (HOBSBAWM, 2008, PP.104-105).

2160

Para este autor, implementar um componente emocional no curso do desenvolvimento de uma identidade nacional seria fundamental para o governo atingir seus objetivos, portanto a partir das últimas décadas do século XIX as intervenções estatais passaram a ser frequentes e universais, passando os cidadãos a serem alvo de interesse do Estado. Assim, por meio da associação de agentes governamentais como professores, propagandistas (intelectuais de diversas áreas) e militares o Estado poderia obter mais informações e controle sobre os cidadãos e, desse modo, poderia criar mecanismos que fomentasse o sentimento de pertencimento no povo, destacam-se como dispositivos estatais a educação infantil e a comunicação. A partir da perspectiva de análise de Eric Hobsbawm (2008) a respeito da identidade nacional, o nacionalismo nas mãos do Estado poderia ser um instrumento poderoso, especialmente em momentos de crises, como guerras e revoltas. Portanto, de acordo com este autor os interesses estatais dependiam dos cidadãos, assim como o modelo de identidade nacional projetado pelo Estado poderia unir a população, criando lugares comuns. De qualquer modo o povo quem deveria decidir quais ideias de identidade deveria escolher e compartilhar. É plausível, porém, acentuar que o Estado foi certamente um dos dispositivos mais ativos no que tange a orientação e formulação de um ideário nacional e é sob essa perspectiva que pretendemos explicitar, neste trabalho, a associação no Brasil entre profissionais do Estado e a intelectualidade na formulação de uma identidade brasileira, a saber: os militares e o poeta Olavo Bilac que buscaram na educação primária e no Serviço Militar Obrigatório as ferramentas para formulação de um sentimento nacional para o Brasil. Percebe-se que na virada do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, a figura de Olavo Bilac como propagandista e defensor de um projeto nacionalista, sendo um destaque no campo intelectual. Segundo o poeta, a defesa: do ideal patriótico, da unidade nacional e da educação, seriam os alicerces para o progresso no Brasil. Estas ideias atuariam como vetores principais de um processo que teria como objetivo formar uma identidade nacional. O programa cívico de Bilac salientou as campanhas em prol do Serviço Militar Obrigatório e a Defesa Nacional, portanto pode-se caracterizar Olavo Bilac como um dos ideólogos do nacionalismo brasileiro, aludindo o modelo militar de soldado como referência de ética, de disciplina e de honra, dentre outros atributos como condutor do projeto nacionalista bilaquiano.

2161

Olavo Bilac, uma dos poetas mais populares do seu tempo, foi também jornalista e membro fundador da Academia Brasileira de Letras. Dotado de intenso senso cívico, foi pioneiro na campanha pela alfabetização e também grande defensor e propagandista do Serviço Militar Obrigatório e dos Tiros-De-Guerra3 (EXÉRCITO BRASILEIRO, 2011). Bilac é conhecido, principalmente, por sua obra poética, mas ele também foi autor de uma extensa obra como contos, crônicas e livros escolares e literatura infantil. E aí se destacam a letra do Hino à Bandeira e Contos Pátrios com Coelho Neto. Além disso, escreveu livros didáticos, como Através do Brasil, com Manoel Bomfim. O poeta teve ainda profunda participação na política e em campanhas cívicas, das quais a mais conhecida foi a Liga de Defesa Nacional4, fundada em 1916 em favor da instrução pública e do serviço militar obrigatório. Em função disso, Bilac empreendeu uma jornada pelo país, entre os anos de 1915 e 1916, a fim de conscientizar os jovens brasileiros da necessidade do Serviço Militar. Exerceu ainda, a função de oficial da Secretaria do Interior do Estado do Rio de Janeiro (1891) e em 1898 foi inspetor escolar do Distrito Federal. Hansen (2011) aponta que Bilac buscava incutir nas gerações mais jovens outra forma de perceber a nação brasileira, afastada de uma visão ufanista 5 ou de um olhar estéril e pessimista. A construção proposta por Bilac parecia ser equilibrada e, sobretudo, buscava um tom mais realista; não tão otimista como a abordagem chamada de “megalomania patriótica” (BILAC, 1996), baseada nas enormes riquezas naturais que o país possuía e nem tão negativa a que ele chama de “desmoralizadora enfermidade do pessimismo” (BILAC, 1996). O poeta procurou um tipo de defesa do ideário nacional fundamentada na ação e na prática, a fim de que, com o devido preparo educacional, os homens pudessem explorar, de modo eficaz, os recursos naturais do Brasil. Esse pensamento era o fundamento do projeto bilaquiano, onde o poeta procurava estimular em sua audiência a consciência de que o despertar do Brasil para o futuro, estava diretamente relacionado ao despertar de si mesmos, como brasileiros responsáveis pela grandeza do país.

2162

O sentido de identidade nacional, pautado no sentimento patriótico de Bilac, parece coadunar com o que Catroga (2010) define por pátria e sentimento patriótico, ou seja, como sendo a origem e a herança estabelecendo uma memória retrospectiva entre os vivos e os mortos, num elo de ligação pelo qual os indivíduos se reconhecem como compatriotas. “A pátria é a origem de todas as origens, húmus sacralizado que gera um sentimento de pertença, sendo como um destino ou como uma vocação” (CATROGA, 2010, p. 34). De acordo com Hansen (2007), a questão da formação de uma identidade nacional menos contemplativa e mais pragmática se colocava dentro do escopo do projeto de Olavo Bilac. O pensamento de um “país novo em que tudo ainda está por fazer” no qual seu viés primordial era o futuro a ser construído pelos próprios brasileiros, era focado na ética do trabalho e esforço, sendo a educação a grande propulsora desse processo. Vale ressaltar, que o conceito “de que há muito por fazer” está imbricado ao sentido de progresso na acepção utilizada nas primeiras décadas da República, como também a ideia de que o futuro grandioso do Brasil só seria possível pelas mãos dos próprios brasileiros.O poeta declara essa ideia em trecho de seu discurso de 1909, no ginásio do Colégio Metodista Granbery em Minas Gerais: O fim da educação [...] é preparar homens de pensamento e ação [...] capazes de empregar valiosamente em proveito da coletividade todas as forças vivas de sua alma e todo o arsenal de conhecimentos de que os apercebeu o estudo. Em um país novo como este, onde quase tudo está por fazer [...].Estudando bem as condições políticas e econômicas da nossa pátria, vereis, meus jovens amigos, que os homens da vossa geração vão receber um honrosíssimo, porém onerosíssimo legado (BILAC, 1965, p. 681-693).

Importa salientar que o projeto de identidade nacional bilaquiano de formação dos brasileiros, estava direcionado à mocidade e à infância brasileiras, sendo um projeto em que a palavra era a ação, ou seja, posto em prática por meio da produção literária, como também nas inúmeras campanhas públicas para a formulação da nação, como discursos, palestras entre outros. Sendo estritamente um processo de estabelecimento do sentimento de pertencimento a uma coletividade nacional através de ações intencionais, a fim de forjar nessa juventude e na infância brasileira uma identidade nacional que teria como importante tarefa garantir a integração e o progresso nacional (HANSEN, 2011). Este processo intencional de Olavo Bilac de constituir uma identidade nacional nos homens brasileiros parece harmonizar com o que historiador Eric Hobsbawm6

2163

(1997) explicitou como a intencionalidade dos sujeitos históricos na constituição das tradições nacionais pelo sentimento de pertencimento a uma coletividade nacional. Outro pilar do projeto nacional de Bilac estava fundamentado na égide da educação, tendo nas Forças Armadas um de seus vetores propulsores, onde o amor à pátria parece aludir ao que Fernando Catroga define como trabalho mobilizador para constituição do nacionalismo. Conforme assinala: [...] foi a ideia de pátria e patriotismo como propulsores do movimento que desaguará na nação moderna (no Estado-nação) e não o contrário, ilação que, porém, não invalida que este último não tenha procurado promover (sistema de educação, serviço militar) um renovado patriotismo comum, tendo em vista transformar os indivíduos em cidadãos, bem como a população num povo (CATROGA, 2010, p. 49).

Para Olavo Bilac a ênfase no modelo militar, do soldado como modelo de masculinidade, de estética marcial, disciplinado e cultivador da honra e dos valores cívicos, seria importante na ideia de formulação de uma identidade nacional para a nação brasileira. Havia no poeta o pensamento de nacionalismo associado à questão da mobilização militar, principalmente, no contexto da I Guerra Mundial (1914-1918), quando a questão nacional estava diretamente articulada à postura do Brasil frente ao conflito bélico internacional; portanto, o apelo às armas fazia todo sentido ao se falar em patriotismo. Seus discursos assinalavam a união entre intelectuais (grupo do qual fazia parte) e militares a fim de realizar a missão de estabelecer a identidade nacional, ou seja, esta seria levada a efeito a partir da coesão entre as Forças Armadas e a sociedade, sendo também o patriotismo interpretado como dever cívico, cabendo aos intelectuais, elementos da vanguarda social, assumi-lo integralmente (VELOSO, 1993). Um dos pressupostos por trás da concepção de identidade nacional seria de criar numa determinada população uma noção de pertencimento a uma nação, embora se deva ressaltar que a decisão de aceitação deste tipo de sentimento nacionalista é uma decisão do povo. Percebe-se no Brasil da Primeira República a busca de uma legitimação ao ideário nacional formulado pelo Estado, ao incorporar aos seus agentes (militares, professores, entre outros) importantes atores da sociedade, como o “ideólogo do nacionalismo brasileiro” o poeta Olavo Bilac, que ao lado das Forças Armadas trabalhou a fim de empreender uma consciência nacional no país, utilizando como

2164

ferramenta o serviço militar obrigatório, entendido por ele como um vetor de educação, civismo, nivelamento e patriotismo para a formação do cidadão brasileiro. O projeto nacionalista de Bilac era fundamentado na integração, manutenção da unidade do Brasil e o amor à pátria. Sendo todos esses aspectos projetados a partir do ideário da educação primária em conjunto com um viés militar. É importante acentuar que essa identidade nacional propagada por Bilac era diferente daquele nacionalismo ufanista ou daquele extremamente pessimista. Ele buscava uma identidade nacional pautada num projeto mais pragmático, articulado a ideia de um “país novo em que tudo ainda está por fazer”. Bilac possuía uma grande capacidade de mobilização, e suas palavras tinham ampla divulgação e impacto nos diversos setores da sociedade, fruto de seu carisma. Hansen (2011) compara o poeta a uma “celebridade” em virtude da elevada admiração devotada a ele. E esta capacidade singular tinha reflexo na repercussão dos seus discursos em seus ouvintes e na imprensa. É interessante assinalar que os militares souberam aproveitar essa capacidade mobilizadora de Bilac se associando a ele.

1

Vale ressaltar que a preocupação constante dos militares, no período da Primeira República era estabelecer ou recriar vínculos com a nação brasileira, entidade da qual, mais do que guardiões seriam formadores da identidade nacional (CASTRO, 2012). 2 Geração de intelectuais, onde grande preocupação estava centrada na criação de uma nação moderna (sinônimo de positivo e progresso), pautada no cientificismo, abarcando questões como raça e meio geográfico. Possuía como representantes, dentre outros: Nina Rodrigues, Euclides da Cunha e Sílvio Romero. 3 Benedict Anderson em sua obra “comunidades Imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo” aborda a ideia de nação sobre quatro perspectivas: 1) limitada – porque mesmo que a nação seja muito grande em extensão, ela terá fronteiras; 2) imaginadas – posto que os membros de uma nação seriam incapazes de conhecer todos os membros da comunidade; 3) Soberana – está relacionada ao povo e 4) comunidade – porque haverá uma camaradagem horizontal entre seus membros. 4 Eram organizações civis de treinamento de atiradores e que visavam criar reservas treinadas para o Exército. (CASTRO, 2007, p. 241). 5 É uma associação cívico-cultural, fundada em 7 de Setembro de 1916, na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, independente de qualquer credo religioso, político ou filosófico e tem como finalidade precípua robustecer, na opinião pública nacional, um elevado sentimento de patriotismo. (Site oficial da LIGA DE DEFESA NACIONAL, conforme descrito em seu Estatuto atual e que contém as diretrizes básicas da Instituição. Disponível em: http://www.ligadadefesanacional.org.br/liga/index.php/estatutoatual). Acesso em 20 de maio de 2015. 6 Categoria criada a partir do livro “Porque me ufano de meu país”, de Afonso Celso (escritor e jornalista contemporâneo a Bilac) publicado em 1901 por ocasião das comemorações do quarto centenário do Descobrimento. O vocábulo “ufanismo” é definido nos principais dicionários da língua portuguesa como “orgulho exacerbado da pátria” ou patriotismo excessivo (NOVO DICIONÁRIO HOUAISS DA

2165

LÍNGUA PORTUGUESA, 2009). Ou também como sentimento daqueles influenciados pelo potencial de riquezas do país e belezas naturais se vangloriam, desmedidamente (NOVO AURÉLIO XXI, 1999). 7 HOBSBAWM, Eric e RANGER Terence. A invenção das tradições. 2ª Ed. Paz e Terra, São Paulo, 1997. A forma como Eric Hobsbawm procurou encaminhar o problema tornou-se a principal referência dos historiadores que empregaram o conceito de “tradições inventadas”. 8 A CIGARRA, Ano II, n. XXVIII, 16/10/1915. Disponível em: acessado em 10/09/2015 15:51

2267

EM TEMPOS DA PAX: A REGIÃO PLATINA E A PRESENÇA DO BRASIL Pedro Gustavo Aubert1 RESUMO: O presente trabalho busca analisar como a política formulada por Paulino Soares de Souza (visconde do Uruguai) no Ministério dos Negócios Estrangeiros a fim de derrubar Rosas na Confederação Argentina não se esgotou com o fim da chamada Guerra Grande (1851-1852). Houve o início de uma nova estratégia política no Prata a partir disso. O Império se tornou uma presença militar e financeira na região. Percebemos na retórica utilizada por Uruguai a perspectiva de uma supremacia regional. Palavras-Chave: Tratado, Navegação, Intervenção. ABSTRACT: This study aims to analyze how the policy formulated by Paulino Soares de Souza (Viscount of Uruguay) at the Ministry of Foreign Affairs in order to overthrow Rosas in the Argentine Confederation was not finished by the end of the called great war (1851-1852). There was the beginning of a newpolitical strategy in the River Plate thereafter. The Empire became a military and financial presence in the region. The ideas expressed by the viscount demonstrates the prospect of a Brazilian regional supremacy. Keywords Treaty, Navigation, Intervention.

Após a guerra grande que levou à derrubada de Juán Manoel de Rosas na Confederação Argentina, instaurou-se um período de paz armada na região. O Império impusera, por meio de uma ameaça militar ao novo governo da República Oriental do Uruguai, a aceitação uma série de tratados desvantajosos para o Estado vizinho. Eram os tratados de 12 de outubro de 1851 (aliança, limites, comércio e navegação, e extradição e subsídios) que foram reconhecidos no Tratado de 15 de maio de 1852 celebrado pelo governo eleito de Juán de Giró. O Brasil tornou-se uma presença militar no Rio da Prata. Com a ascensão do chamado gabinete da Conciliação, Paulino Soares de Souza, formulador da política que saiu vencedora do conflito armado, deixou o Ministério dos Negócios Estrangeiros (1853). Poucos meses depois, foi nomeado conselheiro de Estado ordinário e alocado junto à Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros do Conselho de Estado. As seções2 do referido órgão eram geralmente provocadas por um Aviso Ministerial que indicava o relator da consulta. Tal informação é relevante para a reflexão acerca da influência que o ex-ministro passou, então, a exercer, pois seus sucessores na mencionada pasta ministerial constantemente o designavam relator, especialmente para consultar sua opinião acerca dos negócios

2268

platinos. Ou seja, no processo de tomada de decisões por parte do governo imperial, sua opinião possuía relevo. Mesmo fora do governo, mantinha contato constante com diversos diplomatas e políticos platinos. Em carta ao ministro oriental, Manuel Herrera y Obes datada de 6 de março de 1854 criticava a política do gabinete presidido pelo Visconde de Paraná em relação ao Prata. “Não sei se só a política que acaba de adotar o Governo Imperial poderá contribuir para salvá-lo. É difícil calcular sobre bases tão movediças como aquelas que ele apresenta”3. Soares de Souza considerava que mediante uma política enérgica “francamente apoiada em força, muito pode o Brasil concorrer para a reorganização e consolidação da República, a qual sempre se pode fazer por meio de paz e tranquilidade duradoura”4. Para ele, a paz no Estado Oriental seria possível somente se ali se organizasse um partido forte, que apoiando-se no Brasil e tendo também o apoio do Império “poderiam fazer muito”5. Porém, questionava se era realmente possível erguer ali tal força política em meio à “confusão e desordem” da administração de Giró6. A 4 de julho de 1854 Herrera y Obes respondia concordando com a opinião do ex-ministro e que esperava uma atitude mais direta do Brasil7. Em 20 de novembro de 1854 foi relator de uma consulta da Seção dos Negócios Estrangeiros acerca de uma proposta uruguaia de reforma dos tratados de 1851 (por ele elaborados). Em linhas gerais, era proposta a abolição de qualquer tarifa sobre produtos dos dois países, concessão da navegação da Lagoa Mirim ao Estado Oriental, além de pedir novo subsídio. Segundo Paulino, os tratados de 1851 impuseram ao Brasil obrigações pelo que dizia respeito à independência do Estado Oriental. Porém, não estava tal matéria em discussão naquele momento. Em sua visão, o Brasil não se obrigou mas se comprometeu a prestar eficaz apoio para fortificar a nacionalidade oriental por meio da paz interior e dos hábitos constitucionais. Se tivesse se obrigado teria de dirigir diretamente os negócios internos. O fato de ter retirado os subsídios durante a administração de Giró não implicava um abandono da aliança por parte do Brasil. O governo imperial não estava obrigado a sustentar o oriental enquanto durasse sua penúria financeira. Mesmo considerando que não havia obrigação por parte do Brasil, ponderava que o Brasil mandara uma força militar para apoiar o governo de Flores pois se abandonasse à própria sorte “perderia grande parte das vantagens da posição adquirida pelo Brasil no Rio da Prata”8, correndo o risco de o Estado Oriental aliar-se com a Confederação Argentina ou com a França, o que seria nocivo à influência que pretendia que o Brasil ali exercesse. Segundo o parecer, o subsídio reclamado

2269

alimentava o mal ao invés de curar, sendo que somente um vultuoso empréstimo poderia dar ao governo oriental condições de arcar com suas dívidas. Assim, recomenda um minucioso exame para averiguar se tal medida poderia efetivamente solucionar os problemas antes de recusar a ajuda. Havendo dificuldades de obter da república o pagamento do empréstimo o Brasil poderia estipular a título de indenização o emprego de meios coercitivos como a ocupação de porções do território oriental até a completa satisfação das dívidas. Caetano Maria Lopes Gama apresentou voto separada afirmando que, desde 1851, votava contra a política instituída pelo ex-ministro no Rio da Prata9. Em 1855 Paulino foi agraciado com o título de Visconde de Uruguai. Quando o chamado gabinete da Conciliação o enviou para a Europa, mesmo à distância e tratando de uma outra questão, era constantemente consultado acerca dos negócios platinos. Em correspondência reservada ao Visconde de Abaeté, então ministro dos Negócios Estrangeiros, datada de 30 de junho de 1855, afirmava que conversara com o ministro francês a respeito do rio da Prata. Sua preocupação era a de afastar concorrências à influência brasileira na região. “Não mostrou o menor ciúme da nossa influência no Rio da Prata”. Segundo o visconde, seu interlocutor lhe dissera “pouco importava à França que o Brasil conquistasse, incorporasse Montevidéu, o Paraguai, Buenos Aires, e tudo o que quisesse”10. Em correspondência particular a Paranhos datada de 4 de outubro de 1855, Paulino tecia grandes reflexões acerca da política imperial na bacia platina. Afirmava cabalmente que expressaria seu pensamento porque o então ministro dos Negócios Estrangeiros assim havia solicitado. “A nossa posição me parece muito má. Se perderá nossa influência na República Oriental se ali rebentar a guerra civil, ou se essa República se lançar nas raias de Buenos Aires”. Considerava que o governo imperial deveria adotar uma política mais ativa e enérgica na Banda Oriental. “Que visto dar-mos lhe subsídio e forças, deveríamos exercer uma tutela mais direta nos seus negócios internos, especialmente financeiros”11. Considerava que o fato do gabinete ter enviado um representante a bordo de uma embarcação de guerra ao Paraguai “veio complicar mais as cousas”. O mais prudente segundo tal correspondência seria manter a influência na República Oriental e evitar novos conflitos. “Tenho um medo extremo de nos ver envolvidos em lutas cujo termo não se pode prever, ligados a poderes sem proceder, sem estabilidade, sem lealdade, sem futuro e sem recursos, cujos pactos não passam de folhas de papel”. Considerando as dificuldades em tratar com Urquiza e a intransigência do Paraguai no que dizia

2270

respeito aos limites e à navegação fluvial emitia a seguinte proposição: “cada vez me convenço mais de que no Estado Oriental está a chave da nossa política no Rio da Prata. Enquanto nele dominarmos estamos tranquilos nada receio”. Por fim, fazia um apelo a Paranhos de que mantivesse segredo acerca das suas opiniões a respeito da política que o gabinete da conciliação seguia: “É uma carta de amizade e não quero que vejam elas nas Câmaras, principalmente ao Visconde de Abaeté que tão leal e generosamente me auxiliou no Senado em 1851, 52 e 53 e a quem serei sempre eternamente grato”12. Após a Guerra Grande, o Império passou a ter uma estação naval no Prata, chefiada pelo Almirante Tamandaré, além de tropas estacionadas no Estado Oriental. A leitura dos Relatórios Ministeriais e pareceres do Conselho de Estado nesse período mostram, conforme mencionamos, como o Governo Imperial era constantemente chamado para intervir militarmente na República Oriental afim de manter ali governos aliados. Juntamente com isso, iniciou-se o acirramento de tensões com o Paraguai no tocante aos limites e navegação fluvial. Em linhas gerais, o Paraguai recusava-se a fazer um acordo de navegação fluvial com o Brasil sem regular os limites conforme o Tratado de 1777 defendido pelo Governo Paraguaio. O impasse levou o governo paraguaio, em 1853, a expulsar o representante diplomático brasileiro, Filipe Pereira Leal. No ano seguinte, a fim de obter satisfações da república e regular as questões pendentes, o governo brasileiro enviou uma missão diplomática chefiada por Pedro Ferreira de Oliveira, sendo essa acompanhada de uma força naval13. Tal missão obteve a satisfação pela expulsão do diplomata com vinte salvas de canhão dadas à bandeira imperial e a nomeação de um plenipotenciário paraguaio para negociar na corte a questão da navegação fluvial, adiando a solução dos limites14. Em 1855 foi estabelecido no Rio de Janeiro um ajuste com o Paraguai sobre a navegação fluvial. Todavia, o estabelecimento de regulamentos proibitivos para a passagem de navios brasileiros por seu território praticamente levou os dois países à guerra em 1856 15. Nesse período foram enviadas duas missões diplomáticas com o intuito de solucionar pacificamente a questão, sendo uma a cargo de José Maria do Amaral e outra de José Maria da Silva Paranhos. Amaral encontrava-se creditado na cidade de Paraná, então sede da Confederação Argentina. Partiu para Assunção levando em suas instruções 5 pontos cardeais das reclamações do governo imperial: a política dos regulamentos era considerada vexatória e ofensiva; deveria reclamar contra as longas escalas às quais ficavam sujeitas as embarcações; contra a obrigatoriedade de contratar práticos paraguaios; contra a carga de emolumentos exigidos; contra a soberania exclusiva que o Paraguai evocava por meio

2271

dos regulamentos à parte do rio compreendida entre o Apa e o Forte Olimpo, reclamada pelo Império16. O governo paraguaio mantinha-se intransigente quanto às reclamações brasileiras. Ante tal impasse, as negociações foram interrompidas em 17 de maio de 185717. Todavia, o Governo Imperial estava empenhado em ver suas reclamações atendidas. Assim, foi nomeada uma nova missão ao Paraguai chefiada pelo ex-minstro dos Negócios Estrangeiros, José Maria da Silva Paranhos. Em suas instruções, o ministro, Visconde de Maranguape mandava observar os regulamentos fluviais de outros países para que servissem de exemplo e Paranhos deveria consignar ao governo paraguaio que o Império não exigiria “nada que não estivesse disposto a conceder para a navegação dos rios do Brasil”. O Paraguai questionava o governo imperial acerca da movimentação de tropas que fazia. Em seu relatório, Maranguape afirma que tal movimento era feito em função dos preparativos bélicos que se faziam no Paraguai. “Sem desejar esse conflito, sem tê-lo provocado, o governo imperial excederia os limites da prudência e da moderação se não se preparasse para ele” 18. Segundo Maranguape, a missão de Paranhos a Assunção era o último recurso pacífico do governo imperial antes de lançar mão de meios coercitivos. Durante sua viagem, fez ajustes sobre a navegação fluvial com a República Oriental do Uruguai e com a Confederação Argentina afim de obter apoio ao pleito brasileiro. Francisco Solano Lopez foi nomeado como Plenipotenciário para tratar com o diplomata brasileiro. A missão logrou êxito, não rebentando a guerra naquele momento. O Império obteve uma reforma nos regulamentos. Foi revogada a obrigatoriedade dos práticos, passaram a haver duas paradas ao invés de três, foram abolidas as cobranças de emolumentos e foi reduzido o rol de documentos exigidos. Afora isso, ao invés de dois, passaram a ser três navios de guerra brasileiros poderiam passar pelo território paraguaio sem qualquer restrição quanto à sua carga e armamento19. Em correspondência a Paranhos datada de 3 de setembro de 1856, Amaral relata o medo de Andrés Lamas de que a República Oriental caísse em protetorado da França, mas que não se importaria com isso caso o Brasil nada fizesse para impedir. Afirma que tivera conferência verbal com o General Oribe que relatara que Lamas esperava o retorno do visconde do Uruguai para que esse assumisse o gabinete, pois o de Paraná seria dissolvido. Nessa ocasião teria lugar um plano do visconde de política para o Rio da Prata com o qual Lamas estava de acordo20. Em resposta datada de 16 de setembro de 1856, afirmava que Lamas não deveria nutrir esperanças na queda do gabinete nem mesmo nas opiniões do visconde.

2272

Importante atentar para as datas dessas cartas. A de Uruguai

citada

anteriormente com críticas ao gabinete é de 4 de outubro e a de Amaral a Paranhos de 4 de setembro. Levando em consideração o tempo que levavam para ir de um lugar ao outro e que o visconde do Uruguai estava em Paris, o pedido de opinião acerca da política platina ao qual respondia, poderia muito bem ter sido feito em decorrência da correspondência de Amaral a Paranhos acerca das vistas do ex-ministro. Desde que saiu do ministério, Paulino emitia pareceres na Seção dos Negócios Estrangeiros do Conselho de Estado, criticava o gabinete em suas correspondências, era consultado pelos ministros e mantinha estreita ligação com a política platina. Considerando esses fatores, aliados ao fato de que, em 1854, os saquaremas derrubaram no Senado um dos principais projetos do gabinete que era a reforma da Lei de 3 de dezembro de 1841. Juntamente com isso, o fato de a Carta de Poder com a qual o Visconde do Uruguai foi nomeado lhe conferia plenos poderes para negociar limites com a França e coma Inglaterra, verificamos indícios que essa nomeação não necessariamente estava ligada ao apreço que Paraná tinha por suas habilidades diplomáticas. Afinal, era conveniente ao ministério manter distante um ex-ministro crítico ao gabinete e que mantinha tamanha influência na marcha política. Os relatórios ministeriais da época dão uma visão clara do acirramento das tensões. Um dado relevante a ser investigado mais detidamente é que em uma das cartas de Amaral para seu irmão ele afirma cabalmente: “O chefe disse-me que o visconde de Uruguai vota pela guerra com o Paraguai e desaprova a missão especial que vai à Assunção”21. Várias hipóteses surgem quando comparamos com a carta a Paranhos acima citada: Amaral poderia estar hiperbolizando, ou o Visconde considerava que a situação brasileira no Prata havia se alterado a tal ponto que nem mesmo o domínio sobre o Estado Oriental estava garantido. No parecer citado na nota 19, o Visconde do Uruguai defende que seja reforçada militarmente a região próxima à fronteira com o Paraguai22. Em outra carta datada de 6 de janeiro de 1858 Amaral comentava o descontentamento do visconde do Uruguai em relação aos rumos que a política pra a região platina foi tomando. “O que é verdade é que ele nos deixou orgulhosos, triunfantes e dominantes em Caseros; e que hoje estamos humilhados, medrosos e quase suplicantes nestas regiões”23. Em 1857 Uruguai foi nomeado plenipotenciário para negociar com Andrés Lamas uma revisão dos Tratados de 1851. Conclui o Tratado e o mesmo não foi

2273

ratificado pelo Poder Legislativo da República Oriental. Antes ainda de ser nomeado para tal função diplomática já emitira em 1854 e 1857 pareceres na Seção dos Negócios Estrangeiros do Conselho de Estado acerca dos constantes pedidos de revisão dos tratados que a Legação Oriental fazia ao governo imperial. Dois anos depois foi novamente nomeado plenipotenciário para negociar com a Confederação Argentina e com o Estado Oriental o Tratado Definitivo de Paz previsto pela Convenção de 1828. Novamente não houve ratificação. Vemos já desde 1857 uma mudança na conjuntura política. Se em 1851 podia ameaçar com a guerra e invasão de territórios a inobservância de Tratados, em 1857 já não havia força para tanto. Em 24 de fevereiro de 1864, Uruguai emitiu Parecer na Seção dos Negócios Estrangeiros solicitado por Aviso do ministro Francisco Xavier de Pais Barreto (gabinete de 15 de janeiro do mesmo ano presidido por Zacarias de Góes e Vasconcelos) acerca do Tratado Definitivo de Paz. O visconde não poupou críticas aos seus sucessores afirmando que acumulavam “elementos que ameaçam tornar-nos à posição da qual tanto a custo saímos em 1851, em época mais propícia, porque imperiosa necessidade alheia deu-nos então alianças, com que não podemos mais contar hoje”24. Os protocolos dessas negociações de Tratados citadas acima foram publicados juntamente com o Relatório da Repartição dos Negócios Estrangeiros de 1858. Em correspondência ao então ministro dos Negócios Estrangeiros, Visconde

de

Maranguape, datada de 5 de novembro de 1857 afirmava que a demora na remessa dos protocolos “Proveio essa demora principalmente de que foi necessário suprimir algumas partes da discussão havida, e dispô-las por modo devido daqueles pelo qual tivera lugar”25. Tal afirmação do então plenipotenciário brasileiro ganha uma maior relevância quando consultamos os referidos protocolos. As três primeiras conferências com Lamas foram extensas e eivadas de divergências. Na quarta conferência que tivera lugar em 20 de julho de 1857, figura no protocolo um discurso de feições intimatórias por parte de Uruguai: “no caso em que a presente negociação não tivesse efeito, o governo imperial empregaria todos os meios ao seu alcance para fazer valer o seu direito” 26. Conforme vimos, foram suprimidos dos protocolos diversos trechos da discussão que de fato teve lugar. Não podemos sem acesso aos documentos manuscritos das conferências saber o que de fato ocorreu. Porém, é de grande relevância o fato de que na publicação dos referidos protocolos, após o trecho em que aparecer a afirmação citada, as desinteligências se tornam bem mais suaves e o Plenipotenciário da República Oriental abandona o tom incisivo de suas reclamações.

2274

Nesse período, também teve lugar a expedição de Thomas Jefferson Page (1855) da US Navy que encontrou uma série de embaraços em sua passagem pelo Paraguai. A despeito de ter contado com autorização do Império para navegar para além do porto de Albuquerque em Mato Grosso, não conseguiu ali chegar devido ao fato de o governo paraguio não ter autorizado o trânsito de sua embarcação. Ademais, nos anos entre a derrubada de Rosas e a Guerra do Paraguai, o Brasil investiu na construção de colônias militares perto de seus pontos fronteiriços como a de Itapura e em melhoramentos do Exército e da Armada. Torna-se primordial analisar a relação da configuração geopolítica platina criada em 1852 com o estopim da guerra. Faz-se necessário investigar como os diversos atores da política platina, incluindo aqui Estados Unidos, França e Grá-Bretanha se posicionaram nesse novo status quo. Para o Brasil, conforme a correspondência que o visconde do Uruguai mandava de Paris, era primordial não ter esses outros países como adversários da política brasileira no Rio da Prata. Um dado de grande relevância é o simbolismo por detrás da ruptura do governo uruguaio de Atanásio Aguirre com o Império do Brasil em 1864, já quando a guerra com o Paraguai estava prestes a rebentar. Tal rompimento teve como marca a queima em praça pública dos Tratados de 1851. Essa postura do presidente foi decisiva para que o Brasil passasse a reconhecer Venâncio Flores como legítimo governante, apoiando-o militarmente contra Aguirre. De 1851 até a primeira metade da década de 1860, o Estado Oriental havia solicitado diversos empréstimos e subsídios ao Brasil, que sempre ressalvando que o fazia por liberalidade e compaixão e não por ser a isso obrigado, atendia a tais pedidos. Em 1864, segundo o Relatório da Repartição dos Negócios Estrangeiros, a dívida uruguaia com o Brasil era tamanha que levaria mais de um século para ser paga caso houvesse uma pacificação interna naquela república.

1

Doutorando em História Social. Universidade de São Paulo Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) Orientadora: Profª.Drª. Monica Duarte Dantas. Email: [email protected] . 2 O primeiro Conselho de Estado foi criado ainda no Reino do Brasil sob o nome de Conselho dos Procuradores Gerais das Províncias do Brasil. Com a Constituição de 1824 foi recriado como Conselho de Estado. Composto por dez membros vitalícios nomeados pelo Imperador, sua audiência era obrigatória para que o monarca fizesse uso do Poder Moderador. Com a reforma da Constituição na década de 1830 foi extinto. Após a maioridade, foi novamente instituído, porém, por lei infraconstitucional, a Lei nº234 de 23 de novembro de 1841. Por não se tratar do mesmo Conselho da Constituição sua audiência era facultativa e não obrigatória. Sua composição era de 12 membros ordinários e 12 extraordinários, nomeados também pelo Imperador. O Regulamento nº 124 de 5 de fevereiro de 1842 dividiu o Conselho em quatro Seções: Império, Fazenda, Guerra e Marinha; Justiça e Estrangeiros. Compunham-se as Seções de três conselheiros, sendo suas reuniões presididas pelo ministro responsável pela pasta correspondente que não tinha direito a voto. A reunião de todas as Seções sob a presidência do Imperador era chamada de Conselho de Estado Pleno. O Imperador poderia convocar o Conselho Pleno quando lhe conviesse: seja

2275

para discutir mais amplamente um Parecer de alguma Seção, seja para consultar sobre assuntos urgentes da política. AUBERT, Pedro Gustavo. Entre as Idéias e a Ação: o Visconde do Uruguai, o Direito e a Política na Consolidação do Estado Nacional. Dissertação de Mestrado. São Paulo, FFLCH/USP, 2011, p.p.33-34. 3 Biblioteca Nacional, Coleção Tobias Monteiro. 63,04,001 nº 036. 4 Biblioteca Nacional, Coleção Tobias Monteiro. 63,04,001 nº 036. 5 Biblioteca Nacional, Coleção Tobias Monteiro. 63,04,001 nº 036. 6 Biblioteca Nacional, Coleção Tobias Monteiro. 63,04,001 nº 036. O Blanco Giró sagrou-se vencedor no pleito presidencial em que o Brasil apoiara a candidatura colorada de Cézar Diaz. Em 1852, mediante ameaça militar brasileira de apoiar uma rebelião chefiada por Diaz que iria depor Giró, os Tratados de 1851 com o Brasil foram reconhecidos e postos em execução. Finda a missão de Honório Hermeto Carneiro Leão, e ascendendo esse à Presidência do Conselho de Ministros, o governo blanco enfrentou forte instabilidade política. Os colorados exigiam maior participação no governo. O presidente asilou-se na Legação francesa e posteriormente na Legação brasileira, reclamando apoio militar brasileiro contra os insurretos. Foi estabelecido um governo provisório sob a chefia de Fructuoso Rivera, Venancio Flores e o general Lavalleja. O Brasil colocou em marcha da fronteira do Rio Grande do Sul para Montevidéu um efetivo de 4 mil homens “para “assegurar a sua existência, os direitos de todos os seus habitantes, a paz e a tranquilidade pública e o estabelecimento de um governo regular”. Venancio Flores foi eleito pela Poder Legislativo para completar o mandato de Giró. O Brasil enviou um Plenipotenciário à República Oriental a fim de reconhecer o novo governo. Relatório da Repartição dos Negócios Estrangeiros, 1853, p.p. XVIIXXX. 7 BR RJIHGB 77 ACP Visconde do Uruguai DL09,13. 8 REZEK, José Francisco. Consultas da Seção dos Negócios Estrangeiros. Volume 4 1854-1857. Brasília: Câmara dos Deputados/ Ministério das Relações Esteriores, 1981, p. 350. 9 REZEK, José Francisco. Consultas da Seção dos Negócios Estrangeiros. Volume 4 1854-1857. Brasília: Câmara dos Deputados/ Ministério das Relações Esteriores, 1981, p.p. 334-357. 10 BR RJIHGB 77 ACP Visconde do Uruguai DL 01,18.09. 11 BR RJIHGB 77 ACP Visconde do Uruguai DL 02,23. 12 BR RJIHGB 77 ACP Visconde do Uruguai DL 02,23. 13 Relatório da Repartição dos Negócios Estrangeiros, 1853, p. XLII. 14 Relatório da Repartição dos Negócios Estrangeiros, 1853, p. XLVIII. 15 O Império do Brasil havia aberto o porto de Albuquerque em Mato Grosso à todas as bandeiras. Os regulamentos obrigavam as embarcações a levarem a bordo um prático paraguaio que receberia em Assunção e nos postos militares da conceição, foz do Apa e Olimpo. Todas as embarcações deveriam obrigatoriamente realizar paradas em Assunção e nos postos militares do Serro Ocidental e do Forte Olimpo. Em cada um dos pontos deveriam ser obedecidas uma série de formalidades. A primeira parada era em Assunção. O capitão deveria ir à presença da autoridade militar paraguaia a apresentar o passaporte do navio, o rol de equipagem, o manifesto da carga e a lista dos passageiros. Cada passageiro independente da nacionalidade deveria exibir individualmente seus passaportes. O agente consular do Brasil em Assunção deveria vistar todos esses documentos para que fossem tidos por válidos. No Serro Ocidental os mesmos documentos deveriam ser apresentados à autoridade paraguaia, seriam recolhidos emolumentos pelos vistos. Essas mesmas formalidades eram também exigidas no Forte Olimpo, com a única diferença de que ali não eram cobrados emolumentos. Ao descer o Rio, esses documentos todos deveriam trazer o visto do cônsul do Paraguai em Mato Grosso. O comandante do Forte Olimpo quando da descida do Rio Paraguai perceberia emolumentos para visar e assinar a lista de passageiros. Afora isso, as embarcações estavam sujeitas a multas e mesmo à apreensão caso não cumprissem as formalidades exigidas pelos regulamentos. Relatório da Repartição dos Negócios Estrangeiros, 1856, p.p. 34-37. 16 Relatório da Repartição dos Negócios Estrangeiros, 1857, p.p. 30-31. 17 Em carta datada de 6 de janeiro de 1858, José Maria do Amaral relata ao seu irmão Angelo Thomás do Amaral um episódio que se passara durante sua missão. Dado o impasse, fez subir para Mato Grosso um navio em o prático paraguaio, desafiando Lopez que não abriu fogo contra a embarcação. “É que eu, na véspera, tinha-lhe dito em tom muito decisivo: ‘A primeira bala que eu amanhã lhe lançar em terra, em resposta às suas, será um ovo dentro do qual virá a revolução, que há de libertar os paraguaios’”. Cadernos do CHDD Ano 6, nº11. Brasília, FUNAG, 2008, p.118. 18 Relatório da Repartição dos Negócios Estrangeiros, 1857, p.37. 19 Relatório da Repartição dos Negócios Estrangeiros, 1857, p.p. 38-41. Em fevereiro de 1857 as Seções Reunidas dos Negócios Estrangeiros e da Fazenda foram consultadas acerca dos regulamentos fluviais da República do Paraguai. O Visconde do Uruguai foi designado como relator. Em seu parecer se vale das doutrinas de Direito das Gentes de Weathon e Kent, então em voga nos Estados Unidos para embasar a

2276

opinião de que o Paraguai não poderia fechar o trânsito fluvial ao Brasil. Mais ainda, afirma que era questão de tempo para que o Brasil fosse obrigado a abrir o Amazonas para os Estados Unidos e que sendo assim, não haveria razão para abrir a navegação amazônica e continuar privado da navegação platina. Em 1854 emitiu um parecer acerca da navegação amazônica no qual criticava os autores que passava então a defender, por considera-los como agentes do expansionismo territorial norte-americano. O que fica evidenciada é que das duas uma: ou Uruguai mudara de ideia, uma vez que a seu ver os gabinetes que o sucederam cometiam vários erros na condução dos negócios externos, ou então, temos aqui mais uma expressão de seu pragmatismo: criticava esses juristas quando era conveniente, e por outro lado os utilizava quando poderia auferir dividendos políticos com isso. REZEK, José Francisco. Consultas da Seção dos Negócios Estrangeiros. Volume 4 1854-1857. Brasília: Câmara dos Deputados/ Ministério das Relações Esteriores, 1981, p.p. 490-514. 20 Cadernos do CHDD Ano 6, nº11. Brasília, FUNAG, 2008, p.313. 21 Cadernos do CHDD Ano 6, nº11. Brasília, FUNAG, 2008, p.98. 22 Nesse intento, houve uma mobilização dos ministérios da Guerra e da Marinha para a criação de colônias militares próximo à referida região. 23 Cadernos do CHDD Ano 6, nº11. Brasília, FUNAG, 2008, p.118. 24 BRASIL, Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros. O Conselho de Estado e a Política Externa do Império: Consultas da Seção dos Negócios Estrangeiros: 1863-1867. Brasília: FUNAG, 2007, p.p. 8687. 25 Biblioteca Nacional, Coleção Tobias Monteiro, Doc. Nº 2.278. 26 Relatório da Repartição dos Negócios Estrangeiros, 1857, Anexo G, p.61.

2277

Entre a Revolução Cubana e a Literatura: Três Tristes Tigres de Guillermo Cabrera Infante e o contexto político revolucionário. Pedro Henrique Leite1

Resumo: Através da relação entre História e Literatura, o artigo propõe apresentar a obra Três Tristes Tigres (1967), do escritor cubano Guillermo Cabrera Infante, em meio ao contexto político da Revolução Cubana. O objetivo é apresentar possíveis relações entre texto e contexto, entendendo a obra como produto cultural intimamente ligado à sociedade em que foi produzida. Parto de algumas considerações importantes de historiadores como Enrique Krauze e Roger Chartier para, em seguida, estabelecer uma análise específica da obra em seu contexto. Palavras-Chave: Três Tristes Tigres; Revolução Cubana; Identidade. Abstract: Through the close relationship between history and literature, the article aims to present the novel Three Trapped Tigers (1967), by Guillermo Cabrera Infante, amid the political context of the Cuban Revolution. The objective is to present possible relationships between text and context, understanding the novel as a cultural good closely linked to the society in which it was produced. The text begins with some important considerations made by historians as Enrique Krauze and Roger Chartier, and then establishes a specific analysis of the novel in its context. Keywords: Three Tapped Tigers; Cuban Revolution; Identity.

1- Introdução: “Será

que

a

ficção

pode

iluminar

processos

históricos

complexos?

Definitivamente.” A afirmação, presente no ensaio “Morse e a Chave para Melville”, do 2

historiador mexicano Enrique Krauze, registra com sucesso o atual momento vivido no meio acadêmico de aproximação entre os campos histórico e literário, e representa igualmente uma injeção de ânimo aos pesquisadores interessados em uma abordagem histórica interdisciplinar. No ensaio, Krauze credita à Richard Morse (1922-2001), historiador norteamericano e brasilianista, o fato de tê-lo feito enxergar a capacidade da literatura em lidar com temas complexos da história americana e para a necessidade de aproximação entre esses campos. Mais do que o reconhecimento em si, o próprio ensaio de Krauze demonstra essa tentativa de afinidade do historiador frente às obras literárias, pensando-as como interessantes espaços de diálogo, e confirmando uma possibilidade distinta de enfoque. Seguindo o conselho do amigo norte-americano, ele realiza uma leitura do romance Benito Cereno, de

2278

Herman Melville, refletindo sobre o complexo processo de experiência histórica entre a América do Norte e a América Latina. Relembrando as palavras de Morse, ele justifica: [...] a labiríntica história das duas américas e da dialética entre ambas é complexa, escura, plástica; um selvagem laboratório de raças, crenças, valores, mitologias, heranças, condições sociais. Por isso é inapreensível por meio dos métodos acadêmicos convencionais. Temos que nos aproximar dela com o “olhar inocente”, com a “paixão, a emoção da vida, as ironias da ação, a persistência da moralidade, a desobediência social e as iluminações da fé”. Em uma palavra, temos que nos aproximar dela de mãos dadas com a literatura.3

Para ambos, o campo literário representa um dos meios mais eficazes para se entender a complexidade da história americana, é um modo de se acessar e melhor compreender as distintas realidades fundadas no passado do continente. Por meio da literatura é possível abrir espaço para um universo humano de paixões, emoções, ironias e práticas, atingindo possibilidades que normalmente não são alcançadas pelos documentos oficiais. Em abordagem complementar, Sandra Jatahy Pesavento define: A Literatura permite o acesso à sintonia fina ou ao clima de uma época, ao modo pelo qual as pessoas pensavam o mundo, a si próprias, quais os valores que guiavam seus passos, quais os preconceitos, medos e sonhos. Ela dá a ver sensibilidades, perfis, valores. Ela representa o real, ela é fonte privilegiada para a leitura do imaginário.4

Cabe então ao historiador extrair desse universo de possibilidades trazido pela literatura, respostas aos seus questionamentos. Um ponto de partida eficaz pode estar em perceber como os atores históricos criam suas representações do mundo social na literatura ou, como postulou Roger Chartier, como “uma realidade social é construída, pensada, dada a ler”.5 O romance torna-se então repositório de uma realidade fabricada, capaz de apresentar percepções da sociedade através do olhar comprometido de seu autor, dotado de estratégias e interesses específicos. A obra é fundada em uma realidade alternativa, um universo possível, traduzindo as “posições e interesses” de seus autores, e “[...] paralelamente, descrevem a sociedade tal como pensa que ela é, ou como gostariam que fosse.”6 Perceber tais intenções e interações não é tarefa simples, para isso é necessário ir além do texto buscando as conexões existentes fora dele. Em outros termos, é de fundamental importância que o historiador esteja atento às relações entre a produção cultural, o autor, e os contextos que os envolvem.7

2279

É pensando nessa íntima relação entre a obra e a sociedade em que foi produzida, entre texto e contextos, que busco estabelecer aqui uma apresentação da novela Três Tristes Tigres (1967),8 do escritor cubano Guillermo Cabrera Infante. O objetivo aqui, como indica a introdução, é perceber as relações do autor e de sua obra em meio ao complexo contexto político dos primeiros anos após a Revolução Cubana (1959), dando especial destaque à relação conturbada de Cabrera Infante com o governo cubano, que resultou em sua partida para o exílio em 1965, do qual nunca mais retornou. A intenção aqui não é a de esgotar uma análise sobre o romance, tampouco oferecer uma interpretação definitiva, busco levantar sistematicamente alguns pontos que considero importantes para a leitura da obra em seu contexto. 2- Três Tristes Tigres - Enredo. Em Três Tristes Tigres o objetivo do autor pode ser resumido da seguinte forma: Guillermo Cabrera Infante deseja recriar todo o ambiente noturno de Havana, sua obra é uma “celebração da noite tropical”,9 e para realizar esse feito ele parte do relato múltiplo de personagens variados vivendo situações igualmente variadas. A linguagem é parte integrante de seu objetivo final: para falar da noite em Havana é necessário transpor a linguagem de seus habitantes, suas gírias e neologismos; dessa maneira Infante adverte: “Este é um livro escrito em cubano. Ou seja, escrito nos diversos dialetos do espanhol que são falados em Cuba, e a escrita não é mais do que uma tentativa de captar, como se diz, a voz humana em pleno voo.”10 Como numa pintura barroca que convida o expectador a participar da cena retratada traspondo os limites físicos da tela, Infante convida o leitor a participar da noite havanesa através do som, ao advertir que em alguns momentos é “preferível ouvir algumas palavras em vez de lê-las”, não sendo uma má ideia para o leitor “lê-las em voz alta”.11 Dessa forma, o aspecto do som que as palavras possuem é ressaltado, é parte integrante da narrativa e funciona como um artifício criado pelo autor para dar contada realidade que pretende expor. No romance as sequências de pequenas histórias narradas acabam dando o efeito de películas de cinema, em que cada quadro colocado em perspectiva acaba gerando o efeito de movimento. Histórias de pessoas simples e alegres, dadas à fofoca, de trabalhadores sujeitos ao imprevisto (como na história de Arsênio, um dos personagens, que busca uma oportunidade de emprego na casa de um sujeito rico e acaba levando um tiro em meio a uma desavença), histórias de crianças rumo ao cinema, de adolescentes inquietos e desejosos em

2280

aproveitar a noite, enfim histórias de pessoas comuns com seus dilemas, seus vícios, e soluções. Na segunda parte do romance Cabrera Infante dedica-se a explorar o lado estético da escrita, sua busca é romper com a lógica narrativa, expandindo os limites da escrita de uma forma que lembra muito o exercício narrativo realizado por James Joyce em Ulysses. Mas Infante é mais provocador, seu romance então transmuta-se em ferramenta crítica do modo descritivo de outros intelectuais cubanos contemporâneos a ele. Em cada capítulo ele emula um estilo narrativo diferente, num exercício que visa ao mesmo tempo superar o estilo narrativo de seus pares, e estabelecer uma crítica aos mesmos. Alejo Carpentier, seu nêmesis político, nesse momento torna-se seu alvo favorito. Mais que um exercício estético-literário seu romance deseja resgatar um universo que já não faz parte da sua vida, um mundo que foi perdido por força das circunstâncias políticas. As imagens criadas por Infante em cada página do romance são dotadas de um ar saudoso e melancólico que tornam-se ainda mais evidentes quando pensadas em conjunto com a sua trajetória de vida. 3- Guillermo Cabrera Infante, a Revolução, e o contexto de publicação. Nascido em 22 de abril de 1929, em Gibara, pequena cidade da província de Oriente (hoje parte da província de Holguín), Guillermo Cabrera Infante esteve desde muito cedo envolvido com a conturbada vida política em Cuba. Filho de Guillermo Cabrera e Zoila Infante, o escritor passou a infância entre idas e vindas em decorrência da atividade panfletária de seus pais, fundadores do Partido Comunista Cubano. Em 1941 a família se muda para a capital Havana, cidade que adquire grande importância para Guillermo, transformando-se no centro gravitacional de sua adolescência e fase adulta. Em 1950 ingressa na Escola Nacional de Jornalismo e, em 1952, após o segundo golpe de estado de Fulgêncio Batista, é encarcerado, multado e forçado a se afastar da instituição de ensino por dois anos, em decorrência de uma publicação censurada na revista Bohemia. Entre 1957 e 1959, seguindo a crescente linha política anti-Batista, participa ativamente das atividades revolucionárias, seja escrevendo para a imprensa clandestina ou preparando a primeira reunião entre os comunistas e o Diretório Revolucionário. A partir de 1959, com o sucesso da Revolução, ocupa por breves momentos cargos distintos no novo governo: torna-se editor do diário semioficial Revolución, chefe do

2281

Conselho Nacional de Cultura e executivo do recém- criado Instituto de Cinema; funda em seguida Lunes, o suplemento literário de Revolución, e participa das comitivas cubanas em viagem pela União Soviética, Alemanha Oriental e Tchecoslováquia. Em 1961 iniciam seus problemas com o Governo. Em 16 de abril, Fidel Castro realiza o discurso que afirmava o caráter socialista da Revolução, o que resultou na famosa tentativa de invasão da Baía dos Porcos nos dias que se sucederam. Cabrera Infante naquele episódio trabalhava como correspondente de guerra. As tensões aumentavam cada vez mais, e a intransigência, que antes era direcionada contra o inimigo externo, Ianque, agora tomava o rumo inverso, afetando a própria intelectualidade e a produção cultural cubana: em 30 de maio, o Instituto Cubano Del Arte e Industria Cinematograficos (ICAIC), através de seu presidente, Alfredo Guevara, proibiu a exibição e circulação do curta-metragem P.M. (Pasado Meridiano), uma coprodução de Sabá Cabrera Infante (irmão de Guillermo) e Orlando Jiménez Leal, sobre a noite de Havana. Em resposta, os colaboradores e editores da revista Lunes organizaram um protesto por escrito assinado por mais de duzentos escritores e artistas. O jogo de forças havia se iniciado. O Governo decidiu então adiar o Primeiro Congresso de Escritores e Artistas de Cuba, e realizou uma série de diálogos com intelectuais – reuniões presididas por Fidel Castro e acompanhadas pelo presidente em exercício, Osvaldo Dorticós Torrado. O resultado dos diálogos resultou numa sentença clara: o filme de Sabá e Orlando continuaria proibido, e agora também a revista Lunes deixava de ser publicada. Sobre o caso da proibição de P.M., Guillermo Cabrera Infante escreveu: P.M. foi a primeira obra de arte em Cuba que sofreu acusações de caráter político, foi levada a julgamento histórico e foi por fim condenada como contrarevolucionária. O fato de não ter havido réu mais inocente na história das relações entre o governo revolucionário cubano e a cultura do país só enfatiza, se não a natureza, pelo menos o destino eleito como único por um processo histórico que começou como paradigma da liberdade e que a cada dia parece mais univocamente totalitário. O julgamento político a que P.M. foi submetido, e também seus realizadores e defensores, não parou por aí. Dez anos depois ainda eram perseguidos muitos dos que tinham participado daquele processo, por crimes tão diversos quanto ‘infantilismo de esquerda’, ‘homossexualismo’ ou ‘solicitação de emigração contra-revolucionária’. Isso é um sinal de que as acusações contra P.M. eram etiquetas para encobrir um desígnio, mais que político, policial.12

A partir do caso P.M. o recado estava dado. Fidel Castro assumia pouco a pouco o papel controlador, com autonomia para decidir em última instância o que deveria, ou não,

2282

ser publicado, e o que se considerava contra-revolucionário ou não. Era o início de um novo período, garantido e reafirmado em junho daquele mesmo ano, em discurso aos intelectuais realizado na Biblioteca Nacional: “¿Cuáles son los derechos de los escritores y de los artistas, revolucionarios o no revolucionarios? Dentro de la Revolución, todo; contra la Revolución, ningún derecho.”13 Um fato relevante, decorrente da censura ao documentário P.M., foi a posição tomada por Guillermo Cabrera infante ainda no mesmo ano do episódio. Incitado pela atitude do Governo, ele inicia a escrita de Ella cantava boleros, um conto que tinha por objetivo ser uma continuação de P.M. num formato diferente. Ao invés do vídeo, como fizera seu irmão, ele escolhia o papel. O aspecto fundamental é que Ella cantava boleros se transformaria alguns anos depois em Três Tristes Tigres, sua obra prima. Em 1962, Cabrera Infante foi enviado pelo governo como adido cultural à Bélgica, onde permaneceu até 1965. Neste ano, retornou à Havana para o funeral de sua mãe, e foi a partir dessa experiência de retorno que decidiu-se pelo exílio. Ele explicava: Ainda na Bélgica eu sentia falta de Cuba, de sua paisagem de seu clima, de sua gente, sentia uma saudade da qual ainda não me livrei, e só pensava em voltar. Mas um país não é só geografia. É também história. Quando voltei, nessa primeira semana em que ainda não podia compreender que minha mãe desaparecera para sempre, soube, ao mesmo tempo, que o lugar de onde eu tinha vindo ao mundo estava tão morto quanto o lugar a que viera. Eu não conseguia reconhecer Havana [...]. Em Cuba, a lua brilhava como antes da Revolução, o sol era o mesmo, a natureza emprestava a tudo sua vertiginosa beleza. A geografia era a mesma, estava viva, mas a História tinha morrido.14

E complementando: Sabia (e dizia isso a quem quisesse ouvir), antes de regressar, que em Cuba não se podia escrever, mas pensava que era possível viver, vegetar, ir adiando a morte, protelar todos os dias. Uma semana antes de voltar já sabia que não só não poderia escrever em Cuba, como também não poderia viver.15

Desiludido e desejoso em voltar à Europa, Cabrera Infante contraria um pedido de espera do Governo cubano, e parte em fuga com as duas filhas em um voo no dia 3 de outubro de 1965. Dos bem materiais, levava apenas uma maleta, algumas fotografias e os manuscritos de Vista do Amanhecer no Trópico e do que no futuro próximo seria Três Tristes Tigres. No exílio (onde permaneceu até a morte em 2005) dedica-se plenamente à literatura e em 1966 entrega o manuscrito revisado e ampliado de Três Tristes Tigres ao seu editor, e o livro é enfim, publicado oficialmente no início ano seguinte.

2283

4- A Recepção de Três Tristes Tigres O romance Três Tristes Tigres gozou de atestado sucesso ao redor do mundo. Mesmo antes de receber o famoso título/trava línguas e de ter sua edição revisada e ampliada, já recebera em 1964 o “Premio Biblioteca Breve”. Após a publicação da versão final na Espanha em 1967, sua tradução para língua inglesa foi lançada em 1971 sob o título de Three Trapped Tigers. No mesmo ano, a tradução francesa, Trois Tigres Tristes, recebe em Paris o “Prix du Meilleur Livre Étranger”. O sucesso do livro resultou evidentemente em viagens por todo o mundo: em 1988 Infante visita a Alemanha, onde descobre que Três Tristes Tigres foi sucesso de crítica e de vendas; e no mesmo ano vem ao Brasil, numa viagem que ele definiu como: “[...] uma conversa memorável em São Paulo. Ao fundo, música brasileira. Visita a Bahia, uma cidade de bruxas, e o Rio, que não era o que havia sido.”16 Em 1989 a versão sem censura do romance foi publicada pela primeira vez em espanhol, em Caracas, tornando-se livre em todos os lugares. Exceto Cuba, onde, como ele afirma categoricamente: “sem dúvida, a nova geração de escritores o copia e o decalca.” 17 A ilha caribenha realmente é um caso à parte. A condição de persona non grata de Infante garantiu o veto oficial às suas obras. Após sua fuga para o exílio ele conta: O malho do caimão foi seguido e precedido de outros ataques mais diretos: calúnias pessoais e políticas, negação do visto para trabalhar na UNESCO, confisco de livros enviados pelo correio, minuciosa inspeção da correspondência familiar e deliberada perseguição literária. Para mim isto não teve nem tem importância, e me agrada que TTT tenha se transformado em leitura underground - isso me parece um privilégio. (Alguém, TEM, me corrige a tempo: ‘Mas o seu livro está na biblioteca da Casa de las Américas’. Correção de uma correção: em Berlim Oriental vi uma biblioteca, ironicamente chamada Humboldt, onde era possível encontrar ‘todos os livros’, segundo o apropriado lapso do intérprete, ‘inimigos do povo’, de Adorno a Zinoviév, passando por Nietzsche, Heidegger, Kafka, Sartre, Bertrand Russell – e pelos dois que na época eram mesmo –, Koestler e Adolf Hitler. ‘Sempre que se demonstre necessidade de lê-los’ acrescentou o intérprete, ‘e o solicitante se responsabilize dando seu nome, endereço, ocupação e motivo da leitura.’)18

Dentre as diversas formas de repressão e controle ligadas à Três Tristes Tigres em Cuba ele cita mais três casos. O primeiro, o de um romancista europeu que é convidado a participar em Havana de um debate sobre literatura cubana na TV, com o acordo de não mencionar o nome de Cabrera Infante: “O hóspede é bem educado e cumpre sua palavra, mas com lealdade pessoal e honestidade exemplares (ou suicida, no mundo comunista) fala de Três Tristes Tigres.”19 Não se sabe ao certo se o personagem narrado sofreu algum tipo de

2284

represália por ter simplesmente comentado sobre o livro, mas o segundo caso reforça essa possibilidade: Olga Andreu, bibliotecária, coloca meu romance numa lista de livros recomendados pela democrática biblioteca da Casa de las Américas, no boletim que ela dirige, e poucos dias depois é afastada do cargo e condenada a uma lista de dispensados, o que significa um futuro terrível, porque não poderá mais trabalhar em cargos administrativos e sua única saída é pedir para trabalhar no campo como ‘voluntária’.20

Em seguida, o autor complementa: “Olga Andreu depois suicidou-se”. O terceiro e último caso de represálias do Governo correlacionadas à sua obra, envolve o também escritor Heberto Padilla. Infante revela que antes de toda a confusão decorrente do posterior “Caso Padilla” (em que Padilla e sua mulher foram presos, acusados de atividade contrarrevolucionária, mas depois liberados devido às pressões internacionais de grandes intelectuais), Heberto escreveu um elogio a Três Tristes Tigres e a partir daí, numa postura desafiante em relação ao comitê diretor da União de Escritores e Artistas de Cuba (UNEAC) deu início a toda a contenda que resultou em sua prisão.21 Ainda que os livros de Infante, especialmente Três Tristes Tigres tenham sido colocados no index cubano, internacionalmente o sucesso esteve garantido. O livro que traz como proposta ser uma “celebração da noite tropical”, garantiu ainda a Cabrera Infante o Prêmio Cervantes em 1997, e em 2001 o Prêmio União Latina, pelo conjunto de sua obra. 5- Identidade e Exílio Um dos pontos característicos de Três Tristes Tigres é o fato de representar um esforço por parte de Guillermo Cabrera Infante em resguardar sua memória da terra deixada para trás. O exilado, que no momento de fuga, leva consigo apenas o indispensável, precisa acessar o campo da memória com muito mais frequência e precisão, para que não esqueça suas origens e raízes. Uma vez separado de sua terra, resta-lhe apenas rememorar, e rememorar para o exilado é uma experiência sempre árdua e dolorosa, em grande parte saudosista e ao mesmo tempo reveladora. Como afirma Jacobo Machover: “El exilio condiciona la memoria, única forma de conservar la tierra, la del nacimiento, la de la lengua materna, meros recuerdos de una vida anterior.”22 A terra deixada para trás torna-se uma obsessão para a memória, a ponto de tornar-se uma idealização, um sonho que foi vivido, mas cujo retorno é impossível de ser alcançado, o drama apresenta contornos épicos. Prova disso é que em Três Tristes

2285

Tigres,

Infante estabelece uma relação entre Cuba e Ítaca, a terra natal de Odisseu (também uma ilha), para a qual ele retorna posteriormente. A comparação revela o intenso drama do exilado uma vez que Odisseu mesmo com todos os infortúnios de sua jornada consegue retornar a terra de origem, destino que Cabrera Infante jamais teve. A obsessão pela terra de origem é confessada por Cabrera Infante logo no início da novela numa nota biográfica. Ele revela que em sua memória alguns temas tornam-se recorrentes, dignos de paixão: “Havana, [...], a literatura, a gíria da cidade, as havanesas, as matinês, o bolero radical, o movimento dos carros no Malecón, e também a nostalgia e a noite”.23 Essa espécie de tensão entre saudosismo\melancolia presente em Três Tristes Tigres revela o drama de Cabrera Infante, uma dor que somente a experiência do exílio é capaz de criar. Edward Said, intelectual que também experimentou ao longo da vida a dura experiência do exílio afirmou em Reflexões sobre o exílio e outros ensaios (2003) que: “Ver um poeta no exílio [...] é ver as antinomias do exílio encarnadas e suportadas com uma intensidade sem par”.24 O exílio apresenta-se como um fardo pesado a ser carregado, um fato indesejado mas presente em cada minuto da vida do exilado. A literatura, como representação do mundo social, por si só não dá conta da real dor do exilado, ela fornece indícios, caminhos, ajuda-nos a refletir a respeito, mas sempre deve ser vista como um tipo de representação. Ainda assim, é o caminho mais próximo para se acessar os dramas humanos: “embora seja verdade que a literatura e a história contêm episódios heroicos, românticos, gloriosos e até triunfais da vida de um exilado, eles não são mais do que esforços para superar a dor mutiladora da separação. As realizações do exílio são permanentemente minadas pela perda de algo deixado para trás para sempre.”25

Ao fim da leitura de Três Tristes Tigres é possível perceber o esforço de Cabrera Infante em lidar com essa dor, mas é necessário seguir adiante, notando que além da dor o autor também supera outro fato comum ao exilado: o ostracismo. Como revela em nota ao fim do romance: “O chefe da Contrainteligência cubana havia declarado que GCI só sairia de Cuba por cima de seu cadáver. Esse policial da inteligência morreu há pouco em um acidente que o converteu em um profeta, para seu pesar. Ele está no além e eu estou aqui[...]”26 Irônico, saudoso, marcado pela dor, Cabrera Infante vive para contar sua história, para saudar Cuba do outro lado do atlântico através de Três Tristes Tigres.

2286

1

Doutorando pelo Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora, vinculado à linha de pesquisa Narrativas Imagens e Sociabilidades. Orientado pela Prof.ª Dr.ª Beatriz Helena Domingues. Email: [email protected]. 2 KRAUSE, Enrique. “Morse e a chave para Melville”. In: DOMINGUES, Beatriz (Org.). O código Morse: ensaios sobre Richard Morse. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010, p. 269. 3 KRAUSE, Enrique. “Morse e a chave para Melville”. In: DOMINGUES, Beatriz (Org.). O código Morse: ensaios sobre Richard Morse. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010, p. 275. 4 PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & história cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2004, p.50. 5 CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990, pp. 16-17. 6 CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990, p. 19. 7 Prefiro aqui o uso de “contextos”, no plural, seguindo a perspectiva de Dominick LaCapra para se analisar textos complexos, como os literários. Ele enumera alguns deles: 1) a relação entre as intenções do autor e o texto; 2) a relação entre a vida do autor e o texto; 3) a relação da sociedade com os textos; 4) a relação da cultura com os textos; 5) a relação de um texto com o corpus de um escritor; 6) a relação entre modos de discurso e textos. Cf. em: LACAPRA, Dominick. Repensar la historia intelectual y leer textos. In: PALTI, Elías José. Giro linguístico e história intelectual. Buenos Aires: Universidad Nacional de Quilmes, s/d. pp. 253-293. 8 INFANTE, Guillermo Cabrera. Três Tristes Tigres. Trad. Luís Carlos Cabral. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 2009. 9 INFANTE, Guillermo Cabrera. Três Tristes Tigres. Trad. Luís Carlos Cabral. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 2009, p.7. 10 INFANTE, Guillermo Cabrera. Três Tristes Tigres. Trad. Luís Carlos Cabral. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 2009,p.15. 11 INFANTE, Guillermo Cabrera. Três Tristes Tigres. Trad. Luís Carlos Cabral. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 2009,p.15. 12 INFANTE, Guillermo Cabrera: Mea Cuba. Trad. Josely Vianna Baptista. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.68. 13 CASTRO, Fidel. “Palavras a los intelectuales”. Ministério da Cultura, República de Cuba. 1961. Disponível em: http://www.min.cult.cu. Último Acesso em: 25/09/2015. 14 INFANTE, Guillermo Cabrera: Mea Cuba. Trad. Josely Vianna Baptista. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.29. 15 INFANTE, Guillermo Cabrera: Mea Cuba. Trad. Josely Vianna Baptista. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.30. 16 INFANTE, Guillermo Cabrera. Três Tristes Tigres. Trad. Luís Carlos Cabral. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 2009, p.515. 17 INFANTE, Guillermo Cabrera. Três Tristes Tigres. Trad. Luís Carlos Cabral. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 2009, p.515. 18 INFANTE, Guillermo Cabrera: Mea Cuba. Trad. Josely Vianna Baptista. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.27. 19 INFANTE, Guillermo Cabrera: Mea Cuba. Trad. Josely Vianna Baptista. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.27. 20 INFANTE, Guillermo Cabrera: Mea Cuba. Trad. Josely Vianna Baptista. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, pp.27-28. 21 INFANTE, Guillermo Cabrera: Mea Cuba. Trad. Josely Vianna Baptista. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 28. 22 MACHOVER, Jacobo. La Memoria Frente al Poder Escritores Cubanos Del Exilio: Guillermo Cabrera Infante, Severo Sarduy, Reinaldo Arenas. Valencia: Universitat de València, 2001, p.18. 23 INFANTE, Guillermo Cabrera. Três Tristes Tigres. Trad. Luís Carlos Cabral. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 2009, p.7. 24 SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p.47. 25 SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 46 26 INFANTE, Guillermo Cabrera. Três Tristes Tigres. Trad. Luís Carlos Cabral. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 2009, p.506.

2287

Miguel Reale e o corporativismo integralista: uma via de análise para a contextualização do Estado Novo Pedro Ivo Dias Tanagino1

RESUMO Este trabalho aborda o pensamento corporativista de Miguel Reale durante seus anos como um dos principais intelectuais da Ação Integralista Brasileira (AIB), entre 1932 e 1937. Analisamos o corporativismo integralista com vistas a anuançar as análises sobre o contexto de emergência do Estado Novo no Brasil, buscando abrir escopo para uma compreensão conceitual do período Entreguerras no país, através da interpretação linguística e contextualista do pensamento político da época da Constituição de 1937.

Palavras-chave: Corporativismo. Miguel Reale. Integralismo.

ABSTRACT This paper discusses corporatist thought of Miguel Reale during his years as one of the leading intellectuals of Ação Integralista Brasileira (AIB), between 1932 and 1937. We analyze the Integralist corporatism in order to tint the analysis on the emergency context of the Estado Novo in Brazil , seeking to open up scope for a conceptual understanding of the interwar period in the country, through linguistic and contextual interpretation on political thought in the time of the Constitution of 1937.

Keywords: Corporatism. Miguel Reale. Integralism. Priorizamos neste artigo uma abordagem lingüística e contextualista das fontes históricas, aceitando que os conflitos sociais e políticos do passado devem ser lidos e interpretados através do horizonte conceitual existente e mutuamente compartilhado e desempenhado linguisticamente pelos atores sociais que participaram desses conflitos. Sendo assim, a escolha pelo objeto de estudo, a análise das relações entre textos e seus contextos de

1

Mestre em História (UFJF). Doutorando em História (UFJF), orientado pela Profa. Dra. Cláudia Maria Ribeiro Viscardi (UFJF), e co-orientado pelo Prof. Leandro Pereira Gonçalves (PUC-RS). Pesquisa realizada com financiamento CAPES. E-mail: [email protected]

2288

emergência, bem como as abordagens das fontes, privilegiam acima de tudo os usos da linguagem no artifício do mundo político e sociali. Dentro desta perspectiva de uma abordagem lingüística contextualista, Cepêda nos sugere que as cartas constitucionais são textos privilegiados que nos falam obre os momentos de mudança em que foram criados e, simultaneamente, “locus de enfrentamento entre as forças sociais que disputam a direção política da sociedade através do Estado e de sua abstração máxima – a Magna Lei”ii. Nesse sentido, delimitamos nosso recorte entre os anos de 1932 - marco de fundação da AIB e do pensamento integralista oficialmente criado, sobressaltando a produção de Reale – e 1937, quando a AIB e os outros partidos foram dissolvidos, logo nos primeiros decretos do recém implantado Estado Novo varguista. Em geral, a Era Vargas é vista por nossa historiografia como um período de transição de um sistema de base agroexportadora com instituições marcadas pelo pacto intra-oligárquico, para outro de base urbano-industrial, sob um regime político de tipo nacionalista e autoritário, fundamentado nos pilares jurídico-institucionais do corporativismo estatal. Sua ação modernizadora, entretanto, se mostraria não apenas na reformulação do Estado, mas especialmente em seu plano institucional e em suas relações com a sociedadeiii. Juán J. Linz, em sua clássica definição do conceito de “autoritarismo”, pontua algumas das características mais elementares desse tipo de regime. Primeiramente, as limitações ao pluralismo político, visto que são poucas as organizações autorizadas a exercer o poder político, devendo ser legitimadas pelos altos escalões, possuindo autonomia limitada e nunca entram em concorrência. A ausência de responsabilidade, isto é, as organizações legitimadas pelo Estado não

respondem perante nenhum eleitorado ou outras bases sociais, subordinando-se somente às hierarquias internas dos órgãos do regime. A mentalidade frente à ideologia, ou seja, os regimes autoritários possuiriam mentalidades flexíveis, mas não ideologias de fato. Linz faz essa distinção, pois defende um conceito de “ideologia” como um sistema de pensamento bem definido e codificado. Apatia frente à mobilização, sendo esses regimes relutantes e em certa medida incapazes de manter um estado de mobilização permanente das massas, preferindo, assim que se estabelece no poder, manter baixos os níveis de participação popular e, se possível, seu alheamento dos assuntos públicos. Por fim, o autor ressalta a relação entre o partido autoritário e a liderança carismática como algumas das formas básicas de controle social exercidas tipicamente por esses regimesiv.

O crescimento do autoritarismo no pensamento político da época está diretamente ligado ao projeto de “modernização conservadora” do país. Foi defendido pelos tenentes, alinhados com o governo ou não, pela AIB e outros grupos, incluindo entre as esquerdas, que também competiam pela tomada do Estado. Nesse “caldo de cultura” formado no pensamento político e

2289

social do período (cozinhado no fogo da industrialização tardia), o Estado era visto como o protagonista responsável por direcionar a modernização “de cima para baixo” com a direção da economia, da educação e cultura e controlando a ordem social e produtiva com a constituição das corporações ligadas fisiologicamente ao Estado. Mas, nos perguntemos, por que o corporativismo foi considerado a opção mais pertinente ao caso brasileiro e como a AIB pode ter contribuído para a criação de um cenário favorável para a outorga da Constituição de 1937 que inaugurou a ditadura do Estado Novo? No pontificado de Leão XIII (1878-1903), a encíclica papal De rerum novarum (1891) se tornou fundamental para a doutrina social da Igreja. Em 1931, as orientações da De rerum novarum foram reafirmadas pela encíclica Quadragesimo anno, emitida pelo papa Pio XI, tornando a doutrina social da Igreja numa corrente com grande influência sobre governos, partidos e movimentos políticos e intelectuais na época. Com essa doutrina, a Igreja propôs formas tradicionais de associação, como as “corporações”, como forma de superar a luta de classes, sugerindo um Estado que atenuasse a sanha dos capitalistas, garantisse direitos aos trabalhadores, mas acima de tudo, preservasse a ordem social. De acordo com o Francisco Carlos Teixeira da Silva, o corporativismo seria, assim, “indissoluvelmente ligado à doutrina social da Igreja”v. No entanto, Durkheim foi um dos pioneiros na formulação do contemporâneo conceito de corporativismo, com fundamentos teóricos e estruturais bem diversos de sua versão na época Medieval e Moderna. Diante dos dilemas econômicos e sociais inerentes à era industrial, o sociólogo francês propôs a organização corporativa da sociedade contemporânea visando equilibrar a desigualdade social e progresso econômico. Os grupos profissionais, associados em corporações integradas ao Estado, exerceriam um “poder coletivo de caráter moral”, que seria capaz de disciplinar os indivíduos e influenciar as decisões estatais, tornando-se, segundo tal modelo, uma das bases essenciais da organização políticavi. O economista romeno Mihail Manoilesco, autor do maior libelo do pensamento corporativista, O século do corporativismo (1936), nega que o corporativismo seja meramente um mecanismo de defesa temporário para mobilização e/ou proteção contra o egoísmo de classe, que poderia desaparecer quando a conjuntura de ameaça passasse. Pelo contrário, ele o apresenta como uma forma institucional permanente, que não está intrinsecamente ligado ao interesse de uma classe social em particular ou à manutenção do status quo, sendo mesmo capaz de sublimar interesses particulares para priorizar realizações nacionais e, eventualmente, transformar a base capitalista da sociedadevii.

2290

Conforme Philippe Schmitter, o corporativismo pode ser definido como um sistema de representação de interesses cujas unidades constitutivas do mundo da produção são organizadas dentro de um número limitado de categorias com caráter singular, compulsório, não-competitivo, hierarquicamente ordenadas e funcionalmente diferenciadas, reconhecidas ou permitidas (quando não criadas) pelo Estado e garantido um deliberado monopólio da representação dentro de suas respectivas categorias em troca de certa margem de controle do Estado na seleção de líderes e na articulação entre demandas e apoiosviii. Nenhum sistema de representação de interesses empiricamente existente pode perfeitamente reproduzir todas estas dimensões, embora dois dos que o autor investigou com maiores detalhes (Brasil e Portugal) cheguem bem pertoix. Schmitter enfatiza o caso brasileiro, afirmando que o sistema de representação de interesses montado no Brasil da Era Vargas foi um dos que mais se aproximaram do conceito de corporativismo definido pelo autor em seu tipo idealx. No entanto, na historiografia brasileira são fortes as opiniões, como a de

Luiz

Werneck Vianna, de que esse corporativismo estatal jamais teria se realizado de forma plena, apesar da sua complexa estrutura institucional posta em funcionamentoxi. Em outras palavras, como também admitiu Oliveira Vianna na época, pode-se dizer que o corporativismo se constituía numa tendência determinada pelo próprio Estado, numa perspectiva de futuro para o Brasil, mas não exatamente numa realidade política e institucional do regime de Vargas. No Brasil, as propostas tenentistas, em alguma medida, ajudaram a divulgar o corporativismo na década de 1920, apropriava-se de um longo debate dentro do pensamento social brasileiro, questionando a validade das instituições liberais democráticas, e assim, buscavam pensar o Estado a partir da idéia orgânica de nação e não do indivíduo no individualismo. Essa tradição de pensamento remonta autores como Sílvio Romero, Tavares Bastos, Manoel Bonfim, Alberto Torres, Oliveira Vianna, Azevedo Amaral, entre outros. Sendo assim, poderíamos presumir que, embora a questão da “representação corporativa” (denominação de maior uso e conteúdo que “representação classista”, “profissional” ou “sindical”) tenha sido abraçada por grupos próximos à concepção das contradições fatais e inelutáveis entre as classes, a verdade é que ela também apareceu como paliativo para mitigar o ímpeto revolucionário das massas trabalhadoras naquele momentoxii. Nos grupos do pensamento corporativista, a questão da representação por classes é controversa. Aparecem quesitos como “grupos sociais”, “profissões”, “setores produtivos”, “ramos econômicos”, “trabalhadores/empresários”, dispersos ou apresentados em arranjos entre economia, níveis de administração com formas de representação

2291

(empresas/atividades,

município/estados/federação, democracia direta/democracia representativa). Diante dessa gama de possibilidades, o que parece como central no conceito é a concepção da ontologia social que ele traz: “a sociedade é a composição de partes funcionais e não dos indivíduos” xiii e assim, a autora conclui que:

Daí a facilidade da conseqüência do nacionalismo, de alternativas que construam a solidariedade social a partir do Estado. No entanto, o Estado não é aqui “oponível ao indivíduo”, mas sua própria realização. Da mesma maneira, os indivíduos também só se realizariam nas “classes profissionais que integram”. Como extensão possível dessa argumentação seria legítima a ação interventora do Estado em situações de interesse nacional mal compreendido, quando os grupos sociais (ou alguns deles) criassem obstáculos a esta nova e desejável situaçãoxiv.

A busca de identidade social dos intelectuais brasileiros passava pela procura de um ponto entre “a perspectiva de renovação cultural” e as “possibilidades de reforma da sociedade”, que formavam o eixo nacionalismo - modernização. Não é por acaso, portanto, que ao longo dos anos 30 o tema que prevalece entre a intelectualidade é o da organização nacional, resultando em uma campanha modernizadora, nacionalista, que encontrou no modelo autoritário corporativista a saída para a “crise dos anos 30”xv. O movimento iniciado pela Revolução de Outubro de 1930 também pode ser encarado como uma “renovação”, na medida em que atendeu – e sua manutenção dependia disso – muitas demandas populares, assimilando-as, transformadas é claro, ao projeto do Estado. Entre estas demandas populares, exigiam a ampliação dos direitos civis (que na verdade foram retraídos) e sociais (estes sim, ampliados), maior participação política e moralidade no trato com a coisa pública, interesses que acabaram envolvendo os setores urbanos e letrados da sociedade, em torno da expectativa de uma “cultura moderna”, que se traduzia pelas idéias de “unidade” nacional em termos políticos e culturais, de “centralização” e aparelhamento do Estado, que se auto-justificava pela noção de uma missão, que seria realizar a obra de “civilização” do país e “construção da nação”xvi. A fundação da AIB em 7 de outubro de 1932, chefiada pelo jornalista e político Plínio Salgado, polarizou grupos autoritários, nacionalistas, conservadores, espiritualistas e totalitários, se transformando rapidamente em um movimento presente em todo o país. O movimento integralista brasileiro foi fundado por intelectuais, mas também reuniu operários, agricultores, estudantes, profissionais liberais, pequenos e grandes proprietários. A AIB

2292

surgiu em um momento em que a era da política de massas aportava triunfante na arena nacional. A campanha de Plínio Salgado importava em uma noção de mobilização permanente das massas, a partir da criação de uma cultura política de “cidadãos-soldados” em torno do lema “Deus, Pátria e Família”. A causa da AIB, segundo o autor, era “terminar” o processo de formação do Estado Nacional brasileiro – telos da história na evolução do “Espírito do Povo” para a filosofia integralista. A letra “Sigma” (∑) do alfabeto grego foi (e ainda o é para os atuais movimentos neo-integralistas), assim como foi o “fascio littorio” no fascismo e a “Swastika” no nazismo, o principal símbolo do movimento integralista brasileiro. O conceito de “integralismo”, analisado em seu contexto de emergência, pode ser visto enquanto um novo paradigma e um novo método de construção do conhecimento, que se apresentou como o produto da revisão e síntese das filosofias do passado submetidas à nova sensibilidade proposta pelo movimento integralista para o processo do conhecer e do ser. Ser “integral” é querer buscar uma visão integrada das diferentes partes dos problemas da vida e da realidade, compreendida em sua dualidade entre as forças da matéria e do espírito. A proposta da AIB era resolver a “questão social” e a “questão nacional” através de uma campanha antiliberal e anticomunista, da organização de um “Estado forte” cuja tônica seria a centralização do poder, a direção da economia, a adoção do sistema corporativista e a revolução culturalxvii, tendo à frente o Chefe Nacional da AIB Plínio Salgado (1895-1975), o chefe do Departamento de Milícia da AIB, Gustavo Barroso (1888-1959), e o jovem Miguel Reale (1910-2006), chefe do Departamento Nacional de Doutrina da AIB. O contato de Miguel Reale com o integralismo deu início à sua carreira política e intelectual. O jovem Reale ainda não havia concluído seus estudos na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco em São Paulo, mas já causara entusiasmo em Salgado devido a seus interesses por História, Filosofia do Direito e Teoria do Estado. Reale defendia uma concepção de Estado que levasse à “integração do ser e dever ser”, o que teria levado Salgado a dizê-lo que teria tudo para se tornar “o jurista do Estado Integral” xviii. Uma forte formação sociológica, baseada em Burckhardt, Tocqueville e Durkheim; a cultura socialista vivenciada na faculdade, que fez Reale debruçar-se sobre a “questão social”, optando pelo corporativismo como única saída; o demonstrado apreço pelas realizações do fascismo na Itália e pelas obras de seus intelectuais, como Gentile e Spirito. Araújo compreende a singularidade do integralismo no Brasil a partir da consideração da universalidade do fenômeno do totalitarismo no contexto Entreguerrasxix. Todavia, Araújo inovou em seu tempo, ao propor uma análise teórica que enxerga uma clivagem entre o

2293

integralismo “totalitário” de Plínio Salgado e Gustavo Barroso e o integralismo “autoritário” de Miguel Realexx. Conforme Ramos, Reale acreditava que o uso das leis e do Direito seriam capazes de operar a tão sonhada transformação do indivíduo e da sociedade de forma imediata. Reale era contra o aspecto de uma revolução cultural em longo prazo postulada por Plínio Salgado, noção que nos dá a impressão de que o Homem Integral afloraria do interior de cada indivíduo. Assim surgiu o conceito de Estado Integral de Miguel Reale, cujas normas iriam impor a revolução cultural, partindo do exterior até o interior de cada um xxi. Esta visão se tornou a base das teorias formuladas por Reale acerca da organização social, econômica e política do Estado corporativista. Para Bertonha, o pensamento realiano sobre o Estado Integral surgiu em meio as pressões da “questão social” no país, tendo como pano de fundo os problemas da modernização tardia do país, apresentando o corporativismo e a planificação econômica como fundamentos para o Estado assumir o timão da modernização nacional. Esse pensamento faria de Reale, nas palavras de Bertonha, o “mais moderno” entre os líderes da AIBxxii. Reale coligiu textos como a Carta Del Lavoro italiana e do Estatuto do Trabalho português, buscando respaldo para sua crítica ao modelo liberal democrático, construindo uma variação muito original do corporativismo com o projeto integralista de Estado. Para Bertonha, no modelo de Reale corporação e municípios são chaves na teoria do Estado Integral, absorvendo e arbitrando as querelas entre grupos e classes. O município seria a célula fundamental da estrutura corporativista nacional, e por isso deveria gozar de plena autonomia administrativa. As lideranças municipais seriam eleitas por sufrágio universal – admitido em seu sistema político somente no nível municipal – sendo tais lideranças encarregadas de representar a municipalidade junto às instâncias superiores da hierarquia corporativa provincial e nacionalxxiii. Para os integralistas, enquanto na Itália ainda subsistiam um senado de base não corporativa e um Conselho originado do Partido Fascista (fora das corporações), no Brasil, o Estado Integral, teria seu poder constituído sobre os “alicerces corporativos” onde estaria organizada toda a sociedade. De fato o corporativismo pregado pelo integralismo se dizia mais completo que o modelo fascista, pois não considerava apenas as corporações econômicas, mas também as corporações sociais e culturais da Nação, como as Igrejas, o exército, a magistratura, as sociedades científicas e artísticas. Para Miguel Reale, no Brasil as corporações não deveriam ser subordinadas ao poder político de origem não corporativista, ou seja, o Estado Integral seria a própria Corporaçãoxxiv.

2294

Bertonha ressalta que o corporativismo integralista de Reale, essencialmente, possuía origens nos modelos corporativistas estrangeiros, mas, não apenas por sua ênfase nos sindicatos/associações e corporações, mas também nos municípios revelaria uma adaptação desenhada para permitir o sucesso do corporativismo em um país de dimensões continentais e marcado pelo “poder excessivo dos estados”, uma crítica repetida muitas vezes pelos intelectuais antiliberais brasileiros nos anos 1930xxv. Encerrando o ciclo da produção de Reale sobre o corporativismo integralista, no ano de 1937, enquanto Salgado avançava com sucesso em sua campanha para as eleições presidenciais previstas para o início de 1938, Vargas e seu governo articulavam um golpe de Estado que mudou o destino da AIB. O golpe de 10 de novembro de 1937, com a outorga da nova Constituição, a “Polaca”, e a implantação da ditadura do Estado Novo, surgiu após o pânico gerado com a publicação, por vários periódicos do país, o enredo conspiratório divulgado pelo governo em setembro de 1937, conhecido como “Plano Cohen”. Esse documento teria sido elaborado pelo então capitão Olympio Mourão Filho, chefe do serviço secreto da Ação Integralista Brasileira, para fins de um estudo estratégico em caso de uma hipotética invasão comunista no país, exclusivo ao uso interno da AIB. Nas palavras de Miguel Reale, “Ninguém ignora que se tratava de solerte utilização para fins políticos, de um documento que, segundo me disse o capitão Olympio Mourão Filho, havia sido escrito apenas como peça integrante de um ‘exercício do Estado Maior’” xxvi, sendo que, no caso, o autor se refere ao “Estado Maior” da AIB, chefiado por Mourão Filho. Gonçalves nos afiança que a “presença dos integralistas no processo de organização para a implantação do Estado Novo passava a ser um elemento de esperança para os camisasverdes”xxvii, esperança, no caso, de serem incorporados nos quadros do Estado pelo novo regime. Em setembro de 1937, Francisco Campos teria encontrado Plínio Salgado, em sigilo, autorizado pelo presidente Vargas, entregando ao líder integralista um original do texto final da nova constituição que seria outorgada em breve, por um golpe de Estadoxxviii. O conhecimento e participação de Salgado no golpe do Estado Novo também são mencionados por Vargas em trechos de seu Diárioxxix. Nesse sentido, Bertonha não duvida que o projeto do Estado Novo, gestado ao longo dos anos 1930, recebeu várias influências, incluindo do integralismo, como a defesa do nacionalismo e do corporativismo, desprezo por partidos políticos e organizações e a adoção de uma “linha dura” anticomunista. Tal projeto também incluía a idéia de um “grande líder”, intenso uso da propaganda e da educação com objetivo de formar um “novo homem” e a reinterpretação do passado histórico para criar um “novo Brasil”. O autor assevera que tais

2295

práticas não foram passadas diretamente do integralismo para o Estado Novo, mas foram formadas no mesmo bojo culturalxxx. Talvez, a maior contribuição do movimento integralista para o golpe do Estado Novo e a constituição que o fundamentou, seja, como foi descrito por Salgado em uma carta enviada a Vargas em janeiro de 1938, na qual o líder da AIB escreveu: “Não seria eu bastante sincero e honesto se pretendesse dar ao seu governo a minha colaboração pessoal, quando esta não implicasse na adesão, à minha atitude e aos objetivos de V. Exa., de mais de um milhão de brasileiros que criaram, pela doutrinação e propaganda, o clima sem o qual não se tornaria possível a transformação constitucional de 10 de novembro”xxxi. A Constituição de 1937 institucionalizou a escalada do autoritarismo estatal iniciada décadas antes, por múltiplos episódios em que foi decretado o “estado de emergência”, “estado de guerra” e “estado de sítio” durante a Primeira República. Esse processo se tornou mais acelerado a partir da revolução de 1930, mas foi após a promulgação da Constituição Federal de 1934, com o cenário político radicalizado que a acompanhou, que se fez possível tornar norma jurídica os princípios do autoritarismo corporativista, nacionalista e de visão orgânica da sociedade consagrados na “Polaca”. Desatou-se, assim, o Estado, dos laços que o impediam de dirigir o processo de modernização do país com maior autonomia e de sufocar grupos e indivíduos que se opusessem ao novo regime.

JASMIM, Marcelo Gantus; FERES JÚNIOR, João. “História dos conceitos: dois momentos de um encontro intelectual”. In: . (orgs.). História dos conceitos: debates e perspectivas. Rio de Janeiro: Editora PUCRio/Edições Loyola/IUPERJ, 2006, pp. 9-38, p. 19. ii CEPÊDA, Vera Alves. “Contexto político e crítica à democracia liberal: a proposta de representação classista na Constituinte de 1934”. Perspectivas, São Paulo, v. 35, p. 211-242, jan-jun 2009, p. 213. iii ABREU, Luciano Arone. “Autoritarismo e corporativismo no Brasil”. In: Anais do XI Encontro Estadual de História “História, Memória, Patrimônio” - ANPUHRS, Universidade Federal de Rio Grande (FURG), Rio Grande-RS, 2012, pp.172-181, p. 172. iv LINZ, Juán J. Obras escogidas. Sistemas totalitarios y regímenes autoritarios. Madrid: José Ramón Montero y Thomas Jeffrey Miley, v.3, 2009, p. 28-42. v SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. “Os fascismos”. In: REIS FILHO, Daniel Aarão; FERREIRA, Jorge; ZENHA, Celeste. (orgs.). O século XX: o tempo das certezas, da formação do capitalismo à primeira grande guerra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, v1, pp. 109-164, p. 130-131. vi BEIRED, 1999: 106) vii SCHMITTER, Philippe C. “Still the century of corporatism?” Reviem of Politics, 36 (1), pp. 85-131, 1974, p. 119. viii Idem, ibidem, p. 93-94. ix Idem, ibidem, p. 94. x Idem, ibidem, 99-100. xi Cf.: VIANNA, Luiz Werneck. Liberalismo e Sindicato no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. xii CEPÊDA, Vera Alves, op.cit., p. 226. xiii CEPÊDA, Vera Alves, op.cit., p. 235-236. xiv CEPÊDA, Vera Alves, op.cit., p. 236. i

2296

xv

LAHUERTA, Milton. Os intelectuais e os anos 20: moderno, modernista, modernização. In: DE LORENZO, Helena Carvalho; COSTA, Wilma Peres da. A década de 20 e as origens do Brasil moderno. São Paulo: Editora da UNESP, 1998, pp. 93-114, p. 98. xvi Idem, ibidem, p. 103-105. xvii AÇÃO INTEGRALISTA BRASILEIRA. Manifesto de Outubro de 1932. São Paulo: Secretaria Nacional de Propaganda da AIB, s/d, p. 1-10. xviii REALE, Miguel. Memórias: Destinos Cruzados. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1987, v. 1, p. 73. xix ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. Totalitarismo e Revolução: O integralismo de Plínio Salgado. São Paulo: Zahar, 1988. xx ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. In medio virtus: uma análise da obra integralista de Miguel Reale. Rio de Janeiro: CPDOC, 1988. xxi RAMOS, Alexandre Pinheiro. “Estado, Corporativismo e Utopia no pensamento integralista de Miguel Reale (1932-1937)”. Revista Intellectus. Ano 7, vol. II, 2008, p. 17-18. Disponível em: http://www.intellectus.uerj.br, acessado em 21 de outubro de 2012. xxii BERTONHA, João Fábio. “Corporatist thinking in Miguel Reale: readings of Italian fascism in Brazilian integralism”. In: Revista Brasileira de História, v. 33, n. 66, São Paulo, jul/dez 2013, pp. 225-242, p. 226. xxiii Idem, ibidem, p. 232. xxiv REALE, Miguel. ABC do Integralismo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1935, p. 93-95. xxv BERTONHA, João Fábio, op.cit., p. 234. xxvi REALE, Miguel. Memórias, op.cit., p. 120. xxvii GONÇALVES, Leandro Pereira. “O Estado Novo: fim da Ação Integralista Brasileira e prisão de Plínio Salgado”. In: VIANNA, Marly de Almeida Gomes; SILVA, Érica Sarmiento da; . (orgs.). Presos políticos e perseguidos estrangeiros na Era Vargas. Rio de Janeiro: Mauad X/ Faperj, 2014, p. 132. xxviii SALGADO, Plínio. “Carta do Chefe Nacional da Ação Integralista Brasileira Plínio Salgado, ao Senhor Dr. Getúlio Vargas, presidente da República em 28 de janeiro de 1938”. In: SALGADO, Plínio. O integralismo perante a nação. 2 ed. Rio de Janeiro: Livraria Clássica Brasileira, 1950, p.118. xxix VARGAS, Getúlio. Diário (1930-1942). São Paulo/Rio de Janeiro: Siciliano/FGV, v. 2, 1995, p. 89. xxx BERTONHA, João Fábio, op.cit., p. 235. xxxi SALGADO, Plínio, op.cit., p. 111.

2297

A questão social e trabalhista nos anos iniciais da Era Vargas (1930-1932)

Pedro Paulo Lima Barbosa1

Resumo: Em nossa comunicação pretendemos discutir a legislação social e trabalhista na gestão de Lindolfo Collor, Ministro do Trabalho, nos anos iniciais da Era Vargas enquanto resposta do novo governo a uma demanda que nascia mediante duas forças políticas da época: a dos trabalhadores que cada vez mais organizado reivindicavam mudanças e, principalmente, o cumprimento das leis vigentes e a do capital que cada vez mais crescente exigia uma nova maneira de se lidar com os embates entre capital e trabalho no país. Palavras-Chaves: Legislação social e trabalhista, Era Vargas (1930-1932), Lindolfo Collor

Abstract. In our communications we intend to discuss about social and labor laws in Lindolfo Collor during he was Minister of Labour, in the beginning Vargas’ period as the new government's response to a demand that was born by two time of political forces: the workers who increasingly organized demanded changes and, above all, compliance with laws and the capital that increasingly growing demanded a new way of dealing with the conflicts between capital and labor in the country. Keywords: Social and labor laws, Age Vargas (1930-1932), Lindolfo Collor

Introdução A literatura concernente à legislação social e trabalhista no Brasil, principalmente a que abarca a chamada Era Vargas (1930-1945), deu um salto qualitativo e quantitativo nas últimas décadas. Se por um lado, a produção historiográfica até o início da década de 1980 via as leis trabalhistas apenas enquanto uma forma de cooptação e que, na prática, não traziam grandes ganhos aos trabalhadores brasileiros2, por outro, nas últimas década essa visão mudou significativamente. Podemos dizer que mediante a publicação do livro da historiadora e cientista política Ângela Maria de Castro Gomes3, este livro tornou-se um divisor de águas na literatura concernente às leis trabalhistas no Brasil. Tanto na questão de métodos quanto nas conclusões que a autora chegou sobre a ação dos três agentes envolvidos na implementação e

2298

consolidação das leis trabalhistas no país, a saber: os trabalhadores, os empregadores e o Estado. Assim, ainda que de maneira breve devido a dinâmica imposta em nossa comunicação, procuraremos demonstrar que, embora a legislação social e trabalhista possa ser vista enquanto uma ação do governo varguista para cooptação e submissão dos trabalhadores aos valores burgueses da época, ela trouxe ganhos reais aos trabalhadores que, bem ou mal aceitaram as ações do Estado enquanto mediador das relações Capital e Trabalho4. Nesta comunicação abarcaremos dois pontos importantes nas ações do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio desenvolvidas dos anos iniciais da década de 1930 no país, a saber: a sua criação e a ação contra os chamados sem trabalho.

A Criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio Em programa exposto no momento em que assumiu o poder, em novembro de 1930, Getúlio Dornelles Vargas, ao receber o poder pela Junta Governista, estabeleceu, em sua plataforma de governo, o compromisso de criação do Ministério do Trabalho enquanto parte de sua “ampla reforma política, administrativa, econômica, financeira e social” a qual pretendia realizar no país. Desta maneira, afirmou em seu 15º ponto de seu discurso que pretendia “(...) instituir o ministério do trabalho, destinado a superintender a questão social e amparar a defesa do operariado urbano e rural.”5. Antes mesmo da criação oficial do MTIC, porém, Lindolfo Collor atuava no cenário político no sentido de organizá-lo. Neste sentido, conforme noticiou O Jornal, ele sentou-se com Joaquim Francisco de Assis Brasil6 onde se estabelecia o desmembramento de diversos serviços que estavam a cargo do Ministério da Agricultura e que passariam para o MTIC. Criado em 26 de novembro de 1930, o MTIC foi interpretado de diversas formas nos jornais da época, o jornal A Cruz da cidade do Rio de Janeiro considerou o seguinte sobre sua criação:

Temos agora mais uma pasta ministerial: a do trabalho. Não é fora de propósito que os novos dirigentes do país criam esta nova secretaria de Estado. Dia a dia aumentam as dificuldades da vida, crescem os problemas da coletividade e se complicam as relações entre patrões e operários. Criando esta nova divisão da gestão dos negócios públicos, o governo procura solucionar, ou melhor, estudar os grandes problemas, que se referem ao operariado. Importa que enveredemos pelos tramites cristãos e procuremos no Evangelho a solução dos nossos casos administrativos, de acordo com a nossa civilização, que se funda na verdade católica. Do contrário, caminharemos para o demagogismo, para a anarquia e o sovietismo.7

2299

Embora contendo caráter conservador e voltado às soluções sob perspectivas cristãs o jornal A Cruz via com bons olhos a criação desse novo ministério voltado às questões ligadas aos trabalhadores. Assim, fazia-se com que o país saísse do caminho “demagógico”, da “anarquia” e do “sovietismo” e fosse em direção a soluções concretas de fatos aos problemas atinentes aos trabalhadores. Entretanto, as soluções deveriam ser encaminhadas sob perspectiva cristã. Fica claro no excerto supracitado que este novo ministério teria aos olhos de A Cruz, um caráter meramente técnico, pois a esta Pasta, caberia “estudar os grandes problemas, que se referem ao operariado”. O Decreto nº 19.4338 estabeleceu a criação de uma “Secretaria de Estado com a denominação de Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio”. Nele, subordinava o “(...) estudo e [o] despacho de todos os assuntos relativos ao trabalho, indústria e comércio.”9 A partir de então, todos os assuntos pertencentes ao trabalho, comércio e indústria passariam por esse ministério que tinha, como se observa a função técnica de, em princípio, caberia a ele estudar as questões concernentes a essas áreas e em seguida, resolve-las mediante as novas diretrizes adotadas pelo governo varguista: equacionar as relações concernentes ao capital e ao trabalho no país. Em sua organização estrutural, o MTIC subordinava a si as seguintes subpastas que antes de sua criação, pertencia outros ministérios:

Da Secretaria da Agricultura, Indústria e Comércio: Conselho Nacional do Trabalho, Conselho Superior de Indústria e Comércio, Diretoria Geral de Indústria e Comércio, Serviço de Povoamento, Junta Comercial do Distrito Federal, Diretoria Geral de Estatística, Instituto de Expansão Comercial, Serviço de Informações, Serviço de Proteção aos Índios, Diretoria Geral de Propriedade Industrial e Junta dos Corretores do Distrito Federal. Da Secretaria da Fazenda: Estatística Comercial, Instituto de Previdência e Caixas Econômicas. Da Secretaria da Viação e Obras Públicas: Marinha Mercante e Empresas de Navegação de Cabotagem. Da Secretaria das Relações Exteriores: Serviços Econômicos e Comerciais, e Adidos Comerciais.10

Como se observa, o MTIC teve sob sua responsabilidade uma imensa gama de subpastas que antes de sua criação, pertenciam a outros ministérios. Até mesmo o patrulhamento das fronteiras brasileiras passou, segundo O Jornal, à subpasta do Departamento da Imigração que era encarregado por patrulhar a fronteiras nacionais evitando assim, imigrantes indesejáveis11. Outro fato importante diz respeito à atmosfera político-econômica em que foi criado o MTIC. No final de 1930, o Brasil sofria uma dupla crise que afetava tanto o campo econômico quanto o político. No que diz respeito a este campo, o país, à época, acabara de

2300

passar por uma “revolução” a qual colocara no poder Getúlio Dornelles Vargas e, também, políticos do RS nos principais postos de comando no país. No que diz respeito à segunda questão, também neste momento o Brasil ainda passava pelos efeitos do Crash de 1929 que, na época, embora contribuísse com o fim da chamada Primeira República no país (1889-1930), afetou bastante o governo de Getúlio Dornelles Vargas em seus investimentos. De início, Lindolfo Collor teve de enfrentar certa animosidade e apreensão com os funcionários do Conselho Nacional do Trabalho que à época, eram pagos com verba originária das Caixas de Aposentadorias e Pensões dos ferroviários e que, naquele momento, estavam em condições deficitárias e, por isto, os funcionários do Conselho temiam que se estabelecesse um quadro de demissões12. Muito se comentou sobre a criação do MTIC. À época, diversos intelectuais, políticos e ex-políticos manifestavam-se em jornais e revista para expressarem seu posicionamento acerca da criação desta Pasta. Em artigo publicado em O Jornal, o exdeputado Federal Maurício Medeiros que pertenceu a comissão da Câmara dos Deputados por duas décadas sobre a legislação social e trabalhista no país escreveu um artigo intitulado “Ministério do Trabalho”. Nele, Medeiros apontava o passo importante o qual o Governo Federal dava no sentido de dirimir os conflitos entre classes existentes no país. Diferente de muitos políticos que defendiam a inexistência dos embates entre capital e trabalho, Medeiros acreditava que: “(...) onde há pobres e ricos há uma questão social.”13. Destarte, embora mal compreendido na época, Lindolfo Collor, enquanto esteve à frente do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, buscou, em suas ações, conciliar Capital e Trabalho. Para tanto, dividiu suas ações em três frentes: a dos trabalhadores, a frente dos empregadores, onde teve de lidar com estes grupos sociais e, não menos importante, a frente entre o próprio Estado Varguista onde muitos de seus pares descordavam de suas ações e métodos de atuação para resolver os embates entre capital e trabalho.

Os sem trabalhos no país

Logo que iniciou à frente do MTIC, Lindolfo Collor buscou equacionar as relações entre capital e trabalho. Assim, um dos primeiros problemas os quais enfrentou foi a falta de emprego nas indústrias e fábricas nacionais. Para que possamos ter uma ideia do grande número de desempregados na época, segundo noticiou O Imparcial (MA), 40% dos trabalhadores têxteis das fábricas do Rio de Janeiro estavam desempregados.

2301

O Ministro do Trabalho, Sr. Lindolfo Collor, recebeu uma delegação de operários, ouvindo-a atenciosamente. Os sem-trabalho declaram que os 40% dos operários das fábricas de tecidos desta capital [RJ] estão completamente desempregados. Por isso que é precário o funcionamento de quase todos os estabelecimentos fabris onde trabalham14.

No sentido de resolver a crise de emprego e obter amparo por parte do novo ministério, a liderança operária que se reuniu com Lindolfo Collor após a conferência com o Ministro do Trabalho, houve a entrega de memorandos tanto da parte do operariado quanto da parte diretores das indústrias têxteis cariocas em que “(...) são apontadas as mais necessárias medidas para soerguimento da indústria têxtil brasileira.” Em contrapartida os trabalhadores comprometiam-se, segundo O Imparcial, “(...) a não permitir que nas sedes de associações operárias seja feita propaganda de ideias subversivas.”15 É importante frisar, aqui, a preocupação por parte do Governo Federal em afastar do movimento operário, ideias e ideais esquerdizantes que pudessem levar os trabalhadores à radicalização. Isto fica explícito na ação dos trabalhadores que, para terem atendidas suas ações efetivadas por parte do Governo, se colocariam do lado dele na luta contra o “perigo vermelho”16. Alguns dias após ser empossado como Ministro do MTIC, Lindolfo Collor, no sentido de aproximar empregados e empregadores de seus posicionamentos radicais e colaborarem com seu ministério. Neste sentido, ambos os grupos sociais foram convidados a colaborarem na resolução da crise dos sem empregos, conforme noticiou O Jornal.

O ministro do Trabalho, Sr. Lindolfo Collor continua a coordenar elementos para a debelação da crise dos desempregados, cujos efeitos sofrem de há muito as classes mais desprotegidas. Numa atividade inicial de perscrutação o novo titular convocou os industriais e os operários – patrões e empregados – e pediu-lhes simplesmente que lhe fizessem sugestões sobre as medidas, no entender das duas classes, capazes de resolver o assunto, para naturalmente coordená-las numa resolução equilibrada do problema17.

Em “ação prática” como apontou O Jornal, o MTIC procurou atender em princípio, os trabalhadores que tinham uma profissão, mas devido à crise a qual o país passava, eles estavam desempregados. No sentido de colaborarem com o governo, segundo O Jornal, representantes do Centro Industrial de Fiação e Tecelagem do Rio de Janeiro e de São Paulo e, por fim, dos trabalhadores apresentaram-se para assistir ao governo em seu pedido de contribuir com a solução do problema dos sem trabalhos.

2302

Vicente de Paulo Galliez, representante do Centro Industrial de Fiação e Tecelagem do Rio de Janeiro apresentou um memorando em que tinham nove pontos nos quais apresentava a Lindolfo Collor seu posicionamento sobre a situação da indústria algodoeira nacional18. Embora os demais pontos dissessem respeito diretamente às questões econômicas, estes dois referiam-se à legislação. Neles, podemos visualizá-los enquanto não apenas uma reivindicação do setor têxtil, mas como um todo, ligado aos empregadores brasileiros. Em suas petições ao Ministro, dois pontos dirigiam-se diretamente à questão social e trabalhista. Eram eles: 4º – Uniformização das horas de trabalho para toda a indústria algodoeira, de acordo com o horário que melhor consulte os interesses da economia nacional. 9º – Revisão urgente em nossa atual legislação social. Suspensão imediata da lei das férias às indústrias pela irremediável desorganização que ela acarretará ao trabalho nacional e pelos graves inconvenientes de ordem individual, social e econômica. Substituição da lei das férias por outros favores que aproveitem verdadeiramente ao operariado nacional. Revisão da parte do Código de Menores que se refere ao horário do trabalho dos operários de 14 a 18 anos, na indústria algodoeira19.

Antes de qualquer ponto, é preciso assinalar que o discurso de Vicente de Paulo Galliez refletia valores e demandas de sua época. As indústrias e o comércio brasileiros enfrentavam no final de 1930 um momento de crise econômica profunda. A produção diminuíra drasticamente, o número de falência aumentava, em consequência, aumentava ainda mais o número dos sem trabalho o quê agravava a crise social brasileira. No memorando dirigido ao MTIC, via-se claramente o posicionamento liberal do Centro Industrial de Fiação de Tecelagem do Rio de Janeiro contrário às conquistas trabalhistas dos empregados conquistadas pelos trabalhadores na Primeira República. Nele ressaltam pontos emblemáticos quanto ao posicionamento dos industriais em relação às leis trabalhistas: a adequação dos direitos trabalhistas às condições dos empregadores, a revisão da legislação social brasileira, e a suspensão imediata das férias aos trabalhadores. É interessante ressaltar que ao se colocar de forma contrária à legislação social e trabalhista, em relação ao trabalho de oito horas de trabalho diária por parte dos trabalhadores, por exemplo, o Centro do Rio de Janeiro não se apresentava de forma contrária categoricamente. Ele o fazia no sentido de associar o horário de trabalho diário aos interesses do patronato. Desta maneira, a legislação adequaria às necessidades do capital e não ao do trabalho.

2303

Notas 1

Doutorando em História Social pelo Programa de Pós-graduação em História (UNESP/Campus de Assis). É professor do curso de História na Faculdade Santa Izildinha (FIESI/UNIESP) e no curso de Pedagogia Faculdade Paschoal Dantas, ambas instituições localizadas em São Paulo, e-mail: [email protected]. 2

Autores como SIMÃO, Aziz. Sindicato e Estado. São Paulo: Dominus/USP, 1966; RODRIGUES, Albertino. Sindicato e desenvolvimento no Brasil. São Paulo: Difel, 1966 e RODRIGUES, Leôncio Martins. Sindicalismo e conflito industrial no Brasil. São Paulo: Difel, 1966, demonstram em seus respectivos livros a capacidade dos operários de se reunirem na luta reivindicatória pelo aumento de salários e, também, pelas questões políticas e sociais. Contudo, tais autores não reconhecem a ação organizada dos operários para a conquista das leis trabalhistas. Sobre o papel do operariado, suas formas de resistência consultar e organização consultar ARAÚJO, Ângela Maria Carneiro. Construindo o consentimento: corporativismo e trabalhadores no Brasil dos Anos 30. Tese de Doutoramento. UNICAMP, Campinas, 1994; DE DECCA, Edgar Salvatori. 1930: O silêncio dos vencidos – Memórias, História e Revolução. São Paulo: Brasiliense, 1997; e GOMES, Ângela Maria de Castro. A invenção do trabalhismo. 3ª ed. Rio de Janeiro: FGV, 2005. GOMES, Ângela Maria de Castro. Burguesia e trabalho: política e legislação social no Brasil (1917 – 1937). Rio de Janeiro: Ed. Campus Ltda., 1979. 3

Não queremos dizer com isso que a ‘aceitação’ da intervenção do Estado na legislação social e trabalhista da época foi pacífica e desprovida de protestos e questionamentos da classe trabalhadores da época. Até porque esse grupo social não era homogêneo o que levaria a diversas interpretações dentro de suas próprias ‘entranhas’. Houve à época, muitos questionamentos por parte dos trabalhadores, principalmente em relação aos grupos ligados as ideias comunistas e socialistas da época. 4

5

Jornal O Acre, 23 de Novembro de 1930, p. 1. Diversos jornais da época reproduziram a íntegra do discurso de Getúlio Dornelles Vargas no Catete. Um dos periódicos que nos utilizamos bastante nesta tese, O Jornal, o discurso varguista pode ser encontrado no dia 4 de novembro de 1930, p. 1. Nele, é apresentado todo o programa de governo dos revolucionários. 6

Recentemente foi publicado um artigo sobre a ação política de Assis Brasil e sua rivalidade com o PRR durante a Primeira República. Cf. BARBOSA, Pedro Paulo Lima. O projeto político oposicionista de Assis Brasil nas campanhas eleitorais de 1922 no Rio Grande do Sul. Revista Eletrônica História em Reflexão (UFGD), v. 9, p. 00-00, 2015. 7

Jornal A Cruz, 30 de Novembro 1930, p. 3.

8

A íntegra deste Decreto pode ser consultado em: Acessado em: 19 de janeiro de 2015. Vários jornais da época trouxeram em suas páginas a íntegra deste decreto e, junto a ele, em geral, expressavam o posicionamento do jornal sobre sua criação. (Cf. O Jornal, 28 de Novembro de 1930, p. 2). A maneira como os jornais viam a criação do MTIC será tratado no próximo subitem desta tese. 9 10

BRASIL, Senado Federal, Decreto nº 19.433. Idem.

11

O Jornal do dia 30 de novembro de 1930 informou a seus leitores que o MTIC adquiriu uma frota de carros Ford comprado dos Estados Unidos da América que seriam utilizados no patrulhamento das fronteiras brasileiras na fiscalização da imigração para o Brasil. A subpasta responsável pelo patrulhamento seria o Departamento de Imigração que, na época, pertencia ao MTIC. 12

Jornal O Jornal, 02 de Dezembro de 1930, p. 18.

13

Jornal O Jornal, 11 de Dezembro de 1930, p. 2.

14

Jornal O Imparcial, 04 de dezembro de 1930, p. 1.

15

Idem.

16

Na segunda metade da década de 1910, logo após a Revolução Russa em 1917, surgiu no Brasil, segundo o historiador Rodrigo Patto Sá Motta movimentos de caráter anticomunistas. Esses movimentos, segundo este historiador, apresentavam três matrizes principais: nacionalista, liberal e católica. Com o tempo, na segunda metade do século XX, surgiu no país para esse mesmo autor, uma verdadeira cruzada anticomunista. MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o “Perigo Vermelho”: o anticomunismo no Brasil (1917-1964). São Paulo: Perspectiva/Fapesp, 2002, p. 1-47, 143-149.

2304

17

Jornal O Jornal, 04 de dezembro de 1930, p. 9.

18

A íntegra deste memorando pode ser encontrada em O Jornal, 4 de dezembro de 1930, p. 9 e 13.

19

Jornal O Jornal, 04 de dezembro de 1930, p. 9.

2305

O CÓDIGO DE OBRAS DE 1937 E AS INTERVENÇÕES URBANAS DA GESTÃO DE HENRIQUE DODSWORTH NO DISTRITO FEDERAL (19371945) Pedro Sousa da Silva1 Resumo: Ao longo da primeira metade do século XX, o Rio de Janeiro passou por grandes ondas de remodelação de seu espaço urbano. A última delas teve início em 1937, quando Henrique Dodsworth chegou ao poder e mudou a forma como as intervenções urbanas seriam planejadas. Neste mesmo ano, foi promulgado o primeiro Código de Obras que deu as bases para o desenvolvimento da zona industrial nos subúrbios e para o crescimento do setor imobiliário na zona sul. Palavras-chave: Cidade, Urbanização, Estado Novo Abstract: During the first half of the twentieth century, Rio de Janeiro had a wave of their urban space remodeling. The last one began in 1937, when Henrique Dodsworth came to power and changed the way urban interventions are planned. That same year, was promulgated the city's first Código de Obras which gave the foundation for the development of the industrial zone in the suburbs and to the real estate growth in the southern part Keywords: City, Urbanization, New State I-Introdução Centro político do Brasil por quase três séculos, condição que manteve apesar das sucessivas transformações do cenário político, o Rio de Janeiro também se destacou por sua importância como centro econômico. Possuindo um porto central para o escoamento de mercadorias e importações desde o auge da mineração em Minas Gerais, no século XVIII, o Rio de Janeiro não perderia sua importância econômica dentro do cenário nacional apesar do vertiginoso crescimento industrial apresentado por São Paulo nas primeiras décadas do século XX2. De fato, apesar da liderança adquirida pelo porto de Santos na exportação do café, o porto do Rio de Janeiro ainda se manteve como o segundo mais importante do país e líder no ramo das importações3. Além disto, a indústria carioca passou por um processo de diversificação e expansão ao longo da década de 1920 que se prolongaria nos decênios seguintes4. Por outro lado, este papel de destaque no campo político e econômico sempre contrastou com as limitações físicas apresentadas pelo

2306

território onde se ergueu a cidade. A faixa de terra disponível entre o mar e as montanhas era estreita e descontinua. Como nos mostra Carlos Lessa, o crescimento urbano do Rio de Janeiro sempre caracterizou-se pela complexidade das intervenções urbanísticas por conta da necessidade de lidar com aterros de mangue, lagoas, mar e remoção de morros. Fatos que, segundo Lessa, levaram as terras cariocas a não serem apenas conquistas, mas literalmente construídas5. Drenar mangues e lagos, furar túneis, conter encostas são operações normais de urbanização do Rio e têm custos extremamente altos. O rio como metrópole está submetido à dupla restrição solo/água. A cidade, à medida que cresce sua densidade demográfica e transforma-se o seu uso do solo, vê aumentar a tendência a inundações e deslizamentos de encostas. Historicamente, estes custos da urbanização, uma vez incorridos, foram incorporados e representaram um impulso dinâmico à acumulação de patrimônio imobiliário6.

Frente a estas peculiaridades, a política de intervenção urbana no Rio de Janeiro sempre assumiu um papel de destaque na formação e remodelagem da malha urbana no Rio de Janeiro. Um ponto de fundamental na relação entre o poder público e o espaço urbano pode ser encontrado na gestão de Francisco Pereira Passos no início do século. Nomeado prefeito por Rodrigues Alves, então presidente da República, a gestão Pereira Passos significou um momento de mudança por representar o primeiro momento de intervenção estatal maciça sobre a cidade7. Além disto, as diversas cirurgias urbanas moldadas entre 1902 e 1906 significaram a transformação definitiva da cidade colonial, remodelada segundo os interesses capitalistas8. Como nos conta Mauricio de Abreu, as diversas intervenções realizadas nas últimas décadas da Primeira República reproduziram um padrão de melhoramentos urbanísticos que levaram a formação de diferentes formas de expansão da cidade. Enquanto a Zona Sul apresentou um crescimento marcado pela presença de constantes intervenções urbanísticas e pela atividade do capital imobiliário, visando atrair os setores mais ricos da cidade para seus empreendimentos, o Subúrbio crescia de forma descontrolada contanto com pouquíssima infraestrutura estatal a qual, quando existia, era gerada, principalmente, ao redor das fábricas que se instalavam pelos subúrbios9. Esta estratificação da cidade na qual as classes abastardas ocupavam a Zona Sul e parte da Zona Norte enquanto a população pobre se concentrava nos Subúrbios já estava bem definida no início da década de 193010. Este cenário, porém, seria alterado por uma série de transformações econômicas, demográficas e técnicas que teriam palco no Rio de

2307

Janeiro no período pós-1930. Como destacado em farta bibliografia, a década de trinta representa uma mudança fundamental na estrutura econômica do país pois neste momento o setor industrial passa a ser o mais dinâmico da economia 11. O Rio de Janeiro ao ser sede do segundo maior parque industrial do país não ficaria imune a este processo de expansão ao longo da década o número de estabelecimentos industriais cresce cerca de 30% enquanto o valor nominal de produção aumenta incríveis 441% 12. Para nossos fins, deve-se destacar o deslocamento industrial ocorrido na cidade. No início do século XX a indústria carioca se encontrava concentrada no centro da cidade, exceção feita ao setor têxtil que por suas peculiaridades ocupava as extremidades da malha urbana como nos subúrbios de Bangu e Piedade e, na zona sul, os bairros de Laranjeiras e os arredores da Lagoa Rodrigo de Freitas. Este cenário começou a se alterar nas décadas de 1910 e 1920 com a progressiva ocupação dos subúrbios por instalações industrias no qual podemos destacar a instalação da General Eletric em Maria da Graça e da Fábrica de Tecidos Nova América em Del Castilho. Este processo gerado de forma espontânea pela iniciativa privada foi intensificado no pós-1930 devido a entrada em cena de incentivos estatais. Graças à intervenções como as ações de saneamento do DNOS, Departamento Nacional de Obras de Saneamento, e a inauguração de novas vias como a Avenida Brasil, se formou uma nova zona industrial na cidade13. Junto ao crescimento da indústria, a população da cidade também sofreu um aumento significativo na década de 1930. Tendo passado da marca de um milhão de habitantes no começo dos anos 1920, a população carioca atingiria a marca de 1.433.000 no decênio seguinte. Em 1937 a população carioca já aumentará para cerca de 1.663.800 atingindo mais de 2.300.000 nos quinze anos seguintes14. Este crescimento não foi acompanhado de uma melhora significativa nos transportes públicos. Os problemas de circulação da cidade e a distância entre os locais abertos a loteamento e os locais de trabalho levaram uma série de autores a enxergar nesta contradição a base da proliferação acelerada de favelas no pós-1930. Outra fonte de transformações na fisionomia da cidade seria adoção da técnica do concreto armado que revolucionaria a indústria da Construção Civil e o mercado imobiliário carioca. Por volta de 1930 a expansão da zona sul encontrou um forte limitador territorial. Conforme nos conta Mauricio de Abreu, “a expansão para além do Leblon exigiria investimentos de monta, para os quais nem o poder público nem a

2308

empresa privada estavam preparados ou dispostos a realizar 15”. Adoção da técnica do concreto armado possibilitou uma mudança significativa dentro deste quadro. Apesar das discordâncias sobre o começo de sua utilização16, a técnica do concreto armado foi disseminada de forma maciça no início da década de 1930. Por conta disto o processo de verticalização das construções atingiu as áreas mais valorizadas pelas incorporadoras imobiliárias do Rio de Janeiro os Bairros do Leblon, Ipanema e, principalmente, Copacabana. Os palacetes e as construções de dois e três pavimentos foram substituídos por prédios de oito a doze pavimentos. Com isso, o mercado imobiliário pode satisfazer a demanda dos setores médios por habitar na “área nobre” da cidade. Este movimento que se inicia na década de 1930 e atinge seu ápice nas décadas seguintes tem como sua consequência o crescimento vertiginoso da densidade demográfica de Copacabana que passa do oitavo bairro mais ocupado em 1930 para terceiro dez anos depois. Outra prova deste fenômeno é o crescimento da indústria da Construção Civil carioca que se torna um ramo de destaque em número de estabelecimentos, valor de capital e empregados17. II- Zoneamento e controle do espaço urbano As contradições geradas pelo crescimento urbano do Rio de Janeiro geraram diversas demandas por medidas regulação da ocupação do solo da cidade. Uma das primeiras investidas legislativas foi o Decreto 2087 de 1925 sobre o regulamento das construções e reformas de prédios no Distrito Federal que tem como seu mérito a adoção do primeiro zoneamento da cidade18. Esta legislação seria completada pelo Decreto 5481 de 1928 que estabeleceria as bases para o processo de verticalização das construções ao apontar que uma mesma propriedade podia ser fracionada em unidades com diferentes proprietários desde que tivessem mais de cinco pavimentos19. Apesar da importância destas inciativas pioneiras, uma legislação que abrangesse de forma detalhada todo os território urbano e determinasse seus usos só seria promulgada em 1937. Fruto do trabalho do corpo técnico da municipalidade, sob a direção do Engenheiro Marques Porto, o Decreto que estabeleceu o Código de Obras do Distrito Federal foi publicado no último dia da breve gestão do interventor Olímpio de Melo20. Por conta da continuidade do mesmo corpo técnico ao longo da gestão seguinte, na qual se gestou um plano de intervenções urbanas compatíveis com as determinações do Código, consideramos o Código como um dos componentes da intervenção urbana de Henrique

2309

Dodsworth. Constituindo-se como a primeira tentativa de regulação geral de uso e ocupação solo da cidade21, sua formulação inicial propunha que a legislação sofreia uma nova regulamentação a cada cinco anos, proposta que não foi seguida sendo este Código, agregado de pequenas modificações, mantido pelos trinta anos seguintes22. o Código de Obras dividiu a cidade em cinco diferentes zonas: Zona Comercial; Zona Industrial, Zona Residencial, Zona Portuária e Zona Agrícola ou Rural. A Zona Comercial cobria as áreas das antigas freguesias centrais da cidade e era dividida em três partes a ZC1; ZC2 e uma subzona especial constituída pelos os terrenos da esplanada do Castelo. A primeira parte, Zona Comercial, se estendia pelo litoral da Praça Mauá até a Praça Paris e aprofundava-se pelo interior até atingir a altura da Praça Tiradentes e da República. As construções destinavam-se a estabelecimentos comerciais, negócios diversos e habitações. Os gabaritos foram fixados de acordo com a largura do logradouro. Em logradouros até 10 metros de largura, o gabarito era calculado até duas vezes a largura do logradouro em questão. A diretoria de engenharia cabia dar permissão para construções destinadas a indústrias leves, tipografias, laboratórios, casas de diversões e similares23. Por sua vez, a Zona Comercial 2 se estendia pela Rua Riachuelo, Rua Frei Caneca e adjacências passava pela praça da Bandeira e atingia o leito da Estrada de Ferro Central do Brasil na altura de São Cristóvão. As construções destinavam-se a estabelecimentos comerciais em geral, sendo permitido depósitos de materiais ao contrário da primeira zona. O gabarito foi fixado no seu mínimo em três ou quatro pavimentos para algumas regiões24. Entre estas duas zonas era constituída a Subzona Especial que compreendia as terras da Esplanada do Castelo e do aeroporto Santos Dumont. Esta área receberia um plano de urbanização na gestão Dodsworth. Os gabaritos variavam pois o intuito era o d formar um conjunto arquitetônico homogêneo em cada quadra25. A Zona Industrial partia da Ponta do Caju passava pelo Largo do Benfica, pela Avenida Suburbana e, daí seguia em direção à Baixada Fluminense. A Zona Industrial foi limitada por uma linha que, partindo da extremidade da Ponta do Caju se estendia pelo bairro de São Cristóvão e adjacências. Além de incluir as áreas ao redor Avenida Suburbana; desta avenida até a Estrada de Manguinhos seguindo em direção aos limites da cidade. Como nos conta Maria da Glória Leal, os Decretos 7.336 e 8.140 ampliaram esta zona com o

2310

acréscimo de uma faixa de 250 metros de largura em cada lado do leito da Estrada de Ferro Central do Brasil, outra faixa do leito da antiga Estrada de Ferro Rio D’ Ouro e mais uma faixa da mesma largura ao logo de cada lado da Avenida Brasil. Foi também incluída na ZI a região da Estrada Vicente de Carvalho, do Rio Meriti e Acari, que passava pelo leito da Estrada de Ferro Leopoldina26. As construções eram destinadas à fábricas em geral sendo permitidos construções com até 5 pavimentos27. Por sua vez, a Zona Portuária compreendia as áreas ao redor do porto da cidade indo da Avenida Francisco Bicalho passava pela Praça do Caju e chegava a Praça Mauá. Em tal área eram permitidas as construções de trapiches, armazéns, depósitos, habitações e similares. Eram proibidas construções de indústrias nocivas à saúde, depósitos inflamáveis e explosivos. O gabarito máximo permitido aos edifícios nesta área eram 4 pavimentos. A maior zona prevista no Código era a Zona Residencial que por conta de sua extensão foi dividida em três partes. A Zona Residencial 1 agrupava bairros tanto da Zona Norte quanto da Sul. De um lado, reunia os bairros de Copacabana, Glória, Catete e Botafogo, de outro, grande parte da Tijuca. As construções destinavam-se a habitações enquanto ao comércio só era permitido o estabelecimento de um lado do quarteirão quando este já estivesse com 60% ocupado por casas comerciais. A determinação do gabarito dos logradouros seguia o critério de sua largura. Em toda a área eram permitidas as construções de no mínimo dois e no máximo seis pavimentos, exceção feita para algumas partes da zona sul onde eram permitidos prédios com até 14 andares28. A segunda parte da Zona Residencial compreendia os terrenos situados no morro da Glória, alguns outros na proximidade da estação de Triagem. Além da rua Barão do Bom Retiro chegando ao Pico da Tijuca e ao início da Avenida Niemeyer. As construções não poderiam cobrir mais de 60% da área total do lote e o gabarito variava entre dois e três pavimentos. A terceira parte da Zona Comercial compreendia a Avenida Niemeyer, indo até a Barra da Tijuca passando por Jacarepaguá e chagando até Madureira. Além destas áreas, faziam parte da Zona Residencial 3 as Ilhas do Governador e Paquetá e os núcleos populacionais da Zona Rural. Na terceira parte da Zona Residencial eram permitidos as construções de no máximo dois pavimentos. Um dos aspectos que mais se destacam no Código de Obras de 1937 é o controle que se impõe sobre as habitações populares. Não era permitida a construção de vilas na zona

2311

Portuária; Comercial e nas principais vias da primeira e segunda parte da Zona Residencial. As denominadas habitações proletárias foram só poderiam ser erguidas na Zona Residencial 3 e na zona rural. Os cortiços, forma de habitação extremamente disseminada no início do século, tinham sua construção proibida, aos existentes não era permitido nada além de pequenos consertos29. As favelas, pela primeira vez citadas na legislação oficial, eram tratadas como “habitações anti-higiênicas” que deveriam ser rigorosamente fiscalizadas para evitar sua proliferação. O Código também estabelecia que as demolições dos barracos podiam acontecer com aviso de apenas 24 horas de antecedência30. Como nos mostra Maria Laís Pereira da Silva a análise do Código de Obras mostra a existência de barreiras a expansão de favelas mesmo em artigos não ligados diretamente a tais tipos de moradia como demostra a análise dos artigos sobre a construção de casas de madeira31. Como nos conta Silva, no capitulo XIII, artigo 292 “a construção de casas de madeira só será permitida em ZA e nos morros situados fora da ZC, ZP, ZI, e ZR1, não o sendo, entretanto, nos morros de Santa Tereza, do Pasmado, da Babilônia no morro dos Cabritos e do Cantagalo32”. Além disto, a legislação ainda desenvolvia uma série de exigências para a construção de casas de madeira, características da favelas da época, como a obrigatória conexão à rede de esgotos que praticamente eliminariam a possiblidade de sua construção legal por parte dos setores mais pauperizados da sociedade33. Por outro lado, as habitações destinadas aos setores médios e a burguesia não sofrem das mesmas limitações impostas as construções populares. Esta tendência pode ser observada na autorização de aumento dos gabaritos nas áreas mais valorizadas da cidade. Como nos conta Lígia de Oliveira, na primeira parte da Zona Residencial, especialmente na Avenida Atlântica, onde já se desejava uma verticalização intensa, eram permitidos prédios dez pavimentos ou 34 metros de altura34. Os mesmos incentivos à verticalização já se observavam na Avenida Augusto Severo, Rua do Russel, Praia do Flamengo e na Praia de Botafogo entre a Avenida Ruy Barbosa e Marques de Abrantes. (Mínimo de 5 e máximo de 10 pavimentos). Também nos trechos das ruas que desembocavam na Avenida Atlântica as construções podiam atingir 10 pavimentos, sendo que nas ruas Belfort Roxo, Ronald de Carvalho o e Conselheiro Souza Ferreira o gabarito máximo chegava a quatorze pavimentos. Já na ZR-2 as construções não podiam cobrir mais de 60% da área do lote, tendo afastamento de 3.00 M em relação ao alinhamento dos logradouros, salvo nas avenidas Viera Souto, Delfim Moreira, Epitácio Pessoa e Visconde de Albuquerque35.

2312

A grande importância deste código e sua convergência com os interesses de diversas frações do capital aparece logo na definição da zona residencial e na exclusão de bairros como Gávea, Jardim Botânico e Laranjeiras da zona industrial. Apesar de tais bairros apresentarem uma longa tradição fabril contando com grandes fábricas ativas na época da promulgação do código, os interesses a construção civil e do capital imobiliário prevaleceram. Ocupando terrenos extremamente valorizados e impedidas de se expandir as indústrias presentes nestes bairros ou enceraram as atividades ou se transferiram. Exemplos deste movimento se encontra no fim da Fiação e Tecelagem Aliança localizada em Laranjeiras que deixou de existir no mesmo ano de 1937 e deu lugar a um grande empreendimento imobiliário ao qual se originou a atual rua General Glicério. Mesmo destino segui outra grande indústria têxtil a Fábrica Corcovado no bairro do Jardim Botânico que no ano seguinte encerrou suas atividades e teve seu terreno fatiado por empreendimentos imobiliários voltados aos setores abastados do sociedade36. O Código de Obras ainda incluía na Zona Residencial as áreas do ramal de Santa Cruz e a margem à esquerda da linha-tronco da Estrada Ferro Central do Brasil, na qual se situava a grande Jacarepaguá, por conta de estarem afastadas das vias de comunicação ferroviárias com São Paulo e Minas Gerais e das linhas principais de energia elétrica fato que as impossibilitava de servirem aos interesses da indústria37. A oficialização das áreas industriais da cidade foram de vital importância para se estabelecer as políticas de intervenção urbana nestas áreas que passariam por um grande crescimento econômico e demográfico nas décadas seguintes. Dentro da gestão Dodsworth se destacam duas importantes obras os trabalhos de saneamento realizados pelo DNOS, realizado em parceria com o Governo Federal, e a construção da Avenida Brasil. Como nos conta José de Oliveira Reis, chefe da Comissão de Planos da Cidade na Gestão Dodsworth, a saída cidade em direção à São Paulo “Constituíam-se um verdadeiro suplício pela travessia da região suburbana. O trajeto era feito por ruas estreitas com um tráfego cada vez mais intenso. O novo trajeto as margens da Baía foi a solução lógica pois era realizado em região totalmente livre38” Por último é necessário destacar as transformações no perímetro definido como Zona Comercial pela legislação urbanística de 1937. O centro histórico do Rio de Janeiro definido como a zona comercial passaria por uma grande intervenção urbana na gestão de Henrique Dodsworth com a abertura da Avenida Presidente Vargas. As obras da nova avenida resultaram na derrubada de mais de 470 prédios e na destruição de grande parte 2313

do Distrito de São Domingos, além disto, áreas populares de grande importância sociocultural da cidade como a Praça Onze de Julho foram totalmente arrasadas. Apesar das semelhanças com o processo de abertura da Avenida Rio Branco, as outras da Presidente Vargas teriam um destino diferente. Ao invés de serem ocupadas por grandes edifícios de escritórios e sedes de empresas, as laterais da nova via passaram décadas com grandes terrenos vazios de construções. Como nos mostra Mauricio de Abreu, esta estagnação da área central tem a ver com o vazio populacional que atingiu o centro histórico da cidade, resultante destas obras, e à fuga de capitais para o bairro de Copacabana que atraia grande quantidade de serviços e comércios antes sediados no centro que migravam por conta de crescimento imobiliário da zona sul39. III-Conclusão Representando uma época de aumento do controle urbanístico da cidade, o primeiro Código de Obras obteve sucesso na moldagem de alguns aspectos do desenvolvimento urbano do Rio de Janeiro no final da primeira metade do século XX. Ao oficializar a zona industrial da cidade, o Código ajudou o poder público no desenvolvimento de medidas que auxiliaram o desenvolvimento econômico de uma parcela importante dos subúrbios. Ao mesmo tempo, a legislação abrangeu os interesses da Construção Civil nas áreas mais cobiçadas pela especulação imobiliária ao estabelecer regras, e incentivar, a verticalização das construções em determinadas áreas da Zona Sul e do Centro da cidade. Por outro lado, apesar de ter o mérito de reconhecer a existência das favelas o Código não foi eficaz em estabelecer uma solução que determinasse o fim da crise habitacional da cidade. Ao propor a simples remoção, o Código de 1937 acabou por não armar o poder público com uma solução eficaz para a moradia popular, problema que só se agravou nas décadas seguintes. Com isto, podemos concluir que o controle espacial representado por esta legislação teve sua eficácia limitada ao direcionamento espacial das atividades produtivas, aumentando as contradições do crescimento da malha urbana nas décadas seguintes.

1

Mestrando em História na Universidade Federal Fluminense sob orientação do professor Cézar Teixeira Honorato. Bolsista do CNPQ. Contato: [email protected]

2314

2

LEVY, Maria Bárbara. A indústria do Rio de Janeiro através de suas sociedades anônimas. 1º edição. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, Secretária Municipal de Cultura do Rio de Janeiro, 1994. P. 95 3 LEVY, Maria Bárbara. Op. Cit. P. 115 4 FREITAS FILHO, Almir Pita. FREITAS FILHO, Almir Pita. A industrialização no Rio de Janeiro, 1930-1945: indústria e industriais no antigo Distrito Federal. Niterói: ICHF-UFF, 1986 (Dissertação de mestrado). 5

LESSA, Carlos. O Rio de Janeiro de todos os Brasis: uma reflexão em busca da autoestima. 1º edição. Rio de Janeiro: Record, 2000. P. 27 6 LESSA, Carlos. Op. Cit. P. 27 7 ABREU, Mauricio de Almeida. Evolução Urbana do Rio de Janeiro. 4º edição. Rio de Janeiro: IPP, 2013 8 BENCHIMOL, Jaime Larry. Pereira Passos: um Haussmann tropical. Rio de Janeiro: Secretária Municipal de Cultura, 1990. 9 ABREU, Mauricio de Almeida. Op. Cit. P. 25-30. 10 ABREU, Mauricio de Almeida. Op. Cit. P. 94 11 FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. 32º edição. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2003. P. 198 12 ABREU, Mauricio de Almeida. Op. Cit. P. 99 13 ABREU, Mauricio de Almeida. 100 14 LEAL, Maria da Glória de F. A construção do espaço urbano carioca no Estado Novo: a indústria da construção civil. Niterói: ICHF/UFF, 1987 (Dissertação de mestrado). P. 163 15 ABREU, Mauricio de Almeida. Op. Cit. P. 112 16 SILVA, Lúcia Helena Pereira da. O Rio de Janeiro e a reforma urbana da gestão Dodsworth 1937/1945: a atuação da Comissão de Planos da Cidade, In: ENCONTRO NACIONAL DA ANPUR, 5, 1993, Belo Horizonte, Anais... Belo Horizonte: UFMF, CEDEPLAR, 1995, v. 2 P. 48 e FREITAS FILHO, Almir Pita. Op. Cit. 17 FREITAS FILHO, Almir Pita. Op. Cit. 48 18 REZENDE, Vera F. Planos e regulação urbanística: a dimensão normativa das intervenções na cidade do Rio de Janeiro. In LIPPI, Lúcia (Org.). Cidade: história e desafios. 1º edição. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002. p. 259 19 REZENDE, Vera F. Op. Cit. P. 259 20 REIS, José de Oliveira. O Rio de Janeiro e seus prefeitos: evolução urbanística da cidade. 1. Ed. Rio de janeiro: Prefeitura da cidade do Rio de janeiro, 1977 21

LEAL, Maria da Glória de F. op. Cit. P. 150 OLIVEIRA, Ligia. Gomes de. Desenvolvimento urbano da cidade do Rio de Janeiro: uma visão através da legislação reguladora da época(1925-1975). Rio de Janeiro: DPU/COPPE/UFRJ, 1978. (Dissertação de Mestrado). Op. Cit. P. 23 23 LEAL, Maria da Glória de F. op. Cit. P. 152 24 LEAL, Maria da Glória de F. op. Cit. P. 153 25 OLIVEIRA, Ligia. op. Cit. P. 23 26 LEAL, Maria da Glória de F. op. Cit. P. 168-173 27 LEAL, Maria da Glória de F. op. Cit. P. 154 28 LEAL, Maria da Glória de F. op. Cit. P. 156 29 LEAL, Maria da Glória de F. op. Cit. P. 158 30 Idem 31 SILVA, Maria Laís Pereira. Reflexões sobre a política habitacional na Era Vargas. In RESENDE, Vera F. (org.) Urbanismo na Era Vargas: a transformação das cidades brasileiras 1º edição. Niterói: Intertexto, 2012. P.318 32 SILVA, Maria Laís Pereira. Op. Cit. P.319 33 Idem 34 OLIVEIRA, Ligia. Op. Cit. P. 24 35 Idem 36 ABREU, Mauricio de Almeida. Op. Cit. P. 101 37 Idem 38 REIS, José de Oliveira. Op. Cit. P. 112 39 ABREU, Mauricio de Almeida. Op. Cit. P. 115 22

2315

A coroação da primaz mineira em Monumento Nacional

Pollianna Gerçossimo Vieira Mestranda em História Universidade Federal de Ouro Preto Orientador: Francisco Eduardo de Andrade E-mail: [email protected]

A presente comunicação tem como intuito expor, através da análise das obras historiográficas, Mariana e seus Templos (1938) e Breviário Histórico e turístico da cidade de Mariana (1945), escrita por Salomão de Vasconcelos (1877-1965), a constituição de uma Cidade Monumento Nacional (1945). Neste estudo, notamos uma emergência para a salvaguarda da cidade de Mariana, lócus, para o autor, do tripé fundamental da identidade mineira: a religiosidade, a liberdade e a arte. Palavras Chave: Mariana; identidade; Monumento Nacional.

Abstract This article has the intention to expose, through the analysis of historiographical works, Mariana e seus Templos (1938) e Breviário Histórico e turístico da cidade de Mariana (1945), written by Salomão de Vasconcelos (1877-1965), the establishment of a city National Monument (1945). In this study, we notice an emergency to safeguard the city of Mariana, locus, for the author, of Minas Gerais identity: religion, freedom and art. Keywords: Mariana; identity; National Monument.

A palavra patrimônio é usada desde a Antiguidade e designava o conjunto de bens transmitidos de pai para filho, conjecturados não segundo o valor de uso, mas como uma herança que o filho tem o direito de receberi. Até o final do século XVIII as iniciativas daquilo que se chamou de patrimônio no século XX eram isoladas, os antiquários eram os principais guardiões dos objetos antigos. Somente no final do XVIII, com as ameaças de destruição e perda das obras arquitetônicas e de arte, que o Estado assumiu para si, o interesse à proteção do patrimônio entrelaçando a isso a constituição da nação. Assim, “[...] a noção moderna de patrimônio começa a aparecer através da preocupação moral e pedagógicaii”. O Patrimônio Histórico passou a ser um conjunto de objetos (físicos ou abstratos) pertencentes a uma comunidade. “A idéia de posse coletiva como 2316

parte do exercício da cidadania inspirou a utilização do termo patrimônio para designar o conjunto de bens de valor cultural que passaram a ser propriedade da nação, ou seja, do conjunto de todos os cidadãosiii”. No século XX, aumentou-se a abrangência do domínio patrimonial, alargando à cidades inteiras, bairros e conjuntos edificados. Choay chama a esta resposta de conservação reativa, aquela que visa a conservação dos bens condenados, o interesse para a história, a beleza do trabalho, o valor pedagógico dos monumentos ou do patrimônio histórico. “Indivíduos e sociedades não podem preservar e desenvolver a sua identidade senão na duração e através da memóriaiv”. Foi então, dentro deste movimento que a ideia de Monumento começou a entrar na cena patrimonial com o sentido de manter e preservar uma identidade através da afetividade. A natureza afetiva do seu propósito é essencial: não se trata de apresentar, de dar uma informação neutra, mas de tocar, pela emoção, uma memória viva. [...] A especificidade do monumento deve-se precisamente ao seu modo de atuação sobre a memória. Não apenas ele a trabalha e a mobiliza pela mediação da afetividade, de forma que lembre o passado fazendo-o vibrar como se fosse presente. Mas esse passado invocado, convocado, de certa forma encantado, não é um passado qualquer: ele é localizado e selecionado para fins vitais [...]v.

Segundo François Choay, existe diferença entre monumento e monumento histórico, o primeiro é uma criação cujo destino foi assumido a priori, já o segundo não é desejado inicialmente e criado enquanto tal, ele é constituído a posteriori, depois de uma seleção feita pelos olhares especializadosvi. De acordo com essa perspectiva todo documento do passado pode ser convertido em testemunho históricovii. Para Caion Natal, “a cidade feita monumento requer uma visão que privilegia a forma tal como ela se apresenta ao olhar, como se esta forma encarnasse, em si mesma, as virtudes reveladas através da históriaviii”. É neste tempo, marcado pela abrangência e intensa discussão patrimonial, que Salomão de Vasconcellos está inserido. As obras analisadas para este artigo explicitam claramente a urgência na constituição de sua cidade natal em Monumento, por ser ela, a origem identirária de um estado. Salomão de Vasconcellos nasceu no dia 2 de janeiro de 1877, na Fazenda S. João de Crasto, atual território da cidade de Mariana. Foi herdeiro de uma das famílias mais ilustres dos primórdios de Minas Gerais, é filho de Francisco Diogo de Vasconcellos (irmão do afamado historiador Diogo de Vasconcellos) com D. Maria Madalena Vasconcellos e sobrinho neto de Bernardo Pereira de Vasconcellos. Esta genealogia mostra que Salomão de Vasconcellos nasceu em meio à uma família abastada e de grande participação na vida política da região e do Brasil.

2317

Aos 15 anos de idade Salomão de Vasconcellos é enviado a Ouro Preto e vai morar com seu tio, Diogo de Vasconcellos, fato que viria a ser decisivo na sua carreira enquanto historiador. Durante a estadia com seu tio aprendeu a arte da Taquigrafia, que mais tarde (1895) o renderia o trabalho de taquígrafo do Congresso (Senado e Câmara), tendo ele apenas 18 anos, fato este comentado em vários jornais mineirosix. Em junho de 1895 o Congresso reabre seus trabalhos e a partir desse dia Vasconcellos começa sua primeira profissão. Aproveitando dessa arte, da Taquigrafia, se dispôs a praticá-la na Academia de Direito, e ali começou a aprender lições de Filosofia do Direito, aula ministrado pelo Professor Dr. Antônio Augusto de Lima, motivo pelo qual o levou a cursar Direito, formando em 1905 e em 1915 se forma em medicina. Depois de anos atuando na medicina e no direito foi nas letras que se reconfortou, “fazendo-se escritor, agora embalado por esta outra constante de todo homem culto – o amor ao passadox”. Foi em sua terra natal, a cidade de Mariana, que ele se reencontrou e iniciou a nova carreira, a de historiador. Convidado pelo então Prefeito de Mariana, Dr. Josafá Macedo para organizar o arquivo municipal, Vasconcellos se encantou com o passado e suas nuances. Após isto, foi convidado, por Dr. Rodrigo Melo Franco, então diretor do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, para colaborar com as pesquisas do SPHAN (Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), fase da vida na qual publicou a maior parte de suas obras, a maioria delas lembrava a importância de sua terra natal para com a nação, fazendo questão de colocar em papel preponderante os filhos de Mariana. Daí em diante, por mais de 25 anos, tornou-se um estudioso da história do Brasil e passou a ocupar um lugar de destaque entre os historiadores da época, ganhando o cognome, Mestre. Herdando de sua famíliaxi a mesma preocupação com os problemas de sua região, Vasconcellos expõe em suas obras a necessidade de se conhecer melhor o passado da cidade de Mariana, cidade para ele a origem das Minas. A ida de Vasconcellos para casa de seu tio, Diogo de Vasconcellos, e o trabalho de taquígrafo na Câmara, o fez logo cedo participar das discussões acerca do patrimônio no período da mudança da capital mineira de Ouro Preto para Belo Horizonte. O futuro historiador viu de perto as discussões entre mudancistas e não mudancistasxii e sentiu, depois da mudança, o abandono que ficou sua terra natal. Vivendo as mudanças efetuadas pelos modernistas na arquitetura e urbanização das cidades, mas, preso em uma tradição católica, o que representou a dualidade moderno/antigo, Salomão de Vasconcellos materializa uma tradição que deve ser guardada para que o processo civilizacional iniciado com os europeus não se perca no curso da história. Para isto era preciso

2318

“patrimonializar” os monumentos, obras de arte e até cidades inteiras que possuíssem resquícios de uma vida tradicional cristã com funções formadoras na vida social e política. Para tal processo patrimonial Vasconcellos viu em algumas instituições o espaço ideal, onde poderia angariar parceiros e assim disseminar o seu projeto. Uma das mais importantes instituições da qual participou foi o IHGMG (Instituto Histórico Geográfico de Minas Gerais), além deste, o autor foi colaborador e também representante do 3°distrito do SPHAN em Minas Gerais no período de 1938 à 1945, cargo que passou a seu filho Sylvio de Vasconcellos. Em ambas as instituições Vasconcellos teve um papel preponderante na consolidação da cidade de Mariana em Monumento Nacional. Ao analisarmos suas obras nos deparamos com o que seria, para ele, essencial à continuidade do processo civilizacional, e este estava sob o símbolo de uma cidade; sua terra natal, Mariana. Assim, ele materializa a cidade de Mariana em Monumento pelo fato de que esta, encerra em si, três fundamentos essenciais na continuidade da história – a política (e aqui inserem os movimentos em prol a liberdade e sua família), a religião e a arte. Portanto, tudo que diz respeito à essa tríade, Vasconcellos considera patrimônio, pois foi nas terras mineiras da cidade de Mariana que os primeiros gritos de liberdade surgiram, esta terra foi a primeira vila mineira, primeira capital, primeira sede do bispado e primeira cidade. Vasconcellos buscou os traços universais, como a religião e a luta pela liberdade e os entrelaçou aos traços singulares, sendo eles a prematuridade da consciência mineira e a arte como expressão política e religiosa. Neste duplo caminho, entre universal e singular, o autor constrói uma cidade referenciada como Monumento. Um passo importante da elevação da cidade de Mariana em Monumento Nacional foi a publicação do artigo intitulado Bi-centenário de Mariana – o encontramos tanto na Revista do IHGMG, quanto no livro Breviário Histórico e Turístico da cidade de Mariana. Antes de publicá-lo ele já tinha o citado em uma carta para Rodrigo M. F. A., dizendo estar ocupado com sua mais nova obraxiii. Isto significa que o diretor do SPHAN estava ciente do bi-centenário da cidade de Mariana. Essa publicação foi um pontapé inicial para a coroação de Mariana, nela o autor descreve a importância da cidade origem, de onde “desfraldou-se pela primeira vez o lábaro do poder civil em nossa terra e dali irradiaram os primeiros clarões da civilização cristã da pátria mineiraxiv”. Não lhe bastava, porém, essa dignidade, pequena ainda para os seus destinos, e trinta e quatro anos mais tarde, concorrendo-lhe outros atributos e novos brasões, marcou-se-lhe, em definitivo, a hegemonia de Cidade, que lhe outorgou – faz hoje precisamente dois séculos – a carta régia de 22 de abril de 1745xv.

2319

Este passado que invoca como sendo a origem acalma a aflição das incertezas dos começos. É um passado selecionado pelo olhar do intelectual, que conta, para ele, sobre uma época áurea e “pode, de forma direta, contribuir para manter e preservar a identidade de uma comunidadexvi”. Em 17 de abril de 1945 o Instituto Histórico e Geográfico envia ao Ministro da Educação e Saúde Pública, Gustavo Capanema, um abaixo-assinado constando uma solicitação para encaminhar ao Presidente da República o ofício incluso à carta, para que este conceda a graça de estender a Mariana o título de Monumento Nacional. Exmo. Sr. Dr. Getulio Vargas. DD. Presidente da República. [...] Indicamos que o Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais represente ao Exmo. Sr. Presidente da República, no sentido de extender à Mariana os fóros de CidadeMonumentoxvii.

E o autor continua o pedido explicitando os atributos que fazem de Mariana uma Cidade-Monumento, não obstante cita tais qualidades na carta endereçada ao Presidente. Considerando que foi Mariana a primeira Vila Mineira, a primeira Metrópole dos Governadores da Capitania, em cuja Câmara Municipal se desfraldou pela primeira vez o estandarte das municipalidades em tôda Minas; [...] Considerando que foi a primeira e única cidade Mineira durante todo o tempo da Colônia; Considerando que foi em Mariana o berço da civilização cristã no território mineiro, sede do 1° Bispado de Minas Gerais, título que mantem e dignifica durante dois séculos ininterruptos; [...]xviii.

Em 27 de abril, apenas dez dias depois do recebimento da proposta, Capanema a envia ao SPHAN para ser emitido um parecerxix. Rodrigo Melo Franco de Andrade no dia 10 de maio de 1945 encaminha ao Gustavo Capanema uma carta com o parecer favorável à “monumentalização” da cidade de Mariana. No parecer Rodrigo atesta a favor do pedido feito pelo IHGMG, segundo consta no documento a seguir: Com referência à representação do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, apoiada com entusiasmo pelo Senhor Prefeito Municipal de Mariana, no sentido de ser concedida àquela venerada cidade o título de monumento nacional, na oportunidade do transcurso do bi-centenário da criação respectivo bispado, cumpre-me informar o seguinte: Para fins estabelecidos no decreto-lei nº25 de 30 de novembro de 1937, o conjunto arquitetônico e urbanístico nacional, por ter sido inscrito nos Livros do Tombo a que se refere o artigo 4º do citado decreto-lei, conforme notificação nº 43 expedida à competente autoridade municipal em 17 de fevereiro de 1938. De acôrdo, portanto, com a legislação em vigor, nenhuma iniciativa falta tomar para o efeito de assegurar-se a preservação de Mariana, nem para lhe ser reconhecido o seu excepcional valor de monumento histórico e artístico. [...] Atendendo a essa circunstância, esta repartição só tem motivos para opinar favoravelmente a aspiração

2320

manifestada pelo douto Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, com o autorizado endosso do Senhor Prefeito Municipal de Marianaxx.

Este parecer fora encaminhado ao Capanema que o enviou no dia 14 de maio do mesmo ano ao Presidente de República e no dia 26 de maio ao IHGMG, como consta em anotações feitas, no documento, pelo próprio Capanema. Em julho Rodrigo também avisa à Vasconcellos que seu pedido fora enviado ao presidente da República. [...] tenho prazer comunicar que o projeto decreto-lei ereção Mariana monumento nacional já foi submetido Presidente República (pt) Logo seja assinado não deixarei transmitir-lhe aviso telegráfico (pt) saudações - Rodrigo M.F. de Andradexxi.

Após o parecer, foi produzido por Rodrigo, em 27 de junho, o Ante projeto do Decretoleixxii, e em 1945 um Decreto-lei nº 7.713 de 6 de julho foi expedido pelo Presidente e escrito por Gustavo Capanema cujo teor se refere a coroação da cidade de Mariana em Monumento Nacional, como pode ver citado: “Art. único. O conjunto arquitetônico e urbanístico da cidade de Mariana, Estado de Minas Gerais, tombado para fins de Decreto-lei n°25, de 30 de novembro de 1937, é erigido em monumento nacionalxxiii”. Portanto, podemos perceber que tal processo se deu de forma rápida e que Vasconcellos teve intensa participação na ereção da cidade de Mariana em Monumento Nacional e seu trabalho no IHGMG fora essencial para isso, como secretário geral mobilizou seus companheiros de Instituto para trabalharem por sua terra natal e acabou por consolidar um discurso unívoco dentro da instituição. Na análise e crítica documental, feitos neste trabalho, a intenção da conservação dos bens tem um telos, emergir Mariana à gênese e para isso Salomão de Vasconcellos, através de suas obras, publicações em revistas e jornais da época, bem como seu trabalho no SPHAN e no IHGMG, foram importante pedra de toque no tombamento de muitos monumentos como também da cidade de Mariana.

Considerações finais Neste artigo, reconstruímos brevemente a trajetória da “monumentalização” da cidade de Mariana investida pelo intelectual Salomão de Vasconcellos. Procuramos examinar como, através de sua perspectiva patrimonial, ele trabalhou em prol à fundação de uma Cidade Monumento que abrigava em si fundamentos de suma importância para a formação identitária de uma região. Salomão de Vasconcellos, em meio a um novo tempo proposto pelo Estado Novo, escreve suas obras referenciando sempre à constituição da cidade de Mariana como a origem,

2321

a pátria. Com isso, ele traça a história de sua pátria como uma civilização cristã. Em suas obras, deixa claro sua religiosidade e a importância do catolicismo para com a evolução dos seres. Para ele, foi o catolicismo o principal vetor civilizacional mineiro e, consequentemente, brasileiro; e esse vetor se instalou pela primeira vez no Arraial do Carmo, primeira povoação em terras mineiras. Outro marco civilizacional é a veia política mineira demonstrada nos movimentos em prol da liberdade da nação, como a Revolta de Vila Rica, cujo líder Felipe dos Santos é denominado por Vasconcellos de “titã da democracia”. Desta forma, percebemos que a Igreja não deveria estar longe dos assuntos do Estado. O patrimônio para ele era o barroco mineiro, principalmente marianense, por unir em si a religião, a arte e a política. Por ter esta concepção patrimonial criticou, em suas obras, o abando da cidade de Mariana – berço, para ele, da tradição mineira – levado pelo urbanismo e pelas novas formas de arte e arquitetura, como pregavam os modernistas, Carlos Drummond Andrade, Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, entre outros intelectuais ligados a tal manifestação. Percebemos que sua concepção patrimonial diverge um pouco daquela pregada pelo grupo do SPHAN, pois, ele visualizava um patrimônio essencialmente católico e dava indícios de um patrimônio imaterial, fundado nos rituais católicos, o que não ocorre no grupo do SPHAN, famoso pela constituição de um patrimônio de “pedra e cal” (aqui é importante matizar pois, não que o imaterial não fosse vislumbrado, mas, ainda era algo de difícil solução, uma vez que, muito do patrimônio imaterial, como a capoeira e outros rituais, foram proibidos pelo Estado Novo). Desta forma ele vê em outras instituições o caminho para propagar suas ideias, como por exemplo no núcleo da Revista História e Arte, grupo de historiadores católicos, encabeçado, principalmente, por Augusto de Lima Júnior. Por fim, neste estudo pudemos identificar a tentativa de Salomão de Vasconcellos em tombar, através das políticas patrimoniais, sua cidade natal, transformando-a em um patrimônio completo e homogêneo, responsável por contar toda uma história mineira.

2322

i

POULOT, Dominique. Uma história do Patrimônio no Ocidente, séculos XVIII-XIX: do monumento aos valores. São Paulo: Estação Liberdade, 2009. ii FONSECA, Maria Cecília Londres. O patrimônio em processo, trajetória da política federal. Rio de Janeiro: UFRJ, 2005. P.58. iii Ibdem, p.58. iv CHOAY, Françoise. A Alegoria do Patrimônio. Trad. Luciano Vieira Machado. 3ª ed. São Paulo: Estação Liberdade/UNESP, 2006, p. 116. v Ibdem, p. 18 vi Ibdem. vii “O documento é monumento. Resulta do esforço das sociedades históricas para impor ao futuro – voluntária ou involuntariamente – determinada imagem de si próprias”. LE GOFF, Jacques. História e Memória.5ª edição. Campinas: Editora da Unicamp, 2003. P. 471. viii A cidade então seria apreendida em seu todo, em uma imagem do passado que deveria ser preservada da ação do tempo. NATAL, Caion Meneguello. Ouro Preto a construção de uma cidade histórica1891-1933.Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas. Campinas: Unicamp, 2007. P. 97. ix Foi comentado nos seguintes jornais: no Farol – de Juiz de Fora, no Minas Gerais e no Jornal do Comércio. x VASCONCELLOS, Décio de. Revista do Instituto Histórico e Gergráfico de Minas Gerais, n°VIII, 1961, p. 365-366. xi É sobrinho neto de Bernardo Pereira de Vasconcellos um dos representantes ilustres do Brasil Império e sobrinho de Diogo de Vasconcellos, intelectual preocupado com o abandono da região de Ouro Preto e Mariana após a mudança da capital mineira para Belo Horizonte. xii Ver: NATAL, Caion Meneguello. Ouro Preto a construção de uma cidade histórica1891-1933. Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas. Campinas: Unicamp, 2007. xiii “[...] ora pela necessidade de fazer uma revisão cuidada em dois livros meus, um já no prelo da Epasa, e outro para o bi-centenário de Mariana.” IN: IPHAN / Arquivo Técnico Administrativo / Série Representante / Nº 57/379/P.275. xiv VASCONCELLOS, Salomão. Bi-centenário de Mariana. Revista do Instituto Histórico de Minas Gerais. nºII, 1946. P.53. xv Ibdem, p. 50. xvi CHOAY, op.cit, p. 18. xvii VASCONCELLOS, op.cit., p. 55 xviii Ibdem, p.56. xix

IPHAN / Arquivo Técnico Administrativo / Série Processo de Tombamento / Nº 069T38, Doc. 3271 IPHAN / Arquivo Técnico Administrativo / Série Inventário / Nº MG 041/2. xxi IPHAN / Arquivo Técnico Administrativo / Série Processo de Tombamento / Nº 069T38, Doc. 3271. xxii IPHAN / Arquivo Técnico Administrativo / Série Processo de Tombamento / Nº 069T38, Doc. 3273 xxiii IPHAN / Arquivo Técnico Administrativo / Série Processo de Tombamento / Nº 069T38, Doc. 3275. xx

2323

Crônicas régias portuguesas: um projeto histórico-literário legitimador

Priscila Cardoso Silva*

RESUMO A pesquisa tem como uma de suas principais preocupações apresentar uma estratégia políticocultural oriunda na Idade Média, mas que permanece até a era moderna. Trata-se de um movimento de produção cronística portuguesa iniciado na primeira metade do século XV que visa não somente construir e legitimar uma memória oficial do reino, mas também divulgar modelos a serem seguidos através das representações de seus reis, rainhas e infantes.

Palavras-chave: Portugal; Idade Média; crônicas.

ABSTRACT The research has as one of the main concerns to present a political-cultural strategy originated in the Middle Ages, but that remains until the modern era. It is about a movement of Portuguese chronistic production started in the first half of the fifteenth century that aims not only to construct and legitimate an official memory of the reign, but also to divulge models to be followed by the images of its kings, queens and princes.

Key words: Portugal; Middle Ages; chronicles.

Em um texto, nem sempre o tempo descrito consiste no tempo vivido pelo narrador, deixando o pesquisador sem alternativa a não ser relacionar historicidade de conteúdo à historicidade de produção. Esse é o caso da cronística portuguesa do final da Idade Média e princípio da Idade Moderna, mais especificamente dos séculos XV e XVI, sobre as quais são suscitadas diversas questões. Por que cronistas como Fernão Lopes (c.1385-c.1460) e Gomes Eannes de Zurara (c.1420-1474) resolveram escrever sobre reis como D. Afonso IV (12911357), D. Pedro I (1320-1367) e D. João I (1357-1433), distantes em anos ou, por vezes, décadas de seu período de atuação profissional? Se a intenção fora traçar uma cronologia de reinados portugueses, por que começar com D. Pedro I ou D. João I, que viveram entre 1320 e 1433, para somente depois narrar os feitos de, por exemplo, D. Dinis (1261-1325), nascido em 1261 e morto em 1325? Como entender a diferença de densidade entre a Crônica de D. João I, que possui nada menos do que sete volumes, e as demais crônicas régias, que 2324

comumente não passam de dois? Essas são algumas problemáticas, dentre outras, que se pretende resolver via discussão sobre quem são esses cronistas régios, quais foram os contextos em que tais fontes foram escritas, a quem elas foram dirigidas e quais eram os objetivos gerais ou específicos de seus autores. Importa, porém, inicialmente refletir acerca da concepção tipológica das crônicas medievais. Michel Zink enfatiza que as primeiras crônicas a surgirem eram moldadas pela “versificação épica ou romanesca”.1 Foi então somente a partir do século XIII que apareceram as crônicas em prosa, embora a dimensão narrativa permanecesse ao longo da modificação. Todavia, se está claro que a base da cronística medieval consiste na narração independentemente da forma sob a qual se encontra organizada, o mesmo não se pode atribuir a sua compreensão como literatura. O que seria literatura? Existe uma literatura medieval? Zink atenta que a aplicação do vocábulo “literatura” deve ser discutida no caso da Idade Média. Embora o termo tenha sua origem na palavra “letra”, a literatura medieval não se vale exclusivamente da escrita propriamente dita.2 O autor indica que, mesmo assim, o termo, inapropriado, serve para operacionalização. Predominantemente oral por tradição – e isso só começa a mudar notavelmente a partir do século XV, com a verificação da leitura silenciosa nas cortes régias e na nobreza laica 3 – à atividade literária medieval interessava o registro de poemas e canções sobretudo para fins de memorização. De acordo com Jacques Le Goff, “durante muito tempo, no domínio literário, a oralidade continua ao lado da escrita e a memória é um dos elementos constitutivos da literatura medieval”.4 Mesmo depois do nascimento de gêneros destinados à leitura como o romance, a leitura costumava ser realizada em voz alta. Todavia, era a escrita que dava autoridade às narrativas e debates. Zink indica que:

A oposição entre letrado e iletrado é decisiva. Os textos antigos são o único modelo autorizado. Tudo se consolida na Escritura. No dia do Juízo, anuncia o Dies irae, “será trazido o livro no qual tudo está contido”. Todos os autores pretendem extrair sua matéria de um livro, de preferência latino. [...] O final da Idade Média concederá nova atenção ao texto conservado, recopiado, reutilizado, e ao livro como objeto.5

Partindo do exposto, se o essencial de um texto escrito consistia em preservar a memória e o passado conferindo-lhes autoridade, narrar a história6 de Portugal através de crônicas bem embasadas parecia conveniente. No que diz respeito ao formato dos relatos narrados e atendo-se às problemáticas específicas do estudo das hagiografias, Cristina Sobral

2325

sugere que o pesquisador leve em conta a elaboração retórica que aproxima narrativas factuais daquelas consideradas ficcionais e evite a dicotomia entre história e literatura.7 Ora, a coexistência entre elementos ficcionais e factuais – assim como a relativa aglutinação de história e literatura – também está presente na cronística portuguesa. Alguns pesquisadores inclusive acreditam que o nascimento da historiografia portuguesa deu-se nos séculos XIV e XV com os cronistas,8 uma vez que esse tipo de literatura que se pode entender para o baixo medievo alimenta-se das situações políticas e foi modelada por ele, até mais do que em outras épocas.9 Ademais, se a crônica tem como intenção preservar a memória, a argumentação de início da historiografia portuguesa com os cronistas pode ser considerada coerente, uma vez que é possível que a história seja compreendida como a institucionalização de uma memória coletiva.10 Tem-se então como conceito de crônica, a partir das reflexões e atribuindo como recorte temporal o final da Idade Média e o início da Idade Moderna, um gênero históricoliterário em prosa e de tipologia narrativa. No caso da cronística portuguesa, as principais representantes são as crônicas régias,11 especificidade da pesquisa e aqui sendo entendidas não somente como aquelas que trazem como protagonistas reis ou homens diretamente ligados a eles, mas também oriundas principalmente dessa corte. Portugal pareceu ter influência de modelos produzidos na França, no território que corresponde à atual Itália e sobretudo na vizinha Castela, onde a historiografia adquiria já no século XIII um desenvolvimento avançado.12 Assim, por volta de 1344, durante o reinado de Afonso IV de Portugal, D. Pedro Afonso (1287-1354) – conde de Barcelos e irmão bastardo do rei – redigiu a Crônica Geral de Espanha de 1344, que tinha por referências primordiais a Crônica General de España, produzida na corte de Afonso X (1221-1284), e outros textos.13 O conde constrói, na Crónica Geral de Espanha de 1344, um extenso parecer que se inicia com a criação do mundo e termina no momento de sua escrita, tornando-se um narrador que dá testemunho de alguns fatos e acontecimentos dos quais é contemporâneo. Oliveira Marques, por sua vez, presume que essa crônica possa ser considerada a primeira obra histórica portuguesa com autor conhecido.14 De qualquer modo, ao menos se concorda com o argumento de Miriam Coser de que “a preocupação com a produção de uma memória do reino português antecede a dinastia de Avis, como mostra a iniciativa do conde D. Pedro”.15 Contudo, foi em torno de 1378, décadas depois da formulação da Crônica Geral de Espanha de 1344, que o cargo de cronista-mor de Portugal sofreu um avanço que caminhou

2326

para sua consolidação. Nesse ano, o último rei da dinastia de Borgonha, D. Fernando (13451383), preocupou-se com a manutenção de um arquivo nacional como parte do patrimônio real. A chancelaria régia ainda não tinha sede fixa e muitos documentos eram perdidos. Imitando então as inovações das chancelarias de Aragão e Navarra, D. Fernando estabeleceu um arquivo permanente na torre de menagem do Castelo de Lisboa – conhecida como Torre do Tombo – que já abrigava documentos e o tesouro real.16 Menos de uma década depois, o primeiro guardador-mor da Torre do Tombo seria nomeado, cujo cargo mais tarde acumularse-ia com o de cronista-mor do reino. Nesse momento, cronistas ligados às famílias reais de Inglaterra, França e Castela já desempenhavam outros cargos e recebiam encomendas magistrais. Esses foram os casos de Pero Lopez de Ayala (c.1332-c.1407), nomeado cronista por Henrique II (1334-1379) durante a dinastia Trastâmara e autor de quatro obras referentes aos reis a quem serviu,17 e Jean Froissart (c.1337-c.1405), cronista flamengo que escrevera sobre a Guerra dos Cem Anos.18 Em 1418, no reinado de D. João I de Portugal, irmão bastardo de D. Fernando, Fernão Lopes assume o cargo de guardador das escrituras do Tombo que já havia sido ocupado por Gonçalo Gonçalves e outros dois antecessores. Nascido entre 1380 e 1390, pertenceu à primeira geração depois dos combatentes de Lisboa de 1383 e da Batalha de Aljubarrota – ou seja, à mesma geração que os filhos de D. João I – e desempenhou uma série de funções tal como outros cronistas europeus da época. Assim, no momento em que Lopes exercia suas primeiras ocupações na corte, Portugal acabava de assinar a paz com Castela e obter o reconhecimento externo de sua independência. Além de ser responsável por dar certidões de documentos régios, no ano de 1418 já era escrivão dos livros do infante D. Duarte (13911438) e, no seguinte, dos livros do rei D. João I. Inserido, desse modo, em um grupo que Jacques Verger nomeia como “homens de saber da Idade Média”,19 o cronista adquiriu um saber especializado através do qual obteve condições de estabelecimento na corte e ligações muito próximas com o poder. No que alude à literatura lopeana, não se sabe ao certo sua delimitação. Alguns autores defendem, por exemplo, que o infante D. Duarte teria entregado a missão de elaborar a Crônica de Portugal de 1419 a Fernão Lopes, começando esse a redigi-la no dia 1 de julho.20 Outros afirmam que a obra é, na verdade, apenas uma refundição da Crônica Geral de Espanha de 1344 sob o título de Crônica dos Sete Primeiros Reis de Portugal, nomeada bem depois como Crônica de 1419.21 Ainda sobre a autoria de outras crônicas, a historiadora Miriam Coser lembra que “autores como Saraiva acreditam que Fernão Lopes teria preparado

2327

ainda material que seria utilizado por seu substituto, [Gomes Eannes de] Zurara, na Crônica da Tomada de Ceuta e outro relativo a D. Duarte, utilizado por Rui de Pina”.22 Seja contribuindo na elaboração da literatura supracitada ou não, Lopes já cumpria funções de prestígio e cargos de confiança régia ainda na segunda década do século XV. Em 1421, acumulou também o cargo de escrivão da puridade de outro filho do rei D. João I, D. Fernando (1402-1437), tarefa que desempenhou até a morte do infante em cativeiro mouro por volta do ano de 1437. Por volta de 1430, recebe o ofício de notário geral (ou tabelião), cargo de nomeação régia que o habilitava a lavrar documentos em qualquer parte do reino. Após a morte de D. João I, Fernão Lopes foi nobilitado e passou à categoria de vassalo do rei D. Duarte, o que aconteceu em torno do ano de 1434. Nesse momento, já exercia a função de cronista de Portugal, inexistente em termos oficiais antes de sua ocupação.23 Inaugurando um ofício régio, Fernão Lopes ficou conhecido mais por seu papel de cronistamor do que por quaisquer outros que tenha desempenhado. Contudo, foi particularmente a partir do reinado de D. Duarte que se pode observar a delineação de um projeto político que envolvia a construção de uma memória nacional e a legitimação de uma dinastia. Assim, pela primeira vez em Portugal, há o registro de que a coroa designou uma tença a um cronista encarregado de escrever a história de seus reis. Uma carta régia de D. Duarte datada de 19 de março de 1434 afirma que Fernão Lopes receberia anualmente 14 000 reais brancos para realizar a tarefa.24 A carta foi citada por Saraiva, que explica que: Em 1434 o rei D. Duarte dizia saber que tinha dado cargo a Fernão Lopes “nosso escrivão” de pôr em crônica “as histórias dos reis que antigamente em Portugal foram” e também “os grandes feitos e atos do mui virtuoso e de grandes virtudes el Rei, meu senhor e pai”, e que atendendo ao trabalho que ele tinha desta obra, lhe concedia uma tença vitalícia de 14 mil reis.25

O documento parece tratar-se, além da inédita concessão de pagamento de uma tença vitalícia para o cronista oficial do reino, um reconhecimento de serviços que já estavam sendo prestados. Conforme Saraiva, um dos prováveis motivos para a escrita das crônicas foi a intenção de D. Duarte de fazer valer uma versão oficial dos acontecimentos referentes ao reinado de seu pai e dos governos anteriores ao dele. Tal versão destinar-se-ia à contraposição com outras existentes no período, como a castelhana, que havia sido escrita pelo chanceler e cronista Pero Lopez de Ayala.26 Em linhas gerais, Fernão Lopes e Avis procuravam desautorizar e impor uma visão portuguesa dos fatos. Dessa maneira, sob a justificativa de estar informando nada mais que a verdade dos acontecimentos,27 Fernão Lopes utilizava-se da própria posição de guardador-mor da Torre do

2328

Tombo28 para ter acesso a uma documentação diversa que cumprisse o papel de legitimação das obras. Algumas cartas encontradas inclusive foram adicionadas às próprias crônicas, conferindo-lhes caráter oficial.29 Sobre essa nova postura frente a determinado aparato documental, Coser enfatiza que:

[...] Lopes foi o primeiro cronista medieval a vivenciar essa familiaridade com os documentos de chancelaria, cartas, diplomas oficiais, tratados, capítulos de cortes, testamentos, bulas, etc., fato que foi subsídio para uma nova maneira de redigir as crônicas.30

Escritas em português arcaico e não mais em galego-português, as crônicas lopeanas então representam uma narrativa a serviço dos monarcas de Avis – representantes de uma dinastia recém-chegada ao poder e que o assumia através da Revolução de Avis e não pelo direito inconteste de hereditariedade31 – que combinam uma espécie de fazer histórico com um cunho moralizante. Afinal, havia a preocupação de situar o monarca no centro da trama e inserir um modelo de sociedade que se amparava particularmente na conduta dos reis.32 Ao processo de construção de um enunciado discursivo e ideológico emitido pelo paço régio a partir do advento da dinastia de Avis deu-se o nome de “discurso do paço”.33 Cunhado por Vânia Fróes, esse conceito encontra-se diretamente relacionado com a afirmação de uma identidade nacional, empenhando-se desde cedo na legitimação do poder real e na consolidação de uma memória coletiva. Reproduzido por meio de textos de diversos gêneros como as crônicas e a poesia cortesã, pelas festas públicas, pelo teatro e por outros instrumentos didático-morais, tal discurso propagandístico produz e organiza uma representação de rei e de reino através do qual se difundem valores, normas e crenças que formam a sua ideologia política. De autoria indiscutível de Fernão Lopes, a trilogia composta por Crônica de D. Pedro I, Crônica de D. Fernando e Crônica de D. João I expressa então uma dupla função de cronista régio – que posteriormente marcaria também os trabalhos de seu sucessor, Gomes Eannes de Zurara – tanto como produtor da memória oficial do reino português quanto como divulgador de modelos a serem seguidos.34 Em um contexto de formação de

Estados

nacionais e expansões marítimas, importa exaltar a tradição e os bons costumes das dinastias lusitanas em prol tanto da construção de uma identidade nacional portuguesa quanto de um reconhecimento externo de Portugal como um reino independente. Nesse sentido, encomendar obras que seriam feitas por cronistas oficiais do próprio reino e que evoquem um passado glorioso surge como uma solução interessante.

2329

Contar a trajetória de D. João mostra-se particularmente importante na história de Portugal porque engloba a explicação da mencionada Revolução de Avis – ocorrida entre 1383 e 1385 – enquanto movimento político. Seu desfecho fora vital para o fim das disputas territoriais entre Portugal e Castela, assim como o estabelecimento da dinastia avisina, inaugurada pelo personagem principal da Crônica de D. João I. Por conseguinte, nada mais coerente do que definir como um dos pontos de origem nos trabalhos de elaboração das crônicas régias portuguesas um reinado que, mais do que ter garantido, em 1411, a oficialização da independência de Portugal frente à Castela, deu o pontapé preliminar no processo de expansão marítima.35 Dessa forma, não seria por acaso que, em comparação com as outras da trilogia lopeana, a Crônica de El-Rei D. João I tenha uma quantidade de fólios notavelmente superior, inclusive possuindo a singularidade de ser composta por duas partes, as quais teriam sido elaboradas durante a regência do infante D. Pedro (1392-1449). Outra justificativa para explicar a extensão da obra, compreendida como “a principal crônica de Fernão Lopes” ou a “obra-prima lopeana”,36 reside na proximidade temporal entre seu protagonista e seu autor. Afinal, Mariana Bonat Trevisan lembra que “na composição da crônica mais próxima ao tempo em que viveu, Fernão Lopes, evidentemente, pôde contar com farta documentação”.37 Assim, em contato direto com os filhos de D. João – principalmente com D. Duarte, quem encomendou a crônica supracitada, D. Pedro e D. Fernando, que deixou em testamento uma herança de 15.000 reais ao cronista38 – Lopes deixou em seus escritos elogios à dinastia de Avis e marcas de sua boa relação. D. João, por exemplo, fora representado nas crônicas como não somente um cristão exemplar, mas também um rei de grandes feitos, sendo suas principais virtudes – a justiça e a piedade – decorrentes tanto de sua educação quanto de sua bondade interior.39 Fernão Lopes então dedicou cerca de três décadas de sua vida como funcionário da coroa e pelo menos duas como narrador oficial da história portuguesa, tendo sua tença aumentada para 20 mil reais, pouco antes de afastar-se do cargo de

cronista,

como

recompensa de seus grandes serviços. Assim, por volta do ano 1451 – possivelmente após a morte do infante e regente Pedro em Alfarrobeira e o início do reinado de Afonso V (14321481) – Lopes foi substituído por Gomes Eannes de Zurara, que recebeu a missão de terminar a terceira parte da Crônica de D. João I, referente à tomada de Ceuta. Sob justificativa tanto de incapacidade do primeiro cronista por estar velho e fraco quanto de valimento do sucessor, não apenas como cavaleiro da Ordem de Cristo, título que fundamentava a mercê, mas também pelos serviços que já prestava a Coroa,

2330

Zurara

igualmente assume a posição de guardador da Torre do Tombo cerca de três anos depois. A última referência que se tem de Fernão Lopes data de 1459 e consiste em um pedido que faz ao rei para deserdar um neto que considerava ilegítimo.40 Supõe-se, então, que o antigo cronista tenha morrido logo depois. Vivendo aproximadamente entre 1420 e 1474, Zurara desde cedo frequentava o ambiente da corte. Menciona em suas crônicas que se educou no Paço Real, e Francisco Maria Esteves Pereira, em introdução à Crônica da Tomada de Ceuta, levanta a hipótese de que Zurara tenha sido admitido no paço ainda muito jovem para ajudar no serviço da guarda, livraria e cartório, fato que então impulsionaria sua instrução literária. Conforme Francisco Pereira, “[...] que el rei D. Afonso V, sendo informado da boa disposição e natural inclinação dêle para os estudos, o mandasse ensinar como os filhos dos fidalgos, que eram instruídos no paço”.41 Observa-se, por conseguinte, que se Fernão Lopes possuía protetores como o rei D. Duarte, o regente D. Pedro e o infante D. Fernando, Zurara também contava com os seus, como, por exemplo, o infante D. Henrique (1394-1460) – de quem recebeu as duas comendas da Ordem de Cristo – e o rei D. Afonso V, de quem adquiriu muitas mercês. Antes mesmo de substituir Lopes na Torre do Tombo, era guarda da Livraria Real desde 1452.42 Todavia, com o avanço das expansões marítimas portuguesas, Zurara tornou-se o primeiro cronista a ter que enfrentar, em seu ofício, a nova dupla realidade de registrar não somente a memória do reino e do rei, mas também a memória das conquistas além-mar, interligando-as em um só processo. Assim, a produção da Crônica da Tomada de Ceuta, tida como a terceira parte da Crônica de D. João I – que não pôde ser concluída por Fernão Lopes segundo o próprio Zurara43 – condiz com a necessidade de conciliar o que já havia sendo feito no que diz respeito à construção da memória nacional ao que se iniciou com Ceuta, no reinado de D. João.44 Por meio do conjunto de crônicas atribuído à autoria de Zurara – Crônica da Tomada de Ceuta, Crônica dos Feitos da Guiné, Crônica de D. Pedro de Meneses e Crônica de D. Duarte de Meneses – constata-se que, em contraste com Fernão Lopes, constrói sua narrativa de maneira a privilegiar mais os feitos dos príncipes do que propriamente a elevação da figura dos reis portugueses ou o retrato do reino como um todo. Trata-se, por exemplo, do caso do infante D. Henrique, exaltado por Zurara especialmente com base em testemunhos orais. Serrão acredita que o cronista tenha sido, além de primeiro biógrafo do infante, seu maior apologista, deixando um legado de lenda ou culto henriquino até os dias atuais.45

2331

* Mestranda em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), com bolsa financiada pela CAPES e sob orientação da Prof.ª Dr.ª Miriam Cabral Coser. E-mail: [email protected]. 1 ZINK, Michel. “Literatura(s).” In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude (orgs.). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru: EDUSC, 2002, v. 2, p. 90. 2 Ibidem, pp. 80-81. 3 Ver ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a “literatura” medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, pp. 105-108. 4 LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Editora da Unicamp, 1990, p. 451. 5 ZINK, Michel. Op. cit., p. 81. 6 Na Idade Média de modo geral, a história deveria ser, segundo Bernard Guenée, “um relato simples e verdadeiro, visando transmitir à posteridade a memória o do que se passou”. Só o que era “digno de lembrança” (fatos memoráveis) era relatado por um discurso histórico. GUENÉE, Bernard. “História”. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude (orgs.). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru: EDUSC, 2002, v.1, p. 526. No entanto, vale lembrar as concepções de Bernard Guenée, que entende que as obras históricas medievais – inclui-se, aqui, as crônicas – são construções eruditas, das quais é perigoso ignorar as ambições e limites. Ibidem, p. 523. 7 SOBRAL, Cristina. “Hagiografia em Portugal: balanço e perspectivas”. Revista Medievalista online, ano 3, n. 3, 2007, p. 17. 8 Ver, como exemplos, SOUSA, Armindo de. “A Monarquia Feudal”. In: MATTOSO, José (dir.). História de Portugal. Lisboa: Estampa, v. 2, 1992, p. 542 e SARAIVA, António José; LOPES, Óscar. História da Literatura Portuguesa. 17 ed. Porto: Porto Editora, 1996, p. 89. 9 ZINK, Michel. “Politique et Littérature au Moyen Âge”. Ena Mensuel: Revue des Anciens Élèves de l’Ecole Nationale d’Administration, Strasbourg, n. 336, dec./2003. Disponível em: 55%

13.080

66%

Dezembro

12º

42 pontos

>70%

11.897

60%

Tabela 1. Análise do público tendo o Náutico como mandante no Estádio dos Aflitos durante o Campeonato Brasileiro Série A 2012.

No novo estádio, o primeiro jogo do timbu pernambucano foi contra o Sporting Clube de Portugal, em 22 de maio de 2013. Depois de dois anos utilizando o estádio adequado às novas demandas contemporâneas para o futebol, o Náutico realizou 60 partidas, onde o máximo de público em cada ano (2013 a partir de maio e 2015 até o mês de julho) não alcançou sequer a marcar dos 20.000, conforme tabela abaixo:

Ano

Maior público

Jogo

Vitórias

Empates

Derrotas

Total de partidas

2013

19.6011

Náutico 1 x 3 Ponte Preta

04

03

12

19

2014

16.5022

Náutico 1 x 0 Salgueiro

16

04

10

30

2015

5.440

Náutico 1 x 0 Luverdense

05

04

02

11 3

Tabela 2. Recorde de público tendo o Náutico como mandante na Arena Pernambuco .

1

Desconsiderando o festivo jogo amistoso Náutico 1 X 1 Sporting Clube de Portugal no dia da inauguração da Arena que teve a assistência de 26.803 pessoas. 2 Não levamos em consideração os jogos que o Náutico enfrentou Sport e Santa Cruz, que por se tratarem de clássicos, tiveram a presença das torcidas rubro-negra e tricolor, e alcançaram assim públicos maiores. 3 Tendo por base os dados do site oficial do Náutico: http://www.nautico-pe.com.br/campeonatos

2579

Se analisarmos somente as médias de público do Clube Náutico em campeonatos brasileiros de 2012 a 2015, a tabela fica da seguinte forma: Ano

Campeonato

Estádio

Média de público como mandante

2012

Brasileiro Série A

Aflitos

11.8974

2013

Brasileiro Série A

Arena

10.2725

2014

Brasileiro Série B

Arena

6.3006

2015

Brasileiro Série B

Arena

7.0727

Tabela 3. Média de público do Náutico como mandante.

Jogar em um estádio moderníssimo parecia ser um grande passo para o alvirrubro. Dos 86 conselheiros alvirrubros presentes na reunião que decidiu fechar o contrato de 30 anos com a Arena, 84 votaram a favorxiv. A partir daí, mudando de casa em junho de 2013, o Náutico apresentou baixas médias de público. Este ano, ao que parece, a situação não se modificará. Durante o Campeonato Pernambucano de 2015, a média de público foi de 4.486 pessoas por partida, com ocupação de apenas 9,7% da capacidade do estádio (46.154). Alguns podem afirmar que os resultados em campo não ajudam, mas é difícil acreditar que com o mesmo rendimento não haveria uma presença bem maior no Eládio de Barros Carvalho, ou simplesmente Aflitos, estádio de propriedade do Náutico que sempre teve notável presença de torcida alvirrubra. A torcida do clube ainda é predominantemente composta por moradores desta mesma região. O acesso ao campo, em dias de jogo, é notavelmente realizado a pé. Uma característica própria, e decorrente desta condição, é de certa “pontualidade” do torcedor do Náutico – o estádio tende a permanecer pouco ocupado até os últimos minutos que precedem o início da partida, haja vista a facilidade de deslocamento até o estádio, que não demanda uma antecipação do horário de chegada. (Barreto, 2011, p.08).

Ao contrário dos Aflitos, onde a torcida exercia uma pressão maior sobre o adversário, a Arena é fria, e praticamente anula o fator “casa”, que era tão presente nos Aflitos. O contato do torcedor com o atleta (que era uma constante nos jogos nos Aflitos), se não deixou de existir, se tornou praticamente zero. As palavras de incentivo, ou mesmo de cobrança, se perdem na acústica da Arena. O timbu perdeu a identidade com o estádio onde joga. O 4

http://globoesporte.globo.com/platb/teoria-dos-jogos/2012/09/21/todas-as-medias-de-publico-dobrasileirao-2012/ 5 http://globoesporte.globo.com/blogs/especial-blog/numerologos/post/alem-de-campeao-cruzeiro-terminao-brasileiro-com-melhor-media-de-publico.html 6 http://globoesporte.globo.com/futebol/brasileirao-serie-b/publico-serieb.html 7 Até o mês de julho. http://app.globoesporte.globo.com/futebol/publico-no-brasil/time/nautico/

2580

torcedor parece não se sentir em casa – e o time menos ainda. Evidentemente, estes são fatores que influenciam no desempenho de qualquer time. Arena Pernambuco – nova territorialidade A construção de um moderno estádio de futebol (com a nova nomenclatura Arena) pode parecer ser desprovida de referências ideológicasxv no entanto em uma análise mais atenta significados que remetem a um sistema de hierarquia e poder de uma sociedade injusta e desigual ficam claros. Sobre a profunda mudança sofrida pelos estádios nos últimos anos, Gilmar Mascarenhas nos traz. Esses novos objetos geográficos trazem não apenas uma arquitetura pujante e monumental, alvo de ufanismo e novo cartão-postal em nossas metrópoles. Trazem em si novos conteúdos da urbanização, ao propor e impor suas novas formas de vivenciar a vida pública e o futebolxvi.

A reformulação dos espaços para a torcidas, que antes eram basicamente, geral, arquibancada, sócio, cadeiras e camarotes, sofreu um acréscimo de subdivisões em razão do poder aquisitivo do torcedor (VIP Lounge, Premium Deck, assento premium, como no caso da Arena PE) e a valorização de espaços individuais (cadeiras) e privados (camarotes para 20 pessoas). Este é o reflexo de uma sociedade centrada no “ter”, onde consumir os melhores lugares do estádio é uma ótima oportunidade para uma “selfiexvii”, atraindo a atenção para si. O jogo de futebol, em si, tornou-se apenas um detalhe diante da oferta de conforto e segurança dos camarotes.

É evidente na construção dos novos estádios a preocupação com aglomeração do público. A diminuição da capacidade dos estádios é exemplo. Ainda, com um modelo de segurança compatível com os novos modelos de estádios multiuso, a Arena Pernambuco conta com sala de monitoramento, câmeras e centro de comando. Nesse raciocínio, a modernização excludente e a vigilância constante apoiada em suportes tecnológicos aparecem como soluções/punições aos torcedores transgressores/violentos/infratores. Evidentemente, trata-se de uma disposição redutora e simplificadora do problema da violência urbana nos dias atuais, cujas raízes são muito mais profundas e requerem explicações mais elaboradas. A segurança que se pronuncia é a segurança para o consumo, e a constituição de lugares seguros para o consumoxviii.

A Arena Pernambuco possui amplos espaços abertos, com áreas de loungesxix e bares climatizadosxx. Esses ambientes voltados para a boa circulação do público proporcionam além de sua rápida dispersão, estrutura de conforto e segurança. Em nome do bem-estar do

2581

torcedor, o estádio de futebol torna-se também um lugar de consumo (como num shopping center), no qual a partida é apenas mais um elemento. Com o advento das Arenas de futebol, além dessa nova nomenclatura da praça esportiva, das mudanças na arquitetura, ocorreu também o aparecimento do “pós-torcedor” ou “torcedor-consumidor” definido por Giulianotti (2002)xxi, como o torcedor de renda média ou alta, passivo diante do “espetáculo”, que contempla, filma e fotografa confortavelmente os “astros” em campo.

Portanto, agora as “arquibancadas” estão repletas de espectadores/consumidores, obedecendo à lógica lucrativa dos donos do espetáculo e o receituário da modernidade excludente e elitista. As arenas passam a ser vistas como um oásis de possibilidades de exploração econômica, a partir da utilização de cada espaço como local para exposição de publicidade, venda de camarotes e locais VIP’s para empresas, sede de eventos além das partidas de futebol (shows, reuniões corporativas, lojas, museus, praças de alimentação), conjunto de dispositivos que podem ser resumidos no conceito de “multifuncionalidade” ou “multiuso”xxii.

O Legado da Arena Pernambuco Como foi dito na primeira parte deste texto, esse empreendimento privado contou com uma firme parceria entre empresários e o poder público. Apesar de a Copa do Mundo ser um evento privado, a população pernambucana teve que desembolsar (e ainda desembolsa) exorbitantes quantias de dinheiro público para que a Copa fosse realizada no Estado. E para justificar a abertura dos cofres, o Governo Estadual inseria a Copa do Mundo na lista de ações que visavam desenvolver a economia do Estado. O respaldo para o gasto de dinheiro público em um evento privado constituiu a promessa de que a Copa do Mundo traria uma espécie de modernização da sociedade pernambucana. As melhorias que seriam realizadas com a passagem da Copa do Mundo não passaram de promessas. Como exemplo, o tão desejado legado da mobilidade ficou apenas na teoria. O transporte público na Região Metropolitana do Recife pouco mudouxxiii. Sabemos que não se trata de privilégio pernambucano a quantidade de obras inacabadas neste período pós-Copa. Infelizmente esta é uma realidade que abrange diversas localidades pelo país. O Prof. Flavio de Campos expressa bem essa realidade. [...] o custo bilionário dos estádios, a presença voraz das principais empreiteiras do país e os elevados gastos com a manutenção desses estádios após a Copa despertam uma profunda indignação. Ao mesmo tempo, a ausência de projetos sociais vinculados à realização da Copa e a falta de diálogo com os movimentos sociais e de sua participação revelam um projeto tecnocrático dos governos brasileiros – federal, estaduais e

2582

municipais – cuja implementação e responsabilidade há que se distribuir pela grande maioria das siglas partidáriasxxiv.

No campo esportivo, houve uma alteração radical no costume do torcedor timbu, que antes era vizinho do seu estádio e que agora precisa se deslocar cerca de 19 quilômetros para assistir ao jogo do seu time. A pouca adesão dos alvirrubros (média de 8.310 em 65 jogos) à Arena deve-se também, e por que não, a falta de uma identidade da torcida com o novo estádio. Quando joga em São Lourenço da Mata, os torcedores sentem falta de daquele lugar habitual com os amigos dentro do estádio, da barraquinha do lanche/bebidas e dos bares ao redor do estádio. Falta ainda, uma relação de afeto entre os torcedores do Náutico como a que havia com a centenária sede do clube, por exemplo. Se pensarmos no espaço interno de um estádio “padrão FIFA”, as regras de conduta envolvem a proibição de bandeiras com mastro e permanência do torcedor em pé. O novo “jeito de torcer” se traduz por espectadores sentados. Nada de espaço para coreografias, de faixas de protesto contra eventuais más campanhas, de demonstrações para além do que for previamente planejado. Dentre as alegadas vantagens dos novos modelos de estádio, destaca-se o conforto das cadeiras que aproximariam o torcedor do gramado. Com elas limitou-se o hábito de mudar de lugar ou o abraço coletivo para comemorar um gol. O espaço das arquibancadas (ou neste caso, as cadeiras) do futebol, antes tomado pelas grandes massas que expunham nossa miscigenação, volta a ser pautado por critérios econômicos, como símbolo de status social, ao abrigo do sol e da chuva, com vista panorâmica do gramado. Elucidam, assim, com bastante clareza o movimento de expansão e consolidação do mercado esportivo capitalista com lógica mercantil e consumista. O torcedor é visto/tratado como consumidor. Portanto, com a construção da Arena Pernambuco, vemos um novo perfil de público nas arquibancadas. Sobre este perfil , o Prof. Gilmar expõe: [...] emerge mundialmente um novo conceito de estádio [...] inteiramente adequado aos interesses do grande capital. Esse novo estádio agrada a segmentos sociais economicamente capazes de consumi-lo. [...]. Muitos se sentem plenamente satisfeitos com a segurança, a previsibilidade e a serenidade do novo ambiente e não escondem a satisfação de este ser frequentado por indivíduos de melhor estrato socioeconômico, como ocorre em shopping centers, clubes e resorts.xxv

2583

Ao trocar o estádio Eládio de Baros Carvalho (Aflitos), antiga casa em que o clube mandava os jogos desde 1939, pela moderna Arena Pernambuco o Náutico assegurou uma renda mensal paga pela administração da Arena. Esta garantia de renda mínima, desde setembro de 2011, fez o clube abrir mão de um alçapão como os Aflitos. Como vimos, ter um estádio central e pequeno ajudava o Náutico a ter a casa cheia, criando um clima hostil ao visitante e rendendo ao timbu pontos preciosos na disputa dos campeonatos. A garantia do aporte financeiro, ao que parece, é mais importante do que isto.

i

Técnico em Assuntos Educacionais [email protected].

da

Universidade

Federal

de

Pernambuco.

E-mail:

ii

Governador confirma que proposta para candidatura para Copa é de construção de estádio no TIP. Disponível em: http://www.old.diariodepernambuco.com.br/esportes/nota.asp?materia=20090115164122 Acesso em 28/9/2015. iii

A Copa de 2014: impactos ou legado para as cidades-sedes do Nordeste? Disponível . Acesso em 28/9/2015.

em:

iv

No Recife, maior legado da Copa espera licenças e só fica pronto em 2030. Disponível em: . Acesso em 28/9/2015. v

Legado Social das Copas em Pernambuco. Disponível em: . Acesso em 28/9/2015. vi

Estádio Arena Pernambuco é inaugurado com evento-teste. Disponível em: . Acesso em 30/9/2015. vii

Custo final da Arena PE pode passar de R$ 2,6 bilhões. Disponível em: . Acesso em 30/9/2015. viii

Governo cria grupo para avaliar custos da Arena Pernambuco e tornar estádio viável. Disponível em: . Acesso em 30/9/2015. ix

Saiba por que a Arena Pernambuco pode se tornar o estádio mais caro da Copa. Disponível em: . Acesso em 30/9/2015. x

Empresas de material esportivo, de bebidas, de eletrônicos, automobilísticas, bandeira de cartão de crédito, entre outras. Barreto, Túlio Velho. “‘Habitus’ dos torcedores brasileiros e adoção do ‘padrão Fifa’ nos estádios da Copa do Mundo de futebol 2014”. Anais do 35º Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, Caxambu (MG), p.08, 2011. xi

BR 2012 – Desempenho de Mandantes e Visitantes. Disponível em:< http://futdados.com/mandantes-evisitante-br-11/>. Acesso em 30/9/2015. xii

2584

xiii

Timbu com boa média de público na Série A. Disponível . Acesso em 30/9/2015.

em:

xiv

O recorrente deserto do Náutico na Arena Pernambuco, um calvário sem fim. Disponível em: . Acesso em 30/9/2015. Sobre a ação ideológica e o controle panótico no campo de futebol: “Campos de futebol: vínculos emocionais e controle social”. Giulianotti, Richard. Sociologia do Futebol – Dimensões históricas e socioculturais do esporte das multidões, 2010. xv

xvi

MASCARENHAS, Gilmar. Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo Futebol. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2014, p. 211. xvii

Selfie é uma palavra em inglês, um neologismo com origem no termo self-portrait, que significa autorretrato, e é uma foto tirada e compartilhada na internet. Normalmente uma selfie é tirada pela própria pessoa que aparece na foto, com um celular que possui uma câmera incorporada, com um smartphone, por exemplo. CAMPOS, Flavio. “Arquitetura da exclusão: apontamentos para a inquietação com o conforto”. Futebol objeto das Ciências Humanas. 1 ed. São Paulo: Leya, 2014, p. 358. xviii

xix

Lounge é uma palavra em inglês, que pode significar sala de estar, sala de espera, antessala. Também pode designar um estilo musical ou um bar. xx

Disponível em: . Acesso em 29/7/2015. GIULIANOTTI, Richard. Sociologia do futebol – Dimensões históricas e socioculturais do esporte das multidões. Tradução de Wanda Nogueira Caldeira Brant e Marcelo Oliveira Nunes. São Paulo, Nova Alexandrina, 2010. xxi

OLIVEIRA JÚNIOR, Ricardo César Gadelha de. “A busca por uma gestão profissional”: relato etnográfico de um fórum de gestores das arenas de futebol no Brasil. 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, Natal/RN. 2014, p.01. xxii

xxiii

O legado da Copa - um ano depois. Disponível em: http://especiais.g1.globo.com/economia/2015/obrascopa-um-ano-depois/. Acesso em 09/10/15. xxiv

CAMPOS, Flavio. Op. Cit., p. 351.

xxv

MASCARENHAS, Gilmar. Op. Cit., p. 219.

2585

Ensino de História e Direitos humanos: propostas de práticas de aprendizagem Professor Dr. Rodrigo Dias Teixeira – Professor Substituto Metodologia e Prática do Ensino de História (UFRJ)

Resumo:

A partir das contribuições de David Ausebel e sua teoria da aprendizagem significativa, propomos uma interlocução com as concepções do “Teatro do Oprimido” de Augusto Boal para construção de uma prática pedagógica libertadora no Ensino de História. Para isso, sugerimos a realização de jogos de aprendizagem que tenham na experiência do educando seu principal protagonismo, tendo como exemplo uma ação pedagógica sobre o processo de implantação da Ditadura Civil-militar no Brasil em 1964.

Palavras Chave: ENSINO DE HISTÓRIA – TEATRO DO OPRIMIDO - APRENDIZAGEM SIGNIFICATIVA HISTORY TEACHING – THEATRE OF THE OPRESSED – MEANINGFUL LEARNING

2586

Como construir uma prática de aprendizagem verdadeiramente libertadora no Ensino de História, que faça sentido na vida do estudante e seja produzida com ele de forma crítica? Esta, sem sombra de dúvida, é uma das questões mais importantes para aqueles que buscam efetivar uma educação para a liberdade na escola, mas que, na sua vivência profissional sofre com uma série de limitadores que acabam por abafar este ímpeto. Acreditamos que um dos primeiros passos para superarmos esta dificuldade seja conduzirmos um olhar crítico sobre nossa prática de ensino, buscando possíveis referencias que conjuguem nossa atividade já realizada no cotidiano com reflexões cada vez mais densas sobre as mesmas. Considerarmos aquilo que já efetivamos na sala escolar, mas sempre de forma reflexiva e crítica, acompanhada do estudo sistemático e da contribuição dos mais diversos agentes possíveis. Neste trabalho partimos de David Ausubel e sua teoria da aprendizagem significativa como uma das maneiras para refletirmos sobre nossa prática pedagógica no Ensino de História. Para o autor, a aprendizagem significativa caracteriza-se pela interação cognitiva entre o novo conhecimento e o conhecimento prévio. Nesse processo, o novo conhecimento adquire renovadas configurações e o conhecimento prévio fica mais rico, mais diferenciado, mais elaborado em termos de significados. Tendo como ponto inicial o que o estudante construiu, novos conhecimentos são produzidos coletivamente através não apenas de emissão de mensagens, mas essencialmente através da experiência. Em resumo: “A aprendizagem significativa é aprendizagem com significado, compreensão, sentido, capacidade de transferência; oposta à aprendizagem mecânica, puramente memorística, sem significado, sem entendimento; dependente essencialmente do conhecimento prévio do aprendiz, da relevância do novo conhecimento e de sua predisposição para aprender. Essa predisposição implica uma intencionalidade da parte de quem aprende. Esta, por sua vez, depende da relevância que o aprendiz atribui ao novo conhecimento”(1).

Esta concepção de aprendizagem interacional, que dialoga com

os

conhecimentos prévios dos estudantes e percebe que sua construção é parte integrante da efetivação de novas formulações, tem do ponto de vista metodológico importantes contribuições. Esta concepção subversiva da aprendizagem, na medida em que subverte os padrões impostos e tenta reconstruir novas relações de poder no interior da escola, tem alguns princípios fundamentais, dos quais destacamos:

2587

“1. Princípio do conhecimento prévio. Aprendemos a partir do que já sabemos. A aprendizagem significativa, no sentido de captar e internalizar significados socialmente construídos e contextualmente aceitos, é o primeiro passo, ou condição prévia, para uma aprendizagem significativa crítica. Quer dizer, para ser crítico de algum conhecimento, de algum conceito, de algum enunciado, primeiramente o sujeito tem que aprendê-lo significativamente e, para isso, seu conhecimento prévio é, isoladamente, a variável mais importante.” (2)

Assim, para construirmos uma aprendizagem libertadora, não podemos partir do preconceito socialmente difundido de que o estudante não sabe nada, é “burro”, que temos que ensiná-lo como são as coisas de verdade, para que ele esqueça “tudo de errado que aprendeu”. Mesmo certa visão sobre o que deve ser a História (“História não serve para nada, pois só fica falando sobre quem já morreu”) deve ser levada em consideração. Será mesmo que as críticas dos estudantes de que “História não serve para nada” não tem efetiva validade, na medida em que muitos professores de História, e todo mecanismo organizado estruturalmente para o ensino desta área do conhecimento, não têm preocupação com a função prática daquilo que constrói em sala? Temos que aprender a nos questionar, para questionar o mundo em que somos construídos: “Princípio da interação social e do questionamento. Ensinar/aprender perguntas ao invés de respostas. Um ensino baseado em respostas transmitidas primeiro do professor para o aluno nas aulas e, depois, do aluno para o professor nas provas, não é crítico e tende a gerar aprendizagem não crítica, em geral mecânica. Ao contrário, um ensino centrado na interação entre professor e aluno enfatizando o intercâmbio de perguntas tende a ser crítico e suscitar a aprendizagem significativa crítica”(3).

Em conjunto com o princípio do questionamento, gostaríamos de citar o princípio da aprendizagem pelo erro: “Princípio da aprendizagem pelo erro. É preciso não confundir aprendizagem pelo erro com o conceito de aprendizagem por ensaio-e-erro, cujo significado é geralmente pejorativo. Na medida em que o conhecimento prévio é o fator determinante da aprendizagem significativa, ela, automaticamente, deixa de ser o processo errático e ateórico que caracteriza a aprendizagem por ensaio-e-erro. A idéia aqui é a de que o ser humano erra o tempo todo. É da natureza humana errar. O homem aprende corrigindo seus erros. Não há nada errado em errar. Errado é pensar que a certeza existe, que a verdade é absoluta, que o conhecimento é permanente.” (4)

Quando buscamos o conhecimento através de perguntas, trabalhamos uma nova concepção, que ao invés de afirmar, busca construir coletivamente. Nesta visão, o “erro” faz parte da aprendizagem, tendo em vista que todos erram, pois este é o caminho determinante para aprendermos algo diferente do que já sabemos. A escola, no entanto, pune o erro e busca promover a aprendizagem de fatos, leis, conceitos, teorias, como verdades duradouras. A escola em sua concepção da classe dominante simplesmente

2588

ignora o erro como mecanismo humano, por excelência, para construir o conhecimento. Para ela, ocupar-se dos erros daqueles que pensavam ter descoberto fatos importantes e verdades duradouras é perda de tempo: “Ao fazer isso, ela dá ao aluno a ideia de que o conhecimento que é correto, ou definitivo, é o conhecimento que temos hoje do mundo real, quando, na verdade, ele é provisório, ou seja, errado.” (5) Mas como construir este tipo de prática de aprendizagem na sala escolar? Do ponto de vista metodológico, acreditamos que os princípios da participação ativa do aluno e da diversidade de estratégias de ensino são extremamente importantes. Baseados nestes princípios, construímos conhecimento através da experiência (nossa e dos estudantes). Para isso, precisamos ter o interesse em conhecer os estudantes, seus medos, angústias e sonhos, sua vida material e familiar. Nossa busca por uma prática de aprendizagem libertadora está intrinsicamente vinculada à reorganização do espaço escolar, especialmente da sala de aprendizagem. Mesmo que em si a estrutura da escola reflita, (de modo contraditório e conflituoso), a organização do Estado dominante, podemos coletivamente e de forma crítica reinventar nossas práticas, ocupando verdadeiramente nosso espaço. Olhar para a sala de aprendizagem como um espaço coletivo é reconstruí-lo também fisicamente, reorganizando os materiais e os corpos, refazendo nossa linguagem e nosso escutar. Ouvindo os estudantes e ouvindo nossos erros avançamos. Nossa leitura de mundo é um aprendizado permanente. Uma das maneiras para reorganizarmos o espaço escolar e nossas práticas nele é através de novas práticas de aprendizagem, nas quais os “jogos” são essenciais. Jogos e práticas de aprendizagem - reencantando o ensino de história Através de diversos jogos de aprendizagem, os quais incluímos como parte das práticas de produção de conhecimento no interior da sala escolar, objetivamos novas formas de construção de saberes. Chamamos de jogo toda prática de aprendizagem que ocorra de forma coletiva e que tenha em seu âmago a constituição de uma nova “aura” no ambiente escolar possibilitada pela brincadeira. Para esta discussão, Walter Benjamin tem muito a contribuir. Ele nos lembra que a produção em série, própria do capitalismo, influencia todas as áreas da vida humana, chegando inclusive na arte. O que se dava como uma experiência única entre o espectador e a obra de arte, que apenas ocorria no “aqui e agora”, perde sua autenticidade. Progressivamente tanto a percepção do espectador, que se acostuma a se relacionar apenas com obras reproduzidas em série,

2589

quanto o artista, que produz a obra influenciado pela perspectiva de reproduzi-la também em série, são afetadas. A “aura” esvai-se: “O que desaparece nessas circunstancias pode ser compreendido pelo conceito de aura. O que desaparece na época da reprodução técnica da obra de arte é sua aura. Esse processo é sintomático, e seu significado estende-se para além do âmbito da arte. A técnica da reprodução, assim podemos formular, separa aquilo que foi produzido e o âmbito da tradição. Ao multiplicar a reprodução, ela substituiu a experiência única por uma existência serial.” (6)

Num cotidiano pautado pela meritocracia de exames quantitativos e de um ambiente escolar voltado para o adestramento, a prática de ensino perde sua autenticidade e unicidade. O elemento “artístico”, “lúdico” e “artesanal” é minoritário na atuação dos professores, que em sua maioria produzem uma prática mecânica e estandardizada, forçados pela dinâmica da sociedade em geral, e pela alta quantidade de aulas a serem ministradas. Se, por um lado, a expansão da educação pública possibilitou a inserção de novos agentes sociais que tinham seu direito negado, por outro, o Estado, em grande medida, forjou a partir de seus interesses de classe uma concepção pedagógica pautada pelo tecnicismo e controle sobre os estudantes, um misto de indústria e prisão para jovens, na qual o ensino serve prioritariamente a uma lógica de subserviência e manutenção da ordem, extremamente desumanizadora. Através da brincadeira, podemos contestar esta lógica e reencantar o processo pedagógico, reestabelecendo sua aura, com um ensino de “aparição única” que aproxima os estudantes do aprendizado, como quando contemplamos uma cadeia de montanha no longínquo horizonte, e respiramos sua aura. (7). Aqui, quando o estudante olha para a aprendizagem, encanta-se e vive-a; a aprendizagem olha de volta para o estudante, carregada de significado, que revida o olhar, sendo construída neste processo uma nova experiência, a experiência da aura no aprendizado, um aprendizado único, significativo. Para realizar esta nova experiência no processo de aprendizagem, o teatro tem muito a contribuir: “Não há gênero artístico que se oponha de forma mais radical à obra de arte realizada por meio da reprodução técnica e criada por ela – como o cinema – que o teatro. Qualquer exame sério sobre a questão o confirma.”(8)

O Teatro do Oprimido tem contribuições fundamentais para didática,

em

especial a realização de um “espaço de democracia” na qual todos são defendidos como

2590

iguais, na busca de superação da exploração, das hierarquias e preconceitos. Dentro dessa concepção, “todos os seres humanos são atores, porque agem, e espectadores, porque observam. Somos todos espect-atores.” (9) Como nos diz Boal, superando o “teatro” incrustrado em nossas vidas numa existência humana de movimentos e mecanizações rígidas e desprovidas de sentido, podemos retomar o sentido mais arcaico do teatro, que é a capacidade dos seres humanos de se observarem a si mesmos em ação: “Os humanos são capazes de se ver no ato de ver, capazes de pensar suas emoções e de emocionar com seus pensamentos. Podem se ver aqui e se imaginar adiante, podem se ver como são agora e se imaginar como serão amanhã. É por isso que os seres humanos são capazes de identificar (a eles mesmos e aos outros) e não somente reconhecer. O gato reconhece seu dono, que o alimenta e afaga, mas não pode identificá-lo como professor, médico, poeta, amante. Identificar é a capacidade de ver além daquilo que os olhos olham, de escutar além daquilo que os ouvidos ouvem, de sentir além daquilo que toca a pele, e de pensar além do significado das palavras.” (10)

Para superarmos o “teatro da vida mecanizada”, próprio da concepção de escola dominante, podemos utilizar como importante ponte pedagógica a metodologia do Teatro do Oprimido, na perspectiva de reencantar de sentido o conhecimento produzido, para que nos reencontremos como seres humanos a partir do reconhecimento de nossas ações, sentimentos e saberes. Neste novo espaço carregado de aura, podemos conectar conhecimento e sentimento, para que sua produção seja prazerosa, acolhedora e apaixonante, cada vez mais humana e criativa, e menos mecânica e improdutivo. No nosso caso em específico, utilizaremos como ponte pedagógica a metodologia do Teatro do Oprimido. Uma proposta de Jogo de Aprendizagem: a implantação da Ditadura Civil-militar brasileira Esta prática de aprendizagem foi pensada como parte de uma aula sobre a Ditadura Civil-militar no Brasil, mas também pode ser utilizada em diversos outros temas em que se debata uma transição para um regime político autoritário. Aqui, ao invés de questionarmos o conhecimento dos estudantes sobre um assunto, determinado fato ou personagem histórico, ou apenas explicarmos o que aconteceu em uma dada época pela exposição oral, temos o objetivo de que os estudantes experienciem a ditadura, “vivam” o conceito na prática, para posteriormente debatermos de que forma ele foi forjado em uma dada época histórica. Dentre os diversos pontos que podem nos

2591

servir de guia para a construção deste “caminho de aprendizagem”, temos como proposta de nosso trabalho a perspectiva de uma educação em prol do fortalecimento dos Direitos Humanos. Nosso objetivo é retomar a construção político-pedagógica no interior do espaço escolar de uma cultura de ampliação dos Direitos Humanos e em prol de uma verdadeira Democracia. Como nos diz Circe Bittencourt, não podemos separar a História do Brasil das questões mais amplas; pontes necessárias para a construção de outra sociedade, tendo ainda a clareza de quais devem ser nossos critérios metodológicos: “A História brasileira não pode ser um estudo isolado e exclusivo, voltando unicamente para seus problemas internos. (...) A questão da História do Brasil na escola requer um compromisso político e cultural, para que a História Nacional seja cuidadosamente estudada, que a seleção de conteúdos da História do Brasil seja central e prioritária e que se obedeça a critérios metodológicos e com fundamentação teórica rigorosa tanto no que se refere à historiografia quanto a pedagogia, para evitar-se um ensino dogmático e ideológico”. (11)

No interior desta perspectiva, mesmo que não estudemos certos períodos que carregam intrinsicamente em seu ensinar a necessidade de uma cultura em prol dos Direitos Humanos, podemos traze-lo de forma transversal para diversos assuntos. Este é um grande desafio: a construção de planos de ensino e planos de aula voltados para impulsionar a consciência histórica em torno dos Direitos Humanos. Em diversos momentos os profissionais da educação deixam-se levar pelos ditames internalizados pelas práticas cotidianas e experiências calcadas em uma pedagogia de cunho conservador. Uma concepção pedagógica conservadora tem, entre outras características, a retirada do caráter lúdico e humano do processo ensino-aprendizagem, desgastando os profissionais de educação e os estudantes perante o ambiente escolar. Devemos também ter como preocupação o sentido da produção de conhecimentos que objetivamos, para que após adentrarmos em uma sala escolar sejamos mais humanos, amáveis e felizes: “É exatamente em tal cotidiano por vezes desanimador que se faz mais que necessário o papel conscientizador desempenhado pelo mestre em sala de aula, para a formação de uma cultura comprometida com a construção de uma sociedade dos direitos humano (12).

Descrição da atividade 1. Em um primeiro momento, escolhemos 1/10 (um décimo) dos estudantes e

2592

propomos para que sentem em volta da mesa do professor, de frente para turma. Em nosso exemplo, a turma tem 30 estudantes, então foram escolhidos três. Estes três recebem logo no início da atividade “brindes” como chocolates, balas, copo com água, etc. Os brindes devem ser numa quantidade que se dê para distribuir para toda a turma, mas apenas eles podem desfrutar destes brindes. 2. Dos 27 estudantes que sobram, façamos a seguinte divisão em grupos: 7 estudantes continuam sentados nas suas cadeiras, 5 estudantes devem ficar de pé, 5 estudantes ficam de pé com uma perna só (como na lenda “saci-pererê”). Os outros 10 devem ser separados de todos os estudantes através das carteiras/cadeiras, serem colocados bem juntos, de pé com uma perna só e de frente um para os outros. 3. Depois da divisão, o professor deve pedir para que os estudantes iniciem a leitura do início do texto do livro sobre a ditadura civil-militar da maneira que foram divididos antes (sentados na cadeira do professor, em pé, em pé com uma perna só, etc). O último grupo, que ficou ainda mais separado, deve tentar ler o livro de cabeça para baixo. 4. Após o início da leitura, com os estudantes que sentaram à mesa do professor já desfrutando dos seus brindes, o professor deve conversar com este grupo, dizendo bem baixinho: “quando o primeiro de vocês terminar a leitura me diga”. Quando o primeiro estudante do grupo dos “três” indicar que terminou a leitura, o professor deve pedir para que todos parem de ler. Obviamente, devido à disparidade de condições, grande parte dos estudantes não terá terminado a leitura. É neste momento que o professor deve levantar a questão da injustiça/disparidade de uma ditadura, pois na sala escolar, eles vivenciaram esta divisão. Mesmo que todos tenham os livros e possam lêlos as condições efetivas inviabilizam uma leitura-vida melhor para a maioria. Conceitos e habilidades a serem trabalhados Dentre os diversos conceitos que podem ser trabalhadores, podemos destacar o de Democracia e de Direitos Humanos. Para término da reflexão, em momento posterior, podemos “adiantar” como foi o término da Ditadura no seu plano político, através do Colégio Eleitoral e das eleições indiretas, as quais demonstraram em grande medida o “novo modelo velho” da estrutura hierárquica do Estado Brasileiro. Apesar

2593

das grandes conquistas e avanços na luta contra a ditadura civil-militar, muitos dos seus agentes e das suas estruturas mantêm-se até atualmente, fazendo-se, portanto, a expansão da consciência histórica em torno da Democracia e dos Direitos Humanos fundamental na construção de outro modelo de sociedade.

Construção prática do plano Através deste plano buscamos forjar através mudanças no interior do comportamento dos estudantes e na organização da sala escolar a experimentação do conceito de Ditadura. Mais do que dizer apenas “Ditadura foi isto”, nosso objetivo era conceber em conjunto com os estudantes um novo “espaço-tempo”, no qual pela metodologia do teatro e mística próprias possamos redefinir nossa própria atuação no mundo. Este plano de aprendizagem, em todas as vezes que utilizamos, seja em turmas regulares ou de Jovens de Adultos, tanto nas séries do ensino fundamental, como também no Terceiro Ano do Ensino Médio, foi extremamente bem recebida. Apesar de no início da prática, a escolha de certos estudantes para compor o papel daqueles que receberiam “prêmios” não ser aceita de antemão (inclusive esta contestação é parte da vivencia do conceito de Ditadura), posteriormente, com todos os estudantes construindo o plano de aprendizagem, esta flui com bastante facilidade e participação. Uma das vezes que construímos este plano de aprendizagem numa turma de EJA os estudantes escolhidos para serem os “premiados-ditadores” acabaram por utilizar seus prêmios (balas e doces) como forma de ostentação de poder de compra, como aquelas realizadas no interior das comunidades por grande parte dos varejistas de drogas ilícitas, “tirando onda” como eles mesmo dizem. Ao se verem numa posição de poder acima da dos outros colegas de sala, experimentaram o papel de “dirigentes” do comércio ilegal de drogas, exacerbando sua empáfia e sentimento de “superioridade”, pois apenas eles tinham as balas, e se colocavam no local cotidianamente utilizado pelo professor, de frente para todos os outros estudantes, além de continuarem sentados enquanto muitos tiveram que ficar de pé, reclamando por estarem na posição de “saci”.

2594

Nesta aplicação prática os estudantes reconstruíram o conceito de ditadura para os dias atuais de forma espontânea, mas utilizando o conhecimento de mundo que eles têm. Foram os estudantes que teoricamente eram mais “bagunceiros” que propiciaram a construção de uma conexão entre o conceito de Ditadura de 1964 e dos diversos exemplos de atitudes de cunho ditatorial que vivenciamos ainda hoje. Dessa maneira, com o desenrolar da atividade também podemos debater o papel da polícia militar nos dias atuais e do controle de armas e território por parte do comércio varejista de drogas ilegais, destacando pontos de ruptura e continuidade em relação a Ditadura civil-militar de 1964. Em diversas construções deste plano os estudantes que ficaram em pé apenas em uma perna, na posição de “saci”, por estarem muito cansados, acabavam por se encostarem um nos outros, numa espécie de apoio-mutuo e solidariedade através da dificuldade/escassez, o que os estudantes ressaltaram em suas palavras. No final da aprendizagem, com a “volta ao normal” e com todos recebendo as balas/doces de forma igualitária, podemos construir também o debate sobre a diferença entre Ditadura e Democracia para além da questão do voto representativo, realçando o elemento “econômico” de divisão social da riqueza que deve conter o conceito de Democracia. Notas (1)

MOREIRA, Marco Antônio. Aprendizagem significativa crítica. In: Anais do III

Encontro Internacional sobre Aprendizagem Significativa. Lisboa (Peniche), 15 de setembro de 2000. (2)

Idem, ibidem. Pág. 8

(3)

Idem, ibidem. Pág. 8

(4)

Idem, ibidem. Pág 14

(5)

Idem, ibidem. Pág 17

(6)

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. In:

CAPISTRANO, Tadeu. Benjamin e a obra de arte: técnica, imagem, percepção. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. Pág. 13 (7)

“Para melhor compreender esse conceito de aura, concebido para objetos históricos,

vamos ilustrá-lo com o conceito de aura para objetos naturais, definida como uma aparição única de algo distante, por mais próximo que esteja. Ao contemplar silenciosamente, em uma tarde de verão, a cadeia de montanhas no horizonte ou a ramagem que projeta a sombra sobre nós, respiramos a aura dessa montanha, dessa ramagem.” Idem, ibidem. Pág 14

2595

(8)

Idem, ibidem. Pág 21.

(9)

BOAL, Augusto. Jogos para atores e não atores. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira:

2008 (10)

Idem, ibidem. Pág XIV

(11)

BITTENCOURT, Circe. Identidade Nacional e Ensino de História. In: KARNAL,

Leandro (ORG). Histórias na sala de aula: conceitos, práticas e propostas. São Paulo: Contexto, 2010. (12)

MONDANI, Marco. Direitos Humanos. In: PINSKY, Carla. Novos temas nas aulas de

História. São Paulo: Contexto, 2009.

2596

Utilizando as lentes do batismo: a escravidão na vila de São João Batista de Nova Friburgo, RJ. 1820-1850.

Rodrigo Marins Marretto

Resumo Utilizo os registros de batismo de escravos da vila de Nova Friburgo entre 1820 e 1850, documentos massivos e reiterativos, para extrair as principais características dos escravizados que ali viveram. Analiso o fluxo de escravos com objetivo de mapear as gradações desse sacramento entre os cativos. Busco, ainda, investigar o parentesco ritual concretizado no ato do batismo. Pretendo, com isso, apresentar a escravidão como elemento estruturante da sociedade friburguense da primeira metade do século XIX. Palavras chave: Escravidão; Batismo; Nova Friburgo. Abstract I use the records of the slaves’ baptism from Nova Friburgo village in the years 1820 to 1850, to extract the main features of the enslaved who lived there with massive and reinterative documents. Analyze the flow of slaves in order to map the gradations of this scrament among the captives. I seek also, investigate the kinship ritual to concretize the act of baptism. I intend, therefore, present slavery as a structural element to the Fribourg society in the early of the nineteenth century. Keywords: Slavery; Baptism; Nova Friburgo.

As origens da ocupação dos Sertões do Leste, capitania do Rio de Janeiro, estão datadas de meados do século XVIII, por ocasião do pedido de Maurício Portugal a Intendência Geral do Ouro, seu objetivo era abrir um garimpo na região que se denominava “Sertões do Leste”. A autorização foi concedida, mas rapidamente revogada. Por ordem do Vice-rei todos os garimpos foram fechados e todas as fazendas que estavam localizadas na base da Serra do Mar foram destruídas. O bando de Manuel Henriques, o Mão de Luva aproveitando-se desta situação - invadiu a região a partir de Xopotó e fundou, com determinada conivência do governador de Minas Gerais, o garimpo conhecido como “Minas Novas do Cantagalo”. Mão de Luva tinha o objetivo de explorar clandestinamente o ouro da região e o fez por quase cinco anos. Não era o único a ter garimpo naquelas áreas, os irmãos Lopes e Miguel Muniz também possuíam minas. Essas relações desenvolvidas ao entorno do ouro clandestino abriram a possibilidade da formação da primeira Vila da Região CentroNorte Fluminense, São Pedro de Cantagalo, que ganhou a alcunha de Vila em 1814 1. Segundo Laura de Melo e Souza, Mão de Luva era “um curioso bandido do tempo da mineração” e também “assaltava comboios”.2 Prefiro não considerar Mão de Luva como o bandido que governava um povoamento, onde existiam, ao menos, duzentas famílias. Também considero o

2597

termo “semidesclassificado” inapropriado ao personagem, Manuel Henriques era proprietário de mais de uma dezena de escravos, o que denotava certo status. Deste ponto de vista, a região desenvolvia, desde seus tempos mais remotos, um espaço escravista, que pode ser atestado pelos dados de Acácio Dias Ferreira, em seu livro Terra de Cantagalo. Nesta obra o autor revela a população na região “Em 1798 (...) a sua população dobrou, atingindo a cifra de seiscentos indivíduos, dos quais trezentos e sessenta eram escravos3”. Não tenho certeza se Acácio compreendeu o significado desses números, sem apresentar as fontes de onde os colheu, o autor está afirmando que 60% dos indivíduos no arraial de Cantagalo eram escravos. A informação, mesmo que desacompanhada da fonte, demonstra que, os senhores ali radicados, já haviam construído um espaço escravista desde meados do XVIII. Manuel Henriques, que era parte da montagem desse complexo escravista, viu seu poder questionado e confrontado pela Coroa, tentou resistir e negociar, mesmo assim, foi derrotado diante da força dos Dragões do Vice-rei. Com Mão de Luva vencido, abriu-se o caminho para a colonização e a Coroa decidiu controlar a extração de ouro, todavia, esta era ínfima e veio a extinguir-se como afirmou Mawe ao visitar a região: O governo, tornando-se senhor do território, imaginou encontrar aí tanto ouro quanto ao se estabelecerem os primeiros garimpeiros e publicou muitos regulamentos injustos, oprimiu os nativos como jamais se vira, instalou registros em vários pontos para impedir o contrabando, e encheu toda a redondeza de guardas. Os numerosos colonos, atraídos pela suposta riqueza do lugar, não tardaram a verificar que o creme fora extraído pelos contrabandistas4.

A administração, certa de que o valor da região estava na lavoura, passou a doar sesmarias, e por volta de 1809, a principal atividade da região era a produção de víveres. Na lista dos primeiros povoadores de Cantagalo aparecem, em sua maioria, indivíduos que migraram para a região tendo como ponto de partida a província de Minas Gerais, logo, esse enraizamento e experiência na província mineira produziria também o aprofundamento dos interesses desses indivíduos pela região ocupada recentemente. De qualquer maneira, não havia referência ao café, que na década de 1820 iniciaria um processo de expansão, transformando das paisagens da região. Assim, pode-se concluir que o interesse e a presença de colonizadores mais antigos na região são anteriores à chegada dos suíços e já eram marcados pelo domínio de grandes extensões de terra e pelo trabalho escravo. Essa povoação data do final do século XVIII e início do XIX, tendo sido engendrada, principalmente, por um fluxo migratório de senhores de escravos advindos das Minas Gerais, que nitidamente antecede, até mesmo, as iniciativas e negociações empreendidas por Nicolau Sebastião Gachet, agente da colonização suíça, para o

2598

estabelecimento da uma colônia helvética no Brasil. Os colonos europeus serão inseridos nesse contexto. O objetivo deste trabalho é investigar as principais características dos escravizados que foram batizados na Vila de Nova Friburgo entre os anos de 1820-1850. Durante esse período foi possível mapear o fluxo de cativos batizados, trabalho que foi realizado em intervalos de 10 anos e nos permite enxergar as nuances desse sacramento entre os cativos da vila de Nova Friburgo. Além disso, o parentesco ritual concretizado no ato do batismo, também foi rastreado e, em determinada medida, reconstruído mediante o cruzamento com outras fontes. Durante a investigação destes corpos documentais descobrimos importantes questões a respeito da escravidão, elemento que até então era ocultado pelo “mito da suíça brasileira” 5. Até o momento, as pesquisas referentes à escravidão no município de Nova Friburgo se detiveram, principalmente, em comprovar a presença negra e escrava. Análises que incorporavam, sobretudo, documentos oficiais, relatos de viajantes e diários de colonos. Desta forma, mantiveram-se ausentes as abordagens culturais e sociais da vida dos cativos, das identidades criadas por estes e por suas interações sociais com senhores e escravos. Neste sentido, a obra de Gioconda Louzada se destaca por trabalhar com as narrativas dos viajantes sobre a região e com um pequeno número de fontes primárias, mas que não vai muito além da comprovação da existência de escravos na região e da presença negra em Nova Friburgo, como aponta o próprio título do livro. Outro trabalho que aborda o tema é Café e escravidão em Nova Friburgo no século XIX, escrito por Edson de Castro Lisboa, este texto faz um conjunto de comentários interessantes a respeito de documentos oriundos do século XIX, entretanto, não aprofunda a análise de nenhum deles, servindo como importante index dos documentos relativos à escravidão na Vila. De qualquer forma, o texto faz boa relação entre o desenvolvimento da atividade cafeeira no polo de Cantagalo e o desenvolvimento do trabalho cativo na região. O próximo texto que visa apresentar a escravidão em Nova Friburgo, tem como autor Jorge Miguel Mayer e o já citado, Edson de Castro Lisboa. Os crimes da Fazenda Ponte de Tábuas: um estudo sobre a escravidão em Nova Friburgo no Século XIX, que aborda um crime cometido por escravos contra os maus tratos perpetrados pelo administrador da fazenda. Tais trabalhos comprovam a existência de escravos na Vila. Entretanto, não penetram nas minúcias das relações entre senhores e os escravos e não captam os contornos gerais da estrutura escravista da Vila. São estas as informações que esperamos trazer a tona a seguir.

2599

Para melhor compreensão empreendo uma análise serial. Nesta, os escravos foram classificados em crioulos e africanos (portos de saída), parâmetros que serão fundamentais para conhecermos a estrutura escravista da Vila. Os dados, considerados em sua totalidade, indicam que os crioulos receberam 53,89% dos batismos, os escravos não identificados somaram 25,28% dos batizados; os diversos escravos que receberam denominações africanas referentes aos seus portos de saída, somados aos de alcunha “de Nação6”, somaram 20,75% dos batismos de escravos. Dentre os africanos de maior expressão, estão os “de Nação” (9%), os Moçambique (4,25%), os Congo (2,76%) e os Cabinda (1,44%), entre outros de menor expressão e que estão listados na Tabela 1. Nesta tabela, também é possível compreender o fluxo dos batizados de crioulos e africanos durante a primeira metade do século XIX. Desta forma, foi possível descobrir que os escravos crioulos foram os mais batizados durante todo o período analisado. Entre 1820 e 1830, a maioria dos africanos tinha origem em Moçambique, Congo, Cabinda e Benguela respectivamente, enquanto os escravos denominados “de nação” estavam entre os menos representados. Nos dez anos seguintes, o quadro se modifica, a lei de 1831 tenciona acabar com o tráfico internacional de escravos e, em decorrência disso, há um aumento sensível no número de escravos denominados “de Nação”, em detrimento da utilização dos nomes dos portos africanos onde esses escravos embarcavam, ou mesmo do seu local de procedência. De qualquer forma, o número de escravos africanos batizados na Vila permanece sem muitas alterações nesses primeiros vinte anos. Entre 1840 e 1850, os números mostram a diminuição dos registros de batismo de escravos na Vila de Nova Friburgo.

2600

Origem/portos de saída dos escravos batizados entre 1820 - 1850 - Tabela 1 Origem Angola

1820-1830

1831 - 1840

1841 - 1850

totais

%

9

1,12%

1

0,08%

1

0,25%

11

0,44%

Benguela

17

2,11%

1

0,08%

16

4,02%

34

1,36%

Cabinda

24

2,97%

4

0,31%

8

2,01%

36

1,44%

Cabra

0

0,00%

3

0,23%

1

0,25%

4

0,16%

Calabar

1

0,12%

0

0,00%

0

0,00%

1

0,04%

Camungá

1

0,12%

0

0,00%

0

0,00%

1

0,04%

Casangue

6

0,74%

2

0,16%

4

1,01%

12

0,48%

Congo

40

4,96%

24

1,86%

5

1,26%

69

2,76%

Mina

0

0,00%

0

0,00%

0

0,00%

0

0,00%

94

11,65%

8

0,62%

4

1,01%

106

4,25%

Monjolo

2

0,25%

1

0,08%

0

0,00%

3

0,12%

Rebolo

3

0,37%

1

0,08%

5

1,26%

9

0,36%

Moçambique

"de nação"

3

0,37%

162

12,57%

67

16,83%

232

9,29%

Crioulos

369

45,72%

762

59,12%

214

53,77%

1345

53,89%

Sem Origem

238

29,49%

320

24,83%

73

18,34%

631

25,28%

Total

807

100%

1289

100%

398

100%

2496

100%

Fonte: Arquivo da Igreja de São João Batista de Nova Friburgo. Livro I e II de Batismo. 1820-1850

Para aprofundar a análise dos registros de batismo, ao longo do período entre 1820 e 1850, utilizaremos a tabela 2.1. Esta nos permitiu chegar aos seguintes números: na primeira década (1820-1830) foram batizados 807 escravos, dos quais 200 eram africanos, 369 eram crioulos e 238 não tiveram sua origem declarada. Entre os anos de 1831 e 1840, foram batizados 207 africanos, 762 crioulos e 320 não tiveram registradas as suas origens, esses números somaram 1289 escravos. No período entre 1841 e 1850, os africanos somaram 111 batizados, os crioulos 214 e os sem origem definida 73 batizados que somaram 398 escravos. Isto quer dizer que, durante todo o período os crioulos foram os mais agraciados com o sacramento do batismo, os escravos que não tiveram suas origens definidas ocuparam a segunda posição até 1840, na última década os africanos passam a ocupar o segundo lugar no número de batismos. Com isso, é correto afirmar que os crioulos receberam mais amplamente o sacramento, com ápice no decênio 1831-1840, quando foram batizados 762 escravos crioulos. Para acompanhar a totalidade dos batizados na Vila de Nova Friburgo e suas oscilações ao longo do período estudado, posicionaremos o Gráfico 1 sobre o Gráfico 1.2. Esta perspectiva mostra uma curva ascendente nos vinte primeiros anos da série, atingindo seu ápice entre 1831 e 1840, período em que o tráfico de escravos estava proibido, mas que políticos conservadores esforçaram-se para justificar sua retomada, como demonstra Tâmis Parron no livro A política da escravidão no Império 2601

do Brasil, 1826-18657. A última década

da abordagem apresenta um descenso significativo dos batizados realizados na Vila. Com os dados analisados, tornou-se possível concluir que os crioulos alteraram profundamente a curva da totalidade dos escravos batizados, o que, de certa forma, tem correlação com o tráfico interno para a Vila de Nova Friburgo.

Origem dos escravos batizados 1820 - 1850 Tabela 2 Origem

1820-1830

1831-1840

1841-1850

Africanos

200

207

111

Crioulos

369

762

214

Sem Origem

238

320

73

Total

807

1289

398

Fonte: Livro I e II de Batismo. 1820-1850

2602

A relação de gênero também pode ser indicativa do perfil da escravaria, com os dados computados, entre 1820 e 1850, percebemos que, dos 2496 escravos computados no batismo, quase 58% deles eram homens; enquanto 42% eram mulheres. Essas informações refletem uma sociedade em que a estrutura de trabalho era ocupada, principalmente, por indivíduos do sexo masculino, mais capacitados para tarefas pesadas. Para esse elevado número de homens contribuíram os 518 escravos africanos em idade adulta, oriundos tanto dos períodos de tráfico legal, como de tráfico ilegal. A tabela 2 pode ajudar a visualizar mais precisamente o gênero nos registros de batismo.

Gênero dos escravos no Batismo, 1820-1850 - Tabela 2 Gênero Números % Homens 1447 57,97% Mulheres 1049 42,03% Total 2496 100% Fontes: Livro I e II de Batismo - Igreja de S. João Batista de N. F.

Voltando a análise para a questão do apadrinhamento, é possível notar que os cativos constituíam-se como o maior número de indivíduos relacionados entre os padrinhos de escravos. Esta relação pode contribuir como um mecanismo de associação horizontal e possíveis formações identitárias e familiares que são reafirmadas através do parentesco ritual. Não nos concentramos em identificar e mapear as famílias escravas e os diversos cruzamentos parentais que poderiam ser pesquisados segundo essa documentação, mas visamos observar as

2603

macroestruturas que compunham o mundo escravo da Vila. Assim, a partir dessa visão geral, a maioria dos padrinhos de escravos também tem origem no cativeiro, eles constam em 56% dos registros. Os indivíduos livres compareceram em 36% dos casos de apadrinhamento, com os quais os escravos criavam relações sociais verticalizadas, enquanto forros apadrinharam em 4% dos registros e pardos 2% (Gráfico 2). Tal atividade acabava por criar, entre todos os elementos arrolados, vertical ou horizontalmente, laços de parentesco ritual que podem apontar para a formação de identidades e relações pessoais que levassem os escravos a liberdade, ou ao apadrinhamento, em caso de necessidades.

A análise dos registros de batismo demonstra que indivíduos de estratos sociais diferentes envolveram-se com seus escravos no referido sacramento, ao mesmo tempo em que, os escravos também se ligaram pelo laço do apadrinhamento com seus iguais. Os dados apresentados no capítulo I dessa dissertação nos revelam que, a região foi povoada tardiamente, o processo ocorreu praticamente ao mesmo tempo em que a consolidação do império e no mesmo contexto da carta outorgada de 1824. Esta última garantiu a continuidade da escravidão através de um principio básico do liberalismo, “a absolutização do direito de propriedade, que só poderia ser confiscada pelo Estado mediante indenização8”. Assim, temos a formação de um tecido social completamente heterogêneo, que não só comportava os elementos elencados por Hebe Mattos - “o “português” “colonizador” e o “africano” “escravo” - a construção prática do “brasileiro”...9” - mas contava com a

2604

migração de colonos suíços e alemães, o que contribuiu para a complexificação do objeto de análise na realidade pesquisada. 1

GARCIA, R. C. Nos Descaminhos dos Reais Direitos: O contrabando entre as Capitanias do Rio de Janeiro e Minas Gerais (1770-1790), Ano de Obtenção: 1995. (Dissertação de Mestrado) pp. 62-75. Esta seção do texto de Romyr Gracia promove um importante debate sobre os conceitos “bandido” e “banditismo”, a partir das ideias elaboradas por Hobsbawm. As conclusões do autor apontam que Mão de Luva não se caracterizava desta forma, ao contrário, em grande medida atuava legalmente. Romyr afirma que seu único crime foi garimpar em terras proibidas e burlar o fisco. 2 MELLO e SOUZA, Laura de. Os desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século XVIII. Rio de Janeiro: Edições Graal. 4ª Edição, 2004, p. 279 3 DIAS, Acácio Ferreira. Terra de Cantagalo. Cantagalo-RJ 2º edição, 1979, p. 69 4 MAWE, Jonh. Viagens ao Interior do Brasil Principalmente aos Distritos do Ouro e dos Diamantes. Rio de Janeiro, Ed. Zelio Valverd, 1944 . p. 128. (grifos nossos) 5 Tal mito foi identificado, descrito e criticado por João Raimundo Araújo em sua tese de doutorado Nova Friburgo: a construção do mito da suíça brasileira (1910-1960). Uma de suas principais características era a de ocultar a íntima relação entre senhores e escravos na Vila de Nova Friburgo e classifica-la, por conta de um contingente de migrantes suíços, como a terra dos homens livres cercados pela escravidão. 6 Escravos “de Nação” eram denominados os africanos que não tinham seus portos de saída e lugares de procedência revelados pelos documentos. Importante não confundir com a expressão escravos “da Nação”: foram chamados escravos “da Nação” aqueles que eram presos e não reclamados, assim, passavam a pertencer ao Estado e prestavam-lhe serviços até que fossem leiloados. Ver: ROCHA, Ilana Peliciari. “Escravos da nação”: o público e o privado na escravidão brasileira (1760 – 1876). 5º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional. http://www.escravidaoeliberdade.com.br/site/images/Textos5/rocha%20ilana%20pelicari.pdf (acessado em 15/11/2013). 7 PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, pp.137-156. 8 MATTOS, Hebe Maria. Escravidão e cidadania no Brasil Monárquico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2000. p. 33. 9 MATTOS, Hebe Maria. Escravidão e cidadania no Brasil Monárquico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2000. p. 32.

2605

O ESPETÁCULO DAS IMAGENS EM MOVIMENTO: A INSERÇÃO DO CINEMA EM CACHOEIRA 1913-1923. Rosana de Jesus Andrade 1

Resumo: O processo de inserção do cinema em Cachoeira, ocorreu em um momento em que o Brasil estava passando por uma série de transformações que alcançou diversos níveis das relações sociais, perpassando desde as hierarquizações sociais até o sentimento de proximidade ou distanciamento das relações humana. O presente texto trata desse processo, de inserção social do cinema no cotidiano da cidade de Cachoeira, perpassando desde o seu caráter itinerante até a instalação de casas de espetáculos voltadas para exibição fílmica. Palavras-chave: Cinema, modernização, Lazer. Abstract: The film insertion process in Waterfall, occurred at a time when Brazil was undergoing a series of transformations which reached various levels of social relations, passing from social hierarchies to the feeling of closeness or distance of human relations. This paper addresses this process of social inclusion of cinema in everyday town of Cachoeira, passing from its itinerant character to the installation of focused venues for filmic view. Keywords: Cinema, modernization, Leisure. Era mais um final de século na cidade da Cachoeira, período em que as pessoas sempre são assaltadas pela nostalgia de um tempo que vai ficando para trás, representando o fim de período conhecido, vivido. Simultaneamente, esse momento representa uma ocasião de renovar as esperanças, na medida em que zera o calendário. Contudo, é um período que é encarado com apreensão, pois quem sabe o que reservará ano que se inicia? O mundo está tão diferente! Com tantas parafernálias capazes de levar pessoas de um lugar a outro em um período drasticamente reduzido, sem falar nos aparelhos que reduzem as distancias entre as pessoas, e ainda tem uma máquina que permite eternizar os momentos, e outras que produzem imagens em movimento. Foi diante de uma sociedade que estava se transformando, se ajustando que os cachoeiranos foram apresentados ao cinematografo, no limiar do século XIX, no ano de 1899 especificamente, essa experiência se deu a partir de uma companhia itinerante, que se incumbiu de apresentar a novidade do século para aqueles que viviam no interior da Bahia. Não sabiam os espectadores que essa máquina que parecia mágica, iria exercer

1

Mestranda em História Regional e Local pela Universidade do Estado da Bahia. Bolsista FAPESB. Orientadora: Sara Oliveira Farias. Email: [email protected].

2606

um papel sócio-histórico de destaque na velha heroica, influenciando diversas gerações, ao contribuir para o desenvolvimento de novas sensibilidades e formas de sociabilidade. O presente texto trata desse processo, de inserção social do cinema no cotidiano da cidade de Cachoeira, perpassando desde o seu caráter itinerante até a instalação de casas de espetáculos voltadas para exibição fílmica. O processo de inserção do cinema em Cachoeira, ocorreu em um momento em que o Brasil estava passando por uma série de transformações que alcançou diversos níveis das relações sociais, perpassando desde as hierarquizações sociais até o sentimento de proximidade ou distanciamento das relações humana. Tais transformações, conforme aponta Sevcenko (1998), resultaram de uma nova dinâmica econômica no cenário mundial, produzida pelo advento da Segunda Revolução Industrial.2 No afã modernizador, a cidade se tornou uma espécie de observatório sobre o qual se lançavam diversos grupos sociais, pois os traçados urbanos das capitais brasileiras não condiziam com a imagem de civilidade e progresso aspirados para o país, que ainda conservavam a estrutura do período colonial. 3 Os anseios de melhoramentos urbanos estavam na ordem do dia nas principais capitais do Brasil. Não obstante, Rinaldo Leite (1996), aponta que as aspirações modernizadoras não se restringiam aos principais centros urbanos brasileiros, se estendendo também para os centros de relevância regional ou até mesmo para as áreas mais inesperadas do país, a exemplo da tentativa de construção de uma ferrovia no coração da Amazônia. É um momento de reordenamento dos corpos, das práticas sociais e culturais, dos sistemas de percepção e simbólicos da coletividade, resultantes da invasão do imaginário social pelas novas tecnologias, cujos ritmos e estímulos figuram um importante papel nas reconfigurações das heranças culturais. Nesse contexto, o agente dominador é a máquina e o cenário, a cidade que se construiu como ao mesmo tempo manancial e ambiente da invenção cultural, se tornando a principal inspiração artística. É inaugurada uma nova concepção de cidade, paradoxal, caótica, avassaladora, vital e

SEVCENCKO, Nicolau. “O Prelúdio Republicano, astúcias da Ordem e ilusões do Progresso”. In: NOVAIS, F. A. História da Vida Privada no Brasil. vol. 3. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, pp. 7-48. 3 LEITE, Rinaldo Cesar Nascimento. E a Bahia civiliza-se... Ideais de civilidade e cenas de anti-civilidade em um contexto de modernização urbana, Salvador, 1912-1916. Dissertação de Mestrado em História. Salvador: UFBA, 1996. pp. 8-9. 2

2607

emancipadora, se tornando imperativo decodificá-la e decifrá-la, visto que “esta esfinge moderna também amaldiçoa os que não são capazes de decifrá-las.”4 O projeto de modernização na Bahia primava a aproximação com o modelo cosmopolita, cujo arquétipo deveria talhar os padrões de conduta e os valores da sociedade. Os meios defendidos para alcançar tal objetivo consistia na transformação da cidade, inserção da máquina no cenário urbano, transformação dos hábitos e controle da sociabilidade dos populares.5 Entendemos por modernidade um projeto amplo, de conotações culturais, estéticas, raciais e políticas cronologicamente imprecisas.”6 Partindo do pressuposto de que experiência da modernidade possui múltiplos aspectos, variando de acordo com o lugar em que se estabelece 7, observa-se que esse processo em Cachoeira, guardando as devidas proporções, não divergiu em muitos aspectos da realidade soteropolitana, no que se refere ao discurso modernizador, que estava presente entre os setores letrados da cidade, que aspiravam transformá-la. Apesar desta cidade não ter passado por profundas transformações nos seus traçados urbanos, como é o caso da onda demolidora ocorrida em Salvador, havia um profundo anseio de transformar os traçados urbanos, aspirações reformistas chocavam-se constantemente com a tradição: Parecendo assim que somos um povo essencialmente conservador, temo-nos mantido supportando arvores velhas, casas medonhas, ruas intragaveis, beccos immundos, e, sobre isso, esses lampeões espectraes, que choram miseria e necessidade durante as noites inteiras. Quando se fala em reforma, logo surgem os apostolos da.... tradição. Mas, por Deus, que diabo de cousa é essa de tradição, que nos obriga a guardar para sempre o amor á poeira, ás teias de aranha e á confissão permanente da indolencia? Quem já ouviu falar, que por exemplo, os lampeões velhos exprimam symbolos tradicionaes? Nem é dizer que D. Pedro ou, mais longe ainda, Cabral ou o Caramuru possuíssem especimens da raça lampeonesca em suas augustas residências. Mas, daqui a pouco, o leitor ficará convencido de que, por nossa vez, acredittámos na tradição... da immundicie. Não é tal. Deus nos livre disso. (...)8

No processo modernizante, o ideal civilizador era o reverso da moeda. Assim, as reformas urbanas deveriam ser acompanhadas pelas transformação dos hábitos e dos costumes dos citadinos. Nesse contexto, a intervenção da estrutura física deveria ser acompanhada pela modificação e controle dos comportamentos, costumes e hábitos dos citadinos, especialmente as camadas populares. Assim, a higienização se constituiu

4

SEVCENKO, 1992. Op. Cit. p. 18. BELENS, Adroaldo de Jesus. A Modernidade sem rostos: Salvador e a telefonia. (1881-1924). Dissertação de Mestrado em História. Salvador: UFBA, 2002. 6 FONSECA, Raimundo Nonato da Silva. “Fazendo fita”: cinematógrafos, cotidiano e imaginário em Salvador, 1897-1930.Dissertação de Mestrado em História. Salvador: UFBA, 2000. p. 67. 7 LEITE, 1997. Op. Cit. p. 14. 8 Jornal A Ordem. É um grande quebra-cabeças. Cachoeira, 9 de julho de 1924. P. 01. 5

2608

como um projeto social dos setores pobres, pois a pobreza sempre era associada a promiscuidade e imoralidade e subversão. Dentro desta perspectiva, procurava-se impedir as manifestações religiosas e lúdicas das camadas populares, assinaladas como incivilizadas. Destarte, além da função da transformação material, as reformas urbanas deveriam cumprir um papel pedagógico no contexto do processo civilizatório da modernidade 9 De acordo com Leite (1996) a tentativa de civilizar o modo de vida e moralização dos costumes se pautou inúmeras vezes no princípio da eugenia, visto que muitos pregavam que o atraso do povo brasileiro era resultado das influências africanas e indígenas, apontando que o desenvolvimento da sociedade deveria perpassar pelo melhoramento da raça. 10 Na Bahia, esse princípio, alcançou ampla repercussão, pois aqui, a modernidade atua como um contraponto a africanidade, segundo Nonato 2000, o anseio de desafricanizar a cidade foi o que deu base ao projeto modernizador. Imbuídos pelas teorias cientificas e racialistas, os intelectuais baianos se inquietavam com a expressa presença de negros entre a população pobre e mendiga da cidade, que acabavam por reforçar os princípios eugênicos e racistas, que sob releitura local, viam a presença negra como uma “degeneração social”11 Para os intelectuais baianos, a herança africana era a culpada pelo atraso econômico e social que estava mergulhado a Bahia. Uma possível solução de tal problema perpassava pela imigração europeia, através da miscigenação varreria a o fator negro da população. Contudo, a Bahia fornecia atrativos para o contingente imigrante; na falta destes para a regeneração social, restava apenas “aplicar uma pedagogia civilizatória, capaz de moldar os afro-descendentes de acordo com os padrões civilizados dos brancos-europeus.”12 Desse modo, das ruas deveriam expurgadas das influencias da cultura africana, havendo um esforço para transformar os hábitos urbanos em consonância com a utopia moderna. O asseio e higienização das ruas deveriam ser acompanhadas com a moralização dos costumes, expurgando velhos hábitos que maculassem o ideal de civilidade que se pretendia inaugurar em Cachoeira. Entre os elementos a serem eliminados dessa sociedade, os ritos das religiões afro-brasileiras era uns dos mais combatidos: 9

LEITE, 1997. Op. cit. p. 47. Idem. p. 12. 11 FONSECA, 2000. Op. Cit. p. 20 12 Idem. 10

2609

As ruas da cidade amanhecem constantemente, pontilhadas de bugigangas insuportáveis, a que vulgarmente se dar o nome de bozóis. É uma intrugice que atenta contra os bons costumes, sacrificando-se às vezes e quase sempre, pobres, pobres animaezinhos que vão servir para o abominável tempero dessas provas do pouco asseio e nenhuma hygiene. A policia poderia “condecorar” alguns dos fabricantes de bozós, na impossibilidade e agarrar todos. (...)13

O discurso civilizador em Cachoeira, era propagado principalmente pela imprensa, pautado a partir dos princípios do melhoramento urbano, através da demolição das ruínas e construção de prédio com consonância com o novo tempo, bem como o estabelecimento de melhorias na infraestrutura da cidade; e o controle do modo de vida da população. Assim, havia um incentivo dos setores pobres ao trabalho, pois estes eram vistos como propensos a propagar pela cidade cenas de ociosidade, incivilidade, vadiagem, criminalidade, não condizentes com os hábitos urbanos tidos como modernos. Os divertimentos populares também deveriam ser vigiados e transformados de acordo com o padrão da sociabilidade urbana modera. Essas medidas se aplicavam aos hábitos e costumes que deveriam ser modificados. A Revolução Científico-Tecnológica14, resultante da aplicação de descobertas científicas aos processos produtivos, permitiu o desenvolvimento de novos suprimentos energéticos, tais como a eletricidade, o petróleo e seus derivados, possibilitando o surgimento de novas áreas da exploração industrial Essa segunda fase da industrialização provocou profundas mudanças nas relações sociais e de produção a nível planetário, gestando uma nova dinâmica global na economia e consequentemente em termos sociais, políticos e culturais. Segundo Sevcenko (1998), os desdobramentos dessa revolução foi o surgimento de inúmeras tecnologias modernas perpassando várias categorias, como por exemplo, os meios de transportes, de produção, de comunicação, de lazer, utensílios domésticos, produtos higiênicos, produção e conservação de alimentos e medicamentos, entre outros. Essa nova dinâmica global não se limitou apenas aos setores da economia, visto que o surgimento dessas novas tecnologias modificou em ritmos acelerados e avassaladores o cotidiano das pessoas e seus costumes, adentrando na sua privacidade, transformando de modo drástico o modo de vida e a maneira de conceber a sua própria intimidade e experiências coletivas. Jornal A Ordem. Uma porções de “bozós”! A policia podi “condecorar” seus fabricantes. Cachoeira, 03 de fevereiro de 1923.p. 01. 13

SEVCENCKO, Nicolau. “O Prelúdio Republicano, astúcias da Ordem e ilusões do Progresso”. In: NOVAIS, F. A. História da Vida Privada no Brasil. vol. 3. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 14

2610

O processo de industrialização originou um processo de crescimento e concentração urbana, possibilitando o surgimento das metrópoles. Devido a organização e luta dos trabalhadores, ocorreu uma melhoria salarial e ganhos como redução da jornada semanal, folgas semanais e férias. Assim, o número de pessoas com algum recurso para gastar e tempo livre aumentou consideravelmente, porém não tinham espaços de lazer, visto que a ópera, o teatro e as belas-artes, eram lugares predominantemente frequentados pelos grupos mais abastados da sociedade. Nesse contexto, alguns empresários souberam explorar tais circunstâncias, que associadas ao desenvolvimento da eletricidade possibilitaram o surgimento de duas formas de lazer e diversão baratas: o parque de diversões e o cinema. A exploração desses meios de diversão, ou melhor, das “emoções baratas”, pois como afirma Sevcenko “em ambos se fica na fila, se paga, se senta e, por um período de tempo determinado, se é exposto a emoções mirabolantes... o preço que se paga é o da vertigem”15, gerou grandes fortunas, se constituindo no século XX em um dos negócios mais vantajosos, a indústria do entretenimento. Daí temos a emergência de um novo vocabulário em consonância com a nova forma de ver e sentir o mundo: “uma linguagem imponente, irresistível, inefável, insidiosa” que torna a ação um ritual. Inaugura-se a linguagem do espetáculo. Dentro desta conjuntura, os códigos e valores culturais do passado se tornam ultrapassados, e para sobreviver nesta tumultuosa era, se faz necessário passar por um processo de reelaboração. Dentro desta perspectiva, a ação se destaca em detrimento da racionalidade, atuando sobre hábitos e ideias, alterando a rotina do cotidiano. Assim, nesse contexto de euforia advinda das transformações socioculturais, surgem novos hábitos e práticas cotidianas, que valorizam as experiências corporais, transformando as relações público/privado e a rua se torna o palco da ação, oferecendo toda sorte de diversões, que estabelecem uma nova identidade e um novo estilo de vida. Nesse sentido, temos a emergência de uma nova sensibilidade no espaço urbano gestadas pelos estímulos das novas tecnologias, que resultam na ampliação e circulação do consumo de novas formas de lazer, configurando novas socializações, transferidas da

15

SEVCENKO, Nicolau. A corrida para o século XXI: no loop da montanha- russa. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

2611

esfera privada para os lugares de convívio coletivo, que visavam normatizar as relações sociais de acordo com os ideais de civilidade.16 Nos primórdios do século XX, a cidade de Cachoeira assistiu a emergência de novos espaços de entretenimento e a inserção de novos hábitos e práticas de lazer no cotidiano da cidade. Entre tais espaços, temos a criação de clubes sociais, esportivos, cíveis-militares, beneficentes e

religiosos.17 Dentre estes novos espaços de

entretenimento e lazer, destaca-se, “A Desportiva”, fundado em 1928, ofertava aos seus associados diversas opções de lazer, tais como baileis carnavalescos, festas de gala, desfiles de moda, campeonatos esportivos, especialmente o remo. Segundo Santos (2012) este clube era um espaço segregacionista e elitizado onde a entrada, a associação e a participação em eventos por ele organizado de negros e pobres era proibida.18 Segundo Sevcenko (1992), o século XX assistiu a um fenômeno inédito que foi a democratização da música, resultante ascensão da emergente indústria do lazer, e da propagação avassaladora dos “ritmos frenéticos”, tais como o tango, o maxixe, foxtrotter, o jazz, o calke-walk, entre outras danças modernas. Assim ocorreu uma universalização da indústria fonográfica, resultante do surgimento de novas tecnologias ligadas a esses setores, a exemplo da substituição do gramofone pela vitrola e, consequentemente, dos ritmos musicais, e da forma de se apreciar a música: as composições eruditas, associadas a privacidade do lar, foram substituídas pelos sons estridentes, criados para serem curtidos em ambientes públicos, lotados de pessoas, em estado de frenesi.19 A Cidade de Cachoeira vivenciou tal “revolução” rítmica. Nota-se que essa sociedade, na qual prevalecia os sons dos sambas, batuques e das sociedades orfeicas, das marchinhas carnavalescas, foi seduzidas pelos “frenéticos” ritmos do jazz, foxtrotters, bem como do tango. As tradicionais filarmônicas, existentes na em Cachoeira, para não se tornarem extintas, diante dessa nova onda rítmica, tiveram que se adequar as

16

FERRARESI, Carla Miucci. Papéis normativos e práticas sociais: o cinema e a modernidade no processo de elaboração das sociabilidades paulistanas na são Paulo dos anos de 1920. Tese de doutorado. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.p. 126. 17 PEREIRA FILHO, Figueiredo Hilário. Glórias, Conquistas, Perdas e Disputas: As muitas máscaras dos carnavais de rua em Belo Horizonte (1899 – 1936). Dissertação de mestrado Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2006. 18 SANTOS, Carline Santos dos. Na rua e nos clubes o carnaval convida os foliões: Diferentes formas de brincar os carnavais de Cachoeira, 1950-1980. Monografia. Cachoeira: UFRB, 2012. 19 SEVCENKO. 1992. Op. Cit. p. 90.

2612

novas melodias e acordes. Entre os novos ritmos que seduziram os cachoeiranos, o jazz merece destaque, com a criação da grupo Jazz-Guarany em 1925.20 Assim, os cachoeiranos nos anos de 1920 se embalaram ao som da “música mais popular da era da máquina”21, cujo poder de alcance era superado apenas pelo futebol e pelo automóvel. Elementos alucinantes que, inclusive foram aos poucos fazendo parte do cotidiano da sociedade cachoeirana. A exemplo da primeira corrida de automóveis realizada, em Conceição da Feira, então território da Cachoeira. Nota-se que esse evento, por fazer, foi noticiada com grande entusiasmo, por representar o novo, e se constituir um evento inédito entre essa população. Ford e Chevrolet irão apostar velocidade... Domingo, realizar-se-á na villa da Conceição da Feira, uma corrida disputada por duas baratas, uma Ford e outra Chevrolet. A corrida será effectuada ás 8 horas em ponto, a qual como parecerão os representantes das duas emprezas. É de se esperar a maior concorrência, pois é um facto ainda não visto entre nós e que por isso está despertando vivo interesse.22

Outra importante forma de lazer dos cachoeiranos em princípios do século XX, foi as imagens em movimento. Dentro do contexto de surgimento de novas tecnologias de entretenimento e lazer, o cinema se destacou como um grande porta-voz da modernidade. Com forte apelo popular, o cinema acrescentou imagem ao som, ou, segundo Eric Hobsbawm, domesticou a imagem em movimento e revolucionou os gêneros de espetáculo de sua era.23 Dentro desta perspectiva, podemos salientar que, a observação da vida por meio de uma tela mudou a percepção visual das pessoas e a forma de expressão para arte.24 Nota-se que a experiência dos cachoeiranos com as imagens em movimento ocorreu no crepúsculo do século XIX, no ano 1899, cuja exibição fílmica, foi realizada através do cinema itinerante, intitulado Cinema Edson de propriedade dos senhores Antonio Oliveira Brandão e João Capristano Oliveira de Souza. Após dois meses de concorridas exibições na capital da Bahia, o Edson passou a apresentar o cinematográfico às cidades do interior que não conheciam as imagens em movimento, dentre elas Cachoeira25. Após ser apresentada as imagens em movimento, ocorreram na cidade diversas exibições cinematográficas direcionadas por amadores, exibiam as 20

Jornal A Ordem. Vae inaugurar-se brevemente, aqui, um jazz band. Cachoeira 14 de março de 1925.p.3 SEVCENKO, 1992. Op. Cit. p. 181. 22 Jornal A Ordem. Uma corrida de autos. Cachoeira, 08 de maio de 1922. p. 02. 23 HOBSBAWM, Eric. A era dos Impérios: 1875-1914. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1998. pp. 332-333. 24 Idem, p. 332. 25 BOCCANERA Júnior, Silio. Os cinemas da Bahia, 1897-1918. Salvador: EDUFBA, EDUNEB, 2007. pp. 26-27. 21

2613

“fotografias animadas”. As sessões ocorriam em espaços improvisados como em casas de particulares ou armazéns.26 O cinema em Cachoeira passou rapidamente do seu caráter itinerário para casa especializada de exibição. Não encontramos registros sobre o ano de instalação da primeira sala fixa de exibição cinematográfica instalada na cidade, porém, sabe-se que esta funcionava em um sobrado na rua Treze de Março, de propriedade do capitão José Gonçalves de Almeida, sendo destruído por um incêndio em 1914.27 Outro espaço cinematográfico que funcionava em Cachoeira nesse período era o Cinema Elegante de propriedade do senhor Francisco Froes. As suas atividades anunciadas na imprensa local, sendo apresentado como um espaço luxuoso, confortável com aparelhagens de qualidade e muito frequentado. A imagem abaixo (figura 1) é uma anúncio de jornal que destaca as potencialidade do Cine-Elegante, como um espaço de requinte e sofisticação, apontando para a qualidade dos filmes, centrando a atenção nos aparelhos de projeção dada como o que há de mais moderno, além disso chamava a atenção para a aceitação do público. Além da exibição fílmica, o cinema Elegante incorporava outras funções, como a realização de festivais, que contava com a participação de diversas personalidades artísticas e intelectuais da cidade. O cinema foi rapidamente inserido no cotidiano da cidade, possibilitando aos cachoeiranos vivenciar novas sensibilidades e novas formas de sociabilidades, incutindo novos hábitos, costumes e valores. Apesar da sua importância na sociedade cachoeirana, tal cinema não teve vida longa, tendo as suas atividades encerradas nesse mesmo ano. Do período que se estende de 1915 até 1923, Cachoeira, não dispôs de nenhuma casa de exibição fílmica. Esse fato era visto como uma afronta e um retrocesso para uma sociedade que se pretendia moderna, pois a ausência de um cinema trazia uma imagem de cidade oposta da que se pretendia construir. O Cine-Theatro Cachoeirano foi inaugurado na chuvosa noite de 12 de agosto de 1923, embalado ao som da filarmônica Lyra Ceciliana. O evento foi direcionado com a exibição do filme De apache a homem de bem, uma produção norte-americana em sete longas, distribuída pela Paramount. Nota-se que o filme foi projetados em duas sessões nessa noite, devido a lotação do espaço. O evento contou com a participação de 26

SILVA, Pedro Celestino da. Das datas e notas cachoeiranas. In: A Ordem. O Theatro em Cachoeira. Cachoeira: 10 de agosto de 1927. p. 02. 27 SILVA, Pedro Celestino da. Das datas e notas cachoeiranas. In: A Ordem. O Theatro em Cachoeira. Cachoeira: 10 de agosto de 1927. p. 02.

2614

espectadores das cidades de Cachoeira e São Félix. Apesar de se referir a partição do povo em geral, esse evento foi direcionado para um grupo especifico da sociedade cachoeirana, Após a abertura do C.T.C., esse espaço foi rapidamente incorporado ao cotidiano da cidade, não apenas por causa das exibições fílmicas que ofertadas com regularidade nas terças, quartas bem como aos sábados e domingos, mas passou a fazer parte das festividades da Cachoeira. Assim, o cinema foi incorporado ao cotidiano citadino, sendo inserido na programação de diversos eventos. Para além dos eventos de caráter cívicos, o C.T.C., passou a fazer parte de outras festividades, como as comemorações carnavalescas. Além dos eventos profanos, o CineTheatro Cachoeirano passou também a fazer parte do repertorio das festividades religiosas, sendo incorporadas nas homenagens a padroeira da cidade, do Sagrado Coração de Maria, bem como de festas pastoris. O Cine-Theatro Cachoeirano, passou a fazer parte da dinâmica das relações urbanas, assumindo uma dinâmica de um espaço que comporta diversas formas de entretenimento, tecendo uma complexa rede de articulações sócio-culturais com a cidade. Tal relação, além de ampliar a possibilidade de diversão dos cachoeiranos, permitiu uma ampliar as relações de sociabilidade, visto que promoveu a circulação de valores, praticas e visões de mundo diversa, além de aproximar o público das imagens em movimento. Dentro desta perspectiva, a inserção do cinema em Cachoeira, se processou no contexto dos anseios de melhoramento dos traçados da urbe, representando um ideal de progresso e desenvolvimento urbano, fazendo parte de um movimento mais amplo que era as aspirações modernizantes presentes no seio da sociedade brasileira nesse período. Podemos observar, o que a inauguração de uma casa de espetáculos representava para a cidade um salto qualitativo.

2615

O CONSUMO DA MODA COMO FERRAMENTA PARA A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE. Savanna de Albuquerque Freire

Resumo O presente trabalho busca discutir as novas concepções de identidade a partir da modernidade, observando de que forma elas se constituem no mundo contemporâneo. Diante disto, analisarse-á o consumo da moda enquanto ferramenta para a construção identitária dos indivíduos, além da elaboração vestimentar e visual enquanto comunicadora de sensações de pertencimento e/ou distinção social. Palavras-chave: Identidade, consumo, moda.

Abstract This paper discusses the new conceptions of identity from the modernity and how they are constituted in the contemporary world. Given this, it analyzes the consumption of fashion as a tool for identity construction of people, and the visual elaboration as a communicator of feelings of social distinction or belonging. Key-words: Identity, consumption, fashion.

1-

Introdução

A modernidade trouxe novas formas de sociabilidade e reconfigurou relações organizacionais tradicionais. Inevitavelmente, estas transformações afetaram os indivíduos enquanto sujeitos singulares e enquanto sociedade. Deu-se a problematização e a reflexão sobre o que seria “identidade”, ou melhor, “identidades”. Convencionou-se que as identidades culturais não são sólidas, muito menos imutáveis. Pelo contrário, elas são plurais, resultantes de processos de relações sociais. Esta transitoriedade advém, principalmente, de um mundo marcado pela globalização. Neste cenário, identidades outrora consideradas rígidas, fixas, foram dando lugar a verdadeiras negociações de signos e significados, jogos de polissemia em interminável processo de transformação.

2616

A partir da modernidade, as mercadorias tornam-se itens vivos participantes da sociedade. Há muito mais complexidade no ato de consumir do que se supõe à primeira vista. De acordo com Canclini, “as mercadorias servem para pensar”². Desta forma, este artigo pretende, partindo do contexto histórico da modernidade até os dias atuais, entender de que forma o consumo se apresenta como ferramenta na construção de identidades e na comunicação interpessoal e intersocial. Propõe-se ainda uma reflexão acerca do papel que a moda e seu consumo desempenham em uma conjuntura que preza pela liberdade de expressão individual e, ao mesmo tempo, vende mercadorias enquanto discursos e ideologias. Desta forma, pretende-se investigar como a moda se torna responsável por um conjunto de significações sociais, podendo agregar e segregar, unir e separar, refletir ou mascarar. Se consumir é tornar compreensível um mundo onde o que é sólido se evapora – fazendo referência a um dos autores utilizados para discorrer este artigo, Marx: “Tudo que é sólido desmancha no ar”³ –, consumir moda, por sua vez, é explicitar toda a vulnerabilidade das coisas tangíveis. Para construção argumentativa, utilizou-se principalmente a empreitada filosófica de autores como Zygmunt Bauman, Stuart Hall e Gilles Lipovetsky. Este trabalho tem como principal objetivo propor questionamentos e reflexões acerca da moda enquanto sistema passível de ser tomado simbolicamente por quem a consome, sendo estes – como há muito se acreditou – não somente receptores passivos diante de mensagens manipuladoras, mas, também, modelando-se e posicionando-se perante si mesmos e perante o mundo à sua volta enquanto sujeitos autônomos e em constante processo de configuração identitária.

2- Identidade. A reflexão sobre identidade constantemente se fez presente nas produções de conhecimento humano, sendo tema abordado principalmente nas ciências sociais. A discussão sobre “identidade” se faz necessária a partir do momento em que o homem compreende que sua existência e sobrevivência estão diretamente e irremediavelmente ligadas à capacidade de relacionar-se. Mas, como a maioria – senão todos – dos fenômenos sociais, é deveras complexa, difícil de estabelecer significado definitivo. De forma geral, compreende-se por “identidade” o conjunto de características que distinguem uma pessoa ou um grupo de pessoas, através das quais é possível individualizá-las ou associá-las. Para Solomon4, pode-se entender por identidade a relação entre múltiplos

“eus”.

Segundo o autor, um mesmo sujeito se observa em uma dicotomia perante dois “eus”: o “eu

2617

ideal” – como gostaria de ser visto – e o “eu real” – visão realista de como realmente é. Ainda segundo o autor, existe um “eu” para cada situação e/ou relação social, e este pode variar rapidamente, de acordo com o papel social a ser desempenhado em dado momento. Nesta mesma linha de raciocínio, encontram-se também reflexões como as de Stuart Hall, que afirma: “A identidade torna-se uma celebração móvel: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam”5. Para Hall, uma fragmentação de identidades se deu junto com o surgimento das sociedades modernas. Essa corrente de pensamento baseia-se no seguinte discurso: as velhas identidades, ou identidades tradicionais, encontram-se defasadas, dando lugar a novas identidades e configurando um “indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado”6. É justamente neste cenário que o mesmo autor sugere o surgimento de uma “crise de identidade”.

3A crise das identidades tradicionais e a construção de identidade do homem moderno.

A questão da modernidade e seu progresso foram temas discutidos por estudiosos de diversas áreas a partir do século XX. Mas, hoje, é necessário compreender e admitir que este é um solo fértil para a apreensão de diversas problemáticas também do século XXI. As instituições modernas se diferenciam de todas as configurações de ordem social que as antecediam, isto em relação ao seu dinamismo e à forma com que se comunicam com o sujeito/sociedade, de modo a interferirem diretamente em hábitos e normas tradicionais, tendo impacto em esfera global. A modernidade aqui, apesar de compreendida em nível institucional, não pode deixar de ser assimilada a nível social-cotidiano e pessoal. Uma mudança estrutural diferente do que se conhecia até então reconfigurou as sociedades e suas relações organizacionais: o que, principalmente, difere a modernidade de seus cenários históricos antecessores é a interconexão das influências globalizantes, de um lado, e as disposições e convicções pessoais, de outro. A modernidade é uma “nova ordem” – ou melhor, uma ordem pós-tradicional. A “dúvida” se instaura como característica da razão crítica e consciência filosófica, no sentido de formar sempre hipóteses, nunca certezas – a modernidade institucionaliza as múltiplas fontes de autoridade, numa teia gigante de influências globalizadas, capazes de se encaixar e desencaixar a todo momento, dando origem a novas implicações e parâmetros.

2618

Baudelaire explicita o caráter da modernidade, ao escrever: “A Modernidade é o transitório, o efêmero, o contingente, é a metade da arte, sendo a outra metade o eterno e o imutável”7. Desta forma, a modernidade tem a capacidade de entrelaçar o passageiro ao perpétuo, o autônomo ao universal, desarticulando relações espaço-sociais. Como se pode observar com Hall, o cenário cultural outrora estabelecido diluiu-se e fragmentou paisagens e identidades culturais tradicionais: nacionalidade, gênero, etnia, classe, sexualidade, raça. Estas identidades fixas, e que na maioria das vezes eram definidas biologicamente, deram espaço a identidades móveis, múltiplas, contraditórias, definidas historicamente. Esta “descentração” do sujeito é chamada “crise da identidade” e, segundo Hall, está inserida em um conjunto de transformações sociais, não podendo ser isolada deste quadro de referência:

Esses processos de mudança, tomados em conjunto, representam um processo de transformação tão fundamental e abrangente que somos compelidos a perguntar se não é a própria modernidade que está sendo transformada. [...] naquilo que é descrito, algumas vezes, como nosso mundo pós-moderno, nós somos também “pós” relativamente a qualquer concepção essencialista ou fixa de identidade – algo que, desde o Iluminismo, se supõe definir o próprio núcleo ou essência de nosso ser e fundamentar nossa existência como sujeitos humanos.8

As identidades centradas e unificadoras foram substituídas por identidades fragmentadas, em processo constante de construção. O sujeito que anteriormente era passivo na concepção de identidade, não tendo possibilidade de exercer sua vontade, dá lugar a um sujeito ativo, apto a decidir não só a forma como deseja se ver, mas como deseja que o outro o veja. Diante deste pensamento de Hall, é válido ressaltar, também, que tradições que constituíam identidades não desapareceram totalmente, apenas foram reelaboradas, revisadas. Organizações familiares ou étnicas, por exemplo, não se dissiparam totalmente, mas, reformularam-se e deram origem, também, a novas instâncias e articulações. Isto porque este é mesmo o caráter da sociedade moderna e o que a diferencia das sociedades tradicionais: o processo de “globalização” – integração econômica, comunicacional, social, política e cultural internacional. Como afirma Marx sobre a modernidade:

É o permanente revolucionar da produção, o abalar ininterrupto de todas as condições sociais, a incerteza e o movimento eternos. [...] Todas as relações fixas e congeladas [...] são dissolvidas, todas as relações recém-formadas envelhecem antes de poderem ossificar-se. Tudo que é sólido desmancha no ar [...].9

2619

As sociedades modernas são, portanto, intrinsecamente sociedades de mudança. À medida que áreas diferentes do globo interconectam-se e trocam informações umas com as outras, alteram-se práticas, revisam-se padrões, reexaminam-se dogmas. Diante deste contexto, o sujeito se encontra frente a diversas possiblidades, podendo optar por desempenhar não só um, mas diversos papéis perante o mundo que o cerca. Tornase autônomo para escolher um novo “eu” a cada momento. Segundo Boaventura, duas dicotomias estão na base das duas grandes tradições da teoria social e política da modernidade: subjetividade individual x subjetividade coletiva e subjetividade contextual x subjetividade universal10. Não cabe, aqui, traçar um panorama completo dos mais de 300 anos de modernidade e seus conceitos sucessores (Pós-Modernidade – Benjamin, dentre outros –, Hipermodernidade – Lipovetsky –, Modernidade líquida – Bauman –, etc.). Torna-se mais importante, para este artigo, no entanto, fazer um breve apanhado do momento histórico em que as identidades tradicionais deram espaço às identidades múltiplas, e como os indivíduos lidam com esta questão atualmente. Bauman afirma que se existe, de fato, um “jogo de identidades”, no sentido de um mesmo sujeito exercer diferentes papéis sociais e identitários,

este

procedimento não é uma “invenção” da pós-modernidade, mas é característica inerente à modernidade11. A partir de agora, torna-se pertinente pensar (historicamente) a partir do capitalismo, momento histórico que suscitou uma nova forma de apreender o mundo: o consumo.

4-

O consumo de moda enquanto instrumento na construção de identidade.

Bauman compreende que a identidade “só nos é revelada como algo a ser inventado, e não descoberto; como alvo de um esforço, ‘um objetivo’; como uma coisa que ainda se precisa construir a partir do zero”12. Neste sentido, sujeito e identidade interligam-se a partir de uma construção, de uma relação que não pode ser dada como concreta, mas que se estabelece de forma contínua, sucessiva e ininterrupta. Ora, se a noção de “identidade” perpassa pela noção de “idealização”, que ferramentas se apresentam para o auxílio desta construção? O consumo e a moda, provavelmente, sejam duas das mais notórias delas. Como se viu, as relações sociais, antes baseadas em paradigmas fechados, diluíram-se, dividiram-se e se transformaram, necessitando, para sua melhor percepção, da compreensão dos novos componentes que as cercam. Diante de uma sociedade globalizada e diversificada – em seus mais variados sentidos – o consumo se dá como fator determinante na elaboração das

2620

subjetividades individuais, ao passo que outros instrumentos de formação identitária foram se tornando menos visíveis perante a ascensão do capitalismo e da sociedade de consumo. Neste contexto, a moda se apresenta como ferramenta relevante para a concepção pessoal e grupal de “identidade” e assume novos papéis sociais: bem mais híbridos e complexos. Ainda que o consumo tenha sido tema recorrentemente abordado nas ciências sociais nos últimos anos, há, ainda, algumas correntes mais tradicionais sobre o que acontece antes e quando se consome. Nos estudos sobre comunicação de massa, já se entende que o processo do consumo não se estabelece em uma ação vertical e unilateral – onde os “dominadores sociais” manipulam e ditam regras aos receptores –, mas se dá de forma colaborativa, tecendo diálogos e intercalando discursos. Segundo Canclini, o consumo se constitui como algo maior que o simples exercício de impulsos e desejos individualizados, ele “é o conjunto de processos socioculturais em que se realizam a apropriação e os usos dos produtos” 13. Diante disto, torna-se plausível pensar o consumo não enquanto um sistema de disseminação de conceitos descontextualizados, mas, como um meio que deve ser tomado e apropriado como forma de identificação, comunicação e legitimação de ideias. Se o consumo passa a ser assunto vital para a compreensão de uma sociedade moderna, a moda também se caracteriza como ferramenta comunicacional digna de ser explorada, haja vista que, juntamente com a solidificação do capitalismo, adentrou as relações sociais, econômicas, organizacionais e políticas. É notório que a humanidade sempre esteve envolta na busca pelo belo, pelo diferente e pelo novo, mas, especificamente a partir da modernidade, o vestuário passa de mero objeto para um papel social muito complexo: a isto chama-se “moda”. A moda, desta forma, se dá como utensílio social de expressão humana, sistema oportuno capaz de comunicar mensagens tanto na relação sujeito-sociedade, quanto nas convicções e desejos do sujeito com ele próprio. Segundo Lipovetsky, a moda está por toda parte, e ao contrário do que popularmente se pensa, não se limita ao ato de comprar vestuário ou acessórios14. A moda compõe um sistema de signos e significados nos quais se organiza e se comunica uma ordem social. Esta atua de diversas maneiras, sendo operante, também, nas formas com que determinada ordem social é vivenciada pelos seus sujeitos, apreendida e passada adiante. Caminha junto as mudanças sociais, nunca podendo ser descontextualizada destas. Assim, a moda se caracteriza como ferramenta no processo de comunicação de identidade, por isto mesmo, não equivale à uniformização de costumes, usos e gostos, como se pode pensar à primeira vista. Para o autor, a moda não se assemelha de modo algum a um neototalitarismo suave. Ao contrário disto,

2621

possibilita a dilatação do questionamento público, uma maior autonomização de ideias e das existências subjetivas; dá-se como agente supremo da dinâmica de personalização dos indivíduos. Como se pode notar abaixo:

A moda não é mais enfeite estético, um acessório decorativo da vida coletiva; é sua pedra angular. A moda terminou estruturalmente seu curso histórico, chegou ao topo de seu poder, conseguiu remodelar a sociedade inteira à sua imagem: era periférica, agora é hegemônica [...].15

5-

O consumo de moda e as relações de pertencimento e/ou distinção social.

Pensando a moda enquanto sistema (conjunto de instituições econômicas, morais e/ou políticas), pode-se notar sua capacidade de criar relações e sensações de pertencimento e nãopertencimento, no que diz respeito à divulgação de, por meio de bens de consumo, conceitos estéticos, culturais, sociais e até mesmo políticos. A moda é capaz incitar desejos de inovar, imitar e/ou renovar, desta forma, ela itera – dialeticamente – uma competição em busca de prestígio social, à medida que determinados grupos pretendem distinguir-se de outros e, da mesma forma, aproxima e conecta pessoas que se reconhecem na imagem de outras. Neste sentido, Canclini ressalta que, hoje, há uma reorganização transnacional dos sistemas simbólicos16. Desta forma, o consumo ascende a não mais um lugar de apenas troca de mercadoria, mas ocupante de um posto bem mais complexo de interações socioculturais. O sistema moda, segundo McCracken, realiza uma transferência de significado do mundo cultural-social para os bens de consumo, e vice-versa17. Para citar exemplos, na publicidade de moda em que se evidencia uma mulher jovem, de aparência saudável e bonita, mais do que vender um bem de consumo, propõe-se, também, uma venda de valores e de “lifestyle” (estilo de vida). A partir da elaboração estética se desenrola, também, elaboração comportamental, psicológica, dentre outras. Neste exemplo, mais do que vender uma bolsa ou um sapato, a publicidade do sistema moda aspira vender, também, conceitos como saúde e/ou vaidade. O espectador, por sua vez, terá autonomia para decidir se pretende ou não pertencer a este grupo. O sistema moda, nesta capacidade, divulga novos estilos de se vestir e os associa a princípios, comportamentos, ideologias e discursos. Uma jovem dos anos 1970, por exemplo, ao vestir uma calça boca-de-sino, poderia ter, também, a convicção de que compartilhava e transmitia a mensagem proposta pela ideologia hippie18. Ao usar determinada peça de roupa,

2622

tem-se a noção de partilha de visões e conceitos em comum. Assim, tanto o signo quanto o significado se transferem do mundo dos “bens” para o plano sociocultural. McCracken chama atenção, ainda, para a possibilidade da moda de criar e divulgar “líderes de opinião” (podendo ser pessoas das mais diversas áreas), que seriam colaboradores na moldagem de identidades – reforçando, reformando, diminuindo ou enfatizando categorias e princípios culturais19. Como exemplo, pode-se citar a construção imagética que se criou em torno de figuras como Marilyn Monroe. A atriz vestia-se de maneira extremamente feminina, sensual e vanguardista para sua época. Trouxe, junto com seu estilo de vestimentas, discursos como liberação sexual, poder e atitude. Canclini ressalta a possibilidade única que o consumo tece nas sociedades atuais: a de interconexão, por meio de símbolos transnacionais, de grupos dos mais diferentes e longínquos lugares do planeta20 – e, para exemplificar isto, o autor utiliza o mesmo exemplo, Marilyn. Um publicitário, ao usar a imagem desta atriz, pode confiar que sua mensagem terá sentido até mesmo nos lugares mais distantes de seu país. Da mesma forma podem-se apropriar disto estilistas, designers e marcas do mundo da moda. McCracken afirma que “se as fontes de significado são mais dinâmicas e numerosas, assim também o são os agentes que apanham esse significado e realizam sua transferência para os bens de consumo”21. Lipovetsky destaca o poder de persuasão e convencimento da moda 22, que leva a crer quem a consome fazer parte de determinado grupo social – mesmo que não faça –, que oferece sensação de felicidade ou infelicidade por estar incluído ou à margem e, que permite a construção de um “quem sou” e de um “quem quero ser”. E, para muito além de sedução midiática, auxilia na construção e elaboração de um sujeito perante o meio com o qual convive. Especialmente, sendo este sujeito filho da modernidade: onde as identidades são fluidas, voláteis, passageiras, transitórias. Ora, se o indivíduo sente a necessidade de, diante de cada situação, “vestir” uma identidade diferente, o que mais, além da moda, refletiria tão bem este desejo? Uma mulher pode sair para trabalhar durante o dia vestindo adornos que a caracterizem como comprometida, profissional, responsável. À noite, esta mesma mulher pode se encontrar diante da sua família, usando adornos que discursem descontração e relaxamento. Como outro exemplo, pode-se citar a necessidade que os integrantes de um país amante do futebol, como o Brasil, têm de vestir as cores clássicas de sua bandeira durante eventos como uma Copa do Mundo. Por meio de suas roupas, as pessoas configuram imagens e sensações de pertencimento, compartilhamento, solidariedade e objetivos em comum. Sentem-se incluídas de tal sorte que, quem não carrega esta paixão esportiva, tem a sensação

2623

de transmitir uma mensagem ao não utilizar o “verde e amarelo”: “eu não ligo para a Copa do Mundo” – apesar de ser um brasileiro. Desta forma, a moda auxilia na construção de uma identidade pessoal e social, transformando-se tão rapidamente quanto quem a consome. A moda permite a invenção e a reinvenção. Como se observa no discurso de Lipovetsky:

O que não é, ao menos parcialmente, comandado pela moda quando o efêmero ganha o universo dos objetos, da cultura, dos discursos de sentido, quando o princípio de sedução reorganiza em profundidade o contexto cotidiano, a informação e a cena política? Explosão da moda: doravante ela já não tem epicentro, deixou de ser o privilégio de uma elite social, todas as classes são levadas pela embriaguez da mudança e das paixonites, tanto a infra-estrutura como a superestrutura estão submetidas, ainda que em graus diferentes, ao reino da moda.23

Nota-se que não só o indivíduo contemporâneo está imerso no universo da moda, como a moda configura-se a partir e para o sujeito. Constituindo-se como ferramenta social a serviço não apenas de uma classe, à medida que engloba esferas cada vez mais amplas da vida coletiva. Desta forma, a moda assinala a autonomia dos sujeitos, atuando como personagem na construção individual e coletiva da(s) identidade(s) destes.

6-

Considerações finais

Este estudo partiu do contexto histórico da modernidade, no qual a sociedade se reorganizou e reavaliou antigos paradigmas, principalmente, de comportamentos e pensamentos. Diante disto, notou-se que a problemática da identidade tomou proporções filosóficas muito maiores do que as percebidas até então: antigas relações identitárias, tradicionais e fixas, reelaboraram-se e deram origem a identidades voláteis, híbridas, em processo ininterrupto de construção. A partir disto, buscou-se entender como novas relações sistemáticas institucionalizadas pelo capitalismo se constituíram como ferramenta para a construção destas identidades inconstantes: o consumo e a moda. Diante disto, notou-se que, para muito além de realização de necessidades e desejos individuais, o consumo da moda se caracteriza como discursos carregados de ideias e ideologias, intercomunicação entre sujeito e sociedade. Este artigo foi uma incitação à reflexão das novas formas de sociabilidade e uma proposta de encarar filosoficamente o sistema moda, entendendo-o enquanto possibilidade não apenas de persuasão e/ou manipulação, mas de expressão individual – conferindo a este

2624

fenômeno tão particular e multifacetado da modernidade caráter teórico, a fim de possibilitálo enquanto discussão no mundo acadêmico.

¹ Designer de Moda, especialista em Gestão do Produto de Moda do Vestuário, mestranda em Comunicação, Linguagens e Cultura pela Universidade da Amazônia. Bolsista CAPES 2015. E-mail: [email protected]. Orientadora: Marisa de Oliveira Mokarzel. CANCLINI, Néstor García. Consumidores e cidadãos; conflitos multiculturais da globalização / Néstor García Canclini . 4ª ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1999. p. 59. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Petrópolis: Vozes, 2001. (11ª ed.). p. 70. 4 SOLOMON, Michael R. O comportamento do consumidor: comprando, possuindo e sendo. 5. ed. Porto Alegre: Bookman, 2002. 5 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomas Tadeu da Silva e Guaracira Lopes Louro. 11ed. – Rio de Janeiro: DP&A, 2006. p. 13. 6 Idem. p. 7. 7 BAUDELAIRE, Charles, 1821-1867. Sobre a modernidade. O pintor da vida moderna / Charles Baudelaire; [organizador Teixeira Coelho]. — Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. p. 25. 8 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomas Tadeu da Silva e Guaracira Lopes Louro. 11ed. – Rio de Janeiro: DP&A, 2006. p. 9-10. 9 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Petrópolis: Vozes, 2001. (11ª ed.). p. 70. 10 SANTOS, Boaventura de Souza. Modernidade, identidade e a cultura de fronteira. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 5(1-2): 31-52, 1993 (editado em nov. 1994). 11 BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. 12 Idem. p. 22. 13 CANCLINI, Néstor García. Consumidores e cidadãos; conflitos multiculturais da globalização / Néstor García Canclini . 4ª ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1999. p. 77. 14 LIPOVETSKY, Gilles. O Império do Efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 15 LIPOVETSKY, Gilles. O Império do Efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 12. 16 CANCLINI, Néstor García. Consumidores e cidadãos; conflitos multiculturais da globalização / Néstor García Canclini . 4ª ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1999. 17 McCRACKEN, Grant. Cultura e consumo. Rio de Janeiro: Mauad, 2003. 18 Hippie: Movimento ideológico de contracultura surgido dos EUA na década de 60. Pregava, principalmente, filosofias pacifistas e causas de responsabilidade ambiental e social. 19 McCRACKEN, Grant. Cultura e consumo. Rio de Janeiro: Mauad, 2003. 20 CANCLINI, Néstor García. Consumidores e cidadãos; conflitos multiculturais da globalização / Néstor García Canclini . 4ª ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1999. 21 McCRACKEN, Grant. Cultura e consumo. Rio de Janeiro: Mauad, 2003. p. 111. 22 LIPOVETSKY, Gilles. O Império do Efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 23 LIPOVETSKY, Gilles. O Império do Efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 155.

2625

O Movimento Operário e sua relação com o Estado: percursos e percalços na construção da cidadania na Primeira República. Sayonara Faria Sisquim Mestranda em História Social do território pelo PPGHFFP/UERJ. Orientadora: Doutora Ana Paula Barcellos Ribeiro. Email: [email protected]

RESUMO. O presente artigo tem por objetivo o estudo das relações entre o Estado e o movimento operário na Primeira República. Para isto, analisaremos a mobilização operária na busca por direitos, assim como as ideias que influenciavam o movimento operário, especialmente o socialismo reformista, a fim de entender o apoio do movimento operário à candidatura de Marechal Hermes da Fonseca, primeiro militar eleito presidente da República pelo voto popular. PALAVRAS-CHAVE: Poder; Estado; Movimento Operário.

ABSTRACT. The present article aims to the study of relations between the State and the Workers’ movement in the Frist Republic. To this examine is a workers’ mobilization searching for rights, of this and concepts which influenced the workers’ movement, of particularly the socialism reformist, in order to understand the support of the movement is application the Marshall Hermes da Fonseca, the first military directly elected President of the Republic popular vote for. KEYWORDS: Power; State; Workers’ Movement. “As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas. Por isso esta investigação sobre as representações supõe- nas como estando sempre colocadas num campo de concorrências e de competições cujos desafios se enunciam em termos de poder e dominação”. (CHARTIER, 1990, p. 17)1.

A Primeira República durante muito tempo foi analisada por historiadores e cientistas sociais sob a ótica de um “período marcado pela alternância de poder entre as

2626

elites oligárquicas dominantes”, onde os partidos políticos se revelavam como um círculo de clãs familiares que se alternavam no poder sem diferença ideológica, entretanto, estudos mais recentes revelam especificidades do período, (VISCARDI, 2001, p.45) defende que “o Estado republicano, em sua primeira etapa, era muito mais complexo do que pode parecer à primeira vista”2. Nesse sentido, chamamos a atenção para a historiografia atual sobre a nova reflexão: a problematização do discurso predominante do consenso entre as oligarquias. Um novo olhar sobre o período da Primeira República, o reinterpreta como palco de discordância e disputas entre as oligarquias3. Também destaca a existência dos movimentos dos trabalhadores, que, através da atuação sindical mobilizaram inúmeras greves e manifestações coletivas, evidenciando a complexa relação de poder entre o Estado e a organização operária no período em destaque. Na Primeira República as questões sociais eram entendidas pelo Estado, na maioria das vezes, como “caso de polícia.” (MESTRINER, 2001, p.16) destaca que na “Primeira República, proteger-se era uma questão do próprio indivíduo, sendo os direitos do trabalhador quase inexistentes”4. Dentro de tal perspectiva, no vácuo deixado pelo Estado surgem, a partir da segunda metade do século XIX, as primeiras organizações operárias constituídas em forma de organizações cooperativas de ajuda mútua, as conhecidas mutuais. No inicio do movimento operário, na ausência dos mecanismos formais de previdência pública, os trabalhadores urbanos livres mais qualificados - geralmente exercendo ofícios artesanais- passaram a se organizar em sociedades beneficentes de ajuda mútua. (VISCARDI, 2007, p.24) defende que “as sociedades de socorros mútuos funcionavam como organizações cooperativas, marcadas pelos laços horizontais de solidariedade”5. Nessas sociedades, os operários se auxiliavam em caso de doença, de incapacitação para o trabalho por causa de acidentes, além de custear despesas em caso de desemprego e de funeral, etc. O mutualismo funcionava como locus de agregação de identidades e interesses compartilhados, reforçando os laços de solidariedade horizontais e edificando espaços de sociabilidade e lazer para os seus integrantes. Entender a importância das mutuais como lugar privilegiado na formação das identidades de classe e interesse coletivo dos trabalhadores, no primeiro momento do

2627

movimento operário no Brasil, é de relevante importância para entendermos a formação dos sindicatos de ofício (ou associações por ofício) e suas ideias. Entretanto, se em um primeiro momento as mutuais eram espaço de sociabilidade e de lazer, em um segundo momento, as mutuais passaram a se enquadrar às novas demandas com relação à industrialização do país, formando as associações operárias voltadas para a mobilização na busca por direitos: o sindicato operário. “Essas novas organizações sociais – os sindicatos - nasceram com as qualificações mais diferentes: grêmio, liga, associação, centro, sociedade, união e sindicato”. (BATALHA, 2000, p.15). Com frequência, na denominação havia a qualificação “de resistência”, para enfatizar sua diferença com relação às sociedades mutualistas consideradas “beneficentes”6. Basicamente, podemos identificar três tipos de sindicatos ou “associações de resistência” no início do século XX no Brasil republicano: os sindicatos de indústria ou ramo de atividade, as associações pluriprofissionais e as associações por ofício, sendo essa última, a de maior relevância, pois, segundo Batalha: Os sindicatos por ofício constituíram a base da organização operária na Primeira República, sendo o tipo de organização predominante e tendendo a ser a forma priorizada pelo movimento operário, pelo menos até a segunda metade dos anos de 1910 ( BATALHA, 2000, P.17)7.

Do ponto de vista social e político do processo de industrialização no Brasil e no mundo, o operário se encontrou, desde o início numa posição antagônica8 ao Estado, pois o entendia como representante da classe burguesa, proprietária dos meios de produção necessários à realização do seu trabalho. Diante do posicionamento antagônico, e através da mobilização sindical, os operários passaram a enfrentar questões relacionadas ao direito trabalhista tais como: a jornada de oito horas, melhores condições de trabalho, os baixos salários, a regulamentação do trabalho das mulheres e dos menores, as horas-extras, além de condições dignas de moradia, dentre outras. Com relação às ideologias no campo da luta sindical9, no início do século XX, houve basicamente duas concepções da prática sindical: o sindicalismo de ação direta e o sindicalismo reformista, pois segundo Konder10: Apareceram, então, dois pólos distintos: um constituído pela social democracia, que estava organizada em torno da Segunda Internacional, inspirada nas posições de Marx, Engels, Kautski, Lassalle, Bebel etc.; o outro, composto pelo sindicalismo libertário, baseava-se no legado dos socialistas utópicos, mas se

2628

apoiava, sobretudo nas concepções de Baknin, de Piotr Kropotkin e de Errico Malatesta.(KONDER. 1995,p.34)11.

O sindicalismo de ação direta ou revolucionário em sua origem francesa tinha nítida influência anarquista, pois considerava a greve o único instrumento para a realização da revolução social, eram extremamente críticos ao sistema representativo, defendiam o sindicato como locus privilegiado da luta pelos direitos dos trabalhadores. Já o sindicalismo reformista - ou sindicalismo amarelo ou pelego numa denominação depreciativa - era formado por diversas vertentes do socialismo, tais como: os positivistas, republicanos sociais e sindicalistas pragmáticos. Diferente do socialismo de ação, para os reformistas a greve era o último recurso, defendiam a consolidação dos ganhos do movimento operário através de leis. Além disso, “diferente do sindicalismo revolucionário, não condenava a participação política dos seus representantes.” (BATALHA, 2000, p. 39)12. No Brasil da Primeira República, a ação do sindicalismo reformista foi muito relevante e mais presente na cidade do Rio de janeiro, - apesar de atuar também em outros estados - com um desempenho sindical forte, com destaque, para a UOP ( União dos Operários Estivadores), fundada uma semana após a “Greve Geral” de 1903 e para a ARC (Associação de Resistência dos Cocheiros e Carroceiros). O sindicalismo reformista, que defendia a ação de mediação entre trabalhadores e empregadores e o Estado, em 1910 serviu como base de apoio à candidatura de Hermes da Fonseca à presidência da República, “que no mesmo ano subiu ao poder como o primeiro presidente militar eleito no Brasil por voto popular.” (BORGES, 2011 p.52)13. “O apoio do sindicalismo socialista à eleição De Hermes da Fonseca em 1910 trouxe novidade às relações entre Estado e movimento operário,” (BATALHA, 2000, p. 44.)14. Hermes da Fonseca foi o primeiro candidato à presidência a mencionar em sua plataforma a existência de um problema operário a ser resolvido e a se referir a vida difícil dos pobres, atitude que destoa da prática politica da Primeira República. Abaixo vemos o discurso de posse do então Presidente eleito Hermes da Fonseca enviado ao Congresso Nacional em 1911. “ [...]No intuito de dar remédio ao mal que assim aflige essa digna classe, resolvi, iservindo-me da lei que votastes no ano passado, mandar construir, nos terrenos da Estação Deodoro, uma vila operária, cuja primeira pedra teve a satisfação de lançar no 1º dia deste mês.[...]15.

2629

“A campanha para eleição de Hermes da Fonseca é considerada um marco para a política no Brasil,” (CARONE, 1988, p.87)16. Distinta do modelo de política predominante até então, isto é, restrita a acordos fechados entre chefes de máquinas políticas, “contou com a participação de amplos setores da sociedade brasileira, e pela primeira vez em campanhas presidenciais, com participação popular foi relevante,” (BORGES, 2011, p.90)17. O jornal Correio da Manhã18 em sua edição de número 3.149 de 1º de março de 1910, na coluna de primeira página com o título: “A’s Urnas”, assinada por Gil Vidal, codinome do Jornalista Leão Veloso, revela a importância do momento político na campanha para a presidência naquele contexto histórico: “Exerce hoje o povo brasileiro a maior de suas funções políticas – a eleição de seu primeiro magistrado. E, em vinte anos de regimen republicano, póde-se dizer que, pela primeira vez, o povo a exerce. Até agora as eleições presidenciais, resolvidas aqui, no centro, pelos próceres da politiquice, eram homologadas pelos Estados, onde votação não havia e tudo se reduzia ao trabalho do bico de pena. Hoje, porém, o caso é outro. O eleitorado move-se e comparece aos comícios. E si o serviço de compreensão não o privar de votar conforme a sua consciência, ou o trabalho da fraude não lhe alterar ou falsificar o voto, teremos a 15 de novembro, assumindo o supremo governo da Republica, o eleito do povo e não o preferido dos politicantes.”18.

Este foi um momento muito importante para a participação popular na Primeira República em um contexto de acirrada disputa entre os candidatos à presidência Hermes da Fonseca e Ruy Barbosa. As ruas foram tomadas por caravanas, comícios e mobilizações em praças públicas. A imprensa, como no exemplo na citação acima, teve um papel inovador e de destaque na disputa entre os hermistas e os civilistas, servindo como ferramenta de campanha de ambos os candidatos. O jornal Correio da Manhã, um jornal diário, que dizia ter como princípio a defesa do povo e a isenção de opinião, fazia uma clara oposição à candidatura do Marechal Hermes da Fonseca, ao qual o próprio jornal intitulava representante da espada. Já os jornais operários, por questões ideológicas, na sua maioria também não apoiavam a candidatura do Marechal, o próprio jornal “A Voz do Trabalhador” jornal da COB20, intitulado como porta voz do trabalhador e do operariado militante, na edição de 15 de novembro de 1909 chamava a atenção para a farsa eleitoral, qualificando as classes de operários que apoiavam a candidatura de Hermes da Fonseca como “operários inconscientes”

2630

Os “operários inconscientes” em questão seriam os alinhados ideologicamente ao sindicalismo reformista, que constituía a base das principais associações operárias do Rio de Janeiro, tais com: União dos Operários Estivadores, Liga dos Artistas Alfaiates, Congresso União dos Operários em Pedreiras, a União dos Cocheiros e Carroceiros, Os trabalhadores das Indústrias têxteis dentre outras associações de trabalhadores, que formaram a base de apoio à Candidatura de Hermes da Fonseca, contrariando assim, a corrente anarco-sindicalista que representava a maioria das associações de operários que compunham a COB, pois, segundo Batalha: A eleição do marechal Hermes da Fonseca, em 1910, trouxe algumas novidades ao quadro político tradicional e às relações entre Estado e Movimento operário, Apesar de depender pouco ou nada do voto

do

operário, em função do sistema eleitoral da Primeira República, (...) o governo havia adotado uma série de políticas contraditórias que ora sinalizava em direção ao operariado, ora mantinha a política tradicional de indiferença ou repressão que marcara os governos anteriores. Entre os exemplos do primeiro tipo de política estiveram a criação do Escritório de Propaganda dos Sindicatos e Cooperativas (...) e o programa de construção das vilas proletárias Marechal Hermes e Orsina da Fonseca (bairros planejados no subúrbio carioca)(BATALHA. 2000, p.44/45)21.

De acordo com a citação de Batalha o apoio à eleição da Hermes da Fonseca pelos operários da corrente sindicalista reformista, não foi de grande relevância para a vitória do mesmo. Em sua edição do dia 1º de março de 1910, jornal Correio da Manhã era dada como certa a vitória de Ruy Barbosa, qualificando o candidato Hermes da Fonseca de “inelegível”. Entretanto, dias depois, os resultados das urnas evidenciavam uma vitória significante de Hermes da Fonseca sobre Ruy Barbosa, como demonstram os números exibidos pelo Jornal do Brasil22 na edição de número 072 de 13 de março de 1910; Hermes da Fonseca: 442,610. Ruy Barbosa: 192,625. Com relação ao apoio do sindicalismo reformista e o número de eleitores que deram uma larga vitória a Hermes da Fonseca, a pergunta é pertinente, qual seria então a contribuição dos operários que elegeram Hermes da Fonseca? Como foi dito acima o sindicalismo reformista tinha uma relevante participação sindical, sendo influente em associações sindicais expressivas pelo poder de mobilização dos operários, tais com a União dos Operários Estivadores (UOP) e a

2631

Associação de Resistência dos Cocheiros e Carroceiros (ARC), dentre outros, atuantes não só no Rio de Janeiro mas também em outros Estados do Brasil. Independente da resposta, uma questão é importante: o apoio do movimento operário à candidatura de Hermes da Fonseca para Presidente abre um instigante horizonte para a relação entre o movimento operário, na busca por cidadania e o Estado no Brasil. Notas de Referências. 1

CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Tradução Maria Manuella Galhardo. Rio d e Janeiro: Beltrand Brasil, 1990. 2 VISCARDI, Cláudia M. R. O teatro das oligarquias: uma revisão da política do café com leite. Belo Horizonte: C/Arte, 2001. 3 Na AMPUH de 2013, a historiadora Cláudia Víscardi em seu Simpósio Temático sobre o tema: Política, Sociedade e Cultura: revisando a Primeira República. Chama a atenção para certos vícios historiográficos que possuem um lugar comum na historiografia clássica sobre a Primeira República. Salientando:”[...] A própria denominação de “República Velha” expressa tal arcaísmo”. Muitas construções da memória sobre o passado, empreendidas pelo varguismo acerca do período que lhe antecedeu, permaneceram intocadas e se consolidaram ao longo do tempo, [...]. É demanda dos historiadores atuais um esforço maior no sentido de desfazer erros clássicos a partir de um estudo que envolva maior fundamentação empírica e um diálogo mais amplo com a História Nova, defende a autora. 4 MESTRINER, M. L. O Estado entre a filantropia e a assistência social. 2ª. Ed. São Paulo: Cortez, 2001. 5 VISCARDI, Cláudia M. R. A experiência mutualista e a formação da classe operária no Brasil in: A formação das tradições (1889-1945). Org: FERREIRA, Jorge e REIS, Daniel Aarão. - Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. (As esquerdas no Brasil; v.1) 6 BATALHA, Cláudio. O movimento operário na Primeira República. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000. 7 Idem. 8 DICIONÁRIO DO PENSAMENTO MARXISTA. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. p. 165-167.Sobre o antagonismo entre o Estado e o Movimento Operário podemos citar Gramsci e o que ele intitula de textura de hegemonia. Segundo o autor ao pensarmos a divisão da sociedade em classes antagônicas, é importante destacar que aqueles que ocupam o poder, mais do que a possibilidade de efetivação da opressão física, valem-se, ainda, de mecanismos de dominação ideológica. Para o autor, os intelectuais têm importância significativa no papel de organizadores da sociedade, o que ele intitula como textura de hegemonia. 9 Com relação à ideologias e o campo de lutas sindical, em sua abordagem sobre campo de forças, BOURDIEU em seu livro: O Poder Simbólico considera a luta política correspondente a um debate de idéias e ideais que culminam no confronto por poder e privilégio. 10 KONDER, Leandro. História das Ideias Socialistas no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Moderna, 1995. 11 Idem. 12 Ibidem, p.3. 13 BORGES, Vera Lúcia Borgéa. Uma Morte na República: os últimos anos de Pinheiro Machado e a política oligárquica (1909-1915) 2000. 224 f. Dissertação de Mestrado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2000. 14 Ibidem, p.3. 15 Mensagem de posse do Presidente Eleito Hermes da Fonseca, enviado ao Congresso Nacional no dia de sua posse como Presidente Da República citando pela primeira vez uma ação do governo destinado à classe trabalhadora. 16 CARONE, Edgard. A República Velha: instituições e classes sociais (1889-1930). 5ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand, 1988. 17 Ibidem, p.4. 18 Correio da Manhã: Ano IX. Edição nº 3.149 de 01 de março de 1910. Jornal carioca diário e matutino fundado em 15 de junho de 1901, por Edmundo Bittencourt e extinto em 8 de julho de 1974. Foi durante grande parte de sua existência um dos principais órgãos da imprensa brasileira, tendo-se sempre destacado como um “jornal de opinião”.

2632

19

Podemos entender como representante do povo o candidato opositor à candidatura de Hermes da Fonseca, Rui Barbosa, e o preferido dos politicantes, Hermes da Fonseca, pois o Jornal Correio da Amanhã se em um primeiro instante apoiou a candidatura de Hermes da Fonseca, em um segundo momento, muda de posição e passa a combater violentamente à candidatura militar de Hermes da Fonseca e, com sua eleição e posse, passa a exercer forte oposição ao seu governo e aos que o representam. 20 A COB foi a primeira organização operária nacional. Representou um avanço para o movimento operário no país, especialmente através de seu jornal, A Voz do Trabalhador, publicado quinzenalmente, noticiou as lutas do proletariado de várias partes do Brasil e do mundo e conseguiu pela primeira vez coordenar e promover a troca de informações no interior do movimento. Configurou-se assim como o primeiro grande esforço de criação de uma identidade comum entre os trabalhadores do Brasil. 21 Ibidem, p.6. 22 Jornal do Brasil – ano XX. Edição nº 72 de 13 de março de 1910.

2633

O CONVENTO DE SANTA TERESA E A ALTERAÇÃO GEOGRÁFICA DOS ARREDORES DO CAMINHO DO DESTERRO. Scheyla Taveira da Silvai

Resumo O presente estudo tem por objetivo analisar a construção do Convento de Santa Teresa e sua importância como vetor na ocupação, crescimento e melhoria do Caminho do Desterro e seus arredores, incluindo a Ladeira do Desterro, que mais tarde passaria a ser conhecida como Ladeira de Santa Teresa. Ressaltando os impactos da política do Governador Gomes Freire de Andrade, na segunda metade do século XVIII, que ao abrir ruas, entulhar lagoa, edificar casas, muito contribuiu para a alteração geográfica daquela região antes caracterizada pela escassa habitação e excesso de alagadiços.

Palavras-chave: Convento - Rio de Janeiro - Urbanismo

Abstract This study aims to analyze the construction of the Convent of Santa Teresa and its importance as a vector in employment, growth and improvement of the Exile of the road and its surroundings, including the hill of Desterro, who later would become known as hill of Santa Teresa. Highlighting the impact of the policy of Governor Gomes Freire de Andrade, in the second half of the eighteenth century that the open streets, clutter pond, build houses, much to geographical change that region before characterized by scarce housing and excessive wetlands.

Key-words: Convent - Rio de Janeiro - Urbanism

No Rio de Janeiro setecentista, a jovem Madre Jacinta de São Joséii, por guardar em seu coração a vontade de professar o carisma carmelita, seguindo o exemplo de Santa Teresa d’Ávila, lutou por fundar um “Convento da Reforma Carmelitana, a fim de formar uma comunidade religiosa que observasse a regra e constituições segundo santa Teresa de Jesus”iii. “Caridade fraterna, desapego e humildade foi o que Santa Teresa implorou às carmelitas descalças. Seguindo esses preceitos, Jacinta abandonou a casa de seus pais e recolheu-se à Chácara da Bica em oração, despojando-se de tudo e vivendo em extrema pobreza. (...) A regra do Carmelo de Santa Teresa seria observada por uma comunidade mais extensa, mas foi a partir do convento de Jacinta que os ensinamentos e conselhos de Santa Teresa foram colocados em prática de forma disciplinada pelos habitantes do Brasil”iv.

2634

Esse projeto deu origem à fundação da Ordem das Carmelitas Descalças no Brasil, o primeiro recolhimento feminino da Reforma Carmelita foi edificado em terras fluminenses no século XVIII. Os detalhes da história de Madre Jacinta de Jesus já foram objeto de estudos anteriores e demonstram que desde muito nova ela apresentou particulares características de uma vida voltada ao serviço a Deus. Todavia, para que a fundação de um convento com renda ocorresse, o mesmo precisava ter patrimônio. Verificou-se através dos documentos analisados que Gomes Freire de Andrade (Governador e Capitão Geral desta Capitania e Minas Gerais, agraciado com o título de Conde de Bobadela) objetivando fortalecer a quantidade de bens das recolhidas: recebeu por doação remuneratória e arrendou terrenos, abriu ruas, “entulhou” lagoa, edificou casas, tudo para compor o patrimônio das religiosas, trazendo muitas mudanças ao cenário da região do Morro do Desterro. Nessa época a referida área da cidade estava dividida em chácaras, pouco habitada e cheia de alagadiços. A vida ascéticav escondida por trás das grades do recolhimento fomentou a “alteração geográfica do espaço” e refletiu na vida das poucas famílias que viviam naquele entorno. A obra de construção da casa religiosa e a constituição do seu patrimônio a transformaram num vetor para ocupação, crescimento e melhoria dos arredores do Caminho do Desterro, inclusive a Ladeira do Desterro (que anos mais tarde passaria a se chamar Ladeira de Santa Teresa). As escrituras de bens arrematados e doados pelo Governador Gomes Freire para constituição da renda e do Patrimônio das Recolhidas, acentuam os aspectos regalistas da construção. Cumpre salientar que para o convento obter as faculdades apostólicas fazia-se necessário estabelecer patrimônio comprovando seu valor e rendimento, bem como a possibilidade da subsistência da casa religiosa. A Chácara da Bica em Matacavalos (atual Rua do Riachuelo) foi o primeiro endereço do Recolhimento. Tendo sido do Governador a ideia de transferir o Recolhimento anexando-o a antiga Ermida de Nossa Senhora do Desterro. Embora não tendo gostado da sugestão inicialmente, Madre Jacinta, consentiu e, no dia 24 de junho de 1750, foi lançada a pedra fundamental onde se construiu a portaria do recolhimentovi. As obras foram necessárias não apenas para adequar o local as necessidades de um convento, mas também porque a Ermida de Nossa Senhora do Desterro estava praticamente destruída. Na escritura de doação de 23 de junho de 1751, o Capitão Gaspar dos Reis e Silva, procurador do Governador Gomes Freire de Andrade, declara em nome do constituinte a doação da antiga Ermida de Nossa Senhora do Desterro, incluindo toda obra que fosse realizada no local: 2635

“(...) que levado pelo seu desejo, que sempre teve de oferecer a Senhora Santa Teresa um convento nesta cidade, onde se observasse a sua santa regra, pediu ao Excelentíssimo e Reverendíssimo Bispo desta diocese Dom Frei Antônio do Desterro a mercê de lhe dar a igreja de Nossa Senhora do desterro para fundar ao pé dela o convento (...) que parte dela está capaz de receber religiosas: pelo que levado da dita devoção, que o moveu a fazer esta obra, que a pretende continuar a findar. (...)[fl.3] Madre Jacinta de São José, e suas companheiras e sucessoras em que vivem atualmente debaixo da Jurisdição do Ordinário, para que debaixo da mesma Jurisdição e poder passem a ser Religiosas do dito Convento denominado da Madre de Deus observando a regra de Santa Teresa, porque para observância da mesma funda seu constituinte o dito convento e, faz dele a referida doação, pela qual demite de si, e há por demitido todo e qualquer direito, que tenha ou possa ter e todo há por transferido em a dita Madre Jacinta de São José, e sua companheiras, e sucessoras do dito convento, para que possuam, e logrem como coisa sua própria, que fica sendo por virtude dessa Escritura, não só da Doação que fez o Excelentíssimo e Reverendíssimo Bispo desta diocese, mas também de toda a mais obra, que o dito seu constituinte tem mandado fazer, e vai continuando, ficando Padroeiro do dito convento, e se necessário é as há por investidas na posse dele, e lhe há por transferida, e dada pela Cláusula Constituti (...)[fl.4]”vii.

Para que fosse lavrada a referida escritura Madre Jacinta, encerrada no clautro, fez-se representar pelo procurador Bento Luiz de Almeida. No dia seguinte a data da Escritura de doação, após um ano de obras, as Recolhidas deixaram sua primeira morada na Chácara da Bica, e transferiram-se para tomar posse da Ermida do Desterro, consoante descreve o Fr. São José C.D. a respeito das obras comandadas pelo Governador: “Mandou, portanto, aumentar a residência que ocuparam os Frades Capuchinhos, junto da Igreja do Desterro; repartira as celas, as oficinas e formou uma passagem fechada e coberta que comunicasse com a Igreja, para da casa passarem ao coro da Capela a fim de rezarem os ofícios divinos. Estando tudo pronto e bem ordenado, no dia 24 de Junho do ano seguinte de 1751, Madre Jacinta e suas filhas, depois de terem ouvido a Missa e comungado na Capela do Menino Deus, abandonaram com pesar, mas resignadas, a antiga habitação, e por dentro da chácara, foram à nova casa do Desterro, onde as esperavam o Exmo. Snr. Bispo e o General seu protetor” viii.

Segundo Hilda Machado, foi nesse período que “o Morro do Desterro teve seu nome mudado para Santa Teresa”ix. Porém nos mapas, apenas no início do século XIX, encontramos a denominação Morro de Santa Teresax. A mudança de Madre Jacinta para o Morro do Desterro “viria a determinar o destino e transformação da ermida (...) e a exercer profunda influência sobre o aspecto e denominação do Morro do Desterro”xi. Os mapas abaixo demonstram as alterações ocorridas entre os séculos XVII e XVIII, antes do Morro ter sua denominação alterada para Santa Teresa. No primeiro mapa podemos verificar o Morro de Santo Antônio e o Morro do Desterro e as três lagoas do Desterro, Santo Antônio e do Boqueirão. A interligação natural dessas três lagoas era muito pouco provávelxii. Os terrenos cobertos de água eram nocivos à saúde e dificultavam o trânsito. Por ser uma área paludosa de difícil acesso, para ir da Várzea onde se localizava a cidade até o morro, se utilizava o Caminho do Desterro, assim conhecido desde o século XVIIxiii.

2636

A lagoa dita do Desterro começou a ser aterrada depois de 1641 quando iniciadas as edificações nas suas margensxiv. Mapa 1 – Arredores do Morro do Desterro (meados do século XVII)

TAVEIRA, Scheyla. Sobre base cartográfica de BARREIROS (1965).

Mapa 2 – Perímetro do Morro do Desterro alterado (meados do século XVIII)

TAVEIRA, Scheyla. Sobre base cartográfica de BARREIROS (1965). “A lagoa de Santo Antônio era a bacia que recolhia as águas do fosso, com vazão para o campo da Ajuda. Em 1712, entulhada no meio pelos franciscanos, ficou dividida em duas. As obras levadas a efeito (1721/1723) para o levantamento da fonte da Carioca, fizeram desaparecer a lagoa”xv.

2637

Nesse trabalho buscamos apresentar alguns reflexos da história do Convento na reordenação geográfica da cidade. Importante ressaltar que o Governador não fora motivado apenas por seu “desejo de oferecer um convento à Santa Teresa nesta cidade xvi”. Questões políticas e sociais estavam presentes naquele cenário, já que um convento feminino servia como alternativa de vida para as mulheres daquela época, que não conseguiam casamento ou enviuvavam sem contrair novas núpcias. Favorecendo, inclusive, as mulheres de sua família a quem ficara reservado um lugar no número das freiras do convento xvii, garantido por força da mesma escritura de doação acima citada, datada de 23 de junho de 1751, cabendo essa nomeação ao “Padroeiro”xviii ou seus herdeiros: “(...) Com a condição porém como declara de ficar ao dito seu Constituinte e Padroeiro hum lugar no número das dezoito Freiras coristas, que a regra manda haja em cada hum Convento da dita Ordem, para que livre fique ao dito seu Constituinte, ou seus herdeiros a dita nomeação a possam fazer, e dar, e por força da que fizeram os seus sucessores, que ao futuro porém seja o dito Convento obrigado a receber e lançar o hábito a nomeada por eles, sendo primeiro examinada, e aceita pela forma que dispõe o Sagrado Concílio[fl.5]"xix.

O governador favoreceu também a construção definitiva do Aqueduto, que passava por baixo do Conventoxx, passando a constar nos mapas da cidade com a denominação de Arcos Novos da Carioca em meados do século XVIII (Mapa 2). Aos poucos, as Recolhidas de Santa Teresa começaram a se apropriar e se beneficiar daquele território, embora sem planejamento e estratégia própria, fruto dos dotes que recebiam (quando entravam novas recolhidas), de doações e das decisões de Gomes Freire de Andrade (seu padroeiro e fundador) diante da necessidade de constituição do patrimônio da casa religiosaxxi. Em documentos arquivados no Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro, encontramos a descrição de uma morada de casas térreas cobertas de telhas ditas ao pé da Ladeira do Desterro arrematadas pelo Governador e doadas às Religiosas em junho de 1760. Em 24 de outubro de 1761, o Governador suplicou ao Senado da Câmara: “(...) abrir a rua, que vai do princípio da calçada do Convento de Santo Antônio sahir o Terreiro da Ajuda, a qual o suplicante fez entulhar pelas gallez, em beneficio do bem publico, e deste Senado, por ser o lugar dela lagoa funda, intratável, e ficou de um lado da rua no principio dela hum pedaço de chão alagado, encostado ao muro de Santo Antônio da figura de Vella Latina, e do outro lado se achão sete braças e meia de testada que partem de uma banda com chãos de Alexandre de Faria e Silva, e da outra com chãos de Dona Anna Theodora, inculto e alagado, que carece de igual entulho, o qual o suplicante quer mandar fazer para melhor formosura da rua, e edificar casas em um e outro lugar que se acham devoluto, para Patrimônio do Convento das Religiosas de Santa Tereza, de que he fundador, concedendo Vossas Mercês os referidos pedaços de chãos para o dito efeito, sem foro, nem pensão alguma, por serem limitados, e o convento de utilidade publica. (...) fazendo-lhe Escritura de doação deles para seu título, e sem foro algum - E receberá Mercê - Na forma que pede, atendendo ao grande benefício, e publica utilidade que rezulta aos moradores desta cidade de se achar praticável a rua mencionada por efeito do activo zelo com que o Ilustrissimo e

2638

Excelentissimo Suplicante se quis encarregar de fazer entulhar a Lagoa, que nela havia concorrendo também serem os chãos destinados para o fim tão pio, e se lavre Escritura[fl.15].”

A escritura de doação remuneratória do referido terreno foi lavrada em dezembro do mesmo ano nas condições requeridas pelo Governador. A Lagoa aterrada na ocasião deu origem a uma rua denominada rua Nova. Encontramos referência à dita rua, em alvará no qual Gomes Freire constituiu seu procurador Gaspar dos Reis Silva “para que em seu nome fizesse aceitação de huns chãos alagadiços na rua Nova, situada ao pé do Convento de Santo Antônio, doados pelo Senado para patrimônio do Convento da Senhora Santa Tereza[fl.19]”xxii. Provavelmente o caráter remuneratório das doações facilitou a anuência do Senado da Câmara, aproveitando as obras a toda cidade. No documento acima descrito o Governador se compromete com as obras públicas e esclarece sua intenção de edificar casas naqueles lugares devolutos para doar às Religiosas. O patrimônio das Recolhidas, entretanto, ganharia reforço com a morte de seu fundador em 1º de janeiro de 1763. Morrendo Gomes Freire sem deixar descendentes, fossem filhos ou herdeiros necessários, dispôs livremente de seus bens fazendo doação para suas filhas espirituais de Santa Teresa. Apesar de todo apoio e esforço morreu o Conde de Bobadela sem poder testemunhar a profissão das Recolhidas de Santa Teresa. Em seu testamento, Gomes Freire mandou construir uma morada de casas na rua Nova do Conde (atual rua Treze de Maio) para sua sobrinha (filha de José Antônio Freire de Andrade) que era uma das Recolhidasxxiii. Outro legado do testamento do Governador foi um terreno constante em carta de arrematação, datada de 5 de janeiro de 1761, de oitenta braças de chãos pouco mais ou menos com fundos para o mar no bairro de Nossa Senhora da Ajuda xxiv, no qual estava inserida a infecta lagoa do Boqueirão. A posse jurídica desse terreno nunca se efetivou. “Ao professarem, as Recolhidas não tinham o que fazer do legado, e urgia o saneamento da zona em benefício do próprio Convento”xxv. O aterro da lagoa do Boqueirão ocorreu no governo de Luiz de Vasconcelos e Souza (1779/1790). “Para o aterro dessa lagoa fez-se o desmonte do morro das Mangueiras, que ficava entre o morro do Desterro – atual Santa Teresa, o de Santo Antônio e o campo da Ajuda. Esse morro fazia parte da chácara das Mangueiras, banhado pela lagoa do Desterro, no local da moderna praça dos Arcos. A precitada chácara pertenceu, por muitos anos, ao capitão Antônio Rebelo Pereira, homem rico e piedoso. (...) Em 1750, por escritura de 16 de novembro, do notário Manoel da Silva Coutinho, o capitão Antônio Rebelo Pereira vendeu a sua chácara ao conde de Bobadela, Gomes Freire de Andrade, então governador do Rio de Janeiro. Em terras da chácara das Mangueiras foram abertas as ruas da Lapa, Santa Teresa – atual Joaquim Silva – e Mangueiras – agora visconde de Maranguape. Todo o chão da chácara era foreiro à municipalidade, a quatro mil réis por

2639

ano. Mas o governador Gomes Freire, querendo doar parte da chácara às religiosas de Santa Teresa, conseguiu do Senado da Câmara a troca do foro, que pagava pelo dito chão, por um outro equivalente e que se impôs a uma outra boa propriedade de Gomes Freire, situada à rua do Cano – hoje Sete de Setembro”xxvi.

Por trás das grades, as freiras acompanhavam a reorganização da cidade. Consta no Registro de Profissões que “o Passeio Público foi aberto em 1783 e construído em 4 anos (1780), sobre o leito da lagoa paludosa do Boqueirão aterrada com terra tirada do outeiro das Mangueiras”xxvii. “Temos a impressão de que talvez seja essa a verdadeira origem do Passeio Público. Ao professarem, as recolhidas não tinham o que fazer do legado, e urgia o saneamento da zona em benefício do próprio Convento. O Conde de Bobadela talvez tivesse aproveitado a área para aumentar o patrimônio, como fizera na Lagoa de Santo Antônio, aterrando-a com os galés”xxviii.

Ao final do nosso percurso analítico, marcado por uma abordagem geral das alterações ocorridas no entorno do Morro do Desterro durante o século XVIII, principalmente no período do governo de Gomes Freire de Andrade, podemos perceber como a existência do Convento de Santa Teresa interferiu na reorganização desse pedaço da cidade do Rio de Janeiro. Sendo certo que o objetivo deste trabalho resta na influência do Convento no espaço geográfico e não na análise dos motivos que levaram o Governador a empreender tais obras ou doações. Compreendemos que o Conde de Bobadela ao contribuir para a constituição do patrimônio das Recolhidas (necessário para fundação do Convento), favoreceu a reorganização da cidade permitindo o surgimento de rua e de novas edificações. Assim, o Convento de Santa Teresa contribuiu mais do que para alteração do nome do morro e do bairro de Santa Teresa.

Notas e Referências bibliográficas i

Pós graduanda em História do Brasil: cultura, política e sociedade pela Universidade Católica de Petrópolis (UCP). Email: [email protected] ii Madre Jacinta de São José foi o nome claustral adotado por Maria Jacinta Aires. Adotou esse nome, logo que se encerrou na vida claustral na Chácara da Bica (primeira morada das Recolhidas de Santa Teresa). iii SÃO JOSÉ C.D., Fr. Nicolau. Vida da Serva de Deus: Madre Jacinta de São José, Carmelita Descalça. Rio de Janeiro, Imprimatur, 1935, p.116. iv ALGRANTI, Leila Mezan. Honradas e Devotas: Mulheres da Colônia - Condição feminina nos conventos e recolhimentos do sudeste do Brasil, 1750-1822. Rio de Janeiro, José Olympio, 1993, p. 31. v Relativo à busca de abstenção dos prazeres com o fim de atingir a perfeição moral e espiritual. vi CARMELITAS DO CONVENTO DE SANTA TERESA, Notícia Histórica do Convento de Santa Teresa. Por ocasião da celebração do IV Centenário da morte da Doutora Mística (1582-1982). Rio de Janeiro, Edições Cartas Marco’s LTDA, 1982, p. 13. vii Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro - (ACMRJ) - Série Congregação Religiosa, Notação 096 – Patrimônio das recolhidas de Santa Teresa desta cidade. Data-limite: 1779. viii SÃO JOSÉ C.D., op. cit., p. 95.

2640

ix

MACHADO, Hilda. Laurinda Santos Lobo: mecenas, artistas e outros marginais em Santa Teresa. Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2002. p. 18. Digitalizado no Google books. Disponível em: https://books.google.com.br/books?id=bMNwszaGSroC&pg=PA17&lpg=PA17&dq=antonio+gomes+do+dester ro&source=bl&ots=amlrpWs7vB&sig=DpQsxuPZMw93fdOTSvWQWWnmDVw&hl=ptBR&sa=X&ved=0CF oQ6AEwDWoVChMImKfO8Mv2xwIVx4mQCh1HUQaA#v=onepage&q=antonio%20gomes%20do%20desterr o&f=false Acesso em: 14 set. 2015. x BARREIROS, Eduardo Canabrava. Atlas da evolução urbana do Cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, IHGB, 1965, p. 19. xi COARACY, Vivaldo. Memórias da Cidade do Rio de Janeiro: quatro séculos de História. Rio de Janeiro, Documenta Histórica, 4.ed., 2008, p.133 xii BARREIROS, Eduardo Canabrava, op. cit., p. 16. xiii COARACY, Vivaldo, op. cit., loc. cit. xiv GONÇALVES, Aureliano Restier. Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro: terras e fatos. Rio de Janeiro, Secretaria Municipal das Culturas, Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, 2004, p. 126. xv Ibidem, p. 242. xvi ACMRJ, idem. xvii Importante observar que a escritura garantia um lugar destinado à nomeação pelo Governador ou seus herdeiros. Entretanto, a nomeada deveria ser examinada e aceita antes de ser lançado o hábito, obedecendo-se às regras do convento. xviii A palavra “Padroeiro” foi utilizada para denominar Gomes Freire de Andrade na escritura de doação da Ermida de Nossa Senhora do Desterro, datada de 23 de junho de 1751, constante no ACMRJ, op. cit., [fl.5]. xix ACMRJ, idem. xx CARMELITAS DO CONVENTO DE SANTA TERESA, Notícia Histórica do Convento de Santa Teresa, op. cit., loc. cit. xxi Embora vivessem no Convento edificado junto à Ermida de Nossa Senhora do Desterro, as Recolhidas viviam em uma instituição leiga, pois só obtiveram o Alvará autorizando a fundação do convento pelo Rei D. José I e o Breve Apostólico em 1755. Por ser o Convento com renda, para a fundação legal se fazia necessária comprovação do patrimônio junto à Câmara Eclesiástica. Cumpre ressaltar, que mesmo antes de regularizar o estabelecimento do convento, as Recolhidas já obedeciam e viviam segundo a Regra de Santa Teresa da Ordem de Nossa Senhora do Monte Carmelo. xxii ACMRJ, idem. xxiii CARMELITAS DO CONVENTO DE SANTA TERESA, Notícia Histórica do Convento de Santa Teresa, op. cit., p. 18. xxiv Ibidem, p. 21 xxv Idem. xxvi GONÇALVES, Aureliano Restier, op. cit., p. 115. xxvii Arquivo do Convento de Santa Teresa, Livro das Profissões. Data-limite: 1781-1861, p. 5. xxviii CARMELITAS DO CONVENTO DE SANTA TERESA, Notícia Histórica do Convento de Santa Teresa, op. cit., p. 21.

2641

LAÇOS DE FAMÍLIA: REDE DE SOLIDARIEDADE ENTRE OS MORADORES DA COMARCA DE ESTÂNCIA(SE) 1840-1888 Sheyla Farias Silva Mestre em História Universidade Federal de Alagoas [email protected] RESUMO: Esta pesquisa tem por objetivo analisar, através dos filtros da documentação cartorária e eclesiástica as experiências familiares dos moradores da Comarca de Estância/SE no período de 1840 a 1888. Para isso, coligirmos a documentação consultada – inventários post-mortem, testamentos, lista de quarteirão, matrícula de escravos no fundo de emancipação, além dos assentos de casamentos e batismos da freguesia de Nossa Senhora do Guadalupe –, com os pressupostos teóricos da História Social, a fim de compreender os significados atribuídos pelos oitocentistas ao construírem seus laços de solidariedade. Palavras-chave: Família; Sociabilidade; Cotidiano. ABSTRACT: This research aims to analyze, through the filters of notary and ecclesiastical documents the family experiences of the residents of the District of Estância/ SE in the period 1840 to 1888. For this, collect the documentation consulted - post -mortem inventories, wills, list block, registration slaves in the emancipation fund, in addition to the seats of weddings and baptisms of the parish of Our Lady of Guadalupe - with the theoretical assumptions of social history in order to understand the meanings attributed by the nineteenth century to build their solidarity. Keywords: Family; sociability; Everyday.

A história da família tem suscitado interesses entre pesquisadores desde a segunda metade do século XIX, cujos estudos, buscavam identificar, tipificar e analisar os diferenciados tipo de família existente nas sociedades antanho.1 Os novos estudos históricos sobre a família renasceram sobre a influência da chamada Escola dos Annales, em especial, com a terceira geração, a qual preocupada com o modo de pensar, de viver e de sentir das massas anônimas, adotou novos métodos de abordagem histórica, bem como novos objetos, entre estes, estão a família, a sexualidade, o casamento, a mulher e a criança. 2 Desde então, os temas concernentes a família conquistaram predileção entre os historiadores e estes passaram a estudá-la sob a perspectiva da demografia, dos sentimentos e da economia doméstica. As principais contribuições sobre a história da família foram dadas por autores que avançaram nas análises quantitativas e preocuparam-se com as questões relativas às vivências familiares, abordando os sentimentos, o significado das relações, as mudanças dos padrões normativos, possíveis motivações para as uniões matrimoniais, a escolha dos cônjuges, a sexualidade etc.3

2642

No Brasil, os primeiros estudos sobre a história da família enfatizaram sua importância enquanto uma instituição que moldou os padrões da colonização e ditou as normas de conduta e de relações sociais desde o período colonial. O modelo de família destacada por essa produção historiográfica, atribuía ao pai uma excessiva autoridade sobre os membros da família que também era extensa aos parentes, a família patriarcal. O modelo da família patriarcal foi aplicado para todo Brasil, sem considerar as peculiaridades regionais, temporais e tampouco os grupos sociais.4 O desenvolvimento das pós-graduações nos anos 70 do século passado e a criação de diversos programas de mestrado em História possibilitaram que inúmeras pesquisas fossem realizadas, ampliando o horizonte historiográfico brasileiro. Neste contexto, a história da família brasileira ganhou um novo enfoque social e novos temas foram estudados. O uso de fontes primárias, tais como os documentos cartorários e eclesiásticos revelaram que o tipo de família patriarcal, preconizado pelos clássicos, a exemplo de Freyre, não poderia ser aplicado para todo Brasil, tornando-se essenciais para a compreensão da vida social do Brasil Colônia e Império, os estudos sobre a organização familiar em diversos grupos sociais.5 Essas pesquisas tem tornado evidente que as famílias extensas do tipo patriarcal não foram as predominantes, sendo mais comuns aquelas com estruturas mais simples e menor número de integrantes. Isso significa que a descrição de Freyre para as áreas de lavoura canavieira do Nordeste, foi impropriamente utilizada, devendo ser reelaborada nos estudos sobre família, a partir de critérios que levem em conta temporalidade, etnias, grupos sociais, contextos econômicos regionais, razão de sexo e movimento da população. Apesar da região nordeste ter sido a principal área econômica do Brasil colonial e parte do século XIX e da principal tese sobre a organização das famílias no Brasil tenha tomado o Nordeste como palco, os estudos revisionistas que veementemente negam a premissa freyriana sobre essa temática privilegiam a região sudeste como lócus de investigação. Neste sentido, este artigo pretende a partir dos pressupostos teóricos da História Social, investigar as motivações para a construção, manutenção e desconstrução de laços de parentesco numa região agro-exportadora do Norte Oitocentista.6 Destarte, o município de Estância/SE, durante o século XIX teve sua economia pautada na agro-exportação de açúcar e comércio e apresentava-se como maior núcleo populacional do sul da Província de Sergipe, assinalando nos anos de 1854 e 1872 a presença de 8.243 e 8.545 pessoas nos respectivos anos.7

2643

A partir da revisitação ao tema, objetivamos resgatar os diversos significados acerca das experiências familiares vivenciadas pelos residentes no município de Estância/SE entre o período de 1840 a 1888.8 O corpo documental explorado nessa pesquisa é composto por basicamente por fontes primárias de ordem cartorial, disponíveis nos arquivos judiciário (AGES) e público (APES) do estado de Sergipe; fontes eclesiásticas que estão sob a guarda do arquivo da Diocese de Estância e no arquivo da Cúria da Cúria na Praça da Sé (Salvador/Bahia) e fontes impressas, tais como as legislações que regulavam a vida social no período – Ordenações Filipinas (1603), Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707) e Código Criminal do Império do Brasil (1830). No Arquivo Geral do Judiciário do Estado de Sergipe (AGES) consultamos as fontes cartoriais da Comarca de Estância, a saber: os inventários post-mortem, os quais se tornaram o pilar dessa pesquisa, na medida em que nos forneceram valiosas informações sobre a vida familiar do inventariado, a exemplo do nome do cônjuge, número de filhos, seus nomes, idades e respectivos cônjuges, além de narrar às querelas suscitadas no momento da partilha dos bens. A partir deles tipificamos as famílias estancianas, se predominavam famílias nucleares ou extensas, identificamos a condição socioeconômica dos envolvidos nas tramas familiares, bem como quem eram os chefes da família. Em nossa pesquisa, a família não foi tomada apenas como instituição que agregava indivíduos em torno da harmonia, sendo que para perceber os conflitos vivenciados entre os entes, nos valemos dos processos crimes tutelados pelo Arquivo Judiciário, gerados a partir de ações que envolviam violência, seja crimes de sedução/estupro, homicídios e querelas entre cônjuges ou amásios. Ainda no Arquivo Geral do Judiciário do Estado de Sergipe, vasculhamos outros documentos – Livros de Notas, Ações de Tutela, Livro de Termos de Tutela e fianças de órfãos, Libelos Cíveis, Testamentos, farejando os rastros deixados por esses homens e mulheres que imprimiram no passado, marcas sobre suas experiências familiares. Desse modo, encontramos os acordos referentes à partilha de bens após o divórcio eclesiástico, a preocupação com a educação dos filhos, o reconhecimento de filhos ilegítimos, acordos pré-nupciais etc. No Arquivo Público do Estado de Sergipe (APES), perseguimos, talvez com a mesma persistência de Sherlock Holmes – personagem da ficção britânica, as pistas deixadas pelas pesquisas de Demografia Histórica realizadas pelo historiador Luiz Mott na década de 1980, ao utilizar os mapas exatos da população da Província de Sergipe. Buscávamos encontrar as listas nominativas do município em estudo, entretanto, depois da abertura de várias pacotilhas

2644

e

conversa com outros pesquisadores, Clio – a musa da História, retirou o véu que encobria a pacotilha SP9-26 e encontramos o arrolamento de fogos por quarteirão9. Esse documento nos revelou a composição dos domicílios estancianos, sendo nomeados os chefes das residências e todos os moradores, bem como eram indicados a profissão, idade, condição civil e grau de parentesco destes. O que nos possibilitou a refletir sobre as formas de morar na Estância oitocentista, ou seja, a organização do espaço familiar. Ainda desse acervo, utilizando as Listas de Qualificação de Votantes, as quais foram importantes no cruzamento de dados fornecidos por outras fontes. Na Diocese de Estância, consultamos os Livros de batismos e Assentos de casamentos da então freguesia de Nossa Senhora de Guadalupe. Nessas fontes, constatamos a presença da iletigimidade, dos laços de solidariedade que uniam pessoas de condição civil diferente, além de perceber a importância desses sacramentos para os residentes na freguesia. Durante nossa peregrinação, tornou-se indispensável visitar o Laboratório de Conservação e Restauração Reitor Eugênio de Andrade Veiga (LEV), responsável pelo acervo da Cúria Metropolitana de Salvador10. Nesse acervo, consultamos os processos de dispensas matrimoniais e os de divórcio eclesiástico movidos por cônjuges residentes na freguesia de Nossa Senhora de Guadalupe, sempre atentando para os motivos elencados pelos consortes para terem suas uniões sacramentas pela Igreja ou destituídas segundo as observâncias eclesiásticas. Para melhor agremiar essas informações, elaboramos para cada tipologia documental, bancos de dados no programa operacional Microsoft Excel, armazenando o máximo de informações que se tornaram relevantes. Atentamos, em especial para os nomes dos registrados nas diversas séries documentais, os quais se constituíram em fios condutores para que pudéssemos acompanhar as trajetórias das famílias estancianas, sendo que ao longo da pesquisa esses bancos de dados tem sido utilizados para cruzarmos as várias informações. Assim, como bem nos ensinou o historiador Carlo Ginzbrug “as linhas que convergem para o nome e que dele partem, compondo uma espécie de teia de malha fina, dão ao observador a imagem gráfica do tecido social em que o indivíduo está inserido”.11 A visitação ao passado da Estância oitocentista por meio dos filtros desse universo documental, revelou-nos um cenário de repleto de detalhes e minúcias que só foram possíveis de servem percebidos ao tempo que nos valemos das premissas teóricas e metodológicas de autores como Michel de Certeau e Carlo Ginzburg12. Destarte, a investigação dos sinais, indícios e pistas deixados pelos estancianos do século XIX acerca de suas práticas cotidianas passaram a compor a trama desse enredo que estamos elaborando.

2645

Ao estudar a vida socioeconômica dessa cidade durante o século XIX, por meio dos inventários post-mortem, averigüei que um considerável número de mulheres chefiava com êxito suas fortunas, após a morte dos cônjuges; constatamos também que os alguns escravos foram declarados casados e com filhos no cativeiro; em outros casos alguns homens declaravam em seus testamentos a existência de filhos naturais e que entre as camadas mais pobres os enlaces matrimoniais poderiam ser justificados pela necessidade de manter a unidade produtiva.13 Entretanto, para a atual pesquisa, as inquietações versam sobre as motivações que conduziram indivíduos de distintos grupos sociais recorrerem ou não ao matrimônio sacramentado pela Igreja. Assim, percebendo por meio dos inventários post-mortem, testamentos e registros de batismo e de casamento, os índices de legitimidade dos casamentos entre os estacianos do século XIX, a moral que norteava os enlaces matrimoniais no Brasil oitocentista, cuja orientação pautava-se no texto das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707), o qual explicitava que a função do casamento era a procriação. Destarte, no título LXII verificamos os objetivos das uniões dos corpos sacramentados pela Igreja:

O primeiro é o da propagação humana, ordenada, para o culto, e honra de Deos. O segundo é a fé, e lealdade, que os casados devem guardar mutuamente. O terceiro é o da inseparabilidade dos mesmos casados, significativa da união de Christo Senhos nosso com a Igreja Catholica. Alem destes fins é também remédio da concupiscencia, e assim S. Paulo o aconselha como tal aos que não podem ser continentes.14

Nesse sentido, podemos observar que mesmo com o enfático discurso moral defendido pela Igreja Católica, o casamento apresentou-se para muitos como um contrato mútuo entre um homem e uma mulher, que visava satisfazer os interesses particulares dos agentes envolvidos. Assim, os párocos tinham como obrigação instruir seus consortes a adequarem seus interesses particulares às normas canônicas, visto que estavam prestes a contrair um sacramento, Em tudo isto devem ser instruídos os que querem receber este Sacramento, para que o celebrem com fim santo e honesto, e se disponham para receber seus efeitos, que são causar graça, com os mais Sacramentos, e dar especiais auxílios para satisfazer cristamente as obrigações de seu estado. E advirtam os contraentes, que quando recebem este Sacramento, devem estar em graça, porque se o recebem em pecado, pecam mortalmente.15

Para os nubentes alcançarem este estado de graça não era tão fácil, pois deveriam percorrer um longo caminho burocrático rumo ao altar. A primeira estação nessa via-crúcis eram os banhos, que consistia no anúncio do nome dos noivos durante a missa por três domingos ou dias santos em todos os lugares em que os consortes residiram por mais de seis 2646

meses. Por esse instrumento, a Igreja, contando com auxílios dos seus fiéis, pretendia ao promover a publicidade da intenção matrimonial, precisar a identidade, idade, filiação, condição jurídica, estado civil, local de nascimento e de residência dos nubentes.16 Os banhos forneciam informações preciosas que poderiam auxiliar os párocos na identificação de impedimentos canônicos para a união entre os nubentes – o segundo obstáculo a ser vencido pelos consortes. Cabia à Igreja, além de sacramentar as uniões, atestar se os nubentes estavam em boas condições para adquirirem as bênçãos sacerdotais, visando isso o arcebispo baiano, D. Sebastião Monteiro da Vide, consoante à Legislação Tridentina, reservou alguns artigos das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia para prescrever dezessete impedimentos para a realização do matrimônio. Ao investigarmos os Processos de Dispensas Matrimoniais solicitados pelos moradores de Estância, assim como os assentos de casamentos da freguesia de Nossa senhora de Guadalupe, constatamos que os impedimentos versavam sobre enlaces matrimoniais entre parentes, ou seja, alguns consortes estancianos deveriam vencer impedimentos concernentes às questões de afinidade e consanguinidade, inexistindo até o presente momento da pesquisa registro sobre outros impedimentos. Esses documentos nos revelam fragmentos de histórias, nas quais as personagens não tão somente procuravam um remédio para a concupiscência, mas almejavam estabelecer esses laços de afetividade para construírem suas sobrevivências, desse modo: O casamento ocupou um lugar estratégico e fundamental [...] A sua importância é uma decorrência da própria estrutura da família e da sociedade [...] e que possibilitava a articulação de seus componentes através das alianças matrimoniais, tornando o casamento um dos agentes no mecanismo de mobilidade social.17

Em 23 de abril de 1874, o lavrador Zózimo da Fonseca Dorea, viúvo e pai de três crianças: Martiniana (6 anos), Laurinda (4 anos) e Felicidade (8 meses), solicitou ao juízo eclesiástico liberação do impedimento de afinidade lícita em 1º grau de linha transversal que tinha com sua cunhada Jesuína - irmã de sua falecida esposa, para que pudesse viver com ela dignamente, pois a tinha muita amizade e percebia nela interesse e dedicação na educação dos seus filhos do primeiro consórcio. Diante desses argumentos, o dito lavrador conseguiu a autorização em 09 de maio do mesmo ano.18

2647

Entretanto, esses documentos nos revelam fragmentos de histórias, nas quais as personagens não tão somente procuravam um remédio para a concupiscência, mas almejavam estabelecer laços de afetividade para construírem suas sobrevivências, desse modo: O casamento ocupou um lugar estratégico e fundamental [...] A sua importância é uma decorrência da própria estrutura da família e da sociedade [...] e que possibilitava a articulação de seus componentes através das alianças matrimoniais, tornando o casamento um dos agentes no mecanismo de mobilidade social.19

Não podemos negar que motivações amorosas tenham construídos relações afetivas duradoras, a exemplo do cônego Antônio Luiz de Azevedo que manteve por longas datas, como era notório na cidade de Estância, um relacionamento amoroso com a ex-escrava Jacinta Clotildes do Amor Divino, sua inventariante e herdeira. O cônego tinha como opção negar o romance e esquivá-la da partilha, no entanto, preferiu dá-lhe, segundo a sua óptica, o que era devido.20 Como a sociedade respondeu a tal reconhecimento, como viveu Jacinta Clotildes e seus filhos diante dos olhares moralistas? Será que o fato de ter dinheiro fez com que esquecessem seu passado? A ilegitimidade também marcou a história da família em Estância, podemos constatá-la através dos inventários, testamentos e registros de batismos - estes últimos são muito preciosos por nos revelar as estratégias buscadas por livres e escravos a fim formar laços de solidariedade, com objetivos afetivos e até mesmo políticos, fora do seu meio social. Ao observarmos o testamento de outro cônego, Francisco Barbosa da Costa, natural de Estância, podemos indagar sobre o universo dos ilegítimos, vejamos: Reconheço por meu neto, e filhas naturais, a Francisco, filho de minha finada filha natural Ursulina, primeira mulher de meu sobrinho Francisco Rodrigues das Cotias, a Lusia, mulher do senhor Herculano Gomes de Sousa, e a Constança, órfã de menor idade, que crio em minha companhia: a primeira nascida de Dona Maria Rosa Ribeiro de Oliveira, no tempo de solteira, a segunda e Dona Francisca Joana da Conceição, também no tempo de solteira, e a terceira de Dona Maria Firmina das Neves, no tempo de viúva, em virtude de cópula carnal, que por fragilidade, tive com estas, gozando elas boa forma e conceitos, sem que houvesse impedimento algum para casar-se (...).21

De acordo com o documento o cônego reconhece que por fragilidade mantinha relações carnais com mulheres da sua paróquia, de algumas destas nasceram três filhas de mulheres diferentes, as quais foram reconhecidas e agraciadas na partilha dos bens, bem como seu neto. Diante do exposto, podemos perguntar como essas mães solteiras puderam ser consideradas pela sociedade como mulheres de bons conceitos e sem impedimento para casar? Será que conseguiram reingressar no mercado dos consórcios? E os seus filhos sofreram preconceitos? 2648

Qual a relação do pai com as filhas? Ainda considerando o depoimento do cônego, duas de suas filhas já estavam casadas, a primeira com um lavrador e a segunda com um boticário da cidade,22 como tais moças ingressaram nesse universo tão disputado, como o matrimonial e conseguiram bons pretendentes? Será que houve alguma intervenção paterna, já que o primeiro era sobrinho do cônego? Outra questão presente nas relações familiares é a dissolução dos casamentos. O que poderia justificar os divórcios concedidos pela Igreja para casais no Brasil oitocentista? Em quais casos a Igreja e a legislação permitiram que os casais se separassem - primeiro de leito e depois de casa, e como isso foi aplicado na sociedade estanciana? Como a sociedade da Estância oitocentista reagiu à separação de D. Leonísia da Silva Costa do afortunado negociante Manuel Inácio Pereira de Magalhães.23 Essas perguntas podem ser respondidas analisando os processos de petição eclesiástica de divórcio e anulação de casamento, através desses processos, podemos perceber os aspectos do cotidiano vivenciado pelos casais, os motivos que levaram a requerer a separação e quais os seus comportamentos diante da partilha dos bens. Quanto à organização da família escrava, as fontes cartorárias e paroquiais demonstram que os cativos buscavam diversas estratégias para manter seus laços de afetividade. Observamos que o casamento misto entre escravos e livres não eram impedidos pelos senhores, tampouco, registrou altos índices de instabilidade familiares, tanto em uniões extensas ou nucleares, sendo a morte do senhor era o principal motivo, para os casos de separação dos membros da família escrava. Ao investigar a organização da família escrava, a fim de compreender os significados atribuídos pelos cativos ao construírem seus laços de solidariedade, atentamos para o espaço de convivência desses entes, identificamos a presença de laços de parentesco entre os cativos, quantas gerações estavam concentradas na mesma unidade produtiva, quais as implicações dos senhores para a manutenção desses laços, em especial no momento da partilha dos bens entre os herdeiros, assim como a incidência de uniões sacramentadas pela Igreja, a frequência desses casamentos com agentes externos a unidade produtiva e a forma como essa prática foi vista pelos senhores estancianos. Quanto à organização da família escrava, as fontes cartorárias e paroquiais demonstraram que os cativos buscaram diversas estratégias para manter seus laços de parentesco, visto que o casamento misto entre escravos e livres não era impedido pelos senhores. Como forma de socialização, os cativos preferiam que outros escravos batizassem seus filhos ou que fossem testemunhas de seus casamentos. Portanto, essa pesquisa é de extrema relevância para a historiografia nacional, na medida em que dialoga com uma diversidade de fontes já utilizadas para reescrever a história social na

2649

família na região sudeste, ao tempo que põe em xeque premissas já cristalizadas acerca da família nordestina do século XIX e revela nuances do cotidiano de homens e mulheres que residiam no município de Estância.

1

Podemos destacar as obras de Joan Jacob Bachofen que publicou O direito materno (1861); Charles Morgan com A sociedade antiga (1877) e Friedrich Engels com A origem da família, da propriedade privada e do Estado (1884). Vide SAMARA, Eni de Mesquita. A história da família no Brasil. In: Revista Brasileira de História, São Paulo, ANPUH/Marco Zero, Vol. 9, nº 17, p. 7-35, setembro de 1988/fevereiro de 1989. 2 FARIA, Sheila de Castro. História da família e demografia histórica. In: CARDOSO, Ciro F.; VAINFAS, Ronaldo (org.). Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 241-258. 3 Entre estes estão: Philippe Áries, Jean Louis Flandrin, L. Stone, Edward Shorter. (BRUGGER: 1995). 4 Ver Gilberto Freyre, Casa-Grande & Senzala e Sobrados e Mucambos; Oliveira Vianna, Instituições políticas brasileiras e Populações meridionais do Brasil. 5 Vide SAMARA, Eni de Mesquita. A família brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1998. (Coleção Tudo é história); COSTA, Iraci Del Nero da. Arraia–Miúda: Um estudo sobre os não-proprietários de escravos no Brasil. São Paulo: MGSP, 1992;MOTTA, José Flávio. Corpos escravos, vontade livres: posse de cativos e família escrava em Bananal (1801-1829). São Paulo: FAPESP: Anableme, 1999; MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Bahia século XIX: Uma província no Império. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992; SILVA, Maria Beatriz Nizza da. História da Família no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998; PRIORE, Mary Del. Mulheres no Brasil colonial. São Paulo: Contexto, 2003; FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998; BRÜGGER, Sílvia Maria Jardim. Valores e vivências matrimoniais: o triunfo do discurso amoroso (Bispado do Rio de Janeiro, 1750-1888). Niterói, 1995. Dissertação de Mestrado – UFF. 6 Em Sergipe, poucos estudos pontuaram essa temática, destacam-se: DANTAS, Orlando Vieira. Vida patriarcal de Sergipe. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980; RESENDE, José Mário dos Santos. A família patriarcal em Laranjeiras: geografias de uma decadência. In: Entre campos e veredas da Cotinguiba: o espaço agrário em Laranjeiras (1850-1888). São Cristóvão, 2003. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Universidade Federal de Sergipe e outros que assinalam a existência de famílias escravas. 7 No âmbito provincial, Estância ocupava o segundo lugar em maior concentração populacional, estando atrás de Laranjeiras – maior centro açucareiro da Província com 9.105 e 11.613 habitantes nos períodos citados. Vide: ALMEIDA, M. G. S. Sergipe: fundamentos de uma economia dependente. Petrópolis: Vozes, 1984, p.213. 8 O cenário do Brasil oitocentista foi marcado por intensas transformações. Dentre as mais significativas destacaram-se a independência política (1822) e sua afirmação enquanto nação; a elaboração do Código Criminal do Império (1830), o qual reafirmava do poder pátrio; a Lei de Terras (1850) que regulamentou o acesso a terra; o declínio da sociedade escravista devido às pressões internacionais para a abolição do trabalho escravo, movimentos abolicionistas, resistência escrava, entre outros, que tem em meados deste século seu primeiro enclave – a Lei Eusébio de Queiroz (1850) que proibiu o tráfico internacional de escravos e culminou com a Lei Áurea (1888) que deu fim ao trabalho compulsório no Brasil, uma economia açucareira em crise no Norte, motivada fortemente pela concorrência internacional, a consolidação de um novo produto agrícola - o café - e a Proclamação da República (1889). Foi justamente no oitocentos, considerado um século de intensas transformações, que Sergipe se integrou ao comércio internacional via exportação do açúcar e Estância conquistou a condição de vila (1831) e cidade (1848). 9 Nesse documento não foram encontradas datas, mas o cruzamento das informações registradas com outras fontes nos leva a crer que tenha sido elaborado em 1865. 10 O Clero sergipano esteve subordinado às ordens soteropolitanas até 1910 com a criação da Diocese de Aracaju. Assim, os documentos que versam sobre assuntos eclesiásticos de Sergipe até sua

2650

emancipação encontram-se no Laboratório de Conservação e Restauração Reitor Eugênio de Andrade Veiga (LEV) no município de Salvador-BA. 11 GINZBURG, Carlo. O nome e o como. In: A micro-história e outros ensaios. Tradução de António Narino. Lisboa/Rio de Janeiro:Difel/Bertrand, 1989. p. 175. 12 CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. 1: As artes de fazer. Tradução Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 2008; GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: Morfologia e História. Tradução Federico Carotti.São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 13 SILVA, Sheyla Farias. Riqueza em Movimento: A Construção de Fortunas na Estância Escravocrata (1850-1888). São Cristóvão, 2002. Monografia (Graduação em História). Universidade Federal de Sergipe e Nas Teias da Fortuna: Homens de negócios na Estância Oitocentista (1820-1888). Salvador, 2005. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal da Bahia. 14 Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Liv. I, tit. LXII.p.107. 15 Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Liv. I, tit. LXII.p.108. 16 GOLDSCHIMIDT, Eliana Rea. Casamentos mistos – liberdade e escravidão em São Paulo Colonial. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2004, p.27. 17 SÂMARA, Eni de Mesquita. As Mulheres, o Poder e a Família – São Paulo, Século XIX. São Paulo: Marco Zero/Secretária de Estado da Cultura de São Paulo, 1989, p.87. 18 Arquivo da Cúria Metropolitana da Bahia - Impedimentos, Caixa 334. 19 SÂMARA, loc. cit. 20 AGJES –Inventário do Cônego Antônio Luiz de Azevedo nº 07 Caixa 39 – Cartório do 2º Ofício de Estância 1848 e do D. Jacinta Clotildes do Amor Divino Inventário nº 06 Caixa 59 – Cartório do 2º Ofício de Estância 1861. 21 AGJES – Testamento anexado ao Inventário nº 03 Caixa 71A – Cartório do 2º Ofício de Estância 1873. 22 APES - Lista de Qualificação de Votantes de Estância (1853 e 1862). 23 Arquivo da Cúria Metropolitana da Bahia - Libelo Cível de Ação de Divórcio nº 01, Caixa 529 DI47, 1878.

2651

Santo de Casa também faz Milagre: as religiões afro-brasileiras no metal da Gangrena Gasosa Shirlei da Costa Borges Mestranda Programa de Pós Graduação em História (PPGH/UNIRIO) Orientadora: Dra. Maria da Conceição Francisca Pires E-mail: [email protected]

Resumo: O presente artigo visa analisar a utilização dos elementos das religiões afro-brasileiras nas performances da banda de metal e hardcore carioca Gangrena Gasosa, sobretudo, no figurino, na cenografia utilizada no palco e na temática de suas letras. Desta forma, o artigo pretende examinar de que forma a banda se apropria dos elementos das religiões afro-brasileiras em suas músicas e apresentações, e colocar em relevo como, através dessa apropriação, a Gangrena Gasosa constrói um estilo musical próprio: o Saravá Metal. Palavras- chaves: Metal, religiões afro-brasileiras, performance.

Abstract: The purpose of this Article is to analyze the use of elements of african-Brazilian religions in the performances of the band of metal and hardcore Gangrena Gasosa, especially, the costumes, the scenography used on stage and in the theme of his lyrics. In this way, the article seeks to examine how the band if he appropriates elements of african-Brazilian religions in their songs and presentations, and highlight how, through this appropriation, the Gangrena Gasosa builds a musical style itself: the Saravá Metal. Keywords: Metal, african-Brazilian religions, performance

Introdução No início dos anos 1990, a “moda” do rock já havia chegado ao fim e “o rock voltou a ser coisa de “roqueiro”1. Segundo Alexandre2, sua popularidade no Brasil tinha perdido espaço para ritmos como a lambada, gênero musical originário do estado do Pará, que tornou-

2652

se um fenômeno em todo o país no final da década de 1980. Além disso, o mercado de discos em 1989 já investia em duplas sertanejas, como Chitãozinho & Xororó e Leandro & Leonardo, em artistas bregas, como Rosana, Wando e José Augusto e em apresentadoras infantis, sendo Xuxa e Angélica os principais nomes desse período. Logo no início da década de 1990, cantores e grupos baianos como Daniela Mercury e Banda Beijo também caíram nas graças da mídia e do público, assim como grupos de pagode como Só Pra Contrariar. Longe dos grandes meios de comunicação, porém, ainda existia um sem números de bandas se formando, gravando fitas demo3 e batalhando por um lugar para tocar. E foi, justamente, em 1990, durante um show da turnê de divulgação do álbum intitulado Brasil, da banda paulista de hardcore Ratos de Porão, no Circo Voador, que surgiu a ideia de formar a banda Gangrena Gasosa. Sem muita intimidade com instrumentos musicais, mas com muita disposição para “zoar o barraco”4, seus integrantes decidiram desviar o foco da baixa qualidade técnica do grupo, chamando a atenção de outra forma, ou seja, usando diversos elementos das religiões afro-brasileiras nas suas apresentações e músicas. E, com isso, criando um estilo musical próprio que ficou conhecido como Saravá Metal.

Chuta que é macumba

A primeira vista um show da Gangrena Gasosa em nada difere das apresentações de outras bandas de rock pesado que comumente vemos por aí. O público também é bastante parecido, fãs vestidos quase que exclusivamente de preto, cheios de acessórios prateados, cabelos longos e coloridos e maquiagem marcante, no caso das meninas. Porém, assim que as luzes do palco se acendem e a banda inicia sua apresentação, nos damos conta de que não estamos diante de apenas mais uma banda de metal. O que primeiro nos chama atenção é a presença de alguns alguidares com farofa amarela e umas velas acesas espalhadas por toda a extensão palco. Ao lado da bateria é possível notar a existência de atabaques, instrumentos que não são normalmente utilizados por bandas de metal. Porém, a maior surpresa fica por conta do figurino utilizado por seus integrantes. O baterista sobe ao palco vestindo apenas uma sunga e uma capa vermelha, com chifres (também vermelhos), fazendo uma alusão ao Exu Mirim, orixá da Umbanda. Os orixás e as entidades da Umbanda vão, inclusive, servir de inspiração para a vestimenta dos outros integrantes da banda. Nos atabaques e demais instrumentos de percussão, vemos a representação do Caboclo Sete Flechas e da Pomba Gira. No primeiro caso, o integrante veste uma calça branca, sem camisa, com algumas guias no pescoço e um

2653

enorme cocar indígena. Já no segundo, a única mulher do grupo toca usando vestido vermelho com detalhes em preto, cabelos longos e soltos que, eventualmente, carregam uma rosa. Na linha de frente do palco, temos nas extremidades, o personagem do Exu Caveira, vestido com calça e camisa preta, uma capa preta e vermelha e máscara de caveira que cobre toda a cabeça, e o Tranca Rua das Almas, com uma calça preta, camisa vermelha com detalhes em branco, capa preta e vermelha e uma cartola preta. No centro do palco, um de seus integrantes aparece vestido com um entrelaçado de palhas indo da cabeça aos pés, fazendo referência ao Omulu, enquanto outro surge num terno branco com gravata vermelha, chapéu Panamá e sapatos bicolores, assim como o Zé Pelintra. É notório que a imagem sempre foi um fator importante para diversas bandas de rock. Não são raros os grupos que investem em apresentações pirotécnicas, com explosões de fogos de artifícios, por exemplo, ou mesmo na teatralidade para conquistar a atenção das pessoas. Paul Friedlander afirma que as “roupas” utilizadas pelos músicos buscam transmitir ao público uma determinada mensagem e elas não são aleatórias, são escolhas ligadas a fatores culturais e econômicos, por exemplo. Para o autor, “cada atitude no palco – ou a ausência delas – transmite mensagens simbólicas sobre os artistas, seus valores e a plateia que eles querem atingir”5. Assim, à medida que o metal foi se fragmentando, no início dos anos 1980, seu visual também foi se diversificando, fazendo com que cada artista optasse por um movimento corporal ou aparência no palco que será identificado e, muitas vezes, copiado pelo seu público. A incorporação de elementos religiosos pelas bandas de metal, sobretudo aquelas de metal extremo, não é algo exatamente incomum. Não raro, “vemos que os músicos constroem personas artísticas aludindo ao sobre-humano e ao subumano, imbuídos do projeto expressivo de suscitar o medo”6. Um bom exemplo disso são as bandas de Black Metal. Em seu trabalho, Campoy destaca que essas bandas começam a atrair a atenção do público internacional nos anos 1980 justamente por conta do visual e de se declararem, em entrevistas, abertamente como satanistas7. Para essas bandas, “[...] a construção da persona artística envolve a adoção de pseudônimos inspirados em mitologia, literatura fantástica ou entidade demoníaca” 8. Além disso, carregavam consigo pentagramas e cruzes invertidas e usavam capas e maquiagens, estilo corpse paint, com o “[...] intuito de se tornar mais ameaçador” 9. Algumas bandas como Mayhem, Emperor e Immortal, costumavam, ainda, posar para as fotos “[...] segurando tochas, punhais de aparência cruel, machados e instrumentos de tortura”10.

2654

As bandas de metal brasileiras foram e continuam sendo fortemente influenciadas por bandas estrangeiras, inclusive no visual, importante meio de inserção social, responsável pela aproximação entre os indivíduos. As imagens nos encartes de CDs, nas revistas e sítios especializados, o advento dos vídeos clipes, com a chegada da MTV Brasil, tudo isso atingiu significativamente muitos jovens por todo o país, que buscavam se aproximar de seus ídolos. Pablo Ornela Rosa afirma que muitas vezes essa aproximação com as bandas norteamericanas e europeias é tão passiva que as bandas nacionais acabam absorvendo valores que não são seus, copiando-os sem acrescentar nada de sua própria cultura11. A crítica ao modelo internacional a qual as bandas nacionais são comumente submetidas encontra-se presente na produção da banda carioca Gangrena Gasosa. Desde que surgiu, o grupo questiona a preferência de algumas bandas pela adoção de um visual comum entre os headbangers. Na Edição Especial DELIRIUM, do Fanzine Escarro Napalm 12, de 1995, o então vocalista Ronaldo Chorão reclama que eles não gostavam do estereótipo que criaram dos fãs de metal: branco, que se vestiam sempre de preto e usavam tênis importado. Para ele que não se enquadrava nesse perfil, porque, em suas palavras, era “feio pra caralho, duro, e tocava mal à beça”, a opção encontrada foi ser “anti tudo”. Assim, de forma crítica e provocativa, a banda incorporou elementos típicos da cultura brasileira às suas apresentações. Tendo como ponto de partida a argumentação de que desde que surgiu o rock pesado sempre esteve, de alguma forma, ligado a religião, seja na sua constante crítica ao cristianismo, seja na sua aproximação com o ocultismo, com o misticismo e, até mesmo, com o satanismo13, não é incomum encontrarmos nas letras das músicas de bandas de metal, referências a Belzebu, Behemoth, Astaroth e Lúcifer. Porém, para a banda, esses personagens mitológicos são, em grande parte, desconhecidos no Brasil e, por isso, são incapazes de gerar qualquer identificação com as pessoas daqui. Fica claro então, como disse Lopes, que o uso da temática religiosa é uma forma de questionar ou contestar, através da arte, certas concepções e símbolos sagrados já tão impregnados na nossa sociedade. Assim, segundo o autor, quando lançam mão desse recurso, elas estão dessacralizando e transformando esses valores e símbolos religiosos “em símbolos artísticos – convenções estéticas – não religiosas”14 ou, ainda, atribuindo outros valores a eles, diferente daqueles produzidos pelas religiões. Lopes destaca também que entre as bandas de metal é comum observarmos que alguns símbolos normalmente associados ao mal na tradição cristã, acabam se tornando positivos no neopaganismo, no ocultismo e no satanismo. Desta forma, a temática religiosa adotada pelas bandas de metal, sejam as norte-americanas, as europeias ou as de Saravá Metal, além de

2655

carregar consigo uma crítica, pode sugerir, ainda, que as religiões não devem ser levadas a sério. A ironia e o deboche presente nas letras da Gangrena Gasosa apontam nesse sentido. Ao misturar a macumba com o metal, o que a Gangrena propôs foi algo absolutamente novo, que ao mesmo tempo em que a identifica como uma banda de metal, a diferencia pelos elementos que utilizam. Nesse sentido, sua importância está justamente no fato de terem dado um novo sentido aquele que seria um modelo cultural aparentemente único e homogêneo. E “é por meio desses processos de interpretações e ressignificações que surgem novas vertentes musicais, além de surgirem também novas tribos que imprimem sua marca por meio de novos signos e símbolos”15. São, portanto, essas novas interpretações e ressignificações que mantêm o metal ativo.

Timbalada da Caveira Em uma entrevista realizada em 1995 para o fanzine Escarro Napalm, publicada na edição especial DELIRIUM, o então vocalista da banda, Ronaldo Chorão, diz que o grupo tinha tudo pra dar errado, pois cada um ouvia um tipo de música: rockabilly, death, industrial, eletrônico, etc. Porém, em 1990, a cena estava dominada pelo Thrash Metal Bay Área 16, com bandas como Testament, Anthrax, Over Kill, Suicidal Tendencies, Metallica, Sepultura, entre outras. Todas formadas por cabeludos brancos e bonitos, fazendo poses com suas camisas pretas, calças de moleton ou jeans rasgados e tênis Reebook. Apesar de gostar do som que elas faziam, Chorão não se identificava com esse visual: “Metaleiro preto era um troço fora do contexto pra caralho! E é muito ruim bater cabeça sendo careca”. A falta de identificação com aquilo que consomem faz com que os integrantes da banda busquem alternativas para a construção de uma identidade própria, ou seja, de uma performance com aspectos identitários mais próximos a realidade brasileira. Segue, assim, o pensamento de que “muitas vezes as condutas e valores impostos ao indivíduo [...] podem ser subvertidos no momento da prática, estabelecendo possibilidades de ação [...] que, se não contrariam totalmente as estruturas, ao menos se aproveitam das “brechas” deixadas” 17. Na mesma entrevista, Ronaldo afirma que, ao mesmo tempo, estava cansado de ver a “música perder peso e velocidade” e que tudo que eles queriam eram ouvir um som mais violento. O caminho mais natural passou a ser, então, uma aproximação com estilos mais pesados de rock, como o Hardcore e o Metal. Porém, como afirma o atual vocalista Angelo Arede, em entrevista publicada, em 2012, no Sítio “Cultura em Peso”18, “rotular estilo só

2656

serve como primeira referência” e que o objetivo da banda é mesmo continuar fazendo música cada vez mais pesada e com elementos brasileiros. O crescimento do número e da variedade de bandas de metal começa a ser percebido, sobretudo, na década de 1980. Weinstein (1991/2000), identifica, entre os anos de 1983-84, dois grandes grupos em destaque19, o que ela chama de “Lite Metal”, por enfatizar os elementos melódicos e cujos principais representantes seriam Def Leppard e Van Halen. Porém, existem outros exemplos também bastante significativos, como é o caso das bandas Poison, Bom Jovi e Ratt. Segundo ela, essas bandas são comumente criticadas pelo público tradicional do metal, que se refere a elas com termos pejorativos como "poseurs", "false metal", "nerf metal" e "poodle bands". O outro grande grupo apontado pela autora é o “Speed/Thrash Metal”, que enfatiza o retorno às tradições do metal, faz uso de elementos rítmicos, adiciona velocidade e um posicionamento mais contestador. Temáticas como sexo, festas e romances são cedidos ao “Lite Metal”. No “Speed/Thrash Metal”, as letras são mais sombrias, abordam os horrores do mundo real, o isolamento e a alienação dos indivíduos e a corrupção, o que faz com que tenham pouco apelo de massa e, por isso, seja mais comum na cena underground. Tem suas origens na Califórnia, entre 1981-83, com bandas como Metallica, na área de Los Angeles, e Exodus, em São Francisco. Ao longo de sua trajetória, outras bandas importantes foram aparecendo. É o caso do Anthrax, Slayer, Megadeth, Suicidal Tendencies e Sepultura. Weinstein (1991/2000) acrescenta, ainda, que neste subgênero pode existir bandas que introduzam o humor e a ironia em suas letras e cita, como exemplo, a Nuclear Assault. A preocupação com temáticas mais específicas fizeram com que este grupo fosse se dividindo mais e mais, ficando ainda mais restrito. Assim, nos anos 1990, havia centenas de bandas em todo mundo contribuindo para que o metal ficasse cada vez mais fragmentado. Lopes (2006) destaca que essa fragmentação deu origem a alguns dos estilos mais populares atualmente, como o gothic metal, o power metal, o black metal e o death metal. Características desse último, inclusive, são percebidas no som produzido pela

banda

Gangrena Gasosa. Ainda de acordo com o autor, o death metal se destaca por levar ao extremo elementos do thrash metal dos anos 1980 e 1990, ou seja, “o peso, a rapidez e uma característica rítmica e pouco melódica, chegando a níveis de extremo virtuosismo, com os pedais duplos de bumbo da bateria sempre rápida, o vocal grutual”20, além das guitarras muito distorcidas e do baixo acelerado. A banda Gangrena Gasosa, reúne muitos desses elementos, assim como do crossover thrash ou simplesmente crossover21 e do grindcore22, entre outros. Ao mesmo

2657

tempo,

incorpora ao seu som instrumentos pouco usuais no universo do Metal, como o triângulo, os atabaques, o pandeiro e outros elementos de percussão. Embora, inicialmente, os instrumentos de percussão fossem utilizados de modo pontual, apenas em alguns trechos das músicas, aos poucos foi deixando de ser um elemento decorativo e foi definitivamente incorporado ao som da banda, para reproduzir uma sonoridade que lembrava os batuques e tambores dos terreiros de Umbanda e Candomblé. Essa inciativa foi decisiva para a consolidação do conceito do grupo, como uma banda de Metal com influências dos ritmos afro-brasileiros. Misturas como essas não eram exatamente novidade na segunda metade dos anos 1990. Muitas bandas brasileiras estavam adotando a língua portuguesa e incorporando elementos da nossa cultura as suas músicas. É o caso da banda de Recife, Chico Science & Nação Zumbi, principal nome do movimento Manguebeat, ao lado dos também pernambucanos do Mundo Livre S/A, cujo som consistia em juntar os ritmos tradicionais pernambucanos, como o maracatu, o coco, a embolada e a ciranda, com ritmos contemporâneos, como pop, hip-hop e rock23. E, também, dos Raimundo, banda cujos integrantes foram criados no Distrito Federal, embora suas famílias tenham origens pernambucanas e paraibanas. Resulta daí, a influência de ritmos nordestinos como o forró e o baião misturados ao rock24. O álbum Roots, da banda mineira Sepultura, lançado em 1996, surpreendeu os fãs de metal “inserindo instrumentos típicos brasileiros no estilo deles”25, como a percussão e o berimbau. Além disso, o álbum continha músicas gravadas ao lado da tribo indígena dos Xavante, além de contar com a participação do músico baiano Carlinhos Brown na faixa Ratamahatta, que cita símbolos nacionais como Zé do Caixão, Zumbi e Lampião, e do clipe de Roots Bloody Roots, que foi gravado na cidade de Salvador, com a participação da banda Olodum e a apresentação de uma roda de capoeira. O que parecia novidade em meados dos anos 1990, já era realidade desde o início da década, quando a Gangrena Gasosa começou a falar de macumba, terreiro, despacho e Exús nas suas músicas. É o caso de “Centro do Pica-Pau amarelo” (“Emília Pomba-Gira é uma boneca de vodú/Anastácia é poderosa nos trabalhos de Umbanda/E nas macumbas mais sinistras/É vovó Benta quem manda”), “Chuta que é macumba” (“Pode ser católico, crente, ou judeu/muçulmano, hare krishna, budista e até ateu/Quem tem cu tem medo, as preguinhas ficam tensas/Quando passa por despacho sempre pede uma licença”) e “Exú Noise Terror” cuja introdução lembra muito o ponto (música) “Exu Arranca Toco” (“Oh! Meu Senhor das Almas de mim não faça poco!/Olha lá quem vem é Exu/É o Exú Arranca-Toco”). Esse novo cenário que se apresentava no país contraria, no entanto, a tendência anterior, onde as bandas nacionais de metal, de modo geral, preferiam usar o inglês para

2658

suas

composições. Uma matéria publicada no Segundo Caderno do Jornal O Globo26, tenta explicar um pouco essa tendência:

O fenômeno Sepultura tem feito muita gente achar que, depois dos craques da bola, os craques da guitarra, baixo e bateria serão o principal produto de exportação do país. [...] Bandas dos subterrâneos da cidade, das mais variadas tendências, que botaram para escanteio o idioma pátrio para se esgoelarem no de Shakespeare, dito por aí o do rock.

Na mesma matéria, alguns músicos tentam justificar a escolha do idioma dizendo que pra alcançar o sucesso é preciso pensar em negociar a distribuição de discos com selos estrangeiros, uma vez que as gravadoras daqui não apostam nesse segmento musical e para atingir o mercado internacional, é precisa cantar em inglês, “a língua universal do rock”. Alguns entrevistados, no entanto, afirmam que a escolha se deve ao fato do inglês ser “mais sonoro”, “mais poético”, ou, simplesmente, porque “o português é meio brega” e cantar “rock em português fica meio insosso”. Porém, nem todos compram essa ideia. Cid, então baterista da Gangrena, é um dos que diz ao Jornal O Globo o que pensa sobre o assunto: “A gente não fala uma naba 27 de inglês. Só que tem muita gente que também não fala e canta em inglês. A gente acha isso ridículo e questiona essa tendência com humor, cantando numa mistura de inglês com português de dicionário”. E, de fato, a Gangrena Gasosa vai brincar com isso, como fica claro já no título de algumas de suas músicas, como é o caso de “Despacho From Hell”, “Welcome to Terreiro”, “Black Velho” e “Pegue Santo or Die!”. A crítica ao uso da língua inglesa nas composições de algumas bandas com o objetivo único de alcançar um sucesso internacional gera outras desconfianças, sobretudo, naqueles que defendem a manutenção de uma cena underground. Segundo Rosa, isso porque “[...] quanto mais essas bandas se inserem no mercado, mais deixam de criar suas músicas de forma independente e mais produzem apenas o que o mercado pede, perdendo assim a sua autonomia e, muitas vezes, a sua posição inicial, crítica deste mercado”28.

Conclusão

A Gangrena Gasosa, sempre se orgulhou de ser desagradável. Desta forma, a banda satiriza diversas coisas que são normalmente levadas a sério por muitas pessoas e instituições, como as tradições religiosas brasileiras, seja o catolicismo, o neopentecostalíssimo ou os próprios cultos afro-brasileiros. Porém, isso não significa que a banda está afirmando que as

2659

religiões afro-brasileiras são más ou que suas entidades e orixás são demoníacos. O que ela defende é a incorporação de elementos da nossa cultura ao metal, através de símbolos e objetos dessas religiões que estão sempre no foco de debates polêmicos. Ou seja, a Gangrena percebeu “que nossa concepção religiosa contestatória e de resistência encontra-se nas religiões afro-brasileiras, a saber, candomblé, umbanda e quimbanda, entre outras”29. Ao adotar uma postura crítica em relação à influência estrangeira no metal produzido no país, a Gangrena Gasosa opta pela utilização de instrumentos de percussão nas suas músicas, roupas de entidades das religiões afro-brasileiras, letras cantadas em português, fazendo referências aos cultos dessas religiões, mostrando sua preocupação em utilizar e valorizar a cultura nacional. E, ao fazer isso, a banda ressignifica o metal, criando um novo produto cultural e musical. Nesse sentido, bandas como a carioca Gangrena Gasosa são importantes porque acabam dando um novo sentido aquele que seria um modelo cultural aparentemente único e homogêneo. E “é por meio desses processos de interpretações e ressignificações que surgem novas vertentes musicais, além de surgirem também novas tribos que imprimem sua marca por meio de novos signos e símbolos”30. São, portanto, essas novas interpretações e ressignificações que mantêm o metal ativo até os dias de hoje.

1

ALEXANDRE, Ricardo. Dias de luta: o rock e o Brasil dos anos 80. São Paulo: DBA Artes Gráficas, 2002, p. 335. 2 ALEXANDRE, Ricardo. Cheguei bem a tempo de ver o palco desabar: 50 causos e memórias do rock brasileiro (1993-2008). Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2013. 3 De acordo com Alexandre (2013), as fitas demos são conhecidas também como “demo-tapes” ou, ainda, como “fitas de demonstração” e eram divulgadas através dos fanzines e comercializadas em shows, tornando-se o principal veículo de divulgação de novas músicas feitas no submundo. Ainda são bastante cultuadas, existindo, inclusive, blogs especializados na digitalização desses acervos, como o Demo-tapes-Brasil (Ver: http://demotapes-brasil.blogspot.com.br/) e o La Cumbuca (Ver: http://www.lacumbuca.com/search/label/fita-demo). 4 Expressão utilizada por Cid Mesquita, ex-baterista e um dos fundadores do grupo, no documentário da banda intitulado "Desagradável", lançado em 2013, para descrever qual era o real objetivo da Gangrena Gasosa no início da carreira. 5 FRIEDLANDER, Paul. Rock and Roll: uma história social. Rio de Janeiro: Record, 2013, p. 403.

2660

6

FIORE, Adriano Alves; AZEVEDO, Cláudia Souza Nunes de. Os quarenta e três anos do demônio metálico: análise cronológica e conceitual da iconografia referente demoníaco no metal 1970-2013. IV Encontro Nacional de Estudos da Imagem/I Encontro Internacional de Estudos da Imagem. Londrina-PR, 07 a 10 de maio de 2013, p. 3275. 7 CAMPOY, Leonardo C. Trevas na cidade: o underground do metal extremo no brasil. Dissertação (mestrado). Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia – PPGSA, do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2008, p. 159. 8 FIORE & AZEVEDO, 2013, p. 3275 9 FERNANDES, José Lucas Cordeiro. Cruzes Invertidas e Corpos Pintados: A permanência da figura de Lúcifer no Black Metal. Revista História, imagem e narrativas. N° 15, outubro/2012, p. 17. 10 CHRISTE, Ian. Heavy Metal: A História Completa. Editora: Arx, 2010, p. 347. 11 ROSA, Pablo Ornelas. Rock underground: uma etnografia do rock alternativo. São Paulo: Radical Livros, 2007, p. 52. 12 Escarro Napalm, o Blog, é a versão virtual do fanzine de mesmo nome que era publicado por Adelvan Kenobi (Aracajú/Sergipe), em fotocópias e distribuído pelos Correios, entre os anos de 1991 e 1995. (Ver: http://escarronapalm.blogspot.com.br/2011/02/gangrena-gasosa-por-eles-mesmos.html) 13 “O satanismo defendido por grande parte dos adeptos do black metal não é um conceito homogêneo e possui diferentes interpretações nativas, que vão desde ao ataque e oposição às religiões judaico-cristãs, até o culto às denominadas “entidades das trevas”, que ora podem ser similares ao diabo, ora aos próprios exus das religiões afro-brasileiras” (MORAES, Lucas Lopes de. “Hordas do Metal Negro”: Guerra e Aliança na Cena Black Metal Paulista. Dissertação (Mestrado) Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo/USP. São Paulo, 2014, p. 11). 14 LOPES, Pedro Alvim Leite. Heavy Metal no Rio de Janeiro e Dessacralização de Símbolos Religiosos: A Música do Demônio na Cidade de São Sebastião das Terras de Vera Cruz. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social –Museu Nacional – UFRJ, 2006, p. 41 15 ROSA, Pablo Ornelas. Rock underground: uma etnografia do rock alternativo. São Paulo: Radical Livros, 2007, p. 51. 16 Segundo a Revista Roadie Crew (maio/2010), Bay Area, ou Baía de São Francisco, é uma região que envolve a cidade de São Francisco e mais nove municípios do estado da Califórnia, nos Estados Unidos. As bandas de thrash metal que surgiram lá possuíam características próprias, como um som acelerado, agressividade e riffs para bater cabeça que serviam de base para letras que já não falavam mais tanto de mitologia e satanismo, ou mesmo de festas, garotas e transas, mas sim sobre a violência, a vida na estrada, os shows e as bebedeiras. 17 CERTEAU, 1998 apud MORAES, 2013, p. 87. 18 http://culturaempeso.com.br/2012/04/04/gangrena-gasosa/ 19 WEINSTEIN, Deena. Heavy Metal: the music and its culture. New York: De Capo, 1991/2000. 20 LOPES, 2006, p. 125. 21 Termo comumente utilizado nos anos 1980 para descrever a primeira geração de bandas que misturavam o hardcore punk com o thrash metal. 22 “Com andamentos rapidíssimos – a popularização dos blast beats veio daqui – e vocais urrados e frequentemente ininteligíveis, o grindcore se caracteriza por composições curtas e violentas” (SEELIG, 2012 apud DHEIN, Gustavo. A besta que se recusa a morrer – Identidade, mídia, consumo e resistência na subcultura heavy metal. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Mestrado em Comunicação da Faculdade Cásper Líbero. São Paulo, 2012, p. 93). 23 SILVA, Letícia Batista da Silva. Manguebeat: Vanguarda no Mangue? Dissertação de Mestrado em Literatura Brasileira. Programação de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2011, p. 22. 24 http://www.getempo.org/index.php/revistas/36-edicao-n-02-dezembro-de-2010/resenhas/124-eu-quero-e-rocko-disco-raimundos-musicalidade-hibrida-e-a-apologia-do-sertao-1994 25 Global Metal. Dirigido por Sam Dunn, Scot McFadyen. Produzido por David Reckziegel, Noah Segal, John Hamilton e Victoria Hirst. Vários artistas. Canadá: Seville Pictures, 2008. DVD, son. color. 26 LIMA, Eduardo Souza. “Rock em ‘sambarilovês’ – no rastro do Sepultura, bandas cariocas fazem letras em inglês para tentar carreira no exterior”. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 28 de set. de 1992. Segundo Caderno, p. 1. 27 Segundo o Dicionário Informal (http://www.dicionarioinformal.com.br/naba/), naba é um “um termo utilizado para definir algo que não está funcionando corretamente e que está sendo difícil para solucionar”. 28 ROSA, 2007, p. 42. 29 SILVA, Sandro Xavier da. Intertextualidade e ironia na Gangrena Gasosa: santo de casa também faz milagre! Anais 8º Encontro de Letras da Universidade Católica de Brasília, p. 125-145, 2010, p. 131. 30 ROSA, 2007, p. 51.

2661

DISCURSOS SOBRE OS JOGOS NA INFÂNCIA VEICULADOS PELA REVISTA DO ENSINO DE MINAS GERAIS (1925-1940)

Tacimara Cristina dos Reis Mestranda Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri Orientadora: Ana Cristina Pereira Lages Email: [email protected]

Resumo: Considera-se importante que na educação infantil as crianças tenham acesso aos jogos, pois através dele ocorre o desenvolvimento físico, afetivo e cognitivo. Mas a infância nem sempre foi valorizada e reconhecida, somente no final do século XVIII e início do XIX que a sociedade européia, quanto brasileira, ocorre uma tendência de separar o mundo das crianças dos adultos. Para tanto pretende verificar como eram propostos os jogos na Revista do Ensino de Minas Gerais no período de 1925 a 1940. Palavras- Chave: Revista do Ensino, jogos, infância

Abstract: It is considered important that in kindergarten children have access to games because throught them occurs the physical, emotional and cognitive development. However the childhood has not always been valued and recognized, only in the eighteenth century and the begining of the nineteenth century that in the European society as in the brazilian, happens a tendency to separate the world of children from adults. For this plan, intend to verify how the games were proposed in the Revista do Ensino from Minas Gerais in the 1925 to 1940 period. Key words: Revista do Ensino, games, childhood

Apoio financeiro: Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri

2662

A história da infância Nem sempre a infância foi reconhecida e valorizada pela sociedade. Até a Idade Média as crianças eram tratadas como um ser sem nenhum tipo diferenciação dos adultos. Segundo Phillyppe Ariès (2011) na sociedade medieval, o sentimento da infância não existia, uma vez que particularidade infantil não era visível, sendo que a criança ingressava no mundo dos adultos e não era vista como diferente destes. Nesta época, a vida cotidiana da criança era misturada com a do adulto e realizavam atividades sempre juntos, tais como: passeios, trabalhos e jogos. Entretanto, no final do século XIX e início do XX, tanto na sociedade européia, quanto brasileira, ocorre uma tendência de separar o mundo das crianças dos adultos. Mas verifica-se que no início do período Moderno, somente uma minoria de crianças da sociedade européia tinha acesso à educação, principalmente aquelas que eram de família com poder aquisitivo elevado. A ampliação da educação só aconteceu a partir da Revolução Francesa, já no final do século XVIII. (KUHLMANN JR e FERNANDES, 2004). Segundo Carmen Soares (2004), as desigualdades sociais são justificadas devido ao progresso e à necessidade de diferentes indivíduos na ocupação de diversas posições e cargos dentro da nova ordem social estabelecida. Tais posições vão sendo hierarquizadas para as diversas classes sociais em função do lugar que ocupam na produção. Ocorreu a inserção em massa das crianças nos sistemas educacionais a partir no século XIX, quando as propostas educacionais ganharam difusão internacional, tendo a visão que a escola seria um espelho para a sociedade. No caso do Brasil, observa-se que essa massificação só ocorreu a partir de 1930, a partir do Governo de Getúlio Vargas. Por outro lado, ainda no século XIX, em favor da criança e o seu desenvolvimento, a escola, o asilo, o hospital, dentre outros setores, multiplicaram experiências diversas em favor do bem-estar da infância. As instituições educacionais passaram a se preocupar com as distinções da infância. Assim, o período dos 0 aos 6 anos foi reconhecido como aquele em que as crianças menores já poderiam aprender e ser educadas em instituições coletivas (KUHLMANN JR e FERNANDES, 2004).

2663

A importância dos jogos na infância Muitos teóricos de diferentes teorias têm enfatizando a importância do jogar envolvendo diversos pontos de vistas. Considera-se importante que na educação infantil às crianças tenham acesso aos jogos, pois através dele ocorre o desenvolvimento físico, afetivo e cognitivo. Portanto, considera-se que as suas funções psíquicas, como percepção, atenção e memória, são essenciais durante as atividades lúdicas (MUKHINA, 1996). De acordo com a autora citada acima, a atenção, por exemplo, é fundamental, pois possibilita apreender as propriedades dos objetos que são necessários para que brincadeiras e jogos possam acontecer. A atenção se desenvolve também pela mediação do adulto, quando este direciona o que e quando a criança deve prestar atenção, e a mediação da linguagem, que organiza a atenção. É por meio da formação do eu no “olhar” do outro que se inicia a relação da criança com os sistemas simbólicos fora dela e, assim, começa a entrada nos diversos sistemas de representação simbólica, estando aí incluídas a língua e a cultura. (LACAN, apud. HALL, 2011). Uma forma para desenvolver a memória é por meio das brincadeiras, pois durante a mesma, a criança é obrigada a recordar de algo para desempenhar o papel, deparando-se com situações que exigem que ela se lembre ou reproduza uma situação. Em relação ao desenvolvimento físico, segundo Vania Dohme (2011, p. 80) “os jogos colaboram com o desenvolvimento de habilidade onde se empregam a força: puxar, levantar, empurrar, a agilidade: correr, saltar, rastejar, a destreza: atirar, mirar, esquivar”. Diante isso, pode-se observar que o jogo contribui muito no desenvolvimento físico das crianças, através dele a flexibilidade, a força, a coordenação, a agilidade, dentre outras se desenvolvem. Além de contribuir para o desenvolvimento das capacidades cognitivas, a imaginação, a memória, a atenção e a linguagem. Segundo Tarcísio Vago (2010) e Miguel Faria (2009), a Revista do Ensino foi criada em 1892, no governo do presidente de Estado Afonso Pena, ao realizar a primeira reforma do ensino no período republicano, mas logo esta foi desativada. De acordo com Maurilane Biccas (2008), quando a Revista do Ensino foi criada, esta era dirigida aos professores com o intuito de tornar-se um instrumento jurídico-administrativo, de informação e não tinha um caráter formativo. Em 1925, a revista foi completamente reformulada na presidência de Fernando Mello Vianna, passando a circular mensalmente e sob responsabilidade da Directoria de Instrucção Publica.“[...] destinada a orientar, estimular e informar os funcionários do ensino e os particulares interessados” (VAGO, 2010, p.74), como prevê o Regulamento do Ensino em seu artigo 479. Em 1940, ocorre mais uma suspensão em sua publicação, devido à Segunda Guerra Mundial, mas de maneira irregular volta a circular em 1946 e, desse período até 2664

janeiro de 1971, a Revista do Ensino continua existindo, tendo o número 239 deste periódico que encerra as suas publicações. (FARIA, 2009). Neste sentido, pretende verificar como eram propostos os jogos na Revista do Ensino de Minas Gerais no período de 1925 a 1940. A Revista do Ensino, em relação à história da educação em Minas Gerais, pode ser considerada como o impresso pedagógico oficial mais representativo, levando em consideração o seu longo ciclo de vida, quanto também, pelo seu papel significativo no processo de formação de professores e de conformação do campo educacional mineiro. (BICCAS, 2008). Segundo Tarcísio Vago (2010) com relação à Educação Física, foi intensa a circulação nas secções da Revista, desde seu relançamento, em 1925, artigos sobre a educação physica, tendo como objetivo formar o professorado para atuar com esta disciplina nas escolas, configurando a importância para a inserção e firmação nas escolas mineiras.

Deste modo, a Revista do Ensino foi produzida objetivando atingir uma comunidade específica de leitores – professores do ensino público de Minas Gerais – e, com isso, modelando o fazer docente. Propagando prescrições de práticas e representações para a construção de um projeto de Educação Física, a Revista foi uma estratégia que contribuiu para a conformação do campo educacional mineiro, como um “lugar de poder”, onde a formação dos sujeitos – os alunos – era o destino final de todo este investimento. (FARIA, 2009, p.20-21).

Assim sendo, entende-se que a revista contribuiu muito na prática do professor, como uma ferramenta de indicação de quais práticas corporais poderiam ser realizadas nas aulas pelas crianças. Foi um meio utilizado como suporte teórico pelos mesmos. A Revista do Ensino foi reconhecida como uma estratégia fundamental, usada pelo governo de Minas para a formação do professorado. É importante salientar que, no que diz respeito ao professor de Educação Física daquela época, especialmente para a infância, este não tinha cursos específicos de formação nesta área, uma vez que era formado nas escolas normais. (VAGO, 2010).

2665

O jogo na Revista do Ensino de Minas Gerais Nos anos de 1925 a 1940 foram publicados na Revista do Ensino de Minas Gerais um total de 175 exemplares, com diversas temáticas. Além de seu longo período de publicação, a análise desta fonte aponta para o fato que esta possui uma riqueza de conteúdos sobre a Educação Física. No presente artigo será apresentada a análise de alguns exemplares que falam sobre os jogos na educação física da infância, no período proposto. Segundo Miguel Faria, “(...) a presença de prescrições sobre os jogos como uma das práticas da disciplina Educação Física foi expressiva na Revista do Ensino em quase todo o período de circulação analisado” ( 2009, p.29). Na consulta ao periódico, constata-se que o primeiro artigo publicado que trata do assunto Jogos, foi publicado em maio de 1925, com o título “Jogos Menores”. Sem indicação de autoria, considerava a forte influencia que os “jogos physicos” exerciam no desenvolvimento das crianças e citava alguns jogos que seriam importantes introduzir nas escolas da época: roubar munições, corridas, em um pé, em ambos os pés, massas venenosas e empurrar a corda, dentre outros.

O primeiro jogo: Roubar munições: collocar varas, massas, bastões, etc., empilhados no meio do campo. Dispor o grupo em duas turmas, postadas nas extremidades dos campos. Dado o signal, correrão ambas as turmas, levando, de uma em uma, as munições para a sua linha, voltando para buscar outras. Vencerá a turma que roubar a maior quantidade. Segundo jogo: Corrida em um pé: Dispor a classe em columnas. Dado o signal correrá o primeiro jogador de cada uma dellas, num pé, até a extremidade do campo. Voltando, sahirá o segundo, indo o primeiro formar à retanguarda da columna. Terceiro jogo: Corrida em ambos os pés: Dispor a classe em columnas. Dado o signal correrá o primeiro jogador de cada uma dellas de pé juntos, até a extremidade do campo. Voltando, sahirá o segundo, indo o primeiro formar à retaguarda de colunma. Quarto jogo: Massas venenosas: Dispor o grupo em círculo, segurando os pulsos com firmesa, em torno das massas. Dado o signal, os jogadores se empenharão em fazer com que os seus companheiros derrubem ao menos uma das massas. O que a derrubar será excluído do jogo. Excluir-se-ão também os dois jogadores que largarem os pulsos. Será vencedor o que não derrubar as massas. Quinto jogo: Empurrar corda: Collocar a corda atravessada no meio do campo. Dispor o grupo em duas turmas, postada em cada qual nas extremidades do campo. Dado o signal, correrão ambas as turmas e segurarão a corda, procurando empurral-a para o lado contrário. Vencerá a turma que conseguir empurral-a até o limite, ou havendo tempo pré-estabelecido, a que a levar mais proximo a elle.” (REVISTA DO ENSINO, n.3. maio. 1925, p. 70-71. Arquivo Público Mineiro).

Assim o artigo “os methodos de educação e hygiene applicada” de autoria do Dr. Ed Claparede, publicado em 1925, refere-se às theses que apresentou ao Congresso de Higiene Mental, em junho de 1922, em Paris1. Para o autor, “(...) o menino deve adquirir habito do trabalho, a noção do cumprimento do dever, não para obedecer a outrem, mas porque este modo de proceder lhe é agradável”, “a escola deve ser activa, isto é, mobilizar a actividade da

2666

creança. Com esse intuito, ella poderá tirar partido vantajoso do jogo,que estimula ao Maximo a actividade infantil”. Segundo Lilia Nassif (2008), Ed Claparede trabalhou como médico e psicólogo. Nasceu em uma família protestante, devido sua religiosidade e o incentivo do pai o fez um médico missionário.

Claparède foi para a Leipzig, cursar medicina, voltando para Genebra após um semestre a fim de cuidar da sua mãe. Concluiu seu curso nesta cidade e, em 1897, fez o doutorado, escrevendo a tese intitulada Du sens musculaire: à propos de quelques cas d’hemiataxie posthémiplégique, que lhe proporcionou novo contato com a psicologia, a qual havia abandonado há quatro anos. (NASSIF, 2008, p.28).

Na concepção de Claparède a medicina era uma forma eficaz para estudar o ser humano. Diante isso, acredita quando se refere a estudar os sujeitos, tem que levar em conta todos os aspectos: físicos, afetivos e cognitivos, especialmente, na infância que é a idade dos jogos e brincadeiras em diferentes épocas históricas. Assim, a infância tem sua especificidade e não pode ser considerada apenas como uma preparação para a vida adulta. Independente de sua condição social, a criança tem seus brinquedos, brincadeiras e jogos preferidos que devem ser respeitados pelos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo da pesquisa acerca da história da infância, pode-se perceber que a criança não era tratada de forma diferente dos adultos por muito tempo. A infância, apesar de ser vista como representação dos adultos com o passar do tempo, abrange o sentido de uma subdivisão em fases mais específicas. Considera-se que houve muitos avanços na atualidade, como o reconhecimento da criança como cidadã, sendo valorizada pelos adultos. Além disso, os pais e educadores passam a ver cada vez mais o brincar e/ou jogar como um meio que ajuda a educar as crianças. Portanto, além de aprendizagem de conteúdos diversificados, os jogos e brincadeiras promovem desenvolvimento integral em todas as suas dimensões: motora, cognitiva e afetiva. Por meio da brincadeira e/ou jogo, a criança apropria-se do mundo adulto, onde estabelece símbolos e significados, desenvolve a memória em ação, a imaginação e a fala.

2667

Outro fato relevante é que a Revista do Ensino contribuiu muito na prática do professor, como uma ferramenta de indicação de quais práticas corporais que poderiam ser realizadas nas aulas pelas crianças. Considera-se que os artigos publicados sobre “o jogo” na Revista do Ensino foi uma forma de direcionar as aulas de Educação Física quanto à importância da inserção e a prática dos jogos nas escolas, nessas proposições, além de contribuir na vida social dos alunos, também seria uma forma de preparar os alunos a se tornarem adultos.

FONTES PESQUISADAS REVISTA DO ENSINO. Belo Horizonte: Imprensa oficial do Estado de Minas Gerais, 19251940. Arquivo Público Mineiro. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARIÈS, P. História Social da Criança e da Família. Trad. Dora Flaksman. 2ª. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2011. BICCAS, M. S. O impresso como estratégia de formação: Revista do Ensino de Minas Gerais (1925-1940). Belo Horizonte: Argvmentvm, 2008. DOHME, V. Atividades Lúdicas na educação: o caminho de tijolos amarelos do aprendizado. 6 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. FARIA, M. F. A Educação Física na Revista do Ensino: Produção de uma disciplina escolar em Minas Gerais (1925-1940). Dissertação (Mestrado em Educação). Faculdade de Educação da UFMG. Belo Horizonte, 2009. Disponível em: http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/bitstream/handle/1843/FAEC855TF2/disserta o_miguel_fabiano.pdf?sequence=1. Acesso em 10 de Dezembro 2014. HALL, S. A identidade cultural na pós- modernidade. Tradução Tomaz Tadeu da Silva, Guaracira Lopes Louro-11. Ed., 1. reimp,- Rio de janeiro: DP&A, 2011. KULMANN JR, M.; FERNADES, R. Sobre a história da infância. In: FILHO, L. M. F (org). A infância e sua educação: materiais, práticas e representações (Portugal e Brasil). Belo Horizonte: Autêntica, 2004, p. 15-33. MUKHINA.V. Psicologia da Idade Pré-Escolar. Martins Fontes. São Paulo 1996. NASSIF, L. E. O conceito de interesse na Psicologia Funcional de Edouard Claparède: da chave biológica à interpretação interacionista da vida mental. Belo Horizonte, 2008. Tese (Doutorado em Educação)-Faculdade de Educação, UFMG. Disponível em:

2668

http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/bitstream/handle/1843/FAEC84KPDW/2000000 143.pdf?sequence=1. Acesso em 01 de Agosto 2015. SOARES, C. L. Educação Física: raízes européias e Brasil. 3 ed- Campinas, SP, autores associados, 2004. VAGO, T. M. Da ortopedia à eficiência dos corpos: a Gymnastica e as exigências da vida moderna (Minas Gerais, 1920-1930). In: VAGO, T. M. Histórias de educação física na escola. Belo Horizonte: Mazza. Edições, 2010, p. 51-69. VAGO, T. M. Educação Física na Revista do Ensino de Minas Gerais (1925-1935): Organizar o ensino, formar o professorado. In: VAGO, T. M. Histórias de educação física na escola. Belo Horizonte: Mazza. Edições, 2010, p.71-104.

1

CF. REVISTA DO ENSINO, n. 6, agos. 1925, p. 152-153. Arquivo Público Mineiro.

2669

OS ÍNDIOS DO SUL DA BAHIA E A POLÍTICA DE PACIFICAÇÃO E ATRAÇÃO (1910-1911) Talita Almeida Ferreirai Resumo: Este trabalho busca analisar a implementação da política indigenista do Serviço de Proteção ao Índio e Localização dos Nacionais no estado da Bahia entre os anos de 1910 a 1911. Neste sentido, interessa-me investigar as primeiras ações dos funcionários do Serviço na tentativa de estabelecer contato com os grupos indígenas Camacan e Patachó que viviam dispersos no sul do Estado, o objetivo era “pacifica-los e atrai-los” para aos postos onde o SPILTN colocaria em prática a “ação civilizadora”. Partindo do pressuposto de que os povos indígenas são protagonistas de suas histórias, este trabalho evidencia as atuações dos grupos indígenas frente a esse processo de pacificação e atração no sul da Bahia. Palavras-chave: política indigenista, povos indígenas, sul da Bahia.

Abstract: This paper intends to analyze the implementation of the Indian politics of the Serviço de Proteção ao Índio e Localização dos Trabalhadores Nacionais (Indian Protection Service and Placing of the National People - SPILTN) in the state of Bahia between 1910 and 1911. Keeping that in mind, I am interested in investigating the first SPILTN employees’ actions on the attempt of establishing contact with the Camacan and Patachó Indigenous groups. These groups used to live scattered throughout the south of the State, and the goals of these actions were to “pacify and attract them” to the facilities in which the SPILTN would work on the “civilizing action”. Taking for granted that the Indigenous peoples are the authors of their own stories, this paper shows the actions of the Indian groups facing this pacifying and attraction process in the south of Bahia. Keywords: Indigenist Policy, Indigenous Peoples, South of Bahia

No contexto da Primeira Republica do Brasil, o Estado elaborou uma nova política indigenista objetivando tutelar, civilizar e incorporar definitivamente os índios considerados “arredios” à sociedade brasileira. Nesse sentido, em junho de 1910 foi criado o Serviço de Proteção ao Índio e Localização dos Trabalhadores Nacionais - SPILTN, através do Decreto de Lei nº 8.072ii. Vinculado ao Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio – MAIC, esse órgão foi fortemente influenciado pelas ideias positivistas, propondo em seu programa a transformação dos indígenas em trabalhadores nacionaisiii.

2670

O SPILTN teve como primeiro diretor o tenente-coronel Cândido Mariano da Silva Rondon, membro do Apostolado Positivista do Brasil e adepto das concepções de Auguste Comteiv. Acreditava que os povos indígenas tinham seu lugar na escala evolutiva da humanidade, pois se encontravam em estágios inferiores da civilização v. Portanto, deveriam “evoluir” conforme a “marcha da sociedade” colaborando com o “progresso da nação” vi. Concepções de “civilização”, “progresso”, “evolução” faziam parte do repertório das ideias positivistas e suscitaram debates na sociedade que fundamentaram a elaboração da política indigenista republicana estabelecida com inauguração do SPILTN vii. Com a finalidade de pacificar diversas regiões de fronteira através da política tutelar sobre os povos indígenas, o SPILTN foi organizado como aparato administrativo burocrático estatal e instalado em vários locais estratégicos do país. Concordamos com Souza Lima na sua obra “Um Grande Cerco de Paz”, quando o autor, a partir de uma análise estrutural do SPILTN e de suas ações, denominou de “poder tutelar” o monopólio exercido pelo estado sobre as populações indígenas e seus territórios. Trata-se de um poder com características peculiares, mas que apresentou continuidades lógicas e históricas de controle sobre as populações indígenas viii. Segundo o autor, esta forma de poder do Estado, denominada tutelar, pode ser entendido como um modo de integração política e territorial executado por um aparelho estatizado e atua a partir de um complexo de redes sociais e relações que o constituem e busca se representar como nacional em diversos tempos e entre múltiplos e diferentes segmentos sociaisix. Dessa forma, Lima evidencia que o poder tutelar exercido sobre os índios é compreendido como uma forma transfigurada de “guerras de conquista”, considerando a “conquista” como um empreendimento que implica certas dinâmicas, dentre elas: a fixação dos conquistadores nos territórios obtidos através da guerra e o controle sobre seus recursos e finalidades econômicas. Também envolve a redefinição social, política e cultural das unidades sociais conquistadas e a construção de alianças no âmbito das populações submetidas x. Segundo o autor, SPILTN foi o primeiro aparelho de poder do Estado organizado para gerenciar a relação entre os grupos indígenas, diversos grupos sociais e demais aparelhos de poder. Na Bahia, o SPILTN passou a atuar logo após a sua fundação em 1910. Alguns documentos administrativos revelam que, neste mesmo ano, o engenheiro militar Pedro Maria Trompowsky Taulois de Florianópolis foi nomeado primeiro inspetor do órgão no Estado. Dirigiu-se a Bahia com a responsabilidade de organizar a inspetoria, estabelecer os primeiros contatos com os índios e fundar os postos de atração.

2671

Pedro Taulois, comprometido com a missão que lhe fora confiado por Rondon, em dezembro de 1910, inaugurou em Salvador a inspetoria do SPILTN. Com a finalidade de obter o sucesso na empreitada de pacificar as regiões de conflito no Estado, Pedro Taulois empenhou-se em ampliar sua rede de contatos. Além de se apresentar às autoridades, constava entre suas atividades iniciais fazer a propaganda em defesa dos ideais do SPILTN: “No intuito de orientar os bem intencionados, desfazendo injustos preconceitos contra taes populações, tenho procurado nas palestras individuaes e bem assim em reunião publica realizada no Conselho Municipal da Vila de Rio de Contas, a qual compareceram todos os bons elementos sem distinção de partidos políticos [...]xi.

De acordo com Souza Lima, as alianças estabelecidas nos Estados compõem mecanismos capazes de manter a existência do SPILTN. Era de grande valia obter desde o apoio de políticos, fazendeiros e pequenos colonos, visto que as alianças locais eram um suporte logístico para manutenção e avanço do processo de pacificação xii. O inspetor Pedro Taulois, antes de iniciar os trabalhos de campo no interior do Estado, em dezembro de 1910, foi informado por Apollinario Frot, delegado de Terras e Minas do 15° Distrito, acerca dos grupos indígenas que encontraria no sul da Bahia: (...) os índios habitam a parte sul do Estado, vivendo os Mongoyos e Patachós, uns no afluente do rio de Contas de nome Grungugy e seus (...) tributários que nascem do lado Norte da serra deste nome e nas vertentes do rio Cachoeira, ao sul da serra Itararacá e nas suas (...) correrias vão até as cabeceiras do rio Salsas. (...) Parte dos índios Machacaris vivem nas cabeceiras dos rios Jucurucú e Itanhim. Alguns índios Boruns resto de um antiga tribus mais conhecida pelo nome de Naquinanuc são encontrados nas vertentes orientais dos Aymorés e tributários do rio Itanhim e outros rios.” A população indígena foi assim estimada: “Mongoyos e Patachós 200 a 300 famílias; Machacaris 60 a 80, o que (...) dá 1800 almas.” O inspetor obteve também o relato da existência de “uma povoação chamada Uruba, entre Gongogy e Bôa Nova, que tem sido várias vezes atacada pelos índios Patachós pretos e Camacans de olhos azuisxiii.

Neste documento, são citados diversos grupos: Mongoyos, Patachós, Machacaris, Boruns descendentes de um antigo grupo de Naquinanuc, Aymores, Camacansxiv, formando uma população de aproximadamente 1800 pessoas que viviam espalhadas no sul do Estado. Cabe destacar que neste levantamento não foram mencionados os índios de antigos aldeamentos, como os índios de Olivença e de Ferradas. A informação refere-se aos grupos “dispersos” apresentados na documentação como “nômades”, “errantes” e/ou “bravios”. Conforme Sonia Otero Coqueiro, na documentação produzida pelo

SPI,

principalmente nos relatórios que abordam as expedições e os trabalhos de atração e pacificação, aparecem poucas referências aos nomes das etnias indígenas, e quando citadas, nem sempre correspondem às autodenominações do grupo. Nestes documentos, as informações sobre indígenas são geralmente

genéricas, demonstrando, por um lado, a pouca

2672

preocupação do Serviço com a diversidade étnica, cultural e linguística dos índios da região, e, por outro, a tendência do órgão em criar uma concepção genérica de índioxv. Analisando a concepção de índio para o SPILTN, Souza Lima ressalta que o órgão compreendia os índios como um estrato social transitório que seriam incorporados na categoria de “trabalhadores nacionais”. Salienta ainda, que para o SPILTN, os povos indígenas não eram dotados de histórias próprias, de hábitos que os diferenciavam da comunidade nacional e os singularizavam entre si xvi. Na documentação analisada, constatei que poucas vezes são citados os grupos étnicos, geralmente o nome “índio” é empregado no sentido de homogeneização das diferenças étnicas. Entretanto, interessa neste trabalho ler a documentação a contrapelo e evidenciar os nomes dos grupos étnicos quando aparecem nas fontes. Mesmo considerando que os etnônimos nem sempre são precisos na documentação e tampouco correspondem necessariamente aos nomes pelos quais os índios se reconheciam, visto que foram atribuídos a partir de um olhar externo sobre os povos independentes que viviam no sul da Bahia. Portanto, é importante fazer o mapeamento dos etnônimos e avançar na compreensão acerca da complexidade das relações interétnicas que existiam naquela região. Após ser informado acerca dos grupos indígenas que encontraria na região sul do estado, Taulois preparou a primeira expedição para o interior ainda no mês de dezembro de 1910. O inspetor optou por iniciar seu trabalho pela Vila do Rio de Contas, conforme havia aconselhado algumas autoridades, a razão seria não apenas pela facilidade do transporte direto da capital para a Vila, mas também, devido a proximidade com os grupos indígenas “arredios”. Sendo assim, interessava ao agente do órgão, iniciar seus trabalhos pela região do estado da Bahia com maiores incidências de conflitos entre índios e não índiosxvii. De acordo com Souza Lima, o principal interesse do SPILTN era pacificar os índios considerados “selvagens”, as razões eram diversas: alguns destes povos se encontravam em estado de guerra com a população não índia, sendo assim, eram considerados obstáculos à ocupação do interior. Mas, sobretudo, o interesse pelos índios “arredios ou bravos” partia da concepção de que estes eram povos primitivos, baseado num paradigma evolucionista subjacente às ideias positivistas que norteavam o órgão, sendo assim, ofereciam ao SPILTN “melhores oportunidades para o trabalho de civilização” xviii. Interessado em pacificar os grupos indígenas “hostis” do estado da Bahia, Pedro Taulois dirigiu-se a Vila do Rio de Contas ainda no mês de dezembro de 1910. Entretanto, ao chegar no povoado foi obrigado a adiar a sua expedição e regressar à Salvador, pois devido a enchente do rio, os canoeiros recusavam-se percorrer o Gongogy xix.

2673

No final de janeiro de 1911, Taulois retornou à Vila do Rio de Contas para iniciar a expedição. É importante ressaltar que o inspetor não encontrou interpretes que pudessem auxilia-lo na expedição. Contudo, mesmo lamentando a falta que faria esse funcionário na mediação dos primeiros contato com os índios, Pedro Taulois organizou um grupo de trabalhadores e iniciou a expedição partindo do rio de Contas em direção ao rio Gongogy. Em fevereiro de 1911 o inspetor chegou ao rio Gongogy e estabeleceu acampamento na tentativa de aproximar-se dos índios amistosamente e estabelecer os primeiros contatos xx.

Ações de grupos indígenas diante das táticas de aproximação do SPILTN

Os documentos que nos permitem analisar as ações do SPI no sul da Bahia entre 1910 e 1911, são os relatórios do inspetor Pedro Taulois enviados à Diretoria do Serviço, esses documentos são ricos em detalhes sobre as tentativas de estabelecer contato com os índios, fundar os postos de atração e manter os índios como frequentadores daqueles espaços. Sendo assim, os documentos do SPILTN são fontes historiográficas valiosas que permitem pensar o processo de pacificação e atração, nos primeiros anos de atuação do órgão. Entretanto, por se tratarem de documentos oficiais, é indispensável à crítica historiográfica, analisá-los e inseri-los no contexto da política indigenista nacional. Além disso, mesmo diante de todas as limitações da fonte, é também possível buscar indícios da atuação dos povos indígenas frente ao processo de “pacificação e atração”, apoiando-se na crítica documental e no campo teórico que possibilita pensar os índios como sujeitos sociais no processo de conquista. Analiso abaixo algumas situações relatadas por Taulois que demonstram como os índios “Camacans e Patachós” agiram diante das estratégias da ação protecionista. A primeira ação de Taulois, ao chegar às margens do Gongogy, foi investigar a presença indígena e as relações entre eles e a sociedade envolvente, com o fito de pacificar a região. As primeiras expedições nas matas consistiam em explorar o território e descobrir as rotas de passagens dos índios. Um dos objetivos era espalhar “brindes” na região para demonstrar aos indígenas que suas intenções eram pacificas. A distribuição dos brindes tinha um objetivo muito bem definido: “captar a simpatia dos índios”. Deveriam ser colocados em lugares estratégicos, preferencialmente em rotas de passagem de grupos indígenasxxi. Os brindes, conforme Lima, constituem parte da tática de atração do SPILTN e são elementos simbólicos “de uma tecnologia muito superior à nativa no concernente ao poder de destruição e de resistência militar”. A cada flechada atirada pelos nativos, diante de cada vestígio deixado pelos grupos indígenas, nas beiras dos rios o “pacificador” deveria depositar

2674

brindes, numa encenação de virtudes. A demonstração de boa vontade e generosidade era acompanhada também pelo “desprezo por seu poder de morte” para, a partir daí, “reduzir a resistência” dos nativos à sua presençaxxii. Nesses locais escolhidos foram construídos pelos funcionários do SPILTN “os ranchos”, onde eram depositados para os índios, mensalmente, no máximo três peças de “oferta”. Esses “ranchos de brindes” deveriam ser visitados pelos trabalhadores do Posto no mínimo quatro vezes durante o mês, para averiguar se os índios haviam recolhido as prendas. O inspetor Taulois descreveu em maio de 1911, os primeiros contatos com os índios Camacan no rio Gongogy, onde havia estabelecido o acampamento desde fevereiro, e evidenciou que os índios tinham conhecimento que os agentes estavam lhes seguindo. Entretanto, não houve nenhuma reação agressiva, pois, segundo o inspetor, os índios consideravam os “brindes como prova de amizade”, porém passavam pelos objetos deixados no mato, e não os recolhiam1. Podemos ponderar que os índios perceberam os objetivos pacíficos do grupo, e por isso não os atacaram. Entretanto, aceitar a oferta do SPILTN significava estabelecer contato e naquele momento, os índios desconfiados agiam com cautela, demonstravam que também estavam sondando os agentes do Serviço e por isso não tocavam nos brindes. Em outra passagem, Taulois relata que os índios perceberam a presença dos trabalhadores do SPILTN, antes que os funcionários notassem que o grupo indígena estivesse observando-os de longe e muito discretamente. Da mesma forma, o grupo poderia ter partido sem que os trabalhadores do Serviço percebessem. Mas, ao contrário disso, os índios tornaram notória sua partida. Quando resolveram retirar-se o fizeram dando-nos sciencia, porque assim como nos descobriram sem que os tivéssemos vistos, poderiam partir sem que ficássemos avisados. Esse fato que pouco vale isoladamente, penso ter grande valor, se estudássemos os antecedentes. Naturalmente ainda conservam a tradição das grandes lutas com os brancos, nas quaes sempre foram esmagados, além das continuas batidas de que ainda são vitimasxxiii.

Conforme sinaliza o documento, os índios poderiam atacar de sobressalto os agentes do SPILTN, e se assim fizessem estariam em vantagem, pois constataram a chegada dos funcionários, antes que estes os descobrissem. Contudo, o documento aponta que os índios agiram de forma pacífica, isso demonstra que não queriam conflito. Mas, ao se retirarem da

1

SERVIÇO DE PROTEÇÃO AOS ÍNDIOS. Inspetoria Regional 4. Posto Indígena CaramuruParaguaçu. Ofício. Bahia, 04/05/1911. Microfilme: 190. Fotograma: 141-145. 1 Idem.

2675

área promovendo barulhos, estavam avisando aos agentes que apesar de não optarem pela guerra, também não desejavam estabelecer contato. Taulois descreve outra aproximação dos índios que ocorreu em junho de 1911. Segundo o relato de um trabalhador, dois índios se distanciaram do seu grupo e foram ao local onde se encontravam os lavradores. Taulois afirma que poderiam se tratar de dois chefes indígenas que queriam verificar “a sinceridade das nossas intenções”. Os índios se aproximaram dos funcionários do SPILTN com arcos e flechas na mesma mão, o que indica que não estavam com o instrumento posicionado para atacar, e os olhavam “desconfiados”. Ainda no mesmo mez era informado que um lavrador estando nas roças com outro companheiros, viu passar no aceiro da mesma, os índios, os quaes caminhavam a passos vagarosos, conservando o arcos e as flechas na mesma mão, gesto positivo de amizade, olhando-os um tanto desconfiados sendo então saudados por um dos nossos, nada porém respondendo os índios. Ao retirar-se para casa, verificou que o grosso dos índios tinha seguido outro caminho, tendo se destacado do grupo talvez os chefes que fora verificar a sinceridade das nossas intençõesxxiv.

Este fato novamente evidencia que os índios estavam observando os agentes do SPILTN, e demonstravam receio em estabelecer contato, como demonstra a documentação. Afinal, os índios se aproximaram, mas não responderam a saudação dos trabalhadores. Essa desconfiança dos grupos indígenas é explicada, conforme já demonstrado neste trabalho, pelo histórico de conflitos e violência que os povos indígenas vivenciavam no sul da Bahia. Kelly Silva Prado Andrade ao analisar o processo de instalação da inspetoria do SPILTN na Bahia observou nas ações do órgão, a continuidade da prática histórica de ofertar brindes no processo de estabelecimento de contato. Na sua analise documental, a historiadora atentou para a imagem que os agentes do órgão possuíam dos povos indígenas. Segundo a autora os funcionários do Serviço motivados pela lógica lucrativa de seu contexto social e político, nutriam uma visão ‘simplista e infantilizada’ dos índios, pois, acreditavam que ao receberem as gratificações materiais, como brindes e suprimentos, imediatamente os nativos colaborariam com a política do SPI

xxv

. Entretanto, ao investigarmos as ações indígenas

frente a esse processo de ofertas de brindes, constatamos que os índios não contribuíram automaticamente com as ações do SPI em troca dos brindes. Sendo assim, embora os agentes do SPILTN tivesse uma visão simplista da capacidade indígena, os índios atribuíram sentidos próprios a esse processo e atuavam de acordo com os suas disposições. Outro relato descreve uma ação indígena, no sentido de amedrontar os trabalhadores do SPILTN que roçavam uma capoeira na margem oposta do acampamento, onde seria feita uma plantação com o objetivo de atraí-los para aquela área. [..]os índios vieram onde estavam trabalhando balançaram uma bananeira e bateram algumas pancadas em um pau , o que amedrontou o pessoal que logo pediu a canoa para

2676

se transportar, o que não se realizou, porque me fiz transportar ao local onde tinham estado os índios, demonstrando-lhes assim a inutilidade da fugaxxvi.

Percebemos neste relato, a intenção de alguns índios de amedrontar os funcionários do Serviço. Podemos inquirir que o fato dos índios se deslocarem para o local onde estavam os trabalhadores do Serviço e baterem com um pau na bananeira, quisessem através dessa ação manifestar rejeição a presença e a ação dos agentes, ou talvez demonstrar que eram os donos daquele território. Entretanto, o documento evidencia que os funcionários que acompanhavam Taulois na expedição possuíam medo dos índios. Tão grande foi o pavor que os índios causaram nos trabalhadores, que estes queriam abandonar imediatamente a

região.

Entretanto, Taulois convicto de seus ideais manteve-se firme, demonstrando aos funcionários que não temia aos índios e era desnecessário retirar-se. Os trechos destacados dos relatórios do inspetor Taulois, permitem perceber que enquanto os agentes do SPILTN buscavam pacificar e atrair os índios Camacans nas proximidades do rio Gongogy, estes reagiam de acordo com seus interesses. Toleravam a presença do Serviço, mas no primeiro momento não tocavam nos “brindes”. Alguns índios tentaram amedrontar e afugentar os funcionários, outros davam indícios de que estavam deixando a região. Portanto, a partir da documentação podemos perceber que a presença do SPILTN despertou o interesse dos grupos indígenas que habitavam as proximidades do acampamento, em observar quem eram aqueles homens que se estabeleceram em seu território tradicional, ou seja, os índios estavam acompanhando cada passo dado pelo SPILN e agiam da sua maneira as tentativas de atração. Entre fevereiro e julho de 1911, o SPILTN tentou se aproximação dos índios Patachó e Camacan da região próximas ao rio Gongogy, através da oferenda de brindes. Entre os objetos deixados pelos funcionários do SPILTN nas matas, constavam: facas, roupas, canivetes, espelhos, dentre outros. Os relatórios do inspetor Pedro Taulois, apontam que depois de vários meses tentando estabelecer contato com os grupos indígenas da região e ofertando mensalmente brindes, apenas em agosto de 1911 os indígenas retiram os objetos. (...) Por essa época vos scientificava que tinham retirado os objetos que mais utilidade encontra amtaes como canivetes e pequenas facas, despresando e lançando fora roupas, espelhos.xxvii

Entretanto, os índios escolheram apenas os objetos que desejavam: as facas e os canivetes, ou seja, artefatos de utilidade na mata, e rejeitaram espelhos e roupas. Sendo assim, ao retirar os brindes depositados pelos agentes do SPILTN, os índios começavam a transformar suas culturas e tradições. Esse processo se aprofundaria ainda mais

2677

com

a territorialização desses povos, visto que, enquanto buscavam atrair os índios, os funcionários do Serviço preparavam um “posto” para sedentarizar esses grupos “dispersos”. O objetivo do SPILTN era após estabelecer o contato, conduzir os índios aos “postos” onde seriam implementadas um conjunto de ações com o intuito de “civilizá-los e transformálos em trabalhadores rurais, e na perspectiva da perda cultural seriam incorporados a sociedade nacional. No posto conviveriam índios e funcionários do Serviço e essa seria a segunda fase da ação tutelar, o momento em que o SPILTN colocaria em prática a “ação civilizadora”. Entretanto, partimos do pressuposto de que esses índios são atores de sua trajetória histórica, sendo assim, evidenciar o agenciamento dos índios “Camacan e Patachó” no processo de pacificação e atração no sul da Bahia é compreender que diante do processo de imposições os índios se adaptaram, reelaboraram suas tradições e identidade. Maria Regina Celestino de Almeida reafirma que antropólogos e historiadores ao analisar situações de contato tem buscado revisar conceitos básicos, dentre eles a noção de cultura. Inicialmente compreendida como “fixa”, o conceito de cultura passou a ser analisado a partir de uma perspectiva histórica, como dinâmica e flexível, consequência de um processo de contínua articulação entre tradições e novas experiências dos agentes envolvidos, possibilitando perceber a alteração cultural não apenas sob a perspectiva da perda de cultural, mas a partir do seu dinamismo, “mesmo em situações de contato extremamente violentas"xxviii. Pensar a atuação indígena diante dos processos de pacificação e atração é reavaliar o papel que os índios desempenharam na história do Brasil em oposição a uma historiografia que os colocava como coadjuvantes do processo histórico e os reduziam a vítimas do processo de conquista. Esta tarefa tornou-se possível a partir da aproximação entre a história e antropologia, que possibilitou, através de novas abordagens teóricas e metodológicas, revisar o lugar dos índios na história da América, desconstruindo a imagem de povos inertes, para compreendê-los como sujeitos atuantes em todo o processo histórico. Como salienta John Monteiro, através de novas fontes e novos olhares sobre a documentação, as pesquisas históricas das últimas décadas têm buscado reescrever a história da América indígena, ressaltando adaptações, transformações e construções de identidadexxix. Sendo assim, é possível perceber, na documentação apresentada as iniciais tentativas do SPILTN de contatar e pacificar os indígenas “arredios” no sul da Bahia, as primeiras expedições, a tática de ofertas de brindes e todas as estratégias que compreendiam ações pacificadoras. Além disso, este artigo não está restrito apenas em analisar as ações do

2678

SPILTN, mas também em compreender a perspectiva de grupos indígenas diante das táticas de pacificação e atração. i

Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Bolsista CAPES. Email: [email protected]. Orientadora: Profª. Drª. Vânia Maria Losada Moreira. ii Em 1918 o SPILTN passou a ser chamado de Serviço de Proteção ao Índio-SPI. iii FREIRE, Carlos Augusto da Rocha; GURAN, Milton. Primeiros Contatos: Atrações e Pacificações do SPI. Rio de Janeiro: Museu do Índio, 2010, p.17. iv Sobre Rondon ver: FREIRE, Carlos Augusto da Rocha (org.) Memória do SPI: textos, imagens e documentos sobre o Serviço de Proteção aos Índios (1910-1967). Rio de Janeiro: Museu do Índio - FUNAI, 2011. v Conforme SCHWARCZ, os evolucionistas sociais defendiam que a cultura se desenvolveu em estágios sucessivos, entendidos como obrigatórios a partir de organizações econômicas e sociais específicas, que toda a humanidade deveria passar, no campo hierárquico do mais simples ao mais complexo. Ou seja, toda humanidade deveria percorrer pelas mesmas etapas de progresso evolutivo. Sobre o assunto ver: SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças – Cientistas, Instituições e Questão Racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p 57 e 58. vi FREIRE, Carlos Augusto da Rocha. Op. cit., 2010, p.17. vii Para aprofundar o contexto de criação do SPILTN, ver: GAGLIARDI, José Mauro. O Indígena e a República. São Paulo: HUCITEC, 1989. viii LIMA, Antônio Carlos de Souza. Um Grande Cerco de Paz: Poder tutelar, indianidade e formação de Estado no Brasil. Rio de Janeiro: Vozes, 1995, p.47 a 62. ix LIMA, Antônio Carlos de Souza. Op. cit., 1995, p. 42. x LIMA, Antônio Carlos de Souza. Op. cit., 1995, p 47-62. xi SERVIÇO DE PROTEÇÃO AOS ÍNDIOS. Inspetoria Regional 4. Posto Indígena Caramuru -Paraguaçu. Relatório. Bahia, 30/031911. Microfilme: 190. Fotograma: 127-137. xii LIMA, Antônio Carlos de Souza. Op., cit., 1995, p.169. xiii SERVIÇO DE PROTEÇÃO AOS ÍNDIOS. Inspetoria Regional 4. Posto Indígena Caramuru-Paraguaçu. Relatório. Bahia, 28/12/1910. Microfilme: 190. Fotograma: 82-89. xiv Optei por utilizar os etnônimos indígenas da forma como aparecem escritos na documentação. xv COQUEIRO, Sonia Otero. Povos indígenas no sul da Bahia: Posto indígena Caramuru-Paraguaçu (19101967). Sonia O. Coqueiro (0rg.). Rio de Janeiro: Museu do Índio, 2002. xvi LIMA, Antônio Carlos de Souza. Op. cit., 1995, p. 120. xvii SERVIÇO DE PROTEÇÃO AOS ÍNDIOS. Inspetoria Regional 4. Posto Indígena Caramuru-Paraguaçu. Relatório. Bahia, 07/01/1911. Microfilme: 190. Fotograma: 138-140. xviii LIMA, Antônio Carlos de Souza. Op. cit., 1995, p.125. xix SERVIÇO DE PROTEÇÃO AOS ÍNDIOS. Inspetoria Regional 4. Posto Indígena Caramuru -Paraguaçu. Relatório. Bahia, 30/031911. Microfilme: 190. Fotograma: 127-137. xx SERVIÇO DE PROTEÇÃO AOS ÍNDIOS. Inspetoria Regional 4. Posto Indígena Caramuru- Paraguaçu. Relatório. Bahia, 30/03/1911. Microfilme: 190. Fotograma: 127-137. xxi SERVIÇO DE PROTEÇÃO AOS ÍNDIOS. Inspetoria Regional 4. Posto Indígena Caramuru-Paraguaçu. Ofício. Bahia, 04/05/1911. Microfilme: 190. Fotograma: 141-145. xxii LIMA, Antônio Carlos de Souza. Op. cit., 1995, p.171. xxiii SERVIÇO DE PROTEÇÃO AOS ÍNDIOS. Inspetoria Regional 4. Posto Indígena Caramuru-Paraguaçu. Relatório. Bahia, 05/09/1911. Microfilme: 190. Fotograma: 162-185. xxiv Idem. xxv ANDRADE, Kelly Silva Prado. Trocadilhos Étnicos: A política indigenista, suas resistências e interpretações no sul da Bahia. -1926-1938. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal da Bahia. SalvadorBA, 2014, p.43. xxvi SERVIÇO DE PROTEÇÃO AOS ÍNDIOS. Inspetoria Regional 4. Posto Indígena Caramuru-Paraguaçu. Ofício. Bahia, 04/05/1911. Microfilme: 190. Fotograma: 141-145. xxvii SERVIÇO DE PROTEÇÃO AOS ÍNDIOS. Inspetoria Regional 4. Posto Indígena Caramuru-Paraguaçu. Relatório. Bahia, 05/09/1911. Microfilme: 190. Fotograma: 162-185. xxviii ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os Índios na História do Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010, p. 22. xxix MONTEIRO, John Manuel. Tupis, Tapuias e Historiadores: Estudos de História Indígena e do Indigenismo. Tese de livre docência. Unicamp, 2001, p.1 a 5.

2679

Iconografia da Espera: profecia e política nas imagens da Restauração (1640-1668) Talita N Sanchez1

Resumo: Neste texto nos perguntamos se podemos falar em uma retórica visual nos seiscentos ibérico, tendo em conta a produção e circulação de repertórios visuais, que se configurava como um meio de dar forma aos sentidos da espera política em relação às coroas. Ao propormos o estudo de imagens no contexto da Restauração pretendemos identificar os elementos visuais que emulavam os conceitos de poder, soberania, expectativas e providencialismo. Palavras-Chave: Restauração; Portugal; Iconografia;

Iconography of Wainting: prophecy and politics in the images of the Restoration (1640-1668)

Abstract: In this paper we ask ourselves if we can talk about a visual rethoric in the Iberian six hundreds, taking into account the production and circulation of visual repertoires, which was configured as a means of giving form to the directions of waiting policy in relation to the crowns. By proposing the study of images in the context of Restoration we intend to identify the visual elements that emulated the concepts of power, sovereignty, expectations and providentialism Keywords: Restoration; Portugal; Iconography;

1

Mestranda em História pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), sob orientação do Prof. Dr. Luís Filipe Silvério E-mail: [email protected]

2680

Nesse artigo discutiremos três gravuras produzidas entre 1641 e 1644 tendo em mente a necessidade de historicizá-las, pois foram produzidas a partir de regras e práticas específicas na conjuntura retórica e visual da Restauração Portuguesa. Inicialmente apresentaremos um breve panorama a respeito das formulações políticas sobre o futuro do reino luso destacando as tópicas proféticas que compuseram o repertório providencialista em questão (como o episódio do Milagre de Ourique). Em seguida abordaremos questões relativas à profecia (na figura de Bandarra) enquanto discurso retórico que possuía um conjunto de representações e símbolos cuja composição era feita pela máxima horaciana do ut pictura poesis. Para concluir destacaremos a emulação enquanto prática retórica-visual de interpretação, compreensão e projeção de interesses políticos no seiscentos luso. Entre finais do século XVI e meados do XVII houve uma grande movimentação política em Portugal e Espanha em torno das expectativas em relação a quem seria a cabeça da monarquia lusitana, dada a crise pelo desaparecimento de dom Sebastião em 1578. Muitas eram as propostas políticas que conjugavam, em suas formulações, concepções providencialistas sobre o futuro e leituras proféticas sobre o passado. Com a efetivação da União das Coroas Ibéricas no período de 1580 a 1640 a dinastia dos Habsburgos reinou simultaneamente em Espanha e em Portugal. A discussão em torno da legitimidade do poder dos Filipes em Portugal e das expectativas de retorno de um rei luso, contudo, não se arrefeceu durante esses sessenta anos. Essas propostas políticas eram formuladas por uma variedade de discursos nos quais se percebe níveis de descontentamento a respeito da ausência de um rei e de uma corte estabelecidos em Lisboa para o equilíbrio da monarquia lusitana e a efetivação do destino grandioso de Portugal – que teria sido prometido em 1139, no Milagre de Ourique. Com a crise política, a insatisfação de nobres distantes da vida palaciana, os altos encargos fiscais, a centralização de poder proposta pelo conde-duque de Olivares (a serviço dos Habsburgos castelhanos) e a redução de autonomia administrativa de Portugal, teve início um movimento político que tentava a restituição de uma cabeça “natural” para o reino. A Restauração de Portugal se deu em 1640 com a invasão do Paço da Ribeira e a dominação dos representantes de Filipe IV que ali estavam instalados1. Em seguida d. João IV, duque de Bragança, foi aclamado, dando início à dinastia dos Braganças. Para além das ações políticas realizadas a fim garantir a inviolabilidade e extensão do reino e seus domínios ultramarinos, a legitimação do novo rei se consolidou também a partir

2681

de um repertório textual e visual já conhecido tanto em Portugal quanto em

Espanha.

Interessa destacar, especialmente, a recorrência constante às formulações proféticas como legitimadoras do poder real da casa dos Braganças2 que nos informa sobre a prática interpretativa dos seiscentos, cujo ponto de partida era o pressuposto de ser Deus a causa primeira e o Homem a segunda, de modo que todos os acontecimentos divinos seriam orquestrados pela vontade divina a fim de se cumprir um destino predeterminado e profetizado pela autoridade divina. Nesse cenário, a intenção era a de justificar a independência e autonomia lusa em relação ao domínio filipino a partir das referências culturais já existentes. Quando da Restauração de Portugal, a casa dos Braganças desejava associar ao seu poder uma imagem “justa e legítima” de sua jurisdição sob a coroa. Para tanto as representações escritas, imagéticas e as homílias deveriam ter “(...) por referência fundamental a crença na intervenção constante dos céus, que seria o recurso discursivo mais propício para a legitimidade dos atos advindos do primeiro de dezembro de 1640”3. Assim, no decorrer dos esforços de legitimação da dinastia Bragança durante os anos de 1640, a partir da aclamação de d. João IV, até 1668, com o Tratado de Lisboa, que reconheceu, finalmente, a independência de Portugal, uma série de imagens foi produzida para emular ideias políticoproféticas. Havia então, segundo Fernando Bouza, uma “trindade comunicativa” 4 a partir da qual as esferas auditiva/oral, visual e escrita se referenciavam. Durante o processo da restauração do poder em Portugal, de 1640 a 1668, o tempo e a ação humana estavam condicionados pela percepção da presença e providência divina, de modo que religião e política, Igreja e Monarquia, partilhavam de repertórios cuja origem era a tratadística clássica e religiosa. A “exaltação messiânica”5, na interpretação de Jacqueline Hermann, seria fruto de aspectos culturais de origem judaica que, aliadas às expectativas políticas do período resultaram no movimento sebastianista e nos diversos messianismos régios provenientes da espera de um rei de origem lusa. Após 1580, com o início da União Ibérica, o episódio do Milagre de Ourique – a origem mítica do reino lusitano – foi requisitado e reformulado amplamente. A crença no milagre se definia como um topos da intervenção divina em relação aos destinos de Portugal.

2682

Figura 1: Gravura do Milagre, impressa na capa da Crônica de D. João I, de Fernão Lopes, na edição de 1644. [fonte: site Biblioteca Nacional Digital]

2683

A partir da leitura da Figura 1 percebemos que a profecia é balizada em autoridades bíblicas e em uma “estrutura recortada” de narrativa 6: a centralidade de Cristo, as margens preenchidas por anjos e a posição humilde de Afonso Henriques. Na imagem vemos Afonso Henriques ajoelhado diante de Cristo na cruz, despido de luvas, descalço, sem elmo e sem espada que estão à sua frente, depositados no chão. Nessa estrutura visual do Juramento, Cristo está ladeado por figuras angelicais que estão à postos para coroar aquele que se ajoelha em oração. A representação do Milagre, nessa imagem, se dá sem a mediação de um profeta, pois a própria profecia se efetiva na narrativa visual. Dessa forma, a profecia se configura como um discurso que se torna real como prática de determinado tempo, se caracterizando por ser um aviso, um anúncio sobre um futuro contingente. O profeta, portanto, só pode deliberar o que é o bem comum, justo e honesto e, por isso, tem força de lei como fundamento divino – de tal forma que o profeta é um ser de ações políticas. Quando uma questão profética se torna política fica mais determinada e prevê a superação do estado presente. Disso podemos inferir que a profecia é um discurso retórico e político construído a partir de representações de tópois reconhecidos e partilhados. Visualmente a imagem do profeta Gonçalo Annaes Bandarra, Figura 2, parece desligalo de suas origens humildes e seu ofício de sapateiro a fim de coloca-lo numa posição hierárquica de letramento e autoridade política7. O profeta que profetizava sobre a vinda do Encoberto e sobre o destino de Portugal como reino universal baseado em suas interpretações do Antigo Testamento aparece sentado em uma cadeira com grande espaldar, à sua frente vêse suas profecias escritas e alguns outros livros que poderiam atestar sua autoridade profética. Sua ligação com a monarquia lusa se dá pela presença do brasão à direita da gravura. Nessa composição é evidente a posição de profeta-letrado de Bandarra e sua ligação com a monarquia lusitania, indicando uma retórica específica para comunicar a profecia por meio do compartilhamento do código que permite a comunicação. A categoria representação é composta, segundo João Adolfo Hansen, por “articulações e referências de sistemas simbólicos e contemporâneos como cerrada unidade de metafísica, teologia, política, ética e retórica escolasticamente doutrinadas”8. É necessário discutirmos essas definições para pensarmos a capacidade e eficácia discursiva da imagem visual nesse contexto em que a profecia é um discurso retórico que maneja um conjunto de representações e símbolos. Com isso pensamos a visualidade como uma linguagem, que possui suas próprias regras, estruturas e lógica. O historiador Bouza

2684

Álvarez nos direciona aos “procedimentos icônicos aplicados à circulação social de impressos e manuscritos nos séculos XVI e XVII”9, e portanto, de profecias políticas. É importante enfrentarmos essas perspectivas já que, nesse período, a concepção e o entendimento de imagem e visualidade se distanciam das nossas percepções da era da superação da reprodutibilidade técnica. Isto é, no século XVII, no limite, tudo era imagem, pois num sistema analógico isso é como aquilo e tudo é representação de Deus. Tudo era imagem porque a coisa representada em si era Deus, indescritível de modo que tudo que fosse representado era figural, metafórico, especular. O principio (Deus) era o verbo e a imagem, uma emulação deste. Havia uma relação analógica entre verbo e imagem que na verdade era uma emulação do inimitável (Deus).

2685

Figura 2: Anônimo, “Bandarra”, 1642, Gravura, in: MANUEL, Homem [Fernão Homem de Figueiredo, pseud.]. Resorreiçam de Portugal e morte fatal de Castella. Nantes: G. do Monnier, 1642, p. 93.

2686

A existência de Deus é o que defini a metafísica organizadora dessa sociedade, permitindo que a representação não fosse apenas um sistema discursivo, mas a resolução do problema da presença da ausência10. Esse modo de produzir e interpretar imagem tinha suas bases no pressuposto horaciano do ut pictura poesis que produzia uma complementariedade entre imagem e texto e não uma subordinação hierárquica. Assim se compunham os emblemas com a finalidade de informar – cujo arranjo era feito em três partes: mote, imagem e verso (a imagem emula o mote e o verso explica a imagem que é emulação do mote). Esses repertórios visuais e proféticos em circulação eram fundamentais para a legitimação da instituição monárquica. Se de um lado o manuscrito facilitava a difusão textual, pois a censura era pensada na tipografia, por outro, carregava também a difusão imagética, uma vez que muitos textos possuíam imagens, de forma que havia a difusão de um repertório visual que poderia ser interpretado por aqueles que tivessem acesso ao material11. Um exemplar dessas considerações de Bouza Alvaréz é o frontispício de 1641, Figura 3, que apresenta um pórtico com quatro colunas: no centro vê-se D. João IV, à sua esquerda D. João III e à direita, D. Dinis. O pórtico é encimado pelas armas reais portuguesas e ladeado por figuras angelicais que carregam palmas. Na base dessa composição há uma representação alegórica da Sabedoria, que era a insígnia da Universidade de Coimbra – instituição que publicizou esse conjunto de textos comemorativos da Restauração12. A fim de interpretar essa composição, o leitor deveria manejar uma série

de

referências a fim de compreender a mensagem política apresentada: a centralidade do retrato de D. João IV enaltece a nova dinastia de reis lusos, ao mesmo tempo que o associa de modo legítimo à ascendência real; além de conferir um caráter de sabedoria por meio da alegoria, que tanto vem da divisa da Universidade, quanto do próprio ato de reclamar D. João IV como rei. Ao vislumbrarmos essas imagens é necessário observarmos, de modo sincrônico e dialógico, a sociedade e suas imagens. Ulpiano Bezerra de Meneses propõe uma História visual, cuja preocupação central não seja a imagem, mas a visualidade, o olhar da sociedade em questão. Conforme sugere o autor sugere13, tentamos considerar a representação imagética em sua dimensão social, da mesma maneira que tentamos pensar a sociedade em suas possibilidades criativas imagéticas Operamos, portanto, essas imagens de modo a compreender como era feita a decodificação de sentidos conceituais do repertório políticoreligioso a partir da interpretação de alegorias, emblemas e metáforas.

2687

Figura 3: Gravura do busto de D. João IV, impressa na capa do texto Invictissimo Regi Lusitaniae Joanni IV, de 1641. [fonte: site Biblioteca Nacional Digital]

2688

BERCÉ, Yves-Marie – O Rei Oculto – Salvadores e Impostores: mitos políticos populares na Europa moderna, IMESP, São Paulo, 2003; FRANÇA, Eduardo D’Oliveira – Portugal na Época da Restauração, HUCITEC, São Paulo, 1997; HERMANN, Jacqueline – 1580-1660: o sonho da salvação, Companhia das Letras, São Paulo, 2000, No Reino do Desejado: a construção do sebastianismo em Portugal, Companhia das letras, São Paulo, 1998; LIMA, Luís Filipe Silvério – O Império dos Sonhos: narrativas proféticas, sebastianismo e messianismo brigantino, Alameda, São Paulo, 2010. 2 AZEVEDO, João Lúcio de – A Evolução do Sebastianismo, Editoria Presença, Lisboa, 1984; BESSELAAR, José Van Den – Sebastianismo: história sumária, Biblioteca Breve, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Lisboa, 1987; HANSEN, João Adolfo – Vieira: tempo, alegoria e história, Brotéria, v. 145, nº 4/5, out/nov 1997; HERMANN, Op. Cit.; LIMA, Op. Cit.; PÉCORA, Alcir - Teatro do Sacramento: a unidade teológicoretórico-política dos sermões de Antonio Vieira. Campinas: Editora da Unicamp; São Paulo: Edusp, 1994. 3 FARIA, João André de Araújo – A “restauração de Portugal prodigiosa”: “milagres” e política no reinado de D.João IV, ANPUH – XXV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – Fortaleza, 2009. p. 5 4 BOUZA apud JORDÁN-ARROYO, María Victoria – Sonhar a História: risco, criatividade e religião nas profecias de Lucrecia de León, EDUSC, São Paulo, 2011. p. 122-23. 5 HERMANN, Jacqueline – As Metamorfoses da Espera: messianismo judaico, critãos-novos e sebastianismo no Brasil colonial. In: GRINBERG, K. (org.) – Os Judeus no Brasil, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2005. P. 87-113. 1

LIMA, Luis Filie Silvério – Imagens e Figuras de um Rei Sonhador: representações do milagre de Ourique e do Juramento de Afonso Henriques no século XVII, História, São Paulo, v. 26, n. 2, 2007, p. 320. 7 FERREIRA, Rafaela Dias Chaves – As Trovas de Bandarra no século XVII: levantamento, comparação e análise das versões impressas e manuscritas e de sua circulação, Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao curso de História da UNIFESP, Guarulhos, 2011 8 HANSEN, João Adolfo. Representações da cidade de Salvador no século XVII. Sibila. Poesia e Cultura. Disponível em: . P. 100. 9 BOUZA ÁLVAREZ, Fernando – Entrevista, Revista Topoi, v. 4, n. 7, jul-dez 2003, p. 357-361. 10 AUERBACH, Erich – Figura, Ática, São Paulo, 1997. 11 BOUZA ÁLVAREZ, Fernando – Corre Manuscrito: una historia cultural del Siglo de Oro, Marcial Pons, Madri, 2001. 12 GONÇALVES, José Jorge David de Freitas – A Imprensa em Coimbra no Século XVII, dissertação de doutorado apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2010. 13 MENESES, Ulpiano T. Bezerra de – Fontes visuais, cultura visual, história visual: balanço provisório, propostas cautelares, Rev. Bras. Hist., Jul 2003, vol.23, nº. .45 6

2689

“POR QUE A CARMEN DE LARA CASTRO?” REFLEXÕES SOBRE HISTÓRIA ORAL E ESCRITA BIOGRÁFICA

Tamy Amorim da Silva*

RESUMO: Carmen de Lara Castro (1919-1993) foi uma mulher paraguaia que lutou contra à ditadura stronista no âmbito na defesa dos Direitos Humanos entre as décadas de 1960 a 1990. Sua trajetória política é objeto da pesquisa de mestrado em História que venho realizando na Universidade Federal de Santa Catarina. Para tanto, durante a investigação foram realizadas uma série de entrevistas, e neste artigo, proponho analisar a entrevista realizada com o jornalista paraguaio Claudio Roberto Paredes buscando responder a pergunta proposta no título do trabalho em questão. Palavras- chave: História Oral. Carmen de Lara Castro. Biografia

ABSTRACT: Carmen de Lara Castro (1919-1993) was a Paraguayan woman who fought against the stronista dictatorship under the defense of human rights between the decades from the 60’s to the 90’s. Her political career is my master's research object in history I have accomplished at the University Federal de Santa Catarina. To this purpose, during the investigation it was carried out a series of interviews, and in this article, I propose to analyze the interview with the Paraguayan journalist Claudio Roberto Paredes seeking to answer the question raised on the title of the work in question. Key words : Oral History; Carmen de Lara Castro; Biography.

INTRODUÇÃO

“Por que a Carmen?”

1

perguntou Claudio Roberto Paredes durante uma entrevista

realizada por mim em maio de 2014 em Assunção/Paraguai. Essa é a questão que permeará o texto entrelaçada pelas discussões da metodologia de História Oral e os estudos biográficos. Carmen de Lara Castro foi uma mulher paraguaia (1919-1993) que durante a ditadura stronista tornou-se “líder” da Comisión de Defensa de los Derechos Humanos, nela atuava denunciando a violência estatal e ajudando presas e de presos e seus familiares. Essa mulher é objeto de minha pesquisa de mestrado que venho realizando na Universidade Federal de Santa Catarina na área de História Cultural. Nela focalizo sua trajetória política fazendo um estudo de memória com pessoas que a conheceram em vida. O

2690

trabalho desenvolvido ao longo da investigação contou com diversas entrevistas orais, jornais digitalizados e documentos do ‘Archivo del Terror’, mas nesse texto focarei somente na discussão com fontes orais. Dentre todas as 22 entrevistas realizadas por mim e usadas para a pesquisa, uma em especial questionou a minha escolha da biografada e propôs deslocar meu olhar, um tanto apaixonado por Carmen de Lara Castro. Esse entrevistado chama-se Claudio Roberto Paredes, jornalista que escreveu diversos livros sobre o Paraguai, dentre eles um intitulado: Mujeres rebeldes por la patria. Nesse livro ele trazia uma mini- biografia de Carmen de Lara Castro e por isso a decisão de entrevistá-lo. Esse artigo, portanto, visa responder a questão posta por Claudio Roberto Paredes, buscando perceber e analisar através dessa entrevista: Por que a escolha de biografar Carmen de Lara Castro e por que não Carmen de Lara Castro, para Claudio Roberto Paredes?. O texto está divido em duas partes que perseguem e cruzam esses questionamentos: 1º- explicita o embasamento da pesquisa e reflexões sobre o método utilizado. 2º- Enfoca nas observações sobre a entrevista com Claudio Roberto Paredes.

A Carmen de Lara Castro que é contada e a memória narrada – reflexões sobre História Oral e biografia

Carmen de Lara Castro é um nome expressivo no Paraguai e representa para muitas pessoas que viveram em épocas das ditaduras civis- militares a luta pelos Direitos Humanos nesse país.2 Esta mulher e um pequeno grupo de intelectuais e políticos fundaram em 1967 a primeira Comissão de Defesa dos Direitos Humanos do Paraguai que tinha sede em sua casa em Assunção. Ainda na década de 1960, foi eleita deputada pelo Partido Liberal Radical – partido de oposição ‘consentida’ ao Colorado, que era o Partido oficial de Alfredo Stroessner. A ditadura stronista teve a duração de 35 anos (1954-1989) e possuiu um caráter legalista com uma democracia falseada ─ com eleições presidenciais e legislativas que deram legitimidade política e base institucional, reordenando o sistema político que já havia passado por demasiadas crises e golpes.3 Na década de 1960, o governo stronista estava consolidado, como afirma a autora Ceres Moraes. Já havia afastado parte da oposição política, abafado os sindicatos e os movimentos estudantis 4. Destaco ainda que os partidos políticos estiveram proscritos antes mesmo desse regime e, que o sentimento anticomunista, já existente no

2691

Paraguai foi reforçado com a lei “Defensa de La Democracia” 294/1955 5 que era usada de forma arbitrária. Além disso, o Estado de Sítio era comumente usado a cada três meses, sendo a lei 294 e o Estado de Sítio os componentes ‘legais’ para perpetrar atos de violência e repressão6. Como sugere Lorena Soler, o stronsimo representou no Paraguai uma ‘modernização conservadora’ que instituiu uma nova estrutura econômica, social e de poder político em que o Estado e o Partido Colorado passaram a intervir na vida paraguaias/os e estrangeiras/os de forma violenta e arbitrária7. Exponho essas informações sobre a ditadura stronista, para apresentar mesmo que brevemente, o contexto político em que Carmen de Lara Castro viveu. A atuação dessa mulher se deu através de duas frentes de ação: a Comisión de los Derechos Humanos del Paraguay e o parlamento, com auxílio do Partido Liberal e setores da sociedade paraguaia, pode realizar denuncias e auxiliar familiares de presas e presos. A partir da explanação, assevero que pesquisa foi pensada a partir de um olhar biográfico que não pretende escrever a história de Carmen de Lara Castro do início de sua vida ao fim, mas intenciona estudar um período datado que é a ditadura civil-militar no Paraguai e sua atuação política. Portanto, não é uma biografia, mas uma vertente dela, uma trajetória. E escrever uma trajetória é uma das experimentações possíveis do gênero biográfico. Mas, por que a escolher Carmen de Lara Castro e como ‘chegar até ela’? A ideia de escrever uma trajetória traz em si uma tentativa de narrar um caminho ou uma experiência datada, sabendo que a escrita jamais irá totalizar uma vida. A escrita segue uma narrativa racional que tem a ver com escolhas da autora e com as fontes selecionadas. Na pesquisa, portanto, parto de um período ‘conhecido’ da vida de Carmen de Lara Castro que é a formação da Comissão de Direitos Humanos em 1967 até sua morte em 1993, que foi sentida e noticiada em jornais paraguaios. Ao estudar a ditadura no Paraguai por meio de entrevistas realizadas pelas professoras Cristina Scheibe Wolff e Joana Maria Pedro, professoras coordenadoras do Laboratório de Estudos de Gênero e História. Deparei-me com a figura de Carmen de Lara Castro. Personagem que despertou a atenção devido ao tipo de atuação e o pouco conhecimento que temos de sua trajetória política. Carmen de Lara Castro, na maioria das vezes é narrada no Paraguai seja em entrevistas, em livros ou em jornais como a ‘Señora Liberdad’ ou ‘ la madriña de presos’, uma mulher que tinha sensibilidade e preocupação com as pessoas que estavam encarceradas − devido sua longa ação em favor dos Direitos Humanos desde a organização em que era presidente. Contudo sua outra atuação desde

2692

política na área legislativa e, até mesmo partidária, é pouco conhecida e explicitada. E foi justamente essa atuação que me chamou atenção em sua trajetória de vida. Portanto, para ‘conhecer’ essa trajetória realizei entrevistas com pessoas que conviveram com Carmen de Lara Castro para perceber e analisar como ela é narrada, e, como se tornou uma personagem recordada ainda nos dias atuais em jornais e revistas paraguaios. As entrevistas são o terreno escolhido para ‘invadir, habitar e vivir’ artificialmente por meio das memórias, o contexto ditatorial em que Carmen de Lara Castro viveu. Nesse sentido, busco compreender como essa mulher, em um período repressivo, conseguiu ascender na política mesmo estando do lado oposto ao regime autoritário de Stroessner, levando em consideração que poucas mulheres participavam da política legislativa no Paraguai naquele período. Destarte, para a incursão na trajetória de Carmen de Lara Castro, a ferramenta da história oral, tornou-se de suma importância, uma vez que possibilita aprender uma ‘outra história’ que não é escrita nos jornais e livros que na maioria das vezes, são laudatórios. Por meio das experiências de vida de cada entrevistada/o e de das lembranças rememoradas, pude ‘conhecer’ o cotidiano de ida as prisões, a família Lara Castro, o Partido Liberal, a Comisión de Derechos Humanos, entre outros assuntos e temas. Claramente, compreendo que a memória narrada é subjetiva,8 seletiva e formada na atualidade, já que é construída ao longo do tempo e das experiências de cada sujeita e sujeito e a importância das entrevistas nessa pesquisa é central visto que permitem encontrar essas narrações do cotidiano, constituir uma trajetória e analisar como Carmen de Lara Castro é contada no Paraguai.

A Entre/vista com Claudio Roberto Paredes1) O rascunho de uma entrevista Alessando Portelli, nos incita a pensar que em uma entre/vista 9 a uma série de fatores que ocorrem, apresentando- a como um momento único e especial. Pois é nela que são estabelecidas por meio do diálogo e de um gravador uma performance/encontro/confronto de alteridades e experimento de igualdade, e é isto que caracteriza uma entrevista e a história oral: o seu caráter dialógico e multivocal.10 Em uma entre/vista somos observadoras e observadas e para que essa experiência de criação ocorra é necessária interação e uma ‘troca’ mútua entre as pessoas que participam dela. É desse modo que compreendo como ocorre uma entrevista e é com esse olhar que analiso a seguinte experiência.

2693

Claudio Roberto Paredes nasceu em Assunção no ano 1954, foi um personagem bastante atuante na oposição ao regime stronista, participou de um grupo de esquerda chamado MOPAL

11

nos fins da década de 1960 - Movimiento Paraguayo de Libertación.

Esteve preso entre os anos de 1974- 1977 quando esse grupo foi desmantelado. Ao sair da prisão organizou e participou de um movimento que encabeçava a luta pelas e pelos presas e presos políticos, chamado: Juventude por los Derechos Humanos. Posteriormente, exiliou - se no Brasil na década de 1980 e, atualmente reside em Assunção. Essa breve exposição da ‘trajetória’ de Claudio Roberto Paredes, serve para ‘conhecer’ e ‘reconhecer’ o entrevistado e os locais em que esse militou e seu lugar de fala: desde a esquerda política e opositor à ditadura stronista. Apesar de ser uma experiência muito rica a proposta do artigo não é contá-la, mas responder a pergunta feita por ele e analisar a entrevista. O contexto de escolha do entrevistado ocorreu devido a leitura de um livro escrito ele, impulsionado pela Secretaría de la Mujer, publicado em 2011 e intitulado: Mujeres Rebeldes por la Patria. Nele, Paredes realiza a biografia de 21 mulheres paraguaias que foram ‘militantes’ durante e após a ditadura stronista, dentre essas mulheres, o autor conta sobre a trajetória de Carmen de Lara Castro.12 No primeiro contato por e-mail que fiz com o entrevistado, expus o desejo de realizar uma entrevista devido à pesquisa que vinha realizando e que havia lido o livro. A resposta de Paredes adensou ainda mais a vontade de entrevistá-lo, pois ele havia trabalhado juntamente com Carmen de Lara Castro desde uma organização de Direitos Humanos. Portanto, além de ter escrito/construído uma biografia de Carmen de Lara Castro, havia conhecido e lutado com ela, dessa forma me pareceu uma pessoa bastante importante para minha investigação. O roteiro de entrevista foi elaborado para pensar e conhecer a trajetória de vida de Claudio Roberto Paredes Roberto, entrelaçando questões específicas sobre a militância de Carmen de Lara Castro, e a escolha dele em escrever uma biografia de Carmen de Lara Castro. A entrevista teve a duração de 1 hora e 53 minutos e teve a participação de Josiély Koerich na época estudante de História, e Lorena Zommer, doutoranda em História, ambas estudam e pesquisam o período da ditadura paraguaia.

2)

Leituras e interpretações da entre/vista

No dia 3 de março de 2014, na sala do Hotel Margaridas, localizado no centro de Assunção, às 20 horas, iniciamos a combinada entrevista. Após quarenta e dois minutos de

2694

intenso diálogo sobre sua trajetória de militante político de esquerda e sobre a ditadura paraguaia. Claudio Roberto Paredes me olhou e perguntou: “por que Carmen? Tendo pessoas fantásticas. Tem pessoas que posso apresentar amanhã mesmo”13. Além de compreender que ele

fez a interrogação no momento propício – levando em consideração que o roteiro da entrevista buscava saber também sobre a trajetória do próprio entrevistado no período da ditadura. Ele lançou a pergunta justamente quando comecei a sobre sua relação com Carmen de Lara Castro. Deste modo, posso pelo menos tirar duas interpretações dessa pergunta feita por Paredes: A primeira diz respeito à geração/alteridade, tendo em vista que sou uma brasileira que não viveu o período da ditadura. Por que uma jovem brasileira estaria interessada em escrever sobre uma mulher paraguaia? A segunda é sobre a própria condição social de Carmen de Lara Castro. Por que, então escolhê-la para biografar? Diferente do que foi escrito em seu livro em que ele a apresenta como uma ‘militante de alma’ que desde o início de sua vida teria lutado pelos ideais do Partido Liberal e contra injustiça. Na entrevista, Paredes expõe Carmen de Lara Castro como uma mulher conservadora, alguém que por estar em uma posição ‘confortável’ devido a seu nível social, poderia lutar pelos Direitos Humanos e, que a atuação dela não seria ‘tão’ presente como narram nos livros e nas entrevistas. Menciono isto para frisar a diferença entre o livro e a entrevista. O livro publicado em 2011 e escrito por Paredes possui um caráter de valorizar e visualizar a luta de mulheres que militaram contra a ditadura, sendo extremamente positivo, levando em conta que foi impulsionado pela Secretaria de Mujeres. Na entre/vista, Claudio Roberto Paredes não teve a mesma pretensão de ser laudatório como no livro. Nessa narrativa de Carmen de Lara Castro feita por Claudio Roberto Paredes ficou expressa sua vontade de deslocar meu olhar para outras mulheres quando enfocou: A coca Lara Castro nunca foi presa. Ela é descendente de Mariscal Estigarribia 14. [Tamy Amorim- sim]. A mulher de Estigarribia, a irmã, é mãe da Coca Lara Castro, ou seja, ela era de uma oligarquia poderosa. [....] Você não está diante de uma heroína, não é uma Olga Benário, certo? Não é a Olga. Aí, é totalmente diferente.15

Ou seja, era uma mulher conservadora e com ideais de uma ‘elite’ política paraguaia liberal. Não foi uma militante de esquerda que buscava modificar o país, tal qual como ele foi. A lógica da narrativa de Paredes era de apresentar outras mulheres, dizendo que havia outras mulheres “fantásticas” que poderia conhecer e até ser apresentada por ele. Talvez estivesse preocupado em apresentar mulheres que não eram conhecidas na história do Paraguai e que teriam realizado algum tipo de resistência a ditadura que não a luta pelos Direitos

2695

Humanos.

O certo é que a ideia de luta pelos Direitos Humanos incomodava Claudio Roberto Paredes que a compreende como uma matriz da direita política que não funcionava na prática. A minha resposta a pergunta de Claudio Roberto Paredes refletia o objetivo e a escolha de por que Carmen de Lara Castro?

T- Eu fico pensando e eu vou te questionar. Por que assim, em várias entrevistas o nome da Carmen aparece. A Carmen como uma mulher que foi fundadora da Comissão de Direitos Humanos. RP- Certo T- Em 67, a criação formal [RP- certo] da comissão e, eu fico me perguntando como ela conseguiria fazer as denuncias, como era fazer denuncias e tomar a frente pelos direitos humanos sendo ela um mulher. Sendo ela uma mulher e fazendo oposição a ditadura Stroessner.

Assim sendo, logo depois da resposta chamei atenção de Claudio Roberto Paredes para a biografia que escreveu sobre Carmen de Lara Castro, no livro Mujeres Rebeldes por la Pátria. Esta indagação já existia no roteiro original da entrevista, mas no momento em que ela foi feita inverteu a questão feita por ele, anteriormente: “ E por que escolhesse a Carmen dentre essas mulheres?”16 Então ele respondeu:

Carmen? Por que tinha esse mérito. Ela teve esse mérito. Teve pessoas que preferiam ficar em silêncio. Por que aqui se ficassem calados não eram perseguidos. Em um outro quarteirão, ai abaixo, tem dois edifícios. Tem um edifício gigantesco uma casa de seguros que era de um partido social. Então, a única coisa que Stroessner pediu a eles era vocês, caladinhos. E quase em frente tinha a maior escrivaninha do país, uma casa de escrivão que faturou uma barbaridade, também ficando em silencio. E a Carmen teve a coragem de não ficar em silencio e teve que enfrentar os caras. Acho que ela tem esse mérito. Ela esta bem nessa lista, estou de acordo e voltaria a fazer.17

De acordo com esse excerto, a escolha de Claudio Roberto Paredes em escrever sobre Carmen de Lara Castro foi pelo fato de ela não “ficado em silêncio”, por isso, a importância de incorporá-la em um livro que abordava a trajetória de mulheres, assim como o peso político e social que ela teve. Carmen de Lara Castro denunciava os maus tratos nas prisões, ia às embaixadas estrangeiras pressionar os órgãos para identificar pessoas presas, auxiliava familiares de desaparecidas e desparecidos e detidas e detidos, além de esconder muitas pessoas em sua casa.18 Toda essa atuação ocorria em uma sociedade que vivia sob a vigilância dos Pyragues

19

e que tinha a tortura como prática cotidiana. Carmen de Lara

Castro, ao contrário do que Claudio Roberto Paredes informou, foi presa algumas vezes por sua militância de denúncia, e teve seus filhos e seu esposo presos em situações diversas. Apesar de ser uma mulher proveniente da ‘elite’ política paraguaia, não deixou de sofrer as

2696

consequências de suas ações contra o regime Stroessner, que possuía um sistema de repressão eficaz que “escolhia” as pessoas para desaparecer, matar, e torturar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesse artigo pontuei algumas questões sobre a pesquisa que venho desenvolvendo no mestrado com a atenção voltada para as fontes orais e para a memória narrada de Carmen de Lara Castro, refletindo sobre o método de história oral e sobre a escrita biográfica. A entre/vista realizada com Claudio Roberto Paredes me deu outro olhar sobre Carmen de Lara Castro que não aparecia em outras entrevistas realizadas, livros, revistas e, até mesmo no livro escrito por ele. Claudio Roberto Paredes longe de idealizá-la, questionou minha escolha em biografá-la e quis mostrar Carmen de Lara Castro como uma mulher normal, só que muito bem posicionada politicamente e que era auxiliada por outras pessoas e grupos, quando recorda da Juventude pelos Direitos Humanos do qual ele atuou. Para ele, Carmen de Lara Castro não foi uma heroína e muito menos da esquerda política, era uma mulher da ‘oligarquia intocável’. A partir do exposto, saliento que nessa pesquisa levo em conta essa condição de ‘Carmen’ como uma mulher que fazia oposição ao regime em uma sociedade machista.20 E, que nesse caso, busco entender as relações e ações dela no período ditatorial: sobre a atuação na Comissão de Direitos Humanos, assim como no Partido Liberal. Tendo em vista que a liderança de ‘Carmen’ no âmbito político era, no mínimo, uma situação nova. Em se tratando de uma sociedade que por muito tempo marginalizou as mulheres do cenário político, sendo que até 1961 o Paraguai não havia incluído leis de direito cívicos para as mulheres. 21 Ao chamar atenção de que ela não foi uma ‘Olga Benário’, uma guerrilheira da esquerda revolucionária, mas uma senhora da ‘elite’ política que tinha ótimos vínculos políticos e econômicos; asseverou que ela teve o mérito de não ficar silêncio e, era uma pessoa que “podia falar” naquele período, anunciando e auxiliando familiares de pessoas detidas e desaparecidas que buscavam notícias sem sucesso.22 * Graduada em história licenciatura e bacharelado na Universidade Federal de Santa Catarina. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História Cultural da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, sob a orientação da Profª. Drª, Cristina Scheibe Wolff. E-mail- [email protected]. ** Gostaria de agradecer a mestranda Eloisa Rosalen e o mestrando Gustavo T. Pontes pelas leituras do texto. 1 PAREDES, Roberto. Entrevista concedida a Tamy Amorim da Silva. Assunção: Paraguai. 03/05/2014. 2 Pessoas entrevistadas que enfatizaram essa importância de referência na luta pela efetivação dos Direitos Humanos realizadas por Carmen C. de Lara Castro: Alfredo Boccia Paz, Guido Rodriguez Alcalá, Cláudio, Jorge Lara Castro, Rosa Palau, Martin Almada, Rafaela Guanes Laino, Luis Alfonso Resck, entre outras/outros. 3 SOLER, Lorena. Paraguay. la larga invención del golpe. Assunção: Arandurã, p. 42, 110, 2014

2697

4

Esse regime ditatorial no Paraguai se utilizou da Doutrina de Segurança Nacional e, de discursos anticomunistas que justificaram a violência do regime, dentro de uma conjuntura interna e externa favorável ao governo stronista, como bem explica Ceres Moraes. No contexto interno: a instabilidade política gerada pela falta de demora cia no país, como também crises econômicas e conflitos em que o país se envolveu e que deixaram marcas ao longo de sua história. Já no externo o cenário de um mundo pós Segunda Guerra Mundial, com conflitos impulsionados pela Guerra fria, no qual foi promovido o discurso anticomunista e a Doutrina de Segurança Nacional. MORAES, Ceres. Paraguai: a consolidação da ditadura Stroesnner 1954-1963. (Coleção História). Porto Alegre: EDIPUCRS, p. 7-10, 2000. 5 Para ter acesso às leis 294/1955: 6 COMISIÓN DE VERDAD Y JUSTICIA. Informe Final Anive haguã Oiko- Síntesis y Caracterizacíon del Regímen. T. 1. Asssunção: Paraguai: J.C. Medina, p. 147, 2008. 7 SOLER, Lorena. Op. Ci.t, p. 42, 110, 2014. 8 PASSERINI, Luisa. A memória entre política e emoção. São Paulo: Letra e Voz, p. 7, 2011. 9 PORTELLI, Alessandro. Op., Cit., 2010; PORTELLI, Alessandro. Tentando aprender um pouquinho: algumas reflexões sobre a ética na história oral, Projeto História, São Paulo, n. 15, p. 13-49, 1997. 10 PORTELLI, Alessandro. Op., Cit., p. 20, 2010. 11 Para saber mais sobre o MOPAL: CESPEDES, Roberto; PAREDES, Roberto. La resistencia armada al stronismo: panorama general. NovaPolis: Assunção, n.8, ago. 2004. 12 O livro está dividido cinco partes que categorizam o ‘tipo ou forma’ de militância política. 13 PAREDES, Roberto. Entrevista concedida a Tamy Amorim da Silva. Assunção: Paraguai. 03/05/2014, p. 8. 14 José Félix Estigarribia era tio de Carmen de Lara Castro. É considerado um herói de guerra por ter lutado na Guerra do Chaco (1932-1935) e foi presidente do Paraguai (1939-1940). 15 PAREDES, Roberto. Entrevista concedida a Tamy Amorim da Silva. Assunção: Paraguai. 03/05/2014, p. 9. 16 PAREDES, Roberto. Entrevista concedida a Tamy Amorim da Silva. Assunção: Paraguai. 03/05/2014, p.10 17 PAREDES, Roberto. Entrevista concedida a Tamy Amorim da Silva. Assunção: Paraguai. 03/05/2014, p.10. 18 Na entrevista de Roberto Paredes ele conta que dormiu muitas vezes na casa de Carmen, pois como era perseguido pela polícia, tinha que se esconder. PAREDES, Roberto. Entrevista concedida a Tamy Amorim da Silva. Assunção: Paraguai. 03/05/2014. Isto também foi evidenciado nas entrevistas de Rafaela Guanes Laino, Alfredo Boccia Paz e Guido Rodriguez Alcalá 19 Informantes da polícia, o significado deste nome em guarani é: pessoa com os pés peludos. Alguém que faz a vigilância, portanto alguém silencioso. PAZ, Alfredo Boccia; PALAU, Rosa; GONZÁLEZ. Es mi informe: los archivos secretos de la policía de Stroessner. Assunção: Servi Libro; Centro de Documentación y Estudios, p. 122, 2006. 20 Algo que deve ser mencionado, é que esse caráter machista de marginalização das mulheres do âmbito político não uma particularidade do Paraguai em relação à América Latina. Cf. VALDEZ, Teresa (Coord.). Mujeres Latinoamericanas em cifras. Paraguay. Chile. 1992. Disponível em:. Acesso em: 05 abr. 2013; 21 SOTO, Clyde. Um hito em el caminho de la ciudadanía feminina. In: MOREIRA, Mary Monte de López, BAREIRO, Line; SOTO, Clyde. Al fin ciudadanas (1961-2011). Assunção, Paraguai: Centro de Documentación y Estudios, 2011; VALDÉS, Teresa. De lo social a lo político- La acción de las mujeres Latinoamericanas. LOM: Santiago, 2000.

2698

Palácios de barro, pedra e ouro: as primeiras casas de governadores nas Minas de Ouro (1703-1710) Tarcísio de Souza Gaspar*

Resumo: a comunicação avalia a introdução e a estadia das primeiras autoridades governamentais no interior das Minas de Ouro, região recém-descoberta e povoada na primeira década do século XVIII. Discutem-se especialmente os conflitos de jurisdição e os demais entraves políticos que dificultaram, nesse momento, a permanência de governadores régios nessa área. Palavras-chave: governadores, palácios, Minas Gerais

Abstract: this paper investigates the first government officials introduction and stay inside the Gold Mines, in Colonial Brazil, newly discovered and populated region in the first decade of the eighteenth century. Jurisdiction and political conflicts were obstacles especially important in the permanence of royal governors in this area. Keywords: royal governors, colonial palaces, Minas Gerais.

A respeito da palavra Palácio nos informa Bluteau “tantas e tão diversas são as etimologias deste nome, que não é fácil determinar qual seja a melhor”. Uns diziam originarse o vocábulo da deusa Pallas, inventora dos edifícios; outros o atribuíam ao gigante Palante, que “não cabia em casas ordinárias”; Santo Isidoro creditava-o ao príncipe Palante, a quem os árcades haviam dedicado a cidade de Pallantea. A versão mais aceita não advinha dos gregos e sim dos romanos, que nomeavam Palácio à casa de Rômulo, onde vivia o imperador Augusto, próximo ao monte Palatino, em Roma. Os pagãos do império chamavam Palácio à morada dos seus “falsos deuses”: Júpiter no “palácio do Céu”; Netuno, no “palácio de cristal”; e Plutão, no “palácio escuro”. Já uma antiga legislação castelhana, “lei de la partida”, traduziu o termo clássico para a linguagem medieval: “Palácio és dicho qualquer lugar do[nde] el Rei se ajunta paladinamente, para hablar com os om[br]es”. O próprio dicionarista concluiu que a palavra aplicava-se comumente às “casas dos Reis & Príncipes”; e “permissivamente” também se dizia “dos suntuosos e magníficos domicílios de senhores grandes”. Quanto a isso havia divergência. Padre Boldonio, por exemplo, considerou imprópria a extensão do nome Palatium às “casas de Príncipes” e até mesmo “às do Sumo-Pontífice”, restringindo-a tão somente ao “Augusto domicílio de um Imperador”. 1 Se na Europa o nome palácio tornou-se distintivo dado às moradas de reis e príncipes, eventualmente aplicando-se às residências de “senhores grandes”, na América Portuguesa o termo foi empregado para designar edifícios que aposentavam os principais dignitários da administração político-militar e religiosa a nível 2699

local, sobretudo governadores-gerais, vice-reis, governadores de capitanias, arcebispos e bispos. Conforme detectou J. B Bury, o domicílio desses funcionários no Brasil refletiu a condição colonial dos domínios governados, muito desvantajosa, mesmo se comparada à de pequenos principados europeus, que não mediam gastos para imitar Versalhes. Sem autonomia financeira, os prepostos viam-se obrigados a contentar-se com a dignidade doméstica que o rei estivesse disposto a conferir-lhes.2 De fins do século XVII até a primeira década do setecentos, quando se processou a ocupação inicial das áreas auríferas, não houve casa ou morada fixa de um governador nas recém descobertas minas de ouro. Artur de Sá e Meneses, capitão-general do Rio de Janeiro, a quem coube averiguar os novos descobertos, fez pelo menos três jornadas ao sertão. 3 Na excursão de 1701, dirigiu-se primeiramente ao Rio das Velhas, na futura Sabará, onde selou com Borba Gato uma rudimentar divisão administrativa do território, repartido em duas áreas mais ou menos distintas: a das Minas Gerais, sob a influência de Garcia Rodrigues Velho; e a do próprio Rio das Velhas, sob a autoridade do Borba.4 O governador permaneceu no distrito até 18 de abril de 1701, conforme atestam as provisões que exarou.5 Seguindo viagem de retorno ao Rio de Janeiro, a 25 de abril achou-se no distrito das Minas Gerais, onde proveu Domingos da Silva Monteiro no cargo de tesoureiro das datas reais. 6 A 7 de junho, já se encontrava na sede da capitania, de onde informou o rei sobre a riqueza dos ribeiros das “minas de Cataguases e Rio das Velhas”.7 Tudo leva a crer que, tanto num quanto noutro distrito, Meneses tenha pousado em casas ou ranchos ofertados por poderosos locais, que assim respondiam pela recepção e pelo sustento do governador. As sucessivas e extensas viagens de Artur de Sá à zona mineradora implicaram em prolongada ausência do litoral, em momento de instabilidade internacional, decorrente da Guerra de Sucessão Espanhola, quando franceses rondavam a Guanabara. Essa e outras causas deram causa à resolução de que os governadores do Rio de Janeiro não mais devessem deixar a cidade para dar assistência nas minas, haja vista a iminente investida de invasores estrangeiros. A ordem, endereçada a dom Álvaro da Silveira, era extensiva a todos os seus sucessores e resultou em que, entre 1701 e 1709, não houvesse novo acesso de governador ao sertão.8 Entre a defesa da praça carioca, fundamental ao domínio português no Atlântico Sul, e a introdução de governadores nas minas, a metrópole não hesitara em seguir a primeira opção. Contudo, o impedimento de acesso de governadores não significou abrir mão da presença de um funcionário diretamente nomeado pelo rei. Provido em abril de 1702 no posto de superintendente das minas, o ouvidor do Rio de Janeiro, José Vaz Pinto, só encetou viagem em maio de 1703.9 Levando consigo o novo regimento que normatizava a distribuição de 2700

terrenos auríferos, passou rapidamente pelas Minas Gerais e optou por lotar-se no Rio das Velhas, onde se acredita quisesse auferir dividendos na mineração e intervir na rota comercial irradiada da Bahia, via sertão do São Francisco.10 No curto período em que pernoitou nas proximidades de Ouro Preto, teria sido convidado a ali instalar-se, sob o patrocínio do paulista Baltasar de Godoi Moreira, então guarda-mor substabelecido por Garcia Rodrigues Pais. Este lhe prometera dar por morada o próprio sítio onde vivia em Cachoeira do Campo, adornandoo e “entranqueirando-o de madeira muito alta”, com uma igreja ou capela domiciliar, “aguada” e uma “forte portaria”. Godoy Moreira dispusera-se a erguer uma nova casa para si, ao lado da do superintendente, para impor “mais respeito (se é que em mim se ache algum)”, informou com falsa modéstia. Entretanto, o superintendente deu de ombros e se foi para o Rio das Velhas, para desgosto do preterido, que reprovou a opção, por considerar que “o mais espesso e dilatado lugar destas Minas” eram os arraiais de Ouro Preto e Ribeirão do Carmo, portanto os mais propícios à fixação do funcionário.11 Tão logo alcançou seu destino, o superintendente acomodou-se na Roça Grande, povoado de Sabará em cuja igreja Manuel de Borba Gato recebeu título de primeiro povoador.12 Ele levara consigo cartas de recomendação de Garcia Rodrigues Pais, destinadas à parentela paulista. A carta principal, endereçada ao cunhado Borba Gato, pedia que o mesmo “desse casa e sustento” ao funcionário e a todos os seus oficiais, “com aquela grandeza que permitisse a terra”.13 O acolhimento em casa pertencente ao célebre sertanista foi de grande serventia a Vaz Pinto, ao garantir-lhe proteção mais de uma vez, como na desavença com Valentim Pedroso e também, possivelmente, na ocasião em que foi forçado a evadir-se das minas e “lhe valeu muito um paulista, seu amigo, que com gente e armas o levou até Guaratinguetá.”14 Seja como for, quando isso não fosse, o superintendente pelo menos economizou aluguel e alimentação e “não gastou o dito ministro cousa alguma em todo o tempo que nas minas assistiu”.15 Ignoramos se o imóvel onde Vaz Pinto residiu em Sabará chegou a ser designado palácio. Não seria infundado cogitar esse apelido. Porque a jurisdição do superintendente, embora teoricamente próxima à de um ouvidor e alheia, portanto, à prerrogativa militar panágio de um capitão-general, na prática assemelhava-se à de um governador. A indefinição quanto à natureza dos poderes do superintendente deu causa à conhecida rivalidade entre José Vaz Pinto e o governador do Rio de Janeiro, dom Álvaro da Silveira, e acentuou o desgaste do funcionário junto aos paulistas mais poderosos.16 Nos relatos condizentes à atuação de Vaz Pinto em Sabará, impressionam os casos de descortesia, ameaça e público desrespeito à sua autoridade. Valentim Pedroso teria pego em armas para “ir descompor ao ministro”, após dirigir-lhe uma ameaça de morte.17 Baltasar de Godoy Moreira chamou-lhe “médico dos 2701

sequestros do tenente Borba” e “cirurgião” da roça do potentado, repreendendo-lhe a conduta, uma “escola de ambição”, pois “sua vida era faiscar”.18 Garcia Rodrigues Pais acusou-lhe o “mau modo”, motivo pelo qual sofrera “descomposturas” e recebera tratamento “com menos decoro do que se lhe devia por ministro de S. Majestade”.19 A passagem de Vaz Pinto levantou questão importante: a assistência de representantes reais em casas cedidas por potentados locais, que marcaria a administração das minas pelas próximas três décadas. A princípio, essa prática refletiu de imediato a precariedade dos primeiros órgãos monárquicos instalados no território. A instabilidade político-social da região desaconselhava à Fazenda Real investimentos na fixação de estruturas físicas mais complexas. A Coroa preferia usufruir do apoio logístico ofertado por indivíduos abastados e poderosos, agraciados com patentes régias e/ou detentores de posições de destaque, cuja fidelidade ao rei estava condicionada ao recebimento de remunerações e de privilégios negociados com o centro político. Assim ocorreu com o tenente-general, guarda-mor e depois superintendente Manuel de Borba Gato. Reabilitado por Artur de Sá, a quem hospedou, conduziu e orientou nas visitas ao Rio das Velhas, Borba Gato foi, sem dúvida, até o conflito emboaba, o mais célebre e poderoso sertanista, a ponto de sua atuação ser vista como garantidora da “justiça” na primeira década do século XVIII. 20 Como se viu, a guarida e a proteção dadas por ele a José Vaz Pinto foram decisivas para evitar um desfecho ainda pior. Essa lógica trazia benefícios úteis, mas também impunha debilidades notórias. Colocando-se sob a órbita de um potentado local, as autoridades coloniais forçadas a assistir nas minas garantiam para si um teto, apoio logístico e a proteção de escravos armados à custa do benfeitor, sem ônus para a Fazenda Real. Só a confiança depositada em tal acordo explicaria o ter Vaz Pinto viajado às minas desassistido de comitiva militar, acompanhado apenas de um cirurgião, um sangrador e um pároco pagos pela Fazenda Real. 21 Entretanto, esse procedimento também implicava certa fragilidade ao exercício da função. Não por acaso, antes de subir às minas, o superintendente solicitara destacamento de trinta soldados para acompanhá-lo ao destino, pedido indeferido por seu desafeto, Álvaro da Silveira. 22 O magistrado temia viajar sem proteção armada. O futuro demonstrou que seu receio tinha razão de ser. Quando pipocaram as primeiras notícias sobre as ameaças sofridas por Vaz Pinto em Sabará, por causa do conflito com Valentim Pedroso, o governador alegou ter enviado cartas a “todas as pessoas poderosas que lá assistissem”, lhes prescrevendo “fizessem guardar ao ministro”.23 Recapitulava-se o presumido pacto de proteção e auxílio mútuos travado com os potentados locais.24 Porém, nem mesmo o patrocínio concedido por Borba Gato evitou que a integridade física do funcionário corresse risco, conforme confessou o próprio.25 Ante o fracasso da superintendência, a jurisdição concedida ao funcionário pulverizou2702

se, sendo distribuída a, pelo menos, dois sertanistas: os paulistas Borba Gato, no Rio das Velhas, e Baltasar de Godoi Moreira, nas Minas Gerais, tornaram-se eles próprios superintendentes em seus respectivos distritos, muito embora prescindissem de chancela oficial.26 O aparente vácuo institucional foi revertido rapidamente às mãos de potentados paulistas, explicitando, assim, o particularismo do mando no espaço político das Minas àquele momento. Com a exoneração definitiva de Vaz Pinto, em 1705, a superintendência foi confiada a dom Fernando Martins Mascarenhas de Lencastre, sucessor de dom Álvaro, provimento que oficializava a proximidade das atribuições próprias aos cargos de governador e superintendente e parecia vir a corrigir o erro anteriormente cometido. Porém, nesse caso, não se falou em subida do novo empossado, pois permanecia válido o veto à assistência de capitães-generais nas minas.27 Para fazer as vezes da superintendência, o governador sublocou Francisco do Amaral Gurgel em Ouro Preto e Pedro de Moraes Raposo no Rio das Mortes, concedendo-lhes patentes de capitão-mor entre julho de 1706 e fevereiro de 1707.28 Chama atenção que dom Fernando tenha abdicado de provimento semelhante no Rio das Velhas, reconhecimento tácito de que o poderio de Borba Gato em Sabará era intocável. Ali, limitouse à nomeação de um escrivão da superintendência, empossado e juramentado por Borba Gato, este sim “superintendente geral das ditas minas”.29 Entre 1704 e 1709, a zona mineradora não conheceu figura de governador. Por causa ou em consequência dessa ausência, o lustro foi descrito comumente em documentos de época e na própria historiografia como período áureo do mandonismo, da violência e do caos administrativo, espécie de estado de natureza, em que todos lutavam contra todos, conforme percebeu e desnaturalizou Adriana Romeiro.30 Escreveu-se nesse intervalo o célebre relato coligido por Antonil, a eternizar imagem de uma região desprovida de “governo algum bem ordenado”, uma terra sem lei, povoada de bandoleiros, assassinos, ladrões, potentados e seus séquitos de espingardeiros dispostos “para executarem qualquer violência”.31 Criou-se nesse momento a impressão de que, quisesse controlar o território com eficácia, cabia ao monarca intervir pesadamente, designando à região um corpo específico de funcionários, com montagem de estruturas físicas, militares, judiciárias e governativas sujeitas a ordenamento régio. A série de conflitos envolvendo forasteiros e paulistas, transcorrida de outubro de 1708 a novembro de 1709, precipitou os acontecimentos. O fato de a chamada Guerra dos Emboabas ter se originado no Rio das Velhas, para depois se transmitir às outras regiões, denota a maior representatividade paulista naquela área, até ali dominada por naturais de Serra Acima. O arraial de Sabará, considerado “paulista”, passou a sofrer concorrência de outros sítios, como o arraial de Caeté, controlado por “baienses”. Após três motins sucedidos 2703

em Caeté e Sabará, entre outubro e novembro de 1708, se deu a primeira fuga em massa de paulistas, refugiados nos campos de Ouro Preto, próximos ao arraial de Cachoeira do Campo, nas Minas Gerais. Em dezembro, uma coalização de forças emboabas, que reunia forasteiros de Ouro Preto, Antônio Dias e Cachoeira junto aos demais vindos do Rio das Velhas, se defrontou com os paulistas e elegeram Manuel Nunes Viana “governador-geral de todas as Minas e principalmente do Rio das Velhas”.32 A mais minuciosa, espetacular e controversa narrativa sobre os embates da Guerra dos Emboabas saiu da pena de Diogo de Vasconcelos. Interessa sobremaneira seu relato dos eventos sucedidos ao longo da chamada “Batalha da Cachoeira”. Como informa Amaral Coutinho, esse confronto se desenrolou a partir de 20 de dezembro de 1708, após os primeiros levantes emboabas no Rio das Velhas. Aglomerados na região do Campo, que se estende atrás da Serra de Ouro Preto, sítio “muito acomodado” para uma “conteada ou marcha”, os paulistas, muitos deles oriundos de Sabará, sofreram ataque de uma coalização de forças emboabas, constituídas por forasteiros do Rio das Velhas e da própria região das Minas Gerais.33 Ao longo dos embates, o comandante Manuel Nunes Viana teria sido alvejado por balas, uma delas certeira, forçando-o a ausentar-se da última e derradeira

investida.34

Contudo, embora ferido, teve atuação política de destaque na administração dos despojos de guerra. Algumas lideranças emboabas, sobretudo mestiços naturais do Brasil, opinaram pelo extermínio dos prisioneiros. Contudo, Viana, apoiado por religiosos da facção, ordenou libertá-los, sob a condição de que partissem para São Paulo e não tornassem a investir contra os forasteiros. Essa decisão, causando dissenso, teria abalado a unidade dos vencedores, fragilizando a posição de Viana. Para o autor de História Antiga, deu-se nesse momento a intervenção de frades desejosos de legitimar a opção tomada e fortalecer a figura do “ditador”. Sob o pretexto de renderem graças pela vitória, convocaram missa na capela de Cachoeira do Campo e, ali, na presença do “exército e do povo” em ofício divino dirigido por Francisco de Meneses, os padres ungiram, sagraram e investiram Nunes Viana, conferindo-lhe a espada e as insígnias próprias de um governador. Em seguida, tomaram-lhe o juramento, em que prometeu manter respeito às “leis do Reino” e à “justiça” e fazer entrega do posto aos ministros que o rei enfim designasse para o governo das Minas. 35 Após a cerimônia, o recémempossado ingressou em “triunfo” na Serra de Ouro Preto, guiado por Pascoal da Silva Guimarães, que o teria acolhido em casas suas, “as melhores da serra”, citas na paragem de Pia Grande, “no lugar hoje dito do Palácio Velho”.36 Não é claro se, ao identificar tal localidade, o historiador referia-se à morada do próprio Pascoal da Silva Guimarães na Serra de Ouro Preto, ou se aludia à propriedade situada no arraial de Antônio Dias, que posteriormente viria a servir por sede da capitania de 2704

Minas Gerais ao longo dos mandatos de dom Lourenço de Almeida (1721-32) e do Conde das Galvêas (1732-35), imóvel denominado “Palácio Velho”, pertencente ao emboaba Henrique Lopes de Araújo, futuro capitão-mor de Vila Rica.37 As duas possibilidades patenteiam, de qualquer modo, que a Serra de Ouro Preto tornara-se ponto estratégico, escolhido para a morada do governador em sua estadia nas Minas Gerais. Aquartelado nessa casa, Nunes Viana enviou expedições ao Ribeirão do Carmo e a Guarapiranga, a fim de submeter esses arraiais ao comando das forças vitoriosas em Ouro Preto, em tentativas que malograram.38 Residia nesse imóvel quando a patrulha de forasteiros enviada ao Rio das Mortes massacrou um grupo de carijós paulistas aquartelados.39 Assistiu de perto às prisões dos dois principais poderosos paulistas da Serra de Ouro Preto, Domingos da Silva Monteiro e Bartolomeu Bueno Feio. Nessas prisões, assim como praticara com os prisioneiros de Cachoeira, agiu como pacificador, impedindo a perpetração de violência ou vingança contra os rendidos, no que “não obrou tão pouco em os livrar (à custa de sua própria vida) da indignação do povo”.40 Manuel Nunes Viana domiciliou na casa cedida por Pascoal da Silva Guimarães entre os meses de janeiro e maio de 1709. Nesse período portou-se efetivamente como general das Minas. Como lembrou um tautológico memorialista, “depois de irem os ditos paulistas para São Paulo, ficou governando como governador”.41 Foi a mais longa permanência de um “governador” na região das Minas Gerais até aquele momento. A estadia prolongou-se até o encontro com dom Fernando de Lencastre, no Rodeio de Itatiaia. Previamente à jornada, o governador carioca dizia-se sabedor de que Nunes Viana fora “constituído general dos forasteiros” já nos levantes sucedidos em Sabará. Justificou urgência em intervir na contenda, argumentando que “só o respeito e temor de um governador de Vossa Majestade poderiam terminar tanta inquietação”. Organizou comitiva militar incumbida da “segurança e respeito de um governador”, tanto mais vulnerável naquele “sertão entre tantas sedições com gentes incultas”. Condenou veemente a presença e as ações dos “forasteiros” em Minas, chamando assim, exclusivamente, aos “entrados pelo sertão da Bahia”.42 Tinha Manuel Nunes na conta de “intruso governador”. Essa postura desnudava as contradições entre “cariocas” e “baienses”. Dom Fernando queixou-se especialmente da violação de sua jurisdição, tendo Nunes Viana nomeado um superintendente e um provedor dos defuntos e ausentes em Ouro Preto.43 As palavras de Amaral Coutinho, reportando-se ao general carioca por “nosso legítimo governador e superintendente geral de todas estas Minas”, eram evidentemente cínicas.44 Ora, a assistência em plena Serra de Ouro Preto de um governador emboaba sabidamente ligado a Salvador, a distribuir postos e patentes, desafiava os interesses políticos e comerciais oriundos do Rio de Janeiro. Ainda no litoral, dom Fernando previu que Viana não lhe prestaria “obediência” e lhe impediria “o passo”, a fim de 2705

“conservar-se nas honras e respeito de governador e senhor absoluto das Minas”. Compreendia que a expulsão de paulistas fora mero pretexto, “título coonestado”, para abocanhar o “mando” e a “superioridade” na região.45 Essa ameaça, sentida por mais danosa que a concorrência paulista, foi razão de ser da jornada de Lencastre até as Gerais. A viagem intentava assegurar a jurisdição e as prerrogativas do governador e também garantir a manutenção dos negócios vinculados à praça carioca. Não houve, portanto, contradição ou ambiguidade na orientação política do funcionário, considerando-se que investia contra forasteiros “moradores da Bahia”, e não contra os saídos da Guanabara. 46 O propósito de tolher a figura de Nunes Viana, impedindo que se tornasse “árbitro das Minas”, foi intuito confessado pelo próprio agente em carta ao rei.47 A manifesta contrariedade a poderosos submissos a Salvador e o propósito de reaver a jurisdição do Rio de Janeiro sobre as regiões de Minas Gerais e do Rio das Velhas foram, sem dúvida, duas das principais causas explicativas para o cerco a Lencastre, ação arquitetada pelo rival emboaba. Diogo de Vasconcelos insistiu na tese de que a preocupação central sempre fora impedir o acesso à Serra de Ouro Preto, localidade cujo controle parecia depender do veto à “entrada” do funcionário, questão vital na queda de braços com Lencastre. 48 Significativamente, a força de contenção, que barrou a comitiva do governador, era composta por “cabos” e militares providos por Nunes Viana, muito embora estivessem despidos das insígnias próprias às patentes no momento do cerco. Para esses, a barreira justificava-se no discurso de que dom Fernando faria “tirar os postos que estavam dados” para distribuí-los “a outrem”, e por isso “aquele povo” vedava-lhe o “entrar para estas Minas”.49 Tudo indica que, antes mesmo do episódio no Rodeio de Itatiaia, a fissura entre baienses e cariocas já houvesse minado a unidade emboaba nas Minas Gerais. Nem todos os forasteiros de Ouro Preto deram aval ao impedimento da “entrada”. Houve, é certo, posição refratária que redundou em “alguns protestos”.50 Um relato garante que apenas dois homens teriam se prontificado para o cerco, “pois os mais todos estavam remissos”. 51 Outro dá conta de “haver já algumas contendas entre Manuel Nunes Viana e outros possantes”. 52 Caso conhecido – e sem dúvida o mais importante – foi o de Pascoal da Silva Guimarães. Provido havia um ano por Lencastre no posto de sargento-mor das ordenanças das Minas de Ouro Preto e seus distritos, ele era – a se confiar nas palavras de Diogo de Vasconcelos – anfitrião de Nunes Viana na Serra, condições antagônicas que se tornaram mesmo insustentáveis à medida da aproximação do governador do Rio de Janeiro.53 Sabemos que, posteriormente, Silva Guimarães alegou ter sido o “único que reconheceu por governador a dom Fernando Martins Mascarenhas no tempo das alterações, oferecendo-se lhe para executar tudo o que lhe ordenasse”.54 Tenha ou não adotado tal postura, fato é que sua situação, assim como a de 2706

outros forasteiros virtual ou efetivamente ligados ao Rio de Janeiro, tornara-se embaraçosa sob o governo de Viana. Outro fator a considerar é o de que, simbolicamente, a “entrada” de um governante significava o aceite de sua jurisdição sobre a área adentrada. Esse ritual, herdado do baixo medievo europeu, advinha das entradas de reis e príncipes em cidades por eles governadas, cerimonial que servia para delimitar as fronteiras de seus domínios e para reafirmar a jurisdição sobre o território.55 Portanto, o uso repetido do termo “entrada” na documentação relativa à viagem de Lencastre nada tinha de fortuito. Para o viajante, “entrar” nos sítios e arraiais mineradores era o mesmo que fazer-se reconhecer por governador deles. Ao seguir em direção a Ouro Preto, não seria outro o seu propósito. Teixeira Coelho percebeu, com perspicácia, que o sítio próximo a Congonhas onde os emboabas embarreiraram a passagem era área limítrofe, ainda considerada parte do Rio das Mortes, depois da qual se adentravam, enfim, as “Minas Gerais”, então submetidas ao potentado residente no Tapanhuacanga. 56 Rocha Pitta e J. J. da Rocha foram precisos: o conflito consistiu em “disputar a entrada” ou em “opor-se à entrada” do funcionário na região de Ouro Preto.57 Diz-se ainda que dom Fernando teve vedada a “posse em Itatiaia”.58 Referências documentais sobre o encontro indicam que Lencastre teria afugentado por forasteiros que protestavam submissão a Nunes Viana.59

Essa

sido tese,

amplamente divulgada na historiografia – talvez pela inexistência de qualquer documento exarado pelo funcionário, em que fosse exposta a sua versão do ocorrido60– encobertou o fato de que o governador carioca não fora o único a retirar-se. Pois enquanto este retrocedia ao Rio de Janeiro, também o general emboaba deixou Ouro Preto, retornando ao arraial de Caeté, núcleo original dos forasteiros soteropolitanos e local onde Viana se estabelecera inicialmente no Rio das Velhas.61 Tudo leva a crer que o abandono da Serra tenha sido medida negociada no próprio encontro. Embora impedido de dar entrada nos arraiais acima, Lencastre em tese reavia, com o recolhimento de Viana, o controle sobre as Minas Gerais. Quando o sucessor Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho passou às minas, endireitou-se objetivamente a Caeté, no explícito propósito de lá encontrar a liderança emboaba. Teria se aproximado de Ouro Preto, na expectativa de ali achar o alvo da jornada. Ao tomar ciência de sua partida, estendeu o passo até Caeté, onde enfim entrevistou-se com Nunes Viana (em meados de agosto), depondo-o da função governativa e ordenando-lhe exilar-se na fazenda da Tábua, no sertão dos Currais.

62

Um documento do Códice Costa

Matoso informou que o líder emboaba já houvera sido “apeado da senhoria e do nome de governador, que no levantamento geral lhe davam”, antes mesmo de Albuquerque vir a surpreendê-lo em Caeté.63 Esse relato reforça a hipótese de que a oposição a Viana se iniciou 2707

em Ouro Preto, o que teria tornado insustentável a sua assistência na Serra, forçando o seu regresso ao Rio das Velhas. Tornou-se célebre a astúcia com que o novo general se introduziu e se locomoveu até Caeté, viajando secreta e ocultamente, à paisana, a pé, sem fazer-se anunciar, sem se dar a conhecer. A vantagem auferida por Albuquerque nessa jornada consistiu, precisamente, na abdicação estratégica do ritual de “entrada”. Ao não enviar mensageiro adiante, com anúncio de sua chegada, o governador abria mão da solenidade pública destinada a reconhecer a sua jurisdição sobre cada arraial ou povoação devassada. Despiu-se das roupas e insígnias próprias à sua posição, desobrigando a que transeuntes, viajantes e moradores o reconhecessem e o tratassem com a deferência necessária. Recusou-se, inclusive, a usar cavalo, meio de transporte afeito a homem nobre. Em outras palavras, logrou passar-se por simples plebeu em jornada. Entretanto, à medida de seu interesse, em ocasiões e lugares apropriados, sobretudo na excursão final do Campo de Ouro Preto até o Rio das Velhas, fezse anunciar.64 A partir desse momento, reavia a precedência e o poderio atrelados à sua condição, o que, para todos os efeitos, incluía a jurisdição sobre o território onde se achava. Por isso, a opção de revelar-se publicamente só foi tomada quando o governador se encontrava dentro do arraial de Caeté, sítio onde também se achava instalado seu rival. Outro detalhe foi significativo: a presença de indivíduos oriundos das Minas Gerais ao longo do período em que Albuquerque esteve em Caeté. Isso se deu porque o governador, intencionalmente, fizera saber em Ouro Preto e arredores a notícia de que estava no Campo, próximo ao Rio das Velhas. Ou seja, já avançara sobre a região das Minas Gerais, submetendo-a simbolicamente à sua autoridade.65 Como frisou Adriana Romeiro, o relato dado por Albuquerque acerca da situação política do Rio das Velhas no momento de sua chegada foi suspeitamente sereno. 66 Segundo o governador, os moradores o receberam com “agrado” e “mil demonstrações de maior rendimento, sujeitando-se a tudo o que eu quisesse dispor para seu sossego, segurança e melhor serviço de V. Majestade, como leais vassalos seus”. Adentrando o Arraial Velho de Caeté ao meio dia, enfim revelou-se, depois do que ficaram “todos sobressaltados”. Manuel Nunes Viana, acompanhado de seus cabos (todos sem insígnias) e de muita gente, prostrou-se aos seus pés, “pedindo-me os amparasse e desculpasse, pois o seu intento fora só livrarem-se do que padeciam por falta de outro recurso, sem a menor [in]tenção de cumprirem contra a obrigação de leais vassalos”. O governador respondeu “com o agrado e demonstrações que pedia a ocasião”, mas declarou-se inabilitado a deferir o pedido. Foi lhe oferecida uma casa no Arraial Novo de Caeté “aonde estaria melhor cômodo”, porém o visitante recusou a oferta. Só conheceu essa parte do povoado na manhã seguinte, ocasião em que “foram todos e 2708

quantidade de Povo de todas estes arredores [?] e me receberam neste arraial com muito carinho e demonstração de alegria com seu pálio à porta da igreja”. Aproveitando a multidão e a data festiva de 15 de agosto de 1709, dia da Senhora do Bom Sucesso, exortou os devotos presentes à submissão também devida ao rei, tendo “achado a todos dispostos, uns por humildes se persuadem, outros por necessidade se reduzem, bem contra sua vontade”. Os mais renitentes eram aqueles investidos em patentes militares, “que não estão muito gostosos” com a perda dos postos “pelo amor que criaram aos bastões”. Nunes Viana foi “apeado” de sua “jurisdição”, podendo portar somente o bastão, recebido de “el rei”, como capitão-mor do São Francisco. O governador deposto partiu para o sertão e os poderosos das demais regiões, como Antônio Francisco nas Minas Gerais, ficaram em “conformidade”. Por fim, o “Povo” pediu a Albuquerque para que ficasse no Rio das Velhas “até vir resposta de V. Majestade”, ao que o funcionário, agradecendo a lisonja, retorquiu ser impossível na “ocasião presente”.67 Essa imagem plácida foge àquilo que outras evidências documentais indicam. Uma memória lembrou que, ao chegar ao arraial deserto e fixar-se na “melhor casa” de Caeté, Albuquerque enviou uma “embaixada” a Nunes Viana, solicitando-lhe “em três dias despegasse as Minas, que assim convinha ao serviço de Deus e de el rei”. À noite, o emboaba foi ao seu encontro e, acatando a solicitação, pediu prazo de nove dias até aprontar-se. Como o governador projetasse passar ao Sabará, muitos queriam acompanhar-lhe, inclusive Nunes Viana, mas o visitante “não quis que viesse gente do Caeté, só Luís do Couto e seu irmão”.68 A ocorrência de uma “embaixada” é sem dúvida o elemento mais marcante desse relato. Segundo Bluteau, uma embaixada consistia na ação de enviar embaixador ou pessoa comissionada a um senhor, a fim de transmitir-lhe mensagem. A personagem do embaixador, utilizada na Antiguidade pelo Império Romano, foi reabilitada na Época Moderna, transformando-se em peça fundamental das monarquias europeias. Nesse novo contexto, o embaixador transformou-se num funcionário régio, mandado aos reinos e principados estrangeiros “para fazer as pazes ou para declarar guerra”. Criou-se mesmo a distinção entre o embaixador “ordinário”, “o que com a continuação da sua assistência, cultiva recíproca amizade de um príncipe com outro”; e o “extraordinário”, que em ocasião específica se dirigia à “Corte de algum príncipe, para tratar de algum negócio particular, como a conclusão de um matrimônio, a condução de uma rainha, parabéns, pêsames”. É claro que a palavra embaixada também comportava, por extensão, um significado menos cerimonial, podendo aplicar-se à “mensagem ou comissão que se dá a alguém para ir dizer a outro alguma coisa”. 69 Mas não haja dúvida: não foi esse o caso em Caeté. Pois um dos requisitos pressupostos no conceito de embaixada é o de que a mensagem transmitida interliga indivíduos iguais, no sentido de dotados de uma mesma ou idêntica condição ou natureza. Por isso, príncipes mandavam a 2709

outros seus embaixadores, numa relação de reconhecimento mútuo. Assim, ao enviar embaixada, Albuquerque anuía comunicar-se com seu igual, aceitando diplomaticamente a condição de governador exercida por Nunes Viana. O tom de superioridade ou sobranceria usado na carta do funcionário desaparece ainda em outro depoimento, segundo o qual, no encontro entre os dois, teve [Antônio de Albuquerque] com ele [Manuel Nunes Viana] suas congratulações; e segurando-lhe os bons ofícios que havia de fazer com Sua Majestade pela sujeição dos paulistas, tão desejada pelo dito monarca, que, mandando naqueles princípios várias companhias de infantaria para a guarnição daquela praça do Rio de Janeiro, se lhe fez queixa que os soldados desamparavam a praça e fugiam para a serra.70

O diálogo transcrito acima deixa transparecer contato menos tenso do que se podia supor. Aparentemente, o represente régio procurou mesmo negociar a retribuição de “bons ofícios” àquele que havia conquistado a “sujeição dos paulistas”, satisfazendo a vontade do monarca. Num acordo que prometia contraparte, cabiam “congratulações” recíprocas. Anos depois, para obter uma vultosa mercê real, constituída por dois hábitos de Cristo acrescidos da propriedade de ofícios, Nunes Viana fez constar entre seus serviços, apresentando certidões comprobatórias, a obediência e submissão com que recepcionara Antônio de Albuquerque em Caeté.71 Por fim, há a memória segundo a qual Albuquerque nada mais fizera do que ratificar decisões tomadas por Nunes Viana. Conforme esse depoimento, o governador do Rio de Janeiro “chegou com tal cautela e segredo ao Caeté que ninguém soube que ele ali estava, senão quando mandou chamar a Manuel Nunes Viana”. No encontro entre os dois, Albuquerque “intimou, da parte de Sua Majestade, o muito que importava ao seu real serviço que se recolhesse para as suas fazendas dos Currais, ao que prontamente obedeceu o dito”. Em seguida, tendo se deslocado para Sabará, o general ali “aprovou tudo quanto a respeito do governo havia feito o Viana. E sem inovar coisa alguma, partiu para o Rio das Mortes”.72 Esses documentos afiançam que a postura de Albuquerque no Rio das Velhas foi mais cautelosa. A fim de obter a retirada de Nunes Viana e a retomada da jurisdição sobre território, o governador viu-se forçado a negociar, concedendo certidão comprobatória de serviço, acatando ações e reconhecendo postos militares que haviam sido distribuídos pelo rival. Para fazer isso, tratou de legitimar as sublevações contrárias aos paulistas, considerando-as uma benesse desejada pelo rei, passível, portanto, de recompensa.73 A diferença em relação à retórica adotada por dom Fernando de Lencastre era evidente. As atitudes tomadas por embobas, incluindo a eleição de um governador e a distribuição de patentes militares, deixavam de constituir uma usurpação da prerrogativa régia ou um desafio ao domínio do monarca lusitano – como as considerava o ex-governador – para serem 2710

deslocadas, discursivamente, para o âmbito de uma negociação por serviços prestados. Em sintonia com essa perspectiva, a versão dada por Diogo de Vasconcelos deu conta de um contato amistoso entre os respectivos governadores, que teria resultado inclusive na feitura de uma junta, através da qual o congênere colonial depusera a regência das Minas, solene e pacificamente, em favor da autoridade designada pelo rei.74 Ao longo de sua jornada, Albuquerque escolheu cuidadosamente os imóveis onde se hospedou, evitando colocar-se sob a guarida de indivíduos ligados aos partidos em disputa. Nos três dias em que esteve em Caeté, recusou oferta de Nunes Viana e permaneceu na casa de Antônio de Miranda Pereira, que se mantivera neutro ao longo dos confrontos. 75 O visitante também rechaçou hospedagem oferecida por Sebastião Pereira de Aguilar, desafeto do governador emboaba e um dos líderes da oposição a seu governo no Rio das Velhas.76 No Sabará, ficou apenas dia e meio, não restando notícia de que pernoitasse na casa de Borba Gato, apesar de ter mantido o poderoso paulista no posto de superintendente.77 Dali passou às Minas Gerais, acompanhado de vinte soldados e alguns oficiais. Sabe-se que se hospedou primeiramente em Santo Antônio da Casa Branca, no Campo e, em seguida, “entrou no arraial de Ouro Preto”, instalando-se na Serra de Antônio Dias.78 É provável que, em ambas as localidades, Albuquerque tenha sido protegido e sustentado por Pascoal da Silva Guimarães, vindo a residir em imóveis pertencentes ao sargento-mor.79 A estadia na Serra e o abrigo na mesma casa onde residira Manuel Nunes Viana eram inversões simbólicas, que explicitavam a recondução daquela área à jurisdição do governador do Rio de Janeiro e a apropriação dos espaços de poder utilizados pelo emboaba deposto. O provimento de Pascoal da Silva como superintendente teve significado ainda mais revelador: trouxe de volta às mãos do general carioca a prerrogativa de designar os postos político-militares das Minas Gerais, privilégio que havia sido perdido desde a revolta contra o capitão-mor Francisco do Amaral Gurgel.80 Das Minas Gerais, Antônio de Albuquerque rumou às pressas para o Rio das Mortes, já ciente de que tropas paulistas no Planalto se organizavam para o revide. “Entrou” no Arraial Novo em princípios de outubro de 1709, seguido por pequena escolta. Orou à Rainha dos Anjos e fez discurso público defronte à igreja, pregando a pacificação das Minas. Ao entardecer, acomodou-se na casa de Ambrósio Caldeira Brant, a mesma onde se hospedara dom Fernando de Lencastre. Ali se manteve alguns dias, garantindo aos moradores que os paulistas não atacariam. Depois partiu para Guaratinguetá, onde o exército de Serra Acima se juntava. Espaventado pelos expedicionários, que “em exército [o] queriam matar”, o governador valeu-se da ajuda do capitão forasteiro Domingos Antunes Fialho, o qual “com sua pessoa, poder e gastos” escoltou o funcionário “são e salvo” até a Vila de Parati, onde se refugiou na fazenda Bananal.81 2711

A Guerra dos Emboabas selou o fim de um primeiro momento na história política das regiões que viriam a constituir futuramente a capitania de Minas Gerais. Áreas de influência e jurisdição indefinidas, as minas tornaram-se objeto de disputa entre autoridades coloniais e redes comerciais conflitantes, cujos elos projetavam-se do interior das zonas mineradoras até outras paragens do império português na América, na África e mesmo no reino. Nesse contexto, a introdução e a permanência de governadores e de outros prepostos políticoadministrativos só puderam ocorrer episodicamente, sob a conivência e o patrocínio de potentados locais, e mesmo assim suscitando embates violentos. O Rio das Velhas foi a região mais importante nos anos iniciais. No entanto, em 1709, as Minas Gerais, em especial os arraiais próximos à Serra de Ouro Preto, tornaram-se o coração do território, a ponto de Manuel Nunes Viana, mesmo tendo sua área de influência sediada em Caeté e nos Currais do São Francisco, ter residido no morro de Antônio Dias ao longo da maior parte de seu mandato como governador emboaba. A propriedade de Pascoal da Silva Guimarães foi, possivelmente, a primeira residência de um governador nas Minas Gerais. O projeto emboaba, baseado na importação sistemática de mão de obra africana, comercializada através do tráfico atlântico em larga escala, saiu vencedor. O Rio de Janeiro transformou-se na porta de entrada para os produtos vendidos nos distritos mineradores, enquanto a Bahia manteve primazia no fornecimento de escravos e de gado bovino.

*

Doutorando em História Social pela Universidade de São Paulo, sob a orientação da professora Laura de Mello e Souza. Professor de História do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sul de Minas Gerais, campus Muzambinho. E-mail: [email protected]. 1 BLUTEAU, R. Vocabulário Portuguez e Latino. Rio de Janeiro: Eduerj, 2000, v. 6, p. 190-191. 2 BURY, J. B “A arquitetura e a arte do Brasil colonial” In: BETHEL, L. (org.) A América Latina Colonial, São Paulo/Brasília: EdUSP/Fundação Alexandre de Gusmão, 2004, v. 2, p. 681-704; p. 696. 3 DH, v. 93, 1951, p. 81-83. 4 RAMOS, D. A Social History of Ouro Preto: stresses of dynamic of urbanization in colonial Brazil, 16951726. University Of Florida, 1972, p. 72-73. 5 DIHCSP, v. 51, 1930, p. 24-32. 6 DIHCSP, v. 51, 1930, p. 32. 7 DH, v. 93, 1951, p. 111. DIHCSP, v. 51, 1930, p. 33. 8 DIHCSP, v. 51, 1930, p. 55. 9 DIHCSP, v. 51, 1930, p.188-89. 10 Códice Costa Matoso, v. 1, p. 246. 11 Maria Verônica Campos e Adriana Romeiro avalizaram a opinião do guarda-mor, considerando que a residência do superintende em Sabará chocava-se à maior importância populacional das Minas Gerais. Todavia, note-se que, em 1701, Artur de Sá também dera preferência àquela região, só depois vindo a pousar rapidamente na parte meridional, em regresso ao Rio de Janeiro. Isso indica que o arraial de Sabará ostentava àquela altura maior importância estratégica ou, pelo menos, maior atratividade às autoridades coloniais. CAMPOS, M. V. Governo de Mineiros: “de como meter as Minas numa moenda e beber-lhe o caldo dourado”. 1693 a 1737. São Paulo: Universidade de São Paulo/FFLCH, 2002. Tese de doutorado, p. 70. ROMEIRO, A. Paulistas e Emboabas no Coração das Minas: idéias, práticas e imaginário político no século XVIII. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008, p. 72. CARTA de Baltasar de Godoy Moreira a D. Pedro II. Minas Gerais, 31 de julho de 1705. AHU, Rio de Janeiro, doc. 3102. Transcrito em ANTONIL, A. J.. Cultura e Opulência do Brasil...p. 384. 12 Códice Costa Matoso, v. 1, p.246. FRANCO, F. de A. C. Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Ed. Universidade de São Paulo, 1989, p.182.

2712

13

CARTA de Garcia Rodrigues Pais a D. Pedro II. Rio de Janeiro, 30 de agosto de 1705. AHU, Rio de Janeiro, doc. 3095. Transcrito em ANTONIL, A. J. Cultura e Opulência do Brasil... p. 389. 14 Códice Costa Matoso, v. 1, p. 222 e 246. 15 CARTA de Garcia Rodrigues Pais a D. Pedro II. Rio de Janeiro, 30 de agosto de 1705. AHU, Rio de Janeiro, doc. 3095. Transcrito em ANTONIL, A. J. Cultura e Opulência do Brasil...p. 389. 16 DIHCSP, v. 51, 1930, p.92-94. Segundo Garcia Rodrigues Pais, o superintendente costumava criticar abertamente os “desacertos” de Artur de Sá e Meneses, acusando-o “não podia dar postos nem administrar justiça no sertão por não ter ordens para isso”. Tal ousadia do ministro “soou muito mal” aos ouvidos dos paulistas residentes no Rio das Velhas, afetos ao ex-governador. ANTONIL, André João. Cultura e Opulência do Brasil... p. 389-90. 17 Códice Costa Matoso, v. 1, p. 222. 18 CARTA de Baltasar de Godoy Moreira a Artur de Sá e Meneses. Minas de Mato Dentro, 31 de julho de 1705. Transcrito em ANTONIL, A. J. Cultura e Opulência do Brasil... p. 383. 19 CARTA de Garcia Rodrigues Pais a D. Pedro II. Rio de Janeiro, 30 de agosto de 1705. AHU, Rio de Janeiro, doc. 3095. Transcrito em ANTONIL, A. J. Cultura e Opulência do Brasil...p. 390. 20 Códice Costa Matoso, v. 1, p. 190 e 212. 21 DIHCSP, v. 51, 1930, p. 175. 22 DIHCSP, v. 51, 1930, p. 192. 23 DIHCSP, v. 51, 1930, p. 244. 24 Uma das cartas foi endereçada a Baltasar de Godoi Moreira, no arraial de Cacheira do Campo, nas Minas Gerais, futuro superintendente (ou guarda-mor substituto) após a fuga de José Vaz Pinto. DIHCSP, v. 51, 1930, p. 255. 25 CAMPOS, M. V. Governo de Mineiros...p. 72. 26 Já em 1705, Rodrigo de Sousa, governador-geral, abertamente tratou Borba Gato por superintendente. DH, v. 41, p. 14-17. Outro relato dá conta de que José Vaz Pinto houvesse delegado seus poderes tanto a Borba Gato em Sabará quanto a Baltasar de Godoy Moreira, em Cachoeira do Campo. Códice Costa Matoso, v. 1, p. 222. Godoy Moreira dizia-se apenas guarda-mor substituto, estabelecido por Garcia Rodrigues Pais na região de Ouro Preto. CARTA de Baltasar da Godoy Moreira a D. Pedro II. Minas Gerais, 30 de julho de 1705. AHU, Rio de Janeiro, doc. 3105. Transcrito em ANTONIL, A. J. Cultura e Opulência do Brasil... p. 379. 27 DIHCSP, v. 51, 1930, p. 309. 28 DIHCSP, v. 52, 1930, p. 31 e 62. A prática de conciliar a patente de capitão-mor à prerrogativa de superintendente, manifestada nas instruções dadas a Francisco do Amaral Gurgel e Pedro de Moraes Raposo, tornou a se manifestar, explicitamente, na nomeação de Melchior Felix. DIHCSP, v. 52, 1930, p. 107. 29 DIHCSP, v. 52, 1930, p. 109-110. Embora reconhecido por superintendente, como se vê, pelo próprio governador do Rio de Janeiro, Borba Gato teve questionada a legitimidade de seu posto por Manuel Nunes Viana, que o descreveu como “ministro substabelecido por outrem”. CARTA de Manuel Nunes Viana a Manoel de Borba Gato. 13 de outubro de 1708. Documento transcrito em MELLO, J. S. de. Emboabas: chronica de uma revolução nativista. São Paulo: São Paulo Editora, 1929, p. 229. 30 “Tanto o relato de época quanto o discurso historiográfico escoram-se no pressuposto teórico de que a ausência de poderes institucionalizados – entendidos como poder do Estado – redunda necessariamente no caos absoluto, agravado, sobretudo, nas regiões dominadas pela auri sacra fames (...) A imagem de um estado de natureza quase infernal pouco se presta à compreensão do processo de emergência dos polos de poder privado que teve lugar nas Minas, uma vez que tende a negar a premissa de que estes se fundamentavam numa lógica particular, regida por códigos, valores e concepções específicos.” ROMEIRO, A. Paulistas e Emboabas... p. 84. 31 ANTONIL, A. J. Cultura e Opulência do Brasil... p. 228. 32 CARTA de Bento do Amaral Coutinho ao governador da capitania d. Fernando Martins Mascarenhas de Lencastre. Arraial do Ouro Preto, 16 de janeiro de 1709. Documento transcrito por MELLO, J. S. de. Emboabas: chronica...p. 237-45. 33 CARTA de Bento do Amaral Coutinho ao governador da capitania d. Fernando Martins Mascarenhas de Lencastre. Arraial do Ouro Preto, 16 de janeiro de 1709. Documento transcrito por MELLO, J. S. de. Emboabas: chronica...p. 238. 34 O próprio Manuel Nunes Viana fez constar entre os serviços que prestara à Coroa o feito de que, na contenda contra os paulistas, recebera “três balas”. Segundo Diogo de Vasconcelos, o governador emboaba levou dois tiros, um deles certeiro. É conhecido o relato do Conde de Assumar, a descrever a voz pública segundo a qual Nunes Viana tinha “corpo fechado”, imune às armas de fogo. A melhor análise do poderio místico-político atribuído a Viana é feita por ROMEIRO, A. Paulistas e Emboabas... p. 156-177. Sobre os boatos que circularam a respeito dessa personagem, ver GASPAR, T. de S. Palavras no Chão: murmurações e vozes em Minas Gerais no século XVIII. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: Fapemig, 2011, p. 70-82. 35 É unânime na documentação e na historiografia o dado de que Nunes Viana foi designado governador de Minas durante os confrontos com os paulistas. Mas não há consenso sobre o momento e a forma como esse provimento ocorreu. Diogo de Vasconcelos, assim como Rocha Pita, considera que o potentado já havia sido

2713

investido no posto após o primeiro confronto com Jerônimo Pedroso e Borba Gato, ainda no Rio das Velhas. Porem, situa o ritual de unção, sagração e juramento no contexto imediato à vitória emboaba em Cachoeira do Campo. A memória de André Gomes Ferreira também corrobora a informação de que a “eleição” de Viana ocorrera em Caeté. Outro relato de meados do século XVIII relembra que os emboabas do Rio das Velhas “resolveram-se aclamar por seu governador ao dito Viana”, para defende-los dos paulistas. Os demais documentos disponíveis mencionam apenas o ritual ocorrido no Campo de Ouro Preto, porém divergem sobre os procedimentos adotados. Bento do Amaral Coutinho refere-se a um “adjunto de algumas pessoas de mais consideração e madureza” que aclamaram popularmente Nunes Viana, “a vozes do mesmo povo”. Um relato anônimo alude à escolha do governador através de um conselho dos “mais poderosos” que elegeu seis eleitores e estes, a votos, “nomearam” a autoridade governamental. Outra versão da mesma época aproxima-se do relato de Vasconcelos, ao garantir que os reinóis “aclamaram por seu governador ao dito Viana, (...) com juramento de bem os governar (...). E tomando posse do governo, que lha deram na forma do estilo, ficou sendo legitimamente governador das Minas por eleição e aceitação do povo”. Já para José Álvares de Oliveira, o governador havia sido “levantado pelos povos” das Minas, opinião idêntica à partilhada pelo ouvidor Caetano da Costa Matoso. PITTA, S.da R. Historia da América Portugueza. Lisboa: Editor Francisco Arthur da Silva, 1880, livro nono, p. 271. VASCONCELOS, D. História Antiga... p. 264. MELLO, J. S. de. Emboabas: chronica...p. 237-45. Códice Costa Matoso... v. 1, p. 197, 215, 223, 233, 251, 295. 36 VASCONCELOS, D. de. História Antiga... p. 251-59. 37 Num segundo trecho do livro, a impressão que se tem é a de que o autor considerava a casa de Pascoal da Silva e o Palácio Velho como uma mesma e única propriedade. Por isso, afirmou, por exemplo, referindo-se ao período anterior à construção do Palácio dos Governadores (atual Escola de Minas) no morro de Santa Quitéria (atual Praça Tiradentes): “viviam [os governadores] aqui [em Vila Rica] no pequeno prédio antiquíssimo da Pia Grande, sítio hoje dito o Palácio Velho”. E em nota esclareceu: “Nesse prédio [Palácio Velho ou Pia Grande] Pascoal da Silva hospedou também a Antônio de Albuquerque”, citando trecho da carta patente dada a Guimarães por dom Brás Baltasar em 1714. VASCONCELOS, D. História Antiga... p. 411. 38 A informação sobre a investida contra o Ribeirão do Carmo, presente na obra de Vasconcelos, é corroborada num relato do ouvidor Costa Matoso, segundo o qual esse arraial “foi acometido e saqueado pelos agregados de Manuel Nunes Viana”. Já o frustrado ataque à Guarapiranga, episódio considerado “inverossímil” por Adriana Romeiro e posto em dúvida por Francisco Franco, também possui fundamento documental. Diogo de Vasconcelos corretamente atribuiu ao capitão Rafael da Silva e Sousa, que viria a ser um dos homens mais poderosos do Ribeirão do Carmo entre as décadas de 1710 e 1740, papel de destaque na contenção da expedição enviada por Nunes Viana a Guarapiranga. Muitos anos depois desse evento, quando submeteu seu pedido de mercê ao Conselho Ultramarino, Silva e Souza argumentou que “na alteração que houve entre estes [paulistas] e os reinóis, se haver com conhecido zelo da quietação de todos, devendo-se à sua prudência evitar-se a destruição que os ditos reinóis pretendiam fazer no arraial de Guarapiranga”. INFORMAÇÃO das antiguidades de Mariana. Códice Costa Matoso... v. 1, p. 251. AHU, Códice 88, fl. 153 v. CARTAS-PATENTES, RAPM, v. 4, 1899, p. 108. VASCONCELOS, Diogo de. História Antiga das Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia, 1999, p. 259. FRANCO, F. A. C. Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1989, p. 406-07. 39 Segundo Maria Verônica Campos, ao delegar o comando das forças emboabas enviadas ao Rio das Mortes a Bento do Amaral Coutinho e optar por permanecer em Ouro Preto, o governador eleito procurava manter-se nos limites da área supostamente subordinada ao governo geral na Bahia (cuja jurisdição se estenderia até as nascentes do Rio das Velhas, nas proximidades do Ribeirão do Carmo), instância à qual Nunes Viana reivindicava reportava-se. CAMPOS, Maria Verônica Governo de Mineiros: “de como meter as Minas numa moenda e beber-lhe o caldo dourado”. 1693 a 1737. São Paulo: Universidade de São Paulo/FFLCH, 2002. Tese de doutorado, p. 89. 40 Conforme relato de Bento do Amaral Coutinho, no caso das prisões de Domingos da Silva Monteiro e Bartolomeu Bueno Feio, o governador teria se responsabilizado por escoltá-los até o Rio de Velhas, para onde pretendiam retirar-se. Essa informação coaduna-se a uma narrativa constante no Códice Costa Matoso, segundo a qual os paulistas presos teriam sido encaminhados a Sabará, conforme “foi determinado pelo governador Manuel Nunes Viana”. Contudo, o paradeiro deles foi incerto. Sem dúvida, permaneceram em Ouro Preto até julho de 1709, como prova o mais antigo registro paroquial da Freguesia de Antônio Dias, em que Silva Monteiro e Bueno Feio apadrinharam o “inocente João, filho de João Pereira Vivas e de Joana Tereza”, conforme notou Joaquim Furtado de Menezes. Francisco Carvalho de Assis Franco descreveu diversas versões sobre o destino tomado por Bueno Feio, acreditando que tenha se fixado em Campos dos Goitacazes. MELLO, J. S. de. Emboabas: chronica... p. 244. Códice Costa Matoso... p. 199. MENEZES, J. F.de. Igrejas e Irmandades de Ouro Preto. Belo Horizonte: Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais, 1975, p. 14. FRANCO, F. C. de A. Dicionário de Bandeirantes...p.154-55. 41 Códice Costa Matoso... p. 199. 42 CARTA de d. Fernando Martins Mascarenhas de Lancastre ao rei. Rio de Janeiro, 14 de fevereiro de 1709. Documento transcrito por MELLO, J. S. de. Emboabas: chronica...p. 251.

2714

43

CARTA de d. Fernando Martins Mascarenhas de Lancastre ao rei. Rio de Janeiro, 16 de fevereiro de 1709. Documento transcrito por MELLO, J. Soares de. Emboabas: chronica...p. 254-55. 44 CARTA de Bento do Amaral Coutinho ao governador da capitania d. Fernando Martins Mascarenhas de Lencastre. Arraial do Ouro Preto, 16 de janeiro de 1709. Documento transcrito por MELLO, J. S. de. Emboabas: chronica...p. 245. 45 CARTA de d. Fernando Martins Mascarenhas de Lancastre ao rei. Rio de Janeiro, 16 de fevereiro de 1709. Documento transcrito por MELLO, J. S. de. Emboabas: chronica...p. 254-55. 46 Segundo Lencastre, naquela ocasião Manuel Nunes Viana valia-se do “passo franco [que tem] os moradores da Bahia com que se engrossa o seu poder”. Essa leitura diverge das interpretações historiográficas a respeito. Diogo de Vasconcelos, em nova sintonia com Rocha Pitta, argumentou que a viagem de d. Fernando às Minas fora motivada pela notícia do episódio do Capão da Traição, que teria criado, em tese, situação excepcional de desordem e perigo iminente, capaz de justificar a intervenção de urgência do governador. Idêntica explicação foi dada por J. Soares de Mello. Por outro lado, Isaías Golgher fez notar, com pertinência, que a decisão de passar às minas foi tomada em princípios de janeiro de 1709, quando o governador tivera ciência apenas do relato de Borba Gato sobre os eventos sucedidos no Rio das Velhas – notícias que antecediam, portanto, os conflitos que viriam a ocorrer no Rio das Mortes entre fins de janeiro e princípio de fevereiro deste ano. Para Golgher, o verdadeiro propósito de Lencastre, embora alegasse o objetivo de “pacificar a região”, seria o “esmagamento e a expulsão dos forasteiros”, indistintamente. Para Maria Verônica Campos, as atitudes do governador foram contraditórias, pois, apesar de ter promovido importantes figuras emboabas ao longo de seu mandato, dom Fernando tomou partido a favor dos paulistas na subida às Minas. Por fim, Adriana Romeiro percebeu que comerciantes cariocas talvez estivessem por detrás das ações do governador, pressionando-o a intervir na contenda sucedida em Minas. Mas a autora não explora essa perspectiva, insistindo na suposta “ambiguidade” entre o discurso (pró-paulista) e a prática (pró-emboaba) do governador. VASCONCELOS, D. de. História Antiga.... p. 264; PITTA, S. da R. Historia da América...livro nono, p. 273. MELLO, J. S. de. Emboabas: chronica... p. 96-101e 255. 47 MELLO, J. S.. Emboabas: chronica... p. 250. 48 “Ajuntaram-se [Manuel Nunes Viana e seus oficiais], pois, e por último resolveram não permitir que d. Fernando penetrasse na Serra, custasse o que custasse. (...) Dom Fernando, se chegasse a entrar em qualquer dos arraiais da Serra, o prestígio de sua autoridade, o nome do Rei, as carícias ou as ameaças, logo lhe atrairiam partidários (...). D. Fernando não o deviam deixar por nada introduzir-se na Serra”. VASCONCELOS, D. de. História Antiga...p. 265-66. 49 Códice Costa Matoso... , v. 1, p. 199. 50 Códice Costa Matoso..., v. 1 , p. 206. 51 Códice Costa Matoso..., v. 1, p. 213. 52 Códice Costa Matoso..., v. 1, p. 247. 53 DIHCSP, v. 52, 1930, p. 88-89. 54 APM, SC 09, fl.78. 55 KANTOR, I. Pacto Festivo em Minas Colonial: a entrada triunfal do primeiro bispo na Sé de Mariana. São Paulo, Universidade de São Paulo, 1996. Dissertação de Mestrado, p. 49. 56 COELHO, J. J. T. “Instrução para o governo da capitania de Minas Gerais”. RAPM, v. 8, 1903, p. 399-581; p. 458. GOMES, M. do C. A. “O batismo dos lugares: a toponímia no Códice Costa Matoso” Varia História, v. 21, 1999, p. 420-435; p. 427. 57 ROCHA, J. J. Geografia Histórica... p. 88. PITTA, S. da R. Historia da América... livro nono, p. 273. 58 Códice Costa Matoso... v. 1, p. 213. 59 Códice Costa Matoso... p. 223. 60 ROMEIRO, A. Paulistas e Emboabas...p. 284. 61 Códice Costa Matoso... v. 1, p. 223. 62 Tal sequência factual foi formulada, pela primeira vez, por Adriana Romeiro, em obra recente. Anteriormente, a historiografia coeva apoiava-se em versão dada por Diogo de Vasconcelos – parcialmente inspirada em Rocha Pitta – com detalhes minuciosos, segundo os quais Nunes Viana permanecera em Ouro Preto até o momento em que Antônio de Albuquerque, já em Caeté, o convocou a apresentar-se no Rio das Velhas. Ainda segundo essa versão, as chefias emboabas teriam enviado mensageiro com cartas ao governador, enquanto esse ainda se encontrava no Rio de Janeiro, prometendo-lhe boa acolhida nas minas e submissão à vontade do rei. ROMEIRO, A. Paulistas e Emboabas...p. 293-99. 63 Códice Costa Matoso... v. 1, p. 207. 64 Segundo Albuquerque, “passando por tantas povoações, depois que entrei no Campo éramos os que nos dávamos a conhecer de que ficavam pasmados sem se persuadirem que eu era o mesmo.” AHU, Rio de Janeiro, cx. 8, doc. 867. 65 AHU, Rio de Janeiro, cx. 8, doc. 867. 66 ROMEIRO, A. “A construção de um mito... p. 167-188. 67 AHU, Rio de Janeiro, cx. 8, doc. 867.

2715

68

Códice Costa Matoso... v. 1, p. 213-14. BLUTEAU, R. Vocabulário Portuguez... v. 4, p. 40-41. 70 Códice Costa Matoso... v. 1, p. 247. 71 Infelizmente, as certidões e fés-de-ofício apresentadas no requerimento de mercê protocolado por Manuel Nunes Viana se perderam. No entanto, sua carta de padrão não deixa dúvidas quanto aos serviços arrolados pelo agraciado. Algum tempo depois, o ouvidor Caetano da Costa Matoso registrou que a mercê foi obtida por intermédio do infante dom Francisco, que intercedera junto ante o rei. Mesmo assim, Nunes Viana tivera de desembolsar “mil cruzados”, possivelmente para suprir a multa por dispensa de impedimento verificado no exame de provanças para a Ordem de Cristo. CARTA de padrão de Manoel Nunes Viana APM, SC cx. 2, doc. 1. RAPM, v. 2, n. 2, 1897, p. 393-96. Códice Costa Matoso... v. 1, p. 202. 72 Códice Costa Matoso... v. 1, p. 223. 73 Foi este o argumento mobilizado por Manuel Nunes Viana em sua petição de mercê, isto é, o de que ao liderar combate contrario aos paulistas conseguira “pelo castigo das armas os reduzir à obediência das leis de V. Majestade e das suas Reais Ordens” RAPM, v. 2, n. 2, 1897, p. 393-96. 74 VASCONCELOS, D. de. História Antiga... p. 272. 75 Códice Costa Matoso... v. 1, p. 213. 76 VASCONCELOS, D. de História Antiga... p. 271. 77 Segundo Diogo de Vasconcelos, Albuquerque nomeou dois superintendentes no Rio das Velhas, um para Caeté e outro para Sabará, oficializando as fissuras irreconciliáveis entre paulistas e emboabas. VASCONCELOS, D. de História Antiga... p. 278. 78 Códice Costa Matoso... v. 1, p. 200. 79 Pascoal da Silva detinha uma roça no Campo de Ouro Preto, considerada parte da paróquia de São Bartolomeu. Em 1715, pagou 34 oitavas de ouro “pelo que lucra na sua roça” e “pelos negros que tem nela”. APM, CMOP 02, p. 429. Na carta patente de governador de Ouro Preto, que recebeu de dom Brás Baltasar da Silveira em 1714, informa-se que Antônio de Albuquerque, junto com vinte soldados e alguns oficiais, teria sido sustentado por Pascoal da Silva ao longo de quinze dias. CARTA patente passada a Pascoal da Silva Guimarães, para o posto de governador do distrito de Vila Rica. Vila Rica, aos doze dias do mês de janeiro de 1714. APM, SC 09, fl. 78. 80 “(...) [nomeando] [Antônio de Albuquerque] ao mestre de campo Pascoal da Silva no cargo da superintendência deste distrito se houve ele com grande acerto e prudência, de que resultou principiarem os povos a experimentar a quietação e sossego que de antes o não tinham”. CARTA patente passada a Pascoal da Silva Guimarães, para o posto de governador do distrito de Vila Rica. Vila Rica, 12 de jan. 1714. APM, SC 09, fl. 78. 81 AHU, Consultas de Mercês Gerais, cód. 87, fls. 438-438v. Códice Costa Matoso... v. 1, p. 235-36. 69

2716

Marcelino Freire entre texto e imagem.

Tatiana de Almeida Nunes da Costa Doutoranda em Literatura Cultura e Contemporaneidade (PPGLCC- PUC/Rio) Orientadora: Profa. Dra. Eneida Leal Cunha (PUC/Rio) Co-orientador: Paulo Roberto Tonani do Patrocínio (UFRJ) Bolsista FAPERJ

Resumo: Colocando em tensão a sentença do teórico Karl Erik Schollhammer de que podemos perceber no escritor contemporâneo certa “preocupação com a criação de sua própria presença”, e, também, da teórica Ana Cláudia Viegas de que “no contexto da cultura midiática, a imagem do autor não se constrói apenas de tinta e papel”, procuramos no presente trabalho problematizar a relação entre texto e imagem a partir da figura do escritor pernambucano Marcelino Freire. Procurando repensar a atual cena literária, Freire compõe o mosaico dos escritores que procuram se lançar para além do espaço da página, ocupando as ruas e a internet. Palavras-chave: Literatura – Contemporâneo – Marcelino Freire

Abstract: Calling into question the sentences of the theorist Karl Erik Schollhammer that we can perceive in the contemporary writer some “concern with the creation of his own presence” and, of the theorist Ana Cláudia Viegas that “in the context of media culture, the image of the autor cannot be built only with pen and paper”, we looked for in this term paper discussing the relation between text and image based on the writer from Pernambuco Marcelino Freire. Trying to rethink the current literary scene, Freire is part of the mosaic of writers that try to throw themselves to beyond the page, filling the streets and the internet.

Keywords: Literature - Contemporary - Marcelino Freire

2717

A constante presença de expressões como “múltiplo”, “heterogêneo”, “diverso” nos registros sobre a literatura brasileira contemporânea tem servido como estratégia para, mesmo que de maneira cambaleante, nos situar nesse ambiente que parece assumir como marca a não-definição. Na verdade, o campo das letras não é o único a ser afetado pela dificuldade de vislumbrar um “estilo de época”. A música, as artes visuais, o teatro, igualmente tem sido lançados nesse ambiente multifacetado que cada vez menos parece exigir catalogações rígidas, assim, oferecendo outras formas de relação com o sensível. E mais, o intenso diálogo entre linguagens, gêneros e formas tem contribuído ainda mais para o surgimento de outros modos de expressão. Não como colagem, como hibridização, mas como uma construção que problematiza sentidos clássicos como os de obra, autoria, público, etc. A produção do escritor pernambucano Marcelino Freire converge de forma intensa para esse panorama, jogando-nos em um terreno que solicita a ampliação de diálogos, a entrada em universos que transcendem o literário para, assim, melhor problematizar as questões presentes em seus textos. Até mesmo porque o próprio Marcelino repetidas vezes pontua seu interesse em repensar a atual cena da literatura brasileira a partir da abertura a novos encontros. No entanto, se, com efeito, é possível notar a partilha de certa ambiência i junto a seus pares, tal movimento não se dá sem obstáculos. Tanto sua escrita como suas práticas são elásticas, anunciam outras nuances, ecoam no ar como ruído, sublinham sua colocação em outra ordem. Esquivando-se de caminhos tradicionais, Freire oferece uma fala repleta de sotaques, respirações, encontros, assim construindo uma literatura que não soa fácil aos ouvidos. Não por ser uma linguagem estrangeira, regional, segmentada, mas por trazer à tona o inusitado, aquilo que não se espera. Escrevendo para se “vingar” de injustiças sociais, como frequentemente procura definir sua forma de atuação, é através da diferença que Marcelino se coloca no espaço. Para tal, elege como protagonistas indivíduos marginalizados que em suas atitudes desafiam o habitual, preenchendo a palavra de desconforto. Se parte considerável da produção literária contemporânea a tematizar universos periféricos utiliza-se do efeito do “choque do real”ii como forma de enfatizar o grau de realidade narrativa, a proposta de Freire insere sua especificidade, a saber: a utilização de um discurso realista que não se dá pela via do choque agressivo, ou melhor, se realiza através de outro tipo de violência, talvez mais impactante, a simbólica. A não adoção da linguagem do tiro, do sangue, não faz sua literatura menos violenta. Na verdade, é justamente a forma aguda como traz as situações de descaso social que evidenciam a profundidade e a brutalidade dos temas abordados pelo escritor.

2718

Sua escrita se inscreve no âmbito da política, no sentido de que seu modo de fazer coloca em confronto normas estabelecidas por um grupo dominante e a transgressão das mesmas por indivíduos desviantes. E mais, se pensarmos que seus textos e suas práticas fora da página podem impulsionar em sua audiência o impulso por novos modos de existência, sua ação se alarga ainda mais. Pensar a produção literária de Freire articulada às suas práticas artísticas não necessariamente nos lança em um campo de associação em que a obra figura como uma espécie de espelho do autor. Na verdade, tal caminho parte do entendimento de que suas aparições, tanto em eventos como as virtuais, ocupam uma dimensão importante no campo de uma poética desobediente. Decididamente, Marcelino não quer ser um escritor tradicional. É um cidadão das ruas, do encontro. Não seria forçoso constatar que, entre os autores da atual cena literária, Freire se mostra como um dos mais acessíveis _ e por que não dizer um dos mais acessados1. Quem se interessa em acompanhá-lo para além dos mundos disponíveis em seus livros, pode encontrá-lo em eventos literários realizados em diversas partes do Brasil, em cursos ministrados pelo próprio escritor, no circuito boêmio, na internet. Trajando calça jeans e camiseta polo, em geral, com cores frias, assume a roupagem de um homem cotidiano, daquele que encontramos facilmente em livrarias ou no botequim, na Bahia ou no Rio de Janeiro, na periferia ou nos grandes centros. A preocupação em entrar para o cânone da nossa literatura com todas suas regras de etiqueta adjacentes não lhe cabe. Nas palavras do escritor: “Sei que a minha literatura, o caminho que ela trilhou até agora, por exemplo, ajudou a minha mãe no final de sua vida. Ela que deu a vida pelos seus filhos. Enfim… Eu já estou bem, eu estou em paz, é isso o que eu quero dizer. No dia em que eu acreditar que eu já entrei para o cânone, na verdade, podem me enterrar. Enterrem os meus ossos. Eu entrei foi pelo cânone. Eu me fodi, podem apostar.”2

Freire busca a conversa. Se mostra disponível. Não desempenha apenas o papel de falador, também quer ser um bom ouvinte. Escuta as personagens que estão nas ruas. Constrói junto, em parceria. É pelo outro que sua escrita caminha. Não de forma isolada, se abstendo, se colocando de lado, calando-se. É justamente embaralhando os limites entre o Eu 1

Suas entrevistas e leituras no canal de vídeo youtube possuem o registro de milhares de acessos. Igualmente movimentada é sua conta na rede social twitter com mais de 2000 seguidores. No facebook, Marcelino limita minimamente seus interlocutores. 2 Entrevista concedida ao site “Livre Opinião” em 17 de abr de 2014. Disponível em http://livreopiniao.com/2014/04/17/marcelino-freire-a-literatura-que-eu-escolhi-fazer-ja-tem-me-levado-alugares-aonde-eu-nem-imaginava-estar/

2719

e o Outro que se delineia sua poética. Quem pretende criticar a ausência do Estado, as desigualdades sociais, os amores não-convencionais, a violência urbana? E mais, que papel desempenharia o leitor junto a uma obra que se desenvolve sugerindo a inclusão? Nesse sentindo, vale lembrar que as inúmeras interrogações presentes em seus textos revelam mais do que uma preocupação ortográfica. Toda uma série de perguntas, de questões estão postas na mesa para serem debatidas. Para uma obra desdobrar-se assim, oferecendo várias camadas, faz-se necessário um gesto, um convite. E a coreografia desenvolvida por Marcelino tem o poder de confundir quando sua maneira de se comportar escapa aos limites da página branca. Na verdade, este parece ser um dos grandes desafios propostos por esse escritor que denota a “preocupação com a criação de sua própria presença” (Schollhammer, 2009, p. 13). Marcelino tem um corpo, uma voz. Quando criança foi ator de teatro, fato sem dúvidas relevante para a consolidação de uma desenvolta relação corpo-ambiente. Como ressalta Miguel Conde: “o talento performático demonstrado em suas leituras públicas, o efetivo domínio de palco que ele se vale para contar suas histórias, seriam indicação suficiente dessa continuidade”. (CONDE, 2008, p. 16)

O corpo participa, está presente, traz consigo as marcas das experimentações do mundo. Quando Marcelino se põe em cena o repertório de suas vivências é acionado. Ser nordestino não passa despercebido. É referência. Sua forma de falar, seu sotaque, seu ritmo, distingue-se de outras dicções, mesmo que suas histórias possam ser vividas por qualquer indivíduo marcado pela exclusão, seja qual for sua localização espacial. Desse encontro entre corpo-voz-regionalidade irrompe uma escrita que é quase uma canção de tão melodiosa. Paulo Roberto Tonani do Patrocínio utiliza a expressão conto/canto para se referir à musicalidade presente na literatura de Marcelino (Patrocínio, 2007). O próprio Marcelino destaca esse seu jeito próprio de construção literária. Em suas palavras: “Sou muito movido por essa sonoridade, musicalidade das frases, cantoria, improviso nordestino. Um escritor não conta uma história, ele compõe. Por isso as pessoas, quando leem, pensam: “Poxa, parece que tem uma sonoridade; quando vejo tô lendo como se tivesse tomado por aquele ritmo.” Isso é muito próprio da literatura nordestina, do improviso, da cantoria, da ladainha”.

2720

No entanto, tal sonoridade não aparece de forma harmônica. Muito pelo contrário, insere-se em um quadro ruidoso. Como palavra de desobediência, a literatura de Marcelino Freire se desenvolve a partir de uma chave diferente da adotada por autores que também tratam do universo periférico como Ferréz e Paulo Lins. Ao trazer para o centro da narrativa, indivíduos de trajetórias marcadas pela marginalização, não como seres revoltados contra um sistema de exclusão, mas, indo adiante, apresentando uma afronta maior quando estes desprezam a lógica social impondo uma forma de lidar que lhes é própria, sua narrativa ecoa como um ruído dentro do próprio ruído, dentro daquilo que já se fazia soar como incômodo. Analfabetos que recusam o caminho da escrita, mães que recusam campanhas pela paz, homens individados que colocam seus corpos à venda, homossexuais, catadores de lixo que tomam o lixão - ambiente-símbolo da exclusão - como lar, entre outros são os personagens que desviam das normas de conduta esperadas, evocando posturas não convencionais, dessa maneira, revelando a potência da diferença.

A paz não vai estragar o meu domingo "Todos os meios de comunicação são meios-mistos, todas as representações são heterogêneas, não existe nenhuma arte ‘puramente’ visual nem verbal, apesar de ser o impulso de pureza um dos gestos utópicos do modernismo ". Thomas Mitchell apud Karl Erik Schollhammer

Antes da leitura do conto “Da paz”, um bate-papo informal, repleto de humor, mas também de criticidade, sublinha o clima intimista no qual Marcelino Freire revela as circunstâncias de feitura do referido conto. Produção encomendada por um jornal de grande circulação do Estado de São Paulo solicitando uma tentativa de aproximação com um evento recente, em que a organização criminosa conhecida como PCC (Primeiro Comando da Capital), em demonstração de força, atuou parando a cidade de São Paulo, fechando comércios, criando uma atmosfera de forte tensão social. Produção literária afetada, segundo o escritor, pela recepção de emoções artificiais transmitidas pela imagem televisiva, contra a onda violência que se espalhava pela cidade. Após o prólogo esclarecedor, Freire inicia a leitura oferecendo, tanto à audiência ali presente quanto aos que posteriormente poderiam acessá-lo a partir do ambiente digital, seu sotaque inconfundível, seu gestual articulado. Palavra, imagem e oralidade articuladas construindo sentidos.

2721

A aparição em questão, realizada no dia 19 de outubro de 2014, na Sede Cultural do Instituto TamuJunto, na cidade de Vitória/ES, disponibilizada no site de compartilhamento de vídeos Youtube, não é o único registro virtual de Marcelino em leitura de “Da paz”. Outro vídeo, este postado em junho de 2010, mostra o escritor em leitura realizada no estado de Minas Gerais, em um evento de literatura organizado pela Pontifícia Universidade Católica/MG. Segundo informações disponibilizadas pelo site Youtube, o primeiro vídeo registra mais de 200 visualizações e o segundo mais de 1.400 acessos. Informações provisórias, podendo sofrer alterações em um período curto de tempo. Condição peculiar essa dos vídeos disponibilizados em plataformas como o Youtube. Ao mesmo tempo em que fornecem a possibilidade de extensão de determinado evento, acentuando a durabilidade de algo que não se faz mais presente, o evento tornado arquivo; também revela sua condição efêmera, podendo ser excluído a qualquer momento pelo reponsável pela conta no site (tanto por opção pessoal, como por decisão de outrem, ação judicial, por exemplo). No entanto, o site revela-se mais como um fenômeno de inclusão, do que de exclusão. “O Youtube, é antes de mais, o milagre da multiplicação, da fragmentação” (Loureiro, 2007, p. 167). Reservatório de imagens (fixas e em movimento), o site tem se mostrado uma potente plataforma para a publicização da produção literária. “Não há mais dúvida sobre a superioridade contemporânea da representação visual em termos de eficiência e de impacto sobre o sensível sobre o público” (Schollhammer, 2007), advoga de forma incisiva o teórico literário Karl Erik Schollhammer. No entanto, estar diante de um mundo centrado no olhar não nos coloca em uma siutação de apagamento do textual. Como pontua Schollhammer, pensar a atual relação entre a cultura do texto e a cultura da imagem nos projeta para outra forma de sensibilidade tempo-espacial, configurada em novo regime representativo. Vale ressaltar que a tradicional experiência do livro em constante interseção com os avanços tecnológicos tem promovido novas formas de se envolver com o mundo. Com efeito, Marcelino é um escritor-agitador, consciente das potências dessa palavra que se reinventa nas páginas, na rua e na rede. Dinâmico, Freire demarca seu(s) lugar(es), oferece outras possibilidade de presença. Como escreve Viegas: “No contexto da cultura midiática, a imagem do autor não se constrói apenas de tinta e papel, de modo que, ao lermos um texto, não temos somente o nome do autor como referência, mas sua voz, seu corpo, sua imagem veiculada nos jornais, na televisão, na internet”. (Viegas, 2013, p.115)

2722

O debate sobre a poética da escrita/leitura e sua relação com a experiência sensorial recebeu tratamento de Heidrun Krieger Olinto no artigo "Processos Midiáticos e comunicação literária". Traçando uma espécie de cartografia da experiência literária, por via dos teóricos da comunicação, Olinto procura pensar o processo de distanciamento do contato sensível com o texto, em especial, por força dos mecanismos da modernidade que, assim, iam tornando o sujeito cada vez mais homogeinizado. Citando o canadense Masrshal McLuhan, Olinto traça a equação dos caminhos da escrita/leitura (Heidrun, 2003):

"A passagem da mídia oral para o texto manuscrito e a deste para o livro impresso, podem ser descritas, neste âmbito, como nítido empobrecimento da experiência sensorial do corpo".

O livro impresso seria, nesse trânsito, um dos principais vilões responsáveis pelo afastamento do aspecto sensorial. A "galáxia de Gutenberg", expressão que intitula uma das principais obras de McLuhan, atuaria enquanto força propulsora das transformações "nas esferas do saber, da produção e da comunicação". O traço individual do manuscrito, a voz e a interação da cultura oral, teriam perdido o lugar para o intelecto-interpretativo solitário do indivíduo em seu espaço particular. Sugerindo o retorno ao aspecto material/sensorial desaparecido, o alemão Hans Ulrich Gumbrecht se volta na direção de pensar a possibilidade de outros modos de entendimento das coisas em outra via que não a da tradição interpretativa. Apostando no processo de interação dos corpos no espaço propiciado pela “produção de presença”, ou seja, pelo afetamento sensível provocado pelos objetos, Gumbrecht coloca em tensão as noções de “presença” e “sentido”. Assim, procurando desestabilizar hierarquias entre a “cultura do sentido” e a “cultura da presença”, o alemão estimula o debate entre os elementos constituintes da esfera cultural (Gumbrecht, 2001, p.12):

"suponho antes (...) que seja possível _ e do ponto de vista intelectual produtivo _ descrever todas as culturas e todos os dispositivos culturais como combinação de elementos dos dois tipos de estrutura e proporção distintas".

Nos dias atuais, marcados pelo desenvolvimento das tecnologias visuais, o encontro entre a cultura textual e a imagética nos lança em uma distinta experimentação do ficcional (Schollhammer, 2007). Pensando pontualmente a produção literária nacional (brasileira), Karl Erik articula o conceito de “Realismo afetivo” para pensar a produção de

2723

autores contemporâneos que procuram produzir efeitos de realidade, não no sentido do realismo histórico do século XIX pautada em rigores cientificistas, mas sim enquanto representação de um real que se faz referencial, ou seja, que parte da noção de experiência, “novo realismo (que) se expressa pela vontade de relacionar a literatura e a arte com a realidade social e cultural da qual emerge, incorporando essa realidade esteticamente dentro da obra e situando a própria produção artística como força transformadora” (Schollhammer, 2009, p. 54). Ressignificações da literatura de compromisso social. Com efeito, podemos situar o pernambucano Marcelino Freire no rol dos escritores que buscam um engajamento pela palavra. No entanto, sua relação de proximidade com o narrado apóia-se não em um pacto ficcional, em uma escrita em tom de diário íntimo, mas em sua vivência de margem, que também se distancia da experiência de autores oriundos de espaços periféricos. Pernambucano de nascimento, não foi morador e nem frequentador de morros ou favelas em sua infância, apesar de ter nascido em uma cidade do interior de Pernambuco, Sertânia, e passado sua infância em Recife, espaço que não possui a centralidade de cidades como Rio de Janeiro e São Paulo. A condição de “outro”, parece ter melhor se revelado quando o escritor deixa seu estado natal em direção a São Paulo, e lá “descobre que tem um sotaque”. Essa dicção particular de Freire vai marcar também a diferença entre sua literatura e a de outros escritores que também elegem os espaços de exclusão como centro da cena. Em suas leituras públicas, no presente momento pensando pontualmente as disponibilizadas pelo Youtube, o comprometimento de Marcelino com a mudança do estado das coisas assume variadas facetas. Por um lado, o seu lançar-se como leitor/ator/performer dialoga com a intencionalidade de retirar a literatura de um espaço superior, inalcançável ao cidadão comum ou, por que não dizer, intragável ao indivíduo pouco familiarizado com o universo das letras. Sem cobrança de ingresso, sem cerimônias, sem roupagem erudita, adentra em qualquer espaço em que esteja disponível um computador ou aparelho eletrônico que possa realizar o acesso à internet. Por outro lado, com acidez, Freire em sua narrativa ficcional, denuncia os dilemas do urbano e suas formas de violência moral. A resposta negativa a outras possibilidades de existência, ao mesmo tempo, que possibilita ao leitor o sentimento de espanto ao se deparar com a preferência a não incorporação a uma nova ordem, já que é justamente o cenário de exclusão que possibilita a esses indivíduos o acesso a bens concretos e simbólicos, também permite a reflexão sobre a pouca eficácia das políticas sociais em atender as demandas dos menos favorecidos. No entanto, como lembra Patrocínio, o discurso 2724

de Freire se desenvolve sem a preocupação de construir uma situação de vitimização, assim, apresentando suas personagens enquanto indivíduos reais que adotam estratégias de enfrentamento para situações de privação. Com sua coreografia própria, Freire procura jogar com o ser o outro. Na efemeridade do registro faz-se sujeito da experiência. É o autor atravessando as fronteiras da autoria da fala. Como prática/discurso do entre-lugar, da borda, rasura os limites entre real e o ficcional, convidando os leitores/expectadores para o terreno da dúvida. Literatura de enfrentamento manifesta em versos sem “medo de linguagem superior”.

No ano de 2001, Nelson Oliveira organiza a antologia “Geração 90: manuscritos de computador”, procurando traçar um breve mapeamento da produção literária brasileira do final do século XX. Oliveira elenca entre os autores da chamada “Geração 90”, nomes como: Fernando Bonassi, Luiz Ruffato, Marçal Aquino e Marcelino Freire. Para o crítico literário Karl Erik Schollhammer, a apreciação da coletânea de Nelson Oliveira, não permite a visualização de “nenhuma ‘escola literária’, nenhuma tendência clara que unifique todos, e nenhum movimento programático ao qual o escritor estreante se identifique”, assim pontuando a necessidade de problematizando da noção de unidade geracional. Cf. SCHOLLHAMMER, Karl Erik. Ficção Brasileira Contemporânea. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 35 ii Beatriz Jaguaribe lança mão do conceito de “choque do real” para se referir ao uso em obras de realismo audiovisual e literário do eixo Rio-São Paulo, como por exemplo, os filmes Cidade de Deus (Fernando Meirelles) e Ônibus 174 (José Padilha), de mecanismos de estimulo do estado de espanto no leitor/espectador a fim de retirá-lo de sua cômoda situação de observador. Nas palavras da autora: "Defino o ‘choque do real’, como sendo a utilização de estéticas realistas visando suscitar um efeito de espanto catártico no leitor ou espectador. Busca provocar o incômodo e quer sensibilizar o leitor-espectador sem cair, necessariamente, em registros do grotesco, espetacular, sensacionalista. O impacto do ‘choque’ decorre da representação de algo que não é necessariamente extraordinário, mas que é exarcerbado e intensificado. São ocorrências cotidianas da vivência metropolitana tais como violações, assassinatos, assaltos, lutas, contatos eróticos, que provocam forte ressonância emotiva". JAGUARIBE, Beatriz. O choque do real: estética, mídia e cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 2007, p. 103. i

2725

Religião e direitos humanos em lados opostos?: a questão LGBT Tatiana de Souza Sampaio Freitas1

Resumo Quando a Brazilian Resolution (on sexual orientation and human rights) foi apresentada na ONU em 2003, houve pressão contrária a sua votação feita pelo Vaticano e Estados Islâmicos. Apenas em 2011, foi publicado relatório (UNHCHR) que debate as leis e práticas discriminatórias e atos de violência contra indivíduos baseados na orientação sexual. O presente artigo busca analisar como diferentes expressões religiosas se posicionam sobre a questão LGBT e como essas orientações são passadas para as famílias e comunidades. Palavras-chave: LGBT, religião, direitos humanos Abstract When the Brazilian Resolution (on sexual orientation and human rights) was presented at the UM in 2003, the Vatican and Islamic States were radically against it. Only in 2011, a report was published by the UNCHR that debates the existence of laws and discriminatory practices based on sexual orientation. The present article intends to analyze how the different religious expressions relate to the LGBT issues and how there orientations are passed to the families and communities. Keywords: LGBT, religion, human rights

Do Direito Internacional de Direitos Humanos: a garantia de igualdade para a população LGBT nas normas internacionais

Em 1948, foi necessário convocar a Assembleia Geral das Nações Unidas para que pudesse redigir um documento viabilizando a proteção dos direitos humanos, após os horrores sofridos com a Primeira e Segunda Guerra Mundial. Essa declaração foi redigida por membros de diferentes culturas e proveniências e foi fundamentada nos ideais iluministas. Já no seu preâmbulo, nota-se que a intenção da elaboração do documento é levar todos os seres humanos a terem seus direitos fundamentais garantidos: direito à vida, à liberdade, à igualdade, ao reconhecimento perante a lei, a uma nacionalidade, à propriedade, entre outros. Artigo 1º Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. (...) e Artigo 2° Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades proclamados na presente Declaração, sem distinção alguma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação.

1

A autora é formada em Comunicação Social pela PUC-RJ, possui pós graduação em Relações Internacionais pela UCAM e mestrado em História Política com ênfase em Relações Internacionais pela UERJ. Atualmente, leciona na Universidade Veiga de Almeida e no Centro Universitário IBMR.

2726

Na 59ª sessão da Comissão das Nações Unidas para os Direitos Humanos - CDH (2003), a delegação Brasileira propôs uma Resolução sobre Direitos Humanos e Orientação Sexual, que ficou conhecida como Brazilian Resolution. A Comissão não possui competência impositiva, apenas normativa. Logo, ela opera em um sistema de “vergonha”, no qual os governos se sentirão desconfortáveis por serem escrutinizados em público por violação de direitos humanos, uma vez que todos desejam ser vistos sob uma perspectiva positiva interna e internacionalmente. Desde a Conferência sobre Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Relacionadas (2001), o Brasil objetivava incluir o termo orientação sexual e direitos humanos no contexto das Nações Unidas e na Declaração Universal de Direitos Humanos. Por exemplo, em 2000, 2002 e 2003, a CDH debateu a inclusão do termo sexualidade na resolução sobre execuções extrajudiciais, arbitrárias e sumárias. O debate sobre a condenação à morte devido à orientação sexual reemergiu quando a reunião da Assembleia Geral das Nações Unidas abordou essa resolução. A Brazilian Resolution reconhece a existência de discriminação baseada em orientação sexual ao redor do mundo, que vai contra o que está estabelecido nos grandes instrumentos de proteção aos direitos humanos e pede que todos os governos promovam e protejam os direitos humanos de todas as pessoas, independente da sua orientação sexual: The Commission on Human Rights, (…) PP3 - Reaffirming that the Universal Declaration of Human Rights affirms the fundamental principle of the inadmissibility of discrimination and proclaims that all human beings are born free and equal in dignity and rights and that everyone is entitled to the enjoyment of all rights and freedoms set forth therein without distinction of any kind, (… ) OP1 - Expresses deep concern at the occurrence of violations of human rights all over the world against persons on the grounds of their sexual orientation.2

Sua aprovação garantiria apoio à mudança de legislação contrária a Declaração Universal dos Direitos Humanos, poderia invocar maior atuação dos Estados em caso de assassinato, torturas e prisões arbitrárias, reforçaria o pedido de asilo baseado na perseguição por orientação sexual e ajudar ativistas a lutar pelo apoio dos direitos humanos da população LGBT. O Brasil teve o apoio da União Europeia, Canada e Austrália. Costa Rica e México foram a favor, mas deram um passo atrás quando o Vaticano começou a pressioná-los. Países da Conferência Islâmica (PCI), particularmente Paquistão, Malásia, Arábia Saudita e Bahrain, tal como Zimbábue, atacaram fortemente a Resolução e inclusive afirmaram que esse não era um 2

59th session of CHR: Resolution text: "Human Rights and Sexual Orientation", disponível em http://iglhrc.org/sites/default/files/213-1.pdf, acesso em 25/09/15

2727

tópico válido a ser discutido na ONU. Os governos trabalharam por trás e à frente das cenas para garantir que não apenas a Resolução fosse rejeitada, mas que nem fosse pauta de discussão. O Paquistão, à frente da PCI enviou um aide memoire, pedindo que os PCI votassem contra a resolução. Foi um texto com caráter de ódio e que buscava táticas para postergar o debate, como colocar um número excessivo de emendas. A Resolução foi mantida na agenda da Comissão, mas postergada para o ano seguinte. Apenas em junho de 2011, a ONU declarou pela primeira vez na história que os Direitos LGBT são direitos humanos, na Resolução da CDH/AG de número L9 3:”The Human Rights Council, (…) Expressing grave concern at acts of violence and discrimination, in all regions of the world, committed against individuals because of their sexual orientation and gender”. Segundo Relatório do Alto Comissariado das Nações Unidas para Direitos Humanos de 17 de novembro de 20114, que debate as leis e práticas discriminatórias e atos de violência contra indivíduos baseados na orientação sexual, entende-se que, entre outras, atitudes discriminatórias na família e comunidade impedem que a totalidade dos direitos humanos seja preservada caso esses direitos não sejam implementados. Durante o painel do Conselho de Direitos Humanos de 2012, que debateu a implementação dessas regras no direito internacional de direitos humanos, alguns Estados se ausentaram antes do início do encontro, muitos apoiaram e alguns foram contra, baseados em aspectos culturais e religiosos. The application of international human rights law is guided by the principles of universality and nondiscrimination enshrined in article 1 of the Universal Declaration of Human Rights, which states that “all human beings are born free and equal in dignity and rights”. All people, including lesbian, gay, bisexual and transgender (LGBT) persons, are entitled to enjoy the protections provided for by international human rights law, including in respect of rights to life, security of person and privacy, the right to be free from torture, arbitrary arrest and detention, the right to be free from discrimination and the right to freedom of expression, association and peaceful assembly. (...)” (II A 5)

O Relatório também prescreve a obrigação dos Estados sob as leis internacionais de direitos humanos, por crimes motivados por orientação sexual ou identidade de gênero, ou para garantir os direitos humanos também para pessoas LGBT, Os Estados devem: a) proteger o direito à vida, liberdade e segurança, b) prevenir a tortura e outras formas de tratamento cruel, não humano ou degradante, c) proteger o direito à privacidade e contra detenção arbitrária, d) proteger indivíduos da discriminação e e) proteger o direito à liberdade de expressão, associação e assembleia de maneira não discriminatória. Os Estados devem lutar contra assassinatos, estupros, e outros atos de violência discriminatória e conceder o direito de 3

Disponível em http://pt.scribd.com/doc/58106434/UN-Resolution-on-Sexual-Orientation-and-Gender-Identity, acesso em 22/09/2015. 4 Relatório do Alto Comissariado das Nações Unidas para Direitos Humanos A/HCR/19/41. Disponível em http://www.ohchr.org/Documents/Issues/Discrimination/A.HRC.19.41_English.pdf, acesso em 24/09/2015.

2728

asilo para aqueles perseguidos devido à orientação sexual ou identidade de gênero. O Relatório orienta que as leis discriminatórias devem ser extintas, tais como leis que criminalizam relações entre pessoas do mesmo sexo entre adultos que o consentem, e outras leis para penalizar indivíduos por orientação sexual ou identidade de gênero, a pena de morte, prisão ou detenção arbitrária, práticas discriminatórias (tais como discriminação no emprego, na educação, assistência de saúde), e restrições na liberdade de expressão, associação e assembleia, negação de reconhecimento das relações e acesso relacionado ao Estado e outros benefícios, reconhecimento de gênero e outras questões relacionadas. Segundo Relatório da ILGA5 de maio de 2015, 75 países no mundo ainda criminalizam atos sexuais entre pessoas do mesmo sexo e mais países criminalizam a homossexualidade de outras formas, deixando os indivíduos sujeitos a perigos, riscos, abuso, assédio e violações com bases em gênero e sexualidade. (p. 6). Oito Estados adotam oficialmente a pena de morte em seus sistemas jurídicos, mas apenas cinco (Mauritânia, Sudão, Irã, Arábia Saudita e Iêmen) realmente o implementam. Embora não esteja no código civil claramente, O Iraque tem juízes e milícias no país que determinam a pena de morte para relações do mesmo sexo. Algumas províncias na Nigéria e Somália implementam oficialmente a pena de morte. Brunei deve colocar a pena de morte em seu estatuto em 2016. Embora não seja um Estado, na região de Daesh (sob o poder do Estado Islâmico), a pena de morte é implementada.6 7 A propaganda contra a homossexualidade está nos estatutos da Rússia, Argélia, Lituânia e Nigéria. Crimes de ódio são considerados uma circunstância agravante em apenas 35 países. O casamento para pessoas do mesmo sexo só é permitido em 18 países, com alguns estados dos Estados Unidos e México que também o aceitam. A adoção para casais do mesmo sexo só é permitida em 19 países (p.10). Há desigualdade de idade de consentimento para atos sexuais de pessoas do mesmo e diferentes sexos em 15 países. 8 Apenas 62 Estados possuem leis que proíbem a discriminação no emprego (p. 33), e apenas 8 países possuem proibições

ONG International Lesbian, Gay, Bisexual, Trans and Intersex Association, no Relatório “State-Sponsered Homophobia - A World Survey of Laws: criminalization, protection and recognition of same-sex love. Disponível em http://old.ilga.org/Statehomophobia/ILGA_State_Sponsored_Homophobia_2015.pdf, acesso em 23/09/2015 6 Em todos esses países, a pena de morte está codificada na Sharia. A Sharia é o sistema legal islâmico, derivado dos preceitos religiosos do Islã. Em árabe, Sharia significa um corpo de leis morais e religiosas, derivadas da profecia religiosa. O Alcorão é a mais importante fonte da jurisprudência islâmica, sendo a segunda a Suna (obra que narra a vida e os caminhos do profeta). Não é possível praticar o Islão sem consultar ambos os textos. 7 Aparentemente, no Afeganistão, Qatar e Paquistão ela não será implementada, apesar de estar no estatuto (p. 10). 8 Benin, Congo, Madagascar, Gabão, Níger, Costa do Marfim, Ruanda, Bahrain, Indonésia, Grécia, alguns associados do Reino Unido, Bahamas, Paraguai, Suriname, Canadá, algumas partes dos Estados Unidos, e algumas partes da Austrália (ILGA, Relatório State-Sponsered Homophobia, p. 31 e 32). 5

2729

constitucionais sobre discriminação baseada na orientação sexual (p. 36) 9. Apenas 35 países possuem leis baseadas em crime de ódio por orientação sexual (p. 37 e 38) Na ONU, foi adotada em setembro de 2014 no Conselho de Direitos Humanos uma segunda Resolução sobre combate à violência e discriminação baseadas na orientação sexual e identidade de gênero (L.27/Rev. 1)10 - trazida pelo Brasil, Colômbia, Chile e Uruguai e 42 outros países co-patrocinadores – que reforçam os princípios da Declaração Universal de Direitos Humanos. A Resolução sobreviveu a sete emendas hostis, introduzidas pelo Egito a frente de dez Estados, buscando retirar da resolução todas as referências à orientação sexual e identidade de gênero. O Brasil declarou que “essas emendas buscavam mudar radicalmente os propósitos e foco da resolução e mudar sua substância”. Ao final, a resolução passou com o voto favorável de 25 países a favor, 14 contra11 e 7 abstenções.12 Entretanto, há algumas outras resoluções hostis de impacto na ONU. Em junho de 2014, o Egito liderou uma resolução de “Proteção à Família”, que explicitamente se recusa a enumerar outras formas de diversidade de família. Os governos se protegem pelo argumento da “soberania nacional” para que cada Estado possa decidir o que significa uma família. Uma Resolução russa sobre “Valores Tradicionais” (a quarta resolução desde 2009) não foi trazida à ONU como esperado, mas pode reemergir a qualquer momento. Embora o Brasil esteja à frente de resoluções levadas aos áuspices da ONU, ainda há muito a ser validado. Dentre os direitos da população LGBT, ainda não é permitido o casamento gay (apesar da união civil), não há proibição legislativa para os crimes de ódio nem incitamento ao ódio baseado em orientação sexual, apenas em Alagoas, Distrito Federal, Mato Grosso, Pará, Santa Catarina e Sergipe há legislação para discriminação baseada em orientação sexual. No entanto, a adoção por casais do mesmo sexo é permitida, tal como a proibição de discriminação no emprego na maior parte dos estados e cidades brasileiras.

Discriminação nas comunidades e a influência religiosa

9

São eles: África do Sul, Kosovo, Portugal, Suécia, Suíça e algumas partes da Alemanha. 10 Resolução disponível em http://daccess-ddsny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G14/177/32/PDF/G1417732.pdf?OpenElement, acesso em 24/09/2015. 11 Países contrários: Argélia , Botsuana, Costa do Marfim, Etiópia, Gabão, Indonésia, Quênia , Kuwait , Maldivas , Marrocos , Paquistão, Arábia Saudita , Emirados Árabes Unidos e Rússia. 12 Disponível em http://ilga.org/top-un-human-rights-body-condemns-violence-discrimination-basis-sexualorientation-gender-identity/, acesso em 24/09/2015. A Resolução pede que o Alto Comissariado de Direitos Humanos atualize um estudo de 2012 sobre violência e discriminação por orientação sexual e identidade de gênero e promova, divida e incentive as melhores práticas de combate à discriminação e violência. Claramente, a Resolução é modesta, apenas um relatório da ONU atualizado, mas uma outra resolução é esperada em 2016.

2730

Uma parte do relatório aprovado na CDH/ONU em 2011 é dedicada a práticas discriminatórias na família e na comunidade. While families and communities are often an important source of support, discriminatory attitudes within families and communities can also inhibit the ability of LGBT people to enjoy the full range of human rights. Such discrimination manifests itself in various ways, including through individuals being excluded from family homes, disinherited, prevented from going to school, sent to psychiatric institutions, forced to marry, forced to relinquish children, punished for activist work and subjected to attacks on personal reputation. In many cases, lesbians, bisexual women and transgender people are especially at risk owing to entrenched gender inequalities that restrict autonomy in decision-making about sexuality, reproduction and family life. (Relatório A/HCR/19/41, art. 66)

Segundo dados da Secretaria de Direitos Humanos do governo brasileiro, em 2012 o poder público registrou 3.084 denúncias de 9.982 violações relacionadas à população LGBT, envolvendo 4.851 vítimas e 4.784 suspeitos. Em relação a 2011 houve um aumento de 166,09% de denúncias e 46,6% de violações, quando foram notificadas 1.159 denúncias de 6.809 violações de direitos humanos contra LGBT, envolvendo 1.713 vítimas e 2.275 suspeitos.13 É preciso entender que a homofobia possui um caráter muito mais abrangente do que as violências tipificadas na legislação, pois não é a rejeição irracional ou a manifestação do ódio aos LGBT apenas, mas uma demonstração arbitrária que busca diminuir e desqualificar o outro, tratando-o como anormal ou inferior. Devido a sua diferença, nega-se a esses indivíduos humanidade, dignidade e personalidade. Há violência simbólica, ou seja, a que se exerce pelo poder das palavras que negam, oprimem ou destroem psicologicamente o outro. É curioso perceber o quanto o pensamento religioso influencia nessa ideia de errado, pecado, anormal, punível, expresso nas mais diferentes religiões, com grande expressão internacional do catolicismo e do islamismo, onde há maior influência sobre as decisões tomadas no âmbito das Nações Unidas. Em 2003, a Santa Sé e os Países da Conferência Islâmica já se mostravam contrários a legalização dos direitos LGBT,

explicitamente

baseados em códigos religiosos.

“Os dados revelam uma média de 3,23 violações sofridas por cada uma das vítimas. Esse cenário se torna ainda mais preocupante ao se levar em conta a subnotificação de dados relacionados a violências em geral, e a este tipo de violência em particular. Muitas vezes, ocorre a naturalização da violência como único tratamento possível, ou a autoculpabilização. Cabe reiterar que as estatísticas analisadas ao longo dessa seção referem-se às violações reportadas, não correspondendo à totalidade das violências ocorridas cotidianamente contra LGBTs, infelizmente muito mais numerosas do que aquelas que chegam ao conhecimento do poder público. Apesar da subnotificação, os números apontam para um grave quadro de violências homofóbicas no Brasil: no ano de 2012, foram reportadas 27,34 violações de direitos humanos de caráter homofóbico por dia durante o ano de 2012, 13,29 pessoas foram vítimas de violência homofóbica reportada no país”. 2º Relatório sobre Violência Homofóbica 2012 da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República do Brasil, disponível em http://www.sdh.gov.br/assuntos/lgbt/pdf/relatorio-violencia-homofobica-ano-2012, acesso em 24/09/2015. 13

2731

Na passagem bíblica de 1 Coríntios 6:9,10, utilizada pelas religiões cristãs, afirma-se que os “efeminados” e “sodomitas” são “pecaminosos”, logo não poderão entrar no paraíso 14. Muitas passagens do Velho Testamento são interpretadas de modo a acreditar que todos aqueles engajados em práticas homossexuais deveriam ser punidos com a morte. 15 As denominações conservadoras também opõe a ideia de relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo, dizendo que o Velho e Novo Testamentos descrevem as relações sexuais como sendo estritamente heterossexuais.16 Tais pensamentos também são expressos nos escritos islâmicos, como no livro de Sahih al-Bukhari e no livro de Sunan Abu Dawood.17 Segundo pesquisa realizada pelo Pew Research Center em 2013 e atualizada em 2014, existe uma forte relação entre a opinião de um país sobre a homossexualidade e a importância que se dá para a religião na vida das pessoas. Os países que mais rejeitaram a homossexualidade foram os africanos e muçulmanos. Na África Subsaariana, mais de 90% da população dos países acredita que a homossexualidade não deveria ser aceita pela sociedade 18. Mesmo na África do Sul onde a discriminação baseada em orientação sexual é inconstitucional, 61% acredita que a homossexualidade não deveria ser aceita pela comunidade, contra 32% a favor. Uma expressiva maioria dos países muçulmanos pesquisados também afirma que a homossexualidade deveria ser rejeitada, incluindo 97% na Jordânia, 95% no Egito, 94% na Tunísia, 93% nos territórios Palestinos, 93% na Indonésia, 87% no Paquistão, 86% na Malásia, 80% no Líbano e 78% na Turquia. Existe muito menos aceitação à homossexualidade em países mais religiosos 19. Entretanto, há exceções, como a Rússia que recebeu baixos valores para religiosidade, o que sugeriria maiores níveis de tolerância (só 16% dos russos acreditam que a homossexualidade 14 “Não sabeis que os injustos não hão de herdar o reino de Deus? Não erreis: nem os devassos, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os efeminados, nem os sodomitas, nem os ladrões, nem os avarentos, nem os bêbados, nem os maldizentes, nem os roubadores herdarão o reino de Deus”. 15 Como em Levítico 20:13: “Quando também um homem se deitar com outro homem, como com mulher, ambos fizeram abominação; certamente morrerão; o seu sangue será sobre eles”, ou em 2 Pedro 2:4-6, onde afirma-se: que Deus “Também condenou as cidades de Sodoma e Gomorra, reduzindo-as a cinzas, tornando-as exemplo do que sucederá aos que vivem praticando o mal”. 16 “E Jesus lhes explicou: “Não tendes lido que, no princípio, o Criador ‘os fez homem e mulher’ (Mateus, 19:4) ou “Esposas, cada uma de vós respeitai ao vosso marido, porquanto sois submissas ao Senhor; porque o marido é o cabeça da esposa, assim como Cristo é o cabeça da Igreja (Efésios: 5:22-33). 17 The Prophet cursed effeminate men (those men who are in the similitude (assume the manners of women) and those women who assume the manners of men, and he said, "Turn them out of your houses." The Prophet turned out such-and-such man, and `Umar turned out such-and-such woman. (Sahih al-Bukhari, 7:72:774) / The Prophet (peace be upon him) said: If you find anyone doing as Lot's people did, kill the one who does it, and the one to whom it is done. (Sunan Abu Dawood, 38:4447) / If a man who is not married is seized committing sodomy, he will be stoned to death. (Sunan Abu Dawood, 38:4448) 18 Nigéria (98%), Senegal (96%), Gana (96%), Uganda (96%) e Quênia (90%). Disponível em http://www.pewglobal.org/2013/06/04/the-global-divide-on-homosexuality/, acesso em 24/09/2015. 19 A força da religião em cada país foi calculada a partir de três vertentes: se as pessoas consideram a religião importante, se acreditam que é necessário acreditar em Deus para ser moral e se rezam pelo menos uma vez ao dia.

2732

deveria ser aceita). Por outro lado, o estudo mostra que os brasileiros e os Filipinos são mais tolerantes que os relativamente altos índices de religiosidade sugeririam.

No Brasil e no Rio de Janeiro Resultado da Pesquisa “Diversidade Sexual e Homofobia no Brasil: intolerância e respeito às diferenças sexuais” (2008), realizada pela Fundação Perseu Abramo em parceria com a Fundação Rosa Luxemburgo, mostra que um em cada quatro brasileiros tem preconceito contra pessoas LGBT. Alguns dados devem ser mencionados: 84% das pessoas concordou com a frase “Deus fez o homem e a mulher com sexos diferentes para que cumpram seu papel e tenham filhos”; e 58% com a frase “A homossexualidade é um pecado contra as leis de Deus”. Tal pesquisa comprova a ligação dos conceitos religiosos com a tendência a maior grau de homofobia. Em pesquisa independente feita pela autora, alguns líderes de diferentes religiões foram entrevistados no Rio de Janeiro20, buscando entender a concepção dessas religiões sobre os novos conceitos de família, as relações homoafetivas, como são recebidos os fiéis LGBT, se os líderes oferecem algum tipo de indução para transformá-los em heterossexuais, e se há algum tipo de restrição para essas pessoas se tornarem pessoas de influência ou líderes espirituais. Em um breve relato, foi constatado que: 1) As religiões cristãs – embora se digam abertas para receber todos os tipos de fiéis desaprovam a relação homossexual, baseando-se na Bíblia. Para as Testemunhas de Jeová, tal como para os protestantes, com oração e o conhecimento da Bíblia, os fiéis mudarão de “opinião e atitudes” pois se conectarão mais com Deus. Aqueles já fiéis devem orar para que o Espírito Santo ilumine as decisões dos homossexuais. Nesses locais, não é possível tornar-se líder espiritual – ou mesmo um pregador – se não cumprir as palavras de Deus, pois não é um exemplo para a comunidade, por estar em constante pecado. No catolicismo, as mulheres não podem se tornar líderes religiosas - apenas homens assumem esses postos e devem praticar a castidade.

20

Essas entrevistas foram feitas sem levar em consideração a determinação das federações nacionais/internacionais. O objetivo era entender como cada um desses pequenos centros religiosos se portava na sua comunidade. É necessário aumentar o número de entrevistados, saber o que as federações passam como informação para as instituições locais, se essas são seguidas pelos líderes espirituais que possuem certo grau de autonomia nas suas comunidades e, principalmente, aumentar o escopo da pesquisa para poder garantir um caráter mais formal e acadêmico. Foram consultados: 1 representante do catolicismo, 2 de umbanda, 2 de candomblé, 2 hindus, 1 testemunha de Jeová, 1 da Igreja Batista, 1 muçulmano, 1 Kardecista e 1 budista. Ficou ausente o representante do judaísmo (na época da entrevista, os rabinos que poderiam responder não estavam presentes).

2733

2) Segundo o líder Kardecista entrevistado, o espírito não tem sexo, e, se há muitas reencarnações vem como homem, por exemplo, e nessa veio como mulher, pode sentir ainda o apego das vidas passadas pelas mulheres. Pode ser que, assim, sinta atração pelo mesmo sexo ou o sentimento de necessidade de mudança do corpo. Com essa mentalidade, o líder espiritual diz-se receptivo e com completa aceitação à população LGBT. O centro espírita consultado, no entanto, era relativamente pequeno. 3) As religiões de matriz africana (Candomblé e Umbanda)21 são mais permissivas em relação à homossexualidade. Os líderes entrevistados relataram que os fiéis são bem recebidos e não há nenhum tipo de tentativa de mudança de suas decisões, que o objetivo maior é o amor ao próximo e a Deus e aos Orixás. Há relatos de centros candomblecistas e umbandistas que realizaram casamentos homossexuais, mas essa abertura não ocorre em todos os centros. Na Umbanda, a mãe de santo afirmou que apenas pede discrição no comportamento, tanto de heterossexuais quanto homossexuais. Não há restrições para que esses se tornem líderes religiosos. No entanto, há restrições de afazeres baseados em sexo (apenas mulheres podem preparar a comida dos santos e homens podem tocar atabaque). Quando questionado sobre mudanças no corpo, o líder candomblecista afirmou que uma vez que a pessoa “fez santo”, não pode mais modificar seu corpo, pois o Orixá o reconhece com aquele corpo. Dessa forma, não aceita a transgenerização após uma feitura de santo. Segundo o pai de santo, alguns centros são tão conservadores que até para cortar o cabelo ou fazer uma tatuagem precisa pedir permissão ao Orixá. Nos lugares consultados, havia exemplos de líderes e fiéis LGBT. 4) Na filosofia hindu, prega-se todo o tipo de amor, sem determinação sexual. No entanto, a sexualidade (seja ela homossexual ou heterossexual) deve ser controlada, assim como todas as outras formas de expressão carnal (luxúria, raiva, gula), para que o espírito possa se elevar. Há interfaces com o Budismo e o Cristianismo, visto que os hinduístas acreditam que Krishna reencarnou como Jesus Cristo e Buda. Para eles, controlar as ânsias físicas – como evitar o sexo – é uma maneira de se aproximar das divindades. Porém, eles entendem que nem todos abrem mão de ter relações sexuais, e orientam seus discípulos a compensar o apego à carne com outros atos de caridade ou entrega, que elevam o espírito. Havia exemplos de homossexuais entre os líderes e fiéis, mas não havia nenhum homem ou mulher trans (que seriam tratados da mesma forma).

21

Existe grande dificuldade em encontrar uma resposta mais formal sobre essas perguntas nas religiões de matriz africana, visto que não há um livro a ser seguido, mas tradições orais e a própria convivência com o mundo espiritual que determina atitudes a serem seguidas em cada situação. Ainda, por serem de origem de países africanos diversos, existem subdivisões nessas religiões.

2734

5) O líder da mesquita muçulmana interessou-se mais por falar da fé, buscando esquivar-se das perguntas sobre a população LGBT. Como essa comunidade é muito pequena no Rio de Janeiro, é difícil entender até que ponto há discriminação na recepção da população LGBT, ou simplesmente nunca receberam e não há fiéis LGBT na mesquita, não precisando lidar com essa questão. No entanto, citaram passagens sagradas, onde não aceitam a homossexualidade. 6) O líder budista explica que não há diferenças entre os seres humanos que devam ser destacadas, logo todos devem buscar a sua felicidade, visto que o budismo foca no encontro das pessoas com a felicidade, não existindo nenhuma discriminação por qualquer diferença, sendo que todos os tipos de fiéis e líderes são bem recebidos.

Conclusão Burkhard Scherer”22 cita a homossexualidade analisada nas seguintes religiões: Judaísmo, Cristianismo, Islamismo, Hinduísmo e Budismo, chegando às mesmas conclusões das entrevistas: Ele afirma que tanto na Bíblia quanto no judaísmo rabínico o amor homossexual é proibido, embora existam expressões do judaísmo liberal e reformado que aceitam diferentes orientações sexuais. O Cristianismo tem reservas na Bíblia quanto ao amor LGBT, mas podese notar um número grande de cristãos que acredita que o amor deve ser valorizado independente da orientação sexual. No Islamismo, os atos homossexuais são quase sempre identificados como o “pecado do povo de Ló” e condenados, como afirma a Sura. No entanto, o Alcorão também proíbe a calúnia, delação e espionagem da vida particular. Algumas partes consideram inconveniente a injusta discriminação com base em uma tendência que não foi escolhida pela pessoa, e, em alguns lugares, adota-se uma postura mais tolerante. O texto também relata a ideia hindu de que o ato sexual deve servir apenas à geração, mas que essa impureza pode ser lavada com um banho ritual. No Budismo, a homossexualidade recebe valorização neutra, onde a visão sobre a sexualidade – que pode ser transpassada para a homossexualidade – é que o sexo não pode provocar sofrimento. Não podemos esquecer de relatar uma série de movimentos religiosos que aceitam a população LGBT, como o Judaísmo Reformado, o Conselho Hindu (o do Reino Unido, em 2009, declarou que o hinduísmo não condena a homessexualidade)23, ou a Igreja Cristã

Organizador do livro “As Grandes Religiões: temas centrais comparados”. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2005. "'Hinduism does not condemn homosexuality'". De 3 de julho de 2009, acesso em 22 de agosto de 2015, disponível em http://www.theguardian.com/commentisfree/belief/2009/jul/02/gay-rights-india, acesso em 27/09/15 22

23

2735

Contemporânea do Rio de Janeiro, que inclusive publicou um livro de reinterpretação da Bíblia.24 Esses e outros movimentos merecem atenção e pesquisa futura.

24

“A Bíblia sem Preconceitos” de Marcos Gladstone.

2736

A MEMÓRIA DOS OUTROS: RELATOS DE DOIS DESCENDENTES DE JUDEUS SOBRE O HOLOCAUSTO Thais de Santis Rocha Mestranda em História Social na Universidade de São Paulo Orientador: Professor Doutor José Antônio Vasconcelos Bolsista CAPES Email: [email protected]

Resumo: A análise das obras “Eu, filha de sobreviventes do Holocausto”, de Bernice Einseinstein e “Meu coração ferido: a vida e as cartas de Lilli Jahn”, de Martin Doerry, mostra como as gerações posteriores elaboram sua experiência de busca pessoal considerando-se a relação estabelecida entre algum membro de sua família e o Holocausto.O conceito de transferência de Dominick LaCapra será usado como referencial teórico nesse artigo. Abstract: The paper analyzes the works "I was a child of Holocaust survivors”, written by Bernice Einseinstein and "My wounded hurt: the life and letters of Lilli Jahn”, written by Martin Doerry. It shows how second and third generations elaborate their personal search experience considering the relationship established between any member of their family and the Holocaust. Palavras-chave: Memória- Holocausto- Transferência Key-words: Memory- Holocaust- Transference

INTRODUÇÃO A Segunda Guerra provocou profundas alterações na contemporaneidade. Desde a libertação dos campos de concentração, houve uma tentativa de se explicar o que aconteceu naqueles espaços. Formou-se então uma memória traumática nas testemunhas do Holocausto, resultando em um processo posterior de silenciamento e de esquecimento dos envolvidos, pois nos momentos de rememoração dos fatos vividos se despertavam lembranças das violências sofridas e isso incomodava os sobreviventes dos campos de concentração. Na década de 1970 houve uma preocupação em se catalogar e se escutar poucos que viveram aquela experiência e que ainda estavam vivos para evitar que se repetisse no futuro algo semelhante ao ocorrido durante o regime nazista, formando um acervo de institutos e museus com testemunhos gravados e guardados para as gerações posteriores. 2737

Como resultado dessas atitudes, alguns dos filhos de pessoas perseguidas pelo nazismo sabendo da importância individual de seus parentes nos territórios ocupados começaram, sobretudo após meados dos anos 1980, a escrever sobre sua relação com a Shoah, uma vez que também eram portadores de uma memória de segunda mão, pois absorveram os relatos escutados e começaram a trabalhar como poderiam continuar o trabalho relativo a projetos educativos quando as testemunhas morressem. Nesse artigo analisaremos duas obras escritas por filhos de sobreviventes do Holocausto e como eles estabelecem uma relação com essa memória de uma geração anterior através de dois tipos de escritos: a obra “Eu filha de sobreviventes do Holocausto”, escrita por Bernice Einsensteini e a biografia “Meu coração ferido: a vida e as cartas de Lilli Jahn”, escrita por Martin Doerry.ii Através dessas duas obras, buscaremos entender como há a representação sobre os limites do Holocausto dentro do processo de construção dessas duas narrativas, que possuem uma relação com as famílias dos autores. Usaremos o conceito de transferência para entender esse fenômeno.

BERNICE E SUAS REPRESENTAÇÕES FAMILIARES

A obra de Bernice Eisenstein, uma ilustradora canadense, foi publicada originalmente em inglês em 2006. Com um perfil autobiográfico e no qual descreve suas memórias de forma fragmentada, ela trata de como, depois da morte de seu pai, surgiu uma preocupação em conhecer melhor sobre o passado familiar encadeado por uma mudança residencial, na qual foi preciso mexer em diversos objetos guardados, como as camisetas regatas de seu pai, e a relação deles com as memórias de sobreviventes de Auschwitz, que imigraram para o Canadá. A busca se inicia quando ela, juntamente com sua mãe, começa a mexer nos pertences de seu pai falecido e descobre que o anel de casamento possuía outro nome na parte interna. Depois, ela se inspira em filmes e livros para entender mais sobre o assunto uma vez que em sua residência havia pouco diálogo sobre o tema. Sua narrativa é considerada diferente devido a seus desenhos que compõe uma narrativa ilustrada com um traço próprio, se apropriando de fotos repetidas em outras publicações mas se questionando sobre o por quê desse tipo de representação. Durante a leitura nos deparamos com trechos com textos maiores, a interação de imagens com textos

2738

maiores mais discursivos e com algumas sequências semelhante. Para contar essa trajetória, sua narrativa é composta por desenhos e por uma narrativa em primeira pessoa, nos quais podemos notar uma perspectiva individual e pessoal na qual as palavras não poderiam representar sua forma de se expressar, usando as cores nas ilustrações.

DOERRY EM BUSCA DO PASSADO DE SUA AVÓ

A obra de Martin Doerry, publicada originalmente em alemão, possui uma perspectiva diferente: através das cartas escritas entre os anos de 1900 e 1944, ele fez uma seleção desses escritos e com o resultado compôs uma biografia, na qual retrata a vida de sua avó, Lilli Jahn, desde o período anterior ao casamento, com algumas correspondências por ela escritas ao seu futuro marido, Ernst Jahn, a separação e o isolamento imposto pelo regime. Em 1943 Lilli Jahn é presa, deixando os filhos sozinhos em um apartamento bombardeado pelos e encaminhada para o campo de educação do trabalho de Breitenau, onde fica confinada por poucos meses e posteriormente é deportada para Auschwitz, onde morre. Essa obra se destaca por demonstrar uma relação familiar de um casamento misto, no qual algum dos cônjuges possui sangue judeu e o outro é considerado ariano, pois grande parte das cartas transcritas nesse livro foram redigidas pelos seus filhos, sobretudo a mais velha, chamada Ilse, que é a mãe de Doerry. Martin Doerry é jornalista e historiador sendo o editor chefe do periódico alemão Der Spiegel. A biografia é composta por essas cartas selecionadas de um acervo pessoal obtido após a morte de seu tio, que foi ministro da defesa da Alemanha. Após o conhecimento sobre a existência dessas epístolas, esse jornalista se debruça sobre o passado de sua avó, de quem possuía poucas informações. Durante o tempo no qual esteve confinada, trocou 9 cartas com os filhos, sendo apenas duas enviadas de forma legal. As fontes usadas para a elaboração desse trabalho foram essas correspondências seriadas, obras acadêmicas e alguns documentos, como o passaporte com o carimbo judeu e a certidão de óbito. Algumas lacunas históricas foram resolvidas com a ajuda de sua mãe e de outros familiares vivos, compondo uma narrativa centralizada na vida dessa judia e sua relação estabelecida no ambiente familiar. A tentativa do autor em escrever uma obra sentimental, focada no heroísmo da entrevistada, mostrada como uma mártir que se sacrificou para

2739

permanecer perto de seus herdeiros, pode ser notada pela estrutura desse trabalho. Ele consegue estabelecer relações sociais do período e demonstrar ao leitor uma oportunidade de conhecer mais sobre o nazismo sobre a ótica de uma mulher e de crianças, personagens históricos não abordados normalmente. Disposto em ordem cronológica, o texto final é factual, intercalando as cartas com pequenos dados sobre o contexto da Alemanha, disponibilizando as ferramentas essenciais para se compreender através de uma microhistória a uma estrutura maior os reflexos do Holocausto. Os fatos abordados possuem a preocupação com a atenção

do

leitor,

evidenciando algo curioso e atrativo, como o relato dos bombardeios incendiários 22 de outubro de 1943 que afetaram diretamente os filhos de Lilli.

COMO ELES ESCREVERAM AS MEMÓRIAS DOS OUTROS

As gerações posteriores possuem o contato com a memória dos sobreviventes do Holocausto e com isso desenvolvem uma memória secundária, baseada também em outras fontes, como livros e filmes. Dominick LaCapra escreve que “repensar el psicoanálisis que se ocupa de problemas como transferencia, pasaje al acto y elaboración, que están íntimamente conectados con el duelo y con otras formas de acción social que requieren la capacidad de recordar de una manera deseable.”iii Esse teórico continua afirmando ainda que se apropriou de alguns conceitos freudianos, pois seria necessário compreender a consciência história em diferentes temporalidades quando se analisam esses eventos, uma vez que ela opera sobre o passado no momento presente. A partir dessas concepções foi possível o desenvolvimento de textos sobre o Holocausto pelas gerações posteriores. Como não possuem a aura escreverem um testemunho dos campos de concentração, eles que ainda revivem parte das lembranças dos outros estabelecem a escrita na qual se apropriam da experiência do outro para redigir esses trabalhos. Embora a estrutura de ambas as obras seja diferente, as duas possuem a mesma preocupação: recontar um passado recente referente a vida de familiares próximos para entender sua relação com o Holocausto, após a morte de algum parente próximo que desencadeie uma rememoração conjunta relacionada a identidade judia. Mas para isso precisaram repensar o trauma dentro da esfera em que se situavam e procurar formas para se representar a experiência vivida por outras pessoas, superando o trauma gerado e tentando

2740

uma perlaboração, mesmo que isso provocasse desconforto durante o momento de rememoração. “Me refiero a la posición subjetiva del hijo del sobreviviente o, más generalmente, del judío de una generación posterior, especialmente alguien que pretende convertir al Holocausto en un trauma fundante y así en una fuente paradójica y tal vez imposible de sentido y de identidad. En realidad esta posición puede, justificadamente o no, ser ocupada por aquellos que quedaron involucrados en problemas del Holocausto al investigar, al contactarse personalmente y por medio de varias formas de transferencia.”iv

Dominick LaCapra, ao escrever sobre Maus, de Art Spiegelmanv, obra na qual é abordada a relação entre familiar através de uma história em quadrinhos, também destaca que “El hijo es la cripta de los residuos traumáticos de sus padres, los fantasmas y obsesiones que son transmitidos por generaciones, a menudo en forma aparentemente inconsciente y distorsionada.”vi Essa informação pode ser aplicada também aos trabalhos de Eisenstein e Martin. Ao se referir sobre o passado de sua avó durante muitos anos, Doerry reafirma que se tratava de um tabu em sua casa, por isso não perguntava pois isso magoava sua mãe, por fazêla lembrar do afastamento do seu pai quando esteve sozinha com seus irmãos e não querer se referir a isso. Há uma necessidade de se compreender nesses dois casos específicos como se desenvolveu após a guerra o cotidiano de sobreviventes, visando estabelecer após a migração de seus parentais para outros países, no caso o Canadá onde moraram os pais de Bernice e a Inglaterra para onde se mudou a mãe de Martin, se ainda era possível restabelecer essas histórias individuais como relevantes dentro de uma literatura da Shoah. No caso da obra de Bernice, ela precisa reconsiderar suas ligações com esse evento com base em suas experiências dentro da comunidade judaica canadense e como essas memórias foram importantes na constituição de sua identidade judia, reiterado pelo uso do ídiche no cotidiano, assim como algumas frases soltas em alemão reforçadas por seus pais. Ela trabalha diretamente com suas memórias para compor seu relato, expondo sua investigação e os resultados. Sua ligação com os pais se reforça em reflexões em trechos como “Passei a entender melhor, de uma maneira mais sentida do que racional, o que meus pais e seus amigos significavam uns para os outros e também a compreender por que sempre foi impossível para mim não me sentir como uma estranha” vii e “Nunca descobri o ponto de fuga do Holocausto, nunca tive muita certeza de onde me situar em seu horizonte.” viii Sua busca foi mais localizada e restrita ao que poderia ter acesso no Canadá, não realizando viagens. Foi através da literatura, de autores clássicos, como os representados em sua página

2741

inicial na qual identificamos as imagens de Hannah Arendt, Primo Levi, Elie Wiesel, Charlotte Salomon e Bruno Schulz, grandes pensadores e teóricos sobre o tema.ix Relevante nesses trabalhos também é a questão da mudança da perspectiva dessas histórias e objetos privados para uma versão pública, na qual o leitor se identifica com o conteúdo e se sensibiliza com a retomada dessas representações. Após a publicação da biografia de Martin, a história de Lilli Jahn se expandiu pelo mundo a partir da leitura em diversos países organizadas em eventos proporcionados por organizações ligadas a memória do Holocausto. Nesses eventos, há conversas com o autor e com isso se formou uma distinção quanto ao papel de uma mãe e como sua vida foi finalizada, distinguindo essa trajetória individual das demais por ressaltar o papel de destaque social ocupado por essa mulher e como sua mãe, Ilse, foi fundamental para a execução do projeto, auxiliando o filho em todas as etapas do processo de pesquisa. Houve a gravação até de um filme no qual Doerry visita acompanhado de sua mãe os últimos lugares onde Lilli viveu, fato possível apenas após a tradução de seu livro para o inglês. Posteriormente, lança outros trabalhos também relativos ao Holocausto, no qual entrevista sobreviventes da Shoah e reflete como sendo um ato necessário para as gerações posteriores em reverberar sobre essas memórias. O livro de Bernice também foi transformado em uma animação desenhada pela autora e narrando trechos de seu livro. O último ponto em comum que apresentaremos é relativo a objetos de memória. A realização dessas lembranças traumáticas ocorreu graças ao uso de objetos de memória deixados pelos judeus, como cartas no caso de Jahn e uma aliança encontrada em um paletó em Auschwitz. A descoberta da história de cada um deles impactou em como eles mudaram de significado, adequando-se a novas apropriações e usos até então não existentes. Dentro de suas trajetórias particulares, eles estimularam as pesquisas e reflexões sobre como se lidar com essas memórias traumáticas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Holocausto permanece como um grande acontecimento do século XX, com reflexos traumáticos ainda não superados. Refletimos a partir dessas duas obras sobre as motivações dos descendentes em escrever sobre esse assunto, pensando em como eles se reportam ao passado traumático de seus parentes. Ponderando sobre isso, concluímos que embora não

2742

tenham vivido a experiência do Holocausto esses dois autores visam em suas obras representar e desvendar sobre eventos do passado calado através de poucas provas no presente, para com isso construir uma vinculação de heroísmo de pessoas de sua família, tendo esses membros sobrevivido ou não. Com uma memória elaborada através de pesquisas sobre o tema, eles podem contribuir para a continuação de uma literatura sobre o tema, seja usando documentos de época quanto revelando o processo de autoconhecimento resultante de um mergulho dentro de si mesmos.

i

EINSEINSTEIN, Bernice. Eu, filha de sobreviventes do Holocausto. Tradução de Alzira Allegro. 1ªEdição. São Paulo : Novo Conceito, 2007 ii DOERRY, Martin. Meu coração ferido: a vida e as cartas de Lilli Jahn. A história de uma médica e mãe judia na Alemanha de Hitler. Tradução de Rose Evelyn Noa Guimarães. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004. iii

Idem. P. 18. Idem. P. 202 v SPIEGELMAN, Art. Maus: a história de um sobrevivente. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. vi LACAPRA, Dominick. Historia y memoria después de Auschwitz. 1a ed. – Buenos Aires : Prometeo Libros, 2009. p. vii EINSEINSTEIN, Bernice. Idem, p. 166. viii Bernice Eisenstein, idem p. 175. ix Idem, p. 7. iv

2743

Desafios da implementação da Lei 11.645/08 no município de Duque de Caxias: possibilidades de resposta ao dever de memória Thais Elisa Silva da Silveirai

RESUMO: Este trabalho pretende fazer uma breve análise da urgência da implementação da lei 11.645/08 no município de Duque de Caxias. Partindo das demandas de duas escolas municipais, onde alguns alunos se identificam como descendentes diretos de indígenas, e da atuação do Instituto dos Saberes dos Povos Originários Aldeia Jacutinga, onde indígenas da região têm procurado dar visibilidade a essa população que vive em contexto urbano, serão levantadas questões e possibilidades da temática indígena no ensino de história a partir dos pensamentos de Jörn Rüsen, Walter Mignolo e Aníbal Quijano. PALAVRAS CHAVES: indígenas urbanos / ensino de história / temática indígena

ABSTRACT: This work intends to make a brief analysis of the urgency of the implementation of the Law 11.645/08 in the city of Duque de Caxias. From the needs of two city public schools, where some students identify themselves as direct descendants of Indians, and the acting of the Instituto dos Saberes dos Povos Originários Aldeia Jacutinga (Aldeia Jacutinga Institute of original peoples’ knowledge – free translation), where Indians from the region have searched to give visibility to this people who lives as urban context, issues and possibilities of the indian theme in the history teaching will be pointed out from the thinkings of Jörn Rüsen, Walter Mignolo e Aníbal Quijano. KEYWORDS: urban indians / history teaching/ indigenous issues

Este artigo parte de uma preocupação com a implementação da lei 11.645/08, que torna obrigatório o ensino da história e cultura indígena em todas as escolas do ensino básico do Brasil, no município de Duque de Caxias. A presença de indígenas que vivem em contexto urbano na cidade, a proximidade de alguns alunos indígenas e o desconhecimento dos professores da proximidade destes povos com a escola, demonstram o quanto o tema é sensível nesta localidade e a necessidade de se repensar o ensino da história dos índios no ensino básico. Não são poucos os trabalhos que revelam a necessidade de renovação do tema na escola e especialmente no ensino de história.ii Em geral, eles defendem a ideia de que uma nova forma de abordar a temática indígena na escola, pautada no protagonismo dessas 2744

populações e na valorização da diferença, pode ajudar a reparar os danos sofridos por essas populações, vítimas da invisibilidade, do preconceito, da discriminação e da violência. Também questionam a maneira tradicional como os índios são tratados na escola, especialmente no ensino de história, ora tratados como bárbaros e selvagens, ora como pessoas inocentes e vítimas incapazes de lutarem pelos seus direitos, versões que disseminam preconceitos geradores de discriminação e violência contra os povos indígenas. Criticam que os índios somem do ensino de história após os estudos sobre o início da colonização, os prendendo sempre ao passado e levando a crer que deixaram de existir, restando apenas alguns poucos grupos isolados que tentam preservar intactamente sua cultura. Por fim, apontam a ineficiência das Universidades na formação dos professores, pouco contribuindo para que possam desconstruir os estereótipos indígenas na sala de aula. Ao tratar da trajetória da temática indígena no ensino de história, Circe Bittencourt iii revela que o assunto esteve presente desde o surgimento da história como disciplina escolar no século XIX. Sendo assim, se a lei torna obrigatório o ensino de um tema que sempre foi ensinado na escola, significa que há uma demanda por mudança. Segundo a autora, essa demanda seria a superação de um imaginário étnico cultural que privilegia a ideologia do branqueamento, uma vez que o ensino da temática indígena tem sido carregado

de

estereótipos e preconceitos. Podemos entender a lei 11.645/08 como mais uma conquista das lutas dos movimentos indígenas por direitos, iniciadas a partir da Constituição de 1988, onde asseguraram o direito a diferença e o fim de uma longa política de assimilação. Ela pode ser compreendida como uma evocação ao “dever de memória”, uma maneira de dar voz às memórias indígenas vinculadas ao roubo de suas terras, à escravização, à violência, ao extermínio, assim como as suas lutas e resistências, ao seu protagonismo, ao seu lugar de sujeito histórico, as suas tradições, para a validação social de direitos já adquiridos e para a conquista de novos. Vozes que foram silenciadas por muito tempo tanto pela historiografia quanto pelo ensino de história O conceito de “dever de memória” surgiu na França, na década de 1970, e está ligado à ideia de que grupos que possuem memórias ligadas à violência e opressão necessitam do cumprimento de ações reparadoras pelo Estado pelos danos sofridos iv. No Brasil, os debates acerca dessas memórias cresceram a partir do final da década de 1970 tendo duas formulações: a primeira ligada às memórias indígenas, negras e tradicionais e a segunda vinculada às memórias das vítimas da ditadura militar v. No caso das memórias indígenas, alguns eventos mobilizaram essas memórias desde então, como a Missa da Terra sem Males em 1979, dedicada “à memória, remorso, denúncia e compromisso” da Igreja Católica em 2745

relação aos indígenas. Outro exemplo, mais recente, foi um movimento paralelo as comemorações dos 500 anos do descobrimento, em 2000, chamado “Brasil, outros quinhentos...” organizado por grupos dos movimentos indígenas negros e populares, que levantaram as suas memórias ligadas à opressão. Apesar de terem existido alguns eventos ligados aos indígenas que tiveram alguma repercussão nacional, não podemos negar que são poucos e que há um grande silenciamento nas questões que envolvem essas populações no presente. Neste momento, muitos povos passam por problemas graves relativos à constante violência e assassinatos causados pela luta por demarcação de suas terras, pelo preconceito e discriminação, entre outros. Só para exemplificar, vários projetos estão em tramitação no Congresso Nacional com o objetivo de usurpar direitos conquistados pelos indígenas, entre mais graves a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215, que transfere a competência de demarcar terras indígenas da União para o Congresso Nacional, e nenhum deles comove a população em geral, seja na defesa dos índios ou dos latifundiários, a não ser aos grupos que estão diretamente envolvidos. Simeão Vilhavea, liderança Guarani-Kaiowá, foi assassinado por grupos de pistoleiros pagos por fazendeiros, no final de agosto deste ano, em represália aos índios por terem “invadido” a própria terra já demarcada, e o fato não foi digno de ao menos uma pequena nota nos principais jornais de grande circulação. Segundo José Ribamar Bessa Freire (2015) “se índios são assassinados sistematicamente nos últimos cinco séculos, isso é tão corriqueiro que deixou de ser notícia (...)”vi. Se podemos falar de uma invisibilidade e afonia indígena, quando nos referimos aos que vivem em contexto urbano essa situação se agrava por não corresponder a nenhum estereótipo atribuído aos índios e por estarem longe de ser um resquício do passado vivendo longe da civilização. Moram em casas, usam roupas, falam português corretamente, compram alimentos em supermercados, frequentam escolas e universidades.... Segundo a concepção majoritária, a saída dos índios das aldeias e a apropriação de elementos culturais não indígenas causa a aculturação, o que leva ao gradual fim destes povos, assimilados a população nacional. Esta chave interpretativa torna impossível entender que existem indígenas vivendo na cidade sem abandonarem sua identidade. A região metropolitana do Rio de Janeiro possui uma quantidade considerável de indígenas que vivem na cidade. Segundo o Censo do IBGE de 2010, só na capital fluminense existem 6.764. Destacamos ainda as cidades de São Gonçalo, com 906 habitantes indígenas, Duque de Caxias, com 865, Nova Iguaçu, com 747. É interessante destacar que esses

2746

municípios do estado do Rio de Janeiro possuem mais indígenas do que Parati (246) e Angra dos Reis (501), municípios que possuem aldeias indígenasvii. Recentemente, alguns indígenas do município de Duque de Caxias criaram o Instituto dos Saberes dos Povos Originários Aldeia Jacutinga, localizado no bairro São Bento junto a Fundação Educacional de Duque de Caxias (FEUDUC). Segundo o relato de Marize Vieira de Oliveira, indígena Guarani-Mbya moradora do município, o instituto seria um meio de dar visibilidade aos indígenas caxienses, para que pudessem se aproximar uns dos outros e tratar de questões e problemas que envolvem ser indígena em contexto urbano em Duque de Caxias. Além dessa iniciativa, em uma pesquisa com os alunos do segundo segmento do ensino fundamental da Escola Municipal Presidente Costa e Silva, localizada no bairro Parque Capivari, e do sétimo ano da Escola Municipal Maria Clara Machado, no bairro Pantanal, pude constatar que a maioria dos alunos declararam possuir antepassados indígenas, sendo que alguns casos, estes antepassados são seus pais, mães, avôs ou avós. Apesar de serem escolas não indígenas para alunos teoricamente não indígenas, esta breve enquete revelou que a temática é muito próxima dos alunos, apesar da invisibilidade desta proximidade e do desinteresse dos profissionais das escolas pelo assunto. Por estes dados podemos entender que se há uma necessidade geral de revisão do ensino de história da temática indígena, ela se acirra em escolas como as citadas. Diante das demandas presentes nessas sociedades e especialmente das demandas por orientação para vida prática dos alunos dessas escolas, é imperativo que sejam rompidos paradigmas eurocêntricos que colocam as diferenças em chaves de hierarquia que inferiorizam os indígenas, possibilitando, então, outros pensamentos e abordagens didático pedagógicas que permitam a compreensão da existência da diversidade e da sua legitimidade. Isto por si só já teria valor em qualquer escola para alunos não indígenas ao trazer reflexões sobre preconceito, discriminação, alteridade e identidades. Numa escola onde identidades indígenas estão presentes, mesmo que invisíveis, a revisão desta temática se torna extremamente relevante e urgente. Caso a escola trate do tema de acordo com a antiga tradição do ensino de história, ela pode contribuir para formação de preconceitos que colocam os indígenas

(e

consequentemente os alunos e/ou seus familiares em conexão com essa identidade) como inferiores, atrasados, crianças na infância que necessitam de ajuda para proteção de seus interesses ou para a integração à nação e a perpetuação de estereótipos que essencializam e generalizam suas culturas. Estes modelos explicativos podem estar servindo para arruinar identidades e tornar a auto compreensão dos alunos e de seus parentes próximos depreciativa, trazendo vários

2747

problemas de autoestima aos alunos, como a escolha de esconder a identidade indígena com medo da repressão que o ato de a assumir pode causar. Só para exemplificar, em 2014, a oca construída pelo Instituto dos Saberes dos Povos Originários Aldeia Jacutinga, local que serviria para encontro dos indígenas da cidade, foi incendiada duas vezes. As lideranças atribuem o incêndio a intolerância religiosa, acreditando que na segunda vez o incêndio foi causado por um aluno evangélico de uma escola da rede municipal próxima. Até o momento, nada foi feito a respeito. O professor de história não deve ser alheio as demandas do presente, especialmente as dos seus alunos. Ignorar as necessidades do seu público e reproduzir conteúdos sem uma reflexão sobre a própria práxis torna o ensino de história vazio de sentido. Manoel Luís Salgado Guimarães, ao refletir sobre a história e o ensino de história diz: (...) repensar a história e seu ensino, nesses termos, pode nos ajudar a refazer nossa humanidade esgarçada, tornando o passado não o lugar seguro para as respostas que nos angustiam, mas a fonte (...) para a nossa ação no mundo. E com isso talvez contribuir para que assumamos nossas responsabilidades, não para com o futuro, que é segredo, mas para com o presente, que é a vida que temos a partilhar com outros homens para sermos, como eles, humanos.”viii

Eunícia Fernandesix entende que é possível atender a um “dever de memória” sem abandonar um “dever de história”. Segundo a autora, a memória se caracteriza por unir o passado e o presente numa continuidade, por colocar o testemunho como verdade. Já a história, disciplina de referência do professor, se faz a partir de um distanciamento, buscando exatamente as diferenças e transformações. Sendo assim, a autora questiona se o recurso ao “dever de memória” sozinho pode deixar de agir “como engrenagem politizada das relações sociais, de ser oportunidade de dar visibilidade para as alteridades, para se transformar em um fúnebre prestar de contas que se encerra ali.”x Proponho pensar o “dever de história” como mais uma possibilidade de superação de paradigmas que inferiorizam e invisibilizam os indígenas. No entanto, é importante lembrar que a história por muito tempo silenciou e invisibilizou os indígenas, negou o seu protagonismo e a sua historicidade, colaborando com a formação de uma identidade nacional que tenta apagar as diferenças e com políticas de assimilação dos índios, que tinha como objetivo o sumiço gradual dessas populações. O “dever de história” deve ser pensado como um exercício de deslocamentoxi, como uma possibilidade de se chegar ao “limite do pensável”, de se trabalhar com as diferenças e exceções que escapam aos modelos explicativos,xii trazendo à tona o impensável, o incompreensível que possibilita uma abertura para o novo, a diferença.

2748

Se o ensino da história for compreendido como ensino das diferenças, que leva o aluno ao limite do pensável e o permite ir além dos modelos tradicionais de compreensão de história que buscam as continuidades, regularidades e padrões da sociedade, ele poderá mobilizar competências no aluno que o ajude a se situar e a agir no mundo atual onde o processo de aceleração do tempo traz mudanças muito rápidas. O ensino da temática indígena nesta chave de compreensão pode servir para a desconstrução do paradigma da colonialidade do poder/saber, conceito explicado por Aníbal Quijano: a colonialidade é um dos elementos constituitivos e específicos do padrão mundial do poder capitalista. Sustenta-se na imposição de uma classificação racial/étnica da população do mundo como pedra angular do referido padrão de poder e opera em cada um dos planos, meios e dimensões, materiais e subjectivos, da existência social quotidiana e da escala societal.xiii

Ela naturaliza a superposição do pensamento moderno ocidental e nega ou hierarquiza concepções e sociedades diferentes das europeias, como as indígenas, classificando-as como tradicionais (em contraposição modernidade europeia), fundamentando cientificamente essa classificação em conceitos que desvalorizam e inferiorizam a diferença xiv. No meio acadêmico, este paradigma está em crise e permitindo o surgimento de outros tipos de saberes, pensamentos liminares, como nos explica Walter Mignolo, concepções só são possíveis tendo como base dois modelos explicativos tradicionais das histórias locais das fronteiras do colonialismo, e ao mesmo tempo não se baseando em nenhum deles. O autor exemplifica ao trazer a dupla crítica do pensamento do filósofo marroquino Khatibi, que ao pensar a partir da sua localidade critica o fundamentalismo ocidental e islâmico, criando um “outro pensamento”xv . A proposta de possibilitar outros pensamentos na escola, que superem paradigmas que já não respondem as demandas da sociedade só é possível com o abandono de um modelo tradicional do ensino de história, onde professor escolhe uma determinada corrente historiográfica sobre determinado assunto, resume os conteúdos de acordo com a capacidade de compreensão da turma, transpõe esse conteúdo geralmente através de uma aula expositiva e aplica uma prova, onde mede o que o aluno aprendeu sobre o assunto. Esta metodologia de ensino, a qual Jörn Rüsenxvi nomeia de didática da cópia, coloca a didática como algo exterior à história, que se ocupa apenas com a aplicação e intermediação do saber acadêmico. A única adaptação seria a capacidade do destinatário, já que esta mediação feita pelo professor prevê a inalteração dos conteúdos e formas de produção científica. Rüsen considera esta externalização e funcionalização da didática uma concepção estreita por banir: “fatores determinantes do processo cognitivo da história: a geração de problemas históricos a partir

2749

das carências de orientação da vida prática, a relação da formatação historiográfica ao seu público e, sobretudo, as funções de orientação prática do saber histórico.”xvii. Sendo assim, a mera exposição de conteúdos das recentes pesquisas historiográficas que trazem uma nova perspectiva sobre os indígenas, para alguns alunos pode, no máximo, fazer com que decorem essas informações com o objetivo de ser bem avaliado nos exames, e que as esqueçam posteriormente, não mobilizando esses conhecimentos para a ação na vida prática. Uma nova perspectiva de didática da história trazida por Klaus Bergmann, K. E. Jeismann e sobretudo Jörn Rüsen, além dos trabalhos que se desenvolveram a partir destes autores, pode ajudar a responder um dever de memória que esteja associado ao dever de história. A maior preocupação desses autores é o desenvolvimento da consciência histórica, um conjunto de diferentes ideias e atitudes perante o passado.xviii Rüsen afirma que ela é o elo de ligação entre a teoria da história e a didática da história, por ser o ponto de partida de ambas. É uma operação cognitiva onde os seres humanos experimentam o passado para entender o presente e antecipar o futuro.xix Devemos salientar que a consciência histórica não é uma função exclusiva do ensino de história. Os alunos já trazem uma consciência histórica que dialoga com o que é ensinado em sala de aula. Para superar paradigmas que não respondam as questões do tempo presente é necessário fazer com que o aluno desenvolva uma competência narrativa que compreenda as transformações temporais da vida e que busque sempre a apropriação de modos mais adequados de acordo com as mudanças do seu tempoxx Ao tratar da aprendizagem histórica, Rüsen reforça que para que ela não se limite a conteúdos que não resultarão em nenhuma possibilidade de criação de sentido, deve se iniciar a partir das carências de orientação do presente: Somente quando a história deixar de ser aprendida como mera absorção de um bloco de conhecimentos positivos e surgir diretamente das respostas as perguntas que se façam ao acervo de conhecimentos acumulados, é que poderá ela ser apropriada produtivamente pelo aprendizado histórico e se tornar fator de determinação cultural da vida prática humana.xxi

A aprendizagem histórica é dinâmica, pois a pessoa que aprende é ao mesmo tempo transformada, o conhecimento consciente de um fato é capaz de se transformar em um dado objetivo que orienta o indivíduo para fora (ação no mundo) e para dentro (construção de identidades).xxii Uma possibilidade de trabalhar a temática indígena que se baseie nessa perspectiva é em um primeiro momento, levantar os conhecimentos que os alunos possuem sobre o tema, através de questionários ou entrevistas, por exemplo, além de verificar a possibilidade de

2750

existirem alunos que possuam alguma identidade indígena. Este levantamento permite diagnosticar não apenas os modelos de interpretação utilizados pelos alunos e o tipo de consciência histórica que ele desenvolve, assim como pode apontar exatamente quais são os preconceitos e estereótipos utilizados pelos alunos para compreender os indígenas, e por fim, possibilita a compreensão das principais necessidades dos alunos descendentes indígenas. Esses dados podem trazer informações riquíssimas para que o professor selecione materiais e estratégias adequadas que permitam aos alunos confrontarem suas interpretações preconceituosas, assim construir novos pensamentos a partir da formulação de situações problemas trazidas pelo professor, que respondam adequadamente suas carências de orientação do presente, que podem ser, por exemplo a compreensão da legitimidade da alteridade, a convivência respeitosa com as diferenças, a valorização das identidades indígenas presentes na escola, o questionamento da história como verdade e a compreensão da existência de diversos modelos explicativos, entre outros. Por fim, é necessário salientar que modificar a prática do professor e mantê-lo em constante atualização é importante, porém extremamente difícil, visto as condições de trabalho da maioria dos profissionais de educação neste país. Especialmente na rede pública, onde os baixos investimentos, a superlotação das salas de aula, a falta de recursos, os baixos salários que obrigam os professores terem uma carga horária de trabalho muito grande, dificultando o planejamento adequado de suas aulas, as raras possibilidades de formação continuada entre outros fatores, dificulta (ou até mesmo impossibilita) o acompanhamento das novas produções historiográficas, assim como o conhecimento e testagem de novas práticas. No entanto, compreender as falhas e ter consciência do que é necessário mudar é extremamente importante para as incluirmos nas pautas de luta pela educação de qualidade.

i

Professora da rede municipal de Duque de Caxias, mestranda em Ensino de História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, orientada pela professora Márcia de Almeida Gonçalves. Bolsista da Capes. Email: [email protected] ii Entre eles, podemos destacar: BERGAMASCHI. Maria Aparecida. (Org.). Povos Indígenas & Educação. Porto Alegre: Mediação, 2008; BONIN, Iara Tatiana. E por falar em povos indígenas – narrativas que contam em práticas pedagógicas. Porto Alegre: UFRGS, 2007. Tese (Doutorado em Educação) – PPGEducação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2007; COELHO. Mauro César. A história, o índio e o livro didático: apontamentos para uma reflexão sobre o saber histórico escolar. In: ROCHA, H; et. all. A história na escola: autores, livros e leitura. Rio de Janeiro: FGV, 2009, pp. 263-280; COLLET, Célia; PALADINO, Mariana e RUSSO, Kelly. Quebrando Preconceitos: subsídios para o ensino das culturas e histórias dos povos indígenas. Rio de Janeiro: Contracapa e Laced, 2014; FERNANDES, Eunícia. "Do dever de memória ao dever de história: um exercício de deslocamento”, In: GONÇALVES, M. et all O valor da história

2751

hoje. Rio de Janeiro: FGV, 2012; FUNARI, Pedro Paulo e PIÑON, Ana. A temática indígena na escola: subsídios para professores. São Paulo: Contexto, 2014; SILVA, Aracy e GRUPIONI, Luís Donizete. A temática indígena na escola: novos subsídios para professores de 1º e 2º graus. Brasília: MEC, 1995, WITTMANN, Luisa Tombini (org.). Ensino (d)e História Indígena. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. iii BITTENCOURT, Circe. A históra das populações indígenas na escola. In: PEREIRA, Amilcar e MONTEIRO, Ana(orgs.) Ensino de história afro-brasileiras e indígenas. Rio de Janeiro: Pallas, 2013. pp. 101-132 iv HEYMANN, Luciana. “devoir de mémorie” na França contemporânea: estre a memória, história, legislação e direitos. Rio de Janeiro: Estudos Históricos. Rio de Janeiro; CPDOC, 2006 v e ARRUTI, Memória e reconhecimento: notas sobre as disputas pela gestão da memória na França e no Brasil hoje. In: GONÇALVES, M. et all O valor da história hoje. Rio de Janeiro: FGV, 2012 vi FREIRE, José Ribamar Bessa. Senhor cachorro, não me mate, senhor cachorro. In: http://www.taquiprati.com.br/cronica.php?ident=1160, acesso em 22 de setembro de 2015. vii BRASIL. IBGE. Censo Demográfico, 2000. Disponível em: http://indigenas.ibge.gov.br/mapas-indigenas-2, acesso em 06 de outubro de 2015. viii GUIMARÃES. Manoel Luiz Salgado. Escrita da história e ensino de história: tensões e paradoxos. In: ROCHA, H.; MAGALHÃES, M.; GONTIJO, Rebeca (orgs.). A escrita da história escolar: memória e historiografia. Rio de Janeiro: FGV, 2009, p. 50 ix FERNANDES, Eunícia. "Do dever de memória ao dever de história: um exercício de deslocamento”, In: GONÇALVES, M. et all O valor da história hoje. Rio de Janeiro: FGV, 2012 x Idem, p. 93 xi Idem xii CERTEAU, Michel. A escrita da história. Rio de Janeiro, Forense, 2015, p. 87. xiii QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder e classificação social, In: SANTOS, Boaventura Sousa e MENESES, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do sul. Coimbra: Almedina, 2009, p. 73 xiv OLIVEIRA, Elismênnia Aparecida & PINTO, Joana Plaza. "Linguajamentos e contra-hegemonias epistêmicas sobre linguagem em produções escritas indígenas", In: Anais VIII CIEL e I CIEL Congresso Internacional de Estudos em Linguagem, UEPG, 2015 xv MIGNOLO, Walter. Histórias locais/ projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: UFMG, 2003, p. 102 xvi RÜSEN, Jörn. História viva. Brasília: UnB, 2010, p. 89 xvii Idem, pp. 89-90 xviii JEISMANN, K. E., 77, apud SADDI, Rafael. O parafuso da didática da história: o objeto de pesquisa e o campo de investigação de uma didática da história ampliada. Rev. Acta Scientiarum, Maringá, vol. 34, n. 2, p. 211-220, jul-dez, 2012 xix RÜSEN, Jorn. Op. cit. xx . Narrativa Histórica: Fundamentos, tipo, razão. In: In: Schimidt, M. A., BARCA, I, MARTINS, E. R. Jörn Rüsen e o ensino de história. Curitiba: Ed. UFPR, 2011. xxi . Aprendizado histórico. In: Schimidt, M. A., BARCA, I, MARTINS, E. R. Jörn Rüsen e o ensino de história. Curitiba: Ed. UFPR, 2011, p. 44. xxii . Experiência, interpretação, orientação: as três dimensões da aprendizagem histórica. In: In: Schimidt, M. A., BARCA, I, MARTINS, E. R. Jörn Rüsen e o ensino de história. Curitiba: Ed. UFPR, 2011, p. 82

2752

A montagem da colonização no Brasil: as relações de poder entre o Governo-Geral e a capitania de Pernambuco (1548-1553) Thaís Silva Félix Dias*

O trabalho a ser apresentado é desdobramento da pesquisa “A Administração do Estado Português no início da colonização brasileira: tensões e relações de poder entre o GovernoGeral e a capitania de Pernambuco (1548-1553)” e tem por objetivo analisar o motivo para a implantação do Governo-Geral no Brasil, em 1548, e as relações de poder entre o Governador-Geral, Tomé de Sousa, e o donatário da capitania de Pernambuco,

Duarte

Coelho, compreendendo que a dinâmica política entre ambos representava o desenvolvimento das matrizes social e política, já existentes no reino português, no Brasil colonial. Palavras-chaves: Estado Moderno – Relações de Poder – Brasil Colonial The work to be presented is extension of the research " The Portuguese state administration at the beginning of Brazilian colonization : voltages and power relations between the Government General and the captaincy of Pernambuco (1548-1553) " and aims to analyze the reason for the Government General's implementation in Brazil in 1548 , and the power relations between the Governor General , Tomé de Sousa, and the donee of the captaincy of Pernambuco, Duarte Coelho , realizing that the political dynamics between them represented the development of matrices social and political , already on the Portuguese kingdom in colonial Brazil . Keywords: Modern State - Power Relations - Brazil Colonial

A escolha por esta delimitação cronológica (1548-1553) corresponde ao período no qual Tomé de Souza ficou no cargo como governador geral, representando assim um primeiro momento da implantação do Governo-Geral na colônia. Da mesma forma a escolha é baseada na relevância econômica que a capitania de Pernambuco tinha dentro da economia colonial lusa – considerada uma das mais prósperas -, no prestígio que seu donatário possuía perante o *

Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e bolsista pela CAPES; email: [email protected]. Orientador: Professor Doutor Marcos Guimarães Sanches

2753

monarca e nos tensos diálogos que existiram entre o governador geral e Duarte Coelho, tensões expressas nas cartas que ambos escreveram ao monarca D. João III no presente recorte cronológico. Apesar do desenvolvimento de uma ação privada no processo de colonização a partir das capitanias hereditárias, a Coroa não cedia o seu poder absoluto e soberano aos donatários. Isso se deixava bem claro através dos discursos régios contidos nas Cartas de Doação e nos Forais e, posteriormente, no Regimento do Governo-Geral. Na verdade, ao mesmo tempo em que incentivava a colonização com as doações e privilégios a que o obrigavam as circunstâncias, o soberano os limitava dentro de normas que procuravam atender aos seus objetivos. Havia um plano visando resolver os problemas essenciais de ocupação da terra, ao mesmo tempo que o rei conservava sua autoridade e soberania, falando sempre como senhor absoluto1.

Um bom exemplo para essa relação entre periferia e poderes periféricos é encontrado no próprio discurso régio contido nas Cartas de Doação das capitanias aos donatários e nos forais dos mesmos. Para Antônio Saldanha, as cartas de doação representavam “um conjunto dos direitos transmitidos pela Coroa aos donatários, antecedidos por declarações onde é manifesta a vontade de transferir e voluntariamente abdicar de bem determinado número de direitos”2. Essa transferência voluntária de poder exemplifica a dinâmica do poder na estrutura estatal do Portugal Moderno, onde o poder era concentrado, porém partilhado, concedido (tão somente) pelo rei. Já os forais, escritos posteriormente às cartas de doação, são um complemento para as mesmas, resultando de uma série de atos unilaterais do monarca, imperativos e destinados essencialmente a definir desse momento para o futuro as condições não apenas de assentamento, mas de exploração dos recursos naturais de toda a capitania, quer pela generalidade dos moradores quer por um, em particular, o particular, o próprio capitão - governador3.

Nas cartas de doação dos capitães donatários percebemos que o rei lhes concedia, por exemplo, o direito de distribuição de sesmarias, porém limitava essa distribuição de forma que os donatários não usassem a concessão “para si, nem para sua mulher nem filho herdeiro”4 e da mesma forma, as capitanias não podiam ser repartidas. Porém, o que mais ratificava a representação da soberania do monarca frente a seus agentes coloniais, estando acima de qualquer dispersão de poder que viesse a surgir, era a afirmação de que todo o conteúdo da carta deveria ser respeitado e cumprido tanto pelos donatários e seus sucessores, pelos demais agentes à serviço da Coroa, como também pelo futuros sucessores do rei, pois este era o “Rei e Senhor destes Reinos e assim como Governador, o perpétuo administrador que são da Ordem e Cavalaria do Mestrado de Nosso Senhor Jesus Cristo”5.

2754

O Governo-Geral, implantado em 1548, visava aperfeiçoar e melhor servir a colonização, fazendo uso, ou melhor, agindo em conjunto, com instituições já existentes aqui, como as capitanias hereditárias. A partir deste princípio, todas as capitanias eram orientadas a ajudarem o Governo-Geral. Para Ricupero, pode-se dizer que os objetivos do Governo-Geral no período dentro do contexto de defesa da terra, era derrotar a resistência indígena, derrotar os inimigos externos e acabar com a instabilidade reinante ao longo da costa, para tanto a administração colonial deveria impor, a justiça régia e aumentar a centralização e o controle do processo de colonização por parte da metrópole, além de colaborar no desenvolvimento das estruturas produtivas, criando ou consolidando as bases para que a própria colônia pudesse garantir sua segurança6.

Francisco Carlos Cosentino nos apresenta que na administração colonial brasileira a tarefa de governar pertencia ao rei e aos seus auxiliares que agiam como um centro coordenador, garantindo que cada parte do aparelho político-administrativo desempenhasse suas funções e preservasse sua autonomia funcional7.

Essa centralização na administração da colônia brasileira se intensificou a partir do Governo-Geral - a representação régia do poder do monarca na colônia – sendo as funções exercidas pelo governador geral parte do próprio ofício régio e possibilitavam ao rei governar sua colônia, mesmo à distância8. Jorge Couto percebe o Governo-Geral como uma estrutura política que buscou ampliar e garantir o domínio português na América9. Porém, ao delegar a fiscalização tributária das capitanias ao governador geral provocou um choque na relação com as mesmas. Para Vianna Júnior, o Governo-Geral tem que ser analisado a partir do pluralismo político que havia no Antigo Regime, percebendo que as tensões existentes entre a instituição e os demais poderes significavam tão somente a própria dinâmica dessa estrutura política 10. Além disso, o autor aponta que apesar de no Regimento as funções do governador estarem acima das contidas nas cartas de doações e nos forais dos donatários, em certos momentos “a autoridade dos governadores foi desautorizada pela metrópole”11, tais como no caso em que envolveu a capitania de Pernambuco. Em suas cartas ao rei, ao todo cinco, Duarte Coelho declarava estar honrando com todos as obrigações que lhe foram impostas no foral (1534). Entretanto, o donatário também alertava o rei quanto aos problemas de insubordinação dos colonos, bem como criticava a administração dos certos donatários, que no final contribuíam apenas como obstáculo para um melhor aproveitamento dos negócios do rei. O donatário chamava a atenção para o contrabando de pau brasil, argumentando que enquanto que na capitania dele buscava-se punir

2755

quem ousasse tal atividade, nas jurisdições alheias ele não ousava interferir “senão com requerimentos e cartas precatórias, a que não dão mais atenção do que as conversas vãs” 12. Apesar dos avanços conseguidos por Duarte Coelho, registrados por este e por outros colonos em cartas ao rei, a relação entre portugueses e indígenas era tênue. Um dos reflexos da hostilidade que reinava entre ambos o mundo foi o caso de Francisco Pereira Coutinho, donatário da capitania da Bahia, que morreu nas mãos dos índios, deixando a capitania e seu herdeiro na miséria. Perante isso, D. João III resgatou a capitania para o controle régio e centralizou a administração colonial, colocando-a como sede do Governo-Geral13. Um dos motivos para isso foi o posicionamento geográfico da capitania que se apresentava relativamente centralizada, facilitando “a inspeção e as operações de socorro às povoações do território então integrado na Província de Santa Cruz”14. O primeiro governador geral, Tomé de Sousa, era primo de Martim Afonso de Sousa e de D. Antônio de Ataíde – conde de Castanheira, que auxiliava D. João III, fiscalizando os negócios da Fazenda15 e que foi o autor do regimento do primeiro governador. Na carta de nomeação de Tomé de Souza, escrita em 7 de janeiro de 1549, como governador geral, o monarca, D. João III, explica que o motivo para a implantação do Governo-Geral era “conservar e enobrecer as capitanias”, sendo Tomé de Souza apresentado como governador da terra da Bahia de Todos os Santos e das demais capitanias16. Instalado na Bahia, a função de Tomé era “dar favor e ajuda às outras povoações e ministrar justiça e prover nas coisas que cumprem a meu serviço e aos negócios de minha fazenda” e, a função dos demais donatários e colonos era a de obedecer e cumprir tudo o que Tomé, da parte do rei, lhes ordenasse, segundo forma dos regimentos e provisões régias. Mais do que as diretrizes para Tomé, o Regimento do primeiro governador geral do Brasil representa a fala do monarca para seus colonos do Brasil. Frente aos poderes periféricos, D. João III, assim como seus antecessores, remete todo o poder e todos os domínios para suas mãos. E, sendo detentor de tudo e de todos, concede, segundo sua graça, poderes em prol da harmonia do corpo social português, em favor da manutenção da ordem vigente e de um melhor desenvolvimento do processo de expansão e da economia colonial. É a partir desta compreensão que podemos entender suas preocupações com os indígenas, estrangeiros, com a fiscalização, o transitar dos colonos e as aberturas ao sertão feitas por estes. Como também já mencionado, algumas funções implementadas junto com a instalação do Governo-Geral intervinham na autonomia dos donatários, autonomia esta que lhes fora

2756

outorgada através das cartas de doação e dos forais, como a referente à questão tributária já que “o regimento do provedor-mor da Fazenda cometia ao titular desse cargo a superintendência sobre todos os assuntos ligados à Fazenda Real e colocava as alfândegas e as provedorias das capitanias-donatárias sob a sua jurisdição”17. Na carta escrita em 1549 ao rei, Duarte Coelho já demonstra indícios de choques entre o poder central, representado na colônia pelo Governo-Geral, e os colonos de sua capitania, pois estes foram a ele se queixar de como aí não lhes queriam guardar as liberdades contidas em minhas doações [...] e porque nos alvarás que de mim têm digo que hei por bem e serviço de Vossa Alteza que do dia que vierem, ou por si ou por pessoas sua, povoar e fazer os engenhos, trazendo ou mandando trazer os oficiais e toda gente e cousas necessárias para eles, possam gozar dos privilégios e liberdades de moradores e povoadores destas minhas terras, como em minhas doações se contém18.

Ainda abordando as reclamações dos colonos de sua capitania, que não querem que agentes do Governo-Geral torem suas liberdades e privilégios, Duarte Coelho agradece, na carta 24 de novembro de 1550, o fato de finalmente D. João III ter lhe respondido com uma carta. Não conseguimos adquirir tal documento para esta pesquisa, mas segundo os relatos do donatário na carta de 1550, o monarca já havia respondido anteriormente, mas as correspondência não chegaram em suas mãos19 (as correspondências desembaraçavam na Bahia e não era freqüente a comunicação entre a sede do Governo Geral e Pernambuco, e também entre as capitanias de São Vicente e Espírito Santo, desde que Tomé assumiu o cargo – quiçá uma represália dos donatários frente a anulação de alguns de seus poderes com a vinda do Governo). Apresentando claras críticas ao governador geral, o donatário informa ao rei que “estar eu como estava e respeitar minhas doações, e que não se entenda comigo o que tinha mandado a Tomé de Souza, nem ele venha cá nem interfira em minha jurisdição, nisso Vossa Alteza age como magnânimo e virtuosíssimo e justíssimo rei e senhor”. Duarte Coelho não ataca diretamente o rei quanto à sua decisão na subordinação das capitanias, mas o faz lembrar que o soberano não pode ir contra o que já foi outorgado anteriormente, pois é uma coisa odiosa e prejudicial “quebrar e não guardar as liberdades e privilégios aos moradores e povoadores e vassalos de que já estão de posse e de que usam, depois de lhe serem publicados e apregoados, como eu por minhas doações”20. Segundo Antônio Mello e Cleonir de Albuquerque, através das análises desta última carta do donatário em que diz que o próprio governador geral reconhece que esta mercê foi feita “por alvará de confirmação, assinada por Vossa Alteza e selada do selo e passado por sua

2757

chancelaria”21, percebe-se que esta isenção foi feita apenas em carta dirigida tanto a Duarte Coelho como a Tomé de Sousa Ainda na carta de 1550, Duarte Coelho diz que a ação do provedor-mor em sua capitania poderia custar muito caro à Fazenda Régia, pois os colonos que estavam de acordo em construir cada vez mais engenhos de açúcar procuraram o donatário por estarem receosos de que seus privilégios e liberdades, contidos na carta de doação e no foral de Duarte, seriam respeitados. Assim, o donatário pedia que o rei pelo que convém ao serviço de Deus e ao proveito de sua fazenda, que mande cumprir e guardar as liberdades e privilégios contidos em minhas doações e foral, aos moradores e povoadores que eu tiver assentados por moradores e povoadores no livro da matrícula e tombo, que para isso está feito desde o princípio, e com isso deixe-me realizar e verá o proveito que disso se segue22.

Em resposta às reclamações do donatário de Pernambuco e a ação do monarca em atendê-lo, Tomé de Souza escreveu duas cartas para D. João III, uma em 18 de julho de 1551 e a outra em 1º de junho de 1553, não somente dispondo contra o desfecho final na sua relação com a Nova Lusitânia como também para apresentar ao rei suas impressões da colônia brasileira. Tomé pede para que o monarca lembre aos donatários, que estes merecem respeito pela boa administração exercida, mas que também não se esqueçam de que estão a serviço de Deus e da coroa e que, se ficam contra as ações do Governo-Geral estão, na verdade, contribuindo para a danificação das rendas do rei. Para Manuel de Andrade, o motivo para as tensões entre Duarte Coelho e o GovernoGeral foi que a diminuição de certos privilégios concedidos pela Coroa nas cartas de doação afetavam a agro-indústria açucareira. Atingiam, portanto, a mais importante forma de aplicação de capitais, uma vez que anulavam as garantias dadas pelo donatário e acertadas, no reino, com certos investidores [...] apesar de estar a defender privilégios políticos e honrarias recebidas, não há dúvida que defende (Duarte Coelho) também a base econômica e os investimentos de sua donataria, que lhe pareciam ameaçados, e é sobretudo neste aspecto que insiste em sua carta23.

Apesar de todos os obstáculos que enfrentou por parte das donatarias, em especial a de Pernambuco, que conseguiu temporariamente uma isenção da ação interventora do GovernoGeral, este, através das ações de seus agentes conseguiu unir o que antes era disperso, voltar para as mãos da Coroa a coordenação da colonização na América Portuguesa e firmar, frente aos colonos que aqui habitavam e frente à pressão estrangeira, o poder da metrópole portuguesa na colônia brasileira. A formação política do império português baseou-se na transladação de vários mecanismos jurídicos e administrativos do reino para todas as suas possessões. E, assim como

2758

no Reino, as relações de poder desenvolvidas na colônia se fundamentaram em uma dinâmica onde a centralização do poder nas mãos do rei, aqui representado pelo Governo-Geral, não significaram a ausência de outras instâncias de poder, como as capitanias hereditárias. Logo, as relações de poder entre metrópole e colônia brasileira foram provenientes da adaptação do modelo corporativo da sociedade portuguesa no processo de colonização do Brasil, onde as tensões resultantes não foram somente obstáculos para a ampliação do modelo político do Antigo Regime. Pelo contrário, a complexidade desse modelo e a superabundância de fórmulas adaptavam-se perfeitamente à variedade e à mobilidade dos vínculos políticos coloniais24 bem como contribuíam na manutenção da estrutura estatal lusa no século XVI e para a formação da sociedade colonial brasileira. A relevância da pesquisa está em abordar o Estado não apenas como uma representação institucional do poder, mas também como resultado de práticas sociais historicamente estabelecidas. Além disso, entender que as tensões entre poderes e suas tentativas de legitimação e controle fazem parte da dinâmica política da sociedade, amplia a possibilidade de se compreender as estruturas estatais historicamente, para além do recorte proposto. Dessa forma, o estudo do político e do social em outros períodos abre a possibilidade da análise de tais estruturas e relações no mundo contemporâneo, momento em que tais questionamentos levados ao passado são fundamentados pela observação empreendida pelo historiador.

1

FONSECA, Célia Freire A.. A economia europeia e a colonização do Brasil (a experiência

de Duarte Coelho). Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura e IHGB, 1978 p. 167 2

SALDANHA, Antônio de Vasconcelos de. As capitanias o Brasil: Antecedentes,

desenvolvimento e extinção de um fenômeno atlântico. As capitanias o Brasil: Antecedentes, desenvolvimento e extinção de um fenômeno atlântico. Comissão Nacional para as comemorações dos Descobrimentos Portugueses. Lisboa: 2001 p. 68 3

Idem. p. 76

4

TAPAJÓS, Vicente. História Administrativa do Brasil – Vol I. Serviço de documentação.

Departamento administrativo do serviço público. 1956. p. 174-175 5

Idem p. 177

6

RICUPERO, Rodrigo. A formação da elite colonial, Brasil c.1530 – c. 1630. São Paulo;

Alameda, 2009. p 107

2759

7

COSENTINO, Francisco Carlos. Governo-Geral do Estado do Brasil: governação,

jurisdições e conflitos (séculos XVI e XVII). In. FRAGOSO, João. GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). Na Trama das Redes – Política e negócios no império português, séculos XVIXVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010 p 405 8

Idem p. 408

9

COUTO, Jorge. A construção do Brasil, ameríndios, portugueses e africanos, do início do

povoamento a finais dos quinhentos – 3º edição, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011 p. 254 10

JÚNIOR, Wilmar da Silva Vianna. A conservação da conquista: O Governo-Geral e a

defesa do Estado do Brasil (1548-1612). Dissertação de mestrado, Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ – 2006. Cedida pelo autor. p. 67 10

Idem p. 108

11

Idem

12

Carta de Duarte Coelho ao rei D. João III, escrita em 15 de abril de 1549. In MELLO, José

Golsalves. ALBUQUERQUE, Cleonir Xavier. Cartas de Duarte Coelho a El-Rei. Recife: Fundação Joaquim Nabuco/Editora Massanga, 1996 p.113 13

TAPAJÓS, Vicente. História Administrativa do Brasil – Vol I. Op.Cit. p. 90

14

COUTO, Jorge. A construção do Brasil, ameríndios, portugueses e africanos, do início do

povoamento a finais dos quinhentos. Op. Cit p. 61 15

TAPAJÓS, Vicente. História Administrativa do Brasil – Vol I. Op. Cit p. 8

16

Carta de nomeação de Tomé de Sousa, escrita em 7 de janeiro de 1549. In TAPAJÓS,

Vicente. História Administrativa do Brasil – Vol I. Op.Cit. p. 221 17

COUTO, Jorge. A construção do Brasil, ameríndios, portugueses e africanos, do início do

povoamento a finais dos quinhentos. Op. Cit. 264 18

Carta de Duarte Coelho ao rei D. João III, escrita em 15 de abril de 1549. In. MELLO, José

Golsalves. ALBUQUERQUE, Cleonir Xavier. Cartas de Duarte Coelho a El-Rei. Op. Cit p. 112 19

Carta de Duarte Coelho ao rei D. João III, escrita em 24 de novembro de 1550. In MELLO,

José Golsalves. ALBUQUERQUE, Cleonir Xavier. Cartas de Duarte Coelho a El-Rei. Op. Cit p. 117 20

Idem. p. 119

21

MELLO, José Golsalves. ALBUQUERQUE, Cleonir Xavier. Cartas de Duarte Coelho a

El-Rei. Op. Cit p. 135

2760

22

Carta de Duarte Coelho ao rei D. João III, escrita em 24 de novembro de 1550. In. MELLO,

José Golsalves. ALBUQUERQUE, Cleonir Xavier. Cartas de Duarte Coelho a El-Rei. Op. Cit p. 121 23

Idem pp. 238-239

24

HESPANHA, Antônio Manuel. Antigo Regime nos trópicos? Um debate sobre o modelo

político do Império Colonial português.In. FRAGOSO, João. GOUVEA, Maria de Fátima (orgs). Op.cit p. 58

2761

Jenotdel – A seção das mulheres do Partido Comunista soviético

Autora: Thaiz Carvalho Senna Titulação: Mestranda em História Política e Social Vinculação Institucional: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Orientadora: Prof. Dr. Lená Medeiros de Menezes Apoio: FAPERJ – Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro Email: [email protected]

Resumo O artigo propõe-se a discutir a questão da emancipação feminina no contexto soviético, a partir da seção de mulheres do Partido Comunista russo. Tal escolha se deve ao fato de que o Jenotdel metonimizou, por um lado, a experiência da tentativa emancipatória feminina naquele contexto e, por outro, o processo revolucionário em busca da liberdade, como indicam seu próprio início e fim: o primeiro em 1919, período de amplas transformações, e o segundo em 1930, tempo de perseguições às liberdades. Abstract The article proposes to discuss the issue of women's emancipation in the Soviet context, from the women's section of the Russian Communist Party. Such choice is due to the fact that the Jenotdel has corresponded on the one hand, the experience of emancipatory attempt women in that context and, second, the entire revolutionary process in pursuit of equality and freedom, as indicated by its own beginning and end: the first in 1919, a period of extensive transformations and the second in 1930, freedoms persecution period.

A necessidade de organizar as mulheres de forma à parte nunca se deu como óbvia no movimento socialista russo. Em 1907, no ainda Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR), quando a revolucionária Alexandra Kollontai sugeriu que houvesse uma reunião “para mulheres apenas”, prontamente alguém anunciou outra reunião, “para homens apenas” 1. Tal ironia nos revela a polêmica que a reivindicação de uma questão feminina representava à época – seja por motivos metodológicos, como acreditar que separar significava dividir e enfraquecer a luta socialista; seja por motivos sexistas, como um movimento de autodefesa dos militantes homens, diante de uma demarcação feminina a qual eles não estavam acostumados.

2762

No entanto, a imprescindibilidade da emancipação feminina e da igualdade entre homens e mulheres colocava-se não apenas na sociedade civil, mas também, constituía-se como uma tarefa necessária à construção do socialismo, como coloca, em abril de 1917, o líder bolchevique Vladimir Lenin: “Enquanto as mulheres não forem chamadas a participar livremente da vida pública em geral, cumprindo também as obrigações de um serviço cívico permanente e universal, não pode haver socialismo, nem sequer democracia integral e durável”2. Dado o ambiente historicamente machista em que estavam inseridos, porém, as militantes que defendiam uma organização intrapartidária própria das mulheres acreditavam que esse cenário só ia ser conquistado se os próprios sujeitos oprimidos fossem também a vanguarda do processo de emancipação. Após muita insistência por parte dessas militantes3, e após muitos debates de se haveria ou não uma seção à parte, de como ela funcionaria e de qual seria seu caráter, foi criado em 1919 o Jenotdel, o Departamento de Mulheres Trabalhadoras e Mulheres Camponesas do então Partido Comunista de Toda a Rússia. O Jenotdel significou não apenas a compreensão do Partido de que deveriam ser adotados métodos especiais de trabalhos entre as mulheres, mas também, representou um momento em que foi possível à direção partidária conceder uma determinada liberdade às mulheres, para que elas decidissem sobre suas próprias questões e funcionassem como uma força pressionadora em prol da liberdade feminina no partido e na sociedade. Desde as organizadoras e dirigentes da seção, militantes do partido comunista, até camponesas e operárias que estavam tendo contato com a política pela primeira vez em suas vidas, todas tinham direito a votar e escolher as mulheres que representariam suas opiniões, bem como ocuparem elas próprias esses cargos. As representantes, que variaram entre 1.147, no Primeiro Congresso Nacional das Mulheres Trabalhadoras e Camponesas, até 620 mil, no último4, participavam como observadorasaprendizes em fábricas, sindicatos, sovietes, escolas, hospitais e demais espaços públicos, para depois informar às suas colegas suas experiências como seres políticos, críticos e propagandistas das causas femininas5. As delegadas também defendiam as

posições

aprovadas durante os congressos e reuniões nos debates na sociedade, nos quais outros representantes políticos e demais cidadãos participavam. Muitas vezes, essas posições confrontavam-se integralmente com as posições majoritárias dentro do Partido. O Jenotdel buscava, por um lado, emancipar a mulher e igualar os direitos de ambos os gêneros. Por outro lado, porém, suas delegadas não deixavam por isso de desconsiderar as experiências e vivências reais dos indivíduos de seu gênero. Por isso, muitas de suas opiniões

2763

sequer representavam o que havia de mais progressista no movimento feminista libertário mundial, mas espelhavam as experiências vivenciadas por aquelas mulheres trabalhadoras, pobres, inseridas em um universo ainda opressor e machista. Um exemplo disso é a discussão em torno da pensão alimentícia. Havia defensores, como a delegada ucraniana Roslavets, durante o esboço para o primeiro Código do Casamento, Família e Tutela6, de que pagar pensão era “nada mais do que pagamento por amor”7, devendo essa não existir no novo governo. Por mais progressista que fosse tal opinião, na prática ela teria como consequência mulheres miseráveis cuidando sozinhas de seus filhos, ao invés de seres emancipados e livres. Diante de condições ainda muito opressivas às mulheres, o desprendimento total dos casais acabava por colaborar com as condições de pobreza e desespero das mulheres. Como colocou uma delegada, enviada pelo Jenotdel: “A pensão alimentícia é necessária enquanto o Estado não puder tomar todas as crianças sob a sua proteção”8. Esse resultado multifacetado, que reunia o que havia de mais avançado na sociedade, mas respeitava as condições materiais em que as mulheres da classe trabalhadora estavam inseridas, apenas foi possível porque eram essas mesmas mulheres que formulavam e colocavam em pauta suas próprias questões e percepções – para além de políticas impostas por entusiastas do feminismo e da liberdade sexual, que poderiam desconsiderar as condições individuais, retrocedendo mais do que avançando na emancipação das mulheres; e para além de políticas impostas por homens atrasados, que apenas queriam preservar seu próprio lugar de poder, criado e recriado durante séculos. Ao mesmo tempo, nesse processo era possibilitada a experiência política e prática a mulheres que muitas vezes não tinham voz ou poder de decisão sequer dentro da própria casa, que nunca haviam falado em público e que conseguiam, então, ampliar seu campo de visão rumo a percepções mais progressistas do que as que tiveram contato durante toda a sua vida. O debate e as deliberações políticas, tal como as conferências regionais e nacionais, porém, eram apenas uma das funções do Jenotdel. Nele também estavam contempladas as funções de instrução, agitação e propaganda política9. Elas se davam por meio de diversos formatos: publicação de páginas, panfletos e periódicos (como o Kommunistka, o Rabotnitsa, ou o Krestianka – em russo, “A Comunista”, “A Trabalhadora” e “A Camponesa”), organização de passeatas, estabelecimento de creches e orfanatos para crianças desabrigadas, criação de comitês de doentes e feridos do Exército Vermelho e também de clubes de costura e clubes de mulheres10. Havia diversos mecanismos os quais o Jenotdel produzia ou participava que convergiam várias das funções, como as Tendas Vermelhas, focadas em instruir mulheres dos

2764

seus novos direitos e papeis sociais, além de orientá-las em relação à higiene, ensiná-las artesanato e até mesmo alfabetizá-las; os Barcos Vermelhos, que serviam de espaço para cursos e eventos políticos do Partido; e Espaços Vermelhos, que eram geralmente um espaço público em uma fábrica ou aldeia, que servia para prover facilidade recreativas e educativas para as mulheres11. Os objetivos, porém, continuavam os mesmos: aprofundar a consciência política das mulheres e legitimá-las como ser político que pudesse cooperar para a construção do Estado operário socialista, instruindo-a de seus novos papeis sociais. Como observamos em algumas das tarefas, apesar da luta pela inserção da mulher em lugares ainda não ocupados, é possível entender que o Jenotdel não objetivava a mudança radical de papel das mulheres, principalmente em relações às tarefas historicamente dadas a elas. É o que vemos por exemplo nas atividades de alfabetização, cuidado dos doentes e da higiene, aulas de costura e criação de creches e orfanatos. Com essas atividades coordenadas pela Seção de Mulheres podemos interpretar que cuidar dos filhos, dos doentes, da saúde e da educação eram tarefas próprias das mulheres e não de toda a sociedade. Esse aspecto inclusive ultrapassa as atividades do Jenotdel e se explicita também em outros meios criados pelo Partido Comunista para alcançar a emancipação feminina. É o que ocorreu no caso da criação pioneira de instituições como restaurantes, cafeterias, lavanderias, creches e enfermarias públicas e gratuitas, que objetivavam retirar responsabilidades historicamente dadas às mulheres (como cozinhar, lavar roupas e cuidar das crianças e dos doentes) e passálas ao Estado. Apesar desse passo à frente, porém, apenas mulheres trabalhavam nessas estruturas criando o que a historiadora Elizabeth Wood colocou como "nova versão ‘pública’ da velha esfera privada (...) mantendo ao invés de minar as velhas divisões de trabalho”12. Isso significou, então, uma não superação da visão do trabalho doméstico como sendo natural e específico da mulher, mas sim, uma reafirmação dessa. Tal reafirmação também pode ser observada em cartazes de propaganda soviéticos, em que são colocadas representações femininas, e somente elas13, em responsabilidade com as crianças, por exemplo. De fato, é possível observar esse aspecto de não dividir com os homens tarefas ditas femininas como uma permanência inclusive pragmática em relação à histórica opressão às mulheres. O mesmo chegou a ser defendido à época, até mesmo pelo líder do partido Lenin, com o seguinte argumento: aquele que tiver determinado conhecimento técnico e específico sobre a atividade a ser feita é quem deverá fazer, pois a realizará de forma mais qualitativa, quantitativa e rápida. Tal opinião, entretanto, parece-nos contraditória quanto à própria política bolchevique: se for para se guiar apenas pelo simples

2765

condicionamento,

desconsiderando a dialética do materialismo histórico, por que não deixar, por exemplo, as mulheres fora da política, e os homens, que há séculos ocupam-se dela, fazendo-a? Como se sabe, não foi essa a atitude do Partido. Por outro lado, a experiência do Jenotdel nos mostra que essa permanência poderia ter consequências que caminham em direção à emancipação feminina. Partindo de relações próximas à realidade das mulheres da época (a grande maioria sem nenhum contato anterior com a política ou a ideia de emancipação) para chegar a elementos menos comuns a elas, mas também, mais transformadores de suas realidades, as táticas que as militantes da seção usufruíam acabavam por se demonstrar dialéticas. É o que vemos, por exemplo, em um dos trabalhos realizados fora da Rússia, no Azerbaijão. Lá, uma das primeiras medidas foi a criação de uma tenda que explicava princípios de higiene, artesanato e educação. Essa primeira medida, que dialogava com conteúdos pelos quais aquelas mulheres se interessavam (conteúdos esses que, de fato, faziam parte do universo feminino socialmente construído), aproximou muitas delas e, com a continuidade desse trabalho, teve-se como consequência o sucesso de uma manifestação pública, que reuniu milhares de mulheres árabes, que gritavam “abaixo a Paranja!”, relacionando o tradicional véu árabe à opressão, retirando-o e queimando-o. Esse ato de mulheres politicamente oprimidas e anuladas, no ambiente social ou familiar, foi bastante transgressor e levou as mulheres a reivindicarem espaços impensáveis anteriormente, tal como confrontar a ordem em que se encontravam, levando-as a refletirem sobre elementos que não faziam parte do horizonte daquelas mulheres. Tudo isso somente foi possível, porém, por causa da primeira aproximação, por via dos elementos já conhecidos, e designados como parte de tarefas femininas pela sociedade. Contanto que se chegasse a resultados que superassem os próprios elementos que os originaram, entende-se que tal tática não perdia de vista o objetivo da emancipação feminina. O caso narrado, contudo, não teve um final feliz: após a manifestação, centenas das manifestantes que participaram do coro foram dizimadas por seus parentes, que não as aceitavam como participantes do movimento político, tampouco aceitavam as transgressões requeridas. Também foi por meio da intervenção masculina que o Jenotdel foi deslegitimado e, posteriormente, desmantelado: em, 1930, Kaganovich, porta-voz de Stálin, à época, afirmou que a seção de mulheres já tinha completado o círculo de seu desenvolvimento e que essa não era mais necessária pois, como colocou o porta-voz de Stálin, Kaganovich, a histórica questão das mulheres já havia sido resolvida, dessa forma, não era mais necessário haver uma seção 2766

específica para tratar dela. Assim, em uma decisão de cima para baixo, Stálin e a direção partidária à época (formada praticamente toda por homens) decretaram o fim do Jenotdel. Contraditoriamente, após tal ato, foi criado o Jensktorii, uma espécie de setor das mulheres, que usava somente da agitação e propaganda, sem abertura para os métodos democráticos e cujas decisões eram tomadas via seções do Comitê Central. Depois, até mesmo esse diretório foi extinto. Porém, como se sabe, não é verdade que a questão da mulher havia sido resolvida: mulheres ainda sofriam diversos tipos de discriminação, tanto econômica e social, quanto familiar, ainda ocupavam majoritariamente cargos menores, recebiam salários menores, eram prejudicadas pela falta de estruturas que realizavam o trabalho doméstico (e mesmo das que existiam, eram elas e não os homens que precisavam exercer). Não é verdade, também, que o Partido percebeu que devia marginalizar a questão feminina, focando em outras questões: as massivas propagandas, que colocavam as mulheres no lugar de “mães da nação”, responsáveis pelo futuro da economia e da política da União Soviética, etc., demonstram que o que ocorreu foi o contrário: em um contexto de profunda burocratização e autoritarismo, como foi o stalinista, a questão feminina tornou-se importante demais para que fosse permitido o controle dessa questão pelas próprias mulheres. Dessa forma, ainda que algumas conquistas tenham permanecido, a partir de 1930, uma série de retrocessos são impostos às mulheres soviéticas, tal como a criminalização do aborto, a retirada de milhares de crianças das creches, a dificultação do divórcio, a valorização da família frente à liberdade individual da mulher e a própria autonomia e poder sobre suas próprias demandas, que dão lugar à submissão às ordens dos poderosos homens da direção14. Progressivamente, isso se estende, primeiramente, às mulheres, que perdem poder de debates e decisões no campo político geral; segundamente, para toda a sociedade, que cada vez mais precisa obedecer a burocracia controladora e ditatorial que se propaga, inibindo os direitos e liberdades não apenas das mulheres, mas de todos os cidadãos. O Jenotdel metonimiza, assim, o processo socialista com um todo, desde o seu ponto mais libertário à humanidade até o início da ditadura stalinista: sua criação foi realizada em um tempo em que era possível conceder esse tipo de liberdade à população; já sua progressiva dissolução, demonstra que quanto mais longe da emancipação feminina ficava, também mais longe o gênero humano se colocava – em parte por que as mulheres constituem metade desse grupo, logo, não seria possível em qualquer contexto emancipar a humanidade sem emancipar as mulheres; em parte porque a contínua queda de autonomia concedida às mulheres indicava que um Estado mais autoritário estava se construindo.

2767

Referências bibliográficas 1

KOLLONTAI, A. Avtobiograficheskii ocherk, p.273-4 apud WOOD, E. The Baba and the

Comrade. Bloomington: Indiana University Press, 1997, p.32. 2

LENIN, Vladimir. As tarefas do proletariado em nossa Revolução, escrito de 10 a 23 de

abril de 1917, publicado em brochura em setembro do mesmo ano. Obras escolhidas, T; II, p. 30, Edições em línguas estrangeiras, Moscou, 1947. 3

O debate sobre os principais responsáveis pela criação do Jenotdel é diverso. Farnsworth

(FARNSWORTH, Beatrice Brodsky.Bolshevism, the Woman Question, and Aleksandra Kollontai. The American Historical Review, vol.81, n°2, p.292-316. Oxford: Oxford University Press, 1976.), Clements (CLEMENTS, Barbara. The Utopianism of the Zhenotdel. Slavic Review Vol. 51, No. 3 (Outono, 1992) e Goldman (GOLDMAN, Wendy. Mulher, Estado e revolução. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014.) dão ênfase ao papel das líderes feministas, como Inessa Armand e Alexandra Kollontai, que por meio da pressão e luta teórica conseguiram estabelecer o debate da questão feminina no partido. Bobroff (BOBROFF, Anne. The Bolsheviks and Working Women – 1905-1920. [s.l.]: [s.n], 1974) e Hayden (HAYDEN, Carol. Feminism and Bolshevism: The Zhenotdel and the Politics of Women’s Emancipation in Russia, 1917-1930. Berkeley: University of California, 1979.) dão menos importância às lideranças, colocando que desde 1913 as próprias mulheres já estariam mais ativas, tendo o Partido Bolchevique atentado precocemente à organização feminina. Wood (op.cit) aponta que a própria direção partidária teve papel na maior atenção dada às causas feministas, mas principalmente porque precisava se situar diante dos outros movimentos, como os sociais-democratas alemães, que já faziam isso. Bonnell (BONNELL, Victoria E. Iconography of power: Soviet political posters under Lenin and Stalin. Vol. 27. Univ of California Press, 1998.) aponta também que havia outras seções feministas que se organizavam fora do Partido Bolchevique, que tiveram suas demandas cada vez mais marginalizadas, conforme a criação do Jenotdel ia se delineando. 4

O debate sobre os principais responsáveis pela criação do Jenotdel é diverso. Farnsworth

(FARNSWORTH, Beatrice Brodsky.Bolshevism, the Woman Question, and Aleksandra Kollontai. The American Historical Review, vol.81, n°2, p.292-316. Oxford: Oxford University Press, 1976.), Clements (CLEMENTS, Barbara. The Utopianism of the Zhenotdel.

2768

Slavic Review Vol. 51, No. 3 (Outono, 1992) e Goldman (GOLDMAN, Wendy. Mulher, Estado e revolução. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014.) dão ênfase ao papel das líderes feministas, como Inessa Armand e Alexandra Kollontai, que por meio da pressão e luta teórica conseguiram estabelecer o debate da questão feminina no partido. Bobroff (BOBROFF, Anne. The Bolsheviks and Working Women – 1905-1920. [s.l.]: [s.n], 1974) e Hayden (HAYDEN, Carol. Feminism and Bolshevism: The Zhenotdel and the Politics of Women’s Emancipation in Russia, 1917-1930. Berkeley: University of California, 1979.) dão menos importância às lideranças, colocando que desde 1913 as próprias mulheres já estariam mais ativas, tendo o Partido Bolchevique atentado precocemente à organização feminina. Wood (op.cit) aponta que a própria direção partidária teve papel na maior atenção dada às causas feministas, mas principalmente porque precisava se situar diante dos outros movimentos, como os sociais-democratas alemães, que já faziam isso. Bonnell (BONNELL, Victoria E. Iconography of power: Soviet political posters under Lenin and Stalin. Vol. 27. University of California Press, 1998.) aponta também que havia outras seções feministas que se organizavam fora do Partido Bolchevique, que tiveram suas demandas cada vez mais marginalizadas, conforme a criação do Jenotdel ia se delineando. 5

THE RUSSIAN Revolution and the Emancipation of Women in Women and Revolution

Pages, Spartacist, English Edition, nº 59. Primavera de 2006, Online. Disponível em: http://bit.ly/1Phjec0 6

O Código do Casamento, família e tutela foi um importante passo nos direitos femininos,

dado logo após a revolução, em 1918. Nele instituíam-se conquistas como o casamento civil, o divórcio facilitado, retirava a necessidade de a esposa seguir seu marido, equiparava filhos bastardos ou naturais, entre outras. Para uma análise do Código, ver Goldman, Wendy. Mulher, Estado e revolução. Boitempo Editorial : São Paulo, 2014, capítulo 3. O documento está disponível na integra, em russo, em http://bit.ly/1PvaQqe 7

GOLDMAN : op.cit, p.77

8

Ibidem: op.cit, p.293; A conclusão final sobre a pensão alimentícia no Código do

Casamento, Família e Tutela de 1918 foi que essa seria paga, por um período determinado, apenas para os necessitados financeiramente, sendo possível para ambos os conjugues e paga por um deles e não pelo Estado. 9

Tal divisão, inclusive, se formalizou em 1920, tendo sido criadas duas subdivisões ao

Jenotdel: instrução e organização, agitação e propaganda. Para a historiadora Elizabeth Wood, esse fato caracteriza o começo do fim da sessão, principalmente porque o primeiro par fica

2769

nas mãos de um homem do partido (Maksimovskii), que cada vez mais tenta acoplar nele as tarefas mais essenciais. Não nos sendo possível aqui aproximar nesse primeiro aspecto que retira poder das mulheres, recomendamos a leitura da autora: WOOD: op.cit, p.81. 10

PATTERSON, Michelle Jane. Red ‘Teaspoons of Charity’: Zhenotdel, Russian Women and

the Communist Party, 1919-1930. Tese de Doutorado. Universidade de Toronto, 2011. Disponível em: http://bit.ly/1MxfEwW 11

HEYATH, Farideh. Azeri women in transition: women in Soviet and post-Soviet

Azerbaijan. Psychology Press, 2002, p.196. 12

STITES, Richard. The Women’s Liberation Movement in Russia: Feminism, Nihilism, and

Bolshevism, 1860-1930. Vol. 59. Princeton University Press, 1978, p.352. 13

Em outro artigo nosso (SENNA: 2014), reparamos o seguinte padrão: quando há uma

criança com o adulto, ou ela está junto a representações concomitantes de pai e mãe, significando a unidade familiar, ou ela está apenas com a mãe, significando a responsabilidade desta com a criança. As poucas e tardias vezes (todas do período stalinista para frente) em que a criança aparece apenas com o pai ou com uma figura masculina ocorrem quando a temática do cartaz se relaciona a esportes, atividades públicas, nunca a cuidados de higiene, educação e outros relacionados historicamente à imagem feminina. Além disso, maioria dos cartazes em que há apenas a criança (ou as crianças) e uma figura masculina, essa se refere à Stálin, na tentativa de representar sua bondade e compaixão diante dos pequenos. 14

Até 1917, apenas três mulheres fizeram parte dos órgãos principais do PC (Comitê central,

Orgburo, Politburo, Secretariat) e de 1918 a 1924, apenas uma mulher o fez (STITES: op.cit. 1978) Vemos também que de 1927-1952, nenhuma mulher participou do Politburo (como membro candidato ou efetivo) (PRICETON UNIVERSITY. Politburo of the Central Committee of the Communist Party of the Soviet Union, Online. Disponível em: http://bit.ly/1Jmm2Xi)

2770

Entre Ditos e Silêncios: Petrópolis e o Diário de Getúlio Vargas (1930-1942). Thales Rocha de Freitas (Mestrando - PPGH-UERJ) E-mail: [email protected] Orientador: Oswaldo Munteal Filho

Resumo: Este artigo pretende problematizar, em seus ditos e silêncios, o Diário de Getúlio Vargas (1930-1942), importante fonte para compreensão deste ator. Como propõe Roland Barthes, há de se analisar não apenas o conteúdo escrito de um texto, mas o que se pretende ao escrevê-lo. Mais detidamente, pretende-se analisar a presença da cidade de Petrópolis-RJ no Diário de Getúlio Vargas. Tal artigo faz parte de uma pesquisa (Mestrado PPGH-UERJ), focada em analisar a trajetória de Vargas em Petrópolis-RJ (1930-1945). Palavras-Chave: Getúlio Vargas; Petrópolis-RJ; Diário de Getúlio Vargas (1930-1942).

Abstract: This article intends to discuss, in their sayings and silences, the Diary of Vargas (1930- 1942), important source for understanding of this actor. How proposes Roland Barthes, there is to analyze not only the written content of a text, but what is intended to write it. More closely, intend to analyze the presence of the city of Petrópolis- RJ in Getúlio Vargas Diary. This article is part of a research (Master PPGH-UERJ), focused on analyze the trajectory of Vargas in Petropolis- RJ (1930- 1945). Key-Words: Getúlio Vargas; Petrópolis-RJ; Getúlio Vargas Diary (1930-1942).

1) Introdução Embora o primeiro período Vargas seja demasiadamente discutido em contexto nacional, e em muitas destas discussões o foco recorra justamente sobre o presidente Getúlio Vargas, a aplicação destas análises com o fim de compreender a relação entre este presidente e a cidade de Petrópolis tem sido demasiadamente distantes. A única obra produzida com intuito de evidenciar a farta existência de memórias republicanas em Petrópolis, a saber, “Três ensaios sobre Petrópolis” (1984)1, de Francisco Vasconcellos, é repetidamente enunciada pelo autor ao decorrer de suas páginas enquanto uma obra descompromissada com os critérios acadêmicos e historiográficos, detendo-se a um relato de memórias, ainda que rigorosamente verdadeiro no tocante ao ocorrido, mas por vezes comentado com base na vivência pessoal do autor. Primeiramente, devemos situar a presente pesquisa no tempo e no espaço.

2771

No contexto nacional, Skidmore (1982)2 aponta o primeiro período Vargas como um momento de profundas novidades. Nunca antes no regime republicano brasileiro um único líder havia estado no poder perpassando 15 anos consecutivos. Em segundo lugar, o Brasil republicano ainda não havia sido submetido a uma ditadura como o foi durante a vigência do Estado Novo (1937-1945). Além disto, Fausto (1995)3 aponta que Getúlio Vargas conseguiu em seu governo unir forças antes dispersas ou bem menos engajadas politicamente em torno de sua figura, como a igreja católica e a classe trabalhadora. Neste período que trouxe tantas perspectivas inéditas, insere-se a trajetória de Vargas em Petrópolis, demasiado distante da trajetória de qualquer outro Presidente da República nesta cidade, não apenas pela grande quantidade de tempo empreendido na cidade, mas também por seu engajamento na resolução de causas do município. Assim, convém-nos esboçar a maneira com a qual a Petrópolis republicana transcorreu até chegar ao período Vargas. Isto porque, diferentemente do que hoje se apresenta, Petrópolis destacou-se no cenário republicano fluminense enquanto influente base política, o que pode ser relevante ao pensar a constante busca de Vargas em associar-se ao município. Alguns aspectos podem revelar tal destaque: Primeiro, a transferência, em 1893 da Capital do Estado do Rio de Janeiro, de Niterói para Petrópolis, o que perdurou até 1903. Em segundo, o “Grupo de Petrópolis”, grupo de 15 deputados “alojados no PRRJ e liderados pelo médico Hermogêneo Silva, chefe político petropolitano” (MONTEIRO, 1983, p. 218) 4. Tal grupo possuía intensa atuação política, o que contribuiu, entre outros fatos, para o estabelecimento de Petrópolis, e não outra cidade serrana, como Capital do Estado. Em terceiro, “Proclamada a República, os presidentes, até a inauguração de Brasília, deram continuação ao rito de transferir os despachos de verão para a cidade, onde permaneciam durante um curto período do ano” (LIMA, 2001, p.340)5. Desta maneira, destaca-se que, apesar do título de Cidade Imperial, Petrópolis possui um rastro de memórias republicanas que conferem-na, em alguma medida, uma posição de destaque sócio-político em comparação com a grande maioria dos municípios fluminenses. Tal fato deve ser levado em conta ao elaborar uma análise sobre a trajetória de Vargas em Petrópolis, pois pode ter sido relevante no pensamento deste ator ao escolhê-la para seu estabelecimento político durante alguns meses do ano entre 1931-1945. 2) Getúlio Vargas em Petrópolis

2772

A presença do recorte republicano 1930-1945 é sobressalente nas memórias petropolitanas, bem como a aproximação entre a cidade e o governante máximo do período, Getúlio Vargas. Isto pode ser visto na edição de 22 a 28 de Setembro de 1996 do Jornal de Petrópolis, que propõe: “Getúlio Vargas foi talvez o presidente que mais gostava de Petrópolis: passou quinze verões na cidade (1931 a 1945). Ele sempre gostou de passear pelas trilhas e montanhas de Petrópolis”. Caderno Especial do Diário de Petrópolis, de Março de 1998, ao falar do Palácio Rio Negro, aponta que “De 1930 a 1945 Getúlio Vargas ocupou o palácio passando nele em média três meses por ano e transformando-o em cenário marcante do Estado Novo.”. Desta maneira, levanta-se a hipótese de que o Palácio Rio Negro pode ter sido não apenas um palácio de veraneio, mas uma extensão do próprio Palácio do Catete. Continuando a análise em documentos históricos, vemos a matéria intitulada “Bonito, suntuoso e contador de histórias”, de José Luiz Campos. Nesta matéria, publicada no jornal “Gazetinha semanal”, de 27 de agosto de 1999, o Palácio Rio Negro é abordado, analisando historicamente alguns marcos sobressalentes deste patrimônio histórico. Nela, há um setor intitulado “Era Vargas”, o qual busca descrever a presença de Getúlio Vargas no Palácio Rio Negro, bem como sua identificação com a cidade de Petrópolis, o que pode ser visto em trecho extraído do jornal: “Ele tinha um carinho especial pelo palácio e no seu veraneio por vezes chegava aqui em dezembro e permanecia até abril. Vargas despachava no Rio Negro, e aqui tomou decisões importantes como a confecção de leis trabalhistas em seu governo de Estado Novo”. A matéria continua: “Comumente Getúlio driblava a segurança conversando com as pessoas, como os charreteiros e afagando as cabeças das crianças que o reconheciam. Dava dinheiro aos mais humildes e por vezes crivava um passante (...) sobre como vivia, como era sua família.”. Sendo Petrópolis sede oficial do veraneio presidencial desde o início do período Republicano, o novo período que se fundara com a Revolução de 1930 trazia à Petrópolis uma inquietação: Continuaria a cidade a manter a tradição dos verões presidenciais? Esta indagação fica nítida no “Jornal de Petrópolis”, de 7 de fevereiro de 1931. Segundo Vasconcellos (1984, p. 123)6, “a expectativa era grande e a imprensa petropolitana martelava diariamente o assunto. Em 14 de março ainda o Jornal de Petrópolis chegou a anunciar a existência de uma comissão para receber Getúlio Vargas”. A primeira vinda de Getúlio Vargas à Petrópolis enquanto Chefe do Governo Provisório foi tão impactante, que o Jornal de Petrópolis, de 17 de março de 1931 bradava em sua primeira página: “Presidente de fato da Nação, o Sr. Getúlio Vargas nem por isso

2773

interrompeu a tradição sempre respeitada pelos Presidentes constitucionais de passar uma parte da quadra do estio nessa (...) cidade”. Assim, iniciava-se a relação entre Vargas e Petrópolis, relação que perduraria por longos dias durante todos os anos que se seguiram no período 1930-1945, e, deve-se ressaltar, trouxe diversos benefícios para a cidade serrana. Particularmente três destes benefícios podem ser nitidamente observados ao analisar os periódicos “O Jornal de Petrópolis” e “Tribuna de Petrópolis” no período 1930-1945. Primeiramente, vemos a questão de Estrada União Indústria: A importante estrada, que liga o centro de Petrópolis com todos os distritos deste município e, segundo o Jornal de Petrópolis e a Tribuna de Petrópolis se encontrava em condições precárias, foi percorrida em 25 de março de 1932 por Vargas, juntamente com o Ministro de Obras Públicas. Dois dias depois, o Jornal de Petrópolis noticiava: “A União e Indústria vai ser recuperada. Vai ser betumada até Pedro do Rio”. Em segundo lugar, o caso do Banco de Petrópolis. Segundo Vasconcellos (1984), devido a sua má administração, o Banco de Petrópolis encontrava-se, em 1931, em vias falência, situação tratada nos periódicos “Jornal de Petrópolis” e “Tribuna de Petrópolis”. Após receber no Palácio Rio Negro uma comissão chefiada pelo prefeito Yeddo Fiúza e autorizada pelos credores do Banco de Petrópolis, Getúlio Vargas promete se interessar pelo assunto em questão, o que foi divulgado pelo Jornal de Petrópolis, a 3 de abril de 1931. Prosseguindo, Vargas envia postulantes ao Presidente do Banco do Brasil, Dr. Mario Brant, propondo entrevista com a comissão chefiada por Yeddo Fiúza. Foi justamente deste encontro organizado por Vargas, entre a comissão de Fiúza e o Presidente do Banco do Brasil, que saiu a certeza de uma perícia que encaminharia a solução do caso, divulgada pelo Jornal de Petrópolis a 16 de junho de 1931, após assembléia de credores do Banco, que decidiu por sua liquidação. Um terceiro caso marcado pelo auxilio de Vargas foi o caso do Banco Construtor do Brasil. Yeddo Fiúza, prefeito de Petrópolis de dezembro 1930 a dezembro 1934, queria a rescisão de contratos assinados em 1903 com o Banco Construtor do Brasil, nos quais estaria acordado o fornecimento de água e energia elétrica para a cidade de Petrópolis, devido a pendências observadas nos contratos. Vargas, conforme o Jornal de Petrópolis, de 22 de junho de 1934, acreditava na revisão amigável dos contratos, e não em sua rescisão. Após o Comandante Ari Parreiras, Interventor do Estado do Rio de Janeiro, querendo evitar maiores dificuldades entre Prefeitura Municipal de Petrópolis e o Banco Construtor do Brasil, proferir despacho definitivo, no qual se considerava a revisão de contratos e não a rescisão, Getúlio Vargas confirma e viabiliza a decisão da Interventoria, pondo final ao caso.

2774

Além destes três casos, onde se observa a marca de Vargas na resolução de problemas do município serrano, deve-se lembrar ainda da talvez mais importante mobilização de Vargas a favor de Petrópolis: seu esforço para criação do Museu Imperial. Conforme o Jornal de Petrópolis, de 2 de março de 1933, o médico Cardoso Fontes, em proeminente discurso durante um jantar, chamou a atenção dos petropolitanos para a necessidade de um museu que preservasse a história local. Tal discurso deve ter tido caráter tão penetrante, que a 31 de março de 1933 o Jornal de Petrópolis noticiava a vitória da proposta. E por meio do ato nº 384 do prefeito Yeddo Fiúza, era criado o museu, que ocuparia uma das salas da Biblioteca Municipal. Contudo, tal mobilização não saiu do papel. O primeiro “Protótipo” de Museu Imperial se concretizaria apenas em 1937, quatro anos após os primeiros pleitos, no Palácio de Cristal. Um dos obstáculos para a instalação do Museu Imperial no antigo Palácio de D. Pedro II era a então utilização do espaço: Nestas dependências encontrava-se o colégio São Vicente. Após visitar o Museu Histórico em 1º de fevereiro de 1939, Vargas percorreu as dependências do Colégio São Vicente, antigo Palácio do Veraneio Imperial, e mobilizou esforços para aquisição do Patrimônio para o Estado. Tal aquisição se concretizou a 27 de novembro de 1939. No ano seguinte, Getúlio Vargas assinava, no Palácio Rio Negro, o decreto lei de 29 de março de 1940, criando o Museu Imperial de Petrópolis. Além da evidente atuação de Vargas no tocante a resolução de problemas de Petrópolis, outra questão que deve ser ressaltada é sua intensa atuação política nos períodos de estadia em Petrópolis. No ano de 1935, por exemplo, podemos ver que às segundas feiras, recebia os ministros da Justiça e da agricultura; às quartas os da Fazenda e do Trabalho; às quintas, os da Marinha e da Guerra e as sextas o da Viação e Obras Públicas. Afora esse programa de despachos com os responsáveis pelas várias pastas do Governo, Vargas recebia para audiências previamente marcadas, menos às sextas-feiras, dia reservado aos membros do Congresso Nacional (VASCONCELLOS, 1984, p.148).

3) Diário de Vargas O texto de Ginzburg (1989) intitulado “Sinais: raízes de uma paradigma indiciário” evidencia a necessidade com a qual o historiador se depara no tocante a entender determinados fenômenos a partir de pequenos indícios ou da junção destes. “Se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas – sinais, indícios – que permitem decifrá-la” (1989, p.177)7. Neste sentido, observamos três atos de Getúlio Vargas, aqui tomados enquanto indícios: Primeiro, sua preocupação em escrever um diário relatando seu cotidiano entre 19301942; Segundo, a contratação pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) do escritor austríaco Paul Frischauer, ainda durante a vigência do Estado Novo, para elaboração

2775

de uma biografia oficial de Getúlio Vargas (publicada em 1943); Terceiro, a preocupação na elaboração reforçada pelo conteúdo (“deixo a vida para entrar na história”) da cartatestamento de Getúlio Vargas, deixada por ele ao suicidar-se. Contudo, a que ponto estes três indícios nos fazem chegar? Por meio de destes, é possível afirmar a preocupação de Vargas na execução de um projeto de memória, uma maneira pela qual seria lembrado. A junção dos três rastros embasa tal hipótese. Nesta vertente, é significativo pensar que, como parte de um projeto de memória, Vargas possuía intenções ao escrever seu diário, o que nos remete a Roland Barthes. Barthes, na aula inaugural da cadeira de semiologia literária do Colégio de França (1977), publicada em português pela editora Cultrix sob o título “Aula” (2001), propõe que “o saber é um enunciado; na escritura, ele é uma enunciação” (2001, p. 20)8. Isto porque, na escritura, “as palavras não são mais concebidas ilusoriamente como simples instrumentos, são lançadas como projeções”. Ao iniciar seu Diário, Vargas faz uma promessa de “espontaneidade”, ou, como ele diz, “sinceridade”: “Lembrei-me que, se anotasse diariamente, com lealdade e sinceridade, os fatos de minha vida como quem escreve apenas para si mesmo, e não para o público, teria aí um largo repositório de fatos a examinar e uma lição contínua da experiência a consultar” (1995, v.1,3)9. Contudo, a "espontaneidade", a "autenticidade" e a "verdade" dos documentos pessoais precisa ser trabalhada. De forma alguma para ser desconsiderada, mas exatamente para ser refletida e problematizada, sendo associada a outros tipos de documentação e sofrendo o crivo de um rigoroso tratamento teórico-metodológico. Nisso os documentos pessoais em nada diferem de todos os demais documentos históricos. (GOMES, 1997, 126)10.

Gomes corrobora para uma problematização desta sinceridade supostamente contida nos documentos pessoais. É justamente neste sentido que utilizaremos a proposta de Barthes: As palavras de Vargas em seu diário consistiam, de fato, apenas num repositório para reflexão pessoal ou, antes, eram lançadas como projeções, como dito anteriormente, colaborando para a construção de um projeto de memória? Alguns indícios, como propõe Ginzburg, podem nos ajudar a chegar a esta resposta: 1º) Vargas, em seu Diário, seguia uma interessante ordem de narração dos fatos: Narrava-os não como se pensasse cada dia como fato isolado, mas seguia uma seqüência organizada de narração. Começava a trabalhar a escrita de um dia a partir do que havia posto como conclusão do dia anterior. Em alguns momentos, a narrativa de um dia responde a questões postas anteriormente, como se pretendesse narrar o começo, meio e fim de algumas situações. Getúlio Vargas escreve um Diário que, caso lido sem levar em conta a separação espacial

2776

dada para cada período relatado (dia 1 de janeiro, dia 25 de março...), muito se pareceria com um relato projetado do período 1930-1942, e não um espaço para confissões e auto-reflexão (lógica que muda gradativamente em 1941 e 1942, onde Getúlio Vargas opta por narrações breves e diretas, muitas vezes apenas uma frase). Se o diário de Vargas tem a aparência de um relato arquitetado, com lógicas e elos entre as partes, onde fica a “espontaneidade” inerente à quem escreve para si e não para os outros? 2º) Getúlio Vargas se preocupa novamente em dar um estilo de narrativa contínua e ininterrupta ao seu Diário inserindo neste uma introdução, ao iniciá-lo, e uma conclusão, ao terminá-lo. É interessante observar que em ambas Vargas justifica suas atitudes, como se pretendesse dar legitimidade histórica ao se Diário, uma necessidade verdadeira ao realizá-lo e outra ao terminá-lo, destituindo-o de interesses pessoais. Ora, se o objetivo deste era ser um repositório para análises pessoais, para que tamanha preocupação em legitimá-lo? 3º) Quando Vargas justifica a existência de seu Diário, é interessante notar que este utiliza a expressão “lembrei-me” (“que, se anotasse diariamente, com lealdade e sinceridade, os fatos de minha vida...”). Vargas poderia ter-se utilizado de muitas outras expressões, tais como: “pensei que”, “observei que”, “conclui que”, etc. Contudo, utiliza uma expressão que evidencia seu exercício de lembrar-se do passado e conceder, em sua vida cotidiana, um espaço para lembranças. Seu Diário, portanto, parte de uma lembrança, é escrito a partir de lembranças cotidianas. Entretanto, a faceta do diário como documento público, como lembrança de parte da História do Brasil teria sido negligenciada por alguém que, além de ter uma constante preocupação com a materialização de suas lembranças, estava convicto que deixava a vida para “entrar para a História”? Observando o Diário de Getúlio segundo a proposta de Barthes, ou seja, o “saber como enunciação”, “as palavras lançadas como projeções”, observemos a seguinte afirmativa de Vargas: “gosto mais de ser interpretado do que me explicar” (1995, v.2, 209). Seguindo portanto os indícios anteriormente pontuados, vemos o Diário de Vargas como uma projeção, algo lançado à existência por quem gostaria de ser interpretado, de quem sabia da possibilidade e probabilidade da leitura de seus diários. É interessante notar que os treze cadernos originais nos quais Vargas relatou seu cotidiano consistiam um volumoso e nada discreto conjunto. Os cadernos, inclusive, aumentaram de tamanho a partir de março 1934: deixa-se de utilizar cadernos pequenos, sendo adotados cadernos de maiores dimensões. Vargas não pensou em eliminar o volumoso conjunto antes de suicidar-se. Esquecimento ou intenção de que os mesmos fossem achados (já que não eram discretos)?

2777

4) Petrópolis no Diário de Vargas O Diário de Getúlio Vargas (1930-1942) aponta uma série de relatos do próprio Getúlio Vargas a respeito de encontros com Ministros, diálogos com Governadores, entre outras atividades de caráter político, estando o Presidente em Petrópolis. A grande maioria destes eventos dava-se no Palácio Rio Negro. Entre tais relatos referentes ao ocorrido na vida de Vargas estando este no Rio Negro, podemos citar o de 1º de fevereiro de 1937, onde Vargas atendeu o governador de Santa Catarina; 10 e 11 de fevereiro de 1937, onde Vargas reuniu Osvaldo Aranha e o Ministro da Fazenda para tratar assuntos referentes à política econômica e financeira do Brasil, principalmente a questão do esquema das dívidas; 4 de fevereiro de 1941, quando Getúlio entregou credenciais do novo embaixador francês; 6 de fevereiro de 1942, quando o Presidente recebeu embaixador americano, entre tantos outros relatos capazes de fornecer importantes informações que em muito contribuirão para a compreensão do modo como se dava a presença de Vargas em Petrópolis, ao ressaltar quem o acompanhava, quanto tempo duravam suas estadias, bem como o que ele de fato executava nestes períodos. A primeira citação de Vargas sobre Petrópolis consta no relato de Domingo, 18 de janeiro de 1931: “Pela manhã despachei volumoso expediente. À tarde, em companhia do ministro do Exterior e famílias, visitei Petrópolis, tomamos um chá no Hotel Independência e fomos ver o Palácio Rio Negro. Temperatura agradável, quase fria” (VARGAS, 1995, v.1, p.44). Embora seja um breve relato, é capaz de transcrever algumas características que prosseguiram sobressalentes em toda a trajetória de Vargas em Petrópolis: Primeiramente, Vargas manteve uma ativa vida política durante suas trajetórias na cidade, sendo visto costumeiramente com ministros, embaixadores, além de despachar expedientes no Palácio Rio Negro. Segundo, que estes momentos políticos seriam alternados com momentos de lazer. Assim como tomou um chá no Hotel Independência em janeiro de 1931, visitou exposições e amostras, participou de churrascos, jogou golfe, entre outras atividades de lazer durante sua trajetória na cidade serrana. Terceiro, vê-se o apreço que Getúlio, tal qual Pedro II, nutria pelo clima petropolitano. Em 29 de janeiro de 1934, chega a por que “a tarde clara e amena, o ar transparente e leve da cidade serrana constituem verdadeiro encanto, contribuindo para a serenidade e o equilíbrio do organismo” (VARGAS, 1995, v.1, p.265). Em quarto lugar, sua atenção no Palácio Rio Negro, lugar onde permaneceu por meses durante suas estadias em Petrópolis. Neste sentido, é valido notar que Vargas não utiliza o respectivo palácio como mero Palácio de descanso e veraneio, antes o transforma em uma espécie de extensão do

2778

próprio Palácio do Catete. No índice temático da edição do Diário de Getúlio Vargas publicada pelas editoras Siciliano e FGV, inclusive, o Palácio Rio Negro é dado como “sede de verão do governo federal”. Os últimos dias relatados por Vargas em seu Diário foram os de abril de 1942. Neste período, onde já se observava a preocupação de Vargas com a Segunda Guerra Mundial, o Presidente estava em Petrópolis, exceto o período entre os dias 17 e 28, onde passou em Poços de Caldas. Seus relatos eram cada vez mais curtos e objetivos. Em 5 de abril de 1942, por exemplo, Vargas narra seu dia em uma palavra: “Golf” (VARGAS, 1995, v.2, p.474) A constante prática de golfe e os despachos com ministros de diversas pastas foram as tônicas da narrativa de Vargas neste seu último mês de relatos diários. “A 1º de maio desci para o Rio, com o propósito de comemorar esse dia no grande comício dos trabalhadores no estádio do Vasco da Gama. Um incidente de automóvel imobilizou-me no leito durante vários, vários meses. Só a 27 de setembro regressei a Petrópolis para transportar parte das coisas que ficaram no Rio Negro. Quantos acontecimentos de grande transcendência ocorreram na vida do Brasil. Aqui chegando, tracei rapidamente estas linhas, dando por encerradas as anotações. Para que continuálas após tão longa interrupção? A revolta, o sofrimento também mudou muita coisa dentro de mim!” (VARGAS, 1995, v.2, p. 477)

Em seu último relato, no qual justifica o encerramento das anotações diárias, Vargas não esquece de mencionar Petrópolis e o Palácio Rio Negro, ainda que brevemente, relatando seu regresso à cidade para transportar alguns pertences. Se há verdade na justificativa de Vargas ao encerrar seu Diário, se este realmente foi encerrado pela longa interrupção e mudanças no interior de Getúlio, não sabemos. Contudo, assim como propõe Gomes (1997, 126), não devemos desconsiderar, mas problematizar a sinceridade do autor em seus documentos pessoais. Neste sentido, o que se pode afirmar é que o Presidente vai gradativamente trocando as narrações extensas e detalhadas por colocações breves e objetivas, o que deixa a impressão de que seu autor vai gradativamente perdendo o ânimo (ou, quiçá, a motivação) para executar seus relatos. 5) Conclusão Muitos silêncios ainda estão contidos em torno do Diário de Getúlio Vargas, conforme demonstrado nas tantas indagações e questões levantadas nesta breve abordagem. Se não se pode ter certeza sobre a ausência de sinceridade de Vargas em seus Diários, também não se pode crer que um ator com tamanha preocupação em ser lembrado escreveu um diário durante doze anos ininterruptos negligenciando o fato de que em algum momento este poderia ser lido.

2779

Sobre Petrópolis, deve-se ressaltar que o modo detalhista com o qual Getúlio Vargas descreveu seu Diário em muito contribui para conhecer a dimensão de sua trajetória na cidade. E sobre esta dimensão, algumas certezas já são alcançáveis. Uma delas reside na ciência de que Vargas não buscava Petrópolis apenas para descanso ou férias: antes trabalhava assiduamente no Rio Negro, lá despachando volumosos expedientes, realizando audiências e recebendo atores políticos. Uma segunda certeza refere-se à atuação de Getúlio Vargas na cidade. Por meio dos relatos de seu Diário é possível notar que Getúlio trabalhou repetidas vezes em prol das causas petropolitanas, sendo um dos marcos deste trabalho sua atuação em prol da criação do Museu Imperial, uma das mais veementes demandas a ele apresentadas pela sociedade petropolitana. Contudo, muitas questões ainda devem ser respondidas no tocante a trajetória de Getúlio Vargas em Petrópolis. Se Getúlio Vargas é capaz de evidenciar sua aproximação com a cidade por meio de seus muitos ditos, os porquês desta aproximação ainda se mantêm por seus inúmeros silêncios. 1

VASCONCELLOS, F. de. Três ensaios sobre Petrópolis. Petrópolis: Ed. do autor, 1984. SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Getúlio Vargas a Castelo Branco. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. 3 FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: EDUSP, 1995. 4 MONTEIRO, Ruy. A República em Petrópolis: Política e Eleições Municipais 1916-1996. 5 LIMA, Patrícia F. de Souza. Petrópolis: Progresso e Tradição nos trabalhos da memória. Rio de Janeiro, PUC-Rio, 2001. (Dissertação de Mestrado). 6 VASCONCELLOS, F. de. Três ensaios sobre Petrópolis. Petrópolis: Ed. do autor, 1984. 7 GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 8 BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 2001. 9 VARGAS, Getúlio. Diário (1930-1942). Volumes 1 e 2. Rio de Janeiro: 1995, Fundação Getúlio Vargas. 10 GOMES, Angela de Castro. Nas Malhas do Feitiço: o Historiador e os Encantos dos Arquivos Privados. Rio de Janeiro, Estudos Históricos/CPDOC. 1997. 2

2780

O papel político da imprensa: O jornal Tribuna da imprensa em oposição ao segundo governo de Getúlio Vargas (1951-1954). Thársyla Glessa Lacerda da Cunha* RESUMO Este trabalho tem como objetivo verificar o poder de atuação da imprensa no campo histórico, destacando sua influência na construção dos acontecimentos políticos. Essa compreensão será feita aqui, através da análise sobre a relação entre Getúlio Vargas e a imprensa durante seu segundo governo, enfatizando a importância da atuação dos jornais neste período, principalmente a Tribuna da imprensa criada em 1949, pelo jornalista Carlos Lacerda, que se engajou na missão de desestruturar o presidente e levar seu governo ao fim. Palavras - chave: imprensa – Getúlio Vargas – Tribuna da imprensa ABSTRACT

This study aims to determine the power of the press activities in historical field, highlighting its influence on the construction of political events. This understanding will be made here, by analyzing the relationship between Vargas and the press during his second government, emphasizing the importance of the role of newspapers in this period, especially the Press Tribune created in 1949 by journalist Carlos Lacerda, who engaged in the mission to disrupt the president and his government take over.

Words - key: press - Getúlio Vargas - Tribune Press Introdução A imprensa possui forte presença nas transformações políticas e sociais ocorridas no Brasil, a história da nação brasileira está intimamente ligada a ela. Os primeiros periódicos iriam assistir a transformação da Colônia em Império e participar intensamente do processo. “A imprensa é, a um só tempo, objeto e sujeito da história brasileira”. 1 Na década de 1970 ainda existiam resistências na historiografia quanto ao uso de periódicos como fontes, mesmo já tendo analisado sua importância. 2 Porém, neste período a “história política tradicional” passava por uma crise final e com isso houve uma progressão da

2781

construção de uma nova história política3, permitindo uma ampliação da área de atuação do historiador e uma nova forma de análise de fontes, e então os jornais passaram a ser destacados nas pesquisas. Dessa forma, a imprensa passa a ser considerada transmissora de seu próprio discurso de poder 4, um instrumento capaz de agir sobre os acontecimentos políticos, se tornando agente construtora da história e não apenas reflexo destes acontecimentos, uma vez que representam interesses das instituições a que pertencem e buscam alcançá-los. É de grande importância entender os periódicos como importante instrumento de difusão de ideias políticas, que interferem na opinião pública, pois os discursos transmitidos por eles possuem grande credibilidade perante aqueles que os recebem, desse modo ela exerce forte influência no pensamento social e estes sujeitos acreditam no poder por ela exercido. Diante disso há a necessidade de compreender que a imprensa age em função de interesses próprios, fundamentados em ideologias específicas e quando estas são transmitidas ao público através do discurso veiculado, estão difundindo a proposta daqueles que a produzem. Diante desta percepção a cerca da imprensa, será analisado neste artigo o papel exercido por ela durante o segundo governo de Getúlio Vargas compreendido no período de 1951 a 1954, destacando a imprensa de oposição, mais precisamente o jornal Tribuna da Imprensa criado em 1949, pelo jornalista Carlos Lacerda, que se dedicou intensamente a atacar Vargas desde o período de sua candidatura para as eleições de 1950. Vargas se deparou com muitas dificuldades em seu segundo governo devido à oposição sofrida por parte dos partidos no congresso e pela pressão exercida pela imprensa, levando a um cenário crítico na política brasileira neste período. Desse modo, no ano de 1954, o presidente se sentindo pressionado e desgastado tirou sua própria vida, e este fato carregado de dramaticidade foi propiciador de grande comoção na população brasileira, se tornando um dos momentos mais marcantes da nossa história. Um dos atores mais diretamente envolvidos tanto conjunturalmente, no desenrolar da crise de 1954, quanto estruturalmente, nos grandes processos de transformação política e sócio-cultural da sociedade brasileira, e que, curiosamente, de modo geral segue negligenciado pela pesquisa histórica é a imprensa. No entanto, hoje, talvez mais que em qualquer outro momento de nossa história, o papel político da imprensa na cobertura e na própria condução das principais crises políticas se apresenta com clareza cada vez maior.5

O retorno de Vargas Getúlio Vargas foi deposto em 1945, porém não teve seus direitos políticos cassados, não foi preso, nem exilado, decidiu voltar com sua família para o Rio Grande do Sul, em São 2782

Borja, sua terra natal, onde recarregaria suas energias para retomar seus contatos políticos. 6 A partir então, o Brasil voltou a viver num cenário democrático e seguiu a normalidade constitucional, que havia perdido durante quinze anos, a censura da imprensa foi extinta, foram criados partidos políticos e o congresso foi reativado e, embora Vargas tivesse perdido seu cargo, sua força e poder de persuasão política permaneciam intactos. 7 Getulio gozava ainda de grande apoio popular, pois a imagem de “pai dos pobres” ainda se via presente. Com a volta ao regime democrático em 1945, há o surgimento de partidos políticos que vão compor o cenário político de então, e é possível ver o quanto Vargas ainda era influente, pois os partidos criados nesse contexto possuem ligação com ele. Entre eles estão o Partido Social Democrático (PSD), criado por forças que apoiavam o governo, como: proprietários rurais, industriais, comerciantes e funcionários públicos, o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), reunia basicamente operários urbanos e sindicatos e a União Democrática Nacional (UDN), representava a frente de oposição ao Estado Novo, era favorável às liberdades democráticas, era o grupo contrário aos caminhos de Vargas.8 Para as eleições de 1950 o cenário das candidaturas era bastante incerto, pois os partidos apresentavam dificuldades em apresentar nomes de influência política, que tornasse possível estabelecer um governo que não representasse proximidade com o modelo varguista de governar. No meio dessa incerteza Vargas ganhou espaço para se candidatar, foi escolhido pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) para as eleições em questão. Desde o período de sua candidatura a UDN já se posicionou firmemente contra a volta de Vargas ao poder e sua candidatura levou o PSD a conflitos internos, devido à diversidade de opiniões entre os “pessedistas” sobre a posição a tomar diante desta realidade. Os adversários políticos de Vargas não conseguiram evitar sua candidatura e como tinha apoio popular, Getúlio Vargas venceu as eleições de 1950 que teve o seguinte resultado: Getúlio Vargas (PTB/PSP) 48,7%, Brigadeiro Eduardo Gomes (UDN) 29,7%, Cristiano Machado (PSD) 21,5% e João Mangabeira (PSB) 0,1%.9 A partir da vitória de Vargas se inicia um processo político de grande dificuldade para os anos que se seguiram. A vitória de Getúlio, o crescimento do antigetulismo udenista e as condições em que ocorreu a derrota do PSD – principalmente a crise intrapartidária que a precedeu – seriam os principais ingredientes da crise que se desenrolou por todo o segundo governo Vargas e terminou no desenlace trágico de 24 de agosto de 1954.10

O segundo governo de Vargas foi caracterizado por muita instabilidade, ele poderia até voltar ao Catete, porém não com a mesma habilidade política para lidar com seus

2783

adversários, Carlos Lacerda e a UDN estavam intensamente contra ele. “A instabilidade do governo, além de expressar uma crise de confiança de grande parte das cúpulas civis e militares em relação aos planos de Vargas evidencia também a incapacidade de o sistema partidário gerir sua diversidade interna e instituir governos”.

11

A falta de apoio por parte dos

partidos se torna cada vez mais evidente no segundo governo de Vargas, de modo que a oposição conseguiu bastante espaço para alcançar seus interesses. Nesse cenário instável e rodeado de oposição, um elemento muito marcante contribuiria para fortalecer os ataques à política de Getúlio Vargas, era o jornal Tribuna da Imprensa, que representando a voz de seu dono, Carlos Lacerda, atrelado à UDN exercia forte apelo contrário ao governo e influenciaria intensamente os rumos políticos neste período. Em Julho de 1950, Lacerda já advertia que: “O Sr. Getúlio Vargas senador não deve ser candidato à presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar”. 12 Um jornalista com aspirações políticas Carlos Frederico Werneck de Lacerda nasceu em 30 de abril de 1914, no Rio de Janeiro, porém foi registrado em Vassouras. Pertencente a uma família bastante ligada à política, principalmente seu pai Maurício Paiva de Lacerda, que participou como revolucionário em 1922,1924 e na Revolução de 1930, e seu avô Sebastião Eurico Gonçalves de Lacerda, que foi ministro da Indústria, Viação e Obras Públicas no governo de Prudente de Morais e ministro do Supremo Tribunal Federal entre 1912 e 1925, além de seus tios Fernando e Paulo de Lacerda, militantes do Partido Comunista Brasileiro (PCB).

13

Em seu

depoimento Carlos Lacerda diz: “fui criado num meio político. Ouvi falar de política em casa desde que me entendo por gente.”14 Sua atuação no jornalismo se inicia em 1930, aos 16 anos, no Diário de Notícias auxiliando Cecília Meireles em sua coluna diária sobre educação.

15

Em 1932 iniciou os

estudos na faculdade de Direito, porém saiu no segundo ano. Em seguida trabalhou na revista Diretrizes (1938), de Samuel Wainer, que seria seu maior adversário na década de 50, no Observador Econômico e Financeiro (1938), de Valentim Bouças, onde Lacerda passou por um momento marcante de sua carreira, pois em 1938 em comemoração ao primeiro ano do Estado Novo, Lacerda recebeu a tarefa de publicar uma reportagem sobre o PCB , quando foi publicada “A exposição anticomunista”, que foi visto como traição pelos

2784

comunistas

causando a expulsão imediata de Lacerda deste partido.16 Além desses, Lacerda também trabalhou na agência de notícias Meridional e O Jornal para os Diários Associados de Chateaubriand até 1944, época em que começou a lutar contra o Estado Novo. Após sua demissão dos Diários Associados, trabalhou no Correio da Manhã como free lancer escrevendo uma coluna chamada Tribuna da Imprensa, que mais tarde seria o nome de seu jornal. Rejeitado pelos setores da esquerda, Lacerda se filiou à UDN em 1945 para apoiar a candidatura de Eduardo Gomes, onde sua principal bandeira a defender seria o antigetulismo e diante disso se colocaria em oposição ao trabalhismo e ao nacionalismo, sendo que o antinacionalismo de Lacerda explicitado na Tribuna da imprensa era um discurso para atingir Vargas e não propriamente uma doutrina econômica seguida por ele. As principais características do discurso de Lacerda eram o moralismo ascético na administração pública, o anti-esquerdismo e a defesa da moral cristã. No campo econômico à medida que

se

aproximou da ideologia e política liberais da UDN o colocou junto aos liberais-conservadores que defendia a propriedade privada, a livre iniciativa e a aproximação do Brasil ao ocidente capitalista.17 Desse modo Carlos Lacerda passava a se dedicar ferrenhamente ao ataque a Vargas e a tudo que se referia a ele, neste momento já destituído do cargo de presidente. A “Tribuna da oposição” Trabalhando no Correio da Manhã, de Paulo Bittencourt, Lacerda escreveu um artigo se manifestando contra a concessão de refino de petróleo a dois grupos privados nacionais: Soares Sampaio e Corrêa e Castro, enquanto defendia a participação de capital estrangeiro na exploração petrolífera.18 Sua retórica devastadora para expressar suas opiniões, que seriam sua marca como jornalista e político, incomodou o dono do jornal por se referir contra o grupo Soares Sampaio , que era de propriedade de amigos antigos de Paulo Bittencourt e este não permitiu a publicação do artigo de Lacerda, fato que o fez solicitar sua demissão. Neste momento Lacerda se viu convencido de que era a hora de montar seu jornal e pediu ao Paulo Bittencourt: “Me empresta o nome da Tribuna da Imprensa que eu vou tentar fazer um jornal”. 19 A criação da Tribuna da Imprensa foi viabilizada pela colaboração de empresas ligadas ao capital externo, que proporcionaram o fornecimento dos recursos. Com um capital de 12 mil Cruzeiros, nascia a Tribuna20. O primeiro exemplar do vespertino foi publicado em 2785

27 de dezembro de 1949 e nele “a Tribuna, explicava ao leitor, lhe daria a informação honrada, lhe faria companhia, gemeria com ele as suas queixas e talvez o guiaria, preparandoo para os dias de vitória ‘a fim de que , ao chegar, seja esta justa e bem aproveitada’”. 21 O jornal passou a ser o porta-voz da oposição a Getúlio Vargas, expressando a opinião de seu dono, buscava liquidar seus adversários e demonstrava bases sólidas para sua carreira política, agindo como defensor dos interesses burgueses favoráveis ao capital estrangeiro. Lembrando que ele já tinha sido o vereador mais votado em 1947 pelo Rio de Janeiro, mas renunciou o cargo quando foi extinto o poder de veto dos vereadores para as decisões do prefeito.22 Lacerda conseguiu espaço na mídia além da escrita, também atuava no rádio e na televisão em parceria com outras duas empresas de comunicação de maior abrangência no Brasil, atuando na Rádio Globo e na TV Tupi, desse modo ampliava a propagação de suas ideias contrárias ao governo, reforçando o quadro difícil enfrentado por Vargas em seu governo no que diz respeito à liberdade de imprensa e esta ser em sua maior parte oposicionista. A Tribuna da Imprensa apresentava como principal característica a opinião de seu dono. Segundo Carlos Chagas, Lacerda assumia totalmente o controle do jornal. “Ele decidia qual a manchete e diagramava a primeira página, escrevia artigos e editoriais, mudava reportagens, transplantava colunas e imprimia o seu toque pessoal em todas as páginas.” 23 O jornal, no entanto, não alcançou grande prestígio popular. A Tribuna era um jornal de pequena circulação relativa, dirigindo basicamente a um público cujo consumo jornalístico já era indicativo de seu posicionamento no espectro político da época. A rigor a Tribuna tinha sua razão de ser ancorada simplesmente no fato de ser o jornal do Lacerda, sem vida própria, independente do uso político que seu diretor fazia dele.24

Dentre os principais periódicos do Rio de janeiro, ela ocupava o último lugar de vendagem, por isso recebeu o apelido de o “lanterninha”,

25

mas isso não impedia que suas

ideias não fossem ouvidas. A atuação deste jornal, sem dúvidas, foi um grande contribuinte para a pressão exercida para o fim do governo de Vargas. “Apesar de ter uma tiragem inexpressiva, a Tribuna é um jornal influente, já que tem papel decisivo na cena política, catalisando e amplificando as contradições e tensões sociais do período”.26 Os ataques inflamados de Lacerda ao presidente tomariam proporções que levou a um processo muito mais complicado ao governo, que traria fortes consequências para o cenário

2786

político no Brasil. Lacerda foi vítima de um atentado na madrugada do dia 05 de agosto de 1954, na Rua Toneleros, em Copacabana onde residia, no entanto sobreviveu, porém o major Rubem Vaz da Aeronáutica, que o acompanhava, faleceu. Este fato causou profunda repercussão no país e reforçou o ataque de Lacerda em seu jornal ao presidente que agora era apresentado como principal mandante de tal crime, pois havia ligações entre o crime e pessoas relacionadas diretamente ao presidente e ao Catete, como o chefe da guarda pessoal de Vargas, Gregório Fortunato. Na tarde do mesmo dia do atentado Lacerda expressou toda sua indignação na primeira página do jornal: “A nação exige os nomes dos assassinos.” 27 Desse modo Lacerda pretendia que o atentado tomasse uma proporção política para que assim pudesse atingir Vargas e conseguir o sucesso dos objetivos da oposição mais rapidamente. Ainda nesta edição, Lacerda acusou o presidente no editorial: “o sangue de um inocente”: “Perante Deus, acuso um só homem como responsável por esse crime. É o protetor dos ladrões, cuja impunidade lhes dá audácia para atos como o desta noite. Este homem chama-se Getúlio Vargas. Ele é o responsável intelectual por esse crime”. A investigação do crime ficou a cargo da Aeronáutica através da instauração de um Inquérito Policial Militar (IPM), que ficou conhecido como República do Galeão. A renúncia do presidente era a maior exigência e Vargas se sentido acuado diante da crise apresentada, não havia condições de reagir perante o inquérito e diante os ataques incessantes da Tribuna da Imprensa. O único aliado na imprensa que Vargas possuía era o jornal Ultima Hora, do jornalista Samuel Wainer, que a essa altura não conseguia criar argumentos que o pudesse defender. Na tentativa de reverter o quadro de Vargas foi proposto por Amaral Peixoto que lhe fosse dada licença até a conclusão da investigação do atentado da Rua Toneleros, no entanto no dia 24 de agosto um grupo de generais chegou ao catete exigindo a renúncia do presidente, que na verdade era uma deposição. O desfecho para tal situação foi o suicídio do presidente logo em seguida à tentativa de deposição. A notícia foi recebida com grande espanto e comoção pela população.28 para a oposição sua morte parecia resolver de uma vez a crise política, porém o ato dramático do presidente junto à carta deixada por ele, denominada “carta-testamento”causou grande mobilização popular e revolta contra Lacerda e a UDN. A morte impactante de Vargas desestabilizou os planos da UDN, de modo que a crise não teve a

2787

solução por ela esperada. “Na morte como na vida, os atos de Getúlio foram cuidadosamente calculados para produzir o máximo de efeito político.”29 Considerações finais O segundo governo de Vargas representou um período de muita instabilidade no Brasil, as dificuldades que se apresentaram ao presidente foram muitas, entre elas a liberdade de imprensa. A possibilidade de oposição presente no governo democrático de então, colaborou para o fim traumático de Vargas em 1954, algo nunca antes ocorrido em nosso país. Diante disso é perceptível o papel fundamental da imprensa nos desdobramentos políticos, ela é construtora de um acontecimento, visto que a sua capacidade de interferir na opinião pública pode contribuir para traçar rumos que a política seguirá. Assim, a análise da atuação do jornal Tribuna da Imprensa nos faz entender essa questão de maneira prática, percebendo os recursos utilizados por Carlos Lacerda ao se comprometer com a causa de fazer um jornal com total objetivo político e de declarada oposição ao governo de Vargas que, mesmo sendo um jornal de pouca expressão comercial, foi um elemento fundamental para cenário político brasileiro.

Notas de Referência *Mestranda em História Política pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), bolsista pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), sob a orientação do Professor Doutor Oswaldo Munteal Filho. E-mail: [email protected]. 1

MARTINS, Ana Luiza; LUCA, Tania Regina. História da imprensa no Brasil. São Paulo:Contexto,2008, p. 08. LUCA, Tania Regina. “História dos, nos e por meio dos periódicos”. IN: PINSKY, Carla (Org.). Fontes históricas. 2ª Ed. São Paulo: Contexto, 2008. 3 FALCON, Francisco. “História e poder”. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (Org.). Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. p. 97-138. 4 MARTINS, Luis Carlos dos Passos. “A grande imprensa carioca e a política econômica no segundo governo Vargas: conflitos em torno de programas de desenvolvimento”. Disponível em: acesso em 08 mai. 2015. 5 ABREU, Alzira Alves; LATTMAN-WELTMAN, Fernando. “Fechando o cerco: a imprensa e a crise de agosto de 1954”. In: GOMES, Ângela de Castro (Org.). Vargas e a crise dos anos 50. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. p. 24. 6 AURÉLIO, Daniel Rodrigues. Dossiê Getúlio Vargas. São Paulo: Universo dos Livros, 2009. 7 D’ARAUJO, Maria Celina S. (org.) As Instituições brasileiras da Era Vargas. Rio de Janeiro: Ed. UERJ: Ed. Fundação Getulio Vargas, 1999. 212p. 2

2788

HIPPOLITO, Lucia. “Vargas e a gênese do sistema partidário brasileiro”. Anos 90. Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, p. 21-47, jan./dez. 2004. Disponível em: acesso em 05 mai. 2015. 9 AURÉLIO, Daniel Rodrigues. Op. Cit. p. 106. 10 HIPPOLITO, Lúcia. Op. Cit. p. 29 11 D’ARAUJO, Maria Celina S. (org.). O segundo governo Vargas 1951-1954: democracia, partidos e crise política. 2. ed. São Paulo: Ática, 1992. p. 37. 12 HIPPOLITO, Lúcia. Op. Cit. p. 26 13 LAURENZA, Ana Maria de Abreu. Lacerda X Wainer: o Corvo e o Bessarabiano. São Paulo: Editora SENAC, 1998. 14 LACERDA, Carlos. Depoimento. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978. p. 27. 15 DULLES, John W. F. Carlos Lacerda - A Vida de um Lutador (1914-1960) - editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1992. 16 MENDONÇA, Marina Gusmão. “Imprensa e política no Brasil: Carlos Lacerda e a tentativa de destruição da Última Hora”. Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, n. 31, 2008. Disponível em: acesso em 18 mai. 2015. 17 DELGADO, Márcio de Paiva. “O Golpismo Democrático: Carlos Lacerda e o Jornal Tribuna da Imprensa na quebra da ilegalidade (1949-1964)”. Juiz de Fora, 2006. Disponível em: < http://www.ufjf.br/ppghistoria/files/2009/12/M%C3%A1rcio-de-Paiva-Delgado.pdf>. 18 MENDONÇA, Marina Gusmão. Op. Cit. 19 LACERDA, Carlos. Op. Cit. p. 75. 20 Ibidem. 21 Tribuna da Imprensa 27/12/1949. 22 LAURENZA, Ana Maria de Abreu. “Batalhas em letras de forma: Chatô, Wainer e Lacerda”. In: MARTINS, Ana Luiza; LUCA, Tania Regina. História da imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008, p. 179-206 . 23 apud DELGADO, Op. Cit. p. 58. 24 ABREU, Alzira Alves; LATTMAN-WELTMAN, Fernando. Op. Cit. p. 30. 25 Durante os anos 1950, sua tiragem média oscila entre 25 e 45 mil exemplares. Em 1954, pode ser estimada em 40 mil, enquanto que O Jornal tira 60 mil, o Diário da Noite, 75 mil, A Notícia 95 mil, Última Hora 92 mil e O Globo 110 mil exemplares. (RIBEIRO; 2000 apud BARBOSA, Marialva. História cultural da imprensa. Brasil 1900-200. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007, p. 167). 26 AZEVEDO, 1998 apud BARBOSA, Marialva. Op. Cit. p. 167. 27 Tribuna da Imprensa 05/08/1954. 28 FERREIRA, Jorge. “Crises da República: 1954,1955 e 1961”. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de Almeida Neves (org). O Brasil Republicano. O tempo da experiência democrática, da democratização de 1945 ao golpe civil-militar. Civilização Brasileira, RJ: 2003. p. 301-343. 29 SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Getúlio Vargas a Castelo Branco. 1930-1945. 14ª edição, Rio de janeiro Paz e Terra, 2007, p. 180. 8

2789

Sobre o cargo de Secretário de Governo (1688-1750).

Thiago Rodrigues da Silva Professor do CEFET/RJ. Mestre em História Social pela UFF1. Abstract / resumo:

This paper examines the bureau of secretary of government in south-central Portuguese America between 1688 (year the office was created in Angola) and 1750, the first year of a decade of lower activity from these secretaries. This work is also about the phenomenon of the intensification of writing as a mechanism of government. Based on related bibliography I discuss the process of emergence of powerful secretaries of state in the Iberian Peninsula. About the secretaries who worked in America, wich are on the focus of my research, their careers, merit, missions and the daily work of these men will also be a subject of this study. The relationship between these specialized employees in their role in face of the powerful governors will also receive special attention. Esse artigo analisa o cargo de secretário de governo no centro-sul da América Portuguesa entre os anos de 1688 (ano em que o cargo foi criado) e 1750, primeiro ano de uma década de menor atuação destes secretários. este trabalho também trata do fenomeno do intensificação da escrita como mecanismo de governo. Baseado em bibliografia relacionada eu discuto o processo de emergência de poderosos secretarios de estado na Península Ibérica. Sobre os secretarios que trabalharam na América, que estão no foco da minha pesquisa, suas carreiras, mérito, missões e o trabalho diário desses homens também serão assuntos deste estudo. O relacionamento entre esses empregados especializados e seu papel diante dos poderosos governadores também receberá atenção especial. O presente trabalho trata inicialmente do regimento do cargo de Secretário de Governo em diferentes domínios portugueses na conjuntura dos séculos XVII e XVIII. Os cargos governativos eram guiados por regimentos passados pelo rei ou por funcionários que pudessem encarnar suas funções deliberativas, como vice-reis e governadores2. Este documento regulava a atividade dos respectivos cargos, para além das ordens passadas posteriormente. Os regimentos do cargo para o Rio de Janeiro3 e Angola4 são praticamente idênticos, diferenciando-se em alguns poucos momentos no tocantes a forma escrita e o ordenamento dos capítulos, além de uma cláusula ligada a especificidade da governança em Angola (a questão dos Mucamos) e algumas diferenças de valor em pontos específicos. Outra mudança se refere também a valores passados aos ajudantes.

2790

É de maior destaque a situação deste oficial nas Minas Gerais, lá, por provisão de 1712, estes recebiam 600 mil reis de ordenado5, o que não ocorria com seus congêneres em Angola e no Rio de Janeiro, dado que era explícito que estes atuariam sem ordenado da Fazenda Real. Este ordenado, para as Minas, é diminuído em 1718 para 400 mil, com o adendo de que o mesmo deveria ser pago em moeda 6. O que é mais importante é o fato de que o oficial na capitania do ouro era guiado pelo regimento do Rio de Janeiro. Quanto ao valor dos emolumentos, estes deveriam ser multiplicados por três. Ou seja, o oficial recebia, para além dos valores inexistentes nos outros dois domínios, três vezes mais que seu par da praça carioca pelas mesmas atividades7. Voltando para os regimentos de Angola e do Rio, como dito, o cargo é instituído sem ordenado da fazenda real, sendo o secretário remunerado apenas com taxas para os registros de sesmarias, homenagens8, patentes, treslado das mesmas e etc. Tal fato pode nos dar a impressão de que o cargo não era de grande importância, o que consiste numa inverdade, dado que todos os homens da governança, de cargos remunerados ou não, e os militares, também remunerados ou não (das tropas de ordenança), deveriam registrar suas patentes/nomeações nos livros da secretaria, sem exceção. Esta prática, imposta pela coroa e que consta no regimento, servia não só para um controle dos oficiais que serviam nos respectivos domínios, dado que as listas de todos os oficiais deveriam ser envidas para Lisboa anualmente, mas servia também para a construção de uma memória administrativa e social tanto a nível imperial quanto a nível local. Tais livros de registro, construídos pelos secretários, são de ainda maior importância se atentarmos para o fato de que os mesmos serviam de base para a emissão de certidões (prática que também gerava emolumentos para os secretários e seus oficiais). Os referidos papéis serviam de fontes para os mais diversos pleitos, que constituíam uma das maiores “armas” na busca por mercês, que como sabemos garantiam a governabilidade e a reprodução das práticas sociais, políticas e culturais do Antigo Regime, práticas estas baseadas em preceitos de reciprocidades eminentes de serviços, da antiguidade e consequentemente da tradição. Os regimentos 9 enumeram minuciosamente os emolumentos que deveriam ser retirados dos diversos registros. O capítulo quinto, de ambos, é sucinto quando afirma que se tirará emolumentos de “cada Pattente Real, ou seja de posto maior, ou menor, pago, ou da ordenança”, esclarecendo os valores que ficam com o secretário e com o oficial que serve na dita instituição, auxiliando o trabalho do mesmo. Em ambos, o secretário cobrará novecentos e sessenta reis e tirará para o auxiliar trezentos e vinte. Para além deste

2791

capítulo quinto, os sete primeiros capítulos e o capítulo décimo segundo estabelecem valores tirados do registro de ofícios, seja de armas, seja de fazenda ou justiça. Este registro era obrigatório para o exercício do cargo ou da mercê na região, como já dito. Uma fonte que nos elucida sobre a importância de um documento que estabelecesse taxas fixas é o regimento do secretário do estado do Brazil, Bernardo Vieira Ravasco, passado pelo então Vice-Rei Conde de Obidos10. Este secretário centralizava despachos para os governadores de diversas capitanias e se faz presente nos mais diferentes documentos e assuntos. No tocante as suas atividades cotidianas similares as dos secretários de capitanias, este secretário atuava sem regimento específico, tirando altíssimos emolumentos dos registros. Em 1667 é estabelecido que, dado o fato de Ravasco receber ordenado de cem mil reis pelos seus serviços, este diminuirá as taxas cobradas. Fato este impulsionado pela informação passada pelo Conselho Ultramarino sobre “os grandes salários pelos despachos dos navios, barcos da costa, e licenças particulares” mandando que o secretário guardasse regimento, que na ocasião é dado pelo secretário e pelo vice-rei como inexistente. O Conde de Obidos complementa a problemática apresentando o fato de evitar as queixas, “que até o presente não hão cessado,e hão chegado a minha notícia, não só pelos despachos dos navios, barcos da costa, e licanças particulares, mas pelos salários das provisões, patentes,e Alvarás dos Officios de infantaria, que o dito secretários levava, a que se deve acudir, para que haja Regimento certo” Para evitar estes protestos o Conde passa o documento que o secretario deve guardar “inviolavelmente”, enquanto o rei não passar outro11. O mais importante para esta discussão é o fato de que ali são apontados o peso destes valores para os oficiais que devem fazer seus registros. No capítulo um é dito que o secretario ao fazer o registro de qualquer oficial maior “levará a metade do meio soldo de cada mez” o que para “os Capitães de Infantaria” rendia “quatro mil reis, que é metade do meio soldo, que se lhe paga cada mez12”, e que a taxa se refere ao exercício em um ano. Assim sendo, sabemos que os valores pagos aos secretários de Angola e do Rio de Janeiro não representavam parte substancial dos soldos que os capitães maiores recebiam, mas o mesmo não pode ser dito para as Minas, dado que lá os valores eram três vezes maiores. O fato de secretario da capitania das Gerais receber soldo não parece ter sido um impedimento desta prática, pois pelo levantamento realizado nos Projeto Resgate do 2792

Arquivo Histórico Ultramarino não há referência à diminuição dos valores e fim do soldo, pelo contrário, o que se vê são pedidos de manutenção das ajudas de custo para as atividades da secretaria, verba dada como comum nos domínios americanos. Aqui é importante ressaltar que Obidos enumera como uma das razões da necessidade de diminuição dos emolumentos o fato dos secretários da Bahia receberem uma ajuda de custo. Sabemos que em vinte e um de agosto de 1726 o governador da capitania de São Paulo é elogiado pelo rei por conceder ajuda de custo ao secretario da mesma, Gervasio Leite Rebelo, sendo esta ajuda de vinte e cinco mil quatrocentos e oitenta reis. O que é de maior relevância nesta última fonte é a afirmativa real de que “em todas as secretarias de minhas conquistas” se recebe ajuda de custo semelhante 13. Claro que há o problema do espaçamento temporal, mas ao menos para as Minas da primeira metade do Século XVIII há fortes indícios que a ajuda de custo era recorrente14. As secretarias trabalhavam com as ordens tanto expedidas pelo poder central quanto pelos representantes régios que atuavam na capitania (ou vice-reinado), nomeadamente os Governadores, recebendo emolumentos pelo registro de qualquer mercê e dos registros de “qualquer Provizão passada pello Governador15”. O ponto que mostra mais claramente a importância estratégica do cargo para o bom andamento dos tratos mercantis são os capítulos oitavo e nono, que tratam do “despacho de cada navio16”. Nele é dito os emolumentos que o secretário tirará, mas sem referência a rendimentos voltados para o dito oficial da secretaria (ajudante). O controle se refere aos navios que saem para outros portos do império e aos que praticam o comércio pela Costa (cabotagem). Podemos inferir então que o Secretário destas capitanias no século XVIII tinham um poder arbitrário sobre negócios de suma importância para a articulação e reprodução econômica, social e política de todo o império. Há também indícios de que nas Minas Gerais os ditos secretários arbitravam na circulação de pessoas, tema central e conturbado da vida social da opulenta capitania. A proximidade do governador, tida como necessária, também é expressa, onde se lê que se dará “caza para a secretaria, e seram humas, que estão vizinhas das do Governador, porque se podem comonicar”. Este dado é interessante, pois sabemos que durante o período colonial a proximidade física e o estabelecimento no centro das vilas (próximo a casa dos governadores) era um elemento simbólico de grande monta. Também é necessário ressaltar que os mesmos acompanhavam os governadores em diligências de grande importância e agiam como seus representantes em assuntos de

2793

grande monta, como o caso da instauração da capitação nas Minas Gerais17 e das idas ao sertão por parte do governador e do secretário de São Paulo18. O regimento impõe a construção de livros separados para as ordens vindas do reino e para as emitidas na capitania, dando espaço para anotações referentes a execução dada pelos governadores as respectivas questões, e cópias das cartas de respostas emitidas para Lisboa. Tal procedimento consistia na construção de uma memória administrativa, que deveria ser passada quando da posse de um novo governador, dando assim continuidade e coerência as suas atividades executivas. O poder de comunicação do secretário com o centro, e o registro dos procedimentos do governador, podiam gerar uma espécie de tutela ou capacidade de intervenção e palpite por parte do secretário, que se apresenta assim como o grande conhecedor das práticas governativas locais, das ordens emitidas pela corte e dos homens possuidores de mercês e grandes cargos. Tanto que nos regimentos há a ordem para que os oficiais façam presentes para cada novo governador as ordens que contam em sua instituição. Outro ponto importante e que só pode ser compreendido se tivermos em mente a ligação do cargo com o governador enquanto general de armas é a prática de se passar mostras (verificar a serventia em armas e em outros serviços) de todos os homens empossados na governança, construindo listas que deveriam ser registradas e envidas para Portugal afim de um controle mais efetivo dos homens que serviam nas conquistas. Essa prática era uma chave de atuação que poderia beneficiar ou prejudicar fortemente estratégias de ascensão social de indivíduos e de grupos, pois podemos conjecturar que as mesmas serviam como espécies de provas de atuação e de controle sobre o fluxo de pessoas, dado o nível de interação e as possibilidades relativamente escassas de informações, ainda mais se atentarmos para a lentidão dos fluxos informacionais. Ainda há o ponto, voltado para o secretário de governo do reino de Angola, que diz respeito a causa dos Mocamos, que deveriam ser lançadas nos livros da secretaria com a respectiva resolução. Este ponto é mais nebuloso por não se tratar de uma temática relacionado à América, mas é muito claro que se trata de uma questão importante para as relações sociais das elites locais, fazendo mais uma vez se sentir o peso da importância do controle informacional e da respectiva presença de uma Secretaria de Governo para dar cabo do mesmo. Se analisarmos apenas os regimentos já sabemos da força institucional que este cargo tinha. Mas, as práticas sociais normalmente superam e transcendem a norma

2794

instituída. Os Secretários foram de grande importância para a atuação de destacados governadores, especialmente no que tange os “assuntos secretos”. Por exemplo, o secretário Manuel da Fonseca Azevedo pede cavalo e seu sustento para as longas e desgastantes jornadas que ele faz em companhia do governador 19 para tratar dos assuntos mais secretos e importantes para o sossego dos povos e boa arrecadação da Fazenda Real, o que é atendido sem maiores ressalvas pelo monarca. André de Sousa Machado, que surge nas Minas da década de 1720 como Secretário de Governo substituto, estava por tomar prática nas Intendências, recebendo nestas não menos que setenta e duas cópias de ordens régias, regimentos e documentos de governadores, dentre outros, que os ministros haviam lhe passado não só para o regime das Minas Gerais, mas também para as Minas de Goiás, além disto, este secretário teria tido trabalho extra pela “ocasião dos tumultos, e levantes do sertão” onde este teve que expedir “ordens sobre aquellas Revoluções” centralizando consigo os papéis que tinham informações vitais, além de receber do governador “todos os avisos ocultos, correspondendo, e falando as pessoas fieis em partes remotas fora da Villa, que não hiam falar ao Governador, para melhor conservação do segredo, suprindo nas doenças do mesmo governador a correspondência tanto daquella Capitania, como de fora dela, sem q nunca houvesse falta na prontidão das cartas, Respostas e contas, o q melhor se comprova da certidão (...)”, suprindo também a falta do ajudante do governo, “distribuindo bilhetes para as intendências, ajustando as contas das remessas de ouro que delas vinhão20,” além de responder cartas dos Intendentes, “sobre as providencias precizas,” acompanhando o governador na conflituosa comarca de Rio das Mortes, dando lá “expediente as partes”, e “não podendo o Governador hir a Villa de Pitangy,” ele teria ido “pela experiência q [o governador] tinha da sua capacidade, para que fizesse executar as ordens da instrução (...)”, fazendo “por prompto tudo o q tocava a capitação; passando mostras as ordenanças”, sendo esta “a primeira vez que se executou tal naquele distrito, e examinando o novo descobrimento dos alfajores, e pérolas,” levando mostras das mesmas21. Nisso tudo pedindo sempre o cargo de Secretário para si permanentemente, enquanto dava esse belo relato das múltiplas funções que um secretário podia ter, e dos assuntos da maior importância aos quais tinha acesso. Podemos dizer que aqui Machado substituiu o governador, indo para além de lhe representar, atuando ele próprio em assuntos centrais para os interesses da coroa. Se tirarmos todas essas informações como verdadeiras, e sabendo que Gomes Freire de Andrade não parece ter contestado as 2795

mesmas, vemos aqui uma atuação extraordinária e fundamental para a articulação do governo e para o estabelecimento da capitação. O secretário não cuidou apenas de assuntos referentes às Minas Gerais e as outras minas à Oeste, mas também de papéis que versavam sobre o Rio de Janeiro e a Colônia de Sacramento, para não falar de outras possíveis regiões que tiveram documentos passando pelo seu crivo, principalmente quando da doença de Gomes Freire de Andrade. Além dos documentos oficiais, este secretário tratou de “assuntos secretos” e conversou com informantes do governador, para que eles não ficassem expostos. Sousa Machado, apesar de ser natural do Minho, parece ter tido um grande acesso a setores da sociedade mineira, e isto não deve surpreender, dado que a grande maioria dos habitantes da região eram reinóis ou africanos. Esta questão se aproxima de alguns tópicos levantados por Diego do Couto22 em sua obra “O Soldado Prático”. Nesta, o autor afirma que os Secretários de Governo que atuavam em Goa, já no século XVI, deveriam ter um bom trânsito na sociedade local, para poder se informar sobre os negócios que corriam e sobre como as pessoas viam o governo. Outros exemplos de atuações que extrapolaram o regimento surgiram na pesquisa de mestrado. Os Secretários atuaram buscando sempre o destaque social, em vistas a mercês e a inserção

23

em redes de relacionamento que passavam pela

governança. Na pesquisa vimos que o conflito de jurisdição não foi um resultado de uma desorganização típica do mando português, mas sim um instrumento para a corte manter um controle mais minucioso, baseado na tutela mútua dos cargos, mesmo que com relações de poder desiguais. Cabe para nós entender que esta desigualdade pode ser matizada em situações específicas. Mas, indo além, o fato é que para entendermos a atuação de governadores poderosos e polêmicos, como foram o conde de Assumar e o conde de Bobadela, dentre outros, temos que nos atentar para seus secretários e a proximidade entre eles. Provas disso foram as cartas eminentemente defensivas lançadas por secretários em prol de seus chefes24.

1 2

Título recebido em 2013. Orientador: Ronald Raminelli. Quando o regimente era passado por oficiais, o rei deveria confirmar tal documentação.

2796

AHU – Rio Grande do Sil, cx.1 doc.1 AHU_ACL_CU_017, cx.5, D. 522 4 Arq. Hist. Ultramarino, Docs. Avulsos, Angola, cx.ª 9. Cf. Catálogo dos Governadores do Reino de Angola, in Arquivo de Angola. Luanda, 1937. III, págs. 509-510; 5 Levantamento feito pelo então ouvidor Caetano da Costa Matoso entre 1749 e 1752. “Coleção abreviada da legislação e das autoridades de Minas Gerais” In: FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida & CAMPOS, Maria Verônica. “Códice Costa Matoso. Coleção das notícias dos primeiros descobrimentos das minas na América que fez o doutor Caetano Costa Matoso sendo ouvidor-geral das do Ouro Preto, de que tomou posso em fevereiro de 1749, & vários papéis.” Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1999. p. 353. 6 Idem, p. 355. Não podemos nos esquecer dos constantes problemas de circulação de moedas nas Minas Gerais, o que gerou uma série de ações da coroa, principalmente em relação ao estabelecimento de Casa da Moeda no Rio de Janeiro. É importante destacar também que em 1717 este passou a receber 600 mil reis por ano, mas como vimos em 1718 o valor é novamente ajustado. Idem, p. 358 7 Mas sabemos que os Secretários do Rio de Janeiro e de São Paulo receberam em diversas ocasiões ordenado. AHU – Cons. Ultram. – Brasil/MG – Cx.: 23, Doc.: 13 AHU – Cons. Ultram. – Brasil/MG – Cx.: 18, Doc.: 14 BIBLIOTECA NACIONAL, Série Documentos Históricos. Vol. 1 p. 98. Rio de Janeiro: Augusto Porto & C., 1928 8 O significado do termo no dicionário de Moraes é: “Juramento de fidelidade que se presta pelo vassalo ao soberano, ou senhor, de quem recebe alguma praça, governo, terras, ou feudo. In: SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da língua portugueza. 1789 9 Do Rio de Janeiro e de Angola. 10 Biblioteca Nacional, “Documentos Históricos”. Vol. V E III (1650-1668) pp. 415-418. Rio de Janeiro: Augusto Porto & C., 1928 11 Idem. 12 Idem. 13 Biblioteca Nacional, “Documentos Históricos”. Vol. I, Rio de Janeiro: Augusto Porto & C., 1928 p. 105 14 AHU – Cons. Ultram. – Brasil/MG – Cx.: 27, Doc.: 49 15 capº 7º do regimento do secretário de Angola e do Rio de Janeiro. 16 Idem. A única diferença é a referência a destinos diferentes, por tratar-se de distintos continentes. 17 BOSCHI, Caio. “Nas origens da Seção Colonial”, In: Revista do Arquivo Público Mineiro. Volume 43 Fascículo 1, jan./jun. 2007. 18 Biblioteca Nacional, “Documentos Históricos”. Vol. I, Rio de Janeiro: Augusto Porto & C., 1928 p. 105 19 AHU – Cons. Ultram. – Brasil/MG – Cx.: 10, Doc.: 16 20 Idem. 21 Idem. 22 COUTO, Diogo do. O Soldado Prático. Apud. PUNTONI, Pedro. Bernardo Vieira... op. cit. 3

23 24

Por exemplo, Manuel da Fonse Azevedo se envolve em um claro conflito entre o seu governador e o mestre de campo. AHU – Cons. Ultram. – Brasil/MG – Cx.: 5, Doc.: 105

2797

Transição Política, Oposição liberal e crises militares no Brasil e Chile em perspectiva comparada (1975-1982). Tiago Francisco Monteiro.1

Resumo: Discutiremos neste trabalho as posições políticas dos principais dirigentes dos partidos de oposição Liberal do Brasil e Chile, respectivamente MDB e PDC, diante das crises militares e assassinatos de expoentes da oposição às ditaduras militares. Palavras-chaves: Ditadura Militar, Oposição Liberal, repressão política.

Abstract: We discuss in this paper the political positions of the main leaders of the Liberal opposition parties in Brazil and Chile, respectively MDB and PDC in the face of military crises and opposition exponents of assassinations against military dictatorships. Keywords: military dictatorship, Liberal Opposition political repression.

Ditadura e Partidos Políticos. Os principais líderes e ideólogos das ditaduras empresarial-militares que foram impostas aos países da América do Sul nas décadas de 1960-80 compartilhavam os valores ideológicos da Doutrina de Segurança Nacional (DSN), cujo um dos preceitos base era a visão depreciativa das agremiações partidárias e de seus militantes. Em geral, acusavam os partidos de serem porta-vozes de interesses particulares, mesquinhos e passionais, em oposição aos militares e tecnocratas, os quais seriam guiados por valores racionais, patrióticos e universalistas. Em segundo lugar, consideravam também que os partidos permitiam a filiação de indivíduos corruptos e/ou mal preparados entre seus quadros e tais qualidades somadas às características já citadas enfraqueciam o regime democrata uma vez que favorecia a irrupção de crises econômicas e a infiltração comunista. Por estas razões, existiram grupos dentro nas coalizões ditatoriais do Brasil e Chile que advogavam pela extinção das agremiações partidárias, como os neofacistas do Patria y Libertadad (Chile), e também aqueles favoráveis a uma reformulação partidária para corrigir os “vícios” dos partidos, como os idealizadores da reforma partidária brasileira de 1965. Todavia, apesar das críticas oriundas da DSN, as agremiações partidárias possuíam legitimidade nacional e internacional, seus militantes representavam forças sociais importantes dentro do país e foram atores importantes no processo ditatorial e, sobretudo, nos período de Transição. Assim, o objetivo deste trabalho é examinar a posição do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), partido político brasileiro legal criado em 1965, e do Partido 2798

Demócrata Cristiano (PDC), agremiação chilena criada em 1957, diante das crises militares e assassinatos de personalidades e/ou líderes pertencentes ou vinculados à oposição ditatorial. Desta forma, a partir das opiniões emitidas nestes casos poderei perceber a posição destes partidos em tais momentos decisivos das ditaduras de seus respectivos países. A escolha desses dos partidos explica-se porque ambos foram do que chamo de Oposição Liberal, isto é, que se diferenciava dos partidos de oposição revolucionária pois abominavam a ideia de derrubar as ditaduras através da luta armada, não desejavam implantar o socialismo em seus países e defendiam os valores liberais-democráticos.

Brasil: governo Geisel e crises militares (1975-1977). A ditadura militar brasileira começou a ser instalada em abril de 1964 e os partidos políticos legais no período democrático tiveram a permissão de continuarem existindo, apesar de sérias restrições a suas atividades. Todavia, as derrotas de candidatos ligados à ditadura nas eleições de 1965 resultaram em uma reforma eleitoral cujas regras permitiram a organização de dois partidos: a Aliança Renovadora Nacional (ARENA), governista, a o MDB. A última legenda sofreu derrotas nas eleições seguintes mas, a partir de 1974, passou a ser uma considerável força política. Por estes motivos, escolhi estudar as atitudes dos militantes do MDB nas crises militares brasileiras no governo Geisel (1974-1979) nos momentos decisivos da Transição Política do Brasil, a qual durou até a promulgação da Constituição de 1988. O primeiro ponto a ser discutido o foi a chamada Crise do II Exército, iniciada com os desdobramentos do assassinato do jornalista Vladimir Herzog (outubro de 1975) nas dependências do DOI-CODI do II Exército, sediado em São Paulo, e finalizada com a demissão do general Ednardo Mello, comandante do II Exército, após o assassinato do operário José Manoel e Fiel Filho (janeiro de 1976). Herzog era diretor do departamento de telejornalismo da TV Cultura (SP) e militante do PCB. Passou a ser sucessivamente hostilizado por deputados estaduais da ARENA paulista, e por estas razões foi convocando para prestar esclarecimentos no Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), órgão do aparelho repressivo da ditadura. Em tal local foi assassinado. No dia seguinte ao ocorrido, 25.10.1976, o Sindicato dos jornalistas distribuiu uma nota informado o desaparecimento de Herzog. Em 26 de outubro, a morte de Herzog foi oficialmente anunciada e as autoridades afirmaram que ele havia se suicidado. Herzog era judeu e sua família foi orientada a não abrir o caixão, mas, não obedeceu tal ordem e o exame do cadáver indicou que não houve suicídio e Herzog foi sepultado fora da área destinada aos suicidas do cemitério hebraico. 2799

O assassinato de Herzog originou consternação em setores da sociedade brasileira, mobilizações estudantis, de jornalistas e a organização um culto inter-religioso que reuniu clérigos católicos, protestantes, judeus e milhares de pessoas. A atuação da liderança do MDB neste caso foi destacada. O líder do partido no Senado, Roberto Saturnino Braga (RJ), afirmou que o governo deveria fornecer mais informações sobre o ocorrido logo que tomou consciência da nota do Sindicato dos Jornalistas. No dia seguinte, afirmou que tem se cometido várias violações aos Direitos Humanos no Brasil nos últimos meses. Em São Paulo, os senadores Orestes Quércia e Franco Montoro e outros membros do MDB participaram do citado culto inter-religioso.2 O “caso Herzog” chegou ao parlamento e quatro linhas de ação foram utilizados pelos congressistas do MDB: (1) solicitar mais transparência nas investigações sem acusar diretamente membros do DOI-CODI de terem torturado ou assassinado Herzog; (2) apontar a negligência estatal em relação a presos que estavam sob sua custódia; (3) utilizar deste caso para relatar a existência de uma escalada repressiva no país; (4) sugerir a desmilitarização do combate às guerrilhas revolucionárias no Brasil. Existiram outras posições isoladas, como a deputado Freitas Nobres (MDB-SP), que disse estranhar a versão do suicídio, pois Herzog apresentou-se espontaneamente para se submeter ao interrogatório e, desta forma, não parecia ter a intenção de tirar sua própria vida. O deputado Araújo Jorge (MDB-RJ), sem falar em tortura, declarou que a morte de Herzog sugere maior atenção às graves denuncias que estão sendo feitas à Câmara sobre as prisões no país. O senador Itamar Franco (MG), por sua vez, questionou o elevado número de prisões de jornalistas, pediu que as autoridades divulgassem informes sobre o número de jornalistas detidos e o estado de saúde que estes se encontram e declarou que o MDB não pretende criar obstáculos para o trabalho dos órgãos de segurança, mas que estes devem respeitar os preceitos legais e garantir a integridade daqueles sob sua guarda. A Comissão Executiva do MDB paulista escreveu uma nota em que desaprovava as prisões de arbitrárias de jornalistas e outros profissionais que acabaram culminando na morte de Herzog. O documento também proferiu o repúdio a todas as formas de violência e a necessidade do retorno do Estado de Direito para por fim ao arbítrio. A Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e o Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio de Janeiro também se manifestaram e enviaram cartas ao general Ednardo Mello, comandante do II Exército3. A conduta dos militantes do MDB foi observada por setores do governo Geisel: o chefe da Casa Civil, general Golbery Silva, manteve contato constante com o governista José Bonifácio, líder do partido governista Aliança Renovadora Nacional (ARENA). Ativistas

2800

da

ARENA debateram com os do MDB em defesa da inocência do governo. Por exemplo, o líder do governo no Senado, Petrônio Portela (ARENA-PI), declarou que o governo iria esclarecer a morte do jornalista porque é o primeiro interessando em elucidar os fatos, respondeu a Itamar Franco que não há perseguição a nenhuma categoria profissional e que permanecerá a luta implacável contra a subversão. No dia seguinte, Portela rebateu as acusações de Franco Montoro (MDB-SP), o qual afirmou que o elevado número de prisões com conotações políticas geraram um clima de intranquilidade em São Paulo, com o argumento que o governo estava reagindo a uma escalada subversiva no país e que por isso prenderia “quantos estejam envolvidos nas malhas da subversão”, uma vez que segurança e a liberdade de todos estão acima da liberdade de alguns, que pretendem golpear as instituições nacionais.4 O deputado João Linhares (ARENA-SC) falou pela liderança do seu partido que as autoridades não poderiam ser culpadas pelo suicídio do jornalista (JB, 28.10.1975, p. 4). Em tal conjuntura, ARENA e governo trabalhavam para evitar que o “caso Herzog” fosse transformado em uma bandeira de luta contra o governo nos âmbitos nacional e externo e em um exemplo que no Brasil eram praticadas torturas e assassinatos de presos políticos. O último ponto de destaque nessa discussão foi a opinião exposta pelo deputado Leite Chaves e corroboradas por outros parlamentares do MDB, como Fernando Lira (PE) e Lysâneas Maciel (RJ) e pelo presidente do MDB, deputado Ulisses Guimarães (SP), segundo a qual o Exército deveria se afastar das atividades repressiva e deixa-las para as polícias. Ulisses Guimarães completou este raciocínio dizendo que a Polícia Federal seria o órgão ideal para combater os movimentos subversivos e sugeriu também o respeito às leis, isto é, que o detido soubesse a razão de sua prisão e que tivesse a vida assegurada no cárcere. O passar do tempo reduziu o temor das discussões do MDB sobre o caso Herzog. O partido limitou-se a protestar contra o laudo das autoridades militares que confirmou que Herzog havia se suicidado. A ARENA, por sua vez, reafirmou que o era assunto militar.5 Meses depois, um novo caso de assassinato no II Exército: o operário José Manoel Fiel Filho, que trabalhou 19 anos na mesma empresa e quando em 16.01.1976 foi convidado a dar esclarecimentos a agentes ditatoriais. Fiel Filho saiu com as vestimentas habituais da empresa sob o argumento que retornaria em 2 horas e foi morto no DOI-CODI do II Exército. Informado do ocorrido pelo governador de São Paulo, Paulo Egydio, o ditador Ernesto Geisel decidiu exonerar o general Mello do comando do II Exército (19.01.1976). Mas, divulgou para a sociedade que esta era uma medida de rotina. A decisão foi inicialmente questionada pelo principal colegiado dos generais, o Alto Comando do Exército (ACE), mas

2801

estes acataram a saída do general Mello após o ministro do Exército, general Sylvio Frota, garantir que recorreria ao Ministro da Justiça para evitar ataques o general Mello. Durante estes acontecimentos, o congresso esteva em recesso e a maioria dos parlamentares do MDB estavam em seus estados, com a exceção de Ulisses Guimaraes, que estava visitando diretórios do partido nas capitais e grandes cidades do Norte e Nordeste. As principais manifestações de repúdio a morte de Fiel Filho vieram da ABI, de religiosos católicos e de organizações como o Sindicato a qual pertencia Fiel Filho. Mas, quando realizou declarações públicas, Ulisses Guimarães endossou o argumento do governo ao dizer que houve apenas um remanejamento de comandantes definido por Geisel e da responsabilidade exclusiva do último. Sobre Fiel Filho, criticou mais uma vez a morte de detidos nas dependências dos DOI-CODI e reiterou o compromisso do MDB com a defesa dos Direitos Humanos. Mas, a conduta do MDB durante a morte de Fiel Filho foi significativamente diversa se a compararmos com o caso Herzog e um editorial da Folha de São Paulo fez algumas colocações sobre o partido entre as quais, que o MDB estaria dando sinais de sua “maturidade política” (sic) num momento em que o ministério da Justiça acusava o partido de estar em campanha eleitoral antecipada. Outro ponto citado era que o silencio do partido era para evitar que o governo punisse Ulisses Guimarães também por precipitar a corrida eleitoral.6 Um ponto que este editorial não mencionou foi o impacto que as cassações dos parlamentares da legenda estava exercendo sobre seus militantes. Em janeiro de 1976, os deputados Marcelo Gato e Nelson Sobrinho foram cassados sob a acusação de terem recebidos votos de comunistas. Os deputados Nadyr Rossetti, Amaury Muller e Lysâneas Maciel também estavam sob investigação por suas críticas à ditadura e seriam cassados no decorrer do ano. Até mesmo o presidente do MDB, Ulisses Guimarães, tornou-se alvo de um processo da Procuradoria Geral da República por possíveis violações à legislação eleitoral. O último ponto que discutirei foi a demissão do ministro do Exército, general Frota, em 12 de outubro de 1977. A principal motivação da destituição do general Frota foi a sucessão presidencial: Frota vinha se fortalecendo como um possível sucessor do ditador Geisel, do programa político do último, Abertura Política, e da então direção da ARENA. Geisel exonerou Frota em um feriado nacional para evitar que os aliados do exministro iniciassem levantes nos principais quartéis do Brasil. Em seguida, convocou os generais do Alto Comando do Exército para deles obter apoio. Estes assuntos começaram a ser debatidos no congresso e os líderes da Oposição proferiram palavras diferentes sobre o assunto. 2802

Tales Ramalho (PE), secretário-geral da agremiação, disse que ocorreu a prerrogativa do presidente de demitir seus ministros. O deputado Freitas Nobre, líder do MDB, e o senador Franco Montoro relacionaram o fato com a sucessão presidencial e declararam que esta medida foi um indício que a estrutura política do país passava por uma crise, a qual e não teria acontecido se existisse um processo sucessório democrático. O deputado João Cunha (SP) compartilhava das ideias de Nobre e Montoro e defendeu a solução da crise através da convocação de uma Assembleia Constituinte para avançar a redemocratização e evitar novos desgastes na área militar. A demissão de Frota não chegou a ser discutida na Executiva Nacional do MDB em virtude do processo que estava sendo aplicado contra Ulisses Guimarães. Assim, o partido discutiria com mais detalhes o caso Frota em caso de novos desdobramentos7.

Chile: o PDC perante os assassinatos políticos e disputas militares (1974-78). O golpe empresarial-militar de 11 de setembro de 1973 depôs o presidente Salvador Allende, do Partido Socialista (PS), a coalizão da qual fez parte, a Unidad Popular (UP), encerrou o regime democrático vigente no país e dividiu o Partido Democrata Cristão (PDC) em duas alas, uma liderada pelo ex-presidente Eduardo Frei, pelo presidente da agremiação, Patrício Aylwin, e que foi simpática ao Golpe. A segunda facção condenou a ação castrense, ficou conhecida como Grupo de los 13 e era formada por homens como Bernardo Leighton, Ignacio Palma, Renán Fuentealba, Radomiro Tomic, Fernando Sanhueza, entre outros. O grupo de Frei, Aylwin participou da conspiração contra o governo Allende, estabeleceu relações diretas com líderes militares como os generais Oscar Bonilla (ministro do Interior) e Allerano Stark, e emitiu um comunicado em que afirmou concordar com os “propósitos de reestabelecimento da normalidade institucional revelados pela Junta Militar do governo. [Igualmente o PDC considerava] que o regime militar convocará brevemente eleições democráticas”. Este documento foi assinado pelo presidente Aylwin, pelo vicepresidente Osvaldo Olguin e pelo secretário-geral do PDC, Eduardo Cerda e sintetizou as principais expectativas do partido nos primeiros momentos de ditadura: defesa de uma breve fase de repressão para excluir do sistema político os elementos revolucionários da UP e da Esquerda em geral, seguidas de eleições para legitimar a nova ordem no Chile. No campo econômico, o PDC propunha o cancelamento das nacionalizações e expropriações promovidas pela UP, a manutenção da participação do Estado nas atividades produtivas, em aliança com empresários nacionais e estrangeiros, e a manutenção dos direitos trabalhistas para manter forte o mercado consumidor do país. 2803

Este programa não se concretizou por diversos fatores: os generais ligados à PDC foram excluídos do sistema ditatorial entre 1973-1975 e o bloco político hegemônico na ditadura optou por perpetuar sua dominação através da manutenção do Estado de exceção e da imposição do modelo Neoliberal na economia. Este bloco tinha como principal expoente o general Augusto Pinochet, presidente do país, a maioria da Junta de Governo, órgão político que só perdia em importância para a Presidência e era formada pelos comandantes em chefes das forças armadas, e por aliados civis, como Jaime Guzman e Sergio de Castro. Por estes motivos, a ala liderada por Frei passou paulatinamente para a oposição ao regime e Pinochet reagiu proibindo as atividades partidárias no Chile em 1977. A maioria do Grupo de los 13 era de oposição ao governo Allende e além de condenador o golpe, colocou-se a favor da formação de uma ampla coalizão democrática contra a ditadura. Por estes motivos, suas lideranças tornaram-se alvo da repressão ditatorial e Leighton, um dos seus líderes, sofreu um atentado orquestrado pela polícia política de Pinochet, a Dirección de Inteligencia Nacional (DINA), em aliança com e grupos neofacistas italianos em Roma (outubro de 1975).8 O exame da forma como os militantes do PDC se posicionaram diante de graves acontecimentos envolvendo militares deve ser iniciado como estudo das repercussões do assassinato do general Carlos Prats em 28 de setembro de 1974. Prats foi comandante-em-chefe do Exército chileno durante a maior parte do governo Allende e era adepto da corrente Legalista das Forças Armadas (FFAA), ou seja, que os militares profissionais apolíticos e responsáveis apenas pela defesa da soberania chilena. Tal postura chocou-se com o grupo de militares golpistas e estes se articularam para retirar o general Prats do comando do Exercito, pois esta era uma prerrogativa fundamental para evitar uma oposição militar ao golpe. O general Prats mudou-se para Buenos Aires (ARG) após a vitória de Pinochet e da Junta de Governo e foi assassinado pela DINA. Prats conhecia as principais lideranças do PDC e após o golpe acusou Eduardo Frei de ter traído seu país e também falou que o PDC utilizou recursos dos democratas-cristãos da Itália e Alemanha para fomentar o golpe militar contra Allende. Assim, o assassinato do general foi recebido com silêncio pelas lideranças do PDC. Outro fator que explica esta atitude dos políticos do PDC foi o fato das relações ditadura-PDC estarem estremecidas na conjuntura do assassinato de Prats: dias antes do ocorrido seu presidente, Patricio Aylwin, criticou a decisão da Junta de proibir o retorno ao Chile de Bernardo Leighton. Em reação às declarações de Aylwin, a direção do PDC, entre eles o vice-presidente Osvaldo Olguin,

2804

reuniu-se com o ministro do Interior, general Benavides, para garantir que Aylwin fez considerações pessoais sobre a Junta e, por conseguinte, o PDC era aliado do governo. A postura dos militantes do PDC foi diferente de outras agremiações, como, por exemplo, do Partido Comunista Chileno (PCCL), em que alguns militantes acusaram abertamente a Junta Militar de terem sido responsáveis pelo assassinato. O socialista e ex-chanceler Orlando Letelier foi vítima de mais uma ação internacional da DINA em 21 de setembro de 1976, quando foi explodido o automóvel em que viajava. O governo chileno acusou o “terrorismo internacional” de ter executado o atentado letal, assim como tinha feito na morte do general Prats. Em tal conjuntura Letelier estava sendo considerado o principal inimigo da ditadura pois estava militando para unir as diversas forças democráticas construir uma alternativa política ao programa ditatorial e também coordenava um lobby para evitar empréstimos financeiros ao governo Pinochet. Radomiro Tomic, que concorreu com Allende nas eleições de 1970 e era do Grupo de los 13, manifestou-se sobre a morte de Letelier e afirmou que os atentados contra opositores da ditadura chilena no exterior continuariam pois foram impetrados pelos mesmos responsáveis, insinuando que estes seriam homens da ligados à ditadura de Pinochet. Diferentemente de Tomic, o senador estadunidense James Abourazk acusou abertamente a Junta Militar de ter realizado o atentado. O PDC e a ditadura estavam em rota direto de colisão no período em que Letelier. Em 1976, a ditadura instituiu o Conselho de Estado, o qual seria formado por um colegiado que incluiria ex-presidentes, ex-comandantes das FFAA e outros notáveis que iriam assessorar a Junta Militar. Contudo, Eduardo Frei recusou-se a integrar tal Conselho e tal postura irritou Pinochet e as altas esferas da ditadura, os quais posteriormente acusaram Frei de estar participando de uma conspiração contra o Chile. Em março de 1977, quando o órgão de investigações federais dos Estados Unidos (EUA), Federal Bureau of Investigation (FBI) estava investigando o Caso Letelier, Pinochet proibiu a atividade partidária do PDC, do PN e outras agremiações que não haviam sido proscritas após o golpe, como o Democracia Radical. O argumento utilizado pela ditadura foi que militante democratas-cristão estavam conspirando contra o governo. Andrés Zaldivar e Thomas Reyes lideraram o complô através de contatos com forças políticas que incluíam o PCCL e suas atividades foram aprovadas em uma reunião plenária do PDC, a qual contou com a presença de Eduardo Frei. Na verdade, os serviços de espionagem do Chile tomaram conhecimento de discussões dentro do PDC qual deveria ser a posição do partido em relação à Ditadura. Zaldivar defendia a constituição de uma frente ampla de redemocratização que excluiria “a direita fascista e 2805

neofascista, os grupos de esquerda revolucionária partidários da luta armada e o Partido Comunista, com os quais é impossível uma aliança”. Reynes, por sua vez, acusou a Junta de transformar as promessas de restauração institucional e a intenção restauradora proclamadas nos primeiros dias pós-Golpe em uma ditadura personalista, mantida pelo arbítrio e pelo “silêncio forçado de opiniões discordantes” e com uma política econômica que trouxe poucos benefício ao Chile se comparado com o elevado custo social. Por isso, o PDC, nas palavras de Reyes, não se submeteria as aspirações do totalitarismo vigente no Chile. Eduardo Frei, por sua vez, apoiou os termos de Zaldivar.9 Em resumo, os dirigentes do PDC pouco se ocuparam do problema causado pelo assassinato de Letelier em um momento em que as atividades do partido estavam ameaçadas e que seus militantes realizavam debates internos sobre o futuro do país e a postura que a agremiação tomaria. A maioria dos militantes do PDC era favorável a formação de uma frente ampla com a ala conservadora do Partido Socialista (PSCL) e outras legendas para promover a redemocratização do Chile. Um setor expressivo buscava incluir nesta coalisão um setor moderado das FFAA. Poucos eram simpáticos à inclusão dos comunistas em tal aliança. A demissão do comandante da Força Aérea do Chile e representante da arma na Junta Militar, general-do-ar Gustavo Leigh, que ocorreu em 24 de julho de 1978 foi a maior crise político-militar porque Pinochet excluiu do sistema político o principal adversário de seu programa político: o general Leigh era favorável a mudanças políticas em cinco anos, a devolução de determinados direitos trabalhistas retirados pelas políticas neoliberais promovidas na Ditadura, a investigação e punição dos agentes da DINA responsáveis pelo assassinato de Leteier. Leigh não aceitou a decisão do general Pinochet e dos demais membros da Junta, mas não decidiu defender militarmente sua posição porque havia a possibilidade de um conflito com a Argentina na mesma conjuntura. Mais uma vez a cúpula do PDC se absteve de maiores comentários em relação à crise Leigh vs. Pinochet e esforçou-se em formalizar uma aliança com as forças de centro-direita e centro-esquerda para por fim à ditadura de forma pacífica. Tal intento se concretizou em 1985 com a assinatura do Acuerdo Nacional para la Transición a la Plena Democracia, a qual uniu vários grupos anti-ditatoriais que venceram um plebiscito em 1988 e as eleições presidenciais de 1990, marco final da ditadura chilena.

Comentários finais: MDB e PDC em perspectiva comparada. A estrutura institucional das ditaduras do Brasil e Chile legaram papeis diferentes aos partidos analisados, pois o MDB foi um partido legal e seus representantes utilizaram o

2806

parlamento para defender suas posições enquanto o PDC esteve em recesso de 1973 a 1977 e posteriormente foi declarado ilegal. Por estes motivos, a oposição liberal brasileira foi mais atuante nos problemas que ocorreram dentro da ditadura, pois, afinal, faziam parte do sistema ditatorial. Os dirigentes do PDC, por sua vez, preocuparam-se mais com questões internas. Em comum, ambos as legendas defenderam o respeitos aos direitos humanos em seus países, o fim das ditaduras através de mudanças graduais e pacíficas, como o reestabelecimento dos direitos individuais, da liberdade de imprensa e partidária e a convocação de uma assembleia constituinte. No decorre de ambas as ditaduras, as diferenças entre tais partidos resultou em papeis diversos nas respectivas Transições Políticas. A ilegalidade do PDC o colocou totalmente na oposição à Pinochet e, de certa forma, favoreceu o acordo com o PSCL e outras forças políticas que derrotaram Pinochet em outubro de 1988 e cancelaram o plano do ditador de se manter no poder até 1995. No Brasil, por sua vez, a reforma eleitoral de 1979 transformou o MDB em PMDB e este acabou unindo-se a uma ala da ARENA, Partido Democrático Social após 1979, em 1985 e tal coalizão acabou por completar os intentos castrenses de uma Transição em que as forças políticas ditatoriais fossem completamente alijados do poder e os militares envolvidos na repressão fossem processados pelos seus atos. 1 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Social (PPGHIS-UFRJ). Bolsista CAPPES. Orientador: Renato L. Lemos. E-mail: [email protected] 2 FOLHA DE SÃO PAULO (FSP), “Sepultado ontem o jornalista Vladimir Herzog”. 28.10.1985, p. 03. 3 Os dois últimos parágrafos foram elaborados com base nas seguintes referências: FSP, “Na Câmara, estranheza e voto de pesar”. 28.10.1985, p. 05; FSP, “Petrônio: Subversão será combatida com todo o rigor”. 28.10.1985, p. 05; FSP, “Nota do MDB de São Paulo”. 28.10.1985, p. 05 e FOSP, “Manifesta-se a ABI”. 28.10.1985, p. 05. 4 FSP, “Montoro denuncia e Portela faz advertência”. 29.10.1975, p. 08. 5 FSP, “Ulisses: tarefa da polícia”. 29.10.1975, p. 08, sobre a ARENA: FSP, “No Congresso, os líderes consultam-se”. 30.10.1975, p. 03. O aparte de Chaves Leite provocou intensa revolta nos escalões superiores do Exército. Ver: ABREU, Hugo. O outro lado do poder. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979, pp. 107-114. 6 Elaboramos os últimos três parágrafos com base nas seguintes referências: ABREU, Hugo, Op. Cit, p. 113; FOSP, “MDB não explorará os fatos”. 22.01.1976, p. 04, FOSP, “O silêncio do MDB”. 26.01.1976, p. 2. 7 Os últimos parágrafos foram escritos a partir dos seguintes dados: FSP, “Para Nobre, Constituinte teria evitado a crise”. 13.10.1977, p. 06; FSP, “MDB fica atento para eventuais desdobramentos”. 14.10.1977, p. 04. ABREU, Op. Cit, pp. 91-170. FROTA, Sylvio. Ideais Traídos. Rio de Janeiro: Zahar, 2006, pp. 499-551. 8 Os últimos cinco parágrafos foram redigidos com base nos seguintes trabalhos: MUÑOZ, Heraldo. A sombra do ditador: memórias políticas do Chile sob Pinochet. Rio de Janeiro: Zahar, 2000, p. 122; MONTEIRO, Tiago. . “As divisões políticas da primeira elite castrense da ditadura chilena (19731978): grupos políticos, alternativas institucionais e formação profissional”. In: Revista Tempo e Argumento. Florianópolis: v. 5, n. 10, 2013, FSP, “Os partidos de oposição dão seu apoio”. 14.09.1977, p. 02. 9 As análises sobre o PDC diante das mortes do general Carlos Prats e de Orlando Letelier foram escritos com auxílio das seguintes referências: JB, “Chilenos repudiam atentado”, 01.10.1974, p. 14; ABC MADRID, “Desaparece um gran coordenador de la oposicion chilena”. 23.09.1976, p. 26; FSP, “Mortes na oposição chilena continuarão, afirma Tomic”. 07.10.1976, p. 09; ABC MADRID, “Um senador acusa a la Junta Militar”. 23.09.1976, p. 26; JB, “Chile acusa Frei de conspirar para derrubar Pinochet”. 18.09.1976, p. 09; JB, “Pinochet dissolve PDC por conspirar contra o regime”. 13.03.1977, p. 18.

2807

REFORMA DO ESTADO NO GOVERNO FERNANDO HENRIQUE CARDOSO: UMA ANÁLISE DAS FUNDAÇÕES DE APOIO PRIVADO Tiago Siqueira Reis*

RESUMO: O presente trabalho propõe discutir a relação entre o projeto de reforma do aparelho do estado (PDRAE) sob autoria do governo Fernando Henrique Cardoso (FHC) iniciado em 1995, com a criação em 1998 da fundação para o desenvolvimento científico e tecnológico em saúde (Fiotec), fundação de apoio privado vinculada a Fundação Oswaldo Cruz ligada à área da saúde no brasil. Busca-se perceber a apropriação do sistema público pela gestão privada, assentada principalmente no projeto de FHC. Deste modo, analisaremos os enunciados do PDRAE e o modelo de gestão da Fiotec como forma materializada das reformas neoliberais na saúde. Palavras-chave: Fiotec, Reforma do Estado, Administração Gerencial. ABSTRACT: This paper aims to discuss the relationship between the state apparatus reform project (PDRAE) under government authorship Fernando Henrique Cardoso (FHC) started in 1995 with the creation in 1998 of the foundation for scientific and technological development in health ( Fiotec ) , private support foundation linked to the Oswaldo Cruz Foundation linked to the health sector in Brazil. Seeks to realize the appropriation of the public system by private management, mainly seated in the FHC project. That way, we analyze the statements of PDRAE and Fiotec management model as a materialized form of neoliberal reforms in health. Keywords: Fiotec, Reform of the Government, Managerial Administration. 1 INTRODUÇÃO O objetivo deste trabalho assenta em discutir as mediações que se estabelecem entre a reforma do Estado brasileira e a criação da Fundação de Apoio Privado Fiotec. Para dar conta desse objetivo faremos uma incursão na relação entre sua a criadora à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e a reforma do Estado. Na mesma medida, discutiremos a orientação da Fiocruz em direção à administração gerencial, aos modelos flexíveis de gestão e, sobretudo, sua relação com o projeto governamental que abrirá caminho para o debate interno sobre os rumos institucionais e a descentralização via parceria privada. Por conta disso, delimitamos nossa baliza temporal nos anos de 1995 a 2002, referente aos dois mandatos do Governo de Fernando Henrique Cardoso e por representar o início da reforma do Estado em 1995. Além disso, em 1998 é extinto o projeto de reforma e no mesmo ano é criada a Fensptec que será transformada oficialmente em Fiotec no ano de 2002. Para tanto, faremos uma análise dos escritos oficiais da reforma do Estado, especificamente o Plano Diretor1 por tratar do documento base e principal deste processo, e os Cadernos Organizações Sociais2 e Agências Executivas3, confeccionados pelo Ministério

2808

da

Administração Federal e Reforma do Estado (MARE). Quanto a Fiotec, analisaremos as fontes contidas nos relatórios que integram o I, II, III, e IV Congresso Interno4 realizado pela Fiocruz, ocorrido entre 1988 a 2002, tendo em vista que o congresso interno é o órgão máximo da Fiocruz para resolução de temas que envolvem toda a comunidade.

2 A REFORMA DO ESTADO NO GOVERNO FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

A reforma do Estado brasileiro é iniciada em 1995 com a criação do MARE, tendo como protagonista desse projeto o Ministro Luiz Carlos Bresser Pereira. Em 21 de setembro do mesmo ano é lançado o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE), documento que servirá de base para as ações futuras do programa reformista. Em resumo, o Plano Diretor apresentava uma nova delimitação do Estado e estabelecia quais suas áreas de atuação e funcionamento. Neste sentido, ocorreria de um lado, a reforma na administração pública alterando o padrão burocrático pelo modelo de administração pública gerencial. De outro lado, estabelecia quais eram os serviços exclusivos do Estado. Acreditava-se que tais medidas somadas ao ajuste fiscal proveniente, sobretudo, do despedimento de servidores públicos, do enxugamento da máquina pública, e de cortes na política social, serão capazes de possibilitar uma maior capacidade da governança e a governabilidade para o governo (BRASIL, 1995). Os primeiros exemplos de administração gerencial partem de países do centro capitalismo, com destaque para Grã-Bretanha e Estados Unidos nos anos de 1980. Seus ideólogos em grande medida concordam com algumas premissas básicas desse modelo de gestão: orientação para o cidadão tido como cliente; objetivos voltados para resultados e não processos como no modelo burocrático; liberdade e autonomia para os gestores públicos; flexibilização das relações de trabalho; descentralização; e controle das operações via contrato de gestão (BRASIL, 1998). Dessa maneira, Bresser Pereira aponta que a Reforma Gerencial cria condições para que novas instituições organizacionais, como as agências executivas e as organizações sociais, sejam instaladas como medida para a descentralização da gestão pública (BRASIL, 1998). Por outro lado, o neoliberalismo isola o tema Estado, assinalando seu esgotamento frente ao desenvolvimento nele sustentado e denúncia tudo aquilo que dele pode ser entendido como ineficiente e ineficaz. Como nos diz Marco Aurélio Nogueira (1990, p. 12)5 nasce “um confuso sentimento societário de desconfiança, desrespeito e cansaço diante de tudo o que é público”.

2809

Por seu lado, o MARE por meio do Plano Diretor, lança uma nova reconfiguração do Estado, dividindo-o em quatro áreas em que cada uma terá funções e atribuições próprias com objetivo de reduzir o papel no Estado nas ações sociais tratadas como não-exclusivas. Deste modo, é direcionado o modo como devem ser administrados, mantendo somente a administração direta (núcleo estratégico) no modelo administrativo burocrático, conforme se observa: 1) núcleo estratégico: corresponde ao governo no que concerne as leis e políticas públicas (Poder Legislativo e Judiciário, Ministério Público, Poder Executivo, Presidente da República, Ministros, etc.). Definido como propriedade estatal e deverá ser orientada pela gestão burocrática. Por outro lado, sua missão será de regular e supervisionar, utilizando do método gerencial nos acordos traçados via Contrato de Gestão com as agências executivas e com as organizações sociais. 2) as atividades exclusivas: atividades que só o Estado pode atuar (poder de regulamentar, fiscalizar, fomentar), são exemplos: autarquias, fundações públicas, a polícia, previdência social básica, o serviço desemprego. Possui propriedade estatal

e

gestão

gerencial. O principal projeto neste campo é transformar as autarquias e fundações em agências autônomas ou executivas na medida em que serão reguladas pelo contrato de gestão. 3) os serviços não-exclusivos: o Estado atua juntamente com organizações públicas não-estatais e privadas, são exemplos: saúde e educação. Possui propriedade pública nãoexclusiva e gestão gerencial. O MARE entende este setor como um misto entre sociedade e Estado, ou melhor, entre Estado e mercado. Serviços que “envolvem direitos humanos fundamentais, como os da educação e da saúde, ou porque possuem “economias externas” relevantes, na medida em que produzem ganhos que não podem ser apropriados por esses serviços através do mercado” (BRASIL, 1995). Aponta ainda que são economias que não podem ser transformadas em lucros. São exemplos deste setor: “as universidades, os hospitais, os centros de pesquisa e os museus” (BRASIL, 1995). Tais serviços serão direcionados para a gestão integrada entre Estado e uma entidade pública não-estatal, por meio do programa de “publicização”. 4) produção de bens e serviços para o mercado: área de atuação das empresas em que prestem ao lucro, de modo que o Estado não deve permanecer no seu controle e repassar para o setor privado via privatização. Detém de propriedade privada e gestão gerencial (BRASIL, 1995). Nessa direção, o projeto de criação das “agências executivas” e o programa de publicização que visa à criação das organizações sociais, atendem aos objetivos de 2810

descentralização das funções públicas, de um lado, continua sob o direito público, e de outro, transfere para um “terceiro” como preferem tratar o MARE (BRASIL, 1998) a responsabilidade das funções públicas. Ambos estão articulados com a premissa da administração gerencial para flexibilizar e “modernizar” a gestão pública. Por seu turno, à proposta do MARE de instituir agências executivas é definida como uma “qualificação a ser concedida, por decreto presidencial específico, a autarquias e fundações públicas, responsáveis por atividades e serviços exclusivos do Estado” (BRASIL, 1998). Para que isto ocorra a instituição deverá se candidatar tendo que cumprir com os critérios apresentados pelo Governo, como: indicar um plano estratégico de negócios que atenda aos preceitos de reestruturação flexível e orientada à administração gerencial, e firmar um acordo com o seu Ministério supervisor por meio de um Contrato de Gestão (BRASIL, 1997). Neste sentido, o objetivo do Governo é descentralizar a gestão de instituições exclusivas do Estado, propiciando maior autonomia e fundamentalmente operando um sistema administrativo de base empresarial de modo que atenda ao projeto de ajuste fiscal, com redução do funcionalismo público, flexibilização da mão-de-obra, redução de direitos trabalhistas, e provendo as fundações e autarquias da capacidade de realizar contratos com terceiros. Assim sendo, o Estado de executor passa a regulador, tendo em conta o emprego do Contrato e Gestão entre o núcleo estratégico do Estado e a administração indireta (fundações e autarquias) (BRASIL, 1995). Por seu lado, o programa de publicização6 pretende transformar instituições ora públicas em organizações sociais sob a tutela da administração privada. Por seu turno, o governo será o responsável pelo controle e por subsidiar os recursos financeiros na parceria com as organizações sociais por meio de um contrato de gestão. Assim sendo, “o propósito central do Projeto “Organizações Sociais” é proporcionar um marco institucional de transição de atividades estatais para o terceiro setor e, com isso, contribuir para o aprimoramento da gestão pública estatal e não-estatal” (BRASIL, 1998). Neste caso, a privatização pensada pelo neoliberalismo não pode ser empregada em sua totalidade, porém, ocorrer uma “adequação funcional desses setores à lógica e à dinâmica do mercado” (NOGUEIRA, 1990). Em síntese, altera a configuração do Estado de executor e prestador de serviços, para um Estado regulador e promotor de políticas, como por exemplo, as áreas da saúde, educação e cultura. Dessa maneira, fica claro o uso de métodos da administração de empresas, além da propagação do ideal empresarial de mercado como sinônimo de eficiência, de ética, de responsabilidade, de resultados, concluindo na perfeição do mercado diante das necessidades

2811

sociais, especialmente das funções do Estado. A passagem abaixo ilustra bem o imaginário perfeito do mercado por parte dos escritos do MARE: O Projeto Organizações Sociais, no âmbito do Programa Nacional de Publicização (PNP), tem como objetivo permitir a publicização de atividades no setor de prestação de serviços não-exclusivos, baseado no pressuposto de que esses serviços ganharão em qualidade: serão otimizados mediante menor utilização de recursos, com ênfase nos resultados, de forma mais flexível e orientados para o cliente-cidadão mediante controle social. (BRASIL, 1998).

Em conformidade com a administração gerencial, as organizações sociais são previstas pelo MARE no sentido de flexibilizar a gestão, mesmo não tendo fins lucrativos, ela deverá incorrer nas práticas adotadas pelas empresas do mercado. Isto implica em autonomia, em realizar e manter contratos de trabalho flexíveis, sem a seguridade do serviço público, terceirização da mão-de-obra, assim como, praticar negociações e fechar acordos sem a necessidade de regras próprias do serviço público. Consequentemente, a proposta da reforma do Estado assenta em transformar as instituições estatais que fossem consideradas passíveis de publicização em organizações sociais, assim, extinguindo entidades como a Fiocruz, veremos na próxima seção o desfecho dessa proposta. Por efeito, o MARE não foi capaz de implementar o programa de publicização conforme desejado (BARBOSA E SILVA, 2008)7, sendo extinto no fim de 1998.

3 A CRIAÇÃO DA FIOTEC A criação da Fiotec está intimamente ligada à sua criadora e das mediações desta com a reforma do Estado. Para além disso, é preciso perceber que sua origem remonta um projeto de administração gerencial em curso na Fiocruz. Dessa forma, sua criadora é a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) atualmente fundação estatal de direito público ligada ao Ministério da Saúde, fundada em 1900 na cidade do Rio de Janeiro, Brasil. Inicialmente denominada de Instituto Soroterápico Federal passa a receber a atual nomenclatura a partir do Decreto Lei nº 66.62 de 1970, que neste momento atribui à instituição a responsabilidade de fundação pública de direito privado que perdurou até 1988 com a Constituição Federal que alterou sua atribuição para direito público. Trata de uma instituição que integra o Sistema Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico no campo da pesquisa da tecnológica para a saúde, vinculada ao Ministério da Saúde (FIOCRUZ, 1998). Com a promulgação da Constituição Federal em 1988 ocorrem mudanças circunstâncias na natureza e no modelo de gestão da Fiocruz. Primeiro por reenquadrá-la como fundação de direito público, e segundo, porque a partir dessa medida

2812

adquire novas

regras e determinações, como por exemplo: obrigatoriedade de contratação de pessoal via concurso público, ora cancelado durante o regime militar; adequação às normas de compras e contratos decorrentes das leis de licitação pública; e, sobretudo, ao aparato burocrático que engendra o sistema administrativo do direito público (FIOCRUZ, 1988). Nessa conjuntura, tanto a Fiocruz como o MARE, apontam que a Constituição de 1988 é retrógrada e desconectada com o curso histórico do capitalismo contemporâneo. A instituição vinha mesmo que de forma tímida ou ainda sem grandes liberdades operando uma administração alinhada com as idéias gerenciais durante o período em que esteve sob o regime de fundação privada. Com a chegada do Governo Fernando Henrique Cardoso ao poder e em seguida com o projeto de reforma do Estado posto em prática no ano de 1995, é vislumbrado uma possível saída rumo à administração gerencial. A primeira medida da reforma do Estado por meio do programa de publicização previa a transformação da Fiocruz em organização social. Tal proposta não logrou êxito, a resposta da Fiocruz pode ser percebida com a realização do II e III Congresso Interno, em que reafirmou em todas as deliberações o papel social, público e estatal da Fiocruz (FIOCRUZ, 2000). Em seguida, a reforma do Estado criou o projeto de “Agências Executivas”. Este projeto trouxe a possibilidade da Fiocruz permanecer como instituição pública e não necessitar de perder sua tradição na área da saúde via extinção, e sim, um projeto que daria maior flexibilidade e autonomia. Decorrido o II e III Congressos, a entidade percebe que a melhor opção está em encaminhar sua adesão ao projeto de agência executiva, sendo realizado em parceria com o Ministério da Saúde. Pode-se verificar no relatório emitido em 1998 durante o III Congresso Interno a opção da instituição: Os modelos de organização previstos pelo Plano de Reforma do Aparelho de Estado não respondem à complexidade institucional da Fiocruz. A opção pela qualificação como Agência Executiva traduz a compreensão de que este é o modelo que mais se aproxima das questões essenciais que caracterizam a ação da nossa instituição: papel estratégico e natureza estatal. Ela representa também o compromisso de, nos termos das opções existentes, adotar um ponto de partida e envidar todos os esforços para retomar o processo de transformação do modelo burocrático para uma administração gerencial orientada para resultados, ao mesmo tempo em que se busca a adequação de modelos formais a uma realidade complexa. Contribui para essa tomada de posição o fato de que a qualificação como Agência Executiva não altera a natureza jurídica da Fiocruz. Além disso, a flexibilidade gerencial já esboçada pode vir a ser ampliada pelas iniciativas de reformas administrativas em debate no Congresso Nacional, entre as quais a regulamentação da emenda constitucional nº 19 que dispõe sobre aspectos centrais da organização da administração pública. (FIOCRUZ, 1998).

Não obstante, em 2002, a Fiocruz por meio do IV Congresso Interno afirma que não está em acordo com o Plano Diretor na sua formulação e desenrolar do projeto das agências executivas, propondo como alternativa a criação de um projeto de agência

2813

executiva

autônoma, dando maior autonomia, liberdade frente à administração direta e flexibilidade, fato que não logrou sucesso. Portanto, o projeto de organização social e agência executiva não vigaram na Fiocruz, permanecendo fundação estatal de direito público durante os anos de governo FHC. Por seu lado, a Fiocruz após 1988 vem discutindo de forma intensa uma maneira de ensejar uma contra-reforma na administração interna. O I Congresso realizado em 1988 ao IV Congresso em 2002 abordou a importância de alterar o modelo institucional e a forma de gestão. O objetivo assenta em retomar o caminho para a reforma gerencial, orientada para as práticas de mercado, mas agora, sob a natureza jurídica de instituição pública estatal estas medidas encontram-se sob fortes entraves burocráticos típicos desse modelo de instituição (FIOCRUZ, 2002). A reforma gerencial é tema central nos enunciados do I ao IV Congresso Interno, conforme se pode verificar no relatório final do III Congresso em 1998, onde é traçado o caminho para a Fiocruz: (...) objetivo de concluir o processo de discussão sobre a modernização institucional, no âmbito de uma nova visão da reforma do Estado que o Governo nos oferece. Urge, agora, pôr mãos à obra para conseguir e desenvolver novas formas organizacionais, flexíveis e dinâmicas, capazes de facilitar e agilizar a produção científica e tecnológica. É preciso investir, cada vez mais, na qualificação de profissionais tanto em pesquisa, como em produção e gerência. Deve-se fomentar a parceria com empresas, universidades e instituições de pesquisa, públicas e privadas, nacionais e internacionais, buscando a geração de novas tecnologias e processos no menor tempo possível. A Fiocruz precisa adaptar-se aos novos tempos, enfrentar os desafios contemporâneos e entender as mudanças em curso no Brasil e no mundo ao definir o seu futuro. Precisamos de um maior equilíbrio orçamentário, buscando no conhecimento e informação a passagem das vantagens comparativas já obsoletas, para as vantagens competitivas do mundo moderno (...) (...) atenção especial deve ser dada às iniciativas que deram origem à criação das fundações de apoio. Dada a sua eficácia enquanto mecanismo de flexibilização, captação de recursos e à expectativa de que se constituam em instrumentos de minoração do aviltamento salarial, as fundações de apoio exercem grande atrativo. Por sua vez, suas atividades podem acarretar dispersão institucional, incentivando lógicas particularistas e ações orientadas predominantemente para a captação de recursos e, como decorrência, comprometer a capacidade de planejamento estratégico e a coesão institucional. (FIOCRUZ, 1998).

Diante disso, é trazido para a administração gerencial como projeto, a criação de uma fundação de apoio privado para a Fiocruz. Esta medida foi inicialmente construída pela Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP-Fiocruz) em 1996 com a criação da ENSPTEC, e em 1997 passou a se chamar FENSPTEC8. Feito o plano piloto de fundação de apoio privado em uma das principais unidades da Fiocruz, é colocado em discussão durante o III Congresso Interno a utilização dessa instituição privada como a única fundação de apoio para atender as demais unidades da Fiocruz. Tal proposta recebeu a aprovação da comunidade em plenária no ano de 2000. Consequentemente, a FENSPTEC após curto espaço de tempo

2814

passa a ocupar a posição de ente privado com a responsabilidade de administrar todos os projetos da Fiocruz, e sendo responsável pela gestão dos recursos financeiros. Todavia, altera seu nome para Fiotec9 em 2002, concretizando o projeto de parceria público x privado, mais ainda, reafirmando seu compromisso com a flexibilidade liberal alicerçada pelo modelo de administração gerencial. A Fiotec se caracteriza como uma Fundação de direito privado, sem fins lucrativos, com autonomia financeira e administrativa, e patrimônio próprio, localizada na cidade do Rio de Janeiro, Brasil. É uma Instituição de Educação e Assistência Social, isenta de tributação. Por fundação privada entendemos ser um conceito usualmente empregado como sendo um patrimônio personalizado, dirigido a um fim, tal finalidade estará ligada ao social, não possuindo fins lucrativos. Além disso, a fundação é proveniente de pessoa física ou jurídica, criada por um instituidor, mediante escritura pública ou testamento, a partir de uma dotação especial de bens livres, especificando o fim a que se destina, e declarando, se quiser, a maneira de administrá-la. O patrimônio que deu origem à Fiotec é oriundo da Fiocruz, sendo desse modo proveniente de recursos públicos. E as finalidades estabelecidas por seu criador à Fiocruz são de apoiar funções de ensino, de pesquisa, de desenvolvimento institucional, científico e tecnológico, produção de insumos e serviços, informação e gestão, realizadas pelas Unidades Técnicas que compõe a Fiocruz. Assim sendo, a Fiotec é instituída com personalidade jurídica de Fundação de Apoio ao Ensino Superior, dessa forma está registrada e credenciada pelo Ministério da Educação (MEC) e Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), conforme dita a Lei 8.958/9410 que dispõe sobre as Fundações de Apoio. Essa instituição, portanto, caracteriza-se como fundação privada regida pelo Código Civil Brasileiro e Código de Processo Civil. As fundações de apoio atuam nos centros de pesquisa desde os anos de 1970 como formas de flexibilização e descentralização da gestão, e em muitos casos com o argumento de captação de recursos11. Somente em 1994 é disposta em Lei, e com a reforma do Estado iniciada em 1995, ganha espaço e importância, vista como uma estratégia de repassar as responsabilidades de administração para um ente privado. Como foi possível observar no decorrer do texto, o MARE propôs dois projetos para a Fiocruz, as agências executivas e organizações sociais, ambos sem sucesso. Entretanto, o que se buscava em grande medida era o direcionamento da administração para o modelo gerencial que assenta em refuncionalização por meio dos aparelhos privados na organização de suas responsabilidades. Dessa forma, a melhor saída encontrada pela Fiocruz neste momento foi optar pela criação de uma fundação

2815

de apoio privado, conforme aponta o relatório final do III Congresso Interno em 2002, a Fiotec serviria como uma experiência transitória, uma alternativa que atende ao contexto atual, mas não completamente satisfatória para os objetivos de administração gerencial (FIOCRUZ, 2002). 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS A reforma do Estado é um tema complexo, sobretudo por seu caráter profissional e até então inédito no país, levando em consideração a amplitude do projeto e as bases ideológicas postas em causa. Por outro lado, o percurso histórico da Fiocruz, especificamente no contexto da reforma do Estado é ilustrativo e apresenta tendências que nos levam às novas reconfigurações das ações públicas, em especial, orientadas para o mercado, ora chamadas de administração gerencial. Tais tendências ainda que de forma incompleta no presente trabalho, nos guiou em direção ao objetivo de montar o quebra-cabeça da flexibilização que emerge na Fiocruz, resgatando neste trabalho a delimitação de apreender os traços centrais desse processo mediado pela reforma do Estado engendrada nos anos de 1995 a 1998 sob o Governo de Fernando Henrique Cardoso. Deste modo, o reflexo que acreditamos ser central nessa discussão se deve à busca da Fiocruz pela administração gerencial que terá se materializado na criação da Fiotec em 2000 e sua efetivação em 2002. Nesta perspectiva, o legado central da reforma pode ser entendido pelo lado da disseminação cultural e ideológica da administração gerencial no âmbito do setor público. Portanto, nessa linha de pensamento, acreditamos que a criação da Fiotec em 2000 simboliza o marco fundamental para a retomada do projeto orientado para o mercado na Fiocruz, e atende em grande medida aos pressupostos que vigoraram na reforma do Estado de transferência para o setor privado às funções então públicas, e a idealização mercado e suas práticas flexíveis de gestão.

*

O referido texto faz parte dos resultados preliminares da dissertação de Mestrado em História pelo Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa sob orientação da Profª Draª Raquel Varela, integrante do grupo de estudos História Global do Trabalho e dos Conflitos Sociais. Contato: [email protected] 1

BRASIL. Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado. Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Brasília, Mare, 1995. 2 BRASIL. Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado. Organizações Sociais. Cadernos da Reforma do Estado, Brasília, DF, nº 2, 1996.

2816

3

BRASIL. Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado. Agências Executivas. Cadernos da Reforma do Estado, Brasília, DF, nº 9, 1998. 4 FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ. Relatório Final do I Congresso Interno. Rio de Janeiro, RJ. 1988; FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ. Relatório Final do II Congresso Interno. Rio de Janeiro, RJ. 1994; FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ. Relatório Final da Plenária Extraordinária do II Congresso Interno. Rio de Janeiro, RJ. 1996; FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ. Relatório Final do III Congresso Interno. Rio de Janeiro, RJ. 1998; FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ. Relatório da Plenária Extraordinária do III Congresso Interno. Rio de Janeiro, RJ. 2000; FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ. Resoluções do IV Congresso Interno. Rio de Janeiro, RJ. 2002. 5 NOGUEIRA, Marco Aurélio. Reforma administrativa ou reforma do Estado?. Perspectivas (São Paulo), São Paulo, v. 12/13, p. 1-17, 1990. 6 Para uma crítica aprofundada a emergência do público não-estatal, ver: MONTAÑO, Carlos. Terceiro Setor e Questão Social: Crítica do Padrão Emergente de Intervenção Social. Ed. Cortez. São Paulo, 2003. 7 BARBOSA E SILVA, Leonardo. O Governo Lula e a agenda dos anos 90: ambiguidade na política administrativa. Tese (Doutorado em Sociologia) – Faculdade de Ciências e Letras, UNESP. Araraquara, 2008. 8 Fundação de Ensino, Pesquisa, Desenvolvimento Tecnológico e Cooperação à Escola Nacional de Saúde Pública. 9 Fundação para o Desenvolvimento Científico e Tecnológico em Saúde. 10 Art. 1o A caracterização das fundações a que se refere o art. 1o da Lei no 8.958, de 20 de dezembro de 1994, como fundação de apoio a Instituições Federais de Ensino Superior - IFES e demais Instituições Científicas e Tecnológicas - ICTs, é condicionada ao prévio registro e credenciamento, por ato conjunto dos Ministérios da Educação e da Ciência e Tecnologia, nos termos do inciso III do art. 2º da referida Lei e da regulamentação estabelecida por este Decreto. Parágrafo único. A fundação registrada e credenciada como fundação de apoio visa dar suporte a projetos de pesquisa, ensino e extensão e de desenvolvimento institucional, científico e tecnológico para interesse das instituições apoiadas e, primordialmente, ao desenvolvimento da inovação e da pesquisa científica e tecnológica, criando condições mais propícias a que as instituições apoiadas estabeleçam relações com o ambiente externo 11 Ver: ADUSP. Universidade pública e fundações privadas: aspectos conceituais, éticos e jurídicos. Adusp: São Paulo, 2004. . Como e por quê as fundações privadas “de apoio” estão destruindo o caráter público e gratuito da USP. São Paulo: Adusp, 2004. . Fundações privadas x universidade pública: parecer jurídico sobre a legalidade de vincular cargos executivos da Universidade às direções de fundações privadas “de apoio”. São Paulo: Adusp, 2004

2817

A construção da luta contra o gafanhoto através das reuniões políticas, científicas e diplomáticas (Argentina, Uruguai e Brasil, 1900- 1950)

Valéria Dorneles Fernandes1

Resumo: No início do século XX, pragas de gafanhotos são recorrentes na Argentina, Uruguai e Brasil. Estas infestações geraram impactos nestes países, chegando a mobilizar internacionalmente os setores da política, da ciência e da agricultura. O paper examina como eram as relações entre os países envolvidos para que juntos pudessem combater a referida praga. Palavras-chaves: Praga de gafanhoto. Região do Rio da Prata. Relações internacionais.

Abstract: In the early 20th century Argentina, Uruguay and Brazil suffered recurrent locust plagues. These infestations caused great impact in these countries, resulting in the international mobilization of political, scientific and agricultural sectors. The paper examines the nature of relations formed between the countries involved for the purpose of fighting the locust plagues. Key words: Locust plague. Rio de la Plata Region. International relations.

Introdução Infestações de gafanhotos são relatadas na região do Rio da Prata desde, pelo menos, 1640. Porém, é a partir da última década do século XIX que estas infestações passam a ser mais evidentes e a trazer maiores prejuízos para a produção agrícola na região. No início do século XX, as pragas de gafanhotos são recorrentes em diferentes partes da Argentina, da Bolívia, do Brasil, do Paraguai e do Uruguai. Na Bolívia e no Brasil, as localidades mais atingidas são aquelas situadas no extremo Sul de ambos os país, enquanto que, na Argentina e no Uruguai, as infestações atingem territórios mais abrangentes, e, no Paraguai, se concentra mais na região do oeste do país. Em 1906, 1907, 1908 e 1911, nuvens de gafanhotos no Uruguai destruíram pequenas hortas de subsistência, vegetação ao longo das estradas e, principalmente, plantações de milho2. Em muitos casos, as nuvens de gafanhotos chegavam quando o milho e outros produtos de lavoura ainda estavam verdes, ou seja, antes da colheita, levando os agricultores a prejuízos econômicos extremos e a períodos de fome 3. No Rio Grande do Sul, Brasil, há relatos de infestações de gafanhotos desde, pelo menos, 1896,

2818

porém, é a partir de 1905 que os relatos de infestações se tornam recorrentes, sugerindo que as infestações começaram a ocorrer quase que anualmente. Nos anos iniciais do século XX, as correspondências dos intendentes das colônias enviadas ao governador do estado relatam a miséria e o desespero em que as pessoas se encontravam após os ataques de nuvens de gafanhotos às suas plantações4. Na Argentina, no período de 1833 até 1840, se repetiram anualmente infestações, porém estas eram restritas à zona Noroeste do país e, mesmo assim, não apresentavam grande impacto econômico quando a região era ocupada apenas por gado chimarrão5. Contudo, a partir da segunda metade do século XIX, os gafanhotos passaram a atingir as plantações em localidades mais ao centro do país, onde havia uma maior concentração de lavouras. No início do século XX, as ocorrências de nuvens de gafanhotos se tornam mais intensas, aniquilando diferentes plantações de trigo, milho, alfafa e mesmo pequenas hortas próximas as casas; em consequência, a população do campo, sobretudo os produtores de cereais, passou por períodos de decadência econômica e fome, levando, no ano de 1933, a uma grande taxa de desocupados rurais e ao abandono do campo6, também um efeito da grande depressão mundial. O gafanhoto é um inseto classificado na ordem Orthoptera, pertencente à família Acrididae. Segundo a atual taxonomia, existem, no mundo, mais de 5.000 espécies de gafanhotos classificadas. O gafanhoto que é de interesse neste paper é da

espécie

Schistocerca paranensis (Burmeister, 1861)7, com ocorrência no Sul da América do Sul: Norte e Centro da Argentina e do Chile, Sul do Brasil e da Bolívia, todo o território do Paraguai e Uruguai. A S. paranensis8 tem como principais características o hábito gregário, ou seja, a capacidade de se locomover em grandes quantidades, o hábito migratório e a capacidade de se alimentar de uma grande variedade de espécies vegetais, diferentemente de outras espécies de gafanhotos que têm hábitos solitários, sedentários e alimentação seletiva 9. Obviamente, os gafanhotos desconheciam a noção de “fronteiras internacionais”, e suas nuvens se deslocavam de acordo com sua área ecológica de ocorrência. Além dos gafanhotos ignorarem os limites entre países, a forma de deslocamento destes acrídeos, pelo céu, acentuava ainda mais as limitações humanas frente ao que poderia ser considerada uma “calamidade natural” – mesmo quando era uma provável resposta ecológica às ações humanas na região. Em face das infestações da S. paranensis ocorridas no final do século XIX, diferentes estratégias foram empreendidas pelos governos destes países para combater estas

2819

infestações: leis nacionais foram criadas e publicaram-se manuais para os agricultores com instruções sobre técnicas de extermínio de gafanhotos – que consistiam, basicamente, em ações manuais, como caçar com sacos os gafanhotos e matá-los, e proteger as plantações com barreiras de zinco. A partir da primeira década de 1900, ocorre maior atuação dos governos no combate às infestações de gafanhotos. Sucessivas “comissões de combate ao gafanhoto10” foram organizadas nos países afetados, principalmente no Uruguai e na Argentina. A pesquisa científica passou a ser desenvolvida com mais vigor nos respectivos países, e as especialidades científicas em Agronomia Fitossanitária e Entomologia ganharam maior impulso. Nas pesquisas científicas empreendidas na época, diferentes conceitos científicos foram sendo empregados, primeiro se identificou a “região permanente” da S. paranensis. Região permanente era um termo utilizado pelos cientistas, proposto pela Comissão Entomológica Norte-americana, em 1878, e se referia ao local de refúgio dos gafanhotos no inverno, de onde migravam para outras localidades, em geral, na primavera 11. A partir da descoberta da região permanente da S. paranensis, alguns grupos, principalmente o corpo técnico e científico dos países afetados, passaram a defender a necessidade da cooperação internacional no combate às infestações de gafanhotos. A “luta” contra o gafanhoto foi sendo organizada em um constante diálogo entre técnico, cientistas e políticos entre os países da região. Pelas fronteiras internacionais sul-americanas, não eram apenas nuvens de gafanhotos que passavam, havia, também, uma troca de instrumentos, ideias e negociações.

As primeiras trocas técnico-científicas No começo do século XX, diversas foram as maneiras que começaram a ocorrer estas trocas e a necessidade de uma ação colaborativa entre os países. A Argentina parece ter desempenhado um papel importante no que se referia a desenvolver estratégias para o controle ou combate das pragas, em parte por ter tido sua área cultivada atingida severas vezes. O Brasil começou a organizar um plano de defesa contra o gafanhoto a partir, sobretudo, da contratação, por intermédio do Ministerio de Agricultura, Industria e Commercio, em 1910, de Casildo Boy, funcionário do Serviço de Defensa Agricola da

2820

Republica Argentina. Casildo Boy era instrutor nos cursos especiais de defesa contra o gafanhoto na Argentina e também ministrava curso no Brasil e no Uruguai. Em 1911, a Sessão Geral de Agricultura do Ministerio da Agricultura, Industria e Commercio brasileiro, publicou no Diário Oficial da União um Expediente destinado ao Ministro das Relações Exteriores onde reproduzia um relatório escrito por Casildo Boy ao Ministro da Agricultura. Nos trechos do relatório, Casildo Boy destaca a importância de se começar a Defesa Nacional (do Brasil) pelo Rio Grande do Sul, uma vez que havia a ameaça “(...) todos estes annos realizada, das desastrosas invasões de gafanhotos procedentes do rio da Prata12”. Já no início do seu relatório, Casildo Boy destaca a característica “internacional’ da praga, o que é referido diversas vezes por ele: “Contra este inimigo, já tradicional no Rio Grande, o gafanhoto procede das republicas platinas, que por sua vez, o recebem do remoto Chaco Boliviano foi que procurei organizar a defesa permanente naquele estado13.” Além disso, o relatório de Casildo Boy chama a atenção para o intercâmbio científico que ocorria entre os entomologistas e/ou entre outras especialidades técnicocientíficas. Considerando que a espécie encontrada no Rio Grande do Sul poderia não ser a mesma que estava se multiplicando na Argentina, Casildo Boy remeteu algumas amostras desta espécie para serem analisadas pelo entomologista brasileiro Carlos Moreira, Chefe do Laboratório de Entomologia Agrícola do Museu Nacional (Rio de Janeiro). O entomologista ao responder a Casildo Boy, explica que as amostras pertencem a uma outra espécie e não à S. paranensis. Para justificar sua afirmação, Carlos Moreira destaca que os resultados haviam sido obtidos a partir do entomologista argentino, que “Ha alguns mezes, tendo o Sr. E. Lynch Arribalzaga, commissionado pelo governo argentino para estudar as pragas de gafanhoto, visitado o Laboratório de Entomologia, a meu cargo, confiei-lhe, a seu pedido, o material de acrídeos de que dispunha14”. Posteriormente a esta data, novas pesquisas científicas irão mostrar que a espécie encontrada no Rio Grande do Sul era mesmo a S. paranensis, no entanto as conclusões naquele momento eram que haviam duas espécies distintas. Estas conclusões eram baseadas no trabalho em rede, dentro e fora do laboratório, pois, em 1911, o Dr. Arribalzaga além de visitar o Museu Nacional brasileiro, ao retornar para a Argentina levou com ele as espécies brasileiras e depois as remeteu de volta para o Rio de Janeiro com uma carta para Carlos Moreira, onde explicitava suas conclusões.

2821

Enrique Lynch Arribalzaga, foi um entomólogo bastante ativo nos estudos relacionados à praga de gafanhotos. Até o começo de 1900, na Argentina, os cientistas que a zona permanente era a região de florestas do Chaco Austral. Lynch Arribalzaga, junto com outros cientistas, fez diversas expedições e observações na região. No entanto, seus relatórios passaram a questionar a possibilidade de ser nesta região a zona permanente. Ao ouvir o relato de um viajante sobre a presença freqüente de gafanhotos no Chaco boliviano, em 1908, Lynch Arribalzaga saiu em uma expedição oficial do governo para observar o movimento/existência de gafanhotos no território boliviano. Ele começou seu itinerário por Jujuy, Yacuiba, San Francisco, Lagunillas, Abapó y Santa Cruz e retornou por Cochabamba. Esta excursão de Lynch Arribalzaga contava com o financiamento do governo argentino, mas com o respaldo do governo boliviano. As tratativas para ele realizar suas pesquisas na Bolívia foram realizadas por ambos os ministérios das Relações Exteriores, no entanto, faltam relatos de como as pessoas residentes nesta região da Bolívia o receberam. Lynch Arribalzaga saiu da Argentina, montado em uma mula e com apenas um ajudante, em território boliviano provavelmente contou com a ajuda de moradores da região, que eram, na sua maioria, indígenas. Os relatos de Lynch se referem às questões científicas as quais ele tinha intento em verificar. Para Lynch, as zonas consideradas permanente eram as províncias bolivianas localizadas nas regiões da cordilheira e do chaco. Com o intuito de aprofundar as verificações de Lynch, em 1917, novamente o governo da Argentina financia uma expedição à Bolívia, desta vez quem sai no comando da expedição é o engenheiro agrônomo Lizer y Trelles, além de corroborar com os resultados de Lynch, Lizer y Trelles ampliou a zona permanente desde a cidade de Santa Cruz de La Sierra até Rio Alto Paraná. Na figura abaixo, tem a imagem reproduzida da viagem feita por E. Lynch Arribalzaga entr o território da Argentina e Bolívia. A parte amarela é a região de deslocamento do gafanhoto e a parte rosa e vermelha é a parte da zona permanente. A linha em azul descreve o trajeto da expedição de Lynch.

2822

Fonte: Lynch Arribálzaga, E. Informe sobre una investigación realizada en Bolivia acerca de la región permanente de la langosta. 1910. Buenos Aires: MMA, 1910.

Estes resultados foram os apontados pelos argentinos, no entanto, ainda faltam informações sobre como os bolivianos – ou o governo boliviano – recebeu e tratou estes resultados. A Bolívia também sofria com as infestações de gafanhotos e tentava controlar a pragas, portanto, não estava sendo comunicada pelo governo argentino. Além disso, a região do Chaco era uma região rica em madeiras, sobretudo o quebracho colorado, ou seja, era um território que a Bolívia compreendia como ter um potencial econômico em recursos naturais. O fato é que esta nova descoberta da zona permanente no chaco boliviano impôs mudanças nas formas de “lutar” contra os gafanhotos. A participação da Bolívia e Paraguai vai se configurando côo mais importante no trabalho cooperativo. No processo de combate ao gafanhoto desencadeado entre os países da Região do Prata, o papel dos cientistas naturais foi fundamental, porque eram eles que faziam as investigações sobre as características e os hábitos deste inseto para poder desenvolver, avaliar ou melhorar técnicas e produtos que seriam usados pelos agricultores. O papel dos cientistas na divulgação e no ensino de novas técnicas aos agricultores foi menor, ficando estas atividades a cargo dos agentes de governo. Porém, o desempenho dos cientistas foi de suma importância para a realização de ações político-institucionais entre Argentina, Brasil, Bolívia,

2823

Paraguai e Uruguai. Os cientistas argentinos, talvez, exercessem uma liderança, uma vez que estudavam o problema há mais tempo. Ainda partindo do relatório de Casildo Boy, o mesmo assinala a importância de realizar uma ação em conjunto entre os países da região. Neste relatório, que então foi encaminhado pelo Ministro da Agricultura ao Ministro das Relações Internacionais, Casildo Boy salienta que esta reunião internacional de naturalista e chefes de defesas agrícolas seria muito importante para trocar ideias e conhecimentos. Ele propõe que o Brasil seja o que poderia realizar esta reunião. Parece que o governo brasileiro não foi o que iniciou as conversas sobre uma reunião internacional, uma vez que foi o governo Uruguaio quem chamou para a primeira conferência internacional.

As Conferências Internacionais Entre a publicação do relatório de Casildo Boy, em 1910, e uma ação institucionalizada entre os países, transcorreram, pelo menos, 35 anos. Este tempo ocorreram três conferências internacionais entre países americanos, todas sediadas em Montevideo, em 1913, 1934 e 1946, com o intuito de discutir formas de “vencer” a luta contra o gafanhoto. As infestações de S. paranensis só chegaram a ser relativamente controladas a partir do final da década de 1940, com o uso de inseticidas químicos, principalmente lançados de aviões, embora com um impacto ambiental que só seria avaliado anos mais tarde. Em 1946, na última conferência realizada em Montevideo, foi firmado um convênio entre Argentina, Bolívia, Brasil, El Salvador, Guatemala, México, Panamá, Paraguai e Uruguai estabelecendo o Comitê Interamericano Permanente Anti-Acrídeo (CIPA), com sede em Buenos Aires (DEC. LEG. 3/1947). Esta conferencia eram freqüentadas, sobretudo pelos ministros das relações exteriores dos respectivos países, onde na maior parte estes faziam um relato das ações que cada governo praticava. As conferências internacionais tiveram pouco resultado prático no combate ao gafanhoto, não mudando significativamente as formas locais de combate e os agricultores continuaram lutando contra estes insetos da mesma maneira que já faziam antes das conferências. As conferências alcançaram um melhor resultado no campo político, promovendo o entendimento político da necessidade de ações conjuntas de combate aos gafanhotos para garantir a sobrevivência de nações soberanas e prósperas no Sul da América. Para os pesquisadores das ciências naturais nestes países, o fluxo internacional de ideias e a

2824

cooperação na pesquisa, que já existiam antes das conferências, ganharam o respaldo dos governos por meio da institucionalização destes intercâmbios realizada nas conferências. As discussões dos cientistas tinham como objetivo principal combater as infestações de gafanhotos, e buscavam descobrir, na verdade, uma maneira de eliminar completamente este inseto. A concepção dos cientistas era a de usar o mundo biofísico em proveito do homem. Para este fim, a natureza deveria ser controlada e domesticada. As ações científicas consistiam em conhecer para controlar ou destruir. Neste sentido, os gafanhotos, por não terem nenhuma utilidade – bem pelo contrário, constituíram um verdadeiro problema – deveriam ser eliminados e não preservados ou apenas controlados. A ideia de que os elementos do mundo natural devem ser preservados por seu valor intrínseco e não por sua utilidade para os homens dificilmente será identificada nos discursos dos cientistas do final do século XIX e início do XX, uma vez que, conforme Crosby15, esta concepção de valor intrínseco da natureza só surge a partir de 1960.

1 Graduada em História, Mestre em Desenvolvimento Rural (PGDR/UFRGS) e Doutoranda no Programa de PósGraduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHIS/UFRJ). Orientador: Prof. Dr. José Augusto Pádua. Contato: [email protected] 2 BARRAN, J.P.; NAUN, B. Agricultura, crédito y transporte bajo Batlle (1905-1914). Montevideo: Ediciones de la Banda Oriental, 1978. 3 Idem. 4 BIAVASCHI, Márcio Alex C. Coronelismo na Região Colonial Italiana: Alfredo Chaves (1903-1928). Métis: história & cultura, Caxias do Sul, v. 9, n. 18, p. 213-243, jul./dez. 2010. 5 ZARRILLI, Adrián Gustavo. Ecología, capitalismo y desarrollo agrario en la región pampeana (1890-1950): Un enfoque histórico-ecologico de la cuestión agraria. (1997). 485 f., Tesis (Doctorado en Historia) - Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación, Universidad Nacional de La Plata, La Plata, 1997. 6 TRANCHINI, Elina Mendes. Políticas agrárias y comportamientos sociales: El caso de la plaga de la langosta en la región pampeana. (1995). 97 f., Tesis (Licenciatura en Sociología) – Faculdad de Humanidades y Ciencias de la Educación, Universidad nacional de La Plata, La Plata, 1995. 7 Atualmente, esta espécie é descrita como Schistocerca cancellata paranensis (Burmeister, 1861). No início do século XX, a espécie Schistocerca Cancellata (Seville, 1838) já estava descrita e pensava-se que a Schistocerca paranensis fosse uma nova espécie, no entanto, se tratava da mesma. A Schistocerca Cancellata (Serville, 1838) é uma espécie que passa por modificações morfológicas, fisiológicas, biológicas, anatômicas, e também passa de hábitos solitários a hábitos gregários e vice-versa, e foi classificada e pesquisada como diferentes novas espécies até os entomólogos perceberem que era a mesma espécie. Porém, para não incorrer em anacronismo, as espécies serão referidas de acordo com os nomes científicos utilizados na época pesquisada. 8 A Schistocerca paranensis (Burm. 1861) passará a ser referida no texto apenas por S. paranensis. 9 BIEZANKO. C. M. Algumas noções sobre biologia e ecologia dos gafanhotos. O Campo, Rio de janeiro, Ano VI, nº3, p. 35-37, março 1935. 10 No idioma espanhol, langosta é a palavra utilizada para gafanhoto. As comissões eram intituladas de “Comisión de Lucha Contra la Langosta”. 11 ROMAGNOLI, Eduardo Pérez. Plagas de la agricultura en Mendoza: la langosta en los comienzos de la vitivinicultura moderna (1890-1900). Revista de historia americana y argentina, Mendoza, vol.46, no.1, June 2011.

2825

12 DOU. DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO (BRASIL), 11 de dezembro de 1911, p. 15737- 15739. 13 Idem. 14 Ibidem. 15 CROSBY, Alfred W., The past and Present of Environmental History. The American Historical Review. Vol. 100, Issue 4, p. 1177-1189, Oct. 1995.

2826

Rio Branco pai, Rio Branco filho: biografia, autobiografia ou memorialismo? Vanessa da Silva Albuquerque1.

Resumo O Barão do Rio Branco é muito conhecido por seu papel na Política Externa do início da República. No entanto, propomos um estudo sobre a biografia que o Barão fez de seu pai, o Visconde do Rio Branco. Analisamos tal obra como uma biografia de caráter autobiográfico, já que ao analisar a vida de seu pai, Rio Branco ativa suas próprias lembranças, além de ajudar na construção da memória que queria que fosse preservada de seu progenitor. Palavra-chave: Biografia – Autobiografia – Barão do Rio Branco.

Abstract The Barão do Rio Branco is well known for its role in foreign policy of the early Republic. However, we propose a study on the biography that the Baron made his father, the Visconde do Rio Branco. We analyze such a work as an autobiographical, since to analyze the life of his father, active Rio Branco their own memories and help in the construction of memory that wanted it preserved its parent. Keywords: Biography – Autobiography – Barão do Rio Branco.

Ao propor estudar como os redatores da imprensa carioca atuaram frente ao processo de delimitação de fronteiras de 1851 a 1910, algumas questões emergiram: Como analisar a atuação dos personagens envolvidos neste processo? Quem eram esses homens? O que os ligava? Como era a formação desses homens das letras e de Estado? Quais eram suas influências? Com a proclamação da República esses personagens permaneceram influentes? Por que as continuidades se fizeram mais presentes do que as rupturas no novo regime?

1

Doutoranda do Programa de Pós Graduação em História da Universidade Estadual do Rio de Janeiro - UERJ e bolsista CAPES.

2827

Percebemos que muitas dessas histórias devidas estão interligadas de alguma forma. Por isso, decidimos fazer um estudo em tom ensaístico sobre dois personagens: o visconde do Rio Branco e o Barão do Rio Branco. Ambos, apesar de estarem ligados a diferentes gerações, envolveram-se diretamente com a questão das fronteiras do país. Diferente do primeiro, que se notabilizou durante o Segundo Reinado, nosso segundo personagem foi muito importante no início da República, nos primeiros anos do século XX. Contudo, apesar de ambos terem sido ligados à questão dos limites do Brasil, detentores de títulos nobiliárquicos, políticos, letrados e influentes socialmente, algo a mais os aproximava de forma íntima: eles eram pai e filho. José Maria da Silva Paranhos, o Visconde do Rio Branco e José Maria da Silva Paranhos Junior, o Barão do Rio Branco, nos ajudarão a conhecer um pouco mais de suas vidas e compreender como pai e filho se aproximaram e se distanciaram ao longo do tempo. Como suas personalidades convergiram e divergiram, assim como, suas relações conflituosas e afetuosas puderam ser percebidas através de vestígios como cartas, biografias, publicações de jornais e toda gama documental que permitem ao historiador redesenhar aspectos do vivido, do narrado e do lembrado. Paranhos Júnior teve seu pai como exemplo, chegando mesmo a superá-lo em importância no cenário político. Contudo, os laços que os uniram vão além de seus ofícios. Paranhos Júnior, intelectual renomado, não gastou suas tintas apenas com a elaboração de tratados, arbitramentos, entre outros. Ele foi um importante membro do IHGB, chegando a presidi-lo entre os anos de 1907 e 1812, escreveu estudos históricos e destacou-se por alguns escritos biográficos, dentre os quais, analisaremos a biografia que fez de seu pai. Entendemos que esse estudo pode ser percebido como uma tentativa de construção da memória daquele que foi, para ele, o grande exemplo a ser seguido. Ao realizar a análise da biografia que ele escreveu sobre o seu progenitor, buscamos compreendê-la como um estudo de caráter autobiográfico, já que ao falar da vida de seu pai, suas próprias memórias eram construídas. Sendo assim, podemos analisá-la de acordo com as novas perspectivas das abordagens biográficas, autobiográficas e memorialísticas. Dessa forma, desejamos, ao fim, compreender quem eram esses personagens e como um gênero muito explorado no século XIX, como a biografia, pode ser revisto e analisado de acordo com o retorno desse estilo de narrativa pós-virada linguística.

2828

Rio Branco: um diplomata biógrafo ou um biógrafo diplomata?

O Barão do Rio Branco era um amante da História do Brasil e se guiou por ela, para alinhavar os pressupostos da política externa, no início da República. Uma das formas, encontrada por ele, para narrar os acontecimentos históricos, foi através de estudos biográficos. Recentemente a Fundação Alexandre de Gusmão – FUNAG, em razão do centenário de sua morte publicou uma série de cartas, textos, tratados e toda sorte de documentos produzidos por esse personagem

i

. Um dos volumes dessa coleção é

exclusivamente sobre biografias. Nele é possível encontrar as biografias de Luis Pereira, José de Abreu - Barão de Cerro Largo, Almirante James Norton e do Visconde do Rio Branco. São estudos com uma narrativa muito mais histórica do que biográfica, pois falam muito mais das articulações políticas e guerras de fronteiras do que da vida de seus biografados. Todos os personagens escolhidos para serem analisados foram envolvidos com a questão do Prata. Rio Branco escreveu a vida dos grandes homens, exaltando seus grandes feitos; por meio de narrativas lineares, que iniciam com o nascimento, passando pela formação, os estudos, a juventude, os grandes feitos chegando até a morte gloriosa. Por mais que tenham sido ditas, as fraquezas eram narradas de modo que pudessem gerar o grande homem, “essa perspectiva analítica, que visa buscar o homem na obra, funda-se na esperança de que o singular possa assumir um valor tipológico”ii Sendo assim, para evitar recair no erro de uma análise biográfica puramente descritiva, guiaremos nosso trabalho pelo estudo da biografia que Rio Branco fez sobre seu pai, o Viscondeiii. Intitulada José Maria da Silva Paranhos: Visconde do Rio Branco, esta obra tem como missão construir a memória do visconde, estadista do império. Por mais que tenha utilizado um tom formal, sem apelo emocional, entendemos que esta biografia tem um tom memorialístico e autobiográfico. Nesse sentido, essa biografia, entendida por nós como autobiografia, foge da definição clássica de Lejeune que define a autobiografiacomo uma “narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência”iv. Essa biografia, ou autobiografia, como preferimos chamar, pode ser enquadrada no que Lejeune denomina de pacto autobiográfico, pois, “o pacto está presente desde o título, é desenvolvido no preâmbulo e confirmado ao longo do texto”v através, principalmente do nome, já que o Barão tinha o mesmo nome do pai. Quando Bourdieuvi alega que o que define

2829

uma pessoa é o nome, ter dois personagens com o mesmo nome é bastante sugestivo. Seria como se o mais novo, que carrega o mesmo nome do pai, nascesse com a missão de preservar a identidade e a memória daquele que o antecedeu. O que Rio Branco fez na biografia de seu progenitor, não foi narrar a sua própria vida, ele narrou a vida de seu pai. Por mais que tentasse manter um distanciamento, ele não escapou de reviver parte de uma memória de seu passado. Ao narrar a vida do seu progenitor, Rio Branco está narrando parte de sua própria vida. Dessa forma, o que Rio Branco fez é o que Sarlo denomina de narração da experiência, pois por mais que tente se distanciar, sua escrita não deixa de ser a narração de uma experiência vivida, em que “a narração da experiência está unida ao corpo e à voz, a uma presença real do sujeito na cena do passadovii”. Isto pode ser demonstrado na passagem em que Rio Branco conta o episódio sobre a repercussão na imprensa da unção dos enfermos feito pelo Frei Fidélis d’Ávola, no leito de morte do visconde. Nesse episódio, de acordo com este religioso, o Visconde teria abjurado a maçonaria. Rio Branco indigna-se ao dizer que:

Essa circunstância foi depois explorada pela imprensa clerical para o fim de dizer que o visconde do Rio Branco abjurara a maçonaria, de que era grão-mestre. O vigário-geral, na ausência do bispo, declarou isso ao Jornal do Commercio de7 de novembro, mas contra semelhante inexatidão reclamou no dia seguinte o senhor doutor Paranhos, restabelecendo a verdade dos fatos, e mencionando os nomes das pessoas que assistiram àquela cena, as quais todas confirmam que o visconde nenhuma resposta deu à terceira pergunta do religiosoviii.

Essa terceira pergunta indagava se o visconde condenava tudo quanto à mesma Igreja condenava, mas sem referência à maçonaria especificamente. Os que estavam ao redor, assistindo ao ritual, disseram que o visconde não teria respondido nada. Em relação ao trecho em que Rio Branco diz que o “senhor doutor Paranhos” restabeleceu a verdade na imprensa, esse está fazendo menção a sua própria pessoa. Dessa forma, reafirmamos que o que o Rio Branco fez foi narrar experiência sobre a perda de seu pai. Escrever sobre este fato foi colocar a experiência na lembrança, criando uma temporalidade, em que “a cada repetição e a cada variante torna a se atualizar”ix. Esse trecho também nos permite analisar a memória do visconde, que Rio Branco queria perpetuar. Como filho, ele não admitia que as convicções, que ele acreditava que seu pai tinha em relação à crença, fossem deturpadas. Nesse sentido, ao mobilizar os estudos de Sarlo, compreendemos que em todo texto biográfico ou autobiográfico há um exercício de

2830

memória, no qual, o texto autobiográfico traz uma memória subjetiva. Tendo em vista que esta visão que Rio Branco tem desse fato ocorrido após a morte de seu pai é uma das muitas visões existentes de passado. Contudo, esta não nos deixa de auxiliar na construção de uma visão histórica. O eu vivido e o eu lembrado de Rio Branco, são visões não lineares do que de fato aconteceu, enquanto que o eu narrado é uma exposição linear do que quer ser repassado. Podemos dizer, assim, que Sarlo está pensando na subjetividade e não na autonomia do sujeito, pois o que está escrito é uma visão do passado, a visão de Rio Branco, e não o passado de fato. A biografia se inicia com o nascimento do Visconde. Rio Branco na primeira página já inicia sua jornada de construção da memória de seu pai. Ao falar da morte dos pais do visconde, Rio Branco parte em defesa da educação que o visconde teria tido, contrariando o que dizia o Diário Popular. Segundo este periódico, o jovem visconde teria sido caixeiro em sua juventude. Rio Branco, em uma longa nota de rodapé, sai em defesa, contra essa memória que, segundo ele, seria falsa. Em contrapartida, cita, aí sim no corpo do texto e, em destaque um trecho de uma biografia de 1871, na qual Alvarenga Peixoto narra o episódio da perda dos pais do Visconde:

Ainda na manhã da vida achou-se o jovem Paranhos ajoelhado entre dois túmulos, derramando do coração amargurado de saudades as primeiras lágrimas de sua triste e solitária orfandade. A estas duas perdas inseparáveis, que o atiravam às plagas da pobreza, a ele, que nascera cercado de mimos que a riqueza prodigaliza, veio ainda juntar-se a injustiça e o egoísmo daqueles quem repugna ver tais sentimentos. Desde então, sua alma experimentada por tantas provações adquiriu a fina têmpera com que resiste vitoriosa aos mais esforçados botes da adversidadex

O mais interessante dessa passagem é a forma como os dois episódios são narrados. Ao rebater a afirmativa de que o Visconde em algum momento, pós-orfandade, teria sido caixeiro, Rio Branco o faz em uma nota de rodapé. No entanto, é digno de destaque o trecho citado acima, em que Alvarenga Peixoto exalta a força e a destreza que o jovem visconde teria tido ao se tornar órfão ainda muito jovem, não se deixando abater pelas adversidades. O posicionamento dessas duas passagens, uma no corpo do texto em destaque e a outra em nota de rodapé, nos proporciona perceber a intenção do autor em realçar uma memória face a outra. De forma consciente, ou não, compreendemos que a postura de Rio Brancose aproxima muito da afirmativa de Cartoga de que “as recordações radicam na subjetividade,

2831

embora cada eu só ganhe consciência de si em comunicação com os outros” e de que “a memória individual é formada pela coexistência, tensional e nem sempre pacífica, de várias memórias”xi. Se o Visconde foi caixeiro em sua juventude ou não, de fato, nunca saberemos. No entanto, o que temos de consistente é que Rio Branco mobilizou uma série de acontecimentos que pudessem criar uma memória do visconde como um grande homem que, mesmo após perder seus pais e sua herança, conseguiu, através dos estudos, vencer na vida. O que Rio Branco fez, ao colocar em partes distintas do texto essa duas passagens, foi dar um lugar especial à memória que ele desejava que fosse lembrada. Selecionando, o que para ele, importava. Fez o que Cartoga denomina de “retenção afetiva e quente do passado feita dentro de uma tensão tridimensional do tempo”xii; A partir daí, Rio Branco narra o caminho percorrido pelo Visconde na Educação, na política e no jornalismo. O fato do Visconde ter pertencido ao Partido Liberal e escrito por dois anos no Correio Mercantil são mencionados, porém não aprofundados. Rio Branco apenas alerta que esse período foi relembrado de forma injusta pelos opositores de seu pai. Assim como não alardeia o fato do visconde ter sido um Liberal no início de sua carreira, também não destaca a ida dele para o Partido Conservador. Com a distância de um parágrafo apenas, o Visconde deixa de escrever para o Correio Mercantil e passa a publicar no Jornal do Commercio. Essa passagem nos remete novamente à questão da memória como construção seletiva do passado apontada por Cartoga. Não explicando muito essa troca de partido, Rio Branco parte para a questão política narrando o episódio conhecido pela nossa historiografia com aGuerra Cisplatina ou Guerra contra Oribe e Rosas. Nesse trecho, e o que segue sobre a Guerra do Uruguai e a Guerra do Paraguai, a biografia do visconde tem muito mais um caráter de narrativa histórica do que biográfica. Nesses trechos, Rio Branco aciona um grande arcabouço documental que comprovava a importância do visconde nos episódios do Prata. Nas páginas que seguem, Rio Branco cita trechos de cartas de membros ilustres da política elogiando seu personagem, como a do Marquês do Paraná, trechos de jornais, decretos, entre outros. Essas páginas são bastante ricas em relatos. Seguindo suas análises, Rio Branco parte em defesa do visconde no episódio que gerou sua dispensa da legação uruguaia, em 20 de fevereiro de1864. Rio Branco atribui à imprensa, mais especificamente, ao Diário do Rio de Janeiro, a responsabilidade pela campanha difamatória que teria gerado tal demissão. Mais uma vez, utilizou a imprensa como meio de justificar os feitos de seu personagem. Pois, segundo ele, a imprensa que foi a

2832

responsável por gerar esse injusto acontecimento, também foi a que desfez todo o mal entendido, gerando uma opinião pública favorável às investidas do visconde na região do Prata. Para confirmar sua hipótese, Rio Branco cita várias matérias do Jornal do Commercio e do Correio Mercantil que preparam a população para a chegada do visconde ao Rio de Janeiro. Dessa forma, Rio Branco continua narrando de forma a heroicizar seu personagem. Rio Branco segue toda sua análise baseando-se em uma escrita formal, histórica, comprovada por fontes, aspectos muito característicos de uma biografia do século XIX, que buscava, acima de tudo, mostrar o sujeito como herói, capaz de superar todos os obstáculos que por ventura pudessem aparecer. No entanto, o que a diferencia das demais, ao nosso ver, é que esta é uma biografia histórica, com tom memorialístico e autobiográfico, já que Rio Branco está narrando a vida de seu próprio pai. Isso nos permitiu compreender que o narrado não é o vivido, e sim o que foi eleito para ser lembrado. Assim, concordamos com Ricoeurxiii ao afirmar que a identidade do texto narrativo é uma identidade construída, inventada, já queesta, não pode ser colocada enquanto sinônimo de identidade pessoal. Dessa forma, baseando-nos nas ideias de Ricoeur, e a guisa de conclusões ainda iniciais, compreendemos que o sujeito não possui identidades unívocas e que a ipseidade é algo intrínseco ao sujeito. Ao entendermos que em nós mesmo existem outros, conseguimos compreender o quão complexo é a construção de um estudo biográfico. Rio Branco não publicou a biografia de seu pai em vida. Também, em nenhuma parte se refere ao visconde enquanto pai, o que nos deixa como pista, que esta, foi escrita para ser publicada. Tenta não ser pessoal, não tem características de diário ou de texto memorialístico em sua forma tradicional. É uma biografia histórica, que hoje poderia ser denominada como uma biografia intelectual. Não sabemos a data correta que em Rio Branco escreveu tal obra. José Maria da Silva Paranhos: Visconde do Rio Brancosó foi publicado em 1916, na Revista Americanaxiv. Será que esse foi o tempo estipulado por Rio Branco para divulgação? Sob ordem de alguém? Com autorização de quem? Essas são perguntas que ainda não conseguimos responder, mas que invadem a mente curiosa de todo e qualquer historiador. Esperamos, assim, que este ensaio tenha alcançado o objetivo de ventilar as ideias e a reflexão sobre a vida desses dois homens, bem como, sobre a memória que escolheram perpetuar. Demonstramos a constituição de uma identidade baseada na construção de um caráter formado no campo comportamental e no campo das ações, tão fundamentais para a constituição do sujeito. Dessa forma, elegemos para terminar nosso trabalhoa frase de Le Goff

2833

que, ao nosso ver, sintetiza a importância dos estudos biográficos para a construção do saber histórico. Na introdução de São Luiz, este historiador francês sintetiza a importância das análises das trajetórias de vida ao dizer que: “Um homem não está verdadeiramente morto a não ser quando o último homem que ele conheceu por sua vez estiver mortoxv”.

Notas

i

A coleção tem 12 volumes, o volume 7 é o dedicado às biografias escritas pelo Barão. Esta obra foi organizada pelo: Embaixador Manoel Gomes Pereira (Org.). Coleção Barão do Rio Branco. Brasília: FUNAG, 2012. ii

LORIGA, Sabina. O pequeno X: da biografia à história. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. p. 21.

iii

A partir desse momento, para não confundirmos os personagens, iremos nos referir ao Barão do Rio Branco apenas como Rio Branco e ao Visconde do Rio Branco, como Visconde. iv

LEJEUNE, Phillippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Belo Horizonte: UFMG, 2008. p. 14. v

Ibid. p. 31.

vi

BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In. FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO, Janaína (Org.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996, pp. 183-192. vii

SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2006. p. 24. viii

RIO BRANCO, Barão de. José Maria da Silva Paranhos: Visconde do Rio Branco. Brasília: FUNAG, 2012. p. 235. ix

SARLO, Beatriz. op.cit. p.25.

x

RIO BRANCO, Barão de. op. cit. p. 6.

xi

CARTOGA, Fernando. Memória, história e historiografia. Coimbra: Quarteto, 2001. p. 16.

xii

Ibid. p. 20.

xiii

RICOEUR, Paul. O si-mesmo como outro. São Paulo: Martins Fontes, 2014.

xiv

CASTRO,Fernando Vale. Pensando um continente: a Revista Americana e a criação de um projeto cultural para a América do Sul. Rio de Janeiro: Mauad, 2012. xv

LE GOFF, Jacques. São Luis: biografia. Rio de Janeiro: RECORD, 2002. p. 29.

2834

Trabalhando com a memória: disputa de memória entre presos políticos e presos comuns que estiveram no Instituto Penal Cândido Mendes entre 1969 e 1976. Vanessa Oliveira Benedito* Resumo: Este trabalho tem como intenção discutir como se têm dado até os dias atuais a construção da memória dos presos políticos e presos comuns enquadrados na Lei de Segurança Nacional que estiveram entre 1969-1976 no Instituto penal Cândido Mendes, considerando que estes estabeleceram uma relação complexa dentro da prisão. Defendo que existe uma disputa de memória entre estes, visto que alguns desses ex- presos dão seus relatos e também alguns já escreveram sobre como se deu essa convivência. Palavras- Chave: presos políticos, Lei de Segurança Nacional, Instituto Penal Cândido Mendes. Abstract: This paper is intended to discuss how it has given until today the construction of memory of political prisoners and common prisoners framed in the National Security Law that were between 1969-1976 in the Criminal Institute Cândido Mendes, considering that they have established a complex relationship within the prison. I argue that there is a memory contention between them, as some of these former prisoners give their reports and also some have written about how did this coexistence. Keywords: political prisoners, National Security law, Criminal Institute Cândido Mendes. O presente trabalho busca discutir como se tem dado a construção da memória dos presos políticos e presos comuns enquadrados na Lei de Segurança Nacional que estiveram entre 1969-1976 no Instituto penal Cândido Mendes, localizado na Ilha Grande, levando em conta que estes estabeleceram uma relação complexa dentro da prisão. Defendo que existe uma disputa de memória entre eles, tendo em vista que alguns deles dão seus relatos e também já escreveram sobre como se deu essa convivência. Essas memórias se destoam, pois estes perceberam essa convivência de formas diferentes. Presos políticos e presos comuns estabeleceram uma relação mais estreita no primeiro momento dentro do Instituto Penal Cândido Mendes, no entanto, os presos políticos exigiram que fossem separados dos presos comuns, pois acreditavam que por estarem cumprindo pena com presos comuns não teriam

2835

sua prisão enquanto política reconhecida pelo Estado, já para os presos comuns essa atitude era característica de elitismo, pois grande parte dos presos políticos eram oriundos da classe média. Neste trabalho utilizarei como base os depoimentos de dois ex- presos que estiveram no Instituto Penal Cândido Mendes durante o período aqui analisado, que são eles Willian da Silva Lima e André Borges. Willian da Silva Lima, ex-preso comum, tem um histórico nas prisões, e em 1973 foi cumprir pena na Ilha Grande enquadrado na Lei de Segurança Nacional por assalto a banco, onde teve contato com os presos políticos, uso uma entrevista concedida por Willian e um livro escrito por ele intitulado “400 contra 1: a história do Comando Vermelho” ,onde ele conta suas impressões do que viveu durante o tempo em que esteve na Ilha Grande. André Borges tem uma história um tanto interessante, André foi preso pela primeira vez em 1958, como preso comum, mas passou a ter contato com presos políticos a partir dos anos 60 na Penitenciaria Lemos Brito onde inicia sua politização, em 1969 depois de participar de uma fuga da Penitenciaria Lemos Brito junto com presos políticos, voltou a ser preso só que agora enquadrado na Lei de Segurança Nacional e então passou a ser reconhecido como preso político pelas autoridades e por alguns presos políticos. Presos políticos e presos comuns enquadrados na lei de Segurança Nacional no Instituto Penal Cândido Mendes. Presos políticos passaram a ser enviados para a Ilha Grande após uma fuga realizada na Penitenciária Lemos Brito no complexo penitenciário Frei Caneca, onde havia presos políticos em sua maioria sindicalistas, sargentos e marinheiros acusados de insubordinação. A fuga ocorreu no dia 26 de maio de 1969, e envolveu seis presos políticos que faziam parte da organização Movimento de Ação Revolucionaria-MAR, cujos nomes eram, Antonio Prestes de Paula, líder do levante militar de Brasília e os marinheiros Antônio José Duarte, Avenilo Bioen Capitani, Marco Antônio da Silva Lima, José Adeildo Ramos e Benedito Alves de Campos, todos condenados por sublevação e quebra de hierarquia, e três presos comuns que eram André Borges, José Michel Godoy e Roberto Cieto. Considerando esses presos uma ameaça, pois acreditavam que poderiam voltar para buscar mais presos e com medo de que os presos políticos que não haviam participado da fuga “politizassem” os presos comuns, no dia 29 de maio de 1969 a Superintendência do Sistema Penitenciário começou a fazer a transferência dos presos políticos que se encontravam em

2836

presídios do Rio de Janeiro para a Ilha Grande. O local foi escolhido pela sua posição geográfica que dificultava a ocorrência de fugas1. Ao longo do ano, as ações de luta armada se intensificaram, neste contexto no dia 29 de setembro de 1969 foi reformulada a Lei de Segurança Nacional. Entre os seus artigos estava o 27, que previa que todos os tipos de roubos a bancos e instituições financeiras independente da motivação seriam considerados crimes contra a segurança nacional e seriam julgados pelo tribunal militar. Juridicamente, a ditadura passava a tratar como presos políticos grande número de presos comuns. E ao mesmo tempo tentava recusar o status dos presos políticos, equiparando-os2. Com isso, neste período, passam também a ser enviados para a Ilha Grande presos comuns acusados de assalto a banco enquadrados na Lei de Segurança Nacional, mais conhecidos como os “Leis de segurança”, onde são colocados na mesma galeria destina aos presos políticos, estes passaram a ter uma convivência intensa e complexa. No Instituto Penal Cândido Mendes, presos comuns e presos políticos formaram um “coletivo”, onde eles discutiam estratégias de resistência e de melhoria de suas condições carcerárias, como melhoria nas condições de higiene e alimentação na prisão. Havia regras de convivência, não eram permitidos jogos de azar, estupros ou o uso de tóxicos na galeria. Entretanto, essa interação só foi possível enquanto o número de presos políticos foi superior ao dos “Lei de Segurança”, porque alguns destes só se submeteram por estarem em minoria3. Entre 1971 e 1972 os presos políticos que não haviam participado da fuga na Penitenciaria Lemos Brito e tinham sido enviados para a Ilha Grande começaram a ser libertados, pois não foram inclusos na Lei de Segurança Nacional e por isso suas penas eram menores, houve também a diminuição do volume de presos políticos levados para a Ilha Grande, alguns estavam nos quartéis ou na Fortaleza de Santa Cruz, outros saíram através dos sequestros e muitos foram mortos ou “desaparecidos” pela repressão. Além disso, teve um aumento no número de presos de “Lei de Segurança”. Com isso, os presos políticos se sentiram ameaçados. Essa situação atrelada à luta dos presos políticos pelo seu reconhecimento pelo Estado fez com que estes solicitassem sua separação dos presos de Lei de Segurança, pois para eles só obteriam melhores condições de tratamento se conseguissem

2837

se afirmar enquanto presos políticos perante o Estado, e isso só seria possível se estivessem separados dos presos comuns4. Grande parte dos presos políticos que se encontravam no Instituto Cândido Mendes no início dos anos 70, eram jovens da classe média e média alta, este fator unido ao desejo deles de se isolar, era visto pelos presos comuns enquadrados na Lei de Segurança como elitismo. Observando esse quadro me proponho a pensar como se tem dado a construção da memória dos presos políticos e presos comuns que estiveram no Instituto Penal Cândido Mendes em relação a essa convivência. Quando se fala em memória muitas questões aparecem, buscarei então fazer alguns apontamentos relativos às discussões em torno da memória. Ulpiano T. Bezerra de Meneses em seu texto A História, cativa da memória?Para um mapeamento da memória no campo das Ciências Sociais (1992), procura discutir sobre a memória. Segundo Meneses5, no senso comum a memória é vista como um mecanismo de registro e retenção, deposito de informações, conhecimento. A memória aparece, então, como algo concreto, definido, cuja produção e acabamento se realizaram no passado e que cumpre transportar para o presente. Disse-se também que a Memória corre o risco de se desgastar, por isso, é que precisa não só ser preservada, mas também restaurada na sua integridade original. No entanto, para o autor a memória não é redutível a um pacote de recordações, já revisto e acabado, ela é um processo permanente de construção e reconstrução, um trabalho, que está sempre em processo de resignificação6. De acordo com Meneses, a memória de grupos e coletividades , se organiza, reorganiza, adquire estrutura e se refaz, num processo constante, de função adaptativa. Como mostra o autor7 também é comum se pensar a memória enraizada no passado. Entretanto, para ele a elaboração da memória se dá no presente e para responder os anseios do presente. É do presente, que a rememoração recebe incentivo, tanto quanto as condições para se efetivar, a memória se efetiva no contexto social. Nesta mesma linha trabalha Peter Burke8, ele descreve a memória como uma reconstrução do passado, uma vez que lembra-lo e escrever sobre ele não são atividades

2838

ingênuas e inocentes como julgávamos até bem pouco tempo atrás. Identificamo-nos com acontecimentos públicos relevantes para nosso grupo e que por nós passam a ser incorporados e filtrados por nossas estruturas comportamentais; lembramos de uma propaganda, de uma música que uma vez assimiladas em nossas lembranças, com elas nos identificamos, embora não tenhamos sido os construtores diretos das canções, mas por elas somos diretamente envolvidos. Pierre Nora em seu texto Entre memória e história. A Problemática dos lugares, trás uma contribuição importante para se pensar a memória. Segundo ele, fala-se tanto de memória na contemporaneidade porque ela não existe mais. O autor discorre sobre o que ele conceitua como lugares de memória. De acordo com Nora, a curiosidade pelos lugares onde a memória se cristaliza e se refugia está relacionada ao momento particular pelo qual nossa historia está passando. Momento de articulação, onde a consciência da ruptura com o passado se confunde com o sentimento de uma memória esfacelada, mas onde o esfacelamento desperta ainda memória suficiente para que se possa colocar o problema de sua encarnação. O sentimento de continuidade torna-se residual aos locais. Há locais de memória porque não há mais memória9. Para Nora, se habitássemos ainda nossa memória, não teríamos necessidade de lhes consagrar lugares. Não haveria lugares porque não haveria memória transportada pela história. Segundo ele, cada gesto, até o mais cotidiano, seria vivido como uma repetição religiosa daquilo que sempre se fez, numa identificação carnal do ato e do sentido. No momento em que tem rastro, distância, mediação, não estamos mais dentro da verdadeira memória, mas dentro da história10. De acordo com Nora11 os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter aniversários, organizar celebrações, porque essas operações não são naturais. Os lugares de memória são lugares nos três sentidos da palavra, material, simbólico e funcional, simultaneamente, somente em graus diversos. Um lugar de aparência puramente material pode ser um lugar de memória se a imaginação o investe de uma aura simbólica, os objetos que servem como um ritual são lugares de memória, até mesmo um minuto de silêncio pode ser visto como um lugar de memória12.

2839

Neste aspecto, trabalho com a perspectiva de que os relatos dos ex- presos, os livros de memória escritos por alguns deles, acima de tudo podem ser considerados lugares de memória, que foram intencionalmente construídos para que não entrassem no esquecimento. Um importante aspecto observado por Pollak relativo à memória, que deve está claro para aqueles que trabalham com a memória, é que está é seletiva, “nem tudo fica gravado, nem tudo fica registrado13“. Outro ponto destacado pelo autor é que a memória não se refere apenas à vida física da pessoa. A memória também sofre flutuações que são funções do momento em que ela é articulada, em que ela está sendo expressa. Sendo assim, as preocupações do momento constituem um elemento de estruturação da memória14. Levando em conta esse aspecto, de a memória se organizar em função das preocupações pessoais e políticas do momento, Michael Pollak defende que esta é um fenômeno construído. Essa construção pode se dar de forma consciente ou inconsciente. “O que a memória individual grava, recalca, exclui, relembra, é evidentemente o resultado de um verdadeiro trabalho de organização15”. Outra questão importante sobre a qual Michael Pollak discorre em Memória, esquecimento, silêncio (1989) e que interage muito com a construção da memória dos presos políticos e comuns que me proponho a analisar, é sobre as memórias concorrentes ou disputas de memórias16. De acordo com Pollak, a memória pode ser um importante cacife para que os grupos sejam reconhecidos pela sociedade, e essas podem ser a origem de conflitos entre pessoas que viveram os mesmos acontecimentos e que os perceberam de forma diferente. Como já anunciado antes, alguns presos políticos e também comuns já publicaram seus relatos sobre as suas impressões da convivência que se deu entre eles, e o que se percebe é que esses depoimentos se destoam, principalmente em relação à separação exigida pelos presos políticos dos presos comuns. Os presos políticos argumentam que a separação se fazia necessária, pois seus direitos enquanto presos políticos só seriam reconhecidos pelo Estado se estivessem separados dos presos comuns,estes acreditavam que o fato de estarem junto a presos comuns poderia desqualificar o teor político de sua prisão. Já para os presos comuns, essa atitude representava uma caracteriza de elitismo, considerando que boa parte dos presos políticos que lá se encontravam eram oriundos da classe media e média alta.

2840

Willian da Silva Lima, preso comum enquadrado na Lei de Segurança, que esteve no Instituto Penal Cândido Mendes nos anos 70, afirma que: Para esvaziar a luta pela anistia, a ditadura negava a existência de presos políticos no país. Neste contexto, interessados em garantir sua visibilidade para a opinião pública nacional e internacional, os membros das organizações armadas dos anos 70 lutavam para isolar-se da massa, comportamento considerado elitista por nós. Seu discurso era coerente, mas frágil: a existência ou não de presos políticos no Brasil não seria uma questão decidida pelo fato de eles estarem isolados, mas pela força do movimento de oposição à ditadura. O desejo de isolamento indicava, entre eles, a hegemonia da classe média, cujos espaços de reintegração no sistema voltavam a se abrir, no contexto da política de distensão17.

Willian da Silva Lima que já havia convivido com presos políticos logo após o golpe em outros presídios, afirma “os presos políticos dos anos 60, que eram em sua maioria sindicalistas, marinheiros eram o povo, tinham a voz do povo, já os dos anos 70 não falavam a mesma linguagem, eram outro tipo de pessoas, da classe média18”. André Borges, também ex- preso, tem uma opinião um tanto diferente de Willian, apesar dele também afirmar que os presos políticos da geração de 70 eram em sua maioria oriundos da classe média, como em suas palavras: “o movimento armado era na sua essência um movimento da classe média, principalmente da classe média estudantil, eram as pessoas mais esclarecidas que tinham oportunidade de ler e participar dos movimentos políticos” 19. Não percebo nele uma visão clara dessa postura de isolamento dos presos políticos em relação aos presos comuns enquadrados na Lei de Segurança como característica de elitismo como defendido por Willian Lima. Ele afirma que os presos políticos e os presos comuns trabalhavam juntos por busca de melhorias nas condições do cumprimento de suas penas. Talvez isso se dê por sua situação no cárcere, isto é, ele tem sua primeira experiência na prisão em 1958 como preso comum, acusado de praticar pequenos furtos. No entanto, a partir dos anos 60 passa a conviver com presos políticos na Penitenciaria Lemos Brito e inicia sua politização, ele participa da fuga realizada na Lemos Brito em 1969 e um tempo depois volta a ser preso já incluso na Lei de Segurança Nacional, por ter participado de algumas expropriações com cunho político passa então a ser reconhecido por muitos funcionários do sistema penitenciário e por alguns presos políticos enquanto preso político.

2841

Falando particularmente de sua relação com os outros presos políticos, visto que ele se autointitula como preso político André diz: Os presos políticos queriam que eu saísse da galeria de presos comuns onde fui colocado assim que cheguei à Ilha e fosse para a galeria de presos políticos, se eu estava enquadrado como preso político tinha que te tratamento de preso político igual, porque eles também me consideravam preso político e tal, o coletivo me considerava preso político, e exigia que eu estivesse junto com eles par evitar que continuassem me espancando e me matasse e tal , e começaram as auditorias e as visitas e

tal

começaram a pressão, aí os caras viram que deviam me trocar de galeria , aí um dia o guarda disse André é o seguinte arruma seus bagulhos que você vai pra galeria dos preso políticos20 .

A pesquisadora Elizabeth Süssekind21 faz um apontamento interessante em relação à situação de André Borges. Segundo ela, André tinha um status complicado, estava sempre fora do lugar. De preso comum passara a político, embora mantivesse a maior parte das características de preso comum. Por outro lado, os presos comuns se impacientavam com a frequência dele junto aos políticos. Estes, por sua vez, tampouco o aceitavam bem, já que não era exatamente um preso com formação e militância política. Neste aspecto como se vê, embora André Borges se considerasse preso político havia certa resistência dos presos políticos na convivência com ele. Como se observa, os relatos dos presos aqui analisados têm características diferentes, pode-se dizer que são memórias concorrentes. Como já dito anteriormente, esses personagens percebem de forma diferente os mesmos acontecimentos e procuram legitimar suas percepções dos fatos. O interessante é que mais do que saber a realidade dos fatos, é importante saber o porquê das omissões e distorções, pois estes tem um significado. Além disso, os indivíduos podem sentir de maneira diferente os eventos dependendo da posição que ocupam na sociedade. Logo, os relatos dos ex- presos devem ser vistos como reconstruções do passado vividos por esses atores, e não o retrato fiel desse passado. Em meio as esses relatos, encontram-se indivíduos que passaram por experiências diferentes ao longo da vida e que influenciaram nessa reconstrução do passado. Considerações Finais

2842

Este trabalho teve como intenção mostrar como se tem sido construído a memória dos presos políticos e comuns sob a Lei de Segurança Nacional que estiveram no Instituto Penal Cândido Mendes durante a ditadura militar, visto que estes através de seus relatos defendem pontos de vistas diferentes. Dessa forma, defendo que existe uma disputa de memória, em torno de como se deu essa convivência e particularmente do episódio da separação dos presos políticos e presos comuns, entre os representantes desses dois grupos, de como querem que seja passada para a sociedade as memórias desse período, partindo do pressuposto de que estes perceberam essa convivência de formas diferentes. Também defendo me apropriando do conceito de lugares de memória desenvolvido por Pierre Nora, que os livros de memória, os relatos dos ex- presos, podem ser vistos como lugares de memórias, pois estes possuem uma vontade de memória.

*

BENEDITO, Vanessa Oliveira. Mestranda em História social pelo Programa de PósGraduação em História Social (PPGHS-UERJ-FFP), sob orientação do professor doutor Gelsom Rozentino de Almeida. Email: [email protected] Presos políticos serão postos na Ilha Grande” Jornal Correio da Manhã, 29/05/1969, ano LXVIII nº 23.348. p. 05. 2 SÜSSEKIND, Elizabeth. Estratégias de Sobrevivência e de Convivência nas Prisões do Rio de Janeiro. Tese de Doutorado em História. Rio de Janeiro. FGV, 2014, p.214. 1

3

FARIA, Cátia. Revolucionários, Bandidos e Marginais. Dissertação de Mestrado em História. Niterói: UFF, 2005. 4 Ibidem, p.97 5 MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. A história cativa da memória? Para um mapeamento da memória no campo das Ciências Sociais. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, 1992, p. 9-24. 6

Idem Ibidem 8 BURKE, Peter. História como memória social. In: . variedades de história cultural. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2000. 9 NORA, Pierre. Entre memória e história. A problemática dos lugares. In:Projeto história. São Paulo: (10) dez.1993, p.7 7

10

Ibidem, p. 8-9. Ibidem, p.13 12 Ibidem, p.21 13 POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos,vol.5, n.10,1992, p.4. 11

14 15

Idem Ibidem,p. 5

2843

16

POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos, vol.2, n.3, 1989, p.3-15. 17 LIMA, William de Souza. 400 contra 1: a história do Comando Vermelho. 2ª. ed. São Paulo: Labortexto Editorial, 2001, p. 57. 18

LIMA, William da Silva [março- 2012]. Entrevistador: Gelsom Rozentino de Almeida. Rio de Janeiro, 2012. 19 Borges, André [maio-2014]. Entrevistador: Vanessa Oliveira Benedito. Rio de Janeiro, 2014. 20

Idem SÜSSEKIND, Elizabeth. Estratégias de Sobrevivência e de Convivência nas Prisões do Rio de Janeiro. Tese de Doutorado em História. Rio de Janeiro. FGV, 2014, p.294. 21

2844

Profecia, política e propaganda: anúncios de livros e panfletos radicais publicados por Livewell Chapman durante a Revolução Inglesa do século XVII Verônica Calsoni Lima*

RESUMO: Durante a Revolução Inglesa (1640-1660), anúncios de livros e panfletos se tornaram frequentes. A prática comercial buscava ampliar o público dos textos anunciados. Ao mesmo tempo, essas propagandas podiam indicar as preferências político-religiosas dos impressores e livreiros que as publicavam. Pretendemos analisar essa dupla função dos anúncios a partir do caso do livreiro radical Livewell Chapman (1625-1665). Em Londres, Chapman costumava propagandear seus textos em jornais republicanos, disseminando críticas à monarquia e difundindo concepções político-religiosas das quais partilhava. PALAVRAS-CHAVE: Revolução Inglesa – Imprensa – Radicalismo

ABSTRACT: During the English Revolution (1640-1660), advertisements for books and pamphlets became frequent. This commercial practice aimed to rise the public for texts. Furthermore, advertisements could indicate the political-religious preferences of printers and booksellers who published them. This paper analyzes this double function of advertisements, focusing on the case of the radical bookseller Livewell Chapman (1625-1665). In London, Chapman promoted some of his texts in republican newspapers, disseminating critics to the monarchy and spreading his own political and religious perspectives. KEYWORDS: English Revolution – Printing Press – Radicalism

1. OS IMPRESSOS E A REVOLUÇÃO INGLESA Ao longo da Revolução Inglesa, uma torrente de impressos foi produzida, vendida e lida. Ainda que seja impossível precisar os números exatos de tudo o que foi publicado naquela época, visto que muitos dos textos se perderam com o tempo, os títulos que resistiram até os dias atuais deixam evidente o quanto a imprensa reagia à instabilidade política e social que marcou o período1. Com o início dos conflitos entre o rei Carlos I e o Parlamento em 1642, o número de obras impressas cresceu rapidamente. Dos títulos sobreviventes listados no English Short Title Catalogue, 4054 textos foram lançados em 1642, quase o dobro do que foi produzido no ano anterior2. *

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), sob orientação do Prof. Dr. Luís Filipe Silvério Lima. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processo nº 2012/24289-7. E-mail: [email protected].

2845

A Revolução iniciou em 1642, demarcando as querelas que vinham desde a década de 1620, pois o monarca reinava há 11 anos sem convocar os parlamentares para tomar suas decisões. Com o estopim da Primeira Guerra Civil, a imprensa logo começou a noticiar os eventos coevos. Informações sobre as batalhas circulavam amplamente em jornais e folhas noticiosas, e embates políticos ocorriam por meio dos panfletos, que demarcavam posições pró-parlamentares ou pró-monarquistas. Os conflitos se estenderam e, em 1649, Carlos I foi julgado como traidor do povo inglês, o que levou à sua execução pública. A repercussão do evento foi enorme e diversos textos impressos discorreram sobre o acontecimento, uns condenando a postura assassina do Parlamento, outros justificando a morte do rei tirano como parte das profecias divinas. As tensões políticas e a “guerra panfletária” continuaram intensas ao longo dos anos seguintes, acompanhando às frequentes mudanças de governo entre 1640 e 1660, aos diversos parlamentos estabelecidos e dissolvidos, ao Protetorado de 1653 a 1659 e, finalmente, à restauração da monarquia em 16603. Foi neste contexto turbulento que o livreiro Livewell Chapman atuou. Ele adentrara o mundo do livro em 1643, quando se tornou aprendiz de Benjamin Allen, dono da livraria Crown, localizada em Pope’s Head Alley, no centro de Londres4. A Crown se encontrava em meio às várias casas livreiras e impressoras; aos vendedores ambulantes que se concentravam ao redor da Catedral de St. Paul; à Stationers’ Company, facilitando a interlocução com a corporação que regulamentava o mercado livreiro; e às diversas igrejas independentes e batistas, o que explicava, em alguma medida, a prevalência de títulos religiosos vendidos pela livraria, desde os seus primórdios5. O mestre de Chapman faleceu em 1646 e deixou seus negócios para sua esposa, Hannah Allen6. A viúva herdou todas as posses do falecido (licenças e registros de títulos, materiais, aprendizes, parceiros comerciais e clientes) 7 e administrou a Crown por cinco anos, comercializando, sobretudo, sermões, tratados e profecias produzidos por autores independentistas, batistas e milenaristas8. Seu nome deixou de aparecer nos frontispícios dos títulos da livraria quando se casou com um de seus aprendizes, Livewell Chapman em 1651 9. Com o matrimônio, Chapman teve possibilidades de ascender no comércio de livros sem depender de conexões familiares, posses ou dinheiro, obtendo, por meio do casamento, o direito aos registros de cópia da Crown, aos equipamentos, aos privilégios, às conexões e parcerias, e aos clientes10. À frente da Crown, Chapman radicalizou-a, publicando, majoritariamente, profecias e exegeses dos chamados Homens da Quinta Monarquia. Apoiados nas profecias do Livro de

2846

Daniel, o grupo acreditava que Cristo retornaria e estabeleceria um reino concreto na Terra. A fim de atingir o Milênio, eles propunham reformas políticas, administrativas, econômicas, jurídicas e religiosas para acelerar a Segunda Vinda. Alguns chegaram, inclusive, a sugerir revoltas armadas contra as autoridades, acreditando que isso auxiliaria no cumprimento das profecias. Eles interpretavam os eventos da Revolução Inglesa como parte dos desígnios divinos em direção ao advento do Milênio, justificando, por exemplo, a execução de Carlos I como um ato de Deus contra sua tirania anticristã11. Chapman fez parte do movimento, comparecendo às suas reuniões e difundindo suas ideias através da imprensa12. Ao analisarmos suas atividades editoriais, notamos que o lucro no mercado livreiro não era a única coisa que motivava suas ações. Suas escolhas quanto aos títulos a publicar e aos modos de fazê-lo também levavam em consideração suas concepções políticas e religiosas. O livreiro vendeu diversos títulos controversos que, por meio de perspectivas profético-políticas, contestavam a situação vivida pela Inglaterra entre as décadas de 1650 e 1660 e propunham mudanças. Buscando atingir um público amplo, Chapman fez uso de diversos tipos de anúncios para os impressos que eram sucessos editoriais e/ou que espalhavam suas próprias crenças e expectativas. Neste paper, abordaremos algumas dessas propagandas, procurando compreendê-las dentro das atividades editoriais de Chapman e sua livraria, bem como do contexto revolucionário inglês. Em nossa interpretação, além de esses anúncios desempenharem uma função comercial importante de promover as obras recentemente lançadas pelo livreiro, eles também são indícios das conexões político-religiosas de Chapman.

2. PROPAGANDEANDO PROFECIAS E PROJETOS POLÍTICOS Nos 15 anos em que liderou a Crown, Chapman publicou pelo menos 200 títulos, entre primeiras edições e reimpressões. A maioria de suas obras era proveniente de reflexões e debates de autores independentistas, milenaristas, pentamonarquistas, batistas e republicanos. Encontramos 16 anúncios de alguns desses textos proféticos e políticos disseminados por ele, dez em jornais republicanos e seis impressos no início ou no final dos próprios livros e panfletos que ele vendia. Segundo Michael Harris, é provável que muitas propagandas tenham circulado na Inglaterra do século XVII ao XIX em folhetos, em folhas volantes, no início ou no fim dos textos comercializados, e em periódicos, mas poucos exemplares foram conservados, visto que as propagandas eram (e ainda são) publicações efêmeras, que não costumavam ser guardadas. A maior parte dos exemplares sobreviventes

2847

encontram-se

justamente nos jornais, que, por outras razões que não os anúncios, foram conservados13. As propagandas veiculadas na imprensa periódica dependiam dos acordos estabelecidos entre editores, impressores e livreiros. Parceiros comerciais provavelmente trabalhariam juntos para anunciar títulos que lhes interessavam, esse era o caso, por exemplo, das propagandas que Chapman fez nos jornais Severall Proceedings of State Affairs (16531655) e, especialmente, Severall Proceeding in Parliament (1649-1655). Ambos eram editados pelo impressor Robert Ibbitson, que frequentemente trabalhava com Chapman, sendo o responsável pela produção de 23 das obras vendidas pelo livreiro14. Além de ter produzido inúmeros títulos radicais religiosos, o tipógrafo editava vários periódicos reportando questões sobre o Parlamento. Estes jornais possuíam breves editoriais nos quais as preferências políticas do impressor-editor eram apresentadas e reforçadas, por meio, por exemplo, de suas críticas à monarquia Stuart, de seu apoio ao Parlamento e de seus anseios pró-republicanos15. Chapman lançou cinco dos seus anúncios nos periódicos de Ibbitson, sobretudo em Severall Proceedings in Parliament, publicizando títulos milenaristas. No final de 1651, a primeira dessas propagandas do livreiro apareceu no Severall Proceeding in Parliament, anunciando duas obras produzidas por Ibbitson e Chapman: uma coletânea de sermões pregados no Parlamento por Vavasor Powell, Saving Faith, e o tratado Hope of Israel do rabino português Menasseh ben Israel16. O livro do pentamonarquista Vavasor Powell enaltecia os parlamentares, cujas ações extirparam uma monarquia tirânica da Inglaterra 17. Para o autor, a queda de Carlos I representava um avanço em direção à conformação da Quinta e Última Monarquia de Cristo. Nos sonhos proféticos do Livro de Daniel, quatro reinos ou bestas se sucederiam antes de Jesus retornar e constituir seu governo universal. A quarta monarquia era identificada pelos exegetas pentamonarquistas como o

Império

Romano, do qual as autoridades da Inglaterra descenderiam, neste sentido, a execução do rei era uma confirmação de que a realização das profecias milenaristas era iminente. Por essa razão, a oposição do Parlamento aos monarquistas era tida por personagens como Powell como uma ação benevolente em favor de Cristo18. Para os leitores que estivessem interessados em saber mais sobre o que a Providência preparava para a Inglaterra, uma pequena nota no início do livro sugeria a leitura de outro tratado de Powell, Christ and Moses Excellency, também publicado pela Crown em 1650, pela esposa de Chapman. Não há nenhuma menção direta à livraria, o que nos faz crer que o anúncio se dirigia a um público que já conhecia a livraria e os gêneros literários publicados por ela. Logo, quem lesse Saving Faith, saberia que poderia encontrar Christ and Moses Excellency no mesmo lugar, isto é, na livraria de Chapman. Com esse breve anúncio, o livreiro promovia tanto as ideias milenaristas de pregadores como Powell, como os seus 2848

próprios negócios, buscando ampliar suas vendas desses títulos proféticos. A outra propaganda veiculada nessa edição de Severall Proceeding in Parliament se referia ao importante tratado Hope of Israel. A obra foi lançada, originalmente, em espanhol no início de 1650, e logo recebeu uma versão latina publicada em Amsterdã. Em julho do mesmo ano, o título foi impresso por Ibbitson e circulava na Inglaterra graças à publicação de Hannah Allen. Quando se casou com a viúva, Chapman adquiriu os direitos sobre a obra e, no ano seguinte, fez uma reedição corrigida do título, pois a tradução de Moses Wall continha diversos erros. Além da necessidade de revisar as imprecisões da primeira versão inglesa, a escolha em relançar Hope of Israel em pouco mais de um ano, sugere que a obra tivera uma boa vendagem no mercado. O título, de fato, fez muito sucesso por conta de sua temática. Menasseh examinava os relatos de Antonio de Montesinos sobre os índios encontrados na América do Sul, considerando a possibilidade de esses gentios serem descendentes das dez tribos perdidas de Israel19. Essa interpretação era fundamental para aqueles que alimentavam expectativas milenaristas, visto que, de acordo com as Escrituras, o Retorno de Cristo seria antecedido pela conversão dos judeus. Neste sentido, o encontro com os indígenas e as discussões em torno da cristianização desses povos representavam mais uma evidência de que o Milênio estava por vir. Isso reacendeu o debate acerca da readmissão dos judeus na Inglaterra, que foram expulsos do país em 1290, como uma medida necessária para a sua conversão e, por conseguinte, para a concretização das profecias. Diversos ministros religiosos e políticos discutiram sobre a questão, e uma conferência sobre o assunto ocorreu em Whitehall em 1655, quando Cromwell, de fato, considerou a readmissão, embora não tenha aprovado a medida20. Certamente, as razões que impulsionaram a volta dos judeus não se resumiam aos anseios proféticos, mas é interessante notar o quanto os argumentos religiosos reforçaram o desenvolvimento desse debate. Chapman e Ibbitson, ao anunciarem a segunda edição de Hope of Israel, buscavam ampliar o consumo da obra, criando uma demanda para esse tipo de publicação e indicando que os exemplares poderiam ser adquiridos na Crown em Pope’s Head Alley. A estratégia provavelmente foi bem-sucedida, uma vez que uma terceira edição foi produzida e vendida pelos dois no ano seguinte21. Ao mesmo tempo, a produção, divulgação e circulação da reflexão mantinham em destaque as expectativas providencialistas das profecias que, para os milenaristas e pentamonarquistas, estavam prestes a se realizar. Ao longo da década de 1650, Chapman fez mais anúncios no jornal de Ibbitson. Paralelamente, o livreiro também incluía algumas listas de livros no final ou no início de obras que tinham uma boa circulação. Exemplo disso encontra-se nas últimas páginas do tratado pentamonarquista Knowledge of the times de John Tillinghast, lançado em 1654. 2849

Ainda que Tillinghast tenha falecido em 1655, suas obras foram continuamente reeditadas por Chapman até 166322. Seus sermões e tratados profético-políticos circularam amplamente e, quase todos tiveram duas ou três reimpressões. Se as obras do autor faziam sucesso entre os leitores, parecia conveniente anexar propagandas de outros textos do mesmo gênero que pudessem ser adquiridos pelo público interessado em interpretações milenaristas dos eventos coetâneos. É por isso que uma lista de “Livros recentemente Impressos, e vendidos por Livewell Chapman” está afixada ao final do texto, anunciando nove obras: The Voyce of the Spirit de Samuel Petto; The New Non-conformist de Christopher Feake - que fazia um forte ataque ao regime cromwelliano instalado em 1653 –; o panfleto anônimo A Declaration of several of the Churches, and godly People; A Sermon of the Fifth Monarchy de Thomas Goodwin; An Image of our Reformed Times de Edward Lane; e os três volumes do tratado Generation Work de Tillinghast23. Todas essas obras divulgavam perspectivas milenaristas, que explicavam o contexto revolucionário a partir das Escrituras e, majoritariamente, apontavam o Protetorado de Cromwell como um novo obstáculo para a efetivação da Quinta Monarquia. O general, que antes fora aclamado por sua oposição aos Stuarts e por seu comprometimento com o Parlamento, passou a ser percebido como um tirano quando concentrou o governo em suas mãos, a partir de dezembro de 165324. Os sectários religiosos opuseram-se ao Lorde Protetor e criticaram seu regime amplamente. Chapman o fez por meio da difusão de impressos que contundentemente afirmavam a necessidade de acabar com a tirania cromwelliana, como foi o caso de The New Non-conformist de Christopher Feake, propagandeado no trabalho de Tillinghast, ou de dois panfletos virulentos contra Cromwell, escritos pelo pentamonarquista John Spittlehouse, que levaram Chapman à prisão em 165425. De maneira mais radical do que as publicações controversas de Chapman, uma corrente pentamonarquista, liderada por Thomas Venner, arquitetou uma sublevação contra Cromwell em 1657. A rebelião foi violentamente reprimida e todos os envolvidos foram presos26. Livewell Chapman fora contrário à revolta e, por isso, foi expulso de uma das reuniões do grupo pelo próprio Venner27. O evento marcou um momento em que Chapman, ligeiramente, se afastou do grupo. No entanto, ele não abandonou as perspectivas milenaristas e continuou publicando trabalhos de pentamonarquistas como Christopher Feake e William Aspinwall. Ao mesmo tempo, o livreiro se aproximou mais de correntes republicanas, que não usavam exclusivamente as profecias para elaborar suas análises da conjuntura vivida ou para tecer projetos políticos. Já em 1656, Chapman havia publicado The common-wealth of Oceana de James Harrington. O tratado explicava o colapso da monarquia quase que 2850

inteiramente por meio de argumentos econômicos e sociais, não recorrendo às perspectivas estritamente teológicas que os autores de Chapman costumam utilizar28. O título foi publicizado no jornal republicano de Marchamont Nedham, Mercurius Politicus, entre outubro e novembro do mesmo ano. Diferentemente da relação comercial e editorial estabelecida com Robert Ibbitson – que era frequentemente o impressor das obras da Crown – até então, Livewell Chapman não havia trabalhado com Nedham. Contudo, o editor do Mercurius Politicus estava envolvido com correntes republicanas e, certamente, tinha algum interesse em anunciar a obra em seu periódico. Essa publicação e sua propaganda marcam a entrada de Chapman no comércio de obras republicanas, aproximando-o de autores como Nedham, Harrington, John Milton e Henry Vane. Sua associação com o republicanismo ficou mais evidente a partir de 1659, quando um novo período de instabilidade provocou uma efervescência de discussões políticas. Cromwell morrera em 1658 e seu filho o sucedeu no Protetorado, desencadeando diversas críticas, que consideravam que a hereditariedade era uma característica de regimes de uma única pessoa, como monarquias. Diversas tensões no governo levaram à renúncia do sucessor e, pouco depois, à queda do próprio Protetorado. Em 1659, a Inglaterra viveu novamente, ainda que breve espaço de tempo, uma república. O momento foi bastante profícuo na produção de reflexões e debates, muitos dos quais circularam na imprensa29. Nesse ano, Chapman publicou mais textos do que em qualquer outro momento, atingindo 60 títulos, sobretudo anônimos, que discutiam os rumos da commonwealth. Ele também lançou Considerations touching the likeliest means to remove hirelings out of the church de John Milton, que foi publicizado no Mercurius Politicus duas vezes30. No primeiro desses anúncios, de setembro de 1659, Nedham apenas propagandeou dois títulos, ambos de Chapman: a obra de Milton e o tratado teocrático de John Rogers, Diapoliteia31. Rogers fizera parte do grupo dos pentamonarquistas, mas se afastou do movimento depois do atentado Venner e parece ter, como Chapman, se aproximado das reflexões republicanas no final da

década de 1650, em especial das ideias de Henry Vane, que associava os preceitos religiosos e o pensamento republicano32. O fato de Nedham e Chapman terem anunciado os textos de Milton e Rogers em um mesmo número de Mercurius Politicus nesse momento de grande discussão demonstra o aspecto político dos seus anúncios. Mais do que uma escolha que visava o lucro comercial com ambos os títulos, o interesse de Nedham e Chapman na promoção desses títulos indicava seu posicionamento dentro dos debates coetâneos. Era fundamental que a obra circulasse não apenas para ampliar as vendas do livreiro da Crown, mas para difundir as ideias republicanas 2851

das quais Chapman, Nedham, Milton e Rogers partilhavam. As propagandas, desta forma, eram empregadas para amplificar sua perspectiva política, buscando aumentar a leitura dessas reflexões e angariar apoio à sua causa. Embora tenham advogado fortemente em favor do republicanismo, esses personagens foram vencidos em 1660, quando Carlos II retornou à Inglaterra para assumir o trono 33. Mesmo assim, alguns sectários religiosos e republicanos ainda tentaram defender seu projeto político. Milton, por exemplo, escreveu The readie & easie vvayv to establish a free Commonwealth, publicado por Chapman e anunciado no periódico de Nedham em março de 1660. O texto argumentava sobre a necessidade de proteger as liberdades, que ficavam em risco com a retomada da monarquia34. As tentativas de promover textos e discursos republicanos como esse foram suprimidas fortemente por Carlos II assim que ele assumiu o controle sobre a imprensa, perseguindo aqueles que confrontassem seu governo. Chapman ainda se opôs ao rei e adotou abordagens mais radicais nos primeiros anos da Restauração, unindo-se a outros tipógrafos, encadernadores e livreiros para difundir panfletos que vociferavam contra a monarquia, mas seus esforços foram reprimidos pelos sistemas censores. Depois das sucessivas prisões e multas, o livreiro terminou seus dias na pobreza35. Os panfletos, livros e anúncios apresentados aqui permitem-nos notar uma dimensão política da atividade editorial. As propagandas emitidas por Chapman não foram escolhidas aleatoriamente, mas levavam em consideração as ideias que ele tinha interesse em difundir. Ao mesmo tempo, elas evidenciam as relações comerciais, políticas, religiosas e editoriais que o livreiro alimentava com milenaristas, pentamonarquistas e republicanos. Os jornais nos quais Chapman publicou seus anúncios eram de personagens associados a perspectivas político-religiosas semelhantes às suas, sendo assim, a interlocução que estabeleceu com Ibbitson e Nedham eram essenciais para amplificar os debates que ocorriam nos textos que vendia, possibilitando que o livreiro atingisse um público mais amplo. Ao publicar e anunciar obras que confrontavam a monarquia Stuart e, em meados dos anos 1650, o Protetorado, Chapman estava interessado em difundir ideias nas quais acreditava, posicionando-se em um amplo debate político-religioso na Inglaterra revolucionária. O seu caso, neste sentido, aponta como os livreiros podiam ser movidos por outros comprometimentos que não única e exclusivamente o lucro. As escolhas sobre o que publicar e como o fazer não estavam, portanto, apenas imbricadas às considerações sobre o mercado de livros, mas em muitos momentos, também se remetiam aos projetos políticos e religiosos dos personagens que tornavam os textos públicos36. Cf. MCKENZIE, D. F. “Printing and publishing 1557-1700: constraints on the London book trades”. In: BARNARD, John; MCKENZIE, D.F.; BELL, Maureen (eds.). The Cambridge History of the Book in Britain, 1

2852

vol.4. Cambridge: Cambridge University Press, 2002. RAYMOND, Joad. Pamphlets and pamphleteering in early modern Britain. Cambridge: Cambridge University Press, 2004. 2 Cf. English Short Title Catalogue: , último acesso em 21/09/2015. 3 HILL, Christopher. O século das revoluções, 1603-1714. São Paulo: Unesp, 2012. p.122-125. HILL, Christopher. O mundo de ponta-cabeça: idéias radicais durante a Revolução Inglesa de 1640. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p.109. 4 MCKENZIE, D. F. (ed.). Stationers’ Company Apprentices, 1641-1700. Oxford: The Oxford Bibliographical Society, 1974. p.2. 5 BLAYNEY, Peter W. M. The Bookshops in Paul’s Cross Churchyard. London: The Bibliographical Society, 1990. PORTELA, Manuel. O Comércio da Literatura. Lisboa: Antígona, 2003. RAYMOND, (ed.). The Oxford History of Popular Print Culture. Vol 1: Cheap Print in Britain and Ireland to 1660. Oxford: Oxford University Press, 2011. CAMBERS, Andrew. Godly reading: print, manuscript and puritanism in England, 1580-1720. Cambridge: Cambridge University Press, 2011. p.194-195. 6 PROB 11/196/157. 7 JOHNS, Adrian. The Nature of the Book: print and knowledge in the making. Chicago/London: The University of Chicago Press, 1998. p.75-79. 8 BELL, Maureen. “Hannah Allen and the development of a puritan publishing business”. Publishing History, 26, 1989. pp.5-66. 9 BELL, Maureen. “Chapman, Livewell (fl. 1643–1665)”, Oxford Dictionary of National Biography, Oxford University Press, 2004. Disponível on-line em: , acessado em 18/12/2014. 10 JOHNS, Adrian. Op. cit. MCDOWELL, Paula. The Women of Grub Street: press, politics, and gender in the London literary marketplace, 1678-1730. Oxford: Clarendon Press, 1998. p.38. 11 Cf. CAPP, Bernard. Fifth Monarchy Men: a study in seventeenth century English millenarianism. London: Faber Finds, [1971] 2008. HILL, Christopher. Op. cit., 1987. HILL, Christopher. O eleito de Deus: Oliver Cromwell e a Revolução Inglesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. 12 Há registros de que Chapman participou das reuniões pentamonarquistas pelo menos entre 1656 e 1658. Informações obtidas por meio de um diário manuscrito das reuniões, localizado na British Library. BL, Add. MSS 4459: 1638-1755 vol.II, p.111-122. No início do século XX, Champlin Burrage transcreveu e publicou as anotações em BURRAGE, Champlin. “The Fifth Monarchy Insurrections”. The English Historical Review, Vol.25, n.100, 1910. pp.722-747. De acordo com Burrage, presumivelmente, as notas foram escritas por Thomas Venner, um dos líderes pentamonarquistas radicais, que organizou duas sublevações armadas contra o governo, uma em 1657 e outra após a Restauração da monarquia, em 1661. 13 HARRIS, Michael. “Timely Notices: the use of advertising and its relationship to News during the late seventeenth century”. In: RAYMOND, Joad (ed.). News, Newspapers, and Society in Early Modern Britain. London: Frank Cass Company Ltd., 1999. p.142. HARRIS, Michael. “Printed Avertisements: some variations in their use around 1700”. In: MYERS, Robin; HARRIS, Michael; MANDELBRONTE, Giles (eds.). Books for Sale: the advertising and promotion of print since the fifteenth century. New Castle: Oak Knollys Press, 2009. p.57. 14 Dados obtidos a partir do levantamento de impressos produzidos por Chapman e Ibbitson entre 1651 e 1665. Cf. o catálogo English Short Title Catalogue: , último acesso em 21/09/2015, e a base de dados Early English Books Online: , último acesso em 21/09/2015. TUBB, Amos. “Independent presses: the politics of print in England suring the late 1640s”. The Seventeenth Century, 27:3, 2012. pp.287-312. p.297. Cf. jornais editados por Ibbitson em , acessado em 22/09/2015. 16 Severall Proceedings in Parliament, 114 (1651), p.1772. 17 POWELL, Vavasor. Saving faith set forth in three dialogues, or Conferences… London: printed by Robert Ibbitson for Livewell Chapman, at the Crown in Popes-head Alley, 1651. 18 BROWN, Louise Fargo. The Political Activities of the Baptists and Fifth Monarchy Men in England During the Interregnum. Washington: American Historical Association, 1912. p.12. 19 BEN ISRAEL, Menasseh. The hope of Israel... London: by R[obert]. I[bbitson]. for Hannah Allen, at the Crown in Popes-head Alley, 1650. BEN ISRAEL, Menasseh. Hope of Israel... London: printed by R. I[bbitson]. for Livewell Chapman at the Crown in Popes-Head Alley, 1651. HESSAYON, Ariel. “Gold tried in the fire”: the prophet Theauraujohn Tany and the English Revolution. Hampshire: Ashgate, 2007. p.148. 20 Cf. HESSAYON, Ariel. “Jews and crypto-Jews in sixteenth and seventeenth century England”. Chromos, 16, pp. 1-26, 2011. HESSAYON, Ariel. Op. cit., 2007. 21 BEN ISRAEL, Menasseh. Hope of Israel... London: printed by R. I[bbitson]. for Livewell Chapman at the Crown in Popes-Head Alley, 1652. 22 Chapman publicou 15 trabalhos de Tillinghast, dentre os quais sete eram primeiras edições e oito eram reimpressões. Possivelmente, nove desses textos eram póstumos. Dados obtidos por meio da consulta à base de dados Early English Books Online e ao catálogo English Short Title Catalogue. 15

2853

“Books lately Printed, and sold by Livewell Chapman”. Tradução livre. TILLINGHAST, John. Knovvledge of the times.... Printed at London by R.I. for L. Chapman, and are to be sold at the sign of the Crown in Popes-head Alley, 1654. s.n.p. 24 Cf. HILL, Christopher. Op. cit., 1988. 25 FEAKE, Christopher. The new non-conformist… Printed at London: for Livewel Chapman, at the Crown in Popes-head-Alley, 1654. SPITTLEHOUSE, John. Certaine queries propounded to the most serious consideration of those persons novv in povver... London: printed for Livewell Chapman in Popes-head Alley, 1654. SPITTLEHOUSE, John. An answer to one part of the Lord Protector’s speech... London: for Livewel Chapman at the Crown in Popes-head-alley, 1654. PRO SP 25/75/585, 591. 26 Cf. CAPP, Bernard. Op. cit. 27 BURRAGE, Champlin. Op. cit., p.726, 729,731-734. 28 HARRINGTON, James. The common-wealth of Oceana. London: printed by J. Streater, for Livewell Chapman, and are to be sold at his shop at the Crown in Popes-Head-Alley, 1656. SCOTT, Jonathan. Commonwealth Principles: republican writing of the English Revolution. Cambridge: Cambridge University Press, 2007. p.63. 29 Cf. SCOTT, Jonathan. Op. cit. MAYERS, Ruth E. 1659: the Crisis of the Commonwealth. Suffolk: The Boydel Press, 2004. 30 MILTON, John. Considerations touching the likeliest means to remove hirelings out of the church. London: printed by T. N[ewcomb]. for L. Chapman at the Crown in Popes-head Alley, 1659. Mecurius Politicus, 585 (1659), p.713. Mercurius Politicus, 591 (1659), p.809. 31 ROGERS, John. Diapoliteia. A Christian concertation with Mr. Prin, Mr. Baxter, Mr. Harrington, for the true cause of the Commonvvealth… London: printed for Livewel Chapman, at the Crown in Popes-Head-Alley, 1659. 32 SANTOS JUNIOR, Jaime Fernando dos. John Rogers e a disputa pela Commonwealth: debates e polêmicas com William Prynne, Richard Baxter e James Harrington, durante a segunda república inglesa. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de São Paulo, 2014. p.17-23. 33 HUTTON. Ronald. The Restoration: a political and religious history of England and Wales 1658-1667. Oxford: Oxford University Press, 2001. Chap. 4: “The Road to Restoration”. HILL, Christopher. Op. cit., 2012. p.126-128, 151-154. 34 MILTON, John. The readie & easie vvay to establish a free Commonwealth… London : printed by T[homas]. N[ewcomb]. and are to be sold by Livewell Chapman at the Crown in Popes-Head Alley, 1660. Mercurius Politicus, 610 (1659), p.1151. WORDEN, Blair. Literature and Politics in Cromwellian England: John Milton, Andrew Marvell, Marchmont Nedham. Oxford University Press, 2007. p.334-335. 35 SMITH, Francis. An account of the injurious proceedings of Sir George Jeffreys Knt late recorder of London against Francis Smith... London: Printed for Francis Smith, at the Elephant and Castle in Cornhill near the Royal Exchange, [1680]. p.19. GREAVES, Richard L. Deliver us from evil: the radical underground in Britain, 16601663. Oxford: Oxford University Press, 1986. Chap.: “‘Yet One Warning More’: The Radical Press”. 36 GREEN, Ian. Print and Protestantism in Early Modern England. Oxford: Oxford University Press, 2000. p.1619. 23

2854

Um olhar português sobre a cultura italiana setecentista: Ópera, música e cultura italianas no epistolário da Marquesa de Alorna com a Condessa de Vimieiro Victor Emmanuel Teixeira Mendes Abalada1

Resumo: O trabalho visa apresentar uma análise do epistolário entre a Marquesa de Alorna e a Condessa de Vimieiro que busque ressaltar os diálogos intertextuais com a cultura italiana ali presentes. Ainda que ambas não possam ser vistas como figuras portuguesas “comuns”, dado que nobres frequentadoras de um cosmopolita círculo intelectual, procura-se identificar não apenas elementos oriundos da cultura italiana em seus escritos, mas, principalmente, a função que exercem dentro e fora do texto, no universo intelectual e musical português. Palavras-chave: Epístolas – Ópera setecentista em Portugal – Cultura italiana Abstract: The paper aims to present a brief analysis of the letters exchanged between the Marquise of Alorna and the Countess of Vimieiro, emphasizing on the intertextual dialogues there found. Though neither can be seen as an “ordinary” Portuguese figure, both being noblewoman with penetration in international cosmopolite circles, it is through their writings that one tries to expose not only elements of Italian culture presente in Portugal, but, most importantly, through them, the intelectual and musical horizons of eighteenth-century Portugal. Key-words: Letters – Eighteenth-century opera in Portugal – Italian culture

A lacuna é uma exasperante e frutífera variável inerente à operação da escrita da história. As razões pelas quais um historiador pode chama-la de exasperantes são múltiplas e óbvias: a falta de registros, de informações, de documentos, não apenas atingem a utopia de uma historia total, como relegam à hipóteses incomprováveis ou ao silêncio eterno toda uma serie de questões. Porém, essa falta é, incongruentemente, frutífera à sua própria maneira, pois move o pesquisador a tentar obter, se não respostas, indícios, capazes de apaziguar as ausências, nos locais mais incomuns. Sob certo ponto de vista, trabalhar com a historia da ópera em Portugal no século XVIII é um exemplo perfeito para esse caso. Sim, tem-se material o suficiente para cronologias (embora provavelmente incompletas ou com pontos questionáveis), os libretos impressos abundam e são fonte inesgotáveis de pesquisa, mas, por exemplo, àqueles interessados em um estudo musicológico stricto sensu, muitas vezes faltam as partituras

2855

(como é o caso dos que trabalham com as obras d’O Judeu), e, para os estudos da recepção e similares, não deixam de faltar testemunhos, registros referentes a esses espetáculos, especialmente em uma época anterior tanto à afirmação da imprensa, quanto ao surgimento da crítica especializada, frutos do século XIX. Obviamente, temos relatos de estrangeiros, fontes inesgotáveis no que tange a observação de todos os pontos da vida sócio-cultural portuguesa do período. Porém, o olhar de fora é tanto temporalmente esparso e pontual, de maneira que não é capaz de separar ao certo o extraordinário e o regular, quanto apresenta uma visão estranha, de fora, não inserida e versada nas peculiaridades dos costumes, hábitos, culturas e tradições locais. Além de se expressar dentro de padrões daquilo que se tornou um estilo literário em si mesmo, o que significa a presença de lugares-comuns capazes de dificultar a separação entre um topos literário e a observação de uma realidade. A polissemia da questão do trabalho com os relatos de viagem pode ser resumida pelas observações de Vanessa Agnew, que reconhece que a viajem apresenta-se como “a site where alliances could be formed and conflicts articulated, a site of co-optation where traveler and traveled competed over the interpretation of the journey and over the broader uses to which such interpretations could be put”2. Assim, da mesma maneira que os relatos de viagem de estrangeiros em Portugal apresentam-se como fontes de grande interesse, relatos de portugueses no exterior também se demonstram obras de grande valia e mais um aliado para contornar a tenebrosa questão da relativa escassez de testemunhos acerca da questão da ópera no Portugal setecentista, pois a visão que apresentam terá sempre como referência sua cultura de origem, assim como um ideal próprio ao qual o autor deseja inserir Portugal. Entretanto, tais relatos não apenas apresentam-se como relativas raridades (especialmente aqueles que fazem menção à ópera e à música), como, também, são de difícil acesso, consistindo – ao menos no caso das viagens à Itália –, em sua maioria, em relatos de embaixadores ainda pouco explorados e guardados em arquivos portugueses, sem jamais terem ganhado uma edição impressa à época ou posteriormente, sob forma de estudo criterioso. Assim, na tentativa de contornar, remendar e preencher lacunas, o pesquisador se embrenha em fontes cada vez mais “incomuns”, cujo interesse não é, à primeira vista, tão óbvio, mas cujas alternativas a são inexistentes. Pode-se argumentar que somente desta forma, o epistolário compilado entre cerca de 1771 e 1777 de Lília e Tirse, como, de forma pastoril, assinam, ou melhor, entre, respectivamente, a Marquesa de Alorna e a Condessa de Vimieiro, como designam seus mais ilustres títulos, pode ser alvo de maior interesse para os estudos acerca da ópera em Portugal. Isto se deve a uma série de fatores: a singular posição social de ambas, a não-ligação imediata com os palcos ou a música das correspondentes, ainda que 2856

vultosas figuras do ciclo literário, e a questão do próprio gênero, que não apenas, em um olhar mais amplo, excluiu as mulheres da escrita da história, como, dentro do contexto específico do Portugal de sua época, tornou complicada a relação das mulheres com os teatros, ora permitindo, ora restringindo seu acesso, dentro e fora dos palcos, mas sempre obedecendo rígidas regras de separação de sexos. Some-se a isso a reclusão imposta à futura Marquesa no convento de Chelas desde os 8 anos e podemos, e sob um olhar mais limitado, está colocada em cheque o interesse de tal documentação para a temática em questão. A que tipo de questionamentos tal corpus documental poderia responder? Por que seria ele relevante? O que poderiam estas duas damas nos falar de um mundo com o qual seu contato parece, no mínimo, a priori, difícil? Quem são e qual o seu lugar de fala e o que o mesmo pode nos apontar? Leonor de Almeida tem, enquanto figura feminina, lugar único na história e na história da literatura portuguesa setecentista, sendo comumente a única intelectual do sexo feminino lembrada do período, especialmente por sua produção poética. Nascida em 1750, teve seus avós executados publicamente em 1758, pela imputação do crime de lesa-majestade, e, assim, foi encerrada em um convento desde a tenra idade, ocupando seu tempo na leitura, no estudo e na escrita. A proximidade de seus poucos visitantes com os meios literários levam a concluir que, em parte, foram eles os responsáveis pela aproximação de D. Leonor destes e, claro, pela divulgação de seus escritos para além dos muros do convento. Em 1778, desposou, contra a vontade de seu pai, mas com o apoio da própria rainha, D. Maria I, o conde de Oeynhausen, oficial alemão da casa de Schaumburg-Lippe, que, através dos contatos da esposa (uma vez apaziguado, com a Viradeira, o escândalo que caíra sob os descendentes dos Távora), foi designado embaixador de Portugal na Áustria, movendo-se, então, o casal para a corte de Viena, onde a futura Marquesa de Alorna rapidamente inseriu-se nos círculos intelectuais. O contato entre D. Leonor e D. Teresa de Mello Breyner, a Condessa de Vimieiro, se estabeleceu, provavelmente, depois de haver uma troca regular de cartas entre D. Leonor e seu pai, D. João de Almeida Portugal. Se as missivas para o pai revelavam o contato com “o mestre que mais admira, o professor a quem mais procura impressionar” 3, as cartas trocadas com D. Teresa desvelavam outro tipo de relação que ia desde a mais tenra amizade e confidência até o mais diverso e elevado diálogo intelectual com uma mulher que conhecia um mundo do qual D. Leonor estava fisicamente excluída. Onze anos mais velha que D. Leonor, casada desde 1767 com D. Sancho de Faro, também ela pertencente à família Távora, D. Teresa de Mello Breyner parecia, como sugere Raquel Bello Vásquez e torna a ressaltar Teresa Sousa de Almeida, estar “voluntária ou involuntariamente afastada da Corte”4, passando a maior parte de seu tempo em Estremoz.

2857

Isso não significa que não participasse ativamente da vida intelectual portuguesa – ainda que seu nome pouco seja mencionado na posteridade. Poeta, teve lições de Cândido Lusitano, pseudônimo arcádico de Francisco José Freire, e mantinha relações próximas com membros da Arcádia Lusitana. O epistolário reunido por Vanda Anastácio e aqui analisado se restringe, como já mencionado, ao período entre 1771 e 1777, ainda que referências a correspondências posteriores sejam extraídas do trabalho de Antia Cortiças Leira 5. Isso significa que as cartas analisadas foram escritas, praticamente em sua totalidade, no período em que D. Leonor esteve em Chelas: obviamente, isso significava uma série de restrições por parte das correspondentes. Curiosamente, não tanto de temáticas ou títulos e autores comentados, tendo ambas tido acesso a autores proibidos (como os sediciosos philosophes franceses, ainda que D. Leonor demonstre-se muito mais ousada que sua amiga), mas na própria linguagem adotada. Isto se deve tanto ao caráter ao mesmo tempo privado e público deste tipo de produção escrita, pois, embora endereçada a uma única pessoa, a carta podia ser compartilhada e lida para uma série de outras, o que significava uma importante preocupação do quê e como podia ser dito, quanto a posição de ambas as mulheres em questão, descendentes dos Távora, creditados culpados pelo atendado a D. José I, que tornava-as alvo de curiosidade e suspeita por parte de todos, de maneira que toda correspondência corria o risco de estar sob vigilância e a égide da ávida indiscrição de terceiros. Assim, tanto os integrantes do círculo de relações direto, quanto importantes figuras políticas e autores ganhavam pseudônimos ou nomes convencionados, tudo escrito em “linguagem propositadamente obscura”6, como adjetiva Vanda Anastácio, para que a inteligibilidade do texto fosse exclusiva daqueles que estivessem devidamente contextualizados, a par do “léxico íntimo”7 criado. Tal situação acarretava em diversos pedidos por parte de D. Teresa de que determinadas cartas fossem destruídas após serem lidas. Na contramão, em carta datada de 14 de janeiro de 1777, D. Leonor pedia à Condessa que, “se acaso a favor da amizade”8 conservava a amiga alguma de suas cartas, que lhe as enviasse de volta. Esta atitude, conjuntamente com alterações, riscados e correções nos manuscritos, que continham vestígios de terem sido estado as folhas cosidas, formando um volume, fizeram com que Vanda Anastácio especulasse sobre o desejo da futura Marquesa de publicar esta seleção de missivas. No entanto, grande cuidado que teve D. Leonor ao escolher o que publicaria em vida, seguindo os critérios de obras que seriam “politicamente útieis, didácticas e de edificação”9, suscitou, para a própria pesquisadora, questões subjacentes que permanecem sem respostas.

2858

Ainda assim, o ambíguo quadro maior, entre o segredo e a divulgação, vem a ressaltar o caráter duplo dessas missivas e sua inserção em um contexto cosmopolita, no qual a correspondência é forma de contato com grupos de intelectuais ao redor da Europa. O cosmopolitismo setecentista, seja ele caracterizado como Ilustrado ou não, apresenta-se como denominador comum em meio à pluralidade de pensamentos, consistindo em uma atitude mental que perpetuava uma tradição de princípios e discussão políticos, filosóficos, religiosos e sociais e se via, em meia às Luzes, “grappling with its further implications on science and economics”10, como aponta Thomas Schlereth. Pode-se dizer que, certamente, essa visão multifacetada e problematizadora, em diferentes níveis, que compõe o pensamento cosmopolita, vai ao encontro da própria maneira como a futura Marquesa encarava o conhecimento, demonstrando em suas cartas, de acordo com Teresa Sousa de Almeida, “a preferência por um conhecimento universal, não restrito a uma única ciência. A poesia (mesmo a sua) tinha um lugar relativamente restrito dentro das suas preocupações intelectuais”11. Entretanto, foi das questões poéticas que floresceu, primeiramente, suas discussões com Teresa de Mello Breyner e, nesse sentido, o epistolário mantido entre ambas acaba servindo como testemunhos da formação e desenvolvimento intelectual das duas mulheres, bem como exemplo da formação intelectual (feminina) portuguesa, suas fronteiras e como ultrapassá-las. Para além dos estudos básicos que lhes haviam sido providos, em sua maioria, por religiosos, com noções de latim, francês e italiano, essas mulheres traçaram um caminho de auto-didatismo consequente do fato de serem ávidas leitoras. Utilizando-se da generalização feita por Vanda Anastácio no artigo “Women and literary sociability in eighteenth-century Lisbon”12, a partir de estudos de casos, a intelectual setecentista, a exceção do caso de D. Leonor, via sua participação no campo intelectual como dependente do casamento e “tutelagem” do marido, ainda que seus conhecimentos fossem construídos independentemente. Em comum a todos os casos estava a consciência e aceitação das amarras sociais impostas, encaradas com uma atitude ambígua de respeito e ironia com relação às questões do público/privado e estereótipos femininos. Neste sentido, pode-se perceber a penetração de D. Leonor nos círculos de Viena, embora posterior ao período que o corpus documental nos permite melhor observar, como tendo representado mais um passo em direção à prática do cosmopolitismo, assim como a obtenção de um novo status intelectual para ambas as correspondentes, conferido à Alorna pelo contato direto com muitos daqueles sobre quem comentara em suas cartas, e à Vimieiro

2859

pelo seu contato com uma fonte direta de um centro de produção cultural e intelectual, inserindo-a em um grupo de relações epistolares de elites mais amplo. Em ambos os casos, figura-chave na sua inserção nesses novos ciclos, validando sua entrada, parece ter sido o Duque de Lafões, D. João Carlos Bragança, cujo palácio em Viena era, de acordo com Teófilo Braga, entre 1767 e 1777, “o centro onde se encontravam os primeiros artistas do século, como Gluck, Metastasio, Hasse, Faustina Bordoni, Burney, o célebre crítico inglês, Costa e o próprio Mozart, recebido nos seus salões aos doze anos de idade”13. Interessante notar dentre os artistas mencionados por Braga a quase totalidade de pessoas ligadas à música. Se não compositores ou intérpretes eles mesmos, há entre os nomes gente como Pietro Metastasio (1698 – 1782), principal poeta da época, cujos libretos serviram de base para centenas de óperas e cuja estrutura definida para estes moldou a produção operística italiana da maior parte do século XVIII. Não seria absurdo colocar Metastasio como o mais influente nome da ópera setecentista, mesmo pelo fato de diversos teóricos da época encararem a ópera enquanto drama e texto, não sendo raros os que viam na música, ou pelo menos o foco excessivo nela, uma deturpação. Metastasio foi o autor mais encenado e traduzido no Portugal setecentista. Suas aparições nos palcos e nas páginas podiam se dar tanto segundo sua forma habitual, quanto em adaptações “ao gosto português”, o que significava que essas traduções tratavam de incluir:

no entrecho original vários pares cómicos de criados e criaditas (os graciosos de Lope), mesmo nas peças de conteúdo mais trágico, e os enredos serão torcidos no sentido de manterem bem nítidas, a todo custo as linhas da moralidade, do pundonor, do cavalheirismo hispânico.14

Até que ponto qualquer uma das duas damas travou contato com este tipo de adaptação, permanece incerto, porém, Metastasio constava como uma das referências mais frequentes nas cartas que trocavam. Maior autoridade certamente seria investida à Condessa de Oeynhausen, quando de seu encontro com um já ancião Metastasio. O epistolário do poeta conserva, inclusive, uma carta endereçada à D. Leonor, datada de abril de 1781, na qual a parabeniza por versos que ela havia escrito com base em outros seus e se desculpa por não lhe prestar as devidas homenagens de gratidão e respeito pessoalmente, mas essa seria “una delle più dolorose conseguenze della grave età mia e della mia tiranna e sempre incerta salute”15.

2860

Ainda assim, seu nome ou, pelo menos, suas obras são referências recorrentes no epistolário entre D. Leonor e D. Teresa muito antes de tal encontro. D. Teresa, em especial, faz referência a Metastasio em muitíssimas cartas. Já na primeira epístola de Tirse a Lília em que o poeta aparece, datada de 31 de Janeiro de 1771, seus traços parecem ir além da menção direta, como podemos observar nesse fragmento:

Não minha senhora, não pode ser trocar-se a fidelíssima Lília é impossível, nem ainda pela terna, delicada e piedosa Márcia [nome convencionada para referir-se à irmã de D. Leonor, D. Maria de Almeia Portugal]. Il cor, che ti donai se non mel rendi oh Dio! / Non può cangiar desio, / non può mancar di fé. Sigura-me tu, na suave prisão de tua amizade, se receias, que ele se rebele contra a sua fortuna, e podes estar certa de que eu direi com Metastasio Se per tutti ordine amore / cosi amabili catene, / é ben misero quel core, / che non vive in servitù.16

Percebe-se neste trecho não apenas uma citação direta do poeta (apesar da troca que a condessa faz entre “ordisce” por “ordine”), utilizando o texto da ária de Ulania do dramma L’ereoe chinese, estreado em no palácio de Schönbrunn em 1752, em versão musicada por Giuseppe Bonno, como a presença de outro trecho em italiano, sem atribuição de autoria. Tal trecho, no entanto, parece constituir uma variação do texto do recitativo de Argene no ato II, cena IV de L’Olimpiade17, libreto também de autoria de Metastasio, estreado em Viena a 1733, musicado pela primeira vez por Antonio Caldara. De qualquer maneira, é interessante notar neste exemplo a transição natural entre as línguas feita por D. Teresa, seu domínio do italiano e, mais importante, a maneira como o utiliza. Os trechos em italiano, tanto o presente no exemplo dado, quanto outros ao longo das diversas cartas, têm, não raramente, autoria não creditada, o que torna mais difícil de traçar sua referência. Porém, nos casos em que isso é possível, é a trechos de obras de Metastasio que encontramos referência. Como exemplo, referências a Alessandro nell’Indie aparecem em cartas de Mello Breyner à futura Marquesa de Alorna datadas de 28 de junho de 177118 e 15 de janeiro de 177319. Neste último caso, utiliza-se do famoso texto da ária de Gandarte, “Mio ben ricordati”, tantas vezes musicado avulsamente, perpetuando sua popularidade ao longo do século XIX e tendo versões célebres escritas por Franz Schubert e Mikhail Glinka. Em todos os casos o que vemos é a utilização destes fragmentos para exprimir um sentimento, uma situação, uma experiência, um desejo, um estado emocional. Tal uso denota grande familiaridade não apenas com os escritos de Metastasio, mas com a língua italiana, uma vez que as citações, mesmo que não creditadas, ocorrem sempre na língua original – e não é demais especular que as variantes e os erros de grafia fossem devido à reprodução de tais trechos pela memória. Mais ainda, denota contato com a escrita para os palcos e mesmo com

2861

a música italiana (ou italianizante) em geral, frisando a associação entre cultura italiana e música e entre música e a expressão de sentimentos. De maneira que e o uso dessas citações não pode ser reduzido apenas ao desejo de situar-se dentro de redes de relações sociais e impor padrões, aspecto ressaltado por Antia Cortiças Leiras em seu artigo, pois revelam, também, a internalização de padrões culturais vigentes e o diálogo entre diferentes tipos de linguagem. Outros exemplos de recurso à música neste sentido estão quando a Condessa de Vimieiro faz referência à canzonetta “Nina”, de autoria discutida, embora durante muito tempo atribuída Giovanni Battista Pergolesi ou a Vincenzo Legrenzio Ciampi, como forma doce de acordar a “Márcia”, em carta de 28 de junho de 1771 20, ou ainda, fora do epistolário entre ambas, mas a ele ligado, no uso de referências e imagens musicais pela futura Marquesa em seus sonetos. A música é em seus poemas tema recorrente, caracterizada como consolo da solidão e do sofrimento, como demonstram, por exemplo, os sonetos [Enquanto Piério tocava flauta...], Às Musas e, claro, À Música21. O retorno à personagem da Alorna lembra que as referências a Metastasio não são exclusivas de sua correspondente, embora, com exceções como a carta de outubro de 1773 22, na qual, em meio a seu texto, inseria um trecho do Antigono metastasiano, o caráter que suas menções possuíam geralmente era diverso. D. Leonor fazia referência a Metastasio enquanto um modelo literário em discussão, mostrando, ao mesmo tempo em que o exalta, preferência por autores franceses, ingleses e alemães. Um desses exemplos está na crítica que faz da obra do poeta João Xavier de Matos (1730 – 1789), que considera um “pobre Rapsodista” que “bebeu e vomitou algumas passagens do Metastasio, e do [poeta e dramaturgo] Guarino [Guarini (1624 – 1683)”23. Através de curtas passagens como essa podemos perceber a penetração dos modelos poéticos e teatrais italianos em Portugal e seus artistas e intelectuais, não apenas pela crítica que faz D. Leonor, mas pelos elementos que aponta em seu criticado. O fato de muito da discussão decorrer a partir da poética de Nicolas BoileauDespréaux (1636-1711), à qual o drama metastasiano não deixava de representar uma resposta prática, ao longo das cartas, as posições de Lília e Tirse parecem ir se afastando, mantendo-se D. Teresa firme aos preceitos de Boileau e dos Clássicos, enquanto D. Leonor inclinava-se cada vez mais em direção à poética de Jean-François Marmontel (1723 – 1799) e dos franceses contemporâneos. Esse ponto, à sua maneira, explica a própria afeição de D. Teresa a Metastasio não apenas pelo que o autor realizou, mas pela formação que recebera com Cândido Lusitano, autor de uma poética altamente baseada em Ludovico Muratori, mestre de

2862

Metastasio e que escrevia em resposta à Boileau na Itália. A relação de Cândido Lusitano com a cultura italiana e a visão muratoriana da ópera como texto, cuja música era deturpação, levaram a escrever o que chamou uma “ópera portuguesa”, Olysses em Lisboa, mas para o qual, até onde foi possível averiguar, jamais foi fornecida música. Há, assim uma briga entre linguagens francesas e italianas que encontra vozes mesmo em Portugal. Entretanto, nada é tão preto e branco, uma vez que mesmo D. Teresa menciona, em correspondência tardia, de 26 de fevereiro de 1782, Christoph Willibald Gluck como seu compositor favorito, de maneira que escrevia: “quando eu canto pa. os que sentem, não escolho outra muzica, quando he só pa. os que ouvem qualqr me basta”24. Tal menção demonstra como mesmo que as óperas de Gluck – especialmente aquelas da reforma – não tivessem visitado, os palcos portugueses com frequência nos setecentos, a circulação de ideias e impressos deixava ao menos certa elite letrada à par das novidades intelectuais e musicais europeias. Da mesma maneira, também demonstra um jeito próprio de encarar a música por parte da Condessa de Vimieiro que se relacionava a ideia de fazer falar aos sentimentos cultivada por philosphes como Jean-Jacques Rousseau, que chegaria a escrever que a música de Gluck representava a ação prática de seus escritos – que, por sua vez, ironicamente, em muito derivavam do contato com a música italiana e os escritos metastasianos, que são referência constante no romance epistolar Julie ou La nouvelle Heloïse. Afinal, Gluck seria o compositor que, para ela, serviria às pessoas que sentem. A diferença entre sensibilidades e linguagens contrapõe a reação de D. Teresa de Mello Breyner àquela de D. Rodrigo de Souza Coutinho, conde de Linhares, que, quando de sua estadia em Paris, em 1729, no auge da disputa entre os partidários de Gluck, que representava, então, a ópera francesa – e que D. Rodrigo vinha a caracterizar negativamente –, e de Niccolò Piccini, representante da ópera italiana, escrevia à sua irmã um relato no qual caracterizava a música de Gluck como “huma muzica que, fazendo ainda mais bulha que a antiga francesa, tinha alguma couza de italiana, sendo comtudo pela maior parte no genero francez”25, ao passo de que tecia loas a Piccini. Transparecendo, assim, não apenas seu gosto pessoal, mas sua inserção no universo da linguagem, não demonstrando a abertura exibida por D. Teresa. Desta maneira, percebe-se que o epistolário Alorna-Vimieiro permite perceber nuances acerca das trocas culturais, da recepção de autores e mesmo de certa concepção maior vigente em Portugal acerca não apenas da ópera, mas da cultura italiana em geral. De tal modo que revelam a disputa, a penetração e a convivência entre diferentes linguagens,

2863

enquanto há, na base, uma distinta predominância da cultura italiana, que moldou as posturas culturais e intelectuais do reino ao longo do século XVIII. 1

Doutorando pelo Programa de História Política da UERJ, orientado pela Profa. Dra. Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]. 2 Tradução nossa: “um local onde alianças podiam ser formadas e conflitos articulados, um local de cooptação, no qual viajante e viajado disputavam acerca da interpretação da viajem e dos sentidos mais amplos para os quais tais interpretações podiam ser utilizadas.” Cf. AGNEW, Vanessa. Enlightenment Orpheus: The power of music in other worlds. Oxford: Oxford University Press, 2008, p. 22. 3 ALMEIDA, Teresa Sousa de. “Lília e Tirse”. In: ANASTÁCIO, Vanda (org.). Cartas de Lília e Tirse (1771-1777). Lisboa: Edições Colibri / Fundação das Casas de Fronteira e Alorna, 2007, p. XXVI. 4 ALMEIDA, Teresa Sousa de. “Lília e Tirse”. In: ANASTÁCIO, Vanda (org.). Cartas de Lília e Tirse (1771-1777), p. XXV. 5 LEIRA, Antia Cortiças. “A correspondência como meio de difusão do cânone: o caso de Metastasio e Gluck no epistolário Vimieiro-Oeynhausen”. In: ANASTÁCIO, Vanda (org.). Correspondências (Usos da Carta no Século XVIII). Lisboa: Edições Colibri, 2005, pp. 89 – 101. 6 ANASTÁCIO, Vanda. “As cartas de Lília e Tirse”. In: ANASTÁCIO, Vanda (org.). Cartas de Lília e Tirse (1771-1777), p. XVII. 7 ANASTÁCIO, Vanda. “As cartas de Lília e Tirse”. In: ANASTÁCIO, Vanda (org.). Cartas de Lília e Tirse (1771-1777), p. XX. 8 MARQUESA de Alorna. Carta 79: Lília a Tirse – [Chelas,] 14 de Janeiro de 1777. In: ANASTÁCIO, Vanda (org.). Cartas de Lília e Tirse (1771-1777), p. 152. 9 ANASTÁCIO, Vanda. “As cartas de Lília e Tirse”. In: ANASTÁCIO, Vanda (org.). Cartas de Lília e Tirse (1771-1777), p. XXII. 10 Tradução nossa: “às voltas com suas outras implicações na ciência e na economia”. Cf. SCHLERETH, Thomas J. The cosmopolitan ideal in enlightenment thought: Its form and function in the Ideas of Franklin, Hume, and Voltaire, 1694-1790. Notre Dame: The University of Notre Dame Press, 1977, p. XXV. 11 ALMEIDA, Teresa Sousa de. “Lília e Tirse”. In: ANASTÁCIO, Vanda (org.). Cartas de Lília e Tirse (1771-1777), pp. XXX-XXII. 12 ANASTÁCIO, Vanda. “Women and literary sociability in eighteenth-century Lisbon”. In: DIJK, Suzan van; GILLEIR, Anke; MONTOYA, Alicia C. Women writing back / Writing woman back: Transnational perspectives from the late middle ages to the dawn of the modern era. Leiden-Boston: Brill, 2010, pp. 93-111. 13 BRAGA, Teófilo. História da literatura portuguesa, 4º vol: Os árcades. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1984, p. 78. 14 LOPES, Óscar; SARAIVA, António José. História da Literatura Portuguesa. Porto: Porto Editora, [s.d.], p. 432. 15 Tradução nossa: “uma das mais dolorosas consequências da minha grave idade e da minha tirana e sempre incerta saúde”. Cf. METASTASIO, Pietro. A Eleonora di Oeynhausen – Vienna, da Vienna, 3 Aprile 1781. In: METASTASIO, Pietro. Lettere. 2005. Disponível em: < http://www.liberliber.it/mediateca/libri/m/metastasio/lettere_edizione_brunelli/pdf/letter_p.pdf >. Acessado em: 20/09/2015. 16 BREYNER, Teresa de Mello. Carta 4: Tirse a Lília – Estremoz, 31 de Janeiro de 1771. In: ANASTÁCIO, Vanda (org.). Cartas de Lília e Tirse (1771-1777), p. 10. 17 O texto do libreto segue: “Tutto, per pena mia, tutto rammento. / Che non mi disse un dì! / Quai numi non giurò! / E come, oh Dio! si può, / come si può così / mancar di fede?”. Cf. METASTASIO, Pietro. L’Olimpiade. 1997. Disponível em: < http://www.liberliber.it/mediateca/libri/m/metastasio/l_olimpiade/pdf/l_olim_p.pdf >. Acessado em: 05/10/2015. 18 BREYNER, Teresa de Mello. Carta 13: Tirse a Lília – Vimieiro, 28 de Junho de 1771. In: ANASTÁCIO, Vanda (org.). Cartas de Lília e Tirse (1771-1777), p. 39. 19 BREYNER, Teresa de Mello. Carta 18: Tirse a Lília – Vimieiro, 15 de Janeiro de 1773. In: ANASTÁCIO, Vanda (org.). Cartas de Lília e Tirse (1771-1777), p. 46. 20 BREYNER, Teresa de Mello. Carta 14: Tirse a Lília – Vimieiro, 28 de Junho de 1771. In: ANASTÁCIO, Vanda (org.). Cartas de Lília e Tirse (1771-1777), p. 41. 21 MARQUESA de Alorna. Sonetos: Introdução, organização e fixação do texto, notas e bibliografia de Vanda Anastácio. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007. 22 MARQUESA de Alorna. Carta 25: Lília a Tirse – [Chelas, Outubro de 1773]. In: ANASTÁCIO, Vanda (org.). Cartas de Lília e Tirse (1771-1777), p. 57. 23 MARQUESA de Alorna. Carta 05: Lília a Tirse – Chelas, 25 de Fevereiro de 1773. In: ANASTÁCIO, Vanda (org.). Cartas de Lília e Tirse (1771-1777), p. 16. 24 LEIRA, Antia Cortiças. “A correspondência como meio de difusão do cânone: o caso de Metastasio e Gluck no epistolário Vimieiro-Oeynhausen”. In: ANASTÁCIO, Vanda (org.). Correspondências (Usos da Carta no Século XVIII), p. 99. 25 COUTINHO, Rodrigo de Souza Coutinho. “À Mariana. Paris, 22 de Junho de 1779”. In: SILVA, Andrée Mansuy-Diniz. Portrait d’um homme d’État: D. Rodrigo de Souza Coutinho, Comte de Linhares, 1755 – 1812. Vol. 1, Les anées de formation, 1755 – 1796. Lisboa, Paris: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, p. 430.

2864

O projeto de desenvolvimento do regime militar nos estados da Guanabara e Rio de Janeiro: A intervenção governamental na constituição da Região Metropolitana do Grande Rio e Ponte Rio-Niterói Vinícius Martins Pereira1

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo expor um dos processos determinantes para o decreto da fusão entre os estados do Rio e da Guanabara em 1974, que foram o desenvolvimento da Região Metropolitana do Grande Rio e a construção da ponte RioNiterói durante o regime militar. Vamos procurar tratar sobre os aspectos políticoeconômico aplicados pelo governo federal nos estados. Palavras-chave: economia, política, região metropolitana, ponte Rio-Niterói Summary: This paper aims to expose one of the key processes to the decree of the merger between the states of Rio and Guanabara in 1974 were the development of the metropolitan region of Rio Grande and the construction of the Golden Gate Bridge during the military regime. We will seek deal on the political-economic aspects applied by the federal government in the states. Keywords: economics, politics, metropolitan area, Golden Gate Bridge

Introdução A ditadura militar brasileira é sem dúvida objeto de inúmeras pesquisas e publicações. Dentre elas, sobressaem as que centram seu caráter repressivo, expondo as razões, o aparato e os métodos utilizados no período para fazer calar qualquer voz opositora. Como é comum em qualquer tipo de governo, o regime militar apresentou suas ações para o desenvolvimento de obras públicas com a proposta de direcionar o país no caminho do progresso. Os militares buscaram o rodízio dos presidentes e tentaram construir um arcabouço legal com atos institucionais que ‘ocultassem’ sua ilegitimidade. (FICO, 1997, p. 95) O que mais chama atenção neste período da política brasileira, é o modo como se deu o esforço do governo federal em prol de “legitimar o ilegítimo” (SKIDMORE, 2000, p. 225), com a construção de obras faraônicas, como o caso da ponte Rio-Niterói.

1

Mestrando em história social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Faculdade de Formação de Professores Orientadora: Prof.ª. Drª. Cátia Antônia da Silva E-mail: [email protected]

2865

E a partir desse carácter que o regime militar impões de maneira arbitrária outros projetos como a construção das regiões metropolitanas em algumas áreas do país, tais como São Paulo, Belo Horizonte, Salvador, Porto Alegre, Recife, Curitiba, Belém, Fortaleza e Guanabara-Rio. Porém, no caso da região fluminense havia não somente interesses políticos com também econômicos, que fizeram com que regime agisse prontamente para manter sob o seu controle os estados do RJ e GB, onde o partido da oposição (MDB) se mantinha resistente. Assim, neste texto procuramos indicar determinadas intenções do governo federal durante o regime militar para o desenvolvimento capitalista da região, compreendendo o seu sentido e também apontando características determinantes da política dos estados. A soma dos heterogêneos: O projeto do Grande Rio e seus efeitos para fusão A constituição da Região Metropolitana do Grande Rio foi instituída pela Lei Completar nº 20 de 1º de julho de 1974, que também unificou os antigos estados da Guanabara e do Rio de Janeiro. Esta lei manteve os mesmos mecanismos de gestão apresentados na Lei Complementar nº 14 de junho de 1973. Figura 1

Fonte: Fundação Centro Estadual de Estatísticas, Pesquisas e Formação de Servidores Públicos do Rio de Janeiro (Ceperj).

2866

As Regiões Metropolitanas sempre estiveram vinculadas aos objetivos de centralização e controle do território, portanto marcas do autoritarismo. Este formato pouco pluralista contrariava frontalmente o clima do final dos anos 80 e a agenda da redemocratização. (SOUZA, 2004, p. 71) E a partir de uma estratégia centralista dos governos Costa e Silva e Médici com a perspectiva de integrar o planejamento e desenvolvimento econômico e social do país, que se dá início ao projeto de criação das regiões metropolitanas dirigidas a nove capitais brasileiras, que junto a outros projetos do governo daria início ao “milagre econômico.” (MENDONÇA, 1985, p. 45) O desenvolvimento das regiões metropolitanas está relacionado a ideia de espaço “como um meio, um instrumento, uma mediação, e que este é um instrumento político controlável, do Estado, de uma classe dominante, ou dos tecnocratas, mas também direcionada a reprodução da força pelo consumo.” (LEFEBVRE, 2008, p. 46) Assim, as regiões metropolitanas instituídas pelo governo seriam integradas a uma política urbana nacional. A própria viabilização do projeto das regiões metropolitanas no país, exigiu do governo federal a estruturação de um grande planejamento. Foi então que o governo fixou um modelo econômico no padrão produtivista. Segundo este padrão, “um país subdesenvolvido precisava criar as melhores condições possíveis para os investimentos, especialmente o estrangeiro, de modo a acumular suficiente capital para promover a arrancada do desenvolvimento econômico.” (ALVES, 1987, p. 146) Foi a partir de um desejo de centralização das forças políticas da GB e RJ, que o governo decretou a Lei Complementar nº 14 de 8 de junho de 1973, a criação das regiões metropolitanas no Brasil. No caso da RM do Grande Rio, a iniciativa do governo federal se inseria numa estratégia geopolítica do presidente Médici de descentralizar as atividades industrias alocadas na região metropolitana do estado de São Paulo e transformar o novo estado no segundo polo econômico do país. O projeto de desenvolvimento área metropolitana viabilizaria para o futuro novo estado do Rio quatorze municípios, que juntos formariam a segunda maior economia do país, perdendo apenas para região do ABC paulista em São Paulo. Porém, havia riscos no desenvolvimento região metropolitana, por tentar unificar a economia de dois estados tão distintos. De antemão o governo federal estava assumindo um risco, pois

2867

com a união da economia dos estados, “a dívida conjunta entre a GB e o RJ com a União atingiria um total de cerca de Cr$ 3 bilhões e 700 milhões.”2 Outro grande impasse em vista da implantação do Grande Rio era o repasse do ICM (Imposto de Circulação de Mercadoria). Para os técnicos da Secretaria Estadual de Planejamento, a Guanabara temia as consequências da instituição do Grande Rio, pois ao unir a economias das duas áreas o próximo passo seria à fusão entre os estados, o que acarretaria graves prejuízos para o governo da Guanabara, “tendo uma redução de 72,77% da receita orçamentária. A consequência seria o fato de que a Guanabara, após a fusão, seria transformada em município, ao qual caberia apenas 20% do total do ICM recolhido em sua área.”3 Mesmo diante dos problemas administrativo e econômico entre os estados, o governo não deixou de apoiar a ideia de construir a RM que proporcionaria à fusão entre o Rio e a Guanabara. Em um de seus discursos o presidente Médici se prenunciou a respeito, dizendo que o novo estado do Rio e seu governo “terá o respaldo do Governo Federal para a realização das grandes obras indispensáveis (...)”4 Se

comparada

as

outras

regiões

metropolitanas

que

estavam

em

desenvolvimento país a fora, a do Grande Rio foi a única que teve sua aprovação por diversas vezes adiada, em decorrência dos problemas de se unir duas áreas de estados diferentes. Tal proposta para criação da RM do Grande Rio, acabou gerando debates acalorados entre os políticos cariocas e fluminenses. Assim como o debate a respeito da fusão e suas consequências para a GB e o RJ, a questão da RM foi colocada em pauta entre os parlamentares. Políticos da oposição e de apoio ao governo federal, tinham opiniões muito diferentes a respeito do Grande Rio, tendo por vezes ocorrido debates sobre seus possíveis impactos na economia e política da região. Entre os defensores da criação da RM, havia o vice-governador da Guanabara, o sr. Erasmo Martins Pedro (MDB-GB). Para o vice-governador a criação da Região Metropolitana, seria a curto prazo a melhor solução para ambas as regiões, pois integraria o complexo econômico formado pelos dois estados, já que “o assunto fusão realmente apresenta tantas implicações de ordem social, econômica, financeira, política

2

GOVERNO inicia estudos sobre a fusão. O Globo, Brasília, 23 abr. 1973, p. 24. Idem. 4 MÉDICI promete todo apoio federal ao Estado do Rio. Jornal do Brasil, Brasília 20 de fev. 1974, p. 23. 3

2868

e histórica, que qualquer manifestação sem o exame de profundidade poderia ser leviana. Pessoalmente, julgo válida a experiência das Regiões Metropolitanas.” 5 Por outro lado, parlamentares como senador Nelson Carneiro (MDB-GB), achava que antes de tomar qualquer atitude que viesse a prejudicar a administração e a economia dos estados, era necessário estudar mais o projeto de Lei nº 14 que proporcionaria a criação da área metropolitana do Grande Rio. Segundo o parlamentar “ao seu ver, seria uma medida mais econômica, embora reconheça que a constituição de uma região abrangendo dois estados seja bastante complexa.”6 Embora neste momento fosse inconcebível para alguns parlamentares do Rio e da Guanabara preverem a Região Metropolitana e sua função na economia dos estados, a demora na tramitação do projeto de Lei Complementar nº 14 no Congresso Nacional, se demonstrou um ano após como indício efetivo de que a fusão estava por vir. Seria impossível que o governo federal simplesmente esquecesse o grande Rio quando partiu para a criação de áreas metropolitanas. Faltava o mecanismo legal que eliminasse o problema, que era a constituição de área metropolitana compreendia municípios e cidades de dois estados tão diferentes. Qualquer mudança implicaria uma interferência direta na autonomia dos estados, garantida pela Constituição de 1946. No entanto, a partir da Constituição de 1967, onde passou a ser de exclusiva competência da União a criação de estados e territórios no país, garantiu ao governo federal o poder de agir legitimamente para a criação do Grande Rio e posteriormente o novo estado do Rio. Logo, somente com a posse do presidente Ernesto Geisel, e a consequente aprovação no Congresso do projeto de lei da fusão entre a GB e RJ, é que se estabeleceu de fato a criação da área metropolitana. Porém, é preciso que fique claro, que a constituição do novo estado do Rio, apenas foi possível em decorrência da área metropolitana. Ponte Rio-Niterói: o primeiro pilar da fusão entre a Guanabara e o Rio A história do planejamento econômico no Brasil ganhou novos arredores a partir da tomada do poder pelos militares em 1964. Ainda que a política de industrialização

5 6

ERASMO prefere Região Metropolitana. O Globo, Brasília, 12 out. 1972, p16. SENADOR acha complexo. O Globo, Brasília, 10 mai. 1974, p. 8.

2869

brasileira adotada nas décadas anteriores não tinha sido literalmente modificada, a capacidade técnica acumulada durante esse período favoreceu para o aprofundamento do planejamento do governo que ganhou nova força, tendo a seu favor a preeminência incondicional do Poder Executivo, especialmente na década de setenta. Foi durante o governo do presidente Castelo Branco que se deu início ao projeto de restruturação da economia nacional. Castelo Branco qualificava o momento do país como “orgia inflacionária”, se referindo à política econômica do antigo governo (João Goulart), vindo este a assumir “a tarefa gigantesca de reconstruir economicamente o país”. Tendo em vista a correção dos problemas advindos da administração do governo Goulart, Castelo Branco desenvolveu o Programa de Ação Econômica do Governo, que tinha com objetivo de estabilizar a economia visando a aceleração do ritmo de desenvolvimento econômico do país. E foi durante esse processo de desenvolvimento econômico que se deu início a formação do elo entre os estados do Rio e da Guanabara, com a construção da ponte Rio-Niterói. Em 23 de agosto de 1968, quando o decreto foi assinado pelo Presidente Costa e Silva com apoio do Ministro dos Transportes Mário Andreazza, que foi possível pensar a construção da ponte Rio-Niterói. A partir desse momento a ponte Presidente Costa e Silva, conhecida popularmente como ponte Rio-Niterói, que ligaria os municípios do Rio de Janeiro aos de Niterói, se tornava uma realidade. Para a construção da ponte o governo federal estabeleceu o consórcio financeiro com o banco inglês M. Rotschild & Sons. Assegurado o financiamento da obra, o governo foi em busca de empresas nacionais e estrangeiras que pudessem oferecer o suporte necessário para a construção da ponte Rio-Niterói. Assim, a o governo federal e sua equipe de planejamento liderada pelo Ministro dos Transportes Mário Andreazza escolheram no início das obras “o Consórcio Construtor Rio-Niterói, formado pelas empresas Construtora Ferraz Cavalcanti, Construtora Brasileira de Estradas, Servix de Engenharia e Empresa de Melhoramentos e Construção.” (RAUTENBERG, 2011, p. 348) Iniciada em janeiro de 1969, a ponte Rio-Niterói surgiu como uma alternativa para os problemas econômicos nos dois estados. Seu desenvolvimento mais tarde seria atrelado a criação da Região Metropolitana, que juntos seriam responsáveis para fortalecer a ideia de unir o Rio e a Guanabara, tendo a seu favor o equilíbrio políticoeconômico. 2870

Figura 2

Fonte: Montagem do vão lateral da Ponte Rio-Niterói, mai. 1973. Foto: Rubens Seixas/Acervo O Globo.

Durante os primeiros meses da obra montou-se uma verdadeira cidade na baixada calorenta da Ponta do Caju, no Rio. “Onde havia apenas terrenos baldios surgiram fábricas de concreto, unidades de proteção de vigas, imensos depósitos de maquinarias e centros de processamento de dados. A ponte preparava-se para invadir o mar.”7 Mesmo com a posse de Emílio Garrastazu Médici em outubro de 1969, o andamento da ponte Rio-Niterói se manteve, porém a construção sofreria atraso. “Durante os últimos seis meses, teria se desenvolvido uma luta silenciosa e repleta de termos técnicos e documentada com plantas e equações sofisticadas envolvendo o consórcio construtor, a firma projetista – o escritório Antônio Alves Noronha Filho – e o DNER. Essa batalha movimentada evolui, segundo a revista, em pouco tempo, dos entendimentos ríspidos para os ofícios incisivos, até que no dia 1º de dezembro, o consórcio construtor perdeu parte da obra por decisão do conselho administrativo do DNER.”8 Assim, em fevereiro de 1971, tendo Consórcio Construtor Rio-Niterói descumprido o prazo para entrega de 30% da obra, fez com que o governo federal e o 7

A matéria publica pela Veja, dava a entender sobre as irregularidades na relação entre o governo e o consórcio construtor, através das afirmações da inexistência de qualquer notificação ou de multa contratual, o que reforçava indiretamente o pedido de uma CPI pela oposição. 8 RAUTENBERG, Edina. A REVISTA VEJA E AS EMPRESAS DA CONSTRUÇÃO CIVIL (19681978). 2011. p. 293. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Campus de Marechal Rondon, 2011.

2871

Ministro dos Transportes Mário Andreazza rescindissem o contrato, tendo transferido a licitação para o Consórcio Construtor Guanabara, formado pelas empresas Camargo Correa, Rabello S.A e Mendes Júnior que ficaram responsáveis pela finalização das obras. No entanto, os problemas provenientes da rescisão do contrato com o Consórcio Construtor Rio-Niterói responsável pela construção ponte, acabou gerando certa desconfiança sobre a condução da obra de responsabilidade do Ministro dos Transportes Mário Andreazza. Foi então, que diante dessa situação, o líder da oposição, o deputado Oscar Pedroso Horta (MDB-GB) solicitou a abertura de uma CPI para averiguar possíveis problemas orçamentários na construção da ponte Rio-Niterói. Para Horta “a oposição cumpria o imperioso dever, no exercício de sua função fiscalizadora, de averiguar o que ocorre no tocante à construção da aludida ponte. Assim, uma Comissão Parlamentar de Inquérito solucionaria a dificuldade com que nos defrontamos.”9 Contudo, para Abertura da CPI, era necessária a participação dos parlamentares da Arena, já que o número regimental exigido era de 103 deputados, onde o MDB tinha somente 87. Porém, o líder da Arena, o deputado Geraldo Freire (Arena-GB) deixou claro que nem ele ou qualquer parlamentar da Arena iria apoiar a abertura da CPI. Para Freire, a Comissão Parlamentar de Inquérito funcionaria apenas como instrumento de impacto a favor da oposição, que estava mais “interessada em promover escândalos do que conhecer a verdade.”10 Diante da impossibilidade da abertura da CPI, o deputado Lizáneas Maciel (MDB-GB), de quem partiu a ideia de constituição de uma comissão parlamentar de Inquérito sobre a construção da ponte Rio-Niterói, manifestou descrença quanto à possibilidade de levar adiante a iniciativa. A seu ver, o Governo deveria ser o primeiro a se interessar pelo esclarecimento dos fatos, para provar que “nada há de inconfessável”11. Considerações Preliminares Assim, este trabalho cumpri de maneira breve, a função de analisar a inserção da área metropolitana do Grande Rio e Ponte Rio-Niterói sob o contexto da fusão entre os 9

ANDREAZZA: Câmara saberá tudo sobre a Ponte Rio-Niterói. O Globo, Brasília, 03 mai. 1971, p. 22 QUEM apoiasse CPI da Ponte deveria abandonar a ARENA. O Globo, Brasília, 27 mai. 1971. p. 8. 11 CPI inviável. O Globo, Brasília, 03 fev. 1971, p. 7. 10

2872

estados do Rio e da Guanabara, onde se fez presente com a intervenção do regime militar. Na primeira parte, nos atemos a questão da área metropolitana do Grande Rio, tendo em vista que o seu projeto de desenvolvimento se demonstrou como precursor da fusão entre o Rio e a Guanabara. Procuramos esclarecer as propostas econômicas aludidas pelo governo federal para ambos os estados, tendo por ver vezes surgido o desagrado da oposição (MDB) sobre os possíveis impactos do projeto nos dos estados da União, o que levou ao adiamento do Grande Rio, quando aprovada a Lei Complementar nº 14, que se refere a criação das áreas metropolitanas e seus respectivos estados. Já na segunda parte, nos debruçamos sobre uma das obras faraônicas do regime militar, a ponte Presidente Costa e Silva, popularmente conhecida como ponte RioNiterói. A ponte Rio-Niterói possuía um caráter diferenciado em relação às outras obras (Transamazônica e a hidrelétrica de Itaipu) de mesmo período, por se tratar de uma obra que além de criar um elo econômico entre os estados do Rio e da Guanabara, seria após a sua conclusão, responsável confirmação da fusão. Cabe aqui ressaltar, que a decisão do governo federal no que diz aos projetos da RM do Grande Rio e ponte Rio-Niterói, se inserem em fatores mais amplos, que se caracterizam por uma tendência forte ao centralismo, o crescimento econômico e ao mesmo tempo a indiferença com política tradicional dos estados, o que facilitou a tomada de decisão pelo regime militar. Assim concluímos que, findada em março de 1974, a construção da ponte RioNiterói, seguida pela criação da RM do Grande Rio, sobre aprovação da Lei Complementar nº 20, que assegurava à fusão entre os estados do Rio de Janeiro e da Guanabara, foi que o governo federal conseguiu concluir o plano de integração políticoeconômico entre os estados, ao ponto que, as críticas sobre os projetos e propriamente à fusão entre o RJ e a GB começaram perder forças, já que era nítido naquele momento de que não havia mais nada a ser fazer.

2873

Fonte Jornal do Brasil 1974 O Globo 1970-1974 Revista Veja. Ponte vista do panorama. (Seção Brasil). Edição 126 - 03/02/1971. Leis, Decretos, etc. Lei Complementar nº20, de 1º/7/74. Dispõe sobre a criação de Estados e Territórios e a fusão dos Estados do Rio e da Guanabara. Diretrizes para o Desenvolvimento do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1975. Bibliografia ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e Oposição no Brasil (1964-1984). Petrópolis, Ed. Vozes, 4º edição, 1987. FICO, Carlos. Reinventando o otimismo: ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getúlio Vargas, 1997. LEFEBVRE, Henri. Espaço e política. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. MENDONÇA, Sonia Regina de.

Estado e economia no Brasil: opções de

desenvolvimento. Rio de Janeiro: Graal, 1985. RAUTENBERG, Edina. A REVISTA VEJA E AS EMPRESAS DA CONSTRUÇÃO CIVIL (1968-1978). 2011. 422 p. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Campus de Marechal Rondon, 2011. SKIDMORE, Thomas. Uma história do Brasil. Trad. Raul Fiker. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000. SOUZA, Celina. Regiões metropolitanas: condicionantes do regime político. Lua Nova – Revista de Cultura e Política, São Paulo, n. 59, 137-158, 2003.

2874

Acervos e documentação militar em arquivos públicos: o projeto de descrição do acervo da Secretaria de Estado e Negócios da Marinha do século XIX sob a guarda do Arquivo Nacional.

Wagner Luiz Bueno dos Santos Mestrando do PPGHIS-UFRJ Orientador Prof. Dr. Renato Luís do Couto Neto Lemos, Membro do Laboratório de Estudos sobre os Militares na Política – LEMP, Pesquisador da Diretoria Patrimônio Histórico e Documentação da Marinha. [email protected]

Resumo Este artigo pretende abordar o trabalho desenvolvido pelo Projeto de Descrição do Acervo da Secretaria de Estado e Negócios da Marinha, coordenado e supervisionado no Departamento de História da Diretoria do Patrimônio Histórico e Documentação da Marinha – DPHDM. Projeto que desde 2006 descreve o acervo documental produzido pela Marinha durante o século XIX que se encontra no Arquivo Nacional. O objetivo é facilitar o acesso àquela documentação com ferramentas de pesquisa contemplando a busca qualificada em eixos temáticos específicos.

Palavras-chaves: Militares, Marinha, Arquivo

Abstract This article aims to address the work developed by Project Department of the Collection Description of State and Navy Business, coordinated and supervised the History Department of the Directorate of History and Heritage Marine Documentation - DPHDM. Project that since 2006 describes the collection of documents produced by the Navy during the nineteenth century that is in the National Archives. The aim is to facilitate access to that documentation research tools contemplating qualified search on specific themes.

Keywords: Military, Navy, File

2875

Percebe-se significativo aumento do interesse por documentos produzidos por instituições militares intensificando assim a procura por arquivos e acervos documentais sob a guarda daquelas Instituições, este tem sido um dos caminhos percorridos pelos pesquisadores. Entretanto, documentos produzidos pelas Forças Armadas podem ser encontrados em arquivos públicos, fora das Instituições Militares. O aumento da procura está associado a crescente produção acadêmica sobre os militares e suas instituições e que vem ganhando força nos últimos anos, entretanto, o reflexo da historiografia moderna, caracterizada pelas múltiplas abordagens e domínios nos campos da história, exige dos historiadores um olhar mais seletivo e critico sobre as fontes. Estas têm sido as razões para elaboração de novas ferramentas de pesquisas que possibilitem a busca qualificada em eixos temáticos específicos em acervos que foram organizados cuja metodologia não atende às novas tendências historiográficas. A trajetória histórica do Arquivo da Marinha como espaço de memória é um exemplo da preocupação em organizar e guardar documentos. O Arquivo tem sua origem na criação de cartórios na estrutura organizacional do Arsenal de Marinha da Corte e da Secretaria de Estado e Negócios da Marinha, em 1834i e 1842ii, respectivamente. Esse processo seguiu a esteira da reforma da Administração Naval em meados do século XIX, que por sua vez fazia parte da reformulação administrativa e burocrática do Estado Imperial brasileiro. A subordinação dos cartórios coube ao Arsenal de Marinha e a Secretaria de Estado, pelo fato do Arsenal ser a grande organização industrial da força naval e de apoio administrativo ao Ministro da Marinha, e por sua vez, à Secretaria de Estado, que era o órgão responsável pelas principais decisões administrativas e operativas da Marinha. Assim, os cartorários que gerariam o Arquivo da Marinha exerciam funções correlatas a arquivos correntes, organizando a documentação de organizações militares com rotina administrativa complexaiii. Em 1907, sob o efeito da reforma na Administração Naval promovida pelo Ministro Almirante Alexandrino Faria de Alencar, foi criado um aparelho com a função de guarda duradoura dos documentos que tinham finalizado suas “vidas administrativas” em todos os órgãos vinculados ao Ministério da Marinha, congregando uma Diretoria da Biblioteca, um Museu e um Arquivo. O Decreto de criação definia que “O Archivo se destina à guarda e conservação de todos os documentos remettidos pelas inspectorias navaes e directorias”iv, contudo, não foi a partir da criação desta organização que a administração naval percebeu a historicidade do conjunto documental produzido ao longo do século XIX. Apesar de contar com um arquivo único para onde eram remetidos os documentos produzidos pelos seus diversos órgãos quando findava sua utilidade imediata, a Marinha ainda não percebia nos mesmos a função de testemunhos de seu passado. Embora contando com um aperfeiçoamento 2876

na estrutura, este Arquivo criado em 1907 manteve uma finalidade eminentemente administrativa, pois

Sua estrutura, voltada a um público interno, ainda não o classifica como um arquivo de pesquisadores, mas sim um arquivo administrativo, corrente e intermediário – porque ainda servia aos interesses de quem produzia os documentos (as repartições navais)v.

Somente em 1943, foi reconhecida a necessidade da guarda e publicidade do acervo documental da Marinha para demandas que excediam sua vida administrativa e entravam no campo da memória. Em 1943, foi criado o Serviço de Documentação da Marinha (SDM) vi, com a finalidade de conservar a memória e o patrimônio artístico da Marinha. Mas foi justamente sua função pública, de arquivo aberto a pesquisadores, que destacou as lacunas do Arquivo da Marinha quanto ao acervo documental dos oitocentos. Contudo, como afirmou Le Goff, o documento por si só não se faz suficiente para reconstrução do passado, segundo o historiador francês,

De fato, o que sobrevive não é o conjunto daquilo que existiu no passado, mas uma escolha efetuada quer pelas forças que operam no desenvolvimento temporal do mundo e da humanidade, quer pelos que se dedicam à ciência do passado e do tempo que passa, os historiadores. Estes materiais da memória podem apresentar-se sob duas formas principais: os monumentos, herança do passado, e os documentos, escolha do historiador.vii

Embora a criação do SDM tenha promovido um avanço em direção a disponibilização dos documentos, existia uma deficiência que dificultava o aprofundamento das pesquisas, a falta de uma ferramenta eficiente de pesquisa que facilitasse a entrada no acervo que agora se encontrava sob a guarda do Arquivo Nacional. Por outro lado, as pesquisas que se debruçavam sobre a Marinha no século XX, encontravam a sua disposição, sempre respeitando as políticas de acessoviii, séries documentais completas, abarcando documentação produzida por toda a gama de organizações militares que compuseram a estrutura do Ministério da Marinha.ix

No acervo do século XIX não é verificada a abrangência como nos períodos posteriores, encerrando-se nos registros de pessoal militar, os chamados Livros-Mestres, documentação normativa publicada nas Ordens Gerais ou Ordens do Dia do Quartel General da Marinha, relatórios ministeriais, atas do Conselho Naval, etc. Para o último quartel daquele século, já encontra-se documentação produzida por organizações militares mais complexas e de caráter mais duradouro, como séries documentais do Estado-Maior General da Armada, 2877

Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro, Batalhão Naval, escolas de formação e especialização de oficiais e praças e avisos e correspondência do Gabinete do Ministro, além dos livros históricos, de quarto e de socorros de alguns navios da virada do século. Contudo, estas lacunas não têm origem, simplesmente, na destruição dessas séries documentais, mas remetem à transferência da guarda das mesmas em períodos anteriores ao reconhecimento da necessidade de um Arquivo “Histórico” para Marinha, quando somente se avalizava a necessidade da guarda de documentação enquanto mantivesse função administrativa ou probatória. Assim, ao longo das décadas de 1910 e 1920x verificaram-se diversas transferências de documentos dos períodos colonial e monárquico para o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e para o Arquivo Nacional. Porém, as numerosas séries documentais enviadas para o Arquivo Nacional não poderiam ser esquecidas. Esse imenso conjunto documental constitui um único fundo no Arquivo Nacional, denominado “Série Marinha” e composto por dezoito subséries organizadas segundo arranjo arquivístico implementado por Henri Boullier de Branche na década de 1960xi, totalizando 448,43 metros lineares de documentos. A subsérie XM Ministro e Secretaria de Negócios Estrangeiros reúne a documentação recolhida do gabinete do Ministro da Marinha e a Navios, é a maior do conjunto, com mais de 100 metros lineares. É neste conjunto documental que se concentra grande parte da trajetória de criação e formação da Esquadra brasileira, originando o que hoje é a Marinha do Brasil, e que ao longo daquele processo, participou da construção do Estado nacional brasileiro. Alguns eventos marcaram essa trajetória, como a transmigração da Família Real para o Brasil, em 1808 e a instalação da administração naval no Rio de Janeiro após o 7 de setembro de 1822. Mas foi com as lutas de consolidação da autonomia nacional, nas campanhas internas e externas que enfrentou no correr do 1º Reinado e da Regência, e finalmente, durante o Segundo Reinado, que a Marinha se estruturou como Força Militar de mar ao alcançar tal dimensão durante a Guerra da Tríplice Aliança contra o governo do Paraguai. Na medida em que a História se aproximava de outras áreas do conhecimento, principalmente da teoria social e da antropologia, surgiam novas abordagens enrriquecendo a historiografia, não foi diferente nos trabalhos com a temática militar. Por exemplo, no que se refere ao estudo da guerra, é possível reter atenção nos espaços de conflito, nas opções geoestratégicas, na logística, nos recursos tecnológicos, nas relações entre líderes e liderados, nas culturas políticas, imaginários, identidades e sentimentos dos combatentes, etc. Enfim, multifacetados enfoques temáticos refinam a produção textual e o debate decorrentexii. Em síntese, atualmente aqueles que se debruçam sob os acervos e documentos produzidos pelas instituições militares procuram analisar o fenômeno militar sob uma 2878

nova ótica, em que os diversos fenômenos relacionados à guerra são integrados em uma compreensão analítica mais ampla dialogando com outras áreas do conhecimento, contrapondo-se a um modelo tradicional que privilegiava o estudo técnico das grandes batalhas, narradas de forma descritiva, memorialista e centrada no culto aos grandes heróis. A historiografia militar tradicional não concebia o militar e as instituições militares dentro dos contextos sociais, cultural, psicológico, geográfico, receptor e agente transformador. Desconsiderava o diálogo constante com as correntes de um todo social, e sem qualquer problematização.xiii

Neste contexto, a história militar, assim como exemplo a história política, foi por algum tempo marginalizada em função da crítica que a relegou do estatuto científico da história, por ser considerada meramente factualista. Não seria justo condenar a história militar como a única que produziu ou que deu origem à história factual, logo não é também correto afirmar que suas mudanças hoje são singulares em relação aos outros campos da história. Se por um lado a história militar tenta se deslocar do centro dessa crítica, por outro ela se insere e congrega a disputa no interior do campo da história reivindicando para si um estatuto de cintíficidade. Hoje entendemos que tudo o que restou de uma sociedade e que nos possibilita elaborar um conhecimento da mesma – conhecimento relativo e provisório – é fonte histórica, e o historiador manuseará as fontes para dar-lhes a forma, ou seja, as fontes só responderão o que o historiador perguntar. Para E. H. Carr as fontes estão disponíveis ao historiador como “os peixes estão na tábua do peixeiro”. O historiador, tal como

o

peixeiro, “deve reuni-los, depois levá-los para casa, cozinhá-los, e então servi-los da maneira que o mais atrair”.xiv Os fatos não são auto-explicativos.

Cabe ao historiador ir ao passado e interrogar as evidências que este deixou com as perguntas adequadas, munido dos conceitos e métodos apropriados, para este passado oculto revelar-se em sua lógica subjacente, agora por ele percebida, muitas vezes, ignorada por seus próprios agentes.xv

Tais renovações metodológicas do conhecimento histórico e, inclusive, da história política e social, estão sendo aplicadas ao estudo dos fenômenos militares, o que nos permite renovar as investigações neste campo de estudos, resultando em novas produções. Em outras palavras, atualmente os esforços estão voltados para analisar o fenômeno militar sob novas perspectivas, com novos objetos, procurando aprofundar a visão sobre 2879

objetos já analisados, enfim, levando em consideração todos os fatores da sociedade e do tempo em que está inserido o objeto de pesquisa. A partir dessa concepção, as batalhas se tornam um dos objetos da história militar; a história militar não se esgota na batalha; e a batalha não perde importância, já que não é possível pensar no soldado e não pensar na batalha, na “guerra” em todas as suas conotações no tempo e espaço. São objetos da história militar

hoje

os

desdobramentos da guerra nas estruturas sociais, políticas, culturais, etc; os diferentes significados da guerra em diferentes culturas no tempo; a relação do fenômeno militar na organização sócio-cultural; as tradições (símbolos, imagens, canções, etc); o estudo das instituições militares; o gênero nas Forças Armadas; etc. Enfim, há um campo fértil para o desenvolvimento de pesquisas.xvi Segundo Parente, Os estudos produzidos no campo de investigação da História Militar devem estar atentos aos novos métodos e procedimentos de investigação surgidos nas ciências sociais. É importante buscar a incorporação de tais métodos e renovar constantemente o campo de investigação da história.xvii

Ainda há muito que se produzir no campo de História Militar, consciente que negligenciar o diálogo com os outros campos da história como a história política, com a história social, cultural, econômica, das ideias, etc., é contribuir para a construção de um conhecimento estanque e pouco esclarecedor. Seguindo esta tendência, desde 2006, a Marinha do Brasil, através da Diretoria do Patrimônio Histórico e Documentação da Marinha (DPHDM), organização responsável pela elaboração da história desta instituição, iniciou o processo de levantamento descritivo de um conjunto documental que tem como origem o Ministério e Secretaria dos Negócios da Marinha, sob guarda do Arquivo Nacional, conjunto este denominado Série Marinha. Por meio deste levantamento, teremos a possibilidade de facilitar o acesso a este acervo documental, promovendo a pesquisa em documentos ainda não explorados. Este trabalho pretende promover também a releitura sobre a construção da história nacional à luz da dinâmica da organização da Marinha ao longo do século XIX, na sua estrutura burocrática como Secretaria de Estado e no papel operativo enquanto força armada. E ainda, para o entendimento do modo como esta instituição está inserida na organização do Estado brasileiro no século XIX. A Série Marinha é composta por dezoito subséries, totalizando 448,43 metros lineares de documentos. Conforme o quadro abaixo, é possivel verificar que, embora superficialmente, o acervo contempla um número significativo de agências que compunham a 2880

estrutura administrativa e operativa Marinha Imperial.

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18

Organização Militar (Agência) Arsenais de Diversos Estados (XVIII M) Cirurgião Mor Hospital da Marinha (XIX M) Escola Naval – Academia de Marinha (VI M) Capitania dos Portos (XVI M) Arsenal de Pernambuco (XIII M) Batalhão Naval – Inválidos (XV M) Intendência da Bahia (IX M) Pagadoria (II M) Intendência da Corte (VII M)

Metragem linear 0,06m 0,17m 0,17m 0,21m 1,85m 2,15m 5,9m 5,61m 7,60m

Intendência e Inspeção da Bahia (XI M) Arsenal da Bahia (VIII M) Inspeção do Arsenal de Pernambuco (XII M) Inspeção do Arsenal da Corte (V M) Quartel General e Conselho Naval (III M) Navios-Força Naval-Distritos Navais (IV M) Socorros de Marinha-Corpo de Fazenda (XVIII M) Contadoria (IM) Ministro-Secretaria de Estado (X M) Total metragem

7,65m 11,3m 11,25m 12,2m 42,7m 57,46m 80,41m 89,49m 112,25m 448,43m

O projeto foi viabilizado em decorrência da parceria com a Seção Brasileira da Comissão Luso-Brasileira para Salvaguarda e Divulgação do Patrimônio Documental COLUSO e do convênio firmado com o Conselho Nacional de Arquivos – CONARQ junto ao Departamento de Estágios e Bolsas – CETREINA da Univerisade do Estado do Rio de Janeiro –UERJ, que possibilitou a participação de 6 (seis) alunos da graduação de História daquela Universidade. Os estagiários participam de treinamento, um mini-curso de introdução à história da Marinha do Brasil no século XIX para cada nova turma que ingressa no projeto, a partir de leituras selecionadas pelo departamento de História da DPHDM, abordando a estrutura administrativa e operativa da instituição e sua atuação em conflitos externos e internos. Como já foi mencionado, este projeto tem como objetivocentral realizar um levantamento descritivo da documentação oriunda do Ministério e Secretaria de Estado e Negócios da Marinha sob a guarda do Arquivo Nacional, e a partir deste levantamento está sendo elaborado um banco de dados que incrementará o acesso à documentação, permitindo a busca qualificada em eixos temáticos específicos. A metodologia de descrição e elaboração do banco de dados que está sendo desenvolvida se fundamenta na análise textual primária da documentação do período e posterior descrição obedecendo as orientações da Norma Brasileira de Descrição Arquivística 2881

- NOBRADE. Propõe-se como método para o levantamento documental das subséries, tornando possível aos pesquisadores a interação entre discursos perenizados em cada um dos documentos, vivificando as redes relacionais que permeavam os diversos segmentos organizacionais da Marinha Imperial Brasileira. Com relação ao volume de documentos descritos, foi ultrapassada a marca dos 25.000 documentos. Todavia, é imprescindível informar que o número de documentos quantificados é maior que os documentos descritos devido a grande quantidade de anexos junto ao documento principal. Tendo como objetivo respeitar a organização própria de cada documento, são descritos na mesma ficha todos os documentos anexados ao documento principal, evitando assim uma descaracterização do item documental trabalhado e sua disposição e organizaçao original. É importante destacar que, nos conjuntos documentais analisados até o presente momento, o número de documentos, com um ou mais anexos, gira em torno de 45% do total já trabalhado. Muitas das vezes os anexos estão relacionados ao documento principal, em alguns casos são encaminhados para subsidiar uma tomada de decisão do Ministro da Marinha ou, em sentido contrário, para justificar a decisão do ministro perante o Governo Imperial e da própria instituição, envolvendo instituições como o Conselho de Estado e a Assembleia Legislativa. Em certos documentos, os anexados contêm informações mais relevantes do que o documento principal. É possível encontrar um item documental com 3 anexos, outro com 68 anexos e até mesmo contendo mais de 100 anexos, compondo verdadeiros processos. Diante da dinâmica de descrição dos documentos, estamos trabalhando no sentido de adotar futuramente o aplicativo para web AtoMxviii. A ferramenta digital é destinada a apoiar as atividades de Descrição Arquivística em conformidade com os padrões do Conselho Internacional de Arquivos (CIA), que junto aos colaboradores do projeto AtoM, está sendo disponibilizada como um software livre, de forma que as instituições arquivísticas tenham acesso a um sistema gratuito, fácil de usar e que as permitam disponibilizar seus acervos arquivísticos on-line. A plataforma se encontra em fase de testes técnicos e estruturais em nossa rede de computadores, e por esse motivo optamos, concomitantemente, pela elaboração e confecção de uma ferramenta de pesquisa acompanhando a dinâmica da própria descrição do acervo documental. O conteúdo que está sendo descrito será disponibilizado por meio da ferramenta de pesquisa, organizado em arquivos digitais em formato PDF acompanhando a organização disposta no Arquivo Nacional, por maços documentais em suas respectivas subséries, conforme o método já aplicado na descrição do acervo, facilitando assim o acesso prévio ao 2882

conteúdo já descrito. Esse formato, que é utilizado pelo Arquivo Nacional inclusive, disponibiliza por meio de seu mecanismo de busca, de maneira satisfatória, informações prévias dos documentos assim como sua localização no acervo. O objetivo é facilitar o acesso a Série Marinha na medida em que está sendo descrita, e que futuramente estará disponível on-line, via internet, na página da Diretoria do Patrimônio Histórico e Documentação da Marinha – DPHDM e, atendendo ao disposto no Convênio CONARQ/CETREINA-UERJ, disponibilizaremos o material para o Arquivo Nacional.

i

Decreto de 13 de janeiro de 1834. Decreto nº 114 de 4 de janeiro de 1842. iii SILVA, Carlos André Lopes da. Redescobrindo a Marinha Oitocentista: o projeto de descrição do acervo documental da secretaria de estado e negócios da marinha – 1808 a 1890. Anais do III Encontro da Associação Brasileira de Estudos da Defesa – ABED – Universidade Estadual de Londrina (UEL), em agosto de 2009. Disponível em http://www.uel.br/pos/mesthis/abed/index.php, acesso em 26/09/2015. iv Decreto nº 6510 de 11 de junho de 1907. ii

v

REITZ, Alessandra. O Processo de Formação do Arquivo da Marinha do Brasil como Instituição de Pesquisa Histórica e Militar (1907-1953). Navigator: Subsídios para a a história marítima do Brasil. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação da Marinha. Nº VI. 2007. p. 25-26. vi Decreto-Lei nº 5.558, de 8 de junho de 1943. vii GOFF, Jacques le. Monumento/Documento. In: História e Memória. Tradução de: Storia e memoria. Campinas: Editora Unicamp, 1996, p. 535. viii Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011. ix Aqui, sugerimos àqueles que venham se interessar pelo estudo e pesquisa acerca da Marinha do Brasil, as obras introdutórias para compreesão da administração naval, CAMINHA, Herick Marques. Organização e Administração do Ministério da Marinha no Império. Rio de Janeiro: SDM/Funcep, 1986 e CAMINHA, Herick Marques. Organização e Administração do Ministério da Marinha na República. Rio de Janeiro: SDM/Funcep, 1989. x Livros dos Documentos Remetidos ao Arquivo nacional Vol. 1, Códices nº 14336 e Vol. II, Códice nº 14337. Arquivo da Marinha – DPHDM. Rio de Janeiro. 1910/1920. xi Este arranjo arquivístico, implementado pelo especialista belga Henri Boullier de Branche, nos anos de 1960, apesar de abranger toda a “Série Marinha”, não permite um acesso aprofundado ao seu conteúdo, pois as dezoito “subséries” e cada um dos maços documentais estão identificados, de maneira geral, pela organização produtora ou recebedora de documentos, sem nenhuma discriminação por temática. Também, desestimula o pesquisador que tem acesso a este fundo que a descrição mais pormenorizada encontrada diz respeito ao maço documental, que reúne, nos maços inicialmente trabalhados pelo projeto, de 70 a 300 documentos. xii Os argumentos aqui apresentados são baseados nas discussões formuladas na comunicação: LOUREIRO, Marcelo, RESTIER, Renato. História política, história social e história militar: três histórias em busca de um eixo teórico-metodológico comum, apresentada no Instituto Histórico e Geográfico Militar Brasileiro – IHGMB, Revista Brasileira de História Militar, Ano III, nº 8, agosto 2012. xiii

CASTRO, Celso, IZECKSOHN, Vitor e KRAAY, Hendrik (Org.). Nova História Militar Brasileira. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004, p. 23 e 26. xiv CARR, E. H. Que é história? Tradução de Lúcia Maurício de Alverga. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 3ª Edição, 1982, p. 37-38. xv ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz. História: a arte de inventar o passado. Edusc, 2007. p. 24. xvi PARENTE, Paulo André Leira. “Uma Nova História Militar? Abordagens e campos de investigação”. A Defesa Nacional, nº 806, 3º Quadrimestre de 2006. p. 69 xvii Idem. p. 69. xviii

AtoM é um acrônimo para Access to Memory, ou, Acesso à Memória, no inglês.

2883

A política externa brasileira para a África no período 1995-2010: vínculos e semelhanças com o passado histórico Walace Ferreira1 Recém-doutor em Sociologia pelo IESP/UERJ. E-mail: [email protected] Resumo: Desde o início da administração Lula, a África tornou-se prioridade. Estreitaram-se os vínculos políticos diplomáticos, e intensificaram-se o comércio exterior e os investimentos de empresas brasileiras no continente. Trata-se de uma perspectiva diferente da adotada pelo governo FHC. Este trabalho, no entanto, analisa como as relações atlânticas no período 19952010 possui vínculos e semelhanças com o passado histórico, tais como a não linearidade, ambiguidades em momentos de aproximação, influência das conjunturas externa e doméstica, e importante peso dos atores envolvidos. Palavras-chave: Política externa para a África, FHC e Lula, passado histórico. Abstract: Since the beginning of the Lula administration, Africa was placed as a priority. Political ties and diplomatic relations have increased, as well as the intensification of trade and investment of domestic enterprises in Africa. It is a different perspective from that found during the Cardoso government. This work, however, looks at how the Atlantic relations between the period 1995-2010 has ties and similarities to past history, such as non-linearity, ambiguities, influence of external and domestic situations, and important weight of political actors involved. Keywords: Foreign policy for Africa, FHC and Lula, historical past. “Valores em xeque, silêncios deliberados e discursos culturalistas engendraram dinâmica muito própria ao rapprochement do Brasil àquele continente. O discurso que embalou as relações materiais entre os dois lados, no período mais recente, fez esforço de reconstrução o passado, em especial das vinculações históricas e culturais que se iniciaram no século XVI entre o Brasil e a África”. José Flávio Sombra Saraiva Trecho de “O lugar da África: a dimensão da política externa brasileira de 1946 a nossos dias”, 1996, p. 12.

1. A política externa para a África no período 1995-2010: breve análise

Diplomaticamente, segundo a seletividade de parceiras africanas ao longo do governo Fernando Henrique Cardoso, que indicava pouca atenção à grande parte do continente, optouse pelo fechamento dos postos diplomáticos em Adis Abeba (Etiópia), Dar es Salam (Tanzânia), Iaundê (Camarões), Kinshasa (República Democrática do Congo), Lomé (Togo) e Lusaca (Zâmbia), fato que acabou limitando a capacidade da política externa em alavancar ações de caráter político e econômico no continente vizinho (RIBEIRO, 2010). Essa

2884

decisão

foi reflexo do projeto neoliberal na política externa da sua gestão. Por outro lado, durante os oito anos do governo Lula foram abertas ou reativadas 17 embaixadas no total: República Democrática do Congo, em 2004; Etiópia, Tanzânia e Camarões, em 2005; Sudão, Guiné, Benim, Togo e Guiné Equatorial, em 2006; Botsuana e Zâmbia, em 2007; Mali, Congo e Burkina Faso, em 2008; Mauritânia, Serra Leoa, Libéria, em 2010, além do começo dos trabalhos para a instalação de embaixada no Malauí neste ano, mas cuja abertura só ocorreu em 2013 (JORGE, 2011, p. 04). Em 2011, um ano após a saída de Lula do governo, o mapa de embaixadas brasileiras na África ficou bastante preenchido, destacando que na Nigéria e na África do Sul também existe um Consulado-Geral. O Brasil passou a ter embaixadas em 37 dos 55 países africanos ao final deste governo, 38 em 2013, quantidade inferior apenas aos Estados Unidos (com 49 missões), a China (48) e a França (46), empatando com a Rússia. Além disso, estava à frente de outros dois países emergentes que têm buscado estreitar as relações com nações africanas: a Índia, com 27 missões, e a Turquia, que, ao instalar 20 das suas 31 embaixadas na África entre 2007-2011, somou-se ao grupo de nações que cortejam o continente (FELLET, 2011). Em contrapartida, foram instaladas 17 novas embaixadas de nações africanas em Brasília, de modo que 33 Estados africanos passaram a ter embaixadas no Brasil (JORGE, 2011, p. 06). Ademais, as viagens internacionais de Chefes de Estado e de Governo representam outro importante indicador do quanto o país visitado aparece na esfera de interesses da política externa do país visitante. Se entre 1995 e 2002, FHC visitou apenas Angola, África do Sul e Moçambique, Lula visitou 23 países durante sua gestão (São Tomé e Príncipe, Angola, Moçambique, África do Sul, Namíbia, Egito, Líbia, Gabão, Cabo Verde, Camarões, Nigéria, Gana, Guiné-Bissau, Senegal, Argélia, Benim, Botsuana, Marrocos, Congo, Guiné Equatorial, Quênia, Tanzânia e Zâmbia) (JÚNIOR, 2013, p. 98). Do ponto de vista das viagens dos Ministros das Relações Exteriores, a diferença entre os períodos FHC e Lula é enorme. Enquanto o chanceler Celso Amorim visitou 31 nações do continente, em 67 visitas, Luiz Felipe Lampreia e Celso Lafer não fizeram nenhuma visita oficial. O recebimento de lideranças africanas também foi imensamente desproporcional entre as duas gestões. Lula recebeu 28 Chefes de Estado ou Governo da África, num total de 48 visitas; ao passo que Cardoso recebeu apenas 8 lideranças africanas, em 10 visitas. Por fim, o Brasil recebeu 67 visitas de chanceleres de países africanos na gestão Lula, enquanto a administração FHC recebeu apenas 5 (FERREIRA, 2015).

2885

Economicamente, durante o governo Lula, observou-se um crescimento substancial das relações entre o Brasil e a África: não só o comércio aumentou como também a atuação das empresas brasileiras foi mais intensa. Em que se considere a importância do contexto econômico mundial, com o aumento do peso dos países emergentes durante boa parte da década passada, o fortalecimento das relações econômicas esteve ainda relacionado à política externa adotada pela gestão Lula da Silva, que buscou privilegiar as relações com os países em desenvolvimento, dentre os quais as nações africanas2. Além disso, a partir dos anos 2000 a economia africana apresentou um crescimento considerável, assim como o PIB de outros países e regiões em desenvolvimento, comparando com a década de 90. Essa diferença conjuntural expressa um importante argumento acerca da atração que o continente africano passou a exercer sobre uma série de nações em desenvolvimento, dentre elas o Brasil, e que a política externa de Lula da Silva procurou tirar proveito. As exportações totais do continente africano cresceram em torno de cinco vezes no período, aumentando consideravelmente a sua participação nas exportações mundiais. Esse crescimento pode ser atribuído, em boa medida, ao aumento nos preços das commodities minerais3, melhoria na solvência externa4 e estabilização do cenário político de muitos países, como foi o caso de Angola - com o fim da guerra civil em 2002. Também aumentou no período Lula, a presença de transnacionais brasileiras na África. Com isso, verifica-se que as visitas do Presidente, grande parte delas acompanhadas de comitivas empresariais, e o estreitamento diplomático com uma série de países que não somente os de língua portuguesa, alcançaram resultado na instalação ou na ampliação dos negócios empresariais no continente. Contudo, como salientam Vieitas e Aboim (2012), dadas as dificuldades institucionais e logísticas de concretização de negócios em alguns países, o investimento direto brasileiro no continente ainda é bastante concentrado em empresas de grande porte5. Mais recentemente, projetos desenvolvidos por essas empresas têm atraído também um segmento de firmas de menor porte, oriundas das respectivas cadeias de fornecedores. Mensurando a mudança do período FHC ao governo Lula, em 2001, o Brasil investiu US$ 69 bilhões na África. Em 2009, este número havia chegado a US$ 214 bilhões. A princípio, as empresas brasileiras concentravam seus esforços na África lusófona, Angola e Moçambique em particular, capitalizando a afinidade linguística e cultural para fincar suas raízes (BRAZIL IN AFRICA, 2012). A partir do governo Lula, elas foram se espalhando por

2886

várias partes do continente, seguindo a lógica de dispersão desenvolvida pela nova diplomacia. Além disso passaram a contar com financiamento do BNDES a partir de 2007.

2. O passado histórico: não linearidade, ambiguidades em momentos de aproximação, forte influência das conjunturas externa e doméstica, e importante peso dos atores políticos e diplomáticos brasileiros envolvidos Após a intensidade das relações entre Brasil e África decorrentes dos séculos de escravidão, verifica-se, a partir de 1822, o primeiro distanciamento por imposição de Portugal em razão das negociações para o reconhecimento do Brasil. O tratado assinado por Portugal e Brasil em 1826, quando Portugal oficialmente reconheceu a independência brasileira, foi um claro exemplo de como o Brasil precisou se afastar da África para dar lugar a outros interesses. “No texto, o Imperador D. Pedro comprometeu-se a não anexar e não aceitar qualquer proposta de colônias portuguesas que desejassem se juntar ao país” 6 (SARAIVA, 1993, p. 39). No entanto, a África Ocidental logo tomou conhecimento da independência brasileira, vindo de lá as primeiras manifestações de reconhecimento internacional, tal como ficou comprovado por meio de documentos7. Paradoxalmente, portanto, apesar do reconhecimento, o país ficou impedido de aceitar qualquer posição direta de controle dos territórios portugueses na África, de maneira que: “As elites fizeram, assim, sua primeira opção clara de ‘exclusão’ do continente africano” (SARAIVA, 1996, p. 15). Décadas à frente, o desgaste do processo colonial na África, a eclosão dos movimentos nacionalistas africanos e os desdobramentos da história brasileira do pós-Segunda Guerra, bem como da relação do país com o centro da aliança ocidental são alguns dos principais fatores explicativos para a reaproximação da África. Os anos 1950 e o início dos anos 1960 trouxeram consigo novas tendências para a política exterior brasileira (PEB). Saraiva (1996) ressalta que Osvaldo Aranha foi um dos primeiros a se manifestar a favor da revisão da PEB com a percepção de que o país deveria se libertar dos esquemas elaborados pelas grandes potências, numa referência direta ao bipolarismo em vigor. Contudo, na década de 1950, conforme argumentam Saraiva e Gala (2012), o governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961) não soube perceber oportunidades no vizinho do Atlântico. Observou, sem manifestação, a independência de países africanos desse período, além de não ter atentado para algumas de suas mobilizações8. A ambiguidade característica desse momento, portanto, é marcada pela posição presidencial em contrário à emergência

2887

de

vozes dissonantes que defendiam a promoção de uma política mais arrojada para a África. Setores da diplomacia, especialmente a ala que havia atuado no período em que a voz de Vargas se fizera mais próxima ao continente africano, e de intelectuais interessados nos assuntos externos do país, começaram um movimento mais ativo do Brasil naquela direção. Tratam-se de lideranças políticas e intelectuais como o já mencionado Oswaldo Aranha, além de Álvaro Lins, Gilberto Amado, José Honório Rodrigues, Adolpho Justo Bezerra de Menezes, Tristão de Athayde e Eduardo Portella, entre outros, que defenderam claramente uma reabertura das comunicações com o continente africano (SARAIVA; GALA, 2012). O oficial interesse brasileiro pela África como um fenômeno da década de 1960 se deu nos governos de Jânio Quadros (1961) e João Goulart (1961-1964), com a chamada “Política Externa Independente”. Apesar do curto governo, Jânio determinou que se reexaminasse a política brasileira para a região. Criou-se o Grupo de Trabalho para a África9, cuja conclusão indicava que a presença brasileira na África deveria “estar isenta de qualquer tendência de intervencionismo ou atitude partidária nos assuntos locais ou nas questões ainda nãoconsolidadas internacionalmente” (CERVO E BUENO, 2008, p. 320). Afonso Arinos, chanceler durante o governo Jânio e um dos ministros das Relações Exteriores de João Goulart, tinha a ideia de que ao Brasil estaria reservado o papel de destaque no mundo afro-asiático, dadas suas características étnicas e culturais. Este mundo afro-asiático seria marcado, em grande parte, por nações subdesenvolvidas e recémindependentes. O próprio Jânio acreditava que o Brasil deveria ajudar no contato entre a África e o restante do Ocidente. Como relembra Cervo e Bueno: “Comparada às gestões anteriores, a de Jânio deu atenção especial às relações com a África Negra. A frase ‘Portugal pode perder Angola; mas o Brasil não!’ a ele atribuída é ilustrativa” (2008, p. 319). Já o primeiro presidente militar, Castello Branco (1964-1967), reverteu a direção da política exterior e mandou prender alguns seguidores dos movimentos para a independência da África portuguesa. Além disso, restaurou as relações com Estados Unidos e Portugal, de maneira que seu ministro das Relações Exteriores, Juracy Magalhães, declarou: “Tudo o que for bom para os Estados Unidos também é bom para o Brasil” e “Tudo o que acontece de bom para Portugal é recebido com imenso agrado pelo Brasil” (DÁVILA, 2011, p. 52). A mudança de postura, todavia, se deu por uma nova e complexa conjuntura interna e externa da década de 70, marcada pela necessidade de novos mercados. Por conta da priorização do comércio exterior, o Brasil incrementou o intercâmbio Sul-Sul. No bojo desta

2888

estratégia, a África ressurgia como área privilegiada. De um lado, a disponibilidade brasileira na exportação de produtos, serviços e tecnologias reprocessadas. De outro, o interesse africano em receber estas tecnologias e serviços mais simples e adequados à sua realidade, ao tempo que eram os produtos mais robustos de nossa indústria (SANTOS, 2003). Foi o governo do Marechal Arthur da Costa e Silva (1967-1969) que, segundo Pinheiro (2007), marcou uma inflexão em direção aos países do Terceiro Mundo, suscitando uma posição mais crítica com relação ao colonialismo. Como efeito desse renovado interesse, que envolvia igualmente os objetivos de explorar novas oportunidades de comércio e de fortalecer os contatos com os países africanos exportadores de café, foram criados novos postos diplomáticos na África. Reveladora dessa inflexão foi a retirada dos assuntos da África e do Oriente Médio da Divisão de Europa Ocidental na estrutura organizacional do Itamaraty, de maneira que passariam a ser tratados por uma divisão especial, a Secretaria Geral Adjunta para África e Oriente Médio. No entanto, as queixas do governo Salazar com relação as tentativas brasileiras de se aproximar da África sem a intermediação de Portugal levaram Costa e Silva a retomar a costumeira política de apoio à Lisboa. Como resultado, Brasília ratificou tratados assinados com Portugal. Nessa lógica, o Brasil não questionou a continuidade de nossa tradicional política de apoio ao colonialismo luso. De 1969 a 1974 (governo Médici), a economia cresceu a um índice médio de mais de 11% ao ano, de modo que o período do “milagre econômico” criou uma nova justificativa para as relações com a África. Conforme explica Amorim (2011) houve novamente, nesse contexto, um esboço de política africana, tendo como ministro das Relações Exteriores o diplomata de carreira Mário Gibson Barbosa. Gibson viajou, entre outubro e novembro de 1972, para nove países da África Ocidental na expectativa de que a diplomacia pessoal abrisse portas para o comércio brasileiro (DÁVILA, 2011). Medida semelhante à adotada pela diplomacia do Presidente Lula, que através da aproximação política com a África, conseguiu abrir caminho às relações comerciais e de investimentos. Ao perceber o desenlace da questão colonial africana na década de 70, Brasília procurou interceder no processo. Essa oferta de auxílios diplomáticos, porém, foi friamente recebida por Portugal, entendida como uma intervenção indevida. Mesmo assim o Brasil se empenhou na política de aproximação com a África negra, antecipando-se à Portugal e à Assembleia das Nações Unidas ao reconhecer a independência de Guiné Bissau em 18 de julho de 1974. Todavia, Pinheiro (2007) chama a atenção para a posição controversa encontrada na arena decisória brasileira, uma vez que o acirramento da luta anticolonial gerou divergências

2889

internas acerca de qual seria o melhor meio de satisfazer os chamados interesses nacionais, que, na gestão Médici, era interpretado como algo que facilitasse o rápido desenvolvimento econômico e o potencial político do país em direção ao almejado status de potência internacional. Essa questão pode ser ilustrada com a disputa entre o ministro da Fazenda, Delfim Neto, e o ministro do Exterior, Gibson Barbosa. Enquanto Delfim favorecia o acesso aos mercados africanos através de Portugal e a manutenção dos fortes laços comerciais com a África do Sul, Gibson defendia uma posição mais independente e de caráter anticolonialista, a fim de melhorar as relações do país com o continente africano como um todo, buscando aproximar-se diretamente dos estados africanos independentes. O sucessor de Médici foi Geisel (1974-1979), que havia percebido os imensos custos econômicos para o Brasil gerado pela proximidade com Portugal, seguindo o pensamento do antigo ministro Barbosa, que dizia ser as relações com o país ibérico uma hipoteca que o Brasil não poderia pagar. No entanto, Geisel nada pode fazer antes da Revolução dos Cravos (abril de 1974), que derrubou a ditadura salazarista (DÁVILA, 2011). Durante esses cinco anos, as ambições internacionais do Brasil cresceram mais que em qualquer período anterior. Nesse governo, Celso Amorim, entusiasta das relações com a África, trabalhou para o Ministro das Relações Exteriores Azeredo da Silveira em sua assessoria de planejamento. A nova orientação da política externa brasileira chamada de “Pragmatismo Responsável e Ecumênico”, tinha como princípio fundamental o fim dos apriorismos na PEB. Apesar de Azeredo não ter feito muitas viagens à África, conseguiu quebrar o tabu em relação às ex-colônias de Portugal, tendo como ato de grande importância o reconhecimento de Angola no dia da sua independência, tendo sido o Brasil o primeiro país a fazê-lo10. Da década de 80 ao início dos anos 90, no entanto, a linha catastrofista da diplomacia brasileira, segundo Pimentel (2000), trazia estatísticas e vociferavam que o Brasil não tinha mais nada a fazer com os africanos. Fato que, ao final da década de 80, a África encontrava-se numa crise de enormes dimensões, haja vista um olhar para os indicadores econômicos e sociais, considerada como década efetivamente perdida. Essa configuração gerou impactos negativos nas relações do continente com o exterior, já que a regressão contínua do volume de exportações promoveu a marginalização da região no comércio internacional. Segundo Ribeiro (2009), um dos fatores que explica o acirramento da crise econômica africana entre as décadas de 80 e 90 foi o endividamento externo, resultante da aplicação de políticas de ajustes econômicos impostos pelo Banco Mundial e pelo FMI. Já o economista nigeriano Adebaio Adedeji sustentava que a crise africana da década de 80 e 90, embora com

2890

consequências econômicas devastadoras, era essencialmente política, haja vista os conflitos em torno do poder e o mau funcionamento das instituições. Em decorrência, a primeira metade da década de 1990 foi marcada por uma redução da presença brasileira naquele continente. O pessimismo não marcava apenas a diplomacia brasileira mas, em especial, os homens de negócio daqui. Devemos salientar também os problemas enfrentados pelo Brasil, com aumento da dívida externa, descontrole inflacionário, queda nas exportações, além de instabilidade política. Com Fernando Henrique Cardoso há pequenas relações com a África, o que muda totalmente com Lula.

3. Conclusão

Reforçamos, com isso, que as relações atlânticas entre Cardoso e Lula, repete a não linearidade presente em outros momentos históricos. Outra semelhança com o passado consiste na importância dos atores políticos e diplomáticos na definição de uma aproximação ou de um distanciamento junto à África, associado aos condicionantes internacionais e a maneira como o Brasil está inserido no sistema global, além das condições políticas e econômicas domésticas. Estes mesmos fatores também fizeram com que, mesmo nos momentos de proximidade, tenhamos tido ambiguidades, haja vista a inconstância e a relativa fragilidade do continente africano nos objetivos da política exterior brasileira.

Notas: 1

Doutorado orientado pela Prof. Dra. Maria Regina Soares de Lima. Atua como pesquisador na área de Política Externa Brasileira e atualmente é professor de Sociologia na SEEDUC. 2 Até 2005, mais de 50% das vendas brasileiras eram destinadas aos países desenvolvidos. A partir de então, essa tendência foi se revertendo em favor dos países emergentes e em desenvolvimento, que, em 2012, representava 59% do total das exportações nacionais. Pelo lado das compras brasileiras, as estatísticas também sinalizam expansão da aquisição de bens provenientes dos países emergentes e em desenvolvimento, que representavam aproximadamente 51% do total em 2012, contra 35% no final da gestão FHC (COMÉRCIO EXTERIOR, 2012). 3 Esse aumento, principalmente a partir de 2003, beneficiou fortemente os países exportadores de petróleo, já que a África concentra cerca de 12% da produção mundial desse mineral, e à demanda crescente dos países emergentes. Os preços dos minerais não combustíveis, como cobre, que tem 51% da produção mundial no continente, também se elevaram rapidamente a partir daquele ano, ajudando nas exportações africanas (RODRIGUES; CAPUTO, 2014). 4 Para a queda da dívida externa, foi importante o perdão de dívidas bilaterais e multilaterais por parte de vários credores, inclusive tendo o governo Lula determinado o perdão de várias dívidas africanas. Segundo Moura (2013), foram perdoadas, entre 2003 e 2010, dívidas de três países: Moçambique (US$ 315,1 milhões – o que equivalia a 95% da dívida do país com o Brasil, e cujas negociações começaram com o governo Fernando Henrique, em 2000), Nigéria (US$ 84,7 milhões) e Cabo Verde (US$ 1,2 milhões). 5 Destacam-se grandes negócios da Petrobras, Vale, Marcopolo, Asperbras, Stefanini, além de construtoras como Odebretch, Andrade Gutierrez, Camargo Correa, Engevix, Queiroz Galvão, Galvão Engenharia. Ver detalhadamente em: FERREIRA, 2015.

2891

6

Segundo explicação de Saraiva (1993), seguindo a independência brasileira, comerciantes angolanos de Benguela tentaram juntar-se ao nascente Império Brasileiro, em movimentos políticos que balançaram Luanda e Benguela, entre 1822 e 1826. Membros angolanos do parlamento português, ao viajarem de Angola para Lisboa, em 1822, decidiram juntar-se à independência do Brasil. Assim, a união Brasil-Angola foi uma hipótese na independência. 7 Como ensina Saraiva (1993, p. 38), ficou comprovado, através de documentos de 1827, 1829 e 1830, que o coronel Manuel Alves de Lima foi mandado três vezes ao Brasil como embaixador do rei Obá Osemwede do Benim, com o objetivo era entregar ao imperador Pedro I os termos do reconhecimento da independência do Brasil, em nome do imperador do Benim e Rei Ajan e outros reinos da África. 8 Organizaram os africanos, por exemplo, a I Conferência de Solidariedade Afro-Asiática, a I Conferência dos Estados Independentes da África, e formularam, em 1958, os primeiros conceitos que convergiriam, em 1963, para o nascimento da OUA. 9 O grupo foi formado no Itamaraty em 3 de março de 1961, incumbido de apresentar conclusões sobre as missões diplomáticas e repartições consulares nos novos Estados africanos e de propor medidas concretas para o desenvolvimento das relações econômicas, comerciais e culturais entre o Brasil e o continente. 10 Devemos lembrar que o contexto internacional era marcado pela Guerra Fria e o partido que proclamou a independência angolana foi o Movimento pela Libertação de Angola (MPLA), ligado ao socialismo soviético. REFERÊNCIAS: AMORIM, Celso. Conversas com jovens diplomatas. São Paulo: Benvirá, 2011. BRAZIL IN AFRICA. A new Atlantic aliance Brazilian companies are heading for Africa, laden with capital and expertise. In: The Economist. Nov 10th 2012, Moatize. Disponível em: . CERVO, Amado Luiz; BUENO, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil. 3.ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008. COMÉRCIO EXTERIOR. Documento produzido por Ministério das Relações Exteriores – MRE; Departamento de Promoção Comercial e Investimentos – DPR; Divisão de Inteligência Comercial – DIC. Maio, 2012. Disponível em: . DÁVILA, Jerry. Hotel Trópico: O Brasil e o desafio da descolonização africana, 1959-1980. Tradução Vera Lúcia Mello Joscelyne. São Paulo: Paz e Terra, 2011. FELLET, João. Brasil tem 5ª maior presença diplomática na África. In: BBC Brasil em Brasília, 17 de outubro, 2011. Disponível em: . FERREIRA, Walace. A Política Externa para a África dos Governos FHC e Lula: Uma Análise Comparada. 2015. Tese (Doutorado em Sociologia). IESP/UERJ, Rio de Janeiro, 2015. JORGE, Nedilson. A África na agenda econômica do Brasil: Comércio e Investimentos. In: Seminário África na agenda econômica do Brasil. CEBRI, 22 de novembro 2011. Disponível em: . JÚNIOR, Wilson Mendonça. Política Externa e Cooperação Técnica: As relações do Brasil com a África durante os anos FHC e Lula da Silva. Belo Horizonte: D’Plácido Editora, 2013. MOURA, Rafael Moraes. Perdão às dívidas de países africanos soma US$ 717 mi. In: Jornal O ESTADO DE SÃO PAULO (ESTADÃO). Brasília, 21 de julho de 2013. Disponível em: .

2892

PIMENTEL, José Vicente de Sá. Relações entre o Brasil e a África subsaárica. In: Revista Brasileira de Política Internacional. Vol.43, nº 01, pp. 5-23, 2000. Disponível .

em:

PINHEIRO, Letícia. “Ao vencedor, as batatas”: o reconhecimento da independência de Angola. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, nº39, janeiro-julho de 2007, p. 83 a 120. Disponível em: . RIBEIRO, Cláudio Oliveira. Adjustment Changes: a política africana do brasil no pós-guerra fria. In: Revista de Sociologia e Política, Curitiba, vol. 18, nº. 35, pp. 55-79, fev. 2010. Disponível em: . RIBEIRO, Cláudio Oliveira. A política africana do governo Lula (2003-2006). In: Tempo Social - Revista de sociologia da USP, vol. 21, nº 2 nov. 2009, pp. 185-209 Disponível em: . RODRIGUES, Denise Andrade; CAPUTO, Ana Cláudia. O projeto de integração da África: aspectos físicos, comerciais, financeiros e de investimento. In: Revista do BNDES, nº 41, junho 2014, pp. 99-146. Disponível em: . SANTOS, Luiz Cláudio Machado dos. A política externa brasileira para a África negra: da “interdependência” ao “pragmatismo responsável” (1964-1979). In: Publicações Acadêmicas UNIVERSITAS FACE, vol. 1, nº1, 2003. Disponível em: . SARAIVA, José Flávio Sombra. A ambivalência de uma cultura: O negro no Brasil, em uma perspectiva histórica. In: Textos de História 1, 1993, pp. 32-48. Disponível .

em:

SARAIVA, José Flávio Sombra. O lugar da África: a dimensão da política externa brasileira de 1946 a nossos dias. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1996. SARAIVA, José Flávio Sombra; GALA, Irene Vida. O Brasil e a África no Atlântico Sul: uma visão de paz e cooperação na história da construção da cooperação africano-brasileira no Atlântico Sul. 2012. Disponível em: . VIEITAS, Deborah; ABOIM, Isabel. África: oportunidades para empresas brasileiras. In: Revista Brasileira de Comércio Exterior. 2012. pp. 20-33. Disponível em: .

2893

Neoliberalismo e "reforma agrária" no Brasil: o caso do Programa Nacional de Crédito Fundiário (2003-2015)

Wallace Lucas Magalhães Mestre (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro) Orientador: Prof. Dr. João Márcio Mendes Pereira e-mail: [email protected]

Resumo: Este trabalho busca analisar o Programa Nacional de Crédito Fundiário, instituído em 2003, como um dos corolários do projeto político neoliberal para a questão agrária no Brasil. O programa estabeleceu a compra e venda como o principal instrumento de "reforma agrária" no país, substituindo a atuação do Estado como protagonista do processo. Aliado aos interesses do neoliberalismo, o programa neutraliza a desapropriação por interesse social, abrindo espaço para a consolidação do “modelo de reforma agrária de mercado" do Banco Mundial. Palavras-chave: Neoliberalismo, Reforma agrária, Programa Nacional de Crédito Fundiário. Abstract: This study aims at analyzing the National Program for the Agrarian Credit, which was introduced in 2003, as one of the corollaries to the political neoliberal project for the agrarian issue in Brazil. The program settled the conditions of buying and selling as the primary tool instrument of the “agrarian reform” in the country which substitutes the State’s operation as the principal role of the process. Associated to the interests of neoliberalism, the program neutralizes expropriations according to social, opening bonds for the consolidation of the “market-assisted land reform” belonged to the World Bank. Key-words: Neoliberalism; Agrarian Reform; National Programme for Agrarian Credit Introdução A questão da reforma agrária no Brasil assumiu, desde a década de 1960, importante papel na plataforma político-econômica de diversos setores da sociedade brasileira. Partidos políticos, intelectuais, proprietários rurais e agroindustriais, movimentos populares, correntes econômicas e desenvolvimentistas ingressaram sob diversos argumentos no debate, fortalecendo tanto os posicionamentos favoráveis à reforma agrária quanto os da contra reforma. O fim da ditadura militar (1985) e o processo de abertura política trouxeram aos defensores da reforma novas possibilidades de consolidação de um projeto de alteração da

2894

estrutura fundiária, amplamente concentrada e desigual. Todavia, a Nova República e os governos “democráticos” não se mostraram aliados à reforma. A eleição do candidato Fernando Collor de Mello (1990-1992) representou, do ponto de vista político-econômico, a consolidação do projeto político neoliberal no Brasil, cuja reforma agrária não simbolizava os interesses do governo. Os governos dos presidentes Itamar Franco (1992-1994) e de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), cada um a sua maneira, mantiveram neutralizada a reforma agrária como questão política e estrutural, direcionando ações eventuais, em especial nos casos de conflito fundiário. Legitimado pela sociedade civil como um governo de ruptura com o neoliberalismo, durante os mandatos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011) o que se viu foi a manutenção do processo de acumulação capitalista, incluindo-se a sustentação política ao agronegócio. Durante seu primeiro mandato, foi criado o Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNCF) como um projeto destinado à “reforma agrária”. Todavia, tal programa segue as orientações do “modelo de reforma agrária de mercado” instituído pelo Banco Mundial a partir das redefinições de suas plataformas de ação durante a década de 1990, transformando a “reforma agrária” em instrumento de suas ações políticas, econômicas e ideológicas. O governo Fernando Henrique Cardoso e o “modelo de reforma agrária de mercado” Estudo de Pereira e Alentejanoi enfatiza a formação histórica da hegemonia do agronegócio no Brasil, cuja importância do governo Cardoso nesse processo é fundamental. Medidas de ajustamento ao programa neoliberal desencadeadas pelo governo, como a utilização da taxa de câmbio como forma de combate à inflação, liberalização econômica, ajuste fiscal e privatização de empresas estatais expunham a prioridade do governo quanto à questão macroeconômica, deslocando a discussão da reforma agrária para segundo plano. Todavia, fatores como a pressão de movimentos sociais ligados à questão agrária, em especial o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), através da ocupação de terras e a repercussão nacional e internacional dos conflitos de Corumbiara (Rondônia, 1995) e Eldorado dos Carajás (Pará, 1996) reafirmou a necessidade de se discutir temas como reforma agrária e a aplicabilidade do princípio da função social da propriedade. O protagonismo assumido pelo MST e a visibilidade da reforma agrária como uma questão política fez com que o governo FHC tomasse medidas tanto para aliviar tensões sociais quanto para retomar o controle sobre a política fundiária, mitigada pela ascensão do MST.

2895

Em artigo publicado no jornal Folha de São Paulo, em 24 de março de 1995 ii, o então presidente afirmava a realização de medidas (paliativas) destinadas á reforma agrária. Concomitantemente a essas ações, dentre as quais destacam-se a penalização da propriedade que não atendesse a função social através do Imposto Territorial Rural (ITR) progressivo, o governo criou mecanismos de neutralização das ocupações de terra, como a chamadas Medidas Provisórias (MP) das ocupaçõesiii, criminalização dos movimentos sociais e impossibilidade de acesso a recursos públicos de agentes envolvidos em conflitos fundiários. Todavia, de forma a conciliar a retomada do controle sobre a política fundiária e o aliviamento das tensões sociais por terra à política macroeconômica de matriz neoliberal, destacase o acolhimento do “modelo de reforma agrária de mercado” (MRAM) nos anos 1990. Ancorando-se no fundamento teórico-político da ineficácia do que é denominado pelos economistas do Banco Mundial de modelo “tradicional” de reforma agrária, o “modelo de reforma agrária de mercado” substitui o protagonismo do processo de reforma agrária, transferindo-o do Estado para a livre iniciativa. Pereira define o MRAM como uma ação estatal que combina transação patrimonial privada e política distributiva. Transação patrimonial por tratar-se de um financiamento concedido para a compra e venda voluntária entre agentes privados – ou seja, uma típica operação mercantil –, e pelo fato de que os proprietários são pagos em dinheiro e a preço de mercado, enquanto os compradores assumem integralmente os custos da aquisição da terra e os custos de transação. Política distributiva porque há transferência de recursos a fundo perdido, em proporção variável conforme o caso, para investimentos em infra-estrutura e produção agrícola. Em outras palavras, trata-se de uma mera relação de compra e venda de terras entre agentes privados financiada pelo Estado, que fornece um subsídio maior ou menor conforme o caso.iv

A legitimidade do MRAM, segundo Pereira, se efetuou através do questionamento do modelo de reforma agrária “tradicional” ou “conduzido pelo Estado”, cujo principal instrumento é a desapropriação, e o discurso de afirmação do MRAM como modalidade de reforma agrária redistributiva.v As principais críticas direcionadas ao modelo “tradicional” têm como pressupostos a relação conflitava desencadeada nos processos de reforma agrária e seu caráter oneroso, contraponde-se à ausência de conflitos do MRAM, pautada na livre transação mercantil entre compradores e vendedores, ao seu baixo custo, tendo em vista a barganha mercantil e a ausência de recursos judiciais que elevam a quantia paga ao proprietário, além do incentivo ao desenvolvimento produtivo dos agricultores e da formalização do direito de propriedade, uma vez que apenas imóveis titulados seriam objeto de negociação.vi

No plano institucional, o primeiro programa ancorado no MRAM foi o Projeto Cédula da Terra (1997), executado em estados da região Nordeste e Norte de Minas Gerais. De acordo com 2896

Lima, o projeto-piloto, denominado São José, tinha como objetivo o alívio à pobreza rural através da melhoria das propriedades rurais, base dos financiamentos parcialmente sustentados pelo Banco Mundial. Posteriormente, através de um fundo criado pelo governo do Estado do Ceará e pelo próprio Banco Mundial, introduziu-se o financiamento para aquisição de terras.vii Esse mecanismo fazia parte do instrumental político-ideológico do Banco Mundial para a consolidação do MRAM. Para Pereira, embora o projeto “tivesse metas modestas – financiar a compra de terras por 15 mil famílias em quatro anos –, os seus resultados deveriam legitimar a extensão da RAAM em grande escala no Brasil”.viii Foi com esse objetivo que em 1998 foi promulgada a Lei Complementar nº 93, de 4 de fevereiro, que instituiu o Banco da Terra.ix De acordo com a lei, o Banco da Terra era um fundo constituído por, dentre outras fontes, doações realizadas por entidades nacionais ou internacionais, públicas ou privadas, cuja finalidade era financiar programas de reordenação fundiária e de assentamento rural, através, de acordo com o Decreto nº 2.622, de 9 de junho de 1998, da compra e venda de imóveis rurais.x Criado não apenas como um programa, mas como um fundo permanente, o Banco da Terra, entre os anos de 2000 e 2003, resguardadas as implicações do MRAM, foi mais efetivo que o Cédula da Terra, constituído como programa, como indicam as tabela 1 e 2. Tabela 1 – Investimentos do Programa Cédula a Terra entre os anos de 2000 e 2003 CÉDULA DA TERRA ÁREA ANO OPERAÇÕES FAMÍLIAS (Há) 2000 242 4.511 163.430 2001 99 2.271 56.402 2002 61 1.424 31.707 2003 8 186 83.316 TOTAL 410 8.391 334.855 Fonte: Ministério o Desenvolvimento Agrário

VALOR CONTRATADO 28.198.032 13.264.523 12.087.026 973.157 54.522.738

Tabela 2 – Investimentos do Programa Banco da Terra entre os anos de 2000 e 2003 BANCO DA TERRA ÁREA ANO OPERAÇÕES FAMÍLIAS (Há) 2000 253 3.076 46.977 2001 1.583 13.018 664.782 2002 4.069 13.964 222.315 2003 2.734 4.597 198.780 TOTAL 8.639 34.655 1.132.854 Fonte: Ministério o Desenvolvimento Agrário 2897

VALOR CONTRATADO 91.121.165 414.381.436 412.907.680 140.715.527 1.059.125.808

Em 2003, durante o primeiro mandato do presidente Lula foi criado o Programa Nacional de Crédito Fundiário. Na prática, o que representou o programa? Uma ruptura com o MRAM e a inclusão da reforma agrária redistributiva na agenda oficial do governo? Para responder tais questões, além da avaliação das propostas e resultados apresentados pelo programa, será analisado o conjunto da economia política do governo Lula, de forma a identificar no campo da questão agrária as rupturas e continuidades com os governos anteriores. A “reforma agrária” do governo Lula e o Programa Nacional de Crédito Fundiário Embora legitimado como um governo de ruptura com o projeto neoliberal, o conjunto da política macroeconômica do governo do presidente Lula é analisado por Teixeira e Pinto como uma política de continuidade em relação ao governo FHC, em especial pelo sistema de metas de inflação, superávits primários e câmbio flutuante, fortemente influenciada pela ortodoxia econômica, especialmente no primeiro mandato.xi No campo da política agrícola, o período entre o fim do segundo mandato de FHC e os primeiros anos do governo Lula são destacados por Delgado como o da remontagem do agronegócio, beneficiado pela mudança do regime cambial decorrente da crise de fluidez internacional. Nesse cenário, a política de comércio exterior foi alterada, beneficiado os setores primário-exportadores, responsáveis pela geração de saldos comerciais. Para o autor, entre os anos de 2000 e 2005 “a agricultura capitalista, autodenominada de agronegócio, volta às prioridades da agenda da política macroeconômica externa e da política agrícola interna”.xii A conseqüência dessa valorização do agronegócio foi a sustentação, tanto econômica, em especial pelo aumento dos preços internacionais das commodities agrícolas, quanto política do agronegócio, cujo reflexo foi a ocultação das pressões por reforma agrária, principalmente no governo, culminando no que Carvalho Filho denomina de “esvaziamento da reforma agrária”. xiii Para o autor, embora o primeiro mandato do presidente Lula tenha se destacado por medidas de incentivo à assistência técnica e infra-estrutura, além da ausência de repressão aos movimentos sociais do campo (no caso do governo federal), tal período foi marcado pela frouxidão da política fundiária, representada pela ausência de controle, regulamentação e fiscalização das propriedades, de forma a avaliar se sua função social estava sendo exercida, culminando no alinhamento de medidas administrativas, legais e judiciais com o agronegócio. Nesse contexto, destaca o autor que a política fundiária do governo Lula representou a continuidade da estratégia compensatória de reforma agrária, pautada em ações pontuais e privilegiando o acesso à terras públicas e não a desapropriação de terras particulares com vista a realização de uma reforma estrutural, mais uma vez descredenciando a desapropriação como 2898

principal instrumento da reforma agrária. Analisando a relação entre MST e os governos FHC e Lula, Branford corrobora tal posição, afirmando que embora se possa extrair conquistas do MST em relação ao governo do Partido dos Trabalhadores (PT), como a ausência de repressão estatal e a melhoria do apoio do Estado aos pequenos proprietários, a política agrária implementada não alterou o equilíbrio de poder e correlações de forças em torno do latifúndio, cuja conseqüência foi introdução de uma política agrária distante da realidade de uma reforma estrutural.xiv Alívio da pobreza e contenção das tensões sociais por terra foram marcas da manutenção da política agrária do governo Lula em relação aos governos anteriores, mantendo-se o modelo de reforma agrária de mercado sob uma nova roupagem. Nesse contexto, em 2003, o governo Lula reestruturou o Banco da Terra através da unificação da gestão das linhas de financiamento do crédito fundiário e do Banco da Terra, criando o Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNCF). O programa será analisado sob duas perspectivas: a primeira abrange a manutenção do MRAM e o total afastamento da desapropriação por interesse social; a segunda abrange os indicadores de investimentos das três linhas de financiamento do programa. Quanto ao primeiro ponto, o PNCF tem como objetivo oferecer “condições para que os trabalhadores rurais sem terra ou com pouca terra possam comprar um imóvel rural por meio de um financiamento”.xv Além do financiamento para aquisição de imóveis através da compra e venda, o programa oferece recursos para a melhoria da infraestrutura necessária para a produção, preparo do solo, compra

de

implementos

e

construção

de

casas,

disponibilizando,

caso

necessário,

acompanhamento técnico para desenvolvimento autônomo e independente de seus beneficiados. xvi O programa destina-se à trabalhadores rurais, filhos de agricultores familiares ou estudantes de escolas agrotécnicas que sejam enquadrados em um perfil cuja renda anual familiar não ultrapasse quinze mil reais e patrimônio de até trinta mil, além de comprovada experiência na atividade rural. Quanto à escolha da terra, o programa enfatiza que preenchido o perfil de beneficiado, o mesmo deve procurar uma propriedade cujo dono tenha interesse em vender pelo valor de mercado, apresentando título legítimo de propriedade, além de documentos que atestem a regularidade, em especial a tributária, do imóvel.xvii A dimensão da propriedade também ganha destaque no programa. Ao definir que as propriedades “com possibilidades de desapropriação” (o que em regra, seriam as grandes propriedades utilizadas com caráter especulativo) sejam desconsideradas da ação do programa, este prioriza as negociações de “pequenas áreas, não passíveis de desapropriação, cujos donos tenham interesse em vendê-las”, culminando na manutenção do sistema de dominação pautado 2899

nas grandes propriedades agroindustriais.xviii Como se vê, o programa, redefinido em alguns aspectos de gestão e de nomenclatura, mantém os principais pontos do MRAM. Deslocamento do protagonismo do Estado no processo de reforma agrária para a ação de indivíduos em condições de suposta igualdade; substituição de ações de caráter político para as de caráter negocial; prioridade das ações

sobre pequenas

propriedades, excluindo do programa as grandes propriedades, e com isso, mantendo o conjunto de relações sociais dela decorrentes; ênfase no discurso que atribui ao modelo aspectos de celeridade, ausência de conflitos, menor onerosidade e regulamentação do direito de propriedade. Quanto às linhas de financiamento. O programa abrange as linhas de Combate à Pobreza Rural (CPR), Consolidação da Agricultura Familiar (CAF) e Nossa Primeira Terra (NPT). A linha de crédito de CPR foi criada para atender as famílias rurais mais necessitadas que estejam inscritas no Cadastro Único e seus recursos podem ser usados para a aquisição da terra e em projetos de infra-estrutura comunitários. Já a linha NPT é destinada a jovens rurais, filhos e filhas de agricultores, estudantes de escolas agrotécnicas e centro familiares de formação por alternância, com idade entre 18 e 29 anos, que queiram viabilizar o próprio projeto de vida no meio rural. E a Linha CAF atende agricultores que geralmente já estão na terra ou ainda os que possuem minifúndios e querem aumentar sua área, cujos recursos podem ser utilizados para aquisição da terra e para investimentos básicos à estruturação produtiva.xix Os indicadores de resultados de cada linha de financiamento do PNCF, explicitados nas tabelas 3, 4 e 5, evidenciam o desenrolar da política agrária do governo Lula: a reforma agrária foi destituída de seu caráter estrutural e foi transformada em medida de combate à pobreza rural e de pressão social.

Tabela 3 – Investimentos na Linha de Financiamento “Combate à Pobreza Rural” entre os anos de 2003 e 2014

ANO 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011

PNCF – COMBATE À POBREZA RURAL ÁREA VALOR (Subprojeto de aquisição OPERAÇÕES FAMÍLIAS (Há) de terras 200 4.310 98.996 20.415.758 324 5.993 125.368 36.482.939 389 7.309 144.199 48.018.340 482 8.842 173.619 57.532.511 409 7.463 152.590 52.985.817 230 4.307 85.728 32.520.760 33 405 8.555 2.790.969 179 2.282 43.826 24.407.810 235 3.008 58.221 59.934.421 2900

2012 147 1.790 23.921 2013 64 557 8.169 2014 176 787 13.947 TOTAL 2.868 47.047 937.138 Fonte: Ministério o Desenvolvimento Agrário

24.084.404 9.878.116 12.960.905 383.012.751

Tabela 4 – Investimentos da Linha de Financiamento “Consolidação da Agricultura Familiar” entre os anos de 2004 e 2014 PNCF – CONSOLIDAÇÃO DA AGRICULTURA FAMILIAR VALOR (Subprojeto de aquisição de ÁREA terras e Subprojeto de investimento ANO OPERAÇÕES FAMÍLIAS (Há) básico) 2004 97 97 1.452 1.800.993.142 2005 1.905 2.144 23.670 1.800.993.142 2006 6.892 7.623 77.306 1.800.993.142 2007 8.199 10.686 123.717 1.800.993.142 2008 6.570 8.052 105.210 1.800.993.142 2009 5.300 5.913 89.759 1.800.993.142 2010 4.044 4.284 59.529 1.800.993.142 2011 2.914 2.956 38.869 1.800.993.142 2012 2.750 2.752 185.470 1.800.993.142 2013 867 867 20.252 1.800.993.142 2014 542 542 4.440 1.800.993.142 TOTAL 40.080 45.916 729.674 1.800.993.142 Fonte: Ministério o Desenvolvimento Agrário

Tabela 5 – Investimentos na Linha de Financiamento “Nossa Primeira Terra” entre os anos de 2013 e 2014 NOSSA PRIMEIRA TERRA – NPT ÁREA ANO OPERAÇÕES FAMÍLIAS (Há) 2013 12 12 109 2014 140 140 1.247 TOTAL 152 152 1.356 Fonte: Ministério o Desenvolvimento Agrário

VALOR (Subprojeto de aquisição de terras) 844.746 10.064.989 10.909.753

Os indicadores demonstram que, embora no governo da presidente Dilma Rousseff (2011-presente) houve uma queda nos índices de financiamentos das linhas de CPR e CAF, estes se mantiveram efetivos, marcando o pleno esvaziamento da política agrária durante o primeiro mandato da sucessora do presidente Lula.

2901

Considerações Finais Criado em 2003 sob a tutela do governo historicamente ligado às classes populares, o Programa Nacional de Crédito Fundiário não representou, quanto à dimensão política da questão agrária, nenhuma alteração com o modelo de “reforma agrária” aplicado pelos governos anteriores, cujas orientações são decorrentes das redefinições das ações estratégicas do Banco Mundial durante a década de 1990. O Programa mantém o afastamento do Estado como protagonista da condução do processo de reforma agrária e desqualifica a desapropriação por interesse social como seu principal instrumento. Tais medidas, ao não enfrentar a concentração fundiária e seu caráter especulativo, contribuem para a manutenção do sistema de dominação dela decorrente, além da sustentação política e econômica do agronegócio, representante do programa político neoliberal para a agricultura. i

PEREIRA, João M. M. ; ALENTEJANO, P. R. R. . El agro brasileño: de la modernización conservadora a la hegemonía del agronegocio. In: Guillermo Almeyra; Luciano Concheiro Bórquez; João Márcio Mendes Pereira; Carlos Walter Porto-Gonçalves. (Org.). Capitalismo: tierra y poder en América Latina (1982-2012) Argentina, Brasil, Chile, Paraguay y Uruguay. 1ed.México D.F.: Universidad Autónoma Metropolitana (Xochimilco), CLACSO, Peña Lillo Continente, 2014, v. 1, p. 63-136. ii CARDOSO, Fernando Henrique Terra e cidadania. In: Folha de São Paulo, 24 de março, 1995. p. 1-6. iii BRASIL. Medida Provisória nº 2.027-38, de 4 de maio de 2000. Acresce e altera dispositivos do Decreto-Lei no 3.365, de 21 de junho de 1941, das Leis n os 4.504, de 30 de novembro de 1964, 8.177, de 1 o de março de 1991, e 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/mpv/Antigas/2027-38.htm. Acesso em 12 fev 2015. BRASIL. Medida Provisória nº 2.183-56, de 24 de agosto de 2001. Acresce e altera dispositivos do Decreto-Lei no 3.365, de 21 de junho de 1941, das Leis nos 4.504, de 30 de novembro de 1964, 8.177, de 1o de março de 1991, e 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/mpv/218356.htm. Acesso em 12 fev 2015.

2902

iv

PEREIRA, João M. M. A disputa político-ideológica entre a reforma agrária redistributiva e o modelo de reforma agrária de mercado do Banco Mundial (1994-2005). In: Sociedade & Estado, v. 20, n. 3, 2005, p. 611646. Pag. 615. v PEREIRA. João M. M. A disputa político-ideológica entre a reforma agrária redistributiva e o modelo de reforma agrária de mercado do Banco Mundial (1994-2005). In: Sociedade & Estado, v. 20, n. 3, 2005, p. 611646. Pag. 612 e 613. vi PEREIRA. João M. M. A disputa político-ideológica entre a reforma agrária redistributiva e o modelo de reforma agrária de mercado do Banco Mundial (1994-2005). In: Sociedade & Estado, v. 20, n. 3, 2005, p. 611646. Pag. 616 e 617. vii LIMA, Fernando de. Programa Cédula da Terra: uma releitura dos principais resultados. Dissertação de mestrado. Instituto de Economia, Universidade Estadual de Campinas, 2008. viii PEREIRA, João M. M. . Avaliação do projeto Cédula da Terra (1997-2002). In: Estudos Avançados (USP. Impresso), v. 26, p. 111-136, 2012. ix BRASIL. Lei Complementar nº 93, de 4 de fevereiro de 1998. Institui o Fundo de Terras e da Reforma Agrária Banco da Terra e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LCP/Lcp93.htm. Acesso em 4 jun 2015. x BRASIL. Decreto nº 2.622, de 9 de junho de 1998. Regulamenta a Lei Complementar nº 93, de 4 de fevereiro de 1998, que criou o Fundo de Terras e da Reforma Agrária – Banco da Terra, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D2622.htm, acesso em 4 jun 2015. xi TEIXEIRA, Rodrigo Alves & PINTO, Eduardo Costa. A economia política dos governos FHC, Lula e Dilma: dominância financeira, bloco no poder e desenvolvimento econômico. In: Economia e Sociedade, Campinas, v. 21, Número Especial, p. 909-941, dez. 2012. Pags. 921 e 922. xii DELGADO, G. C. A questão agrária e o agronegócio no Brasil. In. In: CARTER, M. (Org.). Combatendo a desigualdade social: o MST e a reforma agrária no Brasil. São Paulo: Ed. da UNESP, 2010. P.79-112. Pag. 93. xiii CARVALHO FILHO, José Juliano. O Governo Lula e o Esvaziamento da Reforma Agrária, in: Reforma Agrária. Revista da Associação Brasileira de Reforma Agrária. ABRA. Volume 34 - Nº 2 • JUL / DEZ - 2007 xiv BRANFORD, Sue. Lindando com governos: o MST e as administrações de Cardoso e Lula. In: In: CARTER, M. (Org.). Combatendo a desigualdade social: o MST e a reforma agrária no Brasil. São Paulo: Ed. da UNESP, 2010. P, 409-431. xv MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO. Programa Nacional de Crédito Fundiário, Disponível em: http://www.mda.gov.br/sitemda/secretaria/sra-crefun/sobre-o-programa. Acesso em: 22 mai 2015. xvi MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO. Programa Nacional de Crédito Fundiário, Disponível em: http://www.mda.gov.br/sitemda/secretaria/sra-crefun/sobre-o-programa. Acesso em: 22 mai 2015. xvii MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO. Programa Nacional de Crédito Fundiário, Disponível em: http://www.mda.gov.br/sitemda/secretaria/sra-crefun/sobre-o-programa. Acesso em: 22 mai 2015. xviii MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO. Programa Nacional de Crédito Fundiário, Disponível em: http://www.mda.gov.br/sitemda/secretaria/sra-crefun/sobre-o-programa. Acesso em: 22 mai 2015. xix MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO. Programa Nacional de Crédito Fundiário, Disponível em: http://www.mda.gov.br/sitemda/secretaria/sra-crefun/sobre-o-programa. Acesso em: 22 mai 2015.

2903

Apontamentos sobre os indivíduos presentes nos ex-votos pintados das Minas (Sécs. XVIII-XIX)1 Weslley Fernandes Rodrigues* Resumo: Consideramos os ex-votos pictóricos discursos que colocavam em circulação as ideias que seus produtores tinham acerca do mundo, ou seja, as representações que cada grupo, classe ou indivíduo faziam da realidade, por isso a possibilidade de também podermos depreender de tal documento certos aspectos das complexas relações sociais da sociedade mineira. Dessa forma, nosso objetivo nessa comunicação é fazer uma análise dos indivíduos por trás das histórias presentes nos ex-votos pintados nas Minas durante os séculos XVIII e XIX. Palavras-chaves: prática votiva, ex-voto pintado, Minas Gerais. Abstract: We consider the ex votos paintings as a discourse that put into circulation ideas that its producers had about the world, namely the representations that each group, class or individual made about reality, so the possibility that we can also deduce from that document certain aspects about the complex social relations of the society in Minas. Thus, our aim in this paper is to analyze the individuals behind the stories presents in the ex votos paintings in Minas during the eighteenth and nineteenth centuries. Key-words: votive practice, ex voto paintings, Minas Gerais.

Introdução Nossa intenção nesse breve texto é discutir a prática votiva nas Minas a partir dos indivíduos que recorriam aos ex-votos pictóricos como forma de pagamento de um voto feito, considerando o universo cultural marcado por constantes trocas entre os mais diversos grupos que efetivaram dinâmicas particulares. A prática votiva nas Minas Gerais estava conectada a uma prática cultural que não se limitavam aos ex-votos pintados. Ao contrário, o cotidiano dos grupos que compartilhavam essa religiosidade oferecia um amplo espectro de objetos que poderiam ser convertidos em ex-votos. Antes de discutirmos os indivíduos que estão presentes nos ex-votos pintados é importante que definamos qual a nossa compreensão acerca desse fenômeno religioso. *

Doutorando pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais, bolsista Capes; orientador Eduardo França Paiva. [email protected]

2904

A prática votiva comporta dois momentos: o voto feito e a concretização da promessa através dos ex-votos. Voto é uma promessa feita a Deus, aos santos, à Santa Maria e/ou a Jesus Cristo buscando a resolução de uma aflição cotidiana, ou seja, é a invocação da ajuda de Deus para aliviar os problemas terrenos prometendo algo em troca caso seja alcançada a mercê suplicada. Tal prática comporta também um segundo momento de cumprimento da promessa efetivada, seja por meio de exposição de objetos nos santuários e/ou por concretização de um ato. Estes objetos e ações denominamos de ex-votos. Assim, ex-voto pode ser um objeto, monumento, ação, sacrifício oferecido à divindade ou aos seres sobrenaturais em reconhecimento de um favor recebido. A materialização do agradecimento por graças recebidas e consequente exposição pública em locais sagrados é apenas um dos momentos da prática votiva. Definimos os ex-votos pictóricos como tábuas votivas pintadas geralmente de pequenas dimensões ofertadas a Cristo, à Virgem Maria ou a um santo (a) feitas em memória de um milagre recebido e consequente cumprimento de um voto. Prática religiosa trazida para o Brasil pelos portugueses durante o período colonial nosso texto concentra-se na análise dessa prática religiosa nas Minas Gerais a partir dos ex-votos pictóricos.

Quem era os indivíduos por trás dos ex-votos pintados?

A crença na capacidade dos santos de intervirem nos momentos aflitivos dos homens revela o compartilhamento de uma religiosidade mediada pela Igreja, afinal, a Igreja pós-Trento reafirmou e revalorizou o culto santoral. Contudo, se em um primeiro momento a prática votiva nos indica tal compartilhamento, há de se frisar também a diversidade de pessoas e grupos sociais distintos que partilhavam tal crença. Como é importante ressaltar a prática votiva não se restringia a nenhum segmento social, entretanto, percebemos maneiras distintas de “consumir” os ex-votos. Percebemos que existia uma busca por distinção na escolha do objeto votivo e no caso dos ex-votos narrativos na forma como os fiéis buscavam se representar. Considerando a riqueza do universo votivo, a escolha entre este ou aquele ex-voto, entre uma maior ou menor qualidade estética do mesmo revela outras implicações que vão além do âmbito religioso que nos possibilitam entrever também as relações sociais dos indivíduos que recorriam a tal prática. O lócus social de cada fiel influenciava na escolha da paga votiva, aqui estamos pensando nas condições materiais de cada indivíduo. Nem todos poderiam iniciar a construção de uma capela2 ou mesmo mandar pintar um ex-voto como o do capitão-mor Lucas Ribeiro de 2905

Almeida, exposto na capela do “Ó” em Sabará (FIG. 1), ou ainda confeccionar os ex-votos simbólicos (FIG. 2) hoje expostos no Museu Arquidiocesano de Mariana de excelente fatura. Considerando que os ex-votos poderiam ser de diversificados tipos, um retábulo, uma escultura, uma capela como a de Nossa Senhora da Luz em Diamantina, mandada construir por iniciativa da devota portuguesa Teresa Perpétua Corte Real em 18033, o cabedal do fiel influenciava na escolha e na qualidade da obra encomendada para figurar como ex-voto. O que estamos querendo sublinhar é que em uma sociedade aristocratizante, como era a do Brasil no século XVIII e XIX, era preciso demonstrar publicamente seu status, mesmo que a imagem que se aparentava ter na vida pública não correspondesse à da vida íntima 4. Ou seja, em uma sociedade em que as aparências eram extremamente relevantes para a manutenção do reconhecimento social, a opção por um objeto que ficaria exposto em local público, mesmo que religioso, pode indicar as relações estabelecidas entres os diferentes grupos sociais. Diferentemente de outros modelos de ex-votos, o quadro pintado e sua legenda possibilitavam um espaço para individualização do crente. Dessa maneira, havia certa relação entre o tipo de ex-voto, a qualidade técnica e estética do mesmo, e mais especificamente no caso dos ex-votos pintados o uso mais ou menos correto da língua e a maneira que o crente buscava se representar na parte pictórica e escrita5. Consideramos os ex-votos pictóricos discursos que colocavam em circulação as ideias que seus produtores tinham acerca do mundo, ou seja, as representações6 que cada grupo, classe ou indivíduo faziam da realidade, por isso a possibilidade de também podermos depreender de tal documento certos aspectos das complexas relações sociais da sociedade mineira dos séculos XVIII e XIX. Daí a importância dos ex-votos narrativos como fonte documental: as tábuas pintadas seguem certa esquematização consagrada pelo costume, contudo, sempre passível de ser “transgredida”. Elas deveriam narrar, contar, reproduzir a estória individual de cada fiel que, pela crença na capacidade dos santos de realizarem milagres, superou as adversidades de seu cotidiano. Assim, mesmo sendo o artesão quem transformava o milagre em imagens e em texto7, é o crente que fornecia as balizas para isso, é ele que informava o acontecido, descrevia os momentos de aflição e de alívio que atravessou, escolhia os personagens que deveriam ser representados, enfim, era o “programador iconográfico” de seu próprio milagre.

2906

FIGURA 18: ex-voto do capitão-mor Lucas Ribeiro de Almeida a Nossa Senhora do “O”, 1720, pintura sobre madeira. Capela de Nossa Senhora do “O”, Sabará. Acervo fotográfico: pessoal. Legenda: “Mercê que fez Nossa Senhora do Ó ao capitão-mor Lucas Ribeiro regente desta Vila Real de Nossa Senhora da Conceição o qual vindo de fazer a festa da dita Senhora de que era [IVIS] o acometeram temerariamente quatro soldados dos dragões e depois todos os mais da companhia com o desejo de o matarem mas nem com a espada e nem com vários tiros q lhe deram foi possível que conseguissem o intento porque a mãe de Deus deu forças ao seu devoto para que de tudo se defendesse sem receber o menor perigo nem em si nem em os escravos que o acompanhavam e em sinal de agradecimento mandou fazer esta memória que sucedeu em os 29 de dezembro de 1720.”

FIGURA 2: Ex-votos dedicados a Santa Bárbara e Sagrada família. Museu Arquidiocesano, Mariana. Acervo fotográfico: Adalgisa Arantes Campos

2907

Se considerarmos, por exemplo, os dois polos sociais de uma sociedade escravista, como era as Minas durante quase a totalidade do período considerado, ou seja, senhor/escravo percebemos que as relações entre ambos são reproduzidas nos ex-votos. Em primeiro lugar é importante destacar que a maioria dos ex-votos pintados trata-se de indivíduos que poderíamos qualificar de “brancos”, são poucos as tábuas votivas com homens e mulheres “negros” representados. Encontramos apenas três ex-votos referentes a escravos e os mesmos foram resultados de promessas feitas por seus senhores. Como é o caso do escravo Aioa (FIG. 3) que estava gravemente enfermo, mas “recorendo o senhor do dito escravo a milagroza Senhora logo se achou com saude no anno de 1758.”9 Em todos os ex-votos que tratam de cura de escravos o status do miraculado e do ofertante é reafirmado. Mesmo que o objetivo principal do objeto votivo fosse o agradecimento da mercê alcançada dos céus, quando tal gratidão é exteriorizada, as relações sociais e posições dos indivíduos são expressas. A pouca aparição de personagens “negros” nos ex-votos pictóricos pode explicar, em certa medida, não termos encontrado no corpus analisado agradecimentos a Nossa Senhora do Rosário, importante devoção nas Minas. Contudo, como explicar a presença de poucos quadros pintados de mulheres e homens “negros”? Em primeiro lugar, sempre é relevante sublinhar que os registros documentais que chegaram à contemporaneidade não correspondem à totalidade produzida no período em questão e que, assim, muitos ex-votos tanto pictóricos quanto de outros tipos se perderam no decurso da História e/ou não puderam ser arrolados no breve espaço deste estudo. Entretanto, cabe ao historiador levantar questões a partir da documentação que tem disponível. Dessa forma, é possível supor que os escravos e os forros, ao invés de se utilizarem dos ex-votos pintados para agradecer os milagres obtidos, preferiam outros tipos de ex-votos como, por exemplo, os anatômicos. Afinal, como já salientamos, o universo votivo não se restringia aos quadros pintados. Percebemos nos ex-votos pictóricos uma individualização também ao se descrever o cargo, a patente, a ocupação ou as relações de parentesco. Assim o fez o assistente nas Minas Gerais do Ouro Preto, Manoel Gonsalves10, os capitães José Denis dos Santos11 e Francisco Pinto12 ou mesmo dona Ana Barboza de Magalhães13 que se identificou como mulher do capitão João Peixoto, entre vários outros exemplos que poderiam ser citados.

2908

FIGURA 3: ex-voto de Aioa escravo de Antônio Dias Godim a Sant’Ana Mestra, 1758, pintura sobre madeira. Museu do Aleijadinho, Ouro Preto. Acervo fotográfico: pessoal. Legenda: “Milagre que fez a Senhora Santana a Aioa escravo de Antônio Dias Godim que se achava gravemente enfermo e sem esperança de vida e recorrendo o senhor do dito escravo a milagrosa Senhora logo se achou com saúde no ano de 1758”.

Sobre os votantes cabe ainda destacar um último aspecto. Relacionando os oráculos acionados pelos fiéis nos ex-votos com as motivações para tal acionamento, percebemos que o intermediário invocado não está relacionado com a motivação da promessa, o que nos indica que o mediador celestial fazia parte de uma devoção particular, daí a presença de devoções populares em Portugal trazidas por colonos para as Minas. Também concluímos que a diferença entre os diversos grupos que compartilhavam a crença no milagre residia “não tanto na essência, mas principalmente no modo de expressão do ser (-se) religioso,”14 como salientamos.

1

Parte da discussão efetivada nesse texto é fruto da dissertação de mestrado do autor. Cf. RODRIGUES, Weslley Fernandes. A história em ponto pequeno: prática votiva e culto santoral nas Minas (Sécs. XVIII e XIX). Dissertação de mestrado. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2012. 2 De acordo com José Pêssoa a igreja de Santa Luzia de Angra dos Reis, construída em 1632, também é uma paga votiva. Cf. PÊSSOA, José. Milagres: os ex-votos de Angra dos Reis. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2001, p. 15. 3 Cf. ARAÚJO, Jeaneth Xavier de. Os artífices do sagrado e a arte religiosa na Minas setecentistas: trabalho e vida cotidiana. 2010. Tese (doutorado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, p.152.

2909

4

MESGRAVIS, Laima. Os aspectos estamentais da estrutura social da Colônia. Estudos Econômicos, São Paulo, 13(especial): 799- 811, 1983, p. 801. 5 Tal aspecto merece ainda uma análise mais cuidadosa que busque considerar e relacionar uma série de fatores tais como, “os níveis de composição plástica, a complexidade e a minúcia do traço, a riqueza dos jogos de perspectiva, profundidade e cor, com a perfeição linguística, [dessa maneira] poderemos certamente associar o exemplar a um cristão socialmente favorecido e de gosto apurado e por isso interessado em contratar os melhores mestres, para desde logo poder demarcar-se do nível de expressão avaliado como rudimentar e naïf das classes que lhe são subalternas.” NOGUEIRA, Carlos. Aspectos do ex-voto pictórico português. Culturas Populares. Revista Electrónica 2 (mayo-agosto 2006), 13 p, p.6-7. 6 Sofre o conceito de representação utilizado Cf. CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990. 7 Cabe a ressalva de que o próprio fiel tenha pintado e/ou escrito seu ex-voto. 8 Sobre a análise feita deste ex-voto Cf. ARAÚJO, Jeaneth Xavier de. Op. Cit., p. 152-159. 99 Ex-voto de Aioa escravo de Antônio Dias Godim a Sant’Ana Mestra, 1758, pintura sobre madeira. Museu do Aleijadinho, Ouro Preto. 10 Ex-voto de Manoel Gonsalves a Santo Antônio, 1797, têmpera sobre madeira, 14,3 x 19,5 x 0,8 cm. Museu de Arte Sacra, São João Del Rei. 11 Ex-voto de José Denis dos Santos ao Nosso Senhor do Bonfim, 1783, pintura sobre maneira. Capela do Nosso Senhor do Bonfim, Santa Bárbara. 12 Ex-voto de Francisco Pinto a Bom Jesus de Matosinhos, 1799, pintura sobre madeira. SBJM, Congonhas. 13 Ex-voto de dona Ana Barboza de Magalhães a Bom Jesus de Matosinhos, 1771, pintura sobre madeira. SBJM, Congonhas. 14 NOGUEIRA, Carlos. Aspectos do ex-voto pictórico português. Culturas Populares. Revista Electrónica 2 (mayo-agosto 2006), 13 p, p.6.

2910

A ESFERA MUNICIPAL NA PRIMEIRA REPÚBLICA O Planejamento Urbano em Juiz de Fora

YURI AMARAL BARBOSA Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Juiz de Fora [email protected] Orientador: Prof. Dr. Julio Cesar Gabrich Ambrózio

RESUMO Pretendemos discutir o papel da esfera municipal como gestora ativa no planejamento e na constituição do espaço urbano no final do século XIX. A república no Brasil trouxe mudanças constitucionais relevantes, como a autonomia conferida ao município, que apodera-se da responsabilidade sobre as transformações do cotidiano citadino. Tendo a cidade de Juiz de Fora como pano de fundo, pretendemos analisar como se sucedeu a formulação e aplicação do primeiro “plano diretor” da cidade, o Plano Howyan, em 1892. Palavras-chave: Geografia Histórica; Políticas Públicas; Esfera Municipal.

ABSTRACT We discusses the role of the municipal level while managing in planning and setting up of urban space in the late of 19th. The Brazilian republic brought constitutional changes, as the autonomy given to the municipality, which seizes with greater determination of responsibility for the transformation of the urban daily life. Having Juiz de Fora as a backdrop, we intend to analyze how was the formulation and implementation of the first "master plan" of the city, in 1892. Key Words: Historical geography; Public Policy; Municipal Level.

2911

1 – Introdução É muito comum entre pesquisadores de geografia histórica ter o urbano enquanto objeto de estudo. Ao propor investigar os processos ocorridos no passado espacial das cidades, deparamo-nos, quase que de imediato, com um problema que, muitas vezes, não nos ocorre a priori. Enquanto geógrafos de formação, alcançamos certo sucesso na compreensão das estruturas e dos processos que regem o desenvolvimento sócio espacial. O que não nos damos conta é o fato de que, na maior parte das vezes, aplicamos nossas categorias de análise somente no tempo presente, na sociedade atual que já nos está dada e que nos habituamos a interpretar ordinariamente. De certo que é possível, como propõe Abreu1 (2000, p.18), transferir nossas categorias de análise através do tempo para interpretar o passado, contudo, o “ambiente” com o qual nos deparamos ao transporta-las nos é completamente estranho. É um país estrangeiro, na representação de David Lowenthal2. Portanto, a pesquisa em geografia histórica demanda uma análise que vai além do objeto em si. Pressupõe uma assimilação apurada de todo o contexto político, econômico e cultural do período no qual o objeto está inscrito, que, no mais das vezes, é deveras distinto do que se apresenta nos tempos hodiernos. Tal particularidade impõe aos geógrafos que se debruçam sobre o passado das cidades uma dupla tarefa. Primeiro, compreender, através da pesquisa histórica, sobre quais alicerces se estruturava o espaço urbano. Isso implica em entender desde como funcionava a hierarquia e as ações de cada esfera governamental sobre a cidade, até mesmo perscrutar acerca da superestrutura que permeava o comportamento social do período. Segundo, munido deste conhecimento prévio, estabelecer as respostas pretendidas no problema de pesquisa, no objeto central da investigação. Entre as ferramentas conceituais que apoderam os geógrafos de uma análise refinada do espaço está a discriminação dos agentes sociais que atuam, independentes ou em conjunto, na configuração urbana. Sob diferentes perspectivas, vários autores já se empenharam em enumerar estes atores partícipes do processo urbano. Em Justiça Social e a Cidade (1980)3, buscando identificar os grupos que operam no mercado de solo urbano, Harvey elenca (i) os usuários de moradia, (ii) os corretores de imóveis, (iii) os proprietários, (iv) os incorporadores, (v) as instituições financeiras, e (vi) as instituições governamentais. Mais adiante, preocupado com a realidade brasileira, Roberto Lobato Corrêa redige O Espaço Urbano (1989)4, onde destaca as ações e estratégias de cinco grupos na organização espacial das cidades: (i) os proprietários dos meios de produção, (ii) os proprietários fundiários, (iii) os promotores imobiliários, (iv) o Estado, e (v) os grupos sociais excluídos.

2912

É, contudo, necessário mencionar que a maior parte dos autores que empenharam-se em pensar essa cidade enquanto o palco, sobre o qual os atores disputam o poder e, neste embate dialético, se reproduzem e produzem espaço, o fizeram tendo o nosso mundo contemporâneo como referência. Ou seja, pensaram este processo na segunda metade do século XX, sob a égide de um intenso processo de integração econômica e cultural. Algo sem precedentes na história da humanidade. Por conseguinte, seus elaborados arcabouços conceituais produzem distorções quando se almeja aplica-los sobre arranjos espaciais pretéritos, fazendo-se necessário adotar lentes específicas para se ter uma visão acurada quando o objetivo do trabalho é dar foco ao passado. Ao analisar a conformação urbana de várias cidades brasileiras no período colonial, Pedro de Almeida Vasconcelos (1997)5 busca sanar esta assincronia entre os modelos contemporâneos de configuração urbana e seu objeto, as cidades coloniais. Neste sentido, seu trabalho elencou e descreveu as ações dos agentes modeladores das cidades durante o período colonial, revelando uma miríade de atores sociais que, se não desapareceram na história (apesar de sua memória e seu legado permanecer presente em nossa sociedade), atualmente participam de uma forma completamente distinta da configuração urbana. São eles: (i) a Igreja, (ii) as ordens leigas, (iii) o Estado, (iv) os agentes econômicos e (v) a população e os movimentos sociais. Embora a lógica capitalista de uso e ocupação do solo seja secular, essa comparação demonstra que seus agentes e suas estratégias de poder sobre o espaço urbano foi se modificando (e refinando) ao longo dos séculos. Mudaram-se não somente os atores, mas também os papéis que cada um desempenha nesta complexa obra que é a cidade. Tomemos o Estado6 como exemplo. Suas atribuições mudaram sobremaneira entre aquelas descritas por Vasconcelos (1997), voltadas para a conformação e proteção de um território colonial ultramarino, daquelas desenvolvidas por Corrêa (1989), referente à uma nação soberana, cuja autonomia é legitimada no cenário mundial. Entre estes dois modelos existe um ponto de inflexão extremamente relevante, ponto a partir do qual passa a germinar as primeiras políticas públicas municipais, conformando um novo período no processo urbano. Nos referimos, precisamente, à transição do período Imperial para a República, período do qual nos ocuparemos nesta comunicação, tendo como pano de fundo a cidade de Juiz de Fora, fundada no ano de 1850, na Zona da Mata de Minas Gerais.

2913

2 – O ponto de inflexão: a transição do Império para a República A primeira década republicana busca sanar um problema de longa data da administração pública brasileira: a questão da autonomia municipal. Ou seja, a possibilidade conferida aos municípios de gerirem seus próprios territórios com suas próprias rendas, assegurados pela Constituição – questão negligenciada em todo o período imperial. O desprestígio da esfera municipal fica patente desde a Constituição da Mandioca 7, a primeira do país, promulgada em 1824. Em todo seu conteúdo, o único ponto em que menciona o município é com o intuito de caracterizar a composição das câmaras, detalhando que, posteriormente, seria decretada uma Lei Regulamentar para especificar suas funções (BRAZIL, 1824)8. A referida Lei, de 1º de outubro de 1828, almejava dar forma às câmaras municipais, definir suas atribuições, e seu processo eleitoral, neste sentido, decreta em seu artigo nº 24 que “as Camaras são corporações meramente administrativas, e não exercerão jurisdicção alguma contenciosa” (BRAZIL, 1828)9. Em outras palavras, observamos que as câmaras não gozavam de influência política, nem, tampouco, de soberania na gestão de seus interesses. Segundo Meirelles10 (1985, p.5), as elites provinciais desconfiavam da capacidade administrativa dos municípios, outrossim, receavam que suas câmaras se transformassem em um reduto de efervescência e aspiração política de camadas desprestigiadas da população. Sujeitas ao Império e às suas respectivas províncias, as casas legislativas ficaram reduzidas ao imobilismo administrativo, econômico e político, ceifando sua autonomia. No contrapasso, suas responsabilidades administrativas eram inúmeras (LEAL, 1976, p.75)11:

cuidar do centro urbano, estradas, pontes, prisões, matadouros, abastecimento, iluminação, água, esgotos, saneamento, proteção contra loucos, ébrios e animais ferozes, defesa sanitária animal e vegetal, inspeção de escolas primárias, assistência a menores, hospitais, cemitérios, sossego público, polícia de costumes, etc.

Com o advento da República, a Constituição modificou-se significativamente: apesar de reservar apenas o artigo nº68 para se referir à esfera municipal, o tópico consagrou sua autonomia, embora ficasse ainda sujeito à Constituição específica do estado. Neste artigo, observa-se que “os Estados organizar-se-ão de forma que fique assegurada a autonomia dos Municípios em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse” (BRAZIL, 1891, grifo nosso)12. Na interpretação do jurista Hely Meirelles, tal legislação afirmou o princípio da autonomia e discriminou as atribuições municipais, contudo, tais determinações ficaram limitadas à tinta no papel, de modo que “durante os 40 anos em que vigorou a Constituição de 2914

1891, não houve autonomia municipal no Brasil” (1985, p.7). Nesta perspectiva, os municípios ficaram sujeitos aos ditames dos estados, e, amiúde, dos grandes latifundiários locais, conduzindo o país à expressão mais aguda do coronelismo 13. À asserção de Meirelles, faz-se mister um contraponto: a despeito da forte presença do coronelismo no Brasil reforçar o fato de a Constituição ter ficado “apenas no papel”, o que percebemos é que a Constituição específica do estado de Minas Gerais garantia, ao menos em teoria, a autonomia dos órgãos públicos municipais espelhada numa descentralização administrativa. No artigo nº 75 da referida Constituição, observamos tal cenário explicitado através de seus incisos (MINAS GERAES, 1907, p.141-142)14:

II. A administração municipal, inteiramente livre e independente, em tudo quanto respeita ao seu peculiar interesse, será exercida em cada município por um conselho eleito pelo povo, com a denominação de Camara Municipal. IV. O orçamento municipal, que será anuo e votado em época prefixada [...], a creação de empregos municipeas, a instrução primaria e profissional, a desapropriação por necessidade ou utilidade [são] objetos de livre deliberação das camaras municipaes, sem dependência de approvação de qualquer outro poder, guardadas as restrições feitas nesta Constituição. VI. O governo do Estado não poderá intervir em negócios peculiares do município, senão no caso de perturbação da ordem pública.

Salientamos ainda o artigo nº 76, onde fica declarado que “é da exclusiva competência das municipalidades decretar e arrecadar os impostos sobre immoveis rurais e urbanos e de industrias e profissões” (MINAS GERAES, 1907, p. 144), fato que facultava aos municípios a criação suas próprias fontes de renda. Deste modo, acreditamos que, ao menos nos centros mais urbanizados do estado, gozava-se de certa autonomia, seja ela política, administrativa ou financeira. Comunga deste posicionamento a obra publicada por Barbosa (2013, p.77)15, ao afirmar que as novas atribuições dos municípios e o acréscimo às receitas dos mesmos, estribados na descentralização administrativa outorgada pela Constituição de 1891, propiciou não só maior autonomia aos órgão públicos municipais, como fomentou o surgimento de uma nova figura, um novo agente na cidade: o político profissional. O autor endossa esta interpretação afirmando ainda que “a organização dos municípios aprofundava ainda mais a tendência de descentralização, ao tornar o distrito a base da organização administrativa estadual” (2013, p.38).

2915

3 – As políticas públicas em Juiz de Fora É, portanto, através da Constituição estadual de 1891 que será possível consolidar neste cenário o papel da esfera pública. A partir da estatização dos instrumentos de intervenção, a municipalidade apodera-se da responsabilidade sobre a transformação do cotidiano citadino, passando a ser legitimamente o órgão fomentador das infraestruturas indispensáveis para o desenvolvimento urbano. Neste sentido Miranda afirma que, “salvo em circunstâncias muito peculiares e passageiras, não é possível falar, antes de 1892, em formulação de políticas públicas” (1990, p.103)16. 1892, pois, somente em março deste ano tomava posse a primeira câmara eleita após a proclamação da República, contando quinze vereadores eleitos pelo povo, sendo um, Francisco Bernardino, ocupante da cadeira de presidente da câmara, o primeiro agente executivo do município. Atendendo aos anseios republicanos, as medidas implantadas a partir deste momento gestavam a esfera municipal, que assumia, doravante, maior protagonismo no processo de desenvolvimento urbano. Consequentemente, eram planejadas vultuosas obras para este primeiro mandato (BARBOSA, 2013, p.89), sobretudo aquelas ligadas ao saneamento urbano, prioridade de sua campanha. A situação endógena, por sua vez, era propícia: (i) – Havia uma demanda real da população por melhorias em infraestrutura, seu número, afinal, havia alavancado de 6.456 habitantes em 1854 (SOUZA, 1998, p.41)17 para 22.58618 em 1890 (BRAZIL, 1898, p.55)19, e constantes reclamações eram registradas nos jornais acerca das condições sanitárias do município, como a existência de regiões pantanosas, e frequentes inundações do rio que corta a cidade, o Paraibuna. (ii) – Atrelado à essa demanda, havia um desinteresse da esfera privada por investimentos desse cariz, visto que eram necessários vultuosos recursos cujo retorno não se dava diretamente em lucro, mas em qualidade de vida para a população. (iii) – A nova Constituição alavancara a arrecadação municipal de modo que, no orçamento de 1893 havia dobrada a receita em relação ao ano anterior, possibilitando, deste modo alavancar uma possível arrecadação extraordinária20. (iv) – A Sociedade de Medicina e Cirurgia de Juiz de Fora é outro fator que irá pressionar a demanda por obras públicas na cidade desde sua fundação, em 1889. Os critérios de ação da sociedade, respaldado na teoria miasmática21, eram baseados na transformação e normatização dos espaços. Neste sentido, “atuou para organizar e tornar salubre o espaço público e privado no município visando impedir a propagação das doenças” (BARROSO, 2008, p.61)22.

2916

Esta miríade de fatores coadunar-se-ia num projeto de saneamento e expansão de Juiz de Fora que entrou para a história como o Plano Howyan, muitas vezes referido na historiografia local como o primeiro “plano diretor” da cidade. Enquanto agente executivo municipal, Francisco Bernardino convidou o engenheiro francês Gregório Howyan23 para assumir o cargo de diretor de obras municipais. Episódio que ganhou reconhecimento da imprensa, que afirmou ser uma decisão acertada, já que o engenheiro “gosa de elevada reputação pelos seus variados conhecimentos scientíficos e pelos importantes trabalhos que já tem executado em diversas cidades” (O PHAROL, 12 ago. 1892)24. Desde então passa, o engenheiro, a sugerir melhorias na estrutura urbana, como no abastecimento d’água, na construção de estradas, na indicação de técnicos especializados em saneamento e na autoria de um projeto de saneamento e expansão da cidade (OLIVEIRA, 1966, p.164)25. Suas pretensões eram grandes, segundo a câmara, através da execução deste projeto seria “conseguido o saneamento completo desta cidade, tornando-a ao mesmo tempo, pelo embelezamento como pela salubridade, sem rival na América do Sul” (O PHAROL, 8 ago. 1894)26. A reforma urbana aparecia de forma impetuosa na senda da nova administração republicana, e, por conseguinte, na autonomia conferida ao município pelas constituições federal e estadual. A ambição centrava-se na transformação da cidade de Juiz de Fora seguindo o modelo dos grandes centros urbanos europeus (BARBOSA, 2013, p.95). O projeto do engenheiro francês guardava fortes traços de monumentalidade, não era, portanto, exequível no período de um mandato, ao contrário, exigiria todo um esforço e planejamento a longo prazo. Howyan, então, discrimina as ações previstas em seu trabalho elencando-os na ordem prioritária de execução: “É preciso, primeiramente, tirar a umidade das ruas e para isso, fazer canais de cintura que deverão recolher a parte mais agressiva das águas” (HOWYAN, 2004, p.151)27, preocupado com a salubridade da cidade, Howyan enfatiza o fato de que, embora as águas do rio invada superficialmente as ruas da cidade, ela acaba propiciando a eliminação de focos de miasmas ao limpar as tubulações subterrâneas de esgoto. Posteriormente,

é indispensável baixar levemente o leito do rio e elevar a parte baixa da cidade cujo terreno insalubre é composto, em grande parte, de matérias orgânicas, encontrando-se enlameado, sem oferecer a solidez necessária que permita edificar construções firmes. É necessário desvencilhar-se da vegetação que o obstrui, desinfeta-lo com uma certa camada de cal, e executar, nesse local, trabalhos de aterro e, só então será possível construir boas habitações (HOWYAN, 2004, pp.151-153).

2917

Em seguida, é a vez da retificação do rio e a drenagem dos pântanos, o engenheiro planejava uma derivação do rio Paraibuna, para, com isso, amenizar a sinuosidade de seu canal no trecho urbano, aumentando a velocidade de escoamento das águas e evitando, consequentemente, o transbordo de sua calha28. O projeto previa, ainda, a criação de uma Polícia Sanitária, com o intuito de fiscalizar as condições de higiene do município, sobretudo das habitações. Por fim, o autor comenta de forma mais breve acerca da construção de uma rede completa de esgotos e de uma rede de distribuição d’água para a cidade, que goza de “abundante recurso hídrico potável de fácil captação e de módica execução” (HOWYAN, 2004, p.153). Sem dúvida alguma seu projeto era, senão ambicioso, pelo menos vultoso para a jovem “Princesa de Minas”, transparecendo o desejo do engenheiro de dotar Juiz de Fora com todo o aparato das grandes cidades europeias, tendo como modelo Paris, recém-reformada pelo Barão de Haussmann29. Na prática, o Plano Howyan esbarrou numa série de empecilhos para consubstanciar a totalidade de seu projeto. Alguns de ordem prática, como a demora na compra e importação de matérias-primas essenciais, como o cimento, que vinha da França, e a contratação de mão-deobra especializada, como indicam os anúncios dos periódicos da época. Outros de ordem financeira, já que as obras foram financiadas pela venda de títulos da dívida pública municipal, e somente cerca da metade das apólices foram vendidas, não alçando, portanto, o total da verba necessária para a execução do plano. Um erro aritmético do engenheiro, que superdimensionava a obra, também fez parte do pacote de problemas que o plano apresentou, tornando-o passível à variadas críticas nos jornais locais. Decorrente deste, veio, em tom mais agudo, críticas que colocavam em xeque a competência do presidente da câmara, Francisco Bernardino. Comandada, sobretudo, pelo diretor Sociedade de Medicina e Cirurgia de Juiz de Fora, João Penido, as críticas, na realidade, refletiam dissensões maiores, inerentes ao jogo político da época, que envolvia “tanto monarquistas e republicanos como frações da elite local contrárias a grupos no poder a nível municipal e estadual” (MIRANDA, 1990, p.185). Esses variados problemas acabaram por prejudicar a imagem do político na cidade, que acabou sendo derrotado nas eleições posteriores, e o Plano Howyan, consequentemente, foi suspenso.

4 – Considerações Finais

Não obstante, o plano de saneamento e expansão da cidade de Juiz de Fora é um marco em sua história. Reflete precisamente o momento em que o papel do município cambia,

2918

passando de um agente que realiza intervenções pontuais, esporádicas, no espaço urbano, para um gestor ativo de seu processo, responsável pelo seu planejamento e desenvolvimento. Destacamos que esta mudança foi possível somente por meio das condições políticas do período, que garantiu autonomia política, administrativa e financeira dos municípios, que passaram a formular suas primeiras políticas públicas. A pesquisa geográfica que pretende se debruçar sobre estas formas pretéritas de organização espacial deve buscar dar conta dessas particularidades inerentes a cada região ou mesmo a cada núcleo urbano, demandando um esforço considerável para percorrer os caminhos, muitas vezes tortuosos, do passado.

1

ABREU, Maurício de. Construindo uma geografia do passado: Rio de Janeiro, cidade portuária, século XVII. GEOUSP, nº7, p.13-25, 2000. 2 Sobre tal representação, ver: LOWENTHAL, D. Como conhecemos o passado. Proj. História, nº17, nov., São Paulo, 1998. 3 HARVEY, David. A Justiça Social e a Cidade. 1ª Edição. São Paulo: Ed. HUCITEC, 1980. 4 CORRÊA, Roberto Lobato. O Espaço Urbano. 1ª Edição. Rio de Janeiro: Ed. Ática, 1989. 5 VASCONCELOS, Pedro de Almeida. Os agentes modeladores das cidades brasileiras no período colonial. In: Castro, I. E.; GOMES, P. C. C.; CORRÊA, R. L. (org.) Explorações Geográficas. 1ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1997, p.247-278. 6 Ao nos referirmos ao Estado aqui, aludimos precisamente à esfera municipal, por ser aquela que está ligada de forma mais estreita com o processo de urbanização. 7 Tal denominação é oriunda do caráter censitário do pleito, composto apenas por aqueles cidadãos que possuíssem uma renda anual equivalente a 150 alqueires de farinha de mandioca, limitando, assim, o voto às elites agrárias do país. 8 BRAZIL. Constituição (1824). Constituição Politica do Imperio do Brazil: promulgada em 25 de Março de 1824. Disponível em: Acesso em: 15 jan. 2015. 9 BRAZIL. Lei de 1º de outubro de 1828. Dá nova fórma ás Camaras Municipaes, marca suas attribuições, e o processo para a sua eleição, e dos Juizes de Paz. Disponível em: . Acesso em: 15 jan. 2015. 10 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 5ª Edição. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1985. 11 LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, Enxada e Voto. 3ª Edição. São Paulo: Ed. Alfa-Omega, 1976. 12 BRAZIL. Constituição (1891). Constituição da República dos Estados Unidos do Brazil: promulgada em 24 de fevereiro de 1891. Disponível em: Acesso em: 15 jan. 2015. 13 Conceituando este período, Leal afirma que o habitat destes “coronéis” eram os municípios predominantemente rurais, do interior, cujo isolamento constituía-se apanágio de primeira ordem. Neste sentido, as atividades comerciais e industriais eram inversamente proporcionais à vigência da prática política do coronelismo no Brasil (1976, p.251 et seq.). Leal faz ainda uma interessante análise sobre a fonte de poder destes “coronéis”: para o autor, não deve-se reduzir este episódio de nossa história à simples afirmação anormal de poder privado, ao contrário, o coronelismo pressupõe certa decadência deste poder. “Este sistema político é dominado por uma relação de compromisso entre o poder privado decadente e o poder público fortalecido”, compromisso este que exprime certa debilidade de ambas as partes. Se por um lado a Constituição Republicana institucionalizava os poderes dos estados para conter a insubmissão da esfera privada, por outro, este poder paralelo fortalece-se na medida em que a abolição e o sufrágio, estendido à todos que pudessem assinar seus nomes, conferem o poder de voto aos trabalhadores rurais: massa de manobra na mão dos grandes latifundiários (LEAL, 1986, p.251). Em sua obra “Da Violência”, Hannah Arendt salienta a relação inversa entre a violência e o poder, que excluem-se mutuamente. Tal observação consubstancia, primeiro, a fragilidade dos poderes, sobretudo o poder privado, que vinha sendo minado; segundo, a violência inerente ao período, novamente, sobressaindo a violência empregada pelos coronéis, que afirmavam-se através destes meios coercitivos, deixando transparecer, na realidade, sua decadência. 14 MINAS GERAES, Constituição (1891). Constituição do Estado de Minas Geraes: promulgada em 15 de julho de 1891. Organização do Texto: Imprensa Official do Estado de Minas Geraes, Bello Horizonte, 1907, 222 p.

2919

Regimento interno da Camara do Deputados, Regimento Commum e Regimento Interno do Senado, Constituição do Estado de Minas e Leis Addicionaes, Constituição Federal. Disponível em: . Acesso em: 19. jan. 2015. 15 BARBOSA, Luciano Senna Peres. “Viva o povo de Juiz de Fora!” – Eleições e estratégias discursivas na Primeira República brasileira. 1ª Edição. Juiz de Fora: Ed. FUNALFA, 2013. 16 MIRANDA, Sonia Regina. Cidade, Capital e Poder: Políticas públicas e questão urbana na velha Manchester Mineira. 1990. 322 f. Dissertação – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1990. 17 SOUZA, Sonia M. de. Além dos cafezais: produção de alimentos e mercado interno em uma região de economia agroexportadora – Juiz de Fora na segunda metade do século XIX. 1998. 203 f. Dissertação – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1998. 18 Importante mencionar que encontra-se dados distintos de população de acordo com a fonte utilizada. 19 BRAZIL. Synopse do Recenseamento de 31 de Dezembro de 1890. Ministerio da Industria, Viação e Obras Publicas. Officina da Estatistica, Rio de Janeiro, 1898. Disponível em: . Acesso em: 19 jan. 2015. 20 Sobre estes empréstimos, a Constituição Estadual de 1891 reservava o artigo nº 79 para tratar sobre os créditos adquiridos pelas câmara. Em parágrafo único, enuncia que “não serão contrahidos novos empréstimos, quando o encargo dos existentes consumirem a quarta parte da renda municipal” (MINAS GERAIS, 1907, p.145). 21 Segundo esta teoria, o ambiente era determinante no processo de dispersão das doenças. Desta forma, as enfermidades eram provenientes dos solos e da atmosfera insalubres, que, ao entrar em contato com os habitantes dessas localidades, provocavam todo tipo de moléstias. 22 BARROSO, Elaine Aparecida L. Modernização e Higienismo: controle sanitário e gestão político-científica na Manchester Mineira (1891-1906). 2008. 224 f. Dissertação – Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2008. 23 O engenheiro era formado pela École des Ponts et Chaussées de France, e, em 1891 fora convidado para integrar a comissão de técnicos que iria escolher o local da nova capital do Estado de Minas Gerais. Passando por Juiz de Fora naquele ano, afeiçoou-se tanto à cidade que resolveu, por conta própria, elaborar um plano revolucionário de abastecimento de água e esgoto. Era, amiúde, visto pelos morros da cidade com seus auxiliares aferindo com instrumentos de engenharia e anotando em cadernetas as características morfológicas da cidade. Francisco Bernardino, na época membro do Conselho de Intendência, impressionara-se com o arrojo do trabalho apresentado, assim, quando eleito e de posse do poder executivo do município, convidou o mesmo para tal cargo (OLIVEIRA, 1966, p.162). 24 O PHAROL. Directoria de Obras. Juiz de Fora, 12 de agosto de 1892. Disponível em: . Acesso em: 27 mar. 2015. 25 OLIVEIRA, Paulino de. História de Juiz de Fora. 2ª Edição. Juiz de Fora: Ed. Gráfica Comércio e Indústria, 1966. 26 O PHAROL. Camara Municipal – Projecto de saneamento. Juiz de Fora, 08 de agosto de 1894. Disponível em: . Acesso em: 27 fev. 2015. 27 HOWYAN, Gregório. Saneamento e expansão da cidade de Juiz de Fora: águas e esgotos; retificação dos rios e drenagem. 1ª Edição. Juiz de Fora: Ed. FUNALFA, 2004. 28 Há que se dizer que este projeto de retificação da calha do rio somente foi retomado após o episódio vexatório passado pela administração municipal com a enchente de 1940. Profusamente registrado pelos periódicos da época, a enchente deixou algumas vítimas e inundou todo o trecho do rio ao longo da malha urbana. Em homenagem ao engenheiro francês, a obra, inaugurada em 1950, foi denominada “Variante Howyan”, e mudou o curso do Paraibuna, retirando-o do bairro Poço Rico, que foi, posteriormente, aterrado. 29 Sobre a reforma de Paris no século XIX, recomendamos fortemente a obra de David Harvey recentemente traduzida para o português: Paris, capital da Modernidade (2015).

2920

INICIAÇÃO CIENTÍFICA

2921

AMADO E LAMPIÃO UMA CONSTRUÇÃO IMAGÉTICA Alcilene Jorge Lopes – Graduanda em História – FMU Orientadora: Yara Cristina Gabriel E-mail: [email protected] Resumo A pesquisa tem por objetivo problematizar personagens singulares da obra Capitães de Areia de Jorge Amado. Para isso, o estudo procura relacionar as características do bando de lampião, narradas por Jorge Amado, e o imaginário social brasileiro sobre as ações lideradas por Lampião durante o início do século XX no nordeste do Brasil. Palavras-chaves: Lampião, Jorge Amado, Vargas.

Abstrat This research goals to discuss peculiar characters – Lampião’s gang – from Capitães de Areia, Jorge Amado’s novel written during 1930 decade. In pursuit of that, the study aims to find the link between the way of Jorge Amado weaves Lampião’s gang and the Brazilian social imaginary respects to actions leaded by Lampião during the early of XXth century in Northeast of Brazil. Kayword: Lampião, Jorge Amado, Vargas.

Essa pesquisa problematizar o nascimento simbólico de personagens que marcaram profundamente o imaginário da região do Nordeste no período de 1930 a 1945. Pretendemos problematizar a construção da personalidade pública de Lampião e seu grupo no imaginário coletivo nacional e terá como ponto de partida a obra Capitães da Areia i, de Jorge Amado. Tal obra, que se tornou popular na época de seu lançamento, foi proibida pela ditadura de Getúlio Vargas e seu autor perseguido pela sua notória inclinação ao comunismo e por apontamentos que contradiziam as orientações governamentais. Ao observarmos as representações construídas no imaginário brasileiro sobre o grupo de Lampião, podemos notar que o “bando” passou a ser entendido como um problema para o governo, não somente na Era Vargas como, também, para seus antecessores, como Epitácio Pessoa (1920) a Washington Luís (1930). O bando de Virgulino causou as mais diversas sensações, como respeito, rancor, ódio, amor, admiração e etc. Em sua atuação de 1920 a 1938, levando em consideração que o cangaço tal como foi conhecido vigorou até a morte do braço direito de Lampião, o Corisco

2922

(1938), sendo que o Lampião e Maria Bonita foram mortos em Angico em 1937, durante uma emboscada em Sergipe, mas estabeleceram vínculos estreitos entre a população e uma desavença vigorosa com coronéis da região. Esse homem não somente passou a povoar o imaginário da cultura popular nordestina como deixou muitos vestígios por onde passou, tanto que permitiu o imigrante libanês Benjamin Abraãoii filmasse sua rotina. O Departamento de Impressa e Propaganda (DIP)iii censurou a filmagem alegando o prejuízo a moral brasileira ao exaltar a imagem de um bandido sanguinolento. Não somente interagiremos com a pessoa e personagem Lampião como compreenderemos os mecanismos estruturais que geraram esse fenômeno, como no estudo realizado por Victor Nunesiv, que estabelece uma postura que nega e afirma a imagem de bandido de Lampião ao analisar o caso especifico do bando. O autor afirma que a população recorria ao coronel à procura de segurança, nascendo assim à figura do capangagemv com ela o cangaçovi para resoluções de conflito no nordeste brasileiro, ou seja, o cangaço surgiu como uma resposta potencial ao poder autoritário que o coronel exercia. Será utilizada como fonte documental a obra Capitães da Areia, de Jorge Amado, entendida aqui como dispositivo vigoroso para captar o imaginário de uma época. Recorreremos às outras fontes documentais do período, como os jornais e revistas, para operacionalizar o cruzamento de dados e obter referenciais comparativos sobre a leitura elaborada por Amado. Utilizaremos como recurso para análise teórica as obras: “Lampião na Bahia” de Fontes (1999), “Bandidos” de Hobsbawn (1969), “Lampião, o rei do cangaço” de Chandler (2003), “Coronelismo, enxada e voto” de Leal (1976), o documentário “Mulheres no cangaço” produzido pela Rede Globo em 1976, e o filme “Baile Perfumado” dirigido por Lírio Ferreira e Paulo Caldas em 1997, que contem as filmagens de Benjamin Abraão. Segundo Ferreira (2009, p. 61 a 70)vii o uso da literatura como fonte histórica advém do seu contato profundo com o tempo estudado, e por apresentar uma representação ou uma caricatura do mundo, e principalmente pelo fato dos artistas e escritores entenderem que a arte, a partir do século XX, deveria ser um desdobramento da vida social. Escritores e artistas desenvolveram um engajamento e um posicionamento perante a sociedade, então mais que retratar ou imaginar descobriram que poderiam interferir ou moldar esse meio. A arte deixou de ser encarada como um agente influenciável e ganhou um novo sentido, o de agente modificante e modificado de práticas sociais.

2923

Sendo assim a literatura é passível de analisada, no caso especifico de Jorge Amado ter essa visão nos permite questionar porque o sucesso em tiragens, ocorrido em países socialistas, pode ser entendido como ferramenta política que espelhava seus ideais ou seus posicionamentos. Para nos auxiliar nesse feito nos aproximaremos de dois grandes nomes da critica literária para compreender com maior profundidade o impacto das obras de Jorge Amado, nos embasaremos em Antônio Candidoviii e Alfredo Bosiix para ter uma dimensão das diversas opiniões do escritor baiano, que era comunista e defensor das religiões africanas. Segundo Candido, Jorge Amado compreendeu que a literatura servia como ferramenta política, para o autor "o desenvolvimento do romance brasileiro, de Machado a Jorge Amado, mostra quanto a nossa literatura tem sido consciente da sua aplicação social e responsabilidade na construção de uma cultura" (CANDIDO, 1975, p 115). Ou seja, Jorge Amado tinha consciência que suas obras carregavam em si um instrumento de luta, tinha a intenção de tornar a sua literatura uma manifestação política e ao mesmo tempo tornar o texto acessível para a população. Candido afirma que "a consciência social dos românticos imprime aos seus romances esse cunho realista, a que no vimos referindo, e provêm da disposição de fixar literariamente a paisagem, os costumes, os tipos humanos" (1975, p. 115). Para Bosi a produção literária brasileira, de 1930 a 1950, se fez em uma ficção regionalista que se compunham de signos e simbologias próprios de um dado povo e que servia como ensaios sociais, partindo do pressuposto de uma crítica à sociedade que dava vida aos romances como Machado de Assis em “Memórias de Brás Cubas”. Já Jorge Amado envolve-se com a literatura de proletariado e alcançou sucesso editorial em países socialistas, entretanto o critico alerta que “o populismo literário deu uma mistura de equívocos, e o maior deles será por certo passar por arte revolucionária. No caso de Jorge Amado, porém, bastou à passagem do tempo para desfazer o engano” (BOSI, 1994, p. 401). Bosi classifica a obra “Capitães da Areia” como uma obra de depoimentos líricos, apesar de trazer a lasciva de narrar à vida no litoral e suas dificuldades. Aparentemente a afirmativa de Candido e Bosi quando confrontadas se anulam ao caracterizar Jorge Amado, porém elas podem nos dar a oportunidade de enxergar que não se pode tomar por totalidade um ato. Isso é, o motivo do engajamento politico de Amado não sonega ou obscurece sua grande produção, parte de uma formula novelesca que deu certo pelo cunho mercadológico, já

2924

que sabia que haveria quem consumisse seus escritos e fazia questão de aproximar sua arte das camadas mais pobres. Estudar a figura de Lampião através do olhar de Jorge Amado revela-se tarefa ainda pouco explorada pela historiografia nacional, demonstrando ser atividade significativa para a ampliação do debate sobre o movimento comunista brasileiro. Uma figura que reforça as vicissitudes de seu tempo como a pobreza extrema e o poder do coronel, que se estendia aos seus capangas (milícia) até os volantes (polícia). Lampião foi fruto de uma estrutura marcada pelo coronelismo, que no seu apogeu culminou criando sua própria critica o cangaço. Jorge Amado tem como ponto de partida a retratação das condições de vida dos meninos de rua na Bahia do começo da década de 1930, chamados de capitães da areia, sendo que o enredo não apresenta datação precisa, portanto uma história sem temporalidade exata. Segundo Zélia Gattaix, Amado, passou um mês vivendo com um grupo de crianças em situação de rua para dá maior veracidade a sua nova novela, procurou dar voz a um grupo marginalizado que crescia de forma invisível em Ilhéus. Em Capitães de Areia, Amado, percorre a temática da moral, das condições materiais, da luta de classes e da religião para construção de sua narrativa. A obra tem como fio condutor o conflito entre a criminalidade e punição contra crimes cometidos por ordem socialxi, tendo como pano de fundo a sexualidade. A obra “Capitães da areia” retrata não somente uma Bahia na década de 1930, com suas dificuldades e seu lado mais obscuro, como um mundo a parte da sociedade, mas também o autor tece relações entre seu posicionamento político e de forma figurativa apresenta seus ideais de transformação social. A descrição do modo de vida dos capitães revela não uma pobreza e sim uma miséria excessiva, visto que a ambientação do modo de vida se dá em um casarão abandonado na beira da praia. Esse cenário se expande quando o autor descreve a relação entre os garotos e a cidade de Ilhéus, afirmando que eles conheciam cada esquina e ladeira de toda a cidade, que por eles, era ricamente explorada e mapeada. O que dava a liberdade e a possibilidade do grupo cometer séries de roubos e furtos, com intuito de sobrevivência perante as desigualdades sociais da época. Vale lembrar que a cidade alta era descrita como território reservados aos ricos que não ajudava os necessitados, relegados a cidade baixa. Os ricos nessa obra não possuem nomes, os pobres sejam em apelido ou seu nome são identificados, bem como, tinham sua personalidade e o devir de existir assegurados por Jorge Amado.

2925

Os capitães da areia eram constantemente perseguidos pela policia. Os crimes de ordem social não eram encarados como fruto de uma desigualdade latente entre os ricos, pobres e miseráveis e sim fruto de uma má formação de personalidade do sujeito. Como relatado pela personagem do livro, João Adão em suas conversas com os meninos e o padre José Pedro: (...) A não ser quando João de Adão ria dele e dizia que só a revolução acertaria tudo aquilo. Lá em cima, na cidade Alta os homens ricos e mulheres queriam que os Capitães da Areia fosse para as prisões, para o reformatório, que era pior que as prisões. Lá embaixo, nas docas, João de Adão queira acabar com os ricos, fazer tudo igual, dar escola aos meninos (AMADO, 2003, p. 109).

É válido ressaltar que essas pessoas que são chamadas de coronéis pela maioria das vezes não faziam parte dos órgãos de repressão e segurança do Estado, polícia ou exercito, eram denominados assim os homens de pose, que com seu poder e influência, conquistado ou pela tradição ou pela riqueza, se estende e apoia as forças oficiais, mesmo tendo e mantendo uma força miliciana chamada no nordeste como capangas ou jagunços. Esse fenômeno é extremante marcado e o Estado Novoxii agiu contra esse mecanismo de usurpação da coisa pública em prol aos interesses particulares, sendo eles escusos ou não. Esses homens influentes eram doutores ou donos de fazendas de pequeno e médio porte na maioria das vezes, porém não se deve crer que eram muito ricos, apesar do padrão de ostentação que carregavam em toda a sua simbologia e signos xiii, conseguiam viver melhor que um sertanejo por conta das hipotecas do imóvel ou das terras. Essa estruturação de poder tal qual aconteceu pode ser analisada como fruto da maneira ao qual o Brasil foi colonizado. Podemos observar tal analise em estudos feitos por Victor Leal com apoio dos trabalhos de Oliveira Viannaxiv. Afirmam que a coroa portuguesa transferiu a segurança aos colonatos que interferiam nos problemas e jogos políticos através do peso do seu apoio as candidaturas, com o Estado Novo, Getúlio Vargas e seus ministros, esvaziam essas manobras nomeando interventores que estivessem alheios a essas estruturas. O capangismoxv, milícia própria desse coronel, era presente no cenário nordestino, o cangaço é a resposta dos pobres contra a autoridade desse homem poderoso. Entretanto esse mesmo fenômeno contou com o apoio de fazendeiros, figuras politicas, religiosas e das forças oficiais do Estado, caso isso não acontecesse Lampião de longe não seria a lenda que se tornou. Contudo ele era a força que protegia os sertanejos das mãos ambiciosas dos coronéis. Como observado pelos historiadores Oleones Fontes e Billy Chandler.

2926

Lampião se torna no livro, Capitães da Areia, um personagem marcante não somente no imaginário dos nordestinos como, também, pela premissa de suas bem-feitorias aos mais pobres e ao combater o poder tirânico dos coronéis e seus jagunços, milícia ou guarda costas, e dos “macacos”, como Volta Secaxvi, personagem da obra chamava os policiais. A imagem apresentada por Amado estabeleceu uma construção de memória e histórias folclóricas o que impacta até hoje no dialeto regional nordestino. Podemos falar em vários Lampiões, pois o homem tornou-se um personagem que tem sua trajetória contada e recontada de acordo com as aflições do tempo presente. Voltemos para a obra e a alinharemos com a proposta. Seriam os meninos de rua realmente potenciais criminosos? Segundo Amado na forma que ele retrata a resposta seria, não, não são criminosos, o meio quando não propicia uma vida material digna aos seres humanos os incitam a marginalidade, principalmente quando se tem poucos com muito e muitos com pouco. Essa balança que somente pende para um lado, que gera a luta de classes, precisaria ser revertida e nivelada, essa seria a solução dos problemas dos meninos de rua e de certo modo para os sertanejos que Lampião salva, vejamos um trecho para uma apreciação e reflexão: (...) Só a caatinga é que é de todos, porque Lampião libertou a caatinga, expulsou os homens ricos da caatinga, fez a caatinga a terra dos cangaceiros que lutam contra os fazendeiros. O herói Lampião, herói de todo o sertão de cinco estados. Dizem que ele é um criminoso, um cangaceiro sem coração, assassino, desonrado, ladrão. Mas para Volta Seca para os homens, as mulheres e as crianças do sertão é um novo Zumbi dos Palmares, ele é um libertador, um capitão de um novo exército. Porque a liberdade é como o sol, o bem maior mundo. E Lampião luta, mata, deflora e furta pela liberdade. Pela liberdade e pela justiça para os homens explorados do sertão imenso de cinco estados: Pernambuco, Paraíba, Alagoas, Sergipe e Bahia (AMADO, 2009, p. 239).

No decorrer de toda a obra o personagem Volta-Seca propaga entre os Capitães da Areia as historias de seu padrinho e de toda a sua coragem, suas comparações da imagem de Pedro Balaxvii com a de Lampião eram constantes. As ações do bando Capitães da Areia são sincronizada com as de Lampião, isso é, os meninos somente lutavam para terem uma vida mais digna e menos injusta, traziam a mesma liberdade que os cangaceiros da caatinga, porque pelas mãos deles se vinha a justiça. O cangaço é um movimento datado, a existência do bando de Lampião não descarta a hipótese de outros grupos de bandidos, mas o modo como temos relato e com a intensidade que aconteceu entre 1920 e 1930 não se foi mais registrado. Virgulino, natural de Pernambuco, tinha notória inclinação ao exibicionismo, convidava repórteres para entrevistálo e ostentava joias pelo corpo e nas roupas, tinha um apreço considerável por perfumes.

2927

Gostava de tirar fotografia quando passava em vilarejos que tinha um equipamento fotográfico. O grupo de lampião surge em Pernambuco na configuração de banditismo. Segundo Eric Hobsbawnxviii essa prática provém de crimes de ordem social, ou seja, o sujeito em condição de extremo desamparo recorre à extorsão e usurpação dos bens dos mais ricos ou favorecidos e distribui entre aos mais necessitados. Essa pratica não constitui um caso isolado, tanto no como também na Inglaterra com o Hobby Hood. Qual é a característica essencial do banditismo? A sociedade camponesa, ou no caso do Brasil, sertaneja, elege como herói esse homem como uma resposta ou reinvindicação as suas condições. Lampião em entrevistas fornecidas durante as suas passagens aos vilarejos afirmava que entrara na vida de bandido por querer vingar o assassinato a mando de um coronel de seu pai, afirmava ainda, que tinha anseio de sair daquela vida, entretanto a perseguição policial não permitia que ele se fixasse em terra para trabalhar. Os sertanejos eram constantemente coagidos pelos coronéis e pela policia, a violência no agreste era excelência. Um contra ponto importante deve ser efetuado, para Billy Chandler xix, Hobsbawn romanceia e analisa de forma errônea a imagem de Lampião e o seu papel no cenário brasileiro. Para Chandler tratar o caso brasileiro o comparando a Hobby Hood é a forma mais cliché para se tratar do assunto, critica a posição de Hobsbawn afirmando que o autor esqueceu que Virgulino trabalhava a mando de alguns coronéis em troca a confiança da guarita e repouso tranquilo. Entretanto não era raro Lampião fazer alianças com coronéis para ter abrigo ou extorqui-los a relação entre ameaça e amizade era uma linha tênue, contudo tinha uma fama melhor que seus perseguidores entre os comerciantes por ser bom pagador, como descrito por Oleones Fontes em seu estudo. Mesmo encaixando a figura de Lampião na categoria de banditismo vingativo, Hobsbawn tenta inocentar e até amenizar as atrocidades cometidas não somente a Lampião, como de outros do seu bando. O autor apresenta em sua analise o tema como uma reparação ou um perdão social. Podemos observar algumas práticas benevolentes de Lampião como apontado por Oleone Fontesxx, ao afirmar que (...) Lampião não estava causando problemas no estado da Bahia, a polícia também agia com lentidão, não indo ao seu encalço senão eventualmente. Ele declarara que viera descansar e que não faria mal a nenhum sertanejo. Estava mesmo, paulatinamente, conquistando a reputação de generoso e humanitário, chegando a distribuir, em Patamuté e Barro Vermelho, dinheiro entre pobres. Viajava de carro e obsequiava regiamente os motoristas. Assistia a festas de casamento e até vestido de

2928

noiva dera de presente. Era pródigo em pagar bebida para seus admiradores. Em Canché bebeu na companhia de vários soldados, trocou rifle com um deles. Mostrava ares de se haver recuperado socialmente. Era simpático aos sertanejos. Sabia fazer relações públicas. Começava a tornar-se querido. A Bahia para Lampião, era uma espécie de balneário onde folgava das duras lides de bandoleiro, perseguido tenaz e impiedosamente pelas volantes (FONTES, 1991, p. 22).

Lampião se fazia aparecer, fazia questão de não passar desapercebido por onde passava, o curioso era que parte de suas táticas passaram pelo envio de bilhetes para prefeitos, padres, “coronéis” e até mesmo ao alto escalão da policia, muitas vezes não só para se fazer presente mas também com pedido de dinheiro, rendição e ameaças. O que chama atenção das práticas sanguinolentas de violências, era a característica peculiar que Lampião possuía a alfabetização e o uso da simpatia para se relacionar com as estruturas oficiais. Temos uma quantidade considerável de coberturas jornalísticas e fotos de Virgulino Ferreira da Silva, que fazia questão de ser chamado de capitão Lampião. Em muitos casos de perseguição ao bando se perdia muitos homens do governo, logo civis se alistaram voluntariamente a polícia para a caça do bandido por outro lado alguns cangaceiros foram presos, o que ganhou um destaque considerável, como no caso de VoltaSeca, que foi capturado em 1932, depois de por iniciativa própria sair do bando aos 15 anos de idade. A imprensa baiana cobriu o ocorrido com assiduidade, retratando-o como um menino que adentrara no mundo do crime aos 9 anos para lavar os cavalos, mas logo mostrouse mais útil, por ser uma criança e por assumir o serviço de espionagem e reconhecimento do lugar que seria invadido, segundo os estudo de Oleones Fontes. No livro “Capitães da Areia”, de 1937, Volta-Seca era tido como o mais cruel e de personalidade tão forte que em vida foi protagonista de várias brigas com o chefe Lampião. Já as referências finais sobre a vida do personagem Volta-Seca, dos Capitães da Areia, remontava as histórias do “bandido-mirim” que depois de julgado recebeu a sentença de 140 anos de prisão, mas foi perdoado por Getúlio Vargas em 1952 e foi libertado. Volta-Seca, fora da ficção de Amado, dava entrevistas sobre sua experiência junto ao bando de Lampião e se tornou amigo de Lima Barreto xxi que lançou um filme, que fazia analogia ao líder dos cangaceiros, no qual foi convidado a fazer critica, porém devido a construção da imagem de Lampião, seu padrinho e chefe, não se mostrou convencido em elaborar qualquer argumento sobre a obra e alertou, o diretor do filme, sobre seus limites pessoais baseados em suas referências éticas, como a honra do sertanejo a ser resguardada e respeitada.

2929

Outra fonte de informação que apresenta novos olhares sobre o tema do cangaço e pode ser relacionado aqui como ponto de referencias para busca de novas fontes de pesquisa é o documentário: Mulheres do cangaçoxxii, de 1976, nessa obra as mulheres do bando, que sobreviveram, contaram às mazelas que sofriam e o que as atraiam ainda jovens para o lado de Lampião. Os relatos do documentário corroboram com as impressões de Volta-Seca, para Fontes (1999), a vida de ostentação da riqueza e do ato de fazer a caridade, ou a filantropia deixavam os sertanejos pobres maravilhados, atribuindo ao bando um poder e um respeito. Segundo esse autor era comum os saques e as extorsões, contudo quando se alimentavam e bebiam nas paradas era de feitio do chefe pagar a conta. Como relembrado pelo comerciante Seo Zeca, ao firma que Lampião pode ter sido ruim para muita gente – declarou enfático, Seo Zeca Mendonça. – Menos para mim. Os cabras comeram, beberam e Lampião tudo pagou. E diz, sincero: _A polícia é que me arrasou. Compravam tudo fiado: comida, bebida e o que encontrassem. E me mandavam cobrar do capitão José Galdino, em Bonfim. Eu ia até lá de trem com as notas, mas o capitão nunca me pagou um tostão (FONTES, 1999, p. 74).

Essa estratégia de Lampião angariava, para si, simpatizantes e pessoas que lhe prestassem lealdade em troca de proteção, aos que passaram por seu caminho e conquistaram sua amizade gozaram de segurança. Uma das figuras religiosas mais conhecidas no nordeste Padre José Cicero tinha um laço amistoso com Virgulino, como relatado no filme “Baile Perfumadoxxiii”, baseado no diário de Benjamin Abraão. A truculência policial durante as perseguições, isso é a perseguição que os jagunços (milicianos) faziam aos sertanejos enxergarem Lampião como um herói que trazia consigo a chave da libertação das amarras que a vida cruel que sertão carregava. “(...) Lampião mata soldado, mata homem ruim. Pedro Bala neste momento ama Lampião como a um herói, a um seu vingador. É o braço armado dos pobres no sertão (...)” (AMADO, 2003, p. 200). É exatamente essa força no imaginário do homem, baseada em uma construção dúbia de quem cometeu os mais diversos crimes, mas que tinha como principio base de suas ações o respeito pelas famílias pobres e desafortunadas foi sacralizada construindo um imaginário típico do bando de Lampião. A premissa manter a honra, que era o bem mais valioso de pessoas que estavam esquecidas dos planos do governo ou renegadas a própria sorte em um ambiente que pouco ou nada tem a oferecer nos momentos de seca. Essa é a tônica do livro Vidas Secas de Graciliano Ramos, podemos ver retratada justamente a descaracterização ou desumanização dessas pessoas que eram marginalizadas, porém eram cobradas com a moral vigente. Nesse âmbito se explica, segundo Hobsbawn, a

2930

intensidade da imagem do Lampião e porque ele foi um bandido diferente dos outros. Para esse autor, ele representou a rebeldia e o poder que se nega aos sertanejos. Virgulino foi mais que um indivíduo que se destacou por beneficio ou maléfico a sociedade, ou por representação de sua imagem, que o sacralizou com força na memória coletiva. Fez ficar evidente uma região do país que é constantemente esquecido no estudo referente à República Velha ou Estado Novo. Os nordestinos citados nesse artigo como Oleones Coelho, Jorge Amado e Graciliano Ramos estudando ou remontando o cenário que remete ao sertanejo deixam explicito, a imagem do Lampião e registraram a existência de uma cultura típica, com linguajar, memória e história próprias, que por mais que não impactem a esfera econômica e política do Brasil estavam e estão presentes para serem apreciados e entendidos como pertencentes, e não de forma análoga, a uma construção de nação. Não é possível se chegar a uma única imagem do capitão das caatingas, sem ser tendencioso, pois a escrita e a analise da História precisa ser feita muito além do binômio bem versus mal, aqui conseguimos nos aproximar de parte dessas imagens, contudo fazê-la não significa cultuar a sombra de um bandido e sim trazer para o campo do debate teórico elementos culturais que por vezes se tornam esquecidos em nossos estudos. i

- AMADO, Jorge: Capitães da Areia, São Paulo, Companhia das Letras, 2009.

ii

- ABRAÃO, Benjamin: Lampião (1936 – 1937).

iii

- D’ARAUJO, Maria Celina: A Era Vargas, 2ª edição, São Paulo, Editora Moderna, 1997.

iv

- LEAL, Victor Nunes: Coronelismo, enxada e voto, ed. 4, São Paulo, Biblioteca Alfa-Ômega de ciências sociais, 1978.

v O capangismo é o fenômeno de milícia de “coronéis”, ou seja, são homens em uma força paramilitar particular. vi O cangaço surgiu como também uma força paramilitar, porém sem um coronel central ou um líder financiador, são homens organizados em interesses próprios para combater aos milicianos. vii

- FERREIRA, Antonio Celso: O historiador e suas fontes, São Paulo, Editora Contexto, 2009.

viii ix

- CANDIDO, Antônio: Formação da literatura brasileira, volume 2, edição 5, São Paulo, Livraria Itatiaia Editora LTDA, 1975.

- BOSI, Alfredo: História concisa da Literatura Brasileira, 38º edição, São Paulo, Cultrix, 1994.

x Considerações finais no livro “Capitães da Areia” de 2003. xi Segundo o historiador Erick Hobsbawn, é todo e qualquer crime que tem como força motriz a desigualdade social. xii - D’ARAUJO, Maria Celina: O Estado Novo, Rio de Janeiro, Jorge Zanhar Editor, 2000. xiii

Segundo Leal, o poder simbólico do coronel se dava desde sua alimentação com carne, leite, mel e sobremesas, suas roupas ternos e chapéus, o uso de automóvel e filhos alfabetizados em escolas da capital.

xiv - Os estudos foram embasados na obra “O idealismo da Constituição” de Oliveira Vianna.

xv Como definido por Victor Nunes Leal em seu livro “Coronelismo, enxada e voto”. xvi Antônio dos Santos que viveu até o ano de 1997. xvii xviii

- Pedro Bala era o líder do bando Capitães da Areia, que ao termino do livro deixa de ser bandido para se tornar líder comunista. - HOBSBAWN, Eric J.: Bandidos, Rio de janeiro, Forense-Universitária, 1969.

xix

- CHANDLER, Billy Jaymes: Lampião, o rei do cangaço, São Paulo ,Paz e Terra, 2003.

xx

- FONTES, Oleones Coelho: Lampião na Bahia, Petropólis, 3ª ed., Editora Vozes, 1999.

xxi

- BARRETO, Lima: Os cangaceiros, Banco do Estado de São Paulo, 1953.

xxii

- PENNA, Hermano: Mulheres do cangaço, Rede Globo, 1976. Essa obra foi produzida pela Rede Globo.

xxiii

- FERREIRA, Lirio & CALDAS, Paulo: Baile Perfumado, 1997. A produção cinematográfica homônima feita por Benjamin Abraão.

2931

Movimento Estudantil e a Reforma Universitária da ditadura na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) - 1964-1968 Alexandre Caetano1

Resumo: Este trabalho procura analisar a reação do Movimento Estudantil (ME) diante da reestruturação acadêmico-científica da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), elaborada entre os anos de 1966 e 1968. Naquele período, o ME em todo o país se mobilizava contra os acordos celebrados entre o regime militar e agência norte-americana (USAID) para a efetivação da Reforma Universitária no Brasil. Pretendemos demonstrar que a Ufes foi uma laboratório dessa reforma e estabelecer até que ponto essas questões não passaram ao largo do ME local. Palavras-chave: Ditadura militar; Movimento Estudantil, Reforma Universitária. Abstract: This paper tries to analyze the Students Movement's (ME) reaction on the Federal University of Espírito Santo (Ufes) academic-scientific restructuring elaborate between 1966 and 1968. During that time, the ME mobilized all over Brazil against agreements between the military dictatorship and the north american agency (USAID) for the realization of the University Reformation in Brazil. The intention is to demonstrate that Ufes was a laboratory of this reformation and to define to what extent these issues remained far from the local ME. Keywords: Military dictatorship, Student Movement, University Reformation. O Espírito Santo, como de resto todo o país, passou por profundas transformações durante a década de 1960, período conturbado da história do Brasil, marcado pela instalação de uma ditadura após o golpe civil-militar de 1º de abril de 1964, que se prolongaria por 21 longos anos. Temos pesquisado vestígios da dinâmica do Movimento Estudantil (ME) no Espírito Santo nos anos 1960, para determinar até que ponto ele não foi caudatário do ME nacional, ignorando ou subestimando questões específicas que marcavam a conjuntura regional. Nossa perspectiva de estudo, baseada na visão de João Roberto Martins Filho i e Marialice Foracchiii, procura se despir de qualquer tentação de dar ao ME o caráter épico que ele costuma receber em representações construídas por seus atores e mesmo em muitos dos estudos e pesquisas dedicados ao movimento do período que analisamos. Para Martins Filhoiii 1

Graduado em História e Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes)

2932

a “mitologia estudantil” é resultado de uma reprodução ilusória localizada na própria autoimagem elaborada pelas lideranças universitárias. Baseado no conceito de categoria social de Nicos Poulantzasiv, Martins Filho vê os estudantes como uma categoria social inserida na classe média, o que faz com que sua situação de classe se torne um fator fundamental na definição do caráter social de sua participação. Entre 1966 e 1968, a Ufes passou por uma reestruturação acadêmica afinada com os princípios da Reforma Universitária pretendida pela ditadura militar, ao mesmo tempo em que os estudantes se mobilizavam em todo país contra os acordos celebrados pelo governo brasileiro, através do Ministério da Educação e Cultura (MEC), com a agência norteamericana United States Agency International Developmet (USAID), que se tornaram conhecidos pela como acordos MEC-USAIDv. A reestruturação da Ufes mudou sua configuração física, que de uma federação de faculdades espalhados pela Capital, passou a se concentrar em apenas dois campi, em Goiabeiras e Maruípe Apesar da grande mobilização do ME contra os famigerados acordos MEC-USAID, instrumentos que contribuíram para que ditadura militar estabelecesse as bases para a Reforma Universitária, enfim efetivada com a edição da Lei nº 5.540, de 28 de dezembro de 1968, nos chama a atenção a falta de notícias acerca de mobilização estudantil contra o fato da Ufes ter sido um dos laboratórios da reforma universitária planejada pelo regime militar. Aliás, o que nos parece é que ME local não se deu conta da dimensão do processo de reestruturação que se desenvolvia dentro da Universidade, pois não se pode afirmar que ela tenha sido feita de forma oculta. Publicações feitas pelas entidades estudantis e os depoimentos de algumas de suas principais lideranças, mostram que eles tiveram conhecimento do que se passava naquele momento. De acordo com o estatuto da UFES na época, a representação estudantil no Conselho Universitário era formada pelo presidente do Diretório Central dos Estudantes (DCE) e um representante eleito pelos estudantes. Mas mesmo depois que os estudantes ligados à posições mais à esquerda conquistaram o DCE, o processo continuou tramitando sem maiores dificuldades na Universidade. O processo de elaboração do projeto de reestruturação da UFES começou com a vinda à Vitória do Rudolph P. Atcon, técnico do USAID e autor de um célebre relatório sobre a situação do ensino superior brasileiro, que seria conhecido pelo o seu nome. Através de um ofício enviado à Atcon pelo reitor da universidade, Alaor de Queiroz Araújo, descobrimos que ele havia mantido “entendimentos” o técnico da Usaid no Rio de Janeiro em maio de 1966, quando foi acertada a vinda dele à capital do Estado, com o objetivo de “familiarizar-se com as dependências da UFES, conhecer as diretivas da Universidade e conversar

2933

amplamente sobre todos os aspectos que as animam em torno da renovação de nosso plantel de estudos superiores” vi. Não havia ainda um acordo fechado para que o técnico do Usaid elaborasse o projeto de reestruturação, mas sim para que ele “sugerisse” medidas para a realização da “inadiável” reestruturação da UFES para que, na medida em que surgissem oportunidades e necessidades, se combinassem “de mútuo acordo”, visitas subsequentes para o tratamento de aspectos do planejamento integral da UFES. Pelo texto do ofício, Atcon desembarcou em Vitória no dia 12 de junho de 1966, para uma visita de uma semana, com passagens de ida e volta de avião e estadia em hotel pagas pela reitoria, que ainda colocou uma importância de Cr$ 1 milhão “à disposição” do técnico do USAID. Depois da visita, em outro ofício enviado à Atconvii. Queiroz Araújo solicitou que Atcon indicasse as “bases financeiras” para elaboração por parte dele do “planejamento integral” para a UFES. Não descobrimos, pelo menos até o momento, nenhum documento sobre quais teriam sido essas “bases”. O certo é que, através da Resolução nº 17/67, de 24 de junho de 1966, o Conselho Universitário aprovou a criação de uma Comissão de Planejamento, destinada a proceder a reestruturação da Universidade, nos termos da Mensagem nº 06/66, do reitor Alaor de Queiroz Araújo, de 21 de junho de 1966. A poderosa Comissão de Planejamento foi inicialmente presidida pelo professor da Escola Politécnica, José Manuel da Cruz Valente, substituído depois pelo professor Ivan Ramos de Medeiros, que faleceria em maio de 1967. Quem assumiu a presidência então foi Marcello Antônio Basílio. Também compuseram a comissão Stélio Dias, Manoel Ceciliano Sales de Almeida e Enildo Carvalhinho. Anos depois, Sales de Almeida seria reitor da UFES e, depois da UVV. Stélio Dias e Marcelo Basílio ocuparam a Secretaria de Estado da Educação, respectivamente, nos governos de Eurico Resende (1979-1983) e José Ignácio Ferreira (19992002). O primeiro também se elegeria duas vezes deputado federal pelo PDS (1983-1987) e, posteriormente, pelo PFL (1987-1991). Atcon apresentou o projeto de reestruturação para a Comissão em dezembro de 1966. O Plano de Reestruturação Acadêmico-Científica da UFES, elaborado em cima da proposta do técnico do USAID, foi entregue aos membros do Conselho Universitário na reunião realizada em 04 de abril de 1967. No entanto, antes mesmo que o plano fosse aprovado pelo órgão colegiado superior da UFES, quando Atcon já ocupava a secretaria executiva do Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras (CRUB), o projeto foi transformado em livro e publicado pela editora da Universidade Federal de Santa Catarinaviii.

2934

Através da Mensagem nº 04/67, de 04 de abril de 1967, ao enviar o plano para apreciação do Conselho Universitário, o reitor Alaor de Queiroz Araújo esclareceu que a nova estrutura acadêmico-científica se encontrava dentro do espírito que norteava a política para o ensino superior preconizado pela ditadura militar, através do Decreto-Lei nº 53, de 18 de novembro de 1966, suplementado pelo Decreto-Lei nº 252, de 28 de fevereiro de 1967ix. Os dois decretos-lei foram editados depois (grifo nosso) que a Comissão de Planejamento já havia sido criada pela UFES e Atcon apresentado sua proposta de reestruturação. No final da mesma reunião de 04 de abril de 1968, o reitor Queiroz Araújo determinou a distribuição do Volume I do Plano de Reestruturação Acadêmico-Científico para os integrantes do Conselho Universitário, dando início à discussão do projeto naquele órgão, o que se estenderia até o mês de julho. Naquele momento, eram representantes discentes, o presidente do DCE, Jorge Augusto Pires Encarnação, e o conselheiro Rodrigo Loureiro Martins, ambos identificados com posições conservadoras e de direita. Não há qualquer registro que essa discussão tenha sido levada para o conjunto dos estudantes. Com a eleição de uma nova diretoria do DCE, no final de maio de 1966, em pleito indireto, a representação estudantil mudou, com o estudante de Direito, Carlos Magno Gonzaga Cardoso, assumindo uma vaga como novo presidente da entidade. Cardoso era conhecido por ter posições moderadas e conciliatórias, embora participasse de uma gestão mais à esquerda. Já o ex-presidente do DCE, Jorge Pires Augusto Encarnação, foi reconduzido ao Conselho na condição de representante discente. A discussão e votação das emendas se estenderam por até 17 de julho de 1967, quando o Conselho Universitário aprovou o parecer do conselheiro Emílio Zanotti, favorável ao Plano de Reestruturação, com o voto contrário apenas do conselheiro João Luiz Horta Aguirre, assim mesmo, por questões estritamente corporativistas. Os dois representantes estudantis, votaram pela aprovação do projeto. No geral, as emendas aprovadas foram mais cosméticas e não alteraram nada de substancial no plano. A discussão sobre o Plano de Reestruturação Acadêmico-Científica no âmbito da UFES não se encerrou em 1967. O Conselho Universitário voltou a apreciar o projeto pouco mais de um ano depois de sua aprovação pelo colegiado. Na sessão de 30 de Julho de 1968, a primeira em que participava o novo presidente do DCE, César Ronald Pereira Gomes, então ligado ao Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), o reitor Alaor de Queiroz Araújo levou ao conhecimento dos conselheiros o conteúdo do Parecer nº 360/68, da Câmara de Ensino Superior do Conselho Federal de Educação (CES/CFE), que decidiu que fosse baixado em

2935

diligência o processo relativo ao Plano de Reestruturação Acadêmico-Científico e a minuta de decreto que se encontrava anexado para a sanção do Presidente da República. Além de César Ronald, no final de maio daquele ano, havia sido eleito como representante discente no Conselho Universitário, o estudante de Direito José Carlos Risk, que já havia participado de duas reuniões anteriores do colegiado. Mostrando que havia pressa na apreciação dos questionamentos e pedidos de esclarecimentos feitos pela CES/CFE, o reitor Alaor de Queiroz Araújo encaminhou para o Conselho, além do parecer e da minuta do decreto, a Mensagem da Reitoria nº 04/1968 e o relatório e voto do conselheiro Emílio Roberto Zanotti, definido com relator da matériax. Na mensagem do reitor Alaor de Queiroz Araújo, pela primeira vez foi revelado que um conselheiro do próprio CFE, Valnir Chagasxi, havia sido convidado pela reitoria para vir à Vitória analisar o Plano de Reestruturação Acadêmico-Científico, tendo em vista o papel decisivo dele nas medidas de reestruturação das universidades promovidas pela ditadura. O conselheiro, a pedido de Araújo, elaborou o esboço do decreto para servir de orientação, quando da apreciação do mesmo pelo CFE. O objetivo seria facilitar a aprovação do plano. Na sessão seguinte do conselho, foi lido o expediente da reitoria que seria enviado ao CFE, redigido de acordo com a decisão tomada pelo colegiado na reunião anterior e contendo os esclarecimentos da Universidade ao Parecer nº 360/68. O presidente do DCE, César Ronald, propôs que cópias do expediente fossem distribuídas aos conselheiros, para que eles pudessem estudar e analisar os documentos. A proposta foi aprovada pelo plenário e foi definido um prazo de sete dias para a análisexii. Parecia que, pela primeira vez, uma posição surgida de uma discussão mais aprofundada, ao menos das lideranças estudantis, pudesse ser expressa na tramitação do processo. Mas na sessão realizada em 19 de agosto de 1968, o expediente foi aprovado por unanimidade. César Ronald não compareceu e foi substituído pelo vice-presidente do DCE, José César Leite. A nova estrutura proposta pelo Plano de Reestruturação Acadêmico-Científica da Ufes seria referendada pelo presidente-marechal Costa e Silva, através do decreto nº 63.577, de 08 de novembro de 1968, 20 dias antes da promulgação da Lei 5.540/1968, que impôs a Reforma Universitária da ditadura. Como podemos perceber a Universidade capixaba já estava sintonizada com ela. A partir da promulgação do decreto, a Ufes ganhou uma estrutura semelhante a que tem hoje, com nove centros: CEG, CCJE, CBM, CP, CEFD, Tecnológico (CT), Artes e Agropecuário. Entre os dias 03 e 10 de junho de 1967, o Diretório Acadêmico (DA) da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (Fafi) realizou a I Semana Estadual dos Estudos, exatamente no

2936

período em que o Conselho Universitário aguardava emendas para a votação do Plano de Reestruturação. Como resultado do evento, o DA produziu uma revista cultural, contendo as teses apresentadas e aprovadas na semana sobre Mercado de Trabalho, Papel dos Centros de Estudos, Exames de Suficiência, Faculdade de Filosofia e Realidade Nacional. Não há nas 70 páginas da revista, uma única citação sobre o projeto de reestruturação da Ufes. Não se pode dizer o mesmo quanto às referências aos Acordos MEC-USAID. Na tese sobre o Mercado de Trabalho, apresentado pelo Centro de Estudos Pedagógicos, ao lado de uma crítica à estrutura socioeconômica brasileira, “completamente ultrapassada historicamente” e ao sistema educacional, dominado por escolas particulares, afirma-se que a situação estaria mais seriamente ameaçada e se agravaria, não somente no plano estadual, mas também nacional com a adoção do plano MEC-USAID. “O dito acordo não somente visa colocar a educação totalmente nas mãos de particulares, mas mais do que isso, subordinar-nos a uma cultura alienígena”. O plano de luta proposta na tese, fala em “revogação do Acordo MECUSAIDxiii". Na tese sobre a importância dos centros de estudos, apresentado por um grupo de alunos do Centro de Estudos de Letras, propõe-se como meta “Pugnar por Reforma Universitária que atenda às nossas necessidades e colabore o desenvolvimento nacional”. Também se propõe a denúncia da política educacional do MEC, como “política que visa elitizar cada vez mais as Escolas Superiores” e a luta contra o acordo MEC-USAID, o Plano Atcon e “qualquer tentativa nefasta ao interesse nacional” xiv. Na tese apresentada pelo então estudante de Pedagogia da Fafi, Renato Viana Soares, sobre os exames de suficiência, há mais uma referência genérica ao Acordo MEC-USAID. Entre as medidas que, segundo Soares, tinham como objetivo o “desincentivo” a formação de professores, estava a transformação de colégios oficiais em fundações, o que subordinaria a educação nacional aos Ford e Rockfellerxv, segundo ele, como já estaria subordinada ao acordo MEC-USAID. A tese Faculdade de Filosofia e realidade brasileira, apresenta a proposta de que alunos da Fafi se unissem aos demais estudantes brasileiros, que denunciavam a Reforma Universitária proposta pelo governo, uma vez que ela foi elaborada sob a aprovação e dependência de um governo estrangeiro (Acordo MEC-USAID) e “obediente ao Plano Atcon, que tem como características – privatização, elitização, alienação e afastamento do estudante da vida nacional, tolhendo seu direito de participaçãoxvi". Isso quando se discutia na Universidade um projeto de reestruturação elaborado pelo mesmo Rudolph Atcon!

2937

O DCE da Ufes, em agosto daquele mesmo ano, lançou o jornal da entidade, portanto, depois que o projeto de reestruturação havia sido aprovado pelo Conselho Universitário. No entanto, ele é tratado de forma meramente informativa, sem nenhum tipo de crítica ou uma análise mais aprofundada sobre seu conteúdo. As páginas centrais do jornal são dedicadas à uma entrevista do reitor Alaor de Queiroz Araújo, que fala, entre outras coisas, sobre a reforma da Ufes e a participação estudantil, a cidade universitária e o Acordo MEC-USAID. Ao ser perguntado sobre até que ponto o acordo MEC-USAID influiria na reforma da Ufes, Araújo afirmou que ele foi iniciado depois que a universidade havia começado os estudos para a elaboração dos Planos de Reestruturação Acadêmica-Científica e Física, e antes dos Decretos-lei 53/66 e 252/67. A esta altura já estamos com o projeto de Estrutura Acadêmico-Científico pronto e aprovado pelo Conselho Universitário. O Plano de Estrutura Física concluído e em fase de execução com os pavilhões a serem construídos no Campus em concorrência pública e outras providências a serem tomadas, como a reforma administrativa. Tudo agora feito com um mínimo de recursos financeiros e com o pessoal da nossa própria universidade. Assim, não vejo a como o Acordo possa influir, substancialmente, na Reforma da Universidade Federal do Espírito Santo, mas acrescento que, qualquer recurso que vier para somar a esse trabalho que, graças a Deus, já reputo irreversível e gigante, será bem recebido.xvii

O curioso é que, ao referir a aspectos da reestruturação da Ufes, o reitor destacou exatamente pontos básicos que fundamentaram a Reforma Universitária da ditadura, como a necessidade de evitar dispersão e duplicação de recursos e meios e a estruturação em departamentos. O ponto básico para a reforma da universidade seria a estruturação dos campos básicos do conhecimento humano, de maneira independente do controle das carreiras, ao mesmo tempo em que os integre em si de tal forma, que cada campo ajude o desenvolvimento todos demais, enquanto todos, em conjunto sirvam [ilegível] às finalidades da Universidade. Isto, decididamente, processado e equacionado, vai permitir, entre outras coisas, economizar os recursos materiais e humanos da Universidade, [ilegível] e concentrando todos os serviços afins num só lugar [ilegível] todos os professores do mesmo campo numa mesma unidade e todos os estudantes que vão cursar determinadas disciplina na unidade correspondente ao seu campo”. xviii

No mesmo jornal, o DCE publicou, na íntegra, a Carta de Princípios do XXXIX Congresso da UNE, realizado clandestinamente num convento em Vinhedo (SP), que reafirma a luta contra o acordo MEC-USAID e a Reforma Universitária da ditadura. Outra matéria, sobre a Semana do Estudante Secundário, realizada pela União Municipal de Estudantes Secundaristas (UMES) de Vitória, faz referência à uma conferência organizada pela entidade com o então senador Mário Martins (MDB-RJ), que falou sobre os acordos do Brasil e os Estados Unidos que, segundo a publicação, revelavam a invasão estrangeira que o Brasil estava sofrendo e a “nossa total subordinação a interesses estranhos". Mas antes mesmo que o Plano de Reestruturação Acadêmico-Científico fosse aprovado, o jornal do DA da Fafi, em março de 1967, entrevistou Stélio Dias, integrante da Comissão

2938

de

Planejamento, para falar sobre a Reforma Universitária. O tom da entrevista mais uma vez é apenas informativo. Dias é questionado se a reestruturação da Reforma Universitária iria resolver o problema do ensino superior e se existia um padrão de reforma para todos os Estados. Mas sobre o conteúdo da reestruturação da Ufes, as perguntas se referiam apenas à futura situação da Fafi. Não há questionamentos sobre processo, que nem sequer

foi

criticado. Questionado sobre sua posição no Conselho Universitário, Carlos Magno Gonzaga Cardoso admite que votou a favor do plano de reestruturação da Universidade, mesmo contrariando a posição de vários grupos que haviam apoiado sua eleição para a presidência do DCE. Eu fui dos responsáveis, vamos dizer assim, pela modificação desse negócio. Hoje eu até revejo um pouco essa posição, talvez o voto tenha sido realmente errado, não só pelo problema político, mas porque talvez não fosse ideal essa situação de centros. Mas também não sei se o melhor era o esquema de faculdades, falando em termos de reestruturação. Sinceramente não sei. Rever é fácil, vinte anos depois, não é?xix

O então estudante de Economia e ex-diretor da UEE, Antônio Caldas Brito, garante que houve discussão sobre o projeto e joga a responsabilidade em cima do ex-presidente da entidade. Ele diz lembrar-se dessa discussão no movimento, mas pondera que as lideranças estudantis não teriam conseguido popularizar aquela bandeira, porque havia um apoio muito grande da imprensa naquele momento à influência norte-americana. Ao ser perguntado se o movimento não tinha tido a dimensão da reforma, Caldas Brito insistiu que ele não teria tido é força. Além disso, segundo ele, Carlos Magno era uma liderança conciliatória, que não teria levado a discussão para a diretoria do DCE, porque sabia que a posição da maioria, que era ligada à posições de esquerda, seria contrária. Mas sobre o voto favorável dos representantes estudantis mais combativos na discussão de 1968, quando o plano havia retornado à Ufes, Caldas Brito atribui a posição à possíveis pressões que eles estariam sofrendo, diante do ambiente repressivo que se vivia na época, se referindo especificamente à César Ronald. Eu acredito que ele deve ter recebido pressões muito fortes para ter votado isso, porque sabia que nós, diretoria do DCE, sempre fomos contra. Uma das principais bandeiras do movimento. Acho que eles receberam uma pressão muito grande para votar favorável e o César, apesar de ser uma liderança combativa muito forte, não sei se teve consciência da amplitude e de que podia ser realmente essa reforma do MEC-USAIDxx.

Já o ex-presidente da União Estadual dos Estudantes (UEE), José Cipriano da Fonseca, garante que os estudantes fizeram manifestações contra os acordos MEC/USAID e procuravam falar sobre ele, mas não se lembra de ter ouvido falar sobre a presença de Rudolph Atcon no Espírito Santo. Com relação à votação feita pelo Conselho Universitário,

2939

ele disse que a mesma deve ter acontecido no final de 1967 quanto ele já estava mais afastado do movimento de massas, já que fazia parte do Comitê Central do PCBR e estava engajado mais na organização do partido. No entanto, ele corrobora em parte a versão de Caldas Brito sobre Carlos Magno. Eu me lembro de que houve uma fase de queimação muito grande com Carlos Magno e a própria esquerda começou a pichar. Talvez seja em função disso aí, agora eu não me lembro. Só lembro que houve uma fase em que ele entrou em desgraça com a Esquerda. Eu acho que deve ser por isso. Me parece até que houve caso de agressão em reunião. Mas eu não me lembro de ter tido uma discussão específica sobre a vinda desse americanoxxi.

O então estudante de Odontologia e ex-vice-presidente da UEE, Perly Cipriano, que foi principal quadro do PCB até 1967, quando viajou clandestinamente para a União Soviética, diz que os estudantes ligados à esquerda detectaram a presença de Rudolph Atcon no Estado, mas que não tinham a dimensão dos acordos MEC-USAID, apesar dessa ser uma das principais bandeiras da categoria. Ele se lembra de apenas da resistência que havia em relação à mudança das faculdades para o campus de Goiabeirasxxii Por sua vez, Domingos Freitas Filho, que era ligado à Ação Popularxxiii e foi presidente do DA da Fafi em 1968, diz que em sua faculdade, os estudantes tinham preocupação em estudar documentos relativos à Reforma Universitária da ditadura e com os rumos que o ensino iria tomar, com a implantação do sistema de créditos e outras consequências dos acordos MECUSAID. Mas Freitas reconhece que, 90% dos estudantes, inclusive as lideranças, não haviam lido nada sobre os acordos MEC-USAID e sequer sabiam do que se tratavam. O ex-dirigente estudantil, hoje professor aposentado da Ufes, diz que teria sido dispensado da representação estudantil de sua faculdade, exatamente porque os estudantes haviam começado a trabalhar dentro de todas as instâncias, contra a implantação do projeto de reestruturação. De acordo com Freitas, quem trabalhou na elaboração do plano dentro da universidade foram Stélio Dias, Marcelo Basílio e Manoel Ceciliano de Almeida. “O Atcon mesmo pouco aparecia. Essas eram as pessoas que estavam preparando sua cama, para depois irem para Houston (EUA) fazer o seu doutorado e voltar. Um assumiu a Universidade e o outro virou um político bastante conservador. Aliás, os três sempre foram conservadoresxxiv”. Renato Viana Soares, então ligado ao PCB, foi outro que disse que houve resistência por parte dos estudantes. Para Soares, o plano de reestruturação foi um projeto piloto de reforma universitária dentro dos planos dos acordos MEC/USAID. Mas, segundo ele, ao contrário do que aparenta, o movimento teria reagido e, na época, denunciado o Plano Atcon, realizando inclusive debates sobre o mesmo. Soares disse que tinha uma cópia do plano e também contou que Rudolph Atcon não ficou no Espírito Santo.

2940

Ele veio e fez um contrato com a universidade. Era um piloto, fazer o campus de Goiabeiras e o detalhe chegou até à disposição das salas de aula. No CCJE, até recentemente, as salas ficavam de costas uma para a outras, para evitar qualquer tipo de aglomeração estudantil. Foi adotado o sistema de crédito e, está lá no plano dele, para quebrar o espírito de turma e de solidariedade entre os estudantes. E vai por aí afora, a instituição do ensino pago, acabar com a representação estudantil, tudo isso, naquela época, eram as teses que ele levantavaxxv.

Como demonstramos, o Plano de Reestruturação Acadêmico-Científico da Ufes foi elaborado por um técnico do USAID e possui o espírito da Reforma Universitária promovida pela ditadura. Mais do que isso, podemos afirmar que, como foi elaborado antes mesmo da promulgação dos decretos-leis que orientaram a reestruturação das universidades federais brasileiras, a Ufes foi de fato um laboratório para a reforma. Não por acaso, a estrutura prevista no projeto é até hoje, 45 anos depois de sua promulgação, a coluna vertebral da Universidade. i

MARTINS FILHO, João. Movimento estudantil e ditadura militar: 1964-1968. Campinas: Papirus, 1987. FORRACHI, Marialice. O estudante e a transformação da sociedade brasileira. 2. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1977. iii MARTINS FILHO, op. cit., p. 15. iv Ibid., p.20 v De acordo com Luiz Antônio Cunha e Moacir de Góes (O Golpe da Educação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p. 26), os Acordos MEC-USAID cobriram todo o espectro da educação nacional, isso é, o ensino primário, médio e superior, a articulação entre os diversos níveis, o treinamento de professores e a produção e veiculação de livros didáticos. Entre 1964 e 1968 foram firmados 12 acordos. vi Ofício nº 62/66-R, 3 jun. 1966 vii Ofício nº 650/66-R, 21 de junho de 1966. viii ATCON, Rudolph. Proposta para a reestruturação da Universidade Federal do Espírito Santo. Florianópolis: Imprensa Universitária da UFSC, 1967. ix UFES-DAOCS. Livro de atas das sessões do Conselho Universitário. Sessão de 04 de abril de 1967. x UFES-DAOCS. Livro de atas das sessões do Conselho Universitário. Sessão de 30 de julho de 1968. xi Raimundo Valnir Cavalcante Chagas (1921-2006), conselheiro do CFE de 1962 a 1976, foi um dos principais autores da reforma universitária de 1968 e também teve destacada participação na idealização e elaboração da Lei n.º 5.692/1971, que implantou a obrigatoriedade do ensino profissionalizante no antigo 2º grau. Um dos fundadores da Universidade de Brasília (UnB) lecionou por várias décadas na Faculdade de Educação. xii Ibid. Livro de atas das sessões do Conselho Universitário. Sessão de 12 de agosto de 1968. xiii CENTRO DE ESTUDOS PEDAGÓGICOS. O mercado de trabalho. Revista Cultural Fafi. Vitória, n. 01, p. 18-20, 1967. xiv IMPORTÃNCIA dos Centros de Estudos. Revista Cultural Fafi, Vitória, n. 01, p. 29-30, 1967. xv SOARES, Renato Viana. Exames de suficiência, o que fazer? Revista Cultural Fafi, Vitória, p. 39, 1967 xvi FACULDADE de Filosofia e realidade nacional. Revista Cultural Fafi, Vitória, p. 61, 1967. xvii CARDOSO, Carlos Magno Gonzaga; PIGNATON. Alaor: O universitário é privilegiado neste país onde mais de 5 milhões crianças não tem escola. O Universitário. Vitória, p. 5, ago. 1967. xviii Ibid. Idem, p. 4. xix Carlos Magno Gonzaga Cardoso, entrevista 24/07/1995. xx Antônio Caldas Brito, entrevista 02/10/2012. xxi José Cipriano da Fonseca , entrevista em 01/08/1995. xxii Perly Cipriano, entrevista em 03/08/1995. xxiii A Ação Popular (AP) nasceu em 1963, uma organização de esquerda católica. A partir de meados da década de 1960 ela evoluiu para o maoísmo. Em 1971, adotaria o nome de Ação Popular Marxista e Leninista (APML). Em 1973, a maioria da organização decidiu se fundir com o PCdoB. A minoria manteve a APML até 1982, quando ela se dissolveu. xxiv Domingos Freitas Filho, entrevista em 10/11/1995. xxv Renato Viana Soares, entrevista em 23/08/1995. ii

2941

As múltiplas histórias em Americanah: a perspectiva de uma mulher negra não-americana entre a Nigéria e os Estados Unidos

Graduanda Alice Ripper C. de A. Coe. Universidade do Estado do Rio de Janeiro Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – IFCH Departamento de História Prof. Orientador: Washington Santos Nascimento Chimamanda Ngozi Adichie nasceu na Nigéria, em 1977, tendo ido estudar nos Estados Unidos aos dezenove anos. Os seus contos apareceram em diversas publicações e receberam inúmeros prêmios como o da BBC Short Story Competition em 2002 e o O. Henry Short Story Prize em 2003. A Cor do Hibisco, o seu primeiro romance, foi premiado com o Hurston/Wright Legacy Award 2004 e o Commonwealth Writers’ Prize 2005, tendo também sido finalista do Orange Broadband Prize 2004 e nomeado para o Man Booker Prize 2004. Meio Sol Amarelo, já publicado pela ASA, venceu, em 2007, o Orange Broadband Prize, o Anisfield-Wolf Book Award e o PEN "Beyond Margins Award". Americanah venceu o Chicago Tribune Heartland Prize 2013. A escritora foi também premiada, em 2008, com um Future Award na categoria de Jovem do Ano e recebeu uma bolsa da MacArthur Foundation, considerada a "bolsa dos gênios", no valor de 500 mil dólares. A sua obra encontra-se traduzida em trinta e uma línguas. O romance a ser analisado aqui, Americanah, é um retrato interessante e crítico da questão racial nos Estados Unidos aos olhos de uma personagem negra nigeriana que viaja para a América a fim de estudar e obter seu diploma de graduação. Neste romance, Chimamanda retrata não só o cotidiano da personagem Ifemelu nos EUA e sua dificuldade de adaptação aos costumes e também na obtenção de um emprego, mas também a sociedade nigeriana de Lagos em diferentes ângulos. A trama se desenvolve a partir da relação de Ifemelu e Obinze, desde quando eram jovens estudantes de um colégio particular em Lagos, até sua separação – quando Ifemelu vai estudar nos EUA e depois Obinze tenta se estabelecer na Inglaterra – e seu reencontro na Nigéria, quando ambos retornam a Lagos. Ifemelu vem de uma família de classe média baixa em Lagos na qual sua mãe – personagem extremamente religiosa - e seu pai trabalham fora, mostrando as dificuldades financeiras e o desemprego, enquanto Obinze era filho de professora universitária de literatura na mesma cidade, mas com 2942

uma situação financeira mais confortável e com vasto conhecimento sobre literatura norteamericana. Ao longo da narrativa a autora divide o romance de modo a manter o conhecimento do leitor sobre as experiências de Ifemelu e Obinze, saindo da Nigéria para os Estados Unidos e da Nigéria para a Inglaterra, respectivamente. Enquanto a primeira consegue temporariamente estadia na casa de sua tia Uju, ajudando-a a cuidar do filho pequeno até que suas aulas tenham inicio na faculdade, depois mostrando a dificuldade de ela conseguir um emprego e as humilhações sofridas no esforço para se tornar imigrante legal nos EUA; Obinze passa por uma experiência traumática de imigração para a Inglaterra, na qual ele se alterna em diferentes empregos mal remunerados para se sustentar e ainda em uma tentativa frustrada de um casamento arranjado para garantir uma autorização de permanência na Inglaterra – impedido no último minuto, causando sua deportação volta para Lagos. O romance tem início a partir da decisão de Ifemelu de voltar para sua terranatal. A cena é da personagem no cabeleireiro refazendo sua trança afro, em uma interação com outras mulheres negras de diferentes países da África, pensando em como sucederá seu retorno e recapitulando os tempos de sua infância e adolescência até sua ida aos EUA. A narrativa é construída abordando questões importantes como o racismo nos EUA, a questão da desigualdade econômica em Lagos e o machismo que a personagem principal sofre ao longo de sua trajetória, principalmente no período em que esteve nos Estados Unidos. A autora trata todas essas questões com muita habilidade e crítica através das experiências dos personagens centrais da trama e também da atividade de Ifemelu em seu blog “Raceteenth ou Observações diversas sobre negros americanos (antigamente conhecidos como crioulos) feitas por uma negra não americana”, criado a partir de sua reflexão sobre o reconhecimento de sua raça quando no seu país de origem ela nem mesmo se questionava quanto a isso, e no qual ela descreve situações cotidianas suas nos EUA sobre racismo e machismo. O contexto histórico do romance é em Lagos, Nigéria, nos anos 1990. Quando Ifemelu e Obinze se conhecem e vivem seu primeiro amor, a Nigéria se encontra em tempos sombrios sob um governo militar. Por conta das sucessivas greves nas universidades nacionais é que Ifemelu muda-se para os Estados Unidos. Ao mesmo tempo em que se destaca no meio acadêmico, ela se depara pela primeira vez com a questão racial e com a luta diária da vida de imigrante, mulher e negra. Quinze anos depois, seu blog se torna muito popular nos Estados Unidos e ela passa a tirar seu 2943

sustento de modo confortável dessa atividade. Ao voltar para a Nigéria, se depara com a dificuldade de encontrar seu lugar em um país muito diferente do que deixou, encontrando também seu companheiro de adolescência muito diferente. É interessante destacar a posição política da autora enquanto feminista para compreendermos a abordagem das questões de gênero no romance, bem como as críticas ácidas e mesmo um tom sarcástico sobre o racismo na América. Esse tema já foi abordado diversas vezes por Chimamanda, sempre de modo brilhante, propondo reflexões interessantes, como em sua palestra ao canal TED sobre “o perigo de uma história única”. Nessa apresentação a autora já demonstra a mesma perspectiva que podemos observar no seu romance de retratar a história de uma mulher nigeriana para além dos estereótipos superficiais e exaustivos sobre cultura e identidade negra africana, ao levantar a questão da representatividade negra na literatura ocidental, retratando sua própria experiência desde a infância com a leitura: “o que a descoberta dos escritores africanos fez por mim foi: salvou-me de ter uma única história sobre o que os livros são.” (ADICHIE, 2009) Nessa mesma palestra, a autora descreve uma situação que viveu enquanto imigrante nos EUA com uma colega de quarto – uma hipótese aqui levantada é que em sua obra Americanah estão conectados aspectos autobiográficos – na qual sua colega de quarto a indaga sobre a cultura africana, a “música tribal”, dentre outros hábitos, tudo dentro de uma visão estereotipada e racista, que, segundo Adichie, pode ser explicada pelo fato de que “Minha colega de quarto tinha uma única história sobre a África. Uma única história de catástrofe. Nessa única história não havia possibilidade de os africanos serem iguais a ela, de jeito nenhum. Nenhuma possibilidade de sentimentos mais complexos do que piedade. Nenhuma possibilidade de uma conexão como humanos iguais.” (ADICHIE, 2009) Outro ponto relevante levantado por Adichie e que também aparece em seu livro é a questão da identificação enquanto negra que ela viveu nos EUA e que na Nigéria não era algo tão presente, no qual a autora afirma que: Eu devo dizer que antes de ir para os Estados Unidos, eu não me identificava, conscientemente, como uma africana. Mas nos EUA, sempre que o tema África surgia, as pessoas recorriam a mim. Não importava que eu não soubesse nada sobre lugares como a Namíbia. Mas eu acabei por abraçar essa nova identidade. E, de muitas maneiras, agora eu penso em mim mesma como uma africana. Entretanto, ainda fico um pouco irritada quando se referem à África como um país. O exemplo mais recente foi meu maravilhoso voo de Lagos, dois dias atrás, não fosse um anúncio de um voo da Virgin sobre o trabalho de caridade na "Índia, África e outros países". Então, após ter passado vários anos nos EUA como uma africana, eu comecei a entender a reação de minha colega para

2944

comigo. Se eu não tivesse crescido na Nigéria e se tudo que eu conhecesse sobre a África viesse das imagens populares, eu também pensaria que a África fosse um lugar de lindas paisagens, lindos animais e pessoas incompreensíveis, lutando guerras sem sentido, morrendo de pobreza e AIDS, incapazes de falar por elas mesmas e esperando serem salvos por um estrangeiro branco e gentil. Eu veria os africanos do mesmo jeito que eu, quando criança, havia visto a família de Fide. Eu acho que essa única história da África vem da literatura ocidental. (ADICHIE, 2009)

Ao longo da trama, Ifemelu passa por situações semelhantes tanto em sala de aula na faculdade, como diariamente ao ir ao mercado, ao andar de ônibus e ao visitar amigos brancos, sempre atribuindo a ela o conhecimento geral sobre o continente africano como se ele fosse homogêneo e retratando-o apenas pela lógica “afropessimista”, descrita por José Flávio Saraiva em sua obra A África na ordem internacional do século XXI: mudanças epidérmicas ou ensaios de autonomia decisória? Adichie trabalha muito bem a questão política na Nigéria durante um regime militar instável através da relação de Ifemelu com a história de sua tia Uju, amante de um General do Exército que bancava mansão e objetos de luxo para ela em uma vida dupla, além de sua família tradicional. Somado a isso, em seu romance podemos perceber a transição dessa situação para a democratização da política e a diminuição dos conflitos armados internos, ao crescimento econômico e à elevação da autoconfiança das elites que passam por um renascimento cultural e político, que é discutido também por José Saraiva na obra já citada, dentro da cronologia que envolve a ida de Ifemelu para os EUA e depois com seu retorno para a Nigéria, percebendo as modificações que ocorreram em sua ausência. Além da questão política nigeriana, a autora também aborda as eleições presidenciais norte-americanas no momento em que Barack Obama concorria ao cargo e todo o impacto desse evento na vida de negras e negros norte-americanos, acompanhado por Ifemelu, ao lado de seu namorado Blaine, com bastante entusiasmo e expectativa, mais uma vez retratando a questão da representatividade negra. Dentro da narrativa de Obinze na Nigéria, do seu retorno por conta da deportação e de sua ascensão social através do contato com um importante milionário de Lagos, conhecido como “Chief”, percebemos também a questão analisada por Saraiva no que tange à onda de democratização dos regimes políticos africanos, com o aumento da confiança internacional proveniente da consolidação de instituições e governos da África permeados por autocracias, no jogo de influências entre

2945

as elites

nigerianas apresentadas no romance e nas relações comerciais presentes na narrativa de tais personagens. É interessante observar como a autora retrata as relações das elites nigerianas, principalmente pelo olhar da mulher, que encontrava no casamento uma forma de ascensão social e conquista de status dentro da sociedade, saindo de uma posição de invisibilidade para ser notada, mas ainda assim por ser a mulher de algum homem rico e famoso na cidade. Como é o caso de diversas personagens femininas nigerianas, dentre elas a própria tia Uju e Kosi, esposa de Obinze, uma figura bastante submissa do estereotipo de dona-de-casa rica que só reconhece sua própria identidade se for ao lado de um homem. Ifemelu é justamente a subversão desse estereotipo. É uma mulher independente e ambiciosa que busca realizar seu sonho profissional e que não hesita em dizer o que pensa, ainda que isso possa chocar ou incomodar quem estiver ouvindo. Isso pode ser percebido em toda a narrativa, tanto em suas relações com homens e mulheres brancas nos EUA, com homens e mulheres negras americanas e mesmo com seus amigos e familiares nigerianos. Por ter essa personalidade forte e desafiadora ela é tida muitas vezes por ousada e mesmo abusada, afinal, uma mulher negra que ousa se levantar contra o machismo e o racismo e que não tem vergonha de sua identidade incomoda muita gente. É importante perceber essas especificidades de vivencias de mulheres e de mulheres negras, pois se a sociedade ocidental é construída em cima de bases patriarcais e misóginas ela também tem no racismo um de seus pilares, como afirma a feminista negra americana Patricia Collins, citada por Sueli Carneiro em seu artigo Enegrecer o Feminismo: A situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero: “(…) O pensamento feminista negro seria um conjunto de experiências e ideias compartilhadas por mulheres afro-americanas, que oferece um ângulo particular de visão de si, da comunidade e da sociedade… que envolve interpretações teóricas da realidade das mulheres negras por aquelas que a vivem…” Com base nessa perspectiva, Collins determina alguns “temas fundamentais que caracterizariam o ponto de vista feminista negro”. Entre eles, se destacam: o legado de uma história de luta, a natureza interconectada de raça, gênero e classe e o combate aos estereótipos ou “imagens de autoridade”. (CARNEIRO, 2003) Cláudia Pons Cardoso, por sua vez, utiliza o exemplo de Lélia Gonzalez intelectual e feminista negra brasileira, nos anos de 1980 – em seu

artigo

Amefricanizando o feminismo: o pensamento de Lélia Gonzalez, para apresentar sua 2946

reflexão sobre “a realidade de exclusão das mulheres na sociedade brasileira, principalmente das negras e indígenas”. Lélia foi “pioneira nas críticas ao feminismo hegemônico e nas reflexões acerca das diferentes trajetórias de resistência das mulheres ao patriarcado”, dando enfoque às histórias das mulheres negras e indígenas no Brasil, na América Latina e no Caribe, buscando “descolonização do saber e da produção de conhecimento” de modo a questionar a “insuficiência das categorias analíticas das Ciências Sociais” no que tange a realidade das mulheres negras. Cardoso destaca uma de suas frases que demonstra a necessidade das mulheres negras de aprofundarem a reflexão e saírem da repetição e reprodução dos modelos oferecidos pelas ciências sociais, ir além da visão da mulher negra na perspectiva socioeconômica, para o campo das relações raciais. Cardoso ressalta a proposta “contra-hegemônica ao modelo exclusivo racista colonialista” de Lélia na construção da categoria de “Amefricanidade”: As implicações políticas e culturais da categoria de Amefricanidade ('Amefricanity') são, de fato, democráticas; exatamente porque o próprio termo nos permite ultrapassar as limitações de caráter territorial, lingüístico e ideológico, abrindo novas perspectivas para um entendimento mais profundo dessa parte do mundo onde ela se manifesta: A AMÉRICA [...]. Para além do seu caráter puramente geográfico, a categoria de Amefricanidade incorpora todo um processo histórico de intensa dinâmica cultural (adaptação, resistência, reinterpretação e criação de novas formas) que é afrocentrada [...]. Seu valor metodológico, a meu ver, está no fato de permitir a possibilidade de resgatar uma unidade específica, historicamente forjada no interior de diferentes sociedades que se formaram numa determinada parte do mundo. (Lélia Gonzalez apud Cláudia Pons Cardoso, em Amefricanizando o feminismo: o pensamento de Lélia Gonzalez in: Rev. Estud. Fem. vol.22 no.3 Florianópolis Sept./Dec. 2014).

A “amefricanidade” nos permite compreender a “experiência comum de mulheres e homens negros na diáspora e à experiência de mulheres e homens indígenas contra a dominação colonial”. Lélia desenvolveu diversos escritos que tratam da situação de exclusão e discriminação de mulheres negras no contexto brasileiro e latinoamericano, lutando pela realização de uma "a articulação entre as categorias de raça, classe, sexo e poder" que possibilite quebrar "as estruturas de dominação de uma sociedade". Isso torna possível a compreensão dos resultados dessa articulação de estruturas de poder que procuram determinar o lugar das mulheres na sociedade, uma vez que essa articulação faz das mulheres não brancas as “mais oprimidas e exploradas de uma região de capitalismo patriarcal-racista dependente". O que mostra a força cruel da combinação do racismo com o patriarcalismo sobre as mulheres negras. (Lélia

2947

Gonzalez apud Cláudia Pons Cardoso, em Amefricanizando o feminismo: o pensamento de Lélia Gonzalez in: Rev. Estud. Fem. vol.22 no.3 Florianópolis Sept./Dec. 2014). Lélia Gonzalez também possui uma perspectiva de gênero diferente da perspectiva dominante, a autora faz uso da noção de sexo e sexismo, partindo de uma compreensão biológica associada aos aspectos sociais e culturais. Gonzalez reflete em cima dos escritos de Simone de Beauvoir utilizando sua conhecida frase “não se nasce mulher, torna-se” para adaptá-la a questão racial “a gente nasce preta, mulata, parda, marrom, roxinha, etc., mas tornar-e negra é uma conquista”. (Lélia Gonzalez apud Cláudia Pons Cardoso, em Amefricanizando o feminismo: o pensamento de Lélia Gonzalez in: Rev. Estud. Fem. vol.22 no.3 Florianópolis Sept./Dec. 2014). Se a mulher “torna-se mulher”, para Gonzalez a mulher negra "torna-se negra", o que discute de maneira mais aprofundada o “processo social de construção de identidades, de resistência política”, que se recusa a ser definido pela do outro e que o faz através do “rompimento com o embranquecimento”. É, na verdade, uma busca por “autodefinição, a valorização e a recuperação da história e do legado cultural negro” que traduz um “posicionamento político de estar no mundo para exercer o papel de protagonista de um devir histórico comprometido com o enfrentamento do racismo”. Isso é importante para que possamos compreender que “o processo de construção social e cultural não será o mesmo para todas as mulheres” uma vez que o racismo interfere na trajetória de mulheres não brancas. Para Gonzalez, o capitalismo patriarcal por si só não é capaz de “explicar as construções de gênero referentes às amefricanas, às mulheres negras, às indígenas, àquelas que estão nas margens, pois falta incluir ‘outro tipo de discriminação, tão grave como aquela sofrida pela mulher: a de caráter racia’”, no seu entendimento, racismo e sexismo constituem “eixos estruturantes de opressão e exploração” que colocam as mulheres negras em uma dimensão das relações sociais diferente das mulheres brancas. (Lélia Gonzalez apud Cláudia Pons Cardoso, em Amefricanizando o feminismo: o pensamento de Lélia Gonzalez in: Rev. Estud. Fem. vol.22 no.3 Florianópolis Sept./Dec. 2014). Achille Mbembe tem uma análise parecida a de Adichie, em sua palestra já citada, acerca da identidade africana. Para ele, um fator que contribuiu para o não desenvolvimento de concepções minimamente explicativas do passado e do presente africanos diz respeito ao esforço de determinar as condições sob as quais o sujeito africano podia adquirir integralmente sua própria subjetividade, isto é, tornar-se consciente de si mesmo.

O que a autora demonstra em sua obra nas personagens que

interagem com Ifemelu no salão e mesmo nas relações dela com amigas e amigos 2948

nigerianos que vão para os EUA e que procuram apagar suas características físicas e mesmo culturais africanas para serem aceitos pela sociedade norte-americana. Até mesmo a própria protagonista, ao procurar eliminar sua pronuncia com sotaque nigeriano ao falar com norte-americanos. Achille destaca duas correntes de pensamento: a corrente que se utiliza de categorias marxistas, o “economicismo”, que se apresenta como “democrática, radical e progressista”, manipulando as retóricas da autonomia, da resistência e da emancipação; e a que põe ênfase na “condição nativa”, promovendo a ideia de uma identidade única africana, cuja base é o pertencimento à raça negra. No centro destas duas correntes de pensamente estão três eventos históricos importantes: o colonialismo, a escravidão e o apartheid. Uma primeira leitura comum às duas correntes diz que esses processos tornaram os africanos alienados de si mesmos, pautando que essa separação pressupõe uma perda de familiaridade consigo mesmo, tornando-se “estrangeiro de si”. Outro significado comum às duas correntes tem a ver com a propriedade. Nessa narrativa, os três eventos citados acarretaram a ausência de bens, sendo assim um processo no qual os procedimentos econômicos e jurídicos levaram à expropriação material. Com isso, o Outro, o europeu, sujeitou a África e falsificou sua história, o que resultou em um estado de exterioridade máxima. Nessas leituras, a degradação histórica, além de ter aprisionado o sujeito africano na humilhação, no desenraizamento, também o levou a uma zona do não-ser e de morte social fruto da negação da dignidade. Em suma, os elementos fundamentais dos três eventos históricos seriam fatores capazes de unificar o desejo africano de se conhecer a si mesmo, de reconquistar seu destino (soberania) e de pertencer a si mesmo no mundo (autonomia). Para o autor, a identidade africana não existe como substancia. Ela é construída, de variantes formas, através de uma serie de praticas, notavelmente as práticas do self. Tampouco as formas desta identidade e seus idiomas são idênticos. E tais formas e idiomas são moveis, reversíveis, e instáveis. Isto posto, elas não podem ser reduzidas a uma ordem puramente biológica baseada no sangue, na raça ou na geografia. Nem podem se reduzir à tradição, na medida em que o significado desta ultima esta constantemente mudando. (ACHILLE, 2001: 199)

Da mesma forma, Adichie compreende que a maneira como o Ocidente retrata a África consiste numa única história, que mostra um povo como uma única coisa repetidamente, tornando-o somente aquela coisa. Ela destaca como isso compreende

2949

uma questão de poder, ilustrada por uma palavra nigeriana da tribo Igbo: "nkali", que significa "ser maior do que o outro", para demonstrar como toda a estrutura econômica e política mundial são definidas por esse principio “nkali”. O mesmo ocorre com as narrativas sobre os povos: como são contadas, quem as contam, quando e quantas histórias contam. “Poder é a habilidade de não só contar a história de outra pessoa, mas de fazê-la a história definitiva daquela pessoa.”. Através da memória de suas próprias experiências, Adichie demonstra como viveu momentos que de fato foram bastante difíceis dentro do contexto histórico na Nigéria, no entanto, reforça que todas essas histórias fazem de mim quem eu sou. Mas insistir somente nessas histórias negativas é superficializar minha experiência e negligenciar as muitas outras histórias que me formaram. A “única história cria estereótipos”. E o problema com estereótipos não é que eles sejam mentira, mas que eles sejam incompletos. Eles fazem uma história tornar-se a única história. (ADICHIE, 2009)

Seu livro, Americanah, faz justamente o caminho inverso: nos conta diferentes histórias sobre a Nigéria, diferentes perspectivas em relação à política, à economia e à sociedade nigeriana, relaciona toda essa dinâmica à experiência de uma mulher negra africana dentro da sociedade norte-americana – tanto em sua relação com negros americanos e todas as questões de afirmação da identidade e da raça, como sua relação com brancos norte-americanos e o racismo sofrido lá – mostrando ainda as diferenças de sua vivência enquanto mulher para a vivência de Obinze, também negro e também imigrante ilegal em outro país ocidental. Diversas histórias, diversas narrativas num só romance. Toda a construção da narrativa de Americanah nos permite sair do senso comum racista de enxergar a África como algo único, homogêneo e atemporal. Chimamanda nos leva para dentro da vida de Ifemelu, uma mulher inteligente, corajosa, sarcástica e bastante crítica que não hesita em tirar-nos de nossas zonas de conforto e nos mostrar uma realidade completamente distinta, cumprindo seu próprio objetivo de desconstruir estereótipos ocidentais sobre a África e mostrando que histórias importam. Muitas histórias importam. Histórias têm sido usadas para expropriar e tornar maligno. Mas histórias podem também ser usadas para capacitar e humanizar. Histórias podem destruir a dignidade de um povo, mas histórias também podem reparar essa dignidade perdida. (ADICHIE, 2009)

2950

Referências Bibliográficas: ADICHIE, Chimamanda Ngozi. “Americanah”, tradução de Julia Romeu, Companhia das Letras, São Paulo, 2013. ADICHIE, Chimamanda Ngozi. “O perigo de uma única história”. In: http://www.ted.com/talks/lang/por_br/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_st ory.html Translated into Portuguese (Brazil) by Erika Barbosa Reviewed by Belucio Haibara, julho de 2009 ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Sejamos todos feministas, Tradução Christina Baum versão modificada de uma palestra de dezembro de 2012 no TEDxEuston, conferência anual com foco na África, Companhia das Letras, São Paulo, 2012. ALVES, Iulo Almeida e ALVES, Taína Almeida. O perigo da história única: diálogos com Chimamanda Adichie, apresentado no I Ciclo de Eventos Linguísticos, Literários e Culturais, realizado na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – Campus Jequié, Seção F: A abordagem social das identidades culturais, 2011. BAMISILE, Sunday Adetunji. Questões de gênero e da escrita no feminino na literatura africana contemporânea e da diáspora africana. Dissertação de Doutorado apresentada na UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS, Lisboa, 2012. CALDWELL, K. A institucionalização de estudos sobre a mulher negra: Perspectivas dos Estados Unidos e do Brasil. Revista da ABPN, América do Norte, 1, mar. 2010. CARDOSO, Cláudia Pons. Amefricanizando o feminismo: o pensamento de Lélia Gonzalez, Rev. Estud. Fem. vol.22 no.3 Florianópolis Sept./Dec. 2014. CARNEIRO, Sueli. "Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de EMPREENDIMENTOS

uma

SOCIAIS;

perspectiva

TAKANO

de

gênero".

CIDADANIA

In: ASHOKA

(Orgs.). Racismos

contemporâneos. Rio de Janeiro: Takano Editora, 2003. p. 49-58. MBEMBE, Achille. As formas africanas de auto-inscrição. Estudos AfroAsiáticos, Ano 23, nº 1, 2001, pp. 171-199 RESENDE, Roberta Mara. Gênero e Nação na ficção de Chimamanda Ngozi Adichie, Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Letras da Universidade Federal de São João delRei, 2013. SARAIVA, José Flávio. A África na ordem internacional do século XXI: 2951

mudanças epidérmicas ou ensaios de autonomia decisória? Revista Brasileira de Política Internacional, v. 51, p. 105-122, 2008. SARDENBERG,

Cecília

M.B.

Conceituando

“Empoderamento”

na

Perspectiva Feminista, transcrição revisada da comunicação oral apresentada ao I Seminário Internacional: Trilhas do Empoderamento de Mulheres – Projeto TEMPO’, promovido pelo NEIM/UFBA, em Salvador, Bahia, de 5-10 de junho de 2006. SEBASTIÃO, A. Feminismo negro e suas práticas no campo da cultura. Revista da ABPN, América do Norte, 1, mar. 2010.

Entrevista com Chimamanda Ngozi Adichie: Brasil está em negação sobre debate racial, diz autora premiada da Nigéria, por Angela Boldrini, São Paulo, 19/02/2015 às 02h05. Em: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2015/02/1591504fui-a-bons-restaurantes-no-brasil-e-nao-vi-uma-unica-pessoa-negra.shtml

2952

O PERFIL DO ESCRAVO DOMÉSTICO A PARTIR DOS ANÚNCIOS DO JORNAL DO COMMERCIO DE 1840.

Aline Bezerra Lopes Graduanda Escola de História – UNIRIO Prof.ª Dr.ª Mariana de Aguiar Ferreira Muaze Orientadora Apoio Financeiro: CNPq [email protected]

Resumo: A presente pesquisa busca traçar os perfis dos escravos domésticos anunciados no Jornal do Commercio durante os meses de abril, agosto e dezembro de 1840. Foram coletados 1.274 anúncios para gerar um banco de dados de análises qualitativas e quantitativas desses escravos, o que suscitou alguns questionamentos, como: Quais eram as características destes escravos? Quais funções frequentemente eram desempenhadas pelos gêneros? Os senhores teriam preferência em relação à idade dos escravos? A partir dos resultados obtidos, analisaremos estes questionamentos.

Palavras-Chave: Escravidão doméstica. Jornal do Commercio. Brasil Império. Abstract: This research attempts to trace the profiles of domestic slaves announced in the Jornal do Commercio during the months of April, August and December 1840. We collected 1.274 adverts to generate a database of qualitative and quantitative analyzes of these slaves, which raised some questions such as: What were the characteristics of these slaves? Which functions they were often performed by genres? The Lords have preference over the age of slaves? From the results obtained, we will analyze these questions.

Keywords: Domestic Slavery. Jornal do Commercio. Brazil Empire.

2953

Introdução: Considerando as contradições presentes na relação senhor-escravo doméstico, buscamos obter informações através dos anúncios do Jornal do Commercio de 1840 com o intuito de descrever o perfil dos escravos domésticos. É possível realizar uma reflexão sobre quais atributos eram valorizados pelos senhores e as funções que os escravos domésticos anunciados exerciam. O escravo doméstico, apesar de possuir certos “privilégios” como um melhor vestuário e alimentação, não escapa de humilhações e maus-tratos de seus senhores. Pelo fato destes escravos estarem mais próximos da casa senhorial, desenvolvia-se uma relação paradoxal. Em alguns momentos, poderia ser marcada pelo afeto, como as amas de leite e as mucamas, em relação às crianças de seus senhores, em outras, marcadas pela subjugação da força opressora de seus senhores e até mesmo das “Sinhás” e seus filhos. (FREYRE, 2003, p.453) Dessa forma, pensar a relação senhorial-escravista, significa pensar em um amplo espectro de sentimentos tanto dos cativos para seus senhores, como da família senhorial para os escravos domésticos.

Metodologia: Inicialmente, foi realizada a transcrição dos 1.274 anúncios em tabelas, de acordo com os meses das publicações de 1840 que foram trabalhados: abril, agosto e dezembro, para o armazenamento de informações no Banco de Dados. Nestas tabelas, constam as descrições das características dos escravos domésticos, bem como os tipos de atividades realizadas por cada um deles. Além destas informações, também são encontradas outras referentes ao tipo de negociação, a idade do escravo, gênero, qualidades e características físicas descritas nas publicações. Em uma etapa posterior, foi construída outra tabela, visando análise estatística e comparativa destes anúncios no período de abril de 1840. Dessa forma, é possível estabelecer dados absolutos e relativos das informações obtidas.

Resultados: Devido ao fato do trabalho estar em andamento, poderemos analisar os resultados referentes ao mês de abril de 1840. Posteriormente, trabalharemos com os dados encontrados nos

2954

anúncios do Jornal do Commercio de 1840 realizando um cruzamento de dados dos meses de agosto e dezembro de 1840. Nos 366 anúncios trabalhados, foram encontrados 481 escravos anunciados. Destes, 269 pertenciam ao sexo feminino e 209 ao sexo masculino. Encontramos algumas dificuldades em relação ao tabelamento da cor e idade, pois parte destes anúncios não mencionam estas informações, o que justificará os resultados absolutos não corresponderem ao total de escravos quantificados neste trabalho.

Análises em relação à cor e idade dos escravos presentes nos anúncios de abril de 1840: De um total de 269 escravas domésticas anunciadas, 160 mulheres estavam descritas como negras, 7 descritas como mulatas e 21 descritas pardas. Embora anunciados 209 escravos no Jornal do Commercio no mês de abril, apenas 114 foram classificados segundo a cor. Destes, 110 eram negros, apenas 1 mulato e 13 eram pardos. Estes dados, explicariam em parte a valorização da cor “parda” em relação à cor negra, presentes nas descrições como “muito pardinha”; “boa pardinha”, retratadas principalmente no caso das escravas que eram mucamas nas casas de seus senhores. Podemos encontrar abaixo a distribuição das idades encontradas nos anúncios de abril de 1840: Distribuição da Faixa etária das escravas domésticas – abril 1840

0a5

6 a 11

12 a 17

18 a 23

24 a 29

30 a 35

36 a 41

42 a 47

48 a 53

1

3

17

22

5

0

1

0

1

Somente foi anunciada a faixa etária de 50 escravas domésticas. Distribuição da Faixa etária dos escravos domésticos – abril 1840 0a5

6 a 11

12 a 17

18 a 23

24 a 29

30 a 35

36 a 41

42 a 47

48 a 53

0

3

15

11

13

3

1

0

3

2955

No caso dos escravos domésticos, somente 49 deles foram anunciados a faixa etária. É importante observar que nos casos dos escravos domésticos, tanto nos gêneros masculinos e femininos, existia a preferência pelos mais jovens, como podemos perceber nas tabelas acima indicadas. Aqueles que se encontrassem entre 12 e 17 anos, eram apreciados pelo fato de estarem iniciando suas atividades e seu senhor teria maior domínio sobre eles, visto que os mais jovens tenderiam a se moldar com os gostos de seus senhores e sinhás. Já a preferência pela idade entre os 18 a 23 anos, seria justificada pela disposição física e saúde dos escravos. Esta faixa etária é muito procurada tanto nos sexos feminino e masculino. No caso dos homens, muito provavelmente desempenhariam função de cozinheiro, o que necessitaria de força para manejo de lenhas, panelas, bem como a preparação de animais, etc. Já as mulheres, seriam designadas ao papel de amas de leite, que precisariam dispor de vigor e saúde física para alimentarem os filhos de seus senhores.

A seguir, veremos como se distribuía as funções entre os escravos domésticos:

Porcentagem funções desempenhadas pelas mulheres – abril de 1840.

Ama de leite

24,6 %

Ama de leite, Mucama.

13,5 %

Mucama.

23,3 %

Ama de leite, Costureira, Cozinheira, Lavadeira, Engomadeira.

0,2 %

Ama de leite, Costureira, Lavadeira, Engomadeira.

1,1 %

Mucama, Costureira, Cozinheira, Lavadeira, Engomadeira.

5,6 %

Mucama, Costureira, Lavadeira, Engomadeira.

6,5 %

Costureira, Cozinheira, Lavadeira, Engomadeira.

24,9 %

Costureira, Lavadeira, Engomadeira.

0,3 %

Total:

100%

2956

Funções mais frequentes desempenhadas pelas escravas são: Costureira, Cozinheira, Lavadeira, Engomadeira com índice de 24,9%. Segundo estudos de Algranti1 (1988 apud SILVA, 2008 p. 92) sobre escravidão urbana no Rio de Janeiro, no período de 1808 a 1822, destaca que as ocupações domésticas estavam ligadas ao tamanho da propriedade escrava. Como o número de escravos era menor nas cidades, muitas vezes eles desempenhavam mais de uma tarefa, sendo inclusive enviados para serviços externos. Embora não seja o foco retratar nesta pesquisa os tipos de negociações ocorridas entre os comerciantes de escravos, é muito comum notarmos nos anúncios do Jornal do Commercio durante o ano de 1840, os aluguéis de escravos domésticos, na qual podemos considera-los como “escravos de ganho”.

Ama de leite, com índice de 24,6%. Este alto índice de Amas de leite foi explicada por MACHADO 2 (2012, p. 200), descrevendo que durante o século XIX, os médicos brasileiros recomendavam a amamentação pelas escravas, pois consideravam que por possuírem um corpo mais reforçado o leite seria de qualidade superior que o das senhoras. Além destas questões, ainda menciona que: “A fragilidade dos nervos, a conformação da mama, as doenças familiares, a debilidade física da mãe, entre muitos outros, surgiam como motivos suficientes para desaconselhar a amamentação, entendida como um grande sacrifício materno.” (MACHADO, 2012, p. 200). Embora não fosse comum a presença das crianças das amas de leite, alguns senhores preferiam manter estas próximas das escravas, pois acreditava-se que a qualidade do leite poderia perder a qualidade devido à tristeza gerada pela separação de mãe e filho.3 Mas a presença da criança não significaria que receberia a atenção e o carinho de sua mãe, muito pelo contrário, a amamentação seria priorizada à criança branca, sendo relegada praticamente ao abandono os filhos das escravas. Os filhos das amas receberiam a alimentação que fosse suficiente para a sobrevivência na visão do poder senhorial. Caso a ama de leite tentasse amamentar seu filho, o senhor agrediria esta criança e provavelmente também sua mãe.

2957

Mucama, com índice de 23,3%. Possuir escravos domésticos significaria no século XIX representação do status social. Freyre (2002 apud SILVA, 2008, p. 204) retrata o cotidiano das mucamas como cúmplices das histórias das sinhazinhas, contavam-lhe histórias enquanto costuravam, ou abanavam suas sinhás. Tinham uma relação tão próxima que costumavam dar cafuné em suas sinhás e embalavam os sonhos das Sinhazinhas com cantigas e modinhas. Apesar da relação mais próxima com seus senhores, sobretudo com a Sinhá, isso não a livrava da violência e os abusos cometidos pelo seu Senhor.4

Porcentagem funções desempenhadas pelos homens – abril de 1840. Cozinheiro.

28,7 %

Pajem.

22,2 %

Cozinheiro, Lavadeiro, Engomadeiro.

0,2 %

Doméstico.

27,1 %

Cozinheiro, Doméstico.

21,8 %

Total:

100,0 %

Funções mais frequentes desempenhadas pelos escravos domésticos:

Cozinheiro, com índice de 28,7%. A função de Cozinheiro era a mais frequentemente desempenhada pelo homem, com 28,7% dos casos. É importante notar, que o homem comumente desempenharia unicamente esta função, o que diferenciava da mulher, apesar de utilizar o espaço da cozinha, estaria desempenhando outras funções como a costura, lavagem e a engoma de roupas. Doméstico, com índice de 27,1%. Outra função desempenhada pelo homem seria o serviço geral de uma casa, denominada “doméstico”. Nas descrições dos anúncios, mencionam “Precisa-se de um preto para o serviço de portas adentro”; dessa forma, não especificam um serviço restrito ou uma atividade determinada para o ambiente doméstico. 2958

Pajens, com índice de 22,2%. Os pajens atendiam aos senhores ou filhos dos senhores para oferecer água, acompanhar os passeios, manter as brasas acesas dos charutos, enfim, tudo o que fosse necessário para manter o conforto dos senhores, assim como as atividades das mucamas para com suas senhoras. Segundo Algranti (1988, apud SILVA, 2008, p. 102) os senhores: [...] incumbiam seus escravos de tarefas que requeriam uma certa dose de confiança e não apenas habilidade. Faziam-nos portadores de cartas e recados, e até mesmo os mandavam trocar notas bancárias [...]. Pelas próprias características das tarefas desempenhadas, os escravos domésticos eram aqueles que maior contato tinham como seus senhores, junto dos quais passavam todo dia e mesmo parte da noite, pois deviam estar atentos a qualquer chamado, independente do horário de trabalho. Mas, por outro lado, usufruíam também da liberdade propiciada pela vida urbana e aproveitavam qualquer pretexto para escaparem da casa do senhor e misturarem-se ao burburinho da cidade. Alguns faziam outros serviços, além dos domésticos, e chegavam a possuir uma profissão.5

Dessa forma, percebemos que nas funções de mucamas e pajens, desenvolvia-se uma relação diferente da estabelecida com os escravos de lavoura e até mesmo comparando com outras funções domésticas. Apesar de estes escravos estarem mais favorecidos em relação aos outros, as mucamas, eram vítimas da violência de suas sinhás, quando enciumadas das relações extraconjugais dos senhores com as mucamas.

Conclusão Os anúncios de 1840 do Jornal do Commercio retratam os escravos domésticos com as características de “boa ama”; “uma bonita pardinha, mocamba recolhida”; “precisa-se de um cozinheiro pardo”, o que reproduz a preferência das cores mais claras em relação aos de cor negra. Um contraponto a esta situação, é, que, em relação aos dados trabalhados a partir dos anúncios do Jornal do Commercio, foi possível perceber que a maioria das cores mencionadas em ambos os sexos, é a negra, e a minoria foi classificada como parda. Geralmente eram preferidos os escravos mais jovens, pois possuiriam maior vigor físico e saúde. De acordo com as análises levantadas, não eram presentes nas descrições dos anúncios

2959

domésticos algum tipo de marca de nação, não especificam a nação destes escravos, somente eram mencionadas as qualidades destes escravos, presentes em “perfeita engomadeira”; “sabe bem coser”; “própria/o para serviços de portas adentro”. Outra questão observada é que não havia descrição de marcas de castigos físicos, muito retratada nos escravos fujões. Alguns destes anúncios explicitavam que o escravo anunciado era livre de vícios e justificavam que o motivo da venda era o fato do senhor ir para fora. Já no caso das amas de leite preferiam-se aquelas que estivessem no primeiro parto, que fossem reforçadas, bonitas, carinhosas com crianças. Carvalho6 (2003, p. 43) indica que qualquer que fosse sua classe, uma mulher estava abaixo de todos os homens da mesma condição. Essa questão pode ser bem exemplificada, enquanto as mucamas estariam mais próximas ao interior das casas, o pajem, estaria menos restrito ao espaço urbano.

1

SILVA, C. L. O serviço mais íntimo e delicado: aspectos do universo da escravidão doméstica e algumas formas de conquista de alforria. Revista Mal-Estar e Sociedade, Barbacena, v. 1, n. 1, p. 89-110, 2008. 2 MACHADO, M. H. P. T. Entre Dois Beneditos: Histórias de amas de leite no Ocaso da Escravidão. In: Giovana Xavier; Juliana Barreto de Farias; Flávio Gomes. (Org.). Mulheres Negras no Brasil Escravista e do Pós Emancipação. 1ed. São Paulo: Summus/ Selo Negro, 2012, v. 1, p. 199-213. 3 Koutsoukos (2009 apud MACHADO, 2012 p. 204). Ibid., 2012. 4 FREYRE, G. Casa-grande e senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. In: SANTIAGO, S. (Coordenação, seleção de livros e prefácio). Intérpretes do Brasil. 2 ed. vol. II. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002. 5 ALGRANTI, L. M. O feitor ausente: estudo sobre a escravidão urbana no Rio de Janeiro. Petrópolis: Vozes, 1988. 6 CARVALHO, M. J. M. . De portas a dentro e de portas afora: trabalho doméstico e escravidão no recife, 1822-1850. Afro-Asia (UFBA), Salvador-BA, v. 1, n.30, p. 41-78, 2003.

2960

África Ocidental, a construção do herói na fala de um griô. Autor: Almir de Alcantara Ramos Graduando do curso de Licenciatura em História Universidade Estácio de Sá – RJ [email protected] Orientador: Prof. Dr. Washington Santos Nascimento Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

Resumo O estudo da história e da cultura africana contribui continuamente para o processo de superação de preconceitos, ampliando, desta forma, os horizontes do conhecimento. A proposta é apresentar maiores reflexões a respeito de algumas tradições da África ocidental. Seguindo a trajetória de Sundjata Keita analisado pela obra de Djibril Tamsir Niane, Sundjata ou a epopéia mandinga. Sem fechar qualquer discussão, intenciona-se contribuir para uma investigação mais ampla dos horizontes do conhecimento através da história, oralidade e literatura. Palavras-chave: Império do Mali, Islamismo, oralidade.

Abstract: The study of history and African culture at every turn contributes to the process of overcoming prejudices, expanding in this way the horizons of knowledge. The proposal is to present further reflections about some traditions of West Africa. Following the trajectory of Sundjata Keita analyzed the work of Djibril Tamsir Niane, Sundjata or Mandingo Epic. Without closing any discussion, intends to contribute to a wider investigation of the horizons of knowledge through history, orality and literature. Keywords: Empire of Mali, Islam, oral history.

A proposição deste estudo é apresentar maiores reflexões não apenas sobre mito e realidade existentes em torno de Sundjata, mas também do Império do Mali. Analisado pela obra de Djibril Tamsir Niane, Sundjata ou a epopéia mandinga, a qual é, segundo o autor, a reprodução fiel da fala do griô1, Djeli Mamadu Kuyatê, oriundo de uma aldeia chamada Djeliba Koro, localizada no distrito de Siguiri, atual Guiné. Porém, antes de detalhar e contextualizar a trajetória de Sundjata se faz necessário apresentar este herói de muitos nomes 2961

do reino Mandinga2. Além disso, tem-se a questão da oralidade e sua extrema importância para as sociedades africanas. Vale destacar que o griô está para além das tradições, sabendo que estas ficam por conta dos Mestres Tradicionalistas. A tradição oral encontra-se ligada diretamente a luta pela libertação nacional, ou seja, a oralidade é o grito de liberdade de toda uma civilização que por muitas vezes é esquecida dentro de nossa história. Vansina 3 Na obra em questão, deve-se destacar que ela discorre a respeito da vida de Sundjata, sua infância difícil, com superações sempre constantes, as quais vão se moldando, positivamente, seu prestigio e sua moral respectivamente. Além disso, sua história é pautada por presságios e predições – outras características que se verificam em diversas tradições africanas, ficando indubitável que o destino do herói já estava traçado desde o nascimento, de maneira que nenhum obstáculo impediria seu cumprimento. Mais que isso, a narrativa enaltece Sundjata por ser ele o fundador do Império do Mali, em 1235, saído do reino Mandinga, após a célebre batalha de Kirina, na qual Sundjata derrota Sumaoro Kantê. Este último submeteu todas as províncias que outrora estiveram sob domínio do Império de Gana, exceto o território dos mandem (ou mandingos), onde estes rebelaram-se inúmeras vezes contra o domínio de Sumaoro, saindo vitoriosos após o pedido de apoio feito a Sundjata, que, na época, encontrava-se exilado do Mandinga. Neste período, século XIII, o islã4 já se expandia no continente africano; Sumaoro era membro do clã dos Sossos, os quais não aceitavam a conversão ao islã. Entretanto, com o domínio de Sundjata sobre o Mandinga e as demais províncias e reinos da região, o islã é aceito, o que possibilita sua expansão nessa parte ocidental da África subsaariana. Neste momento deve-se destacar que, mesmo com a introdução do islã nessas sociedades, a importância das tradições manteve-se intacta, mesmo com a presença da escrita árabe; dessa forma, mais que uma África islamizada, percebemos que o islã incorpora uma outra especificidade, a africana. Costa e Silva5 O Mali foi um dos maiores e mais conhecidos impérios africanos. Localizado no alto do rio Niger, ficou mundialmente conhecido por suas minas e pelas proezas realizadas por seus imperadores. Para governar uma área tão extensa, o imperador contava com o auxilio de dois importantes grupos sociais. Conforme Costa e Silva, de um lado, cuidando das questões administrativas do império, estava a linhagem real, uma espécie de nobreza do Mali que controlava o pagamento de impostos feito pelas aldeias que deviam obediência ao imperador. Do outro, estava o poderoso exército, responsável principal pelas conquistas do império e formado por cerca de 10 mil homens que se dividiam entre a cavalaria do império e os milhares de arqueiros. Esses homens usavam equipamentos importados do norte da África e da Europa, o que mostra o poder das rotas comerciais. Além

2962

da nobreza e do exército, o governo adotou uma tática de dominação, ao invés de obrigar os povos dominados a viverem de acordo com seus costumes, o imperador preferiu respeitar as diferentes culturas que compunham seu império, desde que esses povos pagassem os devidos impostos. Essa estratégia diminuía o índice de revolta dos povos submetidos e garantia certa estabilidade para governar. Maestri6 Apesar de a grande maioria da população viver da agricultura, da atividade pastoril e da pesca, o comércio do ouro foi a maior atividade. Maestri7 Devido ao seu extenso território, o imperador controlava não só as minas de ouro, mas também as redes de comércio que levavam o metal até o Deserto do Saara de onde ele seria levado para o norte da África e de lá para a Europa e Oriente Médio. O livro Sundjata ou A Epopeia Mandinga apresenta, por um lado, o processo de recolha das tradições orais que revela o pertencimento étnico de Djimbril Tamsir Niane e por outro, a necessidade de recuperar as histórias locais como forma de mobilização para a luta de libertação nacional, no entanto para que possamos entender estas duas dimensões faz-se necessário retornar a pessoa do autor, ou seja, aos processos que se passam até que se chegue a obra literária. Djibril Tamsir Niane, nascido em 1932, na Guiné, estudou em Dacar. A região possui escolas e universidades, sendo um Centro de Formação Acadêmica. Na França faz sua formação em História e, após trabalho sobre o Império do Mali, publicou em 1960 o livro Sundjata ou A Epopeia Mandinga, após o qual retorna para Dacar e é um dos organizadores da coleção História Geral da África. A Escola de Dacar é detentora de três gerações, a primeira encontra-se em torno de Cheikh Anta Diop, que insere o Egito Antigo no Continente Africano, ou seja, coloca a antiguidade clássica no passado africano. Deve-se destacar que Diop não foi um professor formal, escreveu sobre a cultura africana como forma de se compreender o restante do mundo. Embora seu trabalho tenha inserido o Egito na África, hoje se trabalha o Egito como História Antiga destacado do Continente Africano. Barry8 Niane faz parte da segunda geração, momento em que ocorre um corte entre a produção no Islã e a produção colonial, ou seja, instante onde os intelectuais começam a retornar para Dacar. Esta geração consolida dois eixos, onde o primeiro é referente aos estudos relativos à História Antiga e o segundo é referente à História Pré-colonial. Temos ainda Boubacar Barry, pertencente à terceira geração, sendo outro colaborador na elaboração da História Geral da África. Já não trabalha mais dentro do eixo de Diop, pois os processos formativos dos professores da Escola de Dacar começam a ter eixos

2963

metodológicos que não eram internos, pelo fato de estarem vindo da França, Estados Unidos, Inglaterra trazendo outras concepções intelectuais, tendo o elemento colonial como eixo. A obra Sundjata ou A Epopeia Mandinga é a História Antiga que leva o leitor a conhecer um processo que se revela antes da chegada dos europeus ao continente africano, a primeira e mais remota forma de se contar as histórias, a tradição oral, que de acordo com Diop varia conforme a região, fazendo-se necessário entender as lógicas regionais, sendo contada através dos griô e ou pelos mestres tradicionalistas. Pode ser considerado um trabalho de história política, e embora seja um texto literário, traz em si um cunho político, pois é o processo de organização do Império do Mali, a partir de uma narrativa que acontece de dentro para fora. Niane9 A primeira demonstração da força sobrenatural de Sundjata é apresentada através do episódio da cura milagrosa, pois trata-se da primeira batalha vencida pelo herói. De acordo com Nicole Goisbeault, a cura miraculosa seria resultado da associação das forças de seus totens10, herdados de seus pais, onde o búfalo e a pantera pelo lado da mãe e o leão pelo do pai que, como já dito, desempenham grande papel na formação do herói. Brunel11 Segundo Niane

12

, Sudjata marca o início de uma nova tradição, a partir de seu

surgimento na história africana tudo se modifica, tendo trazido uma nova perspectiva para região. Além do aspecto político retratado no livro, este trata também da vitória do Islã sobre as religiões tradicionais. Antes de qualquer abordagem temos que entender que religião e comércio encontram-se diretamente ligados, ou seja, o Islã e o comércio feito nas rotas de longa distância possuem uma forte relação. Segundo Ibn Batuta13, o fato da África do Norte Atlântico estar associada ao Islã promove grande vantagem comercial, tendo em vista que os comerciantes locais entendem a ligação com o islamismo como um dinamizador nas relações comerciais, gerando um processo de irmandade, ou seja, é muito mais fácil e de maior confiança negociar com um comerciante seguidor do Islã. Para o governante pode-se considerar um facilitador, pois implementação do Islã permite que cada clã, pequenos reinos, províncias possam viver suas especificidades culturais, oferecendo a possibilidade de construção da unidade dentro da diversidade, porém deveriam seguir a “cartilha” do Islã. Desta forma, ao adotar este seguimento é adotar uma “religião” que se pretende universal, com isso o governante conseguia beneficiar-se dentro da política para promover algum tipo de unificação religiosa. É desta forma que Sundjata atua, pois quando se depara com as diversidades do Império vê a necessidade de obter a unidade política, assim com a implantação do islamismo toma para si o bom relacionamento junto ao comércio tanto nas rotas, como com os povos dominados. Vale ressaltar que o Islamismo não trouxe a unificação religiosa e cultural esperadas, tendo em 2964

vista que a estratégia política encontra-se acima da cultura e da religiosidade. A epopéia dá o entendimento de que cada acontecimento na vida de Sundjata refere-se ao reino, ao Islã, ou seja, ele tinha uma deficiência, o reino também era deficiente, a religiosidade sofre seus altos e baixos, mais uma vez representando os aspectos agradáveis e desagradáveis da região, desta forma ele é a personificação do Império do Mali.

A Oralidade e as Origens “Se queres saber quem sou, se queres que te ensine o que sei. Deixa um pouco de ser o que tu és, e esquece um pouco o que sabes.” Tierno Bokar Salif14. Mencionado por Amadou Hampaté-Bâ15, o trecho chama a atenção do pesquisador, principalmente o ocidental, para uma das tantas limitações que poderá ter ao pretender estudar a história e a cultura de qualquer localidade do continente africano. Esta citação adverte quanto a limitação ao que se pretende discutir, já que a visão interna das sociedades analisadas apresenta grande dificuldade de alcance, principalmente pela singularidade de cada etnia. Muito mais que isso, pois esse trecho nos leva a uma situação comum na pesquisa histórica que é a utilização de conceitos, de noções de mundo e de cronologias alheias ao objeto de estudo, o que, em pesquisas sobre sociedades e culturas africanas, necessita ser duplamente evitada; caso contrário, deve, ao menos, ser fundamentada e problematizada. Segundo Hampâté-Bâ16, ao falar em tradição, dando alusão aos estudos da história africana, referimo-nos à tradição oral; de acordo com o autor, para validar esses estudos, é de grande importância que se apoiem nessa herança de conhecimentos de toda espécie e variedade, passados de geração para geração. Sociedades onde o papel do profano era mínimo em relação ao universo sacralizado, pelo menos antes da chegada do colonizador ocidental, que aos poucos foi inserindo suas noções de mundo e religião, a tradição oral não se limitava a transmitir lendas ou relatos mitológicos, além disso, era, ao mesmo tempo, religião, conhecimento, ciência natural, iniciação à arte, história e divertimento.

Assim como em muitas sociedades tribais da Europa a transmissão oral era a maneira de reviver as histórias míticas e perpetuá-las, e mesmo na Idade Média onde já se dominava a escrita, a tradição oral teve forte importância entre a população, afinal, esse domínio era quase que restrito aos eclesiásticos17.

De acordo com J. Vansina, em uma sociedade oral a fala é mais que um modo de comunicação, é um modo de preservação da sabedoria e história dos ancestrais Vansina 18. A educação tradicional tem início em casa, com a família, as lições são ensinadas por meio das

2965

circunstancias do cotidiano, em situações que possibilitem a transmissão de conhecimento através de histórias, lendas, mitos, fábulas, provérbios, entre outros. O homem tem uma relação muito forte com a palavra, já que a ela é atribuída caráter sagrado, exatamente por estar vinculada à sua origem divina e às forças ocultas de que é depositária, desse modo, levando-se em consideração seu uso ritualístico e religioso, principalmente no que diz respeito os ritos de iniciação e a evocação de ancestrais. Nesse sentido, toma-se como exemplo o mito de criação do homem e do universo da tradição bambara Brunel19, segundo a qual o Ser Supremo cria todas as coisas através da fala. É por intermédio da interlocução que o Ser Supremo dita o homem de todos os seus dons, dentre os quais, o mais importante, o dom da palavra. A grande rede de transmissão oral inicia-se, portanto, na própria gênese primordial, em que o primeiro homem torna-se depositário e transmissor do que aprendeu com seu criador. Os grandes detentores dessa herança oral, os depositários do conhecimento transmitido pela tradição são, de acordo com Hampâtè-Bâ, os “tradicionalistas”. Conhecidos também como doma, são verdadeiros arquivos ambulantes, a memória viva da África, nas palavras do autor. Para todos os ramos do conhecimento existem domas, mas na maior parte das vezes são “generalizadores”, isto é, conhecedores “completos”, possuintes de informações relativas à história, à religião, à simbologia, às ciências naturais e às ciências iniciatórias 20. Além disso, são grandes contadores de história, lendas, mitos e provérbios. Entretanto, ressaltemos que, ao contrário do que acontece com os griô, os domas têm o comprometimento com a verdade; podem, sim, ensinar a um dado público por meio de narrações divertidas, embelezadas, porém nunca devem inventar, mentir; a base da história a ser contada ou do ensinamento a ser transmitido é sempre a mesma. Hampaté-Bâ21 O griô, este tem direito de ser cínico. Vistos como grandes animadores de público, são também músicos e poetas; também sabem embelezar histórias de maneira a atrair seus ouvintes, no entanto, não possui nenhum compromisso com a verdade. Geralmente são ligados a uma família nobre ou real. O griô que narra a trajetória de Sundjata, por exemplo, pertence à família dos Kuyatê, a qual está, há muitas gerações, a serviço dos príncipes Keita do reino Mandinga, tendo em vista tratar-se de um ofício hereditário. Segundo as palavras do griô Djeli Mamadu Kuyatê: são eles, os griôs, a memória viva dos homens, são eles os detentores dos grandes feitos de príncipes e reis; é por intermédio de sua palavra que perpetuam suas vidas, sua trajetória, sua história. Além disso, podem servir às famílias como “embaixadores” ou “diplomatas”, sendo os encarregados pela mediação entre famílias em caso de desavenças ou de negociações, como o casamento, por exemplo. Favorecidos de

2966

grande inteligência e conhecimento a respeito da dinastia a que se ligam, os griôs têm grande influência sobre os nobres e os chefes, especialmente porque, sempre que podem, suscitam seu orgulho mediante suas canções enaltecedoras, assim sendo, o segredo do poder da influência dos griôs sobre os nobres reside no conhecimento que possuem da genealogia e da história das famílias. Conforme Vansina, a tradição oral tende a idealizar as narrativas, criando paradigmas morais e valorativos, nas palavras do autor, “as tradições refletem tanto um ‘mito’, no sentido antropológico do termo, como informações históricas”. Vansina 22 A tradição oral encontra-se ligada diretamente à luta pela libertação nacional, ou seja, a oralidade é o grito de liberdade de toda uma civilização que por muitas vezes é esquecida dentro de nossa história. Segundo Niane, caso o herói não fosse mencionado em duas fontes escritas: Ibn Battuta e Ibn Khaldun, em 1353 e 1376 respectivamente, possivelmente seria considerado por historiadores europeus como um ancestral mítico ou lendário, dada a importância dele na história tradicional do Mali. Niane23 A formação do herói e as origens estão profundamente ligadas: negligenciar a importância da origem tornaria a análise incompleta, assim como, falar em origens sem todo o seu sentido mítico e moral levaria a uma análise sem qualquer profundidade. Estudar a cultura da África Ocidental evidencia a importância dos antepassados, principalmente em sua tradição oral, onde a cronologia se confunde com a genealogia, e muitas vezes aquela se dá somente com base nesta, uma cronologia relativa: Vansina afirma que “A tradição oral sempre apresenta uma cronologia relativa, expressa em listas ou em gerações”. Vansina24 A obra de Djibril Niane apresenta um valioso exemplo da importância dos antepassados. Antes de começar a história de Sundjata, o griô faz uma rápida apresentação pessoal e em seguida nos traz a origem dos Maninka 25 e uma ampla sucessão genealógica. Os Primeiros Reis do Mandinga, onde expõe doze antepassados de Sogolon Djata 26. Mais do que mera cronologia, a origem é base fundamental para a configuração do caráter, e consequentemente, do destino do herói. O que no presente é tratado como genética e criação, no passado era tratado de modo mais espiritual e profundo, de caráter mágico. Na história apresentada na epopéia, Maghan Kon Fatta, pai de herói, era um rei amado pelo povo, Sundjata herdou a admiração do povo e a majestade do Leão de seu pai, assim surge um dos nomes ao qual Sundjata é conhecido: Mandinga-Diara que significa “leão do Mandinga”. Sogolon, a mãe de Sundjata, é um notável exemplo de mãe protetora e amorosa, tal sua importância como mulher / mãe na cultura tradicional africana. Portadora de uma feiúra atormentadora, pois é assim que Sogolon é descrita, tinha uma corcova que deformava suas costas, seios fartos e braços musculosos, era

2967

uma mulher forte, robusta, uma figura extraordinária se possuída, o que mostrava ser uma tarefa muito ardorosa, tendo em vista que Sogolon não se deixava dominar. Aqui é apresentada a figura da mulher africana, sendo possuidora de um forte espírito guardião, não se vê com a necessidade da proteção masculina, ao contrário do que é apresentado pela sociedade ocidental, ou seja, uma sociedade acostumada com a imagem da mulher frágil, que se vê a todo instante protegida pela figura masculina. Niane27

A morte do herói Nascimento e morte de um herói são uma construção, onde esta é feita de intrincados significados, por vezes ininteligíveis aos olhos do leitor ou do ouvinte, tendo em vista tratarmos diretamente de uma sociedade com tradição oral. Não é pensar uma construção com finalidade bem definida, o que aparentemente acontece é que, com o decorrer do tempo, a história de um personagem acaba por tornar-se uma lenda, um mito, e nessa mitificação não é dado espaço para mortes ou finalizações onde o mito desapareça. A própria mitificação parece proibir essa fase tão essencial que é a morte. Esta, na verdade, traz um sentido de realidade à história, parece torná-la fidedigna. Matar um herói na tradição oral é algo muito forte, é destroçar algo que foi construído passo a passo, palavra por palavra no imaginário das pessoas, por intermédio do dialogo “face a face”, sentindo cada alvorecer e cada crescimento desse mito. O próprio tornar-se herói acaba por transcender as limitações humanas buscando uma vitória sobre a finitude. Krippner28 No entanto, para dar um caráter legítimo à história, o doma ou o griô tem a necessidade de acabar com a vida do herói, já que a vida é finita e tênue, mas esse fim é feito de uma forma magistral. Os demais personagens podem desaparecer ou ser mortos para sempre, porém o herói tem de se solidificar, terá que se tornar eterno aos olhos do futuro. Na leitura de Sundjata, tenta-se fazer da morte uma simples passagem, ou um instante de descanso, depois de tudo que este fez pelo Mandinga, até a fundação do Mali. Na versão do griô Mamadu Kuyatê, a morte de Sundjata simplesmente dá referência de um lugar onde ele repousa, em nenhum momento fala de sua morte física ou de que maneira ou circunstâncias ocorreu. Duas versões são apresentadas sobre a morte de Sundjata, as mais conhecidas são: uma onde ele morre afogado e outra onde ele leva uma flechada durante uma manifestação pública em Niane (Capital do Reino Mandinga). Tanto uma quanto a outra não são apresentadas com tom de veracidade. Esse descaso deve ser ainda mais forte na transmissão oral. Ao que parece, a idéia é “manter o Leão vivo” ou manter seus ideais e feitos acesos. 2968

Conclusão A construção do herói nessa nova África “descoberta”, em algumas páginas, está diretamente ligada à nossa sociedade. Não apenas pelo fato de possuirmos uma herança africana, mas também por identificarmos pontos em comum na formação dos heróis que nos foram apresentados por meio do processo de colonização, heróis de guerra ou da política. Estudar o íntimo da sociedade africana pré-colonial é fazer uma viagem no tempo, permitindo ver a sociedade humana como um todo. A África é imensa, grande e profunda e, aqueles que conhecem um país africano, não podem dizer que conhecem a África. Querer falar sobre a África é pretensão demais, porque existe a África do Sul, do Leste, Central, do Norte e a do Oeste. A África que dentro destas linhas foi relatada é a do Oeste, onde antes da colonização existiram grande impérios: Gana, Mali ou Mandinga, Songai. Aquele que relata os fatos históricos desta região é um homem, mas antes de qualquer coisa ele é um griô. E o griô é a memória viva do continente africano, da parte da África descrita nestas páginas, é sua biblioteca e junto com os Mestres Tradicionalistas são os guardiões das tradições e dos costumes. Ninguém se torna griô, nasce-se griô, é de pai para filho. Mas há também temos as griôs, as mulheres, muito poderosas, quando estão presentes, os homens se calam. Há vários tipos de griôs, mas os primeiros, hoje talvez vinte ou trinta, estes foram os Kouyaté, é uma dinastia. Segundo Sotigui Kouyaté, não se conhecem e jamais se conhecerão, mas todos são Kouyaté da mesma linhagem, o primeiro teve três filhos, onde o primogênito foi Moussa, o segundo Massamagan e o terceiro Batroumori, todos os Kouyaté vêm desses três homens e são do mesmo sangue. Os griôs no Mali são os “djeeli, esse nome remota ao século IX e só se encontra, na verdade, no Império Mandinga, podem haver pessoas de fora dele fazendo as mesmas funções, mas não podem se chamar griô29.”

No Brasil pouco se conhece da história de Sundjata ou da existência dos griôs, pois nossa herança cultural chegou escravizada. Talvez por essa razão, em se tratando de África, muitas vezes parte-se esperando encontrar apenas o exótico, mas o que se observa é uma imensa

diversidade

cultural,

regiões

politicamente

organizadas

e

sociedades

significativamente dinâmicas, não se percebendo que muito do que hoje existe no Brasil e no mundo teve início neste fabuloso continente ainda bastante desconhecido. É por estas e outras questões que não se tem a pretensão de encerrar qualquer debate sobre o assunto, mas sim ampliar os horizontes do conhecimento daquela que é o berço da humanidade, a África.

1

Termo de origem francesa que, na África antiga, designava a casta responsável pela transmissão de tradições históricas. 2 Etnônimo que inclui vários povos da África Ocidental (do Mali a Costa do Marfim) falantes de línguas do grupo mande. O mesmo que malinquê, mandenca e maninca. Segundo N’Diaye (1970), os povos mandingas teriam vindo do leste, numa época muito remota, numa invasão lenta e progressiva até atingir as regiões onde se fixaram definitivamente, deixado entretanto, ao longo de seu percurso, grupos mais ou menos importantes.

2969

VANSINA, Jan. “A tradição oral e sua metodologia”. In: História geral da África. Joseph Ki-Zerbo. 2 ed. Brasília: UNESCO, 2010, p. 139 – 166. 4 Islã é uma palavra árabe originada de um radical que significa paz, solidez ou segurança. 5 SILVA, Alberto da Costa e. A enxada e a lança; a África antes dos portugueses. 5 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011. p. 324 – 341. 6 MAESTRI, Mario. História da África Negra Pré-Colonial. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988, P. 26 – 31. 7 MAESTRI, Mario. Op. Cit., p. 28. 8 BARRY, Boubacar. Senegâmbia: O desafio da História Regional. Rio de Janeiro: Sephis – Centro de Estudos Afro-asiáticos / UCAM, 2000. 9 NIANE, Djibril Tamsir. Sundjata ou a Epopéia Mandinga. São Paulo: Ática, 1982. Disponível em: http://www.casadasafricas.org.br. Acessado em 10 de agosto de 2015. 10 Animais protetores, vistos como arquétipos, são símbolos de energias que existem e que podemos encontrar e manifestar dentro de nós. 11 BRUNEL, Pierre. Dicionário de Mitos Literários. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997, p. 677 – 681. 12 NIANE, Djibril Tamsir. “O Mali e a segunda expansão Manden”. In: História geral da África. Joseph Ki-Zerbo, 2.ed. Brasília: UNESCO, 2010, p. 133-192. 13 Ibn Batuta. Geógrafo árabe nascido em tanger, em 1304, e falecido em Marrakech, em 1378. Grande viajante, percorreu diversas regiões do globo e, entre elas, a África do Leste ao Oeste. Sua observações sobre o Sudão Ocidental são algumas das melhores fontes para o estudo do Império do Mali. Vellut, J.L. Op. Cit. P.84. 14 Falecido em 1940, passou toda a sua vida em Bandiagara (Mali). Grande Mestre da ordem muçulmana de Tijaniyya, foi igualmente tradicionalista em assuntos africanos. Cf. HAMPATÉ BÂ, A. e CARDAIRE, M. 1957. 15 HAMPATÉ-BÂ, Amadou. “A tradição viva”. In: História geral da África. Joseph KiZerbo, 2.ed. Brasília: UNESCO, 2010, p. 167. 16 HAMPATÉ-BÂ, Amadou. Ibidem p. 168. 17 ROCHA, Gustavo Lauriano de Freitas. Brittania: Um resgate das mitologias Céltica à Nórdica. 2008. 18 VANSINA, Jan. Ibidem p. 168. 19 BRUNEL, Pierre. Ibidem p. 677 – 681. 20 “(...) quando falamos de ciências ‘iniciatórias’ ou ‘ocultas’, termos que podem confundir o leitor racionalista, trata-se sempre, para a África tradicional, de uma ciência eminentemente prática que consiste em saber como entrar em relação apropriada com as forças que sustentam o mundo visível e que podem ser colocados a serviço da vida.” Bâ, A. Hampaté. Op.cit., p. 187 – 188. 21 HAMPATÉ-BÂ, Amadou. Ibidem p. 169. 22 VANSINA, Jan. Ibidem p. 153. 23 NIANE, Djibril Tamsir. Ibidem p. 148. 24 VANSINA, Jan. Ibidem p. 160. 25 Habitantes do Mandinga. 26 Filho de Sogolon, uma das formas como era chamado Sundjata. 27 NIANE, Djibril Tamsir. Sundjata ou a Epopéia Mandinga. São Paulo: Ática, 1982. Disponível em: http://www.casadasafricas.org.br. Acessado em 13 de agosto de 2015. 28 KRIPPNER, Stanley. Aspectos Mitológicos da Morte e do Morrer. José Ascanio de Andrade, 2002. Disponível em: http://www.inic.com.br/pdf/aspectos.pdf. Acessado em 13 de agosto de 2015. 29 KOUYATÉ, Sotigui, 2014: em visita ao Brasil. 3

2970

Da resistência à re-existência: testemunhos femininos sobre a tortura na Ditadura Militar Brasileira, em “Que bom te ver viva” Autora: Ana Carolina Monay – Graduanda Universidade do Estado do Rio de Janeiro Orientador: Daniel Pinha Silva e-mail: [email protected]

Este trabalho analisa o filme "Que bom te ver viva", de Lúcia Murat, destacando, pelos testemunhos, o trânsito que na atuação feminina entre o espaço público e privado. No primeiro momento, as mulheres saem do espaço privado, atuando em âmbito público pela organização em movimentos de resistência à Ditadura; no segundo, quando a catalisação da dor originada no espaço público pela tortura se dá no espaço privado, na maternidade – materialização da continuidade da vida –, lugar de re-existência da mulher.

Palavras-chave: tortura em mulheres; público-privado; cinema brasileiro.

From resistance to re-existence: women's testimonies on torture in Brazilian Military Dictatorship on "Que bom te ver viva" This paper analyzes the film "Que bom te ver viva", from Lúcia Murat, highlighting, through the testimonies, the transitions in the women's performance between public and private sphere. At first, women came out of the private space, acting in public life by organization in dictatorship resistance. In the second, when the catalysis of the pain originated in the public space for the torture takes place in the maternity - materialization of the continuity of life – place of re-existence of woman.

Keywords: torture in women; public-private; bazilian cinema

O presente trabalho analisa o argumento do filme "Que bom te ver viva" à luz do debate que se estabelece sobre o lugar social das mulheres com base na dicotomia entre espaço público e espaço privado nos estudos de gênero, considerando o cinema como objeto de problematização historiográfica. O primeiro longa-metragem dirigido por Lúcia Murat, de 1989, tem as expectativas e 2971

desdobramentos da recepção da Lei de Anistia de 1979 e da redemocratização como cenário da narrativa – e do próprio contexto no qual o filme foi produzido e lançado. A partir dos testemunhos de oito mulheres que militaram na resistência contra o Regime Militar e de uma personagem ficcional – considerada a imagem ficcional que reúne a voz da própria diretora – o filme forma um corpo testemunhal coletivo que denuncia a violência perpetrada pelo Estado brasileiro contra essas mulheres. Nesse aspecto, o filme refaz o dilema entre a experiência e memória individual, expressa na fala de cada uma das oito mulheres, e a composição de uma memória coletiva, já que esse conjunto de experiências individuais reúne o quadro social da tragédia. Partindo dos relatos dessas mulheres que experienciaram esse tipo de tortura, destaco a existência de uma ruptura, a priori, com o modelo definido por convenção de delimitação do lugar de uma mulher que, ao agir politicamente na resistência, passou a compor o espaço público. Nesse momento, foram transgressoras e buscaram subverter duas ordens postas: a dos padrões de gênero e aquela do Estado ditatorial. Em um segundo momento, o da canalização do trauma e das perspectivas de ações de administração e/ou reparo da dor – originadas no espaço público e de cunho político – foram pautadas no âmbito "pessoal" e passaram a encontrar resoluções no foro íntimo. Esse segundo momento é o da busca pela re-ssignificação de suas existências, de forma a garantir a sobrevida. Desse modo, entender o cinema em sua completude, como processo de produção artística, distribuição e recepção, no qual o resultado é o “filme”, permite que o mesmo se constitua em reserva de memória e, compreendendo o mesmo em seu contexto de produção, conteúdo enunciado e circulação, o cinema se torna ferramenta de acesso ao passado; em suma, fonte histórica. Em se tratando da Ditadura Militar, o cinema possibilita capturar a batalha de memória em jogo, sendo um dos espaços privilegiados de materialização desse embate. A partir da sua imersão no contexto de produção e circulação do produto final do cinema, é possível fazer uma análise desse processo histórico partindo do princípio que o filme é um enunciado no e do presente, ainda que, em termos de conteúdo, trate de outra temporalidade.1 A dimensão do testemunho, semelhante à do filme, só pode ser compreendida em duas temporalidades distintas: aquela da experiência, que se inscreve no passado, e que produzirá memória a ser mobilizada na construção da narrativa – o próprio testemunho – no tempo presente. Nesse sentido, entendendo a obra de Lúcia Murat como uma reunião de testemunhos 2972

individuais, que se configuram em testemunhos coletivos e públicos, podemos traçar duas conjunturas a serem abordadas nesse trabalho: a da experiência e a do relato. Quando a experiência deixa como legado a ideia da sobrevida, logo se pensa em que contexto essa sobrevida - e porque não vida - é gerada. Se essa sobrevida será abordada por meio dos testemunhos, presume-se que aquilo a que se sobreviveu está inscrito no passado; em outros termos, na experiência. Lucia Murat no prólogo do filme refaz o breve caminho desse momento primeiro da experiência; remonta, de forma simplificada, o sentido do endurecimento do Regime Militar, e anuncia: “este é um filme sobre os sobreviventes desses anos”. Que experiência é essa que produz sobreviventes? As duas décadas que se seguiram ao golpe de 1964 foram aquelas que, no Brasil, se caracterizaram por um continuum da exceção como modelo de Estado. “Levemos em conta duas características das mais decisivas da ditadura brasileira: a sua legalidade aparente ou, pra ser mais preciso, sua capacidade de reduzir a legalidade à dimensão da aparência.” Não é sobre a lei que esse Estado se pauta; a qualquer momento, pela vontade da corporação militar que a rege – e sob o argumento da manutenção da ordem – a legalidade pode ser suspensa. “Uma ditadura que se servia da legalidade para transformar seu poder soberano de suspender a lei, de designar terroristas, de assassinar opositores, em um arbítrio absolutamente traumático. Pois nesse tipo de situação, nunca se sabe quando se está fora da lei, já que o próprio poder faz questão de mostrar que pode embaralhar, a qualquer momento, direito e ausência de direito, dentro e fora da lei.”2

Entretanto, não é somente na capacidade de suspensão da lei arbitrariamente que se sustenta um Estado ilegal e autoritário; é necessário criar um estado de violência contínua contra seus opositores. “Quando pensamos no modo concreto e material de operação de um regime autocrático, é necessário ultrapassar uma percepção difusa que diz que nele liberdades públicas são suprimidas. É certo que são: esta é, mesmo, uma condição necessária para sua afirmação como forma política. No entanto, para que as liberdades sejam suprimidas deve operar uma exigência material precisa; é necessário que o regime autocrático tenha a capacidade efetiva de causar sofrimentos físicos aos que a ele se opõem”.3

Ou seja, a suspensão de liberdades individuais não encerra a caracterização de um Estado ditatorial. A violência continuada é premissa pra esse tipo de Estado. Baseado na Doutrina de Segurança Nacional, esse modelo de Estado instituído a partir do golpe de 64 elege um “inimigo interno” a ser combatido: qualquer opositor do regime. Os principais inimigos do “Brasil” são seus próprios cidadãos. A prática de violência do Estado como condição/critério de existência do mesmo não é só no sentido da violência física (embora também), mas também da simbólica: agora entra em cena, pungentemente, o “poder desaparecedor”, “onde os corpos, agora, além do mais – sabemos tudo o que esse 'mais' significa – precisam desaparecer”.4 A eliminação física não basta; é necessário apagar o nome,

2973

dessubjetivar os opositores, eliminar todas as suas formas de existência enquanto humanos que são. Inscrita no arco das violências que o Estado terrorista brasileiro perpetrou em seus cidadãos, a prática da tortura, entendida aqui para além do dano físico que causa, é sistêmica.5 “Um corpo torturado é um corpo roubado a seu próprio ao seu próprio controle; corpo dissociado de um sujeito, transformado em objeto nas mãos poderosas do outro – seja o Estado ou o criminoso comum. A tortura refaz o dualismo corpo/mente, ou corpo/espírito, porque a condição do corpo entregue ao arbítrio e à crueldade do outro separa o corpo e o sujeito. Sob tortura, o corpo fica tão assujeitado ao gozo do outro que é como se a “alma” - isso que no corpo pensa, simboliza, ultrapassa os limites da carne pela via das representações – ficasse à deriva. A fala que representa o sujeito deixa de lhe pertencer, uma vez que o torturador pode arrancar de sua vítima a palavra que ele quer ouvir, e não a que o sujeito teria a dizer. Resta ao sujeito preso ao corpo que sofre nas mãos do outro o silêncio, como última forma do domínio de si, até o limite da morte.”6

Antes de método para captura de informações com estatuto de “verdade” 7, a tortura, como espaço de materialização do terror contínuo de um Estado autoritário, tem o objetivo “’provocar a explosão das estruturas arcaicas constitutivas do sujeito [grifo meu], isto é, destruir a articulação primária entre corpo e linguagem’”.8 A partir dessa destruição primária, que torna a experiência indizível, outras se agregam a essa nesse processo de destruição do sujeito: a desorientação no tempo e a destruição do sentido da vida. O corpo torturado é aquele degradado em sua subjetividade pela impossibilidade de comunicar e se orientar no tempo. Sem articulação passado-presente, a capacidade de atribuir sentido é interrompida e sua identidade é desestruturada. Pupi, militante do movimento estudantil, foi presa e torturada 4 vezes nos anos 70, diz: “Como eu acreditava muito no que eu estava fazendo, acreditava que a gente ia conseguir transformar o mundo, e eu achava que os torturadores, a polícia, eram seres quase que inferiores. Eu tinha muita segurança em mim, e achava que eu ia conseguir dominar a situação e… dominar mesmo a situação. Mas aí a situação foi indo, e a tortura foi acontecendo, até o ponto em que eu cheguei numa situação-limite, que eu já não me aguentava mais. Isso foi num momento em que eles queriam que eu passasse pro lado deles, né, que eu começasse a passar informação. E eu ainda tentava resistir. […] E aí eles desceram, numa nova sessão de tortura, e me ameaçaram – não chegaram, nesse momento, nem me torturar, mas tinha um circo armado – e eles disseram que tinha um gravador potente na cela, e que eu deveria contar tudo o que as meninas tinham me contado. E aí que eu senti, assim, como eu tava absolutamente entregue, e eu acabei falando, né, porque nessa altura eu já estava presa há muito tempo, já tinha apanhado muito, e eu senti a degradação minha, né, enquanto ser humano, e a impotência, mesmo.”

Ora, entendendo a tortura como, em si, dessubjetivante, quando perpetradas sobre mulheres ela assume uma qualificação, dado que as mulheres, sob a vigência de um modelo de sociedade patriarcal, já são inferiorizadas por todo aparato de relações de poder hierarquizadas, onde os homens são dotados de mais poder que as mulheres, e, um passo a frente, recebem o poder de agir por/sobre elas. O entendimento convencional de que o espaço privado seria aquele das relações “pessoais”, onde o repertório do espaço público

2974

não

adentra(ria) – quais sejam a prática política, as normas, o Estado – fez com que as mulheres, soterradas nesse locus social, tivessem sua autonomia restringida e sem o reconhecimento social de “sujeitas”.9 A tortura de Estado perpetradas em mulheres possui caráter brutal dobrado. O rompimento com seu locus social convencional, que é daquele de onde questões de “política” não fazem parte, já denota a oposição aos padrões de gênero. E, levando em conta que a ocupação do espaço público se deu via organização em movimentos de resistência ao Regime Militar, a soma desses dois movimentos resulta em espécie de dupla subversão dessa mulher. À dupla subversão, uma dupla punição: por lutar conta o Estado ditatorial, e por ocupar espaço de poder designado ao masculino. Considerando que eram homens, agentes do Estado, torturando mulheres – e que predominantemente eram eles que ocupavam postos de comando - é possível associar a masculinidade ao Estado. Entender o traço social que distingue “mulheres” é imprescindível; mulheres pois carregam todas as singularidades de experiência mulher, pensando a trajetória individual e identidade que se constrói em contexto contemporâneo de relações de poder hierarquizadas e como parte de categoria historicamente dessubjetivada e silenciada – não enquanto essência, mas enquanto construção sócio-histórica. Um Estado que tortura uma mulher não tortura indivíduo neutro, a-gênero; tortura uma mulher. “Éramos torturadas sempre sem roupa e o nosso corpo era um objeto de tortura. […] Eu me senti inteiramente amedrontada. O que eu me lembro naquele momento é o sentimento de solidão, de medo, de total desproteção, diante daquele homem, né, daqueles homens, que eles então me levaram pra uma sessão de tortura. O que estava em jogo não era a informação, o que estava em jogo era a minha desestruturação, era a minha rebeldia, era o fato de eu ter me rebelado contra a autoridade e a prepotência deles.”

Fala Rosalinda, militante da esquerda armada, é presa e torturada duas vezes, pondo em relevo o gênero do torturador. Regina, presa em 1970, passa um ano na cadeia sofrendo diversas sessões de tortura, também demonstra a tentativa de degradação da mulher pelo que lhe é próprio ao relatar o momento de sua prisão. Para fugir, ela e seus companheiros subiram para uma pedreira: “A violência começou já desde essa pedreira, onde eu fui despida, e procuraram até dentro da minha xoxota, mesmo, se tinha alguma arma, coisa que eles sabiam que não teria ali, acho que era um negócio muito mais pra me degradar, né, e a partir dali eu fui pro DOI-CODI.”

O corte, a ruptura que uma violência de gênero causa está no âmbito do caráter humano e subjetivo que é retirado da mulher que é violentada. Violência de gênero são práticas inseridas na lógica do poder masculino, com vista à manutenção e perpetuação dessa lógica - controle e a dominação das mulheres, em seu “corpos” e “espíritos” e demarcação do

2975

seu espaço de subordinação na sociedade.10 Uma violência cometida contra uma mulher por critério de gênero, não redundantemente, objetiva relembrá-la de que ela é mulher; degradar a dignidade que (não) é conferida a ela, através da violência perpetrada por um homem ou por qualquer um que assuma a figura patriarcal – nesse caso, por meio da figura do torturador. Um horizonte para o fim do terrorismo de Estado se abriu nas expectativas geradas em torno da Anistia e do processo de redemocratização. A esperança por uma anistia “ampla, geral e irrestrita” foi substituída pela anistia aos torturadores, fato de imensa violência simbólica contra as vítimas do Estado autoritário. A Lei de Anistia 1979 foi promulgada pelos militares, que se autoanistiaram, e não incluíram, em primeiro momento, o terrorismo e crimes conexos. Na prática: a violência de Estado foi perdoada, enquanto aqueles que lutaram contra ele já haviam conhecido diversas formas de punição. Posteriormente, quando da inclusão dos “terrorismos” de esquerda na pauta da anistia, o que ficou pressuposto foi a equivalência entre as ações da resistência da sociedade civil e crimes de Estado. Além da autoabsolvição dos que praticaram atrocidades contra a sociedade, a anistia brasileira, sob a falsa ideia de perdão mútuo para sobrevivência de um bem maior, que seria a nação ou a democracia a ser restaurada nos anos seguintes, impôs, na verdade, um silêncio sobre toda e qualquer forma de denúncia contra o Estado brasileiro, que abdicou de suas responsabilidades para com as torturas, os sequestros, os ocultamentos e desaparecimento de corpos. Esse silenciamento se calcava na obrigação do esquecimento daqueles anos de horror.

A personagem de Irene Ravache, considerada por alguns a própria voz da diretora, cumpre a função de compor o cenário do filme, abordando questões de forma mais objetiva, que permitem perceber como foi sentida pelas vítimas a violência do perdão autoconcedido para os torturadores. Dotada de uma postura diferente daquelas mulheres “reais”, faz intervenções mais provocativas para tratar do caso. Olha para a câmera como se encarasse e falasse diretamente com os espectadores. Ao ver uma entrevista sua publicada em jornal, a personagem diz: “3 horas dando entrevista pra sair isso?! Chamar o filho da mãe do torturador de médico, e eu de terrorista. 20 anos depois ele continua sendo doutor, e a mim, o que que me fizeram? A mim, só me tiraram o capuz. […] E ainda por cima com aquele ar de que ouve os dois lados.”

Nesse sentido, pode-se perceber que a ideia de anistia como “perdão para os dois lados” atende plenamente somente os lados dos agentes de Estado, uma vez que, mesmo depois da anistia, as vítimas da ditadura permaneceram carregando o peso do seu “desaparecimento”; o

2976

“poder desaparecedor”, capaz de apagar identidades e estigmatizar os opositores do Regime, prosseguiu agindo, sobretudo pela formação de uma memória hegemônica pautada na contínua criminalização das vítimas. Nesse sentido, Jessie Jane, vítima da tortura, relata: “Aí nesse momento nós tivemos um peso de uma outra questão. Quer dizer, nós não éramos simplesmente presos políticos, nós éramos presos políticos considerados terroristas. Quer dizer, aquela questão toda da anistia, da fraternidade, era uma coisa que embutia um preconceito muito grande com a luta armada, que é uma coisa que a gente convive, né. […] Tem esse negócio de esquecer, não.”

Não fiz parte desse acordo de silêncio”, diz Criméia, sobrevivente da guerrilha do Araguaia. Dizer que tudo passou, orientar “deixa pra lá”... “Mas passou pra quem, cara pálida?”, indaga a personagem de Irene Ravache. A anistia não pode se configurar numa política de memória a longo prazo. Ela não pode ser impedimento da lembrança e muito menos razão para o impedimento do reparo dos danos causados pelo Estado a todas aquelas que por ele foram violentados. De forma involuntária, a lembrança simplesmente retorna, “ela [a memória] não se deixa controlar nem pelas ordens do seu eu consciente, nem pelos mandos do soberano, rei, padre ou militar. […] As lembranças são como bichos selvagens que voltam a nos atormentar quando menos querermos.”11 O esquecimento obrigatório como estratégia apagar o que aconteceu resulta, de forma contrária, na impossibilidade do esquecimento.12 Contra a ideia de conivência das vítimas para/com o silêncio, Maria Rita Kehl aponta para o fato de que as vítimas da ditadura nunca se recusaram a elaborar um testemunho público sobre o que viveram.13 O filme de Lucia Murat se insere nessa tentativa pública de simbolização do trauma da Ditadura. A diretora quando diz que seu filme é sobre os “sobreviventes”, mas o dedica “àqueles que romperam a barreira da sanidade”, elucida a ideia de sobrevida não só como “não-morte” da carne, mas como normalização contextual de quem permaneceu em matéria. Retomo aqui a ideia construída acima sobre o objetivo da tortura ser antes a desestruturação do sujeito, com base em três aspectos de desumanização: ruptura entre experiência e linguagem, desorientação no tempo e destruição de sentido para vida. Desse modo, aqueles que não se mantiveram sãos foram os que a tortura teve seu efeito cumprido; não conseguiram reconstituir esses três aspectos. A sobrevida, desse modo, só pode ser garantida pela capacidade de fala, de orientação no tempo, e de forma de existência que garanta um sentido pra vida. As fichas são sempre apostadas na representação como forma de catalisação das experiências. Como destaca Beatriz Sarlo, testemunhar é forma de libertar a experiência humana, torná-la comum; não para reviver, mas para entender.14 Os testemunhos, enquanto

2977

narrativa construída, se constituem na organização da memória por um fio condutor que dê coerência da experiência vivida. Sendo assim, é um processo humano que se baseia na elaboração da dor, ressignificação do passado, reinvenção de formas de lembrar. Nesse sentido, refazer a ponte passado-presente, por meio de uma narrativa, pode permitir que o passado fatalmente passe. A partir daqui, o grande desafio é permanecer falando e lidar com aquele universo de coisas indizíveis. “É impossível discutir, então dá uma sensação de solidão.”, diz Pupi. Lidar com a dor no dia a dia, administrá-la, se encaixar no quadro de normalidade. Nesse sentido, a fala do psicanalista e esposo de Estrela aponta para a tensão entre falar, os dejetos que ficam por simbolizar, e a sobrevida: “Já conversamos muito sobre a tortura. Mas, eu tenho certeza que não tanto quanto seria necessário. Falar sobre esse tipo de coisa provoca um sofrimento muito grande. Se por um lado não se pode fingir que não aconteceu, por outro lado é impossível falar apenas disso, digamos, porque não sobraria espaço para a vida que continua. De um lado seria como fingir que não houve nada, e de outro lado seria como fingir que não se sobreviveu. […] Um trauma que não pode ser esquecido, simplesmente, não pode ser esquecido, mas também não pode ocupar a vida da pessoa. É o problema é que o equilíbrio, nesse caso, é impossível, de modo que o sofrimento é garantido pro resto da vida.”

O enquadramento em situação de “vida normal” tem como base o desmantelamento desse poder que apaga identidades. Quando a personagem diz “É Nossa Senhora, é Joana D'arc. [...] não dá pra pensar que é humano, que tem vontade, que faz cocô, que tem tesão. Não dá. Quem sobreviveu não é humano. […] Todos vocês acham que a gente não é gente, só pra fingir que nunca vão estar no lugar da gente.”

ela aponta para o fato de que o engessamento da imagem de quem sofreu a tortura ratifica a ideia de desumanidade. A personagem de Irene sempre coloca, em suas intervenções, a reivindicação pelo desmonte de qualquer categoria que despersonifique quem sofreu aquela dor e seu reenquadramento no hall de pessoas “normais”. Recuperar a “vida normal” pós experiência traumática é um ponto. Esse ponto é qualificado justamente quando a experiência traumática tem justamente o caráter desumanizador. Ou seja, sobreviver significa viver uma vida normal, de humanos normais. Por fim, a continuidade da vida só é possível mediante seu reconhecimento nela. Dar sentido à própria existência faz parte do processo de ressignificação da experiência em vida; e isso aponta para a necessidade de reelaboração de identidade. A possibilidade de vida para quem teve sua pessoa reduzida somente à carne em dor só pode ser concretizada mediante a formulação de identidade forte, ou algum traço forte de identidade, que dê sentido tanto ao passado, quanto ao presente e, dentro do possível, projeto para o futuro; preenchimento do “hiato” - expressão usada por Criméia – que se abriu na vida. E, nesse sentido, os testemunhos

2978

dessas mulheres deixam bem claro que a forma de ressignificação de suas materialidades, que um dia experimentaram a “morte em vida” ofertada pela tortura, foi a maternidade. Para Maria do Carmo, que foi comando de organização de guerrilha urbana, a maternidade representou a ligação entre seu passado e presente, e foi aonde ela se percebeu mulher. “[…] e me reconciliei com essa situação na minha primeira gravidez. Descobri que a melhor coisa no mundo era ser mulher. […] Aí que eu descobri que ser mulher era o maior barato.” A conexão passado-presente, garantindo sentido da experiência, guiada pela maternidade também é presente na fala de sua mãe: “No princípio a vida dela foi muito difícil. Ela tinha pesadelos incríveis, alucinações, sofreu muito. […] Felizmente ela superou tudo isso. Ela educa muito bem seus filhos, e, sobretudo, guarda uma coerência de vida.”. “Foi uma situação difícil ter um filho na prisão, mas foi uma sensação gostosa, sabe? Uma sensação assim… parece até meio impossível que a gente consiga pensar isso tendo um filho na prisão, cercada com metralhadores, e etc, e eu pensava o seguinte: eles tentam acabar comigo, e nasce mais um, aqui mesmo, onde eles tentam me eliminar, onde eles tentam acabar com as pessoas, a vida continua. Eu sentia o nascimento do meu filho como se ele estivesse se libertando do útero. Pra mim era uma coisa, um sinal de liberdade: meu filho livre.”

Para Criméia, a experiência da gravidez na prisão trouxe marcas negativas, traumas, que a faz não desejar nova gravidez. Porém, para Regina, que foi presa grávida e perdeu o primeiro filho na prisão, a expectativa por uma nova gravidez a deu força. Conforme na passagem que se segue, o sentido do filho é a renovação da vida: “Durante a cadeia toda, né, o que realmente me segurou foi a vontade de ter um filho, a certeza que eu ia ter um filho. Isso representava pra mim vida, né. Se eles tavam querendo me matar, eu tinha que dar uma resposta de vida. E ter um filho, né, pra mim, simbolizava, simboliza até hoje, né, a resposta, né, que a coisa continua, de que a vida tá aí, de que as coisas não acabam. E a primeira coisa que eu fiz ao sair da cadeia, logo depois o Paulo, que era casado comigo na época, também saiu, foi engravidar. [...] Se alguém um dia quis me matar por estar lutando, eu dei uma resposta com a vida.”

Aqui fica claro que a dor gerada no espaço público só foi, dentro do possível, ser reelaborada, no espaço privado. Essa forma de re-existência se deu, sobretudo, na realização da maternidade, que representou uma resposta com vida - a/o filha/o se apresenta como continuidade e materialização da resistência específica da mulher - à provocação de morte – entendendo a morte como anulação da condição humana - oferecida pelo Estado através da tortura. Diante do perdão dos torturadores e da abstenção do Estado em relação à promoção de políticas públicas de memória e reparo – no contexto narrativo de enunciação do filme - , cabia às vítimas do Estado lidar individualmente com a dor. E faziam isso por meio da maternidade, lugar lugar de materialização de uma resistência peculiar das mulheres em relação à violência perpetrada sobre seus corpos e espíritos. 1 SOUZA, Maria Luiza Rodrigues. “Cinema e memória da ditadura”. Sociedade e Cultura. Goiânia: UFG, vol.

2979

11, nº 1, p. 51-53, 2008. 2

SAFATLE, Vladimir. “Do uso da violência contra o Estado Ilegal”. In: O que resta da ditadura. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 251.

3

LESSA, Ricardo. “Sobre a Tortura”. Ciência Hoje, nº 250, jul. 2008. apud KEHL, Maria Rita. “Tortura e Sintoma Social”. In: O que resta da ditadura. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 128-129.

4

SAFATLE, Vladimir. Op. Cit., p. 207.

5

Ibidem, p. 237-239.

6

KEHL, Maria Rita. Op. Cit., p. 130-131

7

Sobre o critério de verdade da palavra proferida em contexto de tortura cf. POYARES, Marianna. Memória Tortura e Coletividade. In: Encontro Regional Sudeste de História Oral, 11, jul. 2015. Niterói. Anais eletrônicos… Disponível em: . Acesso em 27 set. 2017.

8

VIÑAR, Maren; VINÃR, Marcelo. Exílio e Tortura. São Paulo: Escuta, 1992. apud GINZBURG, Jaime. “Escritas da Tortura”, In: O que resta da ditadura. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 141.

9

BIROLI, Flávia; MIGUEL, Luis Felipe. Feminismo e política. 1º ed. São Paulo: Boitempo, 2014, p. 31-37.

10 CASIQUE, Casique Letícia; FUREGATO, Antonia Regina Ferreira. “Violência contra mulheres: reflexões teóricas”. In: Rev. Latino-am Enfermagem. São Paulo: USP, v. 14, nº 6, p. 2-4, nov/dez, 2006. 11 GAGNEBIN, Jeanne Marie. “O preço de uma reconciliação extorquida.” In: O que resta da ditadura. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 183. 12 Ibidem, p. 179. 13 KEHL, Maria Rita. Op. Cit. 126-127 14 SARLO, Beatriz. Tempo Passado: Cultura da Memória e Guinada Subjetiva. Trad. Rosa Freire d'Aguiar, 1º ed. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007, p. 19-22.

2980

O Graffiti como forma de expressão político-cultural.

Andréia Simões de Araujo [email protected] (Graduação - UERJ) RESUMO: No período ditatorial, o mundo artístico e leigo, através da Performance, protestou pelo direito de expressar-se. Neste mesmo período, o Graffiti surge sendo a voz popular. Com essa semelhança questiona-se a Performance ter sido admitida como arte enquanto o Graffiti encontra dificuldade. Com base nestes fatos e questionamentos, o presente trabalho pretende unir a arte e a cultura do Graffiti a uma abordagem triangular, proposta por Ana Mae Barbosa, trazendo senso crítico e um pensamento mais ativo aos educandos. PALAVRAS CHAVE: Graffiti, Arte, educação.

RESUME: The dictatorial period, the art world and lay by Performance protested for the right to express themselves. In the same period , the Graffiti comes with the popular voice. With this similarity question the performance have been accepted as art while Graffiti finds it difficult . Based on these facts and questions , this paper aims to unite art and culture Graffiti a triangular approach , proposed by Ana Mae Barbosa , bringing critical thinking and a more active thinking to students .

KEYWORDS : Graffiti, art , education

Em seu livro No interior do Cubo Branco A ideologia do espaço da arte, Brian O’Doherty, (2002), trás uma visão sobre o que denomina de Cubo Branco, Esta visão diz respeito ao próprio local institucional onde apenas ali, a arte se tornaria arte. Geralmente, esse local se caracterizaria por ser um quadrado grande, vazio e inteiramente pintado de branco para que 2981

nem a influência da luz externa possa invadi-lo. A aparente ideia de lacrar algo é exatamente a ideia de um “cubro branco”, esse local isolaria a obra de arte de qualquer interferência externa, física e mentalmente que pudesse de qualquer forma influenciar ou interromper a ideia da arte se bastar enquanto objeto concreto e preciso. Não só isolaria a obra como aos telespectadores dessa, que na presença desse cubo, não diferente, perdem quase que por completo a presença física e metafísica aonde apenas os olhos permanecem ativos e mesmo assim sem uma alma identificadora de sujeito único, com uma história ou qualquer participação social; esse sujeito passa a ser uma espécie de espírito ao rondar dessas obras e de um ser sem história para um objeto de mesmo cunho, haveria um entendimento artístico. Porém, com a chegada do AI-5, trabalhos em galerias começaram a ser retirados, censurados e seus autores exilados ou presos. Diante destes fatos, uma completa contradição entre interno e externo se instala e desestrutura o famoso “cubo branco”. Se a intenção do “cubo branco” é ter uma liberdade de criação e exibição excluindo completamente o externo, incluindo o próprio tempo e o espaço ao redor da instituição, nenhuma obra deveria assim ser execrada, retirada e muito menos proibida de ser exposta. Este ato de repreensão apenas contribui ao pensamento reverso ao “cubo branco”, aonde a sociedade e o multiculturalista adentram as galerias e delas saem buscando o direito de “existi diante das artes”. “Se frequentar exposições de arte é um direito do cidadão, as amostras de arte não podem se tornar eventos apenas para o consumo rápido como se os trabalhos de arte não tivessem história, passado ou futuro.(...) Mas se apenas a técnica ou meio não são suficientes para tornar um trabalho de arte cidadão de seu próprio tempo, talvez seja o modo ele se instaura no mundo o fundamental. E como o que um trabalho de arte diz e o modo como o faz não preexistem a ele mesmo, ou seja, como ele torna presente significações em vez de simplesmente traduzi-las para um novo suporte ou matéria suporte ou matéria-, ele jamais poderá ser reduzido a um instrumento. É nesse sentido que se diz que ele é instituinte, porque não se contenta com o já instituído, mas institui outras significações até então inéditas. Mais do que isso, a arte possui o que se costuma chamar de fecundidade, ela tem a capacidade de dar origem, de propiciar algo que não previu, de instigar o outro, o futuro, além de nos fazer rever o passado. Retomar o passado, seja por ruptura ou continuidade, se abrir para o que ainda virá, talvez fundando uma nova tradição, para ser retomada, de um modo jamais pensado, é algo próprio da arte “(ALVES, 2010,pp 50, 52 e 53)

Desse modo a eternidade não necessita de um tempo ou de um lugar físico e fixo para existir, um corpo humano em movimento ou inerte pode ser a maior obra efêmera e eterna e ao

2982

mesmo tempo existente, assim como a força de expressão cultural trazida pela performance admitindo por completo o externo como parte do interno, absorvendo uma sociedade e admitindo pelo mesmo a presença do eu lírico no objeto artístico, mesmo que esse não seja exatamente palpável. “Para Hélio Oiticica, o museu era o mundo, um espaço continuamente aberto à exploração criativa. A experiência ambiental, da qual foi o formulador a partir dos aos 1960, era constituída dessa intensa relação com as ruas do Rio de Janeiro, apropriando-se do espaço público e estabelecendo-o como obra. (...)Não podemos esquecer que a década de 1960 teve seu primeiro golpe em 64 e, antes de terminar, em 68, um segundo golpe, conhecido como Ato Institucional n.5. Diante desse recrudescimento, a experiência direta e corporal era motor da obra (...)Nos anos 1960 e 1970, houve no Brasil uma condensação de ações, descritas pelo crítico Mario Pedrosa como experimentalidade livre, e que correspondiam, principalmente, a uma profunda reavaliação da presença do objeto na arte. Adotando novas mídias e novos procedimentos, tal experimentalidade conduzida pelos artistas serviria também para designar uma experiência que, da ordem do sensível, passaria necessariamente pelo corpo. Saía-se da esfera da contemplação para o campo da participação mais efetiva, e isso significa, em nosso contexto, , incluir o espectador na obra. Tal como propunha Hélio Oiticica, através de uma total incorporação, ou seja, um procedimento que estabelecia a completa aderência do corpo na obra e da obra no corpo. E, no seu caso, como bem sabemos, isso iria constituir uma operação nomeada pelo sugestivo termo vivências, tal a solicitação que faria do espectadorparticipador como agente da experiência. ”(MELIM, Regina. Performance nas artes visuais. 2008. Pp 23 e 27)

Ou seja, a performance desfez uma fronteira entre artista e espectador, trazendo esse como parte da obra, como o dispare para a sua realização, fazendo com que explodisse em reinvindicações uma população oprimidas pela ditadura frente as ruas do Brasil, unindo não só artistas mas os espectadores também, trazendo uma voz reivindicadora de atenção e justiça em busca de mais liberdade de expressão, além da denúncia do estado de uma nação sem voz. A escrita de MELIM (2008) também dá destaque à utilização do corpo como plataforma de trabalho, envolvendo a ação corporal do indivíduo com a obra de arte e até mesmo do indivíduo com o próprio artista, trazendo assim, vida a obra, assumindo uma história, um trabalho artístico feito por humanos falando de humanos, trazendo a situação que esses viviam frente aos olhos de quem ignorava ou tinha medo de assumir como real e crítica. Sobre a experimentação livre, a uma referência direta ao corpo como pronto a ser explorado em sua totalidade artísticas, muitos associam essa ideia de extremo artístico a torturas físicas e psicológicas aonde o corpo também é levado ao extremo, porém , com uma violência e crueldade muitas vezes nada associada a performances aonde a dor pretende ser demostrada e

2983

questionada sem ferimentos aparentes na maioria dos trabalhos artísticos. Em relação ao rompimento com a tradição, a performance lança direções a serem trabalhadas que não haviam sido pensadas, a libertação de um local único de exposição da arte trousse o respiro para a muito necessário. O grande questionamento sobre o que seria e se existiria um lugar certo para a arte acontecer ou não, fez as ruas passarem a ser o local “mais livre”, mesmo em opressão direta. “A ação performática estimula o contato direto entre público e artista-obra, criando tensões a partir da exploração do real, do confronto com o elemento inesperado contido em um ato ao vivo e sem ensaio, e inverte desse modo a lógica alienante e distanciada do espetáculo. A performance mostra-se como coparticipante do real, ou, pelo menos, como um elemento capaz de produzir interferências que questionam as condutas socialmente consesuadas na vida cotidiana.” (“Performance Presente Futuro Vol. II”. Org. Daniela Labra. Editora Aeroplano, Rio de Janeiro, 2010) “os artistas voltaram-se para as ações performáticas como um modo possível de romper com as categorias existentes e apontar novas direções. (...) Quando o ateliê passa a ser “qualquer lugar”, “todo lugar” ou “aonde eu estiver”, seu conceito passa a se estruturar não somente como um lugar físico, mas, sobretudo, como uma espécie de parêntese no tempo, passando a existir, então, aonde o artista está.” (MELIM, Regina. Performance nas artes visuais. 2008. Pp 11 e 51)

Diante dessa “verdade e libertação” envolta de protestos artística, a arte foi de certo modo “libertada” da sua hegemonia clássica e do certo “aprisionamento em objetos”, agora todas as culturas diversificadas estavam juntas em atos performáticos em busca da tomada de voz por um povo execrado e dispensado tanto no mundo nas artes como em todo o lugar. Não seria exatamente o “local onde se expõe a arte” que seja responsável por definir a existência ou a inexistência da arte. Outra forma de expressão cultural que também demorou a ser aceita foi à cultura gritante de contestação da arte do Graffiti. Tendo sua chegada ao mesmo tempo em que as performances no Brasil estavam em plena ação na ditadura militar, o Graffiti chega com uma grande carga expressiva das grandes sociedades periféricas. Até o momento as artes eram tomadas pela elite, distante da periferia e seus problemas muitas vezes ignorados, o Graffiti chega com uma imagem já esteticamente artística, contando com suas letras agrupadas, bem desenhadas e coloridas, muitas vezes contado com personagens que ilustravam uma força de expressão da sociedade que representavam trazendo todas as vozes vinda das ruas, dos seus ocupantes e toda a repressão que estes sofriam nessa época.

2984

Muito se houve falar que o Graffiti não seria arte porque não teria passado pelo circuito de legitimação exigido pelo mercado artístico, sendo o mais gritante, o fato de ser feito em uma plataforma incoerente exigida pelas instituições e fora de suas dependências, portanto inaderentes ao mercado das artes não podendo ser deslocada e muito menos vendida por galeristas. Porém se o Graffiti chegou a um momento que a sociedade seria o foco dos trabalhos artísticos, e estes saindo das instituições como performances quase ou iguais a protestos direcionados por uma tentativa de se ganhar voz e de se admitir uma população e uma história externa do “cubo branco”, porque o Graffiti que já veio com essa carga em sua história não é imediatamente admitido pelas artes se as instituições estavam sendo seriamente discutidas assim como a significação de locais físicos para as artes? Ao se pensar nas origens históricas, as artes dominantes nas instituições incluindo as instituições de ensino, são muitas vezes eruditas. Já pensando na origem do Graffiti, em que o desejo de ser visto, pela população em um todo, levanta-se a suposição que a questão das origens seja um dos motivos mais fortes de não serem incorporados imediatamente às artes. Tendo seu início em gangs de Nova York, o Graffiti se propunha a marcação de territórios, e muitas vezes para destacar a própria existência de quem estava realizando essa marcação. Este desejo de ser visto sem excluir sua história traz também a vontade de ser ouvido, vontade de ser destacado com sua história, com suas particularidades, com seu modo único de se mostrar presente. Além disse, o Graffiti assumia o telespectador como alguém altamente capaz de pensar politicamente e socialmente em relação ao que está à volta; uma arte que trabalho com a história, não faria menos do que aceitar esse sujeito telespectador como portador de uma história única e ao mesmo tempo diversa; o multiculturalismo é de grande fonte do Graffiti também, pois esse é capaz de unificar um significado justamente pela “multiculturalidade” . “ O conjunto de elementos que constitui o espaço em que as qualidades da obra são percebidas configura, interpretação de seu significado, uma moldura institucional. Essa afirmação nos conduz a um questionamento: o fenômeno artístico pode ter sua origem em circunstâncias ou contextos externos ao sistema de arte? Caso seja possível, a que condições deve atender para ser admitido no sistema de arte (...). Pressupõem ainda que esse mesmo modelo seja a síntese evolutiva de todos os demais que o

2985

antecederam. Partindo

desse princípio, a crítica tem a necessidade de justificar a divergência, assim como sua capacidade de se adequar melhor à arte globalizada. O dilema prevalece: qual é o ambiente ideal para expor uma obra de arte? .” (MARTÍNEZ, 2011,pp.214, 215e )

Assim como a performance, ou talvez um pouco mais intenso, o Graffiti dialoga com um público, com uma história construída e prestes a se construir, trazendo também a tona a efemeridade de sua arte que a qualquer momento pode se apagar por questões climáticas ou simplesmente por desconforto político aonde a solução seria apagar aquela arte para retornar aos muros brancos. Tanto o Graffiti como a performance, trás mais concentração em ajudar a ver, pensar e agir não necessariamente em um esquema, ordem ou uma razão, sendo assim ignorando o espaço físico duradouro. Mesmo se for apenas algo provisório, a arte naquele pequeno instante provisório valeria a pena ser dada como manifestação artística muito mais do que se estivesse enclausurada em seu “local de arte” tentando por suas paredes eternizar. Com o surgimento das performances e do Graffiti, o telespectador já não existi mais como um espírito que ronda a semelhante obra, mas um ser de plena consciência do que está a sua volta, um ser pensante, capaz de sentir e ter opiniões levadas por seus próprios pontos de vista direcionados por suas diversas maneira de se pensando. Sendo assim, a “multiculturalidade” tem sido aos poucos vistas e ouvidas, além de se tornar o foco artístico a ser discutido. Apesar dessa rejeição automática da arte do Graffiti, após o tempo, alguns artistas institucionalizados como o artista alemão Franz Ackermann que em 2011 na exposição New Ads For São Paulo que ocupou a Galeria Forte Vilaça, na Vila Madalena, e o Galpão da Barra Funda com sua arte sobre a cidade de São Paulo, começaram a incorporar a arte do Graffiti em suas obras. Porém, se pensar que o Graffiti vem questionando a divisão social e questões de cidadania, a exposições em instituições não seria destrutivo, seria acrescentando uma crítica interna ao próprio sistema em que está inserida. Afinal, que local seria mais apropriado de estar do que em um ambiente altamente controlado por uma elite que há pouco tempo jamais aceitaria a inclusão de grafiteiros em seus interiores e que se propõe problematizar, dentre outros fatores, a hierarquia cultural? “Quando a obra é deslocada do local de criação e realização para o de exibição, ela e sua interpretação são atualizadas em relações espaciotemporais elaboradas por quem a vê. Nesse caso, consideramos a visão um sentido que precede os demais no processo interpretativo de uma obra de artes visuais” (MARTÍNEZ,

2986

2011,p. 216)

Pensando nas salas de aula, a inserção do Graffite traria uma maneira de aprimorar o senso crítico dos alunos a fim de proporcionar que eles sejam cidadãos mais ativos e capazes de se tornarem críticos diante de uma sociedade muitas vezes elitizados e opressores a outras culturas que não a elitista. “Existem atualmente museus e alas de grandes museus que explicitam a necessidade de contextualizar de modo espacialmente adequado uma coleção de arte. Entretanto, as marcas institucionais e o gosto que essas simbolizam também viajam, parecendo reviver o movimento civilizatório de integração do Ocidente europeus e norte- americano.(...) A abrangência da circulação de idéias sobre o campo da arte e a capacidade inesgotável que o sistema da arte possui para incorporar propostas e formatos ao seu domínio tornam quase impossível falar, nos dias de hoje, em arte que não seja institucional. A ampliação das fronteiras coercitivas da prática artística se manifesta em revisões da história, da crítica e, sobretudo, daquela mesma prática. As fronteiras se autodefinem como provisórias ou temporárias. Cada nova obra crítica ou historiográfica que é publicada contribui para a afirmação da arte como um estado resultante de um olhar que permanentemente se desloca ao redor de um objeto, sendo esse, por sua vez circunstancial e efêmero.” (MARTÍNEZ, 2011,pp. 215 e 239)

Sendo assim, a arte do Graffiti, não apresentaria uma negação para ser aceita no mundo das artes. Em referente aos alunos de uma escola com ensino tradicional em artes referente a concepção de escolas de cunho tradicional, chamada por Paulo Freire de “Educação Bancária” por sua semelhança com um depósito bancário , esses podem ser comparados

a

telespectadores do chamado “cubo branco”, no qual são apenas “ espíritos sem alma”, sem histórico, porém, a integração do ensino do Graffiti nas escolas, poderá trazer esse telespectador como alguém pensante, dono de um história com passado, presente e futuro, capaz de trocar informações com o professor e tornar-se mais crítico quanto ao que lhe é apresentado em sociedades. A criação do ensino foi construída em bases na “educação bancárias”. Poderia dizer que o Graffiti nas escolas, traria a visão para alunos, acostumados à abordagem tradicional do estudo, pra que assim enxerguem e discutam sobre o que está acontecendo ao redor daquela sociedade, além, é claro, de se fazer ouvir de uma sociedade excludente pela insistência de um conteúdo clássico a ser dado nas escolas. Ainda sobre a não abertura para a arte popular dentro das escolas sendo ela o mais presente em nossas vidas a OCEM (Orientações Curriculares Nacionais do Ensino médio) diz: “A cultura de uma nação estrutura-se na interligação de inúmeras microculturas relacionadas a diferenças regionais, sociais, econômicas, dos papéis sociais (masculino, feminino, transgênico),

2987

das referências étnicas, religiosas e também de idade. Os jovens articulam uma cultura própria. Embora dirigida a eles, a escola costuma negligenciar esse repertório cultural presente nas diversas linguagens (verbal, visual, musical, corporal e suas mixagens). No campo da linguagem visual, isso é perceptível nos modos de vestir, nas estampas das camisetas, das capas dos cadernos, dos CDs, nas imagens dos videoclipes, nas histórias em quadrinhos, nos grafites urbanos, entre outros exemplos. ”.(OCEM (Orientações Curriculares Nacionais do Ensino médio)

Em 1932 no Brasil, acontecia o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, que em plena tentativa de uma volta a ordem do país resultante da Revolução de 1930, contava com a assinatura de Anísio Teixeira, Roquette Pinto, Lourenço Filho, Cecília Meireles e de diversos outros que exigiam uma escola aberta a todas as classes e que fosse além de pública, única “laica, obrigatória e gratuita” Helena Bomeny(2012) sendo um grande marco em busca de uma escola nova e mais alunocentrica, ou seja, que o aluno ocupe o lugar de centro no ensino ao invés do professor, o que ocorria nas escolas de ensino tradicional. Principalmente a partir da década de 1980, o Construtivismo vem adentrando nas escolas trazendo o aluno a se interessar pelos estudos, uma vez seus próprios conhecimentos são valorizados. Em meio à busca de um novo ensino, Ana Mae Barbosa apresenta a “abordagem triangular” em que o estudante de arte teria sua educação montada a partir de três áreas: leitura da obra, leitura do contexto da obra e fazer artístico. Essa metodologia mostra-se adequada para o ensino, pois segundo Ana Mae Barbosa, traria um desenvolvimento intelectual, de um senso crítico e de um pensamento mais amplo do mundo nos alunos; a arte como um contra ponto a "educação bancária", tendo ela uma possibilidade de criação de um indivíduo muito mais atuante e pensativo do que o indivíduo submetido. Sendo assim, essa abordagem se mostra um caminho possível para a inserção do Graffiti nas escolas; trazendo um pensar mais aprofundado, trará grande benefício para o desenvolvimento, não só escolar, mas também sociológica dos alunos. “Quando falo de conhecer arte falo de conhecimento que nas artes visuais se organiza inter-relacionando o fazer artístico, a apreciação da arte e a história da arte. Nenhuma das três áreas sozinha corresponde à epistemologia da arte. O conhecimento em artes se dá na interseção da experimentação, da decodificação e da informação (...) Preparando-se para o entendimento das artes visuais se prepara a criança para o entendimento da imagem quer seja arte ou não. Um currículo que interligasse o fazer artístico, a história da arte e a análise da obra de arte estariam se organizando de maneira que a criança, suas necessidades, seus interesses e seu desenvolvimento

2988

estariam sendo respeitados e, ao mesmo tempo, estaria sendo respeitados e, ao mesmo tempo ,estaria sendo respeitada a matéria a se aprendida, seus valores, sua estrutura e sua contribuição específica para a cultura.(...) A história da arte ajuda as crianças a entender algo do lugar e tempo nos quais a obra de arte são situadas. Nenhuma forma de arte existe num vácuo, parte do significado de qualquer obra de arte do entendimento de seu contexto.” (BARBOSA. Ana Mae. A imagem no ensino da arte: anos oitenta e novos tempos, pp.31,32,35,37.)

O Graffiti assim como um ensino melhor de arte, tem enfrentado diversas barreiras para serem aceitos e implementados como importantes e essenciais no ensino; o Graffiti tem suas origens marginalizadas o que dificulta a aceitação dessa arte ate no meio elitizado e Europeu que se constitui a educação. Muitas vezes o Graffiti não é aceito como arte por não passarem por todo o circuito de arte e assim ser consolidado. Muitos consideram que o grafite é feito por quem só usa armas e não notam que a arma do grafite é a critica e reinvindicação podendo ser feito por qualquer um , que queira ser ouvido, visto ou apenas mostrar a arte que consegue realizar. O Graffiti nas salas de aula pode incentivar os alunos a trabalharem mentalmente um pouco mais no que esta em sua volta, podendo desenvolve uma capacidade de olhar o mundo como a que Ana Mae Barbosa pretende alcançar com sua abordagem triangular, de modo que talvez a inserção do Graffiti no conteúdo a ser dado nas escolas poderia ser a vertente pela qual a abordagem poderia ser adentrada de modo completo nas escolas. O Graffiti além da crítica a qual a população precisa, trás consigo o interesse maior do jovem para o aprendizado, pois é algo mais presente em suas vidas. A incorporação do grafite como um material a ser passado através da abordagem triangular trás duplificação do senso de critica vivencial tanto na escola como na vida. As contribuições são infinitas. Se tem muito a oferecer tanto na arte elitizada quanto a popular, a junção das duas e a implementação de metodologias que permitem o manuseio dessas modalidades de arte as tornarão mais importantes e fundamentais para formação de indivíduos preparados para quem sabe um novo país com mais autonomia e conhecimentos mais trabalhados e expansíveis.

2989

Minerva Brasiliense e a formação do estado nacional: uma análise dos antecedentes do periódico.

Bruna Schulte Moura (Graduanda de História – UERJ) Orientação: Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves [email protected]

RESUMO: Este texto visa analisar o contexto político no qual a revista Minerva Brasiliense, primeiro periódico científico e literário surgido após o Golpe da Maioridade, estava inserido e sua busca pela definição de Brasil. Para tal, será realizada uma análise do período antecedente aos anos de publicação deste, contrapondo a uma breve análise de cunho biográfico de seu primeiro redator-chefe Francisco Salles Torres Homem. Busca-se, portanto compreender os discursos políticos presentes nesta revista assim como seu projeto de edificação da nação. PALAVRAS-CHAVE: Imprensa – Nacionalidade – Império Brasileiro

ABSTRACT: This paper’s propose is to analyse the political context in which the magazine Minerva Brasiliense, first scientific and literally periodical, that arose after the Majority Coup, context in which the search of a definition of Brazil was placed. The paper has an analysis of the time before this periodical started, with a brief biographical analysis of its first editor-in-chief, Francisco Salles Torres Homem. This paper’s goal is understand the political ideas of the magazine, as its project of nation. KEYWORDS: Press - Nationality – Basilian Empire O texto a seguir se propõe a realizar uma análise acerca dos antecedentes da publicação Minerva Brasiliense. A partir disto se faz possível entender o periódico literário e científico, surgido após a Maioridade de D. Pedro II. Alguns autores defendem que esta revista, junto com outras deste período, são periódicos românticos e precedem o Romantismo na literatura brasileira. Em detrimento da estabilidade política adquirida após 1840, observa-

2990

se o declínio dos jornais de opinião – muito comuns no período conturbado das regências – e a proliferação de revistas literárias. Para isto, inicialmente realiza-se uma análise do período regencial, pano de fundo da formação dos redatores de Minerva, sobretudo Francisco de Salles Torres Homem, primeiro redator-chefe e fundador do periódico. A partir da leitura dos estudos de Ilmar de Mattos em “O gigante e o espelho” e de Marcello Basile em “O laboratório da nação: a era regencial (1831-1840)”, se faz possível montar um panorama da sociedade brasileira neste período conturbado da política nacional. Após isso, pode-se observar mais de perto a participação de Salles Torres Homem a partir da leitura e análise da dissertação de Roberta Félix da Silva “Imprensa e poder: discursos e projetos políticos de Francisco de Salles Torres Homem (1840-1849)”. Para dar início, faz-se importante localizar que a primeira metade do século XIX no Brasil foi o período de fincar as bases da nação. Desta forma, a partir de 1823, pensa-se no império e no início de uma identidade territorial, contudo ainda não existe a concepção de nação. Em razão da questão territorial ainda não ter sido resolvida, pois a independência brasileira ocorreu apenas para o sudeste do país, o primordial neste período seria estruturar o Estado a partir do Império. Com a abdicação de D. Pedro I em 1831 e a instauração das regências, já com a questão territorial solucionada, percebe-se que a questão da definição nacional passa para segundo plano tendo em vista o período conturbado de instabilidade política. As preocupações, neste momento, centram-se nas lideranças, nas correntes políticas, nos projetos de reformas, etc. A partir de 1840, portanto, após a Maioridade de D. Pedro II, a questão da constituição da nação volta a ser tema. Busca-se repensar o império que deve homogeneizar a população uma vez que há um território estabelecido. Analisar o período regencial se faz, portanto, de suma importância para compreender os conflitos existentes nos primeiros anos do segundo reinado, período em que Minerva Brasiliense foi publicado. Além disto, é neste período que Francisco de Salles Torres Homem inicia sua vida pública como político e jornalista ao lado dos liberais moderados. Como apresenta Ilmar de Matos, a partir de interpretações de almanaques da época – que possuíam informações sobre a cidade –, as datas importantes de um calendário representam também os projetos políticos uma vez que mostram como o governo lida com seu

2991

passado e se utiliza deste instrumento de poder. De acordo com isso, a data de 7 de abril, dia da abdicação de D. Pedro I, toma alguns significados com o passar dos anos. Observa-se que este evento foi também entendido como revolução, o 7 de abril de 1831 era o dia em que a independência do Brasil foi tornada realidade e o império seria então governado por um soberano brasileiro, já que o primeiro imperador abdicou do trono em função de seu filho Pedro de Alcântara. 1 Desta forma, pode-se apresentar, de acordo com Basile, que o período regencial possui uma perspectiva negativa e uma positiva. Normalmente, este período de grande agitação política, é visto na sua perspectiva negativa, que a caracteriza com o excesso de liberdade, fraqueza do governo, instabilidade das instituições. A construção desta imagem se dá pela formação de uma história oficial mais ligada aos setores conservadores durante o segundo reinado. Já em sua perspectiva positiva, as Regências são vistas como o triunfo de liberdades, das liberdades necessárias para o progresso da nação. O redator-chefe de Minerva Brasiliense, neste período, estava ligado à segunda ideia e compunha o grupo dos liberais.2 A abdicação de D. Pedro I inaugurou, portanto, um período de intensos debates acalorados sobre projetos políticos a serem adotados. De acordo com Ilmar de Matos, em trecho citado, fica claro como a política fazia parte da vida de todos os brasileiros: “Nasci e me criei no tempo da regência; e nesse tempo o Brasil vivia, por assim dizer, muito mais na praça pública do que mesmo no lar doméstico.”

3

Desta forma, a imprensa não pode ser

negligenciada neste campo de discussão. O período regencial apresentou intensa atividade editorial com seus jornais de opinião, em períodos de crise e efervecência política é comum que a imprensa se torne palco para discussões políticas e Francisco de Salles Torres Homem, como homem filho de seu tempo e um político engajado, esteve imerso tanto neste universo editorial quanto no político. Três correntes políticas do período regencial devem ser apresentadas aqui: os caramurus, grupo mais conservador ligado a ideia de restauração do império autoritário, eram representados pela elite; os liberais moderados, também dominados por uma aristocracia, contudo ligados a ideais menos revolucionários, defendiam a monarquia, contudo queriam-na constitucional; por fim, os liberais exaltados, eram representados por uma parcela da aristocracia, contudo eram mais heterogênios em sua formação, tinham como principais ideias ligadas ao federalismo. Os três grupos entravam em embates no que tange a projetos políticos, inicialmente, os moderados levaram vantagem durante a regência de Diogo Feijó.4

2992

De acordo com Roberta Félix da Silva, com o fim da censura e a institucionalização dos jornais de opinião em 1821, a figura do redator ou escritor público entrou em cena. Eram considerados construtores da opinião pública e produziam impressos, ganhavam notoriedade pública e costumavam ascender a algum cargo no funcionalismo público ou na política. 5 Francisco de Salles Torres Homem seguiu este modelo. Durante o período das regências cursou duas faculdades, uma no Rio de Janeiro – medicina – e outra em Paris – Direito. Durante a juventude frequentou a loja de Evaristo da Veiga, político liberal moderado, importante livreiro deste período e um incentivador, sobretudo. Neste período conheceu Domingos Gonçalves de Magalhães e Manuel de Araújo Porto Alegre, amigos que se tornaram importantes para sua vida e com os quais formou parcerias mais pra frente. Os três jovens participaram de círculos letrados no Rio de Janeiro, frequentavam reuniões e rodas de discussões em torno de livrarias. Evaristo da Veiga, portanto, ofereceu um incentivo financeiro para que fossem estudar no exterior, provavelmente interessado em aprimorar o perfil humanístico. A cidade escolhida, Paris, se justifica com muita facilidade. A França era o centro cultural do mundo neste período e os brasileiros que queria aprimorar seus estudos, voltavamse para Paris. Desta forma, durante o período que passaram fora do Brasil, os três amigos se reuniram para publicar a revista Nitheroy, Revista Brasiliense, a primeira revista científico literária e que inaugurou esta geração, que foi considerada precursora do romantismo no Brasil e tem ligação direta com a Minerva Brasiliense, já que os três protagonistas estão presentes em ambas as publicações. Faz-se, portanto, imprescindível situar a importância das revistas literárias e científicas neste universo. Este tipo de publicação se popularizou na Europa do século XVIII e ganhou destaque como instrumento cultural por estar no meio termo entre os jornais informativos e livros. Enquanto os jornais informativos não possuiam espaço para que autores publicassem textos e vulgarizassem ideiais através de resultados de pesquisas, os livros se apresentavam como um investimento de alto custo. Acreditava-se, desta forma, que estas revistas auxiliavam na apuração dos gostos por ciências e belas artes. No decorrer do século XIX as revistas literárias ganharam bastante destaque e o fato de condensarem uma ampla gama de assuntos em uma só publicação fez com que ela se popularizasse. Através de uma linguagem mais simples, preço mais acessível e a diversidade de informações, elas atingiam um número de leitores maior e auxiliou na ampliação do

2993

público leitor. Por ter conteúdo mais denso que o jornal comum, sua publicação era limitada, saía semanal, ou mensal, ou trimestralmente, etc. Estas revistas tinham por objetivo oferecer diversão e instrução através de “conhecimentos úteis”. Como já foi apontado anteriormente, a primeira metade do oitocentos no Brasil centrou-se na definição e elaboração de uma cultura brasileira propriamente dita e em meio ao caos político enfrentado no período regencial, os redatores de Nitheroy buscaram se afirmar a partir dos exemplos europeus. Como Ilmar de Matos utiliza a metáfora, é a partir do espelho de seus pares europeus que o gigante brasileiro busca se constituir. Desta forma, os três jovens estudantes buscaram fornecer as bases para a formação de uma nação brasileira e completar a emancipação política fincando as bases da formação cultural brasileira. Esta revista, portanto, pretendia ir além de um meio de informações. Ela visava a formação de um público capaz de discutir e encontrar soluções para o Brasil e, desta forma, se inserir na famigerada marcha para o progresso e civilização – chave de leitura do século XIX. Para isso é necessário entender para quem estes três autores se dirigem. As revistas literárias brasileiras, inaugurada pela Nitheroy, Revista Brasiliense, dirigiam-se à “boa sociedade”. De acordo com Ilmar de Matos “A boa sociedade atribuía a si própria a competência para “governar” (...) Governar era “reger bem”, quer a Casa (o governo econômico, em especial os escravos), quer o Estado (o governo político)”6 De maneira geral, a boa sociedade era composta por votantes – possuidores de renda mínima suficiente para eleger os membros do colégio eleitoral – e eleitores – os que escolhiam os deputados e senadores, sendo também elegíveis7 – e é a este público que interessa instruir. Desta forma, quando a revista estampa em sua capa “Tudo pelo Brasil, e para o Brasil”, traz consigo a ideia das pretenções de seus redatores. Em seu primeiro número a revista apresenta uma introdução direcionada ao leitor no qual diz que “O amor do país, o desejo de ser útil aos concidadãos determinaram os autores à empresa de fundar esta revista. A necessidade de uma obra periódica que fizesse os concidadão ‘refletir sobre objetos do bem comum e da glória pátria”.

8

Ao final desta apresentação os autores declaram “E destarte,

desenvolvendo-se o amor e a simpatia geral para tudo que é justo, santo, belo e útil, veremos a pátria marchar na estrada luminosa da civilização e tocar ao ponto de grandeza que a Providencia lhe destina.”9 Novamente observa-se a crença na marcha pelo progresso e civilização na qual acreditavam estes homens, que apresentavam o desejo de dividir a civilidade adquirida no Velho Mundo com seus compatriotas.

2994

A publicação avançou apenas até seu segundo número, quando Magalhães perde seu emprego na legação brasileira em Paris e, devido a falta de recursos, é obrigado a voltar para o Brasil. Retornando para o cenário político brasileiro, Regressistas e Progressistas disputavam seus modelos políticos na Câmara e no Senado. Os Regressistas desejavam o retorno a situação vigente anterior às medidas descentralizadoras. Defendiam a monarquia constitucional centralizada a fim de mater afastados os poderes locais facciosos. Os progressistas, por outro lado, apresentavam ideiais liberais e desejavam a liberdade, ligada a ideia de federalismo e autonomia administrativa das províncias. Ambos os grupos surgiram a partir da divisão dos liberais moderados. Com minoria votante na Câmara e no Senado, os Progressistas, que desejavam sobrepujar os Regressistas, começaram a se movimentar em favor de um golpe para antecipar a maioridade de D. Pedro.10 A derrubada da Regência parecia ser a solução para a crise política vigente, por isto, o golpe da Maioridade se apresenta como solução ao grupo que não está no poder, seja ele qual for. Para isto, os Progressistas se articularam e formaram grupos como o “Clube da Maioridade” ou “Sociedade Promotora da Maioridade” a fim de antecipar a maioridade do imperador, que prevista em constituição era aos 18 anos. Novamente houve uma intensa agitação política e editorial acerca do tema e Francisco Salles Torres Homem, já no Brasil, se envolve em polêmicas editoriais defendendo a Maioridade, sendo partidário do grupo dos Progressistas. No jornal “O Despertador” e “O Maiorista”, Torres Homem defende a Maioridade como solução. Foram encaminhados dois projetos à Câmara, como apresenta Basile, um declarando a maioridade já e outro para preparar a maioridade para 2 de dezembro, quando o monarca completaria 15 anos. 11 Sendo assim, em 23 de julho, ao ser indagado pelo então regente se queria assumir naquele momento ou em 2 de dezembro, D. Pedro respodeu com o famoso “quero já”, decretando assim o fim do período regencial no Brasil. Em trecho, Marcelo Basile salienta considerações acerca da herança regencial para o país: O período das regências constitui momento crucial do processo de construção da nação brasileira. Por sua pluralidade e ensaísmo, Marco Morel o definiu como um grande “laboratório” político e social, no qual as mais diversas e originais fórmulas

2995

políticas foram elaboradas e diferentes experiências testadas, abarcando amplo leque de estratos sociais.12

Os primeiros anos do segundo reinado deflagraram uma calmaria política apresentada pela volta do soberano ao poder, e as mudanças que este evento provocou na socidade, antes alarmada pela crise política, apresenta suas mudanças “de cidadão que lutava para se fazer soberano, o povo voltava serenamente à condição de súdito sob a proteção de um novo imperador.”13 Neste contexto, surge o Minerva Brasiliense. De acordo com Hélio Lopes, “A criação da Minerva Brasiliense tornou-se pequena pausa em sua – de Torres Homem – tumultuada vida política.”14 Minerva contava com um corpo editorial semelhante ao da Nitheroy, com alguns nomes que chegaram posteriormente, como Santiago Nunes Ribeiro, que se tornou o redatorchefe da revista um ano após ela ser fundada, quando Torres Homem abandona a incumbência e retorna a sua vida política. A proposta de Minerva era dar continuidade ao que havia sido inaugurado com a Nitheroy, que teve que ser encerrada prematuramente. O artigo introdutório da revista, que de acordo com Hélio Lopes, serve de artigomanifesto desta publicação, escrito por Salles Torres Homem, proclama à sua geração: “Para nós portanto, os tormentos de uma época crítica, a fadiga da construção, os ardores da luta: para as gerações vindouras, as flores da primavera, o orvalho do céu, a fruição não disputada de sua herança.”15. Torres Homem também deixa clara a sua crença no progresso, que trará a civilização para seu país: O homem continuará em sua marcha indefinida derrubando as barreiras que se lhe apõe em cada século; o caminho que tem a percorrer, é imenso. Somente a sua missão no porvir será talvez mais tranquila, o parto da inteligência e da civilização menos laborioso, do que até aqui o tem sido, e o será ainda por algum tempo mais.16

Levando em conta que naquele momento em que o texto supracitado estava inserido, era o começo do “pensar o Brasil” fincando as bases culturais deste país em definição, a análise de Homi K. Bhabha, em seu texto “Narrando a nação”, se faz pertinente para localizar Minerva como chave da sociedade que se buscava construir. A partir do trecho a seguir entende-se que “é a partir das tradições do pensamento político e da linguagem literária que a nação surge, no ocidente, como uma poderosa ideia histórica.”17. Desta maneira, fica evidente, por meio das ideias expostas pelos autores desta geração que eles pretendem criar uma tradição. Torres Homem deixa claro que para ele o progresso e a civilização constituem-

2996

se como chaves para construir a nação brasileira, espelhando-se nos que estavam ocorrendo no Velho Mundo.

MATTOS, Ilmar Rohloff de. “O gigante e o espelho”. In: O Brasil Imperial – Vol. II – 1831-1889. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. pp. 19. 2 BASILE, Marcelo. “O laboratório da nação: a era regencial (1831-1840)”. In: O Brasil Imperial – Vol. II – 1831-1889. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. pp. 55 3 MATTOS, Ilmar Rohloff de, op. cit., pp. 28 4 SILVA, Roberta Félix da. Imprensa e Poder: discursos e projetos políticos de Francisco de Salles Torres Homem (1840-1849). 2014. 153 f. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014. pp. 64. 5 SILVA, Roberta Félix da, op. cit., pp. 10. 6 MATTOS, Ilmar Rohloff de, op. cit., pp. 27 7 MATTOS, Ilmar Rohloff de, op. cit., pp. 27 8 Nitheroy – Revista Brasiliense, nº 1, 1836, pp. 3 9 Nitheroy – Revista Brasiliense, nº 1, 1836, pp. 4 10 BASILE, Marcelo, op. cit., pp. 94. 11 Idem, ibidem, pp. 96. 12 Idem, ibidem, pp. 97. 13 Idem, Ibidem, pp. 97. 14 LOPES, Hélio. A divisão das águas: contribuição ao estudo das revistas românticas Minerva Brasiliense (1843-1845) e Guanabara (1849-1856). São Paulo: Conselho Estadual de Artes e Ciências Humanas, 1978. pp. 32. 15 TORRES HOMEM, Fracisco Sales. Progressos do século atual. Minerva Brasiliense. Rio de Janeiro, nº1, 1843. pp VI 16 Idem, Ibidem, pp VI. 17 BHABHA, Homi K. “Narrando a nação”. In: Nacionalidade em questão. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 1997. pp. 48. 1

2997

VOZES QUE CLAMAM NO DESERTO: o antifascismo nas páginas da impressa anarquista – Alba Rossa, A Plebe e o Spartacus (c.1919-c.1926)

Bruno Corrêa de Sá e Benevides Graduando em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e-mail: [email protected] Orientador: Carlo Maurizio Romani e-mail: [email protected]

Resumo Este artigo tem como proposta o estudo do conceito e da caracterização do fascismo que passou a ser combatido por alguns jornais anarquistas no Brasil, entres 1919-1926, especialmente o Alba Rossa, A Plebe e o Spartacus. A hipótese que orienta este trabalho é de que o conceito de fascismo, absorvido pelos movimentos operários anarquistas, em verdade, não se tratou de uma definição fechada, mas sim de um termo aberto com grandes possibilidades de ampliação dos elementos que o caracterizavam. Palavras-chaves: Antifascismo – Jornais – Anarquismo

Abstract This paper aims to the concept of the study and characterization of fascism that passed being fought by some anarchist newspapers in Brazil, between 1919-1926, especially the Alba Rossa, A Plebe and Spartacus. The hypothesis guiding this work is that the concept of fascism, absorbed by the anarchist labor movements, in fact, was not about a closed definition, but an open term with great potential for expansion of the elements that characterized. Keywords: anti-fascism – Newspapers – Anarchism

TEMA E PROBLEMA Este projeto de pesquisa tem como tema o fascismo no Brasil e como recorte temporal o período entre 1919 e 1926. A pesquisa busca analisar a fase inicial do fascismo e de sua imediata resistência (antifascismo) que ganhou adeptos no país, especialmente entre os movimentos operários de esquerdas, sendo eles os anarquistas, sindicalistas revolucionários, os socialistas e, em um segundo momento, entre os comunistas.

2998

Diante disso, o projeto tem por objetivo principal se aprofundar no estudo e na compreensão do termo fascismo que passou a ser pauta de discussão em diversos jornais1 publicados por diferentes movimentos anarquistas. Para tanto, a proposta é que seja feita uma análise de três periódicos anárquicos – Alba Rossa, A Plebe e o Spartacus, que surgem nas primeiras décadas do século XX, e são considerados grandes redutos e expoentes dos ideais antifascistas. Em outras palavras, pretendo, por meio destes jornais, investigar como as ideias fascistas foram concebidas, absorvidas e conceituadas por uma parte do movimento anarquista. A chegada do fascismo ao Brasil não foi um acontecimento exclusivo dos anos 1930, refiro-me exclusivamente ao ano de 1937, com a implantação do Estado Novo por Getúlio Vargas2. Em verdade, no final da primeira década do século XX alguns ideais fascistas já impregnavam e engrossavam os discursos de alguns segmentos sociais, inclusive daqueles que possuíam participação política na República liberal que estava em pleno vigor no Brasil. De acordo com João Fábio Bertonha3, durante anos 1920 é possível verificar a infiltração dos ideais fascistas em alguns setores da sociedade brasileira, em especial entre os italianos que aqui chegaram em grande número desde o final do século XIX4. A recepção das ideias fascistas em terras brasilis não foi pacífica. A infiltração do fascismo, apesar de formar adeptos, também foi capaz de gerar manifestações contrárias, sobretudo dentro de grupos organizados de trabalhadores operários. Ainda segundo Fábio Bertonha, as opiniões antifascistas não demoraram muito a surgir, principalmente na impressa operária a partir de 1920, que “publicavam texto relacionando o fascismo com a contra revolução e com os grandes capitalistas”5. A proposta desta pesquisa, portanto, é estudar a mobilização encetada contra o fascismo, principalmente entre os simpatizantes das concepções anarquistas, que, por volta dos anos 1920, se encontravam organizados em torno do movimento operário, particularmente nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro. Neste sentido, “quando se pensa no movimento operário na Primeira República brasileira, a principal imagem difundida, a partir dos casos de São Paulo e do Rio de Janeiro, é a do predomínio do anarquismo nos meios sindicais”6. Os ideais anarquistas chegaram ao Brasil junto com um grande contingente de emigrantes europeus7, que aqui desembarcaram com a promessa de “comprar uma terrinha e vir a ter a sua própria plantação, enfim, o sonho ilusório de fazer a América” 8. Em verdade, esse intenso fluxo migratório se estabeleceu em razão da necessidade de suprir a mão-de-obra nos cafezais que, por volta do final do século XIX, sofreu profundo impacto com o fim da escravidão9.

2999

Essa primeira leva de emigrantes italianos que chegam ao Brasil, segundo os historiadores especializados no tema10, é responsável pela formação de algumas experiências de colônias coletivistas que passaram a viver dentro de um modelo comunitário com forte influência de pensadores anarquistas. Em um segundo momento, contudo, com o crescimento e o desenvolvimento industrial das cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, grande parte desses estrangeiros passa a trabalhar nas indústrias, formando as primeiras camadas de operários. Em razão disso, as ideias anarquistas vão acompanhar esses trabalhadores para o interior das fábricas, e lá ajudam na organização de movimentos destinados não somente na luta por melhores condições de trabalho, mas, e apesar de grande divergência existente, em prol de uma revolução social. Muito esclarecedor, neste sentido, são os apontamentos de Carlo Romani sobre o crescimento do movimento operário: “(…) A vertente sindicalista do anarquismo, com Carlos Dias, Sorelli e Leuenroth à frente, avançava fábrica adentro em seu trabalho organizador. O programa do sindicalismo a que se referiu Damiani, que no campo não se mostrou eficiente, nas cidades conseguiu que o trabalhador fabril, a partir de algumas greves vitoriosas, obtivesse ganhos parciais em seu salário e uma redução em seu salário e uma redução em sua jornada de trabalho na luta pelas oitos horas diárias” 11.

Outros indícios desse eminente crescimento e da forte articulação do movimento operário foram a fundação em São Paulo da Federação Operária de São Paulo (FOSP), em 1905, através da contribuição de trabalhadores pertencentes às categorias dos sapateiros, padeiros, marceneiros e chapeleiros, a criação da Federação Operária do Rio de Janeiro (FORJ) e, por fim, a organização do “Congresso Operário Regional Brasileiro, entre 15 e 22 de abril de 1906, no Centro Galego, no Rio de Janeiro” 12. No ano de 1919 encontravam-se os anarquistas em completa euforia. Esse sentimento se deveu em razão do sucesso da revolução de 1917 na Rússia, e também pelas sucessivas greves que os trabalhadores vinham realizando há cerca de três anos. A revolução na Rússia foi capaz de criar um horizonte de expectativa entre alguns anarquistas em prol de uma revolução social, sendo que, ao mesmo tempo, foi fato gerador de um grande racha causando uma cisão dentro do movimento que resultou na futura formação do Partido Comunista Brasileiro em 1922 a partir de egressos oriundos dos movimentos anarquistas. Esse foi o caso, por exemplo, do exanarquista Astrogildo Pereira, um dos principais responsáveis pela fundação do partido comunista, que enxergava no comunismo e na ditadura do proletariado um modelo ideal de organização social.

3000

Entres os anarquistas, poucos foram aqueles que perceberam, diante da escassez de informações vindas do outro lado do mundo, que a revolução feita pelos bolcheviques (1917) em muito se distanciava de uma efetiva luta libertária pela emancipação dos trabalhadores. Ao que parece, esse foi o caso dos anarquistas Edgard Leuenroth e Jose Oiticia (para citar alguns), que mesmo tendo sido balançados com as notícias sobre os Bolcheviques, não rompem em definitivo com o anarquismo, e organizam um jornal que recebeu o nome de Spartacus (que inclusive utilizo como fonte) de vertente anarquista, porém com forte pegada dos ideais comunistas13. A greve geral deflagrada em São Paulo, em Julho de 1917, foi um outro demonstrativo do momento eufórico em que viviam os trabalhadores. Por outro lado, em razão da intensa repressão policial a partir de 1919, os anarquistas, principalmente os ligados a uma vertente sindicalistas, especulam uma possível aproximação com outros movimentos de trabalhadores (sindicalistas revolucionários, socialistas e comunistas – fruto da tese do maximalismo14) com a intenção de formar uma coalização em prol da revolução social (como a ocorrida na Rússia) e que impedisse o enfraquecimento da luta do operariado em razão da forte perseguição da polícia. Apesar dos esforços, cabe registrar que “as décadas de 1920 e 1930 marcam a curva de descenso da influência que o anarquismo exerceu no Brasil, dentro e fora dos meios operários”. Segundo Alexandre Samis, “a repressão que se seguiu após as ondas de grandes greves generalizadas entre 1917 e 1921 foi um elemento eficazmente desarticulador”, muito diferente de quaisquer outras investidas repressivas já impetradas contra os anarquistas no país até então15. Desta forma, foi durante a década de 1920, “que a fúria repressiva procurou varrer todos aqueles considerados pelo Estado como indesejáveis e inimigos da ordem pública, estrangeiros e nacionais, remetendo-os a prisões divididas com presos políticos de outros movimentos adversários dos governos estabelecidos”. A “repressão se intensificava e abrangia outros setores sociais além da usual perseguição ao anarquismo”, uma vez que “surgem outros grupos políticos interessados em promover mudanças, cada qual a seu modo e com níveis de aprofundamento variados”16. Essas novas formas de ações perpetradas pelo Estado brasileiro, sejam elas perseguições policiais visando a repressão dos operários organizados nas fábricas, a decretação do Estado de sítio ou a expulsão de estrangeiros considerados subversivos, já sinalizavam, segundo Carlo Romani, uma tendência autoritária do Estado antecipatória da íntima relação governo brasileiro/controle social que se intensificou nas décadas seguintes17, nos possibilitando

3001

perceber como gradativamente alguns elementos dos ideais fascistas internacionalmente reconhecidos aos poucos vão penetrando no país. Entre os movimentos de esquerda, os anarquistas foram um dos primeiros a perceberem essa forte tendência autoritária, e rapidamente articulam uma contraofensiva antifascista. Um bom exemplo dessa luta de resistência direta é a criação, no Brasil, de periódicos anarquistas com o objetivo, quase que único, de advertir a massa operária sobre a penetração dos ideais fascistas nas ações governamentais. Por outro lado, jornais já existentes, também de caráter anárquico, passam a denunciar práticas fascistas, se não de forma direta com o uso do termo, mas trazendo à ordem do dia, em suas páginas, o aumento da repressão policial contra os movimentos organizados de trabalhadores, alertando sobre uma intensa ação autoritária por parte do Estado18. O ano de 1926 impõe-se como marco final para a nossa investigação em razão do absoluto fortalecimento do regime fascista na Itália por Mussolini19. De acordo com o esquema temporal elaborado por Fábio Bertonha (e que adoto nesta pesquisa), essa primeira fase de luta contra o fascismo iniciada em 1919 terminou em 1926, inclusive no Brasil, sobretudo por simbolizar o fim de um antifascismo realizado individualmente em cada país por italianos espalhados pelo mundo. A nova fase (inaugurada em 1926), segundo o citado autor, se diferenciou da primeira em razão do caráter internacional que foi conferido ao movimento20, porém essa nova fase foge do nosso interesse de análise. Com base no exposto, pretendo investigar como o fascismo é caracterizado e reconhecido pelos anarquistas no Brasil no decorrer dos anos 1920. Certamente tal pretensão possui um quê Homérico, visto que o movimento anarquista não foi uníssono e não se resumiu aos Estados do Rio de Janeiro e de São Paulo. Portanto, em razão disso, é que optamos por desenvolver o tema a partir dos três periódicos já elencados anteriormente (Alba Rossa, A Plebe e o Spartacus) com a pretensão de delimitar o tema. Antes de expor a hipótese a ser ventilada, necessário se faz tecer um brevíssimo apanhado da historiografia que se dedicou ao estudo dos movimentos operários de um modo geral (me refiro aos anarquistas, sindicalistas revolucionários, socialistas e aos comunistas) no período entre 1919 à 1926. Sobre os movimentos operários ligados às esquerdas durante os anos 1920, especialmente no que se diz respeitos aos anarquistas, é vasta a historiografia que se debruçou sobre o tema. Assim, o denso trabalho de Carlo Romani, intitulado como Oresti Ristori: Uma aventura anarquista (2002), em que traça uma biografia do anarquista Oreste Ristori, italiano natural da cidade de Empoli, que também viveu na América do Sul entre 1902 e 1936, sendo a

3002

maior parte no Brasil, também se destaca como um profundo estudo histórico sobre a diáspora italiana nesta parte do mundo e sobre a internacionalização do movimento anarquista. Da mesma forma, ressalto as pesquisas de Alexandre Samis, em seu trabalho intitulado Pavilhão Negro sobre a Pátria Oliva: sindicalismo e Anarquismo no Brasil e Tiago Bernardon, em sua tese de doutorado Anarquismos, sindicatos e revolução no Brasil (1906-1936), onde fazem uma profunda análise sobre o movimento anarquista durante as primeiras décadas do século XX. Entretanto, apesar da importância que tiveram, os três trabalhos deixaram algumas lacunas nas análises sobre o antifascismo. De uma forma geral, o antifascismo tratado pelos autores mencionados refere-se, especialmente, ao surgido a partir dos anos 1930, com a formação de uma frente única de combate ao fascismo 21. Percebe-se, portanto, que o antifascismo em sua primeira fase (para usarmos a mesma periodização de Bertonha) fica praticamente à margem da discussão central, e às vezes aparecem como fenômeno desconhecido à época. Já no que se diz respeito ao fascismo e à resistência antifascista italiana no Brasil, é possível, da mesma forma, conferir uma boa gama de estudos centrada basicamente nas relações entre o fascismo e a comunidade italiana aqui residente na fase inicial da tomada de poder por Mussolini22; no surgimento de uma antifascismo italiano como resultado da perseguição política na Itália nos últimos anos da década de 192023; e, por último, de um antifascismo brasileiro relacionado ao italiano como resultado de uma conjuntura autoritária que se configurou também no Brasil na década de 193024. Contudo, apesar da imensa contribuição, esses trabalhos não investigam a fundo os elementos caracterizadores do termo fascismo dentro do recorte temporal desta proposta de pesquisa, e que em razão disso passa a ser um dos objetivos específicos deste trabalho. Portanto, compulsado os trabalhos historiográficos tanto no que diz respeito ao movimento operário anarquista quanto sobre o antifascismo, é possível perceber que não há trabalho especifico que trate sobre o tema proposto em sua primeira fase (1919-1926). Desta forma, aproveitando desta lacuna, o presente projeto de pesquisa, a partir da análise dos periódicos anarquistas Alba Rossa, A Plebe e o Spartacus, tem por objetivo principal encontrar respostas para as seguintes problemáticas: Considerando o recorte temporal proposto, nestes periódicos é possível presenciar o termo fascismo ou antifascismo?; sendo positiva essa afirmação, outro questionamento merece espaço nesta discursão: O termo fascismo recorrente neste jornais anarquistas sofre modificação semântica com o passar dos anos? Isto é, em relação ao ano inicial de 1919, os termos sofrem ampliação dos elementos que

3003

o caracterizam? Esses serão, portanto, os questionamentos principais (não nos esquecendo dos acessórios) que permearão essa pesquisa. Apesar de ainda carecer de um estudo aprofundado e conclusivo sobre o tema, a hipótese que orienta esse trabalho é que: •

o termo fascismo apropriado por esses periódicos não chegou ao Brasil com uma definição já pronta e acabada. Acreditamos que esse termo possivelmente sofreu constantes variações e adaptações após a sua penetração.



a apreensão do termo pode ter se dado, sob determinadas circunstancias, de variadas formas pelos diversos setores sociais.



entre os anarquistas, particularmente a partir dos três periódicos apontados, essa apropriação possa ter gerado um significado distinto e exclusivo do termo por cada um dos jornais.

Levando isso em conta, e concedendo maior destaque, optei por analisar um periódico editado em italiano, porém publicado em São Paulo, por um italiano de origem Corso chamado Ângelo Bandoni. O jornal de Bandoni, que durou entre os anos de 1919 à 1922, recebeu a alcunha de Alba Rossa. Inicialmente com publicações semanais, o Alba Rossa é caracterizado por ser um periódico anarquista, pertencente a uma vertente radical do movimento, possuindo editorial claramente antifascista25. Pouco se sabe a respeito da trajetória biográfica de Bandoni, particularmente sobre o período em viveu no Brasil. De qualquer forma, a historiografia especializada o vem classificando como um anarquista com forte pegada individualista, além de atribuí-lo a estirpe de educador, em razão ser propagador de uma educação libertária e fundador da Escola Libertária Germinal26. Em um segundo momento, ressaltarei os outros dois periódicos escolhidos como fontes, sendo eles A Plebe e o Spartacus. Em suma, ambos os periódicos possuem uma linha editorial anarquista. Entretanto, diferentemente do Alba Rossa, seguem tendências anárquicas distintas se distanciando um pouco da estratégia de luta e da forma de compreensão social de Bandoni. Como já ressaltado, uma das propostas desse projeto é realizar uma análise de como o fascismo foi caracterizado e definido a partir dos três periódicos em epígrafe. Nesse sentido, buscando esse fim, propomos a utilização metodológica especializada em estudar e compreender os conceitos. Nessa metodologia histórica, Koselleck projetará no universo da historiografia e da teoria da história uma orientação de apreensão do tempo histórico a partir da noção de história dos conceitos. Para o referido autor, a história dos conceitos não pode ser dissociada da história 3004

social, por colaborar com esta última no argumento explicativo, por exemplo, das formações sociais, da história das sociedades (suas estruturas, dinâmicas e formas de organização política): “Sem conceitos comuns não pode haver uma sociedade e, sobretudo, não pode haver unidade de ação política. Por outro lado, os conceitos fundamentam-se em sistemas político-sociais que são, de longe, mais complexos do que faz supor sua compreensão como comunidades linguísticas organizadas sob determinados conceitos-chaves”27.

Portanto, o estudo dos conceitos e seu universo contextual se fazem úteis ao historiador mediante suas preocupações com a evolução dos significados e seu eventual desdobramento histórico. Em Koselleck, a história dos conceitos tem como objetivo primordial estudar o uso dos conceitos e suas ressignificações na evolução histórica.

Considerações Finais Desta forma, este será, portanto, o método utilizado para a compreensão semântica do fascismo muito combatido pelos antifascistas anarquistas das primeiras décadas do século XX, como já fizemos de forma minuciosamente detalhada. Em razão disso, será possível concluir que o conceito de fascismo, absorvido pelos movimentos operários anarquistas, em verdade, não se tratou de uma definição fechada, mas sim de um termo aberto com grandes possibilidades de ampliação dos elementos que o caracterizavam e passível de constantes alterações com passar dos anos.

Notas A respeito da importância dos jornais para os movimentos operários anarquistas, conferir: “Os jornais anarquistas e operários, muitos deles escritos com as novas regras, à revelia da norma culta, revelavam uma profunda preocupação com a ampliação do acesso do trabalhador aos meios de comunicação de sua classe. Queriam, muitos dos intelectuais que interagiam com os operários-escritores, a participação dos demais produtores não apenas na leitura dos periódicos, mas na confecção de artigos e colunas daqueles veículos” (SAMIS, A. “Pavilhão negro sobre pátria oliva: sindicalismo e anarquismo no Brasil”. In: COLOMBO, Eduardo; COLSON, D. et al. História do movimento operário revolucionário. São Paulo: Imaginário; São Caetano do Sul: IMES, Observatório de Políticas Sociais, 2004, p. 168). 2 MAIO, Marcos Chor; CYTRYNOWICZ, Roney. “Ação Integralista Brasileira: um movimento fascista no Brasil (1932-1938)”. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (Orgs.) O Brasil Republicano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 44. 3 Sob a sombra de Mussolini: Os italianos de São Paulo e a luta contra o fascismo, 1919-1945. São Paulo: Annablume/FAPESP,1999, p. 53. 4 Cf. BERTONHA, João Fábio. A questão da “Internacional Fascista” no mundo das relações exteriores internacionais: a extrema direita entre solidariedade ideológica e rivalidade nacionalista. Revista Brasileira de Política Internacional, Rio de Janeiro, 2000, ano 43, n. 1. 1

3005

5

BERTONHA, João Fábio. Sob a sombra de Mussolini: Os italianos de São Paulo e a luta contra o fascismo, 1919-1945. São Paulo: Annablume/FAPESP,1999, p. 56. 6 OLIVEIRA, Tiago Bernardon de. Anarquismos, sindicatos e revolução no Brasil (1906-1936). Tese de doutorado em História. Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2009, p. 30-31. 7 “Os anarquistas italianos estavam presentes no brasil desde os anos 90 do século XIX e foram fortemente ativos no movimento operário, na imprensa anarquistas etc. Organizada ao redor dos jornais ou de grupos anarquista de língua italiana, recebiam forte influência daquilo que acontecia com o anarquismo na Itália” (BERTONHA, João Fábio. Sob a sombra de Mussolini: Os italianos de São Paulo e a luta contra o fascismo, 1919-1945. São Paulo: Annablume/FAPESP,1999, p. 53). 8 ROMANI, Carlo. Oreste Ristori. Op. Cit. p. 153. 9 SAMIS, A. Op. Cit. p. 130. 10 Cf. Cf. ROMANI, Carlo. Oreste Ristori. Uma aventura anarquista. São Paulo: Annablume, 2002; SAMIS, A. “Pavilhão negro sobre pátria oliva: sindicalismo e anarquismo no Brasil”. In: COLOMBO, Eduardo; COLSON, D. et al. História do movimento operário revolucionário. São Paulo: Imaginário; São Caetano do Sul: IMES, Observatório de Políticas Sociais, 2004; e OLIVEIRA, Tiago Bernardon de. Anarquismos, sindicatos e revolução no Brasil (1906-1936). Tese de doutorado em História. Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2009. 11 Op. Cit. p.169. 12 ROMANI, Carlo. Op. Cit. p. 170. 13 OLIVEIRA, Tiago Bernardon de. Op. Cit, p. 161-177. 14 O anarquista italiano Oreste Ristori nos ajuda na definição: “(…) O maximalismo – e com esta explicação pretendemos destruir todos os equívocos e os erros que abundam a seu respeito – o maximalismo é a coalização de todas as forças avançadas dos partidos revolucionários, principalmente anárquicos e socialistas, que aceitam o programa máximo da Internacional” (Idem. p. 235). Sobre o programa da Internacional, também conferir p. 235 da obra. 15 SAMIS, A. Op. Cit. p. 153. 16 . Idem. p. 153. 17 Ver: ROMANI, Carlo. Antecipando a era Vargas: a Revolução Paulista de 1924 e as práticas de controle político e social. Topoi, Rio de Janeiro, v. 12, p. 161-178, 2011. 18 BERTONHA, João Fábio. Op. Cit. 1999, p. 53-60. 19 Ver: BERTONHA, João Fábio. A questão da “Internacional Fascista” no mundo das relações exteriores internacionais: a extrema direita entre solidariedade ideológica e rivalidade nacionalista. Revista Brasileira de Política Internacional, Rio de Janeiro, 2000, ano 43, n. 1, p. 103. 20 BERTONHA, João Fábio. Sob a sombra de Mussolini: Os italianos de São Paulo e a luta contra o fascismo, 1919-1945. São Paulo: Annablume/FAPESP,1999, p. 28. 21 Sobre a Frente Única: “A partir das proposições de Trotsky na Europa, iniciava-se no Brasil uma campanha dos trotskistas pela formação de uma Frente Única contra o Fascismo, contando com um grupo heterogêneo, incluindo os socialdemocratas considerados pelos PCs, entre 1929 e 1934, “social-fascistas”” (OLIVEIRA, Tiago Bernardon de. Op. Cit. p. 199). “Mas a recusa da adesão dos anarquistas à Frente Única Antifascista não impediu que os militantes anarquistas estivessem sempre em contato com ela e com os militantes do PCB, que faziam severa oposição à organização fundada por trotskistas e socialistas” (p. 201). “Ainda sobre o contato com a Frente Única Antifascista, apesar da recusa em aderir a ela formalmente, existem diversos registros, sobretudo fontes policiais, que sublinham a participação de militantes anarquistas nas reuniões, não só tomando a palavra, mas até mesmo contendo os ânimos entre stalinistas e trotskistas, intervindo até mesmo para separar brigas corporais” (p. 201). 22 Cf. BERTONHA, João Fábio. Sob a sombra de Mussolini: Os italianos de São Paulo e a luta contra o fascismo, 1919-1945. São Paulo: Annablume/FAPESP,1999; A questão da “Internacional Fascista” no mundo das relações exteriores internacionais: a extrema direita entre solidariedade ideológica e rivalidade nacionalista. Revista Brasileira de Política Internacional, Rio de Janeiro, 2000, ano 43, n. 1; e Sobre a Direita: estudos sobre o fascismo, o nazismo e o integralismo. Maringá-PR: Editora da Universidade Estadual de Maringá, 2008. 23 Cf. BERTONHA, João Fábio. Op. Cit. 1999. 24 CASTRO, Ricardo Figueiredo de Castro. Contra a guerra ou contra o fascismo? As esquerdas brasileiras e o antifascismo, 1933-1935. Tese de Doutorado em História. Niterói: UFF, 1999. 25 Ver: BIONDI, Luigi. La stampa anarchica italiana in brasile: 1904-1915. Tese de doutorado de História Contemporânea. Università degli Studi di Roma “La Sapienza”, Roma, 1995. 26 Ver: ROMANI, Carlo. La emigración europea y las escuelas libertarias en Argentina y Brasil en los albores del siglo XXI. 2014. Disponível em: https://www.academia.edu/3555946/Le_scuole_libertarie_in_Brasile_e_Argentina_nel_primo_Novecento_linflu enza_degli_emigrati_italiani_e_iberici. Acessado em: 01/09/2015.

3006

27

KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/Editora PUC-Rio, 2006, p. 98.

3007

A SOCIEDADE CEARENSE LIBERTADORA E A ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA NO CEARÁ (1881-1884)

Camila de Sousa Freire Graduanda pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, bolsista de iniciação científica pela FAPERJ, sob a orientação da professora doutora Ana Paula Barcelos Ribeiro da Silva. Email: [email protected]

RESUMO: Este trabalho é resultado da pesquisa da monografia e de Iniciação Científica. Nesta é analisada a escrita da história nas primeiras décadas republicanas, na qual a abolição no Ceará em 1884 contribuirá como um marco regional. Para tanto analiso a atuação da Sociedade Cearense Libertadora, através de seu jornal, o Libertador. São trabalhados os conceitos de centro e periferia, alteridade, circulação de idéias e as influencias estrangeiras, além da mudança do radicalismo para o conservadorismo no decorrer do movimento. Palavras-chave: Abolição; Movimento abolicionista no Ceará; Sociedade Cearense Libertadora;

ABSTRACT: This work is the result of my monography research and scientific initiation. It analyzes the documentation of history in the first republican decades, in which the abolition in Ceará in 1884 will contribute as a regional framework. To analyze both the performance of the Sociedade Cearense Libertadora, through its newspaper, the Libertador. The concepts of center/outskirts, otherness, exchange of ideas and foreign influences are examined, as well as the change from radicalism to conservatism during the movement. Keywords: Abolition; abolitionist movement in Ceará; Sociedade Cearense Libertadora;

O trabalho em questão busca analisar o movimento abolicionista cearense, ocorrido entre 1881 e 1884, ano em que é declarada a abolição de todos os escravos da província do Ceará.

3008

Sendo assim, o Ceará foi a primeira província brasileira a libertar todos os seus escravos, quatro anos antes da Lei Áurea. O que constitui um marco não só para o movimento abolicionista brasileiro, mas para a própria identidade cearense. Este feito também será utilizado posteriormente, já na República, como uma contribuição regional do Ceará para a história nacional. Dessa forma, este processo de formação de uma identidade, e também de memória, não só regional como nacional, é discutido a partir de autores tais como Michael Pollak e AnneMarie Thiesse. Trabalhamos também a relação de centro e periferia, além de conceitos como alteridade e circulação cultural de ideias, a partir do contato entre o Ceará e as demais províncias do país, utilizando autores como Carlo Ginzburg, Tzvetan Todorov, entre outros. São discutidas também questões características do movimento abolicionista cearense, através dos autores Raimundo Girão e Pedro Alberto de Oliveira Silva, bem como a mudança de um radicalismo inicial para um posterior conservadorismo do movimento abolicionista cearense. Além disso, abordamos as influências por trás do discurso dos abolicionistas que empreenderam esse movimento e suas tentativas de legitimação, a partir da exaltação do seu pioneirismo e dos seus meios de atuação. Para tanto, analiso a atuação da Sociedade Cearense Libertadora, a principal sociedade abolicionista do Ceará, a partir do jornal publicado pela mesma, o Libertador, entre os anos de 1881 e 1884. Este se encontra disponível on-line na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. A Sociedade Cearense Libertadora foi fundada em 08 de Dezembro de 1880, a partir da iniciativa de alguns membros da sociedade comercial Perseverança e Porvir, ambas situadas na capital da província, Fortaleza. Em 01 de Janeiro de 1881 é fundado o Jornal Libertador, como um porta-voz da Sociedade Cearense Libertadora, bem como dos abolicionistas que a compunham. Essa sociedade foi a mais atuante em toda a província do Ceará, e conseqüentemente era a mais conhecida, com seus membros atuando fortemente nesse movimento, como por exemplo, facilitando a fuga de escravos e possibilitando a concessão de cartas de alforria, além de conseguirem mobilizar toda a Província, através da propaganda abolicionista presente no Jornal. Mesmo as outras Sociedades que foram surgindo ao longo do processo de abolição, no Ceará e também em outras províncias, tinham a Sociedade Cearense Libertadora como mentora e exemplo. Partimos da hipótese de uma mudança nos meios de atuação da Sociedade, de um caráter mais radical para outro mais conservador ao longo do movimento abolicionista daquela província, hipótese esta que é confirmada através da análise do jornal Libertador.

3009

Esse período que consideramos radical vai de 1881 a 1882. Do ano de 1882, só está disponível na Hemeroteca o primeiro número, onde encontramos uma nota sobre as mudanças em sua abordagem, que a partir de então englobava diversas questões referentes à província, não mais se detendo apenas na questão da abolição1. Por meio da análise dos jornais de 1883 percebe-se uma mudança de atuação desses abolicionistas. No início, estes facilitavam a fuga de escravos e os escondiam, inclusive perdendo seus cargos públicos por isso, além dos processos judiciais que sofreram. Posteriormente, a Sociedade passa a atuar muito mais pela concessão de cartas de alforria e a partir da propaganda, que levava a população a libertar seus escravos. Um exemplo eram as comissões compostas por alguns desses abolicionistas para tentarem convencer os senhores a libertarem seus escravos2. Assim, a abolição foi se dando gradualmente, com ruas, bairros e municípios libertando seus escravos, até que a província inteira os viu libertos. Esse era um modelo seguido por todas as sociedades libertadoras do Ceará e também de outras províncias, que viam neste um exemplo a ser seguido. Em relação ao discurso, tem-se uma linguagem ácida e combativa nos primeiros anos, que perdura, não importando a quem se referia. Mas buscaram nos anos seguintes (a partir de 1882) negar as acusações de radicalismo de que eram alvo, alegando “agir dentro da legalidade”. Vemos que esse discurso intensificou-se principalmente após a libertação da província, quando passou a ser de que a abolição se realizou “sem derramamento de sangue” e “sem subversão da ordem social”3, o que passou a constituir um exemplo a ser seguido pelas demais províncias do Império. Além disso, foi aberto um maior espaço para a religiosidade no jornal, com colunas destinadas a discussões entre católicos e protestantes, sobre adoração de imagens e denúncias de celebrações protestantes, com o Jornal posicionando-se claramente a favor do catolicismo. Atentamos ainda, para a busca por legitimação por parte desses abolicionistas, e para a consequente tentativa de formação de uma identidade regional a partir desse feito. Vemos sempre mencionado nos discursos o fato de que mesmo o Ceará sendo uma província de poucos recursos preocupou-se com seus semelhantes mais infelizes, que eram os escravos. Procuram então destacar como características principais do povo cearense a abnegação e a superação, já que mesmo após as dificuldades passadas pela população durante a seca (18771879) esta conseguiu pensar no próximo, superar as dificuldades e fazer a abolição antes de todas as outras províncias do Império, inclusive as mais ricas. Outro fator perceptível nos discursos encontrados no jornal é a certeza de que a abolição de fato se daria, e de que seria um feito glorioso para a província e para o povo cearense, pelo qual ficariam marcados para sempre na história do país. Este discurso se fortalece após a abolição, com as diversas

3010

comemorações e exploração ao máximo desse feito, principalmente no jornal, com edições especiais, onde são publicadas as felicitações enviadas de todas as partes do país, parabenizando o Ceará pela conquista. Percebemos então, a partir desses fatores, uma busca por reconhecimento por parte desses abolicionistas cearenses, que a partir dessa vitória alcançada com a libertação de todos os seus escravos já em 1884. Eles buscavam atrair o olhar das outras províncias para si, e também o olhar estrangeiro, de países considerados civilizados. Em seu livro A Vida em Comum, Tzvetan Todorov4 fala sobre a busca dos indivíduos por reconhecimento. Segundo ele, os homens têm necessidade de reconhecimento, de aceitação diante do olhar dos outros5. Todorov diz que “os efeitos dessa necessidade assemelham-se ao da vaidade: deseja-se ser olhado, busca-se a estima pública, tenta-se despertar o interesse dos outros para seu destino (...)”6. A autora Anne-Marie Thiesse7 fala em seu trabalho sobre a formação de identidades nacionais na Europa durante o século XIX, onde serão utilizados para este fim diversos elementos unificadores – como língua em comum, música, trajes tradicionais, escolha dos ancestrais, entre outros – em um trabalho de criação de referências coletivas. Não foi diferente no Brasil, que também empreendeu esse trabalho de formação de identidade nacional ao longo de todo o século XIX e durante o século XX. Os abolicionistas cearenses, no contexto da década de 1880, já falavam que seu feito ficaria marcado na história do país. Nas décadas posteriores, ocorreu a tentativa de inserção desse feito na história nacional por parte do Instituto Histórico, Geográfico e Antropológico do Ceará, junto ao IHGB. Outro fato, que ocorreu ainda na fase inicial, e que será visto como motivo de orgulho regional é a greve dos jangadeiros. Este foi um movimento ocorrido no porto de Fortaleza, nos dias 27, 30 e 31 de Janeiro de 1881, onde os jangadeiros se recusam a embarcar os escravos que seriam transportados para outras províncias, sob o grito “No porto do Ceará não embarcam mais escravos”. A população de Fortaleza compareceu em grande número à praia, declarando apoio aos jangadeiros. No dia 31 de Agosto do mesmo ano o porto é fechado novamente. Dessa vez, sob ameaças da polícia, os abolicionistas arrancaram o calçamento das ruas para evitar que esta chegasse à praia. Na mesma ocasião duas escravas foram roubadas diante da polícia, que não conseguiu impedir. Assim, iniciou-se o movimento abolicionista cearense, com amplo apoio da população, que procurou se impor às autoridades. Além de ter passado para a história do Ceará como um marco, a greve dos jangadeiros demonstra o caráter radical do início do movimento abolicionista cearense. Outro exemplo desse caráter radical é o fato de a primeira diretoria da Sociedade Cearense Libertadora ter se dissolvido por discordâncias entre seus membros quanto aos

3011

meios de atuação. Raimundo Girão8 transcreve em seu livro o depoimento de Antonio Bezerra, um dos membros da Sociedade Cearense Libertadora, onde este relata a reunião que dividiu a direção da mesma: “(...) Tendo-se por mais de uma vez suspendido as sessões por tumultuárias, em conseqüência do desacordo entre os sócios (...) foi pelo presidente provisório João Cordeiro designado o dia 30 de janeiro de 1881 para se decidir esse assunto. No domingo mais próximo ao meio-dia compareceram uns vinte sócios na antiga Bolsa do Comércio, à Praça José de Alencar, e logo João Cordeiro fê-los entrar para uma sala ao lado daquela casa do comércio, adrede preparada, a que havia ele dado o nome de Sala do Aço. Ali achava-se uma mesa grande, coberta com um pano preto, duas lanternas nos extremos e vinte cadeiras em torno. Depois de fechada a porta da entrada e acesas as velas das lanternas, João Cordeiro, que ocupava o centro da cabeceira, levanta-se e, arrancando da cava do colete um punhal, atira-o com força no meio da mesa, onde ficou cravado, oscilando sinistramente ao reflexo das luzes, e disse: - ‘Meus amigos, exijo de cada um de nós um juramento sobre este punhal, para matar ou morrer, se for preciso, em bem da abolição dos escravos. Vamos travar uma luta horrível com o governo, e por isso está em tempo de se retirar aquele que for amigo do mesmo governo ou dele for dependente. Quem não tiver coragem para tanto pode sair, que ainda sai em tempo’ e logo se retiraram onze, cujos nomes por conveniência ocultamos do desprezo público.”9

Os dissidentes da Sociedade Cearense Libertadora fundaram outra sociedade abolicionista, o Centro Abolicionista 25 de Dezembro. Este desde o início seguiu a linha emancipacionista, ou seja, visavam contribuir para o fim da escravidão sem lançarem mão de medidas extremas, como viam em algumas ações da Sociedade Cearense Libertadora. Cabe frisar que o Centro Abolicionista 25 de Dezembro tinha como líder o Dr. Guilherme Studart, intelectual ligado à Igreja Católica, fundador do Instituto Histórico do Ceará, que irá posteriormente, nas primeiras décadas republicanas, empreender um levantamento da história do Ceará, na tentativa de contribuir para a história nacional, em colaboração com o IHGB, como já foi dito. Em relação ao conceito de centro e periferia, utilizo o trabalho de Lusirene Ferreira 10, que em sua dissertação de mestrado analisa a repercussão da libertação dos escravos do Ceará no Rio de Janeiro, então sede da Corte Imperial. Segundo Lusirene, houve várias comemorações na Corte pela abolição do Ceará, que duraram meses. Foram organizados comícios, festas e manifestações públicas em apoio ao ocorrido naquela província. Houve comemoração na Corte até mesmo antes do dia 24 de Março de 1884, data marcada para a proclamação da abolição total no Ceará, o que evidencia a troca de informações entre esta e a Corte. Essa troca de informações não se restringia ao Rio de Janeiro e ao Ceará, mas entre este e diversas outras províncias do Império. Encontramos no Libertador notícias do movimento abolicionista em várias províncias, enviadas por elas à Sociedade Cearense Libertadora. Percebemos dessa forma as relações do Ceará com as demais províncias do

3012

Império, aquele figurando como um exemplo a ser seguido. As demais províncias, por sua vez, demonstravam querer seguir seu exemplo.. O Ceará passou a ser visto então como um norteador do movimento abolicionista do Império, inclusive pelo próprio Rio de Janeiro, então capital, e dessa forma vista como centro. Carlo Ginzburg trabalha esse conceito de centro e periferia ao tratar da história da arte italiana11, onde afirma que o centro era o local de criação, que se irradia para as periferias, sendo estas sinônimos de atraso. No entanto, essas posições são determinadas por quem se encontra em posição dominante, logo essas noções de centro e periferia são construções ideológicas, que podem variar de acordo com o local, contexto e época. Nesse momento, porém, o centro irradiador de influência no que se refere à abolição da escravidão passou a ser o Ceará. Nas relações mantidas entre o Ceará e as demais províncias, encontramos a conquista de alteridade a partir de como aquele era visto no cenário destacado, das influências exercidas pelo mesmo e da intensa troca de informações entre ele, colocado no centro, e as demais províncias. Percebemos ainda uma circulação de ideias nas influências recebidas externamente por esses abolicionistas, vindas principalmente da Europa, mas também dos Estados Unidos. Na Europa, a França é seu principal exemplo, vista pelos abolicionistas cearenses como a pátria da liberdade, e tomam para si o lema “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”. Já os Estados Unidos são vistos como o exemplo de abolição que deu certo. Embora, já no final do processo abolicionista, em seu momento mais conservador, esses abolicionistas façam questão de dizer que o Ceará não precisaria de uma guerra civil, como foi o caso norte americano, para que a abolição acontecesse, e que esta se daria por meios pacíficos. Os Estados Unidos serviam também como exemplo por utilizarem a mão de obra livre em indústrias, sendo sinônimo de progresso para os abolicionistas. São citados pelos abolicionistas cearenses figuras como Lincoln e Victor Hugo. Internamente são exaltados o Visconde do Rio Branco, por sua lei de 1871, a Lei do Ventre Livre, assim como Joaquim Nabuco e José do Patrocínio. Este último, em um movimento de busca de reconhecimento externo, promoveu um jantar na França, quando lá esteve, em comemoração à libertação de Fortaleza e ao movimento abolicionista cearense. O Libertador, por sua vez, publicou a descrição do jantar, enviada por Patrocínio. Dessa forma, o jornal buscava mostrar a importância do movimento abolicionista cearense, que chegou até a Europa, angariando assim a simpatia daqueles que tinham como modelo de civilização e progresso. Modelo este sempre buscado por esses abolicionistas, que viam na escravidão a barbárie do século, que precisava ser rompida, para que o Brasil entrasse para o rol dos países civilizados.

3013

Por fim, a Sociedade Cearense Libertadora acaba por dissolver-se em 06 de Agosto de 1884, quando é publicada uma nota no jornal Libertador: “Depois de todos esses sacrificios de trabalho sem trégoa, durante quasi quatro annos e de dinheiros despedidos no valor de mais de 50:000$000; depois de termos obtido no campo das ideias a maior victoria nas luctasbrazileiras, ficando-nos a satisfação de havermos precipitado a solução da questão do elemento servil, obrigando o governo do paiz a subir até o povo, em cuja frente acaba de colocar-se o ministerio Dantas, - desfraldando a bandeira da abolição, - depois de tudo isto, quando a nossa sociedade nada mais pode fazer em favor da cauza que deu-lhe vida por tantos annos, julgamos conveniente dissolver hoje este pequeno nucleo de homens que se fizeram irmãos para, sob o lemma de – UM POR TODOS E TODOS POR UM, - combater a escravidão, que éa maior vergonha do Brazil.”12

O Jornal por sua vez irá se tornar um órgão do Centro Republicano e mais tarde fundese com o Estado do Ceará, tornando-se A Republica, já em 1892. A Sociedade Cearense Libertadora chega ao fim já convocando os historiadores a contarem sua história para a posteridade. Chegamos então à conclusão de que o movimento abolicionista cearense tinha por objetivo livrar-se de uma mácula, que manchava a imagem do Brasil diante desses países considerados civilizados e impedia seu progresso. Para isso, foi empreendida uma intensa campanha, que mobilizou a província inteira e disseminou-se por todo o Império. Até hoje esse fato permanece como um orgulho regional, destacando-se a figura do jangadeiro Francisco José do Nascimento, líder da greve dos jangadeiros, e a atuação da Sociedade Cearense Libertadora, que teria se colocado à frente do movimento abolicionista e concorrido ativamente para seu desfecho favorável. Memória e história, em constante tensão, contribuíram para a formação de uma identidade pautada nesse acontecimento, que constitui um tema interessantíssimo, embora pouco estudado. Esperamos que este trabalho contribua para um maior conhecimento deste acontecimento tão importante para a história do abolicionismo brasileiro.

3014

Notas: 1

Libertador, Fortaleza, 02 de Novembro de 1882, p. 2. Libertador, Fortaleza, 07 de Agosto de 1883, p. 2. 3 Libertador, Fortaleza, 25 de Março de 1884, p. 1. 4 TODOROV, Tzvetan. A Vida em Comum: Ensaio de Antropologia geral. Tradução Maria Angélica Deângeli, Norma Wimmer, 1ª Ed. São Paulo: EditoraUNESP, 2014, p. 223. 5 Ibidem, p. 32. 6 Ibidem, p. 25. 7 THIESSE, Anne-Marie. “Ficções Criadoras: As identidades nacionais”. Anos 90, Porto Alegre, n. 15, p. 7-23, 2001/2002. 8 GIRÃO, Raimundo. A Abolição no Ceará. 3º Ed. Fortaleza: Secretaria de Cultura e Desporto, 1984, p. 347. 9 Ibidem, p. 95. 10 FERREIRA, Lusirene Celestino França. Nas asas da Imprensa: a repercussão da Abolição da escravatura na província do Ceará nos periódicos do Rio de Janeiro (1884-1855). Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de São João del-Rei, 2010. 11 GINZBURG, Carlo. “História da arte italiana”. In: GINZBURG, Carlo; CASTELNUOVO, Enrico; PONI; Carlo (Orgs) A Micro-história e outros ensaios. Tradução António Narino. Lisboa:DIFEL, 1989. 12 Libertador, Fortaleza, 06 de Agosto de 1884, p. 2. 2

3015

Precisa-se & aluga-se: a dinâmica de trabalho das amas de leite na Primeira República

CAROLINE AMORIM GIL PIBIC FIOCRUZ/UFRJ [email protected]

Orientadora: GISELE SANGLARD Pesquisadora COC/FIOCRUZ [email protected]

Resumo: Este trabalho objetiva analisar a presença da ama de leite na cidade do Rio de Janeiro e a dimensão que ganha seu trabalho na Primeira República. Responsável por uma movimentação econômica se faz importante na compreensão da luta contra a mortalidade infantil, desenvolvida no início do século XX. Através de anúncios publicados no jornal Correio da Manhã, entre 1901 a 1909, buscaremos dimensionar sua presença na cidade, construindo uma cartografia da oferta e procura de amas de leite.

Palavras-chaves: assistência, infância, amas de leite.

Abstract: This work aims to analyze the presence of "amas de leite" in the city of Rio de Janeiro during the First Republic. They are Responsible for an economic movement and important to understand the fight against child mortality that develops in the early twentieth century. Through of the newspaper Correio da Manhã, between 1901-1909, we will seek to observe their presence in the city, building a cartography about supply and demand for "amas de leite" in the city. Keywords: Care, childhood, “amas de leite”

Apoio: PIBIC/Fiocruz Este trabalho tem em vista analisar anúncios de amas de leite presentes no Jornal Correio da Manhã,2 entre os anos de 1901 a 1909. Propomos construir um panorama acerca do emprego e contratação de amas na cidade do Rio de Janeiro. Os anúncios

3016

informam características da mulher a ser empregada, requisitos da família contratante e descrições informadas pela anunciante. Em alguns casos foi possível encontrar o valor de remuneração e, o local de moradia. Quanto a localização das mulheres ofertantes, levamos em consideração não, necessariamente, ter acesso ao seu local de moradia mas a localização de contato para os seus serviços. A análise nos permitiu perceber quais seriam as localidades de demanda da ama, bem como comparar se o público a quem os médicos se dirigiam era o mesmo a empregá-la. Foi possível verificar se a sua utilização ainda se constituía como cultura, estritamente, de elite. A Primeira República (1889-1930) traz mudanças importantes para a cidade do Rio de Janeiro, este período é marcado pela modernidade da luz elétrica, do bonde, do automóvel e das comunicações. A cidade seria, então, palco ideal dos signos da vida moderna. Os primeiros anos do século XX são expressos nas reformas implementadas ao longo do governo de Rodrigues Alves (1902-1906), sob a gestão do prefeito Francisco Pereira Passos. Alguns autores, como Ângela de Castro Gomes, apontam que por sua condição de capital da Corte e mais tarde da República, a cidade teria um “ethos sociocultural”3 materializado nos salões e na representação das ruas. É neste cenário que a criança surge como um projeto de Nação, o combate a mortalidade infantil estaria na ordem das discussões para progresso do país. A procura e oferta se dariam mediante dois termos: “Precisa-se” e “Aluga-se”. São eles que aparecem no jornal demarcando seu emprego. No termo “precisa-se” fica expressamente estabelecida a busca pelo serviço, através de anúncios colocado no jornal por uma família ou pessoa contratante. O termo “aluga-se”, consideramos como a representação da ama que vende sua força de trabalho e colocando sua disponibilidade no jornal a fim de ser contratada. Conhecer o público contratante de amas e aquelas que se destinavam ao serviço parece-nos fundamental para compreender a dinâmica urbana dos primeiros anos do século XX, e os cuidados destinados à infância, em um período em que o combate à mortalidade infantil se mostrava crucial.

3017

A ama de leite no Jornal Correio da Manhã Ao longo da primeira década do Correio da Manhã é possível encontrar, corriqueiramente, a presença da ama de leite integrando suas páginas. Os 356 anúncios encontravam-se assim distribuídos no jornal Gráfico 1: Ama de Leite no Jornal Correio da Manhã, 19011909 (356 ocorrências) 3% 2% 6%

PEÇAS TEATRAIS NOTÍCIAS E ARTIGOS PRODUTOS ANÚNCIOS DE AMA

89%

Fonte: Correio da Manhã, 1901 a 1909. Hemeroteca Digital/FBN Como pode ser observado no gráfico acima, o índice de anúncios relativos à procura e oferta corresponde a 89% das informações. Contudo, outros dados também merecem atenção, sobretudo os 3% referentes a peças teatrais. A figura da ama como personagem nos adverte para a sua representação na vida cotidiana. A ida ao teatro, cultura tipicamente da elite e da burguesia urbana que ascendia na virada do século, demarca aqui a busca por um retrato fiel da sociedade. A representação da ama de leite é um indicativo de sua participação na dinâmica social, a integrar a vida das famílias cariocas, como parte de uma estrutura organizacional. Os 2% de anúncios referentes a produtos se colocam de duas formas: a imagem da ama de leite como aquela que deveria ser substituída pelo leite artificial, a fim de minimizar os riscos de contaminação da mulher e os incômodos de ter uma estranha no seio familiar. E, através de propagandas em favor de produtos para fortificar o leite materno. Os 6% referentes a artigos e notícias congregam desde o relato de uma discussão na rua a notícias como a regularização do serviço de amas mercenárias em São Paulo, que aparentemente não se efetivou.

3018

As formas de emprego da ama de leite: localizações – distritos da cidade do Rio de Janeiro Dos 319 anúncios relativos a oferta e procura, 313 informavam o endereço da família residente em busca da ama, ou da mulher que se dispunha ao serviço. De acordo com o gráfico abaixo o cerne de atuação das amas de leite, fosse para procura ou oferta se encontrava na área central, responsável por abrigar o centro comercial, político e cultural da cidade. A contar tanto com a rua do Ouvidor, apontado por Jeffrey Needell 4 como o reduto das lojas de moda e personificação da vida parisiense brasileira, quanto pela freguesia de Santana, localidade de ex-escravos e das classes populares, cujas moradias se caracterizavam por casas de cômodos e cortiços. Assim se encontram o índice de anúncios por localidades da cidade:

Gráfico 2: índice de anúncios por Localidades 1901-1909 152

23

23

17

15

9

5

5

5

4

4

4

Fonte: Correio da Manhã, 1901 a 1909. Hemeroteca Digital/FBN Além da área central segue em ordem decrescente a presença dos bairros de Botafogo, Tijuca, São Cristóvão, Vila Isabel e Copacabana que representam uma expansão da cidade sobretudo, dos espaços fabris. Centro de trabalho para as classes populares, é possível observar a procura partindo de localidades como Engenho Novo e Méier, subúrbios do Rio de Janeiro, que somente a expansão da malha ferroviária possibilitaria o deslocamento para estes locais; bem como o crescimento das linhas de bondes desde fins do XIX levando mobilidade no interior das freguesias e do próprio crescimento urbano da cidade em direção a zona norte, para as freguesias do Andaraí, Todo os Santos e Cascadura. Esse reordenamento demarca o que Mauricio de Abreu denominou transformação radical na forma urbana da cidade do Rio de janeiro, que se deu a partir do século XIX.5 Sobretudo o ano de 1870 marca a expansão da linha férrea na cidade, 3019

período em que a Estrada de Ferro D. Pedro II aumenta o número de trens para os subúrbios. Os trens permitiram a expansão para além da área central, dos que não podiam arcar com os elevados custos dos terrenos na Glória, Tijuca e Botafogo, e os bondes permitiram o êxodo dos que podiam pagar esse ônus.6

A cidade e os espaços de procura de amas de leite Dos 319 anúncios destinados a oferta e procura de ama de leite, verificamos que 188 correspondem a oferta e 131 a procura, os endereços identificados se colocam deste modo:7

Localidades de Procura de Ama de Leite 19011909 46

19 9

9

7

4

4

4

3

3

3

3

Fonte: Correio da Manhã, 1901 a 1909. Hemeroteca Digital/FBN Como pode ser observado os espaços de procura de ama de leite se adensariam em especial no Centro da cidade, e em bairros que acompanham sua expansão em direção a espaços fabris. Se Botafogo apareceria no cômputo geral como o segundo maior índice numérico de anúncios, seria Tijuca, Vila Isabel, São Cristóvão, Rio Comprido, Maracanã, Andaraí e Engenho Novo, localidades a figurar um relevante contingente que buscava pelos serviços de uma mulher para aleitar a prole. Os dois primeiros concentrariam um reduto significativo de anúncios em busca dos serviços da ama mercenária. Vale destacar serem as duas localidades áreas fabris, espaço da tradicional Fabrica das Chitas, há ao menos quatro anúncios para a localidade de Vila Isabel, na rua Salgado Zenha. “Precisa-se de uma sadia ama de leite com leite de 2 a 4 mezes, paga-se bom ordenado à rua Salgado Zenha n. 7, Fabrica das Chitas”.8, será anunciada três vezes em maio de 1903, alterando o período de leite entre dois e cinco meses. Após alguns anos a Fábrica novamente integraria a lista daqueles que procuravam por uma ama de leite: “Precisa-se de uma boa ama de leite, na rua Desembargador Isidoro, 73, Fabrica das Chitas.”9 3020

Outro espaço seria a Aldeia Campista, integrante do bairro de Vila Isabel, que nasce como espaço fabril, surgindo em fins do XIX para a moradia de operários. “Precisa-se de uma boa cozinheira e uma ama de leite sadia, prefere-se preta; á rua Maxwell n. 14 B, Aldeia Campista.”10 Em 1882 foi promulgado um decreto que isentava de impostos aduaneiros as industrias que construíssem casas populares para seus operários,11 o que Mauricio de Abreu salienta ter sido realizado por muitas delas na década seguinte. Levanta assim a hipótese de que o público contratante de amas de leite, era aquele formado por famílias operárias, uma prática não mais restrita as classes abastadas. Mas, necessária a dinâmica da mulher que precisava se inserir no mercado de trabalho para sustentar ou complementar as finanças de casa. É esta mulher operária que seria foco dos discursos de Fernandes Figueira, e do público atendido pela Policlínica das Crianças, situada em São Cristóvão. São Cristóvão antes imperial, frequentado pela aristocracia estrangeira e a burocracia brasileira, grande rival do bairro de Botafogo na década de 188012, após a proclamação da República sua aparência muda. Passa a ser procurado por indústrias que buscavam localização próxima às ferrovias e ao centro da cidade. A variação salarial é outo fator que chama atenção, nesta freguesia é possível verificar uma variação na oferta salarial para a contratação de amas: em 1903 a remuneração oferecida seria de 70 réis: “Precisa-se de uma ama de leite na Praia de S. Christovao n. 45. Ordenado 70$000.”13 Em 1905 o valor contava com um reajuste: “Precisa-se de uma ama de leite, sadia e sem filhos, na rua de S. Christovão n. A 77; paga-se 90$000 mensaes.”14 Se compararmos com outras localidades as condições de emprego e remuneração ganham uma maior disparidade, variavam entre 35 a 130 réis. Como pode ser verificado a seguir: Botafogo, em 1902, oferecia entre 35 a 40 réis: “Precisa-se de uma ama de leite, pagando se de 35 $ a 40$ e de uma menina de 12 a 14 annos, na Rua Dezenove de Fevereiro n. 47.”15 No ano seguinte uma ama de leite poderia ser alugada no centro da cidade por 100 réis: “Aluga-se por 100$, uma ama de leite, sem filho; na Rua da Assembléa n. 69.” 16 Após dois anos, ainda no centro, nas imediações da praça XI, o serviço poderia ser contratado por 120 réis: “Precisa-se de uma ama de leite. Pagase 120$000 na rua Presidente Barroso n. 64.”17 E, em 1908, na Tijuca, com a exigência da certificação do Ipai, uma ama poderia se empregar por 130 réis “Precisa-se de uma ama de leite, devendo trazer o attestado do dr. Mocorvo Filho, sito à Rua Visconde do Rio Branco n. 12. Paga-se 130$000. Trata-se na Rua Conde de Bonfim 12-D.”18 Para o mesmo ano de 1903 a remuneração da mulher que se empregasse em São Cristóvão poderia ser mais elevada do que aquela contratada em Botafogo, contudo, os 3021

maiores salários estariam concentrados na área central. Mediante a expansão da cidade para os subúrbios a procura poderá ser observada, sobretudo, na proximidade das estações de trens. Maurício de Abreu aponta que desde a segunda metade do XIX a cidade terá um maior contingente de linhas em direção aos subúrbios, este público de residentes de áreas mais afastadas do centro também faria uso da ama de leite e do jornal como meio de divulgação. Demais Localidades de procura de ama de leite Correio da Manhã (1901-1909) Copacabana 2 Estação da Rocha Glória 2 Praça da Bandeira Sampaio 2 Sem Localização Catumbi 2 Localização não identificada Méier 2 Fonte: Correio da Manhã, 1901 a 1909. Hemeroteca Digital/FBN

1 1 1 4

A cidade e os espaços de oferta de amas de leite Dos 188 anúncios destinados a oferta, nos quais encontramos a ama de leite disponibilizando seu serviço no mercado de trabalho, é possível encontrar os mais diversos casos; desde a mulher que acabara de chegar da roça e desejava se empregar, a que o filho havia falecido ou aquela que buscava emprego como doméstica, mas também poderia ser ama de leite. A oferta de amas de leite, na cidade, estaria assim distribuída entre 1901 e 1909:

Localidades de Oferta de Amas de Leite 19011909 107

15

10

7

6

3

3

2

2

2

2

Fonte: Correio da Manhã, 1901 a 1909. Hemeroteca Digital/FBN Espaços como a rua da Assembleia, Praça da República, a Rua do Resende, S. Diogo (na Saúde), Senhor dos Passos, Praia Formosa, Largo do Capim, Senador Pompeu, 3022

por uma dezena de ruas nas proximidades da Central do Brasil, destruída para a construção da Avenida Presidente Vargas, nos anos de 1940’. Um centro que se adensava entre as freguesias da Candelária e a de Santana. A oferta também viria lá para os lados da Rua da Misericórdia, que Joao do Rio diria ser das “hospedarias lúgrubres, a miséria e a desgraça, os corredores bafientos, é completamente lamentável”19. Anúncios também vinham do Largo do Capim “ruas de meeting”20. Demais Localidades de oferta de ama de leite Correio da Manhã (1901-1909) Largo do Machado 1 Ipanema Santa Teresa 1 Catete Sapopemba 1 Leme Maracanã 1 Gávea Engenho Novo 1 Madureira Estácio 1 Sem Localização Flamengo 1 Localização não identificada Rio Comprido 1 Fonte: Correio da Manhã, 1901 a 1909. Hemeroteca Digital/FBN

1 1 1 1 1 5 12

Largo do Machado, Catete, Flamengo e Rio Comprido não serão polos de oferta de amas, assim como o subúrbio não será um espaço marcado pela oferta da atividade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo deste estudo possível perceber que se a procura por amas vai se concentrar em bairros tipicamente fabris, o cerne de oferta será área central. Este dado interfere diretamente da política de sociabilidades e na economia vigente na virada do século. Se os médicos do século XIX estariam preocupados em orientar as mães para que elas não deixassem de amamentar a prole por vaidade, os da virada do século teriam no aleitamento artificial e na maior inserção da mulher no mercado de trabalho dois grandes competidores com o leite materno. Em 1908 na Rua Conde de Bonfim, uma ama poderia receber até 130 réis, período em que a presença de propagandas de leite e farinhas nos jornais já estava consagrada na cidade. Em 1915, a Farinha Láctea Nestle levaria ao seu anúncio21 um cálculo básico demostrando o investimento de uso, com 11 réis era possível comprar uma lata, que dizia garantir 32 refeições, saindo por menos de um vintém por dia. Apesar da disparidade temporal, se uma operária poderia arcar com os custos de uma ama de leite, certamente o leite artificial se mostrava também como uma opção até mais barata. 3023

O público de mulheres que se alugavam como amas estará sobretudo, restrito ao Centro, não pertencerá em massa aos espaços fabris, se o pagamento da ama poderia chegar a 120 réis, o da família contratante certamente haveria de ser maior. Acreditamos assim que as preocupações de Fernandes Figueira, e seus discípulos, se voltam para a conscientização da mulher operária, pois a mesma estava para o que chamam “de copiar os hábitos das mulheres de leite” ao deixar de amamentar seus filhos. O mercado iria se expandir pela cidade, tendo ofertas em diversas áreas assim como procura. Se é a mulher operária que passa a requerer a presença de uma ama no seio familiar, tudo indica que passava assim a ter uma empregada. Tal relação evidencia a não homogeneidade das classes populares, que precisa ter suas diferenciações de poder aquisitivo mais estudadas. A comparação das localidades de oferta e procura de amas de leite nos atenta para uma espécie de inversão de espaços, se o centro, Tijuca e Vila Isabel seriam os maiores espaços de procura de ama de leite, o de oferta estaria concentrado na área central. A área de oferta estaria adensada nas casas de um centro marcado pela Praça da República, a Ladeira do Barroso, e para os lados da Praça XV, de um centro que não estava próspero pelas mudanças urbanas, mas daquele que fora afetado pelas demolições e reordenamentos. Deste modo, o estudo aqui apresentado se constitui apenas como um esboço da presença da ama de leite nas famílias cariocas, que terá efeitos diretos nas políticas sanitárias, econômicas e sociais do período. Se a ama de leite estaria em uma esfera mais baixa que a mulher proletária, podemos afirmar que as operárias tinham condições para arcar com as despesas de uma ama de leite, e podendo arcar com a ama também seria viável o uso do leite industrializado. 1

Este texto consiste em parte das considerações apresentadas no terceiro capítulo da minha monografia, intitulada – “Ama de leite: discurso médico e proteção à infância no Rio de Janeiro da Primeira República”, e o texto apresentado aqui possui o mesmo título do terceiro capítulo. 2 O Correio da Manhã foi um periódico fundado na cidade do Rio de Janeiro em 1901 2, tendo como diretor e fundador Edmundo Bittencourt2. O jornal se comprometia a estar ao lado do povo, e não prezar pela neutralidade na transmissão dos acontecimentos. Garantia ‘defender a causa do povo, do commercio e da lavoura’2, e que sendo assim, já não poderia ser neutro, mas de opinião. 3 GOMES, Ângela de Castro. Essa Gente do Rio. Modernismo e Nacionalismo. Rio de Janeiro, FGV,1999, p.20 4 NEEDELL, J. D. Belle Époque Tropical – sociedade e cultura da elite no Rio de Janeiro na virada do século. São Paulo: Cia. das Letras; 1993. 5 ABREU, Mauricio de. Evolução urbana do Rio de Janeiro.2ª Edição, Rio de janeiro: Jorge Zahar, 1982. p. 35. 6 Ibidem, p.43. 7 Destes dados 18 localidades não foram identificadas. 8 Correio da Manhã. 07 Maio. Anno. III. N. 695. P.05. 1903. [PR_SPR_00130_089842 3024

Edição 00695. (1)] 9 Correio da Manhã. 09 Mai. Anno. VII. N.3.026 P.06. 1907. [PR_SPR_00130_089842 Edição 03026. (1)] 10 Correio da Manhã. 04 Ago. Anno. IV. N.1.148. P.05. 1904. [PR_SPR_00130_089842 Edição 01148. (1)] 11 ABREU, Mauricio de. Op. cit.p.57. 12 ABREU, Mauricio de. Op. cit. p. 45 13 Correio da Manhã. 01 Maio. Anno. III. N. 689. P.04. 1903.[ PR_SPR_00130_089842 Edição 00689. (1)] 14 Correio da Manhã. 09 Set. Anno. V. N.1.521. P.05.1905. [PR_SPR_00130_089842 Edição 01521. (1)] 15 Correio da Manhã. 10 Dez. Anno II. N. 548. P.05. 1902[PR_SPR_00130_089842 Edição 00548. (1)] 16 Correio da Manhã. 16 Fev. Anno III. N. 615, p.03. 1903.[ PR_SPR_00130_089842 Edição 00615. (1)] 17 Correio da Manhã. 15 Dez. Anno. V. N.1.618. P.07.1905.[ PR_SPR_00130_089842 Edição 01618. (1)] 18 Correio da Manhã. 23 Mar. Anno. VIII. N.2.443 P.05. 1908.[ PR_SPR_00130_089842 Edição 02443. (1)] 19 RIO, João. A alma encantadora das ruas. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 2012. p.25. 20 Ibidem, p.27. 21 FON FON 1915. (Acervo: hemerotecadigital.bn ED. 0050).

3025

ARACAJU EM PERSPECTIVA: ASPECTOS DO COTIDIANO DURANTE A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL (1939-1945) Caroline de Alencar Barbosa Graduanda em História na Universidade Federal de Sergipe Integrante do Grupo de Estudos do Tempo Presente (GET/UFS) Bolsista Cnpq do projeto Quando a guerra chegou ao Brasil: ataques submarinos e memórias nos mares de Sergipe e Bahia (1942-1945) Apoio dos projetos Memórias da Segunda Guerra em Sergipe (Pronem, FAPITEC/CNPq) e Quando a Guerra chegou ao Brasil: a submarinos e memórias mares de Sergipe e Bahia (1942-1945), (Edital Universal 2014/CNPq). E-mail: [email protected] Orientador: Prof. Dr. Dilton Cândido Santos Maynard

RESUMO Este artigo tem como objetivo apresentar as alterações no cotidiano da cidade de Aracaju durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Apesar de distante, o clima de guerra foi percebido pelos citadinos, principalmente após os torpedeamentos a navios mercantes brasileiros em agosto de 1942 entre os litorais de Sergipe e Bahia. Desta maneira analisamos de que maneira o espaço urbano foi utilizado e quais as estratégias encontradas para driblar a ordem que se estabeleceu a partir do conflito. PALAVRAS-CHAVE: Aracaju, Cotidiano, Segunda Guerra Mundial.

ABSTRACT This article aims to present the changes in the daily life of Aracaju during World War II (1939-1945). Although far, the war atmosphere was perceived by citizens, especially after the attacks on brazilian merchant ships in august of 1942 between the coast of Sergipe and Bahia. This way we analyze how the urban space has been used and what strategies found to circumvent the order that was established from the conflict. KEYWORDS: Aracaju, Daily life, World War II

3026

Durante o período que compreende a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) a cidade de Aracaju vivenciava o conflito através das páginas dos jornais e das exibições nos cinemas de cine jornais, noticiários que eram apresentados antes das exibições das películas que traziam as novidades sobre a guerra, além dos filmes. O conflito foi percebido como algo distante da realidade e do cotidiano. A partir dos registros de jornais de circulação diária como o “Correio de Aracaju” e “Folha da Manhã”, com enfoque nos anos de 1942 e 1943, analisamos de que maneira os citadinos recebiam as novidades acerca do conflito entre os países Aliados (Estados Unidos, Reino Unido e União Soviética) e do Eixo (Alemanha, Itália e Japão). A primeira pergunta que deve ser esclarecida acerca deste tema se refere à cidade. Como era a Aracaju da década de 1940? Com base na leitura de Mário Cabral percebemos uma capital pacata onde era “quasi nula a vida noturna na cidade” I. Às 22 horas o silêncio tomava conta das ruas desertas, os cinemas fechavam, seus letreiros luminosos se apagavam e os bondes paravam de funcionar às 23 horas. A exceção era a zona do meretrício com o Cassino Bela-Vista, único cabaré da cidade e o Curral conhecido como “Pinga-Sífilis”II, com seus jogos e bebidas. O cotidiano da cidade foi estudado a partir do comportamento social no sentido da utilização dos espaços urbanos através dos registros jornalísticos. A partir deles percebemos as principais formas de lazer e sociabilidade naquele período. Por exemplo, o Carnaval em uma cidade que “sempre teve o espírito carnavalesco”

III

. Além dele temos o São João, a

Noite de Reis, além de bailes dançantes e jogos de futebol. Através dos jornais também analisamos que “O tempo das restrições não poupou as nações que hesitavam em se envolver no conflito, como o Brasil. Antes mesmo de decidir lutar em favor dos Aliados, o país sofreu com a disputa bélica das grandes potências”

IV

. Um

dos fatores que incomodavam e proporcionavam desconforto era a carestia. Donas de casa enviavam suas cartas aos jornais para demonstrar sua insatisfação em relação ao preço dos alimentos de necessidade básica diária. Além disso, os jornais alertavam sobre esse aumento, conforme nota a seguir:

As guerras provocam a carestia, é certo, mas também é certo que muitos produtos sobem de preço sem justificativa alguma, mesmo que se apresente a guerra como motivo. Em tópico anteriormente publicado, registramos a elevação de preço de produtos nacionais, salientando os preços a que atingiram, com grande prejuízo

3027

sobretudo para a economia do homem pobre, produtos de primeira necessidade. O tópico é de 24 de dezembro do ano passado e nele extranhávamos, pedindo as providências dos Gôvernos do Estado e do Município, a falta dos seguintes produtos: carne seca a 6$000 o quilo; - farinha, que subira de 10$000 para 14$000 a terça; - lenha, 4$500 o cento; - arroz, 1$800 e 2$000 o quilo; - e até o “fato de boi”, alimento dos mais humildes, subira de 2$000 para 2$400 o quilo. Os preços acima continuam, afligindo o chefe de família e a dona de casa.V

Contudo, apesar do clima de guerra e da carestia os foliões animavam-se para os festejos carnavalescos. Os clubes como o Cotinguiba, por exemplo, conforme anunciado no Correio de Aracaju em 06 de fevereiro de 1942 não mediria “esforços para a realização de quatro grandes bailes a fantazia, nos dias 14, 15, 16 e 17 de Fevereiro do Carnaval de 1942”. Na análise das notícias referentes ao carnaval desse ano percebemos como a guerra afetou as festividades no que se denominou um “Carnaval sem vibração”

VI

. Apenas no último dia de

folia a praça Fausto Cardoso, localizada no Centro da cidade, viu-se tomada por uma multidão onde os desfiles trouxeram alegria para os aracajuanos. Após o carnaval as notícias sobre os torpedeamentos a navios brasileiros começaram a aparecer em diversas manchetes, causando um sentimento de revolta por parte da população brasileira, inclusive sergipana. O São João daquele ano já se anuncia com tristeza, onde a carestia também se coloca como motivadora para essa sensação de desânimo, pois ela reduz as fogueiras, causa o aumento do preço dos fogos que foram comparados aos dos artigos de primeira necessidade, até os balões são proibidos pela polícia. Por sua vez, “os clubes abrem seus salões para o baile da chita” VII. Essa realidade se modifica em 16 de agosto de 1942 quando diversos navios mercantes brasileiros são torpedeados pelo submarino alemão U-507 nos mares de Sergipe e Bahia. Dentre eles estavam o Baependy, o Aníbal Benévolo e o Araraquara, esse fato altera a visão da população sobre a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) antes percebida como algo distante:

“Uma negra página do nazismo, os torpedeamentos dos navios brasileiros, um após o outro, em frente ao litoral sergipano, causando a morte de dezenas de crianças, mulheres e homens, cujos corpos davam à praia, dias depois, inchados e corroídos, de mistura com mercadoria avariada e destroço do naufrágio”.VIII

3028

A notícia oficial demorou a chegar, pois a imprensa necessitava da autorização do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) para publicar notícias. O DIP “viu-se obrigado a protelar a notícia, de forma a evitar um pânico maior do que acabou sendo gerado”.IX Somente em 18 de agosto, ou seja, dois dias após os torpedeamentos os jornais forneceram esclarecimentos aos cidadãos sobre o ataque do Eixo. Revoltados a população e os estudantes foram às ruas protestar e pedir uma posição do presidente Vargas em relação ao conflito, que declara “O mar é um símbolo da liberdade, e o povo que não defende os seus mares não é digno de viver”. X Esse episódio é considerado, portanto, o estopim para a entrada do Brasil na guerra ao lado dos Aliados. Após o ocorrido, estrangeiros e ex-integralistas declarados foram presos, acusados de espionagem e de auxiliarem os países do Eixo nos torpedeamentos. “Durante dois dias, incêndios e cenas de depredação à propriedade particular dos alemães e italianos, sem que nenhuma força humana se pudesse opor à indignação da alma sergipana”

XI

Um inquérito foi

instaurado pelo chefe de polícia Enoque Santiago para apurar quaisquer atos contra o país. Os jornais alertavam a população para os perigos da quinta coluna:

“Agressão Integralista. Ninguém ignora que Sergipe é um centro de atividades da 5ª coluna (...). Com a eclosão da guerra na Europa, assanhou-se a ância de poder que há muito alimentam os plinistas. Estado onde existem poucos súditos das nações do Eixo, Sergipe tinha que ver a 5ª coluna aqui dirigida e quasi só constituída por integralistas que, segundo se propalava e agora está comprovado, se reúnem constantemente.” XII

Sendo assim, um dos principais motivos para esta pesquisa reside no fato de que poucas cidades americanas sentiram tão de perto os efeitos destruidores da Segunda Guerra Mundial. “Depois de três anos de guerra no continente europeu, Aracaju vivia o fervor patriótico das manifestações populares contra os ataques a navios mercantes, em pleno litoral sergipano”. XIII O episódio dos torpedeamentos e a inserção do Brasil na guerra alterou significativamente o cotidiano da população sergipana que passou pelos blackouts, toques de recolher, recrutamento de reservistas para compor a FEB (Força Expedicionária Brasileira), além dos treinamentos de Defesa Passiva Antiaérea: “Conforme fora ampla e previamente anunciado, realizou-se, ontem nesta Capital o segundo exercício de treinamento de defesa

3029

anti-aérea, promovido pela Diretoria Regional do Serviço de Defesa Anti-Aérea

neste

estado.”XIV A partir desse momento as pessoas encontraram maneiras de driblar esse controle social utilizando os espaços públicos como os clubes, cinemas e praças da cidade como forma de “fugir” daquela realidade modificada pelo envolvimento do Brasil no conflito. Nesse sentido, percebemos através das fontes selecionadas que as festividades típicas foram realizadas. O Natal, que ocorria na praça Tobias Barreto, foi anunciado em 1942 com grande entusiasmo e sentimento patriótico:

“A reportagem da “Folha da Manhã” foi até lá, antes que principiassem os festejos natalinos. E encontrou uma azafama doida, toda gente a postos, uns construindo barracas, outros armando bazares e ainda outros despondo mesas envernisadas para as tradicionais diversões (...).. Já era quase dezesseis horas. Os alto falantes começaram a bradar, relembrando uma canção militar, que concitava os brasileiros para a luta pelo Brasil e pela Vitória.”XV

No ano seguinte aos torpedeamentos percebemos um clima tenso onde os jornais anunciam o aumento em seu custo para os consumidores ocasionado pelo alto valor do papel. Além disso, os negócios locais jogavam com a carestia para divulgar seus produtos, como, por exemplo, o anúncio da venda de livros no Correio de Aracaju em 10 de janeiro de 1943 onde se diz: “O racionamento da gasolina deixou seu automóvel bloqueado, mas o livrocombustível para o espírito- não foi racionado”. Apesar disso, o esporte movimentava a cidade de forma a driblar o clima estabelecido. Os grandes clubes da cidade realizavam seus jogos frequentemente, promovendo a utilização desses espaços de sociabilidade e lazer em Aracaju onde “A cidade toma um aspecto diferente do costumeiro, o povo tem uma grande oportunidade de distrair-se de vez que o futebol forma na primeira linha dos divertimentos preferidos no nosso país”.XVI Em 1943 também podemos perceber os anúncios referentes ao Carnaval, com grandes bailes; Festividades cívicas com grandes fogos de artifício em comemoração a passagem do primeiro ano de governo do coronel Augusto Maynard; Saraus dançantes e festivais, alem das típicas festas juninas. Nesse sentido concluímos que os cidadãos aracajuanos não se limitaram com clima de guerra e continuaram a organizar suas festas religiosas, seus eventos esportivos e suas festividades típicas.

3030

Portanto, esta pesquisa se propôs a analisar de que maneira a cidade de Aracaju vivenciou o cotidiano proporcionado pela Segunda Guerra Mundial (1939-1945) no que diz respeito ao uso dos espaços de sociabilidade e lazer. Percebemos que a historiografia produzida sobre o tema privilegia aspectos de grandes metrópoles como São Paulo e Rio de Janeiro ao se referir ao período . Nesse sentido o projeto produziu novas abordagens a partir de Sergipe e os torpedeamentos de 1942. Dessa forma novas possibilidades de ampliação do tema aparecem ao incluir o Nordeste como uma região propícia para o desenvolvimento de estudos relacionados à Segunda Guerra Mundial. A importância dessa pesquisa consiste portanto em analisar o tema sobre outras perspectivas, além disso, privilegiamos um estudo que não observasse apenas os aspectos referentes à grandes nomes e sim transformando o cidadão comum em protagonista, percebendo como ele movimentava-se na cidade, de que maneira se apropriava dela e quais as suas estratégias para encarar as alterações no cotidiano. Entendemos que o tema não encontra-se esgotado e nesse sentido cabe ao historiador aprofundar-se em novas fontes para ampliar as análises referentes ao tema na historiografia local e assim promover sua inserção na historiografia nacional.

I

CABRAL, Mário. Roteiro de Aracaju. Aracaju: Liv. Regina, 1955, p.73.

II

IBIDEM, p.76. IBIDEM, p.189 IV MAYNARD, Andreza Santos Cruz. “A Batalha Doméstica: Conflitos entre Patrões e Empregadas Durante a Segunda Guerra Mundial”. In. Visões do Mundo Contemporâneo. org. MAYNARD, Dilton Cândido Santos. - v. 1. - São Paulo: LP-Books. p. 123. V (Correio de Aracaju 09-02-1942 Página 3) VI (Correio de Aracaju 18-02-1942 Página 6) VII CABRAL, op. cit., p.194) VIII CABRAL, op. cit, p.(106). IX ASSIS, Raquel Anne; MAYNARD, Dilton Cândido Santos. O fim do mundo começou no mar: os ataques do submarino U-507 ao litoral sergipano em 1942. Navigator,Subsídios Para a História Marítima do Brasil. (ISSN:01001248) Rio de Janeiro, 2013.p.62. X SANDER, Roberto. O Brasil na mira de Hitler: a história do afundamento de navios brasileiros pelos nazistas. - Rio de Janeiro: Objetiva, 2011, p.247. III

XI

CABRAL op.cit., p.260 (Correio de Aracaju 05-06-1942 Página 3)

XII

3031

XIII

CRUZ, Luiz Antônio Pinto. Memória de uma cidade sitiada (1942-1945). Aracaju, 1999, p. 23. XIV

(Correio de Aracaju 07-04-1943 Página 4) (Folha da Manhã 26-12-1942 Página 2) XIV (Correio de Aracaju 26-01-1943 Página 3) XIV

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ASSIS, Raquel Anne; MAYNARD, Dilton Cândido Santos. O fim do mundo começou no mar: os ataques do submarino U-507 ao litoral sergipano em 1942. Navigator,Subsídios Para a História Marítima do Brasil. (ISSN:01001248) Rio de Janeiro, 2013.p.62. CABRAL, Mário. Roteiro de Aracaju. Aracaju: Liv. Regina, 1955. CERTEAU, Michel de. A Invenção do cotidiano. Artes de fazer. Petrópolis, Vozes, 1994, [Tradução: Ephraim Ferreira Alves] CRUZ, Luiz Antônio Pinto. Memória de uma cidade sitiada (1942-1945). Aracaju, 1999. LUCA, Tânia Regina de,. História dos, nos e por meio dos periódicos. In. Fontes históricas. org. PINSKY, Carla Bassanezi. - São Paulo: Contexto, 2005. p. 112-153. MAYNARD, Dilton Cândido S. O Brasil sob ataque: Aracaju durante a Segunda Guerra Mundial. In: Silva, Francisco C., SCHURSTER, Karl. O Brasil e a Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Multifoco, 2010.p.509-535. MAYNARD, Dilton Cândido S. O Brasil sob ataque: Aracaju durante a Segunda Guerra Mundial. In: Silva, Francisco C., SCHURSTER, Karl. O Brasil e a Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Multifoco, 2010.p.509-535. MAYNARD, Andreza Santos Cruz. A Batalha Doméstica: Conflitos entre Patrões e Empregadas Durante a Segunda Guerra Mundial. In. Visões do Mundo Contemporâneo. org. MAYNARD, Dilton Cândido Santos. - v. 1. - São Paulo: LP-Books. p. 123-145. SANDER, Roberto. O Brasil na mira de Hitler: a história do afundamento de navios brasileiros pelos nazistas. - Rio de Janeiro: Objetiva, 2011. SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Enciclopédia de guerras e revoluções: vol II: 1919-1945: a época dos fascismos, das ditaduras e da Segunda Guerra Mundial (19391945)./ Francisco Silva. 1º Ed.- Rio de Janeiro: Elsevier, 2015.

3032

A favela e o meio ambiente sob a ótica do Mutirão de Reflorestamento (1986 – 2000).

Nome: Caroline dos Santos Souza. Título acadêmico: graduando. Orientador: José Augusto Pádua. Instituição: Universidade Federal do Rio de Janeiro.

INTRODUÇÃO: A questão da moradia popular, no Rio de Janeiro foi uma constante procura para a formação da cidade ao longo de todo o século XX. Na virada do século XIX para o XX, a cidade do Rio de Janeiro passou por várias transformações urbanísticas, a mais famosa delas nesse período foi a reforma de Pereira Passos ou, como ficou conhecida a “bota a baixo”, que abriu várias vias no centro da cidade do Rio de Janeiro. Expulso as populações que ali habitavam, em cortiços, passaram a ver nos morros, cada vez mais a solução habitacional para continuarem próximo ao centro. O processo de engenharia social com as populações em áreas em crise de habitação precária no Rio de Janeiro não termina com Pereira Passos. Meio século mais tarde com Carlos Lacerda, em 1964, iniciou-se um processo de desmanches das grandes favelas, que se tinham crescido significativamente com as populações oriundas do êxodo rural nas décadas anteriores essas populações seriam então removidas para os conjuntos habitacionais espalhados em zonas desvalorizadas e afastadas dos grandes centros. Já no final da década de 1980 com o fim da ditadura, as políticas para as favelas tornaram-se mais democráticas e com parcerias entre moradores. Um exemplo disso é o projeto Favela Bairro, que promoveria serviços de urbanização para os moradores das comunidades, como a construção de escolas, praças e recolhimento de lixo. O presente trabalho está analisando algumas políticas recentes de urbanização da cidade do Rio de Janeiro, incluídas no projeto Favela Bairro, dando maior ênfase ao

3033

Projeto de Mutirão de Reflorestamento, iniciado em 19861 e ainda hoje ativa se propõe ter uma política mais democrática e baseada no diálogo através das Associações de Moradores em cooperação com o Estado. Neste texto, pretendo analisar o projeto do Mutirão de Reflorestamento historicamente desde seu início em 1986 a 2000 e seus desdobramentos para chegar as favelas e se estabelecer nelas, porque ele acaba sendo a representação do Estado dentro dessas comunidades. Acredito que dentro desse recorte conseguirei analisar a interação entre comunidade e Estado, e como os representantes do poder público se relacionaram no cotidiano com as comunidades o Estado em um local onde tem presença diminuída. Privilegiando também o impacto ambiental da implantação de um projeto de reflorestamento nas favelas selecionadas pelo projeto, a parte do mutirão remunerado como uma das portas possíveis para o acesso ao mercado de trabalho. Este projeto ainda está em andamento e por isso ainda está sendo analisadas as fontes encontradas na Prefeitura do Rio de Janeiro especificamente na Secretaria de Meio Ambiente e mais designadamente no departamento da Secretaria de Reflorestamento e Recuperação Ambiental que estão disponíveis na internet e as fontes que obtive por entremeio da Gerencia de Reflorestamento. Estas fontes são em grande maioria ofícios que as comunidades fazem para requerir o Mutirão de Reflorestamento, folha de produtividade de homem/hectare ou homem/planta, mapas das comunidades que mostram as áreas de reflorestamento, a tabela de áreas de mudas plantadas, áreas de implantação do mutirão e como são monitoradas e executadas a manutenção desses locais. E também catálogos sobre as plantas da Mata Atlântica. SURGIMENTO DAS FAVELAS NO RIO DE JANEIRO O surgimento da primeira “favela”, já com esta denominação, ocorre no fim do século XIX com a ocupação do Morro da Providência, em 1897, por militares sobreviventes da Guerra dos Canudos, que passaram a tratar tal morro como “Morro da Favela”, em referência a uma planta nordestina com o mesmo nome. 1

SALGADO, Silva. “Mutirão de Reflorestamento” Luis Mario Fujiwara, Neloson Luiz Nouvel Alessio e Marta Ferreira Santos Farah (Org.), Experiências Gestão Pública e Cidadania, SP,1998(p.1).

3034

“Favela é um arbusto típico da caatinga nordestina e muito abundante no sertão de Canudos. Lá havia inclusive um morro com esse nome. Seja porque o morro da Providência se assemelhava ao morro existente em Canudos, seja porque os soldados ali encontraram (ou construíram) algo que lhes recordava Canudos, a verdade é que o morro da Providência passou a ser conhecido na cidade como morro da Favela”.

2

Segundo dados oficiais do Censo de 2010, coletados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), existem 763 favelas na cidade Cerca de 22% da população da cidade do Rio de Janeiro mora em favelas, sendo a capital fluminense o município com o maior número de moradores favelados do Brasil, 1.393.314 habitantes. Em sua região metropolitana, 1.702.073 de pessoas moram em "assentamentos subnormais", a definição do governo para classificar as favelas, o que corresponde a 14,4% da população da metrópole. As favelas cariocas possuem aspectos que as diferenciam das do resto do Brasil. No Rio de Janeiro, esse tipo de moradias precárias instaladas no centro urbano é mais populoso, predominando, em grande maioria, populações instaladas nos morros e as favelas com de mais de mil domicílios. Além disso, existem também os chamados "complexos de favelas", que são aglomerados de vários assentamentos próximos que acabaram por se conurbar3, um fenômeno mais raro no restante do país. Outra característica das favelas cariocas é a sua

proximidade de áreas nobres e centrais, o que cria um forte contraste social como a favela da Rocinha em São Conrado. A CIDADE CONTRA A FAVELA A sociedade brasileira rechaçou a continuidade da política de remoções. Em seu lugar, o tema do direito à cidade e da regularização e urbanização de favelas tornou-se hegemônico na agenda política dos governos e das agências multilaterais. A disputa em torno do controle e da ocupação das encostas então incorpora o campo da política habitacional no da política ambiental.

2

ABREU, Maurício de Almeida. Evolução urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Iphan. RIO, 1997 (p.

45).

3

Conurbação: urbanização extensa na área urbana formada por cidades e vilarejos que foram surgindo e se desenvolvendo ao lado do outro, formando um conjunto.

3035

Isto se deu porque apesar do princípio da não remoção de favelas ter sido consagrados nas legislações urbanísticas elaboradas após a Constituição de 1988, mesmo aquelas mais progressistas – como é o caso do Plano Diretor do Rio de Janeiro – , admite-se a possibilidade de remoção no caso de se encontrarem em “unidades de conservação ambiental” ou “áreas de risco”. O Plano Diretor da cidade do Rio de Janeiro (1992 – Prefeito Marcelo Alencar) consolidou a ideia de um programa global de integração das favelas à cidade. Este plano traz para as favelas uma nova identidade, “a de bairros populares” 4, além da vila urbanizadora. O artigo 147 deste plano define a favela como:

“Área aproximadamente habitacional, caracterizada por ocupação da terra por população de baixa renda, precariedade da infraestrutura urbana e de serviços públicos, vias estreitas e de alinhamentos irregulares, lote de forma e tamanho irregular e construção não licenciada, em desconformidade com os padrões legais”.5

A definição e a delimitação dos perímetros destas áreas tornam-se, assim, um elemento crucial para o destino das comunidades de favelas localizadas em encostas ou margens de corpos hídricos, pois podem determinar sua permanência ou remoção. Em um primeiro momento, ao definir as encostas como áreas a serem protegidas, a legislação ambiental acabou por facilitar sua ocupação pelos pobres,

face

ao

desinteresse do mercado imobiliário. Em um segundo momento, porém ela proporciona uma nova justificativa para a contenção ou mesmo a remoção destes assentamentos informais. À delimitação administrativa das unidades de conservação ambiental soma-se a difusão da percepção – legitimada pelo discurso técnico-científico – de que a favela constitui um risco para a coletividade, seja pela possibilidade de ocorrência de desastres naturais, seja pelas características próprias da ocupação – como a falta de saneamento e

4

BURGOS, M. Dos Parques Proletários ao Favela-Bairro: As políticas públicas nas favelas do Rio de Janeiro. In: ZALUAR,A e ATILIO,M. Um Século de Favelas. Rio de Janeiro. Ed Fundação Getúlio Vargas. 1ºed.1998. 5

BURGOS, M. Dos Parques Proletários ao Favela-Bairro: As políticas públicas nas favelas do Rio de Janeiro. In: ZALUAR,A e ATILIO,M. Um Século de Favelas. Rio de Janeiro. Ed Fundação Getúlio Vargas. 1ºed.1998(p.48).

3036

a elevada densidade populacional –, enquanto fatores de degradação do meio ambiente urbano. A ocupação humana constitui o fator decisivo da origem e aceleração dos processos erosivos. Deflagrados pela ocupação do solo, os processos erosivos passam a ser comandados por diversos fatores naturais relacionados as características da chuva, do relevo, do solo e da cobertura vegetal.6

O COMEÇO DO MUTIRÃO A cidade do Rio de Janeiro tem vivenciado a experiência de executar obras públicas com a utilização de mão-de-obra das comunidades carentes desde o início da década de 80. O Projeto Mutirão Reflorestamento nasce do Projeto Mutirão implementado pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social. Até 1985, as obras estavam limitadas ao esgotamento sanitário, à drenagem e à construção de escadarias em favelas. Inicialmente o Mutirão não era remunerado, ficando além das expectativas e necessidades no que se refere aos resultados e à qualidade: o trabalho voluntário apenas nos fins de semana não rendia aquilo que se esperava. A partir desta constatação do poder público começou a se preocupar em criar frentes de trabalho para as comunidades carentes, que eram características das áreas de intervenção. Surge, então, o mutirão remunerado. E já nessa condição, que em novembro de 1986 é criado o Mutirão Reflorestamento, como descreve S. Barboza: A partir de 1984, os trabalhadores envolvidos no

Projeto

Mutirão

passam a ser remunerados e, em 1986, é criado um desdobramento do programa, voltado para a contenção de encostas, a recuperação e regularização das nascentes e mananciais, a limitação da expansão das comunidades em áreas de risco e a recomposição paisagística.7

6

SALOMÃO, F. X. T. e IWASA, O. Y. Erosão e a ocupação rural e A. R. Atuação da Cobertura Vegetal na Estabilidade de Encostas: Uma Resenha Crítica. São Paulo: IPT, publicação nº. 1074 p.31-57, 1995.

7

BARBOZA, S. C. Políticas e programas habitacionais no município do Rio de Janeiro: uma avaliação da experiência (1979-2002). Niterói: Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Universidade Federal Fluminense, 2013( p. 72-73).

3037

Primeiramente, há a consciência e a organização da população das áreas de intervenção. As associações de moradores de favelas têm um peso significativo na realização do conjunto de obras oferecidas aos seus residentes. A pressão das comunidades organizadas sobre os poder público mostra-se decisiva. Isso vale para todos os empreendimentos realizados nessa época pela Prefeitura, com a participação da comunidade. No caso específico do Projeto Reflorestamento, outra força atua sobre a vontade do Estado. A topografia, o relevo e as muitas tragédias causadas por deslizamentos ensinam aos moradores que o desmatamento é um dos grandes fatores e causa desses problemas vivenciados por eles nos morros o qual residem. A iniciativa do mutirão buscava solucionar, basicamente: a precariedade do padrão de habitualidade das populações alvo, a carência de ações em prol de gerações de renda e combate à pobreza, instabilidade das encostas geradora de áreas de risco geotécnico, progressivo desaparecimento de áreas florestais. As questões sociais inerentes às populações faveladas constituem o outro foco de atenção do mutirão de reflorestamento a criação das frentes de trabalho é também prioridade no sentido da geração de renda e oferta de ocupação nas áreas carentes.

8

O objetivo era a promover a extensão de serviços públicos

a

comunidades faveladas. A participação da comunidade, no processo de planejamento e de implementação das ações, era considerada uma das peças chaves desse projeto.9

O recrutamento da mão de obra do mutirão se dá com as pessoas da comunidade e depois existe um treinamento para elas fazerem parte do mutirão, contudo tais pessoas são em grande maioria moradores da própria favela e aposentados, que veem no mutirão uma forma de complementar renda, e jovens, que estão iniciando no mercado de trabalho. 8

RODRIGUES, P. H. A. Extensão dos serviços públicos às comunidades de baixa renda do município do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IBAM/CDM, 1988(p.123).

9

RODRIGUES, P. H. A. Extensão dos serviços públicos às comunidades de baixa renda do município do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IBAM/CDM, 1988.

3038

Este trabalho se torna um biscate para obter renda, porém alguns desses trabalhadores vão se organizar e criar cooperativas que irão fazer a manutenção desses locais de reflorestamento ou prestar serviço a empresas de paisagismo. São objetos do mutirão: áreas desmatadas de encostas, com forte declividade, sujeitas à ocorrência de escorregamento ou rolamento de blocos

rochosos,

representando riscos às comunidades, áreas próximas à comunidade carente, organizadas em associações de moradores, áreas que compõem bacias hidrográficas sujeitas a enchentes, assoreamentos de rios e canais de drenagem, e áreas de risco, sujeitas à expansão das comunidades por moradias de baixa renda. A produção de mudas ocorre no Centro de Produção de Essências Florestais, na Fazenda Modelo, que conta com sala para beneficiamento laboratório e câmara para armazenamento de sementes. O objetivo do projeto é restaurar a cobertura florestal visando à recomposição do ecossistema original. Em todas as áreas reflorestadas, os limites estabelecidos entre estas e a construção de moradias permanecem intactos, não havendo a expansão da comunidade sobre áreas de risco. “Um

dos

objetivos

dos

programas

de

reflorestamento:

conter

deslizamento, recuperar matas degradadas, regularizar a vasão dos rios e nascente, controlar a erosão e descarga de sedimentos que são levadas para a área de drenagem;.... A escolha das áreas a serem a serem beneficiadas com a recomposição vegetal segue este critério: estabilidade e presença de blocos, tipos de solo, declividade, áreas de bacias hidrográficas, áreas contribuintes para inundações, preservações de mananciais,...”10

FASES E MÉTODOS DO PROJETO O reflorestamento de qualquer área envolve a implantação e a manutenção, sendo que a primeira é realizada basicamente em um ano. Vem, então, a fase de manutenção, cuja duração média é de três anos; ou seja, até que a cobertura florestal ocupe toda a superfície do solo e este esteja totalmente protegido. A metodologia para que isso ocorra envolve as etapas preliminares (como a formulação de critérios para a seleção das áreas,

10

TELLES, V. Pobreza e cidadania: precariedade e condição de vida In: Martins, H de Serviço Social e Ramalho. J. R. (Orgs) Terceirização - diversidade e negociação no mundo do trabalho, São Paulo: Editora HUCITEC CEDI/NETS, 1994.

3039

a elaboração de projetos e a articulação comunitária, e também a formação da equipe de mutirão); a produção de mudas; a implantação e a manutenção. De acordo com as diretrizes do Programa Favela-Bairro — iniciado com a realização de um concurso público de metodologias para intervenção em comunidades faveladas, promovido pelo Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB RJ) –, as principais ações destinadas a promover a integração das favelas ao tecido urbano em que se inserem deveriam: “complementar ou construir a estrutura” urbana principal; oferecer condições ambientais para a leitura da favela como um bairro da cidade; introduzir os valores urbanísticos da cidade formal como signo de sua identificação como bairro: ruas, praças, mobiliárias e serviços públicos; consolidara inserção da favela no processo de planejamento da cidade; programar ações de caráter social, implantando creches, programas de geração de renda e capacitação profissional e atividades esportivas, culturais e de lazer; promover a regularização fundiária e urbanística.

11

Segundo dados da secretaria do meio ambiente do Rio de Janeiro (SMAC), através do programa foram reflorestados aproximadamente 1.700,00 ha, atendendo a 116 comunidades distribuídas pela cidade. Dos 116 projetos, 77 estão em fase de manutenção, possuindo quatro equipes de manutenção atendendo 13 comunidades, 39 em fase de implantação. O programa também conta com equipes de agentes ambientais, quatro unidades de produção de mudas e uma equipe de coletas de sementes. O total de mudas implantadas no programa mutirão de reflorestamento é superior a quatro milhões. CONSIDERAÇÕES FINAIS: Apesar desse trabalho ainda estar em seu início à análise do trabalho sobre o Mutirão de Reflorestamento tem se apresentado como algo de muita importância, pois ele é resultado de uma ação de atividade comunitária em que as comunidades buscam junto ao Estado soluções que vão ter como desdobramentos ambientais, trabalhistas e políticas sociais. No campo das políticas sociais irei estruturar como essas comunidades são selecionadas para participarem do mutirão se são pelos hectares de mata nativa, índices 11

PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO. Edital do Concurso Favela- Bairro. Rio de Janeiro, 1994.

3040

de violência nas comunidades, apoio da Associação de Moradores ou a interação dos técnicos da prefeitura com a comunidade e como tal participação altera a dinâmica comunitária. Já no âmbito ambiental avaliarei o sucesso do mutirão através dos índices de deslizamentos, rolamentos de rochas, enchentes, etc. das zonas onde foi executado o reflorestamento. Com isso utilizarei de hipótese o sucesso ambiental do Mutirão de Reflorestamento na prevenção de rolamentos de rochas, enchentes e acidentes ambientais muitos comuns ainda hoje em região de comunidades carentes que se localizam com encostas de morros. E por fim na esfera trabalhista irei observar a passagem do mutirão de atividade voluntária para o mutirão remunerado proposta pelo Estado e quais os efeitos dessa passagem na vida das pessoas que têm contato direto com tal atividade. Considerando o mutirão remunerado uma abertura para o mercado de trabalho para os jovens, uma ocupação funcionou remunerada ou até um complemento de renda para os aposentados, mas impacto limitado e em pequena escala dentro da comunidade. Assim este trabalho mostrou de forma inicial as principais questões que permeiam o projeto do Mutirão de Reflorestamento feito pela Prefeitura junto as Associações de Moradores que ajudam a manter e a recompor a Mata Atlântica no Rio de Janeiro, a criar novas formas de trabalho dentro das comunidades e a criar uma nova relação entre Estado e comunidade. BIBLIOGRAFIA: ABREU, Maurício de Almeida. Evolução urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Iphan. RIO, 1997. 156 p. BURGOS, M. Dos Parques Proletários ao Favela-Bairro: As políticas públicas nas favelas do Rio de Janeiro. In: ZALUAR,A e ATILIO,M. Um Século de Favelas. Rio de Janeiro. Ed Fundação Getúlio Vargas. 1ºed.1998. BARBOZA, S. C. Políticas e programas habitacionais no município do Rio de Janeiro: uma avaliação da experiência (1979-2002). Niterói: Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Universidade Federal Fluminense, 2013. LEFEBVRE, Henri. Da Cidade à Sociedade Urbana. In. A Revolução urbana. Belo Horizonte, Ed. UFMG, 1999.

3041

RODRIGUES, P. H. A. Extensão dos serviços públicos às comunidades de baixa renda do município do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IBAM/CDM, 1988. SALOMÃO, F. X. T. e IWASA, O. Y. Erosão e a ocupação rural e A. R. Atuação da Cobertura Vegetal na Estabilidade de Encostas: Uma Resenha Crítica. São Paulo: IPT, publicação nº. 1074 p.31-57, 1995. TELLES, V. Pobreza e cidadania: precariedade e condição de vida In: Martins, H de Serviço Social e Ramalho. J. R. (Orgs) Terceirização - diversidade e negociação no mundo do trabalho, São Paulo: Editora HUCITEC CEDI/NETS, 1994. PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO. Edital do Concurso Favela- Bairro. Rio de Janeiro, 1994. SEDREZ, Lise. Natureza urbana na América Latina: cidades diversas e narrativas comuns. In. Novas histórias Ambientais da América Latina e do Caribe. Org. Leal, Claudia; Pádua, José Augusto; Soluri, John, Deutsches, Ed. LMU, 2013.

3042

CELIBATO CLERICAL: A BIOPOLÍTICA NO IMPÉRIO DO BRASIL (1822-1831) Claudio da Silva Costa Graduado em História Universidade Veiga de Almeida Orientadora: Vera Lúcia Moraes [email protected] Resumo: Este trabalho faz um estudo sobre a questão do celibato clerical no Primeiro Reinado do Império brasileiro, tendo como objetivo fazer uma reflexão sobre a sexualidade e a política na sociedade oitocentista; além de oferecer uma discussão sobre a relação entre a Igreja e o Estado sob a ótica do padroado. A pesquisa é permeada pelo conceito de biopolítica, e as fontes da pesquisa são os opúsculos redigidos pelo padre Diogo Feijó, nos quais defendia a abolição do Celibato Clerical. Palavras-Chave: Religião; Estado; Biopolítica. Abstract: This work is a study on the issue of clerical celibacy in the First Empire of the Brazilian Empire, aiming to reflect on sexuality and politics in nineteenth-century society; and offers a discussion of the relationship between church and state from the perspective of patronage. The research is permeated by the concept of biopolitics, and research sources are the booklets written by priest Diogo Feijó, in which advocated the abolition of celibacy Clerical. Keywords: Religion; State; Biopolitics.

INTRODUÇÃO O presente trabalho através de um processo de análise sobre o documento redigido pelo padre Diogo Antonio Feijó, no qual expõe o seu motivo para a abolição do celibato clerical, tem como objetivo refletir sobre sexualidade e política no limiar do Império do Brasil (1822-1831). Este estudo histórico açambarcará visões interdisciplinares como a filosofia, a psicologia, a teologia e a sociologia, a fim de granjear uma acurada intelecção do tema proposto. A análise do texto de Feijó e das outras fontes coadunadas neste sistema investigatório compreenderá a tríade instrumental elencada por Barros i e que compreende o intratexto, o intertexto e o contexto. Em uma explicação simplificada têm-se o intratexto como o objeto de significação, verificando os aspectos internos do texto; o intertexto como a relação de um texto com outros textos; e o contexto como a relação do texto com a realidade a que está inserido.

3043

O padre Diogo Antonio de Feijó ficou conhecido pela sua atuação como senador, Ministro da Justiça, e principalmente, como Regente do Império do Brasil entre 1835 e 1837, na denominada Regência Una de Feijó. Sua participação na Assembleia, como deputado, foi bastante intensa, Feijó desenvolveu vários projetos que abarcavam variados segmentos como educação, tratamento dos índios, dos pobres e dos escravos, e até, novas leis civis. Além destes projetos, houve um tema que gerou muita polêmica, pois afetava as diretrizes da igreja: O celibato clerical. Feijó posicionava-se seguindo os princípios liberais e, mesmo sendo padre, assumia uma atitude regalista perante a Igreja; por isso, aproveitando a iniciativa materializada no projeto do deputado Antônio Ferreira França, em 1827, que propusera a abolição do celibato clerical, Feijó realizou um voto separado, apoiando o projeto do deputado. Mais tarde, em 1828, escreveu um opúsculo que detalhava com intensa acuidade e propriedade as justificativas para o fim do celibato dos clérigos. O desenvolvimento deste estudo se inclina a uma compreensão amalgamada à História Política ao localizar no celibato clerical um constructo ideológico ligado à biopolítica, ou seja, a uma política gestora da vida e dos corposii. A ingerência da História Política nesta pesquisa não engessa o seu desenvolvimento, pois não está atrelada a história política do factual, do événementielle, das grandes personagens, do reducionismo e da unilateralidade; mas, sim, de uma nova história política que Rémondiii atribui a um contato com as outras disciplinas como psicanálise, sociologia, lingüística, direito público entre outras. Este trabalho está inserido nesta proposta de uma nova História Política que dimensiona esta pluridisciplinaridade com a finalidade de atingir um maior entendimento do estudo aventado e uma profundidade de discussão que granjeie melhores resultados.

FEIJÓ, POLÍTICA E PADROADO Ao começar a escrever uma breve biografia do deputado, um fato já se torna relevante para a compreensão do estudo da obra de Feijó: a questão da data do seu nascimento. Feijó, ainda bebê, foi deixado à casa do padre Fernando Lopes Camargo e batizado na Sé de São Paulo, em 17 de agosto de 1784; por esse motivo é impossível precisar a data de nascimento de Antônio Feijó.

3044

Feijó depois de passar um tempo dando aulas de latim e português, conseguiu ser ordenado padre, em 1805. Feijó conseguiu se tornar um padre secular, ou seja, um clérigo que foi aprovado em exames civis, mas que seguia as normas estabelecidas pela Santa Sé, uma das normas impostas era o impedimento de contrair matrimônio. Ele se integrou à delegação brasileira eleita em 1821 para participar da reunião das Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa em Lisboa. Em 1826, iniciou-se o funcionamento do Parlamento brasileiro e Feijó ocupou uma vaga de suplente do deputado José Feliciano Fernandes Pinheiro que fora indicado para o Senado. Logo, o padre foi eleito para as comissões de Instrução pública e Negócios Eclesiásticos da Câmara Federal e sua atuação suscitou polêmicas devido as suas propostas ousadas. No entanto, a proposta mais discutida, e tema do presente trabalho, foi a tentativa de abolição do celibato clerical. Mas, antes de adentrar neste tema, vale, a seguir, compreender o cenário político no início do império brasileiro. No início do século XIX, o recente Império do Brasil passava por um turbilhão de acontecimentos. A emancipação política do Brasil foi realizada em 1822, porém, este processo não foi fácil e imediato, não houve uma aceitação de todo o território brasileiro. A Bahia, o Piauí e o Maranhão foram províncias hostis a emancipação por manterem fortes ligações com Portugal, demonstrando a dificuldade de efetivar a independência em todo o recente Império brasileiro. A emancipação política do Brasil necessitava do reconhecimento internacional e para isso utilizou a perícia de diplomatas que não mediram esforços para conseguir os objetivos. A primeira nação a reconhecer a independência do Brasil foi a República dos Estados Unidos da América, em 1824 e, em uma sequência morosa, outros países mimetizaram o ato dos Estados Unidos. No Brasil, a Constituição de 1824, embora tenha sido considerada de influência liberal, é um exemplo da particularidade do liberalismo praticado no Estado brasileiro. D. Pedro I mantinha o controle através do poder moderador de maneira despótica. Deve-se lembrar que a constituição de 1824 foi outorgada, ou seja, imposta pelo Imperador, pois D. Pedro I dissolveu a Assembleia Constituinte, em 1823, impedindo que os deputados redigissem a Carta Magna.

3045

Um detalhe que não pode ser negligenciado é que entre os que compuseram a Assembleia constaram “vários sacerdotes, fato nada surpreendente num país em que a Igreja havia tido o monopólio da cultura e o clero sempre desempenhara papel importante na administração”iv. A importância da relação Estado-Igreja no Império brasileiro consubstanciada no padroado releva a ingente influência que a religião tinha no contexto político. O padroado, como definição, consiste em uma “troca de obrigações e de direitos entre a Igreja e um indivíduo, ou instituição, que assume assim a condição de padroeiro” v. No começo, o padroado favorecia a Igreja, no entanto, essa lógica se inverteu, pois, de um benefício cedido da igreja, o direito de padroado se transformou em um veículo de dominação aplicado pelo Estado para controlar, inclusive, as funções da própria Igreja. Ao Imperador, como chefe do Executivo, cabia a atribuição segundo o artigo 2, inciso II da Constituição de 1824 “nomear Bispos, e prover os benefícios eclesiásticos”.vi Este constructo religioso foi preservado com o claro intuito de preservar a ordem moral da sociedade, e principalmente, garantir que a igreja ficasse sob a égide do Estado. A instituição do padroado no Brasil após a independência precisava de uma validação da Santa Sé, para esse intento o Imperador enviou o Monsenhor Francisco Corrêa Vidigal, que além da relevante tarefa de transferir para D. Pedro I o grão-mestrado da Ordem, que pertencia a D.João VI, e o poder do padroado régio, tinha a missão de negociar o reconhecimento da emancipação do Império do Brasil. Vidigal conseguiu em 25 de janeiro de 1826, após uma espera de dois anos o reconhecimento pela Santa Sé da independência brasileira, mas só depois que Portugal ter feito o mesmo em 1825.

RELIGIÃO E CELIBATO A religião em sua própria constituição mantém um poder simbólico que é, ao mesmo tempo, político e religioso. O Estado cônscio desse poder simbólico emanado da religião utiliza os seus elementos de inculcação para a manutenção do status quo, pois, segundo Bourdieuvii, a religião contribui para uma preservação da ordem simbólica, através da ordem lógica ligada a política, manejando para isso um aparato disciplinar ritualístico. O cristianismo desenvolveu uma doutrina bem severa em relação à administração do corpo e ao seu uso sexual, o que ocasionou um constante conflito entre o corpo, entendido

3046

como carne, e o espírito. O corpo resignado, controlado e manipulado era o objetivo a ser alcançado. O celibato, por isso, era exaltado e incentivado. A exigência do celibato na Igreja Católica iniciou-se no Concilio de Elvira em 306, os concílios eram um instrumento de homogeneização das múltiplas tendências cristãs que abundavam na época. Neste Concílio de Elvira os bispos proibiram a união marital entre os religiosos, porém, esta determinação era restrita à localidade que hoje chamamos de Espanha, A confirmação do celibato como exigência primordial ao clero foi realizada no Concílio de Trento (1545-1563). No início do Brasil independente o assunto celibato clerical foi abordado por um viés notadamente liberal na recente criada Assembleia legislativa, tendo como um tenaz defensor o padre Diogo Antônio Feijó. Feijó pertencia a um grupo de clérigos que alguns estudiosos como João Alfredo de Souza Montenegroviii e Françoise Jean de Oliveira Souzaix denominam como católicos liberais, este grupo além de discutir a abolição do celibato para os clérigos, propusera “ a extinção das ordens religiosas e a proibição da entrada de frades estrangeiros, uma vez que estes eram considerados como defensores das pretensões teocráticas do Papa e, logo, uma ameaça a soberania brasileira”.x Este clero liberal pendia para uma configuração regalista que dimensionava uma nacionalização da Igreja católica e a autonomia do Estado nos assuntos eclesiásticos.

SEXUALIDADE, SOCIEDADE E AS IDEIAS DE FEIJÓ Caracterizar a sociedade no Império oitocentista brasileiro, em suas relações privadas, requer um mergulho na sexualidade atávica dos indivíduos que a compõe. Como o presente trabalho pretende desnudar as implicações que envolvem a sexualidade com a política, tornase mister percorrer os segredos de alcova presentes nesta sociedade. Segundo Del Priori xi, o século XIX ficou marcado pelo signo do adultério, começando pela mãe de D. Pedro, Carlota Joaquina Teresa Caetana de Bourbon y Bourbon, que manteve vários casos amorosos. D. Pedro herdou a concupiscência dos pais, e mesmo estando casado com a princesa Leopoldina Carolina, envolveu-se em várias aventuras sexuais, a mais conhecida e que gerou mais perturbações políticas foi o seu relacionamento com Domitila de Castro Canto e Mello, que passou para a história como a Marquesa de Santos.

3047

Estes exemplos de incontinência vindos da corte imperial demonstram o espírito da época, evidentemente, tais atos não se restringiram a elite monárquica. O cenário de imoralidade que grassou da coroa às camadas mais humildes, estendeu-se aos clérigos. Era comum que se encontrassem padres que tivessem mulher e filhos; José Bonifácio de Andrada e Silva, um dos responsáveis pela independência do Brasil, teve um irmão padre que tivera dois filhos. A concupiscência flagrante da sociedade encontrou consonância nesta postura imoral praticada por representantes do clero configurando um cenário transgressor e dissimulado, em que a sexualidade permeava as relações políticas, jurídicas e sociais do Império. Neste estudo a sexualidade está intrinsecamente ligada à questão do corpo e ao seu uso na dicotômica relação Estado-Igreja. Há várias formas de se abordar o corpo, o corpo abarca várias interpretações que deslocam as possibilidades do seu uso e da sua existência. O corpo reflete as ingerências culturais, políticas, sociais e psicológicas definidas por cada sociedade, pois, como diz Marcel Maussxii, cada sociedade possui hábitos que lhe são característicos. Sob este prisma em que o controle, as interdições e a coerção são instrumentos que moldam, configuram o corpo em uma realidade que também é mutável – pois, cada época elege padrões que podem distar de uma geração a outra – temos o corpo disciplinado. A religião e a sexualidade entram neste estudo como elementos que se relacionam, dialeticamente, fomentando a discussão do corpo disciplinado, o corpo mesmo que em conflito de desejos se conforma a um padrão. Este conflito gerado, principalmente, pela normatização da sexualidade no espaço da religião pode ser explicado pelos conceitos do princípio de prazer e do princípio da realidade, no qual o primeiro representa os instintos mais básicos, ligados ao prazer, a satisfação imediata e a ausência de repressão, enquanto o segundo privilegia o oposto, a restrição do prazer, o adiamento da satisfação e a segurança sob o efeito da repressão. A proposta de Feijó se alinhou a um discurso de mitigação entre o embate do princípio de prazer e do princípio da realidade, pois, ele percebeu que a exigência da ausência de conjunção carnal suscitou a imediata transgressão à norma estipulada pela igreja; a interdição do corpo não contribuiu para a representação de uma moralidade pretendida, pelo contrário só fomentou escândalos e descrédito do clero diante da sociedade. O primeiro movimento de Feijó defendendo o fim do celibato clerical na Câmara, o voto separado, foi articulado após o parecer do deputado Antonio Ferreira França, em 1827,

3048

que pedia o fim do celibato para os padres. A resposta foi imediata e conduzida pelo também padre Luis Gonçalves dos Santos, mais conhecido como Padre Perereca. Esta admoestação realizada pelo padre Luiz Gonçalves obteve uma reação à altura de Antonio Feijó com um opúsculo, Resposta ás Parvoices, Absurdos, Impiedades e Contradisões do Sr. Padre Luis Gonsalves dos Santos na sua intitulada defesa do celibato clerical contra o voto separado do Padre Diogo Antonio Feijó, Membro da Comissão eclesiástica da Camara dos Deputadosxiii. O debate prosseguiu não só envolvendo os padres Feijó e Santos, mas também contou com a interferência, em apoio ao Padre Perereca, do Bispo Romualdo Antônio de Seixas, do frei Antonio Dias, que pertencia a Ordem de São Francisco, e do senador José da Silva Lisboa, o Visconde de Cairu. Segundo Limaxiv , os liberais do qual Feijó fazia parte, dentro de uma proposta regalista, seguiam uma postura hostil a Santa Sé com um discurso que previa a autonomia do Estado nos assuntos eclesiásticos, funcionalizando o clero. Feijó foi criticado pelo padre Santos, por ter essa inclinação liberal. Na obra Demonstração da necessidade da abolição do celibato clericalxv, publicado em 1828, Feijó ao discorrer sobre o seu tema desenvolve algumas proposições. Na primeira ele afirma que o matrimônio está sob a égide do poder temporal, pois se indivíduos contraem matrimônio só pela autoridade civil, sem a benção eclesiástica, este casamento é considerado válido. E este atributo se manteve constantemente atrelado a disposição do soberano, fato este que encontra concordância desde os primórdios da igreja cristã. Outro ponto nesta primeira proposição é a afirmação que confere o concílio de Trento como um instrumento de contraataque as idéias da reforma protestante. Na segunda proposição, Feijó sustenta que o impedimento do casamento aos padres desobedece à ordem de natureza humana, e contraria a vontade de Deus. Tomando isto como referência, ele considera uma injustiça a proibição do matrimônio para os padres. Feijó também expõe a inutilidade do celibato argumentando que quem se dispõe ao celibato voluntariamente o faria embasado ou não por uma lei, e que esforços para se manter continente por obrigação são debalde. Outro ponto de relevância na argumentação reside em sua alegação que o celibato dos padres não é de instituição divina nem apostólica. Evidentemente, que estas argumentações foram refutadas ardorosamente pela ala ultramontana e por conservadores como José da Silva Lisboa, que rebateu a proposição da instituição do celibato não ser nem divina e nem apostólica, afirmando que “Para se dever

3049

guardar, basta que seja de antiga Lei Disciplinar da Igreja Catholica, estabelecida pela Legitima Authoridade de SummosPontifices e Concilios (...)”xvi. A querela em torno do celibato clerical não se extinguiu com a derrota de Feijó, prosseguiu ainda com o próprio Feijó já na condição de Ministro da Justiça em 1831, porém, todo este emaranhado de proposições e refutações remetem a reflexões mais complexas, resultando em uma análise da administração da vida e da sexualidade tanto do clero quanto dos leigos. O embate entre as duas propostas de uso do corpo dos clérigos, na verdade, permeiam a compreensão de um discurso político, evidentemente, considerando que há outros vieses que podem ser abordados.

BIOPOLÍTICA Havia uma intencionalidade e um cálculo com diferentes perspectivas sobre o celibato clerical, sendo este um instrumento de potencialização e de reafirmação da Igreja Católica. O celibato clerical por este viés está enquadrado em uma manipulação da vida, ou seja, em um processo que se configura como biopolítica. Segundo Foucault “deveríamos falar de ‘biopolítica’ para designar o que faz com que a vida e seus mecanismos entrem no domínio dos cálculos explícitos, e faz do poder-saber um agente de transformação da vida humana(...)”xvii. Michel Foucault associa o gerenciamento do corpo a uma lógica de política moderna, ligando, desta forma, a biopolítica ao nascimento do Estado Moderno e entendendo o corpo não no âmbito individual, mas na esfera populacional. Avançando pelo conceito de biopolítica, o filósofo italiano Giorgio Agamben, estende o campo de ação temporal da biopolítica, colocando-a não só a partir do século XVII, quando se desenvolveu o poder sobre a vida, como afirma Foucault, mas fazendo-a presente desde o início da política ocidental. Agamben encaminha o seu estudo sobre a biopolitica, prosseguindo com as análises desenvolvidas por Foucault, que o filósofo italiano alega não ter caminhado ao “local por excelência da biopolitica moderna: a política dos grandes Estados totalitários do Novecentos”xviii. Agamben ao trabalhar assuntos como campo de concentração, direito e eugenia, aproxima a biopolítica à tanatopolítica, que consiste em um poder gerencial sobre a morte de cada indivíduo, realizando uma associação com o poder soberano. Esta pesquisa utiliza o conceito de biopolitica ajustando-o às duas propostas, não como se deitasse no leito de Procusto, mas embrenhando o estudo na interseção dos dois

3050

filósofos, a fim de conseguir o máximo de intelecção sobre o celibato clerical, considerando as ligações concernentes até aqui expostas. A bioplítica, deste modo, é entendida neste trabalho como um mecanismo bem ajustado de administração arregimentado por instituições, capaz de gerir sobre a vida, instalando nos corpos padrões que sirvam a afins específicos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Feijó, ao propor a abolição do impedimento dos padres casarem, e os opositores dele, ao se declararem favoráveis a manutenção da Lei do Celibato Clerical participaram, simultaneamente, da mesma lógica da biopolítica. Há, em cada defesa de ponto de vista, um mecanismo inconfesso de utilização das possibilidades do corpo sob propostas específicas. Os opositores das ideias de Feijó, como o ultramontano Bispo Dom Romualdo Seixas, que se mostraram convictos na permanência do celibato, argumentaram que a postura celibatária do clero serviria de exemplo de abnegação e moralidade a toda sociedade, desta forma. A restrição do sexo embutida no impedimento do matrimônio ao clero foi uma conditio sine qua non para que se compreenda o processo de manipulação do corpo típico de um mecanismo de biopolítica, portanto, a sacralização do corpo clerical obedece a uma finalidade específica Feijó ao defender a revogação da Lei do Celibato Clerical, embora se posicionasse pela liberação do casamento, consequentemente, pela permissão do corpo para a atividade sexual, utilizava as possibilidades de uso do corpo do clero como um fator gerador de benesses à sociedade, ou seja, era um cálculo sobre a vida com finalidade específica. Assim como os seus opositores, Feijó dimensionava a moralização da sociedade, utilizando o clero como força motriz, porém, o discurso de liberdade bem vinculado aos liberais correspondia à mesma essência de moralização pretendida pelos ultramontanos e seus simpatizantes.A abolição do celibato age, impreterivelmente, para a permanência de uma condição servil da sociedade no império. Evidentemente, Feijó pleiteava outras mudanças, principalmente, na igreja em favorecimento do Estado, porém, o desejo de ordem na sociedade prevalecia.

BARROS, José D’Assunção. História Política, Discurso e Imaginário: aspectos de uma interface. In: Sæculum - Revista de História [12] jan./ jun. João Pessoa: 2005. ii AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007 iii RÉMOND, René. Por uma História Política. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003 P. 35 iv COSTA, Emília V. da. Da Monarquia à República: momentos decisivos. 6ed. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999, p. 58. i

3051

v

CORDEIRO, Cecília S. A Liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823. disponível em acesso em: 12 out 2014, p. 22 vi

BRASIL. Constituição (1824). Constituição Política do Império do Brazil. Outorgada em 25 de março de 1824. disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constituicao24.htm> acesso em: 11 set 2014. vii

BOURDIEU, P. A Economia das Trocas Simbólicas. 6 ed. São Paulo: Perspectiva, 2007

viii

MONTENEGRO, João Alfredo de S. Evolução do Catolicismo no Brasil. Petrópolis: vozes, 1972. ix

SOUZA, Françoise J. de O. Religião e Política no Primeiro Reinado e Regências: a atuação dos padres- políticos no contexto de formação do Estado imperial brasileiro. Almanack Braziliense n 8, 2008 x Ibidem, p.131. xi DEL PRIORI, Mary. Histórias Intimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2011 xii

MAUSS, Marcel. As técnicas corporais: a noção de pessoa. In: Sociologia e Antropologia. São Paulo: EDUSP, 1974. xiii FEIJÓ, Diogo A. Resposta ás Parvoices, Absurdos, Impiedades e Contradisões do Sr. Padre Luis Gonsalves dos Santos na sua intitulada defesa do celibato clerical contra o voto separado do Padre Diogo Antonio Feijó, Membro da Comissão eclesiástica da Camara dos Deputados. Rio de Janeiro, 1828 xiv

LIMA, Lana Lage da G. A Reforma Ultramontana do Clero no Império e na República Velha. In: Anais do XIX Simpósio Nacional de História – ANPUH. Belo Horizonte, junho 1997. xv FEIJÓ, Diogo A. Demonstração da necessidade da abolição do celibato clerical pela Assembleia Geral do Brasil e da sua verdadeira e legítima competência nesta matéria. Rio de Janeiro: Tipografia Imperial e Nacional, 1828. xvi

LISBOA, José da S. Causa da Religião e Disciplina Eclesiástica do Celibato Clerical defendida e al Institucional Tentativa do Padre Diogo Antônio Feijó. Rio de Janeiro: Imperial Tipografia Pedro Plancher Seignot, 1828, p.42. xvii

FOUCAULT, Michael. História da Sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1999, p.135. xviii AGAMBEN, Giorgio. op. Cit.,p.125.

3052

DISCOTECA PÚBLICA DO DISTRITO FEDERAL (1941-1945) Denise da Silva de Oliveira Graduanda em História pela UFRJ Orientadora: Prof. Drª. Marieta de Moraes Ferreira [email protected]

Resum o: Esse trabalho tem como objetivo apresentar a Discoteca Pública do Distrito Federal (DPDF), focalizando seu caráter educacional – dentro do plano político da administração do prefeito Henrique Dodsworth –, entre os anos de 1941 e 1945. Inaugurada em 1941, a DPDF, inserida em uma conjuntura política autoritária, tinha como intuito integrar a população carioca a um projeto que visava a elevação de seu gosto musical e o incremento de sua educação em geral, sanando, assim, o “problema educacional das massas”. Palavras-chave: Discoteca pública. História do Rio de Janeiro. Política cultural.

Abstract: This work aims to present the Discoteca Pública do Distrito Federal (DPDF), focusing its educational character – within the political plan of the Mayor Henrique Dodsworth's administration –, between the years 1941 and 1945. Inaugurated in 1941, the DPDF, inserted in an authoritarian political situation, had the objective of integrating the carioca population in a project that aimed the improvability of its musical taste and the increase of its education in general, solving, thereby, the “educational problem of the masses”. Keywords: Public record library. History of Rio de Janeiro. Cultural politics.

Introdução Este trabalho tem como intuito fazer uma sucinta apresentação da Discoteca Pública do Distrito Federal e expor os resultados parciais da pesquisa no que tange à nossa hipótese central até o momento, a saber, o caráter educacional o qual o referido “centro cultural” foi revestido durante os últimos quatro anos do governo municipal de Henrique Dodsworth. Desse modo, tentamos acompanhar sua trajetória entre os anos de 1941 e 1945 – ou seja, de sua inauguração até a queda do prefeito do Distrito Federal – localizando discursos e notícias em geral que comprovassem nossa hipótese inicial. Para isso, lançamos mão dos jornais A Manhã, Gazeta de Notícias, Diário de Notícias e, em menor proporção, Jornal do 3053

Brasil, a fim de recuperar parte da memória desse esquecido aparelho cultural da antiga capital federal.

A Discoteca Pública do Distrito Federal no governo Dodsworth A Discoteca Pública Municipal foi inaugurada na tarde do dia 21 de agosto de 1941 e instalada no 12º andar do Edíficio Andorinha – mesmo local que abrigava outras dependências da Secretaria Geral de Educação e Cultura1 –, ficando subordinada ao Serviço de Divulgação do Departamento de Difusão Cultural2. Na cerimônia

de

inauguração

estiveram presentes o prefeito do Distrito Federal, Henrique Dodsworth, o secretário de Educação e Cultura, coronel Pio Borges, os chefes de Departamentos daquela Secretaria, além de professores e inúmeros funcionários municipais. O prefeito foi recebido no saguão do edifício por Baptista Pereira, diretor do Departamento de Difusão Cultural, pelo professor Maciel Pinheiro, chefe do Serviço de Divulgação, e vários outros funcionários3. Com uma instalação modesta, a Discoteca contava com ar-refrigerado e, a princípio, seis mesas individuais4 – com planos de aumentar esse número para doze – as quais poderiam dispor de mais de um fone5, e fichários de consultas organizados por autor, intérprete, gênero, título e marca do disco6. Com relação às audições, o intuito era que elas se orientassem em três sentidos: recreativo, educativo e cultural 7. Assim, além de haver a possibilidade de um grupo de pessoas marcar uma visita a fim de conhecer e ouvir os discos do acervo, um indivíduo que representasse cinquenta pessoas poderia, espontaneamente e de forma mais ampla, “organizar um programa de música e apresentar à direção da ‘Discoteca’, no Serviço de Divulgação, para a sua execução”8. Ademais, existiam as audições preparadas ad hoc, que eram organizadas periodicamente pelos responsáveis da Discoteca. A constituição da coleção da Discoteca Pública – que variou entre 9.0009 e “mais de 20.000”10 durante os anos aqui abrangidos – iniciou em 1934, quando da fundação do Teatro Escola por Roquette-Pinto11. De fato, o acervo foi herdado da antiga “Discoteca da Rádio”, isto é, da Rádio-Escola Municipal – PRD-512. Nesse contexto, podemos inferir que a Discoteca Pública, tendo sido originada da discoteca da PRD-5, continuou com o objetivo de fornecer discos para as emissoras de rádio13; contudo, até por seu caráter “público”, acabou agregando aos seus objetivos diversas outras funções, dentre as quais podemos citar: repositório de discos internacionais, doados pelas embaixadas e governos de diversos países14; gravadora de discos não-comerciais e de valor histórico, tais como composições de músicos brasileiros sem espaço na indústria fonográfica, cantos orfeônicos das escolas da cidade, hinos

3054

e marchas militares, discursos de autoridades importantes, palestras, festividades, solenidades e eventos dos mais variados15; fomentadora de pesquisas sobre música e folclore brasileiros, fonética experimental, entre outros16; e atendimento ao público, com o intuito principal de aproximar as massas urbanas em ascensão de uma cultura dita “superior”.

Missão: “educar as massas” A primeira vista talvez não se calculem todas as vantagens de uma discoteca pública sob o ponto de vista educacional. E a verdade é que o nosso público ainda não chegou no nível cultural que sinta falta de uma discoteca. Entretanto, com a atual creação [sic] do sr. Pio Borges – mais um de seus imensos benefícios para o povo do Distrito Federal, que lhe há de conservar perene gratidão – nós vamos de encontro ao público. Não esperamos que o povo reclame. Mas convidamolo a subir. A iniciativa parte de cima. Facilita-se a consulta. Incentiva-se o gosto pelo que é bom – pois não acreditamos que ninguém vá ouvir marchinhas e sambas que ininterruptamente despejam no ar as nossos ‘broadcastings’ durante dezessete horas; iremos ouvir os bons discos, que não estão ao alcance de todas as bolsas, e que só são irradiados por três estações, de regra, e por algumas outras, como exceção. [...] Necessitamos de gente que se interesse pela cultura do povo, que trabalhe de fato, que tenha coragem e bom senso, que aja de acordo com os interesses reais da coletividade, sem apadrinhamento fátuos, que não se limite a promessas, mas chegue aos fatos, que numa palavra, seja um administrador, um estadista, como é o caso do atual Secretário Geral da Educação do Distrito Federal (grifos nossos).17

“[...] o disco, como o livro e o filme, é um agente de difusão cultural e, daí, dever ser utilizado na educação do povo”.18 O texto acima citado foi retirado de um artigo do jornal Gazeta de Notícias publicado três dias após a inauguração da Discoteca Pública do Distrito Federal; e a frase, logo embaixo, foi proferida pelo secretário geral de Educação e Cultura, coronel Pio Borges, ao baixar a resolução que converteu em Discoteca Pública a antiga discoteca da Radiodifusão da Prefeitura, em julho de 1941. Ambas demonstram, a nosso ver, o cerne da preocupação das autoridades municipais ao criarem uma discoteca pública: a “educação do povo”. Antes de mais nada, cabe destacar a conjuntura política nacional do período em xeque. Segundo Velloso19, durante o regime do Estado Novo, as autoridades públicas e os intelectuais envolvidos, direta ou indiretamente, na política se voltaram para as questões nacionais mais prementes e que foram por muito tempo ignoradas pelas elites. Estas tinham sido, segundo eles, diretamente responsáveis pela crise nacional pois viraram as costas para o “país real” e para as necessidades do “povo”. Assim, cabia à nova elite que estava no poder a tarefa de “salvar a identidade nacional” e isso se daria através, principalmente, da intervenção do Estado na organização social. É nessa conjuntura que a elaboração de um “projeto político-

3055

pedagógico destinado a ‘educar’ as camadas populares” se mostrava de extrema

importância

dentro de um plano nacional mais abrangente. Nesse contexto, vale destacar que o uso de discos como suportes de conteúdos educacionais era adotado em muitos países. As discotecas, desse modo, perdiam seu caráter unívoco de simples “depósitos” de discos comerciais e com fins puramente recreativos e passavam a ser encaradas como mais um instrumento em prol do aprendizado das “massas”; funcionaria como uma biblioteca, mas em um país como o Brasil – que em 1940 possuía uma taxa de analfabetismo de 56%20 – teria, a nosso ver, um alcance superdimensionado, já que seria possível – com alguma limitação, é claro – ter seu conteúdo – basicamente sonoro – compreendido por esse imenso número de analfabetos, pensando em um projeto nacional mais amplo. Nesse contexto, a Secretaria Geral de Educação e Cultura do Distrito Federal estava em consonância com o “espírito” de seu tempo. Em 1934, ou seja, sete anos antes da criação da Discoteca Pública do DF, duas notas publicadas no Jornal do Brasil na primeira semana de abril são intituladas “O disco a serviço do ensino”. Nelas, há informações sobre a organização da “Discoteca Educacional Brasileira” – que seria “constituída de várias séries de discos gravados por eminentes professores, sobre todas as matérias de ensino” –, além da afirmação da influência da International Educational Society de Londres e, principalmente, da Discoteca Nacional do Uruguai nesse tipo de esforço 21. Alguns meses antes da inauguração da Discoteca do DF, também, um artigo, com o título “Educação artística popular”, do Gazeta de Notícias, traz: Fala-se muito do estado precário de nossa cultura artística popular. Musical, sobretudo. É por falta de uma divulgação eficiente, sem dúvida, que nos encontramos numa situação de inferioridade diante do público de Buenos Aires, por exemplo, onde qualquer grande organização artística pode contar com um público numeroso e capaz. Uma forma de divulgação musical interessante, uma alta medida mesmo, seria a formação de uma discoteca pública, como a existente em São Paulo. Por que não formarmos uma aqui no Rio também? A Divisão de Rádio do DIP, que tem à frente um homem de tanta clarividência como o sr. Júlio Barata, bem poderia tomar a si a iniciativa desta sugestão. Seria uma garantia de êxito22.

Desse modo, em artigo do A Manhã, publicado no dia seguinte à inauguração da discoteca e intitulado “A Discoteca do Distrito Federal e o ouvinte brasileiro - uma campanha a realizar”, Maciel Pinheiro, o diretor da Discoteca do DF, é descrito como um professor que “possue [sic] uma límpida consciência do problema educacional das massas”23 (grifo nosso). Ou seja, a pessoa certa, no momento certo, fazendo o que já em boa parte do país e do mundo era considerado “o certo”.

3056

A princípio, identificamos três principais formas de como se daria, no Distrito Federal, essa educação através da Discoteca e dos discos. Em primeiro lugar, como, naquele contexto, as artes deveriam ser transformadas em “elementos transformadores das massas” 24 e a sociedade era entendida como “ser imaturo, indeciso e, portanto, carente de um guia capaz de lhe apresentar normas de ação e conduta”25, era importante que as autoridades públicas, e por extensão os intelectuais, se encarregassem de disponibilizar ao “povo” o acesso à “música de classe” – esta sendo entendida, principalmente, como a música erudita, nacional e internacional. Nesse aspecto, a Discoteca Pública do Distrito Federal “abriu às massas populares as portas da música erudita”26 através das inúmeras audições coletivas e do incessante incentivo ao uso dos discos desse gênero. Dessa forma, o acesso às “boas músicas” não mais encerrava seus limites às elites27; graças à Discoteca, a população não precisaria mais “recorrer, forçosamente, às casas comerciais do ramo, onde os [...] [discos] eram tocados por favor, de acordo, naturalmente, com as possibilidades aquisitivas do freguês” 28. Por outro lado, as músicas populares também eram bem-vindas nesse “processo educacional”. No entanto, ao mesmo tempo que se frisava a disponibilização de “todos os gêneros de música brasileira em gravações industriais e próprias”29, excluía-se o brasileiríssimo samba: O samba, que fala do malandro, da vida do morro, da mulher que abandonou o lar para cair na orgia durante o Carnaval, não teve permissão para entrar para a Discoteca Pública do Distrito Federal. Ele foi obrigado a ficar à porta, de chapéu de palha na mão... A Discoteca não o poude [sic] receber. Não é que ele seja um desprezível, mas, por ser tão malandro... Em lugar do samba, figuram as músicas de Nazareth e de Eduardo Souto... Os ouvintes da Discoteca Pública que procuram as últimas gravações para o Carnaval, não saem decepcionados, até, pelo contrário, voltam para ouvir trechos escolhidos de Strauss ou Lehar e, mais tarde, reclamam Beethovem [sic]. A Discoteca Pública do Distrito Federal vai, assim ensinando ao ouvinte a escolher boas músicas (grifo nosso)30.

Sob essa ótica, a Discoteca serviria como um filtro em meio aos “sambas” e outras “músicas vulgares” – que eram, segundo os jornais, regras nas emissoras de rádio brasileiras – e um guia para a população “ignorante e despreparada”, bem ao sabor da mentalidade das autoridades da época31. Assim, poucos meses após a sua inauguração, o jornal A Manhã comemora o grande interesse do público pela Discoteca Municipal e afirma, com orgulho, que é um engano dizer que “somente de samba vive o carioca. As estatísticas estão aí bem evidentes para provar que a música de classe tem, entre nós, numerosos e fervorosos adeptos”32. A segunda “utilidade educacional” identificada tem relação direta com a primeira. Trata-se do mesmo esforço aqui já descrito, mas voltado para as crianças e jovens. Uma das

3057

formas para isso era a organização de audições especiais para estudantes: grupos de alunos de estabelecimentos de ensino compareciam com sua turma ou isoladamente e participavam de programas preparados a priori com “produções selecionadas dos melhores compositores” com o intuito de “desenvolver o interesse pela boa música” 33. Além disso, em 1944, foi inaugurado, na data do sétimo aniversário do governo de Dodsworth, o auditório da Seção Infantil da Discoteca Municipal, que ficaria no edifício da Biblioteca Central da Educação e que teria capacidade para “cem crianças em audição coletiva”34. A terceira e última forma educativa da Discoteca sai da alçada da música e entra no âmbito de uma educação mais geral, como uma extensão da escola formal para crianças, jovens e adultos. Ainda nos primeiros meses de funcionamento, a Discoteca buscou organizar uma seção de literatura, onde, através de gravações próprias, seriam reunidas as páginas de grandes escritores – quer nacionais, quer estrangeiros, com idiomas originais e em traduções – em forma de som35. Esses discos foram, de fato, organizados e, em 1942, foram agrupados em duas seções: Literatura Infantil e Literatura Folclórica 36. Assim, em 1945, a Discoteca Pública elencava dentre seus objetivos a incumbência de tornar “intensivo o hábito de ouvir a melhor música e a melhor literatura, facilitando às classes menos favorecidas conhecimentos úteis por meio de discos, de modo que se torne uma poderosa força de educação popular” (grifos nossos)37. Finalmente, é importante pontuar, ainda abarcando o tema educação, o projeto pioneiro que significou a Discoteca Pública de São Paulo no Brasil. Criada em 1935 dentro da estrutura do Departamento de Cultura municipal daquela cidade, com a ativa participação de Mário de Andrade – que assumiu o cargo de primeiro chefe desse departamento – na área de pesquisa da música nacional, foi dirigida pela folclorista mineira Oneyda Alvarenga, antiga aluna de piano de Andrade. Sobre isso, Sampietri lembra que a folclorista, no bojo das atividades da Discoteca Pública Municipal, sabia do potencial que o disco exercia na educação musical do coletivo e percebeu que em vários países o uso do disco nessa formação já era uma realidade. Ao justificar as verbas para o ano de 1937, em relatório específico, Oneyda apontou para a importância da formação de uma discoteca completa e solicitou a compra de novos discos argumentando que “na França, na Alemanha, fundam-se clubes fonográficos, organizam-se audições públicas especiais de discos, comentados e ilustrados por projeções. Tomam incremento os cursos de história da música e as conferências acompanhadas de discos”.38

Nesse contexto, como está explícito, cabia à Discoteca Municipal propiciar uma educação musical geral: “o termo ‘vulgarização’ da música universal está presente em uma série de documentos e parecia ser palavra de ordem na condução das atividades que vão de encontro ao plano de elevar o gosto musical e a cultura na cidade de São Paulo”39. Assim, ainda

3058

segundo Oneyda40, “as discotecas públicas tornam possível o ensino vivo da música, a difusão do gosto da música entre todos”. Essas considerações são importantíssimas para compreendermos a missão da própria Discoteca Pública do Distrito Federal, cuja organização se baseou, de fato, na experiência da Discoteca paulistana41. Nessa conjuntura, em visita oficial à Discoteca de São Paulo, por parte da Prefeitura do Distrito Federal, o professor da Secretaria Geral de Educação e Cultura, Deusdedit de Souza, salienta que A orientação que as autoridades municipais veem [sic] imprimindo às várias instituições péri-escolares e culturais do Distrito Federal não está circunscrita à capital do país e se irradia por outras unidades da Federação, que procuram aproximar-se e manter o intercâmbio cultural, necessário e útil para a obra, em conjunto, da educação popular (grifo nosso).42

E, ainda, propõe uma relação mais estreita da Discoteca carioca com a paulistana, enfatizando “a necessidade de maior intercâmbio e identificação de métodos e processos usados [...][nesses] dois centros culturais do país”43, o que ao que tudo indica já vinha acontecendo em algum nível, já que, em 1942, a Discoteca Pública do DF recebeu da Discoteca Pública de São Paulo discos de gravação própria, da série ‘Música Erudita Paulista’, os quais passariam a integrar a ‘Antologia da Música Brasileira’ – que estava então sendo organizada na Discoteca da capital do país – e seriam utilizados, também, em uma irradiação especial da RadioDifusora da prefeitura, a P.R.D.-544. Nesse contexto, a questão “nacionalista” se tornaria ponto de convergência no objetivo das duas instituições. Se por um lado, a Discoteca Pública de São Paulo tinha o “nacionalismo musical como agente de fixação do caráter nacional” 45, a Discoteca do DF, por outro, tentou um esforço também nesse sentido. Enquanto em São Paulo esse viés pode ser até mesmo óbvio – devido à presença de Mário de Andrade, um importante expoente do Modernismo –, no Distrito Federal também encontramos vários indícios que conduzem a essa conclusão. Assim, o próprio serviço de gravação da Discoteca do DF tinha como intuito facilitar “a divulgação de músicas nacionais, especialmente as folclóricas”, cooperando diretamente com o Departamento de Educação Nacionalista46. Contudo, um fato muito importante impossibilitava ambas as instituições de lograr total êxito na divulgação da música brasileira – a folclórica e erudita nacional mais especificamente – às massas, que já haviam despertado para “para as coisas da sua terra” 47: a falta de gravações das obras de compositores brasileiros. Por isso, as gravações próprias de ambas as discotecas poderiam servir para preencher as lacunas deixadas pelas indústrias fonográficas nesse ponto, já que

3059

As gravações nacionais eram verdadeiramente raras no comércio musical interno. As gravadoras davam pouca oportunidade, tanto para as músicas eruditas como para aqueles de influências folclórica. O mercado fonográfico brasileiro era dominado por compositores estrangeiros e por músicas de procedência popularesca, que mais faziam o gosto de nichos específicos e tinham pouco valor como expressão da nacionalidade.48

Com tudo o que foi levantado até agora, em nosso ponto de vista, não há dúvidas sobre o profundo caráter educacional do qual investiram a Discoteca Pública do Distrito Federal: a educação do povo carioca, da grande massa marginalizada, entrou para a ordem do dia nos projetos municipais. E o confronto com a Discoteca de São Paulo somente acentua ainda mais esse aspecto – além de outros.

Considerações finais Com essa breve exposição, buscamos apresentar a Discoteca Pública do Distrito – “apresentar”, pois ela ainda não foi objeto de pesquisa alguma até o momento – e nossa hipótese inicial acerca de seus principais objetivos como aparelho cultural do município do Rio de Janeiro, então Distrito Federal. Todavia há muito o que ser levantado; há, sobretudo, muitos pontos obscuros no que tange ao seu funcionamento durante o governo Dodsworth – e além dele –, aos personagens políticos e intelectuais envolvidos direta ou indiretamente nesse esforço e ao impacto obtido na cidade ao longo dos anos, o que ultrapassa o escopo temporal aqui delimitado. Nesse contexto, cabe-nos dar prosseguimento à pesquisa com o horizonte de encontrar vestígios que nos possibilitem não só delinear a trajetória de um centro cultural público que, a nosso ver, gozou de uma certa fama e teve sua “aura” em seu tempo mas também recuperar uma já “antiga” forma de promover e ouvir música e pensar, retrospectivamente, métodos educacionais e de inclusão social – em pleno século da “portabilidade” e dos downloads de músicas e de incertezas quanto aos paradigmas da educação.

Notas 1

Diário de Notícias, 11/01/1942, p. 9. Id., 25/07/1941, p. 6 3 A Manhã, 22/08/1941, p. 11 4 Diário de Notícias, 11/01/1942, p. 9 5 A Manhã, 18/01/1942, p.9. 6 Ibid. 7 Diário de Notícias, 11/01/1942, p. 9. 8 Gazeta de Notícias, 04/09/1941, p. 6. 9 A Manhã, 22/08/1941, p. 11. 10 Id., 14/07/1943, p. 8. 2

3060

11

Diário de Notícias, 20/06/1942, n.p. RIBEIRO, A. G. “Ensinar para educar; educar para servir à Pátria”: a Rádio-Escola Municipal do Rio de Janeiro (PRD5), motivações, influências e técnicas de comunicação. In: ENCONTRO NACIONAL DE HISTÓRIA DA MÍDIA, 7., 2009, Fortaleza. Anais... Fortaleza, 2009, n.p. 13 Diário de Notícias, 20/06/1942, n.p. 14 A Manhã, 23/11/1941, p. 11; Id., 30/04/1943, p. 6; Id., 11/07/1943, p. 5 et. al. 15 Diário de Notícias, 16/01/1942, p.10; A Manhã, 03/05/1944, p. 8; Gazeta de Notícias, 19/07/1944, p.12 et. al. 16 A Manhã, 18/01/1942, p.9. 17 Gazeta de Notícias, 24/08/1941, p.13. 18 Diário de Notícias, 29/07/1941, p.9. 19 VELLOSO, M. P. Os intelectuais e a política cultural do Estado Novo. In: FERREIRA, J. DELGADO, L. A. N. (orgs.). O tempo do nacional-estatismo: do início da década de 1930 ao apogeu do Estado Novo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. (O Brasil republicano, v.2), p. 174. 20 CENSO DEMOGRÁFICO 2010. Resultados gerais da amostra. Rio de Janeiro: IBGE, 2012. Disponível em: . Acesso em: 13 set. 2015. 21 Jornal do Brasil, 06/04/1943, p. 14; 10/04/1934, p. 14. 22 Gazeta de Notícias, 11/06/1941, p. 3. 23 A Manhã, 22/08/1941, p. 5. 24 CAPELATO, M. H. O Estado Novo: o que trouxe de novo?. In: FERREIRA, J. DELGADO, L. A. N. (orgs.). O tempo do nacional-estatismo: do início da década de 1930 ao apogeu do Estado Novo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. (O Brasil republicano, v.2), p. 127. 25 VELLOSO, op. cit., p. 156. 26 A Manhã, 14/07/1943, p. 8. 27 Diário de Notícias, 29/07/1941, p.9. 28 Id., 24/08/1941, p. 13. 29 A Manhã, 18/01/1942, p.9. 30 Diário de Notícias, 11/01/1942, p. 9. 31 OLIVEIRA, L. L. Tradição e política: o pensamento de Almir de Andrade. In: OLIVEIRA, L. L.; VELLOSO, M. P.; GOMES, A. M. C. Estado Novo: ideologia e poder. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982, p. 33. 32 A Manhã, 30/11/1941, p.4. 33 Id., 24/06/1942, p. 5. 34 Id., 04/07/1944, p. 10. 35 Id., 13/09/1941, p. 11. 36 Id., 29/05/1942, p. 7. 37 Id., 07/10/1945, p. 3. 38 SAMPIETRI, C. E. A Discoteca Pública Municipal de São Paulo (1935-1945). 2009. 209 f. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009, p. 111. 39 Ibid., p. 112. 40 Apud ibid. 41 A Manhã, 29/05/1942, p. 7. 42 Id., 29/06/1943, p. 3. 43 Ibid. 44 Diário de Notícias, 23/01/1942, p. 8. 45 SAMPIETRI, op. cit., p.7. 46 A Manhã, 29/06/1943, p. 3. 47 A Manhã, 22/08/1941, p. 5. 48 SAMPIETRI, op.cit., p. 139. 12

3061

Contribuições histórico-políticas do esporte em debate na Educação Física escolar Emanoel Borges Candal1

Resumo: A história das práticas corporais advém, desde os primórdios, da relação do humano com o corpo e sua arte. Com o avanço da civilização, surgem as sistematizações sempre com relação aos acontecimentos políticos. É neste sentido que esta pesquisa visa refletir a relação esporte x política no espaço da Educação Física escolar, problematizando o ensino estritamente prático. Através de uma Pesquisa-ação, utilizando o cinema como estratégia e dados construídos por um grupo de discussão, visamos alcançar uma Educação Física crítica. Palavras-chave: Educação Física, Política, História Abstract: The history of bodily practices arises from the very beginning, the human relationship to the body and his art. With the advancement of civilization, always the systematization arise with regard to political events. In this sense, this research aims to reflect the sport x political in the space of school physical education, questioning the strictly practical teaching. Through an action research, using cinema as strategy and data built by a group discussion, we aim to achieve a critical Physical Education. Keywords: Physical Education, Politics, History

Introdução A história das práticas corporais advém, desde os tempos primórdios, da relação do humano com o corpo, sua arte e sua plástica. Com o avanço da civilização, surgem as práticas sistematizadas sempre com relação direta aos acontecimentos políticos. As práticas corporais nunca estiveram descoladas da conjuntura político-histórica no Brasil e no mundo, sendo essas, formas de controle e dominação, usadas para o aumento de produtividade através do vigor físico visando o mercado ou como estratégia de desarticulação de organizações na sociedade, principalmente da classe trabalhadora. Por isso, é importante que entendamos a conjuntura do uso do esporte e outras práticas corporais, e para que(m) servem esses usos: seja para a reprodução da continuidade do mercado capitalista, desde a

escola

e

fortalecimento do consenso pelo adestramento de corpos, numa suposta “neutralidade” da Educação Física, ou para o fomento à criticidade e à problematização da apropriação da Educação Física nas escolas, levando os estudantes a refletirem sobre os interesses por detrás das práticas corporais em geral. Historicamente, a Educação Física escolar vem sendo relacionada ao caráter militar ou médico, sendo pensada por essas áreas diversas vezes. Outra característica que podemos observar é a esportivização da Educação Física, frequente dentro dos espaços escolares, escolha que, muitas vezes, não leva a reflexões e à valorização da cultura corporal (COLETIVO DE AUTORES, 19922) do estudante, além de não tornar a Educação Física 3062

escolar, um espaço de reflexões e criticidade, naturalizando os esportes historicamente oriundos da Europa como algo “intocável”, sem preocupação e sem valorização da cultura local, colaborando para a absorção de determinadas características de mercado pelo estudante. Não é necessária a extinção do esporte da Educação Física escolar, mas a forma de pensar o mesmo precisa ser revista pela propostas didático-pedagógicas. Como menciona Castellani Filho (20023): “Não atentam – os responsáveis por tais posturas – para o fato de que a sua desesportivização tem que ser compreendida como uma crítica a mentalidade esportiva prevalecente na escola, responsável por concebê-la como uma instituição privilegiada para servir de lócus aos objetivos próprios a instituição esportiva (em ultima instancia, a otimização do rendimento físico-esportivo), e não como uma crítica ao esporte, prática social- portanto construção histórica- que, dada a significância com que marca a sua presença no mundo contemporâneo, caracteriza-se como um dos seus mais relevantes fenômenos socioculturais” (p. 43).

A esportivização da Educação Física, sem nenhum caráter crítico, traz ao estudante um olhar estritamente prático e individualista, e, muitas vezes, não acrescenta nada em sua formação como cidadão (pois não faz sentido para o aluno), apenas o entendimento da reprodução e da produtividade exigidos pelo sistema capitalista. É por isso que a busca, tanto da valorização da cultura corporal, como do entendimento mais crítico das relações políticas que permeiam o esporte se faz necessária. Castellani Filho (2002) caracteriza, por exemplo, a questão da competição nas aulas, devendo essa característica (dentre várias outras) ser trabalhada de forma crítica pelo professor, não sendo apenas deixada de lado, mas sendo problematizada e pensada para que não sirva aos valores dominantes: “[...] nega-se a possibilidade de se olhar a competição como elemento passível de ser construído em outros patamares que não o existente, retirando-se, a priori, a possibilidade de tratá-la pedagogicamente. Tratamento pedagógico esse que venha nela particularizar o princípio do competir com, no lugar do competir contra; que contemple as diferenças sem camufla-las, respeitando e valorizando-as igualmente. Dessa maneira, a competição esportiva presente no espaço escolar tende a distinguir-se daquela realizada em outros campos pois, diferentemente daquela, deve estar comprometida com os objetivos da instituição escolar e não com os da instituição esportiva, tornando-se legitimamente possível falarmos do esporte da escola - e não na escola – da competição esportiva da escola e não do sistema esportivo que, imiscuindo-se nas coisas da escola, a faz perseguir interesses outros que não os dela.” (CASTELANI FILHO, 2002, p. 55-56, grifos meus)

Sendo assim, pela valorização de aspectos pertinentes ao caráter da escola e do sujeito estudante, pela cultura corporal e pelo pensamento da conjuntura em que está inserido, a valorização da Educação Física crítica, tem como objetivo o desenvolvimento da capacidade de apreensão do mesmo, visando a autonomia, a criticidade e a criatividade do estudante, de

3063

modo que ele tenha compreensão de sua realidade e que se torne protagonista na ação da mudança da mesma, valorizando o conhecimento prévio e suas vivencias corporais anteriores, incentivando a construção da sua própria realidade (Ibid.). É neste sentido que esta pesquisa, realizada em uma escola pública federal com turmas de nono ano do ensino fundamental, visa refletir a relação esporte x política no espaço da Educação Física escolar, problematizando e criticando os modelos históricos de ensino estritamente práticos da disciplina ao apresentar uma proposta pedagógica de aula que visa a criticidade e a reflexão. Como metodologia, este trabalho está pautado em uma Pesquisa-ação (THIOLLENT, 20114), que, dentre suas estratégias, fez uso do cinema através do filme “Invictus” (EASTWOOD, 20125). Os dados foram construídos através de um grupo de discussão (WELLER, 20066), com o qual se buscou problematizar com estudantes o uso do esporte dentro das políticas públicas vigentes, e que apresento, especificamente, como recorte neste trabalho.

Educação Física e os diferentes contextos históricos/políticos A Educação Física assim como qualquer outra área também nunca esteve descolada do cenário político, sendo ela tratada supostamente como neutra, se alinhando ao consenso, ou com interesses claros e expostos durante o tempo (OLIVEIRA, 2005 7). Em épocas de ascensão do capitalismo, foi utilizada desde as escolas para a adequação e adestramento corporal dos futuros operários. Hoje, no senso comum, é novamente colocada como “neutra” com a vinculação ao caráter higienista/biologizante e de padronização de corpos em uma lógica estética euro-americana que se legitima pela “saúde” nas escolas, assim como em outras épocas, reforçado pela grande mídia, ou ainda colocando-a como área esportiva apenas, reduzindo a mesma a uma lógica de mercado, com a qual, a meritocracia, a competitividade e a disciplinarização tornam-se frutos desta esportivização não crítica. Após anos de utilização da Educação Física a serviço da classe dominante, surge, principalmente a partir dos anos de 1980 no Brasil, um grande número de publicações na direção de alinhamento da mesma com a política, e, consequentemente

com

uma

característica humanista sem ignorar as relações sociais, indo em encontro de uma Educação Física crítica. Surge também o entendimento da necessária valorização da relação corporal que o sujeito já vivenciou em seu contexto sociocultural, não apenas reproduzindo práticas euro-centradas na Educação Física, assim, ampliando a autonomia e a participação do estudante como parte fundamental do andamento das aulas. Acontece, então, a preocupação com práticas corporais populares que envolvem jogos, esportes, danças populares, a capoeira,

3064

entre outros, que se denomina como cultura corporal de movimento (COLETIVO DE AUTORES, 1992). É neste sentido que a problematização de certos valores e a necessária compreensão da conjuntura que o estudante está inserido acontece, tendo o professor de Educação Física a responsabilidade de conduzir e fomentar o processo de compreensão e questionamento pelo mesmo, no que se refere ao seu corpo e aos encadeamentos políticos em que está inserido. O espaço da Educação Física não pode representar algo sem sentido para o estudante ou um local reprodutivista que priorize as técnicas, mas um espaço possível de diálogos teóricos não descolados da prática. Destacando as Políticas Públicas da área de Educação, a Educação Física esteve presente nos últimos anos a partir de um viés que buscou mudanças no seu histórico estritamente “prático”. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – 9394/96 (BRASIL, 19968) afirma que a Educação Física, integrada à proposta pedagógica da escola, é componente curricular da Educação Básica, ajustando-se às faixas etárias e às condições da população escolar, influenciando, posteriormente, discussões que foram inseridas nos Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 19989; BRASIL, 200010). Os PCNs objetivaram uma educação corporal voltada para a formação do cidadão critico e participativo, buscando modificar a tendência histórica da área, que era atingir objetivos voltados apenas para aptidão física nas aulas. Mais recentemente, certa mudança de paradigmas da Educação Física também se efetivou a partir das Orientações Curriculares para o Ensino Médio (MEC, 2006 11), na qual a disciplina passou a ser inserida na área de Linguagens, Códigos e Tecnologias, ao reconhecer a Educação como uma linguagem corporal. Dentre as possibilidades de reflexões propostas pelas orientações no currículo escolar, aponto como um dos itens, o que vem ao encontro deste estudo: “intervenção política sobre as iniciativas públicas de esporte, lazer e organização da comunidade nas manifestações, vivência e na produção de cultura” (p. 225). Desta forma, buscar estratégias pedagógicas nas aulas, que se direcione a um viés de superação da promoção da aptidão física, se faz primordial em uma Educação Física transformadora e critica no ambiente escolar, alinhando-se ao trabalho reflexivo realizado. Neste momento, encontra-se em discussão a Base Nacional Comum Curricular12, uma proposta que busca uniformizar todo o conteúdo da Educação Básica, justificando-se pelos baixos indicadores de qualidade das avaliações propostas pelo governo federal. O documento, ainda em fase de discussão e elaboração por especialistas de Universidades públicas do Brasil inteiro, encontra-se disponível para consulta pública no site do MEC, ainda não editorado até

3065

a finalização deste trabalho. Independente da posição contrária a certa homogeneização da Educação Básica, já que o documento não leva em consideração as diferenças regionais e culturais, na busca por uma “padronização” da Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio, visando como instância final resultados no ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio), pode-se visualizar o conteúdo do documento Educação Física, que encontra-se, como nas Orientações curriculares para o Ensino Médio (MEC, 2006), na área de Linguagens, Códigos e Tecnologias. Destaco, do documento em construção, o seguinte fragmento:

É responsabilidade da Educação Física tratar das práticas corporais na escola como fenômeno cultural dinâmico, diversificado, pluridimensional, singular e contraditório, assegurando aos/às estudantes a construção de um conjunto de conhecimentos necessários à formação plena do cidadão. Desse modo, cabe a esse componente curricular problematizar, desnaturalizar e evidenciar a multiplicidade de sentidos/significados que os grupos sociais conferem às diferentes manifestações da cultura corporal de movimento, não se limitando, apenas, a reproduzi-las (MEC, s/p., 2015).

Com base nestas questões expostas se percebe que as Politicas Públicas de Educação, em meio a avanços, retrocessos e negociações constantes, continua caminhando para a modificação dos paradigmas histórico-políticos que a Educação Física ainda busca se desvincular.

O filme invictus e sua conjuntura política como “pontapé” para a problematização Invictus é um filme lançado em 2009, por Clint Eastwood, tendo como base o livro “Conquistando o inimigo” de Carlin (200913). O filme retrata a história pós-apartheid na África do Sul, enfatizando as dificuldades de mudança das grandes desigualdades sociais e preconceitos étnicos-raciais que historicamente se construíram, reforçado justamente pelo período do apartheid. Como protagonista, é retratado Nelson Mandela (Morgan Freeman) e sua confiança no esporte para agir como instrumento de possíveis reparações de preconceitos, desunião e segregação tão fortes na sociedade sul africana. O esporte não fica descolado do contexto segregado da conjuntura política nacional daquele momento, podemos perceber isso claramente pela elitização do rúgbi (esporte historicamente construído na sociedade inglesa), com a participação quase que em totalidade dos brancos, e, em contraponto, o futebol (soccer), sendo esse mais acessível, tendo uma popularização e maior prática pelos negros no país. Nesse mesmo sentido, a população negra refutava e negava tudo que vinha do rúgbi, em especial, a própria seleção 3066

nacional

(“Springboks”), sendo essa, símbolo histórico dos brancos no país, construindo um alinhamento da seleção, com o período do apartheid e das opressões anteriores a esse período mais radical. Essa negação, por exemplo, é retratada em cenas do filme em que a presença dos negros nos estádios no período imediato ao apartheid, e ascensão de Mandela como presidente, se dava muito mais numa lógica de ocupação desses espaços para demonstrar a mudança de cenário político, do que propriamente pelo apoio a seleção, interferindo com vaias e protestos ao simbolismo da seleção nacional. Cenas essas que podemos classificar como de resistência do povo negro a todas as opressões sofridas. No decorrer do filme, são mostradas diversas ações de união e políticas públicas que são feitas pelo presidente, tentando desconstruir a imagem da seleção da lógica de segregação política, e diminuir preconceitos existentes naquela sociedade, utilizando a seleção nacional de rúgbi, em especial a figura do único negro presente no time, dando a ele o protagonismo e utilizando sua imagem para a aproximação dos negros com a equipe. Abrindo assim, diversas possibilidades de debates em mais variados segmentos da educação e com mais variados focos, inclusive no espaço da Educação Física escolar, contribuindo para o estímulo do pensamento crítico de assuntos que permeiam a nossa sociedade e trazendo para dentro da disciplina reflexões acerca do conteúdo prático e de seu diálogo com o conteúdo teórico. É importante ressaltar também algumas ponderações, pois diversas críticas foram feitas ao filme depois de seu lançamento: ter um olhar americanizado sobre a África, não transmitir realmente a história ocorrida, ter relação nacionalista retratado no filme com o nacionalismo americano, assim como a real situação da seleção de rúgbi sul-africana na época e das tensões que ocorreram mesmo após as políticas de Mandela (CAPRARO, MEDEIROS & LISE, 201214; DIAS, 201415). Porém, o período foi de avanço para reparar problemas políticosociais do país, assim como é extremamente notória a visão de Mandela e outros agentes políticos (concordantes ou não com as ações do presidente) de que o esporte tinha a possibilidade real de mudar de forma efetiva o contexto que o país vivia (BRITO & CANDAL, 201516), sem se submeter integralmente a lógica capitalista que o esporte de alto rendimento pode trazer, não esquecendo, inclusive, de outras classificações de esporte e práticas corporais que não a de alto rendimento, tão supervalorizado na nossa sociedade atual.

3067

Lutando por uma Educação Física critica: Uma análise das discussões levantadas pelas estudantes e pelos estudantes Conforme citado anteriormente, apresento dados construídos após a estratégia de

uso

do cinema, pelo filme “Invictus” (EASTWOOD, 2012), com estudantes do nono ano do Ensino Fundamental, através da técnica de grupos de discussão, com base em Weller (2006). A referida autora afirma que os grupos de discussão, caracterizam-se como uma técnica de pesquisa muito utilizada nas pesquisas com jovens, dentro dos estudos clássicos da sociologia da juventude e da psicologia do desenvolvimento. De acordo com os procedimentos do método, usa-se um tópico-guia para subsidiar as discussões sobre o filme com os estudantes, embora o roteiro possa ser usado de forma flexível ao longo do debate. As discussões, durante a pesquisa de campo, foram dirigidas ao grupo, propondo reflexões interativas entre estudantes, fazendo intervenções apenas quando fosse necessário para manter a ordem nas falas ou quando se lançasse outra pergunta. O grupo de discussão, a partir das reflexões geradas pelo filme, propiciou debates acerca do entendimento do esporte como direito e de como ele pode ser usado de diferentes formas, dependendo de interesses políticos e contextos históricos, a partir da compreensão do esporte como fenômeno. Como nos diz Malina & Azevedo (201317), é válido pensar o esporte como um fenômeno que está inserido em uma sociedade capitalista, sendo assim, o mesmo tem grandes contradições. Neste contexto, levantou-se temas no debate proposto, como: relações étnicos-raciais, políticas públicas de inclusão e/ou exclusão, violência e desigualdade social, refletindo sobre como o esporte atua nessas específicas categorias. Após a colocação da indagação se o esporte tinha efetiva capacidade de ser uma ferramenta de transformação social, tivemos problematizações importantes no que tange a leitura da opinião dos estudantes em relação ao uso do esporte. As opiniões caminharam para o alinhamento da realidade em que vivem com o que foi mostrado no decorrer do filme. Foram traçados paralelos de ações políticas retratadas no filme, como a aproximação da seleção nacional de rúgbi com regiões precárias do país, levando a seleção a campos de várzea para dar treinamentos e criar vínculos com essas pessoas. Alguns discursos dos estudantes apontavam para a grande valorização do jogador de futebol no Brasil e da falta de políticas públicas que incentive ou que determine que os clubes e jogadores, como instituições públicas e de visibilidade em setores mais pobres da sociedade, tenham o mínimo de responsabilidade social e sejam ferramentas importantes pelo estado de efetivas mudanças sociais. Os questionamentos dos estudantes apontaram para essa escassez, sendo assim, a visão de que acontece supervalorização do esporte e não da saúde, educação, etc, como se o mesmo 3068

fosse menos importante do que outras áreas fundamentais como direito ou como se não fosse instrumento para essas mesmas. Podemos analisar essas falas pela irresponsabilidade e falta de incentivo público para que se tenha nesses espaços, projetos de cotidiano e de inclusão dentro da cidade, sejam esses espaços, clubes regionais que estão enquadrados dentro das especificidades de bairros, ou clubes de grande expressão no país, sendo assim, essa escassez não legitima o esporte como fator de inclusão e nem legitima sua valorização, principalmente o futebol. Podemos entender essa valorização em uma lógica de mercado que movimenta um grande percentual de capital e não em uma lógica de direitos, tendo a esmagadora valorização do esporte de alto rendimento e a secundarização de outras possibilidades, além do olhar reducionista para o esporte de alto rendimento, principalmente pela subserviência que o mesmo tem as entidades privadas. Outro ponto levantado pelos estudantes foi o esporte como possível ascensão social, no qual muitos veem uma oportunidade para a mobilidade social de pessoas pobres, exemplificando jogadores que tinham passados socialmente difíceis e que hoje tiveram deslocamento social, reforçando a lógica da meritocracia. Porém, o esporte não se desloca de um contexto capitalista de difícil ascensão, como nos diz RITTNER (201318): “(...) O mito de que o esporte é um fator sistemático da mobilidade social e de ascensão, repetidamente reavivado por famosas estrelas esportivas que fizeram sucesso, é muito desorientador. É um mito, porque, de certo modo, prometo a ascensão direta e fácil, do tipo “efeito elevador”, e uma condição especial de mobilidade. De fato, esse tipo de ascensão, quando realmente acontece, é exceção. Mais importante é ressaltar que oculta o fato de que o esporte é altamente seletivo do ponto de vista social. Os mitos representam a exceção e não a regra(...)” (RITTNER, 2013, p. 72-73).

Os estudantes apontaram também para a omissão do estado em relação ao esporte no país, principalmente por estar nas mãos do mercado em uma lógica liberal, questionando o que poderia ser feito para que essa questão seja invertida. Questionados se o problema era o esporte que não tinha capacidade de mudança, logo, concordaram que era a lógica de gestão do mesmo e de como e por quem era pensado, que o fazia irrelevante ou relevante como fator de mudança social, indo de encontro com o que Malina (201319) explicita, sendo o esporte, fruto do homem, sua condição e transformações, dependendo do trabalho humano e atualmente não dissociado do modo de produção capitalista, podendo ele contribuir também de forma negativa para a sociedade. Cenas do filme foram lembradas na discussão, como a cena descrita anteriormente da ida dos “Springboks” em regiões pobres do país, e, também, em relação a treinos abertos nas ruas também retratados no longa metragem. Existiram falas em direção à impossibilidade dessa realidade no Brasil, mesmo que esporadicamente se fizesse tais atos, foram colocadas as 3069

seguintes justificativas: pela lógica violenta que o esporte é tratado, podendo acarretar em agressões e falas no sentido de que os atletas não iriam querer faze-lo por precisarem produzir e buscar resultados, olhando para esses tipos de ações como algo que atrapalharia sua rotina de treinamento e o comodismo de ter em seus clubes seus centros de treinamento. Esses levantamentos novamente nos conduz a reflexão da lógica produtiva do esporte de alto rendimento se contrapor a ações políticas que transbordam essa produtividade, como se tivéssemos uma hierarquização de importâncias até mesmo por parte dos próprios estudantes. Malina (2013) novamente reflete essa relação, questionando o reducionismo de tratamento do esporte em uma lógica de indústria comercial de produção de atletas.

Considerações finais Buscamos, com este estudo, refletir a relação esporte x política no espaço da Educação Física escolar, problematizando e criticando os modelos históricos de ensino estritamente práticos da disciplina. Caminhando para reflexões sobre políticas públicas e esporte no país, no âmbito da Educação Física escolar, por parte dos estudantes do nono ano de uma escola pública federal do Rio de Janeiro, mostrou-se que a Educação Física, para além da “prática”, pode vir a utilizar espaços de sala de aula para reflexão, e, posteriormente, alinhamento dessas reflexões “na quadra” e no entendimento crítico de mundo na vida desses estudantes. Foi observado ao longo da pesquisa, em relação aos estudantes, avanços significativos no que diz respeito ao entendimento do esporte e sua relação direta ao contexto histórico político, vindo ao encontro dos objetivos propostos pela pesquisa-ação na escola, além da participação efetiva da Educação Física na construção de cidadãos críticos, situação perceptível durante as aulas práticas, no que tange reflexão e reconhecimento das diferenças através dos elementos da cultura corporal do movimento – jogo, esporte, dança, lutas e ginásticas. Sendo assim, o trabalho reflete a ação prática de metodologias críticas já criadas na área e possibilidade de metodologias inovadoras que possam modificar o panorama de compreensão da Educação Física “tradicional”, acrítica e estritamente prática.

Licenciando em Educação Física – Universidade Federal do Rio de Janeiro; monitor bolsista da disciplina História da Educação Física; membro do grupo de estudos e pesquisas sobre Políticas Públicas e Esporte; orientador: Leandro Teofilo de Brito (ProPEd/UERJ). E-mail: [email protected] 2 COLETIVO DE AUTORES. Metodologia de ensino da Educação Fisica. São Paulo: Cortez Editora, 1992. 3 CASTELALANI FILHO, Lino. Política educacional e Educação Física. 2º edição. Campinas, SP: Autores Associados, 2002. 4 THIOLLENT, Michael. Metodologia da pesquisa-ação. 18ª ed. São Paulo: Cortez, 2011. 5 EASTWOOD, Clint. Invictus. Warner Bros. Entertainment inc. e Spyglass Entertainment Funding, LLC. 2012. 6 WELLER, Wivian. Grupos de discussão na pesquisa com adolescentes e jovens: aportes teórico-metodológicos 1

3070

e análise de uma experiência com o método. Educação e Pesquisa (USP. Impresso), São Paulo, v. 32, p. 241260, 2006. 7

OLIVEIRA, Vitor Marinho de. Consenso e conflito, educação física brasileira. 2º edição. Rio de Janeiro, RJ: Shape, 2005. 8 BRASIL. Lei 9394/96 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Disponível em: Acesso em: 23 de Setembro de 2015. 9 BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos: Educação Física. Secretaria de Ensino Fundamental. Brasília, MEC/SEF, 1998. Disponivel em: < http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/fisica.pdf>. Acesso em: 23 de Setembro de 2015. 10 BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: ensino médio. Brasília, MEC/SEF, 2000. Disponivel em: < http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/14_24.pdf>. Acesso em: 23 de Setembro de 2015. 11 BRASIL. Ministério da Educação. Orientações curriculares do ensino médio. Brasília, DF, 2006. Disponível em: < http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/book_volume_01_internet.pdf>. Acesso em: 23 de Setembro de 2015. 12 Base Nacional Comum Curricular. Disponível em: < http://basenacionalcomum.mec.gov.br/#/site/inicio>. Acesso em: . 13 CARLIN, John. Conquistando o inimigo. Rio de Janeiro: Sextante, 2009. 14 CAPRARO, André Mendes; MEDEIROS, Cristina Carta Cardoso de; LISE, Riqueldi Straub. “Invictus” – integração racial na África do Sul e o poder político no esporte. Pensar a Prática, Goiânia, v. 15, n. 3, p. 551820, 2012 15 DIAS, Cleber. Esporte e Política em Invictus, de Clint Eastwood. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, Florianópolis, v. 36, n. 2, p. 515-530, 2014. 16 BRITO, Leandro Teofilo. ; CANDAL, Emanoel Borges. Invictus: classe social e relações étnico-raciais em debate na Educação Física escolar. In: IV Colóquio internacional educação, cidadania e exclusão, 2015, Rio de Janeiro. Anais... 2015. 17 MALINA, André; AZEVEDO, Angela Celeste Barreto de. O esporte é um fator de integração social? Apontamentos sobre a relação entre os limites do esporte no modo de produção capitalista e as possibilidades de uma pedagogia do esporte para a formação humana. In: MALINA, André; CESÁRIO, Sebastiana (Orgs.). Esporte: fator de integração e inclusão social? 2º edição ampliada. Campo Grande, MS: Editora UFMS, 2013, p. 23-50. 18 RITTNER, Volker. Esporte, um meio de integração social? In: MALINA, André; CESÁRIO, Sebastiana (Orgs.). Esporte: fator de integração e inclusão social? 2º edição ampliada. Campo Grande, MS: Editora UFMS, 2013, p. 67-83. 19 MALINA, André. O esporte como um bem da humanidade e o modo de produção capitalista. In: MALINA, André; CESÁRIO, Sebastiana (Orgs.). Esporte: fator de integração e inclusão social? 2º edição ampliada. Campo Grande, MS: Editora UFMS, 2013, p. 51-65

3071

Sobre lutas e identidades: a greve de 1901 e o “fazer-se” classe dos operários da Fábrica de Tecidos Confiança Industrial Henrique de Bem Lignanii

Resumo O presente trabalho se insere na temática extensamente estudada do movimento operário brasileiro durante a Primeira República, tendo por objetivo a realização de um estudo de caso acerca da organização dos trabalhadores da Fábrica de Tecidos Confiança, em Vila Isabel. Tenho como problemática para a pesquisa o entendimento do processo histórico através do qual ocorre o surgimento e a consolidação de uma identidade entre os operários dessa fábrica, entendendo a greve ocorrida em 1901 como ponto fundamental desse processo. Palavras-chave: movimento operário; formação de classe; identidade.

Abstract This work is inserted in the subject extensively studied about Brazilian labor movement during the First Republic, proposing the research of a case study on the organization of workers of Confiança Factory in Vila Isabel. The problematic for research is the understanding of the historical process through which occurs the emergence and consolidation of an identity between the workers of this factory, understanding the strike occurred in 1901 as a key point of this process. Keywords: labor movement; working-class formation; identity.

No dia 8 de novembro de 1901, os principais jornais em circulação na cidade do Rio de Janeiro relataram que se iniciava na Fábrica de Tecidos Confiança Industrial, em Vila Isabel, um movimento paredista deflagrado por operários da fábrica. O motivo apontado para a greve era uma multa estabelecida pela diretoria da fábrica a ser cobrada em virtude dos panos defeituosos que fossem produzidos, consistindo em 10% do valor desses panos. Diante da negativa por parte do diretor-gerente da fábrica, Manuel Orosco, em atender as demandas dos trabalhadores, os mesmos declararam-se em greveii. A partir de então estavam se desenrolando os fatos que levariam à greve de 1901, cujos eventos pretendo abordar neste

3072

trabalho. A escolha do evento em questão se justifica pois trata-se de um primeiro movimento levado à frente por parte desses trabalhadores a ser percebido de forma mais ampla, além de consistir em um momento privilegiado para apreender tais indivíduos agindo historicamente. Para tanto, utilizarei como fonte de pesquisa notícias a respeito do movimento veiculadas na imprensa diária da época, sobretudo no Jornal do Brasil, O Paiz e na Gazeta de Notícias. Buscarei demonstrar que a referida greve dos operários têxteis da Fábrica Confiança é um evento histórico que marca a sua formação enquanto classe, construindo uma identidade comum entre si e em relação a outros grupos, tal qual a acepção de classe social proposta por E. P. Thompsoniii. Além disso, percebo a atuação de grupos externos em meio ao proletariado da Fábrica Confiança, entendendo que o diálogo com tais indivíduos que se colocavam como intermediários das demandas operárias consiste em um elemento importante que aponta no sentido do surgimento de uma identidade de classe entre os trabalhadores. Após essa primeira movimentação por parte dos trabalhadores têxteis da Confiança, apontada como respeitadora da ordem pública, as forças policiais estabeleceram-se imediatamente na região, sendo demitidos já no primeiro dia dois dos trabalhadores. A partir do dia 9 de novembro, uma nova pauta aparece como sendo requisitada pelos trabalhadores grevistas: a demissão de Manuel Orosco, diretor-gerente do estabelecimento, e de Alfredo de Mattos, funcionário que exercia a função de mestre da sala dos panosiv. O diretor-gerente havia sido procurado pelos operários para que retirasse a multa anteriormente estabelecida, mas diante da recusa, sua saída passa a integrar as pautas do movimento grevista. Outro aspecto desse primeiro momento de mobilização dos trabalhadores da Confiança a ser mencionado é a intervenção de um agente externo à fábrica nos eventos desencadeados: o senador republicano Lopes Trovão. O caráter de sua atuação difere nas diferentes fontes analisadas, fato que considero relevante. Enquanto n'O Paiz o “tribuno popular” aparece como um advogado da causa dos operários junto aos diretores da fábrica v, a Gazeta de Notícias imputa aos próprios trabalhadores a escolha do senador para o desempenho desta mesma funçãovi. Difere dessa perspectiva o que apresenta o Jornal do Brasil, onde a atuação de Lopes Trovão parece ser mais autônoma, sendo afirmado que o senador “tomou para si a incumbência de ser o patrono da causa”, prometendo aos operários as conquistas almejadasvii. O fato é que houve reuniões entre Lopes Trovão e os diretores da

3073

fábrica, nas quais o senador ouviu o que estes tinham a dizer sobre a greve e expôs as demandas dos operários, além de reuniões entre o senador e os próprios trabalhadores. Quatro dias após o início das movimentações dos trabalhadores a imprensa noticiou o fim da greve, no dia 11 daquele mês. A essa altura, após conferências com representantes dos trabalhadores, a diretoria havia aceitado retirar a multa de 10% sobre o valor dos panos defeituosos, cobrando apenas o seu valor. Quanto à pauta da demissão do diretor-gerente e do mestre da sala dos panos, pareciam ser irredutíveis as posições tomadas pelos responsáveis, sendo emitido inclusive um comunicado assinado por Antonio Xavier Carneiro, diretorpresidete da Confiança, em apoio à permanência de Manuel Oroscoviii. A partir desse primeiro momento narrado a cima percebo, inicialmente, a existência de uma noção comum partilhada pelos trabalhadores do setor de tecelagem a respeito do que seriam medidas injustas tomadas pelos patrões. A recusa dos panos defeituosos não é nova nesse momento, sendo prática já estabelecida e recorrente, não consistindo motivo de revolta entre os tecelões. Entretanto, ao se instituir uma multa de 10% sobre o valor dos referidos panos altera-se o cenário, rompendo-se o consenso que até então existia entre operários e diretores a respeito dos tecidos defeituosos e sendo, portanto, percebida por eles como ilegítima. Essa era uma pauta específica dos operários dessa fábrica e, mais restritamente, daqueles estabelecidos no setor da tecelagem, diretamente afetados pela multa. Não estavam no horizonte desses indivíduos bandeiras comuns aos trabalhadores como um todo como, por exemplo, a adoção da jornada de trabalho de 8 horas diárias. A identidade comum produzida no processo que analiso, então, parece restrita aos trabalhadores da Fábrica Confiança. Apoiando-me na visão thompsoniana do conceito de classe social, entendo que a formação de um grupo enquanto classe irá opô-lo a outro grupo, a partir das experiências e interesses que compartilham entre siix. As outras pautas que aparecem ao longo do movimento indicam em contraposição a quem essa identidade dos tecelões da Confiança se formava: ao diretor-gerente Manuel Orosco e ao mestre Alfredo de Mattos, não havendo por parte deles um sentimento de aversão aos patrões ou aos diretores de forma ampla. Ao que me parece, os dois homens mencionados eram entendidos pelos trabalhadores como responsáveis por maus tratos e medidas que os desagradavam, provavelmente por estarem mais próximos da realidade de exploração percebida pelos operários. Alfredo de Mattos era mestre da sala dos panos, portanto, responsável pela tarefa de fiscalizar os tecidos defeituosos; já Manuel Orosco

3074

ocupava um cargo na direção, o que não me parece suficiente para explicar a aversão em relação a sua figura. Digo isso porque os outros diretores, Cunha Vasco e Antonio Carneiro, não eram alvos dos trabalhadores, mas ao contrário, pareciam desenvolver uma relação menos conflituosa. Lopes Trovão menciona até mesmo um “amor filial” dos trabalhadores em relação à Antonio Carneirox. Portanto, outro fato deve influenciar a atitude dos tecelões para com Orosco, como a sua recusa em retirar a multa sobre os panos defeituosos. Outro aspecto que mencionei como relevante em relação à primeira fase do movimento foi a atuação de Lopes Trovão como intermediário entre os operários e os diretores. Não me parecem haver dúvidas quanto à representatividade do senador entre os trabalhadores grevistas, uma vez terem acontecido reuniões entre eles e também entre Lopes Trovão e os diretores e autoridades policiais, nas quais eram levadas as pautas da greve. O que é discutível é até que ponto o papel desse indivíduo, agente externo à Fábrica Confiança, é exagerado nas notícias, sobretudo naquelas do Jornal do Brasil. É digno de nota, e ajuda a esclarecer essa situação, uma carta enviada pelo próprio senador ao referido jornal quando do término dessa etapa da greve, ao longo da qual o mesmo procura se distanciar da imagem de liderança dos paredistasxi. Lopes Trovão diz que fora procurado pelos trabalhadores que lhe relataram a situação ocorrida na fábrica. Dessa forma, percebendo a exaltação dos operários, Trovão decidira por intervir nos acontecimentos, buscando unicamente evitar que uma “crise sanguinolenta” se instaurassexii. O senador submetera ainda a sua mediação à condição de que os paredistas conversassem antes com os diretores; diz, por fim, que entendia e considerava justos os sentimentos tanto dos operários quanto dos patrõesxiii. É nítido que Trovão se apresenta como um conciliador entre os interesses dos trabalhadores e dos patrões, o que pode ser devido ao fato do posto de senador que ele ocupa. Essa atitude pode ser necessária para Trovão manter sua legitimidade frente à opinião pública, o que seria comprometido caso sua imagem fosse inteiramente vinculada à greve. Por outro lado, o Jornal do Brasil parece ter algum interesse em vincular a imagem do senador ao movimento, posto os outros dois periódicos consultados noticiarem de forma distinta esse mesmo evento. Terminada o que chamo da primeira etapa da greve, as reivindicações dos trabalhadores haviam sido atendidas parcialmente, retornando à normalidade o trabalho na Confiança. Essa ordem se mantém até o dia 26 de novembro, quando observou-se que um

3075

tumulto se iniciava na sala dos panos. O periódico O Paiz indica que um grupo de trabalhadores do setor havia abandonado os seus postos e incitavam os demais tecelões a fazer o mesmoxiv. Generalizou-se, assim, um conflito entre esse grupo e aqueles que não paralisavam suas atividades. Nesse momento, foi dada a ordem de que se fechassem as portas do edifício onde se localizavam o escritório da fábrica e que seria de residência para a família do diretor Manuel Oroscoxv. A repercussão deste segundo momento é bastante diferente. Desde o primeiro instante da movimentação dos trabalhadores, suas ações são referidas em termos de “algazarra”, “espetáculo indescritível”, sendo os paredistas identificados como “desordeiros” xvi, sendo mencionados atos como a danificação de materiais da fábrica. Quanto às motivações para essa nova greve, são apontadas as mesmas pautas presentes semanas antes e não alcançadas pelos trabalhadores: a demissão de Manuel Orosco e Alfredo de Mattos. Além dos dois nomes que já apareciam no momento anterior do movimento, agora os grevistas reivindicavam também a demissão de Celestino Marins, contramestre dos teares, e de Felipe Avelino de Moraes, mestre dos teares. Todos ocupavam cargos de chefia de seções, nos quais exerciam controle direto sobre os operários em produção. As fontes analisadas apontam relativa importância para a presença de um sujeito nomeado Francisco Ribeiro, taverneiro que possuía negócio em Vila Isabel, próximo à Confiança e cuja taverna consistia em ponto de encontro dos trabalhadores. O taverneiro Ribeiro é chamado a prestar depoimento junto ao chefe de polícia para esclarecer questões relativas ao movimento. Nesse depoimento, Ribeiro se apresenta como “amigo dos operários”, aos quais vendia seus produtos quase que com exclusividade, vendendo até fiado, ao que era pago com os vales que os trabalhadores recebiam. A partir da suspensão dos vales por Manuel Orosco, Ribeiro estaria privado de receber determinada quantia que lhe era devida. Para além disso, o negociante era o representante dos operários junto ao Centro das Classes Operárias (CCO)xvii, desconhecendo, entretanto, os motivos para a grevexviii. O conteúdo de tal depoimento pode confirmar uma afirmação veiculada pela Gazeta de Notícias e atribuída ao chefe de polícia, segundo a qual o movimento seria provocado por “questão particular, movida por elementos externos à fábrica contra o diretor-gerente, o senhor Orosco”xix. Entretanto, pode também revelar uma estratégia utilizada por parte de Ribeiro tendo em vista se afastar do movimento, posto que tal aproximação poderia lhe

3076

acarretar punições. Outra influência que parece ter sido importante ao longo deste segundo momento que analiso é a do Centro das Classes Operárias. Diversas reuniões foram realizadas por membros do CCO, inclusive suas principais lideranças, seja junto aos diretores da fábrica, às autoridades policiais e aos próprios operários. Além disso os trabalhadores da Confiança possuíam representação junto a essa organização, conforme expresso anteriormente. Nesse sentido, cabe analisar algumas características da intervenção do Centro das Classes Operárias no movimento deflagrado durante a segunda quinzena de novembro de 1901. Logo após os primeiros acontecimentos uma comissão do CCO comparece à repartição policial buscando intervir em favor dos trabalhadores. Entretanto o chefe de polícia afirma que nada poderia garantir, dadas as proporções do movimentoxx. No mesmo momento, os representantes do Centro se colocam a disposição, buscando saber até que ponto poderiam “intervir para suavizar os efeitos do movimento”xxi. São possíveis de serem percebidas algumas permanências neste segundo momento da greve quando analisado em relação ao primeiro. Em primeiro lugar, percebo como relevante o fato das pautas se repetirem, sendo requisitados os pontos não conquistados no primeira etapa do movimento. Entendo que isso demonstra que, mesmo com a aparente irredutibilidade da diretoria da fábrica Confiança em atender os operários quanto às demissões almejadas, estes mantiveram tais desejos em seu horizonte de expectativas, iniciando novamente o movimento para alcançar tais objetivos. Dessa forma, considero possível traçar essa linha de continuidade entre as duas greves, abordando-as como duas etapas de um mesmo processo. As lembranças da parede ocasionada nas primeiras semanas daquele mês de novembro não estavam presentes apenas entre os operários, mas também entre as classes dominantes. Demonstra essa afirmação o fato já mencionado de terem sido fechadas as passagens que conduziam à residência de Manuel Orosco, alvo do movimento, assim que este se estabelece, o que revela ao menos o receio por parte dos diretores de que as reivindicações não conquistadas anteriormente estariam novamente presentes. Acredito que essas memórias de um evento que acontecera a menos de um mês tenham contribuído para o recuo da posição irredutível adotada inicialmente pelos diretores da Confiança. Em relação às diferenças desta etapa para a anterior, está presente, em primeiro lugar, a utilização de métodos que antes não se fizeram presentes, como a danificação de materiais

3077

da fábrica e o ataque direto ao edifício, além do embate físico entre grevistas e não grevistas. Não é possível avaliar ao que se deve essa nova forma de ação, podendo ou não ser fruto da atuação de novos atores no movimento e do afastamento de outros que antes estavam presentes. O fato é que junto com as formas de ação muda também a cobertura por parte da imprensa, agora mais centrada na criminalização generalizada do movimento. É recorrente a utilização de termos que expressam essa posição, denominando os paredistas de desordeiros e mencionando a presença de elementos externos à fábrica, juntamente ao constante elogio dirigido às autoridades policiais em seu esforço por manter a ordem. No que se refere à intervenção de agentes externos aos operários da fábrica Confiança, nesta segunda fase do movimento Trovão não está mais presente, mas existem outros indivíduos que parecem estar atrelados aos grevistas, como é o caso do taverneiro Ribeiro. Assim como acontece com o senador, existem relatos que parecem confirmar a atuação de Ribeiro no movimento, como a sua participação em reuniões e o fato dele ser representante dos grevistas no Centro das Classes Operárias; entretanto, o taverneiro também procura se afastar desse atrelamento no depoimento que presta ao chefe de polícia. Por outro lado, além desta preocupação pessoal, parece haver o interesse por parte dos responsáveis pela redação dos periódicos consultados em comprovar a atuação de agentes estranhos aos trabalhadores. Uma notícia publicada no Jornal do Brasil quando estava terminada a primeira etapa da greve relata que “os operários mostravam-se bem dispostos e quando por acaso eram interrogados a respeito da greve, manifestavam o seu arrependimento, chegando mesmo a proferir palavras de censura contra aqueles que procuraram abusar da sua boa fé”xxii. Identifico, portanto, que tais periódicos procuram deslegitimar o movimento grevista como uma autêntica expressão dos trabalhadores, utilizando-se para isso do recurso que consiste em atribuir os interesses do movimento e a sua liderança às articulações de elementos não operários. Dessa forma, mesmo que esses indivíduos tenham participado das ações narradas, suas atuações são possivelmente potencializadas pelas fontes tendo em vista cumprir este objetivo por elas manifesto. A intervenção do Centro das Classes Operárias no movimento parece ser expressa em outros termos, uma vez que este era entendido como representante legítimo dos trabalhadores. Além disso, ao contrário do que acontece com os outros indivíduos vinculados ao movimento, o CCO não possui interesse em se afastar da greve, uma vez que é expresso pela própria organização que o seu papel é representar os trabalhadores. O fato que pode justificar a sua

3078

representatividade entre as classes dominantes é a sua ação ser pautada na conciliação dos interesses e na amenização dos conflitos, conforme relatado anteriormente nas conferências realizadas com os diretores e com o chefe de polícia. Acredito que essa ação reformadora do CCO, respeitando a autoridade exercida pelos diretores da fábrica, contribui para sua afirmação como autêntico interlocutor. Passada mais de uma semana com grande parte dos trabalhadores em greve, a situação parece ser resolvida no dia 4 de dezembro. Com o aval da diretoria da fábrica e tendo em vista o retorno da ordem, o chefe de polícia encaminha que não poderiam permanecer na fábrica o mestre Alfredo de Mattos, o contramestre Celestino Marins e cerca de 34 operários grevistas.Os dois primeiros entregam os seus cargos em prol “do bom andamento do retorno dos trabalhos”xxiii. Já Manuel Orosco, também comunica seu afastamento, mas supostamente o motivo é alheio à greve: o diretor-gerente se encontraria enfermo e iria passar certo tempo afastado, sendo substituído por José Maria da Cunha Vasco em suas funções. Findam-se assim as greves de novembro de 1901. As demissões que eram reivindicadas pelos operários têxteis foram conquistadas, o que levou ao encerramento da parede com o alcance das suas pautas. Entretanto, a forma como se consolidam essas conquistas é algo interessante, uma vez que elas são apresentadas não necessariamente como uma conquista dos trabalhadores. O afastamento de Manuel Orosco, fato essencial para o retorno dos trabalhadores aos seus postos, ocorre, em última instância, por motivos de saúde do mesmo. O que essa justificativa pode esconder é a preocupação por parte dos patrões da Confiança com que não fique explícita a vitória do movimento, posto que isso demonstraria a força daqueles trabalhadores. Outro aspecto importante do contexto final deste processo é a substituição de Orosco por Cunha Vasco, diretor-tesoureiro da Fábrica Confiança. Talvez por ocupar essa função específica na diretoria Cunha Vasco estivesse menos diretamente identificado com a exploração do trabalho e com a questão dos panos que dera início à greve, ao contrário do que acontecia com Orosco. Sendo assim, sua presença na função que antes era exercida pelo desafeto dos trabalhadores se revela apaziguadora, tanto que a greve se encerra sem maiores problemas. Além disso, é extremamente reveladora a forma pela qual a Gazeta Operária, periódico vinculado ao CCO, se refere a Cunha Vasco quase um ano depois do final desta greve, caracterizando-o como “ um dos patrões que mais sabem avaliar os esforços dos seus

3079

operários”xxiv e um “ diretor considerado pelos nossos companheiros”xxv. Em termos de observações finais, reafirmo a importância deste evento para o “fazerse” classe dos operários da fábrica, uma vez ter sido a primeira experiência de organização e luta dos trabalhadores têxteis em questão a ter certa repercussão e um ponto de partida para o surgimento de uma identidade de classe entre eles. Ainda no que tange à identidade operária em formação, ressalto que os trabalhadores têxteis da Fábrica Confiança, no decorrer dos acontecimentos da greve, enxergavam-se enquanto classe social em relação a um segmento específico daqueles presentes na indústria. Os interesses mobilizados pelos trabalhadores encontravam oposição sobretudo nos mestres de seções e naqueles que atuavam em posições que estavam em evidência no âmbito da exploração. Outros diretores que exerciam cargos os quais não implicavam um controle direto sobre a produção, estavam mais distantes de conflitos com os trabalhadores, sendo até vistos com simpatia por eles. Dessa forma, ressalto a necessidade de apreensão das relações sociais em perspectiva histórica, a fim de precisar entre quais indivíduos e em relação a quais outros a identidade de classe irá se formar, entendendo que tais aspectos não são definidos anteriormente e impostos à realidadexxvi. No que se refere à atuação do Centro das Classes Operárias, identifico uma contribuição expressiva para tal “construção de classe” por parte dos trabalhadores da Confiança. Acredito que a segunda etapa da greve de 1901 consiste um momento no qual acontece a intensificação das relações entre o CCO e os trabalhadores da Confiança. Em carta enviada ao Jornal do Brasil na qual se denunciava uma cobrança indevida que era feita aos operários da Fábrica Confiança, o representante do Centro menciona certo “especial carinho” em relação à fábrica, relatando ainda visitas feitas regularmente desde a última greve xxvii. A greve de 1901 marca, portanto, uma inflexão nas relações do CCO na Fábrica Confiança, passando essa a fazer parte das preocupações daquela organização, além do provável aumento da influência de indivíduos ligados a esse grupo entre os trabalhadores do local. O último aspecto que desejo retomar consiste nas conquistas, avanços e retrocessos observados no movimento, para o que me apoiarei nas reflexões de Eric Hobsbawm xxviii. Ao caracterizar uma greve ou manifestação popular como vitoriosa ou não, devemos ter em mente que o elemento que está em disputa são os meios da exploração, não a exploração em si. Diversas formas de coerção permaneceram existindo nas relações entre patrões e trabalhadores, entre os quais se incluem aqueles da Fábrica Confiança. Entretanto,

3080

especificamente naquela greve o que estava em jogo para os trabalhadores da Confiança não era o conteúdo da exploração social de forma ampla, mas sim questões imediatas referentes a ela. Nesse sentido, a multa estabelecida sobre os panos defeituosos, bem como aqueles indivíduos considerados adversos pelos trabalhadores foram derrubados. No momento não importava que motivações para novas lutas surgiriam mais tarde: aquela greve conquistara as bandeiras as quais se tinha proposto, intervindo nas condições concretas da vida daqueles trabalhadores e contribuindo para o seu “fazer-se” classe. i

Graduando em História na Universidade Federal do Rio de Janeiro e integrante do Laboratório de Experimentação em História Social – LEHS/UFRJ, orientado pela professora Manoela Pedroza. E-mail para contato: [email protected] ii Jornal do Brasil, 08/11/1901, Ed da manhã, p. 1; Gazeta de Notícias, 08/11/1901, p. 1; O Paiz, 08/11/1901, p. 2. iii THOMPSON, Edward Palmer. A formação da classe operária inglesa. Vol 1 e 2. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998; Idem. “Algumas observações sobre classe e 'falsa consciência'”. In: NEGRO, Luigi Antonio; SILVA, Sergio (org.). As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas: Editora da Unicamp, 2012. iv Jornal do Brasil, 09/11/1901, Ed da manhã, p. 1. v O Paiz, 09/11/1901, p. 1. vi Gazeta de Notícias, 09/11/1901, p. 1. vii Jornal do Brasil, 11/11/1901, Ed da manhã, p. 1. viii Idem. ix THOMPSON, Edward Palmer. A formação da classe operária inglesa. Vol 1 e 2. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998 x Jornal do Brasil, 13/11/1901, Ed da manhã, p. 1. xi Jornal do Brasil, 12/11/1901, Ed da manhã, p. 1. xii Idem, 13/11/1901, Ed da manhã, p. 1. xiii Idem, 14/11/1901, Ed da manhã, p. 1. xiv O Paiz, 26/11/1901, p. 2. xv Gazeta de Notícias, 26/11/1901, p. 2. xvi Jornal do Brasil, 26/11/1901, Ed da manhã, p. 1; Gazeta de Notícias, 26/11/1901, p. 2; O Paiz, 26/11/1901, p. 2. xvii O Centro das Classes Operárias (CCO) teria sido criado em 1902 a partir da Associação Operária Brasileira. Seus principais representantes eram França e Silva, Gustavo Lacerda e Vicente de Souza, sendo este último o líder do movimento. Organizado a partir da publicação da Gazeta Operária, o CCO defendia como estratégia de luta o avanço gradual para que se alcançasse o socialismo; pautava-se, assim, na diferença de interesses entre capital e trabalho, defendendo, entretanto, o estabelecimento de acordos como forma de dirimir conflitos (GOMES, 1994). xviii O Paiz, 27/11/1901, p. 1 e 2. xix Gazeta de Notícias, 29/11/1901, p. 1. xx Jornal do Brasil, 26/11/1901, Ed da manhã, p. 1. xxi O Paiz, 26/11/1901, p. 2. xxii Jornal do Brasil, 12/11/1901, Ed da manhã, p. 1. xxiii Jornal do Brasil, 04/11/1901, Ed da manhã, p. 1. xxiv Gazeta Operária, 26/10/1902, p. 4. xxv Idem, 02/11/1902, p. 3. xxvi THOMPSON. “Algumas observações sobre classe e 'falsa consciência'”. In: NEGRO, Luigi Antonio; SILVA, Sergio (org.). As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas: Editora da Unicamp, 2012. xxvii Jornal do Brasil, 26/08/1902, Ed da manhã, p. 2. xxviii HOBSBAWM, Eric. “Os destruidores de máquinas”. In: HOBSBAWM, Eric. Pessoas extraordinárias: resistência, rebelião e jazz. São Paulo: Paz e Terra, 1998.

3081

Anarquismo e Guerra: aspectos das concepções anarquistas sobre a Primeira Guerra Mundial. Ingrid Souza Ladeira de Souza (UNIGRANRIO)1 Angela Maria Roberti Martins (UERJ/UNIGRANRIO)2

Resumo: Esse trabalho integra um projeto de pesquisa que se realiza no âmbito do curso de História da UNIGRANRIO e do Programa de Pós-Graduação em Humanidades, Culturas e Artes da mesma Instituição. Sua proposta é levantar e analisar artigos, poemas e gravuras que circularam na imprensa anarquista do Rio de Janeiro e de São Paulo acerca dos conflitos que abalaram o século XX. Nessa comunicação, iremos nos ater apenas na reflexão de alguns artigos e poemas sobre a Primeira Guerra Mundial. Palavras-chave: Imprensa libertária; Primeira Guerra Mundial; representações.

Abstract: This work is part of a research project that takes place within the course of history UNIGRANRIO and the Graduate Program in Humanities , Cultures and Arts of the same institution . Its purpose is to raise and analyze articles, poems and engravings that circulated in the anarchist press in Rio de Janeiro and Sao Paulo about the conflicts that shook the twentieth century. In this communication , we will stick to just the reflection of some articles and poems about the First World War.

Keywords: Libertarian press; World War I; representations.

I Esse trabalho é parte de um projeto de pesquisa, em fase final, que vem sendo realizado no âmbito do curso de História da Universidade do Grande Rio (UNIGRANRIO), em interseção com o Programa de Pós-Graduação em Humanidades, Culturas e Artes da mesma Instituição, sob orientação da Profª Drª Angela Maria Roberti Martins. 3 Seu propósito principal é contribuir com as reflexões sobre guerra, articulando-se ao contexto que, em 2014, voltou-se para o centenário de início da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e, neste ano de 2015, para a celebração dos 70 anos de fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Nessa comunicação, iremos nos ater de forma mais flagrante no diálogo com alguns artigos e poemas publicados nos periódicos libertários que circulavam no eixo geográfico Rio de Janeiro-São Paulo nos primeiros anos do século XX, abordando o tema da guerra. O que se pretende, em última instância, é problematizar o discurso contestatório e o imaginário sobre a guerra, tomando-os como espaço privilegiado de crítica não só à escalada militarista dos 3082

Estados europeus, mas aos fundamentos dos conflitos mundiais, centrados, em especial, na ação dos Estados, com o imperialismo e o nacionalismo fermentando as tensões.

II Nas duas primeiras décadas do século XX, nas páginas da imprensa libertária, os anarquistas se expressavam utilizando diversas linguagens. Ao lado dos tradicionais artigos, era comum encontrar gravuras, poemas, diálogos doutrinais, contos, folhetins sobre diversos assuntos que estavam sendo discutidos na época e que, direta ou indiretamente, afetavam as camadas trabalhadoras, exploradas e oprimidas. O pensamento anarquista a respeito do processo de militarização, da corrida armamentista e de outras características da guerra, explicitava seu discurso contestatório e o imaginário sobre o conflito. Regra geral faziam, também, críticas aos seus principais inimigos, o sistema capitalista, o Estado e a Igreja e defendiam a liberdade e a igualdade, destacando a necessidade de se implementar formas mais livres de viver, frente a qualquer tipo de autoridade. Para discutimos as características que estavam propostas nesses artigos e poemas, é preciso ter em mente a importância da imprensa libertária na época da Primeira República brasileira. A imprensa libertária possui elementos muito particulares, assim como seu público, e pretendia atingir os grupos de operários adeptos ou não do projeto anarquista. Os periódicos tinham um aspecto inegavelmente histórico, de denúncia e de reflexão sobre os assuntos vigentes na sociedade, como seria o caso da Primeira Guerra Mundial. Apesar de suas diferentes orientações conceituais, a grande maioria dessas publicações manifestava a intencionalidade desses grupos no combate as formas autoritárias do viver. Alguns periódicos como A Lanterna, A Voz do Trabalhador, A Plebe, Spártacus, A Vida, A Guerra Social, apesar de circularem em diferentes conjunturas, continham artigos que manifestavam as concepções libertárias sobre os conflitos devastadores que se desenrolavam na Europa. A grande maioria desses periódicos trazia um conteúdo que expressava princípios fundantes do projeto anarquista, como o antimilitarismo, o internacionalismo, o fim das fronteiras, o antipatriotismo e a questão social que, segundo os libertários, envolvia a miséria dos povos ligados direta ou indiretamente com a Grande Guerra. Em suas críticas, destacavam a necessidade da guerra para a expansão do capital das nações nela envolvidas, interessando apenas à burguesia e aos Estados.

O jornal A Voz do Trabalhador, órgão da confederação operária brasileira, desde o 3083

início da Primeira Guerra Mundial trouxe uma série de poemas e artigos que visavam à divulgação daquilo que os anarquistas consideravam os horrores da guerra. O projeto anarquista era bem claro, principalmente quando se tratava da oposição a qualquer tipo de guerra, sempre vista como produto da “odiosa concorrência” entre as nações capitalistas. Em alguns artigos, é possível verificar a presença de certo pacifismo com principal linha de pensamento e também como solução dos conflitos. Na edição de 1 de outubro de 1914, em A Voz do Trabalhador, encontramos um artigo intitulado “Contra a Guerra”, descrevendo a conferência que a libertária espanhola Juana Buela proferira no salão do Centro Cosmopolita quando esteve no Rio de Janeiro. 4 Nessa conferência intitulada “A guerra, suas causas e seus resultados”, a propagandista libertária abordou as razões e os impactos da Primeira Guerra, enfatizando seu desdobramento sobre o mundo operário. Da mesma forma, ressaltou como os adeptos do projeto anarquista deveriam se portar perante a esse conflito internacional. Assim, o artigo destaca que a conferencista fez argumentações muito pertinentes sobre o momento que o mundo estava vivenciando. Em um dos trechos, Juana Buela, ao se referir ao serviço militar, afirmou que a Alemanha equivalia a qualquer outro país beligerante, sendo todos responsáveis pela calamidade universal então provocada pelos conflitos militares: [...] Diz Juana Buela não ser antipática a nenhum dos países beligerantes, porém nota que todos os clamores se levantam contra a Alemanha dizendo que a vitória desta seria a derrocada da civilização e o renascimento da barbárie militar. Historiando o serviço militar de vários países a oradora demonstra que são tais países equivalentes à Alemanha, cuja prova temos nas diversas comissões que se encontravam junto ao exército do Kaiser, aperfeiçoando-se a infamíssima arte de matar. [...].5

Para provar seus argumentos, a conferencista citou os conflitos imperialistas que se desenrolaram no continente africano envolvendo Inglaterra, França, Espanha, Itália e outros, destacando que “...nenhum deixou de praticar os mais abomináveis atos de crueldade àqueles povos que repeliam a tão decantada civilização moderna”.6 Crítica, a oradora destacou, também, que na disputa por territórios, uma civilização queria dominar a outra por meio das armas: [...] Admirada, a oradora exclama: que civilização é essa que quer pelo fogo de seus canhões e pelo aço de suas espadas obrigar povoações inteiras a submeterem ao seu domínio! O móvel dessas carnificinas é a ambição do domínio territorial para satisfação do egoísmo da classe burguesa, aumentando o fausto dos senhores do capital sobre a massa trabalhadora. [...].7

3084

Sublinhando a perspectiva econômica do imperialismo, a oradora, segundo o artigo, terminou sua conferência afirmando que a guerra era resultado da concorrência imperialista e que após a “tremenda catástrofe”, os trabalhadores, sendo os mais atingidos pelos conflitos e o sustentáculo das operações realizadas no front, “...num ímpeto formidável de cólera, espatifariam para sempre os terríveis grilhões que os oprimiam, emancipando-se da hidra capitalista”.8 Acreditava-se, assim, que o impacto da Primeira Guerra Mundial seria capaz de incitar protestos variados a partir do clima de incertezas estabelecido no pós-guerra. A camarada Juana Buela ainda chamou a atenção para o princípio internacionalista do anarquismo, fazendo menção à criação de comunidades autogeridas, nas quais prevaleceria a solidariedade, sem qualquer tipo de autoridade, sentimento patriótico e estabelecimento de fronteiras. E apresentava uma crítica àqueles que se deixaram levar por um sentimento pátrio, nacionalista, defendendo a guerra, a qual levava muitos jovens às batalhas na certeza de que, como nacionais, tinham o dever para com sua pátria. Nesse mesmo ano de 1914, começou a circular no Rio de Janeiro a revista A Vida, uma “publicação mensal anarquista” que aparecia no último dia de cada mês. Essa revista é uma fonte riquíssima de artigos referentes à guerra. A cada edição mensal, um ou dois artigos sobre o tema eram publicados reforçando a crítica dos libertários ao conflito mundial e reafirmando os princípios internacionalista e antimilitarista do projeto anarquista. Em alguns artigos é possível identificar até mesmo certa conotação pacifista, o que demonstra que nem todos os anarquistas eram a favor da violência. Nos meios libertários, em geral admitia-se recorrer à violência para combater a violência maior impetrada pela exploração capitalista, na esperança da reapropriação dos meios de produção por parte dos despossuídos. Na primeira edição de A Vida, lançada a 30 de novembro de 1914, um artigo chamado “A Conflagração Europeia. Os trabalhadores e a greve” trazia uma apreciação acerca das razões das guerras, da miséria e matança provocadas por esses conflitos militares e do papel do trabalhador que engrossava as fileiras do exército no front de batalha. [...] ...soldados submetem-se à disciplina, isto é, obrigam-se a não pensar, nem agir por si mesmos, mas sempre por ordem dos seus superiores; de modo que, se lhes mandarem matar, são obrigados a matar, seja a quem for e sem saber porque transformando- se assim em homens máquinas de matar. Esses homens são o instrumento das guerras. Existem guerras porque há homens ignorantes e a tal ponto brutalizados que aceitam, como coisa sagrada, o preconceito de pátria e se submetem cegamente às ordens de outros homens seus superiores. [...].9

3085

Para os libertários, como já foi dito, a guerra era produto da concorrência imperialista entre Estados e tinha consequências nefastas para a humanidade, embrutecendo os homens, exigindo vítimas em massa. Já os soldados que nela combatiam eram vistos pelos anarquistas como verdadeiras “máquinas de matar”, instrumentos do Estado e dos privilegiados na defesa do capital. [...] A guerra é a destruição do trabalho. Todo trabalho destruído é um fator da miséria. Consideremos as somas incalculáveis de trabalho humano despendido na formação e sustento dos colossais exércitos europeus. Consideremos a quantidade enorme de trabalho útil estragado na mobilização desses exércitos que se vão destruir. Quem produziu as riquezas necessárias à criação e manutenção dessas esquadras e desses exércitos? Os trabalhadores. Enquanto suas mãos trabalham para fabricar os calçados, os bonés, as fardas de milhões de homens, cujo serviço único é aprender a matar; enquanto suas mãos cultivam a terra e colhem os alimentos destinados a milhões de homens, cujo único ideal é obedecer cegamente ao aceno assassino de imperadores e generais; enquanto o seu esforço é assim explorado pelos que se dizem seus dirigentes, reis, diplomatas, senadores, generais, banqueiros e políticos, seus filhos ficam sem calçado e sem roupa... [...].10

Esse mesmo artigo enfatizava, também, que a guerra era a destruição do trabalho e, portanto, geradora de miséria e imposição de modos de vida. Além de gerar a miséria e desviar a energia do trabalho da produção de bens necessários à sobrevivência para a produção de armas e equipamentos destinados à guerra, os trabalhadores eram explorados pelos “imperadores” e seus filhos sofriam privações, muitas vezes envolvidos em uma guerra fratricida. Como se vê, os artigos publicados na imprensa libertária, em geral, apresentavam a forte oposição dos anarquistas à guerra, considerada um exemplo supremo da autoridade e mesmo a saúde do Estado e do Capital. As próprias ideias de patriotismo, de nacionalismo, de fronteira, de pavilhão nacional contrariavam os princípios internacionalistas do ideário anarquista, que defendia, entre outros, como Pátria o Universo, e como Família a Humanidade.11

III Além dos artigos, os poemas publicados nos periódicos constituíam, também, uma forma importante de divulgar as ideias libertárias ao conjunto dos trabalhadores em geral, atingindo, por meio da leitura coletiva ou declamações, um número maior de explorados e oprimidos. A poética era uma forma de manifestação artística bastante valorizada pelos libertários desde que revestida da questão social. Na verdade os poemas podem ser vistos como outra forma de linguagem, a qual integrava a chamada “literatura de ação”; uma literatura comprometida com os princípios

3086

libertários. Os poemas eram uma maneira de mobilizar e até mesmo conscientizar. Por seus versos curtos, sua linguagem concisa e ligeira e seu conteúdo impactante apresentavam um caráter pedagógico e crítico ao mesmo tempo. Um dos periódicos que tinha certa tradição em trazer artigos que relatassem os horrores da guerra, era A Guerra Social, que circulou no Rio de Janeiro entre 1911 e 1912. Em um dos poemas que publicou, chamado “Guerra”, o poeta, Jonas da Silva, cantou em versos como os homens infelizes sofriam com as guerras, os homens que iam a guerra, os homens que lutavam pelo nacionalismo; homens que na verdade não pertenciam a si mesmos, pertenciam aos burgueses, já que a guerra imperialista visava o lucro, como enfatizou Kropotkin: “a razão para a guerra moderna é sempre a competição por mercados e o direito a explorar as nações atrasadas industrialmente”12. Nos versos críticos do poeta aparece a crítica à Pátria, a inutilidade da guerra e o princípio internacionalista do anarquismo: Guerra Alegria dos corvos; alegria Das lanças, dos alfanjes, das espadas, Tinges o chão dos sois das madrugadas, Tinges o chão das púrpuras do dia.

Passam da morte as sôfregas rajadas, A dolorosa e estranha ventania; Pátria, madrasta sanguinária e fria Levas teus filhos às cenas desgraçadas.

Pátria és o grande preconceito fútil! Não há fronteiras demarcando o mundo A Guerra, a luta que se trava é inútil.

Nascente fraco?-Servirás ao forte! E que a luz, ilumine o moribundo E o turbilhão dos bêbados da morte.13

Nos primeiros versos do poema, Jonas da Silva deixa explícita a questão da morte na guerra, sempre destinada ao soldado, jamais ao marechal e ao general. É do soldado o sangue que corre e tinge o chão; sempre do soldado que luta em prol de algo que ele mesmo

desconhece; que morre deixando sua família só, os filhos desamparados, a mulher passando 3087

fome. Implícita no poema está a ideia de corpos mutilados numa guerra fratricida, fazendo a “alegria dos corvos”, já que a ordem é matar ou morrer. Ao longo do poema, o autor deixa claro que se o soldado vai à guerra, ele só terá um destino: a morte, para defender o que chama de “pátria madrasta sanguinária e fria”. Pátria essa que joga seus filhos a esmo, que leva seus filhos a um destino cruel, “às cenas desgraçadas”.14 Várias vezes durante o poema o autor faz alusão a pátria opressora. Refletindo, portanto, a tensão do momento histórico que precedeu a Primeira Guerra Mundial, marcado por alguns conflitos armados na Europa e norte da África, o poema tocava na questão da guerra entre as nações capitalistas, defendendo o

internacionalismo,

combatendo o militarismo e o patriotismo e criticando o conflito, visto como instrumento do Estado e dos privilegiados na defesa e expansão do capital. O periódico A Guerra Social posicionou-se, também, contra a guerra e seus desdobramentos. De forma bastante didática e criativa, a coluna “O cantinho das crianças Coisas de NhôNhô”, publicada em 29 de junho de 1911, apresentava um diálogo doutrinal, de forma anedótica, no qual se explicitava a tradição libertária do fim das fronteiras e das nacionalidades. Explicitava-se o princípio internacionalista do anarquismo, criticando a noção de pátria: O cantinho das crianças Coisas de Nhônhô [...] - Diga-me, papai, a pátria está antes da mamãe? - Está. - E se mamãe necessitar de mim e a pátria também, a qual das duas é que eu hei de acudir? - A pátria. - E que me dá a pátria? - Nada. - E a mamãe? - Tudo. - Então, eu fico com a minha mamãe e a pátria que vá para o diabo que a carregue...15

Esse diálogo doutrinal contestava diretamente o amor à pátria e indiretamente o serviço militar, recorrendo à forma anedótica. Em geral, os diálogos doutrinais, nutriam-se do recurso da ironia e da linguagem popular para melhor atrair o público receptor na crítica às instituições que fundamentavam a ordem estabelecida. Para além dos ataques às instituições jurídico-políticas, como a pátria, cumpre observar, nesse diálogo doutrinal, a explicitação da

3088

figura feminina como mãe – a mãe que guia, orienta e educa; e a mãe divina, que potencializa a vida e a encarnação profunda do amor, pela qual se luta, se mata e se morre. Em 1920, o poeta militante Lirio de Rezende publicou, na coletânea Mundo Agonizante, diversos poemas sociais, sendo possível identificar em alguns deles versos destinados à crítica da guerra que havia terminado na Europa pouco tempo antes. 16 O tom do poema é inflamado e a linguagem, bastante culta, permeada de referências mitológicas e históricas. MUNDO AGONIZANTE

POEMA SOCIAL [...] Há pouco se travou em nome do Direito Uma guerra infernal! E por trás dos canhões firmava-se outro pleito Surdo, comercial! E a guerra terminou deixando esfarrapados Vencedores e vencidos; Somente os abastados Gozam refestelados, Sem querer dar ouvidos Aos tristes explorados! Mas o Povo aprendeu a maior das lições, Agora quer viver feliz, sem tubarões ... Sofreu para manter os soldados na guerra E’ justo que possua a liberdade e a terra![...] [...] Vós amais o dinheiro, o corruptor do mundo, O causador feroz da fome! e peste! e guerra! [...]17

Para o poeta, a guerra era fruto da concorrência comercial, deixando esfarrapados todos que nela se envolveram. Os abastados continuam gozando sua fortuna sem se importar com os “tristes explorados”. Marcando sua atitude de crítica político-social, o poeta defendia a liberdade e a terra para o povo que sofreu na guerra e com a guerra, desejando viver “sem tubarões”. Essa poética de Rezende e de outros caracterizava-se como arte revolucionária na medida em que nela sobressaía seu caráter social, tanto no sentido da crítica a ordem estabelecida quanto no da divulgação dos ideais libertários, em uma demonstração clara de contraposição à guerra perpetrada pela sociedade burguesa e pelo sistema capitalista. Em seu conjunto, os poemas e diálogos doutrinais possuem um caráter pedagógico e crítico ao mesmo tempo. Pedagógico na medida em que são “... voltados à formação dos trabalhadores e à disseminação do ideário anarquista”, com o propósito de inteirar o 3089

trabalhador do ideal libertário e despertar seu espírito de luta.18 Crítico porque combatem o modelo burguês e capitalista, mostrando as condições de exploração da maioria absoluta da humanidade. Esses poemas mostram um trabalho cuidadoso com a linguagem no sentido de se fazerem entender, não descuidando do vocabulário, que parecia ser escolhido com esmero, preocupando-se em manter características inerentes ao texto poético, como a rima, por exemplo. Com o objetivo de mobilizar o trabalhador, os versos pareciam estimular tanto o seu agir individual quanto o seu espírito coletivo para que ele se sintisse capaz de, a um só tempo, destruir a sociedade estabelecida e construir a sociedade anárquica em um futuro próximo. A intenção clara é derrubar os poderes que limitam e coagem os homens e edificar uma sociedade a-autoritária cujo maior e melhor bem fosse a liberdade plena.

IV A imprensa libertaria foi de suma importância para propagação das ideias e dos ideais do movimento anarquista; movimento cujo projeto era orientado para a mudança por meio de uma perspectiva revolucionária, sempre preocupado com a construção do novo homem, da nova mulher, enfim, de uma nova sociedade, mais livre e igual. Do Estado opressor, desejavam o fim; da burguesia usurpadora, a derrocada; e das várias formas de violência – econômica, política, religiosa -, a superação, para que fosse possível construir a paz e a união entre os povos. Os artigos e poemas aqui apresentados tinham uma intenção central: mobilizar, conscientizar, politizar acerca dos males que estavam ocorrendo mundo afora. A critica ao capital se faz presente em quase todos os momentos, assim como as críticas aos burgueses que só pensam em si mesmos, que visam seus próprios benefícios. No diálogo com artigos e poemas, foi possível verificar a luta anarquista em favor da liberdade, que para os mesmos não é algo imposto, tampouco dado, mas conquistado. Além da proposta de liberdade, os artigos e poemas anarquistas publicados analisavam o cenário da guerra e apontavam formas de opressão dos estados imperialistas sobre os trabalhadores, não só porque engrossavam as fileiras dos exércitos, mas porque construíam as estruturas em favor dos soldados, marechais e generais, ao produzir os produtos necessários para a subsistência dos soldados no front de batalha. Os libertários atuante no Brasil chegaram a organizar uma campanha antimilitarista que envolveu a cidade do Rio de Janeiro. Fundaram a Liga Antimilitarista Brasileira e redigiram seu programa, texto que ocupou as páginas de vários periódicos, incluindo “órgãos 3090

conservadores e militaristas como o País e o Jornal do Brasil”.19 Colocando-se contra o serviço militar obrigatório, o Estado militarizado e a guerra, os libertários argumentavam também que o sorteio militar “perturbava as famílias operárias” e que a militarização era contrária aos princípios pacíficos e trazia consequências nefastas para a humanidade, embrutecendo os homens, exigindo vítimas em massa, a maioria formada por jovens. Indicavam, assim, a possibilidade de uma ética essencialmente humana, direcionada à dignidade social por meio da guerra à guerra!

1

Graduanda em História da Universidade do Grande Rio (UNIGRANRIO). Bolsista de Iniciação Cientifica FAPERJ. E-mail: [email protected] 2 Doutora em História Social pela PUC-SP, professora adjunta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ/IFCH/Departamento de História) e da Universidade do Grande Rio – UNIGRANRIO (Curso de História e Programa de Pós-graduação em Humanidades, Culturas e Artes PPGHCA). E-mail: [email protected] 3 O projeto de Iniciação Científica intitula-se Anarquismo e Guerra: o discurso contestatório e as representações verbais e visuais (1901-1945) e a bolsista possui bolsa de Iniciação Científica concedida pela FAPERJ. 4 Juana Roco Buela nasceu em Madri em 1889 e viveu entre Buenos Aires e Montevidéu, falecendo na Argentina em 1968. Teve participação ativa no processo de conscientização e organização das mulheres trabalhadoras, inserindo-se de forma decisiva no movimento libertário argentino. 5 A Voz do Trabalhador. Rio de Janeiro, 01 out. 1914. p.3. 6 Ibidem p.3. 7 Ibidem, p.3. 8 Ibidem, p.3. 9 A Vida. Rio de Janeiro, 30 nov. 1915, p.13-14. 10 Ibidem. p. 14. 11 MOURA, Maria Lacerda de. Serviço militar obrigatório para mulher? Recuso-me! Denuncio! São Paulo: Opúsculo Libertário, 1999. p.32. Essa obra reproduz uma conferência proferida pela autora no Rio de Janeiro, em 1932. 12 KROPOTKIN,Piotr. As Guerras e o Capitalismo. Revista Freedom Pamphlet, Londom, 1914. In: http://www.uff.br/geographia/ojs/index.php/geographia/article/viewArticle/633 13 DA SILVA, Jonas. Guerra. In.: A Guerra Social. 10 fev. 1912. p. 2 14 Ibidem, p.2 15 A Guerra Social. Rio de Janeiro. 29 jun. 1911, p. 3. 16 Coletânea anexada ao processo de expulsão do português Abel Ribeiro dos Santos, que foi acusado de ser um “estrangeiro nocivo e perigoso” por sua militância política. ARQUIVO NACIONAL. SPJ, Módulo 101, pacotilha IJJ7 168. Por questões práticas, a grafia original não foi mantida, optando-se por sua atualização segundo as regras atuais da língua portugesa. Ressalte-se, no entanto, que ela compõe a proposta transformadora de revolução gráfica dos Paladinos do Porvir, grupo responsável pela edição da coletânea. 17 REZENDE, Lirio. Mundo Agonizante. Rio de Janeiro: /s.n./, 1920. p. 6-10. 18 SILVA, Doris Accioly e. Anarquistas: criação cultural, invenção pedagógica. In.: Educação e Sociedade. Campinas: UNICAMP. v. 32, n. 114, p. 87-102, jan.-mar. 2001. Disponível em http://www.cedes.unicamp..br 19 ASSUNÇÃO, Mota. Os sicários do jornalismo. (criminologia – defesa pessoal – sociologia). São Paulo: Offic. Graph. Monteiro Lobato & comp., 1923. p. 99.

3091

“PARAHYBANOS ILLUSTRES” NO TEATRO DA GUERRA: UMA ANÁLISE HISTORIOGRÁFICA SOBRE A GUERRA DO PARAGUAI NA REVISTA DO IHGP (1910-1912) JANYNE PAULA PEREIRA LEITE BARBOSA Graduada em História- UFPB Orientadora: Serioja Rodrigues Cordeiro Mariano [email protected] RESUMO Nesse trabalho objetivamos realizar uma revisão historiográfica acerca das memórias da Guerra do Paraguai na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano (IHGP) nos números 2,3 e 4, entre os anos de 1910 – 1912. Entendemos que cada presente seleciona um passado que deseja e lhe interessa conhecer. Sendo assim, esse texto tem como aporte inicial analisar e entender a construção de uma memória sobre alguns paraibanos que participaram dos conflitos no Paraguai. Palavras-chave: Guerra do Paraguai; historiografia; paraibanos.

ABSTRACT In this study we aimed to perform a historiographical review about the Paraguayan War of the memories in the Journal of History and Geography Institute of Paraíba (IHGP) the numbers 2,3 and 4, between the years 1910 - 1912. We understand that each present selects a past that want and interests you know. Thus, this text has as initial investment analyze and understand the construction of a memory about some Paraíba who participated in conflicts inParaguay. Keywords: War of Paraguay; historiography; paraibanos.

Nesse trabalho objetivamos realizar uma revisão historiográfica acerca das memórias da Guerra do Paraguai na Revista do IHGP nos números 2,3 e 4, entre os anos de 1910 – 1912. Entendemos que cada presente seleciona um passado que deseja e lhe interessa conhecer. A história é necessariamente escrita e reescrita a partir das posições do presente, lugar de problemática da pesquisa e do sujeito eu a realiza. (REIS, p. 9, 2007). Sendo assim, esse texto tem como aporte inicial analisar e entender a construção de uma memória de alguns paraibanos sobre a Guerra do Paraguai. Partimos do princípio de que toda narrativa histórica necessita de uma análise prévia acerca do que já foi escrito sobre a mesma, para assim serem realizados novos questionamentos, iniciando um novo processo de ressignificação sobre determinado fato 3092

histórico. Pois, assim como afirma SCHWARCZ (1993), o papel dos institutos históricos era construir uma história da nação, recriar um passado, solidificar mitos de fundação, ordenar fatos buscando homogeneidades em personagens e eventos até então dispersos. Sendo assim, porque estudar as revistas do IHGP para compreender a memória da Guerra do Paraguai? Atinamos para isso após realizarmos algumas leituras de caráter bibliográfico e documental, e percebemos que os Institutos foram responsáveis pela construção de uma memória nacional, assim, sentimos a necessidade de entender o que os membros do IHGP escreveram sobre a Guerra e qual o olhar desses autores sobre os acontecimentos e personagens que fizeram parte das Campanhas no Paraguai. A Revista teve início em 1909, mas para esse estudo selecionamos três volumes: vol. II, III e IV (1910, 1911 e 1912). Esse recorte se justifica tendo em vista que nas nossas pesquisas, observamos que nesses três volumes (II, III e o VI) publicado em 1910, 1911 e 1912, o tema é recorrente, inclusive tendo a seção o nome de “ParahybanosIllustres1”. Percebemos que nos três volumes da revistas e na secção mencionada conta-se a história de algum paraibano “importante” que teve uma carreira brilhante, seja como estudante, político, engenheiro, militar, escritor, etc. Reforçando e legitimando a construção de pertencimento a um lugar social. Buscando a solidificação de uma memória vista como relevante para a história. É, portanto, no interior desse processo de consolidação do Estado Nacional, tão marcado por disputas regionais, que toma força um programa de sistematização de uma história oficial. Ao IHGB coube o papel de demarcar espaços e ganhar respeitabilidade nacional. Aos demais, a função de garantir as suas especificidades regionais e buscar definir, quando possível, certa hegemonia cultural. (SCHWARCZ, 1993, p. 130).

Como afirma a autora, a formação dos Institutos foi iniciativa do próprio Estado Nacional. Era necessário naquele momento construir a memória da nação, exaltar os grandes feitos e os principais protagonistas da História nacional. Assim, o IHGP foi criado em 1905, já na República, porém ainda com os preceitos desses membros do Império. “Glória da pátria, do exército e do magistério”: Dr. Francisco Antônio Carneiro da

Cunha

1

Esse termo é utilizado pela própria revista do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano na tentativa de ressaltar os homens e seus grandes feitos, justificado pelo ideal dos próprios Institutos. “Illustres” porque eram importantes e mereciam destaque nas páginas da revista, segundo os objetivos do IHGP.

3093

Pensamos em dividir a nossa narrativa historiográfica em três pontos, nos quais apresentam uma conexão na seção da revista. Dessa forma, o primeiro paraibano a ser rememorado é o Dr. Francisco Antônio Carneiro da Cunha. Francisco Antônio Carneiro da Cunha nasceu no dia 13 de junho de 1845 na cidade Parahyba, tendo como pais Antônio Carneiro da Cunha e D. Adelaide Francisca de Barros. A revista do IHGP descreve tal acontecimento com as seguintes palavras: [...] mais tarde o nome de Francisco Antonioechoaria, por todos os ângulos do Brazil, repercutindo no estrangeiro, como um brazão da glória nacional, para ilustrar á sua família, encher de gloria o nosso exercito, de brilhantismo o magistério brasileiro, de fulgurantes irradiações o tepo da sciencia pátria e de honra e nobresa a nossa querida Parahyba. (CUNHA, 1910, p. 166).

Aos 15 anos, Francisco A. Carneiro da Cunha seguiu os conselhos do pai e começou sua carreira nas armas, tendo assentado praça em 1860 na capital da Paraíba. Além de militar, segundo o autor, os desejos de FranciscoA. Carneiro da Cunha ultrapassaram os caminhos das armas e foram além, perpassando pelas letras. Em seguida, seguiu para o Rio de Janeiro onde iniciou seus estudos na Escola Militar, deixando para trás familiares e amigos. Segundo a revista, essa iniciativa de Francisco A. Carneiro da Cunha ilustrava o desejo deste fazer brilhar o nome da família e do país. Ali, era a Patria! A acenar-lhe o futuro, pedindo o seu valioso concurso para o engradecimento do seu nome: eis o valor heroico de sua enérgica vontade áeleval-o á altura do sublime para o cumprimeiro de um dever sagrado. Nobre e santo é o sentimento de saudade! Grande e heroico é o amor a Patria! [...] E o que mais se destacava na vida desse nobre militar, rico de talento e de patriotismo, elevado á categoria de bravo, foi a coragem com que soube enfrentar os perigos e trabalhos de uma guerra que foi cruel, em defesa da soberania nacional, de sua pátria, vilipendiada por um tyrannodeslial. (CUNHA, 1910, p. 169).

Através da análise das revistas, notamos que assim como a ideia de patriotismo, a ida para a guerra se caracterizou como um dever do bom cidadão brasileiro, que amava a pátria e que valorizava a soberania nacional. Essa afirmação foi perpassada desde a formação do Estado Nacional na tentativa de desenvolver um sentimento de pertencimento nos cidadãos espalhados pelo país. Como afirma Olga Maria Castrillon Mendes (2012), a participação na guerra era motivo de glória e de fama, o que, para um jovem militar, de feições vaidosas, poderia estar acima de qualquer outra manifestação visível. Francisco A. Carneiro da Cunha conseguiu licença para estudar na Escola Central, na capital do Império, no ano de 1862 e foi promovido ao posto de Alferes Aluno. Em 1864 o cenário brasileiro começou a mudar. A notícia de que Solano Lopez, ditador paraguaio, tinha invadido o país iniciou uma campanha nacional em prol do recrutamento de voluntários que pudessem “lutar pelo país” nos campos de batalha. Como órgão vinculado ao

3094

Estado

nacional, os Institutos Históricos cumpriram seu papel de apoiar e defender os rumos determinados pelo Império Brasileiro. No caso do IHGP, mesmo sendo criado no início da República, manteve aspectos advindo do Império, como por exemplo, quando publica artigos numa seção intitulada “ParahybanosIllustres”. Ou seja, homens importantes e vinculados a elite imperial paraibana que participaram das Campanhas no Paraguai como bons defensores da honra nacional. Como afirma SCHWARCZ (1993), financiados pelo imperador, ou pelos próprios sócios, os institutos caracterizavam-se mais como sociedades de corte, especializados na produção de um saber de cunho oficial. Ou seja, aos institutos foram delegados o poder de reconstruir a história nacional a partir de uma visão construída pela própria elite Imperial. Sobre o início do confronto, o autor escreve: Esse insólito acto de barbaridade fez despertar na alma nacional, os sentimentos vibrantes de patriotismo, que caracterisamo povo brazileiro. O povo brazileiro, embora mais propenso á paz do que á guerra, naquela ocasião estimulado por uma provocação extemporânea e se rasão de ser soube erquer-seá altura de quem é ocioso de sua dignidade, apresentando ante as nações estranhas um espectaculo digno de admiração. (CUNHA, 1910, p. 170).

Nessa citação, podemos observar a necessidade de reforçar a identidade nacional dos brasileiros. Ainda jovem soldado, Francisco A. Carneiro da Cunha deixa a Escola Central no ano de 1864 e seguiu mares a fora, com os companheiros até os campos de Guerra. Os trechos da revista nos incitam a pensar que a ida a guerra por “todos os brasileiros”, obrigados ou não, foi um “ato de honra e coragem”, que representou principalmente o dever patriótico de um cidadão que queria “cuidar de seus direitos, que era amante do país e queria defender a Bandeira”. No começo da Campanha, Francisco A. Carneiro da Cunha auxiliou militares e comissões de confiança. Recebeu elogios representados nas ordens do dia e fez “honrar sua ida a Guerra”, sendo promovido ao posto de Tenente nesse mesmo ano. No combate da Ilha da Redenção, Francisco A. Carneiro da Cunha foi mortalmente ferido por bala quando ainda estava em combate. A notícia descreveu: “Foi um dos martyres do combate da Ilha da Redempção, fazendo jus, por sua dedicação, bravura e sofrimentos, a ser já naquele tempo, considerado um benemérito da Pátria” (Apud, CUNHA, 1910, p. 173). Assim como na revistas, os diários de guerra também representavam a aliança dos partícipes do confronto como sendo “homens de honra e glória”, “homens heroicos” que resguardaram a “superioridade e importância do Estado Nacional” até os últimos capítulo da Guerra. Após ser atingido, Francisco A. Carneiro da Cunha foi transportado para um hospital de sangue, “com um rombo no rosto, feito pelo estilhaço”, que destruiu toda a parte óssea do seu nariz, infeccionando e trazendo enormes inchaços para sua cabeça. As condições dos

3095

hospitais e enfermarias durante a Guerra eram ínfimas, o que só aumentou o número de mortos. Apesar dos intensos ferimentos, Francisco A. Carneiro da Cunha sobreviveu e conseguiu licença de 6 meses, voltando do Teatro da Guerra ainda em 1866. Em todos os cantos da Província os feitos de Francisco foram relatados com glória e honra. A revista nos mostra que além de ser uma “honra gloriosa” para a família, era acima de tudo uma “honra para a Paraíba” ter um homem tão “honesto e bravo”, “trazendo no rosto uma “honrosíssima cicatriz” como prova evidente de sua “bravura e de seu heroísmo”. Infelizmente o autor não informar com quais fontes ele trabalhou. Interessante notar que além de exaltar os feitos do Estado nacional e dos homens que contribuíram para o sucesso do país, o IHGP faz referência a importância de ter um sujeito como Francisco A. Carneiro da Cunha como brasileiro e acima de tudo, paraibano. Como militar, engenheiro e tenente, Francisco A. Carneiro da Cunha foi tomado como um exemplo e representado como um herói. Recebeu alguns títulos como por exemplo: Hábito de Cavalheiro da Ordem da Rosa, pelos relevantes serviços prestados na guerra. Ocupou diversos cargos públicos como: comandante da companhia de operários no Laboratório Pirotécnico do Campinho, no Rio de Janeiro; foi nomeado Ajudante do Diretor desse mesmo estabelecimento citado anteriormente; em 1868 foi promovido ao posto de Capitão dos Engenheiros, após concluir o curso de engenharia que estava parado desde 1864; em 1871, já impossibilitado de seguir no cargo devido as consequências do ferimento a que foi acometido durante a Guerra. Em 1884 recebeu o título de Tenente Coronel do exército, ainda em atenção aos serviços prestados na campanha do Paraguai. Foi nomeado lente catedrático da escola militar no ano de 1887, recebendo o grau de Doutor em Ciências Físicas, Naturais e Matemáticas. Em 1892 foi elevado ao posto de Coronel Honorário do exército pelos bons serviços prestados ao país. Contando apenas com 50 anos de idade, Francisco A. Carneiro da Cunha faleceu. O Comando da Escola Militar da Capital Federal se refere a esse acontecimento com o seguinte pronunciamento na Ordem do Dia n. 200: O Doutor Francisco Antonio Carneiro da Cunha era uma gloria da pátria, do exercito e do magistério. Cidadão, era um modelo das mais perigrinas virtudes. Soldado, ninguém o excedeu em préstimo e em bravura no campo de batalha onde derramou o seu precioso sangue; professor, suas fulgentes licçõesconsubstaciavam – Tudo quanto de mais elevado ao espirito humano é dado conceber- Por tão infausto e doloroso acontecimento ficam suspensos os trabalhos escolares de hoje e a todos convido para tomar lucto por oito dias. (CUNHA, 1910, p. 162).

3096

Os agradecimentos e exaltações dos feitos de Francisco Antonio Carneiro da Cunha são recorrentes durante toda a seção da revista na qual pautamos nossa discussão. Devemos notar que a necessidade de firmação da memória nacional foi um grande vetor de propagação dos ideais do Estado Nacional, e principalmente da construção de uma história oficial. Outro ponto importante é perceber que a educação era mola propulsora para o processo de formação do Estado Nacional. Consideramos importante ressaltar que todo o capítulo da revista foi escrito pelo filho do Francisco A. Carneiro da Cunha, chamado Francisco Pedro Carneiro da Cunha, o que mostra que os Carneiro da Cunha estavam ligados a elite imperial paraibana e compunha lugar de destaque no cenário regional e nacional. O tom heroificado que é dado ao Francisco A. Carneiro da Cunha representa a essência dos Institutos Históricos, que pode ser visto e revisto pela história, através dos questionamentos e críticas necessárias a todo trabalho de cunho historiográfico. 1. Ahi está um distincto cavaleiro de Tasso, um heróeChristão,

um Parahybanoprestimoso!- O Tenente Rufino Marques Camacho Para a construção dessa etapa da narrativa historiográfica utilizaremos a revista do IHGP do ano de 1911. O trecho que analisaremos foi escrito por Francisco Antonio Carneiro da Cunha. Vale salientar que, esse texto foi publicado na revista mas não foi escrito para a revista. Faz parte de suas memórias que posteriormente foram publicadas. Nascido em 30 de Julho de 1838 na Capital da Paraíba, Rufino Marques Camacho era filho legítimo do negociante Manoel Marques Camacho e D. Candida Maria da Conceição Camacho. Diferente de Francisco A. Carneiro da Cunha, Camacho não aspirava a carreira pelas armas. Ele foi um dos sujeitos que, segundo a revista, compartilhou o espírito patriótico que chegou junto a Guerra do Paraguai e que foi o motor de propulsão para resgatar voluntários para o Teatro de Guerra. O trecho acima exemplifica a visão de um contemporâneo da guerra sobre a ida dos Voluntários ao Campo de Batalha. Ou seja, como ato de “bravura e patriotismo”, Camacho seguiu para a Guerra no primeiro corpo de Voluntários que saiu da Paraíba com destino ao Rio de Janeiro. Ainda em 1865, Camacho recebeu o título de Alferes e seguiu com o 21º Corpo do exército, sob o comando de Osório. O “filho de Sparta” seguiu para a guerra e foi retratado como grande herói. Quando a guerra é retratada, o autor mostra que o impacto dos paraibanos quanto aos acampamentos em Entre Rios e em Juquery assustou aqueles que juntos foram lutar e perder

3097

suas vidas em prol da glória do Estado Nacional. Nesse volume da revista, Francisco A. Carneiro da Cunha nos apresenta o que seriam esses acampamentos e os campos de batalha: Ainda não tinha os bravos voluntários experimentado, em fraternidade, os rigores da campanha, e já esta medida, severa podemos dizer, veio carregar-lhes com tintas fortes o quadro assustador dos sofrimentos do campo de guerra. E assim tiveram logar as separações dos amigos, das dedicações, dos patrícios, os quaes juntos, tratariam de mitigar as arperezas e martyrios dessa vida tão trabalhosa, cumprindo sempre entusiasmadas e ardentemente as árduas obrigações de seus postos. (CUNHA, 1911, p. 78 [grifo nosso]).

Com as divisões entre vários batalhões, Camacho acabou ocupando o batalhão 11º, distanciando-se dos paraibanos que compunham o grupo inicial. Seu destaque no campo de batalha proporcionou menções na Ordem do seu comandante, ganhando assim o título de Cavalheiro da Imperial Ordem da Rosa. Após servir durante meses, Camacho foi atingido por uma bala inimiga no dia 24 de maio de 1866. As surpresas do Campo de Batalha atingiram Camacho, levando-o a morte em meio ao conflito: “Morreu o Bravo Voluntário molhando com o seu sangue o campo ainda palpitante do patriotismo de seus companheiros, victimas já no coração da peleja, mas teve a morte gloriosa de heróe[...]” (CUNHA, 1911, p. 80). O que podemos dizer é que assim como Camacho, muitas vidas foram ceifadas nesse conflito entre a Tríplice Aliança e o Paraguai.

2. Alto, esbelto, elegante, era ele o verdadeiro typoolympico de fidalgo,

tanto no porte como nas maneiras – José Thomas Carneiro da Cunha Francisco Pedro Carneiro da Cunha inicia a seção da revista, volume IV do IHGP, ano de 1912, com uma passagem que descreve a presença de José Thomas Carneiro da Cunha, seu tio, durante as Campanhas do Paraguai:

Na campanha do Paraguay, onde prestou relevantes serviços elle se portou como um segundo Cynergiro, ateniense, que se tornara celebre na batalha de Marathóna, na perseguição dos persas; ou, com Acilio, soldado romano, que quando os inimigos lhe cortaram a mão direita ele segurou-se ao navio com a esquerda para continuar a lucta. Na pratica dos melhores costumes e do dever ninguém jamais o excedeu e nem subiu mais alto. Toda a sua vida, sobrepujante de nobres feitos, ilustra a terra onde ele vio pela primeira vez a luz do dia e nos eleva também. (CUNHA, Francisco Pedro Carneiro da. ParahybanosIllustres. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, v. IV, ano 1912, p. 95).

A citação acima faz referência ao teor de exaltação exercido pelos escritores do IHGP acerca dos “parahybanos illustres”, homens paraibanos que fizeram parte da história

3098

nacional através de algum feito ou contribuição como estamos vendo, por exemplo, sobre a ida desses homens as Campanhas do Paraguai. Interessante notar a comparação feita por Francisco Pedro Carneiro da Cunha, sobre seu tio e os heróis do mundo antigo, exaltando-o e reforçando sua “força e bravura”. José Thomas Carneiro da Cunha era filho de Antonio Thomas Carneiro da Cunha e Dona Adelaide Francisca de Assis Barros. Nasceu na capital da Parahyba do Norte no ano de 1843, onde faleceu aos 33 anos de idade. Francisco Pedro faz referência ao grau de parentesco que tem com José Thomas, entretanto ressalta que mesmo sendo parentes, ele não poderia deixar de exaltar a importância de José para a história paraibana e para a nação brasileira: O gráo de parentesco que nos prende á José Thomas, não avigora menos o colorido com que procuramos fazer refulgir os rasgos do seu elevado caracter, os lances sempre aureolados de sua conducta irreprehensivel e correctissima, por quaisquer do aspectos que ella seja examinada, tanto como filho, como estudante, como soldado, tanto como homem particular ou publico. (CUNHA 1912, p. 97).

Interessante notar que mesmo o autor tentando negar a relevância que as relações de parentesco não interfiram na sua escrita, o que percebemos é o contrário. Desde o começo da nossa narrativa, trouxemos à tona dois volumes da revista em que a seção “parahybanos illustres” é escrita por Francisco Pedro Carneiro da Cunha, na qual no volumo II ele descreve seu próprio pai durante a atuação na Guerra do Paraguai e nesse volume que estamos discutindo, ele descreve a atuação de outro parente próximo, seu tio, o que nos possibilita pensar no teor sentimental e próximo ao que está sendo contado que envolve a narrativa da revista. José Thomas Carneiro da Cunha estudou primeiras letras na Capital da Parahyba do Norte e depois seguiu para Pernambuco onde entrou no Gymnasio Pernambucano. Ele teve uma vida acadêmica bastante atuante, composta de prêmios escolares, em que recebeu, inclusive, das próprias mãos de D. Pedro II quando este visitou a Província Pernambucana. Segundo a revista, após concluir o ginásio, José Thomas Carneiro da Cunha regressou a Paraíba, assentando praça, como era desejo de seu honroso pai. Após assentar praça ele ocupou posição de destaque no corpo do exército, comandado por Ernesto Emiliano de Medeiros, era “homem de poucas palavras e extremamente rígido com seus subordinados”. Após alguns anos, José Thomas Carneiro da Cunha pediu licença para ir ao Rio de Janeiro estudar na Escola Militar e o comandante Ernesto Emiliano de Medeiros enviou uma carta

3099

denominada “oi” do comandante da Escola Militar, os dois irmãos tinham sido recomendados pelo chefe do corpo de guarnição da Paraíba e isso era um fato memorável:

Estes cadetes iéram da Parahyba, me foram recomendados pelo Ernesto, comandante da guarnição estacionada naquela Província, e, quando Ernesto recomenda um inferior, nos termos em que recomendou os cadetes José Thomas Carneiro da Cunha e Francisco Antonio Carneiro da Cunha, é porque eles possuem qualidades belíssimas a par de um procedimentos correctissimo, predicados estes que devem sempre ser observados por todos os nossos companheiros de armas &&.. (CUNHA, 1912, p. 99).

Após sua entrada na Escola Militar no ano de 1865 ele recebeu o título de Alferes e logo depois seguiu para a guerra do Paraguai juntos aos demais companheiros de armas. Durante as Campanhas ele subiu para o posto de Alferes efetivo do Batalhão de Engenheiros, em 1866, e acompanhou o exército no Sul do Império. Em janeiro de 1867 ele foi promovido ao posto de Tenente, sendo transferido ao Corpo de Caçadores a Cavallo. E em 1869 foi promovido a Capitão por ato de bravura. Durante as Campanhas do Paraguai era comum homens, geralmente ilustrados, receberem títulos e postos dentro dos Corpos do Exército. Como podemos ver, José Thomas Carneiro da Cunha subiu de posição dentro do Exército em um curto espaço de tempo, recebendo um título de Capitão como recompensa por sua atuação nos campos de batalha. E sobre sua atuação da Guerra, Francisco Pedro Carneiro da Cunha escreveu:

Quem foi que, no dia 16 de Julho de 1868, ás ordens do intrépido Osório, ao lado de outros, firme, calmo, enfeitado por manta encarnada ao pescoço, se aprumava á beira da contra-escarpa dos fossos do altaneiro, do invencível Humayta? Quem foi que, vendo morrer, um a um, todos os seus companheiros, sem perder um ceitil de animo, e, bem diversamente, mantendo uma coragem inexcedível, dava vivas de enthusiasmo, assaltado embora, por um milhçao de projectis, e tanto, que um deles rasgou-lhe o capote, a farda e a camisa, de um dos lados, ferindo-lhe ligeiramente a pelle, que paragyauaSebastopol lhe arremessava furiosamente??... Quem foi?! – JOSÉ THOMAS!... (CUNHA, 1912, p. 100).

José Thomas Carneiro da Cunha recebeu uma medalha de mérito militar e após o término da Guerra as Escolas Militares reabriram e ele retornou aos seus estudos. Formouse engenheiro militar e recebeu engenheiro geógrafo e bacharel em ciências físicas, naturais e matemáticas. Logo que saiu da Escola Militar ele assumiu papel importante na Comissão Científica do Rio Grande do Sul, onde prestou serviços de 1874 a 1875. Após uma vida de destaque, José faleceu no dia 4 de junho de 1876 e a revista faz uma homenagem ao aniversário de morte de um ano do seu falecimento.

3100

Assim como Francisco Antonio Carneiro da Cunha e o Tenente Rufino Marques Camacho, José Thomas Carneiro da Cunha ocupou lugar de destaque nos escritos da revista do IHGP. O tom de elogios e exaltação ao papel que esses homens exerceram para o país e para a Paraíba são lembrados e rememorados na seção da revista. É visto que o discurso do Instituto compõe exatamente o modelo de narrativa histórica que os demais Institutos Históricos utilizavam para contar suas histórias. A atuação desses três homens na Guerra do Paraguai e o destaque dado a isso também era comum à época. Visto que o IHGP foi criado na República, era objetivo desse período exalar uma história nacional e de amor à pátria, assim como fez os autores. Quanto ao discurso que perpassava a História da Guerra, a historiografia tradicional enfeita e enobrece os feitos e homens que deram suas vidas nos campos de batalha, entretanto, pesquisadores vem reescrevendo capítulos desse conflito platino na tentativa de entender o que houve e qual o sentimento e papel desses homens que estiveram nas Campanhas do Paraguai durante os anos de 1864 e 1870.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. CUNHA, Francisco Pedro Carneiro da. “Parahybanos Illustres”. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, v. II, ano. 1910, p. 161-195. 2. CUNHA, Francisco Antonio Carneiro da. “Parahybanos Illustres”. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, v. III, ano. 1911, p. 75-81. 3. CUNHA, Francisco Pedro Carneiro da. “Parahybanos Illustres”. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, v. IV, ano 1912, p. 95-108. 4. DORATIOTO, Francisco Fernando Monteoliva. “Maldita Guerra: nova história da Guerra do Paraguai”. – São Paulo: Companhia das Letras, 2002. 5. REIS, José Carlos. “As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC” / José Carlos Reis – 9. ed. ampl. – Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007. 6. MENDES-CASTRILLON, Olga Maria. “Belezas de um bruto sertão”. Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano. 10. Nº. 110. Novembro de 2012. 7. SCHWARCZ, Lilia Moritz. “O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1870 – 1930” / Lilia Moritz Schwarcz. – São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

3101

CONFLITOS POLÍTICOS DAS COROAS ULTRAMARINAS POR MEIO DO ATAQUE CORSÁRIO DE THOMAS CAVENDISH À VILA DE SANTOS (1580- 1591) Jonathan André da Silva Xavier (UFRRJ)1

RESUMO Ao pesquisarmos os corsários como atores históricos, é notório a participação destes na formação dos Impérios Ultramarinos da Europa no período moderno. Assim sendo, o presente trabalho tem por objetivo abordar os aspectos políticos do ataque de Thomas Cavendish, corsário britânico, à Costa da América Portuguesa em 1591, período este em que a Coroa de Portugal estava sob o cetro de Filipe II da Espanha. Através da ação do corsário Thomas Cavendish, que nos deixou seu relato sobre este evento, analisaremos as disputas políticas para o domínio do Oceano Atlântico entre as Coroas do continente europeu. Palavras-chave: Corsários; Impérios Ultramarinos; Conquista do Atlântico.

ABSTRACT As we study the privateers like historical actors, the participation of these in the formation of overseas empires of Europe in the modern period is notorious. Therefore, this paper has for objective to address the political aspects of Thomas Cavendish attack, British corsair on the coast of Portuguese America in 1591, a period in which the Crown of Portugal was under the scepter of Philip II of Spain. Through the action of the corsair Thomas Cavendish, who left us her narrative of this event, we will analyze the political disputes for the domain of the Atlantic Ocean between the Crowns of Europe. Keywords: Corsairs; Overseas Empires; Atlantic’s conquest.

INTRODUÇÃO Guerra em alto mar, perna de pau, tapa olho e Jolly Roger – a famosa bandeira pirata de fundo preto com uma caveira. Ao evocar o termo pirata ou corsário, muitas vezes são essas imagens que nos vem a mente, devido ao grande apelo midiático com esta temática.

3102

Contudo, notadamente, não é bem assim quando avançamos na pesquisa histórica. Diante da busca pela centralização do poder real durante o começo do período moderno e a importância da navegação atlântica para estas monarquias emergentes no ocidente europeu, do ponto de vista político e econômico, os corsários e piratas são importantes atores históricos que fogem desse estereótipo de aventureiros e se aproximam muito mais como agentes das Coroas católicas e protestantes, principalmente das Coroas que professam esta última fé mencionada. Trazemos à luz a trajetória de vida de Thomas Cavendish, corsário britânico que viveu entre 1560 e 1592. Possuiu o título de nobreza de Sir e integrou a Corte de rainha Elisabeth, sendo o terceiro indivíduo a conseguir circum-navegar o globo terrestre. Fez parte da frota do conhecido Sir Francis Drake, outro corsário que prestou inúmeros serviços à soberana da Coroa inglesa. Em sua primeira viagem a redor do mundo, que durou de 1586 a 1588, Cavendish atravessou o Estreito de Magalhães, chegou ao Oriente e voltou à Inglaterra, enriquecido com seus saques, pilhagens e comércio. Em sua segunda viagem, o corsário, como capitão da frota, nem consegue contornar o referido Estreito, revelando-se tal expedição um total fracasso. O importante a destacar aqui é que em ambas as viagens, as margens atlânticas da América portuguesa se tornaram pontos estratégicos de parada e abastecimento dos navios de Cavendish que almejavam o Oriente e seu opulento comércio2. Afastando-nos dessa imagem construída de piratas como marinheiros sanguinários e nos atentando para a ideia de que são marujos à serviço de suas respectivas monarquias que financiaram ou os ajudaram em suas jornadas, o presente trabalho tem por finalidade analisar dois relatos de corsários, a saber: Thomas Cavendish e Anthony Knivet. O primeiro narra a segunda viagem de Cavendish com destino ao Oriente3, enquanto que o outro relato aqui mencionado é de autoria de Knivet, marujo que esteve a bordo do Leicester – galeão sob comando de Cavendish – e fora abandonado a sua própria sorte pelo capitão de sua empreitada, sobrevivendo as andanças pela América portuguesa e servindo a Salvador Correia de Sá , governadorgeral do Rio de Janeiro4. Assim, relacionando os relatos desses viajantes com a historiografia que trata sobre a política do Antigo Regime europeu, almejaremos compreender a direta relação das ações piráticas no Oceano Atlântico, principalmente na América portuguesa quinhentista, com os conflitos políticos das Coroas ultramarinas, com o foco nas

3103

relações entre a Monarquia dual de Filipe II de Espanha (I, de Portugal) e a Coroa elisabetana.

As políticas imperiais e as duas primeiras viagens atlânticas do corsário Cavendish Primeiramente, para entender a visita nada amigável de Thomas Cavendish e sua frota pela segunda vez aqui em nossa costa no período colonial, é necessário recuar antes de 1591, sendo mais exato, na década de 1570. Segundo Jean Marcel Carvalho França e Sheila Hue, Cavendish realizou três viagens atlânticas, sendo a primeira com o intuito de colonizar a América do Norte, em 1585, nas terras as quais futuramente chamar-se-iam Virgínia, em homenagem a “Rainha Virgem”, título que Elisabeth ganhou5. Essa expedição sucedeu cinco anos após Filipe da dinastia dos Habsburgo assumir o reino de Portugal e consolidar a Monarquia Dual. Explico: em 1587, D. Sebastião organizou uma expedição militar a fim de consolidar as conquistas territoriais portuguesas ao Norte da África. De acordo com as interpretações de Anthony Disney, era um hábito comum da nobreza de serviço portuguesa ir ao campo de batalha com a ambição de conquistar riquezas e glória. Contudo, a campanha de D. Sebastião não obteve êxito. As tropas da Coroa portuguesa não fizeram frente às marroquinas, com o governante de Portugal sendo morto sem deixar herdeiros, no confronto que ficou conhecido como a batalha de Alcácer-Quibir. D. Henrique assumiu o trono, mas logo falece, abrindo a crise sucessória na realeza de Portugal, em 15806. Surgiram assim candidatos para assumirem o trono, afirmando serem legítimos herdeiros: D. Antônio, prior do Crato; D. Filipe, soberano da Monarquia espanhola e; D. Catarina, duquesa de Bragança. Esta última logo abre mão na guerra de sucessão e pouco se envolveu, todavia a disputa entre Filipe e D. Antônio acirrou-se bastante7. Abílio Pires Lousada afirma que o problema da conquista do trono da Coroa lusitana ocorreu pelo caminho político-militar8. Dessa forma, o soberano da Espanha convenceu a maioria dos nobres, clérigos, aristocratas e burgueses, assumiu a governança de Portugal e foi aclamado como rei de Portugal, nas Cortes de Tomar, seguindo a tradição da nobreza portuguesa9. A ocupação da dinastia dos Habsburgo no trono da Monarquia de Portugal, constituindo a Monarquia Dual Ibérica, não ocorreu apenas pela via diplomática. D. Antônio opôs-se a coroação de Filipe e, segundo Joaquim Veríssimo Serrão, formou uma base de apoio majoritariamente popular, mas também contando com a ajuda de Elisabeth I da Inglaterra e Henrique III, de França, soberanos protestantes. Sendo dessa 3104

maneira, o prior do Crato organizou diversas tentativas militares com o intuito de coroar-se como governante português, sendo em vão. Por fim, o último suspiro na tentativa de D. Antônio foi quando, com o apoio de Elisabeth, este se abrigou em terras britânicas no ano de 1585 - justamente quando Cavendish retornou da viagem de colonização da América do Norte - e partiu com uma fragata para guerrear com Filipe, atacando Lisboa. De acordo com as interpretações de Serrão, o prior do Crato contava com uma sublevação popular que o apoiasse, o que não ocorreu. A fragata de D. Antônio enfrentou diversos problemas, entre eles um surto de peste, retornando assim para a Inglaterra e findando as esperanças dele em ocupar o trono português10. O retorno de Cavendish, em 1585, para a Inglaterra coincidiu com a consolidação do poder real em Portugal nas mãos de Filipe, que não enfrentou mais a oposição de D. Antônio. Nesse momento, as relações políticas entre o governante da Monarquia Dual e a Rainha Virgem eram bastante conflituosas, visto que os dois almejavam uma hegemonia política e discursavam, respectivamente, contra as religiões que rivalizavam11. O nobre corsário aqui estudado, já em solo bretão, abandonando as navegações de colonização, organizou seu empreendimento que buscava o lucro que acarretaria para ele com o comércio e pilhagem no Oriente. Foi assim que em 1586 ele saiu de Plymouth, atracou no litoral da América portuguesa, na Ilha de São Sebastião, atual Ilhabela, realizando reparos em seus navios e indo rumo ao Mar do Sul – Oceano Pacífico. Cavendish ainda saqueou o galeão Santa Ana, de posse espanhola, voltando em 1588 para a Inglaterra com bastante riqueza, fama e conhecimentos náuticos e cartográficos, com a finalidade de estabelecer o comércio entre a Coroa da Inglaterra e o Oriente12. Nesta primeira viagem, Cavendish não nos deixou o seu relato. O retorno da exitosa viagem de circum-navegação de Thomas Cavendish coincidiu com a euforia que a monarquia elisabetana estava passando. Isso porque meses antes da chegada do corsário a sua terra natal, o estado de guerra entre Filipe e a Rainha da Inglaterra chegou ao ponto máximo, com o governante da Monarquia Dual formando a “Invencível Armada”. Geoffrey Parker defende que mesmo sem um projeto explícito na documentação filipina, este monarca almejava formar uma “monarquia universal” sob a fé católica, com este plano desenhado por ele em seu Imperialismo cultural e na propaganda construída13. Ante um discurso de combate ao anglicanismo, essa armada, a maior dos tempos modernos, rumou ao Canal da Mancha e, mesmo numericamente superior, não resistiu ao pequeno poderio da marinha e defesa da

3105

Monarquia britânica, sendo obrigada a recuar. Esta derrota soou negativamente para o prestígio e o desejo de Filipe em conquistar a Inglaterra e formar um grande Império14.

“O insucesso dessa tão infortunada ação”: a última viagem de Thomas Cavendish A primeira viagem do corsário Cavendish para o Oriente trouxe para ele muita glória e riqueza. Contudo, logo a fortuna conquistada com o espólio se esvaiu, fazendo com que planejasse outra empreitada, ao que tudo indica, com o intuito de romper o monopólio comercial da Monarquia Ibérica com o Mar do Sul e estabelecer uma rota mercantil para a Coroa da Inglaterra15. Com a conjuntura política belicosa entre a Monarquia de Elisabeth e os Habsburgo, em 1591, Thomas Cavendish montou uma frota com cinco navios e partiu em direção ao Oriente. A fim de alcançar tal rota, o corsário de ascendência nobre realizou, segundo os próprios relatos e do tripulante Knivet, suas primeiras ações no litoral do atual Rio de Janeiro. Capturou um navio negreiro, aprisionando Gaspar Jorge, piloto português que o ajudaria em sua jornada. Navegando mais ao sul da costa do Brasil Colonial, a frota corsária realizou um primeiro saque, desprezível economicamente, em Ilha Grande, para somente depois realizar uma parada na Ilha de São Sebastião16. Utilizando esta ilha de como base e com experiência no conhecimento territorial da América portuguesa, devido às excursões anteriores, esses corsários representantes da Coroa britânica planejaram o saque e ocupação da vila de Santos, visto que nesta localidade poderiam se reabastecer, descansar e recuperar-se da longa travessia atlântica. Estando ali, o comandante Cavendish e seus marujos poderiam atravessar, posteriormente, o estreito de Magalhães e travar intensas relações comerciais com as cidades orientais margeadas pelo Oceano Pacífico17. Assim, na noite de Natal de 1591, aproveitando-se de que a maioria dos colonos estavam na missa e sem maiores dificuldades, Thomas Cavendish invadiu e ocupou a vila de Santos durante os meses de Dezembro, Janeiro e Fevereiro, fazendo deste local como ponto estratégico para atravessarem o estreito ao sul do continente americano e alcançarem o Pacífico18. Todavia, a travessia não se concretizou devido a inúmeras intempéries enfrentadas pelos cinco navios capitaneados por Cavendish. Isso fez com que o galeão Desire e seu comandante, John Davis, se separassem dos demais navios da frota, gerando um conflito de penas entre Cavendish e este capitão. Enquanto o líder do

3106

Leicester afirmou que Davis o traiu, este defendeu-se, alegando que se perdeu. Segundo o relato de Thomas Cavendish, depois que este e sua tripulação deliberou sobre as condições na travessia19 se fosse de meu agrado retornar à costa do Brasil, onde eles sabiam que se nossas forças fosse reunidas, seria possível nos apossarmos de qualquer local, poderíamos tanto nos reabastecer com suprimentos para retornarmos quanto nos provisionarmos de todas outras necessidades que aquelas dificuldades haviamnos causado e em um tempo oportuno retornarmos e então concluirmos nossa intenção original20

Como relatado, a frota retornou à costa do Brasil, mas os colonos da vila de Santos já anteviam essa possibilidade, frustrando uma segunda ocupação corsária no América portuguesa no ano de 1592. Cavendish ainda realizou uma tentativa de ocupação na vila de Vitória, também sem êxito. Esses infortúnios, primeiro com as tempestades e, depois, com os insucessos nas tentativas de posse temporária das vilas no litoral colonial do Brasil, fez com que Cavendish e sua frota retraíssem para a Inglaterra, com o nobre corsário falecendo em seu retorno e, pouco antes, escrevendo sua cartatestemunho21. Também é importante destacar aqui a ingerência do Estado na Igreja e viceversa, pois, como já citado anteriormente, a Coroa católica da Monarquia Ibérica buscava combater as manifestações protestantes, enquanto que a Coroa da Inglaterra, professando o anglicanismo, rivalizava com a fé católica. José Pedro Paiva, ao estudar a História religiosa de Portugal e Espanha moderna, no século XVI, e até o século XVIII, observa-se que a Igreja e o Estado não possuíam definições identitárias que demarcassem suas atuações, havendo assim uma interferência do Estado nos assuntos eclesiásticos e vice-versa. Paiva sustenta a tese que ambos agiram de forma colaborativa, não excluindo conflitos que existiram, com o Estado aproveitando-se da estrutura e influência já existente da Igreja para exercer a dominação e subordinação dos indivíduos, além de utilizar-se da rede paroquial para as ordens centrais chegarem aos poderes locais no Império. No caminho inverso, a Igreja aproveitou-se da referida colaboração para, desta forma, atuar nos cargos seculares, além de manter seu monopólio religioso na sociedade, aplicar a justiça eclesiástica com o apoio do Estado e preservar os vastos privilégios concedidos pela Coroa. Assim, como sugere José Paiva, a confessionalização do Estado absolutista europeu no início da Idade Moderna e nesse caso específico, Portugal, na verdade é uma atuação de dois blocos coesos e não distintos, em busca do objetivo do controle dos indivíduos22. Cientes da relação entre estas duas esferas de poder no período moderno, fica mais compreensível quando 3107

Jean

Marcel Carvalho França e Sheila Hue nos adverte que os embate de Cavendish “tratavase de uma guerra de motivação geopolítica — entre os inimigos da Espanha e o rei Filipe II — e de forte cariz religioso”23.

Conclusão Mesmo com uma grande lacuna na historiografia lusófona no que se refere ao tema do movimento pirático no Oceano Atlântico, principalmente no hemisfério sul, buscamos aqui trazer a tona o ataque de Thomas Cavendish ao litoral da América portuguesa entre os anos de 1591 e 1592. Para interpretar esse movimento em terras brasílicas, devemos compreender com clareza a crise sucessória na Monarquia portuguesa, o que causou a entonação da dinastia dos Habsburgo, consolidando a Monarquia Dual. Foi a partir deste momento e da constante relação conflituosa entre Filipe e Elisabeth que os piratas e corsários começaram a atuar como ativas armas políticas dessa guerra entre as duas monarquias, além do principal objetivo desses atores históricos durante o período moderno que seria a contestação direta do Mare clausum (mar fechado), instituído pelo papado, aos domínios ibéricos que professavam o catolicismo. Por fim, não se pode simplesmente atribuir os ataques de Thomas Cavendish e seus marujos pela posição estratégica que as vilas de Santos, São Vicente e Vitória possuíam para a chegada ao opulento comércio do Oriente, mas interpretar, de uma maneira geral, que os referidos ataques só são possibilitados devido a guerra entre Filipe II de Espanha e a rainha Elisabeth, além do forte caráter religioso que este conflito detinha. 1

Graduando em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, sob orientação da Professora Drª. Luciana Mendes Gandelman. Email: [email protected]. 2 As informações detalhadas da vida de Thomas Cavendish foram encontradas nas obras: EDSON, Paulo. “Thomas Cavendish, um dos corsários da rainha virgem”. In: O Corsário de Ilhabela: o manuscrito do corsário Thomas Cavendish que em 1591 se refugiou em Ilhabela e saqueou a vila de Santos. Tradução de Paulo Edson e John Milton. 1. ed. Itu: Otonni Editora, 2008, p. 17-23.; FRANÇA, Jean Marcel Carvalho; HUE, Sheila. “Thomas Cavendish (1591)”. In: Piratas no Brasil: as incríveis histórias dos ladrões dos mares que pilharam nosso litoral. 1. ed. São Paulo: Editora Globo, 2014, p.7-28. 3 CAVENDISH, Thomas. “O manuscrito (versão bilíngue inglês-português)”. In: EDSON, Paulo. Op.cit., p. 37-119. 4 KNIVET, Anthony. “Narração da viagem que, nos anos de 1591 e seguintes, fez Antônio Knivet da Inglaterra ao Mar do Sul, em companhia de Thomas Cavendish”. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XLI, 1. vol., p.183-272, 1878. 5 FRANÇA, Jean Marcel Carvalho; HUE, Sheila. Op. cit., p. 11. 6 DISNEY. A.R. História de Portugal e do Império Português. 2. ed. Lisboa: Guerra e Paz, 2009, p. 6570. 7 SERRÃO, Joaquim Veríssimo. O Tempo dos Filipes em Portugal e no Brasil (1580-1668). 2. ed. Lisboa: Edições Colibri, 2004, p. 19.

3108

8

LOUSADA, Abílio Pires. Portugal na monarquia dual: O Tempo dos Filipes (1580-1640). Disponível em: Acesso em: 20 jun. 2015, p. 12. 9 PARKER, Geoffrey. “¿Tuvo Felipe II una estrategia global?”. In: La gran estrategia de Felipe II. 1. ed. Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 14. 10 SERRÃO, Joaquim Veríssimo. Op. cit., p. 20-22. 11 Ibidem, p. 21. 12 FRANÇA, Jean Marcel Carvalho; HUE, Sheila. Op. cit., p. 11-12. 13 PARKER, Geoffrey. Op. cit., p. 31-45. 14 SERRÃO, Joaquim Veríssimo. Op. cit., p. 21. 15 FRANÇA, Jean Marcel Carvalho; HUE, Sheila. Op. cit., p. 13. 16 Ibidem, p. 16-17. 17 Ibidem, p. 17. 18 Ibidem, p. 18. 19 Ibidem, p. 25-28. 20 CAVENDISH, Thomas. “O manuscrito (versão bilíngue inglês-português)”. In: Op.cit., p. 51. 21 FRANÇA, Jean Marcel Carvalho; HUE, Sheila. Op. cit., p. 25-28.. 22 PAIVA, José Pedro. “El Estado en la Iglesia y la Iglesia en el Estado: contaminaciones, dependencias y disidencias entre la monarquía y la Iglesia del reino de Portugal (1495-1640)”. Manuscrits, Barcelona, v. 1, n. 25, p. 45-57, 2007. 23 FRANÇA, Jean Marcel Carvalho; HUE, Sheila. Op. cit., p. 20.

3109

Da gênese do espírito de clã ao modelo brasileiro de Presidencialismo de Coalizão: a deficiente intersecção entre a política e a sociedade José Marcio Figueira Junior

Resumo: Este trabalho busca, em tese, analisar a lógica dos clãs de Oliveira Vianna dentro do modelo brasileiro de Presidencialismo de Coalizão presente na atualidade, não no interior apenas do Estado, tampouco no interior apenas da sociedade, mas nos elementos que os unem, para a reflexão e discussão de tais elementos na crise e nos cenários que nascerão após sua superação. Palavras-chave: Clã; Colônia; Coalizões; Crise.

Abstract: This work search, in theory, to analyze the logic from Oliveira Vianna’s clans, inside the brazillian modelo of coalition presidentalism in nowadays, not in the interior of the State, either inside of the society but the elements that unite them, for reflection and discussion of such elements in the crisis and the scenarios that will be born having gone. Keywords: Clans; Cologne; Coalitions; Crisis.

A política e a sociedade andam, sempre, de mãos dadas. Em uma crise isso é observável com clareza: é o momento que a sociedade, em dialética com o Estado, “sente” esta ligação, e o mundo político, dentro e fora das instituições, entra em ebulição. Dentro deste contexto, os sentimentos que vem á tona do imaginário social são responsáveis pelo rumo histórico que virá com o passar do tempo. No Brasil, com sua história singular, as típicas características nos põem em “luta intelectualmente armada” com o resto de nós, a fim de existir busca pela razão política. Como explicar e obter, ao superar a crise, um mundo de vida melhor do que aquele que existia antes da crise? Não se pode esperar a crise passar, isso seria se subordinar à fortuna. Logo, a ciência se torna, nesse contexto, o alvo e o ponto alto dessa busca por uma lucidez que une e que direciona a democracia, tanto no ponto de vista quantitativo quanto qualitativo.

3110

Um dos pontos que, de antemão, deve ser explicado, é o conceito que iremos abordar. O Presidencialismo de Coalizão é um termo recente. Criado por Sérgio Abranches , o termo é exclusivamente Brasileiro, como o mesmo comprovou . Consiste nas alianças entre agentes políticos dentro do regime presidencialista, para a somatória de forças e, por consequência, a obtenção da maioria dos votos dentro das instituições democráticas. E em que ponto o Presidencialismo de Coalizão importa pra história? Pergunta ainda mais provocante: Em que ponto a história importa para o Presidencialismo de Coalizão? As duas perguntas, caso feitas separadamente, pouco nos ajudam; todavia, caso sejam feitas em apenas uma, teremos o ponto que precisamos: Em que ponto a história e o Presidencialismo de Coalizão se encontram? As respostas para essa questão chave vão ao longe, mas a busca por uma delas em particular nos ajudaria. Para mostrar essa particularidade, chega a hora da pergunta definitiva: Em que ponto a história e o Presidencialismo de Coalizão se encontram mediante um momento de crise? Para encontrar esse ponto, é preciso a busca por ele no cipoal de nossa história. Preparem os facões. Antes de o Brasil ser Brasil, ser Estado, ser nação, ser um Império independente de outro Império, o cenário que iria se transformar a posteriori no país ainda indefinido passou por alguns séculos de gestação. Cenário imenso, desértico, que, através de diversos movimentos, foi-se expandindo e levando consigo os elementos sociais que já existiam até então. Dentro dos muitos estudiosos deste tempo, destaca-se para nós Oliveira Vianna. O brilhante sociólogo publicou em 1920 o livro “Populações Meridionais do Brasil”. Nesta publicação, Oliveira destaca a sua teoria dos clãs. Esta será nossa ótica instrumental para seguirmos em nossa investigação pelos tempos coloniais a partir de agora. Não é de hoje a desigualdade social no Brasil. Seja do ponto de vista econômico, social, ou em caráter de poder. Este último que merece destaque no momento, mesmo tão mesclado com os outros. Os potentados encontravam-se no interior das terras, longe dos vastos litorais. O poder central era localizado nessas classes. O resto da sociedade exercia gravitação em torno desses potentados, inclusive os homens da política. Mas, de onde vem esse poderio? Oliveira Vianna, em poucas palavras, explica: “O prestígio, a ascendência, o poder da nobreza paulista é de formação puramente nacional e tem uma base inteiramente local. É sobre a sesmaria, sobre o domínio rural, sobre o latifúndio agrícola e pastoril que ele se assenta” (VIANNA, 1920, pág. 116). Ainda quando falamos sobre essa questão, cabe ainda o detalhe essencial que o autor nos fornece: “(...) toda a população rural, de alto a baixo, está sujeita ao mesmo regime. Toda ela está agrupada em torno dos chefes territoriais” (VIANNA, 1920, pág. 210). A partir desses trechos podemos pensar algumas perspectivas que nos 3111

ajudam a explicar alguns pontos. A forma de organização social ai se encontrava e se encontra. A moral vinha do centro; era a do chefe do território, do latifundiário. Como é possível haver sentido em uma antítese entre o poder central do clã e os seus agregados, seus escravos e todos os outros que gravitavam em torno da família senhorial? Oliveira Vianna também destaca, ao mostrar a parcialidade das ações dos magistrados frente a desigualdade social como um dos elementos formadores do clã, a seguinte ideia:

Essas circunstâncias levam ao nosso povo, principalmente às suas classes inferiores, a descrença no poder reparador da justiça, na sua força, no prestígio da sua autoridade. Nessa situação de permanente desamparo legal, em que vivem, sob esse regime histórico de mandonismo, de favoritismo, de caudilhismo judiciário, todos os desprotegidos, todos os fracos, todos os pobres e inermes tendem a abrigar-se, por um impulso natural de defesa, à sobra dos poderosos, para que os protejam e defendam dos juízes corruptos, das “devassas” monstruosas, das “residências” infamantes, das vinditas implacáveis. – VIANNA, 1920, pág. 215

Aqui a análise precisa ser feita com cuidado, pois os anacronismos podem aparecer com facilidade. Este sentimento de incerteza, de desproteção, já presente no período colonial, está localizado na gênese do espírito de clã. É, em nossa história, elemento fortíssimo de separação entre a moral social e a política estatal. A transferência da moral estatal para o chefe de clã4. Com os episódios de 1808 e, posteriormente, 1822, muda-se o cenário político, mas não moral. A independência foi e, ao mesmo tempo, não foi uma mudança. Diferente dos vizinhos republicanos, independentes por via Jacobina, o Brasil usou, ao nascer, o que já possuía. Nascemos sem nos “dar a luz”, ou, para eu ser mais exato, “as luzes”. Uma transição sem revolução. O mesmo não acontece posteriormente, quando falamos da lógica de clã. Esse espírito visto em Oliveira Vianna continua vivo e é, além de espírito social, espírito político. Vemos, nessa lógica, a essência histórica de nosso modelo de Presidencialismo de Coalizão. Ela é, ainda hoje, o que guia nossa dinâmica entre a moral e a política. Seja nas alianças partidárias dentro das instituições, seja na união de grupos sociais para reivindicar moral democrática perante o Estado. E aí nos deparamos com o problema que emerge de maneira mais clara na medida em que a crise se agrava. O que fazer quando a moral e a política são anacrônicas entre si? A lógica de clã é, em sua essência, colonial. Essa lógica atravessou um momento imperial e hoje repousa na república, sob outros formatos. Mas ela é, na dialética entre a política e a sociedade, ainda monárquica. Logo, o desalinhamento histórico entre Estado e sociedade faz da crise um problema em

que

nós, historiadores,

temos demasiada 3112

responsabilidade.

É

no

amadurecimento histórico, na revolução, que a democracia construirá um bom governo. Assim, a igualdade que nos marca, que é a da lucidez e da razão, é a única que pode nos fazer não cancelar, mas superar, ir além do espírito de clã colonial, do ponto de vista político, não para se ficar à sombra dos poderosos, mas para fazer parte desse poder. Nesse contexto, avançaremos, e assim a democracia será a chave, de forma mais plena, para o alinhamento histórico entre a política e a sociedade, deixando para trás as ancoras que nos prendem ao passado. Qual é o bom governo? Quais são suas características? Quais as instituições que estão presentes no sistema? Como torna-las mais maduras? Como melhorar suas qualidades perante a sociedade? Essas perguntas só poderão ser respondidas em ocasião de um desprendimento do espírito monárquico que ainda nos habita. E a crise não nos permite solucionar, por hora, os problemas que nos cercam, mas nos fornecem meios para estudar cientificamente e construir o mundo que irá nascer posteriormente, direcionando a crítica.

Notas: - Graduando em História pela UNIGRANRIO. Bolsista em Iniciação Científica sob orientação de Ricardo José de Azevedo Marinho, com apoio financeiro FUNADESP. Email: [email protected] - O termo, surgido no artigo “Presidencialismo de Coalizão: O Dilema Institucional Brasileiro”, publicado em 1988, escrito por Sérgio, provém de longos estudos do cientista político para com o ponto de vista das relações partidárias nas democracias modernas. - Artigo “Presidencialismo de Coalizão: O Dilema Institucional Brasileiro”. Subcapítulo “Presidencialismo de Coalizão: A Especificidade do Modelo Brasileiro”, pp. 19 – 27. 4

– Oliveira Vianna era um autor conservador. Ao vigiar o processo revolucionário russo,

escreve a partir da ideia que disserta sobre a mobilização social em caminho á liberdade, que, para o autor, deveria ter sido executada ainda nos tempos Imperiais. O ponto de chegada que este trabalho deseja cruzar não é o mesmo, sendo o uso da tese do autor apenas instrumental.

3113

Referências Bibliográficas: •

VIANNA, Oliveira. Populações Meridionais do Brasil. Vol. 27. Brasília: Senado Federal, 2005, 424 p.



ABRANCHES, Sérgio Henrique Hudson. “Presidencialismo de Coalizão: O Dilema Institucional Brasileiro”. Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Vol. 1, n. 1, pp. 5 – 34, 1988.



ABRANCHES, Sérgio Henrique Hudson. “Os Ciclos do Presidencialismo de Coalizão”. Ecopolítica. Disponível em: http://www.ecopolitica.com.br/2014/03/11/osciclos-do-presidencialismo-de-coalizao/. 2011.



KOSELLECK, Reinhart. Crítica e Crise. Trad. Luciana Villas-Boas Castelo-Branco, 1º Edição, 4º Reimpressão. Rio de Janeiro: Contraponto, 1999, 256 p.



KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado. Trad. Wilma Patrícia Maas e Carlos Almeida Pereira, 1º Edição, 4º Reimpressão. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUCRio, 2006, 368 p.

3114

Naturalista e Político: A Trajetória de Vida do Ilustrado Antonio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva (17901823). Leandro da Silva (Graduação – UERJ) Bolsista FAPERJ Orientador: Alex Gonçalves Varela [email protected])

Resumo: Temos como objeto de análise a trajetória de vida do letrado Antonio Carlos Ribeiro de Andrade Machado, por meio dos seus textos científicos e políticos, e a sua relação com a cultura política ilustrada, típica do século XVIII. No estágio atual da pesquisa estamos levantando e tecendo reflexões sobre aquilo que foi produzido pela historiografia sobre António Carlos. Na apresentação tomaremos como base a obra Os Andradas (Souza, 1922), e o artigo Antonio Carlos Ribeiro de Andrade, Primeiro Centenário de Sua Morte (Silva, 1945). Palavras-chaves: História Política no Império Português; História Política no Império do Brasil; Antonio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva.

Abstract: As we analyzed in the life trajectory of the scholar Antonio Carlos Ribeiro de Andrade Machado, through its scientific and political texts, and its relationship with the illustrated political culture, typical of the eighteenth century. In the current research stage we are raising and weaving reflections on what has been produced by the historiography of Antonio Carlos. In the presentation we will build on the work the Andradas (Souza, 1922), and Article Antonio Carlos Ribeiro de Andrade Machado, first Centennial of His Death (Silva, 1945). Keywords: History Politics in the Portuguese Empire; History Politics in the Empire of Brazil; Antonio Carlos Ribeiro de Andrada e Silva Machado.

3115

Introdução: O objeto de análise do projeto é a trajetória de vida do letrado António Carlos Ribeiro de Andrade Machado, por meio dos seus textos científicos e políticos, e a sua relação com a cultura política ilustrada, típica do século XVIII. No atual estágio da pesquisa estamos realizando o levantamento dos manuscritos produzidos por Antonio Carlos, bem como a bibliografia que já foi produzida a respeito do personagem. Sobre o levantamento das fontes é necessário ressaltar que encontramos dificuldades em localizar os manuscritos produzidos por António Carlos, pois no momento encontramos poucas coisas, algumas traduções realizadas pelo autor, e biógrafos que narram a sua trajetória de vida. O que é totalmente diferente do seu irmão mais velho José Bonifácio, uma vez que há uma extensa documentação pertencente a este último em bibliotecas e instituições arquivísticas. António Carlos foi o que menos recebeu atenção por parte da historiografia. José Bonifácio tem merecido uma atenção especial, e Martim Francisco vem recebendo um tratamento considerável por parte dos historiadores. Dessa forma, a trajetória de António Carlos ainda permanece um tanto ou quanto obscura. Sendo assim, em nosso trabalho tomaremos como base a obra de Alberto Souza intitulada “Os Andradas”, de 1922, e o artigo publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil (IHGB) intitulado “António Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva, Primeiro Centenário de Sua Morte 1845-1945”, no ano de 1945.

Desenvolvimento: Tomando como base a obra de Alberto Souza “Os Andradas” elaborada no contexto das comemorações do primeiro centenário da independência do Brasil a pedido da Câmara Municipal da cidade de Santos através da lei nº. 621 de 23 de outubro de 1918, o autor busca traçar toda a conjuntura europeia do Antigo Regime e a passagem para o século XIX, destacando Portugal, e consequentemente a vinda da família real para a América Portuguesa. Nessa conjuntura, Souza situa seu objeto de estudo, que é a família Andrada, traçando uma árvore genealógica da mesma, e reservando capítulos específicos para cada um dos irmãos Andradas. 3116

António Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva nasceu em Santos em 1773, sendo filho de Maria Bárbara da Silva e Bonifácio José de Andrada. Seu pai era um alto funcionário da Coroa portuguesa, embora também tivesse outras atividades como o comércio, e possuía a segunda maior fortuna de Santos. Tinha outros irmãos, dentre os quais se destacaram as figuras de Martim Francisco e José Bonifácio. Quanto à instrução primária, Antônio Carlos a recebeu da própria família, destacando-se nessa tarefa os seus tios padres, uma vez que as escolas primárias de Santos não tinham um ensino de tão boa qualidade. Depois foi para São Paulo onde frequentou aulas de gramática, retórica e filosofia no ensino preparatório para os estudos superiores. Como todo e qualquer membro da elite colonial que desejava realizar um curso superior, uma vez que por aqui não havia instituições universitárias, António Carlos viajou para a metrópole com o intuito de se matricular na Universidade de Coimbra. A chegada a Portugal coincidiu com o período de “abertura” às novas ideias em razão das iniciativas do Marquês de Pombal. Ele partiu para a metrópole no início de 1790, matriculando-se nos cursos de Leis e Filosofia Natural. Nesse espaço, António Carlos, membro da elite colonial, juntou-se às elites cultas da metrópole que também ali estudavam. Um aspecto da obra de Alberto Sousa é o seu tom laudatório e bastante alegórico sobre a vida de António, ressaltando desde o nascimento e batismo, passando por seus estudos básicos e Acadêmicos, trabalhos e lutas, atuações em Câmaras e Assembléias, e por fim culminando na sua morte. Servindo basicamente como uma obra biográfica que busca enaltecer um membro da elite brasileira do Império do Brasil. Através dessa leitura observa-se que a trajetória de vida de Antonio Carlos o caracterizava como um homem de destaque no âmbito daquela sociedade. Aspecto esse que fica claro na passagem: “Tão grande era, porém, o conceito de que gozava junto á Côrte, por seus méritos inquestionáveis.” (Souza, 468:1922) Vivia praticamente às custas do monarca, como observamos nas suas traduções produzidas na Tipografia do Arco do Cego. Na introdução de uma delas, Antonio Carlos afirmou ser o “mais obediente vassalo”. Souza também nos informa que António Carlos possuía um dom poético, característica essa oriunda de sua ótima capacidade oratória. Contudo, ainda 3117

não

encontramos nenhum poema que seja de sua autoria. Para o autor, essa sua capacidade oratória é facilmente comprovada quando pesquisamos seus discursos pronunciados nas assembléias tanto em Portugal como no Brasil. Sendo assim, as qualidades apresentadas somadas com a genialidade de seus irmãos, o prestígio de sua família era tão grande que despertava certa inveja em seus contemporâneos. Aspecto bem relatado na obra de Alberto Souza em que ele afirma que, em um determinado momento António Carlos e seu irmão Martim Francisco entraram em atrito com o governador da Capitania, Antonio José da Franca e Horta. O governador se sentia incomodado com o prestígio dos irmãos Andradas na região, e passou a fazer-lhes inúmeras retaliações. A situação ficou bastante séria a ponto de Antonio Carlos e Martim Francisco ter que redigir uma carta a José Bonifácio solicitando que o mesmo intervisse no conflito e se possível afasta-se o governador de seu cargo. Souza diz que os Andradas eram muito orgulhosos e António Carlos era o mais orgulhoso deles. Segundo ele, o seu orgulho de nobreza se somava com o seu orgulho de sabedoria. Desse modo, o ódio pelo governador se estendeu por toda a família Andrada. Após a contenda com o governador, Antonio Carlos voltou a reassumir o seu cargo de Auditor de Guerra em S. Paulo. Contudo, parece que logo percebeu a incompatibilidade moral em que se encontrava com a opinião pública da Capitania. Principalmente por que foi acusado de homicídio na província, o que não lhe rendeu uma boa fama e aceitação por parte da população. Com isso aceitou sua nomeação no ano de 1815 para Ouvidor de Olinda, a fim de que fossem esquecidos os acontecimentos recentes. Contudo, na interpretação de Souza, dentre os inúmeros cargos que António ocupou ao longo de sua vida, o cargo de Ouvidor em Olinda foi o mais conturbado para a sua vida. Por dois anos depois se instaurou nos quartéis militares do Recife, a chamada Revolução pernambucana de 1817, que se irradiou pelo interior de Pernambuco e pelas Capitanias limítrofes. E, como Souza nos relata, através de uma carta de António a seu irmão Martim, ele estava em seu posto de trabalho no momento em que os insurgentes o acolheram para o movimento. Com isso fica clara a afirmação do autor em dizer que o cargo de Ouvidor de Olinda foi muito conturbado para a vida de António. Só que Souza não nos informa de maneira precisa qual foi de fato o envolvimento de António Carlos 3118

nessa

revolução de 1817, somente destacando que ele era um membro da maçonaria da época, e que acabou sendo preso como envolvido no caso. Sobre a participação de Antonio Carlos no movimento de 1817 em Pernambuco, ainda continuamos na busca de desvendar esse mistério na vida do personagem. A partir de agora indo ao encontro das afirmações, indagações e objetivos apresentados, buscamos ressaltar a contribuição de outra fonte muito importante para o atual momento de nossa pesquisa, bem como para desvendar mais um pouco sobre a pouco conhecida trajetória de António Carlos. O artigo de José Bonifácio de Andrada e Silva intitulado “António Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva Primeiro Centenário de Sua Morte 1845-1945” publicado pelo IHGB em 1945 apresenta também a trajetória de António Carlos numa espécie de culto ao herói, típico das biografias dos grandes vultos do Brasil produzidas propagada por esse Instituto ao longo do século XIX e parte do XX. Traçando desde o período de nascimento de Antonio Carlos, embora de forma mais sucinta em relação à obra de Souza, Silva nos traz informações importantes sobre a atuação política de António nas Cortes de Lisboa e na assembléia constituinte do Brasil. Informa que em consequência da revolução de Portugal em 1820, essa trouxe anistia geral para todos os presos. Dentre esses estava Antonio Carlos com seus companheiros, que foram postos em liberdade. Logo após esse ato de clemência, Antonio Carlos foi eleito em 1821 deputado pela província de São Paulo ás cortes Portuguesas. Silva argumenta que ele se recusou a assinar a Constituição portuguesa, e á vista do pronunciamento do Brasil pela independência, renunciou o mandato, seguindo o seu manifesto de 22 de Outubro, explicando os motivos de sua retirada das Cortes de Lisboa. Mais tarde, em 1823, António Carlos foi eleito por São Paulo, tomando ativa parte na primeira Assembléia Constituinte do Brasil, após a proclamação da independência em 7 de Setembro de 1822. Segundo Silva, António Carlos interveio em todos os debates de maior relevância, junto com os seus irmãos José Bonifácio e Martim Francisco, ambos ministros. Foi a partir desse momento que os chamados irmãos Andradas se tornaram conhecidos na história do Brasil, mais especificamente no momento da busca por uma construção política do recém país emancipado.

3119

Realizada a Independência política, o Império luso-americano se transformou no Império do Brasil. E, Antonio Carlos foi figura de grande importância para a implementação e consolidação da Assembléia Nacional Constituinte de 1823. Após a dissolução da Assembléia por D. Pedro I, para difundir e levar adiante suas posições políticas, Antonio Carlos, juntamente com Bonifácio e Martim Francisco, criaram o periódico “O Tamoio” (1823) onde escreviam duras críticas ao governo de D. Pedro I. Este foi um espaço de oposição dos irmãos Andradas em relação ao governo de D. Pedro I, e o que certamente fizera com que o prestigio dessa gloriosa tríade caísse de forma extrema os levando a “ilegalidade”. E, além disso, nos informa Silva que um insulto pessoal causou enorme agitação parlamentar, pois o brasileiro David Pamplona, insultado, agredido, maltratado e ferido por dois oficiais portugueses, queixou-se á Constituinte. E António Carlos discursou por horas na Assembléia defendendo os direitos daqueles que ele considerava brasileiros, chegando a afirmar que poderia até ser assassinado, pois na sua opinião não era novo que os defensores do povo fossem vitimas do seu patriotismo, mas que seu sangue gritaria vingança. E passaria a posteridade como o vingador da dignidade do Brasil. E na interpretação de Silva discursos dessa ordem, incisivos e energéticos, largamente aplaudidos pelas galerias, em estrepitosas ovações, irritaram os ânimos dos militares. E nisso já pensava D. Pedro I, cujo golpe foi além do que exigiam, porque não só dissolveu a Assembléia, como ainda decretou a prisão e deportação dos Andradas. No período de 1823 a 1828, desterrado na França, lutando com as maiores dificuldades, António Carlos viveu em companhia dos irmãos, retornando apenas em 1829 ao Brasil, vivendo, desse ano até 1831 em Santos. E no ano de 1832 foi nomeado ministro plenipotenciário do Brasil em Londres, porém recusou o cargo. Retornando à Europa em 1833. Após voltar ao Brasil, em 1838, foi eleito deputado geral por São Paulo para a legislatura de 1838-1842 e preferiu ao mesmo tempo movimentar-se no Jornalismo, daí os decisivos combates intelectuais com Evaristo da Veiga. O que resultou nesta época o "movimento da maioridade" de D. Pedro II; em 21 de julho de 1840, o qual ele foi o líder. Apresentou na Câmara um projeto declarando o Imperador "maior desde já", o que desencadeou a crise política e o "golpe da maioridade", do que

3120

resulta a entronização do Imperador em 23 de julho, fato que pôs fim ao período regencial. Assim os Andradas e os parlamentares maioristas obtiveram assinalada vitória, com a ascensão do menor de 15 (quinze) anos ao trono do Brasil. E consequentemente no dia seguinte, António Carlos e Martim Francisco eram respectivamente Ministro do Império e Ministro da Fazenda. Depois disso conta-nos Silva que em 1845, vitorioso na eleição com o partido liberal, voltou ao parlamento. Sendo essa sua última legislatura antes do óbito, que por sinal ocorreu nesse mesmo ano. E o autor termina seu artigo afirmando que “O Mirabeau brasileiro tinha de baquear e aos 72 anos a morte, só ela, fez calar a portentosa voz do lidador.” (Silva, 1945, p. 11). Silva informa que Antonio Carlos morreu aos 72 anos quando ocupava o cargo de Senador pela província de Pernambuco.

Considerações finais: Em suma, recuperar a trajetória de vida do ilustrado Antonio Carlos não dissociando o seu perfil de naturalista e político será o objetivo principal deste projeto de pesquisa, por mais difíceis que sejam o levantamento bibliográfico. Os textos científicos e políticos do personagem são valiosos e constituem-se como fontes importantes para a história da cultura política iluminista no âmbito do Império Português. Dentre esses textos, aparecem as traduções produzidas por

Antonio

Carlos na Tipografia do Arco do Cego, memórias científicas, artigos publicados em diversos periódicos científicos, relatórios dos seus cargos jurídicos, textos políticos, os artigos publicados no jornal O Tamoio, debates no parlamento, entre outros. Portanto, uma profunda pesquisa sobre a atividade científica e política do ilustrado torna-se necessária para preencher a lacuna deixada pela historiografia. Os dois textos analisados no atual momento da pesquisa, ambos produzidos na primeira metade do século XX, narram a trajetória de Antonio Carlos de forma descritiva, linear e laudatória. Ambas com o objetivo de enaltecer a imagem desse homem público do Império do Brasil. Dessa forma continuamos na busca da documentação e tecendo novas problemáticas que enriqueçam nossa pesquisa e consequentemente a história do Brasil. 3121

Bibliografia: - Silva, José Bonifácio de Andrada e. António Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva Primeiro Centenário de Sua Morte 1845-1945. Revista do IHGB. Rio de Janeiro, v. 189, 1945.

- Souza, Alberto. Capítulo IV Antônio Carlos. In: Os Andradas. 3º v.. São Paulo: Typographia Piratininga, 1922.

3122

O 2º marquês do Lavradio e a sociedade de Corte em Portugal: redes de poder e de parentesco Leonardo Guedes Soares1

Resumo Esta comunicação apresenta resultados preliminares de um projeto de pesquisa de Iniciação Científica sobre as redes de poder e de parentesco do 2º marquês do Lavradio, governador da Bahia e vice-rei do Estado do Brasil, no século XVIII, a partir das cartas que escreveu enquanto esteve na América. O trabalho põe em destaque as redes de poder e de parentesco em que esse nobre e administrador colonial estava inserido na sociedade de Corte portuguesa.

Palavras-chave: 2º marquês do Lavradio, cartas, redes

Abstract This paper presents preliminary results of a Scientific Initiation research project on the networks of power and kinship of the 2nd Marquis of Lavradio, governor of Bahia and viceroy of the State of Brazil in the eighteenth century, from the letters he wrote while he was in America. The work highlights the power and kinship networks in this noble and colonial administrator was entered in the Portuguese court society. Keywords: 2nd Marquis of Lavradio, letters, networks

As “cartas de amizade” do marquês do Lavradio Esta comunicação apresenta resultados iniciais do projeto de pesquisa “Ao longe é que soam mais os desacertos”: redes de poder, parentesco e sociabilidades nas cartas do 2º marquês do Lavradio – Bahia e Rio de Janeiro (1768-1776), coordenado pelo professor Fabiano Vilaça dos Santos, com o objetivo principal de estudar as redes de relacionamentos em torno do 2º marquês do Lavradio, governador da Bahia (1768-1769) e vice-rei do Estado do Brasil (1769-1779). 3123

A partir da correspondência ativa desse administrador colonial, as Cartas da Bahia2 e as Cartas do Rio de Janeiro3, publicadas na década de 1970, podemos observar fragmentos das relações de poder e de parentesco estabelecidas pelo nobre e administrador colonial em Portugal e na América, na segunda metade do século XVIII. Este trabalho se volta especificamente para as relações familiares, de parentesco e as afinidades pessoais estabelecidas na sociedade de Corte, por meio das cartas que Lavradio enviou a Lisboa, deixando para outra oportunidade os relacionamentos que construiu ou que se reproduziram no espaço colonial a partir do ambiente cortesão. Para orientar a análise das cartas do 2º marquês do Lavradio está sendo empregado o conceito de “rede”. Segundo a historiadora portuguesa Mafalda Soares da Cunha, o “conceito de rede pressupõe sempre a existência de relações interpessoais” e pode ser aplicado a “universos sociais definidos institucionalmente”, como a família e os órgãos da administração no Reino.4 Essas tramas, típicas da sociedade de Antigo Regime, eram construídas no espaço da Corte, caracterizado por uma dinâmica relacional definida pelo sociólogo Norbert Elias: “dentro do mundo da Corte, o que se considera é muito mais o indivíduo em seu contexto social, em sua relação com os outros”.5 D. Luís de Almeida Portugal Soares Alarcão Eça Melo Silva e Mascarenhas, 5º conde de Avintes e 2º marquês do Lavradio, descendente de uma família que pertencia à aristocracia de Corte, seguiu os passos de seu pai, D. Antônio de Almeida Portugal, que governou Angola (1749-1753), tendo recebido por essa comissão o título de marquês do Lavradio, e foi o último vice-rei na Bahia (1760). O 2º marquês do Lavradio era ainda sobrinho-neto de D. Tomás de Almeida, primeiro cardeal patriarca de Lisboa. Como militar, participou da Campanha Peninsular de 1762, durante a Guerra dos Sete Anos (1756-1763), alcançando a patente de brigadeiro em recompensa pelos serviços prestados. Algum tempo depois, foi nomeado por carta patente de 1767 para o cargo de governador e capitão-general da Bahia, onde permaneceria três anos (duração de um governo colonial), que foram reduzidos a um ano e meio com o seu deslocamento para o posto de vice-rei do Estado do Brasil, no Rio de Janeiro, em substituição do conde de Azambuja (1767-1769). Esses elementos da vida e da trajetória do 2º marquês do Lavradio serão aprofundados mais tarde, em uma biografia do personagem. Daí a importância das suas “cartas de amizade” como base do futuro projeto biográfico, pois elas revelam as suas estratégias administrativas enquanto governante, assim como apontam os indivíduos com quem mantinha relações de

3124

parentesco, de proteção, trocas de favores, além da sua preocupação com os assuntos da Corte e questões familiares. Além disso, como afirmou Fabiano Vilaça dos Santos,

(...) era fundamental para o administrador colonial manter uma boa rede de interlocutores na Corte, capazes de sondar a repercussão dos seus feitos no ultramar. As informações colhidas funcionavam termômetros do prestígio pessoal e familiar daquele que estava impossibilitado pela distância de agir em defesa própria.6

Isso explica o porquê de o 2º marquês do Lavradio ter perguntado ao cunhado, o conde de São Vicente, o que se dizia a seu respeito em Lisboa, pouco depois de chegar a Bahia:

(...) em paga da matraca que tenho dado, serás obrigado a dizer-me o que por lá se diz de mim, se já me chamam ‘ladrão’, se estou régulo, ou voluntário, finalmente qual daqueles indignos epítetos com que batizam os miseráveis Governadores me têm a mim pertencido da boca desse povo, ou dos que entre eles andam com um espírito de malevolência de que a mim se me dá bem pouco (...) porque não obrarei nunca senão o que me parecer mais conforme a minha honra e a utilidade do serviço do Amo (...).7

O ambiente cortesão era dominado pelas pressões dos que disputavam as oportunidades de ascensão e de prestígio: “A vida na sociedade de Corte não era uma vida pacífica”, afirmou Norbert Elias, “não cessavam os escândalos, as intrigas, os conflitos por posição ou favorecimentos. Cada um dependia do outro, todos dependiam do rei. Cada um podia prejudicar o outro”. As quedas faziam parte dos jogos de poder e de influência que justificavam a necessidade de alianças políticas. “Não havia segurança alguma”, ressaltou Elias.8 Levando-se em consideração que as cartas eram o modo de comunicação mais seguro e eficaz da época, para a historiadora Adriana Angelita da Conceição, que estudou a correspondência do 2º marquês do Lavradio como um exemplo da prática epistolar na Época Moderna, “tanto os anseios particulares quanto os meandros da arte de governar foram impulsos para que D. Luís permanecesse em seu gabinete envolto em papeis. A sensação de fala, materializada no papel, permitiu a D. Luís manter-se presente entre os ausentes”.9 Entre os seus correspondentes ou interlocutores apareciam muitas figuras de prestígio na Corte portuguesa. Variavam desde parentes, como seu tio D. Tomás de Almeida, amigos pessoais e políticos, como o secretário de Estado Sebastião José de Carvalho e Melo, marquês de Pombal, além das relações que Lavradio desenvolveu ou deu continuidade no ultramar com diversos governadores de capitania (Pernambuco, Bahia, Minas Gerais), com os quais já possuía afinidades em Portugal.

3125

O conteúdo das Cartas da Bahia e das Cartas do Rio de Janeiro também está em sintonia com as reformas da política colonial no período pombalino (1750-1777), abordando problemas como o controle e a fiscalização das instituições civis e militares, medidas para conter o contrabando, para melhorar a tributação, incentivar a produção agrícola, o comércio etc. Esses assuntos de governo aparecem misturados a impressões pessoais do marquês do Lavradio, como lamentos e murmurações acerca do clima e da desordem no Rio de Janeiro, e a questões do âmbito privado. Podemos citar, por exemplo, as cartas em que Lavradio faz considerações e arranjos sobre os casamentos de suas filhas. Nas Cartas do Rio de Janeiro (1769-1776), o 6º conde de Vila Verde, José Xavier de Noronha Camões de Albuquerque de Sousa Moniz, neto do 3º marquês do Alegrete, a quem o 2º marquês do Lavradio se dirige muitas vezes como “filho do coração”, é na verdade seu genro, pois em 1769 casou-se com D. Francisca Teresa de Almeida, aumentando o círculo de relações da Casa de Lavradio com a de Tarouca/Alegrete, também da antiga nobreza, e exemplificando o modelo de família no Antigo Regime. Ao falar das “relações interpessoais” e dos acertos matrimoniais nessa sociedade, a historiadora Mafalda Soares da Cunha chamou atenção para as “configurações do parentesco que decorrem de decisões e escolhas dos próprios indivíduos ou dos grupos em que se inserem”. Esses relacionamentos ultrapassavam os laços de sangue que uniam as pessoas. O casamento não tinha só a função reprodutiva, era também “uma opção de aliança com um grupo familiar que se revela atraente porque possui determinados atributos sociais, econômicos, relacionais ou simbólicos”.10

Metodologia de análise das cartas do 2º marquês do Lavradio O método utilizado na análise das 139 cartas escritas na Bahia e das 418 no Rio de Janeiro, consistiu inicialmente em contabilizar as missivas a partir dos índices das respectivas publicações, com o objetivo de construir duas tabelas distintas. Em cada tabela, os interlocutores de Lavradio foram organizados dos mais frequentes aos menos frequentes, acompanhados do total de cartas que cada um recebeu. Esse foi o primeiro passo para elucidar os componentes das redes de relacionamentos do 2º marquês do Lavradio. As tabelas foram construídas segundo o modelo a seguir, em que aparecem os cinco correspondentes mais frequentes de Lavradio:

3126

CARTAS DA BAHIA (1768-1769)

TOTAL DE CARTAS

DESTINATÁRIO Conde de Povolide

11

Principal de Almeida

10

Conde de Azambuja

8

Conde do Prado

8

Conde de São Vicente

8

CARTAS DO RIO DE JANEIRO (1769-1776)

TOTAL DE CARTAS

DESTINATÁRIO Principal de Almeida

32

Conde de Vila Verde

32

Conde de Tarouca

29

Conde de Valadares

26

Antônio Carlos Furtado Xavier de Mendonça

26

O quantitativo das cartas pode sugerir inúmeras considerações que nos levam em direção ao objetivo central do projeto, que está pautado no interesse de traçar e problematizar as redes de poder e de parentesco de Lavradio. A partir disso, da elaboração de microbiografias11 desses interlocutores e do levantamento dos cargos e das posições que ocupavam na Corte, será possível avaliar a importância desses indivíduos e a possibilidade de darem sustentação política ao 2º marquês do Lavradio caso precisasse de apoio por causa de algum embaraço em sua administração que ameaçasse a sua honra e o seu crédito pessoal.

Um indivíduo que merece ser analisado com afinco por estar entre os interlocutores 3127

mais frequentes de Lavradio, mas principalmente por sua relevância na Corte portuguesa, é D. Tomás de Almeida, o Principal de Almeida, cardeal patriarca de Lisboa. A partir da análise desse caso, podemos inferir que relações políticas, hierárquicas e consanguíneas tangenciamse em vários momentos na sociedade de Antigo Regime. Por ocupar um alto cargo na estrutura eclesiástica, o seu sobrinho recorreu a ele diversas vezes tanto na Bahia quanto no vice-reinado, sendo nas Cartas do Rio de Janeiro o correspondente mais frequente. Pelo trânsito que o tio devia ter na Corte, o marquês do Lavradio escreveu-lhe no dia 23 de junho de 1770, pedindo “novas da Corte com miudeza (...) porque ao longe é que soam mais os desacertos”.12 Nas Cartas do Rio de Janeiro, o 4º correspondente mais assíduo é o 6º conde de Valadares, D. José Luís de Meneses Castelo Branco e Abranches, que em 1768 foi nomeado governador e capitão-general de Minas Gerais. Como quinto correspondente mais frequente aparece o sucessor do conde de Valadares, Antônio Carlos Furtado Xavier de Mendonça, que depois de Minas Gerais seguiu para a Ilha de Santa Catarina em 1775. A configuração de circuitos administrativos pelos correspondentes de Lavradio é outra possibilidade oferecida por suas cartas que será desenvolvida mais tarde, com base no conceito de “redes governativas”, definido pela historiadora Maria de Fátima Gouvêa.13

Próximos passos do projeto A próxima etapa do projeto consistirá no retorno às cartas, que serão lidas individualmente e terão seu conteúdo (dividido em “assuntos privados” e “assuntos do governo”) e identificação (se escrita da Bahia ou do Rio de Janeiro; destinatário; biografia sumária do destinatário; vínculo com o marquês do Lavradio) inseridos em uma ficha de coleta de dados já elaborada. Nessa ficha, apresentada a seguir, os assuntos privados e de governo virão acompanhados de palavras-chave que indicarão os principais temas tratados nas cartas.

3128

CARTA n.º / p. Destinatário: Vínculo com o marquês do Lavradio: Biografia sumária do destinatário:

Ementa – Assuntos Privados

Palavras-chave: Ementa – Assuntos de Governo

Palavras-chave:

Concluo apontando para o fato de que esta operação nos permitirá fazer considerações mais consistentes sobre as redes de poder e de parentesco do 2º marquês do Lavradio, depois de identificados nas tabelas das Cartas da Bahia e das Cartas do Rio de Janeiro quem eram os seus interlocutores na Corte e no ultramar. Além disso, o cruzamento de dados das missivas enviadas da Bahia e do Rio de Janeiro podem abrir outras possibilidades de interpretações no decorrer da pesquisa.

Notas Graduando em História (UERJ); Bolsista de Iniciação Científica – FAPERJ, sob a orientação do Prof. Dr. Fabiano Vilaça dos Santos. E-mail: [email protected] 2 LAVRADIO, Marquês do. Cartas da Bahia (1768-1769). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1972. 3 LAVRADIO, Marquês do. Cartas do Rio de Janeiro (1769-1776). Rio de Janeiro: SEEC/RJ, 1978. 4 CUNHA, Mafalda Soares da. “Redes sociais e decisão política no recrutamento dos governantes das conquistas, 1580-1640”. In: FRAGOSO, João e GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). Na trama das redes: política e negócios no império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 119-122. 5 ELIAS, Norbert. A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. Trad. Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 121. Grifo de N. Elias. 1

3129

SANTOS, Fabiano Vilaça dos. “Mediações entre a fidalguia portuguesa e o marquês de Pombal: o exemplo da Casa de Lavradio. Revista de História. São Paulo, vol. 24, n.º 48, 2004, p. 318. 7 LAVRADIO, Marquês do. Cartas da Bahia, p. 39-40. Carta de 21 de julho de 1768. 8 ELIAS, Norbert. Op. cit., p. 120ss. 9 CONCEIÇÃO, Adriana Angelita da. A prática epistolar moderna e as cartas do vice-rei D. Luís de Almeida, o marquês do Lavradio – Sentir, escrever e governar (1768-1779). São Paulo: Alameda, 2013, p. 223-224. 10 CUNHA, Mafalda Soares da. Op. cit., p. 120. 11 Sobre o método das microbiografias, ver SILVA, Andrée Mansuy-Diniz. “Une voie de connaissance pour l’histoire de la société portugaise au XVIIIe siècle: les micro-biographies (sources - méthode - étude de cas)”. Clio – Revista do Centro de História da Universidade de Lisboa, nº 1, 1979, p. 21-65. 12 LAVRADIO, Marquês do. Cartas do Rio de Janeiro, p. 36. 13 GOUVÊA, Maria de Fátima. “Redes governativas e centralidades régias no mundo português, c.1680-1730”. In: FRAGOSO, João e GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). Na trama das redes: política e negócios no império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 155-202. 6

3130

A CONSTRUÇÃO DO “INIMIGO” NO IMAGINÁRIO POPULAR E O GENOCÍDIO NA GUERRA DA BÓSNIA (1992-1995)

Leonardo Pires da Silva Belançon1 Sidnei José Munhoz2

Resumo: A declaração de independência da Bósnia-Herzegovina, da República Federativa Socialista da Iugoslávia, em 1991, fez irromper uma guerra civil que massacrou a população do pequeno país, no sudeste da Europa, e o transformou no palco dos mais violentos confrontos na Europa desde a Segunda Guerra, resultando no Genocídio de milhares de bósnios. Por meio deste artigo busca-se analisar alguns elementos que levaram ao uso sistemático da violência e a construção do “inimigo” no imaginário popular, durante a Guerra da Bósnia. Palavras-chave: Limpeza étnica; Massacres; Bósnia-Herzegovina.

The independence declaration of Bosnia and Herzegovina from the Socialist Federal Republic of Yugoslavia, in 1991, burst a civil war that massacred the population of that small country, in southeastern Europe, and turned it in the stage of the most violent clashes in Europe since the World War II that it resulted in the Genocide of thousands of bosnians. The aim of this article is to analyze some elements that led to the systematic use of violence and also the construction of the “enemy” on the popular imagination, during the Bosnian War. Keywords: Ethnic cleansing; Genocide; Bosnia and Herzegovina.

Introdução Ao longo da década de 1990 diversos conflitos de caráter político, religioso ou étnico, nos permitiram observar algumas mudanças na organização do espaço geopolítico de alguns países e regiões ao redor do globo. No sudeste europeu, a região dos Bálcãs foi um dos palcos desses conflitos que geraram guerras civis, resultando na emergência de seis novos Estados soberanos, a partir da dissolução da República Federativa Socialista da Iugoslávia, entre eles a Bósnia-Herzegovina. O território faz fronteira com a Croácia, a Sérvia e com Montenegro e, apesar de sua proximidade com o Mar Adriático, não possui costa marítima. A diversidade étnicocultural da região permitiu que diversos povos coabitassem a Bósnia, resultando em uma miscigenação de sua população.

O idioma bósnio tem grande proximidade com o 3131

croata e com o sérvio, sendo todas línguas eslavas, bem como o grupo étnico que deu origem às nações balcânicas. Contudo, essa particularidade em relação a seus vizinhos, foi também o principal motivo dos conflitos ocorridos após sua independência. As diferenças entre os principais grupos da região, como religião e nacionalidade, foram acentuadas como medida de reafirmação das individualidades de cada grupo. Será analisado, por meio de revisão bibliográfica, como se deu o processo de desintegração da Iugoslávia e as principais questões que permearam a guerra declarada pela Sérvia – e até determinado momento, pela Croácia – à Bósnia-Herzegovina, como os limites do poder que um Estado exerce sobre seus cidadãos, a violência sistemática contra muçulmanos, a campanha de limpeza étnica, a atuação da comunidade internacional e o reconhecimento do crime de Genocídio praticado naquele território.

A definição política de Estado e sua autoridade Os teóricos políticos contratualistas John Locke e Thomas Hobbes, desenvolveram diferentes princípios sobre a concepção de Estado, como instituição que assiste e gere as relações sociais. Para Hobbes3, uma vez que a vaidade da sabedoria do homem impediria que ele aceitasse sua igualdade em relação a outros homens, gerando assim uma constante desconfiança que o colocaria em um latente “estado de guerra”, haveria a necessidade de uma organização que limitasse suas ações para garantir a paz social e estabelecer uma ordem racional. Locke4, ao contrário, acreditava que o homem já se organizasse de forma harmoniosa sem que houvesse a necessidade de recorrer à ordem política, contudo, a instauração do Estado se mostraria necessária à medida que se apresentava como uma ferramenta de elevada importância para prevenir que inimigos internos e externos ameaçassem sua organização. O Estado, segundo Hobbes, tem autoridade para definir por quais meios se fará a manutenção da paz e da segurança, e “fazer tudo o que considere necessário ser feito, tanto antecipadamente para a preservação da paz e da segurança [...] quanto também, depois de perdidas [...], para a recuperação de ambas.” 5. Locke acredita que, quando em estado de guerra, se uma sociedade dominar outra, a que domina poderá destruir a que foi dominada se assim lhe for interessante. Maquiavel e Montesquieu têm ideias semelhantes quanto à dominação de outras nações. Para o primeiro “há três modos de impor-lhes o jugo: o primeiro é destruindo-os; outro, o novo príncipe fixando sua morada naquela nação; o terceiro é consentindo que vivam conforme as suas leis, 3132

recolhendo um tributo [...]”6. Para Montesquieu, “um Estado que conquistou outro tratao de uma das quatro maneiras seguintes: continua a governá-lo segundo suas leis e só toma para si o exercício do governo político e civil; ou dá-lhe um novo governo político e civil; ou destrói a sociedade e dispersa-a; ou enfim extermina todos os cidadãos.”7. Rousseau afirma que o surgimento da primeira sociedade tornou indispensável o estabelecimento de todas as outras, e que as alianças foram necessárias para enfrentar forças conjuntas. Entretanto, com o tempo, os corpos políticos passaram a se indispor entre si, e como resultado: [Esta indisposição] Gerou as guerras nacionais, as batalhas, os assassinatos, as represálias que levam a natureza a agitar-se e chocam com a razão, e todos esses preconceitos horríveis que consideram como virtude a honra de derramar o sangue humano [...] ficando sempre o conquistador e os povos conquistados em estado de guerra entre si 8.

Foucault fala do paradoxo em que o Estado moderno se insere ao se preocupar com o bem-estar físico e psicológico dos indivíduos, no momento em que guerras e conflitos eclodem em diversas partes. E mesmo nas sociedades socialistas e comunistas, onde, em tese, o homem seria o principal elemento, a forma de governo não deixa de oprimir e controlar seus integrantes. Em suas palavras: “O massacre das massas e o controle individual são suas características profundas de todas as sociedades modernas.” 9.

A adoção do termo Genocídio pelo direito internacional Em 1945, com o fim da Segunda Guerra, por meio da recém-fundada Organização das Nações Unidas, os Aliados instituíram um tribunal militar internacional, na cidade de Nuremberg, na Alemanha, para julgar os crimes cometidos pelos nazistas contra a humanidade. Embora a ideia de soberania de um Estado impedisse que outros países interferissem em questões internas e no tratamento dispensado a seus cidadãos, as lideranças europeias e estadunidenses passaram a considerar que este tratamento também fosse um indicador de como aquela nação se comportaria em relação a seus vizinhos. Gradativamente, o tribunal de Nuremberg passou a enfraquecer a couraça do Estado, ao levar a julgamento autoridades europeias por crimes cometidos contra seus próprios cidadãos, deixando implícito a possíveis futuros perpetradores de atrocidades que já não lhes caberia como defesa o apoio de seus governos ou as fronteiras de suas nações.

3133

Raphael Lemkin, advogado judeu polonês, foi o principal responsável pela campanha para que o termo Genocídio fosse incorporado ao vocabulário dos promotores de Nuremberg e assim disseminá-lo e empregá-lo no direito internacional. Até aquele momento (1946), o termo utilizado era “crimes contra a humanidade”, que havia sido utilizado para condenar os turcos, durante a Primeira Guerra, pelo aniquilamento da população armênia. Lemkin, que perdera parte de sua família no Gueto de Varsóvia e em campos de concentração nazistas, durante a perseguição aos judeus, empenhava-se em popularizar o termo para que o crime fosse caracterizado e assim proibi-lo. Ao falar sobre os esforços do advogado polonês, Samantha Power escreve: A guerra, obviamente, matou mais indivíduos na história que o genocídio e também deixa os sobreviventes permanentemente marcados. Mas Lemkin argumentou que quando um grupo era alvo de genocídio – sendo efetivamente destruído em sua vida física ou cultural – a perda era irreparável. Mesmo os indivíduos que sobrevivem ao genocídio ficam para sempre destituídos de uma parte inestimável de sua identidade10.

Em fins de 1946, em uma das primeiras reuniões da Assembleia Geral da ONU, enquanto Raphael Lemkin tentava efetivar seu projeto de incorporação da palavra genocídio ao vocabulário jurídico, uma alternativa ao termo foi proposta por alguns participantes, sendo substituído por “extermínio”. Contudo, com a insistência de Lemkin e com o apoio que já havia angariado, a proposta foi rejeitada, pois se acreditava que a definição do advogado polonês era mais abrangente e indicava a destruição cultural separadamente da destruição física dos grupos humanos, impelindo os Estados a reagirem antes que tal processo de destruição fosse concluído. Em dezembro, uma resolução foi aprovada por unanimidade condenando o genocídio como a negação do direito de existência a grupos inteiros, que revolta a consciência da humanidade e é contrária à lei moral e ao espírito e objetivos da ONU. O Comitê Jurídico da ONU realizou a Convenção do Genocídio em agosto de 1948, em Genebra, na Suíça. Lemkin esteve presente e continuou sua campanha para ver formalizadas as diretrizes que tipificavam o crime. O rascunho aprovado na ocasião e submetido à Assembleia da Geral, foi aprovado em 9 de dezembro daquele ano e definia como genocídio: Qualquer um dos seguintes atos cometidos com o intuito de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, dos seguintes modos: A. Matando membros do grupo; B. Causando grave dando físico ou mental aos membros do grupo; C. Infligindo deliberadamente ao grupo condições de vida calculadas para acarretar sua destruição física no todo ou em parte; D. Impondo medidas destinadas a impedir nascimentos no grupo; E. Transferindo à força crianças do grupo para outro grupo11.

3134

A partir de então, a interferência dos países signatários da Convenção, caso algum Estado estivesse permitindo ou promovendo genocídio contra a sua população, tornou-se uma exigência. Estes países ficaram responsáveis por tomar providências para prevenir, suprimir e punir o crime. Aquela Convenção, tornou-se a primeira ocasião em que a ONU adotou um tratado de direitos humanos.

A Guerra da Bósnia e o Genocídio Concordando com as definições que apresentamos dos conceitos de “Estado”, baseados nos clássicos da teoria política citados, e do termo “Genocídio” definido em 1948, analisaremos brevemente o Estado iugoslavo enquanto República Socialista, instituída ao final da Segunda Guerra Mundial, em 1945, e as ações articuladas pelo que restou dele, movido por intenções nacionalistas, após sua desintegração, no início da década de 1990. A Iugoslávia, denominada Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos, até meados da década de 1940, deixa de ser uma monarquia da dinastia sérvia dos Karadjordjevic, e passa a ser uma república federativa, dando alguma autonomia às pequenas repúblicas que a compunham. Embora o Presidente fosse Ivan Ribar, quem de fato liderava o país era o então Primeiro-Ministro, Marechal Josip Broz Tito, que assumiria a presidência em 1953 e permaneceria no cargo até sua morte em 1980. Durante o governo de Tito, os povos iugoslavos conviviam em considerável harmonia. Grupos que historicamente protagonizaram inumeráveis conflitos passaram a viver sob uma atmosfera pacífica. A administração do Marechal teve forte influência nessa pacificação, uma vez que se esforçou para manter as principais nacionalidades da Iugoslávia – eslovena, croata, sérvia, bósnia e macedônia – em um mesmo patamar de importância política e social. Os casamentos interétnicos eram comuns e os membros de tais grupos conviviam em uma mesma vizinhança sem qualquer impedimento ou conflito. Especialmente na Bósnia-Herzegovina, país com a maior diversidade cultural e de nacionalidades. O nome Iugoslávia significa “Terra dos eslavos do sul” e entre as aproximações culturais daqueles povos, podemos ressaltar os idiomas, que apresentam muitas semelhanças, sendo considerados por alguns linguistas apenas variações de uma mesma língua; embora os alfabetos utilizados possam variar de país para país - o croata utiliza o latino, o sérvio utiliza o cirílico, e o bósnio utiliza ambos. Na década de 1960, Tito passa a reconhecer a população muçulmana da bósnia como nacionalidade. Embora nem todo bósnio fosse muçulmano, a maioria da população professava a fé islâmica, desta forma a medida tinha a intenção de prevenir possíveis 3135

insurreições nacionalistas, reafirmando a identidade de um grupo majoritário. Ainda que os iugoslavos convivessem de forma pacífica, os sentimentos nacionalistas sempre estiveram presentes, assim como grupos interessados na secessão, que reclamavam a separação dos territórios de cada nacionalidade, e cada uma delas diferenciava-se com veemência das demais, sendo a religião o principal elemento diferenciador. Dessa forma, a atitude do Marechal era muito mais um ato político que uma constatação antropológica12. Em meados da década de 1970, a Iugoslávia começa a enfrentar uma crise que se arrasta até a década seguinte. A morte de Tito, em 1980, e a queda do Comunismo na Europa, na segunda metade daquela década, tornam-se elementos complicadores no contexto político do país. Em trinta e cinco anos no poder, Josip Broz Tito foi o grande agregador dos povos iugoslavos e os líderes que o sucederam, não tiveram o mesmo carisma, nem a mesma capacidade de manter a federação coesa, de tal forma que, em 1991, Eslovênia, Croácia, Macedônia e Bósnia-Herzegovina declaram sua independência, reduzindo a Iugoslávia a uma federação composta por Sérvia e Montenegro. Contudo, apenas a independência da Macedônia ocorreu de forma pacífica. Os sérvios nutriam o desejo de estabelecer a “Grande Sérvia”: projeto expansionista motivado por aspirações nacionalistas, em que grande parte do território que havia sido a Iugoslávia Socialista, e que contasse com a presença de sérvios, seria dominado e gerido por este grupo. Então, quando os demais países declararam suas independências, a Sérvia travou guerras para tentar impedir a perda dos territórios que julgava serem seus. O embate com a Eslovênia durou apenas alguns dias, pois, por haver um pequeno número de sérvios no país, não houve adesão popular à causa nacionalista e expansionista. Com a Croácia, o confronto durou alguns meses, e a comunidade sérvia da região da Krajina, proclamou sua autonomia. O mais longo e violento conflito travado pela Sérvia foi com a Bósnia-Herzegovina, e contou com o apoio da Croácia por um determinado período. Quando a guerra com a Croácia acabou, os dois países, liderados por Franjo Tudjman e Slobodan Milosevic, passaram a planejar a divisão do território bósnio entre si, uma vez que sérvios e croatas compunham, juntos, pouco menos de dois terços da população. Iniciando então, em 1992, a Guerra da Bósnia. Jacques Sémelin13 analisa como o nacionalismo extremo, observado nos Bálcãs, foi sendo construído e disseminado, e a maneira como os bósnios, especialmente os muçulmanos, foram sendo classificados como inimigos dos sérvios e dos croatas, por 3136

meio de uma propaganda xenofóbica. A ideologia contida em discursos que intencionalmente bestializavam o grupo que se pretendia dominar – os bósnios – pode ser compreendida como um elemento que impulsionou o massacre. A concepção de identidade dá-se pela percepção da diferença, por isso, embora sejam povos eslavos, os croatas, sérvios e bósnios ainda hoje se considerem grupos distintos. A influência das culturas romana, bizantina e árabe; o catolicismo romano, o cristianismo ortodoxo e o islamismo, são elementos que construíram as identidades daqueles grupos e que os diferencia de forma objetiva. Freud acreditava que embora os homens fossem semelhantes, haveria neles uma necessidade de se exagerar a importância de pequenas diferenças, e que acabaria por gerar hostilidade14. A análise que Sémelin15 faz da construção do “inimigo”, afirma que por meio de um discurso inicial sugere-se que determinado grupo seria o motivo do flagelo de uma nação. Pouco a pouco esse discurso se encorpa e encontra respaldo na população, de modo geral, fazendo com o que o “indesejável” seja facilmente identificado e rejeitado, aumentando a hostilidade e justificando a violência empregada contra esse grupo, por aqueles que incorporam o discurso. O ápice desse processo é quando a eliminação física desse grupo passa a ser apreendida como uma medida necessária para uma limpeza ou purificação da nação. Aqueles que se pretendiam neutros, não apoiando o discurso de ódio contra determinados grupos, tampouco se manifestando em defesa destes, acabam se tornando coniventes com a situação, logo, possuem sua parcela de culpa por permitir que tais medidas sejam aplicadas. Assim como os judeus foram estigmatizados na Alemanha nazista e considerados indesejados e passíveis de eliminação física, religiosa e cultural, os bósnios também o foram, por parte da Sérvia nacionalista, da década de 1990. Quando Slobodan Milosevic chegou ao poder na Sérvia, no final da década de 1980, percebendo que a crise da legitimidade do sistema federal da Iugoslávia, colocava o país a caminho da dissolução, se apossou do discurso nacionalista e se dispôs a colocar em prática o plano da “Grande Sérvia”, mesmo que pela guerra. A maneira mais eficaz de popularizar seu objetivo e agitar os sentimentos nacionalistas entre os sérvios foi pela propaganda. A respeito disso, Sémelin aponta: Imprensa, rádio e televisão são “convidados” ou literalmente obrigados a se tornarem os vetores permanentes dessa visão de mundo. A propaganda passa a ser, desse modo, uma espécie de sistema de “envolvimento” geral da população. [...] Na Sérvia, após a morte de Tito, foi sobretudo o prestigioso jornal Politika que se tornou a ponta do nacionalismo sérvio, enquanto a televisão manteve a linha federal. Mas, a partir de 1987, a mesma televisão de Belgrado [capital da

3137

Sérvia] passou a sustentar, cada vez mais, a ação de Milosevic, transmitindo, por exemplo, ao vivo, a imensa manifestação nacionalista de 28 de junho de 198916.

Radeljic17 corrobora o que diz Sémelin, ao afirmar que a Guerra da Bósnia foi acompanhada pela imprensa internacional que denunciava a violência, os massacres e os campos de trabalho estabelecidos por sérvios e croatas, para submeter os bósnios. Contudo, a imprensa da Sérvia, que era comandada pelo governo de Milosevic, era impelida a noticiar os sérvios como as verdadeiras vítimas e omitir o que era divulgado internacionalmente, para que assim a propaganda nacionalista tivesse o efeito desejado sobre a população. Embora os fatores internos sejam os motivadores dos conflitos e guerras civis, fatores externos têm ligação direta com a permissividade de genocídios. Pelo princípio da soberania territorial do Estado, este pode fazer o que bem entender dentro de suas fronteiras, tal princípio também protege os pequenos Estados das possíveis ambições e ganância de seus vizinhos, pois os coloca em um mesmo patamar, apesar dos diferentes níveis de força. Desta forma, quando há massacres promovidos pelo Estado contra seus próprios cidadãos, há certa relutância na comunidade internacional em realizar ingerências, para que não haja indisposições no campo internacional. O que ocorreu nos Bálcãs, a princípio foi concebido como “assunto doméstico”

18

, ou seja, ainda que a

Bósnia-Herzegovina já fosse independente da Iugoslávia, nem toda a comunidade internacional havia reconhecido sua emancipação, por isso a resistência, até mesma da ONU, em intervir no conflito. Com o passar do tempo, as hostilidades e a violência aumentaram. Campos de estupro foram estabelecidos por sérvios e croatas e, em alguns casos, algumas mulheres eram feitas prisioneiras ao engravidarem após os estupros para evitar que abortassem, e assim gerar uma criança sérvia ou croata, dependendo da região da Bósnia em que a mulher estivesse. Esse era um dos métodos de controle de natalidade de crianças bósnias empregado na campanha de limpeza étnica19. Essas atrocidades foram acompanhadas e noticiadas pela imprensa do mundo todo e aos poucos a comunidade internacional passou a interferir no conflito, mesmo que àquela altura, muitas vidas já tivessem sido ceifadas. Embora a ONU tivesse estabelecido uma Força de Paz (UNPROFOR) na Croácia e na Bósnia, em 1992, sua função, a priori, era apenas observar os conflitos e fornecer ajuda humanitária. Às vésperas de 1993, com o acirramento da guerra, as Nações Unidas aumentaram o escopo daquele organismo, permitindo que usassem a força para defesa própria e realizassem operações em pontos

3138

chave do território bósnio. Em 1993, o Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) aprovou as resoluções 819 e 824, que estabeleciam a zona de segurança em Srebrenica, Tuzla, Gorazde, Bihac, Zepa e Sarajevo, sendo algumas delas enclaves muçulmanos, onde estaria proibida a atividade bélica20. Em julho de 1995, as milícias nacionalistas sérvias, comandadas pelo general Ratko Mladic, invadiram Srebrenica promovendo o mais sangrento massacre da Guerra da Bósnia, e considerado por muitos observadores como o mais violento na Europa desde o fim da Segunda Guerra. Cerca de oito mil homens e meninos muçulmanos foram assassinados. Em agosto, o CSNU autorizou o bombardeio das posições sérvias em território bósnio, no que ficou conhecido como: Operação Força Deliberada. Em novembro, sob a mediação dos Estados Unidos e da ONU, Slobodan Miloseivc, Franjo Tudjman, e Alija Izetbegovic, líderes da Sérvia, Croácia e Bósnia-Herzegovina, reuniram-se na base aérea de Dayton, no estado de Ohio, para negociar um acordo de paz, que seria assinado em 14 de Dezembro de 1995, em Paris, encerrando a Guerra da Bósnia. Os países membros da ONU entendem que os massacres ocorridos na BósniaHerzegovina durante a guerra, sobretudo em Srebrenica, em 11 de julho de 1995, caracterizam-se como Genocídio. Embora haja o Tribunal Penal Internacional para a Antiga Iugoslávia, instituído para julgar os crimes cometidos durante a desintegração da Iugoslávia Socialista, nas guerras com a Croácia e com a Bósnia, a Sérvia, com o apoio da Rússia, entende que foram crimes comuns de guerra e se recusa a reconhecer o genocídio. Em 2015, em memória dos vinte anos do massacre de Srebrenica, a ONU propôs uma resolução que reconhecesse formalmente o genocídio na Bósnia, mas, utilizando seu poder de veto, e em favor da Sérvia, a Rússia impediu a aprovação do projeto, que fora proposto pelo Reino Unido. O massacre à população bósnia, e de modo ainda mais incisivo, à população muçulmana, é uma ferida ainda não cicatrizada na história contemporânea da Bósnia-Herzegovina.

1

Graduando em História pela Universidade Estadual de Maringá - UEM. É integrante do Laboratório de Estudos do Tempo Presente (LabTempo/UEM) e do Grupo de Pesquisas em História do Tempo Presente: Relações Internacionais e Movimentos Sociais. E-mail: [email protected] 2

Orientador. Doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP), Professor associado da Universidade Estadual de Maringá (UEM) e Coordenador do laboratório de Estudos do Tempo Presente (LabTempo/UEM).

3139

3

HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Tradução: João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. 3 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. 4

LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. Tradução: E. Jacy Monteiro. 2 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978. 5

HOBBES, op. cit. p.109.

6

MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Tradução: Antonio Caruccio-Caporale. Porto Alegre: LP&M, 2014. p.24. 7

MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. O espírito das leis. Tradução: Cristina Murachco. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p.150. ROUSSEAU, Jean-Jacques. “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens”. In: . Do contrato social e outros textos. Tradução: Lourdes Santos Machado. São Paulo: Victor Civita, 1983. p.270-271. 8

9

FOUCAULT, Michel. Estratégia, Poder-Saber. Organização: Manoel Barros da Motta; tradução: Vera Lúcia Avellar Ribeiro. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. p. 318. 10

POWER, Samantha. Genocídio: a retórica americana em questão. Tradução: Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 76. 11

POWER, op. cit. p. 83.

12

DENITCH, Bogdan. Nacionalismo y etnicidad: la trágica muerte de Yugoslavia. Ciudad de México: Siglo Veitiuno Editores, 1995. 13

SÉMELIN, Jacques. Purificar e destruir: o uso político dos massacres e dos genocídios. Tradução: José Bastos. Rio de Janeiro: Difel, 2009. 14

FREUD, Sigmund apud SÉMELIN, op. cit. p. 55-56.

15

SÉMELIN, op. cit. p. 62-68.

16

SÉMELIN, op. cit. p. 113-114.

17

RADELJIC, Branislav. Europe and the collapse of Yugoslavia: the role of non-State actors and European diplomacy. New York: I.B. Tauris, 2012. 18

WOODWARD, Susan L. apud GUIMARÃES, Bruno Gomes. O papel do Conselho de Segurança da ONU na construção de Estado na Bósnia Herzegovina. Porto Alegre, 2012. 127 f. Monografia – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2012. p.58. 19

PERES, Andréia Carolina Schvartz. Campos de estupro: as mulheres e a guerra da Bósnia. Cadernos Pagu. Campinas, n.37, p.117-162, 2011. 20

KIRKPATRICK, Jeane J. Making War to Keep Peace. New York: Harper Collins, 2007. p.188.

3140

UM ENCONTRO APOCALÍPTICO: O CHOQUE DAS CIVILIZAÇÕES INDÍGENAS E PORTUGUESA EM GONÇALVES DIAS Luiza de Oliveira Botelhoi

RESUMO Gonçalves Dias foi um dos mais notórios poetas do Romantismo Brasileiro do século XIX. O poeta deixou muito registros sobre o passado heróico e valente dos povos indígenas, principalmente os que habitavam as terras do Brasil. No entanto, em outros trabalhos, como Meditação, ele enfatizou o encontro caótico entre europeus e índios. Portanto, este trabalho tem como objetivo apresentar algumas críticas expostas por Gonçalves Dias em Meditação, obra publicada pela Revista Guanabara em 1850. Palavras-chaves: Gonçalves Dias, povos indígenas do Brasil, Meditação.

ABSTRACT Antonio Gonçalves Dias was one of the greatest Romanticism’s Brazilian poet during the nineteenth century. He wrote many subjects that talked about how heroical and brave Native Americans used to be in remote times, especially the Brazilian ones. Otherwise, in other writings, like Meditação, he emphasized that when Europeans and Indians first met, it was a complete chaos. Therefore, this essay intends to present some critics exposed by Gonçalves Dias in his writing, Meditação, published by Revista Guanabara in 1850. Key Words: Gonçalves Dias, Brazilian Native American, Meditação.

INTRODUÇÃO Antonio Gonçalves Dias é considerado o autor por excelência do Romantismo Brasileiro do século XIX. Antonio Candidoii dá um lugar de destaque ao poeta maranhense dentro da primeira geração romântica, afirmando ter sido ele detentor de uma alta sensibilidade e dotado de consciência artística. Por este motivo, o crítico literário conclui afirmando que Gonçalves Dias foi o poeta que consolidou o Romantismo no Brasil. Para além de suas poesias, Gonçalves Dias foi um personagem importante que deixou registros muito relevantes para compreendermos o projeto das letras de construção da nação. 3141

Como membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, deixou muitas obras de cunho etnográfico. Em Brasil e Oceania (1867), por exemplo, um de seus objetivos foi “descrever o estado physico, moral e intellectual dos indígenas do Brasil, no tempo em que pela primeira vez se acharam em contacto com os seus descobridores, e ver que probabilidade ou facilidade offereciam n’essa ephoca a empreza da catechese ou da colonisação”iii. Nesta obra o poeta deduz qual deles estava mais apto para a civilização. Preparou também o Dicionário da Língua Tupy, chamada língua geral do indígenas (1858), Amazonas, uma memória escrita em desenvolvimento do programa dado pelo Imperador (1854), Vocabulário da língua geral usada hoje em dia no alto Amazonas. Além disso, Gonçalves Dias ganhou um volume inteiro na coletânea biográfica Pantheon maranhense: ensaios biográficos dos Maranhenses Illustres já Fallecidos” (1874) Além de seus escritos, o poeta realizou várias viagens pelo IHBG. Uma delas teve como finalidade coletar os documentos das províncias do Norte do Império que contivesse informações relevantes para a construção da História do Brasiliv. Enfim, refletindo sobre suas obras, seus poemas e um pouco de sua trajetória intelectual, podemos verificar como Gonçalves Dias era um autor múltiplo, um homem engajado em sua “missão cívica” de contribuir com um bloco para o progresso e civilização da nação em via construção. Sobre a variedade das produções dos autores engajados no projeto de Nação, Luiz Filipe Alencastrov, já chamara atenção para a não existência de fronteiras muito bem definidas em relação à atividade intelectual dos homens de letras do Brasil na primeira metade do século XIX. Pelo contrário, eram fronteiras fluidas que se cruzavam e interpenetravam. Em seus poemas indianistas, Antonio Gonçalves Dias buscava retratar o passado remoto glorioso dos povos indígenas que habitavam os limites do Império do Brasil, um passado que tivesse, no presente, determinado tipo de essência nacional. Segundo Paulo Bezerra o “poeta [era] dotado de uma aguçada consciência de nacionalidade que lhe permitiu resgatar para a representação literária a história “esquecida” dos nossos povos extintos.”vi Para cumprir o seu objetivo cívico, Gonçalves Dias em seus poemas indianistas oscilou de um pólo ao outro; isto é, em um conjunto de suas obras é possível verificar a descrição do índio bravo, forte, valente e heróico e, em outro grupo, uma seleção de escritos que retrataram o fim trágico da raça indígena que se deu no momento em que os colonizadores europeus chegaram à América. No primeiro conjunto, destaco uma de suas obras mais conhecidas I-Juca Pirama (1851) e, no segundo grupo, uma obra pouco conhecida 3142

intitulada Meditação (1846), publicada na Revista Guanabara em 1850. Todavia, é importante traçarmos algumas considerações a respeito do indianismo no romantismo.

O INDIANISMO NO ROMANTISMO O Romantismo carrega consigo uma forte tendência nacionalista, sobretudo por ter sido um movimento surgido no contexto da euforia da emancipação política de Brasil em relação à metrópole portuguesa em 1822. Segundo Antonio Candido, o Romantismo foi o “despertar das nacionalidades”, tendo em vista que as necessidades de individuação nacional iam bem com as peculiaridades da estética romântica como, por exemplo, a soberania do tema local, descrição de paisagens, costumes, sentimentos. vii Contudo, foi um movimento que recebeu maior destaque a partir da década de 1830, com destaque para o surgimento da Sociedade Filomática de São Paulo, cujo objetivo era refletir sobre uma possível “americanização” da literatura, a partir das sugestões de Ferdinand Denis e Almeida Garrett, e com a nacionalização das letras; e do grupo Fluminense da Revista Niterói com destaque para Gonçalves de Magalhães, Francisco de Salles Torres Homem e Araújo Porto Alegre, homens de letras empenhados em descobrir as origens da literatura brasileira e os símbolos em que ela deveria se inspirar como, por exemplo, a natureza e o índio.viii É nesta perspectiva de atribuir um caráter nacional à literatura que emerge a valorização da figura do índio. Conforme Afrânio Coutinho e Antonio Candido, o índio é a referência por excelência da autonomia nacional, encarados como os verdadeiros donos da terra, e, somado a isso era também o correspondente ao medievalismo do movimento europeu.ix O índio, portanto, inspira as raízes da nacionalidade brasileira. Em relação ao indianismo de Gonçalves Dias, em específico, os povos indígenas devem ser valorizados pelos valores ético e moral que inspiram, isto é, a coragem, a resistência física, lealdade, a bravura. Em síntese, são valores e heranças positivas que podem contribuir para a nacionalidade brasileira em vias de formação.x Em linhas gerais, o indianismo foi uma das maneiras de particularizar a literatura nacional em relação à universal. É um tema que foi privilegiado para desvendar as origens remotas do específico brasileiro, pois além de donos das terras, ele inspira valores que contribuem para dar um caráter particular a nacionalidade em fase de formação.

3143

Seu

tratamento, portanto, se dava de forma idílica e idealizada, privilegiando a ética e cortesia daquelas gentis tribos. A VALENTIA DOS NATIVOS EM I-JUCA PIRAMA (1851) Neste poema épico, Gonçalves Dias relata a história do último sobrevivente da tribo tupi feito prisioneiro pela tribo antropófaga dos Timbiras. Os versos de fala do guerreiro e prisioneiro tupi nos trazem a dimensão do quanto ele lutou pela sua tribo, das inúmeras guerras que experimentou, suas vitórias e suas perdas. O auge de sua valentia pode ser traduzido pela emblemática passagem “Sou bravo, sou forte/ Sou filho do norte”xi. Contudo, tendo um pai bastante idoso e cego dependente dele, fez com que o guerreiro prisioneiro se acovardasse ao chorar e pedir piedade para o chefe Timbira. O chefe da tribo inimiga, por sua vez, analisa tal pedido de clemência como um ato fraco e não deseja mais tê-lo como prisioneiro. Afinal, a carne fraca de um guerreiro tupi covarde poderia enfraquecer os valentes índios Timbira. Ao ser libertado, o índio tupi vai ao encontro de seu pai, que percebe o tremor do filho e sente as marcas no corpo que o tinham feito prisioneiro. Furioso pelo ato de covardia de seu filho, o velho tupi o entrega ao chefe Timbira. O velho pai pragueja contra seu jovem filho por tamanha fraqueza e, diante disto, o jovem guerreiro declara guerra aos Timbira. Ao final do poema, o velho tupi ouve os gritos, a voz de guerra que lhe soaram tão familiar, “E os sons dos golpes que incessantes fervem. Vozes, gemidos, estertor de morte”xii. Este ato provou, finalmente, a bravura do jovem guerreiro tupi. A história de valentia ficou guardada na memória do povo Timbira, sendo recontada de geração em geração. Em suma, o herói não é somente o jovem guerreiro, mas seu pai também teve uma atitude muito valente ao entregar seu filho para o inimigo. I-Juca Pirama é considerado uma obra de modalidade épica, o que traduz a preocupação de Gonçalves Dias em não deixar que estas tradições evaporem ao longo do tempo, revelando a preocupação em perpetuar a tradição e a memória de valentia dos índios para a posteridade dos filhos da pátria em processo de construçãoxiii.

3144

O APOCALIPSE EM MEDITAÇÃO (1850) Meditação, em prosa, é uma obra crítica que traz uma análise alternativa em relação ao poema I-Juca Pirama, retratando o destino cruel reservado àquele povo heróico. Trata-se de uma obra publicada em três capítulos na Revista Guanabara em 1850. A narrativa de Meditação é centrada no diálogo entre um ancião e um jovem, sendo o primeiro responsável por mostrar ao segundo o que se passa no território do Império do Brasil, bem como as principais dificuldades e obstáculos que põe em xeque o projeto de Brasil que pretendia se construir no século XIX. O terceiro capítulo da obra é destinado à situação indígena, cuja narrativa foge do padrão de valentia dos índios, revelando o quanto o heroísmo e a valentia de um povo tão forte não foram condições suficientes para a sua sobrevivência, principalmente diante de tamanha violência com a qual se deu o “encontro” com o europeu. Gonçalves Dias, valendose de um ponto de vista mais crítico, nos conta as conseqüências deste choque para os povos indígenas no seu tempo do século XIX, análise esta que nos parece tão contemporânea. O poeta inicia seu capítulo descrevendo as matas exuberantes dos territórios que compreendem o Império do Brasil, e frisa “o quadro bellissimos de poesia e licções de moral sublime, que são como inherentes á natureza do homem”xiv. Nestas matas havia uma geração de homens que viviam felizes e tranquilos, homens estes não corrompidos. Eram homens orgulhosos de suas vitórias e de seus companheiros mortos bravamente em guerras ao lutar em nome de sua tribo. Para estes homens, cuja vida era a guerra, “a coragem devia ser a primeira qualidade”xv. Entre eles não havia espaço para os covardes “e ai delle! Porque a terra é dos valentes, e o cobarde depois de morto não tem ingresso no banquete dos céos, onde os velhos contão as suas proesas”xvi. Enfim, é um cenário descrito com muita harmonia, tranqüilidade de bela natureza e felicidade. Esta visão é logo encerrada com a chegada dos europeus, “homens da natureza aos que chamamos civilisados”xvii O poeta compara os europeus a monstros, descrevendo suas naus como se fossem gigantes monstros marinhos que estavam adormecidos nas profundezas do oceano e que, de repente, despertaram. Os europeus não eram homens cuja intenção era difundir a religião, mas eram “sordidamente cubiçosos, que procuravão um pouco de ouro, pregando a religião de Christo com armas ensangüentadas (...) eram homens que pregavão a igualdade evangélica tratando os indígenas como brutos, invilecendo-os como a escravidão”xviii e maltratando-os

3145

com varas de ferro. A este encontro, Gonçalves Dias afirma que de paraíso natural, o Brasil tornou-se um lugar de vícios e degradação social, repleto de resquícios impuros de um povo a que chamamos de civilizados. Deste encontro resultou a luta sanguinária entre os povos, “dos dominadores contra os homens que não querião ser dominados”xix. Uma guerra em que “ouvia-se de instante a instante o som profundo, cavernoso e agonisante de uma raça que desappareceria de sobre a faça da terra.”xx Toda a narração deste choque entre europeus e indígenas é descrito com palavras angustiosas e de horror, o que nos leva a refletir sobre o repúdio do poeta em relação a tamanha violência a que foi submetido os povos indígenas. Gonçalves Dias lança mão de comparações que trazem a sensação de desespero ao leitor: “E era horrível e pavoroso esse bradar do desespero, como seria o de milhões de indivíduos que ao mesmo tempo se afundassem no oceano / E os cadaveres infindos servião de pasto aos animaes immundos expostos a incelemencia do tempo e a profanação dos seres e dos elementos / E elles tinhão o lívido semblante voltado para o ceo, e pela bocca das suas feridas, manavão sânie, parecião clamar justiça ao Deos que os havia creado / E outras vezes o grito era também immenso e único, porém de sons variadissimos e destintos, revelando cada som uma dor terrivel ou uma agonia profunda [...] E uma outra raça, emigrando da terra do seu nascimento, rasgava-se em grupos de conhecidos, e os conhecidos em grupos de famílias, e as famílias tornavão-se individuos. / E os indivíduos erão perseguidos por toda a parte, acocados como feras e assassinados impiedosamente”xxi

Ao final da conquista, o poeta ressalta que a Europa, inteligente e civilizada, se orgulhava da conquista e, simultaneamente, do outro lado do Atlântico, “fundava um novo império em novo mundo, viciando-lhe o princípio com o cancro da escravatura, e transmitindo-lhe o amor ao ouro sem amor do trabalho”xxii. Enfim, foi a ambição por novas terras e a cobiça pelo ouro as principais motivações européias que acarretaram no extermínio da raça indígena, “conquista” esta vista como um feito glorioso entre os portugueses. Além do encontro apocalíptico entre as raças, Gonçalves Dias avança mais na história brasileira e menciona o episódio da independência em 1822, afirmando que o Grito do Ipiranga foi responsável por romper com a corrente que “prendia um império a outro império”xxiii. E assim se deu a emancipação do Brasil. Após os combates, os homens que lutaram pela independência dividiram-se, ou melhor, segregaram-se “não segundo a diversidade das opiniões, porém segundo a variedade das côres”xxiv. Nesta parte, o letrado dirige uma das grandes críticas ao Império do Brasil, um problema de hierarquias e exclusões que, para Gonçalves Dias, já nasceu com a emancipação.

3146

O Império, desde a época de sua conquista no século XVI, foi resultado de conflitos, guerras e violência, o que tirou a vida de uma raça heróica, brava e valente. A nação nasceu com a ambição e cobiça de grupos sociais branco, europeu. Portanto, foi uma nação que já nasceu com vícios. Para seguir com o raciocínio do autor, há uma passagem emblemática em que ele determina as funções sociais de cada raça que compõe o Império: “Os homens de cor preta devem servir, porque elles estão acostumados á servidão de tempos mui remotos, e o costume é também lei. / E os philosofos disserão: Os homens de cor preta devem servir, porque são os mais fracos, e é lei da natureza que o mais fraco sirva ao mais forte. / E os proprietários disserão: Os homens de cor preta devem servir porque são o melhor das nossas fortunas, e nós não havemos de as desbaratar.”xxv

Neste episódio, Gonçalves Dias afirma que todos concordaram porque a voz dos filósofos e dos proprietários são entendidas como a “voz da razão e da justiça”xxvi Já os homens de cor branca afirmavam que “Nós constituímos a maioria da nação e somos de entre todos os mais ricos. / Fomos nós os authores da regeneração política, e a intelligencia é o nosso apanágio. / Ora é lei da natureza que a alma governe o corpo, e que a sabedoria governe a ignorância. / Nós então ficaremos com o poder, porque somos os mais ricos e os mais inteligentes.”xxvii

Diante disto, os homens de raça indígena não souberam definir qual seria sua função na sociedade. “E nós que faremos? / Qual será o nosso lugar entre os homens que são senhores e os homens que são escravos? / Não queremos quinhoar o pão do escravo, e não nos podemos sentar a mesa dos ricos e dos poderosos. / No entanto este solo abençoado produz fructos saborosos em todas as quadras do anno, suas florestas abundão de caça, e os seus rios são piscosos / Os brancos governão, os negros servem, bem é que nós sejamos livres. / Vivamos pois na indolência e na ociosidade, pois que não necessitamos trabalhar para viver. [...] Deixar-nos-hão no ócio porque precisarão de nós, e porque a nossa ociosidade lhes será necessária / E nós seremos felizes”xxviii

O limite de sua crítica chega ao ponto de afirmar que os homens brancos da cidade não se deram conta de que o ócio proporciona crimes, e, uma classe ociosa e insatisfeita pode ser responsável por disseminar medo e terror. Bastava alguns homens terem consciência de sua situação precária, de sua dignidade, moral e religiosa para fomentar uma turbulência. A divisão por ofício das três raças que compõe o Império do Brasil, citada por Gonçalves Dias, pode ser pensada, em parte, na chave exposta por Ilmar Mattos “Um Império, Três Mundos”. Segundo o historiador de O Tempo Saquaremaxxix, a “boa sociedade” (homens brancos, livres e proprietário de escravos) legava a si o “mundo do governo”, este dividido em duas esferas: o Estado (governo político) e a Casa (governo econômico e escravista); o “mundo do trabalho”, ocupado por escravos, principalmente nas fazendas de

3147

açúcar e café e também na cidade; e, finalmente, o “mundo da desordem”, que, na definição de Ilmar Mattos, era ocupado pelo povo “mais ou menos miúdo”, que reivindicava espaço no mundo do governoxxx. Contudo, mesmo a partir da interpretação de Ilmar Mattos, Gonçalves Dias não enquadra os povos indígenas em nenhum dos “três mundos”, demonstrando que não há espaço para eles no Império do Brasil. Desta maneira, o que resta para os nativos é o ócio. Por fim, é importante considerar o quanto contraditória é a situação dos povos indígenas na Brasil do XIX. Ao mesmo tempo em que letrados buscavam no passado heróico dos índios a essência da nacionalidade brasileira, não havia o correspondente no presente vivido por eles no oitocentos. Em outras palavras, o símbolo da nacionalidade e da peculiaridade “brasileira”, contraditoriamente, não tinha espaço na vida do Império.

CONSIDERAÇÕES FINAIS. Gonçalves Dias era um dos poetas por excelência da primeira geração do Romantismo brasileiro. Em Meditação, obra publicada na Revista Guanabara em 1850, o poeta teceu severas críticas ao modo com a qual os povos indígenas foram tratados desde o encontro com o colonizador e os legados de tal destino. Alfredo Bosi, um dos estudiosos do indianismo romântico no Brasil, refletiu sobre a especificidade da temática de Gonçalves Dias, comparando-o com José de Alencar. O crítico literário ressalta que a especificidade do poeta é tematizar o encontro entre colonizadores e as tribos indígenas na sua dimensão mais trágica, se apropriando de passagens bíblica do apocalipse para registrar o fim de um mundo. Bosi ressalta que as obras de mocidade de Gonçalves Dias foram escritas entre o contexto das guerras de independência nas províncias do Norte e na época da Balaiada, conflitos muito atrozes que marcaram o pensamento literário do poeta maranhense. Contexto bem diferente em relação ao de Alencar, que escrevia da corte no Rio de Janeiro, durante a maioridade de D. Pedro II na década de 1850, período este considerado pela historiografia como uma fase de estabilidade política xxxi. Portanto, enquanto Alencar tratou do passado remoto e mítico dos índios, preocupado mais na construção ideal da gênese da nacionalidade em vias de construção; Dias não perdeu de vista a dimensão trágica do destinos dos nativos. Todavia, é importante ressaltar que essa dimensão trágica também esteve presente no último romance indianista de Alencar, Ubirajara. Contudo, é importante acrescentar outra especificidade que possivelmente marcou a trajetória indianista de Gonçalves Dias. Para além de métricas, rimas e versos, o poeta foi

3148

muito engajado no IHBG, realizando viagens pelo interior das províncias do Norte do Império e redigindo pesquisas de cunho etnográfico sobre a condição dos povos indígenas, como foi retratado no início deste texto. Sua experiência foi, portanto, para além das penas. O contato físico, emocional e intelectual que o poeta teve com aquelas povos marginalizados contribuiu para dar um caráter diferente em suas obras. No entanto, é preciso não cair no equívoco do “brilhantismo” de Gonçalves Dias, pois sua atitude crítica é fruto das sensibilidades românticas. Segundo Marcia de Almeida Gonçalves é importante pensarmos as sensibilidades românticas na sua complexidade, isto é, uma nova posição reflexiva sobre o lugar do homem no mundo, o que levou a ampliação de “posturas, propostas e questionamentos (...) em diversos campos da ação humana” xxxii. As sensibilidades românticas levaram a novas possibilidades de se pensar o que é a liberdade, conceito romântico por excelência, e como tal conceito foi posto em prática quando aplicada na realidade do Império. Em linhas gerais, a proposta do trabalho foi refletir sobre a outra dimensão do indianismo de Gonçalves Dias: a dimensão apocalíptica do “encontro” entre o europeu e as tribos indígenas que habitavam as terras “brasileiras”. Motivados pela cobiça e ganância, os europeus deixaram um legado irreparável na vida daqueles povos. As terras do Império já nasceram, portanto, com a dimensão da tragédia, lavada por sangue, cobiça e ganância. Na visão do poeta, portanto, a nova nação era desbravada com vícios de uma nação decadente.

i

Graduanda em História (Bacharelado e Licenciatura) pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Trabalho orientado pelo Prof. Dr. Daniel Pinha Silva. Também é bolsista PIBIC/UERJ do Laboratório Redes de Poderes Relações Culturais sob orientação da profa Dra. Tania Maria Tavares Bessone. E-mail: [email protected] ii

CANDIDO, Antonio. A Formação da Literatura Brasileira. Momentos Decisivos 1750-1880. Ouro sobre Azul, Rio de Janeiro, 2014, p.401-416 iii

BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Diccionario Bibliographico Brasileiro. Rio de Janeiro, Conselho Federal de Cultura, 1970, v.1. p, 182. Disponível em: http://www.brasiliana.usp.br/bbd/handle/1918/00295710#page/213/mode/1up iv

WILTON, José Marques. Gonçalves Dias: O poeta na contramão. Literatura & Escravidão no Romantismo Brasileiro. São Carlos, EdUFSCar, 2010, p.42-45. v

ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Memórias da Balaiada: introdução ao relato de Gonçalves Magalhães. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n.23, p.7-13, 1989. vi

BEZERRA, Paulo. Gonçalves Dias: O Resgate do Nacional. In: HELENA, Lucia (org). Nação-Invenção. Ensaios sobre o nacional em tempos de globalização. Rio de Janeiro, Contra Capa, 2004, p.196. vii

CANDIDO, Antônio. Op Cit, p. 333

viii

COUTINHO, Afrânio. A tradição afortunada. O espírito de nacionalidade na crítica brasileira. Rio de Janeiro, José Olympio, 1968, p 70-79.

3149

ix

Idem, p 91; CANDIDO, Antonio. Op Cit, p. 336-340

x

COUTINHO, Afranio. Op Cit. p 93

xi

DIAS, Gonçalves. I-Juca Pirama. Publicado por: Ministério da Cultura. Fundação Biblioteca Nacional. Departamento Nacional do Livro. Disponível em: http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/livros_eletronicos/jucapirama.pdf xii

Idem.

xiii

BEZERRA, Paulo. Gonçalves Dias: O Resgate do Nacional. Op Cit, p.198

xiv

DIAS, Gonçalves. Meditação. Guanabara, revista mensal, artística, científica e literária, Rio de Janeiro, tomo I, p. 171, 1850. xv

DIAS, Gonçalves. Meditação. Op. Cit, p. 172.

xvi

Idem.

xiii Idem xiv

DIAS, Gonçalves. Meditação. Op. Cit p.173

xix

idem

xx

idem

xxi

idem

xxii

DIAS, Gonçalves. Meditação. Op. Cit, p.174

xxiii

DIAS, Gonçalves. Meditação. Op. Cit, p175

xxiv

DIAS, Gonçalves. Meditação. Op. Cit, p.176

xxv

idem

xxvi idem xxvii idem xxviii

xxix

DIAS, Gonçalves. Meditação. Op. Cit, p.177

MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema. 5ªedição, São. Paulo: Editora Hucitec, 2004

xxx

MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Gigante e o Espelho. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (orgs.) O Brasil Imperial v. II 1831-1889. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. xxxi

BOSI, Alfredo. Um Mito Sacrificial: o indianismo de Alencar. In: A Dialética da colonização. São Paulo, Companhia das Letras, 1992. xxxii

GONÇALVES, Márcia de Almeida. História de gênios e heróis: indivíduo e nação no Romantismo. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (orgs.) O Brasil Imperial v. II 1831-1889. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p.431

3150

Luzes e censura: os primeiros anos do século XIX no Império luso-brasileiro Maíra Moraes dos Santos Villares Vianna1

RESUMO: Este trabalho propõe analisar as obras proibidas e a censura que elas sofreram ao longo dos primeiros anos do século XIX no Brasil. Para tal, será destacado o papel do censor nesse processo, demostrando a sua importância na avaliação da obra. Objetiva-se, problematizar e demonstrar ausência de normas e regras bem definidas em relação aos critérios que configuravam e determinavam a circulação e o acesso a elas. Destaca-se também que o acesso aos textos proibidos era configurado de forma diferenciada. Palavras-chave: Luzes - Censura - Livros

ABSTRACT: This work aims to analyze the forbidden Works and censorship that they suffered during the first years of the nineteenth century in Brazil. To realize this, the key role of censor in this process will be emphasised, demonstrating its importance in the evaluation of the work. The purpose is to question and to demonstrate the absence of well-defined standards and rules on the criteria that made up determined the movement and access to them. We also emphasized that the access to banned texts was configured differently. Keywords: Lights - Censure - Books

Pensar a censura2 no Brasil, muitas vezes nos remete ao período referente à ditadura militar. Esquecemos que seu inicio, entretanto, é muito anterior a tal época. A censura existe desde que o Brasil, ainda colônia, estava sob domínio Português e passou por mudanças significativas, conforme as características e necessidades de cada época. Assim, proponho nesse trabalho explorar tal assunto, mas retomando o período referente ao Império lusobrasileiro. Para isso, estipulei como recorte os primeiros anos do século XIX. Dessa forma, analiso como a censura era caracterizada naquele período e quais as ideias que influenciaram e justificaram a sua adoção pelo Império luso-brasileiro. Cabe ressaltar ainda que as ideias iluministas3 que emergiram no século XVIII têm um papel essencial no processo censório durante tal período. Assim, uma reflexão sobre o 3151

assunto se faz necessário para a compreensão do aparelho censório como um todo. Dessa forma, analisarei e demonstrarei a partir do parecer4 do censor régio, Francisco de Borja Garção Strockler5, a pedido de D. João VI, como funcionava a censura e as ideias que a guiaram. É fundamental ainda destacar que o processo articulado pelo período atuava em varias competências, não se limitando apenas a circulação de livros, como será apresentado mais adiante. Os primeiros anos do século XIX podem ser caracterizados ainda pela forte influência das ideias iluministas, surgidas no século anterior, as quais permearam e alteraram a vida da sociedade, destacando o papel do livro. Tais ideias deviam “esclarecer” o homem letrado, eram apresentadas como perigosas ao resto da população. Assim, a partir da análise das licenças6 contidas na mesa do desembargo do paço no Arquivo nacional, problematizo e destaco o papel dos censores dentro desse processo, ou seja, como os princípios morais, religiosos e políticos de cada censor implicavam na classificação de uma obra como “proibida” ou não. A defesa por uma racionalização e valorização da ciência marcou também o século XVIII, posteriormente denominado de século das luzes. Assim, a intensificação da censura foi um dos mecanismos encontrados para se obter maior controle e evitar a difusão de tais ideias. No entanto, uma elite letrada, assim como homens que ocupavam cargos de destaque na burocracia, ou dentro da instituição religiosa, tinham acesso a algumas dessas obras. A permissão concedida tinha como finalidade a instrução desses homens a fim de combater tais ideias perigosas em relação ao resto da população. Havia, portanto, uma distinção entre as pessoas consideradas dignas da leitura de obras “proibidas”, representadas por meio da concessão de licenças para a posse dos livros proibidos. Muitas das ideias surgidas durante o século XVIII adentraram o século seguinte e a difusão dos livros ganhou cada vez mais espaço nos países da Europa ocidental. Entretanto, por se tratar de sociedades ainda marcadas pelo Antigo Regime, a hierarquização ao acesso às letras ainda favorecia uma elite. Pode-se notar isso quando Chartier apresenta a ideia da leitura durante esse século e a relaciona com a ascensão de ideias e pensamentos dos filósofos ilustrados, pois as ideias trazidas por eles introduziram novas temáticas aos leitores. Demonstra que o iluminismo proporcionou uma das revoluções na leitura ao aproximar as pessoas ao mundo das letras. Assim, os livros ganham uma nova significação ao romperem com o conteúdo até então em vigência. “O livro religioso que dominava a produção no século XVII e no começo do XVIII recuou diante das belas letras [...]. A essa produção autorizada, acrescentar-se-ia a circulação em larga escala de todos os livros que os livreiros chamam de “filosóficos”. 7 3152

Assim, além de alterar as relações do público com os livros, há também maior fiscalização em relação aos conteúdos inseridos dentro deles. Muitas das ideias apresentavam críticas aos dogmas da Igreja, juntamente com o despotismo dos soberanos absolutistas. Chartier8 destaca que muitos dos livros em questão tinham sua origem nos Países Baixos, cabendo a Paris o papel de polo difusor dessas ideias. Inserido em um contexto, no qual as ideias iluministas ganham destaque, o mundo luso-brasileiro, assim como a Europa em geral, intensifica a censura sobre os conteúdos dessas obras. Diante de tais circunstancias, o livreiro surge como um dos meios de burlar a fiscalização devido a sua posição social, acompanhado pela emergência de espaços públicos e de uma opinião pública ainda em formação. É possível constatar diferenças em relação à censura. Durante o reinado de D. José I (1750-1777) foram realizadas reformas com o intuito de evitar que as ideias iluministas comprometessem a monarquia. Uma delas foi a garantia de maior autonomia do Estado em relação à Igreja. Assim, Sebastião José de Carvalho e Mello, o futuro marquês de Pombal, ganhou destaque por liderar tal processo. Uma mudança importante foi em relação aos órgãos responsáveis pelas censura em todo o Império luso-brasileiro, por meio da criação da Real Mesa Censória em 1768, retirando da igreja esse papel. Anteriormente às reformas pombalinas, a censura dos livros era realizada pelo conjunto de três órgãos, Ordinário, Desembargo do Paço e Inquisição, caracterizados por serem independentes entre si. Com Pombal, essa dinâmica é alterada, instituindo-se a Real Mesa Censória que podia arbitrar sobre as questões referentes à censura. Criou-se também um novo Index, não mais utilizando o apresentado durante o Concilio de Trento (1545-1563). Assim, rompe-se com a interferência da autoridade eclesiástica referente à censura. Ela passa a ser responsabilidade do Estado Português: “Na Europa do século XVIII, no bojo de um conjunto de reformas, desenvolveu-se uma politica de estatização da censura, que foi acompanhada pelo crescimento da preocupação com as obras de caráter politico em detrimento das religiosas.” 9 A censura teve como função prevenir e reprimir desde a produção até a circulação dos livros. Entretanto, a ausência de uniformidade nos critérios adotados para a repressão ocasionou uma lentidão na máquina burocrática. Dessa forma, é fundamental ressaltar que a circulação, leitura e posse de alguns livros não se destinavam a todos de forma igual. Assim, da mesma forma que alguns homens possuíam o privilégio de leitura de certas obras, outros possuíam a autorização para a comercialização, os livreiros. Luiz Carlos Villalta demonstra que a proibição das obras instigava as pessoas a adquiri-las. Logo, a censura incentivou o imaginário das pessoas a lerem tais livros. Devido à

3153

proibição e à fiscalização em relação ao acesso a eles, criaram-se mecanismos para burlar e garantir o acesso, por meio de uma rede clandestina de impressão, leitura e comércio. Dentro do território colonial, verificou-se uma ausência de consenso em relação à fiscalização, havendo regiões onde o acesso não era difícil. Vários foram os editais contendo relação de livros proibidos, entretanto, muitos conseguiam burlar o sistema. Como intuito de combater a entrada de obras demarcadas como “proibidas”, a Real Mesa Censória determinou que os livros que chegassem, ou passassem pela alfandega deviam ser destinados à Casa de Revisão, com a finalidade de combater a entrada e saída de tais exemplares dentro do Império luso-brasileiro. Além disso, havia também uma fiscalização em relação à circulação interna. Era necessário que o portador de livros possuísse uma lista contendo a relação dos livros que transportava. E, caso houvesse algum que fosse proibido, o dito deveria apresentar a licença da posse. Como já foi mencionado, a incoerência e ausência de critérios definidos caracterizou a fiscalização como ineficiente. Lucia Bastos P. das Neves10 indica que muitos livros desapareciam nas alfândegas como mecanismo de burlarem a fiscalização e, assim, os contrabandear. Isso era feito a partir da ausência de alguns livros em suas listas, que deviam ser apresentadas aos órgãos de censura. Ao não declará-los ou simplesmente utilizando mecanismos como a realização do transporte pelo próprio proprietário, a censura acabava por ser burlada. Os livreiros desempenham um papel fundamental para entrada das obras “proibidas” tanto em Portugal, como na América Portuguesa. Eles driblavam os censores durante o transporte, e até mesmo ao passarem pela alfândega. Tinha-se o costume de importar o livro em folhas para a posterior encadernação. Assim, os livros proibidos ficavam ocultos ao se encontrarem misturados aos demais. Havia também estratégias quando se sabiam que os livros estavam para chegar à alfândega, os interceptando. Outro mecanismo era designar endereços falsos para o envio dos livros. Até mesmo na formulação das listas, os livreiros achavam mecanismos para evitar que fossem pegos. “Os livreiros, assim, procuravam burlar a fiscalização ao enviar listas truncadas dos livros embarcados ou desembarcados, omitindo os nomes dos autores e/o mencionado de forma vaga.” 11 É possível perceber como o início do século XIX deu continuidade a essa ideia, ou seja, fazer da leitura um elemento elitizado. Para se demonstrar essa afirmativa, pode-se utilizar o parecer de Strockler, em resposta ao pedido de dois comerciantes Ingleses Bourbon e Frey, os quais desejavam adentrar com diversos livros no território do Império LusoBrasileiro. A partir de sua leitura pode-se verificar que já era do conhecimento de muitos os

3154

mecanismos utilizados para burlar a fiscalização. E por isso, uma análise mais cuidadosa dos livros se fazia necessária. [...] a relação de livros apresentada pelos suplicantes Bourdon e Frey é por extremo resumida, a imprópria para facilitar o juízo dos censores. Semelhantes relações não condizem ser uma simples indicação de títulos dos bens nelas compreendidos, sem declaração dos seus autores, do lugar e ano das edições por que tenho os mesmos assuntos sido tratados por diversos autores de baixo dos títulos idênticos, e tendo muitos também corrigidos, acrescentando ou mutilados as suas obras depois de impressos pela primeira vez, daqui resulta que entra as obras de huns mesmos títulos, e entre as diversas edições de uma mesma obra há algumas que devam ser permitidas, e outras que mereçam ser vedadas é vidente que por meio de relações em que estas circunstâncias se não especificam não pode o juízo dos censores deixar de ficar incerto, e de retardar-se em consequência a expedição deste gênero de negócios. 12

Durante o reinado de Dona Maria I (1777-92) nota-se uma continuidade do reformismo ilustrado realizado anteriormente, entretanto, há um retorno à ligação da coroa à Igreja, com a instituição da Real Comissão Geral. Invocando a bula Romanorum Pontificum, baixada pelo papa VI em 1780 e pela qual o sumo pontífice reclamava o direito da censura de livros, que lhe fora retirado por Pombal [...] restabeleceu a legitimidade da censura eclesiástica nas matérias religiosas, autorizando os bispos a não exercer o poder de permitir ou proibir que se imprimissem livros, mas apenas “censurar, e declarar a doutrina.” 13

A vinda da corte para o Brasil, em 1808, demonstrou uma nova mudança com a criação da imprensa régia. O papel de censurar caberia à sua Junta Diretora. Entretanto, a Mesa do Desembargo do Paço reivindicou tal direito. Lucia Bastos P. das Neves ressalta um maior controle da coroa diante das guerras napoleônicas, temendo que as ideias ilustradas se espalhassem pelo império Luso-Brasileiro. Havia um controle muito forte em relação às ideias que ferissem a religião, a moral e os bons costumes.14 Assim, é dentro dessa conjuntura que os livreiros surgem como mediadores para a entrada de obras proibidas no mundo luso-brasileiro. Apesar da presença dos órgãos mencionados anteriormente, os livros continuaram adentrar no território, seja ele Português ou Americano. Muitas vezes, a ausência de critérios entre os censores fez com que uma mesma obra fosse proibida por um censor, e aprovada por outro. Dentro desse contexto, o acesso à leitura e à posse dos livros “proibidos” eram privilégio de uma elite letrada, e associado também ao papel desempenhado pelo indivíduo dentro da sociedade. Luiz Carlos Villalta denomina de “economia do dom” essa hierarquização ao acesso das obras, demostrando que a censura possuía particularidades. A ideia era de que o acesso à leitura desses livros pelos letrados e clérigos ajudava no combate as ideias radicais trazidas pelas luzes.

3155

pode-se conjecturar que, em relação aos “filósofos”, portanto, havia uma gradação nas concessões que acompanhava a diferenciação do perfil dos beneficiários, prática perfeitamente logica quando se tratava de uma sociedade estamental, em que as leis variavam conforme a posição social dos indivíduos e onde o acesso aos livros proibidos, por meio da posse e/ou apenas a leitura, constituía uma mercê régia, inscrita dentro da “economia do dom”; se o mecanismo da concessão de licenças, em si, já demonstra a vinculação entre livros e privilégios, as nuances da censura no que se refere à liberação dos livros dos “filósofos” vêm apenas confirmar tal vínculo.15

Ainda dialogando com a questão da representatividade, torna-se fundamental salientar que por se tratar de contextos particulares, as leituras se desenrolam a partir de um caráter especifico. A partir disso, também podemos correlacionar o papel dos censores dentro de tal quadro. O estudo realizado por Lucia Maria Bastos P. Neves se torna pontual em tal questão. “Homens conservadores, mas esclarecidos, os censores, defendiam a adoção de ideias ilustradas para reorganizarem a sociedade, mas temiam que nelas se escondessem a propostas de uma revolução”16 A partir da leitura do parecer de Stockler verifica-se ainda como a leitura era seletiva e excludente ao povo, havendo uma preocupação com a forma com que a palavra era apropriada de maneiras distinta por aqueles não detinham instrução adequada, levando-os a uma interpretação perigosa e ameaçadora à ordem. [...] As Nações são como indivíduos, tem sua infância, sua puência, sua adolescência, sua idade madura, sua velhice e suas descripidez, a desgraçadamente também a sua morte, e assim como os mesmos alimentos não convém indistintamente a todas as idades do homem, assim, também as mesmas leituras e os mesmos meios de instrução não se acomodam perfeitamente a todos estados e circunstâncias das nações. A prudência exige que se evite o quanto se possa a Ilustração do espirito público entre as opiniões convenientes, e as opiniões prejudiciais à causa pública: e meio de conseguir este importantíssimo fim não pode ser outro senão uma instrução regular dada aos povos por meio do qual eles adquiram os meios necessários para discernirem e avaliar ao justo essas opiniões. Daqui procede que ainda mesmo em uma nação aonde as escolas públicas se acham sendo bem organizadas e bem dirigidas, as mesmas leituras não convém, geralmente falando, os homens de todas as idades e de todas as profissões, e que os mesmos livros que devem facilitar-se a uns devem dificultar-se, ou mesmo vedar-se a outros. 17

Dialogando ainda com a ideia anterior, ela encontra-se presente nos estudos de Robert Darnton18 sobre como o iluminismo se propaga pelo mundo, a partir da difusão da obra Enciclopédia. Houve uma ampliação nos espaços de debates, inicialmente representados pelos salões e academias, passando para áreas antes não privilegiadas. Assim, é possível relacionar o papel do livro impresso com a leitura realizada por sociedades distintas, a fim de compreender suas peculiaridades, demonstrando-se, dessa forma, a importância de uma leitura seletiva.

3156

Da mesma maneira que o fragmento acima demonstra a diferenciação em relação a leitura, é possível identificar que a retórica utilizada pelo censor reflete também uma forma particular dele em relação a tal assunto. Nota-se a partir da passagem a seguir, que os valores individuas de cada censor também interferia na avaliação referente às obras proibidas. Isso ratifica a ausência de uniformidade dos critérios da censura. “[...] Entretanto, também ocorria que a opinião pessoal do censor interferisse na avaliação das obras, até mesmo quando não integrassem a lista dos livros proibidos, desde que pudessem dar margem a discussões ligadas aos princípios franceses.” 19 O fragmento seguinte possibilita, além de observar que as regras, não eram claras, havia também varias observações particulares do censor, o que muitas vezes ocasionou desavenças entre os próprios censores. Prescrever regras sobre este objeto não é da minha competência, o que me cumpre é conformar-me exatamente as que vossa Majestade me foram prescritas, mas como ignorar se algumas existem a este respeito; e julgo que devo em minhas censuras distinguir aqueles livros que a ninguém deve ser permitidos dos que não devendo no meu conceito facilitar-se a universal literatura devem, contudo ser permitidos a aqueles homens que o possam pela sua idade, empregos, ou notória capacidade de dever possuindo os princípios necessários para poderem tirar deles a instrução que convém a ordem e atividade pública, julguei necessário prevenir a Vossa Majestade dos princípios e considerações que sobre este objeto hão de dirigir a minha conduta, enquanto regras positivas e claras me não determinaram qual ela deva ser, e excluam assim todo o arbítrio ou intervenção de minhas particulares opiniões em semelhante matéria.20

A partir do que foi apresentado, verifica-se que havia uma preocupação muito grande do Império luso-brasileiro em evitar o acesso das obras consideradas “perigosas” às populações menos instruídas. Da mesma forma verifica-se no discurso do censor Francisco de Borja Garção Stockler que a leitura de tais livros cabia à elite, e principalmente, àqueles que ocupam cargos de destaques, pois a eles cabia o dever de instruir a população de acordo com as ideias que melhor se adaptam ao futuro da nação. Assim, é fundamental destacar que a censura faz parte da História do Brasil desde seu tempo colonial, e que assim como durante todos os períodos até a atualidade, ela esteve sujeita a interesses de indivíduos ligados aos grupos privilegiados dentro da sociedade.

1

Graduanda em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e bolsista de

iniciação científica pela FAPERJ. Orientadora: Profª. Drª. Lucia Maria Bastos P. Neves Email: [email protected]

3157

2

Ver: VAINFAS, Ronaldo. Dicionário do Brasil Imperial, 1822-1889. Rio de Janeiro: Editora

Objetiva, 2002: 134-236. 3

Ver: RAMOS, Luís A. de Oliveira. Sob o signo das “luzes”. Impr. Nacional-Casa da

Moeda, 1977; VAINFAS, Ronaldo. Dicionário do Brasil Imperial, 1500-1808. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2000: 296-299. 4

Resposta ao pedido de licença solicitado pelos comerciantes ingleses Bourbon e Fry a

entrada de livros no Império luso-brasileiro. ANRJ, Mesa do Desembargo do Paço, cx. 818 (física), 168 (lógica) pac. 2 e 3. Doc. 83- 1819 5

Francisco de Borja Garção Stockler nasceu em Lisboa em 25 de Setembro de 1759, filho de

Christiano Stockler e de Margarida Josepha Rita d’Orgiens Garção de Carvalho. Morreu em Tavira em 6 de Março de 1829. Em 1783, Francisco Stockler concluiu os estudos de matemática na Academia Real de Marinha, passando de seguida à Universidade de Coimbra. Bacharel em matemática, além de seguiu a carreira militar, obtendo o posto de tenente general do exército português.Com as invasões francesas à Portugal, foi considerado traidor por apoiar os invasores. Assim, em 1812, parte em direção ao Rio de Janeiro com o intuito de obter o apoio de D. João VI para recuperar o seu estatuto e funções. Integrou a lista de sócios efetivos da Academia Real das Ciências, no Rio de Janeiro, na classe das ciências exatas. Em 1819 foi nomeado Presidente interino da Junta da Direção da Academia Militar do Rio de Janeiro. Nesse mesmo ano foi encarregado por D. João VI de elaborar um plano de defesa da capitania do Rio de Janeiro. Em 1820 regressou do Brasil, tendo sido nomeado governador dos Açores, com o posto de capitão-general. Com a vitória do movimento liberal em Portugal, viria a manifestar o seu incondicional apoio à família real, o que lhe valeria a prisão, em 1821. Viria a ser libertado em 1823, tendo recuperado todos os seus direitos políticos, e passando a integrar o Tribunal do Conselho Ultramarino. Fonte: Camões Instituto da cooperação da Língua-Portugal Ministério dos Negócios Estrangeiros. 6

ANRJ, Mesa do Desembargo do Paço, cx. 818 (física), 168 (lógica) pac. 2 e 3. Doc. 83- 1819

7

CHARTIER, Roger. Uma Revolução da Leitura no século XVIII?. In. NEVES, Lúcia Maria

Bastos P. das (org.). Livros e impressos: retratos dos Setecentos e do Oitocentos. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2009: 97-98.

3158

8

CHARTIER, Roger. Uma Revolução da Leitura no século XVIII?. In. NEVES, Lúcia Maria

Bastos P. das (org.). Livros e impressos: retratos dos Setecentos e do Oitocentos. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2009: 97. 9

VILLALTA, Luiz Carlos. Censura literária e inventividade dos leitores no Brasil colonial.

In: CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (org.). Minorias Silenciada, História da Censura no Brasil. São Paulo: Edusp, 2002: 52. 10

NEVES, Lucia Maria Bastos P. Um Silêncio Perverso: censura, repressão e o esboço de uma

primeira esfera pública de poder (1820-1823). In CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (org.). Minorias Silenciadas História da Censura no Brasil. São Paulo: Edusp, 2002 11

VILLALTA, Luiz Carlos. Usos do livro no mundo Luso-Brasileiro sob as luzes: reformas,

censura e contestações. Belo Horizonte: Fino Traço, 2015: 240. 12

13

ANRJ. cx. 818 (física), 168 lógica pac. 2 e 3. Doc. 83- 1819

VILLALTA, Luiz Carlos. Censura literária e inventividade dos leitores no Brasil colonial. In:

CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (org.). Minorias Silenciada, História da Censura no Brasil. São Paulo: Edusp, 2002: 60. 14

NEVES, Lúcia Maria Bastos P. Censura, circulação de ideias e esfera pública de poder no Brasil,

1808-1824. Revista Portuguesa de História. Coimbra, 1999: 670. 15

VILLALTA, Luiz Carlos. Usos do livro no mundo Luso-Brasileiro sob as luzes: reformas, censura e

contestações. Belo Horizonte: Fino Traço, 2015: 289. 16

NEVES, Lucia Maria Bastos P. Um Silêncio Perverso: censura, repressão e o esboço de uma

primeira esfera pública de poder (1820-1823). In CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (org.). Minorias Silenciadas História da Censura no Brasil. São Paulo: Edusp, 2002: 124. 17

ANRJ, cx. 818 (física), 168 lógica pac. 2 e 3. Doc. 83- 1819

18

DARNTON, Robert. O iluminismo como negócio:

História da publicação da

“Enciclopédia” 1775-1800”. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 19

NEVES, Lucia Maria Bastos P. Um Silêncio Perverso: censura, repressão e o esboço de uma

primeira esfera pública de poder (1820-1823). In CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (org.). Minorias Silenciadas História da Censura no Brasil. São Paulo: Edusp, 2002: 126. 20

ANRJ, cx. 818 (física), 168 lógica pac. 2 e 3. Doc. 83- 1819

3159

O jornal O Globo e o debate em relação às ações afirmativas nas universidades públicas brasileiras. Matheus de Carvalho Leibão1

Resumo: O estudo analisa, sob uma perspectiva gramsciniana, os debates sobre as políticas de ação afirmativa que reservaram vagas nas universidades públicas brasileiras a partir de critérios “raciais”. Como fonte primária, utilizou-se o jornal O Globo, um dos mais importantes em circulação no Brasil, pertencente ao maior conglomerado midiático do país neste início de século. O período escolhido para examiná-lo foi o ano de 2009, quando há mudanças no acesso às universidades federais e o debate sobre “cotas” ganha muita visibilidade. Palavras-chave: O Globo – Ações afirmativas - Universidade

Abstract: This article analyzes the debates about the affirmative remedies that reserved some spots in the Brazilian universities through “racial” criteria. As a primary source, we used O Globo, one of the most important newspapers in Brazil, which belongs to the biggest media corporation in the country in this beginning of century. We chose to analyze it through the year 2009, when there are changes in the access to federal universities and the discussions on the affirmative policies get more visible. Key-words: O Globo – Affirmative remedies – University

Um dos traços que marcaram a formação da sociedade brasileira foi a existência da escravidão, que vitimou tanto as populações nativas da América quanto milhões de trabalhadores africanos que aqui chegaram após cruzarem o atlântico dentro dos navios negreiros. A longa duração desse regime de trabalho forçado deixou marcas que persistem até o momento em que este artigo é escrito, em meados da segunda década do século XXI. É necessário ter em mente que um dos traços culturais da sociedade brasileira é o racismo. O Brasil é um país que conviveu com a escravidão durante séculos, sendo o último a aboli-la oficialmente no continente americano2, em 1888. No entanto, mesmo após a aprovação

3160

da Lei Áurea, os antigos escravizados permaneceram majoritariamente marginalizados, uma vez que se viam distantes do direito ao uso das terras agricultáveis3 e do direito a participação política institucional. Contudo, é extremamente problemático afirmar que os(as) negros(as) e os descendentes das populações nativas da América são apenas vítimas de sua própria história, e não agentes. Historicamente, as populações marginalizadas devido aos seus traços físicos se mobilizaram em torno de ideias que combatiam – e que ainda combatem – esse tipo de opressão4. Braga5 ressalta que, durante a maior parte do século XX, foi dominante na sociedade brasileira a ideia da existência de uma democracia racial, na qual brancos, negros, pardos, índios e asiáticos viveriam harmonicamente, sendo a miscigenação a grande marca da nação. Entretanto, os indicadores sociais brasileiros na virada para o novo milênio pareciam mostrar que a democracia racial não passava de um mito. Segundo Petrônio Domingues6, o Brasil é um país no qual os indicadores sociais andam ao lado dos indicadores raciais. A segregação social leva a marca do racismo. Em seu texto, o autor defende a ideia de que os aspectos que fazem da sociedade brasileira uma sociedade racista variam desde a porcentagem de negros desempregados, até a expectativa de vida dos mesmos, passando, obviamente, pela entrada nos cursos de ensino superior. À época da publicação de seu artigo (2005), 97% dos universitários eram brancos, 2% eram negros e 1% eram descendentes de orientais. É com o processo de redemocratização da sociedade brasileira na década de 1980 – um século depois da abolição – que a ideia de que não havia conflitos raciais no Brasil começa a ser questionada. Braga7 analisa o processo que levou o Estado brasileiro a aprovar uma série de medidas que visavam combater o racismo e as diferenças sociais entre brancos e não-brancos. A contribuição que a autora oferece se dá no sentido de perceber dois aspectos importantes que permeiam a discussão sobre as reservas de vagas nas universidades – o foco principal deste trabalho – a partir de critérios raciais: o primeiro é que tais reservas não ocorreram em um terreno abstrato. Assim como ocorre em diversos acontecimentos históricos, houve todo um contexto social que permitiu que o movimento negro brasileiro avançasse com suas pautas, conseguindo acumular, desde a aprovação da constituição de 1988, uma série de vitórias cuja medida mais ousada, segundo a autora, é a positivação das “cotas” para estudantes negros, pardos e indígenas nas universidades públicas brasileiras. O segundo aspecto fundamental levantado por ela

3161

foi que,

justamente a partir destes avanços promovidos a partir das lutas sociais, a ideia de democracia racial foi perdendo força nos espaços institucionais brasileiros. É necessário frisar que a discussão em torno das “cotas” ganhou muita visibilidade a partir de 2003, quando a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) se tornou a primeira a reservar uma parcela de suas vagas para estudantes afrodescendentes e indígenas. Apesar da primeira experiência ter se dado neste ano, a maioria das universidades federais brasileiras só foi adotar tal política a partir de 2009. Trata-se de uma questão que divide opiniões até o momento em que este trabalho é escrito. Desta forma, o que é divulgado pelos meios de comunicação e os debates em torno de tal proposta servem – e muito – para a formação da opinião pública, fundamental para a geração de consenso. Quando falamos em geração de consenso, torna-se fundamental recorrer aos postulados teóricos do filósofo italiano Antonio Gramsci8. Este pensador defende a ideia de que o exercício do poder político por uma classe ou fração de classe decorre de uma combinação entre coerção e consenso. Para que o consenso seja gerado, os intelectuais assumem a responsabilidade por sua geração, de forma “espontânea”, fazendo com que grandes massas da população confiem em determinado tipo de sociedade defendido pelos intelectuais e faça com que estes mesmos intelectuais ganhem a confiança dos membros da sociedade. Sendo assim, os intelectuais teriam uma função organizativa e conectiva. Já a coerção seria efetuada pelos mecanismos de poder direto, a maioria deles controlada pelo Estado, como a polícia ou o exército. Para que o consenso seja estabelecido, Gramsci destaca a função que os intelectuais exercem na sociedade contemporânea. Ele defende a ideia que todo homem é um intelectual, embora nem todos exerçam tal função. A condição para seu exercício, segundo ele, se dá devido a processos históricos concretos, que permitiram determinadas classes ou camadas da sociedade produzir intelectuais, e não acontecem “num terreno democrático abstrato” 9. Daí a importância de analisar os veículos de comunicação, uma vez que eles são algumas das várias ferramentas utilizadas para legitimar um poder estabelecido, ou para contestá-lo. E são neles, onde, invariavelmente, os intelectuais conseguem com mais eficácia exercer suas funções conectivas e organizativas. Quando Gramsci escreveu na década de 1930, a imprensa escrita poderia ser considerada como o principal veículo de comunicação de massas de sua sociedade. Na sociedade brasileira do início do século XXI, entretanto, é necessário ter em mente que ela não ocupa o mesmo posto

3162

de destaque que ocupara no século anterior. De qualquer forma, não é possível afirmar que a produção deste tipo de veículo seja irrelevante para a produção de consensos, já que ele não caiu em completo desuso. Este artigo busca avaliar como o jornal O Globo10 pautou a discussão sobre a adoção de medidas que reservaram vagas para estudantes negros, pardos e índios nas universidades do Brasil. Trata-se do quarto maior jornal impresso em circulação no país, pertencente ao maior conglomerado de mídia nacional, as Organizações Globo, que além deste veículo possui outro jornal impresso – Extra!, de caráter mais popular – uma editora, canais de televisão nas redes aberta e privada, canais de rádio AM e FM, uma revista de circulação semanal e o principal portal de notícias na internet do país. O período de análise escolhido para esta pesquisa se ateve ao ano de 2009, no qual foi possível verificar uma intensa cobertura sobre as “cotas”, tanto com notícias de caráter factual, quanto com textos opinativos sobre o tema. Tal intensidade de produção jornalística sobre as medidas de ação afirmativa não ocorreu por uma razão aleatória. Neste ano, houve o início de uma reformulação do acesso às universidades federais a partir do novo Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e a criação do Sistema de Seleção Unificado (SISU), no qual muitas universidades sinalizaram com a possibilidade de adotar medidas que reservariam até 50% das vagas para estudantes de baixa renda, oriundos de escolas públicas, negros, pardos e índios. Ao longo daquele ano, então, não apenas as universidades debateriam se tal política pública seria acertada ou não, como também o fizeram as escolas (públicas e privadas) e os veículos de comunicação. Se tratando de um veículo pertencente ao maior conglomerado de mídia do país, o que foi veiculado por O Globo certamente teve um peso relevante na construção dos debates e na formação da opinião pública no que diz respeito às “cotas”. Portanto, foram selecionados como fontes primárias para este estudo os textos opinativos que foram divulgados no jornal. Cabe aqui então discutir quem escreveu, para quem escreveu e porque escreveu o conteúdo opinativo presente neste meio de comunicação. Através do acervo on-line de O Globo, que permite a realização de pesquisas a partir de buscas por palavras-chaves, foi possível encontrar cerca de 32 páginas que versavam sobre o tema. É impossível, devido às limitações deste trabalho, analisar minunciosamente todas elas. Sendo assim, foi feita a escolha por dissertar sobre as páginas onde o conteúdo publicado visava, explicitamente, apresentar o ponto de vista dos autores sobre o tema. A escolha por artigos

3163

contendo a opinião dos(as) autores(as) é especialmente importante porque são nessas partes onde podemos verificar com mais clareza o posicionamento político de um veículo de comunicação e identificar eventuais dissensos que podem ocorrer dentro do mesmo. No dia 2 de fevereiro de 200911, O Globo publicou um artigo, em sua sexta página, criticando o projeto de lei que criava a reserva de vagas baseadas em critérios raciais. Nele, o(a) autor(a) – não identificado(a) – escreveu que a aprovação da lei 73/99 reduziria a importância do mérito acadêmico e privilegiaria a cor da pele nos processos seletivos. Além disso, afirmava que, caso tal projeto fosse colocado em prática, uma série de estudantes despreparados assumiria cadeiras nas universidades, e que consequentemente, formaríamos profissionais menos qualificados. Para este(a) autor(a), a solução passava por melhorias no ensino básico, e que a aprovação da lei de cotas seria uma vitória para políticos populistas que não visavam a real solução do problema na educação pública brasileira. O artigo não fazia menção a qualquer dado ou fonte que embasasse seu posicionamento político, claramente contrário às cotas. Na mesma página do texto citado acima, um artigo assinado por Gilmar

Mendes12

argumentava a favor da aprovação da lei 73/99, justificando seu ponto de vista a partir de dados – cujas fontes não foram mencionadas – que explicitavam que em pleno século XXI, havia uma série de diferenças entre brancos e negros no Brasil no que diz respeito à grau de escolarização, renda, emprego, entre outros fatores, dando a entender que este tipo de política pública seria uma medida compensatória importante. Verificou-se que o jornal abriu espaço a opiniões divergentes em sua edição, deixando claro qual era a opinião de O Globo e que havia uma outra forma de se interpretar o projeto de lei13. Poucos dias depois, na edição de 5 de fevereiro de 200914, Demétrio Magnoli15 publicou um artigo que, em muitos pontos, esteve de acordo com a opinião publicada pelo jornal O Globo dias antes. Para este autor, a lei 73/99, caso fosse aprovada, seria a primeira lei racial da história brasileira. Além disso, Magnoli afirmou não existir um movimento negro organizado no Brasil, – como ocorrera em países como os EUA e a África do Sul – prevalecendo, no caso, a pressão de algumas ONGs racialistas que não possuíam legitimidade para pressionar o congresso em prol da aprovação da lei, uma vez que a maioria dos brasileiros não concordava com a separação de vagas de acordo com critérios raciais. Assim como o primeiro texto que foi discutido, Magnoli enfatizava a necessidade de se investir em educação pública, para que as cotas não se fizessem necessárias. Inclusive, lembrou de um projeto de lei de autoria do então senador Demóstenes Torres (DEM –

3164

GO) que visava garantir o ensino integral nas escolas públicas, que segundo ele, seria economicamente viável. Curiosamente (ou não), no dia 9 de fevereiro de 200916, Demóstenes Torres viria a ser mencionado novamente em um artigo em O Globo. Dessa vez, o autor era o jornalista Carlos Alberto di Franco. Ao abrir espaço para o então senador do Democratas, este afirmou que o PL 73/99 faria com que a sociedade brasileira se visse dividida, porque tal proposta estimularia o ódio entre raças. Posteriormente, o autor fez menção à obra de Ali Kamel17, diretor de jornalismo das organizações Globo, para afirmar que o Brasil nunca foi um país racista, no qual havia algumas pessoas racistas. Assim como os demais textos – à exceção do de Gilmar Mendes – di Franco afirmou que a solução para tal problema se encontrava na melhoria da educação pública. Além disso, afirmou que “os negros brasileiros não precisam de favor”. Na edição de 17 de março de 200918, em outra coluna de opinião, O Globo apresentou, mais uma vez, uma série de argumentos posicionando-se contrário às cotas raciais e ao Estatuto da Igualdade Racial, que previa não só a reserva de vagas para minorias étnicas nas universidades, mas também no mercado de trabalho. O texto19 afirmava, além de alguns pontos já vistos anteriormente, que a medida que previa tal tipo de distribuição de vagas nas universidades era uma armadilha perigosa para o país. Apesar de reconhecer a necessidade de políticas públicas que visassem combater a desigualdade social, o jornal foi enfático ao afirmar que tal medida tinha cunho discriminatório e racista. Além destes cinco textos de cunho opinativo, foi possível encontrar mais 14 que versavam sobre a reserva de vagas para negros índios e pardos nas universidades brasileiras. Como, muitas vezes, os argumentos tendem a tornar-se repetitivos para ambos os lados, optou-se aqui pela construção de uma tabela na qual é possível verificar a diferença quantitativa de posicionamentos pró-cotas contrários a elas.

Posicionamentos em relação às ações afirmativas em O Globo Data e Página

Autor(a)

Posicionamento

2 de fevereiro de 2009 – 6

Não identificado(a).

Contrário às cotas.

2 de fevereiro de 2009 – 6

Gilmar Mendes.

A favor das cotas.

5 de fevereiro de 2009 – 7

Demétrio Magnoli.

Contrário às cotas.

9 de fevereiro de 2009 – 7

Carlos Alberto di Franco.

Contrário às cotas.

3165

17 de março de 2009 – 6

Não identificado(a).

Contrário às cotas.

13 de abril de 2009 – 7

Edson Santos20.

A favor das cotas.

14 de maio de 2009 – 7

Demétrio Magnoli.

Contrário às cotas.

16 de maio de 2009 – 6

Não identificado(a).

Contrário às cotas.

28 de maio de 2009 – 6

Não identificado(a).

Contrário às cotas.

2 de junho de 2009 – 7

Luiz Garcia21.

Contrário às cotas.

3 de junho de 2009 – 7

Elio Gaspari22.

A favor das cotas.

4 de junho de 2009 – 7

João Luiz Mauad23.

Contrário às cotas.

22 de junho de 2009 – 7

Raul Henry24.

Contrário às cotas.

26 de junho de 2009 – 7

Rodrigo Constantino25.

Contrário às cotas.

28 de julho de 2009 – Revista

Augusto

Magazine26, Página 3

entrevista a Lauro Neto28.

3 de agosto de 2009 – 6

Não identificado(a).

Contrário às cotas.

22 de setembro de 2009 – 6

Não identificado(a).

Contrário às cotas.

6 de outubro de 2009 – 6

Não identificado(a).

Contrário às cotas.

25 de outubro de 2009 – 7

Roberta

Chagas27,

Fragoso

Kaufmann

em A favor das cotas.

M.

Contrário às cotas.

29

Pelo que se pode verificar a partir da análise da Tabela 1, nas páginas dedicadas a exposição de opiniões, O Globo apresentou 19 textos que argumentavam acerca da reserva de vagas nas universidades federais brasileiras para estudantes negros, pardos e indígenas. Destes, 15 – ou aproximadamente 79% - se posicionaram contrários à aprovação do PL 73/99, nos quais, grosso modo, os argumentos tenderam a defender a “não racialização” do país e que o problema de desigualdade no que diz respeito ao acesso ao ensino superior no Brasil não estava ligado a problemas relacionados ao racismo, mas sim à pobreza. Por outro lado, 4 textos – ou aproximadamente 21% - se mostraram favoráveis à aprovação da lei. Todos eles tocavam em questões relacionadas a necessidade de se haver uma medida de ação afirmativas para diminuir as diferenças sociais, que no Brasil, se confundem com desigualdades raciais. Nenhuma das que defendiam o PL, no entanto, enfatizava que a tramitação projeto de lei advinha de pressões dos movimentos sociais, de setores organizados da sociedade civil. Apenas aquelas que se posicionavam contrárias às cotas lembraram de tal fato, ainda que fosse para desmoralizá-los, afirmando que ONGs

3166

e movimentos sociais não poderiam se afirmar como representantes da sociedade e que

os

parlamentares deveriam pensar mais nos cidadãos “desorganizados”. Ao publicar textos majoritariamente contrários a uma medida que resultou na entrada de estudantes que antes se viam alijados do ensino superior público, O Globo contribuiu para a formação de uma opinião pública de caráter conservador. No ano de 2005, portanto antes da maioria das universidades brasileiras adotar o sistema de “cotas”, 97% dos universitários eram brancos, 2% eram negros e 1% eram descendentes de orientais30. Ou seja, o sistema de seleção de estudantes privilegiou historicamente estudantes brancos, a maioria deles advindos das famílias burguesas e de camadas médias da sociedade brasileira, o que de certa forma, contribuiu para a imobilidade social. Além dos posicionamentos políticos que tenderam a ser mais conservadores, é importante frisar que o público-alvo de O Globo são as classes médias e altas, sobretudo da cidade do Rio de Janeiro, majoritariamente brancas e cujos filhos, em sua maioria, não estudam em escolas públicas regulares. Como se trata um de veículo essencialmente comercial, seria ingênuo esperar que uma medida que beneficiaria os mais excluídos fosse defendida com ênfase no jornal, ou até mesmo que as discussões tivessem a mesma quantidade de publicações contra e a favor. Outro aspecto importante a ser destacado é quem escreve os textos publicados em O Globo. De todos os autores (identificados) de textos opinativos sobre as ações afirmativas que geraram as reservas de vagas para estudantes menos favorecidos, todos eles eram brancos, à exceção de Edson Santos – que coincidentemente ou não, dissertou favoravelmente à medida. Os discursos criados em torno da oposição às ações afirmativas tenderam a minimizar o problema do racismo no país e fortalecer a ideia de democracia racial. No entanto, ao analisarmos quem obteve espaço para se expressar em um dos maiores jornais do país e verificarmos que, de 10 autores identificáveis que versaram sobre o mesmo tema em um ano, apenas um era negro, verificase que há algo de errado na ideia que defende que desde a abolição da escravidão, diferentes raças conviveram harmonicamente na sociedade brasileira. No entanto, muitos brasileiros persistem em acreditar que não haja conflitos e segregação racial no Brasil. O material que foi difundido na grande imprensa brasileira31, de maneira geral, colaborou para a formação de consensos, sobretudo entre as camadas médias brasileiras, a partir do trabalho dos intelectuais, que nela exercem a função de liderar moral e intelectualmente os indivíduos para a legitimação de uma determinada estrutura que favoreça uma classe ou fração de classe.

3167

1Graduando

em História pela Universidade Federal Fluminense, orientando do Professor Doutor Marcelo Badaró Mattos - E-mail: [email protected] / [email protected] 2 Fora do continente americano, os últimos países a abolirem a escravidão foram o Paquistão (1992) e a Mauritânia (1985). Ver: PÉTRÉ-GRENOUILLEAU, Olivier. A história da escravidão. São Paulo, Boitempo, 2009. 3A Lei de Terras, de 1850, impedia que as terras desocupadas fossem utilizadas livremente, sendo necessário compra-las. 4Sobre as condições de vida e a atuação dos libertos no pós-abolição, ver: RIOS, Ana Maria; MATTOS, Hebe Maria. O pós-abolição como problema histórico: Balanços e perspectivas. Topoi, v. 5, n. 5, p. 170-198. 01/2004. Disponível em: http://www.revistatopoi.org/numeros_anteriores/Topoi08/topoi8a5.pdf. Acesso em: 27/07/2015. Ver também: MATTOS, Marcelo Badaró. Trabalhadores e sindicatos no Brasil. 2° edição. São Paulo, Expressão Popular, 2009. 5BRAGA, Amanda Batista. A mídia impressa na promoção de discursos sobre políticas de igualdade racial: o negro e a revista Raça. 2008. 113 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Linguística, Centro de Educação e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2008. 6DOMINGUES, Petrônio. Ações afirmativas no Brasil: O início de uma reparação histórica. Revista brasileira de educação, n. 29, p. 164-177. 05/2005 7BRAGA, op. cit. 2008. 8 Cadernos do cárcere: Os intelectuais. O princípio educativo. Jornalismo. 7. ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2014. 2 v. 9 Idem, p. 20 10 O Globo, fundado em 1925 pelo jornalista Irineu Marinho, tornou-se um dos mais conhecidos jornais do Brasil. No momento em que escrevo este trabalho, é o quarto maior jornal em circulação do país. Ver: TRISTÃO, Marisa Baesso; MUSSE, Christina Ferraz. O direito à informação e o (ainda restrito) espaço cidadão no Jornalismo Popular impresso. Revista Brasileira de Ciências da Comunicação: Intercom. São Paulo, v. 36, n. 1, p. 39-59. 01/2013. p. 48 11A edição pode ser encontrada em: http://acervo.oglobo.globo.com/consulta-aoacervo/?navegacaoPorData=200020090202 (Acesso em 15/07/2015 às 01:26) 12Professor de História e então vice-líder do governo no congresso nacional. 13Na página onde constam os textos, acima do primeiro é possível verificar que há os dizeres “Nossa opinião”, e acima do texto de Gilmar Mendes está escrito “Outra opinião”. 14A edição pode ser encontrada em: http://acervo.oglobo.globo.com/consulta-aoacervo/?navegacaoPorData=200020090205 (Acesso em 15/07/2015 às 01:26) 15Sociólogo e doutor em geografia humana pela Universidade de São Paulo (USP). 16 A edição pode ser encontrada em: http://acervo.oglobo.globo.com/consulta-aoacervo/?navegacaoPorData=200020090209 (Acesso em 15/07/2015 às 01:27) 17KAMEL, Ali. Não somos racistas: uma reação aos que querem nos transformar numa nação bicolor. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2006. 18A edição pode ser encontrada em: http://acervo.oglobo.globo.com/consulta-ao-acervo/?navegacaoPorData=200020090317 (Acesso em 15/07/2015 às 01:28) 19O(a) autor(a) do texto não foi identificado 20 Então ministro da igualdade racial. 21Ex-editor de opinião de O Globo. 22Colunista de O Globo. 23Administrador de empresas. 24Então deputado federal pelo PMDB do estado de Pernambuco 25Economista ligado ao Instituto Millenium. No momento em que tal trabalho é escrito, trabalha como colunista da Revista Veja. 26Revista anexa ao jornal. 27Então presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), militante do Partido Comunista do Brasil (PC do B). 28Repórter de O Globo. 29Mestre em direito, ligada ao instituto Millenium. 30Domingues, op. cit. p. 165. 31É fundamental ter em mente que aquilo que foi veiculado pelo jornal não se encerra nas páginas do mesmo. Os mesmos argumentos que foram utilizados em sua versão impressa diária também puderam se fazer presentes na televisão, nas revistas semanais, em artigos on-line e também no rádio. Além disso, os meios das Organizações Globo não foram os únicos a promover uma campanha de combate intelectual contrária à aprovação das políticas de cotas.

3168

A UFRJ e os 50 anos do Golpe Civil-Militar Mauro Vinicius de Souza Floriano1 Bolsista (História) PIBIC/UFRJ Orientadora: Prof.ª Dr.ª Andréa Cristina de Barros Queiroz [email protected]

Resumo Em 2014, quando se completou 50 anos do golpe civil-militar no Brasil, o Projeto de Iniciação Científica da Divisão de Memória Institucional do SiBI/UFRJ se destinou à análise do acervo universitário referente à ditadura (1964-1985) dessa conjuntura na trajetória da UFRJ. Período em que houveram vários expurgos de professores e servidores; invasão do campus da Praia da Vermelha; perseguição de estudantes, mas também que as obras do campus do Fundão foram concluídas e que vários Programas de Pós-Graduação foram criados. Palavras-Chave: Ditadura Civil-Militar; UFRJ; Memória Institucional. Abstract In 2014, when it had completed 50 years of the civil-military Coup in Brasil, the Projeto de Iniciação Científica of the Divisão de Memória Insitucional do SiBi/UFRJ destined itself to the analysis of the college collection relating to the dictatorship(1964-1985) regarding the UFRJ. In this period happened several dismissals of teachers and college employees; the invasion of the Praia Vermelha Campus; persecution against students, but also in wich the construction of the Fundão Campus was finished and several Post-grad Programs ware created. Key-words: Civil-Military dictatorship; UFRJ; Institutional Memory.

A Divisão de Memória Institucional vinculado ao Sistema de Bibliotecas e Informações (SiBI) da Universidade Federal do Rio de Janeiro organizou em 2014, tendo em vista o aniversário de 50 anos do golpe civil-militar de 1964, uma extensa pesquisa voltada para entender o impacto do período ditatorial na Universidade, considerando a profunda ambiguidade da relação do regime para com as Universidades Federais. Se por um lado as Universidades poderiam ser vistas como uma ameaça, sendo o grande ponto de recrutamento 3169

das forças de resistência à ditadura, por outro vão ser de suma importância para os projetos modernizantes que o conglomerado empresarial-militar que governou o Brasil por mais de duas décadas tinham para o País. Essa pesquisa se estenderá até 2016 quando completa-se a bolsa de Iniciação Científica e devido à variedade de fontes que foram selecionadas para análise, sendo estas fontes de natureza imagética, orais e escritas. As fontes imagéticas foram pesquisadas no Fundo Polícias Políticas no Arquivo Nacional, a procura por imagens que representassem, principalmente, a atuação do movimento estudantil durante o regime e fotos da invasão do campus da Praia Vermelha pelas forças repressivas em 1969. É interessante apontar que essa pesquisa resultou na exposição “1964: UFRJ - imagens, falas e informações” que ocorreu no campus da Praia Vermelha entre os dias 21 de Agosto e 12 de Setembro de 2014. Nesta, também foi exibido o vídeo “1964: Tempos Autoritários” que se trata de uma compilação de depoimentos de diversos reitores da UFRJ, parte do projeto em andamento pela Divisão de Memória, que consiste na realização de entrevistas com os ex-reitores da mesma, tendo em vista a análise das representações construídas sobre suas trajetórias de vida como membros do corpo docente, administrativo e como estudantes da UFRJ, levando em conta que “as pessoas não recordam suas próprias vivencias e experiências de determinada época, mas sim as representações dessa época” 2, portanto, é sempre necessário refletir sobre o que eles escolheram lembrar e como essas representações podem ser uteis para a análise proposta nesse artigo. Por fim, ainda em andamento, há a análise das fontes jornalísticas, ou seja, o questionamento de como os jornais trataram as notícias da UFRJ durante o regime empresarial militar. Para tal empreitada, acabamos por escolher os jornais A Noite, O Correio da Manhã e O Diário de Noticias, devido à quantidade maciça de referências a Universidade do Brasil e a UFRJ que uma simples busca na Hemeroteca Digital 3 nos revelou, o que ainda sim se mostra tarefa hercúlea, visto que apenas entre 1964 e 1969 são quase 4.000 referências a UB no O Diário de Notícias, por exemplo. Pelo mesmo motivo, este trabalho terá um foco maior nos primeiros anos do regime, mostrando como desde o seu primeiro dia, o novo governo buscou ter impacto sobre as Universidades. Tendo dito que a pesquisa foi motivada pelo aniversário do golpe e que acabou por gerar uma exposição, devemos notar como essas “comemorações” ou neste caso, uma “descomemoração”, de certos marcos nacionais, podem ser analisadas. Primeiramente, é

3170

importante entendermos que essas datas ilustram “a relação da memória a história, ressaltando através da rememoração social as origens do fundamento dos valores de uma comunidade (a construção da memória coletiva)”4. Portanto, esses momentos são importantes como fomentadores de uma “Memória Coletiva”, levando em conta que a memória se dá em duas dimensões para o filósofo francês Paul Ricouer, uma pública e uma privada 5, ressaltando, novamente, o caráter de construção social da memória. Esta é também um campo de disputas, entendendo que “nossas lembranças se fortificam graças às narrações coletivas” 6, sendo essas narrações um amplo campo de disputa entre diferentes projetos ideológicos, marcados tanto por aquilo que escolhemos lembrar quanto por aquilo que escolhemos esquecer. Talvez, os eventos relacionados ao dia 1º de abril de 1964 sejam marcantes por isto, pois ainda hoje acontece a disputa entre aqueles que celebraram a “revolução” de 1964, advogando o regime militar como um contragolpe preventivo com o intuito de impedir um golpe comunista no Brasil, justificando-o assim, e as pessoas que resolveram “descomemorar” o golpe, organizando seminários, exposições e atos demonstrando os crimes do regime militar, sendo interessante notar que a comemoração é um processo de “rememoração” coletiva e que esta: “rememoração” [...] proporciona o sentimento da distância temporal; mas ela é a continuidade entre presente, passado recente, passado distante, que me permite remontar sem solução de continuidade do presente vivido até os acontecimentos mais recuados da minha infância.7

É através desta mediação entre o público e o privado que se formaria uma “identidade narrativa, inscrita no tempo e na ação”8, entendendo assim, que o processo de formação de memória coletiva é feito através não só do que escolhemos lembrar, mas também do que escolhemos esquecer, sobre isso a historiadora Helenice Silva afirma que “ao lado de um trabalho de lembrança (...) um trabalho do esquecimento (...) torna-se, portanto, segundo Ricouer inevitável.”9 e ainda sobre o tema do esquecimento e da lembrança, Todorov afirma que a memória é sempre “uma interação entre os dois” 10. Como demonstrado anteriormente, a memória sobre o regime empresarial-militar ainda é um campo de disputa no Brasil, visto que ainda existem diversos “lugares de memória” dedicados a nomes ligados ao regime, como pontes, ruas e escolas. Aliás, este foi um dos pontos de discussão durante o ano de 2014, a mudança do nome desses lugares para nomes que lembrassem a luta pela redemocratização do país. Segundo Helenice Silva, temos também, que as comemorações seriam marcadas “pelo silêncio e pelos “não ditos” sobre a face obscura da História nacional” 11 partindo disso, podese afirmar que a “descomemoração” é o contrário, sendo marcada pela lembrança, pela necessidade de se lembrar, de se constituir um processo de “justa memória”, seguindo a ideia de Paul Ricouer de que existe uma “função corretiva da verdade”12 na qual o historiador tem a

3171

função de lembrar das “vitimas da história”. É dentro desta perspectiva que se enquadra a pesquisa feita pelo SiBI, uma tentativa de dar voz aos estudantes, professores e trabalhadores que sofreram com a violência dos anos de chumbo. Para o historiador Rodrigo Patto, o golpe empresarial-militar de 1964 é consequência não de uma coalizão “antirreformista” em resposta as reformas de base propostas pelo governo Goulart, aliás, erro de análise comum, mas sim, Fo uma “manobra dos setores mais avançados da burguesia brasileira”13 em aliança com outros grupos da sociedade civil e os militares “responsáveis pela intervenção executiva” 14. Esses setores da burguesia estariam voltados para a construção de um novo bloco de reformas modernizantes, que, porém, teriam objetivos diferentes e seriam sempre pautados pelo regime, portanto, para Patto: O mesmo intento reformista, de feição autoritária e conservadora, influenciou as políticas do regime militar para as Universidades e, também nesse caso, não havia posturas consensuais entre os donos do poder. As reformas implantadas no ensino superior resultaram de disputas e negociações entre distintos segmentos da coalizão governista, e tiveram a particularidade de sofrer a pressão dos movimentos estudantis que, a partir de 1965 realizaram protestos e manifestações públicas contra a política universitária do regime militar, culminando nas grandes passeatas de 1968. 15

Esse reformismo autoritário pode ser comprovado quando no dia 4 de abril o Correio da manhã dava voz ao Diretório Nacional da União democrática nacional Democrática que reverberava a urgência de se votar as reformas pois: O partido e as bancadas entendem ainda ser urgente o entrosamento com as demais correntes democráticas do congresso para a votação das reformas que, pregadas muitas vezes como simples instrumento de agitação, devem constituir, entretanto instrumento útil para a aceleração do nosso desenvolvimento econômico 16

Sendo assim, primeiramente é interessante indicarmos o que essas reformas significariam? Qual a diferença entre essas reformas e as reformas propostas por Goulart? E entender a resposta através da grande disputa política sobre dois projetos diferentes de nação dentro do Brasil naquele momento, disputa esta que culminaria com o golpe de 1964 e a vitória de um desenvolvimento conservador e alinhado aos interesses estadunidenses. No que se refere à reforma universitária, o regime ditatorial significou tanto a expansão de vagas, a reorganização da carreira docente, a organização dos cursos de pósgraduação e no caso da Universidade do Brasil iria até mesmo culminar na mudança de nome para Universidade Federal do Rio de Janeiro e a construção da Cidade Universitária no campus do Fundão, quanto à demissão ou aposentadoria forçada de professores, perseguição a alunos, vigilância constante sobre a vida política dos centros acadêmicos e diretórios centrais.

3172

Nesse primeiro momentos chama atenção à ampla cobertura dada na mídia para os acontecimentos dentro da UB nos dias e meses seguintes ao golpe, no dia 7 de abril de 1964 era anunciado no “Diário de Noticias” o fechamento dos diretórios acadêmicos dos cursos de Direito, Filosofia e Engenharia com o objetivo de reforma-los para “que eles sigam suas verdadeiras finalidades sem se imiscuir em propaganda comunista no meio estudantil” 17 , no mesmo dia o “Correio da Manhã” apontava que as aulas não voltariam à normalidade nesses cursos devido a “fatos de caráter subversivos praticados por estudantes” .Isso perduraria por todo o mês de abril ganhando destaque novamente no dia 16 de abril ainda o reitor Pedro Calmon anunciava a necessidade de se “restaurar um clima decente em nossa universidade”.18 A atuação das reitorias como força alinhadas ao regime é algo levantado por Patto, apesar dos órgãos de informação só serem constituídos a partir dos anos 70, com a organização do Sistema Nacional de Informações (Sisni) e das Assessorias Especiais de Segurança e Informação (AESI) que apesar de estarem a principio subordinadas a reitoria da universidade, a pratica seria outra, porém para Patto a ditadura nunca se assumiu como ditadura, portanto a ilusão da autonomia universitária era mantida pois o papel das AESi seria: a) produzir informações necessárias às decisões dos Reitores; b) Produzir informações para atender às determinações do Plano Setorial de Informações; c) Encaminhar à DSI informações por ela requisitadas. A preocupação efetiva do regime militar era com os itens b e c. 19

Portanto, apesar de ser subordinada à reitoria e construída pela própria faculdade, aliás, sendo coordenadas por civis as AESI teriam como objetivo segundo Patto exercer pressões das camadas de cima sobre as reitorias, que ajudavam em maior ou menor grau, tendo em vista que mesmo antes de todo este aparato de segurança ser montado, o reitor Pedro Calmon já se colocava ao lado da nova ordem. A perseguição a alunos não pararia apenas no fechamento dos DA, a expulsão de alunos por conta de uma investigação que visava afastar “daquela casa elementos acusados de comunistas”

20

a caça aos “comunistas” é noticiada pelos jornais, o “Correio da Manhã”

divulgava instruções feitas pela Comissão Especial responsável pelas investigações no dia 9 de maio instaurando a delação como política de estado: Todos os que exerçam função de chefia de qualquer nível ou natureza – nas secretarias do estado, nos órgãos autônomos ou semiautonomos e nas autarquias estaduais- deverão encaminhar a comissão de investigações a indicação dos subordinados que tenham praticado atos alienatários à segurança do País, ao regime democrático e à probidade da administração.21

3173

Essas medidas teriam resposta imediata, pois, no dia 19 de maio, 50 estudantes da Universidade do Brasil seriam expulsos acusados de atos de “subversão e corrupção” 22, não só os estudantes, a mesma Comissão Especial, divulgava um relatório sobre a Faculdade Nacional de Filosofia com 60 páginas “contendo nomes de 20 alunos envolvidos em atos subversivos e alguns professores que tentavam ensinar apenas, a filosofia comunista”. 23 A perseguição a professores e estudantes, como aponta Patto, não se dava apenas através dos aparatos mais normais da repressão (tortura, prisão, etc.) mas sim se utilizando de mecanismos mais sofisticados como a não renovação de contratos, o expurgo, a censura sobre pesquisas, etc. Porém, a prisão será também uma realidade, o caso do professor José Leite Lopes catedrático da Faculdade Nacional de Filosofia(FNFi) exemplifica como ambos os processos às vezes vinham juntos, Leite Lopes foi preso aos tentar tirar seu passaporte para “viajar com destino à frança e argentina, onde iria lecionar numa das faculdades,a convite do ministro da educação do pais vizinho”.24 O anticomunismo se instaurava e como Patto nos mostra, que nos primeiros momentos da ditadura; “alguns membros da comunidade universitária mostraram disposição para colaborar, às vezes mandando denúncias sobre comunistas infiltrados outras pedindo rigor nas punições”25, em coluna no Correio da Manhã, o jornalista Marcio Moreira Alves alertava para o “Perigo do Obscurantismo” que rondava o Brasil, para ele era “mil vezes pior que a inflação e a desordem no regime de trabalho, é a ameaça que paira sobre a inteligência brasileira”26, sendo assim a caça a diversos professores e intelectuais além da proibição e confisco de livros (segundo ele “Todo volume onde encontrava a palavra “revolução” ia em cana”27) era exagerada pois o intelectual brasileiro “não participa ativamente da política”28 e acabaria por “cobrir o Brasil de ridículo Universal”29 além de torná-lo ingovernável pois “um governo que fecha os centros de estudos avançados não poderá sobreviver, por impossibilidade de “Recrutar técnicos para a administração pública”

30

, engano de Moreira Alves, pois o governo militar não pretendia

fechar as instituições de ensino, mas sim reforma-las dentro de um projeto de “modernização reacionária” que culminaria nas reformas educacionais de 1968 e 1971 ainda nas palavras de Patto as Universidades longe de estarem largadas ao relento ocupavam um: Lugar fundamental no planejamento estratégico dos militares, por seu papel na formação das futuras elites e dos técnicos necessários à gestão da economia. Por isso o regime militar precisava obter a cooperação dos dirigentes universitários, e como as Universidades eram parte da estrutura do Estado havia meios de obter sua anuência. Quem não assentisse poderia ser punido diretamente (aposentadorias compulsórias, demissões) ou indiretamente (perda de verba, protelação no atendimento de demandas).31

3174

A reforma universitária em 1968, ano de grande convulsão social, no qual foi possível se fazer certa pressão de alguns setores da sociedade, sendo “precedida de grandes mobilizações e intensas demandas e pressões para que o estado ampliasse o número de vagas do ensino superior (onde pontificava a figura do excedente)” 32 se a reforma sairia em 1968, à questão das vagas nas universidades seria tema de intensa discussão nos meses que se seguiram ao golpe. É interessante notarmos que o regime militar vai trazer um aumento até então sem igual, por exemplo, se em 1964 o número de vagas oferecidas era de 57.990 em 1971 este número saltaria para 202.110.33 Além disso, podemos dizer que a questão da expansão do número de vagas é essencial num país aonde apenas uma pequena parcela da população chegava ao ensino superior, no dia 30 de abril de 1964 era noticiado que a responsabilidade para a aceitação ou não dos excedentes seria das próprias universidades; “respeitado. Pelo Ministério, o principio fundamental da autonomia universitária” 34, ora, se vivíamos o começo de um período ditatorial, por que a necessidade de se respeitar a autonomia universitária? Com esse tipo de ação, o estado brasileiro buscava “mitigar seu caráter autoritário, especialmente em terreno caro à sensibilidade liberal como as Universidades”35 além disso, devemos considerar que era ainda o primeiro mês do regime empresarial-militar, que mandaria às favas a autonomia universitária por exemplo no dia 23 de setembro de 1966, aonde aconteceu a invasão do campi da Praia Vermelha por forças do regime, caso que ficou famoso, tendo chamado a atenção da mídia da época, tendo sido alvo de grande cobertura do Correio da Manhã que anunciava que 600 estudantes teriam sido espancados, aquele não teria sido o único episódio de violação da autonomia universitária por forças repressivas, o Professor e anteriormente Reitor (1989-1990) Alexandre Cardoso relembrou em entrevista que : [...] depois aqui mesmo o Conselho Universitário reunido sob a presidência do Professor Clementino Fraga Filho, as lideranças estudantis e os estudantes presentes e lembro bem do Vladimir Palmeira era o presidente da União Metropolitana dos estudantes, era aluno nosso da faculdade de Direito, aliás ele presidiu o CACO, o Centro Acadêmico Candido Oliveira e que estava naquela ocasião pugnando por mais verbas federais,discutir um pouco a reforma universitária que estava por vir e foi feita pelo MEC e nessa ocasião também a Universidade foi invadida,esse prédio aqui foi invadido e muitas pessoas foram presas, muitos fugiram para o Campo do Botafogo e foi um episódio também de triste memória,mas que foi vivenciado por alunos e professores na ocasião. O professor Clementino Fraga teve um papel muito importante naquela ocasião e de uma certa maneira impedindo que fosse invadido literalmente. O que fez ele? Ele saiu à frente dos estudantes por aquele portão onde hoje é a saída de carros e considerasse a manifestação e todos saíram para impedir que a polícia entrasse.Foi um gesto simbólico, mas importante, mas que acabaram entrando, mas não da forma que haviam planejado.36

3175

Por fim, devo dizer que este artigo não abrange (e nem tenta) compreender todo o período militar e sua ação na UFRJ, deixando diversas questões ainda levantadas como, por exemplo, a construção da cidade universitária, e entender melhor a ação dos órgãos repressivos como as AESI na UFRJ, além da atuação do movimento estudantil e sua relação com outros grupos de resistência a ditadura, coisas que devido ao caráter introdutório deste trabalho não foram abordados neste momento, porém constituem horizonte possível em pesquisas futuras. 1

Graduando em História pela Univesidade Federal do Rio de Janeiro(UFRJ),bolsista PIBIC/UFRJ vinculado à Divisão de Memória Institucional do Sistema de Bibliotecas e Informações(SiBI) da UFRJ. Orientado pela Prof. Dr. Andréa Cristina de Barros Queiroz. Email [email protected] 2 PATTO,Rodrigo S. M. “Os Olhos do regime militar Brasileiro nos Campi. As assessorias de segurança e informações das Universidades”. Topoi. Rio de Janeiro, V.9 n. 16, p. 30-67, 2008 3 A Hemeroteca Digital é o mecanismo de busca em periódicos da Biblioteca Nacional (BN) disponível em: 4 SILVA, Helenice Rodrigues. ““Rememoração” /comemoração: as utilizações sociais da memória”; in Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 22, n.44, p.425-438, 2002. 5 SILVA, Helenice Rodrigues. ““Rememoração” /comemoração: as utilizações sociais da memória”; in Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 22, n.44, p.425-438, 2002. 6 SILVA, Helenice Rodrigues. ““Rememoração” /comemoração: as utilizações sociais da memória”; in Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 22, n.44, p.425-438, 2002. 7 SILVA, Helenice Rodrigues. ““Rememoração” /comemoração: as utilizações sociais da memória”; in Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 22, n.44, p.425-438, 2002. 8 SILVA, Helenice Rodrigues. ““Rememoração” /comemoração: as utilizações sociais da memória”; in Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 22, n.44, p.425-438, 2002. 9 SILVA, Helenice Rodrigues. ““Rememoração” /comemoração: as utilizações sociais da memória”; in Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 22, n.44, p.425-438, 2002. 10 SILVA, Helenice Rodrigues. ““Rememoração” /comemoração: as utilizações sociais da memória”; in Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 22, n.44, p.425-438, 2002. 11 SILVA, Helenice Rodrigues. ““Rememoração” /comemoração: as utilizações sociais da memória”; in Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 22, n.44, p.425-438, 2002. 12 SILVA, Helenice Rodrigues. ““Rememoração” /comemoração: as utilizações sociais da memória”; in Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 22, n.44, p.425-438, 2002. 13 GERMANO,José W. Estado Militar e Educação no Brasil. Ed.1. São Paulo: Cortez, 1993,p 163 14 GERMANO,José W. Estado Militar e Educação no Brasil. Ed.1. São Paulo: Cortez, 1993,p 163 15 PATTO,Rodrigo S. M. “Os Olhos do regime militar Brasileiro nos Campi. As assessorias de segurança e informações das Universidades”. Topoi. Rio de Janeiro, V.9 n. 16, p. 30-67, 2008. 16 “UDN diz que urge reformas”. Correio da Manhã. sábado, 4 de abril de 1964. 17 “Conselho Universitário fecha 3 diretórios”. Diário de Noticias, 7 de abril de 1964. 18 “Reitor não quer agora eleições dos diretórios”. Diário de Notícias, 16 de abril de 1964. 19 PATTO,Rodrigo S. M. “Os Olhos do regime militar Brasileiro nos Campi. As assessorias de segurança e informações das Universidades”. Topoi. Rio de Janeiro, V.9 n. 16, p. 30-67, 2008. 20 “Estuda o conselho expulsão de alunos”. Correio da Manhã, sábado, 18 de abril de 1964. 21 “Expurgo: Comissão na GB dá instrução”. Correio da Manhã, sábado, 9 de maio de 1964. 22 “UB: 50 estudantes serão expulsos”. Correio da manhã, terça feira 19 de maio de 1964. 23 “Lista da Esquerda na Filosofia: 20 alunos e Alguns Mestres”. Diário de Noticias, Domingo 31 de Maio de 1964. 24 “Leite Lopes foi almoçar em casa e voltou à prisão”. Diário de Noticias, Quinta Feira, 06 de agosto de 1964. 25 PATTO,Rodrigo S. M. “Os Olhos do regime militar Brasileiro nos Campi. As assessorias de segurança e informações das Universidades”. Topoi. Rio de Janeiro, V.9 n. 16, p. 30-67, 2008. 26 “Perigo do Obscurantismo”. Correio da Manhã, quinta feira, 16 de Abril de 1964. 27 “Perigo do Obscurantismo”. Correio da Manhã, quinta feira, 16 de Abril de 1964. 28 “Perigo do Obscurantismo”. Correio da Manhã, quinta feira, 16 de Abril de 1964. 29 “Perigo do Obscurantismo”. Correio da Manhã, quinta feira, 16 de Abril de 1964. 30 “Perigo do Obscurantismo”. Correio da Manhã, quinta feira, 16 de Abril de 1964.

3176

PATTO,Rodrigo S. M. “Os Olhos do regime militar Brasileiro nos Campi. As assessorias de segurança e informações das Universidades”. Topoi. Rio de Janeiro, V.9 n. 16, p. 30-67, 2008. 32 GERMANO,José W. Estado Militar e Educação no Brasil. Ed.1. São Paulo: Cortez, 1993,p 162. 33 ROMANELLI, Otaiza de Oliveira. “História da Educação no Brasil (1930/1973)”. Ed. 6. Petrópolis, Editora Vozes, 1984. 34 “MEC e os Excedentes”. Diário de Noticias, quinta feira, 30 de abril de 1964. 35 PATTO,Rodrigo S. M. “Os Olhos do regime militar Brasileiro nos Campi. As assessorias de segurança e informações das Universidades”. Topoi. Rio de Janeiro, V.9 n. 16, p. 30-67, 2008. 36 Depoimento concedido para equipe do SiBI 31

3177

O Posicionamento do Governo Chileno sobre a Formação do Estado Palestino: 1970 – 1976 Michele Peixoto dos Santos Graduanda do curso de Licenciatura em História – Universidade Estácio de Sá Orientadora: Profª M.s. Flávia Miguel de Souza [email protected]

Resumo Com a formação do estado de Israel em territórios palestinos em 1948, uma série de conflitos se estabeleceram na região influenciando o cenário político internacional. No contexto da América Latina, o Chile apresenta um posicionamento favorável às questões palestinas, mas é à partir do governo de Salvador Allende que esse apoio ganha um caráter político. Esse artigo analisará os governos de Salvador Allende e de Augusto Pinochet, comparando como a política da Guerra Fria determinou o posicionamento desses governos a respeito da questão. Palavras-chave: Imigração – Palestina – Guerra Fria.

Abstract With the formation of the State of Israel in the Palestinian territories in 1948, a number of conflicts were established in the area influencing the international political scene. In Latin America, Chile has a favorable position on the Question of Palestine, but it is from the government of Salvador Allende that this support gains a political character. This article will examine the governments of Salvador Allende and Augusto Pinochet, comparing how the Cold War politics determined the positioning of these governments regarding the Question. Keywords: Immigration – Palestine – Cold War.

INTRODUÇÃO A imigração dos povos árabes para a América Latina teve seu inicio nas últimas décadas do século XIX, a partir da desestabilização do Império Otomano 1. Nesse período, a intensa perseguição religiosa aos árabes cristãos impulsionou uma corrente imigratória para América. Durante esse processo, mesmo sem nenhum acordo diplomático ou suporte governamental que garantisse a permanência desses imigrantes, o Chile se destaca pela 3178

acentuada concentração de imigrantes palestinos que se estabeleceram no país, apresentando maior relevância até a primeira metade do século XX. Com a formação do Estado de Israel em territórios palestinos no ano de 1948, foi iniciado um novo processo imigratório, porém com menor fluxo em relação aos anos anteriores. No período de 1970-1976, o fluxo imigratório de palestinos no país havia entrado em declínio, porém a comunidade palestina no Chile já se encontrava consolidada e integrada à sociedade, desenvolvendo uma considerável influência na economia do país. Nesse momento o Chile vivia um processo político diferenciado do contexto latinoamericano2, passando por transformações políticas e econômicas, tanto no âmbito global quanto interno. As reestruturações ocorridas estavam diretamente ligadas às questões internacionais, e o posicionamento do governo chileno em relação à causa palestina se molda de acordo com o cenário internacional, que nesse momento, se encontrava polarizado pela Guerra Fria.

A IMIGRAÇÃO PALESTINA NO CHILE O Chile possui atualmente a maior comunidade palestina fora do mundo árabe, tal formação teve seu início nas últimas décadas do século XIX, impulsionada pela instabilidade do Império Otomano. Nesse período a perseguição religiosa aos árabes cristãos gerou uma corrente imigratória desses grupos para a América. Os imigrantes árabes que se estabeleceram no Chile, são em sua maioria sírios, palestinos e libaneses. Para os autores que abordam essa questão, o processo de imigração ocorreu em diferentes etapas. Em 1885 se registra a chegada dos primeiros imigrantes. Na segunda etapa, entre 1901 a 1907, ocorre o ápice deste processo imigratório desencadeado pelo aumento dos conflitos nos territórios sob a dominação otomana3. Em um terceiro período, a saída desses imigrantes de seus territórios de origem decorre dos problemas econômicos e administrativos provenientes da Primeira Guerra Mundial, assim como, a recusa de grande parte dos árabes cristãos em integrar o exército otomano. Esse processo imigratório se potencializa até o ano de 1940, estimando-se que nesse período a quantidade de imigrantes árabes no país variava entre 8.000 e 10.000 pessoas, sendo 51% de origem palestina4. [...] es probable que las salidas fuesen motivadas, mas que por causas expulsivas, por factores de atraccion, aunque se debe tener presente que el area habia cambiado de dominador politico, producindose enfrentamientos con las tropas de las potencias mandatarias, y que la situacion econômica seguia siendo critica. Pero, a diferencia de lo que habia ocorrido durante el periodo otomano, los ideales nacionalistas estaban muy arraigados en un amplio sector de la masa, y

3179

1os que emigraron en esta etapa, lo hicieron incentivados por el llamado de parientes o amigos en America, mas que huyendo de una situacion determinada. Seguramente, de no haber existido este“llamado”, no hubiesen partido. (TENORIO; GONZÁLEZ, 1990. p.76)

Esses imigrantes passaram a ocupar regiões periféricas do país, desenvolvendo atividades comerciais e pequenas indústrias têxtis. Posteriormente, essas indústrias ocuparam uma considerável parcela no desenvolvimento da economia chilena, principalmente a partir da década de 1930, devido as dificuldades de importação geradas pela Crise de 1929. Em 1948, com a partilha do território palestino com o Estado de Israel, surge uma nova corrente imigratória, porém menor que as etapas anteriores. Após a década de 1940, é possível analisar um declínio no fluxo imigratório de palestinos no Chile. Devemos considerar que as consequências pós Segunda Guerra Mundial tiveram grande influência na diminuição desse fluxo. Nos anos de 1970, as famílias desses imigrantes já se encontravam integradas à sociedade chilena. Apesar da diminuição de imigrantes, a comunidade palestina no Chile apresentou um crescimento acentuado devido o aumento de descendentes. Estima-se um crescimento de 60% incluindo imigrantes e descendentes em relação aos números obtidos no Censo de 19405.

A INFLUÊNCIA DA POLÍTICA NORTE-AMERICANA NO CHILE Com o fim da Segunda Guerra Mundial em 1945, o período da Guerra Fria foi marcado por intensas disputas de poder entre E.U.A. e U.R.S.S. Os países latino-americanos se apresentaram como excelente opção de expansão econômica, despertando o interesse do governo norte-americano, principalmente após a Revolução Cubana em 1959. Com o intuito de conter os avanços comunistas, o governo estadunidense passou a desenvolver programas de apoio aos países latino-americanos, como, a Aliança para o Progresso6 e o Corpo de Paz7. Para E.U.A se hacía necesario fortalecer [...] tanto los proyectos de cambio estructural (apoyando economicamente a los gobiernos chilenos dispuestos a impulsar esos câmbios), como los de base de carácter comunitario, que se transformarían en el ejemplo de que las recetas norteamericanas y el sello de modernidade de las mismas, y no el comunismo, eran la vía para el progreso y el desarrollo. (PURCELL, 2014, p.75).

No caso do Chile, os bons resultados nas campanhas do candidato socialista Salvador Allende soavam como ameaça aos interesses estadunidense, fazendo como que o governo norte-americano ampliasse seu apoio ao candidato Eduardo Frei Montalva, do partido democrata-cristão, mas também, desenvolvesse uma série de manobras que impedissem a 3180

chegada de Allende à presidência. De acordo com Peter Winn (2010, p.53), a C.I.A., promoveu de forma velada, uma campanha midiática que colocava a vitória de Salvador Allende como uma ameaça à democracia chilena, assim como, “seus oponentes e as crianças chilenas seriam mandadas para Cuba”. Em 1970, Allende concorre à presidência como candidato da Unidade Popular, utilizando como uma das principais plataformas de governo a nacionalização do cobre. Isso afetaria diretamente as atividades econômicas dos E.U.A. no país, já que as mineradoras eram constituídas em grande parte de capital norte-americano. Para evitar que Allende assumisse a presidência, os E.U.A. passou a desenvolver ações que desestabilizaram a economia chilena, além de exercer pressões para que o Congresso votasse contra a vitória de Salvador Allende. De acordo com relatórios da I.T.T8., estava sendo promovida de forma clandestina uma quebra de duas das principais instituições bancárias de Santiago, além do fechamento de algumas fábricas, com o intuito de gerar desempregos e consequentemente um caos econômico, forçando assim, uma fração do partido democrata-cristão reconsiderar seu apoio à Allende. Quedaría a la vista, por exemplo, que la comunidade financiera no tiene confianza en la politica futura de Allende y que la salud general de la nación está en juego[...] más importante, el desempleo y la intranquilidad masivos podrían producir suficiente violência para obligar a los militares a moverse [...] aunque sus probabilidades de éxito son débiles, no debe estimarse um bloqueo de la asunción del poder por Allende a trevés de un colapso económico9.

Apesar das investidas do governo estadunidense, Salvador Allende venceu as eleições e assumiu a presidência em novembro de 1973. É importante salientar que o apoio de uma ala do partido democrata-cristão foi fundamental para a chegada de Allende ao poder. Diferente do discurso norte-americano, a proposta política de Allende era de uma transição democrática para o socialismo, respeitando a Constituição, seu posicionamento era favorável ao investimento de capital externo no país, sua politica era contrária ao imperialismo estadunidense que dominava a economia chilena. Defendia que a nacionalização era o caminho para alcançar a independência econômica e política do Chile. De acordo com as declarações de Allende10, a nacionalização das mineradoras não deveria ser considerada uma agressão aos Estados Unidos, porém “Ellos deben comprender la necesidad que tenemos de planear nuestra economia y de sacar el mayor provecho para Chile de nuestros recursos básicos”. Como represália ao processo de nacionalização do Cobre, assim como, a estatização de bancos e empresas de telefonia, o governo norte-americano diminuiu gradativamente

3181

a

ajuda que dispensava ao Chile, mantendo o apoio militar, visando estar vinculado com um grupo que seria fundamental para a execução de manobras futuras. A pressão sobre o governo de Allende aumentou aceleradamente, principalmente após a expropriação de terras improdutivas para a reforma agrária, ação que desagradou às elites latifundiárias. Os E.U.A. passaram a cobrar altas indenizações pela expropriação das mineradoras, dificultando a negociação da dívida externa, além de utilizarem sua influência para impedir que outros países do bloco capitalista fornecessem ajuda ao Chile. Somados à isso, o desequilíbrio no jogo de interesses entre os três poderes e os conflitos ideológicos que provocaram uma ruptura dentro da Unidade Popular, formaram o cenário que culminaria no golpe militar. Allende buscou o apoio da União Soviética, mas a sua política de não-alinhamento no contexto da Guerra Fria impediu que ele recebesse o suporte esperado. Tanto o governo estadunidense quanto o governo soviético eram cientes que Allende manteria suas ideologias e não aceitaria ser um joguete político entre as duas potências. Em 11 de setembro de 1973 ocorreu o golpe militar, comandado pela marinha e pelo comandante geral do exército Augusto Pinochet. A junta militar que assume o país suspendeu a Constituição e fechou o Congresso, instaurando um regime ditatorial. No que tange as relações exteriores, em um primeiro momento ocorre uma abertura para o capital estrangeiro, pagamento de indenizações às multinacionais e privatizações, gerando uma dependência do capital estrangeiro. Das medidas conquistadas durante o governo de Allende, apenas a nacionalização das mineradoras permaneceram durante o governo de Pinochet. A figura dos E.U.A. foi diretamente associada às manobras do golpe militar chileno. O presidente Nixon começou a sofrer pressões de seus opositores11, devido sua interferência na política chilena. Nos anos 1970, o Chile de Pinochet foi o foco de um debate sem precedentes no Congresso americano sobre as ações clandestinas dos Estados Unidos na política externa [...] Richard Nixon e Henry Kissinger tornaram-se inextricavelmente vinculados à Pinochet e ao Chile. Ambos dedicaram tempo e recursos extraordinários à erradicação do que percebiam como “ameaça vermelha” nas Américas. (Muñoz, 2010, p.28).

Em 1976, a ligação de oficiais do exército chileno ao assassinato do exministro de Allende, Orlando Letelier, em Washington, somado às investigações da participação do E.U.A. no golpe militar do Chile e a fragilidade do governo americano no pós-guerra do Vietnã provocaram um afastamento entre Chile e Estados Unidos.

3182

O CHILE E A QUESTÃO PALESTINA O histórico das relações entre Chile e Palestina geralmente estavam limitadas às questões comerciais. Com a divisão da Palestina e a formação do Estado de Israel, uma série de resoluções referentes à questão palestina foram votadas nas Assembleias Gerais da O.N.U., sobre as quais o Chile buscou manter uma postura neutra. A partir do governo de Salvador Allende, esse posicionamento assume um caráter político e tal associação se coloca mais pelo contexto da Guerra Fria em que todas as ações ganhavam um cunho de alinhamento, do que pela aproximação política entre Chile e Palestina. Durante o seu período de governo, Salvador Allende apostou em uma política de universalização diplomática. Em um período no qual a política mundial estava polarizada pela Guerra Fria, Allende optou por uma política de não-alinhamento, defendendo os princípios de não-intervenção e autodeterminação. Esse conceito justifica a oposição de Salvador Allende ao domínio imperialista do governo norte-americano, como também, a ampliação de suas relações diplomáticas com os países denominados socialistas e o desenvolvimento de uma postura pró-palestina. A política internacional de Allende era expandir as relações comerciais do país, e assim, se libertar da dependência estadunidense. No que se refere à questão palestina, a própria conjuntura do conflito palestinoisraelense determinará o apoio de Allende, devido sua oposição aos avanços de caráter colonialista de Israel em territórios palestinos, sob o respaldo dos Estados Unidos, desrespeitando as determinações que configuram a Resolução 18112. O posicionamento de Allende é analisado à partir de votos favoráveis consecutivos nas resoluções pró-palestina, votadas nas Assembleias Gerais da O.N.U. O tema que permeia tais resoluções está relacionado à recuperação, pelos palestinos, da faixa territorial ocupada por Israel na Guerra dos Seis Dias em 1967, que abrange especialmente Cisjordânia, Jerusalém oriental e Faixa de Gaza.

Resolução 2628 de 30 de novembro de 1970 Reconhece que o respeito aos direitos é um elemento indispensável para o estabelecimento de uma paz justa e duradoura no Oriente Médio.

Resolução 2799 de 13 de dezembro de 1971 Pede a Israel que responda de forma favorável a inciativa de paz do Representante Especial em aplicar o cumprimento da Resolução 242/1967, do Conselho de Segurança da O.N.U. Resolução 2949 de 08 de dezembro de 1972

3183

Declara que as mudanças introduzidas por Israel nos territórios árabes ocupados em desacordo à Convenção de Genebra de 1949 são nulos, e convoca Israel a revogar todas essas medidas e desista de todas as políticas e práticas que afetem a composição demográfica dos territórios árabes ocupados. Com relação ao governo de Augusto Pinochet, a principio, é desenvolvida uma política anti-palestina relacionada à sua aproximação com os Estados Unidos, mas também em oposição à postura favorável de Allende sobre à causa palestina. É difícil determinar outros fatores, para a colocação de Pinochet sobre essa questão, pois o regime autoritário e uma militância anticomunista declarada romperam os vínculos de suas relações diplomáticas, gerando um isolamento do sistema político internacional. Em 06 de outubro de 1973, Egito e Síria atacam Israel na tentativa de recuperar os territórios tomados na Guerra dos Seis Dias. O suporte dos Estados Unidos à Israel através do fornecimento de materiais bélicos e apoio militar gerou uma retaliação dos países da OPEP, que decidiram suspender o fornecimento de petróleo para todos os países que apoiassem Israel no conflito. Em um segundo momento, a necessidade do Chile em comprar petróleo dos países árabes, fez com que Pinochet tentasse melhorar suas relações com esses países, mesmo assim, sua posição diante das votações nas Assembleias Gerais da O.N.U. não assume de fato uma postura favorável à questão palestina. Diferente de Allende, Pinochet se abstém sistematicamente nas resoluções pró-palestina. Também é necessário considerar que o estreitamento das relações entre Chile e Israel, devido a importação de armas pelo governo chileno, foi um fator relevante no posicionamento de Augusto Pinochet.

Resolução 3236 de 22 de novembro de 1974 Reafirma inalienáveis os direitos dos palestinos em regressar para suas casas e propriedades que tenham sido desalojados, e pede seu regresso.

Resolução 3237 de 22 de novembro de 1974 Convida a Organização de Libertação da Palestina (O.L.P.) participar das seções e dos trabalhos das Assembleias Gerais.

Resolução 3379 de 10 de novembro de 1975 Declara que o sionismo é uma forma de racismo e descriminação racial.

Resolução 31/20 de 24 de novembro de 1976 Vota sobre os direitos dos palestinos à um Estado. Decide incluir o item intitulado “Questão da Palestina” na agenda provisória para a 32ª sessão.

3184

CONCLUSÃO Neste trabalho foi analisado o posicionamento de Salvador Allende e Augusto Pinochet sobre a formação de um estado palestino, enfatizando a influência da Guerra Fria em ambos os governos. O Chile possui a maior comunidade palestina fora do mundo árabe, porém o fator que direcionou o posicionamento de Salvador Allende e Augusto Pinochet sobre as questões própalestina foi a influência das políticas internacionais desenvolvidas no período da Guerra Fria. O apoio de Allende à causa palestina foi determinado por sua política anti-imperialista baseada em um conceito de solidariedade internacional, em respeito ao direito de soberania e autodeterminação dos países. Diferente de Allende, o posicionamento de Pinochet, contrário às questões palestinas, foi determinado por sua postura anticomunista e também pelos desdobramentos de sua relação com o governo estadunidense. Sua postura foi se desenhando de acordo com as exigências do cenário internacional, equilibrando suas relações com os países árabes que apoiavam o povo palestino e com Israel. Independente de suas posições políticas, o posicionamento desses governos não teve uma influência substancial que determinasse uma resolução para o conflito palestinoisraelense, já que essa questão avança de acordo com as políticas desenvolvidas pelos Estados Unidos e Israel na comunidade internacional. Ao final deste estudo é possível compreender como a política internacional durante a Guerra Fria orientou a política interna e externa do Chile durante esses governos. Porém, não permite analisar de forma mais profunda o comportamento da comunidade palestina no Chile, como também, a influência desta na política desenvolvida por Salvador Allende e Augusto Pinochet no que se refere à questão palestina. Pretende-se estender esta pesquisa de forma a elucidar essas questões.

1

O Império Otomano surgiu em fins do século XIII, sob o comando de Otaman I. Seus domínios englobavam regiões da África, Ásia e Europa. 2 Nesse período a ditadura militar imperava em diversos países da América Latina, porém o Chile vivia um processo político diferenciado, mantendo um modelo democrático. 3 Os constantes conflitos entre as diferentes etnias que compunham seu território iniciaram o enfraquecimento do Império, porém o interesse das potências europeias naquela região foi um dos principais fatores da crise que culminou na dissolução ao final da Primeira Guerra Mundial. Com o fim do Império Otomano seus territórios foram desmembrados em novos países que se tornaram protetorados da França e Inglaterra. 4 Fonte: AGAR, Lorenzo, REBOLLEDO, Antonia. (1997) La inmigración árabe en Chile: Los caminos de la integración. En libro El Mundo Árabe y América Latina. Ediciones UNESCO/Libertaria/Prodhufi.PARIS. Disponível em: www.memoriachilena.cl. Acessado em 20 fev. de 2015.

3185

5

Idem, Ibidem. Programa implantado em 1960, pelo presidente norte-americano John Kennedy, que garantia ajuda financeira aos países da América Latina. 7 Grupos de voluntários enviados para os países considerados de Terceiro Mundo, com o objetivo de ajudar no desenvolvimento estrutural desses países. Servia como programa de apoio à Aliança para o Progresso. 8 International Telephone and Telegraph Corporation – empresa norte-americana que explorava o serviço de telefonia no Chile. 99 Fonte: Memorando enviado em 20 de setembro de 1970, do escritório da I.T.T. em Buenos Aires para o escritório da Companhia em Nova York. Documento pesquisado no Ministério das Relações Exteriores do Chile em 03 de fevereiro de 2015. 10 Fonte: Documento pesquisado no arquivo do Ministério das Relações Exteriores do Chile em 03 de fevereiro de 2015. 11 De acordo com ofício nº 1399/466 de 19 de outubro de 1973 da embaixada chilena em Washington, o senador Edward Kennedy apresentou uma emenda para suspensão da ajuda econômica e militar ao Chile. Documento pesquisado no Ministério das Relações Exteriores do Chile em 04 de fevereiro de 2015. 1212 Resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas, votadas em 29 de novembro de 1947, a qual determina a partilha da Palestina em um estado judeu e outro árabe. De acordo com as fronteiras definidas na resolução, o estado árabe teria uma área de 11.800km , correspondendo 43% da área da Palestina, enquanto o estado judeu teria uma área de 14.500km , correspondendo 57% da área da Palestina. 6

Referências Bibliográficas AGAR, Lorenzo; REBOLLEDO, Antonia. (1997) La inmigración árabe en Chile: los caminos de la integración. En libro El Mundo Árabe y América Latina. Paris: Ediciones UNESCO/Libertarias/Prodhufi, 1997. p.287. Disponível em: . Acesso em 09 fev. 2015. BAEZA, Cecília. América Latina y la cuestión palestina (1947-2012), Revista Araucaria Iberoamericana de Filosofia, Política y Humanidades, Espanha, año 14, nº28, jul./dez. 2012. Disponível em: . Acesso em: 30 out. 2013. ; BRUN, Elodie. La diplomacia chilena hacia los países árabes: entre posiciononamento estratégico y oportunismo comercial, Instituto de Estudios Internacionales – Universidad de Chile, Chile, jan./2012. Disponível em: . Acesso em 29 ago. 2014. LOHBAUER, Chistian. História das Relações Internacionais II O século XX: do declínio europeu à Era Global, 2. ed – Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. 221p. PURCELL, Fernando. Guerra Fría, Motivaciones y Espacios de Interacción. El caso do del Cuerpo de Paz de Estados Unidos en Chile, 1961-1970, em Chile y la Guerra Fría Global,

Santiago,

Chile:

Ril

Editores,

2014.

cl.academia.edu/FernandoPurcel>. Acesso em 27 dez. 2014.

3186

Disponível

em:

Lihat lebih banyak...

Comentarios

Copyright © 2017 DATOSPDF Inc.