PROCESSO JURISDICIONAL E POLÍTICA NA DEMOCRACIA CONSTITUCIONAL: PARTE 3

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Processo jurisdicional e política na democracia constitucional: parte 3 Processo jurisdicional e política na democracia constitucional: parte 3 Thadeu Augimeri de Goes Lima

Publicado em 02/2017. Elaborado em 08/2014.

O presente texto, que se divide em cinco partes, pretende abordar as interações e tensões entre o constitucionalismo e a democracia e entre o processo jurisdicional e a política, mormente em face do atual tema da judicialização da política. Prosseguindo no estudo das fontes que conferem à jurisdição constitucional sua legitimidade democrática, passamos ao exame da segunda, que pode ser chamada de processual, visto que concerne ao modo pelo qual aquela se desenvolve, ou seja, o processo (LIMA, 2013, p. 64). O pensamento mais moderno, que encontra em Elio Fazzalari (2006, p. 109-124) seu precursor, tem refutado ao processo a natureza de relação jurídica e reabilitado no seu conceito a noção de procedimento, compreendido como sucessão de atos normativamente disciplinados, vinculados reciprocamente e ordenados à preparação de um provimento imperativo, somado ao contraditório, percebido como garantia de participação nessa preparação, em situação de simétrica paridade, dos interessados, isto é, daqueles que serão diretamente atingidos pelo aludido provimento. Processo, portanto, é uma espécie de procedimento, justamente aquela realizada em contraditório. Pedro Manoel Abreu (2008, p. 427-428) resume com maestria o novo panorama doutrinário: “O processo, nessa conjuntura, não pode ser visualizado apenas como relação jurídica, mas como uma expressão relevante para a democracia, e por essa razão deve ser legítimo. Deve se legitimar pela participação. Deve ser legítimo, adequado à tutela dos direitos e aos direitos fundamentais e, além disso, deve produzir uma decisão legítima. A identificação do processo como procedimento em contraditório entre as partes, emergente de uma estrutura normativa, suplanta a concepção de processo como relação jurídica. O contraditório é vislumbrado como oportunidade de participação paritária. É ‘garantia de simétrica igualdade de participação dos destinatários do provimento na fase procedimental de sua preparação’. Nesse viés, a possibilidade garantida de participação em simétrica igualdade não se concilia definitivamente com vínculo de sujeição. A concepção mais contemporânea de processo, portanto, não o distingue de procedimento através de um critério teleológico, tampouco o compreende como relação jurídica ou o procedimento como mera forma. Assume, da perspectiva reconstrutiva da Teoria Discursiva do Direito e da Democracia, formulada por Habermas, as teses de Fazzalari, desenvolvidas por Gonçalves e também sustentadas por Cattoni e Marinoni. Nessa nova mirada, o processo se diferencia de procedimento, porque este é um conceito mais amplo. Procedimento é vislumbrado como gênero do qual o processo é espécie. Estas concepções emergem de um conceito renovado de procedimento e de processo, consonante com o atual estágio da teoria geral do direito e do sistema normativo que embasa tais conceitos.” Por sua vez, para Flaviane de Magalhães Barros (2009, p. 13-14), pode-se pretender a apropriação da teoria do processo como procedimento em contraditório como adequada ao paradigma do Estado Democrático de Direito. Cumpre enfatizar que o contraditório, nessa tendência doutrinária, além de passar a integrar a própria concepção de processo, deixou de ser visto nas limitadas expressões de ciência bilateral dos termos e atos do processo e possibilidade de contrariá-los, como deixou legado Joaquim Canuto Mendes de Almeida, ou de informação necessária e reação possível, na síntese de Sergio La China (apud BADARÓ, 2000, p. 29), para ser contemplado como garantia de participação em simétrica paridade no procedimento. O contraditório ganha um significado sobretudo político, pois confere ao processo judicial uma face democrática, legitimando-o como instrumento para o exercício do poder estatal sub specie jurisdictionis (DAMASCENO, 2010, p. 79-86; MARINONI, 2008, p. 454-456). E o processo jurisdicional é assumido, a partir dessa ótica, como um microcosmo da democracia participativa (ABREU, 2008, p. 440; DINAMARCO, 2005, p. 27). Assevera Aroldo Plínio Gonçalves (1992, p. 127) que a “ideia da participação, como elemento integrante do contraditório, já era antiga. Mas o conceito de contraditório desenvolveu-se em uma dimensão mais ampla. Já não é a mera participação, ou mesmo a participação efetiva das partes no processo. O contraditório é a garantia da participação das partes, em simétrica igualdade, no processo, e é garantia das partes porque o jogo da contradição é delas, os interesses divergentes são delas, são elas os ‘interessados e os contra-interessados’ na expressão de FAZZALARI, enquanto, dentre todos os sujeitos do processo, são os únicos destinatários do provimento final, são os únicos sujeitos do processo que terão os efeitos do provimento atingindo a universalidade de seus direitos, ou seja, interferindo imperativamente em seu patrimônio.”

Trata-se da construção participada da decisão (BARROS, 2009, p. 14), reflexo da chamada visão cooperativa do processo (OLIVEIRA, 2011, p. 16). Outrossim, a decisão judicial necessita ser a mais correta, a mais justa, à luz dos elementos do caso concreto, pois o julgador, mesmo nas hipóteses que comportem mais de uma solução plausível, não ostenta poder de livre escolha ou discricionariedade. O dever de motivação, mediante o emprego de argumentação racional e persuasiva, é um traço distintivo relevante da função jurisdicional e dá a ela uma específica legitimação, decorrente de sua efetiva correspondência à ordem jurídica (BARROSO, 2012, p. 14; MARINONI, 2008, p. 447-449; SARMENTO, 2010, p. 191). É a chamada representação argumentativa, que, no plano da jurisdição constitucional, deve ser apta a suplantar a representação política (ALEXY, 2008, p. 544-574; MARINONI, 2008, p. 91-92). A jurisdição constitucional, seja por via de ação (controle concentrado de constitucionalidade), seja por via de exceção (controle difuso de constitucionalidade), sempre se exerce por meio do processo e culmina com um pronunciamento judicial. E, nessa seara, quanto maior o espectro de abrangência dos efeitos do provimento, maior o número de entes legitimados a integrar o contraditório, isto é, a participar democraticamente do procedimento que precede sua formação e com ele se conclui. Observe-se, por exemplo, que no âmbito do controle difuso de constitucionalidade, em que a questão constitucional é apreciada incidenter tantum, como verdadeira prejudicial, e o provimento jurisdicional emitido em princípio deverá operar efeitos apenas inter partes, a imprescindível participação será destas, com a eventual possibilidade de assistência ou intervenção de terceiros, nas formas dos artigos 50 e seguintes do Código de Processo Civil. Por outro lado, tratando-se do controle concentrado, em que a verificação da constitucionalidade da lei ou ato normativo é o próprio thema decidendum e a decisão terá efeitos erga omnes, abrese ampla oportunidade de participação, com a admissão da figura do amicus curiae (art. 7º, § 2º, da Lei n. 9.868/1999 e art. 6º, §§ 1º e 2º, da Lei n. 9.882/1999), providência que confere aos chamados processos objetivos caráter pluralista (MENDES, 2010, p. 1287) e por isso reforça a legitimação democrática da jurisdição constitucional (BUZINGNANI; GARCIA, 2010, p. 110-113; MANCUSO, 2011, p. 400-401). Em acréscimo, o resultado final da atividade jurisdicional haverá que ser, invariavelmente, uma decisão dotada de adequada e suficiente fundamentação, que considere e sopese seriamente as contribuições argumentativas e probatórias trazidas pelos sujeitos processuais interessados. A fonte processual, que confere à jurisdição constitucional uma legitimação de natureza democrático-participativa, origina-se positivamente, no Texto Maior, da cláusula do devido processo legal, da garantia do contraditório e do dever de motivação das decisões judiciais (art. 5º, incisos LIV e LV, e art. 93, inciso IX).

REFERÊNCIAS ABREU, Pedro Manoel. O processo jurisdicional como um “locus” da democracia participativa e da cidadania inclusiva. 2008. 544 f. Tese (Doutorado em Direito) – Curso de Pós-Graduação em Direito, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. Disponível em: . Acesso em: 12 jan. 2012. ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Correlação entre acusação e sentença. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. BARROS, Flaviane de Magalhães. (Re)forma do processo penal: comentários críticos dos artigos modificados pelas Leis n. 11.690/08, n. 11.719/08 e n. 11.900/09. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Disponível Acesso em: 26 jan. 2012.

em:

BUZINGNANI, Ana Carolina Silveira; GARCIA, Bianco Zalmora. Amicus curiae e a ética do discurso de Jürgen Habermas. Argumenta, Jacarezinho, v. 10, n. 13, p. 101-119, 2010. DAMASCENO, Kleber Ricardo. O novo contraditório e o processo dialógico: aspectos procedimentais do neoprocessualismo. 2010. 184 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Mestrado em Ciência Jurídica, Universidade Estadual do Norte do Paraná, Jacarezinho. Disponível em: . Acesso em: 17 jun. 2012. DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual. Tradução de Elaine Nassif. Campinas: Bookseller, 2006. GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 1992. LIMA, Thadeu Augimeri de Goes. Tutela constitucional do acesso à justiça. Porto Alegre: Núria Fabris, 2013. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Acesso à justiça: condicionantes legítimas e ilegítimas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de constitucionalidade. In: ______; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. cap. 12, p. 1153-1509. OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Poderes do juiz e visão cooperativa do processo. Mundo jurídico. Disponível em: . Acesso em: 26 jun. 2011. SARMENTO, Daniel. Livres e iguais: estudos de direito constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

Autor Thadeu Augimeri de Goes Lima Doutorando em Direito Processual pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, da Universidade de São Paulo (USP) (início em 2015). Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP) (2012). Especialista em Direito e Processo Penal pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) (2007). Graduado em Direito pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP) (2001). Membro-fundador, vice-presidente e pesquisador do Instituto Ratio Juris - Pesquisa, Publicações e Ensino Interdisciplinares em Direito e Ciências Afins. Coordenador e professor do curso de pós-graduação "lato sensu" (especialização) em Ministério Público e Estado Democrático de Direito da Fundação Escola do Ministério Público do Estado do Paraná (FEMPAR), unidade de Londrina. Professor convidado do curso de pós-graduação "lato sensu" (especialização) em O Novo Código de Processo Civil da Faculdade Paranaense (FACCAR). Professor convidado do curso de pós-graduação "lato sensu" (especialização) em Direito do Estado da Faculdade do Norte Novo de Apucarana (FACNOPAR). Membro do Conselho de Política Editorial das Revistas Ratio Decidendi e Jus Publicum. Editor geral da Revista Ratio Decidendi. Revisor (parecerista "ad hoc") da Revista Brasileira de Ciências Criminais (RBCCrim), da Revista Quaestio Iuris e da Revista Ciências Sociais em Perspectiva. Promotor de Justiça de Entrância Final do Ministério Público do Estado do Paraná, titular no Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de Londrina.

Informações sobre o texto Texto originalmente publicado como coluna no sítio eletrônico Jurisconsultos (http://www.jurisconsultos.org/), na seção "Transformações no Direito Processual". Também publicado em LIMA, Thadeu Augimeri de Goes. "Transformações no Direito Processual - Volume I". Saarbrücken, Alemanha: Novas Edições Acadêmicas, 2016. p. 79-84.

Como citar este texto (NBR 6023:2002 ABNT) LIMA, Thadeu Augimeri de Goes. Processo jurisdicional e política na democracia constitucional: parte 3. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 4973, 11 fev. 2017. Disponível em: . Acesso em: 11 fev. 2017.

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