Planejamento composicional a partir de referenciais extra-musicais e intertextuais

July 25, 2017 | Autor: Liduino Pitombeira | Categoría: Musical Composition
Share Embed


Descripción

Comunicação - COMPOSIÇÃO

Menu

PLANEJAMENTO COMPOSICIONAL A PARTIR DE REFERENCIAIS EXTRA-MUSICAIS E INTERTEXTUAIS Weskley Roberto da Silva Dantas (UFCG) [email protected]

Liduino José Pitombeira de Oliveira (UFCG/UFPB) [email protected]

Resumo: Este artigo descreve o planejamento composicional da obra para quarteto de metais, intitulada Pioneiros da Borborema, a partir do conceito de referenciais associativos de Gauldin. Elementos culturais, tais como obras artísticas ligadas ao campo da música e da escultura, bem como aspectos históricos relacionados ao surgimento e ao desenvolvimento da cidade de Campina Grande (PB), são utilizados como referenciais estéticos na elaboração do planejamento composicional dos parâmetros musicais. Palavras-chave: Referenciais associativos, planejamento composicional, Campina Grande. Compositional planning based on extra-musical and intertextual references Abstract: This paper describes the compositional design of a piece for brass quartet, titled Pioneiros da Borborema, through the concept of Gauldin’s referential association. Cultural elements, such as artistic works from the fields of music and sculpture, as well as historical aspects related to the foundation and development of the city of Campina Grande (PB), are employed as aesthetic references in the elaboration of a compositional planning of the musical parameters. Keywords: Referential association, compositional design, Campina Grande.

1. Considerações Gerais O impulso inicial para a composição da obra Pioneiros da Borborema, para quarteto de metais (Trompete em B#, Flugelhorn, Trombone tenor e Trombone baixo), surgiu como a ideia de mencionar referências à cidade de Campina Grande, localizada na serra da Borborema, na Paraíba. Nos esboços iniciais, ainda anteriores a uma fase de planejamento propriamente dita, procuramos extrair elementos relacionados à cultura da cidade que pudessem ser manipulados musicalmente. Neste trabalho utilizaremos o conceito de referenciais associativos de GAULDIN (1999, p.32), que são estruturas que se relacionam com significados extramusicais, musicais ou ainda com gestos inseridos em outros momentos dentro da própria obra original. Foi nossa intenção nos restringirmos ao parâmetro altura e, como ponto de partida, verificamos as potencialidades contidas no hino da cidade, cujo refrão é mostrado na figura 1. As classes de alturas1 utilizadas nesse refrão são: 0,2,4,5,6,7,9 e B. Essas classes de notas foram agrupadas de maneira a formar dois tetracordes (0245 e 679B), que coincidentemente possuem a mesma forma prima (0135)2. Dessa maneira obtivemos a única classe de conjuntos de classes de notas utilizada na obra.3

Figura 1: Refrão do Hino de Campina Grande Anais do XXI Congresso da ANPPOM 2011

234

Comunicação - COMPOSIÇÃO

Menu

2. Planejamento Composicional Para o planejamento composicional da obra, tomamos como ponto de partida as estátuas dos “Pioneiros da Borborema”, situadas às margens do Açude Velho, na cidade de Campina Grande. Nessa escultura estão representados um tropeiro, um índio e uma catadora de algodão. O tropeiro simboliza o comércio e a resistência do povo campinense; o índio, a origem primitiva da cidade; e a catadora de algodão representa o acentuado desenvolvimento industrial gerado pelo ciclo algodoeiro. Dessa forma, decidimos compor a obra em três movimentos, cada um representando um dos elementos da escultura.

2.1. Primeiro movimento: Tropeiros Os tropeiros eram viajantes que tiravam seu sustento do comércio. Eles traziam mercadorias para vender na cidade de Campina Grande, que era uma cidade próspera para o comércio devido à sua localização geográfica. Nesse primeiro movimento o aspecto de rotina das relações comerciais é representado musicalmente através de ostinatos. Assim como as relações comerciais são referenciadas através dos ostinatos, a prosperidade de tais relações é simbolizada pelo aparecimento gradual de novas classes de notas, através de um procedimento denominado invariância transpositiva (STRAUS, 2000, p.71-72)4, mostrado na figura 2, onde duas classes de notas de um tetracorde são conservadas após a transposição. Evidentemente, esse procedimento não modifica a única classe de conjunto de classes de notas utilizada na obra (0135). O movimento teve o planejamento textural5 mostrado da figura 3. Para este movimento foi pensada uma analogia com a trajetória de um empreendimento comercial, dividida em três etapas. Na primeira etapa, o empreendedor (analogia com os tropeiros) não obtém quase nenhum lucro, mantendo-se no mesmo patamar. A segunda etapa é aquela na qual o empreendimento está começando a se estabelecer como parte da vida comercial da cidade. Há um leve crescimento e os lucros, apesar de ainda pequenos, começam a surgir. Na terceira etapa, a empresa está completamente inserida no contexto sócio-econômico da cidade e os lucros não param de aumentar.

Figura 2: Invariância transpositiva

Figura 3: Planejamento textural do 1º movimento Anais do XXI Congresso da ANPPOM 2011

235

Comunicação - COMPOSIÇÃO

Menu

Durante a primeira fase, o labor inicial é representado através de um ostinato. Nesta etapa temos apenas o conjunto de classes de notas 0245, que através do procedimento de invariância transpositiva, chega à segunda etapa com o tetracorde 2467. As classes de notas 6 e 7, que não pertenciam ao tetracorde anterior, simbolizam o início dos lucros. Em seguida, se segue nova transposição (4689) e mais um pequeno momento de estagnação. No fim da segunda etapa, voltam a aparecer os “lucros” (68AB), graças ao surgimento das classes de notas A e B. Na terceira e última fase, novas classes de notas surgem a cada três compassos e, após duas transposições que conservam duas classes de notas do tetracorde anterior, surge uma terceira e última transposição, que representa a prosperidade plena dos negócios através do aparecimento de três novas classes de notas somadas a um crescimento na textura e na dinâmica (figura 4).

Figura 4: Final do 1º movimento

2.2. Segundo movimento: Índios Cariris Para o segundo movimento, Índio Cariris, que representam a origem primitiva da cidade, utilizamos apenas os dois tetracordes que foram encontrados a partir das classes de notas presentes no refrão do hino oficial da cidade (0135 e 0245) e suas respectivas inversões (79B0 e 78A0). Associamos o tetracorde 0135 (forma primitiva de todos os tetracordes utilizados nesse movimento) ao homem natural, primitivo e à natureza. Por sua vez, o tetracorde 0245, inversão do 0135 (T5I), é associado ao homem civilizado e aos seus processos de colonização e controle da natureza. Os demais tetracordes (79B0 e 78A0) são utilizados como elementos transicionais entre os tetracordes principais (0135 e 0245). Os tetracordes foram organizados de acordo com o diagrama da Figura 5, onde a classe de nota 0 se evidencia como nota comum a todos, e, os tetracordes progridem sempre no sentido horário, obedecendo ao ciclo estabelecido pelo diagrama. A progressão cíclica representada na Figura 5, é uma maneira de aludir à forma de relação que os Índios mantinham com a natureza. Uma relação de subsistência regida pelo “relógio biológico da Terra”, ou seja, os Índios retiravam da natureza somente aquilo que precisavam e encontravam-se à mercê dos fenômenos naturais. Anais do XXI Congresso da ANPPOM 2011

236

Comunicação - COMPOSIÇÃO

Menu

Figura 5: Gráfico de progressão

Esses tetracordes também fornecem o material para um gesto6 melódico que perpassa todo o movimento, o qual consiste basicamente na alternância, em alguns momentos, e no uso simultâneo, em outros momentos, entre gestos verticais constituídos pelos tetracordes e pelo gesto melódico, cuja estrutura rítmica é mostrada na Figura 6. À esta estrutura se encaixam as classes de alturas tetracordais7. Os gestos melódicos formados por esse processo são submetidos, no decorrer do movimento, a procedimentos de transformação melódica tais como retrogradação, aumentação e interpolação.

Figura 6: Estrutura rítmica dos gestos melódicos do segundo movimento

O movimento se divide em três seções: A, B e C. Na seção A, gestos melódicos, construídos pela fusão da estrutura rítmica mostrada da Figura 6 com as classes de alturas dos tetracordes, se alternam com blocos verticais formados por esses mesmos tetracordes. Todas as mudanças de tetracorde seguem o ciclo mostrado no diagrama da Figura 5, com uma exceção: o tetracorde 0245, que representa o homem civilizado, é omitido e utilizado como bloco vertical somente na seção B, a qual consiste em uma textura coral formada pelo uso concomitante do gesto melódico mencionado na seção A com blocos verticais livremente conectados. Na seção C, os blocos verticais são praticamente eliminados (ocorrendo apenas no compasso 68 e na coda final) e a textura consiste basicamente na intersecção dos gestos melódicos. O planejamento textural desse movimento é mostrado na Figura 7. Um elemento timbrístico importante que deve ser mencionado é o uso de sordinas durante a maior parte do movimento. Este uso foi inspirado pelo próprio significado da palavra “Cariri”, palavra oriunda dos vocábulos, de origem Tupi, Kiriri (triste) e Keririm (calar, estar sereno, silêncio e tristeza) (DIAS, 1965, p.37).

Figura 7: Planejamento textural + progressão de acordes Anais do XXI Congresso da ANPPOM 2011

237

Comunicação - COMPOSIÇÃO

Menu

2.3. Terceiro movimento: Catadora de Algodão Este último movimento representa o ciclo algodoeiro da cidade. Campina Grande foi, durante a primeira metade do século XX, a segunda maior produtora de algodão do mundo, estando atrás apenas de Liverpool, Inglaterra. Por essa razão Campina ficou conhecida como a “Liverpool brasileira”. Tal fato é representado musicalmente através de uma citação dos Beatles (“The long and winding road”). A melodia citada foi filtrada através da paleta da classe de conjunto de classes de notas utilizada – [0135] (Figura 8). Esse procedimento consiste em converter as notas da melodia original, que não pertencem ao conjunto 679B (integrante da classe [0135]), para a nota mais próxima desse conjunto. Assim, por exemplo, como o Dó não pertence a essa classe de conjuntos, ele é convertido para o Lá, uma vez que o Si, mesmo sendo a nota mais próxima, foi previamente utilizada. Como uma forma de estreitar a relação entre o termo “Liverpool brasileira” e os gestos musicais presentes neste movimento, aplicou-se à citação um ritmo típico do nordeste brasileiro, o baião (Figura 10).

Figura 8: Filtro conversor aplicado à melodia intertextual

Figura 9: Ritmo brasileiro (baião) aplicado à citação

Durante o ciclo do algodão, outro fator que foi de extrema relevância para o desenvolvimento da cidade foi a chegada do trem. O trem facilitou o acesso à Campina, aumentando assim a importância da cidade e consolidando-a como pólo algodoeiro. Muitas pessoas vieram para Campina em busca de emprego, devido a sua importância econômica na região. A chegada do trem é expressa através da citação da melodia da obra “O trenzinho do caipira”, de Heitor Villa-Lobos. A melodia foi alterada através de remetrificação e de um procedimento de transformação melódica denominado interpolação, o qual consiste em inserir notas no texto original (Figura 10).

Figura 10: Trecho da citação de “O trenzinho do caipira” original e interpolada Anais do XXI Congresso da ANPPOM 2011

238

Comunicação - COMPOSIÇÃO

Menu

O preenchimento gradual da textura, bem como a aplicação de células rítmicas típicas do baião, onde as figuras são diminuídas gradativamente gerando um ritmo mais frenético, são utilizados na intenção de representar o alto crescimento demográfico ocorrido na época. Por fim, o ciclo algodoeiro atinge seu ponto máximo e começa a declinar. A decadência do ciclo do algodão é representada de três maneiras: diminuição do andamento (de 120bpm para 60bpm), esvaziamento textural e linhas melódicas predominantemente descendentes. Neste último movimento podemos observar a presença constante de referenciais associativos, tanto na forma de citações de outros autores (Beatles e Villa-Lobos) como na forma de citação de fragmentos da própria obra (os compassos 159-160-161-162 são uma rememoração dos compassos 23-24-25-26; os compassos 162 e 171 remetem ao compasso 72, e; os compassos 165-166-167-168 são uma aumentação retrógrada do compasso 151).

Notas Denominamos classes de alturas, ou classes de notas, o conjunto das dozes notas da escala cromática sem consideração de registro, de tal forma que se fique restrito no âmbito de oitava. As classes de alturas podem ser representadas por números inteiros de 0 a 11, onde 0=Dó, 1=Dó  e assim por diante. Para evitar erros de leitura, o Si bemol e o Si natural são representados por A e B, respectivamente. As classes de notas podem ser agrupadas formando o que denominamos conjuntos de classes de notas, que são, segundo STRAUS (2000, p.30), uma coleção desordenada de classes de notas. Um maior aprofundamento sobre esses tópicos pode ser encontrado em STRAUS (2000). 2 Para que se defina o conceito de forma prima é necessário antes que se defina forma normal, que é, segundo STRAUS (2000, p.31) a maneira mais compacta de se escrever um conjunto de classes de alturas. A forma prima, segundo STRAUS (2000, p.49) é a forma normal mais compacta à esquerda e que se inicia com 0. Nesse trabalho, quando necessário, utilizaremos a forma prima, entre colchetes, para designar as classes de conjuntos de classes de notas ao invés da classificação de Allen FORTE (1973). 3 Uma classe de conjuntos de classes de notas agrupa todos os conjuntos de classes de notas que têm o mesmo conteúdo intervalar e que, portanto, se relacionam por operações de transposição e inversão. 4 A invariância transpositiva ocorre quando uma ou mais classes de alturas se conservam quando um conjunto de classes de alturas é submetido a uma operação de transposição. Por exemplo, ao transpormos uma tríade aumentada (0 4 8) por um intervalo de terça maior (4 semitons) observamos que todos as classes de alturas se conservam (4 8 0), ou seja, há invariância máxima. 5 O planejamento textural é uma forma de organizar um plano pré-composional focalizando no parâmetro textura, ou seja, a textura é distribuída previamente por meio de diagramas, permitindo ao compositor visualizar a estrutura da obra. Margaret WILKINS (2006, p.38-42) aborda de maneira detalhada o planejamento da textura de uma obra através de gráficos que delineam a distribuição dos gestos de forma visual, sem uma preocupação com os parâmetros altura e ritmo. 6 Utilizamos a definição de ZAMPRONHA (2005) para o conceito de gesto no âmbito da composição musical: “With regard to musical composition, gesture comes to be understood as a sound materiality movement that generates a delimited configuration recognizable by listening as a unit. This ��������������������������������������������������������������������������������������������� unity is closely associated to signification inside a work.” Denonimanos ��������������������������� de gestos horizontais aqueles que se desenvolvem linearmente no tempo, como uma linha melódica, e de gestos verticais aqueles que ocorrem simultaneamente, como um acorde. 7 Classes de alturas tetracordais são simplesmente tetracordes formados por classes de alturas. 1

Referências DIAS, Gonçalves. Dicionário da Lingua Tupi. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1965. FORTE, Allen. The Structure of Atonal Music. New Haven: Yale University Press, 1973. GAULDIN, Robert. “Reference and Association in the Vier Lieder, Op.2, of Alban Berg”. Music Theory Spectrum V.21, Nº 1 (Spring, 1999), p.32-42.

Anais do XXI Congresso da ANPPOM 2011

239

Comunicação - COMPOSIÇÃO

Menu

STRAUS, Joseph N. Introduction to Post-Tonal Theory, 2nd Ed. Upper Saddle River: Prentice Hall, 2000. WILKINS, Margaret. Creative Music Composition: the Young Composer’s Voice. New York: Routledge, 2006. ZAMPRONHA, Edson. 2005. “Gesture In Contemporary Music - On The Edge Between Sound Materiality And Signification”. In: Revista Transcultural de Música / Transcultural Music Review, (artigo 9). Disponível em http://www.sibetrans.com/trans/trans9/zanpronha.htm>. [consultado em 19 de Junho de 2011]

Anais do XXI Congresso da ANPPOM 2011

240

Lihat lebih banyak...

Comentarios

Copyright © 2017 DATOSPDF Inc.