Patrimônio (de Lucas Mayor, direção Mário Bortolotto)

August 21, 2017 | Autor: Rodrigo Contrera | Categoría: Theatre Studies, Theatre, Movies, Realism, Teatro
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Descripción

As bases em ruínas de um Patrimônio (peça de Lucas Mayor) que remete a enxofre
Quando a gente se propõe comentar uma peça ou uma encenação baseada em peça que têm como base um movimento artístico determinado, seja ele qual for, mete-se, sem o saber, ou às vezes sabendo, numa espécie de cabo de guerra em que se torna obrigatório (e opressivo) identificar as fontes específicas de inspiração do dramaturgo ou do diretor dessa peça ou encenação sob risco de ser rotulado de incompetente.
Ou seja, ou se acerta ou se acerta. Não tem escapatória. Nem adianta vir com belas sacadas, ou coisa que o valha. O negócio é decifrar a esfinge.
Não gosto desse tipo de trabalho. Pois não é porque conheço menos sobre este ou aquele movimento, ou porque bebo também de outras fontes, de outros movimentos, que necessariamente sou incapaz de sacar as principais questões artísticas envolvidas ou de perceber limitações deste ou daquele texto e incômodos (interessantes) nesta ou naquela encenação.
Não quero me sentir oprimido por um saber que, para mim, não precisa ser o único. Não quero me sentir conversando com um catalogador maluco que não vê como me desqualificar enquanto artista só por não lembrar direito a letra de algum hit imperdível dos amigos. Como artista e enquanto ser pensante sou livre para fazer e pensar o que eu quiser.
Antes de frequentar o Cemitério de Automóveis, do Mário Bortolotto, eu sequer sabia da existência do diretor John Cassavettes. Vi um ou dois filmes do sujeito no teatro, uma ou outra vez sozinho mesmo, e na hora saquei uma ponte entre o que via no palco, nas peças do grupo, e um certo universo que me agradava há muitos anos, sem o saber nem perceber as origens.
Pois eu já lia, sem o saber, sujeitos da trupe "ideológica" do Cemitério, além do que tinha também em mim uma cultura determinada que direcionava meu foco naquela direção. Seja como for, contudo, eu já tinha certa história pessoal – e ela vinha de outras paragens, as quais eu pesquisava há anos. A América Latina indígena. O arbítrio da política. Os tanques e metralhadoras da força bruta. O jornalismo entrincheirado. A filosofia política reacionária. Beckett. Brecht. Grotowski.
Pois então. Só hoje começo a entender algo do universo cassavettiano, a maior inspiração por detrás de Patrimônio, peça em cinco cenas de Lucas Mayor, dramaturgo da Cia. La Plongée e sócio do Marião. Maior inspiração, claro, em termos, porque depois do norte-americano – e mesmo antes – ocorrera tanto de relevante para os sócios que seria hoje no mínimo simplificador jogar tudo nas costas de um ou outro sujeito-artista, seja ele qual for.
O próprio Lucas se encarrega de complicar o panorama, quase toda semana, em seus pequenos artigos jogados no facebook a respeito de suas influências enquanto criador. E qual não é o pasmo que acabo experimentando ao perceber que vários dos luminares dele e do Marião são os mesmos meus há décadas... Mas nem todos. Eu bebo menos. Ou quem sabe aguente menos.
Patrimônio consta de 5 histórias. Assisti a peça uma vez apenas. Há uma peça com a Gabriella Fontanell e o Maurício Bittencourt em que não conseguimos deixar de ver em cena uma terceira figura – que percebemos mais morta do que viva, embora mais viva do que aqueles mortos que andam – e se relacionam.
Há uma cena com o Pablo Perosa e o Nelson Peres em que o incômodo do caráter patético do cowboy de mentira só deixa a dever ao constrangimento pungente (superado numa mostra de crueldade esclarecedora) em quem tem que matar por fora para ainda conseguir viver por dentro. Violência também me lembro haver numa outra cena com o Francisco Eldo Mendes e o mesmo Pablo, que aprontam a cama para um crime bem à la mafiosos de filmes noir norte-americanos.
Pouco mais chocante apenas do que sentir o destino que um casal tolo (Maurício Bittencourt e Antoniela Canto) finge estabelecer para a filha (Gabriella Fontanell) que, se consegue se sentir entre uma cruz e uma espada, não tem a menor ideia quanto a quê isso pode lhe demandar em seus anseios por liberdade.
E há por fim uma cena típica de casal (Antoniela e Eldo), em que os interditos parecem como sempre funcionar mais do que as vontades e desejos mais recônditos de figuras que estão juntas mais como peças de Lego do que como seres livres e independentes. A ordem das cenas até hoje me aparece confusa. A energia, díspar e descontínua.
Os frequentadores mais contumazes do Teatro Cemitério devem imaginar o grau de familiaridade que acabei assumindo com as peças do Lucas – em uma das quais estreei como ator profissional, convidado pelo Marião.
Mas há também toda uma estranheza que ainda sinto quando tento reparar no conteúdo das armários presentes e escancarados em cada um dos personagens, por mais patéticos que eles sejam. Pois nas peças do Lucas o que é patético parece descansar mais fora do que no interior do drama.
Como se o que existisse fosse mais uma estrutura patética, um Lévi-Strauss dos palcos, subjacente aos passos dos homens e mulheres envolvidos, e não uma liberdade toda que se esgarça com as decisões internas aparentemente livres de quem quer mais é cair fora – por saber muito bem a que ponto vai levar o drama nessa tristeza toda, acachapante e normalmente menosprezada por quem diz que ama – e muitas vezes ama mesmo!
Curioso, porém, é que em duas das cinco cenas o desfecho se dê pela via do confronto levado às últimas consequências. Pois isso não ocorrera antes – se não me engano. Pois, antes, fazer algo assim pareceria, para mim, quase romper com um código subentendido de elegância noir.
Como se antes o conflito tivesse necessariamente de conduzir a uma perda existencial – e agora levasse a um efetivo acerto de contas carnal, corpo mesmo, morte com sangue, suor e lágrimas. Em ambas as cenas de desfecho violento, o embate termina num momento fotográfico – sendo que as remissões, se não são clássicas, parecem-no a tal ponto que clássicas imediatamente se tornam.
A chave de braço entre parentes e o homem ajoelhado à espera do tiro de misericórdia são clichês que nascem prontos e acabados. Comparativamente, então, os outros desfechos parecem contrapontos de "vida como ela é" de gente que não consegue abandonar a mediocridade de seus destinos fadados a decepções e constrangimentos. Como se houvesse, presente, ainda alguma vergonha em cena – vergonha essa virtualmente nexistente em quem prefere quebrar pescoços ou apertar gatilhos.
Para o Lucas, que não faz questão de esconder, teatro bom é teatro-cinema, como se fosse filmado. Pois são daí suas principais referências. Como no Marião, que se adequa no mundo por meio de uma grande tela virtual com a qual monta seu mundo e dá sua versão dos fatos. O Marião é um cineasta de atores vivos cometendo filmes diferentes a cada noite, a cada momento, sujeito às incertezas de cada combinação de atuação, luz e som. Os enredos do Lucas são, nesse aspecto, perfeitos para seus fins – digo, os fins do Marião.
Textos sob medida, densos mas nada chatos como se deve, que permitem viajar em marcações e liberdade para atores que querem experimentar – pero no tanto. Há limites intrínsecos, claro, nesse tipo de teatro, aqui e acolá, e ninguém finge não ver. Nada melhor para chegar na avenida do que a estreiteza de uma rua mal iluminada.
Já na avenida, as pessoas se perdem e entram nos ônibus. Preferível assim reparar naquilo que acontece até chegar lá. Onde o ser humano pode (ainda) ser livre ou experimentar algo de loucura. Antes de definitivamente pirar. Pois o verdadeiro absurdo, para o Marião e para o Lucas, é claramente determinado pelos fatores que todo e qualquer um pode facilmente ver. Não existe absurdo fora do que vemos.
O que vemos é o que vemos. E de tão claro é tão absurdo quanto a leitura mais absurda do mundo que ninguém consegue viver fora de si.

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