PALESTINA: ESTADO NACIONAL

July 5, 2017 | Autor: Pedro Sloboda | Categoría: International Relations, International Law, Direito Internacional
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Descripción

Palestina: Estado nacional Palestine: national state Pedro Muniz Pinto Sloboda1

Resumo

O Estado da Palestina foi proclamado em Argel, em 1988. Durante muito tempo, no entanto, sua condição jurídica foi controversa. A entidade política que representava os palestinos, a Organização para Libertação da Palestina, tinha sua personalidade jurídica internacional reconhecida, enquanto movimento de libertação nacional, mas não era claro, para muitos autores, se a Palestina reunia todos os elementos constitutivos de Estado. Em particular, sua dimensão territorial e a efetividade de seu governo foram postos à prova. Ainda atualmente, é comum o discurso de que a Palestina seria somente um pretenso Estado, o que, de certa forma, corrobora um histórico discurso de negação da realidade palestina. O objetivo do presente estudo é analisar se, juridicamente, a Palestina pode ser considerada um Estado. Para tanto, analisam-se os elementos constitutivos de Estado, relacionando-os com a realidade palestina. Em seguida, recorrese à prática dos Estados e das organizações internacionais, a fim de reunir conjunto probatório suficiente em termos de reconhecimento. Verifica-se, nesse sentido, que a Palestina possui núcleo consistente de território, população permanente, governo e independência jurídica, o que a caracterizam como Estado. Com efeito, 138 países reconhecem que a Palestina congrega esses elementos e consiste, de fato, em um Estado. Esse entendimento é corroborado pela Organização das Nações Unidas, que, desde 2012, a qualifica como uma entidade estatal. O elevado número de reconhecimentos internacionais da Palestina é usado como prova de que, realmente, a entidade política reúne os elementos constitutivos necessários. Em termos de capacidades jurídicas, há o reforço dessa afirmação: a Palestina possui todas as capacidades jurídicas inerentes aos Estados nacionais, entre as quais as capacidades para 1

Professor de Direito Internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Instituto de Desenvolvimento e Estudos de Governo (IDEG). Especialista em Direito Internacional pelo Centro de Direito Internacional (CEDIN). Mestrando em Direito Internacional pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Bacharel em Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

celebrar tratados de modo independente, gozar de imunidades soberanas, enviar e receber representantes diplomáticos, responsabilizar e ser responsabilizada por outros sujeitos de Direitos Internacional e participar de organizações internacionais. O Estado é uma realidade de fato, e a comunidade internacional reconhece a existência de um Estado Palestino. Palavras-chave: Palestina; território; Estado; reconhecimento

Abstract

The State of Palestine was proclaimed in Algiers in 1988. For a long time, however, its legal status was controversial. The political representative of the Palestinians, the Organisation for the Liberation of Palestine, had its international legal personality recognised as a movement of national liberation, but it was not clear to many authors if Palestine gathered all qualifications for statehood. In particular, their territorial dimension and the effectiveness of his government were put in check. Currently, there is still a common discourse on a would-be Palestinian State. This rhetoric someway supports a historical denial of the Palestinian reality. The aim of this study is to examine whether, legally, Palestine can be considered a state. Therefore, the criteria for statehood are examined, taking into consideration the Palestinian reality. Furthermore, States and international organizations practice are analised, in order to gather enough evidence in terms of recognition. In this connection, it is verified that Palestine possesses a consistent band of territory, permanent population, government and legal independence, which characterise it as a state. In fact, 138 countries recognise that Palestine brings together these elements and is indeed a state. This approach is supported by the United Nations, which, since 2012, qualifies it as a state entity. The high number of Palestinian international recognition is used as proof that, indeed, the political entity brings together the necessary constituent elements of a state. In terms of legal capacity, this statement is reinforced: Palestine has all legal capacities inherent to national states, including the capacity to enter into treaties independently, enjoy sovereign immunity, send and receive diplomatic representatives, and to be accountable for violations of international law, as well as to bring other subjects of international law

into justice; moreover, it has the capacity to participate in international organisations. The state is a matter of fact, and the international community recognizes the existence of a Palestinian state. Keywords: Palestine; territory; state; recognition.

1. Introdução

“Devemos compreender a luta entre palestinos e sionistas como uma luta entre uma presença e uma interpretação, em que a primeira parece ser constantemente subjugada e erradicada pela segunda”. As palavras de Edward Said (2012, p. 10), investidas de importância histórica, ainda ressoam atuais quando se observam discursos de negação do Estado Palestino. No limiar do século XX, o lema sionista criado por Israel Zangwill para a Palestina era o de que era preciso destinar uma “terra sem povo para um povo sem terra”. Acontece que, apesar do discurso, havia um povo naquela terra. Uma interpretação tentava ignorar uma existência. De acordo com Hanna Arendt, “a solução da questão judaica apenas gerou uma nova categoria de refugiados, os árabes, elevando desse modo o número de sem pátria para mais 700 mil a 800 mil pessoas” (ARENDT, 2014, p. 290). Atualmente, um discurso pretende negar a existência de um Estado nacional na Palestina. A realidade, contudo, insiste em contradizer essa interpretação: a Palestina mantém relações diplomáticas com 135 Estados, é membro pleno de diversas organizações internacionais, como a UNESCO e a Liga Árabe, e é parte em diversos tratados internacionais, como o Estatuto de Roma e as convenções de Genebra de 1949. Isso significa que a organização política da Palestina detém algumas capacidades jurídicas internacionais: ela goza do direito de legação, do direito de convenção, da capacidade necessária para participar de organizações internacionais, para gozar de imunidades soberanas de Estado no interior de outros países, para responsabilizar outros sujeitos de Direito Internacional e para ser, igualmente, responsabilizada.

Os fatos parecem apontar para uma existência; não apenas de um movimento de libertação nacional, mas de um Estado nacional, ainda que essa presença contrarie um dado discurso. O objetivo do presente estudo é analisar se a Palestina é um Estado para fins de Direito Internacional. Para tanto, procurar-se-á verificar se a organização política que representa os palestinos congrega os elementos constitutivos de Estado. Em seguida, verificar-se-á o grau de aceitação da comunidade internacional desses elementos constitutivos, por meio do reconhecimento de Estados e da participação da Palestina na Organização das Nações Unidas.

2. Elementos constitutivos de estado

Estados são entidades soberanas que governam determinada população em determinado território. De acordo com o artigo 1 da Convenção de Montevidéu sobre direitos e deveres dos Estados, de 1933, que reflete o costume internacional geral, os elementos constitutivos dos Estados são: população permanente; território determinado; governo; e capacidade de entrar em relação com outros Estados. Esses requisitos são não apenas necessários, mas são também suficientes para que uma entidade política possa ser caracterizada como um Estado. No que concerne à Palestina, é necessário verificar a existência de cada um desses elementos, a fim de atingir os objetivos do presente estudo.

2.1 Território

A Faixa de Gaza e a Cisjordânia constituem uma unidade territorial, cuja integralidade deve ser preservada. É o que determina o artigo 11 do Acordo de Taba, de 1995, assinado pelo governo de Israel e pela Organização para Libertação da Palestina.

O território do Estado da Palestina internacionalmente reconhecido compreende essas duas faixas territoriais, que somam 6.20 quilômetros quadrados2. O fato de não ser muito extenso não inviabiliza o Estado Palestino. O Direito Internacional não exige uma área mínima para que uma entidade possa caracterizar-se como Estado. Mônaco, por exemplo, tem um território de menos de 2 quilômetros quadrados e é considerado um Estado (MAZZUOLI, p. 467). Boa parte do território da Palestina é ocupada por Israel desde a Guerra dos Seis Dias de 1967. O fato de esse território estar, em boa medida, ocupado por potência estrangeira, não significa, no entanto, que ele não existe. Esse território, que obviamente existe, não pode ser considerado israelense, porque o Direito Internacional proíbe, expressamente, ao menos desde 1945, a aquisição de território pela força. Com efeito, o art. 2(4) da Carta da ONU, que proíbe a guerra de agressão, é considerado, pela Corte Internacional de Justiça, a “pedra angular” de toda a Carta da ONU3. A proibição da conquista de território pela força constitui norma de jus cogens, imperativa de Direito Internacional Geral, aceita pela comunidade internacional como um todo. Dessa forma, sua violação acarreta responsabilidade agravada para o Estado infrator. De acordo com o direito costumeiro, consolidado no projeto de artigos sobre responsabilidade internacional dos Estados, de 2001, a responsabilidade agravada gera para todos os demais Estados da sociedade internacional o dever de não reconhecer como lícita uma situação de fato decorrente de uma violação de norma de jus cogens4, como já havia afirmado a Corte Interacional de Justiça no caso Namíbia5. Dessa forma, o Conselho de Segurança determinou, na resolução 242 de 1967, que Israel deve retirarse do território Palestino ocupado. 2

Disponível em http://www.cartercenter.org/countries/israel_and_the_palestinian_territories.html. Acesso em 20 de junho de 2015. 3 INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE. Case concerning Armed Activities on the Territory of the Congo (Democratic Republic of the Congo v. Uganda). ICJ Reports. Haia: 2005. 4 Projeto de artigos sobre responsabilidade internacional dos Estados, de 2001, elaborado pela Comissão de Direito Internacional, Cap. III “VIOLAÇÕES GRAVES DE OBRIGAÇÕES DECORRENTES DE NORMAS IMPERATIVAS DE DIREITO INTERNACIONAL GERAL Art. 40. Aplicação deste Capítulo 1. Este Capítulo se aplica à responsabilidade que é acarretada por uma violação grave por um Estado de uma obrigação decorrente de uma norma imperativa de Direito Internacional geral. 2. Uma violação de tal obrigação é grave se envolve o descumprimento flagrante ou sistemático da obrigação pelo Estado responsável. Art. 41. Consequências particulares da violação grave de uma obrigação consoante este Capítulo 1. Os Estados deverão cooperar para pôr fim, por meios legais, a toda violação grave no sentido atribuído no artigo 40. 2. Nenhum Estado reconhecerá como lícita uma situação criada por uma violação grave no sentido atribuído no artigo 40 nem prestará auxílio ou assistência para manutenção daquela situação.” Sem grifo no original. 5 CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Namibia Case. ICJ Reports. Haia: 1971.

A Corte Internacional de Justiça considera, igualmente, que a Cisjordânia é território palestino. Nas palavras do tribunal da Haia: “de acordo com o Direito Internacional Costumeiro, trata-se, portanto, de território ocupado, no qual Israel caracteriza-se como potência ocupante6”. Dessa forma, a Organização das Nações Unidas reconhece que o território não é israelense, sendo Israel simples potência ocupante7. Tampouco é jordaniano o território; a Jordânia anunciou o fim de todos os vínculos legais e administrativos com o território em 1988 (BOYLE, 1990, p. 301). O território existe e é palestino. O território da Palestina não é contíguo e não tem limites bem definidos. Isso não constitui empecilho, no entanto, para a consolidação de um Estado. O Direito Internacional não exige contiguidade territorial para verificação desse elemento constitutivo. Estados como o Brasil, os Estados Unidos e a França não têm territórios contíguos, em função das ilhas que fazem parte de seus territórios. Da mesma forma, não são necessários limites definidos para uma entidade política possa ser considerada um Estado. Países como Reino Unido, China, Portugal e Espanha mantêm ainda hoje controvérsias territoriais, sem que deixem de ser classificados como Estados. Basta que haja um núcleo consistente de território para que esse elemento constitutivo esteja presente. Essa foi a tese consolidada nas Nações Unidas quando do ingresso de Israel na organização. À época, o Estado não tinha nenhum limite definido; tinha, contudo, um núcleo consistente de território e pôde ser admitido na organização. O fato de o território palestino estar parcialmente sob ocupação estrangeira não descaracteriza o território, nem, por conseguinte, o Estado. Países como a Bélgica ou a França não deixaram de existir durante a Segunda Guerra Mundial, quando seus territórios estiveram total ou parcialmente sob ocupação alemã. Uma ocupação estrangeira ilegítima não tem o condão de fazer desaparecer o território de um Estado.

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CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Parecer consultivo sobre as consequências jurídicas da construção de um muro por Israel em território palestino ocupado. ICJ Reports: Haia, 2004. Parágrafo 78. Tradução do autor. 7 Diante de uma política israelense de tentar consumar um fato ilícito, por meio da construção de um muro na Palestina, a Corte Internacional de Justiça afirmou, no Parecer Consultivo sobre as Consequências Jurídicas da Construção de um Muro por Israel em Território Palestino ocupado, que não apenas Israel é obrigado a demolir o muro, mas também a comunidade internacional como um todo é obrigada a não reconhecer como lícita essa situação de fato. Trata-se do cumprimento do princípio ex injuria jus non oritur, segundo o qual uma violação grave do Direito Internacional não pode gerar direitos ao violador.

Quando muito, faz desaparecer outro elemento constitutivo de Estado: o governo efetivo.

2.2 Governo

Apesar de a Convenção de Montevidéu não qualificar o governo como elemento constitutivo de Estado, é pacífico, atualmente, que esse governo deve efetivamente controlar o território estatal. Quando o Estado da Palestina foi proclamado pela Organização para a Libertação da Palestina, em 1988, em Argel, muitos afirmavam que a entidade já reunia todos os elementos constitutivos de Estado, incluindo o governo8. A efetividade dessa administração era, contudo, controversa, já que o território da Palestina encontrava-se largamente ocupado por Israel, o que levou James Crawford a afirmar, em 1990, que, dificilmente, a Palestina poderia ser considerada um Estado9. A realidade atual da Palestina é, contudo, bem diferente da de sua proclamação de independência. Ao longo dos intermitentes processos de paz, com destaque para os Acordos de Oslo I (1993) e II (1995), o governo de Israel passou a transferir, gradualmente, o controle do território para a Autoridade Nacional Palestina. Desde então, algumas das principais cidades da Cisjordânia, como Ramallah, Nablus e Jerichó foram transferidas para a administração palestina. Pelos Acordos de Wye Plantation, de 1998, Israel se retirou de 11% do território da Cisjordânia. Além disso, em 2005, Israel retirou-se da Faixa de Gaza, cedendo espaço para o governo palestino. Atualmente, a Autoridade Nacional Palestina controla cerca de um quarto do território da Palestina10. O governo não é completamente efetivo, mas, nesse particular, verifica-se que o governo é o único dos elementos constitutivos de Estado que pode ser relativizado, vale dizer, que pode estar parcial ou temporariamente ausente, sem que a 8

“Generally put, however, there are four elements constituent of a state: territory, population, government and the capacity to enter into relations with other slates. As I argued in my position paper, all four characteristics have been satisfied by the newly proclaimed independent state of Palestine” (BOYLE, 1990, p. 302). 9 “It is difficult to see how Palestine could constitute a state. Its whole territory is occupied by Israel, which functions as a government in the territory. The Palestine Liberation Organization has never functioned as a government in respect of the occupied territories” (CRAWFORD, 1990). 10 “Aujourd‟hui, l‟Autorité Palestinienne ne contrôle, plus ou moins effectivement, que 17,2 % de la Cisjordanie, en plus des 23,8 % sous contrôle partiel” (AL SMADI, 2012).

entidade deixe de se caracterizar como um Estado. É por isso que é possível afirmar que a Somália, o Iraque, a Síria e o Iêmen, por exemplo, são Estados no século XXI. Igualmente, é essa possibilidade de relativização do elemento governo que fez com que a França ou a Bélgica não deixassem de ser Estados durante a ocupação nazista, ou os Estados Unidos durante sua guerra civil ou mesmo o Brasil durante a guerra intestina de 1932. O governo da Palestina controla boa parte da Cisjordânia e a totalidade da Faixa de Gaza. Exercendo controle efetivo sobre um núcleo consistente de território, o elemento constitutivo governo encontra-se presente no Estado da Palestina, como comprova o mapa abaixo, que demonstra as regiões da Cisjordânia nas quais o governo palestino é efetivo:

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2.3 População permanente Apesar da retórica sionista dos séculos XIX e XX, que buscava negar a existência dos palestinos12, fato é que eles estavam na Palestina em 1948 e, no século

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Figura 01. Regiões da Cisjordânia controladas pelos Palestinos. Disponível em http://www.bbc.com/portuguese/especial/2001/meast_maps/8.shtml. Acesso em 20 de julho de 2015.

XXI, estão nos territórios ocupados por Israel desde 1967 e nos territórios gradativamente liberados em decorrência dos intermitentes processos de paz. Não houve excepcionalidade na criação do Estado de Israel. Os sionistas do século XIX eram, majoritariamente, europeus e incorporavam o pensamento de sua época. A conquista da Palestina para os judeus teve por base o mesmo pensamento que legitimava o imperialismo europeu na África e na Ásia. O cientificismo darwiniano do período era usado como meio de racionalizar o racismo. A concepção de que havia formas superiores e inferiores de raça, de sociedade e de civilização legitimava o domínio destas por aquelas. O sionismo foi criado em um século em que era legítimo exterminar os bárbaros nativos de uma região para levar o progresso e a civilização aos povos atrasados. Era o século dos Estados Unidos de Andrew Jackson, que exterminava os aborígenes do oeste; era o século da Argentina do general Rocca, e sua “conquista do deserto”; era o século do Congo do rei Leopoldo da Bélgica. As regiões do planeta habitadas por seres humanos considerados inferiores podiam e deviam ser conquistadas pelos “povos civilizados”, em benefício da ciência e do progresso: esse era o “fardo do homem branco”. Como no sertão de Canudos, descrito por Euclides da Cunha, os bárbaros nativos recebiam a luz da civilização por meio do clarão de disparos. Essas regiões, ainda que habitadas por seres humanos, eram considerados “vazios territoriais”. Foi nessa quadra histórica que surgiu o sionismo, reivindicando uma “terra sem povo para um povo sem terra”, a fim de fazer “florescer o deserto”. Durante certo tempo, tentou-se negar a existência de um povo palestino. Ocorre que o elemento constitutivo de um Estado é a população, não é o povo (CRAVEN, 2010, p. 222; CRAWFORD, 2011, p. 112; MAZZUOLI, 2013, p. 462). A população é uma expressão demográfica, composta pelos nacionais e pelos estrangeiros que habitam o território do Estado. O povo, entendido como o conjunto de indivíduos ligados ao Estado pelo vínculo político-jurídico da nacionalidade, não pode ser concebido como o elemento constitutivo do Estado, porque, afinal, é o Estado que confere nacionalidade aos indivíduos, de acordo com os critérios estabelecidos por seu ordenamento jurídico interno. O Estado é anterior aos seus nacionais. 12

“Em 1969, Golda Meir disse que não existiam palestinos (...); Ytzhak Rabin sempre se referia a eles como os „chamados‟ palestinos (...); Menachem Begin referia-se a eles como árabes da Terra de Israel” (SAID, 2012).

O elemento constitutivo do Estado nacional tampouco pode ser entendido como a nação, uma sociedade natural de homens, com unidade de origem, de costumes e de língua, como queria Mancini no século XIX13. Os critérios invocados por alguns teóricos como supostos fundamentos das nações, como a língua, a religião e os costumes, são frágeis e não resistem a análise mais acurada. Não é a nação que faz o Estado, mas o Estado que faz a nação14. “A nação moderna é uma comunidade imaginada” (HOBSBAWN, 2011). De acordo com Norberto Bobbio: “a Nação não passa de uma entidade ideológica, isto é, do reflexo na mente dos indivíduos de uma situação de poder (...) por faltar qualquer elemento concreto que individualize as nações, inexistem critérios, na ausência de um sentimento consciente de fidelidade, que permitam confirmar a existência de uma hipotética Nação em potencial (...) a Nação é a ideologia de um determinado tipo de Estado” (BOBBIO, 1998).

Para os fins do presente estudo, não é necessário verificar a existência de um povo ou de uma nação palestina, que claramente existe. Basta a presença de uma população permanente em território palestino para que haja esse elemento constitutivo de Estado. Nesse contexto, a existência dos palestinos enquanto realidade demográfica é evidente. De acordo com as Nações Unidas, a população palestina estimada em 2012 era de 4 milhões e 219 mil pessoas15. A presença física dos palestinos nos territórios de 1967 é um dado factual. Essa presença demográfica é um fato irrefragável. Possui a Palestina uma população permanente.

2.4 Capacidade de se relacionar com outros estados

De acordo com a Convenção de Montevidéu sobre Direitos e Deveres dos Estados, o último requisito para que uma entidade política possa ser caracterizada como um Estado é a capacidade de se relacionar com outros Estados. Não se trata, no entanto,

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Alguns autores usam o vocábulo “povo” como sinônimo de “nação”. Ainda que possa haver exceções históricas, como Israel, curioso caso de Estado “do povo judeu”, não de seus cidadãos. 15 United Nations Statistic Division. World Statistics Pocketbook. Disponível em https://data.un.org/CountryProfile.aspx?crName=State%20of%20Palestine. Acesso em 05 de julho de 2015. 14

de qualquer relação internacional, mas de uma relação soberana. Em outras palavras, a entidade deve possuir soberania ou independência jurídica. Nesse contexto, deve-se verificar se a Palestina é juridicamente independente de Israel. Politica e economicamente, parece haver algum grau de subordinação, mas isso não é relevante para fins de se constatar a existência de um sujeito estatal de Direito Internacional. A independência que se deve constatar é a independência jurídica. A Palestina é parte em tratados internacionais, muitas vezes à revelia de Israel. É o caso emblemático do ingresso do Estado da Palestina como membro do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, do qual apenas Estados podem ser partes16. Além disso, o país é reconhecido por 138 Estados17 e mantém relações diplomáticas com 135, muitas vezes sob os protestos de Israel. Nesse sentido, verifica-se que, da perspectiva jurídica, não existe dependência da Palestina com relação a nenhum outro Estado. A Palestina atua internacionalmente de modo soberano e desimpedido, não se podendo deixar de considerá-la um Estado nacional.

3. Reconhecimento internacional

A doutrina predominante no Direito Internacional contemporâneo no que concerne ao reconhecimento de Estado por um semelhante é a de que esse reconhecimento possui natureza meramente declaratória. De acordo com a Convenção de Montevidéu sobre direitos e deveres dos Estados, de 1933, “a existência política do Estado é independente do seu reconhecimento pelos demais Estados” (artigo 3). Em outras palavras, a presença de um Estado em determinado território sobrepõe-se a 16

A Palestina é parte de 30 tratados internacionais, incluindo o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, de 1966, a Convenção contra todas as formas de discriminação contra a mulher, a Convenção sobre os Direitos Políticos da Mulher, a Convenção para a eliminação de todas as formas de discriminação racial; a Convenção para a supressão e a punição do crime de apartheid; as quatro convenções de Genebra de 1949, a Convenção de Viena sobre Relações diplomáticas, de 1961, a Convenção de Viena sobre relações consulares, de 1963, a Convenção de Viena sobre direito dos tratados, de 1969, e o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, de 1998, o Tratado de NãoProliferação Nuclear e a Convenção de Montego Bay sobre Direito do Mar, de 1982. 17 Em 2012, a Assembleia Geral da ONU aprovou a resolução 67/19, na qual atribuiu à Palestina o status de Estado observador não membro da organização. 138 Estados votaram a favor da resolução, o que pode ser entendido como um reconhecimento tácito de Estado por parte daqueles que ainda não o haviam feito.

quaisquer interpretações que possam ser exaradas sobre essa forma de organização política. O Estado é uma realidade objetiva. Sua existência independe de critérios subjetivos que venham a embasar eventuais reconhecimentos por parte de outros Estados. Uma vez reunidos os elementos constitutivos de Estado, a entidade política é um Estado, independentemente da retórica de seus pares. Em alguns casos, no entanto, a existência dos elementos constitutivos de Estado não é clara. No caso da Palestina, por exemplo, há quem afirme que a entidade não possua território, de modo que não poderia ela ser considerada um Estado (SHAW, 2008). Nesses casos controversos, o reconhecimento internacional da entidade que se pretende um Estado nacional torna-se crucial. Reconhecimento por parte de vasto número de Estados atua como prova de que, de fato, a entidade reúne os elementos necessários para ser chamada de Estado. No caso da Palestina, a maior parte dos Estados da sociedade internacional entende que ela constitui um Estado nacional. O Estado da Palestina tem relações diplomáticas com 135 Estados18, que o reconhecem, incluindo a maior parte da América Latina, da África, da Ásia, da Oceania e do G-77. Além disso, a Palestina é membro de diversas organizações internacionais destinadas exclusivamente a Estados, como a Liga Árabe e a UNESCO. É parte, ainda, do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, dotado de personalidade jurídica internacional, do qual apenas Estados podem ser parte.

4. O Estado da Palestina na ONU

É amplamente reconhecido, em Direito Internacional, que o “a admissão nas Nações Unidas constitui poderosa evidência de que a instituição é um Estado” (SHAW, 2008, p. 460). Em 2011, a Palestina solicitou ingresso nas Nações Unidas. As condições para ingresso na organização estão previstas no art. 4 da Carta de São Francisco. Segundo a 18

A lista completa pode ser conferida em http://palestineun.org/about-palestine/diplomatic-relations/.

Corte Internacional de Justiça, esses requisitos são taxativos, e compreendem: (i) a condição de Estado; (ii) amante da paz; (iii) que aceite as obrigações previstas na Carta da ONU; (iv) e que esteja apto e; (v) disposto a cumpri-las. Sabe-se que o pedido de admissão deve ser aprovado pela Assembleia Geral das Nações Unidas, mediante recomendação do Conselho de Segurança, e que o pedido da Palestina não teve seguimento por questões políticas, não jurídicas. Os Estados Unidos, tradicionais aliados de Israel, vetariam o pedido no Conselho de Segurança. Em 2012, como uma via alternativa, a Palestina pediu para que fosse reconhecida como Estado pela Assembleia Geral da ONU, o que foi feito por meio da RES. 67/19. O quórum de aprovação do texto deixou clara a posição da sociedade internacional: 138 votos a favor e apenas 8 contra. Os poucos Estados que votaram contra a resolução se limitam a Israel, seu tradicional aliado, os Estados Unidos, e países influenciados pelo poder brando estadunidense, como Palau e Ilhas Marshall. Verificar que os votos contrários foram pautados por interesses políticos muito específicos, permite afirmar que o entendimento virtualmente consensual da sociedade de Estados é o de que a Palestina reúne todos os elementos constitutivos de Estado. Em 2009, a Palestina havia emitido uma declaração, reconhecendo a jurisdição do Tribunal Penal Internacional para os crimes cometidos em seu território. Sabe-se, no entanto, que apenas Estados podem ser realizar essa declaração. À época, um grupo particularmente notável de juristas internacionalistas assinou um parecer, recomendando ao Tribunal que reconhece a Palestina como um Estado para os fins do Estatuto de Roma. No entanto, o procurador do TPI entendeu que não cabia a ele definir o status político da Palestina, e que só reconsideraria a declaração depois que a Assembleia Geral da ONU se manifestasse. Em 2015, consagrado seu status de Estado na Organização das Nações Unidas, a Palestina ingressou no Estatuto de Roma, o que pode ser feito apenas por Estados. Esse ingresso não apenas simboliza mais um reconhecimento de que a entidade reúne os elementos constitutivos de Estado, mas reforça a capacidade da Palestina para responsabilizar e para ser responsabilizada por ilícitos internacionais.

Os Estados são sujeitos plenos de Direito Internacional. Diferentemente das demais pessoas jurídicas internacionais, os Estados têm todas as capacidades jurídicas internacionais. As principais delas consistem em: direito de legação, direito de convenção, capacidade para participar de organizações internacionais, capacidade para responsabilizar e para ser responsabilizado internacionalmente. Como visto, a Palestina possui todas as capacidades citadas, o que parece ser mais um indicativo de que, de fato, ela é um Estado. Não há nenhuma capacidade jurídica internacional inerente aos Estados nacionais que a Palestina não detenha. Não é possível afirmar que ela é um sujeito limitado de Direito Internacional, como são, por exemplo, os movimentos de libertação nacional. Não havendo nenhum ouro sujeito com tantas capacidades quanto o Estado, pode-se concluir, apenas, que a Palestina enquadra-se na categoria de Estado nacional. A consolidação da prova cabal da existência do Estado Palestino, com seu ingresso como Estado-membro da ONU, foi impedida por um ponto específico da política externa de um único Estado. Dessa forma, juridicamente, a força probatória da aceitação do Estado da Palestina pela Assembleia Geral da ONU é análoga à que teria uma admissão formal como membro. Para a Organização das Nações Unidas e para a comunidade internacional como um todo, a Palestina é um Estado.

5. Conclusão

O Estado é uma realidade de fato. Presentes os quatro elementos constitutivos de Estado, a entidade política é um Estado, independentemente da retórica adotada pela engenharia de produção de consensos19. A Palestina reúne todos os elementos constitutivos de Estado: possui território, governo, população e independência jurídica. Caso houvesse dúvida quanto à personalidade jurídica estatal da Palestina, bastaria analisar os elementos de prova, recorrendo-se, nesse caso, ao vasto número de

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“Liberal democratic theorists have long observed that in a society where the voice of the people is heard, elite groups must ensure that that voice says the right things. The less the state is able to employ violence in defense of the interests of elite groups that effectively dominate it, the more it becomes necessary to devise techniques of „manufacture of consent’” (CHOMSKY, 1990, p.22).

reconhecimentos estendidos ao Estado da Palestina, por parte de Estados e de organizações internacionais. Em alguns casos, a questão palestina continua sendo marcada pelo conflito entre uma existência e uma negação, como afirmava Edward Said. No Direito Internacional do século XXI, no entanto, não há dúvidas: a negação não encontra respaldo na realidade. A Palestina é inelutavelmente, um Estado.

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