\"Ou a revolta ou a obediência estúpida\": Aldísio Filgueiras e a ditadura civil militar em Manaus (1964-1968)

July 24, 2017 | Autor: Vinicius Amaral | Categoría: Amazonia, Ditadura Brasileira
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Como citar esse texto:
AMARAL, Vinicius Alves do. "Ou a revolta ou a obediência estúpida": Aldísio Filgueiras e a ditadura civil-militar em Manaus (1964-1968). In: PIO JÚNIOR, Amaury Oliveira; SILVA FILHO, Eduardo Gomes. (Org.). História da Amazônia em Doze Olhares: Novas Contribuições. 1ª ed.Manaus: Editora Novo Mundo, 2014, v. 1, p. 125-141.

"OU A REVOLTA OU A OBEDIÊNCIA ESTÚPIDA": ALDÍSIO FILGUEIRAS E A DITADURA CIVIL MILITAR EM MANAUS (1964-1968)
Vinicius Alves do Amaral

"Não é possível dizer muita coisa sobre a ditadura civil militar em Manaus por conta da escassez de fontes". Eis aí uma grande falácia, que tem dado o tom das pesquisas sobre a história recente no Amazonas, e que pretendemos contestar aqui através da trajetória de um personagem peculiar: o poeta e jornalista Aldísio Filgueiras.
A partir de seus depoimentos e de sua obra – principalmente seu primeiro livro, Estado de Sítio (1968) – tentaremos entender como a consolidação do regime se articula com a vivência desse homem que fez da luta política fonte de sua criação literária, como veremos adiante. Faz necessário não se esquecer da valiosa contribuição que os jornais podem oferecer á pesquisadores desse delicado momento em Manaus. No nosso caso não poderia deixar de ser diferente.
Seremos auxiliados nessa empreitada pelos conceitos desenvolvidos por Pierre Bourdieu no que se refere á prática artística. Buscando fugir dos habituais esquematismo referentes ao tema, o sociólogo argelino designa como campo um universo relativamente autônomo com relações específicas, mas que disfarçam as relações objetivas (as relações sociais). Estas relações específicas seriam reguladas por disposições construídas historicamente e interiorizadas. Em outras palavras, o habitus seria o código de leis do campo artístico. Esses são os critérios com o qual a produção artística dialoga. Aos artistas caberiam mil estratégias e práticas para legitimar sua obra, ou seja, conquistar uma posição invejável nesse campo, que nem sempre significa ter sucesso financeiro.
A maior parte de nosso trabalho se debruçará em cima de duas entrevistas concedidas pelo poeta entre julho e setembro de 2012 em seu ambiente de trabalho, como parte de um projeto maior sobre a ditadura civil-militar em Manaus. Yara Aun Khoury, que há anos desenvolve projetos de História Oral, defende que a prática do historiador nesse campo deve ser
(...) lembrar sempre que incorporar com legitimidade a fala daqueles que entrevistamos, e considera-las devidamente como atos interpretativos da realidade que estudamos; é lembrar que as entrevistas orais, por sua própria natureza, não se fazem com técnicas e, sim, com relações humanas em que estamos desejosos de conhecer melhor como cada pessoa vive e constrói essa luta ou mesmo se submete.
Tomando as narrativas construídas por este personagem tão emblemático como interpretações faz-se necessário problematizar então seu conteúdo não pela suposta veracidade, mas principalmente pela relação mantida entre experiências e valores na produção do testemunho. Em alguns momentos esta tensão torna-se explícita, como veremos.
Aldísio Filgueiras passa a ser reconhecido na década de 1970 como poeta representativo de toda uma geração de artistas. Para entender como o poeta dos estilhaços da amazonidade, na feliz expressão de Márcio Souza, conseguiu esse contraditório status será preciso voltar aos anos 60, focando nossa análise especialmente entre 1964 e 1968. É nesse ínterim que Filgueiras define sua carreira enquanto artista e enquanto opositor da ditadura.
Nascido em 1947 em Manaus, Aldísio Gomes Filgueiras cresceu no popular bairro da Cachoeirinha e lá vivenciou de perto os difíceis anos que se seguiram á crise da borracha, principal fonte de renda do Amazonas. Por isso seu relato estabelece a todo instante um confronto entre a Manaus dos anos 50 e 60 com a Manaus de hoje, situando aquela como uma cidade limitada, mas ligada por um laço comunitário muito forte.
Um adulto que iria chamar atenção de um garoto, um menor de idade na rua ainda era agradecido pelos pais. Hoje se você fizer isso leva uma porrada do pai do garoto – leva um tiro preferivelmente. Então a cidade, ela funcionava assim como aquela paideia dos gregos, você nascia dentro de uma estrutura social, dentro de um mecanismo de educação, de cultura, de informação que funcionava coletivamente.
Filho de funcionários públicos, Aldísio Filgueiras tinha saído há pouco do prestigioso Colégio Estadual D. Pedro II quando o general Olympio Mourão Filho saiu de Minas Gerais com suas tropas em direção ao Rio de Janeiro para retirar o presidente João Goulart do poder.
Quando se instalou o golpe eu tinha 17 anos de idade, estava entrando na Faculdade de Direito. Eu tava indo pra faculdade de Direito porque meu pai queria que eu fosse doutor de alguma coisa, tinha que ter o diploma de curso universitário. E ele tinha razão, porque eu não tinha o diploma universitário e Manaus não oferecia nada para você. (...) Pô, aí no meio do curso eu descobri que seria um advogado medíocre e eu não batia muito bem com o curso de Direito porque eu não podia ver um professor de Direito Constitucional justificar um golpe de Estado. Porque as Forças Armadas existem pra manter, pra assegurar a vigência a estabilidade e a segurança da Carta Constitucional.
Segundo o mesmo, após abortar o futuro traçado pelo pai teria ficado meio desnorteado, sem saber qual caminho tomar profissionalmente. Mas temos motivos para crer que o Poetinha (como é popularmente chamado) já tinha algo em mente. Quando ainda era aluno do Colégio Estadual publicava seus poemas nas gazetas estudantis e vez ou outra na grande imprensa. Em um poema publicado no suplemento literário d' O Jornal de maio de 1964 assina como membro do Clube Mário de Andrade. Ora, a imprensa estudantil e as agremiações literárias representavam um investimento numa potencial carreira intelectual. Assim fizeram estudantes e professores em novembro de 1954 quando fundaram o Clube da Madrugada. Mal suspeitavam que sua pequena entidade cultural se transformaria em um movimento artístico que inspirado nos ideais modernistas renovou a arte amazonense.
Nesse momento, por inúmeros motivos que não daremos conta no presente estudo, havia uma nítida associação entre cultura e política. Atribuía-se á arte o papel de fomentar uma consciência nacional na população capaz de retirar o país das amarras do subdesenvolvimento. Muitos dos versos enfeixados em Estado de Sítio (escritos entre 1965 e 1967) são devedores dessa arte engajada que teve seu maior exemplo nos projetos organizados pelos Centros Populares de Cultura:

Faço versos como quem
nasce e não gosta
de quadros barrocos

Defenderei a liberdade
do amor nas assembleias
legislativas da arte
do povo da praça

Sou um poeta político:
A geração da morte
não floriu
sobre o meu peito
Contudo, a partir da metade da década de 1960, em grande medida por conta da ascensão do governo autoritário, o modelo cepecista passa a ser criticado pelos próprios artistas devido a ingenuidade e o elitismo de suas propostas. Segundo Heloísa Buarque de Hollanda esta crítica foi gestada em três movimentos: o Cinema Novo, o concretismo e o tropicalismo. Filgueiras reitera em diversas oportunidades durante as entrevistas o peso dos seus amigos em sua formação artística, uma vez que muitos deles pertenciam á uma classe média alta capaz de entrar em contato com o que se produzia nos grandes centros culturais do país e, portanto, deixa-los a par destas discussões. Claro que ele e seus amigos fizeram mais que se informar sobre o que ocorria. Eles também se aventuraram na produção audiovisual, literária e musical e produziram sua própria crítica sobre o que vinha sendo realizado na arte amazonense. O autor de Estado de Sítio já faz questão de indicar logo no prefácio seu posto na história da literatura amazonense:
Quero dar vivas ao Clube da Madrugada que, mesmo sem ser um projeto, mas uma indisposição juvenil em um ambiente de saturação da mesmice, situou, com o atraso do nosso fuso horário, a Academia Amazonense de Letras como um entrave feudal à modernização burocrática e populista que o Amazonas estava sofrendo desde os anos 50.
Mas Estado de Sítio, com todo respeito e falta de humildade, é o fim do artesanato. (...) Estado de Sítio é o nosso primeiro produto industrial (consumo experimental interno), a partir de matéria-prima nossa: experiência humana + linguagem útil + mais técnica moderna de composição e comunicação. A arte não é um veículo de comunicação?
E que posto seria esse senão o de vanguarda. Afinal apresenta-se como dono de uma proposta mais radical que aquela esposada pelos clubistas. Estes estariam voltados ainda para uma discussão temática (como construir uma arte autenticamente amazônica) enquanto Filgueiras chama a atenção para a fecundidade da relação conteúdo/técnica, brincando com a disposição gráfica dos poemas. Abaixo, temos um exemplo disso com um poema que incorpora a ordem das tradicionais mensagens de falecimento dos jornais, mas a subverte no último minuto.
Acontecimento familiar
faleceu hoje
na alegre
tristeza
de seus familiares

mais uma boca
mais uma boca
Mas ser artista num ambiente tão precário quanto a Manaus pós-crise da borracha reservava seus riscos. O principal deles seria a insustentabilidade do ofício, o que requeria que muitos lançassem mão de estratégias para garantir sua subsistência. O magistério, a imprensa e o funcionalismo público representavam os caminhos usuais. Filgueiras decidiu-se pelo segundo.
E eu fui parar numa redação de jornal, porque eu já fazia umas contribuições literárias e tinha contatos também com o pessoal do Clube da Madrugada. Tinha contato com o pessoal do Partido Comunista Brasileiro, com várias tendências de esquerda da Igreja Católica também. Porque Manaus era um ovo! O Serviço Nacional de Informações sabia da gente, mais do que a gente sabia da gente. E todo mundo se conhecia e de repente o nome da gente tava dentro de uma redação de jornal. "Tem o fulano, tem o sicrano".
Num contexto de fraca expansão editorial, os jornais representavam não apenas uma fonte de sustento como o veículo por excelência dos intelectuais brasileiros. Por meio dos suplementos literários divulgavam eventos e obras. O Clube Mário de Andrade, por exemplo, passou a figurar nas colunas do Jornal do Comércio. Claro que seu espaço era muito mais humilde se comparado com aquele reservado ao Clube da Madrugada em O Jornal.
Contudo, trabalhar em jornais também podia ser muito arriscado a partir de 1964. Principalmente porque o novo governador indicado pelo marechal-presidente de plantão não guardava muita simpatia para com a imprensa local. Afinal, aqueles que duvidavam que o historiador Arthur Cezar Ferreira Reis soubesse lidar com as atribulações partidárias que envolviam seu cargo manifestavam suas expectativas nos jornais. Tentando demonstrar que tinha pulso firme, o governador-historiador não hesitou em empastelar alguns jornais como O Trabalhista, de propriedade do ex-governador Plínio Ramos Coelho. Com base em depoimentos de pessoas envolvidas no caso, o jornalista Orlando Farias narra o episódio:
A ideia central do artigo era a parábola de que macaco solto em casa de louça acaba destruindo tudo. A matéria teria irritado profundamente o governador e a reação à sua publicação veio imediatamente. No dia seguinte ao artigo provocador, o jornal foi atacado ferozmente por um grupo de pessoas à paisana que chegou atirando.
Não havia ninguém na redação porque o jornal tinha recebido a informação o atentado por um comissário de polícia amigo – Jorge Cabral dos Anjos. Os jornalistas se retiraram para o restaurante 'A Maranhense', na Eduardo Ribeiro.
Como entender então a presença de Márcio Souza, extremamente simpático ao marxismo ortodoxo, na assessoria do Departamento de Imprensa, Turismo e Propaganda do Amazonas em 1965? Como explicar que um intelectual extremamente simpático ao comunismo pudesse encabeçar uma pasta de um governador biônico da ditadura? Filgueiras, ao tentar defender o amigo, lembra que o governo de Arthur Reis foi bem atípico, uma vez que foi um dos que mais publicou livros e prêmios literários. De fato, o historiador por meio das Edições Governo do Estado, do Prêmio Estelita Tapajós e da fundação da Universidade do Amazonas deu novo alento ao campo cultural naquele momento. Nem de perto suas ações se originaram de um liberalismo ousado em tempos obscurantistas. Renato Ortiz afirma que a normatização do campo artístico correspondia a uma diretriz da nova ordem que pretendia controlar a expansão do mercado cultural no país e com isso frear a hegemonia cultural da esquerda.
A força que o Departamento de Imprensa, Propaganda e Turismo do Amazonas (DIPTEA) conquistara durante a sua gestão (1964-1967) não se perdeu com o mandato de seu sucessor, o empresário Danilo Mattos Areosa (1968-1971). Sob a direção do radialista Joaquim Marinho, o órgão seria responsável por chamar Rogério Sgarnzela, Helena Ignez, Joaquim Pedro de Andrade e outros grandes nomes do cinema nacional para o Festival Norte de Cinema (1967).
Não se tratavam apenas de iniciativas esparsas. Em 1967 foi organizado pela Secretaria de Educação e Cultura um ciclo de debates entre a classe artística local sobre cinema, literatura, música e teatro chamado de Seminário de Revisão Crítica da Cultura Amazonense. O documento final do evento, condensando as discussões realizadas durante as audiências, propõe uma série de diretrizes para instituir uma política cultural para a região. No ano seguinte nasceria a Fundação Cultural do Amazonas e o Conselho Estadual de Cultura com o explícito objetivo de executar o que havia sido definido no seminário.
E por que muitos artistas contrários ao regime civil militar participaram deste processo? Talvez porque a política cultural prometida correspondesse aos velhos anseios de profissionalização artística que defendiam há tantos anos. Podemos suspeitar também que flertar com o poder foi também uma forma do grupo artístico do qual fazia parte de serem reconhecidos. Afinal, tratava-se de um círculo que desejava se afastar da sombra dos senhores do Clube da Madrugada, acreditando que estes ainda eram muito primários ou legalistas diante do que propunham.
Aqui o depoente converge, portanto, com certa memória sobre o historiador que privilegia suas iniciativas culturais. Porém, longe está de considerar esse momento como uma renascença cultural tal como o faz o cineasta Aurélio Michiles. Como esquecer a faceta autoritária que encobria as medidas modernizadoras de Reis? Tal como a destruição da Cidade Flutuante, espécie de apêndice fluvial de Manaus, em 1965. A iniciativa, encarada pelas elites locais como necessária do ponto de vista logístico para uma cidade que abrigaria futuramente a Zona Franca, foi vista pelo poeta e seu amigo do Cineclube Lumière Roberto Kahané como uma afronta aos modos de vida da população carente. Foi á essa população que ambos dedicaram o filme Igual a Mim, Igual a Ti (1965).
O autor de A República Muda não participara de nenhum gabinete. Nem por isso deixou de ser menos influente, como deixa entender em seu depoimento:
E na minha casa acontecia tudo, todo mundo ia pra lá, bicho. Eu precisava nem sair de casa pra ver Manaus, Manaus ia lá pra casa. Se discutia tudo: o festival de música, música, poesia... O próprio governo ia pra lá, ás vezes, pra discutir! A secretaria de educação e coisa e tal. Então, era uma loucura. E tinha gente de esquerda engajada no governo também. Que queria ver o diabo, mas não queria ver a esquerda, mas tava lá como se fosse um progressista, né? (...) Acho até que a gente da informação passava lá. E era tudo muito aberto! Ninguém escondia nada. A gente de vez em quando ia para uma beira de igarapé discutir marxismo. Jogava futebol e discutia marxismo. Uma coisa bem modo baiano!
Influente, mas não benquisto. Ainda segundo ele, o motivo maior de ser "visado" pelo governo não se encontrava em sua obra. Seu visual – "A gente tinha o cabelo comprido, andava com aquelas bolsas de couro a tiracolo, sandálias de couro também, um jeans que a gente não lavava, só assobiava e ele andava atrás da gente de manhã"– e seus hábitos (referindo-se aqui ao fato de fumar maconha) chamavam mais atenção. Seu semblante era muito mais eficiente em incomodar os corações e mentes que propriamente sua arte. O que era extremamente intencional. Tratava-se então de atacar as rígidas convenções sociais da pequena e pacata cidade e as reações eram as mais adversas: xingamentos, palavrões e agressão física só em última instância.
Filgueiras não chegou a ser preso, o que pode refletir tanto o raio de sua influência quanto a indiferença do governo. Porém, seu livro Estado de Sítio – que ganhara o Prêmio Jaraqui de Literatura da União Brasileira dos Escritores Seção Amazonas em 1968 – foi impedido de ser publicado. Sobre o fato, o poeta esclarece:
O que aconteceu foi que o Roberto Kahané – que tá vivo aí contando a história – tirou uma foto muito legal de uma exposição que o Exército tinha feito numa vitrine ali da Eduardo Ribeiro. Como o nome do livro era Estado de Sítio e a poesia tinha forte cunho social, eu peguei a foto do Roberto Kahané. Mas a seção amazonense da União Brasileira dos Escritores achou mais prudente não publicar o livro. Então não foi uma censura externa, foi uma censura interna.
Então, sabe, eu faço questão de contar essa história, porque existe muito heroísmo nessa época. E não houve heroísmo nenhum, foi uma sacanagem. Eles premiaram e depois disseram "não, vamos esperar que acabe a ditadura daqui a trinta anos pra publicar o livro". O livro saiu depois, mas ninguém presta atenção no livro.
Por se distanciar do poder e se aproximar do cotidiano popular, a obra de Aldísio Filgueiras acaba por se tornar um contra-discurso oficial. Sua poética encontra espaço para dramas do dia-a-dia, desde famílias à mercê das chuvas no interior do Amazonas até operárias sendo assediadas em fábricas da capital. E não é tanto pelo que se diz, mas também como se diz. Referimos aqui ás inovações formais, que segundo o autor partem de uma inquietação profunda: "as regras existem para serem... quebradas, transgredidas. Porque você sabe a regra, pronto, e daí? Vai ficar preso á regra? Como você vai se expressar só com a regra? Isso me irrita". Aldísio Filgueiras parece ressoar aqui as palavras ditas pelo protagonista de Cinzas do Norte de Milton Hatoum: "Ou a revolta ou a obediência estúpida".
Ao mesmo tempo em que ascende á postos mais elevados no final dos anos 60, como o de responsável ao lado de Joaquim Marinho pelo caderno JC Jovem no Jornal do Comércio, aventura-se em iniciativas ousadas como a produção do combativo Jornal da Amazônia em 1978, um dos maiores nomes da imprensa alternativa manauara.
Em 1969 funda ao lado do ator paulista Nielson Menão o Teatro Experimental do SESC. Tornou-se emblemática a encenação no mesmo ano de sua peça Como Cansa Ser Romano nos Trópicos, uma adaptação livre de Calígula de Albert Camus. Sobre a origem da obra o escritor Márcio Souza nos informa:

As leituras oswaldianas de Aldísio Filgueiras indicavam que estava na hora de fugir das tragédias, era necessário deglutir o arbítrio. (...) Em Camus a discussão do poder escapava da História, reinava a individualidade, nada mudava e a criatura humana estava congelada. Para o grupo, era chegada a hora de debater o poder da ditadura militar, e isto deveria ser feito com humor, fora da seriedade tão oficial dos lacrimejantes espetáculos políticos daquela época.
A peça pegara os críticos de plantão de surpresa, tamanho era seu experimentalismo – com direito a jovens seminus besuntados em pomada Minâncora se contorcendo no palco. Apesar da moção pública contra a encenação divulgada na imprensa e os diversos episódios de censura das iniciativas do grupo posteriormente, o TESC só seria dissolvido em 1982. Filgueiras esteve á frente da organização até 1971.
Portanto, a partir de 1968 o artista passeia por campos distintos da esfera intelectual imprimindo por onde passa esse viés crítico mais incisivo. Tal fato não se dá por acaso. Estamos falando dos anos de chumbo, onde o medo intermitente convivia com um "otimismo" fabricado pelas recentes conquistas econômicas. Nos jornais, passamos da louvação ao suspense em poucas páginas: durante boa parte do ano de 1967, a implantação do distrito industrial e o paradeiro de Che Guevara alternam as manchetes dos grandes nomes da imprensa local, como O Jornal.
Se a experiência tropicalista e os conflitos em torno de sua legitimidade anunciavam uma discussão mais profunda sobre arte, a promulgação do AI-5 assinalava para aqueles envolvidos no combate ao Estado autoritário o momento ideal para abraçar a alternativa da luta armada. Não deixemos que a Amazônia desenvolvimentista, pintada pela propaganda oficial, nos iluda: o massacre e a luta fizeram parte de sua história. Lembremos Conceição do Araguaia, pequena região do Sul do Pará que tirará o sono do alto comando do Exército quando este tomar conhecimento das ações de guerrilheiros na região em 1972.

Figura 1. Aldísio Filgueiras cantando no concerto Espinhos no Coração no auditório do SESC em 1973. Fonte: SOUZA, Márcio. Palco Verde. São Paulo: Marco Zero, 1984.
Os ideais revolucionários desfrutavam de tamanha força que uma expedição á Bolívia em um humilde barco com um guia misterioso para cerrar fileiras ao lado de Che Guevara parecia perfeitamente plausível. Alguns jovens manauaras, como o bancário e ex-colega de ginasial de Filgueiras Carlos Washington Correa, embarcaram na empreitada que fracassou antes mesmo de chegar a fronteira. O naufrágio da utopia não parecia certo como parece agora para o nosso entrevistado:
Agora a sociedade amazonense rendeu-se muito fácil á ditadura militar, rendeu-se muito fácil. Tanto que era fácil controlar. Mesmo a rebeldia da gente, do ponto de vista político, era muito bem controlada. Hoje eu sei disso. Era muito bem controlada. Eles faziam uma manifestação á noite, clandestina, só faltava sair como manchete no jornal. Porque todo mundo sabia quem era o cara! Parece que o DNA ficava ali, fulano de tal
O poeta fala em termos de uma resistência aberta, mas há também uma resistência implícita que muitos confundem com mudez. O descontentamento das ruas em relação ao custo de vida já fora apontado pelo correspondente do Jornal do Brasil em Manaus José Maria Mayrink em certa ocasião como "termômetro da Revolução" no Norte e Nordeste. Nesse sentido, encontramos no editorial do jornal A Crítica um apelo desesperado:
NÃO SE pode mais desconhecer a dramática situação que aflige a população de Manaus ante o vertiginoso aumento do custo da vida, levando uma coletividade inteira às portas da fome. (...) Uma ligeira analise do descontrole nos preços dos gêneros essenciais a alimentação do povo aponta alta diária, sem uma justificativa honesta.
O apelo ao governo estadual é de que pressione a Superintendência Nacional de Abastecimento (SUNAB) para abaixar o preço da carne verde e estabilizar seu fornecimento. Evidente que muitos destes problemas já existiam antes da ditadura civil-militar – alguns foram até parcialmente sanados nos anos 60, como a instalação da rede elétrica – mas a partir de 1964 eles tomam outra tônica. Afinal, a falta de eletricidade e saneamento básico e o preço alto da carne são reclamações antigas que ao unirem-se com o arrocho salarial e a intervenção nos sindicatos produzem um caldeirão de insatisfação.
No que tange á historiografia, Daniel Aarão Reis considera que há inúmeras narrativas sobre a resistência organizada, armada ou não, mas poucas menções a essa forma, muito mais difícil de ser percebida, de recusa ao poder ditatorial. Recusa essa que poderia ser seletiva, refutando alguns aspectos do regime, mas abraçando outros. Aliás, a própria adesão popular ainda é um tabu dentro dessa discussão. No presente momento, os pesquisadores tentam justamente equacioná-la no concerto da cultura política autoritária.
O curioso é que o "menestrel do asfalto" aborda tangencialmente esta recusa amorfa e difusa em sua primeira obra quando parte do cotidiano para explorar o estado de coisas locais. Porém, se o insistente tom de denúncia rompe com os discursos oficiais tão caros ao pensamento social amazônico da época por um lado, por outro nega aos espoliados o caráter de sujeitos históricos e aqui ele se vincula a uma linha de pensadores que concebiam o golpe de 1964 como um inexorável lance do capitalismo. Tal interpretação será visualizada melhor nos versos abaixo:
O poeta é o responsável pela
humanidade,
mas o poeta tem conta no banco.
Os escaravelhos tomaram a cidade.
Temos um preço. Venceram
as tradições de comércio.
Iniciamos com um paradoxo: o poeta, simbolizando os artistas, se proclama responsável pela humanidade, representando assim o velho ideal cepecista de arte; contudo, há um limite para essa responsabilidade, um limite que talvez reflita esse espaço extremamente ambíguo que os artistas e intelectuais ocupam á meio caminho do povo e do poder e que 1964 levaria á prova; os escaravelhos tomam a cidade, mas os verdadeiros vencedores são as tradições de comércio o que significaria aqui que o golpe foi encetado por tropas militares, mas cumpriria os desígnios do capitalismo internacional que uma burguesia conservadora desejava a todo custo implantar no Amazonas e no país.
Seja como for, 1964 foi um ponto de reflexão não apenas para um poeta, estimulando-o a repensar sobre o ambíguo papel desempenhado pelos artistas e intelectuais na sociedade brasileira, mas também para um país. Não há uma fração desse país em que esta reflexão se faça mais necessária agora, cinquenta anos depois daquele dia onde tudo mudou, que no Amazonas.


Mestrando em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas (PPGH-UFAM) e bolsista pelo Centro de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. 14ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010, p. 65-66.
KHOURY, Yara Aun. O historiador, as fontes orais e a escrita da história. In: MACIEL, Laura Antunes et.alli. Outras Histórias: memórias e linguagens. São Paulo: Olho d'Água, 2006, p. 32.
FILGUEIRAS, Aldísio. Aldísio Gomes Filgueiras: depoimento [03 jul. 2012]. Entrevistadores: Francisca A. F. da Silva e Vinícius A. do Amaral. Manaus: Amazonas em Tempo (sede), 2012.
FILGUEIRAS, Aldísio. Aldísio Gomes Filgueiras: depoimento [03 jul. 2012]. Entrevistadores: Francisca A. F. da Silva, Maurílio F. Sayão e Vinícius A. do Amaral. Manaus: Amazonas em Tempo (sede), 2012.
FILGUEIRAS, Aldísio. Tédio. O Jornal, 03 mai 1964, Manaus, p. 12.
Sobre as relações entre o Colégio Estadual D. Pedro II e a intelectualidade amazonense ver LIMA, Elissandra Lopes Chaves. Dimensões da República das Letras no Amazonas: A intelectualidade gymnasiana em Manaus (1900-1930). Dissertação (Mestrado em História Social). Programa de Pós Graduação em História, Universidade Federal do Amazonas: Manaus, 2012.
FILGUEIRAS, Aldísio. Estado de Sítio. Manaus: Uirapuru, 2004, p. 15.
GONÇALVES, Marcos Augusto e HOLLANDA, Heloísa Buarque. Cultura e Participação no Brasil nos anos 60. São Paulo: Brasiliense, 1999, p. 21.
FILGUEIRAS, Aldísio. Estado de Sítio. Manaus: Uirapuru, 2004, p. 13-14.
FILGUEIRAS, Aldísio. Estado de Sitio. Manaus: Uirapuru, 2004, p. 97.
FILGUEIRAS, Aldísio. Aldísio Gomes Filgueiras: depoimento [03 jul. 2012]. Entrevistadores: Francisca A. F. da Silva, Maurílio F. Sayão e Vinícius A. do Amaral. Manaus: Amazonas em Tempo (sede), 2012.
FARIAS, Orlando. A Dança dos botos e outros mamíferos do poder. Manaus: Editora Valer, 2010, p. 62.
FILGUEIRAS, Aldísio Gomes. Aldísio Gomes Filgueiras: depoimento [13 nov. 2013]. Entrevistador: Vinicius A. do Amaral. Manaus: Casa do entrevistado, 2013.
ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira e Identidade Nacional. Brasiliense: São Paulo, 2012, p. 89.
SEMINÁRIO de Revisão Crítica da Cultura do Amazonas – documento final. O Jornal. Manaus, 17 set. 1967, p. 9.
FARIAS, Elson. Memórias Literárias. Manaus: Editora Valer/ Uninorte, 2006, p. 109-111.
MICHILES, Aurélio. E tu me amas? In: Revista Somanlu, ano 5, n. 1, jan/jun, Manaus: EDUA/CAPES, 2005, p. 14.
FILGUEIRAS, Aldísio Gomes. Aldísio Gomes Filgueiras: depoimento [03 jul. 2012]. Entrevistadores: Francisca A. F. da Silva, Maurílio F. Sayão e Vinícius A. do Amaral. Manaus: Amazonas em Tempo (sede), 2012.
FILGUEIRAS, Aldísio Gomes. Aldísio Gomes Filgueiras: depoimento [03 abr. 2013]. Entrevistadores; Francisca A. F. da Silva e Vinícius A. do Amaral. Manaus: Amazonas em Tempo (sede), 2013.
FILGUEIRAS, Aldísio Gomes. Aldísio Gomes Filgueiras: depoimento [13 nov. 2013]. Entrevistador: Vinicius A. do Amaral. Manaus: Casa do entrevistado, 2013.
FILGUEIRAS, Aldísio Gomes. Aldísio Gomes Filgueiras: depoimento [03 jul. 2012]. Entrevistadores: Francisca A. F. da Silva, Maurílio F. Sayão e Vinícius A. do Amaral. Manaus: Amazonas em Tempo (sede), 2012.
FILGUEIRAS, Aldísio. Aldísio Gomes Filgueiras: depoimento [03 abr. 2012]. Entrevistadores: Francisca A. F. da Silva e Vinícius A. do Amaral. Manaus: Amazonas em Tempo (sede), 2012.
HATOUM, Milton. Cinzas do Norte. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 7.
SOUZA, Márcio. Palco Verde. São Paulo: Alfa-Ômega, 1984, p. 16.
POLÍCIA Prendeu os Supostos Guerrilheiros. O Jornal. Manaus, 13 out. 1967, p. 1.
FILGUEIRAS, Aldísio Gomes. Depoimento [03 jul. 2012]. Entrevistadores: Francisca A. F. da Silva, Maurílio F. Sayão e Vinícius A. do Amaral. Manaus: Amazonas em Tempo (sede), 2012.
MAYRINK, José Maria. Norte e Nordeste esperam a reforma eleitoral para pensar nas eleições. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 31 jan. 1965, p. 4.
A CRÍTICA. Momento oportuno. Manaus, 30 jul. 1964, p. 3.
REIS, Daniel Aarão. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000, p. 9.
Interpretação essa, chamada por Lucila Delgado Neves de estruturalista, que foi predominante durante os anos sessenta e setenta e está intimamente associada às análises marxistas de então, reféns de esquemas gerais. Ver Delgado, Lucilia de Almeida Neves. 1964: temporalidade e interpretações. In: REIS, Daniel Aarão; RIDENTI,Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá. O golpe e a ditadura militar 40 anos depois (1964-2004). São Paulo: Edusc, 2004, p.15-26.
FILGUEIRAS, Aldísio. Estado de Sítio. Manaus: Uirapuru, 2004, p. 112.

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