O OLHAR DO DESENGANO: A RECEPÇÃO DE LA VIRGEN DE LOS SICARIOS, DE FERNANDO VALLEJO

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VII Seminário Internacional de Literatura Brasileira LITERATURA, VAZIO E DANAÇÃO De 12 a 14 de junho de 2013

O OLHAR DO DESENGANO: A RECEPÇÃO DE LA VIRGEN DE LOS SICARIOS, DE FERNANDO VALLEJO

Tatiele da Cunha Freitas1

1. Introdução

O escritor Fernando Vallejo (Medellín, 1942 -) é considerado um dos escritores latino-americanos mais controversos atualmente (VILLENA GARRIDO, s.d). Colombiano de nascimento, renunciou a essa sua nacionalidade em 2007, para manifestar o desejo de recuperá-la pouco tempo depois. Este fato poderia ilustrar seu relacionamento com seu país de origem, pois, ao mesmo tempo em que ele vive no México por mais de 30 anos, a cidade de Medellín sempre foi o principal cenário para quase todas suas obras, cujo discurso, permeado de críticas exageradas, é caracterizado por um forte tom questionador e niilista, configurando um discurso próprio da pós-modernidade. Vallejo é autor de 18 livros, sendo o mais recente lançado nesse ano, a biografia de Rufino José Cuervo, um dos mais famosos gramáticos da história colombiana. Todavia, seu livro mais famoso é, sem dúvidas, A virgem dos sicários, publicado no ano de 1994, que divide a crítica colombiana até os dias de hoje, mesmo sendo citado pelos estudiosos como um dos pilares da novela del sicariato, uma denominação para aqueles romances que tratam de figura do sicário, ou seja, os assassinos de aluguel inicialmente contratados pelo narcotraficante Pablo Escobar para exterminar inimigos políticos, mas que, com a sua morte, em 1993, sem qualquer perspectiva de vida, passam a lutar uns contra os outros em brigas de gangues e cometer atentados contra a população.

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Mestranda em teoria literária pela Universidade Federal de Uberlândia.

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A virgem dos sicários (1994) foi adaptada para o cinema, em 2000, cuja direção ficou a cargo do reconhecido cineasta francês Barbet Schroeder. O filme foi premiado em vários festivais, tanto na América Latina como na Europa. Assim como o livro causou polêmica em solo colombiano, o filme tampouco foi bem recebido pela crítica. Nas vésperas da estreia, o jornalista colombiano Germán Santamaría não hesitou em escrever: Vamos a decirlo de manera directa, casi brutal: hay que sabotear, ojalá prohibir, la exhibición pública en Colombia de la película La virgen de los sicarios, basada en la novela del mismo nombre de Fernando Vallejo. ¿Un atentado contra la libertad de expresión? ¿Un escándalo internacional? ¡Perfecto! [...]A Vallejo se le debería ignorar si no fuera por el daño y la desorientación que puede sembrar en cierta juventud colombiana. O por la forma como ofende a una nación que sufre. Y no puede ser paradigma de la creación quien niega la vida, la misma posibilidad de la continuidad de la especie humana. Esto no se le ocurrió ni a Nietzsche, D´Annunzio o Sartre, apóstoles de la desesperanza. Grandes artistas de Colombia son un García Márquez o un Fernando Botero. El primero, que jamás habla mal de Colombia fuera de sus fronteras, que participa en los planes de ciencia, educación y cultura para la juventud colombiana; y el segundo, que le acaba de hacer al país, en obras de arte a Bogotá y Medellín, el regalo más generoso que jamás colombiano alguno haya tenido para con su nación.(SANTAMARIA, Germán, 2000)2.

A grande crítica feita a Vallejo é centrada no fato de que o escritor rejeita seu país de origem, não retratando o colombiano como ele “realmente é” e não retratando “a realidade colombiana” com fidelidade, na sua ideia de transmitir internacionalmente

2 Vamos dizê-lo de maneira direta, quase brutal: há que sabotar, talvez proibir, a exibição pública na Colômbia, do filme A virgem dos sicários, baseado no romance de mesmo nome de Fernando Vallejo. Um atentado contra a liberdade de expressão? Um escândalo internacional? Perfeito! [...] Vallejo deveria ser ignorado se não fosse pelo danoe a desorientação que pode semear em certa juventude colombina. Ou pela forma como ofende a uma nação que sofre. E não pode ser paradigma da criação quem nega a vida, a mesma possibilidade da continuação da espécie humana. Isso não passoupela cabeça nem de Nietzsche, D´Annunzio ou Sartre, apóstolos da desesperança. Grandes artistas da Colômbia são um García Márquez ou um Fernando Botero. Oprimeiro, que jamais falamal de Colômbia fora de suas fronteiras, que participa nos planos de ciência, educação e cultura para a juventude colombiana; e o segundo, que acaba de fazer ao país, em obras de arte em Bogotá e Medellín, o presente mais generoso que jamais colombiano algumteve para com sua nação (SANTAMARIA, Germán. Prohibir al sicario. In: Revista Semana. Disponível em: http://www.semana.com/nacion/prohibir-sicario/15300-3.aspx. Acesso em: 12 out. 2012, tradução nossa).

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uma péssima imagem do país que, por sua vez, se vê sempre associada à questão do narcotráfico. Em seguida veremos uma crítica semelhante, feita em 2008, sobre a mesma questão:

“La virgen de los sicarios”, “La vendedora de rosas”, “María llena eres de gracia”, “Sin tetas no hay paraíso”, “El cartel de los sapos”, “Soñar no cuesta nada”, “Los protegidos”, “La viuda de la mafia”, “Pandillas, guerra y paz”, “El capo”, “Las muñecas de la mafia”, entre otras asquerosidades, han servido de reafirmante y de estimulante para que, ante el resto del mundo, Colombia sea visto como un nido de ratas y, por ende, que los colombianos que viven en el extranjero sean discriminados, marginados, maltratados, agredidos moral y físicamente, mirados como personas que son un peligro para quienes los rodean, por las supuestas “mañas”, malas costumbres y negocios raros que, al parecer, todo colombiano lleva consigo. Colombia tiene una pésima imagen a causa del narcotráfico, la violencia y la corrupción de algunos funcionarios del Estado, y sin embargo, la televisión y el cine colombiano colaboran para empeorarla aun más. […] ¿Por qué mejor no crean producciones que ayuden a contrarrestar nuestra mala reputación, que muestren todas las virtudes, cualidades y cosas positivas que tiene nuestro país y que tenemos nosotros? Ya estamos cansados de que todo lo que la TV nacional y el cine de aquí hacen siempre es de lo mismo: narcotráfico, mafia, traqueteos, prostitutas, sicarios, matones, mulas, jíbaros, drogas, ladrones, trampas etc. Ustedes, detrás del pretexto barato y trillado de mostrar la realidad de Colombia, se enriquecen a causa de la desgracia y la miseria del país, porque las tramas de sus productos audiovisuales se basan siempre en eso, pero ¿cuál realidad del país? ¿Acaso esa es la única realidad de nuestra patria? (VALERO CASTAÑO)3.

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“A virgem dos sicários”, “A vendedora de rosas”, “Maria cheia de graça”, “Sem tetas não há paraíso”, “O cartel dos sapos”, “Sonhar não custa nada”, “Os protegidos”, “A viúva da máfia”, “Quadrilhas, guerra e paz”, “O capo”, “A bonecas da máfia”, entre outras asquerosidades, têm servido de “reafirmante” e de estimulante para que, diante doresto do mundo, Colômbia seja vista como um ninho de ratos e, por conseguinte, que os colombianos que vivem no estrangeiro sejam discriminados, marginalizados, maltratados, agredidos moral e fisicamente, olhados como pessoas que são un perigo para quem anda em suas companhias, pelas supostas “manhas”, maus costumes e negócios estranhos que, ao que tudo indica, todo colombiano carrega consigo. Colômbia tem uma péssima imagem por causa do narcotráfico, da violência e da corrupção de alguns funcionários do Estado, e, no entanto, a televisão e o cinema colombiano colaboram para piorá-la ainda mais […] Por que melhor não criam produções que ajudem a contrabalancear nossa má reputação, que mostre todas as virtudes, qualidades e coisas positivas que têm no nosso país e que nós temos? Já estamos cansados de que tudo o que a TV nacional e o cinema daqui fazem sempre é o mesmo: narcotráfico, máfia, assaltos, prostitutas, sicários, assassinos, mulas, laranjas, drogas, ladrões, trapaças etc. Vocês, detrás do pretexto barato e trilhado de mostrar a realidade de Colômbia, se enriquecem à custa da desgraça e da miséria do país, porque as tramas de seus produtos audiovisuais se baseiam sempre nisso, mas qual é a realidade do país? Por acaso essa é a única realidade de nossa pátria?(VALERO CASTAÑO, tradução nossa).

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É possível notar que A virgem dos sicários (2000) encabeça a lista da crítica mencionada logo acima, não sendo a produção mais recente ou mais antiga dentre as citadas. Todo o caminho percorrido acima nos leva, de uma maneira ou de outra, a nos inquietar com o efeito dessa literatura centrada na temática da violência, e com o efeito desconcertante nos leitores e telespectadores da obra A virgem dos sicários (2008), ao ponto de quase vinte anos depois de sua publicação ainda ser capaz de causar polêmica e dividir a crítica. Por conseguinte somos levados a perguntar: quais são as possibilidades de leitura de uma obra como essa? A que direciona? Apoiados em uma análise hermenêutica, tentaremos introduzir, não de maneira exaustiva, uma discussão dessas questões.

2. A estética da recepção

Em linhas gerais, a estética da recepção — cujos principais representantes são os teóricos Hans Robert Jauss (1921–1997) e Wolfgang Iser (1926–2007) — pressupõe o texto literário por meio de um sistema definido pela sua produção, recepção e comunicação, interligando, dessa maneira, autor, obra e leitor. Opondo-se às vertentes teóricas da época se seu surgimento, como o formalismo, marxismo, ao new criticism etc., a estética da recepção coloca a figura do leitor em destaque, conferindo-lhe o papel de produtor de sentidos, como construtor de significados em seu contato com a obra de arte. Assim sendo, o universo existente em um texto dialoga com o conjunto de conhecimentos prévios do leitor, o que vai criar, de acordo com a terminologia empregada por Jauss (1994), um horizonte de expectativas, que pode ser satisfeito ou rompido durante o ato da leitura. E, para o teórico, é justamente a ruptura, a não correspondência com esse horizonte de expectativas, que vai indicar o carácter artístico de uma obra, rompimento a que ele chama de “distância estética”. Se esta não acontece no ato da leitura, a obra pode ser considerada como sendo “arte culinária” ou destinada à mera diversão. 4

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Dessa forma, podemos pensar que é “a partir deste pressuposto pode-se construir a análise de impacto, sendo que este ocorre quando há quebra de expectativas — o que ainda promove o rompimento de barreiras e o cruzamento de fronteiras” (ROSSETO, 2010, p.1).

3. A virgem dos sicários

A virgem dos sicários (VALLEJO, 2008) é considerada pelos teóricos colombianos um dos quatro pilares do chamado romance do sicariato, juntamente com os livros Morir con papá (1997), de Óscar Collazos; Rosario Tijeras (1999), de Jorge Franco Ramos, e Sangre ajena (2000), de Arturo Álape. De acordo com Antonio Torres (2010) o romance do sicariato se define pela retomada e pela subversão de elementos do testemunho e do documentário. A palavra sicário, que denomina a personagem central de A virgem dos sicários (VALLEJO, 2008), advém do latim sicca, que significa punhal. O professor Reyes Albarracín (2007) situa o termo, afirmando que um sicário, no Império Romano, era um mercenário, pago para matar (apunhalar) os inimigos políticos. Na Colômbia, o termo designa os adolescentes que atuavam sob as ordens do traficante Pablo Escobar e que, sem trabalho depois da morte deste (1993), organizam-se em gangues e passam a cometer vários atentados contra a população, além de lutar uns contra os outros sem propósito. De acordo com o narrador, no livro:

[…] te voy a decir qué es un sicario: un muchachito, a veces un niño, que mata por encargo. ¿Y los hombres? Los hombres por lo general no, aquí los sicarios son niños o mu-chachitos, de doce, quince, diecisiete años, como Alexis, mi amor… (VALLEJO, 2008, p. 9).4

O livro de Vallejo, escrito em primeira pessoa, de cunho autobiográfico, relata a história de um gramático, Fernando, um homem maduro que volta à sua cidade natal (Medellín) e percebe que a cidade já está muito distante daquela a que conhecia, 4

[...] vou te dizer o que é um sicário: um jovenzinho, às vezes uma criança, que mata por encargo. E os homens? Os homens geralmente, não, aqui os sicários são meninos ou jovenzinhos de doze, quinze, dezessete anos, como Alex, meu amor... (VALLEJO, 2008, p.9, tradução nossa).

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principalmente devido ao fenômeno da violência urbana. Fernando, à procura de um amante, conhece Alexis, descobrindo logo em seguida que ele é um jovem sicário. Os dois, então, vagam pela cidade em visita a várias igrejas. O ponto particular dessa relação é o fato de que, enquanto Fernando recorda sua infância e a compara com o tempo presente, o sicário se torna uma espécie de “anjo exterminador”, fazendo uma “limpeza social”, de acordo com tudo o que desagrada a Fernando. Von Der Walde (2000, p. 223) afirma que isso acontece porque “[la] relación romántica [...] se agota ante la falta de proyectos en una sociedad desahuciada”5. A primeira coisa que chama atenção e causa certa estranheza no leitor é, sem dúvidas, a figura do narrador como um gramático que está em constante contato com o leitor. E, diga-se de passagem, Colômbia possui em sua história política uma grande gama de presidentes gramáticos6, o que reforça a associação desse protagonista como uma figura detentora de autoridade, afinal, linguagem é poder. E justamente essa autoridade lhe confere o direito de fazer várias interrupções no texto, de maneira a explicar sobre a cultura e as gírias utilizadas pelos sicários. No entanto, é interessante perceber que, ao longo da história, a linguagem do gramático vai sendo contaminada pela linguagem do sicário e se degradando aos poucos até o fim da história, condição associada à perda da autoridade da figura desse gramático, impotente diante do quadro de violência com o qual se depara. A isso se acrescenta o fato de que o narrador reclama para si o título de “último gramático de Colômbia”, assinalando, talvez, que qualquer possível poder regulador encontra seu fim com ele, que regressa a Medellín, depois de 30 anos longe, para morrer. Mas se a palavra tem um poder criador, o narrador de A virgem dos sicários (VALLEJO, 2008) não tem a intenção de criar nada com esse “poder” que detém. Muito pelo contrário, Fernando é um crítico social e um misantropo — nas palavras do crítico Seymour Menton (2007), ao denunciar as condições de vida da comunidade, por intermédio de uma ironia ácida que reproduz todo o imaginário do senso comum sobre a violência e a criminalidade. O narrador-personagem Fernando derrama no livro, a todo o momento, 55

“A relação romântica entre os dois se esgota diante da falta de projeto em uma sociedade desenganada” (VON DER WALDE, p.223, tradução nossa). 6 Para maiores referências ver: VON DER WALDE, Erna. LENGUA Y PODER: EL PROYECTO DE NACIÓN EN COLOMBIA A FINALES DEL SIGLO XIX. Disponível em:http://elies.rediris.es/elies16/Erna.html

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sua crítica a respeito do seu entorno, cruel, corrosiva, ora clamando por um Estado forte que reprima à bala e acabe com os direitos humanos (VALLEJO, 2008, p.118), ora propondo explodir os pobres com dinamite e acabar com a luta de classes fumigando toda aquela sujeira (VALLEJO, 2008, p.113). É essa crítica hiperbólica que causa a repulsa na maioria dos leitores, pois eles se veem identificados com essas vítimas às quais Fernando dirige toda sua crítica misantrópica. Com relação à linguagem através da qual se constitui A virgem dos sicários (VALLEJO, 2008), Von Der Walde (2000, p.223) afirma:

La fuerza del relato de Vallejo radica fundamentalmente en la operación de lenguaje. Más allá de los eventos violentos que se narran, se siente la exasperación ante la falta de referentes, de nociones básicas que permitan hacer inteligible lo que está sucediendo (VON DER WALDE, 2000, p. 223) 7.

Ou seja, para Von Der Walde (2000), A virgem dos sicários (VALLEJO, 2008) se pauta pela ambiguidade constante em comunicar o que está cada vez menos passível de ser comunicado. E a própria estrutura do livro corrobora esse preceito, tendo em conta que se trata aqui de um romance constituído de um bloco único que “avanza como una torrente verbal que arrasa con todo” (TORRES, 2010, p. 333)8. A narrativa, de um ponto desenganado, degrada ainda mais um cenário que já está degradado. Menton (2007), ao discorrer sobre a constituição de A virgem dos sicários (VALEJO, 2008) defende a tese de que o livro se aproxima de um grande poema em prosa, em que a sonoridade das palavras, bem como o uso constante de aliterações e assonâncias, confere à obra um ritmo próprio:

era yo, y el un cuartico al fondo del apartamento que si me permiten se lo describo de paso, de prisa, camino al cuarto, sin recargamientos balzacianos: recargado como Balzac nunca soñó, de muebles y relojes viejos; relojes y relojes viejos y requeteviejos, de muro, de mesa, por decenas, por gruesas…(VALLEJO, 2008, p.11)9.

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A força do relato de Vallejo radica fundamentalmente na operação da linguagem. Além dos eventos violentos que se narram, se sente a exasperação diante da falta de referentes, de noções básicas que permitam tornar inteligível o que está acontecendo (VON DER WALDE, p. 223, tradução nossa). 8 [A narrativa] avança como uma torrente verbal que arrasa com tudo(TORRES, 2010, p. 333, tradução nossa). 9 era eu e o um quartinho ao fundo do apartamento que se me permitem o descrevo de soslaio, de pressa, caminho ao quarto, sem carregamentos balzaquianos,

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E isso é observado em várias partes no texto, o que causa também um estranhamento, pois as repetições provocam um efeito circular, ao mesmo tempo em que são mais facilmente assimiladas pelo leitor. Além disso, Vallejo não hesita em abusar das hipérboles, exagerando propositalmente muitas denúncias, reproduzindo, se observarmos de maneira superficial, um discurso semelhante àqueles vistos em programas jornalísticos sensacionalistas que certamente possuem seus correspondentes na Colômbia. Contudo, se analisarmos mais atentamente, podemos notar que há um propósito no exagero de narrador. Pensando na questão do efeito, Vallejo se utiliza do próprio discurso do senso comum, daquilo que está dentro do horizonte de expectativas da massa, por meio do recurso da hipérbole, para causar nesta mesma massa o “distanciamento estético” mencionado por Jauss (1994), de forma a impactá-la e fazê-la refletir sobre o entorno:

¿Darles yo trabajo a los pobres? ¡Jamás! Que se lo diera la madre que los parió. El obrero es un explotador de sus patrones, un abusivo, la clase ociosa, haragana. Que uno haga la fuerza es lo que quieren, que importe máquinas, que pague impuestos, que apague incendios mientras ellos, los explotados, se rascan las pelotas o se declaren en huelga en tanto salen a vacaciones (VALLEJO, 2008, p. 111)10.

Outra personagem que causa igual estranheza é o jovem sicário. Ele é apresentado logo de início a Fernando, no “quarto das borboletas” e partir daí os dois iniciam uma relação amorosa. Inicialmente, além da própria união homo afetiva, que por si só, na Colômbia, é demasiado polêmica, tendo em conta que o país possui uma sociedade cristã de forte cunho conservador, tem-se ainda o agravante da diferença de idade de ambos e, sobretudo, o incômodo pelo o fato de que um gramático, uma pessoa supostamente “esclarecida”, e distante daquele submundo, decida associar-se com um sicário, um assassino. E não se tratava de algo apenas uma relação sexual, muito pelo carregado como Balzac nunca sonhou, de móveis, e relógios velhos; relógios e relógios velhos e mais velhos, de muro, de mesa, por dezenas, aos montes (VALLEJO, 2008, p.11. Tradução nossa). 10 Eu dar trabalho aos pobres? Jamais! Que desse a mãe que os pariu. O operário é um explorador de seus patrões, um abusivo, a classe ociosa, preguiçosa. Eles querem é que alguém faça o esforço, que importe máquinas, que pague impostos, que apague o incêndio, enquanto eles, os explorados, coçam o saco e declaram greve para saírem de férias (VALLEJO, 2008, p.111, tradução nossa).

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contrário, o narrador Fernando considerava essa relação afetiva como algo puro e sincero, denominando os momentos em que passava com o jovem sicários como “oásis de paz”, como se pode observar neste trecho: “y yo con Alexis, mi amor... Alexis duerme abrasado a mi con su trusa y nada, pero nada, nada le perturba el sueño” (VALLEJO, 2008, p.46)11, e em mais tantos outros onde é possível percebermos que Fernando mantém a imagem de “um amor idílico, refiriéndose constantemente a Alexis con términos como „mi amor‟, „mi muchachito‟, „mi niño‟, „mi corazón‟, „mi angel de la guardia‟ y, con un guiño a Buñuel, „mi angel exterminador‟” (MENTON, 2007, p.197).

Todavia, apesar do significado que o sicário tem para o narrador, aquele se trata de uma personagem sem voz dentro da história. A despeito da quantidade de crimes que comete, e da preferência por televisores e aparelhos de som, que Fernando odeia, mas compra para satisfazer-lhe as vontades, suas falas são limitadas a umas poucas linhas, sobre as quais Fernando atenta mais adiante no texto, quando Alexis é morto por um grupo de sicários em uma moto. Seguindo na história, Fernando sai à procura do assassino, para vingar-se. Na busca conhece a Wilmar, outro sicário, e inicia outra relação sob as mesmas condições da anterior, associando constantemente Wilmar com Alexis (“¿Quéestaría agradecendo Alexis, perdón, Wilmar, a laVirgen?” – VALLEJO, 2008, p.95)12, o que também não deixa de impactar o leitor, pois, essa nova relação pode denunciar a falta de sentido na morte de Alexis, um ser totalmente substituível, mostrando a circularidade da violência: En fin, por ese apartamento de José Antonio, por entre sus relojes detenidos como fechas en las lápidas de los cementerios, pasaban infinidad de muchachitos vivos. O sea, quiero decir, vivos hoy y mañana muertos que es la ley del mundo, pero asesinados: jóvenes asesinos asesinados… 13 (VALLEJO, 2008, p.12) .

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Alexis dorme abraçado a mim com sua cueca e nada, mas nada, nada lhe perturba o sono (VALLEJO, 2008, p.46, tradução nossa). 12 O que estaria agradecendo Alexis, perdão, Wílmar, à virgem? (VALLEJO, 2008, p.95, tradução nossa). 13 Enfim, por esse apartamento de José Antonio, por entre seus relógios detidos como datas nas lápides dos cemitérios, passavam infinidade de meninos vivos. Ou seja, quero dizer, vivos hoje e amanhã mortos que é a lei do mundo, mas assassinados: jovens assassinos assassinados... (VALLEJO, 2008, p,12, tradução nossa).

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E enquanto percorrem a cidade, Wílmar desempenhando o papel de novo “anjo exterminador”, Fernando descobre que foi ele quem matou Alexis. Planeja matá-lo, mas não consegue. E Wílmar confessa que matou Alexis para vingar a morte de seu irmão. Uma reviravolta igualmente impactante que ratifica essa violência circular para a qual não parece haver saída. O final da obra se dá quando Fernando sugere que ele e Wílmar saiam do país. Wílmar aceita a proposta, mas antes quer ir se despedir de sua mãe, todavia não retorna. No outro dia, chamam Fernando para identificar o corpo de um jovem que possuía seu telefone no bolso e Fernando vê que se trata de Wílmar. No necrotério, onde termina a jornada do narrador, ele afirma se lembrar de uma frase do evangelho que só ali entende do que se trata:

. Y por entre los muertos vivos, caminando sin ir a ninguna parte, pensando sin pensar tomé a lo largo de la autopista. Los muertos vivos pasaban a mi lado hablando solos, desvariando. Un puente peatonal elevado cruzaba la autopista.Subí. Abajo corrían carros enfurecidos, atropellando, manejado por cafres que creían que estaban vivos aunque yo sabía que no (VALLEJO, 2008, p.139)14.

Esse pequeno trecho resume praticamente a jornada de Fernando ao lado da dupla de sicários Alexis-Wílmar, evidenciando a ausência de qualquer perspectiva de mudança para aquela cidade, uma metonímia da situação colombiana no início da década de 1990. E é essa falta de perspectiva, associada à circularidade da violência, que causa nos colombianos o maior distanciamento estético, porque traz à tona o estancamento social e destrói as esperanças de qualquer condição de vida mais justa. E como diz o próprio Vallejo, em entrevista: Colômbia é um país com ânsias de felicidade. “Mas esqueçamo-nos da felicidade, [ela] não é possível neste mundo” (VALLEJO). Para o narrador Fernando, que termina sendo confundido, não sem propósito, com a própria figura do escritor:

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Que os mortos enterrem a seus mortos>>. E por entre os mortos vivos, caminhando sem ir a nenhuma parte, pensando sem pensar tomei o caminho da marginal. Os mortos vivos passavam a meu lado falando sozinhos, desvairando. Uma passarela elevada cruzava a marginal. Subi. Abaixo corriam carros enfurecidos, dirigidos por negros que acreditavam que estavam vivos, ainda que eu soubesse que não (VALLEJO, 2008, p.83, tradução nossa).

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Los pobres producen más pobres y la miseria más miseria, y mientras más miseria más asesinos, y mientras más asesinos más muertos. Ésta es la ley de Medellín, que regirá en adelante para el planeta Tierra. Tomen nota (VALLEJO, 2008, p.83).

Dessa forma, as possibilidades de leitura de uma obra como A virgem dos sicários (VALLEJO, 2008), estão associadas a uma perspectiva niilista a respeito desse quadro social, que não se restringe a Medellín ou à própria Colômbia, mas, como o narrador menciona no trecho acima, é uma lei que será regida para todo o planeta Terra, um círculo vicioso infinito da violência que só tende a ficar maior. Denunciando esse estancamento, estabelecendo uma poética da violência como vimos nos parágrafos anteriores, que se pauta de repetições e hipérboles, tanto para denunciar uma espécie de empilhamento de palavras, como de orações, como de pessoas (como foi o caso da morte de Alexis e sua substituição quase imediata por Wílmar) Vallejo mostra que a violência já chegou ao cerne do mundo e do ser humano, contaminando até mesmo o verbo considerado criador. Assinala, com resignação, ao final do livro, que a morte, que se sobrepõe ao amor, nesse caso, é a única salvação para o indivíduo, ainda que não seja a saída para o problema.

REFERÊNCIAS:

JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. Trad. de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994. LEIRIA, Elisandra Lorenzoniet al. Sobre narrativas e conhecimento: a violência em La hora azul, de Alonso Cueto. In: Revista Literatura em Debate, Santa Cruz do Sul, v. 6, n. 10, p. 27-41, ago. 2012. MENTON, Seymour. La novela colombiana: planetas y satélites. Bogotá: Fondo de cultura econômica, 2007. NICHOLSON, Brantley. Fernando Vallejo: Ciudadaniaestetica y la clausura de la literatura mundial. In: Calle 14. Bogotá, v.5, n.6, 2010. Disponível em: http://200.69.103.48/comunidad/grupos/calle14/Volumen5/ContenidoVol5.html Acesso em: 12out. 2012. 11

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______. La sinceridad puede ser demolidora : Conversaciones con Fernando Vallejo. Disponível em: http://www.banrepcultural.org/blaavirtual/literatura/fervallejo/fervallejo0.htm .Acesso em: 20 out.2012.

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VON DER WALDE, Erna. La sicaresca colombiana – Narrar la violencia en América latina. In: Nueva sociedad. Bueno Aires, n.170, p.222-227. Disponível em: http://www.nuso.org/upload/articulos/2928_1.pdf. Acesso em: 19 nov.2010. ______. La novela de sicarios y la novela en Colombia. In: Iberoamericana. América Latina, España, Portugal: Ensayos sobre letras, historia y sociedad iberoamericanas.Berlim/Hamburgo, 2001, n.3, p. 27-40.

RESUMO:

O OLHAR DO DESENGANO: A RECEPÇÃO DE LA VIRGEN DE LOS SICARIOS, DE FERNANDO VALLEJO.

Na Colômbia, entre o final da década de 1970 e início dos anos de 1980 surge o narcotráfico e, ainda que este tenha se consolidado com maior veemência nas cidades de Medellín (Antioquia), Cali (Valle delCauca) e em Bogotá (Cundinamarca), terminou afetando todo o território colombiano de modo definitivo. O primeiro grande sucesso editorial a tratar dessa temática é o livro La Virgen de lossicarios, de Fernando Vallejo. Lançado em 1994, essa obra, que retrata a violência na cidade de Medellín no inicio dos anos 1990, causou polêmica, dividindo, até os dias de hoje, a opinião crítica, por seu conteúdo exageradamente cruel, pelo pessimismo que permeia o fio condutor da história e pelo modo como são representados todos esses aspectos através da linguagem de que se utiliza o autor. PALAVRAS CHAVES: Literatura, violência, Colômbia, narcotráfico.

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ABSTRACT:

DISILLUSION LOOK: THE RECEPTION OF LA VIRGEN DE LOS SICARIOS, BY FERNANDO VALLEJO

In Colombia, between the end of the decade of 1970 and the beginning of the 80s, the drug trafficking starts and, although it had consolidated with vehemence in the cities of Medellín(Antioquia), Cali(Valle del Cauca) and Bogotá(Cundinamarca), it affected all the country in a definitive way. The first and big editorial success to talk about it is the book La Virgen de los sicarios, by Fernando Vallejo. Released in 1994, this work, that shows the violence in the city of Medellín at the first years of the 90s, caused polemic, splitting into two, until these days, the literary critic opinion, because of its exaggerated cruel content, pessimism that permeates the story line and the way the aspect through the language used by the author is exposed. KEYWORDS: Literature, violence, Colombia, drug trafficking

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