O cânone literário português e as mulheres

June 29, 2017 | Autor: Anna M. Klobucka | Categoría: Literary Canon, Portuguese Literature, Women and Culture
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O cânone literário português e as mulheres Anna M. Klobucka

Embora se trate de um truísmo, não há como não repeti-lo: o cânone da literatura portuguesa é composto exclusivamente por autores de sexo masculino até aos meados do século vinte, abrindo-se eventuais e questionáveis exceções a esta regra para algumas freiras-poetisas barrocas, principalmente Violante do Céu, para a Marquesa de Alorna e, já no século vinte, para Florbela Espanca e Irene Lisboa, todas elas “canonizáveis” até certo ponto, mas (por enquanto) sem hipótese de inclusão inequivocamente consensual no Panteão histórico-literário português. Outra constatação preliminar a registar será menos óbvia e porventura até surpreendente para alguns: a primeira e a única história da autoria literária feminina em Portugal – Escritoras de Portugal (1924), de Thereza Leitão de Barros – foi publicada há quase um século e até hoje não teve descendência; pelo menos não a teve dentro do mesmo modelo de uma narrativa histórica abrangente e com ambições de exaustividade. Não será este o espaço suficiente ou mais apropriado para resumir as análises extensas com que várias estudiosas (e alguns estudiosos) têm vindo a abordar criticamente o estado das coisas que as duas constatações esboçadas acima denunciam, sensivelmente desde os finais dos anos oitenta, altura em que é lançado o estudo pioneiro de Isabel Allegro de Magalhães, O Tempo das Mulheres: A dimensão temporal na escrita feminina contemporânea (1987), mas convém recordar os pontos principais que distinguem a historiografia e o ensino da literatura portuguesa, no que diz respeito ao legado da cultura escrita e autoria literária feminina, da generalidade de situações análogas no contexto europeu e mesmo global. Estes pontos seriam, primeiro, o grau elevado da não aceitação do fator “género” como um critério legítimo de agrupamento de textos e autores (no caso, autoras) para os efeitos do estudo académico avançado ou implantação pedagógica em qualquer nível do ensino – e refiro-me aqui, como será claro, ao género sociossexual, uma vez que o fator “género literário” (romance, poesia lírica, etc.) é amplamente aceite enquanto uma ferramenta de organização dos conteúdos do arquivo histórico-literário português. O segundo ponto será a suposta inutilidade de procurar matéria para tais estudos ou cursos – uma vez putativamente vencida a resistência denunciada no primeiro ponto – na história do protagonismo cultural das mulheres antes do século vinte, ou mesmo antes dos anos cinquenta do século vinte, surgindo então na literatura portuguesa duas escritoras cujo direito de acesso ao cânone é desde cedo

unanimemente aceite e que por isso mesmo marcam uma viragem decisiva na receção da escrita de autoria feminina em Portugal: Sophia de Mello Breyner Andresen e Agustina Bessa-Luís.1 Mas que importância poderá ter um eventual esforço de reconstrução dos cânones institucionalizados da literatura portuguesa de modo a tornar visível o que o discurso históricoliterário dominante teimou sempre e ainda teima em ocultar, a existência secular da produção literária e cultural protagonizada por mulheres e o entrosamento instrumental desta produção com o cânone nacional dito universal, isto é, o cânone da autoria masculina? Não será suficiente, para todos os efeitos pedagógicos e epistemológicos que interessem, o reconhecimento e a inclusão (nos currículos, nos compêndios, no horizonte da consciência cultural popular e erudita) apenas daqueles produtos da autoria literária feminina que se têm manifestado nas últimas seis ou sete décadas da história nacional? Afinal, segundo a opinião comummente expressa pela vox populi das caixas de comentários nas redes sociais, “não se pode negar a História”, e se a História negou que houvesse nela textos de autoria feminina dignos de serem lidos e estudados pelas gerações de cidadãos (e, mais recentemente, cidadãs) portugueses, então procurar não apenas expor mas também combater retroativamente essa recusa sistémica e estruturante não equivalerá a uma negação da História propriamente dita? Para começarmos a confrontar estas perguntas, poderá ser útil a observação preliminar de que a admissão das mulheres portuguesas à cultura letrada e o eventual extravasamento dos efeitos desta admissão no exercício da produção intelectual, incluindo a autoria literária, foram muitas vezes, ao longo dos séculos, tema explícito de deliberações e debates protagonizados maioritariamente por homens portugueses. A este propósito, na sua extraordinária Carta de Guia de Casados (1651), D. Francisco Manuel de Melo conta uma anedota que passo a transcrever:

Confessava-se uma mulher honrada a um frade velho, e rabugento; e como começasse a dizer em latim a confissão, perguntou-lhe o confessor: Sabeis latim? Disse-lhe: Padre, criei-me em mosteiro. Tornou-lhe a pergunta: Que estado tendes? Respondeu-lhe: Casada. A que tornou: Onde está vosso marido? Na Índia, meu padre (disse ela). Então com agudeza repetiu o velho: Tende mão, filha: sabeis latim, criaste-vos em mosteiro,

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Tanto Sophia como Agustina estreiam-se na literatura ainda na segunda metade dos anos quarenta, mas parece claro que é sobretudo o êxito de Sibila (1954), no caso desta, e o impacto de sucessivos livros de poesia, no caso daquela, que se traduz no seu reconhecimento como escritoras de valor incontestavelmente cimeiro.

tendes marido na Índia? Ora ide-vos embora, e vinde cá outro dia, que vos é força que tragais muito que dizer, e eu estou hoje com muita pressa.2 Segundo explica o autor ao destinatário do seu discurso – o jovem fidalgo prestes a casar a quem se dirigem os ensinamentos acumulados na Carta – e referindo-se ainda ao dito popular que cita antes de contar a anedota (“que Deus o guardasse de mula que faz him, e de mulher que sabe latim”), o que causa dano nas mulheres não é o conhecimento do latim enquanto tal, mas o que o latim “consigo traz de outros saberetes envolto àquele saber”. O mesmo aplica-se, presumivelmente – D. Francisco Manuel não chega a comentar os restantes elementos da anedota do “frade rabugento” – às condições propícias à corrupção da moral feminina que a história contada postula existirem nas comunidades monásticas habitadas por mulheres sem homens ou que resultam do acesso da mulher casada à autodeterminação potenciada pela ausência prolongada do marido. Lembre-se parenteticamente que esta última situação desencadeia a intriga central na primeira obra da literatura portuguesa (excetuando as crónicas) que tematiza a expansão colonial, o Auto da Índia de Gil Vicente: as aventuras lisboetas da inconstante Constança, cujo marido embarca em 1506 para a Índia na frota comandada por Tristão da Cunha, significam de forma cristalinamente eloquente a angústia patriarcal que desde sempre se infiltrara nos propósitos heróicos da construção do império. A angústia e a insegurança do poder masculino são também as vertentes afetivas dominantes no discurso doutrinário e pedagógico da Carta de Guia de Casados, atingindo não apenas – claro está – a questão do acesso das mulheres ao conhecimento, à leitura e à escrita, mas concentrando nestes aspetos muita da sua atenção e retórica mais agudamente articuladas. O que o texto de D. Francisco Manuel de Melo e muitas outras fontes anteriores e posteriores ilustram com uma clareza abundante e arrepiante é que a invisibilidade das mulheres no panorama literário nacional que antecede a emergência maciça da produção artística e intelectual feminina no século vinte não equivale a uma simples ausência, fenómeno de sentido cultural, social e político neutro e transparente – ausência de uma Bela Adormecida que subitamente acorda do seu sono secular com o advento da modernidade –, mas resulta antes de um recalcamento ativo, consequente e violento da liberdade e das aspirações das mulheres. Mais

Uma Antologia Improvável – A Escrita das Mulheres (Séculos XVI a XVIII). Org. Vanda Anastácio. Lisboa: Relógio D’Água, 2013, pp. 75-76. 2

crucialmente para os efeitos deste breve comentário, o vácuo cultural que a ausência histórica das mulheres da polis portuguesa representa tão-pouco se constitui como um espaço em branco, esvaziado de qualquer conteúdo legível; pelo contrário, trata-se de um campo semântico e político trespassado por uma densa rede de discursos e significados que se foram tecendo à volta desta exclusão ao longo dos séculos. Entre estes discursos e significados encontram-se depoimentos notáveis pela lucidez honesta da sua opção consciente e inequívoca a favor da dominação política e cultural masculina, absoluta e naturalizada, como é o caso de Carta de Guia de Casados, juntamente com análises e afirmações mais ambivalentes, vacilantes, ou mesmo arrojadamente críticas da manutenção do status quo nas relações entre os sexos na sociedade portuguesa. E encontram-se também muitos registos textuais – literários, ensaísticos, epistolográficos – em que as próprias mulheres se posicionam perante a sua subalternidade cultural, quer abordando-a como o foco explícito da sua intervenção, quer deixando transparecer a denúncia por meio de um discurso de autorebaixamento modesto e conivente, como acontece, por exemplo, no fragmento intitulado “Ditos do autor de si mesma” [sic] da obra Ditos da Freyra (1555) de D. Joana da Gama:

Minha pouca capacidade e baixeza do meu entendimento me estão ameaçando, e me dizem que não terá culpa quem ma der em escrever estes ditos; eu o fiz pera não me esquecer, e comuniquei-os com minhas amigas; elas puseram os olhos na minha tenção, pediram-mos, não lhos soube negar: isto vai já parecendo desculpas, de que eu sou pouco. Por conhecer minha insuficiência, corro-me d’escrever cousas sutis. E quando constrangida de me pedir o desejo as quero tocar, foge-me o atrevimento, aconselha-me a razão que o não faça.3 Mais de dois séculos depois deste discurso notável de auto(des)legitimação da autora – historicamente distinto, como mostrou Gerda Lerner, do topos de modéstia autoral cultivado igualmente por homens, uma vez que, desde a Idade Média, é justamente ao seu sexo que as eruditas europeias atribuem o seu alegado défice da autoridade necessária para escrever, o que

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Uma Antologia Improvável, p. 347.

não acontece nos depoimentos análogos de autoria masculina4 – uma outra escritora, infinitamente mais autorizada pela sua elevada posição social, pelos conhecimentos adquiridos em condições de formação intelectual excecionalmente favoráveis e pelos avanços da consciência feminista na época em que lhe coube viver, apontará o dedo de denúncia poética para a repressão dirigida contra as mulheres portuguesas com ambições literárias. Referindo-se à sua predileção para dialogar em poesia com figuras mitológicas, assim escreve a Marquesa de Alorna na sua “Epístola a Alceste”:

Não sofre a nossa terra esta linguagem; País onde se queimam feiticeiras Descobre o mal numa inocente imagem, Como o demónio em casa das primeiras. Há ciúmes aqui até d’Apolo; Basta que uma mulher com ele fale Para ter liberdade qualquer tolo De mandar seja presa até que estale.5

Poderá argumentar-se, em relação ao poema citado, que a infração, referida pela autora, à boa moral pública vigente em Portugal teria a ver com a transgressão representada pelo paganismo das referências buscadas à cultura greco-latina e não com o sexo de quem as emprega na sua escrita. Mas é notável que o poema constrói uma narrativa tão claramente definida em termos de género, evocando no mesmo plano a perseguição às bruxas, a criação literária feminina e as normas do comportamento social impostas às mulheres (como a de não deverem interagir livremente com os homens fora do espaço restrito da casa paterna ou conjugal), equiparação esta que é um gesto claro e eficaz de análise e resistência feministas. Não é por acaso que os fragmentos que tenho vindo a citar para ilustrar algumas das facetas que definem a história das relações entre, por um lado, as instituições da literatura e cultura letrada em Portugal (que incluem o cânone literário) e, por outro lado, as mulheres

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Gerda Lerner, The Creation of Feminist Consciousness (Oxford: Oxford University Press, 1993), pp. 50-51. Uma Antologia Improvável, pp. 582-83.

portuguesas enquanto objetos e sujeitos destas instituições da cultura nacional provenham todos de uma mesma fonte, a recém-lançada compilação intitulada Uma Antologia Improvável – A Escrita das Mulheres (Séculos XVI a XVIII), organizada por Vanda Anastácio. Fruto de um projeto de investigação cujos resultados desmentem as verdades recebidas sobre a inexistência ou extrema escassez da produção literária de autoria feminina em Portugal antes do século vinte, a antologia – que, além de textos assinados por mulheres, contém também uma seleção judiciosa de discursos masculinos sobre as mulheres como consumidoras ou produtoras da cultura letrada – é um recurso utilíssimo para uma variedade de efeitos (como, entre outros, o efeito deste ensaio), mas proporciona igualmente um modelo estimulante do que poderá ser uma futura história da literatura portuguesa que procure não ser apenas uma história da literatura portuguesa masculina. Os núcleos discursivos que a organização da antologia estabelece – textos masculinos sobre a relação entre as mulheres e a cultura escrita, polémicas e querelas sobre a natureza feminina e as relações sociais entre os sexos, textos de autoria feminina que explícita ou implicitamente abordam o protagonismo das mulheres na literatura, além de obras assinadas por mulheres cujos temas variadíssimos, religiosos e profanos, não as relacionam diretamente com a questão da (des)igualdade de género – constituem-se praticamente como esboços de futuros capítulos de uma tal história imaginária, ou então como repositórios de conteúdos que poderão vir a modificar decisivamente a visão cristalizada nos capítulos já compostos das histórias já existentes (uma vez que, para citar a observação notória da ativista e teórica feminista norteamericana Charlotte Bunch, a representação revisionista do protagonismo feminino na História não se resume à receita “acrescente as mulheres e mexa bem”). E o que esta antologia e os trabalhos afins que a antecedem, que lhe subjazem e que se seguirão a ela demonstram com uma eficácia muito persuasiva é que seria, no mínimo, lamentavelmente empobrecedor para o futuro do cânone literário português não refletir um reconhecimento amplo e aprofundado das riquezas ocultas que o seu passado desconheceu.

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