O Ataque à Hierocracia por Marsílio de Pádua

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O ATAQUE À HIEROCRACIA POR MARSÍLIO DE PÁDUA Moisés Romanazzi Tôrres* Foi entre os pontificados de Inocêncio III (1198-1216) e Inocêncio IV (1243-1254) que a ideologia hierocrática se precisou.1 O que então os papas pretendiam era uma potestas indirecta ratione pecati (poder indireto devido ao pecado). Como observa Marcel Pacaut,2 já Inocêncio III reivindicava, por ser o vigário não só de Pedro mas também de Cristo, não apenas a chefia de toda a Igreja, mas o direito de, em caso de pecado, intervir no temporal depondo reis e imperadores. Inocêncio IV agravou sensivelmente esta concepção. Para ele, como salienta Jeannine Quillet,3 ser vicarius Christi e caput da Igreja não se referia somente a uma autoridade de caráter carismático; esta qualidade introduzia a uma ordem propriamente jurídica, a dos poderes legados no passado por Cristo e seus sucessores, cujos papas eram os herdeiros legítimos – a potestas plena. Este poder, de caráter essencialmente espiritual na origem, tornou-se um verdadeiro poder político: era o papa quem detinha os dois gládios do Evangelho, o espiritual e o temporal; o imperador apenas fazia uso do gládio temporal sob a delegação do pontífice. Todo o poder vem do Alto para as mãos dos papas e se estes delegam ao imperador a utilização do poder político é para que ele, em sua própria pessoa, não se sirva deste poder, mas governe em função da Igreja. O papa Bonifácio VIII, no começo do século XIV, reconstruiu de forma radical o princípio hierocrático ligando-o a uma idéia de potestas directa onde o papa, efetivamente, pretendia governar in temporalibus. A sua Unam Sancta (1302) determinava claramente, como observa David Knowles,4 que o poder dos reis e dos imperadores era apenas um poder de execução em relação ao do papa, a quem todos os soberanos deviam sempre consultar e obedecer. Na segunda década do século, a perspectiva radical reapareceu, em pleno “Cativeiro da Babilônia”, com João XXII (13161334). Foi no contexto de sua luta com o imperador Luís da Baviera que surgiu a figura de Marsílio de Pádua. Marsílio, então reitor da Universidade de Paris, compôs um extenso tratado político e eclesiológico denominado Defensor Pacis (concluído em 1324), que representou um golpe brutal nas perspectivas de governo temporal dos papas. Tendo que naturalmente fugir logo após a divulgação do Defensor Pacis (1327), refugiou-se na corte de Luís, em Munique. Foi na Alemanha que compôs as suas chamadas “Obras Menores”: Defensor Minor, Tractatus de Translatione Imperii e Tractatus de Iurisdictione Imperatoris in Causis Matrimonialibus que, entretanto, nada acrescentaram de significativo em sua doutrina. O Defensor Pacis, severamente condenado por João XXII através da bula Licet Iusta Doctrinam (sancionada em 27 de outubro de 1327), foi então atribuído a dois mestres: Marsílio de Pádua e João de Janduno. Hoje em dia, autores como Jean Chélini ainda sustentam a tese da corredação.5 Mas Yves Congar afirma que a participação do segundo,6 suposta exatamente pela censura de João XXII em 1327, foi totalmente excluída enquan*

Doutorando em História no PPGHIS da UFRJ. 323

Atas da IV Semana de Estudos Medievais to corredação pelos estudos de A Gewirth (Speculum, 1948, pp. 267-72) e M. Grignaschi (Bull. d. Ist. Sorico Ital. per Il Medio Evo 70, 1958, pp. 42596), o que, entretanto, não quer dizer que Janduno, mestre paduano amigo de Marsílio, não tivesse exercido alguma influência no texto da obra. O tratado se estrutura em três partes ou Dictiones. A Primeira parte trata propriamente da teoria política de Marsílio de Pádua. A segunda discorre acerca das concepções eclesiológicas do Paduano. A terceira, por fim, contém as conclusões principais de ambas as Partes anteriores. A Prima Dictio (Primeira Parte) apresenta três temas fundamentais : a) a origem e finalidade da civitas; b) a teoria da lei como fundamento do Estado; c) a teoria das partes da civitas, entre as quais está o sacerdócio. A obra é aberta com uma apaixonada defesa da paz e com uma referência às ameaças e aos conflitos que a fazem perigar. O grande perigo é logo denunciado, trata-se da pretensão papal e eclesiástica à plenitudo potestatis (plenitude do poder). Todo reino deve buscar a tranqüilidade, pois ela proporciona o desenvolvimento da população e salvaguarda o interesse das nações. De fato, a paz é a causa total da beleza, das artes e das ciências (...).7 Daí ser necessário desmascarar o sofisma que existe por detrás daquela causa já mencionada ( a plenitude do poder pontifícia), única em sua espécie, geradora das disputas que ameaçam todas as comunidades e reinos com prejuízos incomensuráveis.8

Marsílio vai de fato tentar demonstrar que esta pretensão carece de espaço legítimo no interior da civitas, assim organiza toda essa Prima Dictio ao redor das verdadeiras necessidades da universitas civium (“o conjunto dos cidadãos”) às que, segundo padrões aristotélicos, designa por bene vivere (viver bem). Segundo Francisco Bertelloni,9 o objetivo da ciência política de Marsílio é desenvolver uma teoria que torne possível, neste mundo, a satisfação dessas necessidades e a obtenção desse viver bem, ou seja, um fim perfeito, completo e independente de qualquer outro. Marcel Pacaut salienta que,¹º para Marsílio, a sociedade civil existe para ela própria e por ela mesma; e não, como pensava por exemplo Santo Tomás, como uma comunidade ordenada em vista de um bem que lhe é superior. De fato, a cidade é aqui completamente terrestre; recusa assim a tradição agostiniana das duas cidades e assume uma representação imanente da vida socio-política. Uma vez ordenada somente em função do viver bem, ela não é em princípio uma comunidade de aspirações morais; mas de interesses materiais. Gérard Mairet observa que Marsílio vai nos explicar que o bem extramundano não consta como princípio constitutivo da cidade. 1 1 Assim é, portanto, a origem, única, da civitas: prover as necessidades materiais e trocar mutuamente os bens capazes de satisfazê-las. No pensamento marsiliano, esse fim, o viver bem, só é possível de ser alcançado na civitas, e é exatamente sua consecução na cidade o tema com que ele se ocupa na Prima Dictio. Segundo Bertelloni,1 2 a universitas civium marsiliana tem origem e lei que lhe são próprias: ela é um conjunto de cristãos autogovernados por sua própria vontade, que assim tomam a função governamental daquele que, até então, havia pretendido exercê-la: o papa. A idéia de autogoverno abre caminho para a de consensus entendido como a condição indispensável ao processo formal de sanção da lex. Esta já não é lex por um caráter eudemonológico (por seu conteúdo bom 324

Comunicações ou mal), mas pelo seu caráter coercitivo, proveniente do consensus: o clero, assim, não só perde suas competências jurisdicionais (mediante a transferência da potestas iurisdictionis à universitas civium), mas igualmente sua preeminência no interior da civitas ao ser concebido, baseandose na idéia de organismo e na organização adequada de suas partes retirada da filosofia natural de Aristóteles, apenas como uma das partes (a pars sacerdotalis), de mesma importância que as outras e da mesma forma subordinada à vontade da universitas civium. Desta forma, recolocando o clero como uma parte entre as partes, o poder torna-se uno e indivisível, com o que desaparecem as possibilidades de conflito entre os poderes espiritual e temporal. Congar salienta que, 1 3 de fato, pelo princípio aristotélico, o sujeito político em Marsílio é de fato o próprio “povo” (o ideal da pólis); mas, pela idéia do valentior pars (parte preponderante), ele deve delegar o poder a seus representantes e finalmente ao governante, o fiel legislador humano, este que incarna a autoridade absoluta do Estado. É igualmente à totalidade da civitas, aos seus representantes, finalmente ao governante, que incumbe fazer as leis. Nossa análise do texto de Marsílio, entretanto, mostra divergências com Congar. Por um lado, as leis devem ser elaboradas pelos representantes imediatos do “povo”. Por outra, a missão do governante é, pelo seu poder coercitivo, zelar pelo cumprimento das leis; e somente usar de seu arbítrio em aspectos das ações humanas civis não regulados pela lei. Vejamos o que diz o Paduano: (...) é oportuno e muito útil que o conjunto dos cidadãos confie a homens prudentes e experimentados não só a procura, a descoberta e a elaboração das regras (...) relativos ao que é justo e útil à cidade, mas também a reflexão a respeito do que lhe é nocivo e acerca das responsabilidades comuns a todos. 1 4 (...) foi necessário confiar ao arbítrio dos governantes a competência para julgar determinados aspectos das ações humanas civis, no caso,as que não estavam reguladas pela lei em si mesmas, ou segundo determinada circunstância ou modalidade, mas naqueles outros aspectos fixados pela lei, de maneira que o dever do príncipe consiste em cumprir à risca sua determinação. (...)1 5

Com relação ao fato de Marsílio caracterizar o governante político como “fiel legislador humano”, devemos de imediato estabelecer um esclarecimento. Para o Paduano, “o legislador humano é apenas a totalidade dos cidadãos ou sua parte preponderante.”1 6 O governante como ordenador da sociedade só é assim designado por representar em si todo o conjunto de cidadãos, a universitas civium. Marsílio, a este respeito, trabalha uma representação da sociedade civil baseada num modelo de relação do todo com suas partes. A paz (cuja determinação das condições é o objeto teórico da obra) é atingida e assegurada se, e somente se, cada parte da civitas se limitar à execução das tarefas que lhe cabem. Assim, se a parte sacerdotal, encarregada da salvação, se incumbir do governo da cidade, há o risco da guerra. E este risco não está apenas no plano teórico, mas concretamente, durante toda a Idade Média, no conflito dito do Sacerdócio e do Império e sua extensão 325

Atas da IV Semana de Estudos Medievais por unidades políticas, como as cidades italianas. Já que se encontra determinada a causa da discórdia civil; falta apenas determinar as condições da harmonia. Segundo o que nos ensina Mairet,1 7 é justamente para evitar o cisma que Marsílio pensa na totalidade como unidade. E é da noção de unidade do corpo social, prossegue Mairet, que será deduzida a de unidade da parte governante: uma sociedade una conduzida por um só chefe. Este único chefe é o fiel legislador humano ou príncipe. Mas, salienta Jeannine Quillet, 1 8 o poder deste príncipe está, de fato, duplamente fundado: de um lado, sem dúvida sobre o assentimento popular; mas, de outro, também sobre a vontade divina. Assim, ressacralizando o poder político, Marsílio conclui definitivamente que o poder coercitivo do papa é apenas uma imposição. Desta forma é preciso quebrar, de uma vez por todas, uma por uma, as bases sobre a qual se eleva o pensamento hierocrático. É justamente com isso que Marsílio se ocupa na Segunda Parte da obra. A Segunda Parte ou Dictio do Defensor Pacis, bem maior que a Primeira, vai assim caracterizar-se pela crítica e desmantelamento do pensamento sócio-político eclesiástico. Crítica que se faz passo por passo, e de uma forma radical e mordaz; elaborada de acordo com os anseios políticos do Império, dos Estados Monárquicos emergentes, e os interesses das cidades italianas, ciosas de resguardar suas liberdades político-administrativas frente à ação do Papado. Já que tal desmantelamento se faz gradualmente, podemos dividir o texto em oito blocos temáticos que apresentam um plano lógico articulado. Como seria realmente impossível, neste breve estudo, apontar todos os pontos levantados por Marsílio, nestes oitos blocos, em seu combate à “monarquia papal”, optamos por apresentar somente um quadro geral. Quentin Skinner1 9 nos dá uma visão, simultaneamente precisa e resumida, da contestação marsiliana da plenitudo potestatis papalis . Após negar o poder coercitivo do clero e identificar a Igreja como uma Congregatio Fidelium, Marsílio passa ao ataque da plenitudo potestatis. Aqui ele inicia por isolar seus cinco elementos principais: a pretensão a dar a “definição dos significados” das Escrituras; a convocar Concílios da Igreja; a excomungar e lançar interditos sobre qualquer “governante ou unidade política”; a designar os ocupantes de “todos os ofícios da Igreja no mundo” e, finalmente, a de decidir sobre as características da ortodoxia cristã que definem a fé. Passa então a atacar estes pontos-chaves por duas vias distintas. Primeiro, opõe-se ao conceito de monarquia pontifícia, defendendo a doutrina do conciliarismo. Com efeito, a determinação das questões duvidosas nas Escrituras, a autoridade de excomungar qualquer governante e as regulações sobre o ritual cristão e outros tópicos de fé são questões que apenas o Concílio Geral pode legislar. O que é evidente nas Escrituras e manifesto pelas tradições da Igreja Primitiva que mostra que somente os bispos romanos de uma época ulterior passaram a assumir uma autoridade maior ordenando que fossem observados decretos ou ordenações dirigidas à Igreja Universal. A segunda via de contestação a supremacia papal foi estabelecida elevando a uma dimensão jamais vista os direitos das autoridades seculares sobre a Igreja. Dessa forma qualquer poder coercitivo necessário para regular a vida cristã deve, de direito, ser exercido apenas pelo fiel legislador humano. Apenas ele tem o direito de fazer nomeações para o sacerdócio e outras ordens sacras, apenas ele pode, aqui na figura do supremo legislador, o imperador, convocar ou ordenar um Concílio Geral e ordenar que sejam observados seus decretos e 326

Comunicações decisões e, agora na pessoa de todos os legisladores, punir os transgressores. Como, previamente havia atestado que todos os outros aspectos da plenitudo potestatis competem ao Concílio Geral da Igreja, essa elevação do legislador a uma posição de controle sobre o próprio Concílio tem o efeito de finalmente libertar as autoridades seculares inteiramente da influência eclesiástica. De fato o que se observa é a transferência da plenitudo potestatis do Papado para o fiel legislador humano e, em especial, para o imperador. Desta forma, mediante a análise do Defensor Pacis, também apoiados em uma crescente bibliografia, acreditamos haver uma profunda originalidade na obra marsiliana se comparada ao contexto geral do pensamento filosófico medieval e, também, que o aspecto inovador de seu pensamento pode ser enquadrado em cinco pontos: a) Marsílio constrói uma teoria da civitas, de suas causas, organização interna e finalidades, inteiramente independente de um âmbito teológico e, ao contrário, apoiando-se somente na tradição filosófica e na razão natural. b) Ele também institui um novo conceito de pax, baseando-a em princípios puramente naturais, segundo uma idéia de paz que corresponde somente ao estado terreno perfeito, à ausência de conflito, possível de ser realizada somente no interior da sociedade civil. c) A lex, entendida enquanto a lei humana (como a sociedade em seu conjunto e o conceito de paz), é também de origem inteiramente natural: a sua causa eficiente é o homem; a causa final é o bem terreno; a material, o homem na sua disposição à paz. Ela se fundamenta somente no consenso geral dos cidadãos; não possuindo qualquer inspiração divina. d) Marsílio atribui um papel original ao Concílio Geral, o que vai se evidenciar de forma mais precisa quando ele afirma, como estudamos, as atribui ções do Concílio. Com efeito, parece que nenhum outro teórico antes dele conferiu tanto poder ao Concílio Geral. e) Finalmente, ao tratar diretamente das relações entre os poderes, Marsílio vai, pela primeira vez na história do multissecular conflito, submeter de uma forma absoluta o domínio espiritual ao poder político. Estes aspectos inovadores, em seu conjunto, correspondem ao rompimento da tradição teológica do pensamento medieval. Esta no fundo é a grande originalidade do pensamento marsiliano, pois ele foi o primeiro pensador cristão que, por fundamentar diretamente a sua leitura em Aristóteles, distinguiu e separou a Filosofia da Teologia.

1 Preferimos a utilização do termo hierocracia ao invés de teocracia (que é o mais habitual), por se tratar da reivindicação de um poder sagrado; não de um divino. Com efeito, os papas se consideravam apenas vicarius Christi e caput da Igreja; jamais proclamaram, para si e para a Santa Sé, qualquer forma de poder divino. 2 PACAUT, Marcel. La Théocratie. L’Église et le Pouvoir au Moyen Age. Paris: Desclée, 1989. p. 115. 3 QUILLET, Jeannine. Les Clefs du Pouvoir au Moyen Age. Tours: Flammarion, 1972. p. 64- 65. 4 KNOWLES, David. A Igreja e a Coroa: Tese e Antítese (27° Cap.). In: KNOWLES,

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Atas da IV Semana de Estudos Medievais David, OBOLENSKY, Dimitri. Nova História da Igreja. A Idade Média. Petrópolis: Vozes, 1974. V.2. p. 363. 5 CHELINI, Jean. L’Église au Temps des Schismes (1294-1449). Paris: Armand Colin, 1982. p. 38 6 CONGAR, Yves. Histoire des Dogmes. L’Église de Saint Augustin à l’Époque Moderne. Paris: Cerf, 1970. p. 287. 7 CASSIODORO, VARIAE, I,1, MGH, AA, XII, 10. Citado por Marsílio de Pádua. O Defensor da Paz. Tradução e Notas de José Antônio C. R. de Souza. Petrópolis: Vozes, 1997. Parte I, cap. I, p. 67. 8 DP, Parte I, cap. I, p. 70. 9 BERTELLONI, Francisco. A Prima Dictio. In: Introdução do Defensor da Paz de Marsílio de Pádua. Tradução e Notas de José Antônio C. R. de Souza. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 27. ¹º PACAUT, Marcel. op. cit. p. 163 e 164. 11 MAIRET. Gérard. Marcílio de Pádua, por volta de 1275 - por volta de 1343. O Defensor da Paz, 1324. In: CHATELET, François, DUHAMEL, Olivier, PISIER, Evelyne. Dicionário de Obras Políticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1993. p. 764 e 765. 12 BERTELLONI, Francisco. op. cit. p. 27. 13 CONGAR, Yves. op. cit. p. 287 e 288. 14 DP, Parte I, cap. XIII, p. 143. 15 DP, Parte I, cap. XIV, p. 147. 16 DP , Parte III, cap. II, p. 692. 17 MAIRET, Gérard. op. cit. p. 766 e 767. 18 QUILLET, Jeannine. op. cit. p. 105. 19 SKINNER, Quentin. As Fundações do Pensamento Político Moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p.42.

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