Narradores pós-modernos de Javé

June 16, 2017 | Autor: Waldisio Araujo | Categoría: Cinema, Historiografía
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Descripción

NARRADORES PÓS-MODERNOS DE JAVÉ por Waldísio Araújo No filme brasileiro Narradores de Javé, de Eliane Caffé (2003), tudo é narrativa e narrativa de narrativas englobadas numa história contada em um bar situado em alguma parte do interior do Brasil. Ora, alguém já disse que todo conto narra ao menos duas histórias que se entrelaçam, e de fato o de que se trata aqui é tanto a busca de readmissão de um indivíduo à vida de uma comunidade quanto a luta desta contra sua própria extinção. Duas histórias brilhantemente contadas num filme sem maiores pretensões formais, mas tão correto na forma quanto no conteúdo. Outrora o alfabetizado Antonio Biá trabalhava no posto local dos correios, repartição prestes a ser desativada por desuso porque ninguém no povoado baiano de Javé sabia ler ou escrever. Para defender o emprego assim ameaçado, Biá passou a trocar cartas com conhecidos residentes em outras localidades, usando como atrativo temático as vidas das pessoas do povoado, que ele falseava inescrupulosamente a fim de garantir o fluxo da correspondência. Mas um dia a população veio a saber de tudo e, irritada, expulsou o indiscreto funcionário, que passou a habitar, sozinho e alcoólatra, a periferia da comunidade. Aconteceu que um dia o povoado foi surpreendido com a notícia de que uma represa seria construída na região e que todos teriam que ir embora. Como última esperança, o mesmo Zaqueu que narra no bar esses acontecimentos, sugeriu a todos que se escrevesse a história do lugar, suas origens grandiosas, a fim de provocar o tombamento oficial do local como patrimônio histórico e a consequente salvação. Restava, contudo, o problema de como transformar em escrita uma história que se dispersava oralmente por tantos indivíduos. E quem poderia escrevê-la senão o odiado e marginalizado Antonio Biá? Assim instituído à força como historiador oficial, em troca do perdão e da reinserção na vida da comunidade, Biá logo depara-se com o problema de que a história a ser escrita teria que ser objetiva, verdadeira, "científica". E vai aprendendo na prática que não lhe basta "emendar" várias histórias dispersas e apresentá-las num conjunto textual único que, no final das contas, corresponderia a uma irredutível realidade subjacente, ou seja, a um fundo “real” ao qual todas as opiniões, conjecturas e interpretações deveriam imitar “verdadeiramente” para serem dignas de participação na obra final, canônica, de certo modo definitiva. Longe de contarem e enriquecerem a mesma história de ângulos diferentes, as testemunhas históricas orais do passado de Javé já trazem construídos, instituídos e constituídos os “fatos” de

acordo com o valor que dão a si mesmas ou a seus grupos sociais, cuja importância desejam intensamente que a versão "oficial" explicite e eternize. Destarte, as personagens "históricas", suas motivações, circunstâncias e ações acabam por não serem compatíveis entre si, dissolvem-se numa profusão de narrativas ambíguas, fantásticas e heterogêneas, incapazes de garantir alguma objetividade além da óbvia. Reina a imaginação, a polissemia triunfa. Acresce que o próprio historiador depara-se com a necessidade de inserir na cadeia causal algum floreio, alguma alteração capaz de dotar de interesse e mesmo de credibilidade o escrito. Afinal, a história (como o romance ou o conto) necessita obedecer a regras de gênero de certa forma mais literárias que “científicas”, tais como a referência necessária com o mundo real, o imperativo da unidade do discurso, a obrigação de manter a verossimilhança no tratamento das inumeráveis e inevitáveis lacunas imposta pela sempre insuficiente documentação, o imprescindível controle sobre os excessos da generalização conceitual e dos juízos de valor, ou a conveniência em vigiar o uso do ritmo, da tonalidade, do ponto de vista narrativo, do estilo etc. Há, pois, uma tensão entre história como conjunto dos acontecimentos empíricos realmente ocorridos e história como narrativa deles: “A história é de vocês, mas a escrita é minha”, diz Antonio Biá. Nessa visão da incoerência do tecido historiográfico reencontramos o já "clássico" tema da morte do grande discurso, que Lyotard acostumou-nos a pensar como a própria razão de ser da pósmodernidade: destituído dos antigos valores elevados que garantiam a ordem e finalidade do universo (embora à custa de seu conhecimento), o homem não mais consegue inserir-se em uma história única e de sentido determinado, assim como não consegue imergir a vida do dia a dia numa coerência ética universalizável. Esvaziam-se de sentido único o mundo, a vida social e a própria psique, dando lugar à profusão e dispersão de sentidos sempre provisórios, em que "tudo é histórico, logo a História não existe” (Paul Veyne). Ainda que pueril e insuficiente, a argumentação zombeteira da personagem Gaudério (diante dos engenheiros da represa) contra a religiosidade popular dá a medida do quanto a descrença já começava a entranhar-se na comunidade de Javé. Há, é verdade, alguma continuidade histórica com o passado mais remoto – expressa pelo sino, trazido pelos pioneiros e desde sempre usado como sinal de convocação coletiva para a discussão dos temas de interesse comum da cidade na "ágora" que é a igreja matriz. Mas mesmo o velho e sólido sino/signo será obrigado a mudar-se, migrar para outro contexto; em suma: ressignificar-se. Os indícios de corrosão já se fazem sentir numa certa crítica conceitual implícita. Tomemos duas cenas em que os conflitos entre pessoas são mediados por questões essencialmente conceituais: 1. Disputam herança dois velhos cuja mãe, embriagando-se no dia do casamento, dormiu com o noivo e o irmão gêmeo deste. O marido perdoou a esposa mas expulsou de sua presença o irmão e o filho duvidoso, tendo com ela, um ano depois, um filho legítimo. Daí decorrem conflitos conceituais, pois o filho mais novo não sabe se o outro é seu irmão ou primo, de modo que simplesmente o chama de “Outro” e tem dúvidas se o considera filho de sua “santa mãe” ou “filho da puta”. Somente o interesse pessoal servirá então de critério, e a rejeição ao irmão terá por finalidade não dividir com ele a herança; 2. A personagem Firmino pede no bar uma caixa de fósforos, acende um cigarro e entrega uma cédula para pagar a caixa. O dono do bar diz que não tem troco e que não vende fiado; Firmino aceita então receber o troco depois, mas o dono do bar se recusa a guardar dinheiro

que não é seu. Firmino então devolve o fósforo e é recriminado por ter usado um palito antes de pagar. Também aqui os desentendimentos relacionam-se a uma referencialidade excessivamente conceitual, em vias de tornar-se independente dos devidos contextos. Desde sempre a oralidade era a única via de institucionalização das relações, mesmo no que se referia à propriedade das terras: dizia-se que entre tal a tal lugar, que a vista alcançava, eram terras de fulano, e entre tais outros as de beltrano, e isso estabelecia a posse atual e instituía a dos descendentes... Mas isso não quer dizer que as palavras flutuassem no ar e que dessem a seu emissor uma posse meramente arbitrária sobre as coisas: na verdade, eram designadas apenas as porções de terra que cada um podia cultivar. A personagem Souza chama a isso de propriedade “apenas apalavrada”, sem perceber o íntimo jogo implícito em “paLAVRA”. A própria oralidade, portanto, plantava Javé em seu solo pela palavra oral (e também pela visão), no sentido em que cultura tem a ver com cultivo. De modo que Javé não é uma cidade pós-moderna. Mas o filme tampouco é a mera soma das narrativas contadas sobre o povoado, o filme é outra coisa – Ceci n'est pas une pipe, como diria o pintor Magritte e o melhor da semiologia da segunda metade do século XX. O discurso cinematográfico, ao mostrar implicitamente a dissolução do discurso historiográfico (e de todo discurso em geral), reduplica-a no discurso da ruptura real do sujeito individual e coletivo através de seus efeitos numa cidade fictícia. Com efeito, Indalécio – o líder ancestral da comunidade de Javé – é numa versão o herói que enfrenta perigos para alimentar seu povo; noutra, é um moribundo que deixa a uma mulher (Mariardina) a glória de achar os sinais da terra prometida; em outra versão, porém, esta heroína é apenas uma louca que encontraram na região e que aponta os sinais do achamento a um Indalécio fisicamente frouxo e espiritualmente supersticioso; finalmente, para uma colônia quilombola da região existiu Indaleu, líder negro que buscava reconduzir seu povo para a liberdade de uma África que ele sequer distinguia do Brasil e que julgou ter encontrado ao “reconhecer” um lugar em que parecia morar Oxum. Por todo lado, Javé começa e recomeça pela procura de sinais. Indalécio, Indalício, Indaleu apenas aparentam ser a mesma pessoa, assim como Mariardina. Na verdade, são retratados no filme a cada vez com os rostos daqueles que, narrando seus feitos, os retratam, assim lhes concedendo existência “real”. Apenas a história de Daniel – que perdeu o medo de tudo ao deparar-se na infância com a violência bruta – parece ser pura, dura, sem enfeites, quase "cientificamente" compreensível, sem esperança outra que a de ali deixar ficar para sempre sua estática coerência ou morrer. Mas não seria isso já o advento de um niilismo que se impõe a toda a humanidade pelo excesso de "verdade" antes que pela “globalização”? Finalmente, é o próprio texto artístico que se dilui, que deixa de ser autônomo, independente, fechado em si mesmo, e se espalha caoticamente por um mundo infinito, sem ensinar outra verdade que a da própria relativização de todas as verdades: assim, pelos tentáculos da intertextualidade, o texto se dissolve em contextos despidos de tempos e espaços precisos, falando o que esconde, ocultando o que escancara, acima de tudo ironizando o texto original, negando-o quando o aceita, afirmando-o quanto mais intensamente deseja negá-lo. Introduz-se aqui, então, uma outra importante noção pós-moderna, a de ironia, o dizer-se o contrário do que se pretende: nada tendo a ensinar por si, o passado é pensado como ambiguidade que diz ao mesmo tempo o que foi e o seu oposto, e isso não dá lugar a um jogo dialético que conduziria a uma unívoca verdade...

Afinal, Antonio Biá fora expulso do povoado porque enfeitava, para o bem ou para o mal, tornandoos de certa forma mais verossímeis, os casos ocorridos com as pessoas do povoado. Era a verdadeira história que ele queria contar (e contava) sobre a comunidade, mas que não poderia salvá-la por não ser digna de ciência. Biá é poeta nato tanto no viver quanto no escrever, e sabe instintivamente que a historiografia pura é estéril para o pensamento, para a ação e para a arte – que até a poesia (como diria Aristóteles, que não diferenciava ciência de filosofia) é mais filosófica que a história. E os gritos que expulsaram Antonio Biá da pólis javeense ecoam a intertextualidade nas palavras do livro décimo da República, de Platão (tradução de Pietro Nassetti, editora Martin Claret), que sobre o poeta diz: E assim teremos desde já razão para não o recebermos numa cidade que vai ser bem governada, porque desperta aquela parte da alma [a irracional] e a sustenta, e, fortalecendo-a, enfraquece a razão, tal como acontece num Estado, quando alguém torna poderosos os malvados e lhes entrega a soberania, ao passo que destruiu os melhores. Da mesma maneira, afirmaremos que também o poeta imitador instaura na alma de cada indivíduo um mau governo, lisonjeando a parte irracional, que não distingue entre o que é maior e o que é menor, mas julga, acerca das mesmas coisas, ora que são grandes, ora que são pequenas, que está sempre a forjar fantasias, a uma enorme distância da verdade. […] Repetiremos que não devemos preocupar-nos com esta poesia, como detentora da verdade, e como coisa séria, mas o ouvinte deve estar prevenido, receando pelo seu governo interior. Expulso por falsear as verdades individuais sobre os cidadãos, Biá será convocado a resgatar a “verdade” comunitária da cidade. Indivíduo e comunidade se separam finalmente, mas de forma bem antiplatônica, antidialética mesmo, interpenetrando-se nos opostos: o excluído Biá transformase no salvador, e ao poeta fingidor exige-se que se disfarce em historiador, rejeitando-se o caráter mimético (imitativo) da arte enquanto se obriga o artista a imitar o que ele não pode ser. As incoerências acima citadas internas ao sujeito e ao discurso, irrompem portanto como intertextualidade e ironia. Nada surpreendente então que Antonio Biá vingue-se em pleno centro da república dos desesperançados – onde, rodeado por todos, denuncia a contradição trágica (logo, não dialética) de um povo analfabeto que ironicamente precisa salvar-se por meio de um livro: Javé é só um buraco perdido no oco do mundo! E daí, que Javé nasceu de uma gente guerreira, [...] se hoje é lugar miserável [...] que escreve histórias de grandeza pra esconder a vidinha rala? [...] Não vão parar a represa [por causa disso]; isso é fato... e científico! Até recentemente tendíamos a ver na arte (a literatura em particular) uma forma ao menos provisória de imortalização do homem e uma vitória da ordem sobre o caos. Hoje sabemos que também as palavras se transformam, se apagam, se superpõem, se substituem, envelhecem e se duplicam sob a superfície frágil do papel, na qual se reúnem por algum tempo. Quando recebe o caderno em branco em que deverá registrar "a grande história do vale de Javé", Antonio Biá o folheia rapidamente dobrando e apertando sua borda direita com o polegar; e o barulho que fazem as páginas imita o ruído das águas do rio hesiódico ou dilúvio bíblico que submergirá o povoado. Mas é sempre possível salvar-se um sino, um sinal, um símbolo de reunião, para que a cidade seja conclamada – doravante em outro lugar e com cidadãos radicalmente diferentes, ainda que no início

os mesmos – a decidir coletivamente (logo, tanto conflituosa quanto consensualmente) seu destino. O povo amontoa seus pertences sobre o velho automóvel e parte para o desconhecido, levando consigo o antigo sino que sempre o uniu e definiu sua pré-história (ao menos na versão contada por Zaqueu), e que lhe permitia falar, ouvir e decidir seus interesses sem precisar conhecer ou inventar a escrita. Enquanto as águas vagarosamente sobem, Antonio Biá, sentado sobre a borda de um barco (espécie de Arca de Noé sem passageiros), começa a escrever a misteriosa, inimaginável e para sempre inconclusa história futura de Javé. Seu ato inaugural, é na verdade uma aparente retomada: o salvamento do sino de sob as águas da represa, façanha recentíssima e registrada desde já por Antonio Biá, mas que já é disputada por todos os que se arvoram ingenuamente incluir-se desde o começo nas nobres origens de uma história que sequer sabem se será escrita ou contada – pois graças ao presente (essa duração tão diáfana que é apenas um sempre estar para fazer-se), não podemos deduzir do passado o que será o futuro. O melhor historiador é o que arrisca sua cultura ao mergulhar para procurar um sino sob águas que, aliás, só uma vez poderão ser adentradas.

Por Waldísio Araújo www.waldisio.com

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