Música linguagem ou linguagem música: por que música?

May 22, 2017 | Autor: C. Fischer | Categoría: Music, Music Education, Music Psychology, Educação Musical
Share Embed


Descripción



14



Catarina Justus Fischer é Pós-Doutorada em Educação pela Universidade Nove de Julho (PPGE), Doutora em História da Ciência pela PUC/SP, Mestre em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e Bacharel em Canto Erudito pela Faculdade de Música Santa Marcelina. Pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Nove de Julho (PPGE-UNINOVE).
Retirado de uma postagem das redes sociais: , [s.d.], sem autoria.
Definições e conceitos sobre o que é arte não fazem parte do escopo deste texto. Para algum esclarecimento sobre o assunto relacionado: GARDNER, Howard. Art, Mind and Brain: a cognitive approach to creativity. New York: Basic Books, 1982 e FISCHER, Catarina Justus. Arte (Música) e Educação: o diálogo necessário. [S.l.: s.n.], 2016. No prelo.
Disponível em: . Acesso em: 14 maio 2016.
Disponível em: . Acesso em: 14 maio 2016.
O contexto em que foi escrita esta afirmativa de Nettl não é o mesmo contexto do que foi apresentado acima, pois ele, em sua afirmação, refere-se à diferença dos significados da palavra música como definição nas culturas diversas, tais como a dos índios americanos Blackfoot, para os quais a palavra música engloba a dança como uma definição da própria palavra. Entretanto a inclui acima para dispersar dúvidas que possam suscitar futuramente.
Tradução livre da autora para o português.
Tradução livre da autora para o português.
O médico de D. Margarida é o Dr. Edilio Mattei Jr., que a vem acompanhando nos últimos dezoito anos.
Bromazepam – Ansiolítico da classe dos benzodiazepínicos (faixa preta). Atualmente esta medicação tem prescrição restrita devido ao fato de afetar a memória, causar dependência e levar a depressão. Também pode desenvolver tolerância no uso sistemático.
Midazolam – Agente benzodiazepínico de curta ação para indução do sono e como uma pré- medicação para a indução de anestesia.
Música linguagem ou linguagem música: por que música?
Catarina Justus Fischer



PARTE I – Teorias...

Neste arrazoado procuro abordar a música entrelaçando-a à linguagem, e mediante este exercício verificar a nossa evolução mental como espécie, apontando quais os pontos interessantes e em comum entre ambas, e buscando descobrir se é possível a linguagem estar atrelada à música, fazendo uma análise no que há de fato de útil para a utilização da música como uma ferramenta para o aprendizado, e não apenas utilizada nas aulas de música em sua forma lúdica, pois, como música e pesquisadora que sou, questiono sempre os diversos aspectos que circundam todo o conhecimento e, mais especificamente, o tema música.
Atualmente, a comparação da música com a linguagem está sendo muito discutida, tanto por musicólogos, linguistas, neurocientistas e afins, como por filósofos, músicos e educadores. As influências da música sobre a atividade mental têm despertado o interesse dos mais diversos campos do conhecimento. Foi somente há dez anos que pesquisadores (re)começaram a questionar, devido a descobertas aleatórias, o modo como o cérebro processa as várias questões que são pertinentes à linguagem e à música. Qual a razão que leva estes pesquisadores a novamente perscrutarem com tanto afinco o tema? Qual o fascínio que a música exerce sobre nós, seres humanos, que faz com que vez por outra voltemos a questionar a música como sendo algo a mais, além de ser o entretenimento, como normalmente se supõe que seja?
Na realidade, graças aos modernos exames de imagens do cérebro, da ressonância magnética e da tomografia, por exemplo, novas descobertas vêm sendo realizadas nos estudos sobre a plasticidade cerebral, e cada vez mais constata-se a modificação que a música produz nas ondas, nas sinapses (contatos entre um e outro neurônio dentro do cérebro) e na configuração cerebral.
Música, como sabemos, é, antes de qualquer coisa, som. Muito antes de a notação musical ser criada, o som organizado com a intenção de ser ouvido já existia. Podemos até nos arriscar e afirmar que, desde o início dos tempos, muito antes da linguagem ser codificada como um meio de comunicação, o som emitido pelos seres vivos já existia como uma forma de expressão. A linguagem também, assim como a música, é antes de qualquer coisa, som. Muito antes de o alfabeto ser criado, o som organizado por meio das palavras já era emitido como um meio para os seres humanos se expressarem.
A forma como nos expressamos pode diferir de cultura para cultura e de espécie para espécie.
Na Amazônia, atualmente, vive uma tribo indígena chamada Piraha, e esta tribo não possui os mesmos conceitos de linguagem que nós. Para eles, o conceito numérico inexiste e eles não têm palavras para poder nomear as cores ou para definir os sentimentos; entretanto, possuem música e uma linguagem própria para se comunicarem entre si. (PATEL, 2008).
Quando um cachorro uiva, sabemos se está em sofrimento ou, quando late, sabemos distinguir se o latido é uma manifestação de felicidade ou se é um latido ameaçador. Se eles possuem alguns conceitos definidos, nós ainda não sabemos ao certo, mas sabemos que há uma linguagem própria entre eles e que a música existe entre as espécies.
Mas o que é música, afinal, como definição? Conceituando genericamente a música, podemos dizer que ela é Mousikê, que em grego refere-se à "arte das musas". Música é a arte de organizar uma combinação coerente de sons e silêncios. De fato, a música é constituída de melodia, ritmo e harmonia, de maneira organizada. Ela é uma linguagem universal, pois podemos apreciar e nos comunicar com diversas culturas diferentes através da música. Ela é um som que engloba quatro parâmetros fundamentais: a altura, a duração, a intensidade e o timbre. E é constituída de melodia, harmonia e ritmo. A organização da música depende destes aspectos: a melodia (o conjunto de sons que soam de forma sucessiva e que são percebidos com uma identidade e sentido próprio), a harmonia (que regula a concordância dos sons e cuja unidade básica é o acorde) e o ritmo (que é a repetição dos sons e silêncios).
E quanto à linguagem, qual é a sua definição? Também, como um conceito genérico, podemos definir a linguagem como sendo a capacidade de se comunicar conceitos. É o uso de qualquer meio sistemático de comunicar ideias ou sentimentos através de signos convencionais, sonoros, gráficos, gestuais etc. Podemos destacar três dimensões dentro da linguagem: a forma (que compreende a fonologia, morfologia e a sintaxe), o conteúdo (a semântica) e o uso (a pragmática). Antes de desenvolver as suas capacidades, os seres humanos utilizavam-se de uma pré-linguagem, ou pró-linguagem, isto é, um sistema rudimentar que implica capacidades neurofisiológicas e psicológicas, como a percepção, a motricidade, a imitação e a memória.
Nota-se que tanto o conceito da música quanto o da linguagem referem-se a uma capacidade dos seres vivos de organização dos sons de uma maneira sistemática. Ora, se os seres vivos sistematizam os sons para se comunicar, logo, qualquer som sistematizado vem a ser uma forma de comunicação. Não há dúvidas quanto a nós, seres humanos, sermos da espécie que utiliza a língua para articular e se comunicar, pois nos voltamos para a linguagem sempre que queremos expressar aquilo no que pensamos ou sentimos.
Seguindo por este caminho, ao contrário da afirmação do etnomusicólogo Bruno Nettl (1983, p. 24 apud FISCHER, 2014, p. 67-68), que afirma que a música é "[...] um som humano que se comunica fora do âmbito da linguagem", a música e a linguagem apresentam diversas semelhanças e compartilham de diversas propriedades análogas (vide MAGNE; SCHÖN; BESSON, 2006; PATEL, 2008), tais como:
ambas se baseiam nos sentidos da audição e necessitam da percepção individual para a produção do som;
ambas necessitam da memória para armazenar as figuras que representam (palavras, acordes etc.);
ambas se utilizam da habilidade em combinar estas figuras através de um sistema composto de regras ou estruturas previamente estabelecidas. Tanto uma quanto a outra possibilitam diversos sistemas combinatórios;
ambas se desenvolvem através de um longo processo de aprendizado (REBUSCHAT et al., 2012, p. 137-138, apud FISCHER, 2014, p. 66).
E as semelhanças entre ambas não param apenas por aí, existem outras, mais óbvias e conhecidas, mas não menos importantes, tais como:
as duas são consideradas universais e pertencentes a todas as comunidades humanas;
ambas são aprendidas pelas crianças em tenra idade sem grandes esforços (REBUSCHAT et al., 2012, p. 137-138, apud FISCHER, 2014, p. 66);
ambas podem ser consideradas manipulativas assim como têm a possibilidade de formular fraseados expressivos e ser moduladas de acordo com os sentimentos, e também de dar ênfase às emoções que se queira transmitir (MITHEN, 2011, p. 14-23).
De acordo com Sacks (2008, p. 215), a linguagem não é apenas uma sucessão de palavras organizadas em uma ordem apropriada. A linguagem possui inflexões, entonações, tempo, ritmo e uma melodia. E ambas, a linguagem e a música, dependem dos mecanismos fonatórios e articulatórios para existirem. E ambas dependem também dos mecanismos do cérebro, dedicado à análise da complexa e segmentada mudança dos fluxos sonoros. Entretanto, ainda segundo Sacks, existem diferenças fundamentais entre a linguagem e a música (apesar de normalmente coincidirem em muito) na representação da canção e da fala, na mente humana.
Já para o compositor Hans-Joaquim Köellreutter (1915-2005), proeminente educador musical, a música é linguagem, pois utiliza-se de um sistema de signos que transmitem informações e mensagens (BALLONE, 2010).
Entretanto ninguém, em sã consciência, pode afirmar que escutar uma valsa de Strauss seja uma mesma experiência auditiva que a de escutar o discurso de um político. Isso se deve ao fato de que, quando atingimos um determinado nível de maturidade, nosso conhecimento distingue perfeitamente os domínios ao qual cada uma destas escutas pertence. Mas, pela perspectiva de uma escuta sem experiência ou conhecimento anterior, tal como a de uma criança de poucos meses de vida, acredita-se que estes dois domínios não apresentem tanta diferença um do outro. Como se sabe, os bebês, mesmo quando ainda não conseguem falar, já entendem os rudimentos da sua língua materna. Quando escutam a voz materna ou qualquer outra voz conhecida, reagem positivamente. Se estão chorando por qualquer razão, param de chorar quando escutam aquela voz conhecida. Da mesma maneira estes bebês, apesar de não conseguirem reproduzir a música que escutam, reagem às melodias que já conhecem demonstrando satisfação e contentamento (MCMULLEN; SAFFRAN, 2004, p. 289).
Segundo Patel (2008), a linguagem aprendida durante a primeira infância é aprendida implicitamente com o ritmo da língua materna e de maneira instintiva. E Patel indica que, da mesma maneira, uma composição apresenta em seu ritmo, implicitamente e como uma característica própria, a origem nativa de seu compositor.
Diversas análises foram realizadas com pequenos grupos de compositores e suas composições de teor nacionalista, nos quais os colaboradores (ouvintes) conseguiram distinguir a origem pátria destes grupos de compositores, apenas escutando suas obras orquestrais, sem nenhum conhecimento prévio destas obras ou de seus compositores, detectados apenas pelo ritmo escutado (PATEL; DANIELE, 2003 apud MCMULLEN; SAFFRAN, 2004, p. 296).
Patel et al. (1998 apud MCMULLEN; SAFFRAN, 2004, p. 297-298) demonstraram que, quando as crianças da mais tenra idade estão expostas a palavras e sentenças difíceis e por elas desconhecidas, quando as mesmas são examinadas e medidas por um eletroencefalograma, apresentam a mesma resposta eletroencefálica da que corresponde a quando estas crianças são expostas a eventos musicais inesperados.
Não se pode afirmar com absoluta certeza ainda (faltam estudos) que a linguagem e a música tenham se desenvolvido a partir de uma mesma raiz ancestral, mas sabe-se atualmente que ferimentos causados ao lobo temporal esquerdo resultam em diversos danos na fala, e que a amusia – uma deficiência patológica de produzir, reproduzir ou perceber sons musicais – está relacionada com os danos ao lobo temporal direito do cérebro, e não do lado esquerdo (PERETZ; COLTHEART, 2003). Com isto percebe-se claramente que a amusia e a afasia – distúrbio da linguagem que afeta a capacidade da pessoa se comunicar – se dão em lados opostos do cérebro. Entretanto é importante ressaltar que atualmente acredita-se que a música, quando estudada e executada por músicos, permeia ambos os lados do cérebro, pois até o presente momento o que se sabe é que anatomicamente não foi encontrado um centro neurológico específico para a música, assim como existe para a linguagem, sendo que a função musical parece estar presente difusamente nas diversas áreas do cérebro (BALLONE, 2010).
Segundo o neurologista Mauro Muskat (2015, p. 6), do Departamento de Psicobiologia da Universidade de São Paulo (Unifesp) e também graduado em regência e composição musical, a música "[...] ativa amplas regiões cerebrais, áreas complementares – e algumas até comuns – às áreas relacionadas com a linguagem (fala, leitura e escrita)".
Apesar de haver ainda muito pouco estudo com bebês e crianças pequenas, ao que parece, esta diferenciação neles não foi detectada até o momento. Isso, calcula-se, deve-se à plasticidade do cérebro em desenvolvimento dos bebês, que demonstra uma grande capacidade em se reorganizar nos eventos dos traumas cerebrais. Enfim, Peretz e Coltheart (2003) sugerem que pode haver a possibilidade de que, quando há uma lesão no cérebro, que se detecta tanto na fala quanto na produção da música, o paciente deve estar afetado não por causa da localização do trauma e, sim, por ter perdido a capacidade de compreender e/ou produzir todo o seu conhecimento, adquirido durante a maturidade.
Concluindo, o que defende Peretz é que, enquanto ainda não se têm o domínio da língua ou da música, ambas são processadas da mesma maneira pelo cérebro infantil, não distinguindo os lados do lobo temporal. Peretz acredita que pensar na linguagem e na música como possuidoras de uma origem comum poderá ajudar a entender melhor a cada uma como pertencentes a domínios individuais. (apud MCMULLEN; SAFFRAN, 2004, p. 304-306).
O musicólogo Steven Brown (2000, p. 271-300 apud FISCHER, 2014, p. 70) afirma que, em um determinado período do passado da evolução dos seres humanos, a linguagem e a música se separaram, dividindo-se em dois sistemas independentes um do outro, cada um adquirindo propriedades adicionais e únicas.
Desta forma, pode-se pensar que da mesma maneira que a linguagem possui fronteiras geográficas, sociais e de estilos, a música também as tem. Ambas podem ser agrupadas, padronizadas e seu desenvolvimento pode ser traçado e demonstrado, mesmo pertencentes a domínios diferentes.
Entretanto é nas distinções entre a música e a linguagem que detecta-se quais são as características em que uma diverge da outra. Segundo Mithen (2011, p. 11-14 apud FISCHER, 2014, p. 68), a linguagem tem como vantagem sobre a música o aspecto de ser um sistema de comunicação contendo um léxico (coleção de palavras com significados convencionados) e uma gramática (conjunto de regras para se combinar as palavras formando a expressão).
Mithen afirma ainda que, enquanto a linguagem falada transmite informações, por ser formada por símbolos que dão sua significância através das regras gramaticais, a música, com suas frases musicais, gestos e movimentos corporais, é holística, e a sua significância deriva de um todo, de uma só entidade. E, ainda, segundo Mithen (2011, p. 14 apud FISCHER, 2014, p. 69), uma grande distinção entre a música e a linguagem é que enquanto se escuta uma língua estrangeira sendo falada, se não a dominamos, poderemos apenas deduzir o que está sendo enunciado pelas expressões faciais do articulador, assim como tentar sentir se o que se está dizendo é alegre, triste, bravo ou condescendente.
Já o que ocorre com a música, é muito diferente, pois a mesma música que emocionava as pessoas no século XVIII pode emocionar os ouvintes também no século XXI. E da mesma maneira que uma música composta por um compositor alemão – digamos, Mozart ou Bach (mesmo que não falemos alemão) – pode mexer com os nossos sentimentos e com a nossa mente, assim também as músicas dos Beatles (mesmo que não falemos inglês) podem até hoje nos fazer cantarolar.
Neste aspecto, a música é de fato anacrônica, e a linguagem com certeza não é, pois a música não apresenta contornos nem limites de época, mesmo sendo possuidora de estilos típicos a cada período. Os estilos musicais do passado vão se adicionando aos estilos do presente e podem ser tanto executados quanto admirados no futuro também, com as mesmas regras de sua composição original. Já a língua, que está sempre em desenvolvimento, soaria muito estranha se hoje fosse por alguém falada como se falava no século XV. Teríamos muita dificuldade em compreender o real significado das palavras enunciadas, assim como para entender as expressões de época. Neste aspecto, pode-se afirmar que a música e a linguagem não são similares em sua forma de comunicação. A música transcende o tempo, e a linguagem se desenvolve e modifica-se com o tempo.
O musicólogo Ian Cross (2012) afirma que a música é compreendida, tanto pelo seu sentido geral como restrito, pela dinâmica dos processos históricos ou culturais. Será em vão procurar entender a música, em qualquer área do conhecimento, que não seja através da sua história ou de sua cultura. E menciona também que a música é uma ideia de sintaxe pura, expressa como som, e não se trata apenas de ser o "[...] som organizado com ritmo e melodia" (FISCHER, 2016, p. 10, no prelo).
O que se percebe é que os estudos estão se encaminhando para demonstrar que a música pode ser sim uma linguagem, ou melhor, uma outra forma de linguagem, e que quando não se tem o domínio da linguagem para a comunicação e para a expressão de sentimentos, ao que parece, a música consegue de alguma maneira completar esta lacuna.
Em Musicophillia, Oliver Sacks (2008, p. 343-348) expõe suas experiências pessoais com pacientes com demência e Mal de Alzheimer. Diversos cuidadores reportaram para Sacks que seus pacientes, diagnosticados com demência, Parkinsons ou Mal de Alzheimer, reagem positivamente quando escutando a música. E muitos destes cuidadores reportam que se comunicam de fato com o paciente através da música, e não através da linguagem, coisa que não acontece, dependendo dos danos, em outras circunstâncias.
Interessante o que diz Sacks (2008, p. 346) sobre a percepção da música e como ela interfere nas emoções dos indivíduos:

A percepção da música e as emoções podem mexer e não somente depender da memória, e a música nem precisa ser familiar para exercer o seu poder em despertar emoções. Eu vi inúmeros pacientes com demência profunda chorarem copiosamente ou ficarem arrepiados enquanto escutavam músicas jamais ouvidas anteriormente. E eu acredito que eles podem sentir e alcançar as mesmas emoções que qualquer pessoa possa sentir, e que a demência, pelo menos nesta hora não é um impedimento para as suas mais profundas emoções se manifestarem. Quando vemos este tipo de reação nos pacientes, sabemos que existe ainda um ser para se resgatar, mesmo se for através da música e somente da música que se possa efetuar este resgate.

Parte II – Estudo de caso...

Margarida hoje é uma senhora idosa de 94 anos de idade. Atualmente ela está confinada entre uma cama e uma poltrona, pois há 12 anos desistiu de caminhar. Não que ela tenha algum problema degenerativo nas pernas, mas porque isso está ocorrendo em seu cérebro. Sua mente, a cada dia, vai deteriorando-se mais e mais. Ela foi diagnosticada como tendo uma forma de demência, que pode ser até uma forma benigna do Mal de Alzheimer, se é que existe isso. Segundo o que a Mayo Clinic Staff (2016) diz,

[...] a demência não é uma doença. A demência rastreia um grupo de sintomas que afetam a memória, o raciocínio e as habilidades sociais de uma maneira tão grave que esta interfere com o funcionamento das habilidades do dia a dia. As causas da demência envolvem a perda das células nervosas dentro de diversas áreas do cérebro. A demência afeta as pessoas de maneiras diferentes, dependendo da parte em que o cérebro é afetado. Diagnosticar e determinar qual tipo de demência está atingindo o paciente é um desafio, pois para poder ser detectado são necessários que pelo menos duas áreas principais das funções mentais estejam debilitadas a ponto de interferir no dia a dia do paciente. Algumas funções mentais que podem ser prejudicadas são: a memória, a linguagem, a habilidade em focar e prestar atenção, a habilidade de raciocinar e a de resolver problemas assim como a percepção visual.

Não faz parte deste texto detalhar o que é a demência ou o Mal de Alzheimer como patologias e seus sintomas, mas apenas a título de uma melhor compreensão sobre o que se passa com a mente da Margarida é que foram descritos acima resumidamente alguns dos sintomas da demência. Mas, voltando ao que é pertinente...
Margarida é a minha sogra. Ela veio morar comigo há oito anos. Ela morava em seu apartamento e era muito mal cuidada pela sua cuidadora. Margarida enviuvou há dezoito anos e desde então ficou morando sozinha com a sua empregada/cuidadora. No começo, Margarida se tratava sozinha, ligando sempre para o seu médico que a visitava em sua residência, e tomando os remédios que o mesmo lhe receitava. Mas, com o passar dos anos quem começava a ministrar os medicamentos a ela era a cuidadora, por ordem do médico e da própria Margarida. Como eu não morava com elas, não sei determinar o que causou a deterioração da mente da minha sogra. Mas chegou uma época em que, não sei como, ela conseguia tomar os remédios de tarja preta sem a prescrição do médico dela. Inclusive um dia meu marido teve que ligar para a farmácia ameaçando de prisão o farmacêutico que lhe enviava os remédios sem a devida receita médica. Sei dizer que, depois de alguns anos, ela parou completamente de andar, não comia mais direito sozinha, engasgava o tempo todo e, por isso, vez por outra, era internada no hospital, muitas vezes dando entrada no Centro de Terapia Intensiva com diagnósticos de sobrevida nada favoráveis a ela. Começou a desenvolver diversas pneumonias devido ao fato de não conseguir engolir direito e por aspirar invariavelmente a comida para os pulmões. E, junto com tudo isso, Margarida começou a ter alucinações e diversas formas diferentes de confusões mentais, além de desenvolver mudanças drásticas em sua personalidade. Ela, que era uma pessoa gentil, e que sempre tentava agradar a todos, gradualmente foi se tornando muito violenta e agressiva. Acredito eu que este quadro tenha se agravado pelos medicamentos errados e abusivos que tomava (entre eles, doses exageradas de Bromazepan e Midazolam, nome genérico dos medicamentos). Quando aconteceu a sua última internação na UTI, ela foi desenganada pelo seu médico, e nesta ocasião prometi a mim mesma que, caso ela se salvasse, a levaria para morar comigo. Ela se salvou. E foi o que aconteceu. Ela veio morar comigo.
A primeira providência que tomei foi a de controlar todos os medicamentos receitados para ela rigorosamente. Realmente, para espanto de seu médico e do meu marido, parou de alucinar e começou a recuperar a memória e um pouco do domínio sobre sua habilidade de raciocínio e deglutição. Acho importante salientar que nunca mais (nestes últimos oito anos) ela precisou ir para o hospital para ser internada por problemas de saúde.
O que é pertinente neste relato é que neste último ano, muito lentamente dia a dia, a cada dia, mais e mais, sua memória está se esvaindo, assim como a sua capacidade de articular mais de duas palavras, ou de manter o seu raciocínio funcionando por mais de três segundos. Explico, hoje em dia ela me olha, começa uma palavra (engrolada, difícil de entender) e não consegue nem adicionar a segunda palavra para poder começar a interagir e a falar comigo. A cada dia se torna mais e mais cansativo e difícil, um grande esforço para ela pensar e falar. Quando falo com ela, parece que se cansa muito em ter que responder à uma simples pergunta: "Tudo bem, D. Margarida?". Ela me olha confusa e apenas balbucia uma palavra, às vezes, um sim, para em seguida fechar os olhos e ficar alheia a tudo e todos ao seu redor.
E é neste momento que, vez por outra, olho para ela e digo: "D. Margarida, a senhora se lembra do 'Meu limão, meu limoeiro'?". Ela me olha como se eu fosse maluca (e a cuidadora também), mas, sem me importar, eu começo a cantar: "Meu limão, meu limoeiro". E, sem titubear, sem engrolar e sem balbuciar, sem desafinar, com a voz que lhe pertencia outrora, junto comigo ela canta a música inteira, sorrindo e lembrando de todas as palavras e às vezes completando, por mim, palavras da música que eu finjo ter esquecido. E isso acontece invariavelmente algumas vezes por semana, assim como estou relatando, atualmente.
A cada dia que passa ela está mais fraquinha, mais alienada, mais confusa, chamando a sua mãe, o seu pai, esquecendo-se de quem somos, meu marido e eu, mas a cada vez que entro em seu quarto e que começo a cantar, tanto faz a música, geralmente músicas infantis, como Se esta rua fosse minha, O cravo brigou com a rosa, A canoa virou, e músicas mais complexas como Tristeza (de Heitor dos Prazeres), e Deixa isso Pra Lá (de Alberto Paz e Edson Menezes), A Felicidade (de Vinicius de Moraes) e muitas outras, ela se empertiga toda, seus olhos se acendem e brilham, e ela canta junto, com voz plena, articulando todas as palavras intactas, sem desafinar e sem titubear no decorrer da música toda!
Esta habilidade intacta em sua mente não é um desafio apenas para mim, mas o é também sem dúvida para toda a classe dos neurocientistas que estudam o tema. Minha sogra se comunica comigo através das músicas e sua memória, ao cantar as letras das músicas, está preservada. Somente através das canções que cantamos juntas é que estamos interagindo uma com a outra e eu sinto que ela está feliz, pois sorri enquanto canta. A verdade nua e crua é a seguinte: a mente pode estar danificada de uma maneira irreversível, mas, mesmo assim, a música continua intacta dentro deste cérebro tão gasto, doente e terminal, trazendo de volta as emoções e as memórias que outrora foram sentidas e vividas.
Esta minha experiência pessoal, que aqui compartilhei neste texto, tenho certeza, não é única e nem rara. Existem diversos estudos de casos com pessoas que perderam suas memórias devido a acidentes nos quais parte de seu cérebro é ceifado, ou mutilado, e que, quando confrontadas musicalmente, de alguma forma conseguem lembrar, interagir e voltar a ser, mesmo que por pouco tempo, aquele ser que um dia já tenham sido.
Como podemos perceber, ainda estamos engatinhando nos estudos e nas pesquisas sobre a linguagem da música. Mas a cada dia mais me convenço (pelas evidências que coleto aqui e ali) de que a música pode ser considerada como uma língua exótica e que deve ser aprendida por todos para o bem de nossa evolução como seres humanos.

Referências

BALLONE, G. J. A Música e o Cérebro. PsiqWeb, Internet. 2010. Disponível em: . Acesso em: 18 jun. 2016.

BESSON, M.; SCHÖN, D. What remains of modularity? In: REBUSCHAT, P. et al. (Ed.). Language and Music as Cognitive Systems. Cambridge: Oxford University Press, 2012. p. 283-291.

BROWN, S. The 'musilanguage' model of human evolution. In: WALLIN, N. L.; MERKER, B.; BROWN, S. (Org.). The Origins of Music. Cambridge, MA: Massachusetts Institute of Technology, 2000. p. 271-300.

CROSS, I. Language and Music as Cognitive Systems. Cambridge: Oxford University Press, 2012.

FISCHER, C. J. Arte (Música) e Educação: o diálogo necessário. [S.l.: s.n.], 2016. No prelo.

______. Culturas e Memórias: Paralelos entre a Linguagem e a Música. In: BAPTISTA, A. M. H.; TAVARES, M. (Org.). Culturas, Identidades e Narrativas. São Paulo: Big Time, 2014. p. 51-71.

MAGNE, C.; SCHÖN, D.; BESSON, M. Musician Children detect pitch violations in both music and language better than non-musician children: Behavioral and eletrophysiological approaches. Journal of Cognitive Neuroscience, n. 18, p. 199-211, 2006.

MAYO CLINIC STAFF. Alzheimer's disease. Disponível em: . Acesso em: 23 maio 2016.

MCMULLEN, E.; SAFFRAN, J. R. Music and Language: A Developmental Comparison. Music Perception: University of Wisconsin-Madison, v. 21, n. 3, p. 289-311, Spring 2004.

MITHEN, S. The Singing Neanderthals: The Origins of Music, Language, Mind and Body. London: Weidenfeld & Nicolson, Orion Books, 2011.

MUSZKAT, M. Transformação pela Música: Entrevista a Alicia Ivanissevichi. Ciência hoje, edição 323, v. 54, p. 6-8, mar. 2015. Disponível em: . Acesso em: 18 jun. 2016.

NETTL, B. The Study of Ethnomusicology: Twenty-nine Issues and Concepts. Urbana and Chicago: University of Illinois Press, 1983.

PATEL, A. D. Music and the Brain: The Music of Language and the Language of Music. Library of Congress. 7 nov. 2008. Disponível em: . Acesso em: 13 maio 2016.

PERETZ, I.; COLTHEART, M. Modularity of music processing. Nature Neuroscience, v. 6, n. 7, p. 688-691, july 2003. Disponível em: . Acesso em: 13 maio 2016.

REBUSCHAT, P. et al. (Ed.). Language and Music as Cognitive Systems. New York: Oxford University Press, 2012.

SACKS, O. Musicophillia: Tales of Music and the Brain. New York: Vintage Books, 2008.




Lihat lebih banyak...

Comentarios

Copyright © 2017 DATOSPDF Inc.