Mídias Relacionais

June 6, 2017 | Autor: Marcelo Amorim | Categoría: Contemporary Performance Art in the Context of Digital Arts and New Media
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Descripción

CENTRO UNIVERSITÁRIO SENAC

Marcelo Amorim

Mídias Relacionais

São Paulo, 2006

MARCELO AMORIM

Mídias Relacionais

Monografia apresentada ao Centro Universitário Senac - Lapa Scipião, como exigência parcial para obtenção do grau de especialização em Mídias Interativas. Orientador Prof. Dr. Lucio Agra

São Paulo 2006

Amorim, Marcelo Mídias Relacionais/Marcelo Amorim - São Paulo, 2006 Monografia - Centro Universitário Senac - Lapa Scipião -Especialização em Mídias Interativas. Orientador Prof. Dr. Lucio Agra 1. Arte contemporânea.2.Performance art 3. Mídias

Aluno: MARCELO AMORIM

Mídias Relacionais

Monografia apresentada ao Centro Universitário Senac - Lapa Scipião, como exigência parcial para obtenção do grau de especialização em Mídias Interativas. Orientador Prof. Dr. Lucio Agra

A banca examinadora dos Trabalhos de Conclusão em sessão pública realizada em __/__/_____, considerou o(a) candidato(a): 1) Examinador(a) 2) Examinador(a) 3) Presidente

Dedico este trabalho à todos aqueles que trabalharam pelo projeto ARTE AO(S) VIVO(S).

AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, Daniela de Castro e Silva, Fernanda Albuquerque, Helga Stein, Lucio Agra, Nino Cais, Renata Motta, Roberto Simões, Vitoria Daniela Bousso.

“Eis a definição tautológica: arte é tudo aquilo que a sociedade percebe a priori num espaço separado, numa área reservada chamada “arte” e que, por isso, nessa sua impregnada objetividade artística, pode ser colecionada com independência de todo conteúdo, a exemplo de selos ou coleópteros. Pouco importa o que a própria arte quer e como ela o representa, seus efeitos são desde sempre entorpecentes e inofensivos. (…)A arte, de certa maneira, tem de tornar-se militante com os seus próprios meios e pleitear a submissão da economia a um “cosmos” cultural a ser reinventado (e não mais herdado culturalmente), fazendo triunfar a estética do todo sobre a chamada eficiência empresarial. Somente uma arte que se supere a si mesma como crítica da própria desestetização social pode renascer para a vida.”

Robert Kurz (“O Fantasma da Arte” – Caderno Mais!- Folha de S. Paulo, 1999.Tradução José Marcos Macedo)

RESUMO

A desmaterialização do objeto de arte privilegiando o processo assim como o novo estatuto da comunicação promovido pelo surgimento das mídias interativas propicia uma condição onde o público interage ao invés de contemplar. Estabeleço aqui uma ligação entre artistas plásticos que, antes do aporte tecnológico, apontaram rumos para a interatividade nas artes e os desdobramentos decorrentes do desenvolvimento tecnológico e sua popularização. Tomo emprestado da brasileira Lygia Clark a idéia de Objeto Relacional para propor o conceito de Mídias Relacionais como uma atualização daquelas proposições interativas no contexto atual. Palavras-chave: Arte contemporânea. Performance art. Mídias.

ABSTRACT

The dematerialization of the art object focusing on its process, as well as the new status of the communication promoted for the rising of the new interactive medias produced a condition where the public interacts instead of contemplating. A connection is established here between artists – that before the arrival of technology, had pointed routes to the interactivity in arts – and the consequent unfoldings of the technological development and its popularization. We use Lygia Clark´s Relational Object idea as a starting point, to consider the concept of Relational Media as an update to those interactive proposals in the current context. Keywords: Contemporary art. Performance art. Media.

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 11 2 DISCUTINDO A RELAÇÃO ................................................................................................................ 12 2.1 INTERATIVIDADES ........................................................................................................................ 12 2.2 PAISAGEM INTERATIVA ............................................................................................................... 19 2.3 O RELACIONAL DE LYGIA ........................................................................................................... 21 2.4 UMA OUTRA ESTÉTICA: O MUSEU É UMA PEÇA DE MUSEU ................................................... 28 2.5 MÍDIAS RELACIONAIS .................................................................................................................. 32 2.6.1 FRED FOREST ........................................................................................................................... 38 2.6.2 SANDRA KOGUT ........................................................................................................................ 40 2.6.3 HELGA STEIN ............................................................................................................................. 43 2.7-ARTE AO(S) VIVO(S) .................................................................................................................... 44 2.7.1 EM OBRAS ................................................................................................................................ 46 2.7.2 CABARET LAZARUS .................................................................................................................. 47 2.7.2-a Encenação ............................................................................................................................... 48 2.7.2-b Happening ................................................................................................................................ 51 2.7.3 GAtO .......................................................................................................................................... 53 2.7.4 MEDIA PICNIC ............................................................................................................................ 55 2.7.5 MEDIA PICNIC 2.0 ...................................................................................................................... 56 3 CONCLUSÃO ................................................................................................................................... 58

1 INTRODUÇÃO

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Esta pesquisa parte da arte que se vale de propostas participativas, da arte que desloca-se do objeto e focaliza relação e processo. A arte participativa que surge na efervescência da década de sessenta e tem pontos de contato com a arte interativa feita atualmente com o uso de novas mídias. Relaciono aqui nomes que pensaram a questão da interação através de trabalhos de cunho artístico antes mesmo do florescimento da informática, avanço que modificou processos de comunicação, cognição e artísticos. De Lygia Clark empresto o nome relacional que batizou o polêmico trabalho com que termina sua carreira, e o confronto com as idéias de Nicolas Bourriaud, que também usa o termo para entender uma produção artística recente que aborda de modo geral ligações sociais, e proponho através desta articulação o conceito de Mídias Relacionais, mídias utilizadas em proposições performáticas e participativas. Aproveito tal conceito para analisar minhas experiências na prática da performance com acento interativo junto ao coletivo ARTE AO(S) VIVO(S).

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2 DISCUTINDO A RELAÇÃO

2.1 INTERATIVIDADES

Ainda hoje um conjunto de regras a respeito da arte, noções que a princípio distinguiriam o que é arte do que não é, podem ser uma pedra no caminho do receptor de arte contemporânea. Um imaginário onde reinam conceitos como exclusividade, inspiração, destreza, entre outros, características com as quais a arte atual veio romper, ainda confunde e distancia o público dos trabalhos ligados à mídias interativas, por exemplo, por não se encaixarem nestas premissas. Talvez valha a pena retroceder no tempo e pensar em Duchamp que preconiza a idéia de que a obra estava no olhar do espectador, e não em uma visão fechada proposta pelo artista conforme assinala Júlio Plaza: “O tema da ‘recepção’ percorre quase todo o século XX. M. Duchamp já afirmara que ‘é o espectador que faz a obra’ e, ‘a arte nada tem a ver com a democracia’, o que indica uma preocupação com a recepção” (PLAZA,2001) Desde Duchamp a distinção entre o que é ou não é arte perdeu sua importância, visto que essa “diferença” passa a ser produzida pelo referencial de observação. Tal idéia vai refletir em diversos trabalhos artísticos onde vai se radicalizar a questão da recepção. Muito já foi discutido sobre os graus de interatividade que determinada produção pode apresentar mesmo não sendo mediada pelas recentes tecnologias interativas. Coloca-se que “atos de leitura e recepção, pelo fato de pressuporem interpretações diferenciadas, sempre foram também atos de criação e expressões de uma certa liberdade” (MACHADO,1997,p145). Júlio Plaza faz interessante distinção ao colocar três graus de abertura na obra de arte, sendo um primeiro grau a polissemia, que pode ser encontrada em obras na literatura moderna de um autor como Joyce que exige do leitor uma posição mais

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ativa na obra; um segundo grau, instaurado pela arte de participação, esta que se configurou nas artes plásticas a partir da década de 60; e um terceiro grau mediado por computadores, com o uso de telepresença, interfaces interativas em geral (PLAZA, 2000) O termo interatividade não é novo, em 1932 Bertold Brecht (MACHADO,1997,p.145) já o usava para questionar o sistema radiofônico alemão, ou seja, não foram os radicais da década de sessenta, nem o florescimento da informática que trouxeram à tona a questão, no entanto considero que as artes plásticas merecem destaque pela instigante contribuição. Pode se dizer que, nesta discussão, que já era profunda, “a diferença introduzida pela informática é que ela dá um aporte técnico ao problema.” (MACHADO, 2002, p.145). Por isso gostaria de aprofundar aqui este segundo grau posto em prática a partir da década de 60 em que proposições artísticas darão maior autonomia ao receptor transformando-o de fato em co-autor.

“Os móbiles de Calder, os espetáculos coletivos do Living Theatre, os happenings do grupo Fluxus, as instalações e ambientes imaginados por artistas como Donald Judd, Richard Serra ou Robert Morris, os poemas desmontáveis de Raymond Queneau, os bichos de Lygia Clark, os parangolés de Hélio Oiticica são apenas alguns exemplos, dentre milhares de outros, de obras que pressupõem a intervenção ativa do leitor/espectador para a sua plena realização, que solicitam da audiência resposta autônoma e não prevista, abolindo, pelo menos nas experiências mais radicais, as fronteiras entre autor e fruidor, palco e platéia, produtor e consumidor” (MACHADO, 1997, p.145).

Entre tantos artistas, destaco aqui o papel de Allan Kaprow. A autoria do termo e do gênero artístico happening é creditada a Allan Kaprow , devido ao seu trabalho 18 happenings in 6 parts, realizado no outono de 1959, na Reuben Gallery em Nova Iorque. Aparentemente, aquela foi uma oportunidade de mostrar em âmbito público o que já acontecia para uma audiência composta por amigos e conhecidos nos ateliês e residências de artistas. “Decidindo que era hora de ‘aumentar a responsabilidade do espectador’, Kaprow colocou em seus convites a regra ‘você fará parte dos happenings; você simultaneamente irá experimentá-los’” (GOLDBERG, 2001, p.128).

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Kaprow fazia parte de uma época onde a valorização de gestos e objetos comuns era crescente em diversos campos artísticos. Aqui está um trecho escrito a seis mãos feito por ele, Robert Watts e George Brecht, na criação de um projeto que jamais veio à tona, Project in Multiple Dimensions mas que revela qual direção a arte tomava àquela altura:

“em todas as artes, somos tomados por um afrouxamento geral das formas que no passado eram relativamente fechadas, estritas, e objetivas, a formas que são mais pessoais, livres, aleatórias. E abertas, frequentemente sugerindo em seus formatos aparentemente ocasionais uma mutabiblidade e ausência de limites infinitos. Na música, conduziu ao uso do que uma vez foi considerado ruído; na pintura e na escultura, aos materiais que pertencem à indústria e à lata de lixo; na dança, aos movimentos que não são “graciosos” mas que, não obstante, vem da ação humana. Está ocorrendo um alargamento gradual do espaço da imaginação, e os povos criativos estão abrangendo em seu trabalho o que jamais fora considerado arte” (RODENBECK, 2006, p.320)1

Ali nascia um conceito de multimídia: “embora o ‘Projeto em múltiplas dimensões’ do trio nunca foi financiado, sua proposta introduziu o conceito de ‘meios multidimensionais’ que advogava o uso de materiais tecnológicos e industriais de ponta. (...) Como Kaprow observaria anos mais tarde, ‘Multimedia na arte era o espelho, a rima de cada momento da vida (que é sempre ‘multimidiática’)” (RODENBECK, 2006, p.320)2

Kaprow moveu-se de um trabalho com pintura ao estilo Expressionista abstrato da época para a chamada action collage, uma tradução daquela pintura com o uso de objetos geralmente banais. Em seguida ele trabalha com environments. Tais trabalhos

“In all arts, we are struck by a general loosening of forms which in the past were relatively closed, strict, and objective, to ones which are more personal, free, random. And open, often suggesting in their seemingly casual formats an endless changefulness and boundlesness. In music, it has led to the use of what was once considered noise; in painting and sculpture, to materials that belong to industry and the wastebasket; in dance, to movements which are not “graceful” but which come from human action nevertheless. There is taking place a gradual widening of the scope of the imagination, and creative people are encompassing in their work what has never before been considered art” (RODENBECK, 2006, p.320)

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“Though the trio´s ‘project in Multiple Dimensions’ was never funded, their proposal introduced the concept of ‘multidimensional media’, which advocated the use of cutting-edge technological and industrial materials. (…)As Kaprow would observe years later, ´Multimedia in art was the mirror, the rhyme of every moment of life (which is always ´multimedial´)” (RODENBECK, 2006, p.320)

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mobilizam outros sentidos que não apenas a visão: som, cheiro, tato. Ele trabalhava com a edição sons e freqüentou o curso de composição experimental ministrado por John Cage do qual surgiram alguns integrantes pioneiros do Fluxus.

imagem 1 Allan Kaprow, Shape, 1969, happening, Berkeley, CA. Integrando Six Ordinary Happenings, 1969. foto Diane Gilkerson.

Da idéia de environment ele parte para esta espécie de teatro ao estilo de uma colagem, batizado de happening. Neste ponto seus trabalhos passam a contemplar a recepção e a relação com os espaços. Depois de 18 happening in 6 parts, uma série de eventos parecidos passaram a ser exibidos nas galerias. Profundamente atento ao sistema da arte, Kaprow propôs trabalhos que escapavam ao circuito oficial e podiam acontecer em diferentes cidades ao mesmo tempo, ou sem data marcada. Eat(1964) em uma cervejaria abandonada, Tree(1963) na criação de galinhas de George Segal, Calling(1965) envolvia passear de carro por Nova Iorque com passageiros enrolados em papel alumínio, Moving (1967) aconteceu em vários

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apartamentos e nas ruas, Self-Service(1966) aconteceu simultaneamente por um período de 4 meses em Boston, Nova Iorque e Los Angeles; Fluids(1967) envolvia a construção de pequenos edifícios compostos por blocos de gelo em 15 lugares diferentes da cidade de Los Angeles e ainda Soap(1965) que foi subsidiada pela Universidade da Florida e foi “não-performada”. Todas estas ações dependeram da participação de pessoas, algumas delas só existem sob a forma de relato, algumas foram documentadas através de fotografias. Allan Kaprow não estava interessado em produzir obras para museus, já na década de 90 foi convidado a expor algum trabalho na galeria Grace Zabriskie em Nova Iorque e sua proposição foi trabalhar para a galerista como seu assistente por uma semana, atendendo ao telefone, trazendo café ou varrendo o chão. (RODENBECK, 2006, p.320) Segundo Suzanne Lacy o impacto de seu trabalho na chamada arte pública fica evidente de três modos:

“(…)primeiramente, ele enfatizou a importância do processo como o ‘produto’ da arte (...):’A obra de arte’, ele disse `se torna menos um ‘trabalho’ do que um processo interativo para a produção de sentido’. Em segundo, em seu compromisso com o que chamou de ‘ambigüidade de identidade e finalidade’, ele criou uma importante distinção entre arte e política. O que normalmente se perde ao examinarmos artistas performáticos que trabalham com arte pública é o papel fundamental da ambiguidade e questionamento da estrutura de seus trabalhos, porque o conteúdo ou assunto –sejam questões raciais ou o aquecimento global- é tão proeminentemente posicionado(...) Finalmente, Allan nos forneceu uma plataforma para a crítica: `uma vez que a arte parte do tradicional modelo e começa a se fundir nas manifestações diárias da própria sociedade,’ ele escreveu, ‘artistas não podem reivindicar que o que ocorre é valioso apenas porque é arte”(LACY, 2006, p.323).1

“First, he emphasized the importance of process as the “product” of art (…):’The artwork’, he said ‘becomes less a ‘work’ than a process of meaning-making interaction’. Second, in his commitment to what he called an ‘ambiguity of identity and purpose’, he set up an important distinguishing art from politics.What is often missed in the exmination of performance-based public artists is the fundamental role of ambiguity and questioning in the estructure of their work, because the content or topic-whether race relations or global warming- is so prominently positioned.(…) Finally, Allan provided a platform for criticism: ‘Once art departs from tradicional models and begins to merge into everyday manifestations of society itself,’ he wrote,’artists not only cannot claim that what takes place is valuable just because is art” (LACY, 2006, p.323).

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Ora, de certa forma tal avanço pode ser aplicado também nos trabalhos artísticos mediados por computador: processo como produto, ambigüidade de identidade e objetivo e diminuição da importância da autoria estão na pauta de todo net-artista. Talvez tais questões estejam voltando a serem discutidas devido às redes de informação, mas em 1960 tais questões estavam no ar: os “artistas da Argentina, Japão, Dinamarca, Inglaterra, e França, diretores de teatro como Augusto Boal do Brasil, e ativistas americanos como Abbie Hoffman estavam todos quebrando os limites entre a arte e a vida.” (LACY, 2006.p.323)2 O grupo Fluxus também trabalhou este limite entre arte e vida. Instaurado na década de 60 e liderado por George Maciunas, este grupo contou com o apoio de vários artistas, redigiu manifestos, publicações, promoveu eventos e ainda hoje mantém artistas atuando sob seu nome. Sua oposição às belas artes tradicionais e seu modo peculiar de privilegiar objetos cotidianos em trabalhos ousados para a época fez deste um movimento revolucionário.

“O que foi revolucionário no Fluxus foi que se removeu do conceito de arte o que se considerava que se estabelecesse a distinção- ‘ Exclusividade, individualidade, ambição...Importância, Raridade, Inspiração, Destreza, Complexidade, Profundidade, Grandeza, Valor Institucional e de Mercadoria´ citando um catálogo parcial do Manifesto Fluxus de Maciunas (1966)(MACIUNAS apud DANTO,2002) O propósito não era negar que a história da arte até esse ponto tinha sido marcada por essas qualidades. Era, mais particularmente, negar que qualquer uma delas era essencial para um conceito de arte que incluiria o ‘Simples Evento Natural, um Objeto, um Jogo, um Quebra-Cabeças ou uma Piada´. (DANTO, 2002,p.26)

Através do trabalho do Fluxus observa-se uma mudança de foco, onde o objeto de arte não mais é protagonista:“O Fluxus estava certo com relação ao fato de que a questão não é quais são as obras de arte, mas qual é a nossa percepção de algo se o vemos como arte” (DANTO, 2002,p.26).Talvez por isso uma grande parte dos

“Artists from Argentina, Japan, Denmark, England, and France, theather directors like Brazil´s Augusto Boal, and American activists like Abbie Hoffman were all breaking the boundaries bettween art and life.” (LACY,2006.p.323)

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trabalhos sob a égide do Fluxus resume-se a proposições, idéias que a princípio poderiam ser reproduzidas por qualquer um em outras circunstâncias, sejam trabalhos visuais ou performáticos.

imagem 2 Fluxus Graffitti anunciando eventos de rua 1964, New York Foto George Maciunas Fluxus Festival of Total Art and Comportment 1963, Nice FotoGeorge Maciunas

2.2 PAISAGEM INTERATIVA

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Jesús Martin-Barbero comenta a atmosfera cultural do final do século através do conceito de descentramento cultural:

“(...) na efervescência que esses anos produzem nos livros, sons e imagens, emerge um descentramento cultural que questiona radicalmente o caráter monoliticamente transmissível do conhecimento; é esse mesmo impulso que subverte a imaculada concepção e percepção da arte e que revaloriza as práticas e as experiências, iluminando uma arte de saber compartimentada, construída por objetos móveis, nômades, por fronteiras difusas, por intertextualidades e bricolages.” (MARTIN-BARBERO, 1997,p.14).

Dentro deste contexto de descentramento ainda pode-se estabelecer um paralelo entre a desmaterialização sofrida pela arte e a introdução das mídias interativas. Roy Ascott criou o termo Cyberception postulando que a rede cria uma nova cognição: “a amplificação tecnológica e o enriquecimento de nossos poderes de cognição e percepção.”(ASCOTT,1997, p.336). Segundo o autor essa nova cognição pede uma nova arte que aponta para as trocas, relacionamentos, sistemas ao invés de objetos concretos, aparências. A arte ocidental sempre se colocou como uma janela para o mundo e não uma porta de entrada para ele:

“(...) uma arte que trata da aparência, da imagem das coisas, da realidade superficial - como a arte ocidental sempre o fez - pode ter alguma relevância em nossa cultura baseada em sistemas, na qual aparição, emergência, complexidade e transformação são seminais? (...) É a Arte Internacional. E ela está morrendo. Está morrendo porque não é mais relevante para uma cultura que está progressivamente preocupada com a complexidade dos relacionamentos e a sutileza de sistemas, com o invisível e o imaterial, o evolutivo e o evanescente, em resumo, com a aparição. Questões de representação não mais nos interessam.(...) (ASCOTT,1997.p337).

O modelo clássico de comunicação (emissor-meio-receptor) vigente no mass-media, onde o emissor assume uma posição de maior destaque cabendo ao receptor apenas

aceitar passivamente suas mensagens, caduca diante da interatividade mediada pelo computador. “Com as redes de Internet, ao contrário, há uma desvinculação da narração; e se estabelece um ritual, não emotivo, mas interativo; não contemplativo, mas ativo. Enquanto na televisão ocorre um processo de ação e reação sobre um sujeito, na Internet a reação é sobre um objeto de informação” (VILCHES, 2003, p.222).

Ou seja, neste novo estatuto cabe de fato um novo papel ao emissor. Para Lucia Santaella: “Nesse novo contexto, o emissor não emite mais mensagens, mas constrói um sistema com rotas de navegação e conexões” (SANTAELLA, 2003, p.36). Tal mudança já vinha sendo apontada nas artes plásticas conforme promovia gradualmente sua própria desmaterialização e concretiza-se diante do aporte tecnológico promovido pelas mídias interativas, no entanto é importante afirmar que não basta o computador para garantir a interatividade: “a interatividade não é somente uma comodidade técnica e funcional; ela implica física, psicológica e sensivelmente o espectador em uma prática de transformação” (PLAZA,2000) O criador destes sistemas interativos deve prever que se trata de uma experiência de comunicação que difere da tradicional pensando que o usuário a quem se dirige necessita de novas competências: “A interatividade ciberespacial não seria possível sem a competência semiótica do usuário para lidar com as interfaces computacionais. Essa competência semiótica implica vigilância, receptividade, escolha, colaboração, controle, desvios, reenquadramentos em estados de imprevisibilidade, de acasos, desordens, adaptabilidade, que são, entre outras, as condições exigidas para quem prevê um sistema interativo e para quem o experimenta”. (SANTAELLA, 2003, p.41).

De modo geral a linguagem da interface, não é uma linguagem espetacular mas de gestão, ou seja, ela exige a participação do usuário para se dar. Esta linguagem contamina o estilo de vida contemporâneo reconfigurando meios de comunicação tradicionais como a TV e o jornalismo impresso. Basta perceber como a TV procura simular a web visualmente e através de recursos como a participação via

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telefone. Neste contexto, as trocas imateriais que acontecem nas redes de informação são operações rotineiras do dia-a-dia. E a arte se contamina e responde a estas transformações.

2.3 O RELACIONAL DE LYGIA

Um exemplo de percurso que se contaminou com as questões de sua época é o da artista Lygia Clark.3 O pensador inglês Guy Brett, que acompanhou toda a obra de Lygia descreve atenciosamente este caminho: “(...) O que tinha sido um espaço pictórico auto-suficiente, fictício, abriu-se ao mundo para além da moldura (...) O que tinha sido um plano liso viu-se que ocultava um espaço interior (...). O que tinha sido um objeto estático, pendurado na parede, caiu no chão e foi reconstituído como um grupo de planos móveis (...). As duas faces opostas de um plano retangular tornaram-se uma só superfície Moebius contínua (...). O metal rígido tornou-se borracha flexível, que podia assumir qualquer posição lugar ou postura (...). Um diálogo começou entre o espectador e o objeto: um objeto para o olho tornouse um objeto para o sentido do tato (...), depois para o conjunto dos sentidos (...), depois para todo o corpo (...). Estes acabaram por se tornar Objetos relacionais, como Lygia lhe chamou, que não são “apreendidos” no sentido tradicional mas, para usar palavras de Lula Vanderlei, “vividos em uma interioridade imaginária do corpo”.(BRETT,1998,p.19)

A pesquisadora Suely Rolnik dividiu a obra de Lygia em dois momentos: Primeira fase: a artista parte do plano e o desdobra no espaço sendo Bichos o seu apogeu. É verdade que os Bichos (1960) já pediam a participação do público, mas ainda assim eram peças impecáveis esteticamente e por isso potencialmente contemplativas. Contrariando sua vocação natural ficaram em pedestais e redomas de vidro: 3 Lygia Clark (1920-1988) nascida em Belo Horizonte, inicia seus estudos artísticos no Rio de Janeiro em 1947 sob orientação de Burle Max, tendo mais tarde estudado com Léger. Suas pinturas provenientes do construtivismo desdobram-se gradualmente em planos tridimensionais. A partir da década de 60 seus trabalhos passam a pedir cada vez mais a participação do público concentrando-se no efêmero da relação.

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“o modo como o sistema da arte se apropriou dos Bichos fez com que a dissolução da fronteira entre arte e vida que neles se operava tivesse seu destino interrompido e sua proliferação abortada. Reconduzidos à vitrine – e, portanto, ao pedestal – foi podada a liberdade de viverem soltos no mundo e de se beneficiarem de uma intimidade afetiva, se possível com o maior e mais variado número de outros.”(ROLNIK,2001).

imagem 3 Lygia Clark, Bicho - Monumento para todas as Situações- 1962 Alumínio 22 x 22 x 21 cm

Segunda fase: o marco inicial é Caminhando (1963), Lygia abandona gradualmente a produção de “obras de arte” em direção à subjetividade do outro. A partir de Caminhando a produção da artista torna-se mais ousada, contemplando o outro, as relações interpessoais. Pode–se dizer que a escala em que seu trabalho passa a operar é a do corpo. O diálogo de sua arte deixa de ser a respeito das formas, no âmbito da arte para se dirigir à vida, uma questão imprescindível naqueles dias:

“Assim como havia migrado do plano ao relevo e, desse, ao espaço, a obra da artista se voltará agora para o espectador, migrando do ato ao corpo e desse à relação entre os corpos para, no final, dirigir-se à subjetividade, desenhando uma trajetória inteiramente original em relação às propostas da arte não só de sua época, como também atuais.”(ROLNIK,2001)

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Nostalgia do corpo denomina uma fase que se inicia com o trabalho Pedra e ar, um simples saco plástico fechado por um elástico contendo ar e um seixo. Este trabalho ao ser apertado pelo participante cria um movimento pulsante e estabelece uma nova dimensão para a participação porque agora não se tratava apenas da proposição de uma atividade, seu objetivo era acionar o sensorial do sujeito que participava:

“a obra começa a migrar do ato para a sensação que ela provoca em quem a tocar. Além de deixar de ser redutível à sua visibilidade, e de não possuir qualquer existência isolada, a obra só se realiza na relação sensível que se estabelece entre ela e quem a manipular.”(ROLNIK, 2001)

imagem 4 Lygia Clark. Pedra e ar, 1966

Helio Oiticica, que manteve vasta correspondência com Lygia ao longo dos anos, comenta tal mudança operada a partir de Nostalgia do corpo:

“(...) para você o importante é essa descoberta, ali, e não a ’participação num objeto dado‘, pois esta relação objetal (sujeitoobjeto) está superada lá, ao passo que em geral o problema de participação mantém essa relação objetal, e os contrários.”(OITICICA, 20.06.1969, pg.115.1998)

E ainda:

“A idéia de criar tais relações está acima da de uma participação simplista como a manipulação de objetos: há a procura do que se poderia chamar de ritual biológico, onde as relações se enriqueceriam e estabeleceriam uma comunicação de crescimento num nível aberto. Eu digo aqui um nível aberto porque ele não se relaciona a uma comunicação objetal, de sujeito-objeto, mas a uma prática interpessoal que conduz a uma comunicação real aberta: o contato eu-você, rápido, breve como o próprio ato(...).”(OITICICA, 27.06.1969, pg.122.1998)

De 1972 a 1975, época em que leciona comunicação gestual na Sorbonne, Lygia estabelece junto a seus alunos a fase Corpo coletivo. São referentes a esta fase os seguintes trabalhos: Baba antropofágica (1973), Canibalismo (1973), Túnel (1973), Viagem (1973), Rede de elásticos (1974), Relaxação (1974-75) e Cabeça coletiva (1975). Baba antropofágica é o primeiro e talvez o mais conhecido trabalho referente a esta etapa que contempla a participação em grupo. As obras desta fase podem ser comparadas a uma comunicação em rede onde o gesto de um reverbera no outro sucessivamente sem uma ordem programada: “(...)um grupo de pessoas recebe um carretel de linha colorida de máquina de costura, que deverá ser colocada na boca. As pessoas sentam-se no chão ao redor de um dos membros do grupo que aceita deitar-se de olhos vendados, e deverão ir puxando a linha, depositando-a sobre o corpo deitado até esvaziar o carretel. Em seguida, enfiam as mãos no emaranhado de linhas molhadas de saliva que a essas alturas cobre todo o corpo de quem está deitado, e irão esgarçá-lo até que a trama se desfaça totalmente. Nesse momento, os olhos são desvendados e o grupo se reúne para compartilhar a experiência verbalmente. Aqui, a obra se encerra.” (ROLNIK, 2001)

É em Baba Antropofágica que se inaugura a dinâmica de sessões, elas aconteciam duas vezes por semana com duração de três horas de cada uma e terminavam com o depoimento dos participantes. Tal dinâmica em grupo desemboca nas sessões individuais de Estruturação do self com o uso dos Objetos relacionais.

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imagem 5 Lygia Clark. Estruturação do self, 1976-82

Nos Objetos Relacionais, sua última produção, qualquer interesse plástico sai de cena e a artista dá um salto em direção à subjetividade do outro. Trata-se de objetos confeccionados a partir de materiais banais, de fácil reposição e têm como finalidade proposições táteis, sinestésicas cujo alvo é a sensação e o efeito terapêutico provocado no corpo do participante. É como se, ao longo das suas experiências, gradualmente o interesse fosse migrando do olhar, para o espaço, para o toque, para a experiência sinestésica e aí para a interioridade do outro. Um caminho obstinado e radical. Ninguém melhor que Lygia para definir o Objeto Relacional:

“O objeto relacional não tem especificidade em si, como o próprio nome indica é na relação estabelecida com a fantasia do sujeito que ele se define. O mesmo objeto pode expressar significados diferentes para diferentes sujeitos ou para um mesmo sujeito em diferentes momentos. Ele é alvo da carga afetiva agressiva e passional do sujeito, na medida em que o sujeito lhe empresta significado, perdendo a condição de simples objeto para, impregnado, ser vivido como parte viva do sujeito. A sensação corpórea propiciada pelo objeto é o

ponto de partida para a produção fantasmática. (...) No momento em que o sujeito manipula, criando relações de cheios e vazios, através de massas que fluem num processo incessante, a identidade com seu núcleo psicótico desencadeia-se na identidade processual do plasmar-se.” (CLARK, Rio de Janeiro: Funarte, 1980)

Os Objetos relacionais eram utilizados na proposição Estruturação do self: o participante era convidado a ficar seminu e deitar-se em um colchão de esferas de isopor que rapidamente tomava sua forma. Em seguida a artista pessoalmente aplicava sobre as diferentes partes do corpo do sujeito uma série de Objetos relacionais. Apesar de serem essenciais na Estruturação do self e boa parte deles terem sido concebidos a partir desta proposição, alguns objetos são anteriores, foram herdados de outras fases, mudando de função e sendo rebatizados. A trivialidade das matérias empregadas, sacos plásticos, pedras, redes de feira, conchas, borrachas, luvas e outros; evita que sejam tomados por seu aspecto plástico para fruição puramente visual, enquanto que após sua experimentação no estatuto de relacional faz com que o participante nunca mais veja tais objetos da forma como os via antes. Esta é a subversão dos Objetos relacionais: fazer com que os vejamos com um potencial muito maior, o que nossa cegueira habitual não permite, que abordemos o universo cotidiano de modo sensual. E isso muito além do momento da experiência proposta pela artista, mas levada para a vida pelo participante. Segundo a pesquisadora Suely Rolnik o fio que percorre toda a obra da artista é a revelação da vida que pulsa em todas as coisas, partindo do espaço e chegando à subjetividade do espectador:

“Relendo do fim para o começo, a obra de Lygia em seu conjunto se revela movida por uma só idéia que se desdobra rigorosamente, etapa por etapa, e à qual ela busca dar consistência ao longo de toda sua trajetória como artista: despertar a percepção da vitalidade criadora em diferentes regiões da experiência humana. Primeiro, no plano, no relevo e no espaço; depois, no ato, no corpo e no encontro dos corpos, para desembocar, no fim, na criação das

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condições de possibilidade dessa percepção na subjetividade do espectador.” (ROLNIK, 2001)

Portanto se inserem aí, no fim desta trilha, os Objetos relacionais, na investigação da “vitalidade criadora” no âmbito do corpo e da subjetividade. A ligação entre arte e vida, projeto da modernidade chega aí ao seu limite quando através de seus objetos e proposições ela efetivamente transforma o espectador em participante, não apenas no plano da arte: “A proposta de “produzir uma intensificação das faculdades do espectador” se realiza concretamente quando Lygia faz sua obra no próprio coração da subjetividade do espectador, operando sua transmutação. Nessa proposta, o artista deserta efetivamente sua condição de habitante do gueto do plano poético nos processos de subjetivação e contribui para ativá-lo no coletivo, libertando o fruidor de sua condição de espectador (da obra de arte, mas também da vida).” (ROLNIK,2001)

Os Objetos relacionais atrelados à proposição Estruturação do self não foram, em sua época, avaliados como um trabalho de artes plásticas, mas apenas uma prática terapêutica experimental. Ainda hoje este trabalho é polêmico provavelmente devido à ausência de forma e ao destaque para trocas imateriais e intangíveis. Outro fator a ser considerado é o desinteresse de Lygia em delimitar o quê era prática terapêutica e artística ou em preservar sua posição de artista. Para a artista esta discussão simplesmente não valia a pena já que se considerava fronteiriça. Dar força para este tipo de discussão pressupõe acreditar em uma divisão entre disciplinas e na dicotomia arte e vida, discussão já superada pela artista em seu trabalho.

“A Estruturação do Self foi e continua sendo objeto de um infeliz mal-entendido, segundo o qual a última obra de Lygia teria se deslocado do âmbito da arte para o âmbito da terapia.” (ROLNIK, 2001)

De certa forma a culpa é da própria artista que se disse (mas também negou ser) terapeuta, Lygia na realidade preferia a idéia de fronteira para esclarecer sua condição.

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A artista também usou conceitos psicanalíticos como ferramentas para interpretar e explicar A Estruturação do Self o quê pode ser visto como uma tentativa de encontrar uma via de acesso para um trabalho complexo e pioneiro:

(...)Considerando-se o pioneirismo de sua proposta, não havia um discurso capaz de apreendê-la em toda sua radicalidade; daí ela recorrer à psicanálise que, na época, era o discurso legitimado para se referir ao trabalho com a subjetividade. O fato é que os psicanalistas não se interessaram pelo assunto e os críticos não acompanharam e continuam não acompanhando essa virada na obra de Lygia. Na melhor das hipóteses, aceitou-se que se tratava agora de terapia e não mais de arte e, sendo assim, deixou-se de pensar a respeito.” (ROLNIK, 2001)

Segundo Suely Rolnik o que temos aqui é um caso de obra a frente do seu tempo já que Lygia Clark quando inventa os Objetos Relacionais, também inventa um novo espectador de arte:

“O fruidor desloca-se efetivamente de seu lugar de espectador (da obra de arte, mas também da vida): a arte conecta-se efetivamente com a vida, como dimensão fundamental do processo de subjetivação, seu princípio criador. Através da obra de Lygia Clark produz-se o personagem que deveria substituir o espectador na cartografia criada pela arte moderna. “(ROLNIK,2001)

2.4 UMA OUTRA ESTÉTICA: O MUSEU É UMA PEÇA DE MUSEU

Ainda hoje esta produção cria desafios aos curadores e instituições sobre suas condições ideais de exposição. Uma questão já apontada nos trabalhos de Clark e Oiticica e que reverbera atualmente na problemática de se expor trabalhos interativos pensados para Internet. A autora Simone Osthoff ainda relaciona a estes trabalhos precursores as críticas de Roy Ascott ao museu:

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“De fato, os três baniram de seus trabalhos a noção de audiência, o que esgarçou os limites do experimental e experimentação. Depois da experiência de Éden, Oiticica escreveu e falou da “impossibilidade das experiências se darem nos museus e galerias”, optando por uma maneira mais marginal de trabalhar que ele denominou “subterrâneo”. A critica similar de Clark sobre as limitações do museus em relação à participação do espectador foi testemunhada por Yves-Alain Bois em um dramático confronto entre a artista e o curador de um museu em Paris em 1973 “ (OSTHOFF,1997)

E ainda:

“Ele (Ascott) vê o museu tradicional como uma instituição de práticas curatoriais datadas, carente de uma reinvenção radical. De acordo com ele não bastam novos websites, guias interativos para coleções, remodelar o aparato e arquitetura dos museus. (...)Ele clama por espaços que possibilitem a emergência de novas realidades. Sonha com um museu adaptável a sistemas complexos e cada vez mais imateriais(...) (OSTHOFF,1997)

A dificuldade ocorre quando o foco recai em algo intangível, a relação. É a partir deste viés que surge uma comparação entre os Objetos relacionais e trabalhos artísticos criados nas redes de informação, baseados em softwares enfim, realizados com a ajuda das novas tecnologias interativas. A autora Simone Osthoff estabelece paralelo na produção de Lygia Clark e as novas mídias em seu ensaio Lygia Clark and Helio Oiticica: A Legacy of Interativity and Participation for a Telematic Future onde defende que:

“Em geral, artistas Neoconcretos, entre eles Clark e Oiticica, não exploravam as possibilidades da tecnologia em seu fazer artístico. Suas trajetórias vindas de trabalhos baseados em objetos para trabalhos centrados em experiências do corpo, do material ao imaterial e de processos rígidos a moles, no entanto, abrem um campo conceitual para práticas similares àquelas da performance eletrônica e da arte das telecomunicações, com sua ênfase no fluido, em trocas imateriais” (OSTHOFF,1997)

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O foco no relacional de fato abre um outro campo a ser explorado onde uma nova estética com outras qualidades vem surgindo:

“O abandono de uma estética do encerramento e do acabamento por uma que tensiona relações entre diferentes modalidades, disciplinas e dimensões, privilegiando o que é relativo e dialógico ao invés do absoluto, idêntico e monológico, abre múltiplas conexões através de heterogêneas formas, espaços e culturas. Estes conceitos não são, no entanto, relacionados exclusivamente às aproximações tecnológicas. Estão visceralmente atados ao contínuo desenvolvimento de uma nova estética além do objeto imutável. Como os legados da interatividade em Clark e Oiticica tão agudamente ilustram, uma arte de participação continuamente funde conceitual e perceptual, material e imaterial, experiências encarnadas ou desencarnadas” (OSTHOFF,1997)

Priscila Arantes, em seu texto Interestética: Em Busca De Um Novo Paradigma Estético Na Era Digital (2004) cria um panorama de pensadores apontando um novo modo de dar conta nas mudanças de um século em que a arte vai se encontrar com a vida abolindo as dicotomias entre obra e público. Em seu trabalho cita o exemplo de Fred Forest e Mário Costa na determinação de uma “Estética da Comunicação” ainda em seu tempo apontando para as questões da arte em meios de comunicação de massa:

“A crítica à estética da forma é um dos pontos centrais dos teóricos da Estética da Comunicação já que, para estes pensadores, a produção artística, que lida com dispositivos midiáticos nega a primazia da obra de arte acabada, instaurando uma estética do evento, onde a obra é constante abertura. O que irá levar Mario Costa (1990) entre outros pensadores tais como Lyotard (1993) a um retorno à noção de sublime, já que o mistério do sublime, tal como nos mostra Kant (PERNIOLA:1997), “consiste efetivamente em distinguir, através do sensível, qualquer coisa que o sensível não pode apresentar sob o aspecto das formas”. (ARANTES, 2004)

Nicolas Bourriaud em seu livro From Relational Aesthetics (2002) tenta uma aproximação de trabalhos artísticos de produção contemporânea que investigam as relações humanas e seu contexto social e que ainda preferem a noção de uso ao

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invés de contemplação. Como exemplo do que considera arte relacional cita Rirkrit Tiravanija. Nascido em Buenos Aires e de ascendência tailandesa o artista produz um misto de performance com instalação. Em 1992 realizou em uma galeria em Nova Iorque o trabalho Untitled (Free) que consistia em cozinhar comida tailandesa para o público.

“Tiravanija colocou no espaço expositivo tudo que encontrou no escritório da galeria, incluido o diretor, que foi obrigado a trabalhar em público junto ao cheiro das refeições. (...) Na galeria ele cozinhava curries para os visitantes e os detritos, utensílios, pacotes de comida se transformam na arte exibida quando o artista não está lá.” (BISHOP, 2004, p.56).

Na realidade a comida em si pouco interessa, mas as relações potenciais que serão desenvolvidas junto aos visitantes. Bourriaud acredita que trabalhos como este são uma resposta ao excesso de relações virtuais, globalização e da mudança de orientação da economia, não mais baseada em produtos, mas em serviços. Coloca ainda que após um processo de urbanização intenso, a diminuição de espaços isolados e encontros mais freqüentes, o mesmo ocorre com a arte que não mais responde a um ideal aristocrático de território e posse para se encontrar com questões do dia-a-dia e penetrar nos “meandros das interações humanas, seu contexto social ao invés de se pretender como independente e um lugar privado e simbólico: “(...) o papel do trabalho de arte não é mais o criar um imaginário e uma realidade utópica, mas de realmente ser meio de vida e modelo de ação dentro da vida real, qualquer que seja a escala escolhida pelo artista.” (BOURRIAUD, 1998)

O autor parece apontar que esta arte, diferindo das propostas dos anos 60, tem uma tarefa menos romântica e mais próxima ao real: a tarefa de viver melhor. E a saída é criar circuitos desviantes dentro da ordem estabelecida. Enquanto o relacional de Lygia em sua radicalidade é uma operação direta na subjetividade do espectador, o relacional de Bourriaud trata de relações sociais em um contexto mais próximo, é o

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que ele chama de “microtopias”: “(...)parece mais urgente inventar possíveis relações com nossos vizinhos no presente do quê apostar em um futuro mais feliz” (BOURRIAUD, 1998) Tais circuitos abordam o relacional colocando-o como questão enquanto criam uma “arena de trocas”.

imagem 6 Rirkrit Tiravanija. Untitled (Free), 1992. 303 gallery. Nova Iorque.

“Esta ‘arena de trocas’ deve ser julgada seguindo um critério estético, em outras palavras, por analisar a coerência de sua forma, e então o valor simbólico sobre o ‘mundo’ que ele nos sugere e a imagem das relações humanas refletidas por ele” (BOURRIAUD, 1998).

2.5 MÍDIAS RELACIONAIS

Quando digo mídia me refiro a um veículo do processo de comunicação, próximo ao uso que publicitários fazem do termo mídia:

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“Veículo de propaganda é qualquer meio de comunicação que leve uma mensagem publicitária do anunciante aos consumidores, seja um boletim de associação de amigos de bairro até uma rede nacional de emissoras” (SAMPAIO, 1995, p.73)

No campo da publicidade “os veículos mais usados pela propaganda podem ser divididos em dois grandes grupos: a mídia eletrônica (TV, rádio e cinema) e a mídia posições (revistas, listas e guias, jornais e mala direta).” (SAMPAIO, 1995, p.73). Estas oito são consideradas mais nobres e usuais e são chamadas Mídias Básicas ,no entanto, cada vez mais são utilizadas as chamadas Mídias Alternativas, um sem-fim de espaços utilizados para uso publicitário. O publicitário Rafael Sampaio faz uma lista das mais utilizadas:

“Painéis em locais de circulação pública (aeroportos, estações de trem e metrô etc.); placas indicativas de rua; cabines telefônicas, bancas de jornais, pontos de ônibus, latas de lixo; táxis e ônibus (laterais, locais internos e na parte traseira externa); avião, barcos e outros veículos; relógios e indicadores de temperatura de rua; midiafone (serviços prestados pelo telefone antecedidos de alguma mensagem comercial); vídeo em salas de espera de aeroportos e rodoviárias; balões e faixas puxadas por aviões; painéis em estádios e ginásios; fitas de videocassete doméstico; e videotexto são algumas das mídias alternativas atualmente disponíveis no Brasil.” (SAMPAIO, 1995, p.73)

Caberia aqui identificar o grupo das mídias interativas compreendendo as recentes tecnologias da comunicação como internet, CDROM, DVD entre outros. Ou seja, a Mídia a que me refiro, seja ela básica ou alternativa, eletrônica, interativa ou impressa, é um espaço que veicula uma mensagem. No caso das Mídias Relacionais não com o intuito de anunciar mensagens publicitárias mas de propor relações humanas.Podemos ainda recordar que o uso de meios publicitários com finalidades artísticas já vem sendo explorado por artistas: Julio Plaza e Augusto de Campos, na década de 80, realizavam experiências em poesia visual utilizando painéis eletrônicos de publicidade. Tomo emprestado o termo “relacionais” do trabalho de Lygia Clark reverenciando a radicalidade da operação instaurada pelo trabalho da artista, fazendo referência ao seu interesse profundo em tocar o indivíduo e oferecer-lhe uma experiência que vai

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além da interação superficial através de objetos banais. Mas também me refiro ao conceito de Bourriaud de criar artisticamente “arenas de troca” que articulam relações humanas. Mídias relacionais são mídias usadas em proposições artísticas que visam à criação de um meio de expressão comum. Mídias usadas na chamada “arte da implicação”, termo cunhado por Pierre Lévy para propor um entendimento sobre o trabalho de Fred Forest. (LÉVY, 2006) O autor coloca que durante muitos anos a arte ocidental se baseou em um modelo clássico de comunicação, emissor-meio-receptor como atores bem diferenciados, mas que hoje, na atual paisagem midiática, se diluem em uma arena de trocas: “em vez de emitir uma mensagem para receptores externos ao processo de criação, e convidados a dar sentido posteriormente, o artista tende a constituir um meio, um mecanismo de comunicação e produção” (LEVY, 2006. p.68) Mais uma vez a “arte da implicação” não deve ser avaliada pelos critérios tradicionais:

“(...) a arte da implicação não constitui mais a obra no sentido clássico, até mesmo uma obra aberta ou indefinida: ela faz emergir processos, ela quer abrir uma carreira a vidas autônomas, ela introduz ao crescimento e a habitação de algum mundo. Ela nos insere dentro de um ciclo criativo, dentro de um meio vivo do qual já somos co-autores.” (LEVY, 2006 p.69).

Em um trabalho de Lygia Clark o espectador deve participar, não existe função contemplativa no Objeto Relacional. É uma linguagem de gestão assim como a internet. O trabalho participativo de Lygia está para a internet tal qual uma pintura está para a televisão. Não se contempla a internet, navega-se por ela, é necessário um engajamento outro por parte do usuário do que simplesmente assistir. Por outro lado cada vez mais as interfaces se desdobram de modo ergonômico, vejam-se os vídeo-games de simulação onde as interfaces imitam cabines de avião, carros, exigem que o usuário dance para conquistar pontos, dirija ou lave louça. Acessórios como luvas, head-

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mounted displays, tornam cada vez mais evidente o comprometimento físico do usuário na interação com os computadores. Trabalhos de arte como Les Pissenlits (Os dentesde-leão), dos franceses Edmond Couchot e Michel Bret, exigem que o visitante sopre em sensores dispostos em um pedestal diante da projeção, as flores se despetalam na tela, criando padrões gráficos. Outro trabalho onde a participação física é fundamental é Haptic Wall [Op_era] onde Daniela Kutschat e Rejane Cantoni captam os sons do ambiente que se transformam através de um software em vibrações emitidas por uma grande parede de látex onde o público se encosta. Haptic Wall integra os sons de todo o ambiente traduzindo os movimentos daqueles que ali passeiam nas vibrações da parede e o trabalho se dá apenas quando o público se dispõe a sentir de corpo inteiro a parede. Mas não é apenas por causa deste engajamento físico que é necessário tanto no Objeto Relacional quanto nas Mídias Relacionais que estabeleço esta comparação. Não é porque o usuário deve “clicar” ao invés de assistir. Não reside aí minha comparação. A analogia está no ato de criar contextos interativos de onde emergem relações. Afinal o que faz um objeto ser relacional? O que faz de um saco plástico contendo água ou conchinhas um objeto relacional? Como um objeto tão banal é capaz de resgatar a memória do corpo? Não é o plástico que faz do saco plástico um objeto relacional e sim as proposições de Lygia Clark. A artista também não abria seus inventos deixando os participantes se relacionarem à deriva com eles. A proposição é cuidadosamente construída e, após criado o contexto, nele se inserem os objetos como parte do jogo. Lygia Clark cria contextos, estratégias de sensibilização do participante e fica claro que seu objetivo não é uma interação superficial, mas provocar uma experiência profunda, transformadora e duradoura. Para tanto cria lugares próprios, regras e modos de usar cujo objetivo passa da plasticidade, da fruição do olhar e até mesmo da mera sensibilização do corpo. Por isso seus objetos podem ser quase nada. A ênfase de Lygia Clark é no criar proposições onde a subversão da

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utilidade original do objeto gera a ligação com o participante e atinge em cheio sua subjetividade. Tanto em Lygia Clark quanto em Hélio Oiticica a criação das proposições é cuidadosa e conta com um rico repertório de procedimentos em uma tentativa de ir além de propostas participativas da contracultura que envolviam uma visão de democratização na arte ou experiências de libertação do corpo através do prazer sensorial.

“A ênfase na proposição vivencial não pode ser, contudo, assimilada a compreensões equivocadas da designação “antiarte”, que a determinem como vale-tudo, em que tudo é arte e nada é arte, ou que a incluam nas chaves do “irrascionalismo”, “delírio”, “loucura”, “arte pobre” etc. Essas qualificações procedem de uma mitologia que produz a disjunção de arte e vida, ou então, quanto a Oiticica, da folclorização de suas experiências na Mangueira. A antiarte ambiental requer processos rigorosos de composição: as proposições para a participação supõem experiências de cor, estrutura, dança, palavra, procedimentos conceituais, estratégias de sensibilização dos protagonistas e visão crítica na identificação de práticas culturais com poder de transgressão” (FAVARETTO,1992, p.125)

A força de trabalhos como o Parangolé ou os Objetos sensoriais não estava no aspecto meramente plástico, sua potencialidade se expressava através da ação do outro, da relação estabelecida entre obra e participante dentro de um contexto criado e administrado pelo artista. Havia rigor na construção de regras e espaços para a sensibilização do outro e envolvia um sem número de práticas artísticas, filosóficas, sociais enfim vindas de outras disciplinas. Há uma grande semelhança neste artista criador de um contexto onde o outro participa com objetos e no criador de sistemas interativos para a internet. É neste sentido mais amplo que entendo o relacional, de modo que a analogia não se faz simplesmente porque nos trabalhos de Clark e Oiticica existe a participação ao invés da contemplação, assim como nas mídias interativas. Mas especialmente porque abrem uma arena de trocas que é construída com finalidades artísticas e trazem proposições onde o outro constrói dialogicamente o trabalho artístico no exercício da participação.

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As Mídias relacionais, neste caso, necessitam do contexto do criador para se tornarem de fato potentes como parte deste circuito que se arma. A criação deste lugar onde é possível e legítima a expressão do participante ocorre como forças não oficiais suspendendo regras, abrindo brechas por um período curto mas revigorante. Tal procedimento é o que Diana Luz Pessoa de Barros chama em seu texto Dialogismo, polifonia e enunciação de carnavalização segundo Baktin (1999, p.7). Baktin compara a festa medieval com um estado não-oficial construído ao lado do mundo oficial.

“(...) em outras palavras, com a festa, o mundo era colocado do avesso, vivia-se uma vida ao contrário, pela suspensão das leis, das proibições e das restrições da vida normal, invertia-se a ordem hierárquica e desaparecia o medo resultante das desigualdades sociais, acabava-se a veneração, a piedade a etiqueta, aboliam-se as distâncias entre os homens, instalava-se uma nova forma de relações humanas, renovava-se o mundo” (BARROS, 1999, p.7).

O que se propõe é uma renovação:

“(...) ou seja, as correlações novas e motivadas entre expressão e conteúdo são, entre outros, procedimentos de criação da ambivalência “carnavalesca” e operam uma releitura do mundo. Reformula-se o mundo pelo discurso, vê-se a realidade sob novos prismas, refaz-se o “real”. (BARROS,1999, p.7)”

E ainda questionar a verdade mais estabilizada propondo um diálogo mais amplo e mais complexo como um discurso poético diante de um discurso autoritário:

“Os discursos poéticos se caracterizam, em resumo, pela ambivalência intertextual interna que graças à multiplicidade de vozes e leituras, substitui a verdade “universal”, única e peremptória pelo diálogo de “verdades” textuais (contextuais) e históricas. Diferenciamse, portanto, dos discursos autoritários, graças à polêmica narrativa, à polifonia, à plurisotopia figurativa, à expressão semi-simbólica, recursos pelos quais se obtém a visão do direito e do avesso do mundo e se mantém a polifonia interna das vozes que dialogam no texto (BARROS,1999, p.7)”

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As Mídias relacionais são um desvio, um deslocamento que transforma a ferramenta no componente que dá a liga entre os elementos desta arena de trocas. É antes de tudo um trabalho de arte que se encontra com a vida e por isso poderia ser lido conforme proposto por Allan Kaprow (LACY, 2006) tendo-se em vista seu caráter processual, sua ambigüidade de propósito quando evita sua usual função utilitária e provoca estranhamento.

2.6.1 FRED FOREST

Os trabalhos de Fred Forest assim como algumas proposições de Lygia Clark existem apenas através da participação do outro. O artista cria circuitos desviantes onde o público é co-autor, mas no caso de Forest seu interesse é subverter a lógica das mídias, onde o emissor é todo-poderoso. Nas proposições de Forest a ironia é uma ferramenta para suscitar reações inesperadas como no trabalho O branco invade a cidade de outubro de 1973. Na ação o artista convoca pessoas a carregar cartazes em branco em uma passeata pelo centro de São Paulo, manifestação que, sendo interpretada como uma contestação ao regime militar, termina em um interrogatório no DOPS. Essa me parece uma interpretação simplista e vejo na fala de Lévy a respeito de um conjunto de ações do artista uma visão mais satisfatória:

“Os dispositivos de comunicação de Fred Forest não são feitos para emitir, mas essencialmente para ouvir. A arte do branco: repentinamente, a TV e o rádio ouvem, os cartazes não comportam inscrição alguma, a fita cassete é virgem, o jornal pede para o leitor escrever, a tela é furada. O evento chega pelo silêncio provocando difusão, pela ruptura da exposição”.(LÉVY, 2006 p.70)

Esta arte do branco é irônica porque provoca a reação ao contrariar nossas expectativas: “Tal poderia ser a fórmula da ”arte da implicação”: suscitar a obra ao invés de impô-la” (LEVY, 2006, p.70)

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Na retrospectiva de Fred Forest exposta no Paço das Artes em 2006 e curada por Priscila Arantes era notável a grande quantidade de documentação envolvendo fotografias, recortes de jornal e vídeos. Era a única maneira de abordar um trabalho tão imaterial. Lévy ainda menciona o caráter paradoxal desta arte:

“Ela valoriza o presente, o efêmero, o prazer, a vida. Mas paradoxalmente esta orientação vem acompanhada de um tipo de obsessão do rastro. O rastro é como a sombra do evento. E Fred Forest parece dedicar-se a colocar em evidência esta parte obscura da ação: o fascínio do registro quando renunciamos à memória. (...) evento pode precisamente reduzir-se à experiência do evento como rastro, ou ao rastro. (...) A posse do objeto (de arte?) substitui o prazer efêmero” (LÉVY, 2006 p.74).

Um trabalho que considero precursor no uso de mídias de forma relacional é “O som é você” realizado na rádio Jovem Pan em parceria com a pesquisadora Aracy Amaral em 1973. Colocavam um número de telefone disponível ao público que era incitado a falar, tocar, produzir o ruído que quisesse por 3 minutos. Mais tarde estas intervenções eram editadas e veiculadas na programação da rádio.

imagem 7 Fred Forest. O branco invade a cidade, outubro de 1973. São Paulo

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“O som é você” ainda coloca o problema do registro um passo adiante. Lygia Clark esforçou-se para criar um novo diálogo para sua obra des-estetizando seus objetos até um “grau zero”. No entanto, inevitavelmente, seus objetos, assim como seus escritos e documentários em vídeo e filme, ganham status de obra tradicional em exposições que tentam dar conta dos Objetos Relacionais. É como se, assumindo o controle sobre seus registros, editando-os, Fred Forest criasse uma devolução dos inputs dados pelos participantes com o intuito de contar o trabalho e prolongar a discussão a sua própria maneira.

2.6.2 SANDRA KOGUT

O trabalho Videocabines (1990) de Sandra Kogut realizado na década de 90, também operou pelo mesmo princípio: consistiu em espalhar cabines dotadas de aparelhos de vídeo em espaços públicos onde qualquer um poderia deixar sua intervenção criando um panorama de depoimentos os mais diversos. Em seu ensaio As três gerações do vídeo no Brasil Arlindo Machado comenta que o trabalho de Kogut é normalmente lido por um viés sociológico onde o inusitado dos depoimentos captados contariam a diversidade cultural dos lugares por onde suas Videocabines passaram mas o autor prefere destacar a fatura posterior destes registros: “Basta ver um minuto de qualquer trabalho de Kogut para se perceber que a realizadora não se restringe apenas à celebração de um referente interessante ou pitoresco. É no trabalho de articulação dessas intervenções, no comentário astucioso do que é dito e do que é calado, na forma com que as falas são jogadas umas contra (ou a favor de) as outras, na maneira enfim com que tudo acaba sendo de alguma forma ironizado, que está o traço mais importante da produção autoral de Kogut. Há uma distância brutal entre os aspectos pitorescos da intervenção popular nas videocabines e o fulminante resultado obtido após os trabalhos de montagem e finalização, com destaque para a utilização maciça de recursos computadorizados de pós-produção” (MACHADO, 2001,p.25)

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No trabalho da artista o excesso de legendas, grafismos, vinhetas e transições animadas competem de igual pra igual com seus entrevistados. Kogut fala que uma de suas referências é o fato dos brasileiros e outros povos que consomem produtos audiovisuais estrangeiros, estarem condicionados a lerem legendas por horas a fio, desenvolvendo assim uma outra relação com a palavra escrita:

“Em Parabolic People, de Sandra Kogut, seis línguas diferentes (inglês, russo, japonês, francês, português, wolof, alemão e espanhol) são faladas e mostradas graficamente, em três tipos de caligrafia (latina, cirílica e japonesa). A essas letras são adicionadas imagens, símbolos, logomarcas, palavras escritas a mão, e outros elementos, que adquirem a mesma importância visual que os rostos das pessoas e o ambiente que as cerca. A soma desses elementos cria uma palheta visual.”(JARDIM,2002)

O tratamento de edição é muito pronunciado em sua obra. Um trabalho inovador que poderia se encerrar nas etapas preliminares com garantido êxito prossegue como um work in progress: em sua primeira etapa pode ser lido como uma intervenção no espaço urbano ao instalar suas cabines em vias públicas, torna-se relacional quando cria um meio comum para a expressão do outro e termina como multimídia quando no meticuloso trabalho de edição resulta em peças como Parabolic people (1991). Tal apuro torna o produto final um desdobramento de uma ação efêmera, a intervenção que dá origem ao material bruto. Cabe aqui uma digressão sobre trabalhos efêmeros e seus desdobramentos em fotografia, vídeo ou multimídia. A arte da performance surge com ênfase no efêmero com o possível intuito de confrontar as relações comerciais do sistema da arte, ou seja, a princípio seria impossível vender, comprar ou colecionar uma performance fato que o tempo desmentiu. O MAM tem em seu acervo duas performances de Laura Lima e um happening de Paulo Bruscky, por exemplo, além da crescente fetichização de objetos referentes à performances clássicas da década de 60 e 70, sejam eles filmes das performances de Marina Abramovic ou vídeos documentando as proposições de Lygia Clark. Até

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mesmo objetos pessoais de Joseph Beuys valem uma pequena fortuna em leilões de arte.

“Paradoxalmente, muitos daqueles precários vídeos e fotografias dos pioneiros da arte da performance como Acconci, Yoko Ono, Carolee Schneemann, Hannah Wilke ou Marina Abramovic, tornaram-se procurados como “relíquias” o que contribui à exaltação da performance que se encontra no cerne das autoridades do museu e na restauração metafórica daquela ‘aura’ que Walter Benjamim acreditou banida para sempre com a introdução das tecnologias da reprodução” (CUEVAS, 2002, p.16)

Quero dizer: se é inevitável que um trabalho efêmero se torne através dos mecanismos institucionais uma obra palpável mesmo que apenas resíduo da ação original, é melhor que quem o faça seja o próprio artista. E ainda vale lembrar que tais desdobramentos do efêmero contaminam as ações logo em sua concepção. Artistas como Mathew Barney, Janaina Tschäpe, Mariko Mori, Vanessa Beecroft fazem performances que só são conhecidas pelo grande público através da produção imagética que delas resulta. Tais performances são concebidas pensando já em seu rendimento midiático desde o princípio seja o meio escolhido fotográfico ou multimídia. O que Roselee Goldberg chama de Performed Photography se referindo aos trabalhos de Catherine Opie, Yasumara Morimura que “produzem a sensação de se assistir a uma elaborada performance privada” (GOLDBERG, 2001) poderia ser atualizado para Performed Multimedia para trabalhos que se desdobram em mídias interativas por exemplo. Acredito que a proposição relacional de Sandra Kogut com as Videocabines itinerando pelo espaço urbano poderia ser contada de inúmeras maneiras mas a artista nos dá sua versão quando edita Parabolic People.

2.6.3 HELGA STEIN

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Outro trabalho que considero exemplar para o conceito de Mídias Relacionais é o projeto Argos concebido pela artista multimídia Helga Stein e exposto no Nokia Trends Festival 2004, apresentado no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo.Segundo a própria artista:

“Neste aparato de visão semelhante a um par de óculos, estão acoplados visualizadores de imagens digitais para onde o público enviará através de infravermelho, imagens de olhos e bocas feitas em celulares equipados com câmeras fotográficas. (...) Ao mesmo tempo em que lança ao público a questão de como as novas tecnologias poderão ser usadas para expressar a sua subjetividade, Argos já indica a resposta. Os diversos olhos e bocas enviados ao aparato darão forma a um rosto miscigenado e mutante, construído pela diversidade fisionômica e pela forma particular com que cada pessoa manipula o equipamento para obter a imagem, fotografando outros ou a si próprio.” (STEIN, 2004)

imagem 8 Helga Stein. Argos, 2004 estrutura metálica, visualizadores de imagem digital(monóculos e medalhões), telefones celulares com camera fotográfica.

Aqui chegamos ao uso de mídias interativas de modo relacional já que Argos reverte o uso de celulares dotados de câmeras fotográficas e pequenos displays de imagem para uma observação sobre nossa obsessão por tais imagens, em como não podemos

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mais viver sem a possibilidade de fotografar e imediatamente postar tais imagens via web. Ao mesmo tempo exige uma troca entre pessoas ao criar regras: é preciso fotografar-se, enviar as imagens aos aparelhos da artista, vestir o aparato que ela fornece para o trabalho se dar. Todas estas operações são realizadas corriqueiramente pelos usuários de telefonia móvel, o diferencial de Argos é revelar o “monstro de mil olhos” que estamos enfrentando através da indumentária e das regras do jogo criado pela artista. Se Lygia Clark através de seus Objetos relacionais propõe operar na subjetividade do participante, Fred Forest pode ridicularizar a prepotência dos mass media, Sandra Kogut mapear a diversidade e Helga Stein questionar o embotamento dos sentidos, falar ao olhar zapper que, acostumado a surfar pelos meios, nada vê com profundidade. Mas, sobretudo tais artistas criam arenas de troca com o uso de mídias.

2.7-ARTE AO(S) VIVO(S)

O desejo de realizar esta pesquisa parte da minha necessidade de contextualizar experiências práticas que tenho desenvolvido na área de performance com o uso de mídias junto ao coletivo ARTE AO(S) VIVO(S). Este que é um grupo de artistas atuante na confluência das linguagens artísticas e interessado no remix como ferramenta para a criação. Estabelecido em 2000 e baseado em São Paulo, agrega uma equipe multidisciplinar envolvendo designers e performers. A combinação entre artes do corpo e artes visuais resulta em fotografias, vídeos e performances. O nome ARTE AO(S) VIVO(S) é um trocadilho com a expressão Live Art, cunhada por RoseLee Goldberg (2001) para agrupar trabalhos com ênfase no efêmero, e também denota o interesse do grupo por proposta participativas. A interação com o público é uma questão recorrente nos trabalhos do coletivo e acontece tanto na Internet quanto nas performances que incitam o visitante/espectador

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a participar nas ações propostas, geralmente posando para fotografias, interagindo com a captação de imagens em vídeo, vestindo figurinos, interatuando com o grupo. Posteriormente, os registros em foto e vídeo dessa participação pública na performance se transformam em material multimídia que é disponibilizado periodicamente em sites de relacionamento como Flickr, Multiply , YouTube e no próprio website do grupo. Além de intervenções urbanas apresentadas em festivais de arte pública como EIA (Experiência Imersiva Ambiental) e Virada Cultural, seus trabalhos já foram apresentados em instituições de reconhecido valor cultural, tais como: Centro Cultural Elenko KVA (2000), Centro Cultural São Paulo (2004), SESC-Consolação (2004), Senac: Comunicações e Artes (2005) e Cinemateca Brasileira (2005), Paço das Artes (2005), Galeria Vermelho (2006) e Centro Universitário Belas Artes de São Paulo (2006). Boa parte dos trabalhos do coletivo ARTE AO(S) VIVO(S) são proposições ao público em consonância com a herança de Lygia Clark e a produção recente qualificada como relacional por Nicolas Bourriaud. Como nos Objetos relacionais elas apostam no encontro entre sujeito e mídia, fazendo do propositor apenas o criador e administrador de um contexto onde o objetivo é oferecer uma experiência ao participante. Trabalhos como Em obras (2002), Cabaret Lazarus (2004), GAtO (2005/2006) e Media–Picnic (2005) tem caráter convidativo e envolve o uso de mídias como a fotografia e o vídeo. Estas proposições que se estruturam em “arenas” e “premissas” são de fato o trabalho artístico e ele está condicionado à participação do outro. O próximo passo a ser dado pelo grupo é utilizar de maneira mais incisiva mídias interativas de modo relacional como no projeto Media Picnic 2.0 que envolve o uso de câmeras digitais, internet e o site de relacionamentos Flickr.

2.7.1 EM OBRAS

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A performance Em Obras criava no extinto espaço Juvercinah na Vila Madalena, São Paulo-SP, um estúdio fotográfico. Na arara, peças de roupa “impossíveis” pedem ao participante criatividade ao vesti-las, um maquiador estava à disposição transfigurando o interator, que ainda tinha o direito de escolher uma música ao DJ e finalmente posar para as câmeras. Podemos também nos lembrar, neste momento, do retrato que Man Ray fez do alter-ego feminino de Marcel Duchamp, Rrose Selavy, assim como os autoretratos que Andy Warhol fez usando peruca loira e batom vermelho. Estas obras destacaram o potencial do meio fotográfico para abordar os meandros da identidade. Um mês após a ação, as fotografias dos rostos dos participantes estampadas em tecidos de grandes dimensões foram expostas no mesmo lugar, ou seja, como resultado da ação efêmera, temos uma exposição onde os freqüentadores do espaço se tornaram obras de arte.

imagem9 ARTE AO(S) VIVO(S). Em Obras, 2002 (fotos dos participantes).

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2.7.2 CABARET LAZARUS

Cabaret Lazarus é um espetáculo multimídia que articula artes plásticas, música, teatro e vídeo, criando um ambiente de interação com o público. O mote do espetáculo é a ressurreição de Lázaro, o personagem bíblico morador da Betânia que ficou morto por quatro dias e milagrosamente ressuscitou ao chamado de Jesus. O roteiro cria intertextualidade entre a obra de Hilda Hilst, Silvia Plath e a própria Bíblia numa linguagem crítica. A estrutura do espetáculo cruza os rituais funerários brasileiros que descendem dos “Itambis” africanos, (onde as pessoas aproveitam a ocasião do velório para não só render homenagens ao morto, mas também beber, comer, cantar e se divertir (o que comparece também no dia dos Mortos, no México) com o ambiente livre e boêmio do Cabaré. O espetáculo, que se inicia como um velório, termina de modo festivo como um grande happening onde o público atravessa a fronteira entre palco e platéia e comemora com o elenco, bebendo, dançando, se manifestando ao microfone e especialmente posando para as câmeras de foto e vídeo. Esta proposição gerou centenas de imagens como resíduo da passagem do público. Tais imagens passam a integrar a peça no cenário e nas projeções realizadas, ou seja, o público torna-se espetáculo ao longo da temporada. Cabaret Lazarus estreou no Espaço Cênico Ademar Guerra (porão) no Centro Cultural São Paulo. Esteve em temporada de 7 de setembro a 21 de outubro de 2004 completando 21 sessões. Cabaret Lazarus tem aproximadamente 60 minutos de duração; digo aproximadamente porque sua duração pode variar radicalmente de uma sessão a outra: a primeira metade do espetáculo é teatro e dura 30 minutos, mas a segunda metade é happening e sua duração depende da participação da platéia podendo render até 30 minutos. A idéia era ressaltar a qualidade de interação entre dois modelos distintos, criar o pacto teatral

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apenas para descontruí-lo. Com o intuito de abranger melhor a “arena de trocas” que compõe Cabaret Lazarus, escolho aqui analisar apenas alguns aspectos que dividirei em “encenação”e “happening”.

imagem 10 ARTE AO(S) VIVO(S). Cabaret Lazarus, 2004. Centro Cultural São Paulo.

2.7.2-a Encenação

O espectador que vai assistir Cabaret Lazarus é recebido com uma procissão da qual passa a fazer parte. Ele está no velório de Lázaro. Este ambiente de luto é cuidadosamente criado para então ser destruído e remontado sucessivamente. O único conflito dramático criado na peça é: será que Jesus virá ressuscitar Lázaro? Para tanto a questão é reiterada na voz de diversos personagens, ao mesmo tempo

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em que a imagem clássica de Jesus, um verdadeiro “príncipe” de olhos azuis, é explorada em recursos como a projeção em vídeo. O universo de Cabaret Lazarus é um universo estilhaçado e necessariamente incompleto onde personagens também recortados deambulam desorientados oscilando entre extremos. Esta condição é transparente em todos os personagens: -o “Bêbado” é a falência de valores e é o dedicado trabalhador do suporte técnico; -o Jesus idealizado (personagem que é apenas imagem em vídeo) é o operário comum chamado Jesus como tantos outros que atendem pelo nome do Salvador; -“Maria”, a irmã submissão e ilusão, surge como uma rebelde e transgressora Sylvia Plath e seu poema Lady Lazarus em que reivindica o direito ao suicídio; -“Marta” é a irmã fortaleza e o abandono e desilusão de uma decadente cantora de cabaré que canta Ronda abraçando a imagem de Jesus contra o peito, nostálgica de um Cristo amante que lhe deixou e/ou que ela própria tratou de matar; -Lázaro está morto ou apenas está muito bêbado, é ressurreto e está agora muito cansado e de ressaca. A ambigüidade também é explorada na encenação: -O espaço é o velório de Lázaro, é o cabaré e a festa rave, -A música vai do lamento popular ”excelência”, cantada ainda hoje no interior do Brasil para encomendar as almas ao céu, para o clássico da boemia Ronda do compositor paulistano Paulo Vanzolini e também ao techno. -As cenas se alternam entre dramaticidade e esquematismo, entre performance art e teatro tradicional. Ou seja, a peça parte de um mote cristão, familiar a todos e busca visões dissonantes para criar um panorama mais complexo tangenciando assuntos como morte, sexo, ressurreição, arte, esperança, ilusão. É uma justaposição em que colidem o esperado,

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o seguro com o inusitado. O que Bakhtin chama de carnavalização, um estado nãooficial construído ao lado do mundo oficial. Tal procedimento é o que Diana Luz Pessoa de Barros chama em seu texto Dialogismo, polifonia e enunciação de carnavalização segundo Bakhtin (1999, p.7). Bakhtin compara a festa medieval com um estado não-oficial construído ao lado do mundo oficial.

“(...) em outras palavras, com a festa, o mundo era colocado do avesso, vivia-se uma vida ao contrário, pela suspensão das leis, das proibições e das restrições da vida normal, invertia-se a ordem hierárquica e desaparecia o medo resultante das desigualdades sociais, acabava-se a veneração, a piedade a etiqueta, aboliam-se as distâncias entre os homens, instalava-se uma nova forma de relações humanas, renovava-se o mundo” (BARROS, 1999, p.7).

O que se propõe é uma renovação: “(...) ou seja, as correlações novas e motivadas entre expressão e conteúdo são, entre outros, procedimentos de criação da ambivalência “carnavalesca” e operam uma releitura do mundo. Reformula-se o mundo pelo discurso, vê-se a realidade sob novos prismas, refaz-se o “real”. (BARROS,1999, p.7)”

O texto de Cabaret Lazarus é uma colagem de outros textos. Autores como Hilda Hilst (fragmentos do conto “Lázaro” do livro de prosa “Ficções”, ed. Quíron,1977) e Sylvia Plath (a poesia “Lady Lazarus” do livro “Ariel”, 1965) estão lado a lado com falas retiradas da Bíblia e textos originais. Se o dialogismo é o princípio constitutivo da linguagem segundo Bakhtin (BARROS, 1999,p.2) então por que não colocá-lo a nu? Ao evidenciar o corte seco entre diversas vozes, a dramaturgia evidencia o backstage da linguagem. Como cenário temos ao fundo uma série de tecidos estampados com fotos de participantes, rostos gigantes provenientes da proposição “Em Obras”, realizada pelo grupo em 2002, imagens que se relacionam à ação adiante, mas que nunca se integram

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totalmente, nunca sucumbem como cenário porque, a priori, contradizem a cena. Herdeiro da anti-verossimilhança cenográfica de Bertolt Brecht (FERRARA, 1981, p.37) este cenário contribui com o afastamento. Completando esta situação um dos panos da instalação é falso. Revela-se a seguir como tela de retroprojeção onde imagens pré-gravadas, assim como takes da cena em tempo real são projetados. No momento máximo de reforço deste afastamento uma personagem comenta: -Um minuto pode parecer uma eternidade. E está começando agora. A partir daí o telão registra uma fatia do próprio público com uma câmera escondida gerando invariável desconforto:

“(...)Para Brecht, o afastamento, que pressupõe a ação do público, é uma resultante inalienável dos recursos próprios de uma era científica, que impregna a ação de representar onde ator e público são espectadores de si próprios.”(FERRARA, 1981, p.39).

2.7.2-b Happening

O happening se inicia após a “ressurreição” de Lázaro. Lázaro é acordado da sua morte quando Jesus, o funcionário do suporte técnico, administra-lhe cachaça. A partir daí o palco faz as vezes de pista de dança, os atores deixam de estar protegidos pela carapaça do personagem, não possuem mais um roteiro pré-determinado, dançam, vão ao microfone e lêem textos críticos ou interagem com o público sempre a seu critério. Enquanto isso um estúdio de fotografia é armado e o público pode se usar de quaisquer objetos de cena para posar. Um câmera man acompanha a movimentação que pode ser acompanhada pelo telão. Mais uma vez a estratégia da inversão e da carnavalização entra em cena. Após 30 minutos de pacto teatral, o público se vê na condição de ator e centro das atenções e o elenco na condição de brincante. É uma outra voz a enriquecer o diálogo.

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imagem 11 ARTE AO(S) VIVO(S). Cabaret Lazarus, 2004. Centro Cultural São Paulo. Imagens do público posando com objetos de cena do espetaculo.

É interessante notar que a iluminação e o som é o mesmo das festas rave. O velório culmina em rave, festa cujos participantes extremamente adornados de modo não usual, praticamente fantasiados não raras vezes desempenham “papéis” como escape da vida cotidiana, em situação análoga ao carnaval. A festa termina ao som de uma sirene, um interdito à diversão. É quando, após o silêncio provocado pelo blackout, Lázaro surge segurando um strobe-light e diz o seguinte texto: -“Já decretaram a morte de minha arte tantas vezes que já nem sei o que faço aqui. Talvez esteja morto e não tenha me dado conta. Mas um dia percebi que a santíssima trindade era eu ator, eu roteirista e eu diretor de cinema. E só vou acreditar em minha morte quando na linha do horizonte subirem os créditos finais”. Neste momento a projeção em vídeo anuncia o fim da peça trazendo seus créditos.

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O final da performance é meta-linguístico, este texto é um comentário sobre a própria ação e o esforço do grupo que ali se apresenta, apontando também a crença de que quem ressurge das cinzas é a própria arte. Em Cabaret Lazarus cria-se um invólucro temático, cercando os espectadores de temas criando um texto a ser complementado, para depois desmontá-lo em happening dando ao público a responsabilidade da participação, de festejar o velório de Lázaro. A criação do espetáculo de modo tradicional e que antecede o happening dá ao participante a importância de profanar o “sagrado” espaço da representação.

2.7.3 GAtO

Em Gato o grupo usa uma longa extensão para levar energia elétrica para espaços públicos, onde liga projetor de slides, som portátil e usando roupas de homemsanduíche cria uma precária tela para projetar imagens do Largo da Batata. O público pode vestir os sanduíches e brincar com as projeções ao som de História de uma gata do musical infantil de Chico Buarque. Gato é um trabalho extremamente processual, se iniciou com uma caminhada fotográfica que registrou em slide um camelódromo no Largo da Batata. Mais tarde o grupo promove uma caminhada durante o amanhecer no camelódromo previamente fotografado, vestindo trajes homem-sanduíche ou homem-placa em branco. Esta mídia é utilizada comumente na região, o corpo de quem a veste se torna suporte para publicidade. Esta ação encontra ecos no trabalho de Fred Forest O Branco Invade A Cidade (1973) e aconteceu sem divulgação prévia, sem platéia, sobrando apenas os registros em foto e vídeo, se assemelhando assim aos happenings sem público de Allan Kaprow, atividades solitárias onde apenas o relato persistia depois da ação. A performance com o uso de projeções só foi realizada, pela primeira vez, no mesmo camelódromo, em 12 de novembro de 2005, durante o festival de arte pública EIA (Experiência Imersiva Ambiental). A ação é pontualmente executada em diferentes

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espaços da cidade ao longo de meses: Virada Cultural no dia 19 de novembro de 2005, na Cinemateca Brasileira, São Paulo-SP; Virada Cultural no dia 21 de maio de 2006, no Largo de São Francisco, São Paulo-SP; Mostra VERBO 2006 (curadoria Daniela Labra), dia 5 de julho de 2006, Galeria Vermelho, São Paulo-SP; Semana de Artes e Cultura, 19 de outubro de 2006, Centro Universitário Belas Artes, São Paulo-SP.

imagem 12 ARTE AO(S) VIVO(S). GAtO, 2006. Mostra VERBO 2006. Galeria Vermelho, São Paulo.

Esta ação desconstrói o modelo clássico de representação, quando se distende através do território urbano ao longo de meses, às vezes dispensando platéia e sendo contada através de arquivos multimídia postados em sites de relacionamento e no website oficial do grupo. Nesta etapa, os registros são editados em pequenos vídeos, álbuns de fotos e enviados por email invadindo caixas postais. Podemos associar esta ação com o conceito de Pós-teatro, conforme utilizado por Renato Cohen:

“Na linha conceitual proposta por Rosalind Krauss (Escultura em Campo Ampliado) a cena Pós-Teatral é a cena ampliada, uma Gesamtkunstwerk onde as cidades, as redes, os espaços

comunicantes são o cenário do trauerspiel contemporâneo. Uma cena que altera as noções de presença, corpo, espaço, tempo, textualidade, pela inserção da simultaneidade, da velocidade e que –ao mesmo tempo—é plena de dramaticidade ao figurar o acontecimento, o evenément, em escala social e subjetiva.” (COHEN, 2002)

2.7.4 MEDIA PICNIC

Media -Picnic aconteceu no inacabado porão do museu Paço das Artes em São Paulo. Nesta ação um projetor multimídia monitora a atividade de um laptop que mostra animações feitas pelo grupo, assim como fotos realizadas naquele instante. Há um piquenique feito de alimentos amarelos como pão, queijo, laranjas e refrigerante de laranja. Um performer está fotografando e fazendo vídeos com uma câmera digital, outro projeta em uma tela o desktop de seu computador mostrando uma série de janelas abertas com animações, players de música e imagens feitas momentos antes.

imagem 13 ARTE AO(S) VIVO(S). Media-Picnic, 2005. Paço das Artes, São Paulo.

O público que participa interatuando com os performers e comendo no piquenique oferecido, posa para as fotos que alimentam o telão consecutivamente. Faz-se aqui um paralelo entre a ingestão de alimentos e o consumo de imagens, realidade de que participamos. Segundo Susan Sontag:

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“A necessidade de confirmar a realidade e de realçar a experiência por meio de fotos é um consumismo estético em que todos, hoje, estão viciados.As sociedades industriais transformam seus cidadãos em dependentes de imagens; é a mais irresistível forma de poluição mental. “ (SONTAG, 1977, p.35)

E ainda:

“Por fim, ter uma experiência se torna idêntico a tirar dela uma foto, e participar de um evento público tende cada vez mais, a equivaler a olhar para ele, em forma fotografada.(...)Hoje, tudo existe para terminar numa foto.” (SONTAG, 1977, p.35)

Media-Picnic destaca a justaposição entre acontecimento e simulacro, chamando nossa atenção para um mundo abarrotado de imagens que se multiplica vertiginosamente.

2.7.5 MEDIA PICNIC 2.0

Este é um projeto de performance em que propõe-se o uso de mídias interativas de modo relacional. A estrutura da performance conta com uma tela de retroprojeção, um computador ligado à internet, um refletor, uma toalha e cesta de piquenique. O ponto de partida deste processo foi a pintura Almoço na Relva (1862-63) de Édouard Manet. Nesta pintura, uma ousadia para a época, é retratada com rigor clássico uma cena casual em que uma mulher nua faz piquenique com dois rapazes vestidos com trajes de época, algumas questões são tratadas, como a libertação do artista do academismo. Uma pessoa do público escolhe uma palavra-chave, o web-jóquei buscará, a partir da palavra escolhida, um arquivo de mídia (imagens, vídeo, música). O público deve ainda escolher um alimento e posar para uma foto ou um rápido vídeo, tendo ao fundo as imagens resultantes . O participante dará a seguir seu lugar para o próximo. Ao final, o web-jóquei postará de volta uma animação baseada nas imagens capturadas durante

a performance assim como as selecionadas em uma página do Flickr, que será exibida no espaço da performance através do Flickr hack Montager.

imagem 14 ARTE AO(S) VIVO(S). Media Picnic 2.0, 2006. estudo para performance.

A rede tornou-se um imenso repositório de imagens, textos, músicas e vídeos. Atualmente uma série de ferramentas utiliza sistemas de busca que trabalham através de classificações feitas por cada usuário, são palavras-chave funcionando como uma maneira de organizar e facilitar o acesso a todo este material. Ferramentas como o Flickr, por exemplo, revelam como estamos unindo nossas impressões visuais através da fotografia, tornando-as públicas em um imenso repositório onde é possível a cada um encontrar seus interesses. A performance Media-picnic 2.0 é um olhar sobre como consumimos estas informações.

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CONCLUSÃO

A arte de participação que despontou na década de 60 nos deixou um legado que pode tanto ser notado na recente produção artística que focaliza questões sociais - qualificada como relacional por Nicolas Bourriaud - quanto na arte de sistemas interativos mediada por computadores. Em comum, há o artista como criador de contextos tendo por objetivo a emergência de potenciais relações humanas. No caso das Mídias Relacionais, contextos com finalidades artísticas e interativas que articulam o uso de veículos de comunicação.

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