Mezinhas, triagas e garrafadas: pequena reflexão histórica da saúde e do cuidar no Brasil. - Homely, compound and herbal medicines: small historic consideration about health and caring in Brazil.

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Mezinhas, triagas e garrafadas: pequena reflexão histórica da saúde e do cuidar no Brasil. Homely, compound and herbal medicines: small historic consideration about health and ca... ARTICLE · JUNE 2001

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2 AUTHORS: Christian Fausto Moraes dos Santos

Lígia Carreira

Universidade Estadual de Maringá

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Available from: Christian Fausto Moraes dos Santos Retrieved on: 22 September 2015

Revista Ciências da Saúde, Maringá, v. 1, n. 2, p. 43-51, 2001.

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Mezinhas, triagas e garrafadas: pequena reflexão histórica acerca da saúde e do cuidar no Brasil. Homely, compound and herbal medicines: small historic consideration about health and caring in Brazil. RESUMO: O presente texto apresenta uma reflexão acerca dos saberes e práticas do cuidar da saúde e da doença no país desde a América Portuguesa, trazendo um enfoque nas terapias populares. Apoiada na historiografia brasileira, em relatos de viajantes, destacamos uma gama de conhecimentos relacionados ao cuidar/cuidado advindos da sabedoria popular, como por exemplo, aquela relacionada às ervas medicinais, presentes em nossa flora, utilizadas no tratamento de problemas de saúde. Estas, ainda muito utilizadas atualmente, entre outros fatores, por fazerem parte de nossa cultura; e, muitas vezes, satisfazerem nossas necessidades de saúde. Discutimos, ainda, a importância dos profissionais da área de saúde, em especial de enfermagem, valorizar esses saberes e práticas para exercerem um trabalho mais eficaz e humanizado. PALAVRAS CHAVES: história da saúde; medicina alternativa; enfermagem. ABSTRACT: The present text presents a reflection about the knowing and practices in health caring and disease in Brazil since its Portuguese America, focusing on folk therapies. Based on Brazilian historiography and travelers ’reports, we emphasized a great variety of knowledge related to care/caring provided by folk culture, as for instance, the one related to medical herbs, present in our flora, used in treating health problems. These herbs and therapies are still used nowadays, due to, among other things, being part of our culture and also for satisfying our health needs. We discuss also the importance of health professionals, mainly in nursing, as well as the importance of validating these knowing and practices in order to improve and humanize this work. KEY WORDS: Health history; alternative medicine; nursing. Lígia Carreira1 Christian Fausto Moraes dos Santos2

Introdução No presente texto, temos como finalidade apresentar alguns elementos históricos e culturais do povo brasileiro, para promover uma reflexão acerca dos saberes e das práticas de cuidar da saúde e da doença, trazendo um enfoque nas terapias populares. Através de algumas questões apontadas, buscamos compreender como os fatores culturais permeiam as atitudes e comportamentos das pessoas frente aos problemas de saúde, e a partir desse entendimento, apreender a importância, dos

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Enfermeira, mestre da Escola de Enfermagem Anna Nery, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, integrante do Núcleo de Pesquisa de Fundamentos do Cuidado de Enfermagem (Nuclearte). [email protected] 2 Historiador, Graduado em História e Mestre em Geografia pela Universidade Estadual de Maringá (UEM-Pr), Doutor em História das Ciências e da Saúde pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz-RJ) e Pós Doutorando em História Social

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profissionais da saúde, especialmente – a partir do século XIX – os da enfermagem, de conhecer e

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valorizar as crenças, a visão de mundo, enfim, os valores culturais de seus clientes, para permitir uma articulação entre o cuidar/cuidado exercido pelos profissionais de enfermagem, com aquele presente no cotidiano de seus clientes. Num primeiro momento, apontamos alguns relatos de viajantes desde o Brasil colônia, que privilegiam o conhecimento do indígena, do caboclo acerca do cuidar/cuidado à saúde, enfatizando um saber sobre as plantas medicinais, presentes em nossa flora, e que ainda hoje, em sua grande maioria, são utilizadas no tratamento de enfermidades, com resultados satisfatórios. Prosseguindo, destacamos a mudança no enfoque assistencial à saúde a partir do desenvolvimento científico, do processo de industrialização, sobretudo o da indústria farmacêutica, e os progressos da tecnologia. Neste contexto, o modelo de saúde passou a ser mais curativo e empresarial, tentando suprimir os métodos de tratamento advindos da sabedoria popular. Assinalamos também a revalorização das práticas populares de saúde pela população, lembrando que o processo de cuidar/cuidado faz parte das manifestações culturais de um povo, e que a enfermagem profissional, através dessa compreensão cultural do cuidado, teorizada primeiramente por Leininger (LEININGER apud GEORGE, 1993), procura buscar os valores culturais referentes à saúde de seus clientes, para realizar uma assistência mais eficaz e humanizada.

Um Novo Mundo, repleto de novos saberes, doenças e... curas. Retomando um pouco a história do cuidado à saúde na América Portuguesa, verificamos que os colonizadores lusos não somente entraram em contato com o saber do cuidar indígena, mas também tomaram para si este saber, aproveitando-se então do conhecimento do nativo de uma determinada região para lá se fixar e sobreviver.

Pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor da Pontifícia Universidade Católica de Maringá (PUC). email: [email protected]

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Quando o continente americano era ainda conhecido como Novo Mundo, o interesse em

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catalogar o uso de práticas de saúde autóctones, em especial, o de ervas medicinais, já existia. O indígena não conhecia somente a localização do ouro ou onde poderia ser encontrado pau-brasil, ele também era detentor de um saber que poderia significar a diferença entre a vida e a morte, em uma biota completamente desconhecida ao europeu. Quais frutas poderiam ser consumidas? O que fazer quando da picada de uma cobra nunca antes vista? Que remédio tomar quando acometido de uma febre – por vezes letal – que era causada por uma simples picada de mosquito? O europeu então, resolvera poupar caminho, ou seja, “absorveu” do indígena todo um saber acerca do cuidar em se tratando de patologias que eram típicas de um continente: o americano (SOUSA, 1971, p. 209). O conhecimento historiográfico medieval e renascentista aliado às enciclopédias de Plínio entre outros cronistas clássicos, de longa data pautavam as observações dos viajantes europeus em fins do século XV e início do XVI. Mas, diante do inédito de um novo “tipo” de autóctone, paisagem, clima, plantas e doenças, a necessidade de levar ao conhecimento dos europeus, uma outra ordem visual, carecia de novos métodos. A perplexidade sempre presente no descobrimento do “Outro”, conduz à trajetória de um exercício de sistematização, ainda que aristotélica3. Não resta dúvida, que as primeiras empresas que exploraram a América trouxeram a tona um autêntico “mundo novo”, no sentido de uma ampliação do conhecimento da natureza. Seres e circunstâncias que podiam ser consideradas improváveis ou impossíveis, em outro contexto geográfico, eram perfeitamente normais. A ampliação da espacialidade mundial significou também uma modificação dos conceitos com os quais se pensava o mundo. Esta nova dimensão foi decisiva para a continuação do pensamento moderno europeu, ou seja, que a Europa, constituída e sentida a partir do século XVI como unidade geo-histórica e social, não pode ser pensada sem a América.

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Referimo-nos aqui sobre uma metodologia de sistematização clássica, inspirada em Aristóteles, ou seja, uma história natural enciclopédica; o europeu irá registrar e catalogar tudo aquilo que a seus olhos era estranho: uma nova fauna,

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Das reflexões sugeridas pelas narrativas – muitas vezes, incongruentes – dos viajantes

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quinhentistas, surgiu a noção de problema. Para solucioná-lo, lançou-se mão de instrumentos metodológicos. Uma contribuição do racionalismo cartesiano – despontando como filosofia – para com a moderna ciência do século XVII; esta última, responsável pela investigação dos segredos da realidade natural, para colocá-la ao alcance da humanidade inaugurava um período, onde não se teria lugar para o misterioso. Tudo agora estaria sob o critério das evidências, dos esclarecidos, dos “iluminados”. No avanço científico depositou-se a esperança de deixar paras trás, os chamados séculos das trevas. Para substituir o envolto pelo véu do mistério, da superstição, haveria a razão. Período da ciência que encontrou na França, na Inglaterra e na Alemanha, uma particular manifestação pela reflexão filosófica, então proposta. Quanto as verdades eternas, tão perseguidas, estas ainda passariam por mudanças para chegar ao conceito de verdade como fonte de energia intelectual. Enfim, para o século XVIII se propunha uma ciência desembaraçada da escolástica de Aristóteles (SANTOS, 2000, p. 27-51). Segue-se que, para a recuperação dos fragmentos da memória da América espanhola e/ou portuguesa – guardados e colecionados por instituições públicas ou privadas, espalhadas por diversos países –, é necessário fazermos um percurso inverso ao dos viajantes. Na recuperação da memória, temos que reviver as construções mitológicas e simbólicas decorrentes do encontro entre duas culturas, dois mundos; entendermos o processo antropológico de estranhamento do viajante que, ao chegar em terras desconhecidas, vê-se despido do seu invólucro e passa a procurar identificações, sinais que o levem de volta para casa. Daí as imagens elaboradas pelos viajantes no século XVI, fundamentarem-se nas analogias. O historiador Sérgio Buarque de Holanda vem nos mostrar que a colonização das Américas portuguesa e espanhola, foram consideravelmente diferentes da observada nas colônias norte americanas não somente por causa dos fatores biológicos, climáticos e geográficos, mas pela flora, clima, autóctone, novas doenças, enfim um espaço biogeográfico completamente desconhecido. Ver PAPAVERO

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própria concepção lusitana e espanhola de expansão e conquista. Para o autor, o colonizador luso,

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se fosse idealizado e exposto em um museu de cera, provavelmente estaria descendo de sua nau olhando para cima com um machado em punho, olharia para cima com medidas a encontrar as melhores e maiores árvores de pau brasil a serem cortadas, e o machado, logicamente serviria como uma espécie de símbolo do “espírito extrativista” que irá acompanhá-lo em suas empreitadas além mar, seja no Índico ou no Atlântico. A metáfora do pau brasil é valida, afinal o próprio Sérgio Buarque afirma que o ideal português será o de colher o fruto sem plantar a árvore (HOLANDA, 1963, p. 18). Comparativamente à concepção de colonização como empreendimento, esta tão presente na concepção inglesa, para o português a idéia de qualquer tipo de sedentarização para a obtenção do conforto oriundo de lucro era impraticável. Ligar-se a terra, cultivá-la para poder extrair sua seiva, vai ser uma experiência nova para o colono/aventureiro português que para a Terra do Brasil irá migrar. Emprestando um pouco alguns conceitos de nossos colegas antropólogos, poderíamos dizer que o lusitano, nos séculos que precedem a chegada da armada de Cabral, irá passar por um processo de “bricolage4”, sobretudo no campo dos afazeres agrícolas e das práticas do cuidar. Com referência a estes saberes, à esta época, quando se tinha de fazer a história de uma planta, doença ou medicamento, inútil era escolher entre o ofício de naturalista,

médico e

compilador; para se lidar com o mundo natural era preciso, numa única e mesma forma de saber, recolher tudo o que fora contado pela natureza e pelos homens, pelas tradições, pelos contos e cantos acerca daquele assunto em questão. Conhecer então uma planta medicinal ou doença, era especular e recolher todo e qualquer signo que sobre ela repousasse. A dissociação que hoje

et alii,1995. 4 “Bricoler, bricoleur e bricolagem que, no seu sentido atual, exemplificam com grande felicidade, o modus operandi da reflexão mitopoética. O bricoleur é o que executa um trabalho usando meios e expedientes que denunciam a ausência de um plano preconcebido e se afastam dos processos e normas adotados pela técnica. Caracteriza-o especialmente o fato de operar com materiais fragmentários já elaborados, ao contrário, por exemplo, do engenheiro que, para dar execução ao seu trabalho, necessita de matéria prima” (Nota de Almir de Oliveira Aguiar e M. Celeste da Costa e Souza, tradutores da 1a edição da obra o Pensamento Selvagem).

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fazemos entre mito, ciência e literatura era algo inconcebível àquela época. (FOUCAULT, 1991,

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p. 56). Desta maneira, toda uma gama de conhecimentos ligados à saúde, acumulada em milênios de contato com o ambiente americano, começara a ser passada ao europeu. Infelizmente, não dispomos na historiografia brasileira de um estudo acerca de até que ponto as práticas de saúde indígenas e afro-brasileiras colaboraram para a adaptação do europeu ao Novo Mundo. Que estragos teria feito a malária nestes quinhentos anos se os índios peruanos não nos tivessem mostrado ainda na época da colônia a “árvore da febre”? Afinal até os anos 30, o único antimalárico disponível era a árvore que possui em sua casca a quinina5. Até hoje, sabemos que, novos derivados de quinina são a cada dia produzidos na terapêutica antimalárica, como por exemplo, a cloroquinina (Cinchona sp) (RIBEIRO et alii, 1987, p. 138). Dada as dificuldades da preservação de amostras das espécies por muito tempo, devido à má conservação, serão mesmo os relatos de naturalistas e as iconografias de artistas, que irão resgatar, registrar com elevada qualidade artística e agudo senso de observação, dos quais dão provas as documentações a partir do século XVII, contrastando sobremaneira com o que até então fora feito, utilizando-se da figura de linguagem, da representação dos cenários, seres e coisas do Novo Mundo, e mais particularmente o Brasil. Sem dúvida a inauguração de uma nova forma de vêlos e fixá-los. Tratam-se de expedições projetadas e realizadas, tendo como principal finalidade a exploração da fauna e flora brasileiras, dentro de um novo pragmatismo da verdade sobre a natureza. O que, sem que seja possível deixar de lado, é preciso esclarecer um ponto em comum entre todas as expedições científicas empreendidas no Brasil no período Colonial e Império. Trata-

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Casca de quinina: Quina – Casca de várias espécies do gênero Cinchona sp. Como é sabido, foi a Condessa d’El Cinchon, vice-rainha do Peru, que, tendo sido curada das suas febres intermitentes pela quina, a mandou para a Europa, onde o seu uso se generalizou, na segunda metade do século XVII. Daquela condessa, veio o nome científico da planta. O nome vulgar deriva da designação que lhe davam os indígenas do Peru. Como os Jesuítas detivessem algum tempo o monopólio da quina, também se lhe deu o nome de Pó dos Jesuítas. (LIMA, 1949, p. 9)

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se de uma política administrativa incidindo sobre as expedições. Implicitamente, elas abrigavam

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em sua vertente científica um potencial transferido para a posteridade, dado o caráter utilitarista governamental com o qual se revestiam, e de todas as informações recolhidas em uma triagem direcionava-as para as áreas de sua importância (SANTOS, 2000, p. 27-51). Assim, as informações dos espaços políticos, as configurações da exata situação costeira, os estudos concernentes aos ventos, marés, enfim todo conhecimento que respondessem por uma navegação segura era de interesse não somente científico, mas também político. Do que resulta uma História Natural, onde abundam temáticas como: riqueza florestal (flora e fauna), agricultura, pesca, minério, aspectos antropológicos, plantas medicinais, salubridade do território e doenças endêmicas, entre outros temas. Observaremos tais procedimentos com a fundação da Companhia da Índias Ocidentais em 1621 – nos moldes da sua congênere oriental existente desde 1602 – a Holanda lançou-se sobre as colônias ibéricas, uma vez que a centralização do mercado encontrava-se já há muito tempo nas mãos dos Países Baixos. Estes, intermediavam transações entre produtores da colônia e o resto da Europa. A disputa pelo tráfico colonial levou a Holanda a firmar-se como a maior potência do século XVII. Com significativa frota naval, voltada para as possessões ibéricas do oriente, o capital mercantil não perde de vista os domínios que se estendem para além do Atlântico.

A água ardente na conquista do oeste brasileiro, ou uma possível origem das garrafadas. A cana de açúcar sempre figurava à volta de qualquer arremedo de habitação colonial. Na região das minas de ouro da Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá, por exemplo, só começou a ser cultivada em 1728, ainda assim, foi trazida da Capitania às escondidas (HOLANDA, 1957, p. 175). A proibição do cultivo da cana de açúcar em regiões mineradoras era uma preocupação freqüente das autoridades coloniais. O primeiro motivo era o de que o cultivo da cana depreendia muita mão de obra, o que afastava os escravos da lida na mineração. O segundo, bem mais

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contundente, dizia respeito não a cana em si, mas no que ela poderia ser transformada. A agoa

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ardente poderia se tornar um sério problema quando passava a circular em zonas mineradoras. Curiosamente, um advogado da vila de Cuiabá, de nome José Barbosa de Sá, dá-nos noticias contrárias das esperadas pelas autoridades. Segundo ele, a cachaça era a base para numerosas mesinhas, pois a agoa ardente teve o poder curativo de diminuir a morte entre os escravos – que ficavam na lida com as bateias de 10 a 14 horas, com metade do corpo na água dos rios e a outra metade sob sol causticante do pantanal mato-grossense. A volta dos rostos corados também era um dos vários efeitos colaterais farmacológicos, ou seja, benéficos que a cachaça promovia, pois antes de tomá-la os homens tinham cores de defuntos. Enfim, os engenhos destinados a moagem e fermentação da cana de açúcar eram úteis “(...) principalmente para a conservação dos escravos que trabalhão nos servisos de minerar. (...)” (SAA, 1975, p. 18). Parafraseando o sociólogo Norbert Elias (1998, v.1 e v.2), observamos, tanto na preocupação das autoridades em proibir a aguardente nas regiões das minas, quanto na disposição do advogado José Barbosa de Sá em enumerar suas qualidades terapêuticas que, poderíamos dizer, estar assistindo a um processo civilizador da cachaça na Colônia. Por um lado, teremos a postura de uma autoridade administrativa, preocupada em coibir o consumo de uma bebida que poderia causar danos indiretos às lavras de minério. Esses danos poderiam ser computados desde a total embriaguez, que impediria a mínima coordenação motora de seu consumidor, impossibilitando-o assim de exercer seu trabalho na mineração, chegando mesmo a causar manias de perseguição e paranóias, distúrbios de personalidade que, uma vez presentes entre homens que lidam com a extração de um minério, tão almejado e disputado como o ouro, poderia causar mortes e, quem sabe, até mesmo guerras civis. Logicamente, tais proibições por parte das autoridades coloniais não visavam – ao menos em um primeiro plano – a integridade dos faiscadores, e sim garantir para a Metrópole a intermitente remessa do imposto do quinto de ouro coletado por estes homens.

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Por outro lado, várias serão as razões convocadas pelos colonos, caboclos e bandeirantes

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para colocar a água ardente de cana entre os itens indispensáveis nas dispensas das boticas, tavernas e ranchos. Ao que parece a aguardente da terra – feita de cana de açúcar – estava fadado a ocupar na Colônia o mesmo lugar que a aguardente do reino – este feito de uvas – ocupava na Metrópole. Entendamos aqui que a cachaça não substituiu o vinho em Portugal, e muito menos o vinho deixaria de circular no Brasil. O que queremos aqui nos referir é em relação ao espaço simbólico que estas bebidas ocupavam no cotidiano destas duas nações. Pois, assim como foi a aguardente no Brasil dos séculos XVI, XVII e XVIII, em Portugal o vinho, principalmente, será celebrado e utilizado não somente como um prazer cotidiano, mas também como panacéia, um catalisador de ervas e plantas medicinais, a que hoje nos é dado conhecer no Brasil pelo nome de garrafadas. Mas, será contra um mal em particular que a aguardente neste país será evocada: a picada de cobra, um acidente que poderia ocorrer a qualquer um que habitasse na Colônia. O Dr. Francisco José de Lacerda e Almeida durante sua viagem pelos sertões do rio Negro, Cuiabá e São Paulo entre os anos de 1780-1790, traz importantes registros sobre depoimentos de homens que afirmam, ser graças à aguardente não terem perdido suas vidas com as picadas de cobra. Seu guia de nome Salvador, dizia não conhecer outro remédio quando mordido por uma cobra, relata ainda que, quando bebia aguardente com intenções medicinais não sentia o menor sinal de embriagues, embora nestes momentos ingerisse grande quantidade da bebida, já em outras situações a menor quantidade de álcool posta na boca já lhe causava o conhecido estado de euforia. Houve também um piloto que fora mordido três vezes por serpente que, para ainda estar vivo usava do aguardente e algum punhado de sal. No Mato Grosso, ele mesmo diz ter visto um negro que, após ser atacado por uma cobra, se curou graças ao já mencionado remédio (LACERDA e ALMEIDA apud HOLANDA, 1957, p. 134).

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10 Como pudemos observar nos próprios relatos de José Barbosa de Sá o aguardente, ou

cachaça, possuía outros préstimos além do combate ao ofidismo. Digno de nota aqui é o tratamento que temos de dar a estes relatos. Não podemos simplesmente afirmar que tais apontamentos farmacológicos simplesmente faziam parte de uma estratégia popular com meios a justificar o uso e transporte da cachaça para casa, ou para a incursão no sertão. Mais importante do que provarmos aqui se a cachaça pode ou não ser usada como soro anti-ofídico é “experimentarmos” a importância que a mesma ocupava entre os homens da Colônia. Talvez o torpor do álcool diante da dor desse a sensação de alívio, talvez... Mas, o que não estava no âmbito da conjectura entre aqueles homens era o quanto aquela bebida poderia ajudá-los em momentos extremamente críticos, não se tratava de uma lógica de fé e sim de uma espécie de pragmatismo cientifico. Assim, vários serão os motivos enumerados pela população da Colônia para que o aguardente circule, não somente nos locais permitidos, mas nos proibidos também. Além do álcool, uma espécie de antecessor colonial da cromoterapia parece ter sido muito difundido especialmente entre os bandeirantes. Cobertas, roupas e mantas vermelhas faziam com que as doenças “saíssem” mais facilmente com o suor, principalmente no caso de sarampo e escarlatina. Já a baeta de cor vermelha quase sempre era associada a algum índice de dor ou doença, especialmente com respeito as contagiosas. Era um código; toda a casa em que na porta pudesse ser vista uma baeta vermelha pendurada, era sinal de que na mesma encontravam-se portadores de bexiga ou bexiguentos (HOLANDA, 2000, p. 70). A bexiga será o nome colonial dado a varíola.

O século XVII e as contribuições batavas à saúde nos trópicos. Nos séculos XVII e XVIII, o trabalho dos viajantes ganha uma nova conotação, quando então, buscam uma sistematização de agrupamento dos seres da natureza em ordens científicas relacionados ao conhecimento do universo. As primeiras evidências, da construção do momento histórico do observador no Brasil, tem seu legado pré-científico registrado na permanência dos

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11 holandeses no Nordeste, ocorrida no século XVII. Tratam-se de observações de caráter puramente científico ou físico dentro de um entendimento moderno, onde a relação estabelecida com a natureza, pelos holandeses, não é mais regida pela crença religiosa e preocupações morais. Para esses novos observadores, a natureza não traz mensagens divinas para que os homens as interpretem, não está localizada dessa ou daquela maneira pela providência de Deus e nem mesmo tem qualquer ligação com os astros (antiga filosofia). O reconhecimento e inquérito da natureza é doravante guiado pelos sentidos, para desta forma serem apreendidos como imagens do real. Johan Maurits von Nassau-Siegen (ou Maurício de Nassau) estimulou os cientistas e artistas a irem além dos registros geográficos do território, com o entusiasmo que os direcionavam às riquezas que representavam a flora, a fauna e as etnias do Brasil. Desta forma, destacaram-se Willem Pies, médico e naturalista de Amsterdã, que muito se interessaria pelas doenças e símplices encontrados por ele no Brasil Colonial, e também o naturalista alemão Georg Marcgrav. Do relato de ambos, resultaram as obras De Medicina brasiliensi e Historiae Naturalis Brasiliae, editadas pela primeira vez em 1648. Nelas, as descrições fogem de qualquer imaginário ou fábula, despindose de toda fantasia. Uma profusão de materiais; informações sobre os variados aspectos da história natural do Novo Mundo, colhidos nas diversas expedições pelo interior do sertão nordestino. O suficiente para abastecer os museus de universidades da Europa, coleções particulares e o próprio gabinete do Conde de Nassau. Uma importante coleta, pela riqueza de registro de plantas medicinais, patologias, flora e fauna de um período, que distava apenas um século do “descobrimento”. Em sua obra Pies procede à metodologia até hoje usada na catalogação de herbários. Suas descrições acerca das doenças, bem como dos símplices, mezinhas e drogas apontados na De Medicina brasiliensi devem ser encaradas como insuperáveis testemunhos do como se concebia não somente uma patologia, mas também como se apreendia sua disseminação, sintoma, forma de contágio e conseqüente tratamento no Brasil do século XVII. Nesta obra, o autor cataloga mais de

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12 vinte doenças endêmicas que vão das febres ao mal venéreo. Porém, sua dedicação maior foi no capítulo quarto de seu livro, no qual ele (...) trata das faculdades dos símplices e contêm cento e dez figuras (...) (PIES, 1948, p. XIX); as cento e dez figuras mencionadas por Pies são na verdade plantas brasileiras utilizadas como medicamentos. Em suas descrições, o autor procede à metodologia até hoje usada na catalogação de herbários. Mas, de onde teria o renomado médico e naturalista retirado tamanha gama de informações acerca da farmacopéia brasileira? Como teria ele identificado os sintomas e seus respectivos tratamentos com medicamentos extraídos da botânica brasileira? Ao tratar da hidropisia no Brasil, Pies (op. cit.) comenta que: Sendo muitas as doenças nesta Região do Novo Mundo, comuns à nos e aos europeus, julgo dever referir entre as principais a chamada pelos latinos água intercutánea, que ataca sobretudo as crianças e os jovens. Àquelas a víscera de sanguificação é atingida, além de outras causas concorrentes, pela criação não apropriada e pelos impedimentos à transpiração; a estes, pela intemperança no viver e pelas águas palustres. (...) Pela perirreia as águas são expulsas, mas seguramente, quer pela maior abertura dos poros nas vísceras, quer pela abundância de óptimos medicamentos indígenas que, abrindo, secando, adstringindo, de maneira admirável, operam a cura completa. (...) Para o mesmo servem as raízes da Jalapa, da Caapamonga, árvore siliquosa, o Iaborandi, o sassafraz, a Carcaparrilha (sic), o alcaçuz a raiz da chamada quina, cascas de limões e goiabas e as raízes de Iuripeba, e de Malva d’isco (sic). Deve-se depositar mais confiança nêsses medicamentos, como novos e eficacíssimos, por serem indígenas, do que em preceitos exóticos e muitas vezes conducentes a desagradáveis resultados. (...)6(p. 29-30).

O autor chama a atenção para uma ineficiência dos preceitos exóticos e muitas vezes conducentes a desagradáveis resultados, referindo aos medicamentos importados da Europa, pois até o final do século XVII, sabemos, uma das concepções européias de remédio era aquela baseada em combinações semimágicas de várias ervas (RIBEIRO et alii, 1987, p. 44). O historiador Sérgio Buarque de Holanda afirma que “(...) a obra de Pies é de tal relevância e sem continuadores por mais de uma centúria, que foi de consulta obrigatória sobre o nosso país, até o século XIX.” (HOLANDA, 1960, v.1, p. 246). Prova disto é que a De Medicina brasiliensi foi até o século XIX, obra de referência a todo médico ou boticário europeu. De onde inferimos ser a De Medicina brasiliensi de Willem Pies um dos principais responsáveis pelo estabelecimento de um

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obs.: os grifos são nossos.

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13 novo paradigma nas Ciências da Saúde, tanto no Brasil colonial quanto nos países da Europa que tiveram contato com sua obra no século XVII e XVIII. No que diz respeito ao ambiente, o pesquisador Dante Teixeira refere-se ao valor do acervo documentado por Pies e Marcgrav como realidade documentada, do que foi a vasta floresta Atlântica nordestina, hoje não mais que 1% de área primitiva, naquela região do nordeste brasileiro. Este acentuado declínio parece ter levado a um autêntico processo de extinção em massa, tanto mais grave se considerarmos a presença de numerosos endemismos e as flagrantes perdas de determinados tipos de ambientes mais acessíveis à ação antrópica (...) (TEIXEIRA, 1995, p.112). Consequentemente, assim como muitas espécies zoológicas e botânicas não alcançaram nosso século, saberes indígenas, africanos – e mesmo europeus – acerca das patologias e plantas medicinais então conhecidas no Brasil do século XVII, também encontram-se hoje “sepultados” na obra do médico e naturalista Willem Pies que acompanhou e serviu Maurício de Nassau em seu domínio holandês no nordeste brasileiro.

Doutores de campo e campeiros de corte: algumas contribuições ao saber em saúde no Brasil Imperial. Em fins do século XVIII, com o fim do período colonial, chega ao Brasil aquele que seria um dos maiores contribuidores ao estudo da fitoterapia brasileira: Bernardino Antonio Gomes, médico português que desembarca na cidade do Rio de Janeiro, vindo na qualidade de médico pessoal da Princesa Leopoldina, então prometida a D. Pedro I como esposa. Fascinado com a enorme quantidade de fitoterápicos extraídos das matas e selvas do Brasil, Bernardino resolve se empenhar em não somente catalogar botanicamente tais plantas, mais também estudar seus princípios ativos de que tanto fala a população da época.

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14 Apesar de seus trabalhos serem pouco conhecidos atualmente, somam considerável

volume, dentre eles podemos destacar o seu estudo sobre as raízes de pipi em 17987. Anos mais tarde, as observações de Bernardino sobre o uso destas raízes entre os escravos foi comprovado por Hoehne em 1939. Segundo ele, o pipi, hoje catalogada como Petiveria alliacea L., teria um princípio ativo anestesiante, daí o uso popular em bochechos nas dores de dente (GOMES, 1972, p. 23). Em 1965, os mesmos estudos e catalogações da fitoterapia brasileira feitos por Bernardino propiciaram descobrir que o “pipi” atua na contração do útero e do íleo, bem como na hipotensão arterial (op. cit.). Pressupomos que, as observações deste estudioso acerca das práticas e usos das plantas brasileiras pelos escravos no Brasil do séc. XVIII, trouxeram valiosas contribuições às práticas de saúde brasileiras. Ao percorrer as províncias do Brasil no início do séc. XIX, o eminente botânico francês Auguste de Saint-Hilaire compôs um herbário de 30.000 espécimes e mais de 7.000 espécies, das quais 4.500 eram desconhecidas dos cientistas, na época. Em uma de suas várias incursões pelo sertão brasileiro, depara-se Saint-Hilaire com uma pequena cidade situada na província das Minas Gerais de nome Sucuriu, sabendo então que na cidade se encontrava um “estrangeiro” que estudava “plantas do sertão”. Vários sertanejos se prontificaram a lhe mostrar as boticas do interior mineiro utilizadas na práxis do cuidar da saúde desta população: Enquanto estava em Sucuriu, diversas pessoas trouxeram-me várias plantas usuais, recebi-as, principalmente, de um bom ancião que conhecia grande número delas. Como não existem nessa localidade nem médicos, nem cirurgiões, os habitantes para se curarem experimentaram os vegetais que tinham à disposição, e não existe colono que não possua ao alcance seus medicamentos. (...) Assim, os nomes guaranis, caapiá (Dorstenta), ipecacuanha (Cephaelis ipecacuanha), sambaíba (Curatella sambaíba), etc., designam suficientemente espécies cujo conhecimento é devido a indígenas (...); finalmente os nomes de padre-salema (Gomphrena officinallis), quina-de-remijo (cinchona remijian, Aug. de S. Hil.), ana-pinta (uma Cucurbitácea), são evidentemente os das pessoas que foram as primeiras a empregar esses vegetais como remédios (...) (SAINT-HILAIRE, 1975, p. 228).

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Esta planta, cuja raízes possuem efeitos narcotizantes, era usada em beberagens para “amansar” os seus senhores.

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15 “O bom ancião”, a quem Saint-Hilaire se refere, trata-se muito provavelmente de um

caboclo, entendido em plantas medicinais, o qual a população local recorria para cuidar de seus problemas de saúde. Observamos então que, a partir de meados do séc. XVIII, um número considerável destes agentes ligados à população ribeirinha, rural e suburbana começa a aumentar, prova disso está nas palavras do autor (op. cit.) que, ao se preocupar com a origem dos nomes de certas plantas medicinais, como “pedra-salema, quina-de-remijo e ana-pinta”, afirma que estas possuem nomes ligados aos seus respectivos descobridores e usuários. Destacamos então, que a relação e a troca de informações entre o europeu, o indígena e o negro resultaram numa produção cultural e científica única. É importante considerarmos e não incidirmos na conceituação determinista e ingênua de que tal conhecimento do cuidar da saúde surgiu simplesmente como um híbrido, nascido da mescla de três culturas diferentes (européia, indígena e africana); há de considerarmos também fatores como: o isolamento causado pela distância da capital, a troca de víveres e instrumentos de trabalho com o indígena, que então morava mata adentro – prática esta feita desde o primeiro contato do europeu com o índio americano –, e a importação do negro como mão-de-obra escrava, fomentaram situações em que as trocas de informação acerca de qual remédio usar para picada de cascavel, ou qual raiz esfregar no ferimento para este cicatrizar mais rápido, fizeram com que o contato com o Outro e com o conhecimento detido por este se operassem. Assim, os indígenas, quando estabeleciam contato com o europeu e, posteriormente, com o chamado caboclo, não traziam somente urucum e pau-brasil para o escambo, eles sabiam que suas ervas também possuíam valor de troca. Já afirmava o historiador Sérgio Buarque de Holanda, acerca das incursões bandeirantes no oeste brasileiro que: (...) foi certamente no contato assíduo do sertão e de seus habitantes, que o paulista terá apurado as primeiras e vagas noções de uma arte de curar mais em consonância com nosso ambiente e nossa natureza. (...) só a larga e contínua experiência, obtida à custa de um insistente peregrinar por territórios imensos, na exposição constante a moléstias raras, a ataques de feras e vinditas do gentio inimigo, longe do socorro dos físicos, dos barbeiros sangradores ou das donas curandeiras, é que

Revista Ciências da Saúde, Maringá, v. 1, n. 2, p. 43-51, 2001. 16 permitiria ampliar substancialmente e organizar essa farmacopéia rústica (HOLANDA, 1957, p. 88).

Assim, as condições de vida à que era forçado o sertanejo sugeria-lhe inúmeros recursos de emergência com que pudesse lançar mão, indo à casa de seu vizinho que guardava raízes e folhas secas atrás da porta da cozinha ou fazendo uma rápida incursão à mata, serrado ou caatinga. A necessidade e os recursos de que se dispunha o sertanejo fazia com que os instrumentos de socorro estivessem sempre à mão. Deste modo, o mesmo fogo que servia para moquear ou cozinhar a carne de caça também era “cauterizador” de feridas.

A institucionalização do cuidado: um breve olhar sobre o cuidar profissionalizado. Posteriormente, no início do século XX, o Brasil que já passava por outro contexto políticoeconômico8, encontrava-se em crise também no setor saúde. Doenças como o cólera, a tuberculose, a varíola, tornaram-se verdadeiras endemias no país, interferindo diretamente em nossas relações comercias com o mundo. Frente à esta problemática, foram necessárias medidas drásticas no setor de saúde pública, tendo maior rigor nas ações de fiscalização de saúde nos portos, no saneamento rural e urbano, entre outras. Porém, os serviços de saúde do governo não contavam com um número suficientes de profissionais qualificados, que até este momento eram integrados somente por médicos (SILVA, 1986). Diante desse contexto histórico, como uma das medidas de se tentar modificar essa realidade de crise da saúde pública no Brasil, surge a enfermagem profissional, trazendo das escolas de enfermagem norte-americanas um referencial desta profissão, fundamentada no modelo nightingaleano. Iniciava-se, então, no país – e na enfermagem em particular – , uma tentativa de construção do saber científico na área do cuidar/cuidado da saúde e da doença (op. cit.). Porém, a enfermagem profissional brasileira desenvolveu sua trajetória baseada no modelo médico, no qual seu foco de atuação passou a ser a doença e a cura, e não o ser humano,

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intensificando um enfoque biológico na sua prática. A prática da enfermagem de assistir ao

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indivíduo foi perdendo lugar para as funções administrativas e gerenciais, as quais eram mais voltadas para possibilitar o atendimento médico e atender as necessidades da indústria hospitalar (ALMEIDA & ROCHA, 1989). Através de várias mudanças que foram ocorrendo no setor econômico e político do país como o processo de industrialização, os progressos da tecnologia, o desenvolvimento científico de áreas como a bacteriologia e com surgimento dos antibióticos - o enfoque assistencial de saúde foi se tornando cada vez mais curativo e empresarial. As práticas alopáticas foram fortalecidas com um considerável investimento em pesquisas experimentais e de aplicação terapêutica em várias doenças. Estas diversas situações foram possibilitando um reconhecimento de resultados eficazes dos tratamentos alopáticos, tentando, por vezes, sucumbir os demais métodos de tratamento advindos da sabedoria popular (ALVIM, 1997). Neste sentido, encontramos atualmente panfletos coloridos e de fácil leitura distribuídos por grandes indústrias farmacêuticas, afirmando que: A natureza sempre foi a fonte na qual o homem buscou os medicamentos para combater suas doenças e, desse modo, tentar aumentar o seu tempo de vida. Os primeiros medicamentos foram extraídos de plantas, frutos ou raízes e tomados sob a forma de chás, poções, infusões, etc. Entretanto, com o aumento populacional e mudança de hábitos alimentares, entre outros fatores, surgiram novas doenças que não podiam ser curadas com os ‘chás naturais’. Com a evolução da química, o homem começou a pesquisar, em laboratórios, maneiras de extrair da natureza apenas o elemento ou a substância que agia contra uma determinada doença (SILVA, 1995, p. 3).

Este tipo de discurso é o que encontramos freqüentemente na mídia que cerca a sociedade contemporânea, trazendo a idéia de que as doenças, com o passar do tempo, não poderiam mais ser tratadas com os chamados “chás naturais”. Nesta perspectiva, constatamos uma maneira de se fazer uma política de consumo dos fármacos industrializados, ou seja, incute-se na população o conceito de que remédio que não vem em embalagem colorida e custa caro não “funciona”. Como afirma Alvim:

8 Período em que a República do Brasil já está consolidada, existindo um trânsito portuário oficializado desde a abertura dos Portos às Nações Amigas, com a transferência da Família Real (1808).

Revista Ciências da Saúde, Maringá, v. 1, n. 2, p. 43-51, 2001. 18 Isso é passado à população e absorvido por esta, através de todo um ritual de eficácia, representado por propiciadores de saúde, como os medicamentos industrializados e os equipamentos médicos sofisticados. A saúde torna-se, desta forma, expropriada pelo mercado, passando a ser vista como uma mercadoria a ser consumida (ALVIM, 1997, p. 30)9.

É inegável que o uso de fitoterápicos, no universo das práticas populares de saúde, continua contribuindo para o desenvolvimento do conhecimento da ciência através de pesquisas realizadas pela etnobotânica e a etnofarmacologia. A título de exemplo, citamos as realizadas pelo departamento de botânica da Universidade do Amazonas com uma planta chamada “pedra-umecaá”, já conhecida pelo povo amazonense, a qual apresenta propriedades farmacológicas semelhantes a insulina. Testes laboratoriais comprovaram a sua eficácia no controle da taxa de glicemia em diabéticos, além do custo para o paciente que chegaria a uma redução de 90% nos gastos com o tratamento (ARARIPE, 1987, p. 13-15). Outro caso é o da coca, usada como estimulante por populações nativas da Amazônia, que permitiu isolar a cocaína para o desenvolvimento de anestésicos locais (RIBEIRO et alii, 1987, p.138). Citamos ainda a experiência vivenciada pelo Frei Romano Zago (1997), que em 1996, constatou na prática os primeiros casos de cura de câncer através da utilização de uma “receita” contendo como integrante principal a babosa, apesar de ainda não se ter conseguido isolar e/ou identificar em laboratório o principio ativo constante nestas liliáceas. Nesse sentido, constatamos que, a partir da década de 80, houve um resgate do uso das práticas populares de saúde, fato este decorrente de diversos fatores, entre eles destacamos: a crise no setor saúde, que não vem dando conta de atender as necessidades de saúde e doença da população; a crise sócio-econômica, com a qual as pessoas não tem tido acesso aos recursos convencionais pelos seus elevados custos; mas, também seguindo uma outra direção, podemos considerar ainda que se atribui a uma revalorização das práticas populares de cuidado à saúde por

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É importante deixar claro que este estudo não tem a intenção de discutir ou tecer críticas ao uso da tecnologia ou dos medicamentos industrializados, e temos ciência das questões que envolvem o saber científico, a tecnologia, o conceito de saúde e de cuidado construídos no seio a sociedade contemporânea.

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19 serem manifestações culturais de um povo, fazendo parte do seu processo de viver, adoecer e cuidar, destacando sua visão de mundo, suas crenças e seus sistemas de valores. Através desse entendimento, especialmente, quando nos referimos à população brasileira, sabemos que a utilização dessas diversas práticas populares ou naturais de saúde estão presentes nas suas raízes históricas e culturais. A partir dessa compreensão cultural do cuidado, teorizada por Leininger (LEININGER apud GEORGE, 1993) e de outros pesquisadores da enfermagem que têm sustentado um olhar semelhante sobre o cuidar, têm-se buscado direcionar suas ações e percepções do outro. Madeleine Leininger, foi a primeira enfermeira a fazer uma articulação entre os conhecimentos da antropologia com os da enfermagem, iniciando uma discussão acerca da influência cultural em todo o processo de viver, e consequentemente, no processo saúde-doença das pessoas. Para a pesquisadora, os homens são seres provedores de cuidados que sobrevivem numa diversidade de culturas, por meio de sua capacidade de oferecer a universalidade do cuidado, de inúmeras maneiras, de acordo com culturas, necessidades e cenários diferentes (LEININGER apud GEORGE, 1993, p. 291). Deste modo, entendemos que existem significados relacionados ao cuidado que são universais, ou seja, inerentes ao ser humano; enquanto que, ao mesmo tempo, há também variações simbólicas de cuidado, que são aquelas originárias da cultura e da relação deste homem com seu “habitat”. Assim, Leininger entende que a enfermagem é um fenômeno cultural e sua essência é o cuidado às pessoas em suas diversas culturas. Nesse sentido é que as decisões e as ações de cuidado de enfermagem precisam estar culturalmente embasadas para melhor satisfazer às necessidades dos clientes, e propiciar um cuidado coerente com a cultura. Portanto, diante das reflexões advindas da leitura de algumas fontes documentais realizadas neste artigo, temos a consciência da necessidade de compreendermos as diferentes concepções de saúde, doença e as maneiras próprias de cuidar da mesma, que cada pessoa possui, para que a práxis

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20 da enfermagem se torne mais eficiente e humanizada, evitando assim o choque ou a imposição cultural. Fontes Documentais GOMES, B.A. Plantas Medicinais do Brasil (séc. XIX). São Paulo: Edição fac-similar Edusp; 1972. LIMA, A.P. As botícas do Dr. Alexandre Rodrigues Ferreira (fim do séc. XVIII). In: ANAIS DA FACULDADE DE FARMÁCIA DO PORTO, v. IX, 1949, Porto – Portugal. Anais... Porto – Portugal; 1949. p. 1-20. PIES, W. História Natural do Brasil Ilustrada em 1648. São Paulo: Cia Editora Nacional; 1948. SAA, J.B. de. Relaçam das povoações do Cuyabá e Matto Grosso de seos princípios thé os prezentes tempos. Cuiabá: Editora da Universidade Federal do Mato Grosso; 1975. SAINT-HILAIRE, A. Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Belo Horizonte: Editora Itatiaia; 1975. SOUSA, G.S. de. Tratado descritivo do Brasil em 1587. São Paulo: Companhia Editora Nacional e Editora da USP; 1971. TEIXEIRA, D.M. Theatrum Rerum Naturalium Brasiliae. Brasil - Holandês. Deutch-Brazil. Tomo I, Introdução e Miscelânea Cleyeri. Rio de Janeiro: Editora Index; 1995. Referências Bibliográficas ALMEIDA, M.C.P. de & Rocha, J. S. Y. O saber da enfermagem e sua dimensão prática. São Paulo: Cortez; 1989. ALVIM, N.T. A enfermagem e as práticas naturais de saúde. Rio de Janeiro: Grafline; 1997. ARARIPE, F.A. Pedra-ume-caá, um projeto alternativo contra diabete. Revista Planeta, v.2: 13-15, 1987. ELIAS, N. O processo Civilizador. Volume 1: Uma História dos Costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor; 1998. ________. O processo Civilizador. Volume 2: Formação do Estado e Civilização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor; 1998. FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. Uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes; 1991. GEORGE, J.B. Teorias de enfermagem. Os fundamentos para a prática profissional. Porto Alegre: Arts Médicas; 1993. HOLANDA, S.B. de. Caminhos e Fronteiras. Rio de Janeiro: Livraria José Olímpio Editora; 1957. HOLANDA, S.B. de. A época colonial. Do descobrimento à expansão territorial. São Paulo: Difusão Européia do Livro. Tomo I. vol. 1; 1960. HOLANDA, S.B. de. Raízes do Brasil. 4a Edição. Brasília: Editora Universidade de Brasília; 1963. HOLANDA, S.B. de. Monções. São Paulo: Brasiliense; 2000. LÉVI-STRAUSS, C. O pensamento selvagem. Campinas: Papirus; 1997. PAPAVERO, N.; Llorente-Bousquets, J. e Organista, D.E. Historia de la biología comparada desde el génesis hasta el siglo de las luces. Vol. 1. México: Universidad Nacional Autónoma de México; 1995. RIBEIRO, D. (Editor) et alii. Suma etnológica brasileira: Vol. I Etnobiologia. São Paulo: Vozes; 1987. SANTOS, E.M.A.M. dos. A viagem philosophica: o naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira e a paisagem brasileira do século XVIII. [dissertação]. Maringá, 2000 (Mestrado), Departamento de Geografia, Universidade Estadual de Maringá. SILVA, G.B. da. Enfermagem profissional: análise crítica. São Paulo: Cortez; 1986.

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21 SILVA, J.L. da. Tudo sobre medicamentos: como surgiram os medicamentos. Panfleto promocional da farmacêutica Hoeschst, São Paulo, Delta 3 Editora Promoção e Publicidade Ltda. 1995. ZAGO, R. Câncer tem Cura! Petrópolis: Vozes; 1997.

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