MENEZES, V. H. S. Ciudad Juárez: a cidade do silêncio (2013)

July 5, 2017 | Autor: V. Menezes | Categoría: Ciudad Juárez, Mídia, Feminicidio, Misoginia
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ISSN 1807-1783 Atualizado em 27 de maio de 2013

Ciudad Juárez: a cidade do silêncio Victor Henrique da Silva Menezes1

RESUMO: O presente artigo objetiva tratar dos crescentes crimes de cunho misógino que desde a década de 1990 ficaram conhecidos como femicídio ou feminicídio. Para tal, será feito um estudo acerca das ideias centrais de algumas teóricas que trabalham com estes conceitos, assim como uma breve consideração acerca do que vem ocorrendo desde o ano de 1993 em Ciudad Juárez, México, conhecida como a capital do feminicídio. Por fim, por meio de charges que representam tais acontecimentos em Juárez, divulgadas em sites criados pelas famílias e amigos das vítimas, procurar-se-á fazer uma análise das representações e discursos produzidos acerca de tais crimes caracterizados por uma ampla impunidade. PALAVRAS-CHAVE: Feminicídio, misoginia, Ciudad Juárez.

Introdução No mundo contemporâneo o lema “corpo de mulher, perigo de morte” (SEGATO, 2005, 256), por mais nefasto que seja, tem se tornado, em algumas regiões do globo, cada vez mais real.

A violência contra as mulheres, que não é algo inédito na

atualidade, mas que tem tomado formas diversificadas de ação, deixou de ser – o que era considerado há alguns séculos atrás – um assunto privado para tornar-se “un fenómeno histórico, de orden social que ocurre para perpetuar el poder masculino en las sociedades patriarcales” (Boletim GGM, 2006, 04). Esta afirmação feita pelo Grupo Guatemalteco de Mujeres em seu Boletim “Feminicidio… la pena capital por ser mujer” de novembro de 2006, cabe bem para definir os terríveis crimes de cunho misógino que tem assolado diferentes regiões do globo nas últimas décadas. O ódio ou aversão a mulheres – significado do termo misógino –, em alguns locais específicos onde predominam a globalização econômica e políticas neoliberais, tem crescido juntamente com a violência de gênero, contribuindo para o advento de 1

Graduando em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), pesquisador colaborador e estagiário do Laboratório de Arqueologia Pública Paulo Duarte (LAP) – NEPAM/Unicamp. (Email: [email protected]).

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assassinatos cometido contra mulheres justamente pelo motivo dessas vítimas serem mulheres. Tais crimes, cometidos por homens que são motivados, como articulou Diana Russell e Jane Caputi, por ódio, desprezo, prazer ou um sentido de propriedade das mulheres (ATENCIO, Feminicidio.Net, p. 05)2 tem sido denominados de femicídio ou feminicídio, termos que são utilizados para tentar definir essa barbárie que acaba por resultar numa violação contínua e sistemática dos direitos humanos no mundo moderno. Considerados como um fenômeno que tem marcado profundamente algumas sociedades, esses acontecimentos serão o objeto central do presente ensaio. Partindo do pressuposto de que o assassinato compulsório de mulheres ligado a questão de gênero é um fato histórico que não ocorre de maneira isolada, procurar-se-á entender a origem e os significados de tais termos e como esses crimes têm sido praticados e interpretados em alguns lugares específicos do continente americano, onde há algumas cidades, como por exemplo, Ciudad Juárez no México, que atualmente, são famosas pelos inúmeros casos de feminicídios nelas ocorrido. Dessa forma, com o objetivo de discutir tais acontecimentos que vem aumentando no decorrer dos últimos anos, ao longo do ensaio serão utilizados historiografia e documentos produzidos por alguns grupos feministas, que refletem o que a sua sociedade pensa a esse respeito. Para tanto, antes que se passe ao estudo de caso é válido fazer um breve debate acerca das ideias centrais de algumas teóricas que trabalham com a temática, assim como, uma conceituação dos termos bases deste ensaio, o que buscar-se-á fazer a partir de então.

Feminicídio e femicídio: em busca de uma definição

Antes de adentrar-se nas discussões acerca das possíveis definições para os termos apresentados, há de se considerar que a expressão feminicídio, terminologia introduzida pelas feministas anglo-saxônicas na década de 1990 para definir o assassinato baseado em gênero, não foi algo inédito. Tendo aparecido pela primeira vez 2

Trecho retirado do artigo Atencio, Graciela. Feminicidio-femicidio: un paradigma para el análisis de la violência de genro, disponível in http://www.feminicidio.net/index.php?option=com_content&view =article&id=67&Itemid=8.

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em 1801 em “A satirical view of London at the Commencement od the Nineteenth Century”, obra literária do inglês John Corry (Russell, 2006:75), esta expressão já estava sendo utilizada então, há mais de dois séculos para designar o assassinato de uma mulher. O que teve de inédito no resultado de um extenso e valioso trabalho da academia feminista nas discussões relacionadas às formas extremas de violências contra as mulheres foi o nascimento do termo feminicídio como uma construção teórica, em que, tal conceito buscou definir, a partir de então, os diferentes crimes, motivados pelas questões de gênero, cometidos contra as mulheres. Este termo, por sua vez, não é utilizado por todas as teóricas do tema, em que há em algumas a preferência em denominar os crimes cometidos contra as mulheres de femicídio, ao invés de se utilizarem da terminologia desenvolvida pelas feministas anglosaxônicas. O femicídio, como conceito, surgiu em contraposição ao termo “homicídio” que corresponderia a um “gênero neutro”, com o objetivo de denominar os assassinatos de mulheres (Boletim GGM, 2006, 06). Assim, o conceito de femicídio seria o oposto do conceito de homicídio, e a diferença entre ele e feminicídio seria que enquanto o primeiro é utilizado somente para denominar os assassinatos cometidos por homens em razão ao ódio às mulheres, o segundo estaria preocupado em abranger os crimes contra as mulheres por serem mulheres, seguidos de impunidade, como se observa no texto de apresentação dos termos contido no Boletim do Grupo Guatemalco de Mujeres:

Existe sin embargo, un debate que enfrenta como distintos, los conceptos “femicidio” y “feminicidio”. El mismo aduce que el primeiro es um anglicismo que deviene de “femicide”, que refiere a los asesinatos por ódio a mujeres realizados por hombres, mientras que el concepto de “feminicidio” amplia al primeiro… porque solo existe feminicidio cuando hay impunidad. (Boletim GGM, 2006, 06).

Isto posto, por uma questão de escolha do autor deste ensaio e devido os acontecimentos em Ciudad Juárez que aqui serão tomados como estudo de caso, será utilizado a partir de então apenas o termo feminicídio para designar os eventos em questão. Tal atitude não procura desmerecer o termo femicídio, mas apenas por uma 3

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questão de organização e ideologia, trabalhar apenas com o conceito que mais parece abranger as discussões aqui propostas. Sendo assim, será com este conceito que a partir de então será focada a preocupação em encontrar uma definição, para que posteriormente ele melhor possa ser aplicado ao estudo de caso proposto. Assim, é importante ressaltar que, como todo conceito, feminicídio não é algo que possa ser definido em poucas palavras ou que tenha um mesmo sentido para todas as estudiosas do assunto. Jill Radford e Diana Russell, grandes teóricas do tema, no livro “Femicide: The Politics of Woman Killing” o defende como uma representação extrema de violência contra a mulher que abrange desde violências verbais, até físicas e sexuais, como se pode observar no excerto que segue: (…) de un continuum de terror anti-femenino que incluye una amplia variedad de abusos verbales y físicos, tales como: violación, tortura, esclavitud sexual (particularmente por prostitución), abuso sexual infantil incestuoso o extra-familiar, golpizas físicas y emocionales, acoso sexual (por teléfono, en las calles, en la oficina, y en el aula), mutilación genital (clitoridectomías, escisión, infibulaciones),

operaciones

ginecológicas

innecesarias

(histerectomías), heterosexualidad forzada, esterilización forzada, maternidad forzada (por la criminalización de la contracepción y del aborto), psicocirugía, negación de comida para mujeres en algunas culturas, cirugía plástica y otras mutilaciones en nombre del embellecimiento. Siempre que estas formas de terrorismo resultan en muerte, se convierten en feminicidios (RADFORD; RUSSEL, 1992, 57-58).

Portanto, para as autoras, o feminicídio seria a violência cometida intencionalmente contra a mulher, se constituindo numa forma de terrorismo, ou seja, uma ação que teria a priori o intuito de causar a morte ou sérios danos físicos e/ou psicológicos. Já Marcela Lagarde, expoente teórica do feminicídio que introduziu o termo nas discussões feministas em 1994 no México irá dizer que o fator definidor do feminicídio seria a 4

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impunidade, deixando claro que a violência contra as mulheres e o feminicídio seria “un problema político y su tratamiento y resolución son una asignatura pendiente de los Estados actuales” (FEMINICIDIO.NET, p.02).

Lagarde, então, ao afirmar que o

feminicídio seria um fenômeno causado principalmente pelas atitudes políticas, não só tenta definir o fenômeno, como também entender os motivos de sua existência, procurando encontrar explicações por vieses históricos, defendendo que o principal ensejo de sua existência seria as condições históricas que gerariam práticas sociais agressivas contra determinado grupo. Outra grande expoente teórica do feminicídio no México é a socióloga Júlia Monarrez, nascida em Ciudad Juarez, que, como escreve Graciela Atencio, tem focado os seus trabalhos em “descifrar las atrocidades que encierran los asesinatos de mujeres de Ciudad Juárez, la impunidad del Estado mexicano y la falta de respuesta de las autoridades ante el creciente avance del narcotráfico” (FEMINICIDIO.NET, p. 03). Para Monarrez, o feminicídio não seria apenas o assassinato de mulheres por razões de gênero, mas também uma forma extrema de violência de gênero, entendida esta como “la violencia ejercida por los hombres contra las mujeres en su deseo de obtener poder, dominación o control” (FEMINICIDIO.NET, p.06). Observando as definições utilizadas por essas quatro grandes teóricas pode-se inferir que, independente das peculiaridades que cada uma irá introduzir nas definições de feminicídio, todas concordam no aspecto de que tal fenômeno seria o “asesinato de mujeres por el hecho de serlo; es decir, por su condición de gênero” (Boletim GGM, 2006:04). Isso nos remete a expressão citada no início deste trabalho – “corpo de mulher, perigo de morte” – que está se tornando cada vez mais freqüente no dia-a-dia de algumas mulheres que habitam em locais onde o índice de feminicídio tem sido grande nos últimos anos. Tal lema é lembrado por Rita Segato em seu artigo “Território, soberania e crimes de segundo Estado: a escritura nos corpos das mulheres de Ciudad Juárez” publicado em 2005 pela “Revista Estudos Feministas” da Universidade Federal de Santa Catarina, em que a antropóloga argentina, atualmente professora da Universidade de Brasília, expõe que essa expressão acabou por ser tornar real na vida das mulheres que habitam Ciudad Juárez, cidade mexicana que se tornou conhecida 5

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internacionalmente pelo seu alto índice de caso de feminicídio. E é nos eventos que vem marcando a população desta cidade que procurar-se-á deter-se a partir deste momento. Ciudad Juárez: a cidade do silêncio3 Um fusca anda pela cidade com um alto-falante que anuncia: “Os crimes aumentam em Juárez! Onda de morte em Juárez! Encontrado mais três corpos de mulheres! Os crimes aumentam em Juárez! Onda de mortes aterroriza Juárez…” Assim inicia o filme “Bordertown”, traduzido para o português como “Cidade do Silêncio”, lançado no ano de 2007 e dirigido por Greogry Nava. Enganam-se aqueles que pensam que estas são apenas falas de mais um filme hollywoodiano. Sim, elas pertencem a um filme, mas um filme que foi baseado nos assassinatos de mulheres que ocorrem compulsivamente nesta cidade mexicana desde os anos de 1990. O filme gira em torno da repórter Lauren Adrian (Jennifer Lopez), de um editor do jornal local Alfonso Diaz (Antonio Banderas), e de Eva Jimenez (Maya Zapata), sobrevivente de um dos ataques, que trabalha em uma das fábricas instaladas na cidade. Lauren é enviada à Juárez por seu editor-chefe para fazer uma reportagem a respeito dos casos de feminicídio que tem ocorrido na cidade e acaba por ser envolver com a história de Eva, ao passo que Alfonso, através de seu jornal, tenta dizer a verdade sobre as mortes de Juárez, mas é constantemente impedido por poderes além dos seus. O longa representa a relação entre as mortes e os “ilícitos resultantes do neoliberalismo feroz que se globalizou nas margens da Grande Fronteira depois do NAFTA e a acumulação desregulada que se concentrou nas mãos de algumas famílias de Ciudad Juárez” (SEGATO, 2005, p. 267), que como escreve Segato, é um dos fatores que tem implicado, desde o ano de 1993, no alto índice de feminicídio na cidade. Localizada no estado de Chihuahua, fronteira norte do México com El Paso, Texas, a cidade natal da socióloga Júlia Monarrez, Ciudad Juarez, com seus cerca de 1.301.452 de habitantes (de acordo com a última pesquisa feita em 2005), é um lugar emblemático do sofrimento das mulheres (SEGATO, 2005, p. 265) e talvez o símbolo 3

Cidade do silêncio: esse subtítulo faz alusão ao título dado em português ao filme “Bordertown”, 2007 (EUA, Inglaterra) que retrata os casos de feminicídios ocorridos em Ciudad Juarez.

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mundial de casos de feminicídios que resultaram, como estima Segato (2005, p. 265), em pelos menos 300 mulheres assassinadas entre 1993 e 2004. Desde então, os números só aumentaram. Os motivos para tal femi-geno-cidio4 podem ser o ódio, o prazer, a ira, a maldade, ciúmes, separação, e a sensação de ter a mulher e exterminar a dominada (MONÁRREZ, 2000, p. 89), características já reconhecidas em casos de feminicídios. Os perfis das vítimas são parecidos: operárias das fábricas, garçonetes de bares, garotas de programa e estudantes. E, em todos os casos, as autoridades, assim como “Cidade do silêncio” retrata, simplesmente “tampam” os ouvidos, “fecham” os olhos e deixam que a impunidade “ande à vontade”, propiciando assim, o aumento de casos. E como se não bastasse fingir que nada está acontecendo e que as mortes “são” em sua maioria, causadas por brigas domésticas, a mídia e até mesmo o Estado transformam “as mulheres assassinadas rapidamente em prostitutas, mentirosas, festeiras e viciadas em droga” (Segato, 2005, p. 278), como se elas fossem as culpadas por serem as vítimas da agressão. Discursos como este podem ser observado, por exemplo, a partir das declarações de Arturo Gonzales Rascón, Procurador do Estado de Chihuahua em 1999, em que percebe-se claramente o seu intuito em culpar a mulher que for vítima de alguma violência sexual:

Hay lamentablemente mujeres que por sus condiciones de vida, los lugares donde rea1izan sus actividades, están en riesgo, porque sería muy dificil que alguien que saliera a las calles cuando está lloviendo, pues sena muy dificil que no se mojara.5

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Terminologia utilizada por Rita Segato. Para melhores detalhes: Segato, Rita. Femi-geno-cidio como crimen en el fuero internacional de los Derechos Humanos: el derecho a nombrar el sufrimiento en el derecho, disponível in http://www.feminicidio.net/images/documentacion/rita%20segato%20femigenocidio%20completo%20sin%20marcas%20final.pdf 5

ArmandoRodriguez, EI Diorio tk Jutir", 24 de febrero de 1999, p.9C. Op. Cit Monárrez, Julia E. M. La cultura del feminicidio em Ciudad Juárez; p. 90.

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Tal exemplo se repete no “Informe de homicidios em perjuicio de mujeres em Ciudad Juárez, 1993-1998” organizado pela Subprocuradoria de Justiça do Estado Zona-Norte, em que aparece:

(…) es importante hacer notar que la conducta de algunas de las victimas no concuerda con esos lineamientos del orden moral, toda vez que se ha desbordado una frecuencia de asistir a altas horas de lanoche a centros de diversión, no aptos para su edad en algunos casos, así como la falta de atencion y descuido por el nucleo familiar en que han convivido. (MONÁRREZ, 2000, p. 91)

É perceptível, ao ler estes dois excertos, que as autoridades locais, que deveriam ter uma maior preocupação e que possuem a responsabilidade em solucionar tais casos, ao invés de tentar encontrar os culpados, acabam por jogar a culpa nas próprias vítimas. Afinal, como diria o ditado popular, “morto não fala”. Uma expressão que assim como “corpo de mulher, perigo de morte”, é horrível só de se pensar, mas que nos últimos anos parece ser constante na mentalidade de alguns habitantes daquela cidade, e aqui se entende por aqueles, como diria Segato, que ocupam os bairros ricos da cidade (SEGATO, 2005, p. 267). Diante disso, é importante tentar-se compreender quais motivos, além da misoginia, proporcionariam tais crimes, assim como, o porquê do silenciamento e até mesmo de certo ensurdecimento das autoridades locais diante dos fatos. Antes que se procure encontrar respostas – pois elas podem ser várias –, um fator que deve ser considerado é o contexto político, econômico e cultural ao qual Juárez está inserida e que é um grande influenciador nestes acontecimentos. Sendo porta para muitos mexicanos que emigram ao Norte em busca de emprego no setor industrial que predomina na zona fronteiriça, como relata a Comissão Interamericana de Direitos Humanos em seu relatório “Situação dos direitos da mulher na cidade de Juárez,

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México: o direito a não ser objeto de violência e discriminação” 6, Ciudad Juárez é um centro manufatureiro importante em que as indústrias estrangeiras e nacionais atraem uma força de trabalho de enormes proporções. Estando numa fronteira que separa uma das mãos-de-obra mais caras do mundo de uma das mãos-de-obra mais baratas (SEGATO, 2005, p. 274), é a porta para e emigração, legal e ilegal, em direção aos Estados Unidos, em que na maioria das vezes acaba por abrigar esses imigrantes que não conseguem atravessar a fronteira. Tais fatores têm influenciado em muito no rápido crescimento populacional da cidade, o que provoca por sua vez problemas complexos em relação às diferenças culturais, econômicas e sociais que passaram a existir entre a população. Também, há de se considerar que, influenciadas por políticas neoliberais e mãode-obra barata, a partir do Tratado de Livre Comércio entre Estados Unidos, México e Canadá, como explicitado anteriormente, um grande número de montadoras transnacionais passou a se instalarem na cidade, acarretando assim, dois principais fatores: uma grande dependência da economia local em relação e essas indústrias e, por poder pagar menos, um maior número de postos de trabalho para mulheres. E a partir disso, dois problemas fundamentais para o entendimento dos crimes ocorridos na cidade passaram a fazer parte do cotidiano dos moradores desta localidade. O primeiro, ligado a instalação das indústrias, consiste no fato de que Juárez passou a partir de então a estar mais fortemente envolta num sistema político que visa o lucro de um pequeno número de grandes proprietários, exploração de trabalhadores e narcotráfico, influenciando o aumento da violência local e impunidades quanto a elas. Já o segundo estaria ligado às questões sobre o entendimento do papel da mulher socialmente construído numa sociedade de cunho patriarcal, como a pertencente à Juárez. A partir do momento em que essas mulheres começam a sair de suas casas para ocupar vagas nestas “maquiladoras” – como são denominadas as indústrias instaladas na cidade –, passam a ter uma maior independência social e econômica, o que por sua vez, gera

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Tal relatório, que se refere aos direitos das mulheres da Ciudad Juárez escrito no ano de 2006, pode ser visualizado a partir da página http://www.cidh.org/annualrep/2002port/cap.6e.htm.

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mudanças nas estruturas tradicionais até então aceitas por essa sociedade caracterizada por desigualdades históricas entre homens e mulheres. Dessa forma, uma sociedade que não está habituada com as mudanças estruturais no papel do sexo feminino e que se percebe de repente passando por grandes transformações econômicas e culturais, é provável que acabe por propiciar o aperfeiçoamento de um sistema patriarcal denso que favorecerá o surgimento de grupos misóginos, que por sua vez, tentar-se-ão mostrar o “papel do macho” que comanda sociedade. Ao mesmo tempo, influenciadas pelas políticas neoliberais, um provável aparecimento de autoridades ineficientes e corruptas, que estarão ao lado dos mais poderosos ocorrerá, propiciando e possibilitando o assassinato de mulheres e jovens que serão vítimas e posteriormente transformadas em culpadas simplesmente por serem mulheres e estarem indo além do que uma sociedade tradicional acredita que deva ser o seu papel. Sendo assim, uma possível explicação para os casos de feminicídio em Juárez iria muito além das características já reconhecidas como a causa deste fenômeno – ódio, prazer, ira, maldade, ciúmes, entre outros –, pois estariam diretamente ligadas às questões políticas, culturais e sócio-econômicas da localidade, como defende Rita Segato, que não considera a misoginia como o único fator operante: (…) tendo a não entender os feminicídios de Ciudad Juárez como crimes nos quais o ódio em relação às vítimas é o fator predominante. Não discuto que a misoginia, no sentido estrito de desprezo pela mulher, seja generalizada no ambiente onde os crimes ocorrem. Porém, estou convencida de que a vítima é o produto secundário do processo, uma peça descartável, e de que condicionamentos e exigências extremas para atravessar o umbral de pertencimento ao grupo de pares encontram-se por detrás do enigma de Ciudad Juárez. (SEGATO, 2005, p. 273).

Neste ponto, Ciudad Juárez não é somente vítima do feminicídio, mas também de uma ampla exploração da população menos favorecida por parte das empresas, da elite local e de grupos criminosos. O que faz que tenha sentido a tese de Rita Segato de que 10

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são as pessoas “de bem”, grandes proprietários, que estão vinculados com as mortes (2005, p. 269), o que explicaria de certa forma a impunidade de tais crimes. E isto é bem representado no filme “Cidade do silêncio”, em que os grandes empresários estão por trás e são cúmplices de tais crimes, e que por serem aqueles que levaram “empregos” e dinheiro a cidade, acabam por conseguir ficar impune perante a lei, pois como em todo regime de desigualdade social, são sempre os poderosos que tem maior força. E é nesse quesito que o filme consegue ser brilhante em sua narrativa, pois vê-se no clímax da história, Alfonso Diaz, aquele que queria falar e denunciar os crimes ocorridos em Juárez sendo assassinado para ficar de “boca calada”, e a repórter Lauren sendo proibida de publicar a sua matéria que denunciaria a verdade sobre os casos de Juárez. Como o título do filme indica, Ciudad Juárez é a cidade do silêncio, a cidade onde estão acontecendo crimes hediondos de cunho misógino e as autoridades, assim como a elite local, em sua maioria, finge que nada vê e nada escuta. Todos sabem o que acontecem e temem que sejam as próximas vítimas, mas aqueles que teriam um maior poder para falar e denunciar a verdade, ou são obrigados a se calarem, ou optam, por si mesmo, a se silenciarem quanto a estes acontecimentos, deixando com que a impunidade reine no local. Acadêmicos quando tentam expor também suas opiniões, correm o risco de serem censurados, como ocorreu com Rita Segato em 2005 no momento que foi até Juárez com o compromisso de permanecer por nove dias para participar de um fórum sobre os feminicídios ocorridos. Tal evento foi interrompido por uma série de acontecimentos que culminaram, no sexto dia, com a queda do sinal de televisão a cabo na cidade inteira justamente no momento em que a antropóloga iria expor a sua versão dos crimes em uma entrevista com a jornalista Jaime Pérez Mendoza (SEGATO, 2005, p. 266). Após isso, Segato se viu obrigada a sair imediatamente da cidade, pois o corte de sinal da TV era um aviso de que ela já teria ido longe de mais com as suas versões acerca dos fatos. Assim, percebe-se que os crimes de cunho misógino ocorridos em Juárez foram e são seguidos, na maior parte das vezes, de impunidade, visto que as autoridades tendem a optar pelo não agir ou por certo silenciamento, o que é, como defendeu Marcela Lagarde, o fator definidor do feminicídio. E quando essas autoridades resolvem “mostrar serviço”, como relata a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, 11

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prendem alguns suspeitos e os tortura até confessarem os crimes, o que, além de estarem violando os direitos humanos em ter confissões a base de tortura, não implica, em estarem prendendo realmente os verdadeiros culpados.7 Dessa forma, mediante tais atitudes por parte tanto do governo como também da mídia – pois, por certo, é essa que muitas vezes ajuda a difundir a ideia de que é culpa da mulher em sofrer tais ataques –, umas das formas, senão a única, que se tenha para falar e ser ouvida num local onde as autoridades procuram negar a verdade, é por meio de sites e blogs onde grupos de feministas e famílias das vítimas, entre outras ativistas, conseguem ter voz e serem ouvidas pelo resto do mundo. Com uma simples pesquisa na web, é fácil de encontrar inúmeros sites e blogs com essa temática, onde moradores tanto de Juárez como do restante do planeta denunciam os horrores que habitam dentro dos muros da cidade. E será num desses sites (“Contra o feminicídio: mulheres de Juárez”) que iremos nos deter na parte que segue.

Contra o feminicídio: Uma análise de suas representações. “Criado e desenvolvido por Juliana Fernandes apenas com o intuito de divulgar os acontecimentos brutais que seguem impunes”. É esta frase que se lê na página principal do site “Contra o feminicídio: mulheres de Juárez”, criado e sendo desenvolvido desde 2008 pela brasileira Juliana Fernandes. O site, como é perceptível já em sua introdução, foi criado com o intuito de noticiar os terríveis acontecimentos que ocorreram nos últimos anos na cidade mexicana, denunciando os crimes, assim como divulgando o nome das desaparecidas e mortas. Grande parte das fontes nele contidas foram retiradas do site

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Para maiores informações é interessante ler o relatório, já aqui citado, elaborado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, onde nos parágrafos 49 e 50, há citações da prisão em 2001 de dois suspeitos, Gustavo González Mesa e Javier García Uribe, que foram torturados até confessar terem cometido crimes de feminicídio. As torturas chegaram a ser denunciadas perante as autoridades, mas os juízes rejeitaram as denúncias de coação. Em 8 de fevereiro de 2003, Gonzáles apareceu morto em sua cela em circunstâncias que necessitariam de uma investigação, o que ainda não aconteceu.

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mexicano “Nuestras Hijas de Regreso a Casa, A. C.”

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, elaborado por amigos e

familiares de mulheres assassinadas em Juárez. O intuito em utilizar esse site para este estudo de caso, ao invés de usar o próprio site mexicano, foi devido o interesse em demonstrar que não são apenas as mulheres que habitam em Juárez que estão tentando serem ouvidas, mas que também, pessoas do mundo todo tem tido tal preocupação e procurado propagar tais reflexões em seu país, como é o exemplo claro dessa iniciativa de Fernandes, em que qualquer brasileiro, até mesmo aqueles que não dominam a língua espanhola, pode ter contato com esta realidade que pouco é divulgada a um público mais amplo. O site em questão não contém nenhuma informação acerca de quem é Juliana Fernandes, mas pode-se observar que ela teve uma grande preocupação em montar um site bem escrito, com informações curtas e precisas, e com referências constantes acerca de onde estavam sendo retiradas determinadas informações, o que faz com que sua página tenha maior credibilidade perante os seus leitores. Com um fundo negro, detalhes cor-de-rosa e textos escritos na cor branca, o site possui em sua parte superior, em letras garrafais, o seu título, um link que, quando clicado nos direciona ao site “Nuestras Hijas de Regreso a Casa.”, algumas imagens de protestos e vítimas de Juarez e cinco links principais (“Início”, “O que acontece”, “Documentos”, “Cid. Juárez” e “Grupos de Apoio”) que oferecem informações acerca dos casos de feminicídios ocorridos em Juárez. Em sua margem esquerda, há outros catorzes links (“Desaparecidas”, “Filmes”, “Poemas”, “Canções”, “Livros”, “Blogs”, “Vídeos”, “Lista de nomes”, “Petição”, “Charges”, “Organizações”, “Orkut”, “Fórum” e “Sobre o site”) que trabalham, por sua vez, com documentos e organizações que versam a respeito do assunto. Na parte central da página do site há um quadro cor-de-rosa em que aparecem os textos e imagens que estão ligados aos links citados acima, quando se clica em um deles.

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Nuestras Hijas de Regreso a Casa, é uma associação civil de familiares e amigos de mulheres que foram assassinadas ou que estão desaparecidas em Ciudad Juárez. Esta organização surgiu em fevereiro de 2001 devido a desatenção e as demandas da justiça, das ações governamentais, da violação dos direitos humanos e da recorrente desatenção às vítimas. Para maiores detalhe ver http://nuestrashijasderegresoacasa.blogspot.com.br/

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No link “Início” encontra-se um breve texto que leva o mesmo nome do site, “Contra o feminicídio: mulheres de Juárez”, onde se tem uma breve discussão dos casos de feminicídio ocorrido em Juárez, assim como uma apresentação acerca do que o site irá tratar no decorrer de seus demais links. Em “O que acontece”, com o texto “Campanha internacional contra o feminicídio e tortura sexual no México”, discussões mais aprofundadas nos temas de violência de gênero são inseridas, em que iniciando com o debate acerca dos casos de violência cometidos contra mulheres no Brasil, introduz-se e discute por fim como tal se repete nas cidades mexicanas. Em “Documentos” há uma série de links que direcionam a diversos artigos, tanto em português quanto em espanhol, que tratam dos crimes de cunho misógino enfrentados por Ciudad Juárez, que por sua vez, é descrita e contextualizada no link “Cid. Juárez”. Já em “Grupos de apoio” há indicações do já citado site, “Nuestras Hijas de Regreso a Casa”, e de “Amigos de las mujeres de Juarez” 9, um grupo de apoio existente desde 2001 às famílias das vítimas que as tem apoiado tanto emocionalmente, quanto financeiramente através de doações, além de organizarem constantemente, protestos mundiais e locais.10 Em relação aos links que se encontram na margem esquerda, escrito em letras menores, mas nem por isso menos importantes, destacam-se “Desaparecidos”, que quando clicado é direcionado a uma página com fotos de jovens e mulheres que desapareceram ao longo dos últimos anos, e “Lista de nomes”, onde há uma lista com os nomes de mais de 300 mulheres assassinadas em Juárez entre os anos de 1993 e 2004. Há em “Blogs”, “Organizações”, “Fórum”, “Petições” e “Orkut”, outras páginas da web lincadas ao site que são responsáveis pelas divulgações dos casos de feminicídio ao qual a página de Fernandes se propôs a tratar, assim como em “Sobre o site”, maiores informações acerca dos objetivos propostos por “Contra o feminicídio: mulheres de Juárez”. Em “Poemas”, “Canções”, “Livros”, “Vídeos” e “Filmes”, há indicações destes tipos de literatura e mídia produzidos acerca do feminicídio, em que cabe aqui ser destacado, o filme “Cidade do silêncio”, que inspirou o título deste ensaio é que é um 9

Para maiores detalhes ver: http://www.amigosdemujeres.org/.

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Informação retirada da página citada.

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dos longas indicados por Juliana Fernandes aos visitantes do site. Por fim, é importante citar o link de título “Charges”, ao qual, dentre os citados, será aquele que neste ensaio se dará, a partir de então, um maior destaque devido à escolha de se fazer uma breve análise acerca do que esses desenhos caracterizados estão querendo dizer e criticar acerca do mundo real que existe em Juárez. O que pode-se observar num primeiro momento, a partir deste espaço reservado do site, é que, sendo uma espécie de cartum em que se fazem geralmente críticas sociais e políticas, as charges – ilustrações desenvolvidas no início do século XIX – estão sendo utilizadas também no México para retratar, através da sátira, os crimes misóginos ocorridos em Juárez. No link em questão aparecem quatro charges retiradas do site “Nuestras Hijas de Regreso a Casa”, que desenhadas por três autores que se utilizam dos codinomes Fisgón, Rocha e Helguera, fazem uma crítica às autoridades locais, ao qual, do ponto de vista destes desenhistas, são as principais culpadas por ainda permanecerem a ocorrência de tais crimes. Assim, dentre essas charges disponibilizadas no site, este ensaio terá por preocupação a partir de então, em realizar uma breve descrição e análise das três primeiras,

que

de

certa

forma,

representam o que neste ensaio tentou-se discutir, desde o início, das teorias acercas do feminicídio e a ocorrência deste em Juárez. Dito isso, passemos a observação das imagens que o site nos apresenta. Intitulada de Muertas em Juárez e desenhada

por

Fisgón

(Figura

01),

observa-se que a primeira charge que aparece no site é composta por uma mulher feia e gorda, vestida com uma roupa que poderia ser considerada por alguns como “provocante”, utilizando na cabeça uma coroa e sobre o corpo uma 15

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faixa de miss. Esta mulher, cuja faixa que carrega sobre o corpo lhe dá o título de “Miss Impunidad”, está a desfilar em um cemitério, como se pode observar pela grande quantidade de crucifixos, enquanto faz um gesto de arrumar o cabelo (como se fosse um “gesto de embelezamento”) e diz: “Yo sigo bien viva”. A faixa de miss que ela carrega deixa bem claro o que esta mulher representa e o que o cartunista quis representar com tal. Ela é a impunidade, que de tanto existir em Juárez, já está velha, mas uma velha que continua reinando e desfilando por entre as covas onde são depositadas as vítimas não somente do feminicídio, mas também da impunidade causada por este. De tanto se alimentar dos crimes que rondam a cidade, a “Miss Impunidade” está gorda, na verdade obesa, e desfilando com uma roupa que se espera ser provocante, querendo dizer que, apesar de ser feia, ela ainda é e pretende ser algo sedutor a todos por onde passa. Ela ainda tem a audácia de dizer, perante os corpos de suas vítimas, que segue “bem viva”, isto é, que apesar dos crescentes casos de feminicídio ocorridos em Juárez desde 1993, por causa de políticas governamentais e das autoridades competentes que por motivos já aqui trabalhados, acabam por se silenciarem, possibilitam que ela, a impunidade, continue vivendo, sendo a forte, e a miss daquele lugar; a “miss” que desfila tranquilamente por entre os corpos das vítimas largados nas áreas desérticas, nos terrenos baldios, tubos de drenagem, nos aterros sanitários e nos trilhos de trem. Pode-se inferir que Fisgón, através desta imagem, está representando uma das características – como dito anteriormente, mas que cabe neste momento ser relembrado – definidoras do feminicídio, o crime contra a mulher seguido de impunidade. A impunidade que tem tomado conta do município de Ciudad Juárez perante as atrocidades que algumas camadas de tal sociedade têm permitido que aconteça com as suas mulheres. E pode-se dizer algumas camadas dessa sociedade, porque, em grande parte a culpa está na elite desta localidade, que faz uso e exploram em grande medida essas mulheres como mão-de-obra barata nas maquiladoras, ao passo que compactuam, ao se silenciarem e não tomarem medidas cabíveis para mudar a situação e prender os verdadeiros culpados, com o acontecimento de tais crimes.

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Partindo desse pressuposto, não fica muito difícil de entender a charge que segue a esta primeira, que também desenhada por Fisgón, recebeu o nome de En boca cerrada no salen (Figura 02). Nesta imagem, carregada de um tom mais forte que a primeira, vê-se um homem de idade avançada com a boca aberta, onde dentro se vê uma lápide e scrita “Muertas de Juárez”. Esse senhor está por certo representando algum governante do estado de Chihuahua ou do México, ou mesmo, uma autoridade jurídica de Juárez que, nos últimos anos vem se calando perante os crimes que aconteceram ao seu redor, “engolindo” assim, todas as mortes que tiveram seu número aumentado devido à impunidade causada por atitudes como esta. Uma interpretação possível também para tal charge é que este homem represente o grande sistema, que influenciado por políticas neoliberais, se instalou na região, e desde então passou a colaborar para que tais crimes, assim como a misoginia, que por sua vez influenciaria em parte no acontecimento de casos de feminicídio, aumentassem no local. Influenciando assim, para o surgimento em Juárez, como escreve Graciela Atencio, de uma barbárie no patriarcado na era da globalização. (ATENCIO, Feminicidio. Net, p. 07). Esse sistema, também causador destes crimes estaria “engolindo” todas essas mortes, pois ao passo que estaria propiciando para o seu acontecimento, estaria influenciando o seu esquecimento, engolindo, escondendo para si a maior parte dos fatos que comprovariam a verdade sobre os casos de feminicídio que as autoridades tentam “esquecer”, alegando que a maior parte dos assassinatos de mulheres teria ocorrido por motivo de brigas domésticas.

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Por fim, a terceira e última charge (Figura 03), talvez a mais interessante dentre as três aqui observadas, pois nessa, o desenhista Rocha deixa explícita a quem se dirige a sua crítica, trata-se de uma caricatura do famoso detetive Sherlock Holmes, onde ele, vestido com todo o seu traje a rigor e sua inseparável luneta, olha para os túmulos de mulheres assassinadas e diz: “Les digo que estos casos ya estan resueltos. La culpa es de el Congresso y de los médios”. Assim, percebe-se a crítica explícita ao congresso e a mídia por contribuírem para que continuem acontecendo

casos de

feminicídio,

pois

enquanto o primeiro toma a posição de ensurdecimento e emudecimento – Cidade do Silêncio –, e às vezes opta pelo não agir, o segundo ajuda a divulgar a ideia de que as mulheres que foram assassinadas ou sofreram estupros, passaram por tal porque procuraram a morte, porque saíram de casa em horas já elevadas – hora que uma “mulher direita” não deveria estar na rua –, ou porque estas eram funcionárias de bares ou garotas de programas; divulgando a ideia que tais queriam e mereceram o que lhe aconteceu, pois caberia a elas como mulher, ficarem dentro de casa, onde estariam fora de perigo. Imaginar em se pensar ou falar algo nesse sentido, em pleno século XXI, cerca de mais de um século depois do início dos primeiros movimentos feministas e lutas por direitos iguais, parece algo impensável em um primeiro momento. Porém, quando observado os recentes casos de feminicídios ocorrido em Ciudad Juárez – e é importante ressaltar que tal não é um caso isolado, pois Guatemala, Honduras e El Salvador também tem tido regiões onde o número de casos tem aumentado nos últimos anos –, e como estes têm sido lidados pelas autoridades locais, percebe-se que ainda há muito que se fazer e lutar. Por um lado há todo um sistema de preconceito, e de certa forma desejo de que a mulher seja submissa a um homem ou àquilo que determinada 18

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sociedade dita, que ainda permanece na cabeça de alguns homens e até de algumas mulheres; pensamento este que geralmente é acentuado em regiões mais afastadas dos grandes centros urbanos. Por outro, há toda uma rede social e econômica atingida por meio da globalização que permite o aumento da ocorrência de crimes seguidos consequentemente de impunidade. E é pautado nesses dois fatos presentes na vida dos moradores de Ciudad Juárez, que ao longo deste trabalho tentou-se explicar os possíveis motivos para o advento e constante crescimento dos casos de feminicídios nesta cidade mexicana. Através das teorias de algumas autoras cânones no assunto em questão, assim como das charges criadas por amigos e familiares de vítimas de Juárez e disponibilizadas na internet, pôde-se perceber, ao longo deste ensaio, que os motivos ao quais levaram esta cidade mexicana a se tornar o símbolo do feminicídio, assim como defende Rita Segato, não foram apenas àqueles relacionados às questões misóginas, mas também a um sério problema de política e impunidade por parte das principais autoridades da localidade perante tais acontecimentos iniciados na década de 1990 e presentes até hoje na vida daqueles moradores da cidade porta de entrada para os Estados Unidos. Assim, cabe nestes momentos finais ressaltar a opinião de Marcela Lagarde que o feminicídio não é um problema apenas ligado à violência de gênero, mas também um problema de caráter político, ao qual, o seu tratamento seria umas das resoluções pendentes dos Estados atuais.

AGRADECIMENTOS: Desejo registrar os meus sinceros agradecimentos à professora Margareth Rago pelas aulas ministradas no curso de História da América III do segundo semestre de 2011, ao qual deram origem a este trabalho; à Celia Orlato Selem pela leitura e críticas feitas acerca do mesmo; às professoras Raquel S. Funari e Aline V. Carvalho pelo apoio e estímulo dado ao longo dos últimos meses, e ao professor Pedro Paulo Funari pela constante indicação de valorosas leituras. Assim como, não posso deixar de mencionar minha família, e também amigos pelo auxílio em leituras, indicações e grande paciência e amizade para comigo. 19

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ATENCIO, Graciela. Feminicidio-femicidio: un paradigma para el anlásis de la violência de gênero. Disponível in . Acesso em: 23/09/2011. BOLETINA GGM. Feminicidio… la pena capital por ser mujer. Ano 02, nº 03. Noviembre de 2006. _______________ Informe estadístico de violencia contra las mujeres em Guatemala – Año 2008 e Enero-Junio 2009. Ano 05, nº. 08. Noviembre 2010 MONÁRREZ, Julia E. La cultura del feminicidio em Ciudad Juárez (1993-1999). Fronteira Norte, Vol. 12, nº 23, Enero-Junio del 2000. RADFORD, Jill; RUSSEL, Diana E. H. Feminicidio: La política del asesinato de las mujeres Trad. de Femicide: The Politics of Woman Killing. Twayne Publishers, New York, 1992. RUSSELL, Diana E.; HARMES, Roberta A. Feminicidio: una perspectiva global. 1ª Edição. UNAM, 2006. SALAZAR, Katya. Asesinatos de mujeres en Ciudad Juárez. Disponível em: . Acesso em: 02/10/11. SEGATO, Rita L. Território, soberania e crimes de segundo Estado: a escritura nos corpos das mulheres de Ciudad Juarez. Estudos Feministas, Florianópolis, 13 (2): 256, maio-agosto/2005. ______________ Femi-geno-cidio como crimen en el fuero internacional de los Derechos Humanos: el derecho a nombrar el sufrimiento en el derecho. Disponível in . Acesso em: 02/10/11. CONTRA O FEMINICÍDIO: MULHERES DE JUÁREZ. Disponível em: . Acesso em: 05/12/11. COMISSÃO INTERAMERICANA DOS DIREITOS HUMANOS. Situação dos direitos da mulher na cidade de Juárez, México: o direito a não ser objeto de violência e discriminação. Disónível em . Acesso em 04/12/11. NUESTRAS HIJAS DE REGRESSO A CASA, A. C. Disponível em . Acesso em 06/12/11. FILMOGRAFIA: NAVA, Greogry. Cidade do silêncio (Bra.). Estados Unidos/Inglaterra. 2007.

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