Memórias de luz: histórias de poloneses Justos

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Descripción

Memórias de Luz: HISTÓRIAS DE POLONESES JUSTOS

Piotr Kilanowski (Organizador)

Memórias de Luz: HISTÓRIAS DE POLONESES JUSTOS 1ª Edição

Ensaios Aleksandra Pluta Alicja Goczyła Ferreira Marek Bieńczyk Piotr Kilanowski Poemas Jerzy Ficowski Biogramas Aleksandra Piasecka-Till Carlos Reiss Marcin Raiman

Casa da Cultura Polônia Brasil Curitiba, 2015

Coordenação geral do projeto: Piotr Kilanowski Produção executiva: Schirlei Freder Revisão: Eduardo Nadalin Diagramação e arte gráfica: Axel Giller Capa: Axel Giller Foto da capa: Schirlei Freder O projeto é co-financiado pelos recursos do fundo polônico do Ministério das Relações Exteriores da República da Polônia. Projekt jest współfinansowany w ramach funduszy polonijnych Ministerstwa Spraw Zagranicznych Rzeczpospolitej Polskiej. O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Brasil.

Os vaga-lumes na escuridão Piotr Kilanowski

Este livro é mais uma tentativa de preservar a memória dos Justos, de fazer-lhes justiça. Ele surgiu como efeito do seminário “Jan Karski e os Justos Entre as Nações”, organizado em outubro de 2014 pela equipe do curso de Letras Polonês da Universidade Federal do Paraná, juntamente com o Museu do Holocausto de Curitiba, a Casa da Cultura Polônia Brasil e o Consulado Geral da República da Polônia em Curitiba, para comemorar o Ano Jan Karski, homenagem oficial da República da Polônia ao herói. Parte desse seminário foi reapresentada durante o Dia da Polônia na 60ª Feira Do Livro em Porto Alegre, em novembro daquele mesmo ano. A motivação para organizar o seminário e editar este livro nasceu da necessidade de manter viva a memória sobre os Justos, essas pessoas que não hesitaram em arriscar suas vidas e as de seus próximos para salvar outros seres humanos da morte. Ainda que, neste ano de 2015, tenham se passado setenta anos do fim da Segunda Guerra Mundial, as lembranças e os exemplos tanto do heroísmo quanto da iniquidade continuam vivos. Mas não o suficiente para impedir que genocídios, perseguição, violência do estado continuem a ocorrer. Por isso é preciso relembrar essas histórias, esses exemplos de vida, para que não nos esqueçamos de como é importante socorrer aqueles que precisam de nossa ajuda.

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O legado que os Justos nos deixaram são histórias. Histórias que nos fazem refletir sobre o fato de que, até nos tempos mais negros, foi possível não permanecer apenas como observadores. Nas terras polonesas ocupadas pela Alemanha nazista, quem ajudasse um judeu corria o risco de ser morto, juntamente com toda a sua família. Quem escondesse um judeu colocava em risco também a vida de seus vizinhos, que, de acordo com a lei nazista, estavam sujeitos a serem mortos também. E mesmo assim houve pessoas que decidiram estender a mão amiga aos necessitados. Muitos deles pagaram por isso com a morte, sua e de seus próximos. Algumas dessas histórias, como a da família Ulma, de Apolonia Machczyńska-Świątek ou a de Henryk Sławik, foram transformadas em obras teatrais, literárias, poéticas, tornaram-se temas de filmes. Várias outras foram esquecidas. Na própria Polônia, ainda que o fazer justiça aos Justos venha ganhando força com o passar do tempo, pouca gente sabe que, em meio aos famosos, há vários que ajudaram a salvar vidas e que tiveram reconhecimento por isso. Entre eles podemos mencionar alguns nomes como Czesław Miłosz, Ryszard Matuszewski, Igor Newerly, Jarosław Iwaszkiewicz, Maria Falska, Eryk Lipiński, Mieczysław Fogg, Jan Dobraczyński, Zofia Kossak Szczucka. Quem ajudava a salvar? Poderíamos dizer que pessoas de todas as classes sociais, de todos os credos políticos, da esquerda e da direita. Alguns deles declarados antissemitas, que diziam que os judeus depois da guerra deveriam deixar a Polônia, mas naquela situação deveriam ser socorridos. O que diferenciava essas pessoas dos outros era a sua sensibilidade ao sofrimento alheio, a compaixão e a extraordinária capacidade de esquecer-se de si mesmo para ajudar o outro. Eram raras joias de humanidade. No meio da multidão dos indiferentes observadores e daqueles que, chantageando, lucravam com a desgraça alheia, entre os que denunciavam ou matavam por simples ódio ou convicções ideológicas, existiam também aqueles que ajudavam sem esperar nada em troca. Sempre há duas formas de estender a mão para o outro, com o punho cerrado para espancar ou tentando ajudar...

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Infelizmente, por mais que se possa dizer que, entre os Justos, a nação polonesa é a que tem mais representantes, não se trata de uma nação composta unicamente deles. Mas também não se trata de uma nação composta apenas por antissemitas, como alguns meios tendem a estereotipar até hoje os poloneses. A oportunidade para mostrar tanto o lado luminoso quanto o lado negro do ser humano foi trazida aos poloneses pelos soldados da Alemanha nazista, cujos chefes decidiram que o extermínio dos judeus europeus iria se dar nas terras pertencentes antes da guerra à Polônia. Por mais que alguns se aproveitem desse fato para instigar um preconceito antipolonês, afirmando que a escolha da Polônia como lugar do genocídio da nação judaica tinha como objetivo poder contar com o antissemitismo polonês, tal decisão deve ter se dado por motivos operacionais. A Polônia antes da guerra era o território com a maior população judia na Europa, assim, razões práticas ditavam que ali seria o melhor lugar para executar o propósito de exterminar os judeus. Era mais fácil criar na Polônia os guetos e os campos e transportar para eles os judeus europeus do que fazer o contrário. Por isso também a lei alemã nos territórios da Polônia ocupada condenava à morte os que ajudavam e suas famílias. Por esse mesmo motivo houve tantos Justos e tantos iníquos. As punições cruéis eram comuns. Enquanto os holandeses que ajudaram a esconder Anne Frank sobreviveram à guerra, apenas os homens das famílias sendo mandados para um campo de trabalho, as famílias inteiras de Ulma, Kowalski, Baranek, foram exterminadas. A cabeleireira Franciszka Budziaszek-Resich, por oxigenar o cabelo das judias, ajudando-as assim a ter uma aparência “ariana”, foi levada para o campo de concentração de Ravensbrück, onde morreu. As estimativas do número dos que foram assassinados por ajudar judeus variam entre 2 e 50 mil pessoas. O governo do Estado Secreto polonês, máquina estatal que funcionava na clandestinidade, pois não houve na Polônia ocupada governo colaboracionista, criou uma divisão especial para ajudar judeus (Żegota). A lei desse governo clandestino

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punia com a morte aqueles que denunciassem e chantageassem judeus. Infelizmente a sua máquina, por operar na clandestinidade, num país ocupado, tinha alcance limitado. A maioria das ações se restringia a grandes cidades. É difícil dizer quantos poloneses ajudaram a salvar judeus. Alguns dizem que cerca de vinte pessoas precisavam se arriscar para salvar uma vida. Hanna Krall, grande jornalista e escritora polonesa, durante a guerra menina judia, contou 45 pessoas que ajudaram a salvá-la e, mesmo assim, disse, não conseguia se lembrar de todas. Resgatando do gueto, escondendo, transportando, mudando de moradia, fornecendo documentos falsos, arrumando dinheiro para conseguir custear as suas necessidades, era necessária toda uma corrente de pessoas do bem para salvar uma vida. Para denunciá-la bastava apenas uma. E nem precisava ser algum chantagista ou antissemita. Podia ser uma vizinha daqueles que escondiam a pessoa por uma única noite, apavorada com a possibilidade de que os alemães descobrissem que um judeu estava escondido no prédio onde morava e, por essa razão, executassem também a ela e a seus filhos. Para termos uma ideia da complexidade da questão, vejamos o caso da Igreja Católica: a mesma instituição que, antes da guerra, propagava o antissemitismo de seus púlpitos e pela boca de seus sacerdotes mais conservadores foi uma das maiores responsáveis pela ajuda prestada aos judeus. Fornecendo certidões de batismo falsificadas e escondendo crianças judias em suas escolas, conventos, mosteiros e orfanatos, a Igreja Católica contribuiu enormemente para a salvação de milhares de vidas. Estima-se que, ao todo, algumas centenas de milhares de poloneses ajudaram os judeus. Quantos foram salvos? Outra pergunta impossível de ser respondida, a não ser de modo estimado. E ainda naõ se pode esquecer do cruel dilema: tentar salvar e salvar não são a mesma coisa. Władysław Bartoszewski afirmou em uma entrevista que para cada pessoa que o Żegota conseguiu salvar, havia outras

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setenta pessoas que foram ajudadas pela instituição, mas que não tiveram a mesma sorte. Fontes variadas calculam que entre 30 e 120 mil pessoas conseguiram se salvar nos territórios ocupados pelos alemães. O que se sabe é que, entre eles, estavam grandes estadistas, oposicionistas à ditadura comunista, ativistas, cientistas, homens de negócios e artistas da Polônia do pós-guerra. Cito alguns dos mais célebres para que possamos ter a dimensão da importância de sua contribuição para o mundo depois da guerra: Marek Edelman (médico, ativista, oposicionista, último comandante do Levante do Gueto), Alina Margolis (médica e ativista, uma das fundadoras de Médicos do Mundo), Bronisław Geremek (historiador, oposicionista e Ministro das Relações Exteriores), Ludwik Hirszfeld (médico, um dos descobridores das características dos grupos sanguíneos), Ryszard Horowitz (fotógrafo), Jan Kott (teórico de teatro), Roman Polański (diretor de cinema), Władysław Szpilman (pianista), Mieczysław Jastrun (poeta), Hanna Krall (escritora), Władysław Kopaliński (lexicógrafo), Aleksander Bardini (ator), Erwin Axer (diretor teatral), Michał Głowiński (teórico da literatura), Jerzy Kosiński (escritor), Jonasz Kofta (poeta), Samuel Klein (fundador das Casas Bahia), Adam Rotfeld (Ministro das Relações Exteriores), Andrzej Munk (diretor de cinema), Janusz Morgenstern (diretor de cinema), Jerzy Wasowski (compositor), Daniel Passent (jornalista), Stanisław Lem (escritor), Hugo Steinhaus (matemático), Marcel ReichRanicki (crítico literário), Jan Brzechwa (autor de literatura infantil), Andrzej Czajkowski (pianista), Aniela Steinsberg (advogada, oposicionista, tradutora), Arnold Szyfman (diretor de teatro), Bogdan Wojdowski (escritor), Adolf Rudnicki (escritor), Krzysztof Kowalewski (ator), Roma Ligocka (escritora). Na Polônia, durante a escuridão nazista, houve pessoas que eram como a luz iluminando as trevas. A memória dessa luz é e sempre será importante. No momento em que a Europa vive uma crise migratória, no momento em que, no Brasil, sobem os índices de violência, é válido relembrar aqueles cuja vida pode servir como exemplo de humanidade. Neste livro trazemos apenas al-

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gumas histórias. Falamos de Jan Karski, Jan Żabiński, Antonina Żabinska, Irena Sendler, Władysław Bartoszewski e, por meio de conversas com Elżbieta Ficowska, uma das pessoas salvas, evocamos também a memória de Stanisława Bussold. O legado dos Justos é algo que emerge no encontro dessas memórias. É preciso lembrar, é preciso ajudar, é preciso tentar ensinar a importância do ato de ajudar. No livro inserimos também alguns textos literários que tratam do tema: o inspirado ensaio de Marek Bieńczyk sobre Jan Karski, “O Grande narrador”, e os poemas de Jerzy Ficowski, por muitos considerado o mais importante dos poetas não judeus que escreveram sobre o Holocausto, ele próprio marido de Bieta, Elżbieta Ficowska, uma das pessoas salvas e protagonista de um dos ensaios deste livro. Aproveitamos para incluir também curtos biogramas de alguns dos outros Justos, que foram produzidos por ocasião do seminário “Jan Karski e os Justos Entre as Nações”. Os Justos foram e são um exemplo. Mesmo que ele não possa ser seguido, pois não é todo mundo que consegue ser herói, os Justos podem figurar como um exemplo de humanidade, um ideal de ser humano, que todos deveríamos nos esforçar para alcançar. Os Justos foram a elite moral da humanidade, por isso devemos incessantemente evocar a sua lembrança e o seu exemplo. Como vaga-lumes no meio das trevas, que conseguem alumiar a noite e transformá-la em algo mágico, os Justos trazem a luz, a dimensão da humanidade que habita em cada um de nós e que deve ser acessada. São como as distantes e idealizadas estrelas, com a diferença de que a sua luz está mais próxima de nós e a sua fragilidade lembra a nossa. A metáfora alegórica de vaga-lumes usada por Georges Didi-Huberman, até por ser visual, talvez melhor que qualquer outra palavra defina tanto o que motivou este livro quanto o que foram e são os seus protagonistas. As nossas trevas, sem dúvida, são diferentes das trevas nazistas, mas a imagem da luz que, independentemente das trevas,

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vem naturalmente de dentro e alumia a noite, é universal. Assim como as histórias deste livro, que querem ser como vaga-lumes. “Há sem dúvidas motivos para ser pessimista, contudo é tão mais necessário abrir os olhos na noite, se deslocar sem descanso, voltar a procurar os vaga-lumes.” 1

1 Georges Didi-Huberman, Sobrevivência dos vaga-lumes. Tradução de Vera Casa Nova e Márcia Arbex. Belo Horizonte: UFMG, 2011, p. 49.

Sumário Os vaga-lumes na escuridão Piotr Kilanowski

“Os Justos Entre as Nações” Carlos Reiss

*** (Não consegui salvar...) Jerzy Ficowski

5 13 15

Jan Karski - O emissário com a missão de informar o mundo Piotr Kilanowski

O grande narrador Marek Bieńczyk

Irena Sendler - Aquela que estendia a mão aos que sucumbiam Alicja Ferreira

Władysław Bartoszewski - Retrato de um homem decente Aleksandra Pluta

17 39 43 71

A arca de Noé de Varsóvia Alicja Ferreira

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“Vózinha, você é como o Harry Potter” - Encontros com Bieta Ficowska Piotr Kilanowski 115 Tuas mães As duas Jerzy Ficowski

135

Biogramas de alguns Justos

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Agradecimentos

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Autores

149

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