Maria Fátima Lambert - A Ilha de Moçambique

May 24, 2017 | Autor: M. Lambert | Categoría: ESCULTURA, Pintura, História da arte, Arte Portuguesa, Poética Da Viagem
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Descripción

A Ilha de Moçambique de: Marta Resende, Francisco Laranjo, Manuel Aguiar, Zulmiro de Carvalho, Vítor Costa e Júlio Resende 0. “Mas estas comunicações de África chegam-me de uma forma estranha, irreal, assemelhando-se mais a sombras, ou miragens, do que a notícias de uma realidade.” Karen Blixen “Je suis seul, assis en face de l’immense grise de la mer murmurante...je suis seul…seul comme je l’ai toujours été partout, comme je le serai toujours à travers le grand Univers charmeur et décevant… » Isabelle Eberhardt

Eu nunca tive uma quinta (fazenda) em África. Eu nunca estive em África, nem no Quénia, nem em Moçambique, nem em qualquer outro país – apenas lá estive nas leituras e nas imagens dos outros que me fazem sentir (shame, shame, shame...) algum ciúme, alguma inveja saudável (espero)! Não tenho uma África Minha! Mas em África, afinal, os Europeus só estão de passagem, numa terra que não é a “deles”. Apenas (será assim indicativo de tão pouco?) é a “deles” nas suas memórias1, nas suas vidas, nas suas imagens, enfim, em tudo aquilo que pensámos ser somente nosso (dentro do próprio) – como aliás tudo o mais na vida? Reaproprio-me, por minha vez, aqui, das frases, das ideias expressas por Karen Blixen2, pela Baronesa. Lembram-se de Meryl Streep e de Robert Redford no filme de Sydney Pollack? Estive também na África, no deserto, na Algéria, pelos caminhos traçados de Isabelle Eberhardt3 ou a bordo dos camelos numa travessia de Théodore Monod...entre outras viagens. Mas isso fui eu e não interessa, agora, essa África: é muito a Norte. Quando se parte em viagem, pode existir, desde logo, um destino. Há quem parte em viagem sem ponto de chegada preestabelecido. A ida dos cinco pintores e um escultor, em direcção à Ilha de Moçambique, é ou melhor foi um ponto de chegada, para ser, algum tempo após, um ponto de partida. Dizem que partir em viagem para atravessar e fazer “seus” sítios desconhecidos é fazer um caminho substancialmente dentro de si. Sair para além é um pretexto para viajar dentro. Dizem. Sai-se de si e chega-se a si, em termos externos e visíveis e, durante todo o tempo que a viagem dura, esteve-se consigo, sem se fugir a si.

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“Memory of both senses of the world: as a catalyst for remembering of his own life and as an artificial structure for ordering historical past.” Paul Auster, The invention of solitude, London, Faber & Faber, 1982, p.117. 2 Veja-se Karen Blixen, África Minha, Lisboa, Ed. Europa-América, 1987 (1937): “Tive uma fazenda em África, no sopé das montanhas Ngongo.” (p.7) 3 Vejam-se Isabelle Eberhardt, Lettres et Journaliers, Paris, Actes du Sud, 1987 (1923) e Théodore Monod, Méharées, Paris, Actes du Sud, 1989 (1937)

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A Ilha de Moçambique, que partilhámos, começou nas nossas vidas com Luís de Camões, normalmente por obrigação lusíada. Depois, é questão topológica, geográfica e/ou mediática. Por exemplo: vai-se tendo consciência dela nas fotografias da National Geographic, nos mapas, nas imagens da Internet ou da TV Cabo. Quando surge alguém que fala sobre as suas viagens na primeira pessoa (do singular/plural...) é um privilégio duplo: foi um privilégio para quem lá esteve; é um privilégio para quem ouve e vê essa estadia, pelos testemunhos directos. 1. “O desenho da Ilha? O de ontem, mais amplo, certamente. O de hoje submete-se à conquista do mar e estabelece momentaneamente um solo 4 onde o homem se acotovela num entendimento solidário.”

Nesta exposição confrontamo-nos com seis testemunhos pessoais, concertados pelo conceito de uma viagem em conjunto. Da convivência com África, pessoas e paisagens, objectos e mitos, entre as conversas de seis artistas (penso eu), geraramse imagens, externas e visíveis, da Ilha de Moçambique. Marta Resende “Às portas as moças alindam-se em atitudes de auto-estima. O “pau de beleza” passa de mão em mão. E gostam de cantar em 5 coro numa participação que é norma.”

A ilha é povoada por seres difusos, cuja pessoalidade se concentra em matéria de almas mergulhadas na natureza. Não são retratos. São essências. Através de uma abordagem pictural, fortemente radicada numa tradição, numa concepção, do desenho como tradutor da gestualidade quase inconsciente. As suas figuras evanescentes diluem-se com propriedade num fundo que é o do imaginário colectivo. É uma pintura, de índole gráfico-cromática, que acentua as visões singulares sobre a alma dos outros pela via da alma própria. Armando Alves “Nunca encontraremos repouso; o presente é perpétuo. Não é suficiente mostrar o pintado. Também há que torná-lo tangível.” Georges Braque, El dia y la noche, Barcelona, El Acantilado, p.11

O mar e a terra são o fio no horizonte. O sentido da paisagem não pretende reservar direito de propriedade sobre a condição natural. O artista encontrou a sua visão (e acção) ao deixar impregnar-se pela atmosfera da ilha. Com toda a genuinidade a assunção dessa Stimmung ficou agarrada pela transparência conceptual dos rasgos de linhas e pequenos volumes-percepções. Vale para o nosso imaginário seduzir os paladares, cheiros e cores: passar para além do pictural, conformar-se – enquanto espectador – em deambulação, criando a sua própria literatura e pintura de viagem. Nesta imagem, muito do foro mental, promovida pela riqueza da matéria visível, propõe-se uma imersão subjectiva, organiza-se um delírio de sublimidade. 4

Júlio Resende, “A ilha dos meninos com olhos cor da esperança”, Boletim Lugar do Desenho, nº5, ano 3 – 2000, p.11 5 Idem, Ibidem.

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Francisco Laranjo “No pequeno aglomerado urbano há o abandono onde a pedra de alvenaria teima em mostrar um passado de glória de um 6 povo que fez História.”

A ilha do pintor é um espaço misterioso que se ilumina na escuridão. O caminho apareceu-lhe quase imperceptível na sua sumptuosidade obscura, na noite. Depois veio o desvelamento, o contacto com as pessoas, as coisas; a descoberta da diluição do espaço que se vê plasmado nas pequenas telas ou nos grandes formatos. A tensão da cor, caso a caso, pretende revelar a essência das aparências, o fascínio das matérias, a complexidade das razões desconhecidas. A casa em que se viveu – em que os artistas viveram – apresenta-se como um traçado quase hermético, um estender de linha que se inicia e conclui, sem saber como ou aonde, definindo uma forma quase trapezoidal. A delimitação do espaço, a constituição do território – de passagem – é marcada, cheia por manchas sobrepostas, geradoras de efabulações quase míticas. Manuel Aguiar “Ontem foi piso ameno, apetecível na disponibilidade para uns tantos, e na resposta a sobrevivência dos outros, os seus naturais de curtas ambições.(...) “O peixe e o algodão, para lá da ponte que subsiste, são o pão 7 de cada dia.”

A ilha é. A ilha multiplica-se em tomadas de vista intermináveis; em transfigurações várias que se apropriam de identidades culturais vividas. As fotografias tomadas cada por unidade podem se encaradas como episódios deambulatórios de percursos susceptíveis de reinvenção. As marcas visuais inscritas nos objectos de uso, as essências anímicas das coisas naturais, as notas fisionómicas das pessoas captadas cedem-nos terrenos de olhar quase objectivo. As imagens fotográficas apresentadas pelo pintor dividem-se em duas peculiaridades estéticas e, também, técnicas. Por um lado vêem-se fragmentos de episódios quotidianos, apreendidos por proximidade à visibilidade do mundo; por outro lado, a manipulação digital das imagens, no que respeita às possibilidades imensas de transformação (quase abstraccionalização num caso) dos seus conteúdos imagéticos: é testemunho de uma subjectividade mediada, cujo intermediário retém a intenção pessoalizada, encarando o mundo como transfigurador. Vítor Costa “Testemunho de momentos, dias, anos e séculos nos quais o nascer e o pôr-do-Sol é registo assinalável num horizonte feito 8 de um mar que foi desbravado pelo homem português.”

A ilha provavelmente poderia ser. As vivências opacas da paisagem recolhem elementos simbólicos que potencializam a substância do sítio, a substância do humano. Os corpos

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Idem, Ibidem Júlio Resende, Op. Cit., p.11 8 Idem, Ibidem. 7

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desenham-se num ritmo circular que rompe a água matricial: lembram-se as pinturas mais originárias... As evocações (invisíveis) das figuras quase dissecadas são iluminadas através de focos inesperados. Esses pontos de concentração de luz, pulsáteis, dinamizam as determinações de cores intensas. Parecem epifanias pequenas, ínfimas; desencadeiam manifestações intimistas, em que cada olhar se distende e mergulha. A tenacidade visual das telas encontra a paz naquelas formas geométricas que actuam como lugares de concentração de energia mítica. Zulmiro de Carvalho “Ontem foi sinal de monta na cartografia dos mareantes. Hoje, uma herança que se vai desmoronando e o mundo lhe 9 perde o sentido.”

A ilha tornou-se bidimensional porque o escultor foi fotógrafo na ilha. Mas tem-se a certeza de que existe, na realidade, a três dimensões, sem recurso a trompe l’oeil. Como se tratasse uma “construção” minimalista, sobrepôs os ritmos lineares em predominâncias, ora verticais, ora horizontais. A matéria na natureza sempre foi uma sedução disponível para ser fixada em sábias organizações fotográficas. Os troncos de madeira, tratados por mão humana ou vividos por si mesmo, usam a relação de luz e sombras que suscita as mais belas interpretações. A regularidade dos eixos, susceptíveis de apreensão, propicia um pulsar quase humano, um ritmo cardíaco de ordem cosmológica. Júlio Resende “...os meninos da ilha (...) vendem as moedas que dizem ser de prata e de outros tempos que não viram, eles vendem colares que suspendem às dezenas, eles também vendem galinhas de 10 crista vistosa.”

A ilha é (também) o lugar do desenho. A ilha foi rodeada por linhas, cores e traçados algo labirínticos. A ilha é a figura, a essência do pintor, uma das condições privilegiadas para “Dar a Ver”11. A figura humana resulta de um emaranhado de cores que se configuram em diálogos insondáveis. Afastam-se, uma e outras, de modo abrupto, revolvendo as nossas memórias, explorando a imaginação mais desejada de viajar sem bagagem, mas com a alma bem agarrada ao corpo. A ilha exerceu um feitiço poderoso sobre o pintor, como sucede com aquelas pessoas que se sabem apropriar – porque se dão – do que está para ser visto, para se vivido: os lugares entram no “livro de cabeceira”. A ilha é uma pele sobre a pele.

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Idem, Ibidem. Idem, Ibidem. 11 “Dar a Ver” é a tradução da expressão de Paul Éluard: “Donner à Voir”. 10

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(Later, in a time of greater clarity, he would refer to this sensation as “nostalgia for the present.” Paul Auster, The invention of solitude)

Fátima Lambert Porto, Janeiro de 2002/Abril 2003.

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