MAESTRI, Mário. (Org). Peões, gaúchos, vaqueiros, cativos campeiros: estudos sobre a economia pastoril no Brasil. v.1.

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Peões, gaúchos, vaqueiros, cativos campeiros:

estudos sobre a economia pastoril no Brasil

UNIVERSIDADE DE PASSO FUNDO

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Hugo Tourinho Filho Vice-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação

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Mário Maestri (Org.)

Peões, gaúchos, vaqueiros, cativos campeiros:

estudos sobre a economia pastoril no Brasil

Universidade de Passo Fundo 2009

Copyright © Editora Universitária Maria Emilse Lucatelli Editoria de Texto

Sabino Gallon

Revisão de Emendas

Alisson Gampert Spannenberg Produção da Capa

Sirlete Regina da Silva

Editoração e Composição Eletrônica Este livro no todo ou em parte, conforme determinação legal, não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização expressa e por escrito do autor ou da editora. A exatidão das informações e dos conceitos e opiniões emitidos, bem como as imagens, tabelas, quadros e figuras, são de exclusiva responsabilidade dos autores.

ISBN – 978-85-7515-707-7 UNIVERSIDADE DE PAS SO FUNDO EDITORA UNIVERSITÁRIA Campus I, BR 285 - Km 171 - Bairro São José Fone/Fax: (54) 3316-8373 CEP 99001-970 - Passo Fundo - RS - Brasil Home-page: www.upf.br/editora E-mail: [email protected]

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Sumário Sobre o Plata e o RS A economia agropastoril missioneira ........................................................ 9 Júlio Ricardo Quevedo dos Santos

Práticas corambreras na Argentina, Uruguai e Rio Grande do Sul................ 45 Mário Maestri

“Como continuación del Río Grande del Sur” La hacienda sul-rio-grandense esclavista en el norte uruguayo (séc. 19) .............................................. 92 Eduardo R. Palermo

No extremo sul, uma elite diferenciada .................................................131 Andréia Oliveira da Silva

Estâncias fortificadas .........................................................................163 Ester J. B. Gutierrez

Sobre o Mato Grosso Sobre os campos de Vacaria do Sul de Mato GrossoConsiderações sobre terra e escravidão (1830-1889) ........................................................213 Maria do Carmo Brazil

Propriedades pastoris e escravidão no Pantanal de Miranda (séc. 19) ...... 245 Elaine Cancian

A pecuária bovina e o processo de ocupação do Pantanal Sul-Mato-Grossense ........................................................................... 284 Paulo M. Esselin

Sobre o Piauí Origens e espaços de produção das fazendas pastoris do Piauí ............... 349 Solimar Oliveira Lima

Sobre o Plata e o RS

A economia agropastoril missioneira Júlio Ricardo Quevedo dos Santos*

Introdução No rigoroso inverno de 1753, grupos de guaranis que viviam nos Sete Povos das Missões (atual Rio Grande do Sul) organizavam um grande movimento social e popular que traduzia as tensões e os conflitos emergidos das mudanças políticas definidas nos meandros das tratativas de aplicação do Tratado de Madri, assinado entre as Cortes ibéricas em 1750. Aqueles grupos reivindicavam para si o direito de permanecerem no espaço onde haviam nascido, viviam e haviam enterrado os seus ancestrais. Deixavam claro ao governo colonial localizado em Buenos Aires os reais motivos pelos quais não desejam transmigrar às terras à direita do rio Uruguai, discutindo questões cruciais para sua sobrevivência, entre as quais os elementos constitutivos da economia missioneira (a terra, o gado, as estâncias, os ervais e os povoados). Ao definirem para aquela autoridade o desejo de ficar, de lutar e, se necessário, morrer, historiavam e relembravam-lhe as antigas negociações políticas feitas por seus ancestrais com os jesuítas e as autoridades coloniais. Esse momento peculiar nos permite compreender alguns aspectos das estruturas *

Docente do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Maria e Doutor em História pela Universidade de São Paulo.

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socioeconômicas das Missões, entre os quais as práticas agropastoris, em seus elementos constitutivos. Essas práticas agropastoris de caráter autossuficiente, base da vida comunitária nas Missões, foram construídas e decorreram dos desdobramentos das negociações entre missioneiros e missionários, nas quais o conjunto da comunidade interferia cotidianamente na defesa da sobrevivência coletiva e da economia autossuficiente, na ordem do bem comum. Tais acordos foram construções cotidianas de todos os indivíduos na perspectiva de preservar os interesses da comunidade. Assim, nos embates dos missioneiros pela defesa dos seus interesses, alcunhados nas correspondências sobre as quais discorreremos a seguir, esses assumem o protagonismo de luta pelos elementos constitutivos da economia missioneira, visto que o seu desmantelamento comprometeria as alianças construídas ao longo daquela experiência. Primeiramente, partimos da ideia de que as primeiras práticas de colonização ibérica do atual Rio Grande do Sul foram iniciativas da Corte de Espanha e da Companhia de Jesus. O primeiro “ensaio” colonial ocorreu no século 17, quando os jesuítas negociaram com parcialidades guaranis que habitavam em áreas que compreendiam as bacias dos rios Uruguai e Jacuí. Trataremos aqui de parcialidades guaranis com base na análise de Elisa Garcia sobre “as diferenças e as disputas internas entre os guaranis que estavam caracterizados, principalmente em momentos de inflexão, pela presença de desavenças sobre os melhores rumo a seguir.”1 Em meio a diversos conflitos existentes na região do rio da Prata, jesuítas e guaranis construíram comunidades autônomas denominadas de “reduções”. Nesses espaços coloniais, parcialidades 1

GARCIA, Elisa F. Em busca de novos vassalos: as estratégias dos portugueses para a atração dos índios, durante as tentativas de demarcação do Tratado de Madri, na Região Sul. In: MONTEIRO, Rodrigo Bentes (Org.).Espelhos deformantes: fontes, problemas e pesquisas em História Moderna (séculos XVI – XIX). São Paulo: Alameda, 2008. p. 212.

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guaranis negociaram política e socialmente o seu lugar na Missão e no Estado espanhol, sendo os atores sociais que efetivaram as práticas reducionais. Com base nessas premissas, propomo-nos estruturar uma trajetória de análise que tenha por base as inflexões que construíram/desconstruíram a economia agropastoril missioneira e o quanto ela foi capaz de ratificar os acordos entre os jesuítas e as parcialidades guaranis que aceitaram se tornar missioneiras. Para edificar tal proposta, dialogamos com diversas fontes e, na medida do possível, procuramos que dialogassem entre si.

O guarani negocia ser missioneiro Sobre o que pretendemos aqui abordar, talvez a fonte a seguir, produzida pelos guarani-missioneiros do Cabildo de São João Batista, em 1753, seja a melhor referência da nossa proposta de análise. Seguem alguns fragmentos da narrativa guarani: “O nosso santo Rei Felipe V nos avisou no ano de 1716: – Cuidai muito bem da minha terra e cuidai também de vós mesmos, para que não vos façam mal os vossos inimigos, que são os meus inimigos! Também envio em meu lugar os meus governadores, encarregando-os de cuidarem de vós. Certamente eu não vos tirarei de vossa terra e nem ainda hei de molestar-vos em coisa nenhuma. Disse-nos (ainda) então: – Cumpri apenas as minhas palavras! O Rei Dom Felipe V. E mando-vos também os padres da Companhia de Jesus, filhos de Santo Inácio, com a finalidade de conquistarem para Deus as vossas pobres almas. É somente o que vos mando. [...] Nós não fomos conquistados por espanhol algum, pois nos fizeram vassalos de nosso Rei exclusivamente pelos motivos e palavras dos Padres. É por isso que sempre cumprimos a vontade de nosso santo Rei. Sempre (que necessário) fomos a Buenos Aires, para levantarmos o forte. Também fomos a Montevidéu, A economia agropastoril missioneira

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para erguer a fortaleza, cumprindo assim e assim venerando as suas palavras. Depois disso fomos ainda para o Paraguai, pacificando os paraguaios e tornando-os vassalos fiéis como nós mesmos. Vês desta forma, o que fizemos por nosso santo Rei, perdendo nossa fazenda e vida, e o que fizemos pelo nosso Deus.”2 Iniciar esta narrativa com esta fonte é uma forma instigante de recuperar os possíveis significados partilhados da Missão para o guarani-missioneiro. Primeiro, porque se trata da fala guarani – de uma parcialidade que vivia na Missão e, por isso, denominado de “guarani-missioneiro”. Segundo, essa fala foi produzida em um dos tantos momentos de inflexão que constituem o tempo missioneiro, na qual se percebe que os cabildantes tinham consciência histórica das razões que os haviam levado para a Missão. Expunham os eventos de um tempo presente para eles, ao citarem um momento delicado de negociação com o monarca espanhol após os conflitos da guerra civil da sucessão (1701-1715) na Espanha, quando, após os tratados de Utrecht, a dinastia Bourbon foi confirmada na Corte daquele país. Terceiro, a seguir desses conflitos, novas negociações políticas foram articuladas com os guarani-missioneiros, ratificando-lhes seus direitos de vassalagem e de usufruto da terra, como narram os cabildantes de São João e dos outros cinco Povos da margem esquerdo do rio Uruguai, com exceção de São Borja. Mas para o guarani-missioneiro, o que era “ser vassalo” após a instauração dos Bourbons na Corte espanhola? É um momento em que, após uma série de conflitos, se retomam as negociações pela manutenção e defesa do guarani no espaço missioneiro da região do rio da Prata. Dessa forma, os cabil2

Correspondência dos caciques e índios do Povo de São João do Uruguai ao governador de Buenos Aires, José de Andonaegui, em 16/07/1753. In: RABUSKE, Arthur. Cartas de Índios Cristãos do Paraguai, Máxime dos Sete Povos, datadas de 1753. Estudos Leopoldenses, São Leopoldo: Unisinos, v. 14, n. 47, 1978. p. 70-71.

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dantes dos Sete Povos da margem esquerda do rio Uruguai não só explicam como recuperam o princípio da Missão, de um outro momento anterior àquele (início do século 17), por meio de acordos, de alianças, enfim, de negociações com os padres jesuítas, parcialidades guaranis que se interessaram pelas propostas de evangelização dos missionários e aceitaram viver na Missão. Para efetivar tal projeto, evidenciam que não foram “conquistados por espanhol algum, pois nos fizeram vassalos de nosso Rei exclusivamente pelos motivos e palavras dos Padres”. Ao se sentirem vassalos da Corte espanhola, em todos os momentos, lembram às autoridades hispânicas que sempre cumpriram com sua parte no acordo, expondo as suas ações políticas na defesa dos interesses comuns das comunidades missioneiras e do Estado espanhol. Os guarani-missioneiros de São João indicam que não têm dúvidas sobre a sua inclusão no projeto político do Estado espanhol e, como artífices da experiência reducional, argumentam ao governador de Buenos Aires a importância sobre “o que fizemos por nosso santo Rei, perdendo nossa fazenda e vida, e o que fizemos pelo nosso Deus”. Esse “fazer” revela vários aspectos, entre os quais a demonstração de estarem seguindo o que fora estipulado e em conformidade com as diretrizes da Corte espanhola. Articula, igualmente, os eventos do presente com os do passado, anteriores à formação e organização dos Sete Povos, quando os antepassados guaranis negociaram com os jesuítas a vida na Missão. Nesse esforço intelectual de vincular o presente-passado, percebe-se a consciência histórica presente na narrativa dos guarani-missioneiros de São João, já que se fazem referências aos acontecimentos ocorridos no século 17, em seus dois momentos diferenciados da evangelização do guarani: o primeiro, entre 1620-1640, quando foram fundadas as primeiras Reduções, com a introdução do gado (Vacarias) e das novas tecnologias desconhecidas pelos guaranis, como o arado puxado a boi; o A economia agropastoril missioneira

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segundo, pós-1682, com a fundação dos Sete Povos das Missões, à margem esquerda do rio Uruguai, fase em que se formaram as estâncias missioneiras na antiga Banda Oriental do rio Uruguai. Efetivamente, a expansão colonial atingiu quase a totalidade do atual território sul-rio-grandense. A conquista efetiva da terra esteve articulada à política colonial hispânica pautada na ocupação da terra e na tentativa de restringir, desde o século 16, os direitos das populações originárias sobre suas terras. Em 1519, o rei espanhol católico declarara: “Por donación de la Santa Sede Apostolica y otros justos y legítimos títulos, somos senõres de las Indias Occidentales, Islas y Tierra firme del mar océano, descubiertas o por decubrir y están incorporadas en nuestra Real Corona de Castilla.”3 A ocupação das terras das populações originárias do continente americano, e, particularizando, das terras habitadas pelas parcialidades guaranis que viviam nas áreas das bacias dos rios Uruguai e Jacuí esteve pautada num efetivo aparato legal conhecido como “Leyes de Índias”, que tratava de preservar os interesses da Coroa de Espanha sobre a América. Essas leis definiam os espaços geográficos que os colonizadores tinham de ocupar, estipulando que fosse saudável, ou seja, que fosse terra apta para semear e colher.4 Além disso, os colonizadores tinham de observar que o tipo humano que habitava a terra deveria ser conquistado.5 A correspondência dos guarani-missioneiros de São João referenda o cumprimento da lei, ao concordar que esta é do Estado espanhol. Entretanto, avança na interpretação da mesma, ao julgar que as terras missioneiras se encontram na origem do acordo entre os remanescentes guaranis, os jesuítas e a monarquia espanhola.

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4 5

Compilación de las Leyes de Indias. Ley I, Título I, Libro III. V edición, Madrid, 1841. Op. cit. Leyes I e II - título V - Livro IV. Ib. idem.

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Convém recuperar a questão agrária na América Espanhola a fim de compreender a distribuição das terras e os seus sucessivos conflitos: “Las tierras fueran divididas en tierras de españoles y en tierras de los indios, y cada una de las partes en tierras de la comunidad y en tierras del dominio privado. Las de los españoles del dominio privado se subdividieron en solares, peonias y caballarias. Españoles e Indios fueran a la vez agrupados en partidos y los últimos también en aldeas, fijándoles los limites territoriales de los partidos y de las aldeas.”6 Como desdobramento da questão agrária, desde a segunda metade do século 16 as terras reservadas às comunidades indígenas foram sendo ocupadas pelos colonos espanhóis. Nesta parte da América, diversos grupos guaranis foram sendo expulsos de suas terras e viram-se obrigados a migrar para os núcleos urbanos ou para regiões mais afastadas. Em muitos momentos de inflexão, diversas populações originárias rebelaram-se e resistiram às práticas de dominação do conquistador, não raro pressionando as autoridades espanholas a negociar com esses grupos.7 Os encomenderos aproveitaram-se da situação e impuseram trabalho excessivo aos índios encomendados, efetuando forte extração de sobretrabalho. É nesse momento de conflito e tensão que os jesuítas buscaram alianças com parcialidades guaranis da Província do Paraguai, conjugando a conquista espiritual à conquista temporal, denunciando os maus-tratos dos espanhóis em detrimento dos possíveis bons tratos e vantagens que os guaranis obteriam na Missão.

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7

PASTORE, Carlos. La lucha por la tierra en el Paraguay. Montevidéo: Antequera, 1972. p. 18. Conferir Florência Roulet em Resistência de los guarani del Paraguay; Barral, Rebeliones indígenas en la América Española e, mais recentemente, Rossi e Carbone, Historia, identidad y culturas originarias de la Argentina. São obras que analisam algumas faces da resistência das populações ameríndias durante o processo de conquista da região do Rio da Prata.

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Como forma de legitimar o discurso jesuítico, a situação é narrada da seguinte forma: “Empezaron los encomenderos a oprimir a los indios y también a sus mujeres y hijos con pesados trabajos, impidiendo-les adquirir bienes y reduciéndolos a la miseria. Los transladaron de sus aldeas a las quintas de los españoles y los dedicaban a varias faenas sin recompensa alguna. En otras ocasiones los vendian, cubriendo esto con varios nombres y pretextos.”8 Em meio à violência do conquistador, gradativamente, setores das classes dominantes coloniais – as autoridades espanholas – passaram a negociar com alguns grupos guaranis do Paraguai. Nesse processo de negociação, em 1597 foram promulgadas as Ordenanzas de Juan Velasco, as quais determinavam que os encomenderos deveriam entregar aos guarani encomendados lotes de terra, rica o suficiente para que, em três anos, recuperassem suas perdas agrícolas: “El servicio personal de los indios, debia ser prestado los dias lunes, martes, miércoles y jueves, reservándose los domingos para los actos religiosos y los viernes y sábado para que los guaraníes, sus mujeres y hijos trabajen en sus chacras para hacer frente a las necesidades de sus propia familias [...] Cuatro días de trabajo para los conquistadores, uno para los actos religiosos e dos para su propio beneficio, completan la jornada semanal de la población guaraní, reglamentada por las Ordenanzas de Velasco, que aliviaban la condición de la esclavitud a que estaba sometida hasta entonces, en que todas sus energías las empleaban al servicio exclusivo de los hombres encomenderos.”9 Posteriormente, em 1598, foram promulgadas as Ordenanzas de Hernandarias de Saavedra, em que se definia que os “guaranis encomiendados” fossem agrupados em povoados, organizados em terras suficientes para o cultivo e que jamais 8

9

TECHO, Nicolás del. História de la Provincia del Paraguay de la Compañia de Jesús. (1ª ed. 1673). Madrid: T. II, CXXI. p. 97 e 98. PASTORE. op. cit. p. 32.

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deveriam ser molestados no seu espaço de caça e pesca. Em cada comunidade indígena de encomendados deviria haver uma igreja para o nativo receber os sacramentos e aprender a doutrina católica, sob responsabilidade do sacristão. Por meio das hernandarias, ficou determinado que as encomendas só poderiam ser transferidas com a prévia autorização do governador do Paraguai, que, no caso, era o próprio Hernandarias. Além disso, novas especificações foram definidas aos encomenderos, pois não podiam retirar os trabalhadores nativos das comunidades nem obrigá-los a beneficiar a erva-mate. Em 1603, essas ordenanzas foram confirmadas e completadas, quando se regulamentou o serviço pessoal dos homens guaranis com mais de quinze anos e das mulheres com mais de treze anos. Além disso, os caciques e seus descendentes foram confirmados nas suas hierarquias, liberdade e no direito de não prestar serviço pessoal.10 Finalmente, em 1611, nessa combinação da “violência” com a “negociação”, foram promulgadas as Ordenanzas de Alfaro, que adaptaram definitivamente as Leyes de Indias às necessidades e à realidade colonial. Essas ordenanzas suprimiram as encomiendas de serviço pessoal e mantiveram a encomienda de tributos e a compensação do trabalho do índio por remuneração, pagamento por jornada de trabalho.11 Em La lucha por la tierra en el Paraguay, de 1972, Pastore apresenta as Ordenações de 1611 como a defesa da liberdade do guarani no que se refere à terra e ao trabalho. “Alfaro defendió la libertad de los nativos como vasallos del Rey y declaró que el servicio personal impuesto a los nativos era injusto y contrario a derecho, disponiendo en consecuencia que no podrían ser obligados a prestar servicios a los hombres enco10

11

Cf. Ordenanzas del gobernador Hernandarias de Saavedra. 12/12/1598. Revista de Derecho, Historia y Letras, Buenos Aires, t. XXIII, p. 370-391, 1908. ALFARO, D. Francisco de (Visitador). Informe sobre el Paraguay. Apud GANDÍA, Enrique de. Francisco de Alfaro y la condición social de los indios. Revista de la Biblioteca Nacional, Buenos Aires, n. 11, 1939. p. 465.

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menderos. Todos los indios fueron declarados libres, hubiesen o no sido vendidos como esclavos, imponiendo severas penas a los que traficaran con esclavos nativos. Las encomiendas otorgadas hasta la fecha por los gobernadores fueran declaradas nulas [...] Los guaraníes que se encontraran fuera de sus respectivas encomiendas debían ser devueltos a las mismas, no pudiendo ser mantenidos contra su voluntad en los lugares en que se hallaren [...] Las Ordenanzas de Alfaro establecieran el pago de salario por concepto de justa retribución del trabajo de los nativos.”12 A disputa pela mão-de-obra indígena entre jesuítas e encomendeiros também é um fator que proporcionou o surgimento da Redução. Em La conquista espiritual del Paraguay, publicado em 1639, o padre Montoya comenta o medo e o nível de exploração do índio encomendado: “[...] los indios sujetos a encomendados a españoles, ya no se pregunta la causa por ser tan sabida”.13 Em suma, é perceptível que os guarani-missioneiros de São João tinham a sabedoria política de que eram vassalos do monarca espanhol ao inferirem que não haviam sido conquistados por “espanhol algum”. A Missão se constituía no fio condutor da aliança, que combinava os atos de violência espanhola com a negociação política, social, econômica. Foi nesse momento histórico de exploração da terra e da organização do trabalho indígena que se tornou realidade, em 1607, a Província Jesuítica do Paraguai, a partir de várias articulações e negociações: da Igreja Católica, via Companhia de Jesus, com as autoridades da América Espanhola e destas com as comunidades guaranis. Nas articulações dessas negociações políticas encontram-se as Ordenanzas de Alfaro, que definiam a redução do índio à fé católica e a vassalagem 12 13

PASTORE. op. cit. p. 40-41. MONTOYA, Antonio Ruiz S. J. La conquista espiritual del Paraguay (1ª ed. 1639) estudo preliminar y notas Ernesto Maeder. Rosário: Equipo Difusor de Estúdios de Historia, 1989. p. 63.

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à Coroa de Espanha. “Por cuanta la buena doctrina y policia de los indios, y poder ellos acudir con comodidad à sus obligaciones, y para que no sean agraviados, depende de que estén reducidos en pueblos y tierras donde con comodidad puedan sustentarse, respecto de lo cual yo he dado orden con algunos Cabildos y justicia [...] que la tal reducción sea sujeta à parroquia, y no esté apartada de ella; porque sin embargo de esto, en cada reducción ha de haber iglesia.”14 Se as Reduções se constituíram em concentrações de índios em pequenos povoados, com igrejas de madeira ou de taipa, as residências dos guaranis eram, geralmente, construídas de pau-a-pique. As Reduções significam um momento inicial da transição de parcialidades guaranis – que assim o permitiram – da sociedade aldeã doméstica a uma nova forma de produção e de organização social – missioneira – articulada com a sociedade moderna do Estado absoluto, a partir de uma aliança tática desses grupos com os jesuítas. O salto guarani foi em direção a uma nova forma de organização social, inserida no Estado espanhol. A formação missioneira também significou a capacidade de barganha de parcialidades guaranis, que construíram em meio aos conflitos coloniais um espaço de liberdade negociada que lhes permitiu viver e, melhor, aumentando a esperança média de vida do guarani, com garantias de proteção contra a encomienda e escravidão. Ao negociar viver na Missão, os guaranis demonstravam a capacidade de interferência na realidade empírica. Dessa forma, organizava-se a vida reducional, onde o guarani expressasse seus direitos e deveres na configuração da experiência missioneira. A Redução deveria garantir a liberdade do nativo, mesmo que vigiada, tutelada pelo missionário e também pelas autoridades espanholas, que deveriam vigiar a política administrativa da redução por intermédio do Cabildo. 14

ALFARO, Op. cit. p. 663.

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Gradativamente, o projeto político reducional foi se constituindo, construído em meio aos conflitos das disputas pela mão-de-obra indígena, conforme se pode perceber em correspondência de um missionário do século 17: “[...] es muy antiguo à esos señores encomendadores y soldados en quejarse, pasando muy adelante en esto. Y así levantado grandes contradicciones contra la Compañía con mucha honra y gloria de los que las han padecido, por ser por causa tan justa como volver por los indios, Y por la justicia que tenían y tienen de ser libres de la dura esclavitud y servidumbre del servicio personal en que estaban, [...] y estos debates crecieran mas después que los de la Compañía haciendo en esto su obligación como fieles ministros de Dios N. S. y básalos de su M. [...] (na Redução) los indios fueren entendiendo la libertad en que el Rey N. S. les ponía pagando su tributo, tivieram-se los encomenderos que por esta causa les habíamos de ser graves daños.”15 Em 1609, o governador do Paraguai e rio do Prata, Pedro de Anasco, proibiu a entrada de espanhóis na região do rio Paranapanema no Guairá, bem como o recrutamento de índios para o serviço pessoal, o que facilitou a expansão jesuítica no Guairá. Finalmente, em 1610, jesuítas e parcialidades guaranis organizaram efetivamente as primeiras Reduções, entre os rios Tabagi e Iguaçu. Nessas circunstâncias históricas aumentava a disputa dos encomiendeiros espanhóis e dos bandeirantes paulistas, interessados na mão-de-obra especializada e disponível nas Reduções. Nesse momento, por volta de 1618 os bandeirantes avançaram sobre o projeto colonial reducional do Guairá desconstruindo-o e escravizando os guaranis reduzidos. Com esses fatos é possível perceber que a aliança de parcialidades guaranis com os jesuítas gerava profundos conflitos com 15

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Cópia da Carta escrita a Francisco Gonzalez de Santa Cruz datada de 13/12/1614. Manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Júlio Ricardo Quevedo dos Santos

a sociedade mercantil colonial espanhola, ficando evidente a disputa dos interesses divergentes com o projeto colonial empreendido pela Companhia de Jesus. Da ação dos bandeirantes decorreram vários desdobramentos, entre os quais a organização do projeto colonial reducional à margem esquerda do rio Uruguai, nas bacias do rios Ijuí, Ibicuí e Jacuí e no planalto central do atual Rio Grande do Sul, quando surgiram as Reduções do Tape. Um outro momento de inflexão ocorreu, pois outras parcialidades guaranis começaram a ser conquistadas: os guaranis tapes. No entanto, muitas vezes os grupos mostraram-se refratários ao projeto colonial, conforme se lê num testemunho do século 17: “Descendo da redução da conceição à dos Reis (Japejú) para fazer minha segunda viagem ao Ibicuí, recebi carta do Padre Romero (cura de Japejú), na qual me avisava de que tinha más notícias dos índios do Ibicuí, de que haviam feito uma grande junta para vir a dar sobre a redução dos Reis por haverem recebido os padres, e que por isso eu não descesse tão depressa para aquela redução, a-fim-de ir ao Ibicuí, até que descobrisse a verdade. [...] Disseram-me que voltasse imediatamente, porque os índios da terra estavam sublevados e que haviam vindo logo depois da minha partida daquela redução que principiei, a-fim-de me matarem, e que, não me achando ali, haviam queimado a igreja e a cruz que eu deixara.”16 Entretanto, à medida que o jesuíta se aproximava dos guaranis que viviam nas proximidades do rio Ibicuí ou da serra dos Tapes, esses grupos passaram a dar crédito às propostas e à fala dos missionários, demonstrando a sua capacidade de barganha, numa estratégia para viver o melhor possível. Provavelmente, a fala missionária seduzia alguns guaranis, que passaram a perceber quais poderiam ser as vantagens de construir e viver em novas formas comunitárias. Essa capa16

DURÁN, Pe. Mastrilli S. J. Carta Anua de 1627. Manuscrito da Coleção de Angelis - I. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1951. p. 373-374.

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cidade de negociação e de lembrança inesquecível é recuperada pelos próprios protagonistas desse enredo, os guaranimissioneiros de São Nicolau, que em outra correspondência à autoridade colonial de Buenos Aires assim se expressaram: “Pois ele (o rei), conhecendo esta terra, para a qual Deus nos criou, enviou-nos o nosso Padre Santo Roque Gonzáles, para que ele nos ensinasse e desse a conhecer a Deus: seu ser e o ser de cristãos. Também isto nos disse o Rei por intermédio desse Padre, a saber, que nunca, jamais, entraria nesta terra espanhol algum, nem um único sequer. Isso mesmo que de início então nos fez comunicar a nossos avós, ele nô-lo repetiu muitas vezes em suas cartas, consolando-nos, fortalecendonos e levando-nos para o lugar em que estamos.”17 Na correspondência dos missioneiros de São Nicolau a expressão “avós” exemplifica os antepassados, os ancestrais, responsáveis no século 17 pela aliança com os jesuítas e Corte espanhola. Nessa linguagem metafórica, os guaranis demonstram a sua sabedoria em compreender a articulação presente-passado. Essa aliança foi capaz de corroborar o projeto colonial missioneiro, quando parcialidades guaranis aceitaram, concordaram, usar o machado de ferro e o arado puxado por bois, o que representou a passagem da vida comunitária aldeã, de horticultores e caçadores-coletores, apoiada na tradição familiar e na divisão sexual das tarefas cotidianas, para um novo padrão de organização tecnológica, de maior e mais complexa divisão do trabalho, liberando-os para outras atividades, como pastoreio, tecelagem, olaria, carpintaria, curtume de couro, música, teatro, escultura, arquitetura e dança. A institucionalização da Missão como projeto político colonial hispânico começou a se efetivar a partir do momento 17

Correspondência do Corregedor, cabildo e caciques do Povo de São Nicolau, ao governador de Buenos Aires, José de Andonaegui, em 1753. Apud RABUSKE, Arthur. Cartas de Índios Cristãos do Paraguai, Máxime dos Sete Povos, datadas de 1753. Estudos Leopoldenses, São Leopoldo: Unisinos, v. 14, n. 47, 1978. p. 80.

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em que a Coroa de Espanha abarcou as terras dos índios integrando-as na sociedade colonial platina, transformando-as em parte do próprio espaço territorial, político e econômico da região do rio da Prata. A terra foi transformada em território do Império Colonial Espanhol e os índios, em súditos, agentes e defensores da causa comum política. O guarani-missioneiro trabalhou arduamente e com austeridade na Missão da região do rio da Prata. Foi agricultor, vaqueiro, charqueador, oleiro, peão de estância, escultor, pintor e cantor, efetivando a economia agropastoril missioneira. Os missioneiros lutaram para a manutenção da terra com seus pueblos, criação de animais e grandes lavouras coletivas. Mas o que os guaranis barganharam para se tornarem missioneiros? Entre o que foi barganhado, a própria direção da vida cotidiana da Missão, incorporando o projeto político missioneiro, atendendo, em parte, aos interesses da Coroa de Espanha e, em outra, aos seus próprios interesses. Cardiel, um missionário do século 18, assim nos apresenta essas articulações do poder: “Corregidor, Alcalde y demás oficiales: el gran merito que tendrán delante Dios en cumplirlas, los bienes espirituales y temporales que se seguirán al pueblo: los grandes males que acarrea en no cumplirlas, y los grandes castigos que tendían de Dios en no cumplirlas.”18 Eram os próprios guaranis que discutiam as regras a serem aplicadas na Missão, como, por exemplo, a divisão equitativa do produto social no povoado. No tocante aos bens espirituais, não só era o responsável pela construção dos templos, da casa dos padres, da escola, mas também pela manutenção da organização social missioneira. Nesse sentido, outra função do Cabildo consistia em normalizar a aplicação da lei: “En orden a la manutención en particular y en común, se gobiernan de este modo: A cada familia se le señala la tierra suficiente para sembrar. Todos son labradores, hasta los caciques, 18

Ib. idem. p. 524.

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el corregidor, los alcaldes y demás cabildantes [...] Todos aran, siembran y labran la tierra [...] Tienen sementeras en común, a que acuden todos los lunes y sábados.”19 Enquanto governo civil, o Cabildo era precedido pelo princípio da comunidade. Era, portanto, executor e juiz da vontade coletiva dos guarani-missioneiros. Os cabildantes, considerados os legítimos e legais representantes da comunidade cristã, eram responsáveis pelo “bem comum”. O grupo dirigente mantinha laços de tradição comunitária guarani anterior à vida missioneira – eram os antigos taxauás (chefes guerreiros) –, o que caracteriza a permanência, que convivia com a ruptura, pois na Missão eles eram os antigos chefes com uma nova roupagem, a de corregedor ou alcaide, o cabildante. Porém, essa unidade política repousava na economia pastoril, como abordaremos a seguir.

A economia agropastoril missioneira Refletir sobre a economia agropastoril missioneira é, a priori, rever a organização social da Missão enquanto desdobramento das negociações entre parcialidades guaranis e os jesuítas. As Missões constituíam-se em unidades políticas e produtivas. Era um todo orgânico que reunia a área urbana (a igreja, o cabildo e as residências – como estava definido nas Ordenanzas de Alfaro; as oficinas, a escola, a praça, o cotiguaçu, o hospital e o cemitério: todos elementos determinados no modelo urbano das Leyes de Indias) e a área rural (as lavouras, o erval, o curral, as vacarias e as estâncias). As estâncias e a maior parte das lavouras eram coletivas. O trabalho do guarani-missioneiro não era executado como forma de tributo, mas como vassalagem direta ao gover-

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CARDIEL, Compendio de la historia del Paraguay (1ª ed. 1780). Buenos Aires: Fecic, 1984. p. 89-90. Júlio Ricardo Quevedo dos Santos

no espanhol, já que ficara estabelecido que os índios reduzidos pagariam o tributo real em forma de moeda. Na Redução, o missioneiro tinha a garantia da posse da terra, o que qualificava a organização de economia mista: a produção particular – o abambaé – e a produção coletiva, comunitária – o tupambaé. Mörner, ao definir a questão, assim o faz: “El Tupambaé – el conjunto de las propiedades comunes de las reducciones, administradas por el cura con la ayuda de asistentes indígenas – proveía de carne, yerba, vestimenta y semilla a los indios según cierto sistema de racionamiento, el producto de la ganadería, del tráfico de yerba, de las conechas de determinadas tierras de la comunidad, y de los trabajos manuales en general, ingresaban en el tupambaé, que asumía, así, la responsabilidad de toda la exportación.”20 Esses elementos podiam garantir a consolidação da paz evangélica, ou seja, o acordo de paz entre os conquistadores espanhóis e os índios conquistados. Essas unidades produtivas autossuficientes centralizavam-se no tupambaé, a atividade principal. Os missionários dispensavam mais atenção a esse setor da economia, pois reservavam os melhores campos para a pastagem e cultivo. Nele, o guarani-missioneiro cultivou o solo utilizando o arado puxado por bois; assim, incrementou o crescimento agropastoril. O trabalho do guarani-missioneiro resultou no aumento da produção das estâncias, dos campos de cultivo, dos ervais do tupambaé. O êxito da produção missioneira, ou seja, o resultado da aliança comunidade guarani, combinada à prática jesuítica que efetivou a experiência missioneira, foi pautado da seguinte forma no século 18: “Para remediar tan grande desidia, están entabladas sementeras comunes de maíz, legumbres y algodón: y estancias de ganado mayor y menor [...] 20

Tupambaé, segundo Magnus Mörner. Actividades políticas y economicas de los jesuitas en el rio de la Plata. Buenos Aires: Paidos, 1968. p. 95-96:

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Estos bienes comunes sirven para dar que sembrar al que no tiene, por habérselo comido ó perdido: para el sustento de la casa de las recogidas [...] para avio y provisión de los viajes en prol del pueblo, para dar de comer à los muchachos y muchachas cuando van à las sementeras comunes, ú otras faenas [...] y finalmente se emplear estos bienes en socorrer todo enfermo viejo y necesitado [...]. Los algodonales comunes sirven para vestir à todos los muchachos de uno y otro sexo [...]. Los otros bienes comunes y más principales son el ganado mayor y menor. Los indios no tienen en particular vacas, ni bueyes, ni caballos, ni ovejas, ni mulas.”21 As atividades da economia agropastoril missioneira, baseadas no trabalho comunitário e autossuficiente, permitiram que os guarani-missioneiros fossem os protagonistas e beneficiados pelo êxito socioeconômico em uma formidável experiência sem precedentes na América Espanhola. Esse êxito teve como sustentáculo a produção da erva-mate e as atividades pastoris. Desde a licença de comercialização da erva missioneira com a região do rio da Prata, o produto destacou-se no mercado interno, suplantando outras lavouras cultivadas na Província do Paraguai. O comércio da erva gerava os fundos que mantinham os guarani-missioneiros em paz com o mundo colonial espanhol. Dela pagavam os tributos à máquina administrativa da Coroa Espanhola, bem como adquiriam tudo o que precisavam à subsistência da população missioneira. No Reglamento general de las Doctrinas, de 1689, as recomendações com a produção de erva-mate apareciam claramente em dois artigos, como por exemplo: “El beneficio de la yerba se a acabará por todo el mes de abril, por los danos que ocasionan los fríos à los indios”. Entretanto, essa preocupação com o trabalho do guarani-missioneiro no beneficiamento da erva é anterior, já podendo ser observada nas Ordens de 21

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CARDIEL, P. José. Breve Relación de las Misiones del Paraguay (1ª ed. 1771), in HERNANDEZ, Pablo. S.J. Organizacion Social de las doctrinas guaranies de la Compañía de Jesus. Barcelona: G. Gili, 1913. p. 527-529. v. 2. Júlio Ricardo Quevedo dos Santos

1682 do padre Provincial Baeza: “[...] los indios que vienen del yerbal no se les registra los sacos, o cestos, que traen, ni menos se les obligue que lleven a la casa de Padre, sino que voluntariamente los llevan, cuando quieren comprar algunas cosas de que necesitan: exceptuándose la yerba tocante al tributo, ó tûpâmbaé, como esta en uso.”22 Na província do Paraguai e Rio Prata, a erva-mate tinha valor de moeda. A erva caá ivirá (erva de pau, não peneirada) figurava como moeda. O valor deste gênero se taxava por uma unidade imaginária conhecida como peso oco, a qual, segundo as Ordenanzas de Alfaro e as Leyes de Índias, deveria valer seis reais, ou seja, três quartas partes de um peso forte. Com o passar do tempo, este valor decaiu para uma quarta parte de um peso forte. Assim, o tributo pago pelos povoados missioneiros à Coroa de Espanha era, em média, trezentas a quatrocentas arrobas anuais de erva-mate. Anualmente, as balsas conduzidas por índios reduzidos seguiam pelo rio Uruguai na direção de Buenos Aires, onde o produto era contabilizado, separado por povoado e, após, era feita a equivalência da erva à prata, pagando dessa forma o tributo real. Também é importante salientar que uma parte do que os índios levavam revertia em benefício próprio da coletividade. Após a transação realizada, os guarani-missioneiros retornavam aos povoados com as balsas carregadas dos produtos de que necessitavam: azeite, calçado, sal, tecido, vinagre, vinho e demais utensílios para o uso pessoal. Concomitante às lavouras comunitárias, havia a produção particular, onde o missioneiro podia cultivar com maior liberdade o seu produto. Nessa forma de produção predominava o trabalho familiar, cujo produto revertia para a própria família. 22

Ordem de 15/4/1682 do Provincial da Província Jesuítica Paraguaya, Padre Tomás de Baeza, Biblioteca Nacional, Madrid, Leg. 6976. p. 117.

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Cardiel faz um relato sucinto do abambaé missioneiro: “De los algodonales particulares, que se les hace labrar para su familia, hila la india lo que quiere según su mayor ó menor cuidado, y lo trae à casa del Padre: y por medio del mayordomo y otros tejedores, que además de los del común del pueblo hay para los particulares.”23 Assim, as atividades particulares estavam conectadas às comuns. As principais lavouras particulares eram o milho, a mandioca e legumes. Os jesuítas comentavam sobre a precariedade do plantio do trigo. Para os missioneiros, era dispensável o trigo por estarem habituados com o milho e diziam que era muito complicada a tarefa do seu plantio. Ao referir-se a essas roças particulares, Sepp relata: “As roças são muito férteis, embora pouco cuidadas e mal adubadas [...]. O principal cereal é o milho, que aqui dá aos montes e dele os índios fazem a farinha secando-a num morteiro de madeira e desta farinha fazem uma espécie de mingau, ou tortas.”24 Ao lado da atividade agrícola ervateira desenvolveu-se a atividade pecuarista, as quais foram os sustentáculos socioeconômicos das Missões. No artigo “O gado da antiga Banda Oriental do Ururguay”, de 1961, o jesuíta e historiador Bruxel lembra que no fim do século 17 já havia mais de um milhão de reses selvagens na Banda Oriental.25 Posteriormente, em 1717, os castelhanos obtiveram a concessão do governador do rio da Prata para explorar a Vacaria do Mar. A estância e os ervais compunham o núcleo central da economia agropastoril missioneira e foram um dos desdobra23

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CARDIEL. P. José. Breve Relación de las Misiones del Paraguay (1ª ed. 1771), in HERNANDEZ, Pablo. S.J. Organizacion Social de las doctrinas guaranies de la Compañía de Jesus. Barcelona: G. Gili, 1913. p. 529. v. 2. SEPP, Antonio SJ. Algumas instruções relativas ao governo temporal das Reduções em suas fábricas, sementeiras, estâncias e outras fainas (Missão de São José, em 13/06/1732). Tradução e apresentação Mansueto Bernardi. Pesquisas, São Leopoldo: Instituto Anchietano de Pesquisas, v. 2, 1958. p. 52. BRUXEL, Arnaldo. O gado da antiga Banda Oriental do Ururguay. Pesquisas, São Leopoldo, v. 5, 1961. p. 166.

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mentos da negociação prévia: foi base do acordo sistêmico entre os guaranis e os jesuítas, sacramentado a partir da exaustão das Vacarias. Os atores sociais missioneiros sabiam da importância da preservação desse núcleo para o êxito socioeconômico. Nesse sentido se pode entender a recomendação do padre Sepp: “Como as Vacarias do Mar já se acabaram, cumpre cuidar bem dos bois, novilhos e touros, para que os poucos que existem nas Reduções bastem ao menos para fazer as chácaras do Tupambaé e dos pobres índios. É necessário que os Padres Curas antes da Missa de forma alguma deixem que (os missioneiros) os atem ou trabalhem com ele.”26 De uma maneira geral, as vacarias se constituíam em espaços onde o gado era reproduzido livremente, sem a interferência direta do ser humano. Nesses locais os animais nasciam, se reproduziam e cresciam selvagens, servindo para abastecer os povoados missioneiros da região do rio da Prata. As Vacarias do Mar localizavam-se na área delimitada pelos afluentes dos rios Jacuí e Negro, área denominada pelos colonizadores ibéricos de Banda Oriental do rio Uruguai. O padre Cardiel, refletindo sobre os acontecimentos do século 17, informa sobre essa área que se constituía nas Vacarias do Mar: “Las dilatadas campañas que hay desde los pueblos hasta el Mar estaban llenas de vacas sin dueño, adonde iban de cada pueblo tropas de índios, que traían de orden de su Cura las suficientes para el mantenimiento de todos (comunidade missioneira). Entraron los Españoles a esta gran Vaquería a hacer faenas, no de carne, que harto tienen de esto em sus ciudades, sino de cueros para cargar los navios de Espana.”27

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SEPP, Antonio SJ. Algumas instruções relativas ao governo temporal das Reduções em suas fábricas, sementeiras, estâncias e outras fainas (Missão de São José, em 13/06/1732). Tradução e apresentação Mansueto Bernardi. Pesquisas. São Leopoldo: Instituto Anchietano de Pesquisas, v. 2, 1958. p. 53. CARDIEL, José, SJ Carta y Relacion de las Misiones de La Província del Paraguay (1ª ed. 1747). Publicada por Guillermo Furlong, SJ. Buenos Aires, Libreria del Plata, 1953. (Escritores Colonialies Riplatenses – II). p. 143.

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Esse informe é precioso, visto que nele percebemos a existência de guarani-missioneiros que se dedicavam ao tropeio, portanto, os tropeiros das Missões, bem como às diversas práticas econômicas existentes a partir da Vacaria, como a preia do gado xucro e a sua utilização, quer para a alimentação e subsistência dos missioneiros, quer para incrementar o comércio colonial hispânico com a exportação de couros para a Metrópole espanhola. Esse espaço econômico colonial, que esteve na origem das atividades pastoris missioneiras, estendia-se, portanto, pelos atuais territórios do Rio Grande do Sul e República do Uruguai, chegando até o Mar del Plata. Essa preocupação do missionário se refere a um momento de esgotamento das Vacarias, no período de 1650 a 1680, e à formação das estâncias. A falta de animais era um desafio ao projeto colonial missioneiro e à sua devida experiência; daí a necessidade de preservar o espaço da estância, preocupação tanto dos missioneiros quanto dos missionários. No que concerne à pecuária missioneira, convém registrar as constantes disputas de castelhanos, tropeiros, lusobrasileiros, gaúchos, changadores, outros grupos indígenas, como os charruas e os minuanos, bem como outras parcialidades guaranis, de depredação das vacarias – 1650 a 1680 –, as quais formataram as expansões na região do rio da Prata – após 1680. No final do século 17, esses diversos grupos sociais passaram a percorrer os campos de Viamão, adentrando nas Vacarias e preando o gado xucro, disputando com os missioneiros os animais, as terras e os espaços de ocupação. Esse processo se configurava como um dos tantos desafios e situações de conflitos experimentadas pelos missioneiros, implacáveis na acusação contra os portugueses, considerados os únicos responsáveis pelo extermínio do gado das Vacarias: “[...] os portugueses furtaram e exterminaram as vacas que colocamos nos ‘Pinhares’, que é fazenda dos vassalos do rei da

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Espanha”.28 Em 1695, os colonizadores luso-brasileiros instalaram o registro de Torres (atual cidade sul-rio-grandense), para cobrar pedágio das tropas de gado que conduziam da região do rio da Prata para os campos de Curitiba-São PauloSorocaba. Ao analisar esse fato, Bruxel destaca: “Os espanhóis e portugueses começaram a dizimar a Vacaria do Mar para extrair couros e sebo para a exportação. Foi então que os padres e índios começaram a estabelecer outro sistema de criação que eram as estâncias, das quais algumas na Banda Oriental chegaram a ter cada uma, trinta a quarenta mil quilômetros quadrados com pequenas aldeias de estancieiros, chamados posteiros.”29 Na formação e organização das estâncias missioneiras, concorreram várias razões, entre as quais a desorganização das vacarias; a questão fundiária e a necessidade de solidificação dos Povos Missioneiros da Região do rio da Prata. À medida que as atividades agropastoris eram efetivadas, os missioneiros validavam cada vez mais o que era de seu interesse no projeto político missioneiro e se fixavam no território. A formação da estância de criação de gado esteve intrinsecamente ligada às vicissitudes da experiência missioneira, posto que havia o desafio irremediável que exigia uma resposta – a dizimação do gado e a sua manutenção no território –, pois, afinal, junto com a erva-mate, o gado tornava a terra produtiva e valorizava-a. A resposta encontrada foi distribuir o gado em grandes estâncias comunitárias que pertenciam à coletividade missioneira. É interessante salientar que os conflitos sempre foram presentes entre os guaranis que optavam por viver na Missão e aqueles que não optavam, os que não qui28

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Correspondência do Cabildo do povo de São Lourenço do Uruguai ao governador de Buenos Aires José Andonaegui s/d (1753). Apud RABUSKE, Arthur. Cartas de Índios Cristãos do Paraguai, Máxime dos Sete Povos, datadas de 1753. Estudos Leopoldenses, São Leopoldo: Unisinos, v. 14, n. 47, 1978. p. 74. BRUXEL, Op. cit. p. 167.

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seram negociar a sua inclusão no projeto político missioneiro. A formação das estâncias ocorreu em áreas ocupadas tanto por esses guaranis não missionados quanto por outros grupos sociais, como os charruas e minuanos. Dessa forma, a organização de estâncias também esteve circunscrita aos conflitos e às negociações entre os missionários e os missioneiros, não sendo uma tarefa fácil, como comprova Cardiel, em sua “Carta Relação”: “Por eso en las tierras de cada pueblo se han establecido pastoreo de vacas. Unos tienen muchos, otros pocas, según la positura, los medios y la habilidad del Cura en juntarlas. Según la abundancia poca o mucha, se da carne en cada pueblo algunos días a la semana [...]. El guardar este ganado cuesta mucha dificultad; porque los que lo guardan en los Pastoreos, que acá llamamos Estancias, es preciso sean indios, y ellos, como niños, o lo dejan perder [...] (na administração da estância) toman cuenta al mayordomo o capataz indio [...] És raro el indio que se encuentra capaz de gobernar una Estancia.”30 Em outro momento e outra fonte documental, o mesmo missionário narra: “Tiene cada pueblo sus dehesas, pastores o estancias de todo ganado, vacas, caballos, mulas, burros y ovejas. Y va el Cura a visitar estas estancias, y dar orden en su conservación y aumento dos veces al año [...] del buen estado de estas estancias depende el bien o mal del pueblo en lo temporal y espiritual.”31 Os relatos do missionário nos possibilitam a compreensão da importância e vinculação das atividades econômicas pastoris no projeto político missioneiro, sendo essas imprescindíveis na eficácia da aliança guarani-jesuítica. A quantidade, diversificação e distribuição de gêneros disponíveis para 30

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CARDIEL, José, SJ. Carta y Relacion de las Misiones de La Província del Paraguay (1ª ed. 1747). Publicada por Guillermo Furlong, SJ. Buenos Aires, Libreria del Plata, 1953. (Escritores Colonialies Riplatenses – II) p. 143. CARDIEL, José SJ. Las Misiones del Paraguay (1ª Ed. 1771) edicción de Héctor Sáinz Ollero. Madrid: DASTIN, 2002. p. 76. Júlio Ricardo Quevedo dos Santos

alimentar os guarani-missioneiros garantiam-lhes a sedentarização e o desejo de viver na Missão, não em outros espaços coloniais. As estâncias se estendiam até os arroios, rios, banhados, matos e encostas das serras. Os trechos abertos, por onde os gados podiam escapar, estavam vedados por valas com plantação de espinheiros. O posteiro tratava de cuidar para o gado não fugir nem ser preado pelos “brancos”, fossem lusos ou castelhanos. De todos os postos, alguns se evidenciaram mais, como o de Santa Tecla. A primeira estância missioneira foi a de Yapeju, com quarenta mil vacas, bois e touros das antigas vacarias. A estância consistia num espaço de criação de gado onde habitavam os guarani-missioneiros estancieiros, que realizavam rodeios e o aparte dos animais. Em Estancias e estancieros del Rio de la Plata, de 1999, Virginia Carreño expõe: “La dura lección de los pueblos arrasados y la hacienda perdida hizo que los jesuitas pensaran en formar estancias separadas de las reducciones aplicando en ellas formas de producción intensiva que la experiencia les había enseñado [...] cada estancia jesuítica contaba con 10, 15 o más puestos y a cada uno correspondían cinco, diez o más rodeos.”32 Os postos estavam organizados em vários ranchos, nos quais viviam em média cinco famílias de missioneiros, que cultivavam as suas plantações de horticulturas, caçavam, pescavam e, principalmente, cuidavam das cabeças de gado. Nesses postos havia a casa do posteiro, um missioneiro de confiança, dois caciques, dois cabildantes e dois missioneiros, que atuavam como capatazes, cujo trabalho era controlar o fluxo dos animais. Virginia Carreño infere que “en el puesto principal había una capella mayor y frente a ella vivía el jefe superior de la estancia.”33 32

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CARREÑO, Virginia. Estâncias e estancieros del Rio de la Plata. Buenos Aires: Claridad, 1999, p. 96-97. Idem. p. 97.

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No que diz respeito aos rodeios realizados sistematicamente pelos peães, o padre Cardiel narra: “Van 50 ó 60 indios con cinco caballos cada uno. Ponen en un alto una pequeña manada de bueyes y vacas mansas, para ser vistas de las cerriles, y a competente distancia las rodean o acorralan treinta o cuarenta hombres para su guarda. Los demás van a traer las más cercanas, que vienen corriendo como cerriles; y viendo las de su especie, dándoles ancha puerta los del corral, se entreveran con ellas. Vuelven por otras; y del mismo modo las van entreverando, hasta que no las hay en aquella cercanía. Juntanse todos los jinetes: y yendo uno o dos delante por guías, cerrando los demás todo lo que cogieron, van conduciéndolo adonde hay más, teniendo cuidado de no acercarse mucho: que si se acercan y las estrechan, suelen romper la rueda y desparramarse.”34 Talvez pudéssemos elencar as características gerais da estância missioneira: • a propriedade da terra era coletiva, bem como os produtos oriundos do gado, que pertenciam à comunidade (carne, couro, graxa, chifre e o gado em pé). Em primeiro lugar, o produto da estância deveria atender às necessidades básicas dos guarani-missioneiros; após, o excedente era comercializado nos mercados da região do Prata e o lucro revertia à comunidade; • as atividades econômicas na estância eram exercidas dentro da categoria de trabalho do missioneiro reduzido, ou seja, do trabalho livre, porém sob o dirigismo jesuítico.35 Na estância não havia trabalho escravizado, servil ou encomendado;

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CARDIEL, José, SJ Carta y Relacion de las Misiones de La Província del Paraguay (1ª ed. 1747). Publicada por Guillermo Furlong, SJ. Buenos Aires, Libreria del Plata, 1953. f. 26 (Escritores Colonialies Riplatenses – II) KERN, Arno A. Missões: uma utopia política. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982. p. 125-148

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diversas atividades profissionais compunham o cotidiano da estância, entre as quais cumpre destacar o guarani-missioneiro peão de estância, o capataz ou o posteiro. O posteiro vivia num posto dentro da estância, que era um aglomerado de cinco a oito chácaras, onde moravam as famílias dos posteiros. São Miguel, por exemplo, teve dois postos importantes: Santa Tecla (na atual cidade de Bagé - RS) e São Gabriel do Batoví (atual cidade de São Gabriel - RS). Convém salientar que as pessoas que trabalhavam na estância podiam, no momento em que desejassem, mudar suas tarefas de trabalho; • não havia a figura do estancieiro (proprietário), nem hierarquia determinada por função social, mas apenas por atividade funcional; • cada povoado possuía uma patrulha volante que zelava pela estância para que nada atrapalhasse as atividades pecuaristas. O que mais perturbava o cotidiano da estância era o roubo do gado efetuado pelos tropeiros luso-brasileiros, castelhanos e índios inimigos. O papel dessas milícias armadas era coibir tais roubos; • as primeiras e incipientes práticas de produção de carne salgada (o charque), para o consumo interno da comunidade missioneira foram decorrências dos desdobramentos da atividade pecuarista na estância. Em História das Missões do Uruguai, de 1954, Aurélio Porto propõe que, em 1730-1740, as estâncias possuíam um número de aproximadamente de um milhão de cabeças de gado de toda a espécie e que as estâncias de Japeju e São Miguel possuíam maior extensão de terra.36

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PORTO, Aurélio. História das Missões do Uruguai. Porto Alegre: Selbach, 1954. v. 2. p. 184.

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A localização das estâncias é fornecida por Nusdorffer em seu Relatório escrito no povoado de São Carlos entre os anos de 1750-56. Nele encontramos uma autêntica geografia da região das Missões, não só no seu aspecto descritivo de hidrografia, relevo, clima, mas também no tocante à geografia econômica. A preocupação desse missionário do século 18 ao descrever o espaço insere-se dentro de uma visão de uti possidetis, a título de legítima propriedade. Porém, ele acaba por destacar o papel das estâncias no espaço socioeconômico missioneiro, o qual era proeminente. Sobre os limites de uma estância, tem-se a seguinte narrativa: “Este Guacacay pues tiene dos ramas, uno se llama Guacacay o Vacacay miri y corre casi por el medio de la estancia de San Luis; el otro se llama Guacacay guazú y termina de una parte la estancia de San Luis y sierra de otra parte la estancia del Pueblo de San Juan y del Pueblo de San Lorenzo, juntándose en la estancia de San Lorenzo con el Guacacay mini, haziendo ya con este ramo un río bastante caudaloso.”37 Ao longo do espaço estancieiro encontravam-se os demais produtos conectados, como a erva-mate, ligada à atividade pecuarista: “Vamos ahora a la banda del sur del Guacacay guazú, adonde están las estancias de los Pueblos de San Juan y San Miguel, desde los cerros y lomerías que están en aquellas estancias, especialmente en la de S. Juan y San Miguel, sobe el Rio Piquiri que se junta y entra en el Guacacay en la estancia de San Lorenzo [...] Caminando en el mismo Guacacay aguas abajo se dexa hazia el sur tierra adentro, una serrania, que llaman los Indios Caágua y son los yerbales del Pueblo de San Borja.38

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NUSDORFFER, P. Bernardo. Relación de todo lo sucedido en estas Doctrinas en orden a las mudanzas de los siete pueblos del Uruguay. (1750-56). In: TESCHAUER, Pe. Carlos. História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Selbach 1918-1922. v. 3. p. 334. Ib. idem. p. 334.

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Os conflitos existentes são percebidos nas diversas frentes de lutas empreendidas pelos guarani-missioneiros, que guerrearam contra espanhóis, luso-brasileiros, charruas, minuanos, gês, outras parcialidades guaranis. Todavia, a “voz corrente”, ou a tese que se sobressaía nos diversos discursos, principalmente nos dos missioneiros, era de que os portugueses ao se expandirem territorialmente pelas áreas das estâncias comprometiam as bases da economia pastoril missioneira. Nicolau Ñenguiru, corregedor do Povo de La Concepción era enfático em carta ao governador de Buenos Aires de 20 de julho de 1753: “Dizemos, sim, que os portugueses, inimigos declarados de nossa felicidade, querem por maldade que nos mudemos.”39 Gradativamente, a luta pela terra e pelo gado se acentuava, atingindo níveis inimagináveis. Todos os interesses convergiam para a região circundada pelas bacias hidrográficas dos rios Jacuí e Uruguai, onde se concentravam o gado e os ervais. Esse momento de disputas pelo espaço e suas riquezas é obejto de reflexão de Nusdorffer: “[...] los Ssres. Portugueses tenían intento de adelantar sus conquistas y poblarse a las orillas del Rio Negro (localizado na República do Uruguai) en las cabezadas del. Y tiene llo Río Negro sus capesadas pocas leguas lexos de donde tiene su fuerte y assiento el llo Padre e imediatos á la Estancia del Pueblo de S. Miguel poblada con el Ganado de dicho Pueblo y del comun de los demas Pueblos, de suerte que si llos Sses. Portugueses executasen en efecto este su intento, no solamente se mederian mas que 100 leguas en tierras de la Monarquia de Castilla fuera de sus terminos sino también que se acercarian tanto à las Estancias de todos estos Pueblos del Uruguay, que con sus correrias ayudados de vagamundos pudieran destruir totalmente todos los Pueblos 39

Carta de Nicolau Ñenguiru, Corregedor do Povo de La Concepción, ao governador de Buenos Aires, José Andonaegui, em 20/07/1753, in: RABUSKE, Op. cit., p. 92.

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del Uruguay por que quitandoles sus ganados, total y unico medio para su sustento y conservación délos.”40 A narrativa de Nusdorffer foi produzida ao sabor da expansão e conquista luso-brasileira de espaços coloniais da região do rio da Prata. Os eventos característicos desse momento ocorreram no século 18, após a doação da primeira sesmaria e fundação do forte Jesus-Maria-José, de Rio Grande, no período compreendido entre 1731-1737. Foram momentos decisivos na disputa pela posse da terra, do gado e do trabalho indígena, ocasionando novas situações de conflito. Em meados do século 18, os jesuítas e seus aliançados guarani-missioneiros tinham dificuldades em deter as diversas frentes de invasores nas estâncias e ervais. Esses acontecimentos preocupavam principalmente as populações que viviam nos Sete Povos. O avanço rápido do inimigo teve alguns desdobramentos que complicaram as antigas negociações entre os padres e a comunidade. Ao definir que “as constantes arreadas de espanhóis, portugueses e índios contribuíam para completar essa destruição”, Aurélio Porto confirma que não eram somente os portugueses os inimigos, como em diversas vezes os missioneiros referiram.41 A crise de eficácia do discurso jesuítico tornava-se visível e percebia-se o quanto a “paz evangélica” muitas vezes podia ser tênue. Afinal de contas, os inimigos estavam destruindo “totalmente todos los Pueblos” – o que era o resultado da ação isolada das tropas guarani-missioneiras. As autoridades coloniais espanholas passam a reconhecer que a destruição das estâncias, ervais e ocupação das terras pelos luso-brasileiros eram danosas à experiência missioneira. Em correspondência, o governo de Buenos Aires afirmava: “El Padre Superior de esas Misiones me dice que los Portugueses del Rio Grande, y fuerte de Sn. Miguel 40 41

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Ib. idem. p. 352. PORTO, 1954 p. 185. Júlio Ricardo Quevedo dos Santos

extraen el Ganado de esas Estancias, executen algunas extorciones y intentan poblarse en las CAVEZADAS del Rio Negro adelantando sus progresos y conquistas y en esta atencion le tenido por combeniente despachar al thente. de Dragones Dn. Franco Bruno de Zabala, con un sargento, y tres soldados de satisfación, para que comunicando con V. R. esté a la obserbatida de d’hos Portugueses dandome cuenta de las Noticias que adquiera, y para harcelos los requerimientos nezarios en caso de intentar formar algun establecimiento en esas partes ó cometan alguna irrupción.”42 Pairava no ar o medo de que os luso-brasileiros roubassem o gado, procurando arrecadá-lo e confiná-lo nas estâncias, o que levaria à destruição da sólida economia agropastoril missioneira. Convém destacar que em diversos momentos se encontram fontes que comprovam que havia missioneiros negociando gado com os estanceiros portugueses e tropeiros, fornecendo-lhe animais das estâncias missioneiras: “[...] aparecem também inúmeros tapes, egressos das Reduções, que mantém largo comércio de tropas não só com a Colônia do Sacramento como também com os primitivos povoadores do Rio Grande.”43 Para tal proteção da estância de São Miguel, o governo de Buenos Aires deveria contar com o apoio dos “corregedores” e índios. Também em outra ordem a Zavala, don Andonaegui confirma a situação beligerante e enfatiza: “Le ordeno y mando pase a la zitada Estancia y frontera del Pueblo de San Miguel llevando consigo un sargento y tres soldados de la maior satisfacion comunique con el R. Pe. Cura que recide en d’ha Estancia, adquiera quantas notícias le sean posibles, y me las participe por todas las vias mas breves, y seguras, 42

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Carta do Governador de Buenos Aires ao Pe. Diogo de Palacios. Buenos Aires, 28/07/1749. In: Manuscritos da Coleção de Angelis - V. Op. cit. p. 356. PORTO, Aurélio. História das Missões orientais do Uruguai. 2. ed. Porto Alegre: Selbach, 1954. p. 186. O autor refere-se à documentação existente no Arquivo Histórico de São Paulo.

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permaneziendo en aquel puesto hasta segunda orden con la partida de su cargo, estando la mira de quanto intentan executar por aquellas partes los expresados Portugueses; si estan Poblados pasará con su Partida, y los Indios de Escolta, que consideran bastantes a su seguro [...] y recaja con toda su gente a los limites de los Estados de su soverano dejando desocupado.”44 Na correspondência supramencionada já transparece a preocupação de “los limites de los Estados” na região do rio da Prata, ainda incertos em 1749. O governador de Buenos Aires estava apelando para o limite à expansão fronteiriça da América Portuguesa como um instrumento legal e eficaz, para resolver os problemas que a diplomacia espanhola não conseguira solucionar até então. Nesse momento, as Cortes ibéricas estavam negociando o Tratado de Madri (1750). O governo na América Espanhola procurava garantir na prática – pelas armas – aquilo que estava sendo negociado entre os diplomatas de Portugal e Espanha. Enfim, no início de 1750, enquanto as Cortes ibéricas planejavam um novo projeto político de definição e integração em seus territórios na América, a aliança entre os guaranis e os jesuítas enfrentava novos desafios, que prejudicavam o projeto colonial missioneiro em sua base pastoril. A tabela a seguir nos permite visualizar a distribuição do gado nos Sete Povos das Missões, quando os jesuítas foram definitivamente expulsos em 1768.

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Carta do Governador de Buenos Aires, D. Joseph de Andonaegui. Buenos Aires, 28/07/1749. in: Manuscritos da Coleção de Angelis - V. Op. cit. p. 359. Júlio Ricardo Quevedo dos Santos

Tabela 1 - Rebanhos missioneiros em 1768 Povos San Nicolás San Luís San Lourenzo San Miguel San Juan San Angel San Borja

Vacum

Cavalar

Muar

Ovelhum

20.376 7.579 4.824 20.288 4.235 3.685 11.922

1.031 838 441 2.095 313 436 1.630

195 174 67 164 200 138 166

18.471 1.966 1.056 1.691 713 408 13.245

Fonte: PORTO, Aurélio. História das Missões Orientais. Porto Alegre: Selbach, 1954. v IV. p. 188.

Epílogo Finalmente, se iniciamos esta exposição narrativa pela fala guarani-missioneira, também a encerramos pela mesma, já que foram eles os grandes beneficiados pela construção das negociações e também os grandes prejudicados pela sua dissolução. As correspondências permitem perceber as capacidades de parcialidades guaranis que desejaram negociar, construir o processo configurado como a experiência missioneira a partir das atividades agropastoris. Essas capacidades se expressam na interferência direta do missioneiro na sua realidade. Também é visível a capacidade de análise dos mesmos, suas abrangências e limitações. Depreende-se das narrativas que, num dado momento – durante as negociações da aplicação do Tratado de Madri, a conjuntura mostrava-se desfavorável ao missioneiro, que teve de interferir e barganhar de outras formas no processo em curso, pautando-se no processo histórico construído e ressaltando a necessidade de preservação das atividades pastoris e das práticas políticas nos meandros do Estado espanhol. Nas correspondências indígenas percebem-se as informações em rede, cabendo ao Cabildo esse papel relevante – A economia agropastoril missioneira

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construir a informações e difundi-las entre os demais. Nesse sentido, pautamo-nos na correspondência dos missioneiros de São João às autoridades espanholas, que personificaram as raízes da crise nos portugueses ao convencionarem: “Os portugueses sim foram os que nos fizeram (grande) mal no ano de 1744, pois, em primeiro lugar, mataram a 5 de nossos estancieiros e a 6 levaram-nos vivos. A estes têm-nos ainda agora por seus escravos, sendo eles, três meninas, dois rapazes e uma mulher. Depois disso destruíram a estância, levando as vacas e éguas, três rodeios (ao todo) [...] Além disso estamos lembrados de que eles lutaram contra os nossos antepassados, matando a muitos deles, e depois de tudo isso querem tirarnos e afastar-nos de nossa terra a nós.45 Seguindo essa mesma lógica de expor os fatos, procurando definir os acontecimentos que ratificassem as antigas negociações entre missioneiros e autoridades espanholas, que, naquela inflexão momentânea de crise, comprometiam as atividades pastoris, os cabildantes de São Miguel recordavam o fato de que “no ano passado de 1749 tu mesmo (Andonaegui) enviastes à nossa estância de São Miguel a Dom Francisco Bruno de Zabala, para desalojar os portugueses que se tinham sedeado no Rio Piraí (recomendando) Se os portugueses não quiserem deixar o sítio e terra, os índios de São Miguel, São João e Santo Ângelo, em má hora vão ajudarte na expulsão.”46 Ao narrarem ao governo espanhol as razões que lhes impossibilitavam a transmigração, os missioneiros de São Lourenço faziam referência aos bens econômicos do povoado, confirmando que as atividades pastoris – construídas em outras 45

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Correspondência dos caciques e índios do Povo de São João do Uruguai ao governador de Buenos Aires, José de Andonaegui, em 16/07/1753. Apud RABUSKE, Arthur. Cartas de Índios Cristãos do Paraguai, Máxime dos Sete Povos, datadas de 1753. Estudos Leopoldenses, São Leopoldo: Unisinos, v. 14, n. 47, 1978. p. 72. Carta do Povo de São Miguel ao governador de Buenos Aires, José Andonaegui, em 20/07/1753. Op. cit. p. 84. Júlio Ricardo Quevedo dos Santos

circunstâncias – eram vitais para eles: “Não encontramos nenhuma terra boa para fazer igreja, para fundar povoado, nem para um bom erval, nem ainda para uma boa estância.”47 Analisando os testemunhos produzidos no inverno de 1753, percebem-se as sensibilidades dos guarani-missioneiros em diferentes momentos de inflexão, na defesa e preservação de seus ideais, valores, costumes, sensíveis à causa comum pela manutenção de um mundo construído e que se corroia perante as nuances do momento. Na subjetividade missioneira de se relacionar com o mundo em que viviam, nas narrativas dos cabildantes, a história e a memória se misturavam, confundiam-se ao discorrerem sobre as suas histórias de vida. Nelas, aqueles seres humanos assumiam um protagonismo espetacular de heroísmo na defesa das práticas agropastoris em detrimento dos portugueses, apresentados nos discursos como os principais responsáveis pela tragédia missioneira. Jamais fazem referência a que, em algum momento, interessou à Corte Espanhola negociar com os guaranis, que provavelmente não percebiam as vicissitudes do sistema colonial, pois parece que não entendiam a realidade empírica que se impunha em 1750. Interessante como os missioneiros apontavam para a autonomia e liberdade da economia pastoril missioneira, em detrimento do modelo colonial português de base escravista. Simultaneamente, indicavam que as estâncias e os ervais eram os sustentáculos das práticas econômicas e a base da vida cotidiana, confirmando, assim, o que Cardiel dissera: “[...] del buen estado de estas estancias depende el bien o mal del pueblo en lo temporal y espiritual”, sendo esse um dos entendimentos comum na Missão.

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Correspondência do Cabildo do povo de São Lourenço do Uruguai ao governador de Buenos Aires José Andonaegui s/d (1753). Op. cit., p. 76.

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Fonte: MAEDER, Ernesto J. A.; GUTIERREZ, Ramon. Atlas histórico y urbano del nordeste argentino. Resistência, Chaco: Instituto de Investigaciones Geohistoricas (CONICET), FUNDANORD, 1994. p. 63.

Figura 1 –

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Mapa da localização das estâncias missioneiras, dos ervais e dos povoados na região do rio da Prata colonial Júlio Ricardo Quevedo dos Santos

Práticas corambreras na Argentina, Uruguai e Rio Grande do Sul Mário Maestri*

O Corambre em Buenos Aires nos séculos 16 e 17 Nos anos 1580 a 1640, o porto de Buenos Aires exportava algum trigo, lã, sebo, carne seca, etc. para a costa do Brasil. Com o fim da União Ibérica (1580-1640) e a perda do mercado luso-brasileiro, até o final do século 17 as exportações bonaerenses reduziram-se sobretudo aos couros embarcados nos “navios de registro”, que ali aportavam espaçadamente – por vezes, após vários anos. Quando os navios não chegavam, deprimia-se fortemente a já frágil atividade econômica da região. Em 1680, a fundação da colônia do Sacramento pelos portugueses, no outro lado do rio da Prata, diante de Buenos Aires, contribuiu para a ativação do comércio bonaerense, por meio da troca clandestina de couros, de prata, etc. por cativos, manufaturados ingleses, fumo, açúcar, aguardente e outros produtos do Brasil.1 * 1

Professor do PPGH da UPF, Doutor em História pela UCL, Bélgica. Cf. MONTEIRO, Jonathas da Costa Rego. A colônia do Sacramento. 1680-1777. Porto Alegre: Globo, 1937; PRADO, Fabrício Pereira. Colônia Sacramento: o extremo sul da América portuguesa no século XVIII. Porto Alegre: 2002; DOMINGUES, Moacyr. A Colônia do Sacramento e o Sul do Brasil. Porto Alegre: Sulina, 1973; DE SÁ, Simão Pereira. História Topográfica e bélica da Nova Colônia do Sacramento do Rio do Prata. Porto Alegre: Arcano 17, 1993.

Em 1674, ocorreria a maior exportação do porto de Buenos Aires do século 17, quando quarenta mil couros teriam sido embarcados, em três navios, por 361 “vizinhos”. Os 111 couros exportados em média por vizinho registram o caráter episódico daquela produção. Apenas em inícios do século 18 as exportações regionais de couros assumiriam caráter sistemático, dando um indiscutível impulso à economia seminatural regional.2 A falta de mão-de-obra foi importante entrave à expansão das atividades mercantis do Prata. A população livre espanhola e crioula exigia remuneração relativamente elevada para assalariar-se, em razão da abundância relativa de terras e de gados, que lhe permitia se estabelecer como produtores livres, ainda que à margem da sociedade oficial. A exploração mercantil da força de trabalho dependia fortemente do braço escravizado e servil. Porém, escasseava população aborígine passível de ser reduzida à servidão, de forma plena ou parcial. Os nativos pampas resistiram fortemente à redução, impedindo por longos anos a progressão dos colonos para além do rio Salado, a pouco mais de quatrocentos quilômetros de Buenos Aires . Os nativos trazidos de Córdoba, de Santiago del Estero, La Rioja, Mendonza, do Chile, do Paraguai e do Peru não supriam as necessidades de mão-de-obra. A União Ibérica facilitou o ingresso de africanos embarcados nos portos portugueses da África, ensejando que a vida em Buenos Aires e nas chácaras e fazendas próximas dependesse fortemente do trabalho africano feitorizado, dirigido por administradores – capataces e mayordomos – espanhóis e crioulos. Tamanha eram a escassez e carestia do trabalhador livre que africanos e afro-descendentes se ocuparam na direção de estâncias. A carência de braços constituiu grave

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MONTOYA, Alfredo Juan. Como evolucionó la ganaderia en la época del Virrinado. Buenos Aires: Plus Ultra, 1984. p. 16-19. Mário Maestri

handicap negativo à ocupação mercantil em ambas margens do Prata. Em 1640, com a guerra de independência portuguesa, a introdução do cativo no Prata sofreu forte golpe. As duras condições de trabalho, as epidemias de varíola, de febre tifóide, etc. – com destaque para 1651-1653 – dizimavam os cativos, que os escravizadores substituíam com dificuldade, deprimindo relativamente a agricultura e o pastoreio nas chácaras e estâncias. Como visto, realidade amenizada desde 1680, com as trocas permitidas por Sacramento, que sempre se orientou para a venda de cativos.3 Na própria expedição de fundação da feitoria, com os duzentos homens de armas chegaram sessenta cativos para trabalhar nas obras da fortificação e da cidadela e serem comerciados.4 Em 1763, quando a Colônia foi ocupada pelos espanhóis, 342 africanos foram levados para Buenos Aires, junto com os prisioneiros portugueses.5

Por alguns couros Já em fins do século 16 e inícios do 17, nos campos próximos a Buenos Aires, “mozos perdidos”, vivendo nas franjas da sociedade ibérica local, subsistiam da caça ao gado selvagem. Os animais eram laçados ou boleados, executados e carneados. Tratava-se de prática extrativista realizada por produtores independentes detentores dos meios de produção – cavalo, laço, arreios, boleadeiras, etc., – destinada à satisfação direta ou indireta das necessidades de subsistência, através do consumo da carne e uso do couro, graxa, sebo, etc. dos animais e

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Id. ib. p. 41-48. Cf. MONTEIRO, Jonathas da Costa Rego. A colônia do Sacramento. 1680-1777. Porto Alegre: Globo, 1937. p. 45. volume 1. Cf. SANTOS, Corcino Medeiros dos. Economia e sociedade do Rio Grande do Sul: século XVII, São Paulo: Companhia Editora Nacional; INL, Fundação PróMemória, 1984. p.30.

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da venda ou troca desses produtos nas pulperias, por sal, erva-mate, tabaco, bebida, fazenda, ferramentas simples, etc.6 Os couros, sebo e graxa destinavam-se essencialmente à produção local. Inicialmente, os couros não integraram a limitada pauta de exportação do porto de Buenos Aires, sob o duro maniete restritivo da administração colonial. Eles tinham múltiplos e fundamentais usos: confecção de sacos para o transporte de erva-mate, de fumo, de açúcar, de trigo, de algodão, etc.; construção de móveis – cadeiras, baús, catres, etc.; matéria-prima na produção das moradias – portas, janelas, tetos, dobradiças, etc. –; confecção de roupas, de arreios, de cordas; embarcações; etc. A graxa substituía o azeita vegetal na cozinha e o sebo era utilizado no fabrico de velas e de sabão.7 Referindo-se às múltiplas serventias do couro, André Ribeiro Coutinho explicava, quando da fundação de Rio Grande: “[...] se fizeram muitas casas, oficinas, aparelhos dos carros, cestos para a condução de terra, laços para a contextura das trincheiras e outras infinitas obre de couro.”8 Nas longas viagens oceânicas, as embarcações consumiam tiras finas de carne, salgadas e secadas para mais longa conservação – cecina. Matéria-prima fundamental do artesanato, das manufaturas e, mais tarde, das indústrias europeias, o couro tornou-se, desde fins do século 18, um dos poucos produtos exportados abundantemente desde o Prata. Ainda que a produção individual e isolada dessa matériaprima jamais tenha cessado, as necessidades do comércio exterior ensejaram o surgimento das vaquerias, ou seja, de operações extrativistas de animais e de couros, de maior volume e produtividade, pelo emprego de trabalhadores dire6

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CASAL, Juan Manuel. El modo de producción colonial en el Río de la Plata. Montevideo: Nuevo Mundo, 1987. p. 66; GAIGNARD, Romaní. La pampa argentina: ocupación, poblamiento, explotación. De la Conquista a la Crise Mundial. (1550-1930). Buenos Aires: Solar, 1989. p. 64-65. MONTOYA, Como evolucionó la ganaderia en la época del Virrinado, p. 41-48. Apud BOXER, C. R. A idade de ouro do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1963. p. 259. Mário Maestri

tos, conchavados por capitalistas, empregados em atividades coordenadas.9 As primeiras capturas maciças de gado chimarrão teriam se realizado em 1602, em Córdoba, e, em 1608, em Buenos Aires. Tratava-se mais de arreadas do que vaquerias, já que os gados capturados se destinavam principalmente a abastecer as necessidades de carne das principais povoações locais e ao povoamento das fazendas.10 Concomitante a essas expedições, descendentes dos proprietários das primeiras terras distribuídas por Juan de Garay, quando da definitiva fundação de Buenos Aires (1580), reivindicaram à municipalidade o direito aos gados cimarrones, originários dos gados escapados suas fazendas.

Monopólio patrício Em 1606, o cabildo de Buenos Aires proibiu e reprimiu a caça livre ao gado, concedendo licenças (acciones) monopólicas aos proprietários patrícios (accioneros), limitadas à quantidade do gado declarado como perdido a certas regiões, em geral colidentes com as propriedades dos requerentes, e a certas épocas, sobretudo janeiro-julho. Nesses meses, os mais quentes do ano, os animais agrupavam-se às margens dos arroios, rios e lagunas; os terneiros haviam desmamado; os couros secavam com maior facilidade. A primeira licença teria permitido a captura de pouco mais de 1.400 animais. 11 Os accioneros negociavam, junto com as propriedades, os direitos de captura e apropriavam-se das áreas em que tinham 9

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CASAL. El modo de producción colonial [...]. p. 66; GAIGNARD, Romaní. La pampa argentina. p. 64-65. Cf. DOTTA, Mario; FREIRE, Duaner; RODRIGUEZ, Nelson. El Uruguay ganadero: de la explotación primitiva a crisis actual. Montevideo: La Banda Oriental, 1974. p. 23. DOTTA; FREIRE; RODRIGUEZ. El Uruguay ganadero. p. 23; PINTOS, Anibal Barrios. De las vaqueiras al alambrado. Montevideo: Nuevo Mundo, 1967. p. 30.

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permissão para recuperar gado. Originalmente, o objetivo precípuo dessas expedições foi o gado vivo, para povoar fazendas e abastecer a cidade.12 Concedendo os direitos aos requerentes, o cabildo bonaerense outorgou-se o poder de legislar sobre os gados chimarrões, retirando-os do domínio público e da própria alçada da administração real. O direito de concessão do Estado da propriedade plena da terra limitava já fortemente a possibilidade do homem livre pobre de estabelecer-se como produtor. Ao arrogar-se, em nome do Estado, o direito de legislar sobre os gados selvagens, o cabildo de Buenos Aires estabeleceu a forte contradição que o oporia ao homem livre (gaúcho) e aos nativos dos pampas. O núcleo central do poder econômico e social bonaerense consolidou-se em torno do comércio portuário, das exportações de couros, dos latifúndios pastoris. Em 1607 e 1609, partiram do porto de Buenos Aires apenas cinquenta e oitenta couros, respectivamente. Entre 1600 e 1625, no total, foram exportados 27 mil couros, ou seja, pouco mais de mil unidades por ano. Menos animais do que os abatidos para a subsistência da cidade, chácaras e fazendas. Porém, como visto, na segunda metade do século 17 a produção para a exportação tornar-se-ia a principal atividade econômica do comércio bonaerense, com expatriação média anual de vinte mil couros.13 De 1748 a 1753, o porto despacharia, por ano, em torno de 150 mil peças.14 E, como veremos, os couros da região conheciam outros escoadouros. Aos couros enviados de Buenos Aires, agregavam-se os vendidos aos piratas e corsários ingleses, franceses, holandeses, etc. que abundavam na costa atlântica e, sobretudo, os expedidos através de Sacramento para o Rio de Janeiro. Os 12 13

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Loc. cit. CASAL, Juan Manuel. El modo de producción [...]. p. 66; GAIGNARD, Romaní. La pampa argentina. […]. p. 64-65 GIBERTI, Horacio C.E. Historia económica de la ganadería argentina. Act. e corr. Buenos Aires: Solar, 1976. (1 ed. 1954). p. 39 Mário Maestri

couros que partiam legalmente de Buenos Aires eram embarcados nos navios de Registro e nos barcos do Asiento inglês de escravos, de 1718, 1723 e 1724. Eram igualmente abundantes as exportações de couros sobretudo dos Sete Povos missioneiros (1682-1801).15 Os couros embarcados eram comumente trocados por prata e por mercadorias.16 Em 1660, quando era grande a abundância de gado em Buenos Aires, o preço do animal era de quatro reais e o do couro, seis a sete; em 1720, o animal valia doze reais e o couro, de onze a doze. O maior valor do couro em relação ao animal vivo devia-se ao alto preço da mão-de-obra para prepará-lo.17

As vaquerías As vaquerías eram “incursiones por los campos para cazar el ganado cimarrón que pastoreaba libremente”.18 A operação buscava a transferência de animais, em geral para repovoar ou fundar fazendas. Em meados do século 18, o padre José Cardiel descreveu uma recojida de gado por cavaleiros missioneiros na Banda Oriental do Uruguai: “Aquí acostumbraban acudir los indios a recoger vacas, tarea trabajosísima cuando están alzadas. Salen a vaquear cincuenta o sesenta indios, llevando cada uno sus cinco caballos de repuesto. Llevan un rebaño pequeño de vacas mansas, y lo colocan en un collado, donde puedan ver las silvestres. A conveniente distancia, cercan este rebaño treinta o cuarenta de los indios, y los demás se dividen para recoger las vacas bravas más cercanas, las cuales viendo el rebaño, se le acercan, ensanchándose para 15

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Cf. MONTEIRO, Jonathas da Costa Rego. A colônia do Sacramento. 1680-1777. Porto Alegre: Globo, 1937. 2 v.; DOMINGUES, Moacyr. A Colônia do Sacramento e o Sul do Brasil. Porto Alegre: Sulina, 1973. PINTOS, Anibal Barrios. De las vaqueiras al alambrado. Montevideo: Nuevo Mundo, 1967. p. 97, 105. MILLOT, Julio; BERTINO, Magdalena. Historia económica del Uruguay. Tomo I e II. Montevideo: Fundación Cultura Universitaria, 1991. p. 53. GIBERTI, Historia económica [...], p. 29.

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abrirles paso los guardas. De igual modo proceden a recoger otras, hasta que ya no quedan más en las cercanías. Entonces se juntan los vaqueros, y poniéndose delante uno que otro, los demás corriendo a caballo alrededor, empujan el rebaño hacia el paraje donde se han de recoger otros del mismo modo y el mismo orden. [...] Por la noche, lo contienen encendiendo por todos lados hogueras; pero, si se apagan, huyen los animales por entre los mismos vaqueros. De esta manera, en espacio de dos o tres meses, cincuenta indios recogen para su pueblo cinco o seis mil vacas en un territorio de cien leguas.”19 Segundo ata do cabildo de Buenos Aires, de 31 de janeiro de 1719, uma grande recolhida de quarenta a cinquenta mil animais na Banda Oriental, com destino de Santa Fé, duraria diversos meses. A operação exigia em torno de 150 “práticos”, uns 1.600 cavalos – dez por cavaleiro –, cachorros, armas, provisões em sal, açúcar, erva-mate, tabaco, aguardente, etc., e dez canoas com trinta peões experientes na travessia dos rios. Durante uns três meses, os gados eram arrebanhados pelos cavaleiros e concentrados em um rincão ou região escolhida, onde uma pequena ponta de gado domesticada atraía/ tranquilizava os animais chimarrões, sempre sob a vigilância de peões. Durante a viagem de retorno, os cavaleiros se desdobravam para que os animais não se dispersassem e não fossem assaltados por feras, perros chimarrões e nativos. À noite, os gados eram cercados por grandes fogueiras, alimentadas, na falta de lenha, por carcaças de reses. A travessia dos rios Uruguai e Paraná era difícil e demorada.20 O pagamento dos trabalhadores livres nas vaquerías era feito com o gado arrebanhado ou em moeda sonante: seis a dez rezes, para os peões com cavalos próprios; cem a duzentas, 19

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CARDIEL, padre José Cardiel. “Costumbres de los Guaraníes”. Historia del Paraguay desde 1747 hasta 1767. Ob.cit. p. 483. Apud CESAR, Guilhermino. Origens da economia gaúcha: o boi e o poder. Porto Alegre: IEL: Corag, 2005. p. 45 PINTOS, Anibal Barrios. De las vaqueiras al alambrado, p. 96 Mário Maestri

para o capataz; oito a dez pesos mensais para o peão, vinte para o capataz. No primeiro caso, por capataz compreendiase possivelmente o responsável geral pela operação; no segundo, os chefes de equipe. 21 Segundo a ata do cabildo de Buenos Aires de 23 de setembro de 1723, os guardas armados – no mínimo seis – ganhariam quatro reais diários, “jornal” normal de um peão em Buenos Aires. Os peões ganhariam de dez a quinze pesos mensais. Nas vaqueiras de corambre, os vaqueiros que desgarravam os animais ganhavam por produção: cinquenta pesos por mil animais.22 Em 1694, o padre Bernardo de la Vega registrava que corambreros portugueses, em ação na Banda Oriental, abatiam diariamente de oito a vinte animais.23 A vaquería de corambre, operação para a caça de gados para a produção de couros, sebo e graxa, era ainda mais complexa e demorada, podendo prolongar-se por mais de um ano. Portanto, constituíam comumente atividade semipermanente. Como as operações anteriores, elas podiam ser realizadas por diversos armadores associados, cada um com o direito de retirada de couros determinado pela municipalidade de Buenos Aires, ou operação clandestina. Esse tipo de vaquería exigia uma dezena ou mais de destros cavaleiros. Apoiados por cachorros, os faeneros ou corambreros envolviam em campo aberto o gado vacum e cavalar, muitas vezes sob formação em forma de V, para cortar o tendão das bestas com lâmina em meia-lua atada na ponta de lanças de taquara ou madeira de dois metros.24 O “desjarretadero” que seguia o animal pela direita, cortava a pata esquerda traseira do animal, para que não caísse diante da montaria, e vice-versa. Após os animais semi-imobilizados serem desnucados com golpes de pequeno punhal 21 22 23 24

MILLOT; BERTINO, Historia económica del Uruguay, p. 54. PINTOS, Anibal Barrios. De las vaqueiras al alambrado, p. 102. DOTTA; FREIRE; RODRIGUEZ. El Uruguay ganadero, p. 21. GIBERTI, Historia económica de la ganadería argentina, p. 29.

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dado pelos matadores, os desolladores retiravam o couro, sebo, cabelo, língua, etc. Eventualmente, produzia-se alguma cecina. Animais eram também laçados ou boleados para serem sacrificados.25 Nos primeiros tempos de Sacramento, animais foram mortos a tiros, como veremos oportunamente.26 Em História econômica de la ganadería argentina, publicada pela primeira vez em 1954, Horacio Giberti propõe a não participação de cativos nessas expedições, com base numa reflexão sobretudo lógica: “[...] en ellas no participaban los esclavos, cuya escasez elevaba grandemente su valor mercantil. La pérdida de un esclavo en uno de los probables accidentes hubiera implicado la desaparición de buena parte de los beneficios.”27 A documentação questiona essa afirmação geral e peremptória. Em 1785, os espanhóis mataram nas regiões dos rios Vacacaí e São Sepé, ao resistir à prisão, o coureador Francisco Lemos, prendendo quatro outros portugueses, “inclusive um escravo”, além de espanhóis e nativos envolvidos naquele contrabando.28 Não são raros registros de cativos envolvidos nessa atividade, sobretudo na Banda Oriental. A maior disponibilidade de cativos, os altos salários dos homens livres, etc. contribuiriam para que, nas expedições enviadas da Colônia do Sacramento, cativos trabalhassem na condução dos carroções e, possivelmente, como peões, como veremos oportunamente. A população escravizada de Sacramento sempre foi considerável, como já visto.. 29

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Loc. cit. MONTEIRO, A colônia do Sacramento, p. 118-124. GIBERTI, Historia económica de la ganadería argentina, p. 29. AN, RJ, cód. 104, v. 7, fl. 186. Apud OSÓRIO, H. O império português no sul da América: estancieiros, lavradores e comerciantes. Porto Alegre: EdiUFRGS, 2007. p. 64. SANTOS, Economia e sociedade do Rio Grande do Sul, p. 30. Mário Maestri

Jangadas dos pampas Em Terra gaúcha, livro póstumo e inacabado, João Simões Lopes Neto (1865-1916) detalha as práticas corambreras: “Os changadores traziam as suas tropilhas de cavalos em balsas, sobre a costa de Soriano (Banda Oriental) e arranchavam-se de forma a facilitar os seus embarques e precaver-se contra os ladrões dos seus mantimentos e estaqueadouros. Em grupos de trinta a quarenta indivíduos conchavados entre a escória (sic) das cercanias de Buenos Aires e obedecendo a um capataz, que representa, com plenos poderes, o empresário da exploração. Bem armados e bem montados, corriam os bandos dispersos de índios, coureavam o que podiam e findo o respectivo contrato dissolvia-se a comparsa.” Segue o regionalista pelotense: “Outras vezes, os changadores, formando quadrilhas independentes internavam-se no território, vindo muitas até a coxilha de Cebolati (rio Cebollati, afluente da lagoa Mirim, no Uruguai) e adiante, até a barra do Rio Grande de São Pedro, onde faziam permutas com os caravelões de São Vicente que em navegação furtiva apareciam por certas águas. Durante muito tempo foi somente o couro o produto procurado; para caçar o gado empregavam os campeiros o sistema de – mangueira – que consistia apenas em conduzir, a gritos, a boiada, sobre uma volta acentuada de algum arroio forte; aí ‘desgarronavam’ as reses com uma espécie cortante de meia-lua, encabada em taquara, como uma lança; aos que desempenhavam este ofício chamava-se – cortadores – e eram de uma destreza proverbial. Em seguida sangravam o animal, tirando-lhes apenas o couro, o sebo e a língua, abandonando o resto aos urubus e aos cachorros chimarrões.”30 Para o historiador Aníbal Bairros Pinto, a designação de “changador”, ou seja, do “faenero de cueros clandestino”, pro30

LOPES NETO, João Simões. Terra gaúcha. Porto Alegre: Sulina, 1998. p. 92.

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cederia da palavra “changar”, ou seja “carnear”. Em O gaúcho na história e a lingüística, de 1966, apoiando-se no filólogo Joan Carominas, Propício da Silveira Machado propõe que a palavra derivava do étimo português “jangada”, em virtude das embarcações nas quais eles chegavam, com seus cavalos, à Banda Oriental, através dos rios Paraná e Uruguai. A proximidade entre a pronúncia de “changador” e “jangador” ou “janguadeiro” é grande. Temos registros escritos daquele termo desde 1729, para a Banda Oriental, e desde 1748, para a Argentina.31 Em 1703, em seu “Roteiro” de viagem pelo litoral, desde a Colônia do Sacramento, Domingos de Filgueiras narrou, ao chegar à barra do Rio Grande: “Neste porto é necessário passar em jangada, que se há de fazer em ocasião de reponta (enchente) de maré. E a jangada se fará de espinho seco para as estivas que se juntarão, e os três paus para estiva pouco importa que estejam verdes. Hão de estes ter quinze até dezoito palmos de comprimento (3.30-3.96 m), far-lhe-ão duas faces, uma para baixo, outra para cima. Por cima desta estiva se fará outra de madeira com travessas lançadas e amarradas umas à outras [;] por cima de ambas as estivas se lançarão dois paus, um por cada lado, que servem de talabardões (ponte que corre junto à borda da embarcação) para se armarem os remos, cujos paus serão grossos e secos, os remos serão de boga e de espinho branco, verde, que é mais forte e não falta; por-lhe-ão quatro remos, dois por banda e a jangada que tem quinze ou dezesseis palmos de comprimento, daí para cima, conforme quantidade de gente que houver passar, porque esta medida é para seis passageiros.”32 Os couros, estaqueados ao sol, deviam ser repetidamente limpos de insetos, para serem a seguir transferidos ao acam31

32

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PINTOS, Anibal Barrios. De las vaqueiras al alambrado. Montevideo: Nuevo Mundo, 1967. p. 109, 114; MACHADO, Propício da Silveira. O gaúcho na história e a lingüística. Porto Alegre: Palotti, 1966. p. 31. Apud AMARAL, Anselmo F. Os campos neutrais. Porto Alegre: 1973. p. 69. Mário Maestri

pamento dos corambreros. Após serem amassados, o sebo e a graxa eram acondicionados em bolsas de couros para posterior manipulação. Realizadas no verão, as expedições durariam meses, como vimos, sobretudo quando os campos mais próximos já se encontravam despovoados de animais. A exportação dos couros para os mercados europeus dava-se privilegiadamente no inverno, quando, em razão da baixa temperatura, não eram atacados pela temida polilla – parasitas do couro. As vaquerías de corambre exigiam capitais ainda superiores às arreadas, necessários para os salários, as armas, os suprimentos, as carretas, os instrumentos de trabalho, etc. Em virtude da baixa qualidade das montarias, a cada cavaleiro corresponderiam cinco ou mais animais, como assinalado.33

Modo de produção gaúcho Espanhóis, criollos, portugueses, gaúchos, libertos, charruas, minuanos, guaranis etc. dedicavam-se, de forma isolada ou em pequenos grupos, como produtores independentes proprietários dos seus meios de produção, à caça de gado para a obtenção direta e indireta de parte de seus meios de subsistência. Em geral essa produção era clandestina, já que reprimida pelas autoridades coloniais, que, em nome do Estado, monopolizavam as terras e os gados para garantir a extração de impostos e privilegiar os segmentos sociais dominantes. A caça ao gado, pelo couro, para a venda, podia constituir atividade semipermanente de gaudérios/gaúchos. Mesmo nesse caso, quando muito, tratava-se de produção simples de mercadoria, em esfera não capitalista, subordinada ao mercado local ou mundial. À medida que os gados escasseavam, aumentava a repressão e a sua busca exigia longas, custosas e 33

DOTTA, Mario; FREIRE, Duaner; RODRIGUEZ, Nelson. El Uruguay ganadero. Ob.cit. p. 21; CASAL, Juan Manuel. El modo de producción [...]. p. 66.; MILLOT, Julio; BERTINO, Magdalena.. Historia económica del Uruguay. [...] p. 55; GIBERTI, Historia económica de la ganadería argentina, p. 38

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difíceis operações; o changador tenderia a alugar seus serviços aos armadores de grandes vaquerias, legais e ilegais. Em 1785, o vice-rei Luís de Vasconcelos escrevia sobre os nativos americanos do Rio Grande do Sul: “De não menos providência necessitam os índios daquele continente, a maio parte dos quais faz o excessivo número de indivíduos vagos e dispersos, que vivendo à lei da natureza, sem disciplina e sem religião, se fazem quando não autores dos delitos mais atrozes ao menos sócios de todos os crimes a que os convida uma vil e insignificante recompensa. Na campanha, eles são os que concorrem para as extorsões, furtos e contrabandos; nos campos e nos estabelecimento dos moradores, eles dão todo o auxílio para os furtos de muitos animais [...].”34 No Prata do século 16 a boa parte do 19, a separação do produtor livre das condições de produção de seus meios de subsistência dava-se quando muito em grau limitado. Entre dois conchavos em uma vaquería, changadores e trabalhadores livres sobreviviam da exploração de pequenos ranchos, com suas famílias, em terras próprias ou ocupadas, plantando rústicas roças, criando alguns animais, etc. Essas atividades podiam se dar em associação com a produção furtiva de couros e com o contrabando. O fato de produzir parte dos meios de subsistência tendia, contraditoriamente, a deprimir e a suster o valor de remuneração da força de trabalho, paga em espécie ou em moeda.35 Isto porque, por um lado, como vimos, o trabalhador não era obrigado imperiosamente a alugar seu trabalho e, por outro, não necessitava do salário para sobreviver. O gaúcho se conchavaria periodicamente, sobretudo para comprar o que não produzia; episodicamente, para formar um pequeno rancho, etc. Não podemos definir como camponesa população que apoiava marginalmente sua subsistência em agricultura 34 35

58

SANTOS. Economia e sociedade do Rio Grande do Sul, p. 29. MILLOT; BERTINO, Historia económica del Uruguay, 1991. 55 Mário Maestri

voltada sobretudo ao consumo familiar. Como lembram Julio Millot e Magadalena Bertino, em Historia económica del Uruguai, essa forma de existência e produção não capitalista, onde a força de trabalho do produtor direto não se transformava ainda plenamente em mercadoria, constituiu parte integrante do que poderíamos definir de modo ou forma de produção do gaúcho ou da vaquería.36 A oligarquia portuária de Buenos Aires conseguiu estabelecer sua hegemonia sobre a sociedade do interior por meio da repressão-destruição dessa forma de produção/existência, processo no qual a Guerra do Paraguai desempenhou importante papel.37

Pequenos, médios e grandes capitalistas Do ponto de vista do armador, a vaqueria constituía atividade voltada essencialmente à valorização do capital investido, com rentabilidade dependente da abundância de animais. A expedição objetivava produzir, ao concluir-se, um capital superior ao investido, através da realização da mercadoria produzida no mercado – o couro. A subjunção dessa atividade ao mercado mundial não determinava uma sua essência capitalista. O próprio comércio mundial não é decorrência da ordem capitalista dominante, tendo surgido na história nos primórdios da civilização.38 Não raro, as vaquerías eram agenciadas ou arrematadas por poderosos capitalistas, ou seja, detentores de capitais. Em 1º de março de 1702, comunicava-se à administração real que as “caçadas dos couros da Nova Colônia do Sacramento e Montevidéu” haviam sido 36 37

38

Id. ib. p. 55, 90. Cf. RIVERA, Enrique. José Hernández y la Guerra del Paraguay. Buenos Aires: Colihue, 2007. 96 p.; ROSA, José Maria. La guerra del Paraguay y las montoneras argentinas. Buenos Ayres: Hyspamérica, 1986; PEÑA, Milciades. La era de Mitre: de Caseros a la Guerra de la Triple Infamia. 3. ed. Buenos Aires: Fichas, 1975.. MANDEL, Ernest. Tratado de economia marxista. México: Era, 1972. p. 70.

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arrendadas a Manoel Lopes Faria, por seis anos, por um custo anual de sessenta mil cruzados, pagos em duas parcelas semestrais. O que excedesse aos valores correspondentes aos quintos do couro seria aplicado no “sustento dos presídios e fortificações” do sul lusitano.39 A valorização do capital empregado nas vaquerías não dependia essencialmente da apropriação pelo faenero do trabalho excedente do produtor direto (corambrero, cativo, etc.), o que permitia relativa abertura nesse relativo. Dependia, sobretudo, da enorme diferença entre o trabalho socialmente necessário para produzir couros na Europa e nas Américas. Era produto, portanto, da renda diferencial. O custo de produção do couro americano, entregue no porto europeu, era inferior ao valor de venda do produto no Velho Mundo, que exigia a remuneração da renda da terra, dos gastos de criação, do custo de extração, etc. Em inícios de 1690, o padre Antônio Sepp extasiava-se com a diferença do preço do couro nas Américas e na Europa: “Aqui, um couro sai a 15 kreuzers, que vem a ser o salário para o serviço de tirá-lo. Na Europa, no entanto, em qualquer parte, vende-se um couro de boi como este por seis e mais reichstaler.”40 O preço do couro não era determinado apenas pelo custo de produção na Europa. À medida que se sistematizava e crescia a produção americana, os terrenos e regiões europeus de produtividade inferior seriam deslocados como locais de produção do produto, um processo minorado em razão do enorme crescimento das necessidades do couro através dos séculos 18 e 19, com o desenvolvimento da Revolução Industrial, que tinha no produto matéria-prima fundamental. 39

40

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GOULART, José Alípio. Brasil do boi e do couro. Rio de Janeiro: GRD, 1965. p. 62, Cf. SEPP S. J., padre Antônio. Viagem às missões jesuíticas e trabalhos apostólicos. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo, EdUSP, 1980. p. 143; o reichstaler, moeda padrão de prata, valeria 72 kreuzers, de cobre. O couro custaria em torno de trinta vezes mais no Império Habsburgo. Mário Maestri

O custo da produção do couro americano reduzia-se aos gastos com o abate, a extração, a armazenagem e o transporte até o porto americano de exportação e, deste, até a Europa, acrescidos das taxas e impostos, quando não eram contrabandeados. Inicialmente, não havia custos de criação animal, o que assegurava a enorme rentabilidade dessa extração. Em 1711, falando dos couros produzidos no Brasil, Antonil propunha que o custo do “meio de sola” (couro seco) seria 1$980 réis – ou seja, 1$500 o couro; 340 réis de direitos e o restante gastos com o transporte até Lisboa. O couro em cabelo, por sua vez, custaria 2$100 em Lisboa.41 Em Brasil do boi e do couro, José Alípio Goulart anota: “Em Lisboa, em fins do século XVIII, os couros secos valiam: peça na base de 32 quilos, a 65 réis por libra, 2.080 réis; frete do Brasil, 260 réis; e despesas de desembarque, 140 réis, totalizando 2.480 réis.” “O couro salgado valia no Brasil de 2.300 a 2.400 réis por peça de 31 a 32 libras; em Lisboa, valor posto a bordo em porto brasileiro, 2.350 réis; frete, 260 réis, e despesa de embarque (sic), 160 réis, somando 2.770 réis.”42 Segundo Simonsen, o preço do transporte dos couros, em 1757, por alvará real, da Bahia, Pernambuco ou Rio de Janeiro, era de trezentos réis, para couro em cabelo, e de duzentos réis, para meio de sola.43

O corambre na Banda Oriental nos séculos 17, 18 e 19 O gado foi introduzido por espanhóis na costa de San Gabriel (Soriano), na primeira metade do século 17, em momento em que os charruas dominavam a Banda Oriental do Uruguai. Então, as atuais costas uruguaias eram visitadas 41

42 43

ANTONIL, a. J. Cultura e opulência do Brasil. 2 ed. São Paulo: Melhoramentos; Brasília, INL, 1976. p. 203. Cf. GOULART, O Brasil [...], p. 44. SIMONSEN, R.C. Apud SIMONSEN, R.C. História econômica do Brasil. Brasília: Companhia Editora Nacional, 1977. p. 169.

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esporadicamente por espanhóis, portugueses e europeus para a extração de madeira, de couro, de graxa e de sebos. Em 1626, jesuítas cruzaram o rio Uruguai e penetraram no noroeste do atual Rio Grande, fundando dezesseis missões, sobretudo com guaranis. Em 1634, 1500 cabeças de gado foram trazidas para conformar os rebanhos das Missões do Tape. Os animais foram abandonados quando os missioneiros retiraram-se, a partir de 1637, por causa dos assaltos dos paulistas.44 Em razão da benignidade da região, os gados se multiplicaram, atravessando os rios Jacuí-Ibicuí, em direção do sul, para formar a imensa vaquería do Mar, entre o oceano e os rios Jacuí e Negro. Com uma estimativa de um procreo de vinte por cento para os rebanhos chimarões, em inícios do século 18 haveria em torno de cinco milhões de animais ao norte e ao sul do rio Negro, inicialmente explorado sobretudo pelos nativos pampianos – charruas, minuanos, etc. –, que aprenderam a cavalgar e passaram a apoiar sua subsistência na caça ao gado, pela carne e pelo couro, em uma quase permanente disputa com os guaranis missioneiros.45 Como proposto, em 1680 os portugueses fundaram a colônia do Sacramento, no extremo sul da Banda Oriental. Encravada em possessões espanholas segundo o Tratado de Tordesilhas (1494), a feitoria armada buscava retomar, por meio do contrabando, os rentáveis laços comerciais que os luso-brasileiros haviam mantido com a região, sobretudo através de Buenos Aires, durante a União Ibérica, como já dito. Os manufaturados ingleses, as mercadorias chegadas das costas do Brasil e os trabalhadores africanos escravizados eram pagos com a valiosa prata do Peru. Como também 44

45

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Cf. PORTO, Aurélio. História das missões orientais do Uruguai. 2 ed. Ver. e melhor. pelo p. L.G. Jaeger. Porto Alegre: Selbach, 1954. I e II; MONTOYA, Padre Antônio Ruiz de. Conquista espiritual: feita pelos religiosos da Companhia de Jesus nas Províncias do Paraguai, Paraná, Uruguai e Tape. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1985. MILLOT; BERTINO, Historia económica del Uruguay, 1991. p. 55. Mário Maestri

já proposto, na expedição que fundou a feitoria chegaram sessenta cativos, 48 pertencentes a dom Manuel Lobo, para serem vendidos aos proprietários da região, sedentos de braços. Em agosto de 1680, com a queda de Sacramento em mãos espanholas, “53 negros, em sua maioria escravos”, terminaram em Buenos Aires, ao igual do ocorrido com o desventurado comandante da expedição.46 Essas trocas eram feitas por barcos e lanchões que interligavam as duas margens, em geral sob a complacência das autoridades de Buenos Aires.

Apoio nativo As imensas mandas de gado da Banda Oriental foram inicialmente descuradas pelos portenhos em razão da riqueza de animais na interlândia de Buenos Aires. A caça dos animais pelo couro mostrou-se muito logo importante fonte de renda aos lusitanos recém-chegados, uma operação facilitada pelo apoio recebido, desde os primeiros momentos, por parte dos nativos charruas, que abasteceram Sacramento, sobretudo em carne, em troca de roupas, ferramentas e outros produtos. Mais tarde, trocariam esses bens por couros.47 Os couros transformaram-se em importante forma de pagamento das mercadorias compradas na feitoria. A Colônia transformou-se em importante porto de exportação da produção corambrera bonaerense, limitada fortemente pelas restrições e gravada pelas taxas metropolitanas. Em 1695, o porto do Rio de Janeiro enviava para Portugal cinco mil couros chegados da Colônia, obtidos no Prata e no atual Rio Grande do Sul – quantidade talvez média das exportações nesses anos. Segundo C.R. Boxer, as exportações de couro do Rio de Janeiro para o Reino

46

47

Cf. MONTEIRO, Jonathas da Costa Rego. A colônia do Sacramento. 1680-1777. Porto Alegre: Globo, 1937. v. I. p. 45. Id. ib. p. 73

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teriam variado de quatrocentos a quinhentas mil unidades, chegadas sobretudo das possessões espanholas.48 Dom Francisco Naper de Lencastre, governador de Sacramento, teria enviado, em fins do século 17, os primeiros 142 couros para o Reino, determinando, por isso, em 1690, a decisão da administração lusitana de cobrar apenas o dízimo sobre eles, a ser empregado no pagamento da manutenção (soldo) daquela conquista. O baixo valor e o destino dos capitais obtidos pela taxa assinalariam o desconhecimento das possibilidades da mercadoria. Em 6 de dezembro de 1691, ao escrever ao rei, destacando as importantes riquezas animais da região, Lencastre assinalava que uma fragatinha que subira o rio Santa Luzia matara facilmente duzentas rezes para o abastecimento dos moradores. A maior dificuldade seria a falta de cavalos. Em janeiro de 1694, em carta ao soberano, entre as grandes razões para a conservação da Colônia destacava já a produção de couros: “Há mui considerável o grande interesse que pode ter na courama que se fizer nestas campanhas, onde não será possível nunca extinguir o gado e se 6.000 couros que mandei fazer e vão embarcados neste navio [...].”49 A carta do governador registrava que a produção de couro fazia-se ainda de forma não sistemática. Segundo ele, uns quatorze caçadores penetravam em pequenos barcos na campanha, servindo-se de rios e arroios, navegáveis por de 18 a 24 km., para abater o gado a tiros de “espingarda”. As carnes e os couros eram carregados nas costas até as embarcações e, destas, para a Colônia. Lencastre lembrava que com suficientes “cavalos e carros” far-se-iam de vinte a 25 mil couros por ano, para o proveito da Coroa, dos soldados e do abastecimento em carne da povoação. Em 1695, o governador mandara matar mil vacas, distribuindo as carnes entre 48 49

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SANTOS., Economia e sociedade do Rio Grande do Sul, p. 19. MONTEIRO, A colônia do Sacramento, p. 112, 114-15, 117. Mário Maestri

os moradores da cidadela e enviando os couros crus ao Rio de Janeiro, aos poucos, em razão das dificuldades de transporte. 50 Em documento de 1697, o provedor-mor da Fazenda real da capitania do Rio de Janeiro assinalava que navio chegara da Colônia trazendo quase quatro mil couros, 1.399 de touros e mil de vaca. Não havia, portanto, qualquer preocupação com o respeito às matrizes.51

Riqueza animal A caça aos animais se generalizou. Expedições privadas, com homens livres e escravizados, em embarcações ou carretas, penetravam o interior para caçar gado pela carne e, sobretudo, pelo couro, sebo e graxa. Em janeiro de 1698, nativos missioneiros atacaram alguns espanhóis e mataram “um sargento” da Colônia “com sua comitiva de negros e um mulato”, que caçava nos campos vizinhos. Esses ataques se repetiriam nas décadas seguintes. Em inícios dos anos 1720, nativos missioneiros e espanhóis teriam atacado e tomado “nas proximidades da Colônia umas carretas pertencentes ao capitão Cristóvão Pereira de Abreu, que seus escravos traziam com frutos do país para o interior da Colônia”.52 Registrem-se as repetidas referências a cativos participando em operações produtivas nos aforas da cidadela. Com a sistematização das exportações de couro, a Coroa portuguesa regulou mais estritamente seus direitos. Carta régia de 24 de setembro de 1699 determinava que fossem cobrados 20% (quinto) sobre os couros enviados da Colônia para o Rio de Janeiro, onde, segundo instrução do mês seguinte, deveriam ser beneficiados. Em 1º de março de 1702, o contrato dos quintos dos couros foi adjudicado, por sessenta mil cruzados, por seis anos, a Manoel Lopes de Farias. Em 1729, 50 51 52

MONTEIRO, A colônia do Sacramento, p. 118, 124. Cf. GOULART, O Brasil do boi e do couro, p. 40. MONTEIRO, A colônia do Sacramento, p. 127, 182.

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o direito coube a João Rodrigues da Costa, por três anos, sob o pagamento de quinhentos réis por couro exportado. Ao terminar o triênio, a cobrança dos quintos coube a João Álvares Trique, por 550 réis o couro de touro e 400 o de vaca e novilho, o que assinalava, mais uma vez, a despreocupação oficial com a manutenção e expansão dos rebanhos. 53 A Coroa espanhola seguia atenta o ativismo dos lusitanos na margem oriental do Plata, contrabandeando mercadorias e dizimando manadas que considerava suas. Em 1721, dom Bruno Zabala escrevia ao soberano espanhol “comunicando que, mandando uma forte partida de índios (das missões) percorrer a costa até Montevidéu”, encontraram em um “rancho 1.500 couros secos”, que haviam sido queimados, sem que se pudesse apreender um “bergantim” que partira da enseada para a Colônia. Na viagem de retorno, a partida encontrara um “outro rancho”, com 2.500 couros. Dois anos mais tarde, o soberano era informado de que o navio Nossa Senhora Mãe de Deus e São José partira, em 6 de fevereiro, da Colônia para o Rio de Janeiro, onde chegara em 6 de fevereiro, para atracar, finalmente, em 8 de maio em Lisboa, com uma carga de “onze mil couros secos, trinta mil pesos em dinheiros e dois mil marcos em prata”. 54 Em fevereiro de 1726, aportara na Colônia um comboio com dez navios abarrotados de mercadorias, trocados por 400.592 couros secos, além do pagamento em prata e moeda. Uma enorme parte desses couros teria sido produzida pelos nativos charruas e por moradores de Buenos Aires. Em inícios do século 18, estimava-se em quatrocentos espanhóis, com dois mil cavalos, ocupados na caça ao couro na Banda Oriental, em grande parte a serviço dos portugueses da Colônia.55 Em A colônia do Sacramento, o historiador Rego Monteiro lembra que, em meados dos anos 1720, o couro fresco 53 54 55

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Id. ib. p. 131, 198. Id. ib. p. 182-184. SANTOS, Economia e sociedade do Rio Grande do Sul, p. 62. Mário Maestri

das rezes mortas para o consumo valia uma pataca, ou seja, 320 réis. Portanto, o preço da própria vaca. Os couros eram levados ao Rio de Janeiro em todos os navios que aportavam na Colônia. Em 1726, uma “sumaquinha” partira da Colônia com 1.404 couros de touros, para aquela destinação, sob a apreensão geral, por causa da fragilidade da embarcação. Na mesma época, uma charrua, com 10.210 couro de touros e 127 de vacas encalhara no banco Inglês, cemitério de diversos navios lusitanos.56 À produção de couros e ao contrabando, os lusitanos de Sacramento agregavam a exportação de mulas de Santa-Fé e de outras regiões do Plata para São Paulo, inicialmente através do caminho da Praia. Também carnes salgadas eram enviadas para a costa do Brasil.57 Em 1741, o inglês John Campbell referia-se ao contrabando entre a Colônia e Buenos Aires: “[...] há uma terceira classe de comércio ilícito do qual posso falar perfeitamente. Esse é efetuado com os portugueses, os quais [...] dominam a margem oposto do Rio da Plata. Dali eles aproveitam as ocasiões para enviar, de tempos em tempos, pequenas embarcações carregadas não apenas com seus próprios gêneros, mas com os que recebem da Europa [...].”58 A fundação de Montevidéu e o estabelecimento efetivo dos espanhóis na Banda Oriental demarcariam o fim dos anos de opulência da cidadela lusitana. Em A colônia do Sacramento, de 1937, Jonathas da Costa Rego Monteiro lembra: “Terminou o período áurea da Colônia do Sacramento, jamais voltaram a ter seus arredores aquela riqueza de produção, que fazia dela a cobiça espanhola a fiscalização pelo porto de Montevidéu continuou, escassas se tornaram [...] as suas transações de courama, grande fonte de sua riqueza.” Em verdade, a cidadela transformara-se em porto livre no Prata, 56 57 58

MONTEIRO, A colônia do Sacramento, p. 194-196. Id. ib. p. 197. GOULART, O Brasil do boi e do couro, p. 40.

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através do qual se exportavam não menos do que trezentos a quatrocentos mil couros anuais.59

Os espanhóis na banda oriental A despreocupação dos espanhóis de Buenos Aires com a Banda Oriental modificar-se-ia, radicalmente, desde o início do século 18, sobretudo em virtude da quase total exaustão dos gados selvagens das regiões acessíveis do interior.60 E, como vimos, as compras de mercadorias inglesas e lusobrasileiras eram pagas comumente com couros, enviados a seguir da Colônia para o Rio de Janeiro.61 A produção corambrera por castelhanos na Banda Oriental passou a ser feita por grandes operações ou por espanhóis, crioulos, mestiços, charruas, negros, guaranis, desgarrados, etc. Informação de finais do século 18 propunha que talvez mil changadores produzissem, em partidas, couros clandestinamente para serem negociados na Colônia.62 O historiador argentino Emílio A. Coni lembra sobre a aliança entre os portugueses de Sacramento e os vagamundos da Banda Oriental: “Don Francisco de Alzaybar, empresário de vaquerías [...]” “[...] servirá de freno a impedir la extracción de dichas pieles por aquellos hombres que los introducen a los Portugueses que generalmente llaman changadores los cuales no tienen pareja segura par su existencia pues unas veces se hallan en la Colonia donde es su sagrado y asilo y otras entran en la campaña con buen arréo de caballos y como ladrones de aquellos campos hacen las faenas para los portugueses.” 59

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MONTEIRO, Jonathas da Costa Rego. A colônia do Sacramento. 1680-1777. Porto Alegre: Globo, 1937. p. 331, 338 DOTTA, Mario; FREIRE, Duaner; RODRIGUEZ, Nelson. El Uruguay ganadero. Ob.cit. p. 23 MILLOT; BERTINO, Historia económica del Uruguay, 1991. p. 52. PINTOS, Anibal Barrios. De las vaqueiras al alambrado. Montevideo: Nuevo Mundo, 1967. p. 109, 114. Mário Maestri

Em 1738, o alcalde de Santa Hermandad de Montevidéu registrava que operação na campanha necessitava de, no mínimo, quinze vizinhos e igual número de soldados, em virtude de ameaça posta pelos changadores, que “se han pasado a los portugueses” e que levaram “sus caballadas para hacer corambre entre los portugueses”.63 Entre os principais changadores da Banda Oriental, comandantes de partidas de gaúchos vagos, encontravam-se Pedro Ansotegui, don Pedrito; José Jará, Pepe el Ladrón; José de Castro, Pepe el Mellad; os portugueses Manuel Cabral e Francisco Pintos; os espanhóis Salvador Gomes e Julián Medina; os índios Gregório e Juan Vera e o negro Canga.64 Destaque-se, mais uma vez, a presença de afro-descendente na produção de couros, agora como chefe de changadores. Como vimos, desde os momentos iniciais da fundação da colônia do Sacramento, os charruas, inimizados com os guaranis missioneiros, apoiaram os portugueses e realizavam faenas de couro, em troca de “bayeta, sombreros, espadas, virretes, tabaco e aguardiente”, como denunciava autoridade bonaerense enviada à Banda Oriental para controlar a produção clandestina de couro, em 1721.65 Nessa atividade, com destaque para as regiões nortes da Banda Oriental, participavam habitualmente luso-brasileiros chegados em lanchões, através da Lagoa Mirim, do rio Cebollatí, Tacuarí, Yaguarón e, sobretudo, de Rio Pardo, na Depressão Central do Rio Grande do Sul.66 A descoberta da rica população animal da Banda Oriental, no contexto da expansão da atividade econômica e das necessidades de couro da Europa desde inícios do século 18, ensejou a atração de aventureiros de toda a região do Prata. Como proposto, espanhóis, portugueses, mestiços, africanos 63 64 65 66

Apud AMARAL, Anselmo F. Os campos neutrais. Porto Alegre: 1973. p. 54. PINTOS, De las vaqueiras [...], p. 115. Id. ib. p. 101-112. Id. ib. p. 116

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e negros libertos, etc. empregaram-se na extração de couro, de forma isolada, como membros assalariados das vaquerías legais e clandestinas. A caça ao gado para a produção de couros exerceu também poderosa atração nos charruas e nos missioneiros, ali chegados em grande número após a derrota que sofreram na chamada Guerra Guarani (1753-1756). Crescentemente integrados ao comércio internacional pelo capital mercantil, “indios puros aculturados o mestizados” desempenham-se como “changadores, trabajando como peones en vaquerías o estancias, o incluso como poseedores o propietario”.67

Mudando de banda Na segunda metade do século 17, a intensificação da retirada de couros ensejou que os gados se internassem nos pampas da Banda Ocidental do Uruguai, esgotando as reservas nas regiões controladas por Buenos Aires. “Las vaquerías adquieren el carácter de expediciones armadas, indispensables para afrontar los peligros del indio al perder contacto con la zona poblada. En 1688 documentos de la época sostienen que a 20 leguas (uns 130 km) de la ciudad apenas si hay ganado, y al año siguiente prohíbese las vaquerías por 6 años argumentando que es necesario recorrer 70 leguas (mais de 460 km) para encontrar vacunos en cuantidad.”68 Desde inícios do século 18, os gados das regiões meridionais da Banda Oriental começaram a ser explorados por vaquerías organizadas por moradores de Santa Fé e Buenos Aires, comumente a serviço da Colônia, ao passo que os do norte eram explorados sobretudo pelos nativos missioneiros, como veremos. Essas expedições arrebanhavam igualmente gados para repovoar campos com as reservas animais já esgotadas. Em agosto de 1716, o cabildo de Buenos Aires recebia 67 68

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MILLOT; BERTINO, Historia económica del Uruguay, 1991. p. 24. GIBERTI, Historia económica de la ganadería argentina, p. 36. Mário Maestri

a denúncia de mais de quatrocentos santafesinos realizando vaquerías clandestinamente na Banda Oriental. A partir de 1718, segundo o historiador Emílio A. Coni, ao se extinguirem os gados selvagens nas terras entre Buenos Aires e o rio Salado, todas as vaquerías passaram a ser feitas quase exclusivamente na Banda Oriental, através de licenças onerosas concedidas a “empresários”, sob fiança, sempre pelo cabildo de Buenos Aires, que cobrava pelas concessões.69 Os direitos exigidos aos asienteros e registreros eram de um terço dos couros produzidos. Em meados do século 18, o jesuíta José Cardiel descreveu, do ponto de vista das Missões, a enorme atividade dos corambreros chegados à Banda Oriental desde a outra margem do Plata: “Arrojándose a porfía a vaquear multitud de cuadrilla, mataron enorme cantidad de vacas, cuyas peles, lengua y sebo, mientras una larga seria de carretas las transportaba para entregarlas a los marcadores ingleses que residían en Buenos Aires, quedaban en la vaquería otros trabajadores preparando carga para nuevo viaje. De este modo, en término de diez años, se acabaron, no solo miles, sino millones de vacas que había.”70 Nesses anos, o jesuíta referia-se, sobretudo, às terras ao sul do rio Negro. Entretanto, ao norte do rio Negro, região que pertencia, em parte às Missões e escapava, em geral, à administração e ao controle efetivo das autoridades espanholas, a caça ao gado e ao couro era praticada por gaúchos, changadores e nativos, isolados ou em grupos, que vendiam os couros aos portugueses ou aos corsários ingleses, franceses, holandeses. Essa região seria a grande pátria do gaúcho platino mais tar69

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Cf. PINTOS, Anibal Barrios. De las vaqueiras al alambrado. Montevideo: Nuevo Mundo, 1967. p. 95. CARDIEL, padre José Cardiel. “Costumbres de los Guaraníes”. Historia del Paraguay desde 1747 hasta 1767. Trad. Padre Pablo Hernández. Madrid: General de Victoriano Suárez, 1918. p. 483. Apud CESAR, Guilhermino. Origens da economia gaúcha: o boi e o poder. Porto Alegre: IEL: Corag, 2005. p. 39.

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de, importante reduto das forças artiguistas na luta fracassada pela independência política e social dessas paragens.71 Era habitual que faeneros espanhóis trabalhassem clandestinamente para os portugueses do Sacramento e espanhóis de Buenos Aires, ocorrendo o mesmo, a seguir, com Santa Fé, após 1708. O sentimento dos jesuítas para com o saque dos rebanhos das vacarias compreende-se a partir da dependência, sobretudo inicial, das Missões da carne e dos couros dos animais. Segundo o padre Antonio Sepp, em 1698 apenas uma aldeia jesuítica consumiria em alimentação cinquenta mil animais em um ano, o que era, certamente, um exagero – as 26 reduções consumiriam, se o dado fosse certo, anualmente, em torno de um milhão e trezentos mil animais! O mesmo jesuíta assinalava que, naquele ano, os navios da ordem teriam exportado para a Espanha trezentos mil couros, o que era, certamente, mais factível!72

Rincones A sistematização das operações levara a que a produção corambrera conhecesse verdadeiro salto de qualidade, de atividade nômade para prática centrada em locais precisos, dotados de instalações semipermanentes e permanentes. Sobretudo na Banda Oriental, era habitual que os corambreros embretassem grandes manadas de gados selvagens em rincões formados por arroios, rios, lagoas, etc., onde mantinham estabelecimentos de extração de couro, com ranchos, em geral de couro, barracões, estaqueaderos e currais. Muitas dessas regiões terminariam sendo identificadas pelo nome dos faeneros que as exploraram habitualmente. “Algunos de estos faeneros dieran sus nombres propios a los parajes donde rea71 72

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Cf. MILLOT; BERTINO, Historia económica del Uruguay, 1991. p. 51. SEPP S.J., padre Antônio. Viagem às missões jesuíticas e trabalhos apostólicos. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo, Edusp, 1980. p. 143. Mário Maestri

lizaban sus vaquerias, tales como los de Vera, Jofré (Cufré), Toledo, Pando, Maldonado, Rocha, Garzón, Narvaez, Polanco, Navarro, don Carlos, Pavón, etc.”73 Em História de la ganaderia en el Uruguay (1574-1971), o historiador argentino Anibal Barrios Pinto lembra que os portugueses “habían levantado hacia 1694 los primeiro establecimentos corambreros semipermanentes em la banda septentrional del Río de la Plata. En total, unos 50 ranchos sobre el Río del Rosario y otra cantidad similar en Santa Lucía, a los que resguadaban con sus correspondientes estacadas del posible ataque de los indígenas o de los animales slevajes.”74 Os índios das Missões organizavam igualmente grandes vaquerias na Banda Oriental, para recolher gados e couros para as Missões do Alto Uruguai. Os animais eram também caçados nas importantes vaquerías del Mar, formadas entre os rios Jacuí, no atual Rio Grande do Sul, e o rio Negro, no atual Uruguai. Piratas ingleses, franceses e holandeses desembarcavam também na costa atlântica do atual Uruguai na busca dos mesmos produtos, como assinalado. A Banda Oriental seguiu desconhecendo ocupação estável, à exceção sobretudo da Colônia do Sacramento. Essa realidade começou a ser modificada apenas com a fundação de Montevidéu, em 1724, e a consequente distribuição de terras na sua redondeza, para a organização de chácaras e estâncias. Porém, até os anos 1760 as regiões realmente controladas pelos moradores daquele do burgo não excediam “una franja menor de 100 kilómetros que iba desde el arroyo Maldonado en el Atlántico hasta el río San Salvador en su desembocadura en el río Negro”.75 73

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75

CASTELLANOS, Alfredo. Breve historia de la ganaderia en el Uruguay. Montevideo: Banco de Crédito, 1972. p. 143. PINTO, Anibal Barrios. Historia de la ganaderia en el Uruguay (1574-1971). Montevideo: Talleres Gráficos de la Comunidad del Sur, 1973. p. 31. CESAR, Guilhermino. Origens da economia gaúcha: o boi e o poder. Porto Alegre: IEL: Corag, 2005. p. 67. MILLOT; BERTINO, Historia económica del Uruguay, 1991. p. 24.

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A escassez de gados alçados, no contexto da expansão do mercado europeu, ensejou as primeiras estâncias de criação de gado no Prata. Não raro, os accioneros e faeneros estabeleceram-se como criadores, simplesmente ocupando ou requerendo as terras que visitavam para suas atividades ou nas quais haviam estabelecido seus acampamentos. “Los emplazamientos das vaquerías, frecuentados la mayoría de las veces por los mismos accioneros, fueran tomando el nombre de éstos; muchos se radicaron definitivamente y comenzaron a amansar ganado [...].”76 Com o desenvolvimento da economia corambrera e, a seguir, criatória, diante da carência e carestia da mão-de-obra livre, pelas razões acima relatadas, Montevidéu se transformou em porto escravista e a população africana escravizada se desenvolveu nas zonas urbanas e também no interior. Em 1805, dos 9.359 moradores de Montevidéu, 30% seriam africanos ou afro-descendentes, um perfil demográfico que sofreria importante transformação a partir da onda imigratória iniciada em 1830.77 A transição da atividade extrativista para a produtiva, por mais extensiva que fosse, colocava a questão da propriedade dos gados, delimitada pelas fronteiras dos territórios ocupados. Isso determinou que as fronteiras das propriedades passassem a ser controladas por posteiros e delimitadas “mediante zanjas o cercos de pepsinas”. Essa transição teria ocorrido “alrededor de 1720 para la Banda Oriental y 1728 para la Ocidental, con el repartimiento de ‘suertes de estancias’ por Pedro de Millán, sobre el arroyo Pando [...]”,78 o que não quer dizer que nas regiões periféricas e mais distantes, como a Banda Norte do Uruguai, as operações não seguissem sendo realizadas, sob licença ou não, por décadas, além

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CASAL. El modo de producción colonial en el Río de la Plata, p. 67. Cf. MILLOT; BERTINO, Historia económica del Uruguay, 1991. p. 27. CASAL, El modo de producción colonial en el Río de la Plata, p. 67 Mário Maestri

desses anos, em terras tidas como públicas ou em imensas propriedades, verdadeiras reservas de gado chimarrão.79

A faina de couros no Rio Grande do Sul no século 18 Em 1626, jesuítas cruzaram o rio Uruguai e fundaram missões a partir do noroeste do atual Rio Grande do Sul, sobretudo com populações guaranis. Em 1634, importaram 1.500 bovinos para formar os rebanhos dos dezesseis pueblos do Tape. Em 1636-38, os animais foram abandonados pelos missioneiros, que se retiraram da região, assaltados pelos paulistas. O gado multiplicou-se, atravessou os rios JacuíIbicuí, formou a enorme vacaria do Mar, entre o oceano e os rios Jacuí e Negro, como visto. A crise açucareira levou a Coroa portuguesa a retomar a procura das minas e lançar novas iniciativas econômicas. Em 1680, fundou a colônia do Sacramento, para retomar as trocas de cativos, manufaturados e produtos da costa do Brasil pela prata andina, permitidas pela Coroa hispânica até o fim da União Ibérica, como também já proposto. Os couros trazidos pelos espanhóis de Buenos Aires ou do interior da banda oriental do Uruguai por portugueses, espanhóis ou charruas garantiram o sucesso da cidadela. Atraídos pelos portugueses, nativos charruas conduziam animais para a Colônia. Em 1682, os missioneiros retornaram ao Rio Grande para barrar o saque das vacarias e o expansionismo lusitano. Os Sete Povos assentaram-se fortemente na extração animal, inicialmente, e na sua criação, a seguir. Apenas com a regressão do pastoreio fortaleceu-se a agricultura missioneira. Inicialmente, a exploração das vacarias pelos pueblos deu-se sob licença dos padres superiores, para não esgotar os gados. Os missioneiros jamais praticaram o abate geral de animais pelo 79

Id. ib. 68.

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couro, sebo e graxa, deixando as carcaças nos campos, como os corambreros e nativos, e trabalhando sobretudo para Sacramento e Buenos Aires, como assinalado.80 Como vimos, nos anos 1690, exagerando enfaticamente, o padre Sepp escrevia que, após dois meses, os vaqueiros retornavam com “cinqüenta mil vacas”, para a “a alimentação” anual de sua missão. Contava também que, nos navios da ordem, partiam trezentos mil couros, de “touros mais crescidos” e não de “vacas”, certamente para manter a “procriação indispensável”. Preocupados com a perenidade dos rebanhos, os missioneiros fundaram, em 1700, a vacaria dos Pinhais, no Planalto, nas margens do rio Pelotas.81 Quando os gados das vacarias do Mar e dos Pinhais foram esgotados pelos coureadores e tropeiros, fogueados pela descobertas das minas (1695) e pela fundação da vila de Rio Grande (1737), os vaqueiros das missões passaram a criar animais nas estâncias dos diversos pueblos. As grandes estâncias missioneiras, delimitadas por rios, riachos, matas, etc., subdividiam-se em sedes e postos, com aldeias de dez a doze famílias, povoados por posteiros, que domesticavam e tratavam os animais nos rodeios e cuidavam que não fugissem. No Planalto, próximas das missões, estâncias menores invernavam o gado trazido pela Boca do Monte (atual Santa Maria) e pelo Boqueirão (atual Santiago).82

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Cf. PORTO, Aurélio. História das missões orientais do Uruguai. 2 ed. rev. e melhor. pelo p. L.G. Jaeger. Porto Alegre: Selbach, 1954. I e II. Cf. SEPP S.J., padre Antônio. Viagem às missões jesuíticas e trabalhos apostólicos. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo, EdUSP, 1980. p. 143. Cf. BRUXEL, Arnaldo. Os trinta povos guaranis. Caxias do Sul, Universidade de Caxias do Sul, Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes, Sulina, 1978; Mário Maestri

Em busca do Rio Grande Na segunda metade do século 17, paulistas, lagunenses, sacramenteneses, etc., entravam em lanchões pela barra do rio Grande para trocar cativos, couros, etc. com os nativos e produzir algum charque nas margens da lagoa. Desde os anos 1720, foram estabelecidas estâncias em Viamão e ao longo do Estreito – Tramandaí, Osório, Torres, etc. – para apoiar o envio, desde a colônia de Sacramento, sobretudo de mulas, inicialmente, para Laguna, em Santa Catarina, e, a seguir, pelo “Caminho de Viamão”, através do nordeste do Rio Grande do Sul. A produção de couros, graxa e sebo foi igualmente praticada pelos primeiros estancieiros. A valorização dos gados da região esteve entre as razões avançadas na defesa do estabelecimento de uma colônia nas margens do rio Grande. Em 1726, o governador de São Paulo, Rodrigo César de Meneses, lembrava que uma povoação naquela região permitiria a extração de gado capazes de sustentar todo o Brasil e que pelo rio Grande podiam “entrar embarcações grandes a carregar courama para o Reino enquanto se não cultivavam açúcar e fumo por ser a terra a mais fértil’”.83 No ano seguinte, Davi Marques escrevia sobre o interesse de ocupar aquela paragem: “As utilidades que a Fazenda Real pode ter neste posto são o domínio da campanha; o negócio com os catelhanos, índios tapes e minuano; a courama da campanha; os dízimos dos lavradores e criadores; [...] o gado e cavalgaduras que poderão entrar para toda a capitania de São Paulo, abrindo-se o caminho para os campos de Caraituva [...]..”84 Em fevereiro de 1737, o brigadeiro José da Silva Pais (1679-1760) chefiou expedição que, após socorrer Sacramento, sitiada pelos espanhóis, fundou na margem meridional do rio 83 84

MONTEIRO, A colônia do Sacramento, p. 291. PEREIRA, Davi Marques. “Relação das vilas da costa do mar do Rio Grande até a praça de Santos”. A.H.U. Rio de Janeiro, caixa 4 (1726-1727), apud SANTOS. Economia e sociedade do Rio Grande do Sul, p. 15.

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Grande o presídio (sede de presidência) de Jesus-Maria-José, onde se instituiu a Comandância Militar do Rio Grande de São Pedro, dependente do Rio de Janeiro, com autoridade apenas sobre as terras ao sul da barra do rio Grande. Os campos de Viamão e o Estreito dependiam da capitania de São Paulo. Duzentos nativos foram trazidos de São Paulo para trabalhar na fundação da povoação. Nativos apoiaram igualmente a construção das fortificações no porto, no Estreito, em São Miguel, etc. A remuneração e o tratamento dos nativos seriam tão abusivos que, já em janeiro de 1738, 34 nativos e quatro nativas fugiam das fortificações, assinalando o status semisservil que conheciam. O estabelecimento foi apoiado pelas comunidades minuanas que forneciam sobretudo gado. Silva Pais mandou também trazer da Colônia 150 soldados “adestrados nas lides campeiras, tais como domações, rodeios, prepara de charque, etc.”, para introduzir a guarnição nos trabalhos do campo, muito importantes em virtude da fundação das estâncias reais de Bojuru e Capão Comprido.85

Couros & Couros As operações de corredorias de gado para alimentar as populações locais e, sobretudo, a faina de couros, segundo parece, praticadas pelos moradores que possuíam algum capital, aceleraram-se, constituindo-se importante atividade nos anos seguintes à fundação de Rio Grande. No geral, a prática constituía uma extensão das vaquerías realizadas nos pampas de Buenos Aires, de fins do século 17 e, sobretudo, na Banda Oriental, por portugueses, charruas, etc. a serviço da colônia do Sacramento, desde 1680, e, a seguir, também por espanhóis, como assinalado. Como já dito, ela exigia importantes capitais. 85

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SANTOS, Economia e sociedade do Rio Grande do Sul, p. 12. Mário Maestri

Em 5 de julho de 1738, Manuel Gomes Pereira relatava ao governador André Ribeiro Coutinho que o sertanista Cristóvão Pereira de Abreu entregara-lhe sessenta vacas, por 240 réis a cabeça, compradas ao “gentio” minuano, pretendendo receber dos cofres públicos, por outras, 480 réis, já que esse seria o preço pago “naquele porto”. O oficial notificava que, apesar de os minuanos “já se acham alguma coisa retirados pelo rigor do inverno e por serem” tempos em que realizavam seus “tupambaés” (coisas religiosas), “nunca de todo deixam de vir alguns”, trazendo “mais éguas do que cavalos” para trocá-los por mercadorias.86 No livro de registro dos atos dos primeiros comandantes militares do presídio do Rio Grande de São Pedro de 1737 a 1753, estão assinalados diversos requerimentos e instruções administrativas relativas às operações de “fainas de couro” e “corredorias” de gado. A precocidade do primeiro registro, de fins de 1737, demarca apenas a normalização de uma atividade anterior à fundação do presídio. Efetivamente, talvez em fins de novembro ou inícios de dezembro de 1737, José da Costa pedia licença para mandar “pessoas” fazer “suas fainas de couros nestas campanhas” e “corredoria de gado vacum”. Requeria a facilidade de satisfazer aos “quintos reais” (20%) diante de “oficial” designado, no momento de “carregar (os couros) em a sua embarcação ou em outra qualquer”, certamente nas margens da lagoa, para serem transportados “por esta barra fora”, isto é, pelo porto do rio Grande, para o Rio de Janeiro. O pedido devia-se à “descomodidade e prejuízo” decorrentes da obrigação de “descarregar as embarcações” na cidadela, “depois de estarem” já “abarrotadas”, para a contagem dos couros. Pedia também que, ao “seguir viagem” para seu destino, lhe fosse passada “certidão” de pagamento dos quin86

Anais do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. v.1. Porto Alegre: IEL/SEC/ DAC, 1977. p. 70

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tos reais e das taxas pagas sobre outras mercadorias”. A licença concedida foi lançada em 9 de dezembro de 1737, desde que os quintos sobre os couros e charques exportados fossem pagos no porto de Rio Grande e fosse apresentada “certidão” sobre o gado que entrasse pela “Guarda do Arroio de Taim”.87

Exigências abusivas Em inícios de 1738, o licenciado Sebastião Gomes de Carvalho, em associação com o tenente Antônio Gonçalves, extraiu oitenta “couros de touros” desde as margens da lagoa Mirim, transportados para Rio Grande pela “falua real”– barcos de “boca aberta, proa e popa afiladas”, de “dois mastros e velas latinas triangulares”, usados em rios, lagoas, etc. Sebastião de Carvalho protestava junto ao governador, porque o comissário da expedição lhe cobrava 320 réis pelo transporte de cada couro, preço que dizia pedirem “embarcações particulares” para levá-los do Rio Grande ao Rio de Janeiro. Sebastião de Carvalho reclamava, igualmente, que aquele oficial exigia o pagamento do transporte também sobre os couros entregues em pagamento aos quintos reais, nas margens da lagoa. Em resposta ao pedido de esclarecimento de André Ribeiro Coutinho, o comissário da expedição respondeu que era prática quintar os couros em Rio Grande e que se cobrava, tradicionalmente, por aquele transporte, 240 réis por couro de touro. Jurava não ter pedido aquela soma ao licenciado...88 Por sua vez, Francisco Lopes da Silva e o guarda-mor Antônio Gonçalves oficiavam propondo terem obtido licença para mandar, em setembro ou outubro de 1738, canoa para as margens da lagoa Mirim, de onde voltara “carregadas” de couro, em meados de dezembro – um “faena” de três a quatro meses, portanto. Pretendendo fazer o mesmo, novamente 87 88

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Id. ib. p. 46. Id. ib. p. 58 Mário Maestri

sem se servir do “serviço das embarcação” real, requeriam que lhes fosse dada livre passagem pelo sargento que governava aquela guarda. O governador Coutinho acedeu ao pedido, em novembro, lembrando que a canoa não deveria “se apartar jamais da costa que correr pelas partes das nossas terras, desde o arroio de Thay (Taím) até a entrada do Rio de São Miguel”.89

Gado e couros escassos O litoral rio-grandense e as margens das lagoas são terras pobres, incapazes de sustentar grande número de cabeças de gado, apesar da salinidade de seus pastos, apreciados pelos animais. Muito logo, os gados da região começaram a extinguir-se, dificultando a própria alimentação das tropas e dos moradores de Rio Grande, o que obrigou o governador a proibir, parcial ou totalmente, as “couramas” na região, permitindo apenas a captura de gado para o corte. Nesse sentido, em dezembro de 1738, João de Távora afirmava que não havia mais gado, já que há dois meses sua “tropa” e as demais dedicavam-se a “correr vacas”, em razão de o “bando” do governador proibir a “faina de couros”. Como João Távora tinha crédito na praça, que só podia ser pago com “trabalho de campo”, rogava que pudesse “ocupar os peões seus devedores em fazer alguns couros”. Segundo a informação fornecida pelo comandante da guarda do Chuí ao governador, que anuiu ao pedido, havia poucas vacas e touros, que andavam “levantados”, rendendo, portanto, pouco as “corredorias”.90 Em 22 de dezembro de 1738, procurando garantir reserva de um gado que se esgotava, junta sob a presidência do governador André Ribeiro Coutinho decidia que “desde a Guarda do Xueu (Chuí) e Forte de São Miguel até os passos de Tehim (Taím), Albardão e Mangueira pelas margens do 89 90

Id. ib. p. 75. Id. ib. p. 76.

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mar e Lagoa de Merim, se não trabalhe mais na faina dos couros nem da corredoria das vacas [...], nem haja tropa alguma no dito campo, nem se consentirá mais demora de peões ou outra qualquer pessoa que há de pernoitar nas marchas que se fizerem deste Estreito para os nossos limites e destes para o Estreito [...].”91 Porém, segundo parece, a produção clandestina de couro seguiria e a pressão para contornar as proibições legais seriam fortes. Em janeiro de 1739, o coronel Cristóvão Pereira de Abreu lembrava que, “nos campos da parte do Norte” havia gado originado de novecentas cabeças introduzidas havia alguns anos, de propriedade real. Dizia que o gado não aumentara significativamente, em razão de “descaminhos que tem a falta de arrecadação”, e oferecia-se para “correr” “à sua custa”, para mais de mil e quinhentas cabeças, levando-o à estância do Bujuru.

Um bom negócio Cristóvão Pereira propunha também recolher apenas as vacas e sugeria que extrairia uma média de um couro de touro por vaca entregue. Pedia como remuneração o direito de fazer “courama” dos “touros” que, pela idade, não tivessem outra serventia do que aquela. Prometia priorizar a retirada do gado e pagar os quintos correspondentes, respeitando as vacas e os touros que pudessem ser amansados (como animais de tração). Caso a proposta fosse aceita, ajustaria os peões imediatamente, visto ser aquele o tempo “mais próprio” para a operação, ou seja, o verão, como proposto. Seu pedido foi deferido sem quaisquer dificuldades, já que, segundo registrado pelo comandante da povoação, o proposto prestaria grandes serviços ao rei.92 91 92

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Id. ib. p. 78. Loc. cit. Mário Maestri

Seis meses mais tarde, em 19 de julho de 1739, o coronel oficiava novamente ao comandante Coutinho, afirmando que os dezesseis “peões castelhanos” conchavados com seus respectivos cavalos haviam se internado por dezenove dias, achando apenas “alguns touros”, do gado que afirmara existir. Requeria, portanto, o direito de courear aqueles animais, pagando o quinto dos couros e metade do sebo, já que havia desenbolçado 400 mil-réis em salários com os peões – 25 milréis por cabeça, ou seja, cinquenta vacas, por peão, segundo o preço exagerado que Coutinho pedira, no ano anterior. O comandante acedeu ao requerimento, considerando que “os touros se não” podiam “sujeitar para se domarem” e estavam “expostos” a serem descaminhados por “passageiros e estancieiros pelo interesso do couro e sebo”, sem o pagamento do devido ao rei. Os couros deveriam ser quintados em Rio Grande, carreando o gado e cumprindo a promessa inicial na medida que pudesse. No frigir dos ovos, toda a operação reduziu-se à concessão excepcional a Cristóvão Pereira do direito de extrair couros da região em questão, sob o pagamento do quinto exigido pela lei.93 Em 1817, em sua Corografia brasílica, o padre Aires de Casal lembrava que os “touros” deveriam ser mortos para as “coiramas” “de cinco anos para cima”.94

Primeiros lavradores Um regimento de seiscentos soldados dragões protegia a nova povoação, seu porto, o litoral. Para povoar os territórios, chegaram a Rio Grande casais sobretudo de Sacramento e de Laguna, que se estabeleceram na cidadela e nas terras próximas distribuídas para os que tinham condição de povoá-las, sobretudo com cativos africanos. Algumas fazendas e currais 93 94

Id. ib. p. 105. AIRES de CASAL, padre Manuel. Província do Rio Grande do Sul, ou de São Pedro. AIRES de CASAL, padre Manuel. Corografia brasílica ou relação histórico-geográfica do Reino do Brasil. São Paulo: Cultura, 1943. Tomo I. p. 95.

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organizaram-se nas vizinhanças para apoiar as tropas, produzir couro, sebo, língua e algum charque. Nas proximidades, organizaram-se roças e plantações de trigo, centeio, cevada, milho, feijão, ervilha etc., para o abastecimento da vila e alguma exportação. Primeiro, os trigos sulino alimentavam a população da região e, a seguir, foram vendidos também no Rio de Janeiro, na Bahia, em Pernambuco e Portugal. Em 1817, em Corografia Brasílica, o padre Aires de Casal assinalava os principais gêneros cultivados pelos lavradores: “O terreno é apropriado para diversidade de produções. Cultiva-se (sic) com grande proveito trigo, centeio, cevada, milho, arroz, alpiste, legumes; melancia, melões, cebolas, com quase todas as hortaliças da Espanha; e ainda algum algodão, mandioca e canas de açúcar. O cânhamo e o outro linho tomam grande crescimento.”95 Essa produção permitiu uma acumulação de capitais que financiou uma primeira importação sistemática de trabalhadores escravizados. Segundo parece, nesses anos, de dois a dez cativos trabalhavam em campos de trigo de dez a cem hectares. Essa produção agrícola e triticultora exigia importante quantidade de animais de tração, o que explica a reticência dos governadores de Rio Grande ao permitirem a morte de touros jovens, capazes de serem domesticados para a lavra dos campos, para o transporte, etc. A baixa qualidade genética dos animais exigia que as plantações tivessem terras suficientes para a criação de bois de tração e de animais para alimentação. A existência de algumas centenas de cabeças de animais em propriedades do século 18 delimita explorações mistas, dedicadas à agricultura e à criação animal, mesmo que algum couro, sebo e graxa fosse comerciado.

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AIRES de CASAL, padre Manuel. Província do Rio Grande do Sul, ou de São Pedro. AIRES de CASAL, padre Manuel. Corografia brasílica ou relação histórico-geográfica do Reino do Brasil. São Paulo: Cultura, 1943. Tomo I. p. 76-104. Mário Maestri

Em 1718, os “particulares” da Colônia do Sacramento, à exceção dos casais, apenas chegados, plantaram 46 alqueires de trigo (635 litros) e colheram 548 (7562 litros) com uma produtividade média de um para 11.9. Segundo parece, em 1780, a produtividade do grão seria de um para 8,6. Ao menos, o governador Sebastião Xavier da Câmara afirmava, naquele ano teriam sido semeados no Rio Grande em torno de sete mil alqueires de trigo e colhidos uns sessenta mil. Nesse então, o primeiro centro produtor seria Rio Grande, seguido de Porto Alegre, do Estreito e de Mostarda. No ano seguinte, teriam sido plantados 8.982 e colhidos 53.897 alqueires. 96 ou seja, seis por um, o que daria uma média de uns nove alqueires por um, se aproximamos os três dados. Porém, em 1694 Francisco Naper, governador da colônia do Sacramento, propunha que, naquele ano, o trigo rendera entre quarenta e cinquenta, por alqueire plantado.97

Terras boas, Terras Cansadas Escrevendo momentos antes da independência, o charqueador Antônio Gonçalves Chaves afirmava, num momento em que já declinava a produção, que o trigo dava-se “maravilhosamente” na província e que não era “raro em anos abundantes dar 70 para um”.98 Na mesma época, o naturalista Auguste de Saint-Hilaire propunha que no litoral norte do Rio Grande do Sul o trigo cultivado dava na “relação de 10 a 30 por um”. Na sua nota final sobre a agricultura em Rio Pardo, grande centro triticultor sulino, assinalou que o trigo se

96

97 98

Cf. PIMENTEL, Fortunato. Agricultura e pecuária. Aspectos gerais de Porto Alegre. Porto Alegre: s.ed., 1945. p. 273. v. 1; SANTOS, Economia e sociedade do Rio Grande do Sul, p. 93 et seq. MONTEIRO, A colônia do Sacramento, p. 122. CHAVES, José Antônio Gonçalves. Memórias Ecônomo-políticas sobre a administração pública do Brasil. 4. ed. São Leopoldo: EdiUnisinos, 2004. p. 235.

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reproduzisse de “dez a cinqüenta por um, cinqüenta nas boas terras, cerca de dez nas terras já fatigadas”.99 Em Notas estatísticas sobre a produção agrícola e carestia dos gêneros alimentícios no Império do Brasil, Sebastião Ferreira Soares era ainda mais loquaz sobre a fertilidade das terras rio-grandenses: “A fertilidade das terras era tal que, sem auxílio de estrumes, cada alqueire de trigo semeado produzia, nas regulares colheitas, na razão de 80 por 1; e quando se dizia colheita superior era efetuada ela na de 100 e mais por 1, e assim continuou a ser por muitos anos; de sorte que a província do Rio Grande foi denominada o seleiro do Brasil”. Para ele, antes de se abater a ferrugem sobre os trigais sulinos, de 1803 a 1810, a capitania exportava em torno de 460 mil alqueires, e nos anos anteriores, ainda mais. Com a enfermidade e a queda da produção para “55 e 40 alqueires por 1”, os agricultores abandonaram o trigo, “visto estarem habituados” aos resultados anteriores, apesar de que nos Estados Unidos, “a produção do trigo” ser “estimada na razão de 20 alqueires por 1”.100 Com as novas roças e plantações, apoiadas no trabalho familiar e escravizado, punha-se fim a uma economia assentada quase exclusivamente na caça predatória dos gados pelo couro, sebo graxa e na exportação de animais vivos. Não exigindo os volumosos capitais necessários para as tropas, sobretudo as plantações de trigo permitiam a fixação de um maior número de luso-brasileiros, que passaram a comprar cativos para a constituição de pequenos plantéis de trabalhadores escravizados. Inicialmente, essa ocupação ficou no geral restrita ao litoral e às proximidades do porto de Rio Grande. 99

100

86

Cf. SAINT-HILAIRE, Auguste de. (1779-1853). Viagem ao Rio Grande do Sul: 1820-21. Porto Alegre: Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EdiUSP, 1974. p. 23 e 207 SOARES, Sebastião Ferreira. Notas estatísticas sobre a produção agrícola e carestia dos gêneros alimentícios no Império do Brasil. Rio de Janeiro: IPEA/ INPES, 1977. p. 175. Mário Maestri

Fazenda chimarrã O declínio do gado chimarrão levou a que missioneiros, portugueses e espanhóis organizassem fazendas de criação animal, destinadas à produção de animais pela carne e, sobretudo, pelo couro, graxa e sebo. Em geral, a historiografia platina denomina essas explorações de fazendas chimarrãs. No contexto da ampla disponibilidade de terra, restrita quase apenas pela ameaça nativa e pela defesa dos missioneiros de suas possessões, o estabelecimento de uma estância dependia sobretudo da obtenção legal ou de fato de terreno suficiente para a exploração, de gados para povoá-las e, sobretudo, da capacidade de contratação ou, principalmente, da compra de mão-de-obra escravizada.101 Como proposto, o uso necessário da mão-de-obra escravizada devia-se à possibilidade de o trabalhador livre migrar para a produção independente, em razão da abundância de terra a ser ocupada, mesmo no contexto do monopólio real das terras americanas após a expulsão das populações nativas. Essa autonomia relativa, que impedia a formação de um mercado de trabalho livre dominante, valorizava a força de trabalho assalariada. Os gados necessários para o início de uma exploração pastoril provinham dos animais alçados das próprias terras e da região, caso existissem; de animais roubados nas vaquerías das Missões; de animais comprados, etc. Portanto, os principais gastos davam-se com a obtenção, treinamento e controle da mão-de-obra escravizada, segundo parece, nos primeiros tempos, constituída sobretudo por africanos recém-importados, eventualmente ainda jovens e muito jovens, realidade sobre a qual possuímos ainda pouca informação. 101

MAESTRI, Mário. O cativo, o gaúcho e o peão: considerações sobre a fazenda pastoril rio-grandense. (1680-1964). MAESTRI Mário. (Org.) O negro e o gaúcho: Estância e fazendas no Rio Grande do Sul, Uruguai e Brasil. Passo Fundo: EdiUPF, 2008. pp. 169-271.

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Desde os primeiros tempos, as terras, com registros ou não de propriedade, foram comerciadas, em ambos os lados do Plata. É abusiva a proposta de que, no Brasil, elas passaram a constituir “mercadoria” apenas com a Lei de Terras. “A partir da Lei de Terras de 1850, a terra no Brasil foi elevada à condição de mercadoria, institucionalizando-se a propriedade privada do solo, através da compra.”102 Na Colônia e o Império, as sesmarias e as próprias posses foram objeto de compra e venda, não alcançando preço apenas nas terras que não produziam renda fundiária, pela distância, qualidade, etc. Porém, a enorme abundância inicial de terras ensejava que seu preço fosse diminuto em relação ao gado e, sobretudo, aos trabalhadores escravizados. No Rio Grande, até a entrada do século 19, um cativo na força de seus anos valia uma pequena propriedade e muitas cabeças de gado, o que transformava os criadores mais em senhores de cativos do que senhores de terras.103

Charqueadas A produção pastoril sulina acelerou-se a partir de 1780, após o estabelecimento de grandes charqueadas voltadas para a produção e exportação de couros e carnes secas, o que valorizou fortemente os gados e ensejou rápida ocupação da Campanha, da Fronteira, das Missões, dos Campos Neutrais, do norte da Banda Oriental. Em 1817, na já referida Corografia brasílica, o padre Aires de Casal registra o domínio inconteste da produção charqueadora sobre a economia pastoril sulina: “Tirada duas porções menores, uma consumida pela população do país (da província), outra sobre pela província 102

103

PESAVENTO, S. J. RS: A economia & o poder nos anos 30. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980. p. 17. DAL BOSCO, Setembrino. A Fazenda Pastoril no Rio Grande do Sul - 17801889. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade de Passo Fundo, 2008.

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Mário Maestri

de São Paulo para os açougues da Metrópole (tropas), o mais é charqueado (isto é, salgado e seco sem ossos ao sul), e transportado aos principais portos do continente.”104 A singular capacidade de expansão das fazendas sulrio-grandenses em relação às propriedades do Prata parece dever-se à facilidade portuguesa de acesso à mão-de-obra escravizada. Em fins do século 18, inícios do 19, Felix de Azara e José Artigas tentaram contornar essa dificuldade propondo distribuição de terras, na Banda Norte do Uruguai, entre gaúchos pobres, negros livres, nativos aculturados. No novo contexto, as práticas da produção pastoril evoluíram relativamente, com a difusão crescente dos rodeios para o amansamento dos rebanhos, marcação e castração dos animais, etc. Manteve-se o caráter original fortemente extensivo da produção, com a lotação animal dependendo sobretudo da capacidade de sustentação dos campos nativos e das aguadas naturais das fazendas. O caráter extensivo da economia pastoril determinava que a reprodução animal dependesse, como assinalado, das condições dos campos e climáticas. Era relativamente escassa a intervenção humana na criação, constituindo-se as propriedades com um número relativamente reduzido de trabalhadores, em geral um para de seiscentos a novecentos animais.105 Em 1808, quando a produção saladeira já se estabilizara, o contratador transmontano Manoel Antônio de Magalhães registrou que boa parte dos fazendeiros não realizava ainda rodeios, sistematicamente, em razão das “grandes despesas” necessárias “em piões (sic) e cavalos”: “[...] há muitas fazendas, todas alçadas, e a maior parte dos fazendeiros, ainda os 104

105

AIRES de CASAL, padre Manuel. Província do Rio Grande do Sul, ou de São Pedro. AIRES de CASAL, padre Manuel. Corografia brasílica ou relação histórico-geográfica do Reino do Brasil. São Paulo: Cultura, 1943. Tomo I. p. 96. Cf. MAESTRI, Mário. O cativo, o gaúcho e o peão: considerações sobre a fazenda pastoril rio-grandense. (1680-1964). MAESTRI, (Org.) O negro e o gaúcho: Estância e fazendas no Rio Grande do Sul, Uruguai e Brasil. Passo Fundo: EdiUPF, 2008. p. 169-271.

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mais ricos, apenas têm a quarta parte do gado manso [...] todo o mais é tão bravo como os touros de Portugal que vêm aos curros [...].”106 Em geral, no Rio Grande, para sustentar uma família, uma fazenda dominantemente pastoril necessitaria de, no mínimo, um pouco menos de dois mil hectares. No Prata, a unidade pastoril mínima era uma “suerte de estancia”, com 1.875ha, o que sustentava uns novecentos animais e permitia uma produção entre 45 e noventa animais por ano. Uma propriedade pastoril desta extensão sustentar-se-ia com o trabalho da unidade familiar, dificilmente podendo contratar um peão ou comprar um cativo. Podia ser definida como uma fazenda pastoril de subsistência.107 A fazenda pastoril latifundiária luso-brasileira do Rio Grande do Sul e da Banda Norte do Uruguai funcionou com alguns peões livres, mensalistas e temporários e um núcleo permanente de cativos campeiros. No Rio Grande do Sul, até possivelmente os anos 1880, ela constituiu em geral produção escravista mercantil, ensejando o caráter fortemente escravista do bloco social pastoril dominante regionalmente, que conformou o “partido brasileiro”, quando da independência, o “partido farroupilha”, quando da deposição do período regencial, e o Partido Liberal rio-grandense, a partir dos anos 1860. Bloco social dominante regional do qual participavam, de forma não hegemônica, os charqueadores, em razão do peso numérico diminuto, em relação aos criadores, apesar da maior capacidade unitária de inversão-acumulação de capitais. Em geral, a charqueada funcionava com uma média de 106

107

MAGALHÃES, Manoel Antônio. Almanak da vila de Porto Alegre, com reflexões sobre o estado da capitania do Rio Grande do Sul;. FREITAS, Décio. O capitalismo pastoril. Porto Alegre: EST, 1980. p. 79. WILLIMAH, J. C.; PONS, C. P. Historia uruguaya: de la Banda Oriental em la lucha de los impérios: 1503-1810. Montevideo: Ediciones de La Banda Oriental, 1977. p. 140

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Mário Maestri

sessenta a oitenta trabalhadores escravizados, ou seja, a força de trabalho necessária para propriedade de mais de quarenta mil hectares. Entretanto, as charqueadas contavam-se às dezenas, ao passo que os grandes criadores, aos milhares.108

108

EUZÉBIO.

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“Como continuación del Río Grande del Sur” La hacienda sul-rio-grandense esclavista en el norte uruguayo (séc. 19) Eduardo R. Palermo* [...] ao cruzar o outro lado do Jaguarão, o traje, o idioma, os costumes, a moeda, os pesos e medidas, tudo, até o outro lado do Rio Negro, tudo senhores, até a terra, é brasileiro. Diputado paulista Silva Ferraz, 1845

El naturalista francés Auguste Saint-Hilaire recorrió parte de los territorios del Estado Oriental, en 1821, y manifestaba: “Un grupo de oficiales portugueses, como el Coronel Galvão, se han hecho propietarios de estancias en esta provincia y las han poblado de animales. El gobierno debió ver, con placer, formarse estos establecimientos, por que los propietarios tendrán actualmente un interés personal en que la provincia siga perteneciendo a su soberano.”1 Esta era la constatación del proceso de repoblación de los campos uruguayos con posterioridad a la derrota militar de Artigas en 1820. Los *

1

92

Mestre em História pela Universidade de Passo Fundo, em 2008. Diretor da revista digital Estudios Históricos. Professor no Centro Regional de Profesores del Norte.Uruguai.([email protected]) SAINT HILAIRE, Auguste. Voyage o Rio Grande do Sul. In: Anales históricos. Montevideo: Intendencia Municipal de Montevideo,1961, p. 486. Tomo 4. Eduardo R. Palermo

territorios al norte del río Negro y en la frontera con Brasil, pasaron a ser ocupados por estancieros luso-brasileños en forma rápida y permanente hasta principios del siglo 20. Esos nuevos estancieros se hicieron de la propiedad de las tierras por medio de compras legales, de ocupación forzosa y desplazamiento de los ocupantes existentes, varios de ellos donatarios del reglamento de tierras de 1815, impulsado por Artigas desde Purificación, capital política de la Provincia Oriental, hasta 1819, cuando fue abandonada. El gobierno Cisplatino al mando de Lecor, veía con agrado la brasilerización de los territorios norteños, espacio poblado por grandes manadas de ganado cimarrón y pocos propietarios. Una motivación adicional lo configuraba el tratado de La Farola, firmado en 1817 entre el Cabildo de Montevideo y Lecor, por el cuál las autoridades orientales cambiaron los territorios al norte del Arapey por la construcción de un faro en la isla de Flores, el cuál mejoraría el acceso al puerto capitalino. La apropiación del territorio Oriental fue rápida y concebida con carácter de definitiva. Los historiadores uruguayos Sala, De la Torre y Rodríguez sostienen: “[...] los portugueses [sic] venían a quedarse. Venían a finalizar el viejo proyecto de expansión hasta las aguas del Plata […] fines económicos que atendía sobre todo a absorber la producción ganadera y saladeril en beneficio de los consumos de su esclavatura y de la expansión de los grandes ganaderos y saladeristas riograndenses.”2 En 1822 y 1823, se verifica en los campos del actual departamento de Artigas, la donación de 35 sesmarías a soldados y oficiales de las tropas portuguesas al mando de José de Abreu, incluido el propio oficial.3

2

3

SALA DE TOURON, DE LA TORRE y RODRÍGUEZ. Después de Artigas. (1820-1836). Montevideo. EPU. 1972. PEDRON, Olga. Departamento de Artigas, esbozo histórico. Artigas, Ed. Del autor. 1990. Figura la lista completa de los donatarios.

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La población esclavizada según el censo cisplatino Un nuevo instrumento de control fue ideado para determinar la presencia de propietarios e intrusos en todo el país: el censo de población en cada jurisdicción. Las circulares ordenando su realización se publicaron en septiembre de 1821. Lamentablemente en pocos lugares fueron realizados y la información de la que disponemos en la actualidad es fragmentaria. Los datos censales fueron relevados entre 1822 y 1824. Al norte del río Negro se conocen los censos de Cerro Largo, fragmentos del de Paysandú y los correspondientes a Tacuarembó. De su análisis se desprende una importante presencia de africanos y afrodescendientes esclavizados que, en términos porcentuales y con respecto a la totalidad de la población del país, marcan una nítida diferencia en relación a Montevideo, aunque en números absolutos, esa tuviese una población de esclavizados muy superior. Si bien los censos adolecen de defectos en la recolección de datos, debido a las imprecisión de recolección y al ocultamiento de información por parte de los encuestados – existía el temor de revelar la verdad debido a posibles cargas impositivas o contribuciones para sustentar el ejército –, ellos permiten aproximarnos a una realidad bastante diferente de la que se ha proyectado al presente. Es interesante anotar que en 1840, por ejemplo, se realizó un censo de población en el distrito de Cuñapirú – Corrales, departamento de Tacuarembó – fue uno de los tantos en los cuales el Juez de Paz debió realizar dos veces el registro pues en la primera instancia se ocultaron el número de agregados y peones. La segunda vez, el número total de pobladores se duplicó, por lo cuál el Juez adoptó como criterio aumentar en un 30 % todos los números. Es posible pensar que en los datos relevados entre 1822 y 1824 hayan ocurrido situaciones similares.4 4

94

AGN. Fondo Ministerio de Gobierno. Caja 927. Año 1840. Cf. BARRIOS PINTOS, Aníbal. Rivera, una historia diferente. Montevideo: MEC, 1985. p. 48-49. Eduardo R. Palermo

Paysandú en 1824 Hasta 1837, todo el territorio al norte del río Negro correspondía al departamento de Paysandú. En diciembre de 1823, los vecinos de Paysandú remitieron a Lecor una nota donde hacían constar los progresos en el área económica y social del departamento. Para ello, enviaban los resultados del censo y solicitaban que se creara un Cabildo y se elevara la población a la categoría de villa.5 Interesa destacar que siendo Paysandú el principal puerto y centro poblado sobre el río Uruguay medio, el distrito de “entre río Negro y Tacuarembó” fuese el más poblado, ya que allí no existían pueblos. Por otro lado, el número de habitantes registrados a diciembre de 1823 es prácticamente el mismo censado en 1824, cuyos números exponemos a continuación. Cuadro 1 – Población del departamento de Paysandú con sus distritos censales en 1823 Distrito

Población

Hogares

1264

194

373

74

Arroyo Negro

572

86

Las Flores

152

31

Paysandú (villa) San Francisco

Salsipuedes

251

38

Arroyo Malo

149

36

Tacuarembó Río Negro – Tacuarembó

387

50

1336

164

Salto (villa)

708

113

Arroyo Grande

151

22

Totales

5343

808

Fuente: Archivo General de la Nación. Libro 277 – Paysandú.

5

BARRIOS PINTOS, Aníbal. Paysandú en escorzo histórico. Paysandú: Intendencia Municipal de Paysandú, 1979, p. 105.

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Paysandú es descripta por José Brito del Pino, en 1826, como poseyendo de cinco a seis cuadras de ancho y unas nueva a diez de largo [cincuenta hectáreas] situadas en el declive de una cuchilla que cae hacia el Río Uruguay. Podemos suponer que sus casas fuesen de madera, barro y techo de paja, algunas con paredes de piedra, especialmente las pulperías, que eran muy numerosas, 39 hacia 1821 y 20, en 1825.6 Junto a Salto y Belén, eran las únicas poblaciones estables al norte del río Negro, todas sobre el río Uruguay, por lo cual el resto del territorio era un enorme espacio que se prolongaba hasta la región misionera. En un censo, probablemente de 1823, en la villa de Paysandú exclusivamente, se registraba un 9 % de trabajadores esclavizados, mientras que, en uno de los distritos de campaña, el “partido de Salsipuedes, arroyo Malo - Cardozo y Tacuarembó chico”, el porcentaje era de 22,4%.7 En otro censo de la villa, ahora de 1827, el porcentaje de cautivos había descendido al 4 %. Los trabajadores esclavizados y morenos libres eran en su mayoría originarios de Guinea y Angola, así como del territorio oriental y brasileños, muchos denominados como pardos figuran como oriundos del Paraguay.8 Disponemos de un censo de 1822, del partido de “Cuadras”, departamento de Paysandú – correspondería al distrito de Arroyo Malo –Tacuarembó del cuadro Nº 1, realizado por Hilario Pintos, ex-teniente de las tropas artiguistas y nombrado Alcalde territorial por Lecor. Del censo de los distritos 1 y 2 se desprende el siguiente resumen:9

6 7 8 9

BARRIOS PINTOS, Aníbal. Paysandú en escorzo histórico. Ob. cit. p.103-110. AGN. AGA. Padrones de Paysandú. Libro 277. Ibíd. Libro 277. Padrón del Partido de Quadras levantado por Hilario Pintos al 16 de abril de 1822. AGN. Montevideo. Libro de Padrones Nº 273.

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Eduardo R. Palermo

Cuadro 2 – Resumen general de los datos estadísticos del partido de Cuadras. 1822 Niños Niños peones esclavos esclavas caballos ganados Poblaciones varones mujeres 99 108 127 90 42 2624 9993 145 Fuente: Padrón del Partido de Quadras -16 de abril de 1822. AGN.Libro de Padrones Nº 273.

Despejada la información de las hojas censales, que se contradicen con el resumen, que figura en el original y que reproducimos arriba, obtenemos que de las sesenta familias registradas (las 145 figuran solo en el resumen que se expone en el cuadro Nº 2), 31 efectivamente contaban con cautivos, constituyendo un promedio de cuatro esclavizados por cada una. De esas 31 familias, doce figuran como portugueses, a modo de ejemplo: Salvador Paes, con diez esclavizados y cuatro peones, Antonio de Barros, 11 esclavizados y 2 peones, Juan Quirino, 7 esclavizados y 4 peones, Salvador Valiente 4 esclavizados y 3 peones. El resumen general del censo de Cuadras, contabilizando las dos hojas de registro, arroja las siguientes cifras: trabajadores esclavizados, 126; peones, 76; ganado vacuno, 6477; caballos, 1984. La proporción entre mano de obra libre y varones esclavizados, con relación al ganado vacuno, es de un trabajador para cada 40 animales. Es posible que la cantidad de ganado declarado sea apenas una pequeña parte del rodeo manso, las estancias recién estaban estableciéndose, y los verdaderos números eran ocultados para evitar cobro de impuestos. En “O cativo, o gaúcho e o peão: considerações sobre a fazenda pastoril rio-grandense”, para esos años y para Rio Grande do Sul, el historiador rio-grandense Mário Maestri manifiesta, según el informe del inglés Luccock, de 1818, que para cuidar de 834 a 667 animales se necesitaba en promedio un peón cautivo, y la dotación de los campos se calculaba, a lo largo del siglo 19, en unas 2,5 hectáreas para cada animal. En el mismo trabajo, el autor cita a Domingos José de Almeida, ministro del gobierno republicano en 1840, “Como continuación del Río Grande del Sur” La hacienda sul-rio-grandense esclavista en...

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con una estancia de 39 mil hectáreas, veinte peones y 18 mil reses, lo que daría un promedio de novecientos animales por trabajador.10 El número elevado de esclavizados varones puede indicar su empleo en otras actividades, especialmente si las estancias estaban organizándose, construyendo corrales, cercos de piedra, plantaciones y otros.

Los distritos de Tacuarembó en 1824 Los datos censales correspondientes a los actuales departamentos de Tacuarembó y Rivera fueron recogidos en enero y marzo de 1824.11 Su análisis interesa dado que es el registro más completo que hemos ubicado y nos permite constatar la fuerte presencia de población luso-brasileña y la dotación de esclavizados existente. El territorio se dividió en tres distritos: uno, entre Tacuarembó y Corrales; otro, entre los ríos Yaguarí y Corrales y un tercero, entre río Negro y Yaguarí. El resumen con los datos y las planillas están redactados en portugués y los cuadros censales, pasados a limpio, en español. De acuerdo al levantamiento la población total alcanzaba a 1.348 habitantes.12 El primer distrito, “vecindario del partido de Tacuarembó y Corrales”, fue relevado por el Juez Dionisio Porto, de origen luso-riograndense.

10

11

12

98

MAESTRI, Mário. O cativo, o gaúcho e o peão: considerações sobre a fazenda pastoril rio-grandense (1680-1964). En: MAESTRI, Mário (Org.) O negro e o gaúcho: estâncias e fazendas no Rio Grande do Sul, Uruguay e Brasil. Passo Fundo: UPF Editora, 2008, p. 205-208. Cf. BARRIOS PINTOS, Aníbal. Rivera en el ayer: de la crónica a la historia. Minas: Gráfica Berchessi, 1963, p. 73-80. Archivo General de la Nación – Ex Archivo General Administrativo. Caja 603. Carpeta 8. 1824. Eduardo R. Palermo

Cuadro 3 – Padrón distrito 1- Entre río Tacuarembó y Corrales Unidades censales 43

Hombres (propietarios) 40

Mujeres

Hijos

38

179

DependientesAgregados 14

Esclavos Total 128

399

Fuente: Hojas censales del Padrón de entre ríos Taquarimbo y Corrales. AGN. AGA. Caja 603. Carpeta 8. Datos elaborados por el autor.

Los datos permiten afirmar que el 74,5 % de las unidades censales poseían esclavizados, discriminándose de la siguiente forma: 53 % entre uno y tres esclavizados; 22 % entre cuatro y seis; 18,7 % entre siete y nueve; y 3% más de diez esclavizados. Como en todo el censo, hay una marcada presencia de apellidos de origen luso-brasileño, figurando entre otros el Teniente de milicias de Rio Pardo, Antonio Pinto, quién adquirió, en Montevideo, el rincón de Batoví Dorado, en febrero de 1822.13 La figura del agregado, mencionada en todos los censos, podría ser definida como una persona que vivía en forma temporal o permanente en la estancia, sin ser reconocido como hijo, aunque probablemente podría tener lazos de familia o de amistad con el propietario. Sus tareas consistían en colaborar en las distintas tareas rurales sin percibir remuneración mas que el alojamiento y el alimento. El segundo padrón, “mapa del distrito de entre los ríos Yaguarí y Corrales”, fue ordenado por el Juez Valentín Sáenz, en enero de 1824. Valentín y Félix Sáenz eran antiguos propietarios de origen hispano-criollo, con grandes estancias en la zona desde el período colonial, habiendo recuperado sus campos durante el régimen cisplatino. El censo fue realizado por Francisco Antunes Maciel, juez comisionado. El mismo pertenecía a una familia luso-brasileña, radicada en Pelotas, con extensas estancias en territorio oriental, cercanas a la frontera.

13

BARRIOS PINTOS, Aníbal. Ob. cit. p. 25.

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Cuadro 4 – Padrón distrito 2- Entre ríos Yaguarí y Corrales Unidades censales 30

Hombres (propietarios) 30

Mujeres

Hijos

26

107

DependientesEsclavos Total Agregados 149 123 435

Fuente: Hojas censales del Padrón de entre ríos Yaguarí y Corrales. AGN. AGA. Caja 603. Carpeta 8. Datos elaborados por el autor.

Al igual que en el distrito 1, el 86,7 % de las unidades censales poseían trabajadores esclavizados, discriminándose así, entre um y tres esclavizados: 43,3 %, entre cuatro y seis: 36,7%, entre siete y nueve: 10 % y más de diez esclavizados el 10%. Entre los pobladores figuran oficiales portugueses, como el Alférez Antonio José de Melo, con cuatro esclavizados y diez dependientes; Luciano José de Vargas, con tres esclavizados y treinta dependientes, sumando su unidad censal, en total, cuarenta personas, una de las dos mayores del censo; el Alférez Ignacio Rodrigues das Chagas, con nueve esclavizados y cinco dependientes; el Alférez Joaquín Manuel de Macedo, con cinco esclavizados y nueve dependientes; el Capitán Antonio Pinto Barreto, con seis esclavizados y once dependientes. También figura el sacerdote portugués Gervasio Antonio Pereira Carneiro, con seis esclavizados y un dependiente, cuyas actividades como religioso en las zonas rurales se extenderían hasta finales de la década de 1830. Los registros que realizaba en los cuadernos de campaña, eran trasladados a los libros oficiales de la iglesia, así lo hizo durante 1838 en la iglesia de San Fructuoso de Tacuarembó. Antes de esa fecha, suponemos realizaba los registros probablemente en las iglesias de Livramento, Bagé o Pelotas. En ese año, registró más de una veintena de bautismos de hijos de trabajadoras esclavizadas, nacidos entre 1835 y 1838, en las estancias del norte uruguayo.14 El padre Gervasio disponía de una capilla 14

Libro de Bautismos Nº 1 de la Parroquia de San Fructuoso de Tacuarembó. Año 1838. Actas 15, 57, 60, 72, 98, 126, 131, 132, 163, 165, 172, 174, 185, 186, 190, 216 a 224, cuyos registros contienen la firma de cura Gervasio Antonio Pereira Carneiro.

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de la estancia de Francisco Antunes Maciel, en arroyo Hospital, actual departamento de Rivera. En la zona de Hospital, Caraguatá y Arroyo Blanco, se habían establecido con estancias la familia Antunes Maciel, según datos que aporta la historiadora e arquitecta pelotense Ester Gutierrez. Esa familia estaba vinculada al estanciero Annibal Antunes Maciel, quién, a su muerte, dejó “104 trabalhadores escravizados em diversas propriedades, sendo duas no Estado Oriental, uma fazenda denominada Hospital situada no Estado Oriental, departamento de Taquarembó, contendo três e meia sortes de campo (medida daquele país) com as confrontações da medição ultimamente feitas – setenta e sete contos de réis. Uma fazenda denominada de Arroio Grande, situado no Estado Oriental, departamento de Paysandu, contendo sete sortes de campo, com as confrontações das escrituras, por cento e setenta e quatro contos de reis”.15 En ese distrito se registraron unidades censales muy numerosas, como las de Luciano José de Vargas, ya citada, la de Florisbelo dos Santos Pereyra, con onze esclavizados y dieciocho dependientes, sumando 38 personas en su registro; Ignacio José Duarte, con diez esclavizados y veinte dependientes, sumando cuarenta personas y Juan Silveira Gularte con seis esclavizados y catorce dependientes, sumando en total 28 personas. Desconocemos otras actividades, además de las agropecuarias, que desarrollaran, pero llama la atención el elevado número de cautivos y de dependientes. Sabemos que la estancia de Ignacio José Duarte, “Marexal Comandante de la Nación de Portugal”, fue reconocida en 1824 por Lecor, con siete mil novecientas hectáreas.16 Al tercero distrito corresponde el censo “del partido de entre Río Negro y Yaguarí”. El mismo está datado en la es-

15 16

Datos aportados por la historiadora Dra. Ester Gutierres. Pelotas. 2006. BARRIOS PINTOS, Aníbal. Rivera en el ayer. Ob.cit. p. 40.

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tancia de Buena Vista, Caraguatá el 3 de marzo de 1824 y lo firma Valentín Sáenz. Cuadro 5 – Padrón distrito 3- Entre ríos Negro y Yaguarí Unidades censales 64

Hombres (propietarios) 60

Mujeres

Hijos

52

171

Dependientes Esclavos Total Agregados 65 166 514

Fuente: Hojas censales del Padrón de entre ríos Negro y Yaguarí. AGN. AGA. Caja 603.Carpeta 8. Datos elaborados por el autor

En base a esos datos, el 70 % de las unidades censales poseían trabajadores esclavizados, discriminándose de la siguiente forma: entre uno y tres esclavizados: 57,7%, entre cuatro y seis: 26,6 % y entre siete y nueve: 15,7 %. Entre los censados figura el hacendado José Suárez, poseedor de seis trabajadores esclavizados, cuya permanencia en la región se extenderá hasta su muerte a finales del siglo 19. En 1880, es señalado en un documento redactado por antiguos vecinos de la comarca, como el primero en establecer un “garimpo” de oro en 1822, utilizando trabajadores esclavizados traídos de la provincia de Minas Gerais, en el Brasil. Durante las décadas de 1830 y 1840, bautizó a varios hijos de sus esclavizados en Tacuarembó y, en 1857, intentó someter a esclavitud a Vicente Suárez, hijo de uno de sus cautivos, pero nacido libre por las leyes abolicionistas uruguayas, lo que provocará que se le inicie juicio, dictaminándose que el moreno Vicente no podía ser esclavizado por haber nacido libre.17 También figuran censados en este distrito: Manuel Rollano; Alcalde de Melo, vinculado al régimen cisplatino, con extensos campos; Rita Margarita, viuda, con ocho hijos y nuevos trabajadores esclavizados; Ignacio Pereira da Silva, luso-brasileño, Alférez del 2do. Regimiento de caballería de Rio Grande, con dos esclavizados y nueve dependientes. 17

MICHOELSSON, Omar. Los tiempos de la esclavitud. En: Semanario Batoví, Tacuarembó, 29 de octubre de 1999, p. 3.

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A los efectos de una mejor comprensión de los datos generales de los tres distritos analizados, hemos resumido las cifras en el Cuadro Nº 6. Cuadro 6 – Resumen de los datos censales de todos los distritos de Tacuarembó Unidades Hombres Mujeres Hijos censales (propie- (esposas) (de las tarios) familias) 137 130 116 457

DependientesAgregados 228

Cautivos

Total Población

417

1348

Fuente: Datos elaborados por el autor en base los registros censales de AGN. AGA. Caja 603. Carpeta 8.

De las cifras resalta como significativo el alto porcentaje de esclavizados – 31 % del total de la población: el 75 % de las familias poseían esclavizados con un promedio de tres trabajadores esclavizados para cada unidad censal. Si tenemos en cuenta que, por un lado, esa población estaba dispersa, dada la no existencia de centros poblados dentro de los distritos censados y la aparente ausencia de saladeros en la zona, el número de esclavizados era importante y su porcentaje en términos de población de la Cisplatina es alto. Entre los pobladores censados figuran algunos con pulpería, como Manuel Lopes Machado, con seis esclavizados; Vicente Ilha, con siete esclavizados; Antonio Machado, con cinco esclavizados; Francisco Machado Alves, con once esclavizados; Sebastián Lemos con cuatro esclavizados y Luis de los Santos Fagundes, con dos esclavizados. Finalmente es resaltable el número absolutamente mayoritario de población de procedencia luso-brasileña que poblaba los campos, datos que se ven refrendados por los bautismos y matrimonios registrados en las parroquias de Melo y Tacuarembó.18

18

Cf. GANELLO, Humberto. Historia de Cerro Largo, 1791-1801. Montevideo: Instituto de Estudios Genealógicos, 2002.

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Censo de Cerro Largo en 1824 A pesar de la derrota artiguista y de los problemas suscitados por las disputas territoriales durante la administración de Lecor, la dominación portuguesa fue un período de relativa tranquilidad, que permitió cierto progreso económico. Manuel Rollano, hispano-criollo, consustanciado con el nuevo régimen, fue nombrado Alcalde de Melo en 1822. En julio de 1824, redactó un informe al gobierno detallando la población del departamento por distritos, siendo la población total de 3.773 personas, distribuída en 395 hogares, con 2436 “blancos” y 1336 “negros”. Evidencian esos números un porcentaje elevado de esclavizados, 35 %, similar al que se observa en los distritos de Tacuarembó. Desde el punto de vista de la distribución por zonas, el censo discrimina siete distritos, agrupando los datos por “fuegos” (hogares), el número de personas blancas y negras, distinguidas por sexo y los totales de cada uno. Hemos ordenado los distritos de acuerdo al número de trabajadores esclavizados.19 El distrito 4, entre los ríos Tacuarí, Yaguarón y Chuy, es donde se registra el mayor número de esclavizados, en una población total de 1106 personas con 104 unidades censales, los esclavizados son 430 lo que representa el 39 %, de los cuáles 303 eran hombres y 127 mujeres, representando un promedio de mas de cuatro “esclavos” por familia. Le sigue el distrito 3, entre los ríos Yaguarón, Negro y cañada de Aceguá, con una población de 871 personas distribuidos en 85 unidades censales, siendo 323 los esclavizados, representando un 37% de la población, de los cuales 217 eran hombres y 106 mujeres, siendo el promedio de esclavizados por familia de cuatro.

19

Archivo General de la Nación, A.G.A. Libro Nº 273: padrones de Tacuarembó y Cerro Largo: 1822-1836.; AGN. AGA. Documentos de Cerro Largo-1822-1824. Cf. GIL, Germán. Ensayo para una historia de Cerro Largo. Montevideo: Imprenta del Palacio Legislativo, 1982, p. 91-92.

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En el distrito 1, entre los arroyos Carpintería, Chuy, Fraile Muerto y Zapallar, el número de esclavizados ascendía a 194, en un total de 472 pobladores, divididos en 60 familias, representando un 41 % los esclavizados, con un promedio de más de tres esclavos por unidad censal. En el distrito 2, entre los arroyos Zapallar, Chuy, Sarandí y el camino Real, se registraban 156 esclavizados, en un total de 446 personas, divididas en 58 unidades censales, lo que significa un porcentaje de 35 % de la población total, con un promedio de 2,7 trabajadores por familia. En el distrito 6, correspondiente a los territorios entre los ríos Carpintería, Tacuarí y Olimar, la población total era de 432 personas, agrupadas en cincuenta hogares, y el número de trabajadores esclavizados era de 118, siendo 77 hombres y 41 mujeres, en total 27 % de la población, con un promedio de 2,36 esclavos por familias. En los dos distritos restantes, el 5 y el 7, correspondientes a los territorios entre los arroyos Cordobés, Fraile Muerto, río Negro y cuchilla Grande y a los ríos Olimar, Cebollatí y Godoy, el número de cautivos disminuye sensiblemente en comparación con los anteriores distritos, siendo en total 115 que representaban el 26 % de la población. Los datos generales agrupados, para todos los distritos, indicaban la existencia de 1.336 esclavizados, divididos en 926 hombres (69,31%) y 410 mujeres (30,69 %), demostrando un índice de masculinidad muy elevado, 2,25 hombres por cada mujer. Las cifras antes expresadas permiten señalar que la población de la Banda Norte (territorios al Norte del río Negro mas el actual departamento de Cerro Largo) se componía, en 1824, de aproximadamente 6.650 habitantes – la Asamblea Constituyente de 1829 atribuía al departamento de Paysandú, unos siete mil pobladores, lo cual cierra perfectamente con las cifras generales que hemos expuesto – con una fuerte presencia de trabajadores esclavizados sobre la zona de frontera que representaba, en términos de porcentaje sobre la po“Como continuación del Río Grande del Sur” La hacienda sul-rio-grandense esclavista en...

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blación total, el principal agrupamiento del territorio Cisplatino. Si nos atenemos a las cifras desprendidas de los censos de Paysandú y Tacuarembó, se declararon la existencia de más de quinientos esclavizados, que sumados a la cifra de Cerro Largo, llegaría a casi dos mil, número que representa casi un tercio de la población regional. La población real debió ser bastante más numerosa, en función del aporte permanente de nuevos propietarios brasileños con sus esclavizados y del número indeterminado de ocupantes de los campos, denominados intrusos, entre quienes se encontraban numerosas familias de guaraníes-misioneros, instaladas en los campos de las antiguas estancias jesuitas y que, en muchos casos, eran la mano de obra libre utilizada en las diversas tareas agropecuarias. La parroquia de San Benito de Palermo en Paysandú y la de San Fructuoso de Tacuarembó, registran numerosos matrimonios y bautismos de guaraníes-misioneros y de Charrúas cristianizados.20 El número de cautivos, alrededor de dos mil, es importante si lo comparamos con lo citado por el historiador riograndense Mario Maestri, en O escravo no Rio Grande do Sul: trabalho, resistencia, sociedade”, para las estancias de Alegrete, donde afirma, que en 1859, “de 391 estâncias de Alegrete, apontavam 124 capatazes, 159 peões livres e 527 cativos. Números significativos, mesmo considerando que os proprietários e familiares não se encontram arrolado no cômputo.”21 A este respecto el historiador riograndense Farinatti, sostiene que “os grandes estancieiros tinham plantéis onde os escravos campeiros eram os mais numerosos. Ainda que a pecuária a campo aberto exigisse muito menos braços do que, por exemplo, as atividades da grande lavoura, esses ‘poucos’ trabalhadores 20

21

Cf.GONZALEZ RISSOTO, Rodolfo- RODRIGUEZ VARESSE, Susana. Contribución al estudio de la influencia guaraní en la formación de la sociedad uruguaya. Montevideo: Imp.Nacional, 1982, Revista Histórica, Nº 54 (160-162). MAESTRI, Mário. O escravo no Rio Grande do Sul, trabalho, resistência e sociedade. 3era.Ed. Porto Alegre:Ed.UFRGS, 2006, p. 69.

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eram essenciais. A maioria dos estancieiros que foram estabelecer-se na fronteira, na primeira metade do século XIX, buscou contar com escravos para propiciar um núcleo básico, que lhes garantisse ao menos parte dessa mão-de-obra.”22

La población esclavizada sobre la frontera y en Montevideo. Interesa destacar algunas cifras estadísticas de Rio Grande do Sul, dadas las vinculaciones directas con la frontera oriental y las relaciones socio-comerciales allí desarrolladas. Los datos han sido extraídos básicamente de la publicación Censos do RS: 1803-1950, publicado en 1986. La información disponible, aun incompleta, es ilustrativa en términos de visualizar donde se concentraba la población esclavizada en la zona de frontera con Uruguay, en la medida que avanza el siglo 19. Los primeros datos censales de la Provincia de San Pedro datan de 1814: sobre un total de 70.656 pobladores, el 29 %, 20.611 eran trabajadores esclavizados. El 20 % de los mismos se concentraban en región de charqueadas. En Pelotas, los esclavizados eran el 51 % de la población; en Río Grande, el 31 %; en Piratini, el 42 %. Salvo el caso de Pelotas, los porcentajes no son sustancialmente distintos de los citados para la frontera oriental. En 1819, se censaron 28.253 esclavizados en Rio Grande do Sul, representando 30,6 % de la población.23 En el caso de Montevideo, principal ciudad-puerto oriental, punto de concentración de cautivos para el Atlántico Sur, 22

23

FARINATTI, Luis. Escravidão e Pecuária na Fronteira Sul do Brasil: primeiras notas de pesquisa – Alegrete, 1831-1850. En: II Encontro de Pós-Graduação em História Econômica, promovido pela ABPHEN, Niterói (RJ), de 05 a 07 de setembro de 2004. Edición en CD-ROM. “Censos do RS: 1803 – 1950”. Secretaria de Coordenação e Planejamento.Porto Alegre:1986.

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Chile y Perú, desde 1791, los números, aún siendo parciales, pueden resumirse de la forma presentada en el Cuadro Nº 7. Cuadro 7 – Censos de población esclavizada de Montevideo Año 18051 18102 18193 18294

Habitantes 9359 11430 7116 16262

Esclavizados 2786 2823 1747 2489

Porcentaje 29,76% 24,69% 24,55% 15,30%

Fuentes: ACEVEDO DÍAZ, Eduardo. Anales históricos del Uruguay. Montevideo: Barreiro y Ramos, 1933, p.349, Volumen 1. MONTAÑO, Oscar. Yeninyanya. Montevideo: Mundo Afro, 2001, p.97.

El historiador uruguayo Demasi anota que en el Censo de 1803, en las afueras de Montevideo, vivían 3186 “blancos”, 141 “pardos”, 716 “esclavos” y 183 “esclavas”, estos números de esclavizados eran nueve veces mayor que los números censales de 1769, sin embargo destaca la “persistente paridad en la distribución por sexos: en 1769 había 1,1 esclavos varones por cada esclava, mientras que en 1805 era de 1,2 por cada esclava” y agrega que a la “inversa de otras economías esclavistas americanas, en Montevideo no parece plantearse ningún tipo de selección de los esclavos según su sexo”.24 Este es un dato interesante por cuanto en la frontera y para zonas rurales la tasa de masculinidad era de 2,2 o mayor, evidenciando una “selección” específica para el trabajo en las estancias. Para el caso de estancias en Bagé, Vacaria y Rio Pardo, en Rio Grande del Sur, el historiador Setembrino Dal Bosco determina que la relación entre esclavizados es de 1,6 hombres para cada mujer, pero esa cifra aumenta en función de las medidas etáreas, así hasta los 15 años, hay paridad; de 16 a 40 años, hay un relación de 1,5 y en la franja de 41 a 60 años, la relación es de 3,3 hombres por cada mujer. Con res24

DEMASI, Carlos. Familia y esclavitud en el Montevideo del siglo XVIII. En: BEHARES, Luis, CURES, O. (Org.) Sociedad y cultura en el Montevideo colonial. Montevideo: UDELAR-FHCE, 1997, p. 55-70.

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pecto al número de cautivos por familia, este autor determina para el período 1819/1889, una relación de 2,2 esclavizados por miembro de la familia.25 Es visible que la población esclavizada en Montevideo debió ser superior, habida cuenta de que era el puerto de llegada del tráfico esclavista rioplatense, de tal forma, si estos números son altos para Montevideo, resultan mucho más importantes los de la campaña oriental fronteriza con el Brasil, dado que son trabajadores radicados en las estancias. De las cifras expuestas, resalta como significativo el alto porcentaje de esclavizados en la zona fronteriza del norte uruguayo: un promedio de 31 % del total de población para los años 1822-1824, siendo que el 75 % de los hogares poseían esclavizados y la relación “esclavo” – unidad censal era de tres esclavizados por cada familia. En la década de 1820, los propietarios de la tierra y la población esclavizada en el norte uruguayo nos permiten afirmar que esa región era una verdadera prolongación socio-económica de los territorios riograndenses.

Trabajadores esclavizados en la campaña oriental La sociedad mercantil oriental necesitaba de la mano de obra esclavizada para sostener la estructura productiva. Las historiadoras uruguayas Sala y Alonso afirman que: “Esclavos y libertos constituyeron una muy elevada proporción de la fuerza de trabajo […] En las estancias coexistían el trabajo de los esclavos que realizaban tareas pesadas, pero no riesgosas, con el de peones, agregados, puesteros, etc.”, y también, coexistía con el trabajo de los propietarios de las estancias, en 25

DAL BOSCO, Setembrino. Estancias das regioes de Rio Pardo, Bege e Vacaria (1819-1889).En: MAESTRI, Mario, ORTIZ, Helen. (Org.) Grilhão negro: Ensaios sobre escravidão colonial no Brasil. Passo Fundo: EdiPUF, 2009. p. 323. Coleção Malungo.16.

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especial los pequeños y medianos.26 En las zonas rurales, la coerción extraeconómica aplicada a la fuerza de trabajo supondría, en pocos casos, la generación de trabajo asalariado, siendo más común que la retribución se diera “en la cuenta” de la pulpería de la estancia, que pertenecía al patrón o a un asociado a tales efectos. De tal forma, los peones cambiaban su trabajo por mercaderías, ropa, aguardiente o tabaco. Todos los residentes dentro de la propiedad generaban renta en trabajo – capataces, peones, agregados, ocupantes autorizados, puesteros, esclavizados. En “Trabajo y vida cotidiana de los africanos de Buenos Aires, 1750-1850”, las historiadoras argentinas Goldberg y Mallo concluyen que el trabajo de los africanos esclavizados en las estancias y zonas rurales fue mucho mas importante que lo asignado por la historiografía rioplatense. Afirman: “[...] la cuestión de la mano de obra en la estancia bonaerense […] poniendo énfasis en la mano de obra obtenida principalmente a través de la coacción extraeconómica (que) giraba (entorno) de la papeleta de conchabo o la calificación de vago y malentretenido […] tenía el objeto de disciplinar a la escasa mano de obra.”27 Las autoras sostienen que las necesidades mínimas de consumo del hombre de campo estaban en general satisfechas en la propia campaña, por tanto la coacción económica no era un factor relevante para que trabajara, sobretodo a bajo precio. Obligarlo a trabajar ante la posibilidad de ser incluido en el ejército en forma compulsiva, tampoco era un factor convincente pues bastaba adentrarse en los territorios de la frontera o “de indios” para mantenerse a salvo de la leva. En O cativo, o gaúcho e o peão: considerações sobre 26

27

SALA, Lucía; ALONSO, Rosa. El Uruguay comercial, pastoril y caudillesco. Sociedad, política e ideología. Montevideo: Banda Oriental, 1991, p. 58, Tomo II. GOLBERG, Marta; MALLO, Silvia. Trabajo y vida cotidiana de los africanos de Buenos Aires-1750-1850. p. 34. En: PALERMO, Eduardo (Org.) Diplomado en Historia regional de los afrodescendientes. Instituto Superior de Formación Afro-Rivera. Edición en CD. Abril de 2006- Rivera, Uruguay.

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a fazenda pastoril rio-grandense (1680-1964)”, el historiador Mário Maestri propone la misma realidad para la campaña riograndense.28 La mano de obra esclavizada era necesaria para desarrollar todas las tareas propias de la estancia en forma permanente durante todo el año. Por su vez, el trabajo zafral, por ejemplo la yerra, exigía un componente adicional de trabajo, cubierto con mano de obra ocasional. Según las autoras argentinas citadas, la “utilización de la mano de obra esclava en las tareas permanentes de las estancias (resultaba conveniente) en función de su menor costo en el largo plazo”.29 Esas tareas incluyen el mantenimiento del establecimiento; construcción de corrales, de mangueras, de cercos de piedra; cuidado de animales, especialmente ovejas, vacas lecheras y caballos de trabajo; plantación y cuidado de la chacra, para producción de cereales y granos (trigo y maíz); fabricación de harina; confección del pan; actividades de cocina; lavado, fabricación de velas; trabajos de carpintería, herrería y guasquería; fabricación de tejas – la teja muslera – y ladrillos, en fin todo lo que podríamos imaginar necesario para la vida cotidiana. La guerra de los “farrapos”, en 1835-45, favoreció la expansión comercial oriental, ya que activó las ventas de charque y el abastecimiento de ganados a las fuerzas combatientes en Rio Grande do Sul. La demanda de productos ganaderos y la dinamización del comercio aumentaron también la demanda de mano de obra, situación compleja de cubrir dado los extensos períodos de guerra, la migración hacia los territorios vecinos y el bajo número de población de la campaña uruguaya, en general, y en particular en la frontera. El problema se agravó con la desintegración del pueblo misionero de Bella Unión, a finales de 1832, y el traslado de las familias pobla28

29

Cf. MAESTRI, Mário. “O cativo, o gaúcho e o peão: considerações sobre a fazenda pastoril rio-grandense (1680-1964)”. MAESTRI, Mário (Org.). O negro e o gaúcho [...]. p. 169-271. Ibíd. p. 35

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doras, hacia el río Yí, en el actual departamento de Durazno, donde se fundaba, en marzo de 1833, la población de San Borja del Yí. Ese traslado de población disminuyó aún más el número de trabajadores libres y de mujeres disponibles en la zona. La escasez de mano de obra provocaba un aumento considerable del salario y en muchos casos no fue posible obtener trabajadores. En territorios tan vastos y poco poblados, las medidas coercitivas y policiales contra vagos y gauchos tenían alcances limitados y puntuales. Desde el Estado uruguayo se promovió el ingreso de inmigrantes durante el restante del siglo 19 con diferentes medidas, entre ellas, el impulso a los planes de ingreso de colonos favorecidos por el gobierno y empresarios privados desde 1830. Esto incluyó el transporte de esclavizados africanos y del Brasil en forma legal e ilegal hasta mediados de siglo. La realidad fue diferente en el norte del territorio y en la zona de frontera con Brasil, ya que los planes de colonización agrícola fracasaron. Las poblaciones urbanas de Tacuarembó (1832) y Melo (1792) crecieron demográficamente manteniendo un neto predominio de la migración brasileña. Son ilustrativos los libros de matrimonios y bautismos de las parroquias de dichas poblaciones en el período 1830-1870, donde la mayoría de los matrimonios relacionan a luso-brasileños con mujeres nativas de la zona o el bautismo de hijos de matrimonios entre brasileños provenientes de diferentes lugares y registrados como “vecinos afincados”. Un número muy significativo de dichos matrimonios registra a lo largo de los años el nacimiento de hijos de sus “esclavas” o aún el bautismo de “esclavos” adultos “traídos recientemente” de las costas de África como en 1847 en Tacuarembó. La investigadora uruguaya Raquel Pollero, estudiando los matrimonios y la composición demográfica de Tacuarembó, determina que, en el período 18381870, hay un neto predominio demográfico brasileño, que va desde un 87,8% a un 59,7% al final de dicho período, por otro 112

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lado desde la variable étnica un cuarto de la población eran aborígenes o “negros”.30 Para el caso de Cerro Largo, podemos afirmar los mismos porcentajes y posteriormente, a partir de 1853, lo mismo para los registros parroquiales de Artigas. Cabe recordar que desde 1823, Santa Ana do Livramento fue una población avanzada sobre de frontera de los futuros territorios orientales, aún después de la demarcación de límites de 1851-1853, los habitantes de dicha población compraban y vendían “esclavos” y campos en territorio uruguayo de Tacuarembó – Rivera, registrando los negocios en el “cartorio” de Livramento.

La población esclavizada en la frontera 1835-1850 En un censo de 1835, en el departamento de Cerro Largo, con datos parciales para algunos distritos, podemos constatar la persistencia del elevado número de esclavizados: “[...] relação das pessoas livres e escravos e dos fogos ao distrito de Olimar - Ervaes e Cuchilha grande”, siendo los trabajadores esclavizados el 25,54 %; para el distrito de Cordobés y Tupambaé, el porcentaje era elevado, 43 %.31 Para el mismo departamento, en censo 1836, la población asciende a 4.640 habitantes de los cuáles, en forma genérica, un 25 % son trabajadores esclavizados, siendo que 54 % de las familias poseían esclavizados.32 El 10 de octubre de 1835, Oribe había decretado nulas todas las patentes de navegación otorgadas a buques negreros de bandera nacional o extranjera, ordenándose a la Aduana del puerto montevideano no autorizar el ingreso de buques 30

31 32

POLLERO, Raquel. Estudio de la población de Tacuarembó en base a datos histórico-demográficos. En: Anales del VII Encuentro Nacional de Historia. Junta Regional de Historia y estudios conexos. Montevideo: 1990 pp219-221. AGN. Libro 273.Cerro Largo. GIL, Germán. Ensayo para una historia de Cerro Largo. Ob.cit. p.108.

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negreros. Esta medida se hace extensiva a todos los puntos del territorio oriental, prohibiéndose el ingreso de cautivos ya sea bajo la forma de esclavos o de colonos africanos.33 La iniciativa confrontaba con los intereses de los esclavistas y particularmente con los estancieros riograndenses instalados en la frontera que sintieron amenazados sus derechos como “propietarios”. Aunque la ley prescribía claramente el tráfico, en los archivos parroquiales de Cerro Largo, se siguieron bautizando trabajadores esclavizados provenientes de África y Brasil. En mayo de 1837, el presidente Oribe promulgaba una ley abolicionista que si bien era incompleta en su alcance, configuraba un antecedente legislativo directo a las leyes que se aprobaran en la década siguiente. La ley establecía que los “negros que sean introducidos en la República desde la promulgación de esta Ley […] son libres de hecho y de derecho.” 34 Una abolición completa, como sería promovida en 1846, sería rechazada por los sectores dominantes, empresarios, comerciantes y estancieros que utilizaban intensivamente la mano de obra esclavizada para realizar sus actividades.

El censo de Cerro Largo de 1836 y los archivos parroquiales. A principio de 1836, el gobierno ordenó la realización de un censo de población en todas las jurisdicciones del territorio nacional. Con ello, se procuraba conocer la cantidad de habitantes para fijar una nueva asignación de Diputados a cada uno de los nueve departamentos en que estaba dividido el país. El estudio de los padrones censales de las jurisdicciones del departamento de Cerro Largo, que en la actualidad 33

34

PELFORT, Jorge. A 150 años de la abolición de la esclavitud [...]. Ob. cit., p. 31 Ibíd. p. 34.

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correspondería a Cerro Largo, Treinta y Tres y el norte de Lavalleja, nos permite tener de una idea aproximada de los numerosos brasileños, propietarios de la tierra y del elevado número de esclavizados. El padrón general del departamento determinaba la existencia de 4.640 pobladores, repartidos en cinco jurisdicciones. En la jurisdicción de la villa de Melo y su distrito, el censo fue levantado el 1º de mayo de 1836. No se contabilizaron los cautivos ni sirvientes o peones. Los hombres que figuran son los titulares de unidades censales. Cuadro 8 – Censo de la población libre de la villa de Melo y su distrito Pobladores 881

Hombres 202

Mujeres 149

Niños 263

Niñas 267

Fuente: Archivo General de la Nación. Libro de Padrones de Tacuarembó y Cerro Largo. Nº 273.

En el segundo distrito, el censo fue levantado en mayo de 1836, sumando en total 1021 pobladores. El tercero distrito, correspondiente a Aceguá, dice: “Relação dos cabeças de casal do distrito de Asseguá do departamento de Serro Largo”. El censo fue levantado por Jose Augusto Gomes, brasileño, que escribe en portugués fonético, como “Juis de Pais”, (en portugués literario, “Juiz de Paz”), el día 21 de abril de 1836, siendo 314 pobladores, 77 cabezas de familias, 161 hijos y 76 agregados. El quinto distrito corresponde el padrón de “Molles, Pirarajá y Cebollatí”, y está constituido por los datos de cada unidad censal estableciéndose el nombre del jefe de familia, agregados o peones y esclavizados. Cuadro 9 – “Jurisdicción 5ta de Cerro Largo, distrito de Pirarajá” Pobladores 228

Cabezas de familia 24

Pobladores libres 179

Esclavizados 49

Fuente: Archivo General de la Nación. Libro de Padrones de Tacuarembó y Cerro Largo. Nº 273.

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En este distrito, el 58 % de las familias poseían trabajadores esclavizados, en promedio: 3,5 cautivos por unidad censal. Los esclavizados representaban el 29,4 % de la población del distrito. Como ejemplo, podemos citar el caso de Manuel Grillo, que poseía una estancia con un mayordomo, dos peones, dos agregados y cuatro esclavizados; una chacra con un capataz, un agregado y un cautivo, una estancia nueva con un capataz y dos cautivos y un puesto de estancia con un capataz y un cautivo. Esta unidad censal nos permite constatar como la propiedad de la tierra se sustentaba ubicando en ella un mínimo de personal fijo para registrar su presencia y la importancia de los trabajadores esclavizados. Este mismo hacendado bautizó en junio de ese año cuatro africanos adultos en San Servando, hoy ciudad de Río Branco.35 El padrón del partido de Olimar fue levantado por el brasileño Simão de Brum e Silva, el 15 de mayo de 1836, resultando que el 49 % de las familias poseían esclavizados, con un promedio de 4,5 trabajadores por cada una y los cautivos eran el 26,64 % del total de la población. Cuadro 10 – “Lista de todos os vizinhos do partido de Olimar” Pobladores 304

Familias 37

Agregados y peones 25

Esclavizados 81

Fuente: Archivo General de la Nación. Libro de Padrones de Tacuarembó y Cerro Largo. Nº 273.

El siguiente padrón corresponde al distrito de Yerbal y Cuchilla Grande – “Relação das pessoas livres e escravos e dos fogos pertencentes ao distrito de Olimar, Ervaes e Cuchilha Grande”, levantado por el Teniente de Alcalde, Emilio Pereira Viana, brasileño, en mayo de 1836. Una vez más el predomino de la población brasileña es casi absoluto, al punto

35

Libro de Bautismo anexo. Año 1836- San Servando- Cerro Largo. Actas del 7 y 8 de junio de 1836.

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del Alcalde ser de ese origen, situación que se repite en toda la zona de frontera. Cuadro 11 – “Relação das pessoas livres e escravos e dos fogos pertencentes ao distrito de Olimar, Ervaes e Cuchilha Grande” Pobladores 323

Familias- “fogos” 42

Agregados y peones 23

Esclavizados 82

Fuente: Archivo General de la Nación. Libro de Padrones de Tacuarembó y Cerro Largo. Nº. 273.

El número de familias con esclavizados era del 51 %, correspondiendo un promedio de 3,72 esclavizado por cada unidad censal, y los trabajadores esclavizados representaban el 25,4 % de la población. Entre los principales esclavistas se destacaban Manuel Lago, con ocho peones y trece esclavizados; Roque Blanco, con doce hijos y sete esclavizados y la viuda Candelaria Nunes Viana, con doce esclavizados. El padrón del distrito de Corrales, indicado como jurisdicción de la villa de Melo, fue realizado en mayo de 1836, y es uno de los registros más completos, en cuanto a información de los trabajadores esclavizados. Está ordenado por grupos familiares y se indican los miembros de la familia, con los nombres, y los trabajadores esclavizados precedidos por la palabra “esclavo”. El registro consta de 487 pobladores en 64 unidades censales con un total de 136 esclavizados, que representan el 38,75 % de la población del distrito, siendo 89 varones – 65,4 % - y 47 mujeres – 34,6 %, siendo la tasa de masculinidad de 1,8. El grueso de la población esclavizada está concentrada entre los 10 y los 49 años, 76,5 % del total. Las trabajadoras esclavizadas son mayoritariamente jóvenes, entre 10 y 29 años, representando el 51 % del total de ese sector. Entre los varones, el 66,3 % se ubican entre los 14 y los 49 años, edades en las que ya disponían de aptitud física y destreza para la lides camperas, sobresaliendo los grupos de 18 a 24 años y de 30 a 49 años. “Como continuación del Río Grande del Sur” La hacienda sul-rio-grandense esclavista en...

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Entre los estancieros con cautivos sobresalen Eduardo Pires, con siete esclavizados varones, donde se incluyen tres niños de 10, 11 y 12 años, esto confirmaría la temprana inclusión en las tareas de la estancia; Buena Ventura Senteno, figura con ocho esclavizados, todos varones, con un promedio de edad de 23 años y Antonio Bentes, con cinco esclavizados varones con un promedio de 20 años, cabe resaltar la baja presencia de trabajadoras esclavizadas. El siguiente padrón es el de Cordobés y Tupambaé, también allí, el redactor escribe en portuñol. Los datos censales determinan la existencia 592 pobladores en 39 unidades censales con 138 esclavizados. Los trabajadores esclavizados se discriminaban en 97 varones – 70,3 % − y 41 mujeres 29,7 % del total, con una relación de 2,36 varones por cada esclavizada. El 72 % de las familias poseían cautivos, con un promedio de cinco esclavizados por unidad censal. Algunos estancieros poseían elevado número de trabajadores esclavizados, como Marco José de Leiva, con quince, José Cardoso de Brum con catorce, Marco Aleman con diez y Faustino Dias de Oliveira con ocho cautivos. Todos ellos hacendados de origen brasileño y nuevamente con bajo número de trabajadoras esclavizadas. Finalmente, el padrón del distrito de Molles, realizado por Gregorio Cardozo y datado el 10 de mayo de 1836, con 483 pobladores, 57 unidades censales y 81 cautivos. El 49,2 % de las familias poseían esclavizados, con un promedio de 2,9 esclavizados por unidad censal. También figuraban 28 agregados y cinco peones. El censo de población de Cerro Largo de 1836 arrojó un total de 4.631 pobladores, entre los cuáles se registraron 567 trabajadores esclavizados, ya que algunos padrones como citamos no estaban completos. Restando los padrones sin información sobre los esclavizados, obtenemos que ellos representan el 23,5 % de la población, cifra que seguramente aumentaría si los padrones de la villa de Melo y del distri118

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to 2 y 3 estuvieran completas. Como ejercicio estadístico y comparativo, que permite visualizar mejor la situación de lo territorios fronterizos, sumamos al Censo de 1836, los datos del censo de 1824, ya analizado anteriormente. Para aquellos distritos en que carecemos de datos, nos basamos en la suposición que no hubo entre ambas fechas, decisiones jurídicas o situaciones político-militares que hicieran disminuir abruptamente el número de esclavizados. En todo caso, la población esclavizada podría haber aumentado como consecuencia de la Guerra Farroupilha, ya que muchos propietarios rio-grandenses trasladaron sus haciendas y trabajadores a territorio oriental. Realizando la correspondencia entre los distritos de 1824 y 1836, obtendríamos que la villa de Melo y primer distrito tenía, en 1824, 194 esclavizados; el segundo distrito, 156, y el tercer distrito, 323 esclavizados; si adjudicamos la misma cifra de esclavizados al último censo de 1836, obtendríamos un total para todo el departamento de 1240 cautivos, lo que correspondería a un 26,77 % del total de población, un porcentaje bastante similar al calculado para ese año con los datos parciales. Otro dato significativo es el escaso número de peones y agregados, también con datos parciales para tres distritos, significando un tercio con respecto a los esclavizados. Eso estaría confirmando la importancia de la mano de obra esclavizada para sustentar a lo largo del año las tareas de una estancia.

El estado oriental 1830-1860 El advenimiento de los gobiernos republicanos del Estado Oriental en 1830 no alteró la situación de los nuevos propietarios de las tierras adquiridas durante el período cisplatino. Fructuoso Rivera, primer presidente uruguayo, asume con el “Como continuación del Río Grande del Sur” La hacienda sul-rio-grandense esclavista en...

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apoyo de la sociedad oriental participe de la dominación lusobrasileña. La Constitución del nuevo país reconoció el derecho al voto electivo a una minoría de la población, ilustrada y con poder económico, negándoselo a mujeres, soldados, analfabetos, asalariados, jornaleros y esclavizados. Del grupo oligárquico que había participado en la dominación Cisplatina surgieron los Ministros del nuevo gobierno y la mayoría de los Diputados y Senadores electos.36 Durante el gobierno de Rivera (1830-1834) se multiplicaron las donaciones de estancias en campos fiscales del Norte del país, a familias brasileñas. La historiadora artiguense Olga Pedrón traza un cuadro de las donaciones de tierras autorizadas por Rivera, entre 1831 y 1834, siendo 36 los beneficiarios y en todos los casos a riograndenses, entre quienes figuran: los Coroneles Jose Rodrigues Barbosa, Jose Antonio Martines, Bonifacio Isas, el Mayor Custodio Mendes y también Manuel Luis Osorio, Fernando Camargo, Manuel Chara y sigue la lista.37 Fue evidente la alianza entre los estancieros al Norte del Río Negro y el gobierno, para aniquilar a las tribus Charrúas que permanecían en esos campos, cuyo episodio final será la campaña militar de 1831 emprendida contra ellos. Algunos de los estancieros brasileños, como Rodrigues Barbosa y David Silva, apoyarán esas acciones con milicias y aún entrando en combate directo con los Charrúas.38 Manuel Oribe – uno de los líderes de la rebelión armada contra la Cisplatina – asume como nuevo presidente en 1835, no promoviendo sustanciales cambios en los temas territoriales, pero si en la gestión del Estado, en la administración de 36

37

38

CASTELLANOS, Alfredo. La Cisplatina, la independencia y la república caudillesca.1820-1838. Montevideo. E.B.O. 1982. Cf. PEDRÓN, Olga: Departamento de Artigas, esbozo histórico. Artigas, Ed. Del autor. 1990. PALERMO, Eduardo. La masacre de Salsipuedes y los conflictos por la posesión de la tierra. En: Diario Jornada, junio de 2009, Rivera-Uruguay. Cf: ACOSTA Y LARA, Eduardo. El país Charrúa. Montevideo. El País.2002.

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los fondos públicos y en la condena al tráfico esclavista, que culminará con la abolición de la esclavitud en 1846, situación que derivará en una prolongada guerra civil entre “blancos” y “colorados” al mando de Rivera, entre 1838 y 1851.

La guerra grande – 1838-1851 El largo enfrentamiento denominado Guerra Grande conoció dos etapas: el enfrentamiento del gobierno de Rivera – quien había desalojado a Oribe del poder por medio de un golpe de Estado con el apoyo de la escuadra francesa en el Río de la Plata, y previo acuerdo con los “Farrapos” en el pacto de Cangüe, en 1838 – con el poderoso Juan Manuel de Rosas – presidente y dictador de las Provincias Unidas del Río de la Plata, quién reconocía a Oribe como legítimo presidente (1838-1842); y el período denominado de (1843-1851), período en que Uruguay se encuentra divido en dos gobiernos, el de Montevideo, dirigido por partidarios colorados, con la figura preponderante de Joaquín Suárez, y el del Cerrito, al mando de Manuel Oribe y los partidarios blancos. Durante el Sitio Grande se determinó la abolición de la esclavitud, ordenada, en 1842, por el gobierno de Montevideo y, en 1846, por el gobierno de Oribe. Esta medida que alcanzaría a toda la campaña oriental, con medidas fiscalizadoras de su cumplimiento, afectaron los intereses de los hacendados esclavistas, principalmente brasileños. La guerra Farroupilha culminó sin otorgar la libertad siquiera a los esclavizados que participaron en las milicias.39 La ley de Abolición de la esclavitud de 1846, afectó los intereses de los estancieros brasileños en el país, por la liberación obligatoria de mano de obra servil, cuya fiscalización fue encargada a los Jefes Políticos de los departamentos. Esto 39

Cf. FLORES, Moacyr. Negros na Revolução Farroupilha: traição em Porongos e farsa em Ponche Verde. Porto Alegre: EST, 2004.

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provocaría adicionalmente, del otro lado de la frontera, un mayor número fugas de esclavizados hacia territorio oriental, la mayoría de los cuáles serían enrolados en el ejército de línea y reclamados por sus “propietarios” desde Brasil. Tal situación se agravaría con la prohibición del tráfico negrero internacional en 185040 y provocaría, a partir de 1851, en territorio oriental, una verdadera “cacería” de afrodescendientes para ser vendidos en Brasil.41 A las medidas abolicionistas se sumó la prohibición del comercio de ganado en pie y las reiteradas denuncias de persecuciones a personas y capitales brasileños, realizadas ante el gobierno imperial por los hacendados fronterizos, que motivaron finalmente, la intervención del Imperio del Brasil, en la guerra, a favor del gobierno de Montevideo. Algunos estancieros como Souza Netto y Pedro de Abreu, Barão de Jacuí (“Moringue”), decidieron enfrentar las medidas del gobierno, iniciando acciones políticas, frente al gobierno de Río de Janeiro, y militares, las famosas “californias” que contaba con el apoyo y la protección de los comandantes fronterizos, como David Canabarro. Abreu convocaba a sus coterráneos “para desta arte salvarmos a Honra Nacional, e as nossas propriedades extorquidas, e creio que não sereis indiferentes a esse sagrado dever.”42 La intervención brasileña puso fin al largo conflicto favoreciendo los intereses del grupo oligárquico montevideano. La crisis económica, la falta de fondos en el erario público y la predominancia demográfica y política de los extranjeros en la ciudad favorecieron la firma de los Tratados de 1851, 40

41

42

Cf.CONRAD, Robert E. Tumbeiros: o tráfico escravista para o Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1985; CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil: 1850-1888. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília, INL, 1975. PALERMO, Eduardo. Secuestro y tráfico de esclavos en la frontera uruguaya. En: Revista digital Tema Livre. Nº 13. Mayo de 2009. Río de Janeiro. http:// www.revistatemalivre.com BARCELLOS, César Augusto. O Rio Grande de São Pedro e o prata na primeira metade do século XIX (1811-1851). Rio de Janeiro. Tesis de Doutoramento. UFRJ (mimeo), 1998.

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negociados por Andrés Lamas, representante montevideano ante la corte en Janeiro. Montevideo se transformó en una ciudad “europeizada” y la campaña poco representaba para su clase política.

Tratados de 1851: el sometimiento oriental a los intereses brasileños Los Tratados de 1851 representaron a lo largo de la segunda mitad del siglo 19 la dependencia diplomática y económica de Uruguay frente a los intereses brasileños. Fueron cinco los tratados firmados: alianza, límites, navegación y comercio, extradición y prestación de socorros. Los tres últimos comprometieron la economía Oriental, condenando la industria saladeril, aumentando el endeudamiento externo y condicionaron las relaciones diplomáticas, promoviendo hasta finales de ese siglo la devolución de trabajadores esclavizados fugados de territorio brasileño. A partir de la firma de los Tratados, los propietarios brasileños recuperaron el derecho de reclamar la devolución de los esclavizados fugados. Estos tratados hicieron renacer la economía riograndense y promovieron la reocupación de las tierras fronterizas, los nuevos propietarios se instalaron con sus familias y sus “esclavos”, sin dejar de considerarse súbditos del Imperio e ignorando la legislación uruguaya abolicionista.43 Así se crearon las condiciones legales para que los estancieros brasileños continuaran utilizando el espacio fronterizo como invernada del ganado para las charqueadas riograndenses. En 1845, el diputado paulista Silva Ferraz, describía la situación de la frontera con estas palabras: “[...] ao cruzar o outro lado do Jaguarão, o traje, o idioma, os costumes, a moeda, os pesos e me43

BLEIL, S. & PEREIRA PRADO, F. Brasileiros na fronteira uruguaia:economia e política no século XIX. In: Simposio fronteras en el espacio platino. Segundas Jornadas de Historia Económica. Montevideo.CD. 1999

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didas, tudo, até o outro lado do Rio Negro, tudo senhores, até a terra, é brasileiro”.44 Un censo de propietarios brasileños realizado en 1850 por los Comandante de Frontera brasileños, confirma lo expresado por el diputado Silva Ferraz: en frontera del Chuy – 35 hacendados con 342 leguas cuadradas; 154 propietarios en Cerro Largo y Treinta y Tres; en Arapey Grande y Chico, cuchilla de Haedo y Cuareim, 281 propietarios, en Cerro Blancos, distrito de Tacuarembo, 87 propietarios con 331 leguas.45 La lista general reveló la existencia de 1181 propietarios que sumaba 3.403 leguas de campo – es decir más de 9 millones de hectáreas pobladas que alimentaban los saladeros riograndenses.

Continúa la esclavización de trabajadores en la frontera oriental – 1850-1880 Las leyes uruguayas continuaron prohibiendo la introducción de esclavos en el territorio, pero autorizaron el sistema de “contratos de peonaje”, como forma de “compensar” las pérdidas sufridas por los estancieros brasileños durante el período oribista. Esos contratos se realizaban con una duración promedio de 15 a 20 años, fijándose un salario anual que representaba menos de la mitad de lo que se pagaba a los peones libres, situación que provocó protestas de los hacendados al Sur del río Negro. En 1857, en Río de Janeiro, Andrés Lamas se dirigía a Silva Paranhos, afirmando que los hacendados brasileños introducían “esclavos” en territorio uruguayo por medio de contratos de peonaje, que se extendían hasta por 30 años, 44

45

GOBBI SETTI, Ana Luiza. A diplomacia marginal: Vinculações politícas entre o Rio Grande do Sul e Uruguai (1893-1904). Passo Fundo: Editora UPF,1999. p. 83. COSTA FRANCO, Sergio da. Gentes e coisas da fronteira sul. Ensaios históricos. Porto Alegre, Sulina, 2001.p.13-14.

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convirtiendo al “esclavo” en un colono, no obstante cuando el “peón contratado” retornaba a territorio brasileño volvía a su condición de esclavizado. Sostenía en la nota: “[...] varios brasileros de los que ocupan la mejor parte del territorio oriental fronterizo han introducido notable número de personas de color para el servicio y manejo de sus establecimientos. Estas desgraciadas personas de color entran en la calidad […] de personas libres, ligadas al servicio del introductor por contratos de locación de servicios. En el momento en que […] le conviene al poseedor de la persona de color, le hace trasponer la frontera y […] cae el mentiroso y audaz disfraz con que se ha burlado las leyes de la República y la […] víctima vuelve a asumir su pública condición de esclavo.” Seguía Andrés Lamas: “Las infelices personas de color que se introducen en la República, […] no solo son tratados como esclavos […] sino que sufren allí, […] la última y peor desgracia de la esclavitud, […] los hijos de las personas de color son traídos al Río Grande y allí bautizados como nacidos de vientre esclavo. […] De esta manera en algunos establecimientos del Estado Oriental no solo existe de hecho la esclavitud sino que al lado del criadero de vacas se establece un pequeño criadero de esclavos”.46 Pese a la prohibición de introducir esclavos en el Estado Oriental, las autoridades reconocían la existencia de los mismos. El Jefe Político de Cerro Largo, informaba al Ministro de Gobierno: “[...] según noticias que tengo, existen en algunas estancias de Brasileros porción de esclavos introducidos furtivamente en el territorio de la República”.47 Un numero elevado de los trabajadores rurales de las estancias de frontera eran esclavizados, otros habían sido introducidos legalmente por medio de contratos de peonaje, ya mencionados, el análisis de los mismos permite comprender sus condición de esclavización encubierta. En 1861, el presi46

47

AGN. Ex. AGA. Ministerio de Relaciones Exteriores. Caja 102.Carpeta 124 A. p. 1-5. 1857. AGN. Ex. AGA. Caja 1004- hoja 2. el subrayado es nuestro.

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dente Berro solicitó al Jefe Político de Cerro Largo, un informe al respecto. Hemos estudiado ese documento que se compone de 183 contratos realizados entre 1850 y 1860. El 65 % de los mismos se concentran entre 1853 y 1856. La edad promedio de los contratados es de 25 años; los extremos etáreos son 66 años y 2 años. Se constata una marcada masculinización: 72 %; la mayoría de los contratados están en la faja de los 18 a 49 años, siendo el 64.5%, mientras que los adolescentes representan el 13 %.48 Entre los contratados, figuran niños de 2, 3, 4 y 6 años, con plazos de 20 a 22 años de extensión, valorados en mil patacones, es decir nueve contos y 600 mil-réis. La finalización de los contratos, en los casos extremos, se situaban entre 1895 y 1900! Otro informe similar al citado es redactado por el Jefe Político de Tacuarembó en 1861. Este sistema de contratos fue discutido y condenado en el parlamento uruguayo, pero no fue abolido. En 1862, el Presidente Berro prohibió la celebración de contratos de trabajo por más de seis años, sin embargo los sucesos políticos de 1863 – invasión de Venancio Flores para derrocar el gobierno Berro, con el apoyo de los hacendados riograndenses – y las vinculaciones del nuevo gobierno uruguayo con Flores a la cabeza, con los países vecinos, que culminará en la guerra contra Paraguay, hicieron que la medida restrictiva quedara en suspenso. El historiador brasileño Sergio da Costa Franco afirma que “entre as queixas dos fazendeiros brasileiros, de que foi Antonio de Souza Netto o principal porta-voz, contra o governo blanco, en 1863/64, o favorecimento a fuga de escravos era uma das principais”.49

48

49

MHN. Archivo del Cnel. José Gabriel Palomeque. Jefatura Política del departamento de Cerro Largo. Tomo III. 1860-1861. T.353.- Ver: BORUCKI, A., Chagas, K., Stalla, N. Esclavitud y trabajo entre la guerra y la paz. Una aproximación al estudio de los morenos y pardos en la frontera del Estado oriental (1835-1855). Montevideo: Ed. Pulmón, 2004. COSTA FRANCO, Sergio da. Ob. Cit. p.16

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En 1860 el diputado uruguayo Vázquez Sagastume expresaba con absoluta claridad el predominio brasileño al Norte de ese país, afirmaba que dichos territorios eran “como continuación del Río Grande del Sur”, colocando dicha situación como una grave afrenta a la nacionalidad oriental, “[…] puede decirse que (en los territorios norteños y fronterizos) ya no hay Estado Oriental: los usos, las costumbres, el idioma, el modo de ser, todo es brasilero”.50 En 1866, Andrés Lamas realizaba una nueva denuncia sobre la tenencia de trabajadores esclavizados encubiertos: “[…] por medio de contratos registrados en los vice consulados de la República y que en consecuencia, desde que los dichos hombres de color vuelven a ser traídos a la provincia de Río Grande del Sur, vuelven a su anterior condición de esclavos y siendo tratados como tal se venden, se compran e incluyen como cosa en los inventarios y particiones de herencias”. Lamas citaba como ejemplo de esa situación el testamento de Antonio de Souza Netto, cuyos campos en Tacuarembó incluían algunos trabajadores esclavizados y estaban siendo disputados por sus familiares, protestando por esa situación: “[...] los hombres de color que tenía en sus establecimientos del Estado Oriental han sido incluidos en el inventario de sus bienes, a pesar de que todos aquellos hombres son libres por el solo hecho de residir en el territorio oriental y respecto a nueve de ellos existen nueve contratos registrados en el vice consulado de la República en Bagé”.51 En las décadas siguientes, la presencia económica brasileña irá en aumento y consecuentemente la presencia de trabajadores esclavizados. Veamos algunas cifras ilustrativas. En 1860, Uruguay esta poblado por 221 mil personas, de las cuales aproximadamente 40 mil eran brasileños. En departamentos fronterizos como Tacuarembó (más Rivera) y Salto 50

51

BARRAN, Jose Pedro, NAHUM, Benjamín. Historia rural del Uruguay moderno.1851-1885. Montevideo: Banda Oriental, 1967. p. 86-87. AGN. Relaciones Exteriores. Caja 107, carpeta 315-1866

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(más Artigas) el 60 % de la población era brasileña, mientras que en Cerro Largo (más Treinta y Tres) eran el 40 %.52 En el período 1852-1885 la tendencia del valor de la hectárea de campo en los departamentos fronterizos del Norte uruguayo siempre fue inferior al promedio nacional y notoriamente inferior con respecto a las tierras del litoral del río Uruguay y el Sur de ese país.53 En 1861 el valor de un vacuno era de 4,40 pesos, y la hectárea de campo promedio en los departamentos de frontera era de 2,66 pesos, una estancia ovejera con construcciones y demás valoraba la hectárea de campo en seis pesos. En 1885 un vacuno se cotizaba a cinco pesos y la hectárea de tierra en la frontera valía en promedio 4,98 pesos.54 En la década de 1860, el salario de un peón se situaba entre diez y doce pesos en el Sur de Uruguay, en la región Norte denunciaban el pago de salarios inferiores a seis pesos, explicitándose que esos sueldos eran producto de la esclavización de los trabajadores.55 Si tomamos los contratos de peonaje mencionados anteriormente, obtenemos que los valores medios fueron de 17 años de duración y 687 patacones, lo que representa, apenas como referencia, un salario mensual de 3,36 pesos por mes. En los contratos cuyo texto completo hemos ubicado, el valor medio era de cincuenta patacones anuales, es decir, 4,16 pesos por mes de salario. El análisis de los datos estadísticos de 1880, para los departamentos de Salto (incluye Artigas), Tacuarembó (Rivera) y Cerro Largo (Treinta y Tres) permite afirmar que los propietarios brasileños superan en número y valor económico 52

53

54 55

PETRISSANS, Ricardo, FREIRIA, Gonzalo. Extranjerización de las tierras nacionales. Montevideo: Proyección, 1987. p. 30. BARRAN, Jose Pedro, NAHUM, Benjamín. Historia rural del Uruguay moderno.1851-1885. Montevideo: Banda Oriental, 1967. p. 319. Cuadro 1. Tomo 2 Datos a partir de Ibid. Tomo 1. p. 51 y Tomo 2. Cuadro 1. Informe del diputado Vázquez Sagastume en el parlamento uruguayo. Diario de Sesiones de la Cámara de Representantes. Montevideo: Año 1860. Tomo 8, p. 111-112.

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a los nacionales. Los brasileños poseen propiedades con valores muy cercanos a los 26 millones de pesos. En esos departamentos hay una alta concentración de capitales norteños – el 70,15 % del total de los capitales brasileños en el país en el año – y de pobladores, el 77 % de los propietarios de esa nacionalidad. En el caso de Tacuarembó, los propietarios brasileños representaban el 73 % y sus propiedades, casi diez millones de pesos, el 76 % del valor total de la propiedades.56 La frontera Norte, “abrasilerada” y comprometida por sinnúmero de problemas, en la visión de los gobernantes uruguayos, entre los cuáles se destacan: el contrabando; la extranjerización de la tierra; la persistencia de formas semi serviles y aún serviles de trabajo; un alto índice de delincuencia y la permanente fricción entre las autoridades a resultas de los permanentes reclamos de los hacendados brasileros, dueños de la tierra, a lo que debemos sumar las profundas vinculaciones y alianzas políticas entre caudillos y partidos a ambos lados de la frontera, representaba uno de los principales obstáculos para crear la “unidad nacional” o más bien para consolidar el poder centralista del grupo agro exportador montevideano. A partir de políticas de “desbrasilerización” adoptadas en la década de 1860, con Bernardo Berro, y particularmente con el desarrollo del centralismo político, en la década de 1870, con las dictaduras militares de Latorre y Santos, la frontera intentó ser “disciplinada”, llevando una mayor presencia del Estado Oriental en los departamentos fronterizos. Medidas como el Código Rural, el alambramiento de los campos, la policía rural armada con Remington y la cárcel para los que no pudieran demostrar que tenían trabajo fijo, presionaron 56

Boletín de Estadística. Cuaderno XII-1883. p. 4. Montevideo: Biblioteca Nacional. Cf. PALERMO, Eduardo. Cautivos en las estancias de la frontera uruguaya. Tráfico de esclavos en la frontera oriental en la segunda mitad del siglo XIX. En: Revista digital Mundo Agrario. Nº 17. Segundo semestre de 2008. Universidad Nacional de La Plata. Buenos Aires. Argentina.

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fuertemente para establecer la mano de obra asalariada. El cercamiento de los campos promovió la expulsión de los ocupantes de la tierra sin título y de los pequeños propietarios que se transformaron en asalariados rurales en competencia por acceder a un empleo, esto presionó a la baja a los salarios altos de otrora y la pérdida de las ventajas comparativas del trabajador esclavizado. Este proceso en la frontera fue lento y no implicó la desaparición de los contratos de peonajes en forma inmediata, pero si promovió el trabajo asalariado. Sin embargo la presencia importante de población y capitales de origen brasileño no desapareció, más bien cumplió a lo largo del siglo 20, ciclos de contracción y avance que han llevado a discutir reiteradas veces en el parlamento uruguayo leyes que limiten la compra de tierras en la zona de frontera.

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Eduardo R. Palermo

No extremo sul, uma elite diferenciada Andréia Oliveira da Silva*

Introdução Em acordo com a temática central proposta pelo conjunto desta obra, as questões aqui levantadas transitam por processos transcorridos ao longo do século XIX, compreendendo neste período a marcante presença das elites pastoris sul-riograndenses estabelecidas nas áreas fronteiriças (com a República Oriental do Uruguai), bem como as suas formas de expressão e ação políticas. Contudo, antes de se dar o prosseguimento a essas questões, convém alertar em relação ao título que apresenta este artigo que sugere questões ambíguas: pode tanto referir-se a uma elite (rural) que se diferenciava no plano social (em relação comparativa com outras elites) como dar a entender que esta mesma elite se destaca por uma diferenciação política (de atitudes, condutas e comportamentos). Respondendo a esta questão, embora não se deixe de concordar que as elites pastoris brasileiras se diferenciavam, de fato, de outros tipos de elites rurais, notadamente em relação às grandes elites agroexportadoras brasileiras, o texto busca refletir a respeito da diferenciação política da elite pastoril

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brasileira do extremo sul. As demarcações de diferenciação das elites rurais do extremo sul, conforme se quer demonstrar, não se davam apenas em relação aos grupos rurais agroexportadores; constituindo-se, também, como uma particularização em relação a outros grupos pastoris.

Um perfil dissidente Ao longo das regiões de fronteira, a insatisfação aguda com a “intervenção” estatal conduziu para um sentimento marcadamente “oposicionista”, que alimentou as fileiras políticas identificadas com as elites pastoris. E isso desde que se organizaram as primeiras estruturas partidárias, herdeiras do longo e belicoso processo de disputa territorial que, em virtude das condições em que transcorreu, assumiu cada vez mais a marca particular daqueles que o empreenderam – “numa verdadeira privatização do poder armado”.1 A própria necessidade de alianças visando è comum proteção dos envolvidos no processo de expansão territorial foi responsável pela apropriação de funções que deveriam caber ao Estado, cuja ausência permitiu o arraigamento dos processos de particularização, nos quais sentimentos de desconfiança, bairrismo, divergência e autonomia foram predominantes. Não custa lembrar também que, ao longo do século XIX, as elites rurais sul-rio-grandense assumiram o controle de vastas regiões além da fronteira, estabelecendo um verdadeiro “Estado dentro do Estado” em pleno território uruguaio. Nas primeiras décadas do século XIX, elites pastoris sul-riograndenses exerciam o controle sobre cerca de quarenta mil pessoas no outro lado da fronteira, entre agregados, escravos e aliados de origem ibero-americana, uma força tão expressi1

CARNEIRO, N. L. G. As relações de fronteiriças Rio Grande do Sul-Uruguai na segunda metade do século XIX: o impacto platino. História: Debates e Tendências, Passo Fundo: UPF, v. 6, n. 2, jul./dez. 2006, p. 219.

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va que, por mais de uma ocasião, mostrava-se uma poderosa base para operações armadas de grande porte, mobilizadas contra os governos brasileiros. E a presença de milhares e milhares de escravos (de propriedade destas mesmas elites) num Estado onde a escravidão não mais existia foi o foco de inúmeros conflitos locais, os quais resultaram, por fim, na década de 1860, na invasão do país vizinho por um exército irregular de mais de cinco mil homens – comandados por nomes como Antônio Netto ou Canabarro –, sob a proteção de Osório (então no comando das armas do Rio Grande do Sul) e das lideranças identificadas com o liberalismo. No que dizia respeito aos interesses brasileiros, contudo, a derrubada de um governo legítimo, aliado do Rio de Janeiro, golpe promovido por aquela força de sul-rio-grandenses em aliança com um punhado de membros do Partido Colorado (que a “legitimavam” como uma “revolução nacional”), foi o estopim de uma longa série de fatos indesejáveis que levaram à guerra entre o Brasil e o Paraguai, a qual a diplomacia brasileira cuidadosamente evitara por mais de uma década. Dificuldades geradas na região de fronteira, em razão da ingerência das elites pastoris do extremo sul, levaram o governo do Império e o de Rosas (da Confederação Argentina) a cogitarem seriamente, um ao outro, uma aliança que desse cabo a um só tempo dos rebeldes farroupilhas, no Rio Grande do Sul, e do exército montonero, de Rivera, no Estado Oriental, os quais por toda uma década deram e encontraram mútua sustentação às guerras civis que os dois grupos encabeçavam em cada Estado. Mas também se podem enumerar muitos outros exemplos, como nos acordos secretos levados a cabo entre o Rio de Janeiro, os colorados de Montevidéu e as forças paramilitares de Urquiza (Corrientes e Entre Ríos) ao longo da década de 1850, que previam operações conjuntas contra dissidências No extremo sul, uma elite diferenciada

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armadas que pudessem ocorrer no Rio Grande do Sul, para se ficar apenas com os casos mais conhecidos. O Império acautelava-se, assim, com razão, com as condições muitos peculiares que envolviam as elites pastoris no extremo Sul, vendo em tais ações um risco permanente à integridade territorial e à autoridade de Estado. E o espaço sobre o qual essas elites se deslocavam era percebido, de igual modo, como um ambiente inseguro e turvo, um atoleiro de problemas políticos que constrangiam as iniciativas e a cautela com que o Rio de Janeiro conduzia seus interesses internacionais em relação ao espaço platino.

A fronteira seca, uma zona “lodosa” e insegura Embora as observações que se faz em relação ao comportamento dissidente apresentado pelas elites pastoris fronteiriças seja uma marca permanente tanto da sua atuação como daquela praticada pelos grupos políticos que vieram a representá-la, é importante historiar os processos aos quais aquele comportamento se acha vinculado. Até mesmo porque esta marca dissente é geralmente, e de forma contraditória, apresentada como sendo uma característica do período em que se deu a Guerra dos Farrapos (1835-1845) e, muitas vezes, de forma errônea, associada a esta e a um discurso de “injustiças” praticadas contra a província do Rio Grande do Sul, situação que teria lançado parte da província à guerra contra o governo do Rio de Janeiro. Como é sabido, os principais líderes ou figuras dessa revolta eram todos importantes membros e representantes das elites pastoris sul-rio-grandenses, como Bento Gonçalves, Antônio Netto ou Bento Manuel Ribeiro. E sendo essas elites grupos que se militarizaram e assumiram o controle do poder armado nas fronteiras do extremo Sul, seus principais repre134

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sentantes, na época da Guerra dos Farrapos, eram ao mesmo tempo estancieiros e militares. Formavam, assim, a famosa camada de proprietários rurais sul-rio-grandenses militarizados, grupo social que, no Prata, seria tachado com o emblemático título de “caudilhos”. No entanto, dez anos antes de eclodir a guerra no Rio Grande do Sul, as elites pastoris fronteiriças lançavam-se em uma aventura além da fronteira, a qual comprometeu decisivamente a sorte luso-brasileira na Guerra da Cisplatina (1825-1828) e, ao mesmo tempo, questiona todo um discurso que se constrói ao redor da Revolução Farroupilha – discurso que sustenta a “brasilidade” desta revolta e a defende observando que o levante visava eliminar práticas desiguais e injustas que se faziam contra a sociedade (leia-se os grupos pastoris) sul-rio-grandense. Já naquela ocasião deparava-se com a firme liderança dos mesmos membros e representantes das elites pastoris que, anos depois, seriam os comandantes da guerra contra o governo do Império: Bento Gonçalves, Netto, Bento Manuel, e outros. Contudo, apagado de nossos registros historiográficos, este episódio, ao assegurar a independência da Província Cisplatina e colocar no poder uruguaio os principais adversários do Império, também por uma surpreendente “coincidência”, colocava no poder da República vizinha os principais aliados dos futuros líderes da Revolta Farroupilha. A começar pelo general Lavalleja, íntimo de Bento Gonçalves, a ponto de ter com este uma relação de compadrio (isto é, ambos eram compadres e padrinhos, um dos filhos dos outros, assumindo a responsabilidade pelas respectivas famílias no caso da morte de um dos dois). Anos depois, Lavalleja e dezenas de outros líderes insurgentes durante a Guerra da Cisplatina seriam os principais instrumentos de proteção dos farrapos no outro lado da fronteira. No extremo sul, uma elite diferenciada

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Para o Brasil, o Prata desfrutava, no século XIX, de um status de estratégia e segurança continentais que não se faz necessário recapitular aqui. É importante rememorar, contudo, que um dos principais projetos do governo luso-brasileiro e, a seguir, brasileiro era assegurar o controle de parte das águas interiores platinas, com o que o Rio de Janeiro teria direito de ingerência sobre as decisões e acordos que afetam a navegação e acesso ao rio da Prata e seus afluentes. Nesse sentido, a invasão, ocupação e anexação do território da Banda Oriental (atual Uruguai) seriam, em termos continentais, a maior de todas as ambições relacionadas à razão de Estado luso-brasileira e brasileira para a América. A efetiva realização desta empreitada foi vista como um grande prêmio após a chegada da corte ao Rio de Janeiro e por ocasião das guerras napoleônicas na Europa, que desarticularam o antigo sistema colonial. Mas para as elites pastoris sul-rio-grandenses, que já se estendiam para além da fronteira, foi a oportunidade para um novo e intenso fluxo de conquista e anexação de territórios orientais, conduzidos pelas mesmas elites guerreiras que controlavam o extremo sul brasileiro. Apesar de bem-sucedida e de contar com o apoio de influentes setores orientais em Montevidéu, a ocupação brasileira jamais foi completamente consolidada nas áreas rurais do país vizinho, onde as guerrilhas e escaramuças mantinham alguma atividade, mesmo que irregular. Em abril de 1825, essa situação se modificaria de forma radical: ao desembarcar no litoral uruguaio, Lavalleja iniciou sua famosa campanha contra o governo brasileiro, mudando os rumos da guerra. Os custos da sua guerra foram cobertos, inicialmente, com a expropriação e venda de gado para os comerciantes portenhos, este oriundo de regiões onde predominavam propriedades de sul-rio-grandenses. Assim, o prejuízo recaía 136

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também sobre os proprietários brasileiros residentes na Banda Oriental – o que os colocava em posição de buscar algum tipo de acordo com os revoltosos, mesmo que isso implicasse renunciar à defesa dos interesses do Brasil na região. Ainda durante o ano de 1825, na mesma medida em que cessavam os ataques às propriedades das elites rurais riograndenses, boatos davam conta de que as ações de Lavalleja contavam com a proteção de dois importantes oficiais das fronteiras, vinculados aos grupos pastoris: os coronéis Netto e Bento Conçalves. Na outra margem do Prata, uma receosa e dividida elite portenha, que alimentava apreensões quanto às intenções dos planos brasileiros para a região, decidiu preparar o enfrentamento armado contra o Brasil e, ao mesmo tempo, assumir para si o controle das duas margens do Prata. O Império, diante dessa reação, declarou guerra às Províncias Unidas (Argentina), em princípios de 1826. Se Lavalleja recebeu tal iniciativa com desconfiança, outra liderança uruguaia, Frutuoso Rivera, a aceitou quase que imediatamente, incorporando-se ao exército portenho, sob as ordens do general Carlos de Alvear. E enquanto a Inglaterra, por razões políticas e econômicas, preparava o terreno onde iria propor a negociação diplomática, Rivera organizava um audacioso plano: o de ocupar a província do Rio Grande do Sul, arrastando, assim, o conflito para dentro das fronteiras brasileiras. A ideia de incendiar a fronteira sul-rio-grandense para, assim, forçar o Brasil a desocupar a Banda Oriental era uma tática capaz de obter êxito. Assim, antes mesmo dos planos de Rivera, um aliado de Lavalleja em Buenos Aires, identificando-se como “El vecino de la plaza de la Concepción”, escrevialhe, em novembro de 1825, sustentando a ideia de “que Mon*

Mestra em História pelo PPGH da UFMS e professora da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul.

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tevidéu se gana em Puerto Alegre, pues revolucionando la Provincia de Río Grande, quita Ud. el corazón al Brasil...”.2 Aqui nos afastamos dos relatos relacionados à condução da guerra para destacar aquilo que de fato diz respeito ao comportamento dos grupos pastoris sul-rio-grandenses, os quais, pressentindo as dificuldades do Brasil em assegurar por muito mais tempo a ocupação da Cisplatina, inclinam-se à aliança com os setores da elite oriental que lideravam a campanha contra o Rio de Janeiro. Em 1827, as forças de Lavalleja e de Alvear (que comandava tropas argentinas) obtiveram estrondosa vitória sobre as divisões imperiais em Ituzaingó (Passo do Rosário), desequilibrando de vez o conflito. Em meio a essa batalha, fatos questionam a atuação e os vínculos das lideranças militares ligadas às elites pastoris do extremo sul, fazendo ver que aquela aliança pretendida pelos sul-rio-grandenses já se manifestava: “A propósito de esta importantísima ocurrencia militar, vale la pena saber cuánta ingerencia tuvo en esa derrota de los imperiales el abandono de la lucha que, en momentos decisivos de la batalla, hicieron algunos cuerpos de ejército dirigidos, al parecer por oficiales riograndenses adeptos a la francmasonería y partidarios de la independencia de su Estado natal.”3 Moniz Bandeira, concordando inteiramente com as observações de Cabrelli, destaca que, quando da derrota de Ituzaingó, “inúmeros soldados e alguns regimentos inteiros, inspirados nas idéias republicanas, desertavam, aderindo às forças insurgentes de Lavalleja e Manuel Oribe.”4 A isso se acrescentam os comentários do visconde de São Leopoldo, 2

3 4

Citado por CABRELLI, Alfonso Fernandez. Presencia masonica en la Cisplatina. Montevidéu: Imprenta Alvarez, 1986. p. 192. Iden., p. 194. BANDEIRA, Moniz. O expansionismo brasileiro e a formação dos Estados na Bacia do Prata: da descolonização à guerra da Tríplice Aliança. São Paulo: Ensaio; Brasília, DF: Editora da Universidade de Brasília, 1995, p. 78.

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destacando que a paz de 1828 se fazia necessária não só pelo esforço militar e econômico exigidos até então, mas também “para se atalharem os planos subversivos e as maquinações para agitar o país, e sobretudo o Rio Grande”.5 Segundo outro autor, a batalha de Ituzaingó não só lançou fortes suspeitas sobre o comportamento das nossas elites pastoris e de seus representantes como também apresentou bandos de sul-rio-grandenses combatendo ao lado das tropas uruguaias e argentinas.6 Em suas memórias a respeito dessa campanha, o marechal Gustavo Henrique Brown, um dos principais comandantes militares envolvidos nas operações de guerra contra Alvear e Lavalleja, levantou fundamentadas acusações contra oficiais que comandavam os regimentos compostos por sul-rio-grandenses: o general Lecor (visconde de Laguna) e os coronéis Sebastião Barreto Pereira Pinto, Bento Gonçalves, Antônio Netto e Bento Manuel. Entre outras acusações, Brown sustentava que eles se esforçaram o quanto possível para que as operações inimigas em território sul-rio-grandense não encontrassem resistência militar, quando a sorte das armas ainda apontava para o favoritismo do Brasil, principalmente porque, na véspera da batalha de Ituzaingó, Lavalleja fora descoberto e encurralado em uma região de gritante inferioridade estratégica. Nessa oportunidade, o principal comandante do levante oriental também estava muito afastado das forças argentinas, não tendo condições de oferecer resistência. Contudo, Lecor, Bento Manuel e Bento Gonçalves recusaram-se a marchar contra ele, alegando a necessidade de agrupar mais forças. Com isso, por mais de um dia e uma noite permitiram o tem5

6

MELLO, Francisco Inácio Marcondes Homem de (Comp.). Memórias do Visconde de São Leopoldo José Feliciano Fernandes Pinheiro. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, Rio de Janeiro, tomo XXXVIII, 2ª parte, 3. trim. 1874, p. 20. Ver PORTO, Aurélio. A influência do caudilhismo uruguaio no Rio Grande do Sul. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, ano IX, v. XXXV, IV trim. 1929, p. 380.

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po necessário para Lavalleja fugir. Dois dias depois, uma junção de forças orientais e argentinas, tendo à frente o próprio Lavalleja, destroçou as tropas brasileiras no Passo do Rosário (Itaizaingó): “Isto é, ou estar de inteligência com o inimigo, ou ter incapacidade mental para dirigir tropas”.7 Justamente quando as forças inimigas se achavam desavisadas, isoladas e sem provisões e quando todos os preparativos de Brown para empreender-lhes uma batalha decisiva foram mobilizados, e sem outras explicações, Lecor ordenou que se suspendessem quaisquer iniciativas nesse sentido e, com uma “ordem desagradável”, cancelou de imediato o estado de prontidão em que se encontravam as forças brasileiras. De acordo com a descrição de seu relatório de campo, quando souberam dos preparativos conduzidos por Brown, os oficiais sul-rio-grandenses insurgiram-se contra sua liderança, declarando que não moveriam suas tropas a não ser sob ordens expressas de Lecor. Brown ainda teria tentado inviabilizar o motim, mas Sebastião Barreto, Bento Gonçalves e Bento Manoel Ribeiro, antecipando-se a tais movimentos, enviaram emissários ao acampamento de Lecor. A decisão deste foi incondicionalmente favorável aos insurgentes, obrigando Brown a pedir sua demissão (o que não foi aceito de imediato, visto que Lecor certamente não desejava ver sua posição questionada junto à Corte, o que poderia ocorrer se Brown desembarcasse no Rio de Janeiro portando o maço de ordens e outros documentos que vinha juntando contra Lecor). Reforçando as observações de Brown, o visconde de São Leopoldo também se mostrou perplexo diante da “inconcebível inércia do general Visconde de Laguna”.8 7

8

BROWN, Gustavo Henrique. Defesa e relatório do marechal de campo Gustavo Henrique Brown perante o Conselho de Guerra. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, Porto Alegre: Tipografia do Centro, ano VI, I/II trim.1926, p. 237. Ver também as páginas 227, 233 e 236 da mesma obra, que condensam as afirmações emitidas por Brown. Ver MELLO, op. cit., p. 67.

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A descrição dos fatos que marcaram a Campanha da Cisplatina ganha um caráter surpreendente com a minuciosa rememoração de Brown, que não poupa esforços nem acusações ao declarar que a maior parte dos comandantes em operação foi incapaz ou, mesmo, facilitou a ação inimiga quando, vista a correlação de força, víveres e armamentos, tudo favorecia ao Brasil. Na sua opinião, o resultado da guerra veio a ser inteiramente desfavorável ao Império, em razão das evidentes manobras para que tal ocorresse, fatos aos quais denomina como “páginas negras da história daquela campanha.”9 Outro oficial a serviço do Brasil durante a Campanha da Cisplatina, Carlos Seidler, enfatiza que a corrupção generalizada das altas patentes militares sul-rio-grandenses acabou por comprometer toda a ação brasileira na região, dotando as armas das Repúblicas platinas de uma poderosa vantagem, que, nas condições em que se apresentavam os contendores, jamais haveriam de possuir por outra forma.10 Seidler, igualmente, levanta suspeitas em relação aos procedimentos de Lecor, quando Rivera se decidiu por ocupar as Missões Ocidentais. Também informa que Rivera recebera recursos daquele, os quais seriam provenientes do soldo das tropas, que havia muito não eram pagas em virtude da corrupção e dos desvios praticados pelos altos comandos, entre os quais se achava o próprio Lecor: “[...] o governo brasileiro mandava frequentemente importantes somas destinadas a paga dos soldos; eram, porém, pelo general Lecor mandados ao famigerado general Frutuoso Rivera, que a este tempo [março de 1828] se achava com uns dois mil homens nas Missões em Santa Maria”.11

9 10

11

BROWN, op. cit., p. 245. SEIDLER, Carlos. Dez anos no Brasil. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, Porto Alegre: Tipografia do Centro, ano X, I trim. 1930, p. 41-42. SEIDLER, p. 66-67. Grifos no original.

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Se Brown e Seidler destacam a incompetência de Lecor, Barbacena concentra-se na retirada “inexplicável” dos sulrio-grandenses quando da Batalha de Ituzaingó. Em relação a esta questão, diz que “a inexplicável ausência do coronel Bento Manoel Ribeiro foi prejudicial a causa brasileira. Perante o exame imparcial da história o coronel Bento Manoel tem uma grande responsabilidade.” Salienta ainda que, consumada a estrondosa derrota de Ituzaingó, Bento Manoel foi encontrado “completamente estranho e indiferente aos acontecimentos [...] Todas as circunstâncias estabelecem a irrecusável prova de que Bento Manoel faltou intencionalmente a ação ferida em 20 de fevereiro em Ituzaingó.” Dessa “traição” decorreria, segundo o autor, a sorte das armas em favor de Lavalleja e Alvear.12 “Aquele coronel, tendo a sua gente montada em cavalos magníficos, nem veio ao campo de batalha, nem se deu ao incomodo de procurar o exército, que o veio a encontrar ao terceiro dia [após consumada a derrota], tranqüilamente acampado na estância do coronel Carneiro, a dez léguas do campo da batalha.”13 O visconde de São Leopoldo também responsabiliza Bento Manoel como um dos principais responsável pela derrota no Passo do Rosário, acusando-o de não acudir as forças imperiais no momento do combate, apesar de se encontrar à frente de uma força de 1.500 homens “da melhor cavalaria” descansados e bem equipados, os quais não se envolveram na luta mesmo estando a pequena distância do local onde se deu o confronto.14 Da mesma forma, Netto retirou-se do conflito antes da batalha decisiva. Achava-se, nesta ocasião, comandando uma brigada de quase dois mil homens montados. E Bento Gon12

13 14

BARBACENA, Felisberto Caldeira; BRANT, Visconde de. História da Campanha do Sul em 1827 - Batalha de Ituzaingó. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, Rio de Janeiro, tomo XLIX, 2 trim.1886, p. 379 e 413. Os grifos são nossos. Idem, p. 509. MELLO, op. cit., p. 11 e 13. Ver ainda BARBACENA, op. cit., p. 354.

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çalves simplesmente destroçou as forças de infantaria do Império, atropelando-as com sua cavalaria. Alegaria depois, em sua defesa, que estavam fugindo do fogo inimigo (fugindo em formação de ataque!) e não conseguiram distinguir a infantaria brasileira no meio do tumulto. Depois deste último fato, as forças do Império não mais responderam ao inimigo, entregando-se a uma fuga desesperada e desorganizada. Sewelch deixa-nos um duro relato do tamanho da perda sofrida no Passo do Rosário pelas forças do Império: “[...] perdemos toda a bagagem, boiadas, cavaladas, carros, hospital, caixa militar, tudo enfim; mas o que tornava todas as perdas mais sensíveis, era que nos tinham sido tomadas as munições; a infantaria não tinha mais um cartucho; uma carreta com munições que salvamos perto do campo da batalha, podia fornecer alguma munição para a infantaria, mas em vez dos cartuchos só encontramos pólvora; não se podia pensar em resistência; nossa situação era bem triste.”15 Essas questões, comprometendo a atuação dos oficiais ligados à fronteira, não nos surgem, porém, como fatos surpreendentes, visto que desde cedo a elite pastoril regional compreendera que a preservação de seus interesses na Banda Oriental (Uruguai) era tarefa sua, antes que do Estado brasileiro. Conforme comentado anteriormente, nem mesmo se encerrara a repercussão do ocorrido em Ituzaingó, Rivera lançava-se sobre as áreas missioneiras sul-rio-grandenses, obtendo vitória tão espetacular quanto aquela, ocasião em que novamente recaem acusações de colaboração da elite pastoril sul-rio-grandense com os caudilhos orientais.16 15

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SEWELCH, A. A. J. Reminiscências da Campanha de 1827 contra Buenos Aires” (tradução de NOGUEIRA, Manoel Tomáz Alves). Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, tomo XXXVII, 1ª parte, 2. trim. 1874, p. 438. Sobre as suspeitas e acusações que pesaram contra os sul-rio-grandenses ver GARCÍA, Flavio, La província de San Pedro ante la recuperación de Misiones Orientales por Frutuoso Rivera. Boletín Histórico, Montevidéu, n 54/55, 1952, p. XLV, LV e LVII.

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O êxito total da ação militar traçada por Rivera jogou uma pá de cal sobre as últimas tentativas efetivas do Brasil de assegurar o controle da Banda Oriental. Finalmente, em agosto de 1828, Brasil e Províncias Unidas assinaram a paz, sob patrocínio direto da Inglaterra, comprometendo-se, ambos, a garantir, doravante, a independência e soberania do agora intitulado Estado Oriental do Uruguai. A forma altamente suspeita como os grupos pastoris sul-rio-grandenses se conduziram durante a guerra repercutiu junto aos círculos de decisão no Rio de Janeiro, influindo fortemente para que o governo de dom Pedro I se decidisse pelo término da mesma. Assim, entre as razões apresentadas ao Conselho de Estado quando da decisão de se acordar a paz com as Províncias Unidas (Argentina), uma referia-se diretamente à insegurança do governo em relação aos sul-riograndenses: “[...] a deserção em nosso Exército de operações o que mais impossibilitava de acudir, e fazer face a todos os pontos invadidos da nossa fronteira, a exposição aterradora que em seus ofícios faziam, tanto o General-em-Chefe do Exército, como o presidente e Conselho da Província de São Pedro, relativamente ao estado perigoso dela, já pelo desalento geral, já pelos partidos e opiniões, que grassavam; acresciam as maquinações e escritos revolucionários, que conseguiram introduzir.”17 Naquilo que se refere à economia pastoril uruguaia, alguns autores chegam a calcular que durante a ocupação do país por tropas luso-brasileiras, isto é, entre os anos de 1816 e 1828, os sul-rio-grandenses apropriaram-se de algo em torno de quatorze milhões de cabeças de gado.18 Um número desconhecido simplesmente se dispersou ou retornou ao estado 17

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Ver reunião do Conselho de Estado em de 27 de agosto de 1828. In: RODRIGUES, José Honório (Org.). Atas do Conselho de Estado. Brasília/DF: Senado Federal, 1973/1978 (13 v.). v. 2, 1973, p. 33-34. Todos os grifos são nossos. Ver, particularmente, a BANDEIRA, op. cit., p. 81.

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selvagem. Para qualquer um dos casos, a recuperação plena da economia uruguaia dependia agora de paz e estabilidade política, necessidades que não se fizeram conhecer, em razão das guerras civis que se avizinharam tão logo se encerrou o processo de desocupação por parte do Brasil. Em virtude dessas guerras civis se conheceu, daí por diante, um quadro ininterrupto de internacionalização. Dado o processo de irmanação entre os partidos políticos argentinos e uruguaios, também se passou a conviver com outro elemento permanente: a forte presença de proprietários sul-rio-grandenses em largos territórios do país, os quais se envolveram, a partir de então, em todas as guerras internas desenroladas no Uruguai ao longo do século XIX.19

A economia política pastoril da fronteira O peso da precária integração e do isolamento em relação ao nacional foi um elemento de grande importância na constituição das relações entre o Prata e a região fronteiriça. Além da “consciência” regional que a condição de isolamento e de periferização imposta despertaram, também influía sobre as elites rurais sul-rio-grandenses a presença dos centros portuários platinos, tidos como polos de inovação e de referência cultural para as elites rurais situadas na região de fronteira. Fortalecendo os laços regionais com o Prata estavam as facilidades de trânsito, através dos rios e de uma fronteira seca, e as dificuldades impostas à fiscalização – imensidão e desolação da área a ser controlada; riscos próprios da atividade do fisco e o corriqueiro corrompimento das autoridades alfandegárias e de fronteira. 19

Sobre a presença da elite pastoril sul-rio-grandense em território uruguaio, ver CARNEIRO, Newton Luis Garcia. De volta à fronteira - uma incursão aos fundamentos da cultura política sul-rio-grandense referente ao século XIX: a infiltração rio-grandense no Estado Oriental e a formação da identidade política regional. Tese (Doutorado) _ PUCRS, Porto Alegre, 2003.

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Em decorrência de tais laços oriundos da situação de fronteira, assiste-se ao crescimento das praças comerciais fronteiriças ao Uruguai, o que ocorre basicamente em razão dos seus vínculos econômicos com Montevidéu e, em menor escala, com Buenos Aires: “Na órbita de Montevidéu e Buenos Aires, desenvolveram-se, na fronteira gaúcha, importantes praças comerciais, como Uruguaiana, Jaguarão e Livramento, que rivalizaram os mercados do interior com as tradicionais praças do litoral (Rio Grande, Pelotas e Porto Alegre)”.20 O fluxo político, ganadeiro, comercial e contrabandista com o Estado Oriental foi tão intenso que, aos poucos, a fronteira com este adquiria mais importância em termos de contato que com o centro do país, levando com isso ao isolamento e à situação extrema denunciada pelo conservador Francisco da Silva Tavares: “A república do Uruguai está construindo três grandes vias férreas que se dirigem para a fronteira: Jaguarão, Bagé e Santa Rosa que vai ao Quaraím. “São estradas que caem como um polvo, absorvendo a seiva comercial da província. [...] o comércio não tem pátria, é cosmopolita, vai procurar os seus interesses onde acha mais facilidades [...] com as transações comerciais vão-se relações políticas com grande perigo para a integridade do Império, principalmente em uma província onde as idéias separatistas caminham.” 21 É preciso, ainda, em relação aos interesses econômicos dos grupos envolvidos com a economia pastoril, observar duas questões que são de grande importância. Em primeiro lugar, os fatos nos sugerem que os estancieiros sul-rio-grandenses se achavam menos preocupados com os destinos da indústria de charque sul-rio-grandense do 20

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DIAS, Marcelo Henrique. Geografia comercial e influência platina no Rio Grande do Sul dos séculos XIX e XX. Biblos, Rio Grande: Furg, n. 10, 1998, p. 97. Discurso pronunciado na Câmara dos Deputados em 15.09.1887. Transcrito no jornal O Conservador, órgão oficial do Partido Conservador do Rio Grande do Sul, Ed. l9.10.l887. Acervo do Centro de Pesquisa e Documentação da História Política do Rio Grande do Sul (CPDHPRS)/Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul. Todos os grifos são nossos.

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que comumente costuma se sugerir (visto que aquela elite rural e esta manufatureira têm sido apresentadas sempre como uma classe semi-homogênea, ou, no mínimo, integralmente interessada no destino da produção de transformação local). Em segundo lugar, pelo comportamento político das elites pastoris fronteiriças podemos inferir uma aproximação muito mais estreita com setores políticos e econômicos platinos do que com brasileiros (Pelotas e Rio Grande, de um modo geral), visto que, em se tratando do primeiro caso, as propaladas “dificuldades” econômicas estabelecidas pela concorrência saladeiril foram sempre colocadas de lado quando surgia aos estancieiros sul-rio-grandenses a necessidade ou oportunidade de se envolverem nas querelas e guerras políticas uruguaias. Ou, no mínimo, essas “dificuldades” não se constituíram em empecilhos ao atrelamento político das elites pastoris fronteiriças com os grupos portuários do Prata – isso para não se avançar sobre um terreno mais provável, de que, para os estancieiros sul-rio-grandenses, era mesmo mais conveniente associar-se com os saladeiros platinos do que com os charqueadores do Rio Grande do Sul. Ao contrário do que possa se supor à primeira vista, a destinação do gado de engorda das propriedades de sul-riograndenses no Uruguai não obedecia a qualquer valor nacionalista, nem a compromissos com os charqueadores locais. Vendia-se o gado onde o preço ofertado fosse o melhor, o que também contribuía para a permanente crise de produção da economia charqueadora sul-rio-grandense, fato que, ao contrário da historiografia sul-rio-grandense, os pesquisadores uruguaios não desconhecem. Selva Chirico destaca que, historicamente, “y asta hoy, la ganadería será una actividad que se mantendrá ligada al lado del límite que prometa comercialización más interesante”. 22

22

Ver CHIRICO, op. cit., , p. 8.

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Por outro lado, os dois principais centros econômicos ligados à produção de charque no Rio Grande do Sul, Pelotas e Rio Grande não aderiram ao levante dos farrapos, evidenciando a falta de interesses econômicos e políticos entre os comerciantes e grupo de proprietários ligados às charqueadas em relação aos estancieiros da fronteira. Assim, em sentido contrário ao que indicaria uma identificação comum entre os dois principais grupos vinculados à economia pastoril sul-rio-grandense, vale lembrar que os estancieiros sul-rio-grandenses encontravam também razões de forte motivação econômica para se envolverem naqueles conflitos. Isso se devia muito à forma como esses se manifestavam, alastrando-se pelas regiões de criação e envolvendo diretamente os proprietários aí residentes, os quais podiam se arruinar em meio a esses, mas também muitos podiam engordar suas fortunas com a pilhagem e lapidação do patrimônio dos adversários. A guerra era não apenas um modo de fazer a política, mas também de reacomodar as riquezas e o padrão de poder econômico pastoril, situação à qual os sulrio-grandenses não apenas estavam adaptados, mas em que também eram ativos agentes. Como se pode perceber, o fator econômico é de ordem a vincular-se estreitamente ao tipo de comportamento político próprio da região platina e a um ramo de produção específico, como era a indústria de transformação do charque. Assim, a economia política platina, desenvolvida, ou, melhor dito, adaptada à cultura da guerra civil, levou a que o comportamento dos sul-rio-grandenses se manifestasse por escalas econômicas e políticas distintas, as quais ofereciam diferentes combinações, quer se tratasse de assuntos referentes ao Prata, quer ao Rio de Janeiro, ou que envolvessem a ambos. Cabe destacar que esse aspecto de preponderância da militarização e violência política atingia toda a região platina, prejudicando e paralisando as principais atividades econômi148

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cas de todos os grupos promotores dos conflitos e de guerras políticas. Contudo, tais colapsos, assim como as sucessivas crises econômicas que os acompanhavam, não chegaram a ganhar um espaço capaz de desmotivar ou de refrear as contendas incendiárias. Esse passado regional nos surge, assim, com uma espessura difícil de ser ignorada. E a luta política ganha, nesse contexto, um contorno e papel de influência superior a qualquer outro fator de diferenciação.

A militarização da política e a cultura da guerra civil No Estado Oriental (Uruguai), independentemente do partido que se achasse no poder, todas as grandes revoltas e quarteladas tiveram forte repercussão ou foram acionadas a partir da região fronteiriça, sempre envolvendo ou tendo como protagonistas diretos os sul-rio-grandenses. Pode-se dizer, assim, com segurança, que, se para o Brasil a fronteira era um problema delicado, para a Campanha oriental, não apenas para Montevidéu, a região de fronteira era, juntamente com as guerras partidárias, a problemática política mais significativa de todo o século XIX. A rivalidade entre sul-rio-grandenses e blancos (o setor pastoril oriental mais autonomista e radical) nessa zona fronteiriça, somada à rivalidade ainda maior entre blancos da Campanha e colorados de Montevidéu (aliados dos sul-riograndenses durante a Guerra dos Farrapos), determinou o rol de alianças que se estabeleceram e se fortaleceram ao longo do século XIX, sem que isso implicasse um compartilhamento estreito de ideias entre sul-rio-grandenses e colorados no campo político e econômico. Questões referentes à distribuição do poder no interior da Campanha oriental, e não à identidade política, predominavam, fazendo com que blancos e sul-rio-grandenses dispuNo extremo sul, uma elite diferenciada

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tassem o controle da região fronteiriça, embora, no campo da estrutura social, as afinidades entre si fossem maiores que entre sul-rio-grandenses e colorados. Durante a Guerra dos Farrapos, os setores pastoris revolucionários encontraram proteção, apoio logístico e militar junto aos colorados. As operações de farrapos em território brasileiro eram reforçadas por tropas riveristas coloradas, bem como as ações de Rivera no Estado Oriental contavam com ampla participação de forças dos dissidentes sul-riograndenses. No final da guerra civil no Rio Grande do Sul, ao impor a paz aos farrapos, Caxias encontrou no acampamento destes a todo o Estado-Maior riverista. Rivera e seus aliados foram desarmados e embarcados para o Rio de Janeiro, mas isso não impediu que os farrapos, após deporem as armas contra o Brasil, imigrassem em massa para o Estado Oriental, onde foram engrossar as forças dos colorados e disputar o poder na Campanha oriental com os blancos, comandados por Oribe. Nesse período, os grupos pastoris sul-rio-grandenses se reunificaram, apagando feridas deixadas pela longa revolta. Farrapos e caramurus marcharam juntos, sob o comando do Moringue (barão de Jacuí), que por mais de cinco anos comandaria a frente da guerra contra os blancos nas fronteiras do Uruguai. Esse quadro iria perdurar por toda a década de 1850. Nas três últimas décadas do século XIX, contudo, a consolidação dos colorados no poder passou a representar um fator de conflito entre esses e os setores pastoris sul-riograndenses, porque a iminente situação de falência do Estado uruguaio pós-guerra do Paraguai obrigou seus governos, sucessivamente, a aplicarem e ampliarem a política de impostos sobre as propriedades dos sul-rio-grandenses, bem como sobre o fluxo de gado que transitava sobre a fronteira.

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Desde então, assistiu-se, cada vez mais, a uma gravitação das alianças entre sul-rio-grandenses e blancos, situação que teria seu ponto de conclusão com a aproximação entre os liberais de Silveira Martins (gasparistas) e os setores do blanquismo comandados pelos irmãos Saravia. Juntos, blancos e gasparistas protagonizariam as últimas grandes revoluções do setor pastoril (as quais deixariam seus ecos nos dois lados da fronteira ainda pelas primeiras décadas do século XX). Essas revoluções, contudo, foram antecedidas por uma das longuíssimas guerras políticas supranacionais (como também podem ser entendidas as ininterruptas guerras e comoções civis que atravessaram a bacia platina), levando as gerações políticas do setor pastoril sul-rio-grandense a serem socializadas por uma matriz política de formação social dissidente e radical, a qual se materializou e se incrustou no comportamento das elites políticas locais (formando o histórico perfil dissidente que veio a marcar o Partido Liberal no Rio Grande do Sul).23 Esse longo período de conflitos, envolvendo as elites pastoris do extremo Sul, iniciou-se ainda na época da Cisplatina [1825-1828]; estendeu-se pela Guerra Grande (Oribe versus Rivera) e pela Guerra dos Farrapos [1835-1845]; acompanhou as califórnias comandadas pelo barão de Jacuí; manteve-se durante a guerra entre o Brasil e Rosas; ecoou ao longo da Guerra contra o Paraguai [1864-1870], quando o Império foi surpreendido por ameaças abertas de sedição no Rio Grande do Sul, comandadas de dentro da Assembleia Legislativa Provincial, obrigando o governo do Rio de Janeiro a decretar lei marcial no Rio Grande do Sul, e manteve-se por outras duas décadas após concluída a guerra com o Paraguai, levando o governo brasileiro a iniciar uma dura política de retirada da 23

Sobre o perfil dissidente do Partido Liberal sul-rio-grandense e sua profunda vinculação com os setores pastoris fronteiriços, ver CARNEIRO, A identidade inacabada: o regionalismo político no Rio Grande do Sul, Porto Alegre: Edipucrs, 2000.

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cidadania brasileira aos membros da elite pastoril que fossem surpreendidos envolvendo-se em conflitos e operações contra as autoridades legais do país vizinho. Em uma segunda medida, passou-se também a retirar a cidadania daqueles que lutavam ao lado do governo uruguaio.24 Observando o processo pelas pontas, pelas extremidades, pode-se ver sua longa permanência por praticamente um século inteiro, revelando-se um fenômeno político cuja condição de duração é considerável. Assim, comparativamente ao início do século XIX, vê-se, nas décadas que antecedem a queda do Império, que a guinada dos setores pastoris sul-rio-grandenses em favor do Partido Blanco já representa uma expressiva maioria entre as frações das nossas elites fronteiriças, as mesmas que, no Rio Grande do Sul, fazem do Partido Liberal seu único e inflexível porta-voz. Por trás das alianças reconstituídas, um fato inquestionável: a manutenção da ingerência das elites pastoris do extremo sul em assuntos que constituíam matéria de exclusiva competência das pastas de estrangeiros dos dois países, e a crise permanente que essa condição representava em termos do controle que as autoridades nacionais tentavam impor sobre seus próprios territórios. Os setores gasparistas (liberais radicais) representavam, agora, o principal porta-voz da fração pró-blancos no Rio Grande do Sul.25 Como o setor gasparista dominava quase que inteiramente a região fronteiriça, à exceção de Bagé, onde o Partido Conservador era forte, reunindo-se ao redor do poderoso clã dos Silva Tavares, os blancos absorveram junto àqueles o papel que até meados de 1860 fora quase que exclusivamente representado pelos colorados. 24

25

Essa longa história de conflitos ininterruptos que ocorriam por sobre a fronteira pode ser acompanhada em CARNEIRO, 2003. Sobre as questões relacionadas à fronteira, no que envolvesse às diversas facções políticas sul-rio-grandenses durante o Império, consultar CARNEIRO, 2000.

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Agora um governo em que os blancos não se viam representados desde 1865 exigia do Brasil que estancasse as incursões e invasões que desde seu território se faziam contra o Estado Oriental, nas quais se achavam envolvidos milhares de militantes blancos e ruralistas sul-rio-grandenses (liberais). Nesse sentido, os registros do Ministério de Estrangeiros feitos em 1880 davam conta de que numerosas forças a serviço dos chefes blancos Simão Martinez, Manoel Caraballo e Carlos Manfredini reuniam-se nas nossas fronteiras, próximas a Uruguaiana e a Quaraí, onde, sob proteção das autoridades locais, armavam-se e preparavam uma agressão contra o governo uruguaio.26 Em maio, o presidente da província respondia que conseguira deter Caraballo, que se acharia preso e afastado das áreas fronteiriças.27 Mas como em todas as outras ocasiões, esta medida teve pouco impacto sobre as perturbações fronteiriças. A elite política (liberal) que as sustentava se achava, neste momento, forte como nunca outra força política fora até então no Rio Grande do Sul e explicitava essa força não apenas em relação à ativa integração que mantinha com o Partido Blanco, mas também através da forma inquestionável com que se revestia na primeira força política do Rio Grande do Sul.28 Essa rotina se seguia imutável e, nos momentos em que os blancos se sentiam suficientemente fortes ou encorajados para desafiar a máquina militar montada por Montevidéu, invariavelmente tendia a recrudescer. Foi esse o caso verificado no ano de 1882, quando o governo oriental dirigiu nota ao ministro de estrangeiros do Brasil acusando as autoridades da fronteira sul-rio-grandense de 26

27 28

AVISOS do Ministério dos Negócios Estrangeiros (1831-1889). Correspondência Recebida pelos Governantes do Rio Grande do Sul de Ministros e outras Autoridades do Governo Central (1744-1889). Acervo do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, MNE, B-1.033, Moreira de Barros, em 25.02.1880. MNE, B-1.033, Pedro Luis Pereira de Souza, em 25.05.1880. Ver CARNEIRO, 2000, p.123 e seguintes.

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protegerem a invasão que Máximo Perez – líder ruralista e militar sul-rio-grandense pró-blanco – preparara desde o território do Rio Grande do Sul.29 Em 1885, em meio a outra crise política no Estado Oriental, levantavam-se acusações de que a guarda nacional da fronteira, em Santana do Livramento, estava acobertando o contrabando de armas e as partidas blancas que atuavam na região de Rivera.30 Meses depois explodia uma das mais significativas revoltas blancas ao longo da década de 1880, e novamente surgiam acusações de que as autoridades de fronteira, no Rio Grande do Sul haviam constituído uma rede de comércio subterrânea, cujo objetivo era atender às forças rebeldes de Nico Coronel, Luiz Arroyo e de Jarza, as quais se encontrariam estacionadas em Santana do Livramento.31 O crescimento das ações, aliás, demonstrando uma aceleração dos fatos políticos e militares na região fronteiriça, reflete bem as dificuldades postas ao Rio de Janeiro sempre que se tratava de impor sua autoridade sobre aquela região. Já às vésperas de se encerrar a Era imperial, o governo central via-se ainda na incômoda condição de manter-se em alerta para não se ver surpreendido pelos problemas e conflitos que assolavam os territórios que integravam o espaço fronteiriço. As informações davam conta de uma grande força de orientais (blancos) que, a partir de Jaguarão, invadiram o Estado Oriental, onde se achariam “já entre os revoltosos orientais”.32 Ao longo do mesmo mês de março, o governo central viuse às voltas com inúmeros episódios denunciando que a convulsão política pela qual atravessava o Estado Oriental era de grandes proporções e, como tal, repercutia fortemente ao 29 30 31 32

MNE, B-1.033, Francisco de Sá, 20.06.1882. MNE, B-1.033, Visconde de Paranaguá, em 19.05.1885. MNE, B-1.033, Barão de Cotegipe, em 22.02.1886. AVISOS do Ministério dos Negócios da Guerra (1831-1889), MNG, B-1.088, J. J. O. Junqueira, em 18.03.1886. e em 24.03.1886.

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longo de toda a faixa de fronteira sul-rio-grandense. Em um único oficio, Cotegipe denunciava a invasão ao Estado Oriental que os partidários de Nico Coronel haviam preparado desde Santana do Livramento, da qual participaram os chefes blancos Arroyo, Jarza e Escudero (o que demonstra que as ordens autorizando suas prisões e internamento não foram ou não conseguiram ser aplicadas). Também denunciava que, de Uruguaiana e Entre Ríos partiam forças de López Jordan portando “armamento para 15.000 homens”. Denunciava ainda a presença de outro conhecido chefe blanco, Galeano, que se acharia em Bagé, à frente de uma coluna de revolucionários. E, por último, mandava o presidente da província desbaratar uma rede de fabricação e distribuição de “folhas de lança”, sediada em Dom Pedrito, que estaria alimentando com esses apetrechos de guerra forças ligadas a Arroyo, Torrecito e Bastarico, as quais se achavam escondidas em Ponche Verde.33 Na expectativa de refrear essa situação, Cotegipe entregou o comando da fronteira ao marechal Deodoro da Fonseca, pró-homem do Partido Conservador – que logo também assumiria à presidência da província –, militar formado intelectualmente pelos pressupostos filosóficos e políticos que ganhavam corpo dentro do Exército nacional – entre os quais se destacavam o positivismo, com sua pregação à ordem, e a visão profissional e disciplinar que tomou conta do Exército ao longo da segunda metade do século XIX. Pelas duas razões, parte importante do alto oficialato brasileiro – e aí se incluía Deodoro da Fonseca – não poderia aceitar a cultura política da elite pastoril fronteiriça, marcada pela internacionalização e balcanização presente em todo o Prata, pela insubordinação à autoridade de Estado e pela mais completa indisciplina perante os valores prezados por aquele corpo de oficiais – que almejava um exército profissional, nacionalista e nacional.

33

MNE, B-1.033, Barão de Cotegipe, em 24.03.1886.

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Ora, a atuação das elites pastoris sul-rio-grandenses junto à fronteira pouco ou mesmo nada tinha a ver com essas idealizações, de modo que o setor não sul-rio-grandense do exército passou a repelir as suas práticas e as alianças que aquelas elites realizavam além da linha fronteiriça e à revelia das determinações dos poderes constituídos e organizados em torno do Estado. E à medida que o Exército se institucionalizava como atividade profissional, aumentava a tensão entre seu Estado-Maior e as elites fronteiriças sul-riograndenses, dado que aquele entendia, corretamente, dentro daquilo que era da acepção das Forças Armadas, ser sua função o monopólio das armas e do controle sobre os territórios limítrofes do Brasil. Essa preocupação com a fronteira do Rio Grande do Sul continha uma dupla orientação, dado o receio que o corpo de oficiais tinha em relação às classes política e militar sul-riograndenses: por um lado, era necessário assegurar-se contra os “perigos” vindos do Prata; por outro, temia-se o histórico descontrole do Estado em relação às interferências dos setores pastoris sul-rio-grandenses em assuntos que teoricamente escapavam à alçada das autoridade civis e militares locais, assim como dos proprietários rurais. Desse modo, a politização e insubordinação próprias da classe de armas sul-rio-grandense resultaram na desaprovação ou aversão dos demais oficiais do Exército e da Marinha à sua postura, à medida que se avançava no interior destas rumo à profissionalização definitiva, visto que aqueles, ao priorizarem seus interesses políticos, confrontavam-se com as exigências de disciplina e hierarquia próprios da estrutura militar. Escolhendo oficiais estreitamente identificados com essa posição e postura, Deodoro logrou capturar e afastar da fronteira uma parcela importante dos comandantes blancos, com o que também passou a se ver duramente hostilizado pela 156

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elite política liberal, que se constituía na mais legítima representante das camadas de proprietários estabelecidos junto à região fronteiriça.34 Entretanto, mesmo as mais cuidadosas ações de Deodoro da Fonseca mostraram-se insuficientes e muito aquém daquilo que se exigiria para colocar as elites pastoris fronteiriças sob controle do Estado. Ainda em 1886, aquele marechal veria se frustrarem suas expectativas, provavelmente compreendendo que a condição histórica da região fronteiriça exigiria mais empenho e dureza do que poderia empregar, nesse momento, o governo central. As agressões ao Estado Oriental prosseguiram, a despeito da vontade de Deodoro da Fonseca, que mal controlava um ponto da fronteira e via aquelas vazarem por diversos outros, como quando Galeano e Pampilon desfilaram ao longo da linha de fronteira, sendo ocultados e municiados por forças de linha da província, as quais, teoricamente, deveriam proceder de forma totalmente inversa;35 ou como da oportunidade de nova invasão ao Estado Oriental, preparada na cidade de Jaguarão;36 ou, ainda, através das invasões praticadas por Nico Coronel na área que margeava a linha Rivera-Santana do Livramento, que se realizaram ao longo do ano de 1887.37 No final dos anos 1880, as informações davam conta de que também os irmãos Saraiva – ou Saravía, como eram conhecidos no Estado Oriental – se achavam operando nos dois lados da linha divisória.38

34

35 36 37 38

Em MNE, B-1.033, Barão de Cotegipe, em 06.04.1886, segue longa lista de oficiais blancos desarmados e em seguida detidos por Deodoro da Fonseca. Essas ações, segundo o mesmo informe, realizaram-se principalmente junto a Santana do Livramento. Quanto à postura política dos sul-rio-grandenses em relação a Deodoro da Fonseca, ver CARNEIRO, 2000, p. 254 e seguintes. MNE, B-1.033, Barão de Cotegipe, em 16.10.1886. MNE, B-1.033, Barão de Cotegipe, em 19.10.1886. MNE, B-1.033, Barão de Cotegipe, em 01.02.1887 e em 29.08.1887. MNE, B-1.033, Rodrigo S. Silva, em 07.03.1889.

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Nesse momento, a aproximação entre os setores pastoris blancos e sul-rio-grandenses chegava ao ápice e amadurecera de tal forma que os dois grupos se achavam convencidos de que, apoiando-se mutuamente, seriam capazes de desencadear uma dupla revolução, capitaneada contra Montevidéu e, ao mesmo tempo, contra o eixo Porto Alegre-Rio de Janeiro, se as condições assim o exigissem. Posta à prova, como é de conhecimento dos pesquisadores interessados em nossa história política, aquela aliança se mostrou tremendamente forte e dura de debelar. Também revelou até que ponto a cultura política da guerra civil (platina) se havia arraigado entre os rio-grandenses – e mesmo entre aqueles que, no Rio Grande do Sul, se mostraram os maiores adversários do setor pastoril fronteiriço, como no caso do clã Silva Tavares.39 Como se percebe, portanto, no que diz respeito aos setores pastoris fronteiriços, o quadro manteve-se praticamente constante ao longo dos últimos anos da Era Imperial – e em nada seria negado após a quartelada republicana (desvelando, a longo prazo, as razões que permitiram a eclosão da Revolução Federalista [1893-95]). Também aí se encontram as explicações para o respaldo efetivo que o Rio de Janeiro ofereceu a Júlio de Castilhos, quando este se colocou na condição de desbaratar as relações e interações que, durante um século inteiro, caracterizaram a ação das elites pastoris no extremo Sul. Um modo de vida, um ato do ser e do fazer político e cultural, suspirava seus momentos finais. No entanto, isso não significou a supressão completa das condições históricoculturais que levaram esses grupos a se identificarem com uma determinada forma de identidade regional. Esta, como 39

Especificamente em relação à internacionalização da Revolução de 93 ver RECKZIELGEL, Ana Luiza Setti. A diplomacia marginal: vinculações políticas entre o Rio Grande do Sul e o Uruguai - 1893-1904. Tese (Doutorado em História) _ PUCRS, Porto Alegre, 1997.

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ocorre com os elementos da cultura e do simbólico, logrou sobreviver à crise das elites fronteiriças e continuar influindo sobre as formas de interpretação, representação e agir dos sul-rio-grandenses. Mesmo a destruição de grande parte da base material de resistência fronteiriça, levada a cabo por Castilhos, não foi capaz de produzir alterações profundas na esfera da cultura política, que só a muito longo prazo adaptou-se à nova realidade regional.

A modo de conclusão Duas formas de solidariedade desenvolveram-se entre os grupos pastoris sul-rio-grandenses nesse período como respostas às condições em que se deram a ocupação e fixação da sociedade local. Irmanadas e complementares, foram essas o militarismo (às vezes chamado de “tradição” ou “vocação militar”) e a rigidez da associação política (altamente coesa e extremamente avessa a dissidências), cuja eficiência e garantia proporcionadas pela área fronteiriça lhes deram condições para amadurecer e perpetuar-se, fornecendo não só às estruturas políticas locais, mas a toda a sociedade sul-riograndense traços distintos e recorrentes em relação a outras regiões do país e ao próprio correr do tempo. De necessidades práticas, aquelas acabaram por transfigurar-se, assim, em características distintas e demarcatórias da cultura política regional. No Prata, a guerra civil ininterrupta favoreceu a formação de montoneras e o surgimento de seus líderes militares. Nesse sentido, os “caudilhos” são o produto político mais elaborado e sólido nesse processo. Pela intensa infiltração e permanente presença de nossas elites pastoris para muito além das fronteiras brasileiras, fica óbvio que esse processo influiu sobre a política regional no extremo sul. No extremo sul, uma elite diferenciada

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As migrações armadas em direção ao Rio Grande do Sul (de aliados dos sul-rio-grandenses e mesmo dos próprios), que acompanhavam a evolução das guerras civis orientais, não podem, assim, ser vistas como um fenômeno isolado e localizado, mas, sim, como um fato generalizado e verificado em toda a bacia platina, dada a internacionalização absoluta “daquela solidariedade revolucionária sem fronteiras”.40 A movimentação constante e a presença desses emigrados no Rio Grande do Sul, antes de atestar uma particularidade (a qual existiria, se pensada unicamente de uma perspectiva brasileira), serve para explicar a inserção dos sulrio-grandenses naquele processo de internacionalização, chamando, assim, outra vez a atenção para o papel de influência e amálgama da cultura política platina junto aos setores pastoris locais. Logo, a permeabilidade das guerras civis platinas também junto à fronteira sul-rio-grandense não é uma exceção, mas a confirmação da regra (e das formas de fazer e compreender a política que a embalava). Política que estipulava a internacionalização das guerras civis platinas e da sua cultura política ao longo de um espaço onde as soberanias e a consolidação das autoridades nacionais eram ainda bastante imprecisas e, em muitos casos, por demais instáveis. Sendo a fronteira, como diz Roncayolo, uma forma de “censura simbólica” 41 – que enquanto linha de autoridade e de soberania deveria conter fora dos limites territoriais do Império aquilo que não pertencia ao mundo cultural luso-brasileiro (como forma de preservar sua integridade territorial e sua autoridade efetiva e simbólica) – e dada a forma de conduta da elite pastoril fronteiriça, não é de se estranhar os

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41

ORNELLAS, Manoelito de. A gênese do gaúcho brasileiro. Cadernos de Cultura, Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1955, p. 12. Grifado por nós. Conforme RONCAYOLO, Marcel. “Região”. In: Enciclopédia Einaudi. Portugal: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, v. 8, 1986, p. 278.

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receios que o centro político do país alimentava em relação a seus limites com o Prata. O militarismo político, com sua gênese autoritária, somando-se ao desprendimento político e ao bandoleirismo dos homens que “faziam” a fronteira, com seu desapego e sua internacionalização, veio a ter grande peso para a constituição de uma cultura política que, ao mesmo tempo em que se sustentava num autoritarismo sofisticado, prezava aos extremos por sua autonomia de decisão e iniciativa. A soma desses fatores – uma cultura de conquista (militarista) e outra de fronteira (marcada pela indisciplina, desprendimento político e pelo bandoleirismo) – dá-se, pois, nos mesmos momentos em que a infiltração fronteiriça dos setores pastoris sul-rio-grandenses finca suas raízes em território oriental. São partes de um mesmo processo. Dessa forma, a estrutura social e política da região fronteiriça gerou um tipo muito particular de elite dominante, cujo estereótipo clássico do caudilho, construção externa e depreciadora, acaba por ocultar. Constituía-se, tanto no Rio Grande do Sul como na Campanha uruguaia, uma espécie de empresariado rural militarizado que, mesmo envolvido plenamente no seu meio social, era, em geral, profundamente preparado no plano político (sendo, muitas vezes, bastante versado nas obras clássicas da literatura jurídica e política do período). Nem era ainda um capitalista (e em muitos casos, posteriormente, não chegaria a ser), nem um “senhor feudal”, como o conceito de caudilhismo erroneamente pode deixar transparecer. A dissidência política dos setores pastoris sul-rio-grandenses será percebida – e também se afirmará – como uma fratura profunda no interior da sociedade brasileira. Essa “territorialização” da identidade e da cultura política sobreviveria às mudanças e deslocamentos políticos transcorridos ao longo dos séculos XIX e XX como uma “ruga”, não acomNo extremo sul, uma elite diferenciada

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panhando – nem se submetendo por completo – os processos de centralização e racionalização administrativa promovidos pelo Rio de Janeiro. O perfil diferenciado assumido pelas elites pastoris no extremo sul ajuda a explicar, assim, condições políticas, sociais e culturais que ainda hoje se fazem presentes e que resistiram ao desaparecimento ou à obliteração daquelas elites. Essa observação vale tanto para as relações de insatisfação que historicamente marcam a presença dos sul-rio-grandenses na comunidade brasileira como, em sentido oposto, para as vibrantes denúncias e questionamentos que, ao longo do tempo, foram lançados quanto ao caráter político autoritário e platino que marcaria essa presença.

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??? CONFERIR LOCAIS DAS FIGURAS. E TAMBÉM FALTAM FIGURAS A 1 Estâncias fortificadas PARTIR DA N. 15 Ester J. B. Gutierrez*

O avanço da fronteira portuguesa Em 1777, o Tratado de Santo Idelfonso, firmado entre as Coroas ibéricas, determinava o seguinte limite para o sul do continente americano: “[...] pela parte do Continente irá a linha desde as margens da dita lagoa Mirim, tomando a direção pelo primeiro arroio meridional que entra no sangradouro ou desaguadouro [canal São Gonçalo] dela e que corre mais imediato ao Forte Português de São Gonçalo; desde o qual, sem exceder o limite do dito Arroio, continuará o domínio de Portugal pelas cabeceiras dos rios que correm até o mencionado Rio Grande e Jacuí[...]”.2 Lusitanos e castelhanos não chegavam a um acordo sobre o primeiro arroio meridional. Compreendido entre os rios Piratini e Jaguarão, o território foi alvo de muita disputa. Por fim, prevaleceu o avanço português. (Fig. 1).

* 1

2

???

FALTA CURR4ÍCULO DA AUTORA ?????

? ?? Texto elaborado por Ester J. B. Gutierrez, arquiteta e urbanista, mestre e doutora em história, professora da graduação e do mestrado em arquitetura e urbanismo, UFPel; Cláudia Daiane Garcia Molet, historiadora, mestranda em Ciências Sociais, UFPel; Daniele Luckow, arquiteta e urbanista, mestranda em arquitetura e urbanismo, UFPel e Simone Neutzling, arquiteta e urbanista. MACEDO SOARES, cit. por FRANCO, Sérgio da Costa. Origens de Jaguarão (1790-1833). Caxias do Sul: Ed. UCS, 1980. p. 9 (grifo nosso).

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Fonte: Elaborado por Guilherme Almeida, 2009, com base no “Mapa Político do Rio Grande do Sul” - SCP/DEPLAN – RS, Maio de 2004.

Figura 1 – Mapa de situação de Jaguarão no RS

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Usando da tática do uti possidetis, os lusos concederam sesmarias com a intenção de forçar o aumento da linha demarcatória.3 Entre 1790 e 1792, as autoridades lusitanas doaram várias sesmarias ao sul do Piratini. Em Origens de Jaguarão, Sérgio da Costa Franco arrolou dezenove doações. Entre os concessionários, cinco eram militares e dois, comerciantes. A documentação existente no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul – como o Cadastro de sesmarias, o Registro de terras e terrenos concedidos nos diferentes distritos e municípios do RS, o Livro de datas de terras, 1755-1831, e o Livro de registro de sesmarias de terras, Rio Grande 1813-1814 – forneceu uma listagem maior.4 Quando foram mapeadas essas propriedades, foi verificado que as primeiras doações, ocorridas entre 1790 e 1792, localizavam-se _ muitas delas _ nas nascentes do rio Jaguarão, fora do atual município, ao passo que a maioria das concessões que iniciaram na segunda década do século 19 situava-se estrategicamente protegendo as casas e a guarda mais perto do encontro da foz do Jaguarão com a lagoa Mirim. Instalaram-se a oeste do povoado e da guarda do Serrito, ocupando as duas margens do arroio do Telho, e também a leste, acompanhando a orla da lagoa Mirim até alcançar o arroio Grande. A partir de 1814, igualmente, ocorreram doações de chácaras e de terrenos urbanos. As chácaras, mais próximas à área povoada, reforçaram a ocupação no entorno da freguesia do Espírito Santo do Serrito de Jaguarão e das instalações militares. (Fig. 2).

3

4

REICHEL. Heloísa Jochims. Fronteiras no espaço platino. In: BOEIRA, Nelson; Golin, Tau (Coord.). História geral do Rio Grande do Sul. Colônia. Passo Fundo: Méritos, v. 1, 2006. p. 50. Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Cadastro de Sesmarias (Relação de moradores que tem campo e animais nesse Continente) Livros nº 1198 A a D, o Registro de terras e terrenos concedidos nos diferentes distritos e municípios do RS - Livro de datas de terras 1755-1831, M. 45, Lª. 291 e o Livro de registro de sesmarias de terras, Rio Grande 1813-1814, Nº 41.

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Fonte: Elaborado por Guilherme Almeida, 2009, com base em “Mapa do Município de Jaguarão” de Autoria de Anry Prates Piuma, 1955 - Prefeitura Municipal de Jaguarão.

Figura 2 – Mapa do Município de Jaguarão com a localização das sesmarias

Entre os primeiros sesmeiros se encontrava, por exemplo, o guarda-mor André Pereira Maciel, natural de Braga, Portugal. A sesmaria que ele ganhou atualmente está localizada no município de Herval. Além de oficial, Maciel era negociante. Em 166

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seu testamento, escreveu: “[...] vivo do giro de negócios [...] e especialmente das fazendas e outros gêneros, que tenho buscado no Rio de Janeiro e mandado vir por minha conta e risco para revender neste continente, no qual tenho administrado várias cobranças de dívidas alheias.” Em Comerciantes do Rio Grande de São Pedro: formação, recrutamento e negócios de um grupo mercantil da América Portuguesa, Helen Osório comprovou que as vinculações comerciais e sociais entre as praças do Sul e do Rio de Janeiro foram múltiplas. Ela verificou que os capitais para o estabelecimento das primeiras charqueadas se originaram nas atividades desenvolvidas pelo grupo mercantil local.5

O fortim fundacional As disputas entre espanhóis e portugueses para definição da linha da fronteira foram recorrentes entre os séculos 18 e 19. Foi nesse contexto que se inseriu o estabelecimento e o desenvolvimento do atual município de Jaguarão, localizado na margem esquerda do rio Jaguarão, junto à fronteira do Uruguai. A instalação do povoado estava vinculada à necessidade da Coroa portuguesa de, sobretudo, avançar a fronteira do Império luso-brasileiro. Desse modo, a área urbana da atual cidade de Jaguarão teve origem em uma guarda espanhola, fundada em 1792, na margem norte do rio Jaguarão, chamada de “Fortin de la Laguna”. Também conhecido como “Fortin del Cerrito”, foi projetada pelo alferes de fragata e cartógrafo espanhol Joaquim Gudim. Tomado pelos portugueses

5

OSÓRIO, Helen. Comerciantes do Rio Grande de São Pedro: formação, recrutamento e negócios de um grupo mercantil da América Portuguesa. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 20, n. 39, 2000 São Paulo, v. 20, n. 39, 2000. Disponível em: . Acesso em: 1 maio 2009.

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em 1802, o “Fortin de la Laguna” passou a chamar-se Guarda da Lagoa e do Cerrito.6

A estância real do serrito Em 1803, inclusive com o gado reunido que nela encontraram – e que pertencia à Coroa Espanhola antes da conquista –, a Estância do Serrito foi colocada em arrematação pela junta da Real Fazenda. Foi arrematante o português José Pereira da Fonseca, personagem que, pelo menos até 1813, foi das figuras mais importantes do povoado.7 José Pereira da Fonseca arrematou uma área cujo limite leste era a lagoa Mirim; oeste, o arroio Telho; sul, o rio Jaguarão; e norte, o arroio Juncal. Fonseca lutou para apossar-se de toda a área, o que não conseguiu por inteiro, pois houve resistência e os ocupantes jamais se retiraram em definitivo.8 Até 1810, o Comando da Fronteira não queria a formação de qualquer povoado, porém permitia os fornecedores de víveres às tropas, os chamados “viandeiros”. Os negociantes aumentavam em função dos criadores e dos lavradores da vizinhança e também dos moradores da Banda Oriental. São de 1811 as primeiras concessões de terrenos urbanos na guarda do Serrito. Nas descrições das doações foi possível observar a presença de casas de pedra e cal e de olarias. Essas concessões coincidiram com a campanha do “Exército de Pacificação”, ocorrida entre 1811 e 1812. Idealizada por dom Diogo de Souza, então governador da Capitania do Sul, com o propósito de defender os espanhóis contra as lutas de independência das províncias do Rio da Prata, a campanha “pacificadora” entrou no território locali-

6

7 8

ALEJO, Jorge Aicard. Rio Branco (1972-1992). Montevideo: Imprenta del Ejército, 1992. p. 22. FRANCO, ob. cit., p. 31. Ibid., p. 32.

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zado na margem direita do rio Jaguarão.9 Depois de algumas concessões do governador naquele mesmo ano de 1811, as doações cessaram. O motivo para essa decisão foi que desde 1809 toda a Estância Real do Serrito (ver Fig. 2) fora objeto de presente do príncipe regente à baronesa, depois viscondessa de Magé, esposa de Matias Lobato. Em 1811, abriram-se diligências no sentido de tomar posse da terra arrendada a José Pereira da Fonseca.10 O solicitador do nobre casal, José Antônio da Silveira Casado, no primeiro semestre de 1811 fez um relato de Jaguarão: “[...] conhecer a inutilidade daquela Fazenda, por se achar quase circundada por dezessete moradores intrusos, entrando nesse número a chácara do Quartel-Mestre [...] além duma povoação que contém trinta e duas casas é um aquartelamento [...] três se acham estabelecidos com consentimento do arrendatário [...] moradores do pequeno arraial não têm alguns deles outro título mais que a venda que alguns soldados dos destacamentos lhes fizeram, e outros de sua autoridade própria, a consentimento dos mesmos comandantes daquela Guarda.” O arrendatário, José Pereira da Fonseca, solicitava um ano de prazo e o pagamento das benfeitorias que tinha feito no lugar, “[...] pois é uma charqueada que está preparada (sic) de tudo que se precisa.” Dos dezessete ocupantes listados, nove eram soldados ou ex-soldados; seis, paisanos; um, castelhano, e outro era o padre Antônio José Pereira.11 A provisão de março de 1813 foi decisiva para separar o território destinado à povoação da Guarda do Serrito. A provisão de junho do mesmo ano deliberou sobre a doação feita à viscondessa de Magé, do Rincão do Serrito: “[...] compreen9

10 11

MARTINS, Roberto Duarte. A ocupação do espaço na fronteira Brasil-Uruguai: a construção da cidade de Jaguarão. Tese. (Doutorado em Histórias Especializadas) _ Universidade Politécnica da Catalunha. 2002. p. 59. Disponível em: . Acesso em: 1 maio 2009. Id. FRANCO, ob. cit., p. 43-45.

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de todo o terreno que se denomina ‘Estância ou Postos Espanhóis de Serrito e Rincão da Cavalhada’, excluída a estância do tenente Francisco Antônio D’Ávila e o território denominado ‘Guarda do Serrito’, em que estão os quartéis da mesma Guarda, a Capela e mais moradores [...]”. No estudo do piloto Maurício Inácio da Silveira para Jaguarão “[...] definiram-se os limites da área reservada para a povoação da guarda do Serrito meia légua de fundo a contar das margens do Mestre do Jaguarão, desde o arroio ‘denominado da charqueada de José Pereira’, que é o mesmo dos Lagoões, em cuja foz se situava a charqueada de José Pereira da Fonseca, até no extremo leste, o arroio do quartel.”12 Junto com a Corte de dom João VI retirou-se para Portugal a viscondessa de Magé, abandonando de vez a terra que lhe fora concedida. Dessa renúncia se aproveitaram numerosos criadores e lavradores para ali se fixar e radicar, criando condições para a futura legitimação de domínios.

A fazenda São João Os campos da fazenda São João do Rincão de Jaguarão e Juncal faziam parte das terras ocupadas a partir de 1824 pelo comendador Francisco José Gonçalves da Silva. Inicialmente, o comerciante português comprou algumas chácaras com frente para o rio Jaguarão, próximas ao arroio QuartelMestre, exatamente na divisa dos terrenos reservados para a povoação, com as terras doadas à viscondessa de Magé. A maioria dessas propriedades media cerca de 150 x 300 braças [330 x 660 metros] e foi comprada dos irmãos Joaquim Cardoso Brum (primeiro pároco de Jaguarão) e Manoel Cardoso Brum, uns dos mais antigos moradores a receber terrenos nos subúrbios. Segundo Apontamentos para uma monografia de Jaguarão, o padre também era arrendatário de parte 12

Ibid. p. 48-49.

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das terras pertencentes à viscondessa de Magé.13 Em 1825, o comendador Francisco achava-se na posse de terras adquiridas parte por compra, parte por posse, e queria demarcá-las. Em 1835, o rico e importante comerciante conseguiu medir a grande fazenda.14 Em 1848, o presidente da província do Sul pretendeu recuperar para o patrimônio nacional a área que outrora pertencera à viscondessa de Magé. Em levantamento realizado pela Câmara Municipal foram encontrados como ocupantes efetivos do suposto “Rincão Nacional” 66 lavradores e fazendeiros, com suas famílias e escravarias, desde um modesto Santiago Macedo, com 100 braças [220 metros], um cercado e duas casas cobertas de capim, até o comendador Francisco Gonçalves da Silva, com quatro léguas [26.400 metros], duas casas cobertas de telhas, cinco cercados, charqueada, doze cativos, criação de gado e lavouras.15 Francisco José Gonçalves da Silva (Fig. 3) nasceu em Braga, Portugal, no ano de 1786. Casou-se com Maria Joana Barbosa Vieira Braga, natural de Rio Grande, irmã de João Francisco Vieira Braga, conde de Piratini. Francisco era homem de fortuna, comerciante, fazendeiro e charqueador. Por indicação da Câmara, foi o primeiro juiz municipal e de Órfãos da vila de Jaguarão, em 1833.16

13

14

15 16

Intendência Municipal de Jaguarão. Apontamentos para uma monografia de Jaguarão. 2ª Exposição Agropecuária. Porto Alegre, 1912, p. 310. Acervo Estância São João. Estância de São João na barra do arroio Juncal. Documento datilografado, s. a., s.d. Jaguarão. RS FRANCO, ob. cit., p. 84 Ibid., p. 53

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Fonte: Intendencia Municipal de Jaguarão. Apontamento para uma monografia de Jaguarão. 1912. 2ª Exposição Agropecuária. Porto Alegre.

Figura 3 – Foto do Comendador Francisco José Gonçalves da Silva

A descrição feita em 1827 pelo mercenário alemão Carl Seidler mostrou que os arredores da povoação lhe pareceram muito aprazíveis. Sobre o entorno escreveu: “[...] os arredores, como é freqüente no Brasil, são pitorescos e em alto grau de um romantismo barroco. Inúmeras colinas de suave declive, cortadas de regatos bordados de mato e folhagem verde primaveril, circundam a pequena cidade, situada junto à margem do belo rio Jaguarão, e assim tem-se aqui tudo quanto torna atraente e interessante uma paisagem: mato e água, monte e vales, e um céu azul escuro”.17

17

SEIDLER, Carl. Dez anos de Brasil. 3. ed. São Paulo: Martins, 1976. P. 143

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A seguir, contou como conhecera o comendador Francisco José Gonçalves da Silva e a sua propriedade: “Numa das excursões que freqüentemente fazíamos de Serrito chegamos a uma fazenda, onde resolvemos parar alguns momentos e pedir ao proprietário, mediante pagamento, alguns copos de leite. Assim fomos convidados pelo dono da casa a entrar na sala de estar e fartamente servidos do que pedíramos. Dom Francisco (assim se chamava o dono) em seguida nos conduziu ao seu jardim, onde com surpresa deparei com um pomar plantado inteiramente à européia. Notando ele minha estupefação, voltou-se para mim sorridente e disse: ‘Senhor, eu sou filho do reino’. E com galante gentileza nos levou a um canteiro de morangos e nos convidou a que colhêssemos à vontade, pois sabia que os alemães os apreciavam muito, ao passo que de sua família ninguém gostava deles. Eram os primeiros morangos que víamos no Brasil e naturalmente acedemos com prazer ao convite. Em seguida Dom Francisco, que não se cansava em obsequiar-nos, mostrou-nos um trigal enorme, diversas aléias de castanheiros, nogueiras, laranjeiras, figueiras, – tudo raridade naquela terra incivilizada e inculta [...].”18 Dom Francisco, ao que tudo indica, trata-se de Francisco José Gonçalves da Silva, um dos homens mais prósperos da comunidade.19 Em 1865, após o falecimento do comendador, em 30 de maio, e de sua esposa, em 30 de janeiro, foi realizado o inventário.20 Entre os bens de raiz estava listada a fazenda da estância São João do Rincão de Jaguarão e Juncal, tendo como fundos a lagoa Mirim, no primeiro distrito do município de 18 19 20

Id. FRANCO, ob. cit., p. 85. Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Inventário de Francisco José Gonçalves da Silva e s/m Maria Joana Gonçalves Braga. Inventariante João Francisco Gonçalves e outros. Número 72, Estante 98, maço 2. Cartório Civil. Jaguarão. 1865.

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Jaguarão, com quatro léguas e meia de campo e três ilhas do rio Jaguarão. Nesses campos estavam localizadas as casas de material, cobertas de telhas, onde residiam os falecidos, galpão, casas cobertas de palha, arvoredo da quinta e mais as casas de tapera. Havia também uma charqueada com duas grandes mangueiras e casa de moradia de material coberta de telha, forrada e assoalhada, com contrafeitos nos fundos. No posto da Palma havia uma morada da casas de material coberta de telha e uma dita “pequena” também coberta de telha. No posto da Luz havia uma casa pequena, em mau estado; no posto Santana, uma casa de paredes de adobe, coberta de telhas em mau estado. Foi escasso o uso de tijolos secos ao sol nas vivendas principais (Fig. 4). O historiador rio-grandense Setembrino Dal Bosco, ao analisar a estância da Música, no Rio Grande do Sul, afirmou que havia pelo menos quatro posteiros e uma sede. Nesses locais, deveria haver uma manada de éguas mansas para o serviço, vacas de leite e, ainda, cativos que trabalhavam auxiliando os posteiros. Possivelmente, existissem hortas e criações. A função dos cativos e dos posteiros era de repontar o gado diariamente para evitar que saísse do campo. Cada posteiro era responsável por quatro mil hectares de terras e pela vigilância de 1.200 a 1.600 cabeças de gado – ou seja, uns 2,9 hectares por animal. Os cativos nessa estância eram a maioria dos trabalhadores, cuidavam das crias e, possivelmente, dos pomares, hortas, construções de currais e mangueiras de pedras. O autor conclui que os trabalhadores escravizados eram importantes para o funcionamento “organizativo/produtivo” da fazenda pastoril.21

21

BOSCO, Setembrino Dal. Capatazes, peões e cativos na estância da Música. História: Debates e tendências, Passo Fundo: Universidade de Passo Fundo, v. 1, n. 1, p. 72-75, jun. 1999.

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Fonte: Elaborado por Guilherme Almeida, 2009, com base na Planta da Fazenda de São João do Rincão de Jaguarão e Juncal, pertencente aos herdeiros do falecido Comendador Francisco José da Silva, medida e dividida em novembro de 1865 pelo agrimensor Francisco Estácio Belmondy e copiado pelo agrimensor Philippe Somer em 1866. Acervo Estância São João.

Figura 4 – Mapa das Medições das terras do Comendador Francisco José Gonçalves da Silva e seus herdeiros Estâncias fortificadas

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Entre filhos, genros e netos, o inventário listava onze herdeiros – os nove filhos que viveram até a morte do casal, os dois netos e uma neta da filha que haviam perdido. O filho mais velho, João Francisco Gonçalves, nasceu em 1818. A segunda, Ana Joaquina, nascida no ano seguinte, foi a que faleceu antes dos pais; do seu casamento com Antônio José Afonso Guimarães, deixou três filhos: Antônio José Afonso Guimarães Junior, Francisco José Afonso Guimarães e uma filha, também chamada de Ana Joaquina, casada com João Rodrigues Barbosa. A terceira filha dos inventariados, igualmente, nasceu um ano depois, em 1820. Maria Cecília era casada com Manoel Bernardino Soares. O quarto filho veio três anos após, em 1823, o capitão Francisco José Gonçalves da Silva. O quinto, Joaquim Gonçalves Braga, chegou dois anos a seguir, em 1825; era casado com Eulina Gonçalves da Silva, sobrinha de Bento Gonçalves, filha de Manuel Gonçalves da Silva. Em 1827, nasceu Leonídia Angélica, casada com José Antônio Moreira, conhecido como o poderoso barão de Butuí. A sétima foi Maria Francisca Gonçalves Guimarães, que contratou matrimônio com João Antunes Guimarães. Em 1829, veio ao mundo a oitava herdeira, Joaquina Elísia Gonçalves da Silva, que em 1856 assinou contrato de casamento com Gabriel Gonçalves da Silva, filho de Manuel Gonçalves da Silva, irmão de Bento Gonçalves. Por fim, em 1830 nasceu o último, Domingos Augusto Gonçalves da Silva. No mapa denominado “Planta da Fazenda de São João do Rincão de Jaguarão e Juncal, pertencente aos herdeiros do falecido Comendador Francisco José da Silva”, medido e dividido em novembro de 1865 pelo agrimensor Francisco Estácio Belmondy e copiado pelo agrimensor Philippe Somer em 1866, foi possível ver a forma como o campo original foi repartido e as propriedades dos onze herdeiros. Situada na margem di-

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reita do banhado (atual arroio) do Quartel-Mestre, está localizada a charqueada descrita no inventário.22 (Fig. 5).

Fonte: Acervo Estância São João. Foto: Rodrigo Osorio, 2009.

Figura 5 – Foto da Planta da Fazenda de São João do Rincão de Jaguarão e Juncal

Conforme o representado na “Planta da Fazenda de São João do Rincão de Jaguarão e Juncal” os campos de propriedade do comendador Francisco estendiam-se por uma área de aproximadamente quatro léguas e meia [29.700 metros], tendo com limites, ao norte, o arroio Juncal; ao sul, o rio Jaguarão; a leste, o banhado do Quartel-Mestre e, a oeste, a lagoa Mirim. Várias estâncias jaguarenses tiveram origem nos campos do comendador Francisco José Gonçalves da Silva, como os campos que agora pertencem às estâncias São João, dos Bonitos e da Glória (Fig. 6). 22

Acervo da Fazenda São João. Planta da Fazenda de São João do Rincão de Jaguarão e Juncal, pertencente aos herdeiros do falecido Comendador Francisco José Gonçalves da Silva. Jaguarão. RS.

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Fonte: Acervo Estância de Gabriel Gonçalves da Silva. Foto: Rodrigo Osorio, 2009.

Figura 6 – Foto parcial do mapa das terras de Joaquim Gonçalves Braga e de José Antônio Moreira, de 1865, mostrando a sede da Estância dos Bonitos

A estância São João Dentro das terras que couberam a João Antunes Guimarães, marido de uma das filhas do comendador Francisco José, Maria Francisca, próxima à interseção com as terras de Domingos Augusto Gonçalves, Francisco José Gonçalves da Silva e João Francisco Gonçalves, estava localizada a atual estância São João, que antigamente fazia parte da estância primitiva, como posto denominado São João.23 (Fig. 7) Provavelmente, esse local recebeu ampliações e melhorias. Serviu 23

Intendência Municipal de Jaguarão, ob. cit., p. 310.

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de residência, primeiramente, a João Antunes Guimarães; depois, a seu genro o coronel Antônio Olegário de Mattos, que era o proprietário em 1912. Atualmente, pertence aos descendentes do coronel. (Fig. 8)

Fonte: Rodrigo Osório, 2009.

Figura 7 – Foto atual da Fazenda do Juncal

Fonte: Intendencia Municipal de Jaguarão. Apontamento para uma monografia de Jaguarão. 1912. 2ª Exposição Agropecuária. Porto Alegre.

Figura 8 – Estância dos Bonitos em 1912 Estâncias fortificadas

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A estância dos Bonitos Próxima às margens do rio Jaguarão, no encontro das águas deste rio com o banhado do Quartel-Mestre, estava localizada a vivenda que foi sede da fazenda de São João do Rincão de Jaguarão e Juncal, onde residia o comendador Francisco José Gonçalves da Silva. (Fig. 9) Atualmente, essa área é conhecida como estância dos Bonitos (Fig. 10), de propriedade de Gabriel Gonçalves da Silva, bisneto de Francisco. Segundo a descrição do inventário, a sede da estância do comendador Francisco era composta de casas de material cobertas de telhas, galpão, casas cobertas de palha, arvoredo da quinta e mais as casas de tapera. Provavelmente, o pomar plantado inteiramente à europeia, o canteiro de morango, o trigal enorme, as diversas aléias de castanheiros, nogueiras, laranjeiras e figueiras relatadas por Carl Seidler fossem neste lugar. Diferentemente da imagem apresentada no mapa de 1865, no qual se podem observar três janelas de cada lado da porta de acesso, em 1912 a casa principal apresentava acesso central e duas janelas de cada lado. (Fig. 11) Nessa época, a estância destacava-se por uma excelente horta, onde se colhia de tudo, um bom pomar, com mais de quatrocentos pessegueiros, macieiras, figueiras e laranjeiras, além de mais seis mil reses. A estância dos Bonitos, apesar de ter sofrido modificações que prejudicam a leitura do período de construção, hoje, através do neocolonial, reforça a linguagem luso-brasileira.24

24

Intendência Municipal De Jaguarão, ob. cit., p. 316.

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Fonte: Rodrigo Osório, 2009.

Figura 9 – Foto atual da Estância dos Bonitos

Fonte: Intendencia Municipal de Jaguarão. Apontamento para uma monografia de Jaguarão. 1912. 2ª Exposição Agropecuária. Porto Alegre. Foto atual: Rodrigo Osorio, 2009

Figura 10 – Foto antiga e atual da Estância São João (1912 e 2009)

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Fonte: Rodrigo Osório, 2009.

Figura 11 – Foto atual da Estância São João

A estância da Glória Nas terras herdadas por João Rodrigues de Barbosa, marido de Ana Joaquina, neta do comendador Francisco, estava localizado o posto da Luz. Nesta área foi edificada a fazenda 182

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da Glória, antiga residência de João Rodrigues de Barbosa, também comendador. Atualmente pertence aos herdeiros de Vasco Pinto Bandeira (Fig. 12).

Fonte: Intendencia Municipal de Jaguarão. Apontamento para uma monografia de Jaguarão. 1912. 2ª Exposição Agropecuária. Porto Alegre.

Figura 12 – Foto Antiga (1912) do Posto Sant'Anna

As estâncias e os fortins As estâncias no Rio Grande do Sul Segundo a dissertação Estâncias e fazendas: a arquitetura da pecuária no Rio Grande do Sul, de Luís Henrique Haas Luccas, de 1999, as propriedades constituíram um conjunto heterogêneo nos aspectos construtivos, plásticos e funcionais.25 Sobre as propriedades localizadas mais ao norte do estado, em Velhas fazendas sulinas: no caminho das tropas 25

LUCCAS, Luís Henrique Haas. Estâncias e fazendas: a arquitetura da pecuária no Rio Grande do Sul. Dissertação (Mestrado em Arquitetura) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1999.

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do Planalto Médio, do arquiteto e urbanista Nery Luís Alves da Silva, de 2003, foram verificadas as rusticidades e as precariedades das sedes e das demais benfeitorias. No norte, ligado aos tropeiros paulistas, as primeiras moradas eram simples.26 O sul enriqueceu, sobretudo, fornecendo gado para a produção de charque, concentrada inicialmente em Pelotas e Jaguarão e também em parte do rio Jacuí. Por um lado, foram anotados, por viajantes da época, os ranchos e choças cobertas de palha, com paredes de pau-a-pique, na maioria, e sem portas e janelas – ou, quando muito, de couro.27 Por outro, foram referenciadas, por estudos contemporâneos, as moradas que representavam mais fortalezas que “villas”. Estas sedes tinham bases militares, geométricas, despojadas.28 A partir da segunda metade do século 19, algumas vivendas começaram a receber ornamentação eclética de características mais clássicas. Apesar dessas influências – advindas, em especial, dos países da fronteira –, as sedes permaneceram modestas em comparação às moradas das grandes propriedades cafeicultoras e açucareiras do Centro-Sul e do Nordeste. Além da “casa senhorial”, as propriedades rurais eram compostas por um conjunto de construções. Os galpões, construções típicas desses estabelecimentos, tinham função tanto doméstica (cozinha suja, despensa, etc.) como produtiva (estrebarias, depósito de ferramentas, etc). Depois, vinham os diferentes tipos de encerras para animais, os potreiros, as mangueiras e os currais. Geralmente, muito afastada da sede, encontrava-se a vivenda do posteiro. A presença de pomares e caponetes foi outra constante, visando proteger as sedes do 26

27

28

SILVA, Nery Luís Alves. Velhas fazendas sulinas: no caminho das tropas do planalto médio. Século XIX. Porto Alegre: Evangraf, 2003. AZARA, Félix de. Memória rural do Rio da Prata. In: FREITAS, Décio. Capitalismo pastoril. Porto Alegre: Escola Superior de São Lourenço d Brindes, 1980. p. 57. GUTIERREZ, Ester Judite Bendjouya. Escravidão em estâncias e charqueadas. História: Debates e Tendências, UPF, p. 11-35, 2009.

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vento frio proveniente de sul e sudoeste (pampeiro e minuano). Talvez pela precariedade das edificações das senzalas, têm-se poucos registros quanto à sua localização e existência. 29 Os estudos recentes sobre os cativos nas fazendas pastoris do Rio Grande do Sul e norte do Uruguai, com destaque para o século 19, indicam de três a quatro trabalhadores (cativos ou livres) por unidade produtiva pastoril, de uma légua (4.300 ha), e uns dez a doze, para légua de sesmaria (13 mil ha). Os trabalhadores escravizados possivelmente se abrigavam no galpão, ao passo que os que tinham ocupações domésticas ficavam junto à vivenda principal, dormindo na cozinha, nos corredores, em pequenos quartos ou ao pé da cama de senhores e senhoras. Deitavam-se no chão, em alguma esteira ou cobertor,30 no melhor dos casos, talvez, em algum pelego. Ao analisar as fazendas sulinas do Planalto Médio, Nery Silva anotou que eram raras as senzalas. Afirmou que, o melhor dos galpões, sem forro, de chão batido ou de piso de pedras irregulares, acolhia as despensas; bem como as casas de carne, de embutidos e de charque, os quartos de dormir dos peões, de criadas e de escravas. Outro, mais rústico que o anterior, tinha o calor do fogo de chão, a casa dos arreios, os depósitos de sal, o quarto de hóspedes, às vezes com piso e forro de madeira, e mais quartos de peões. O mais precário deles, possivelmente o terceiro galpão, contava com estrebarias, currais, galinheiros, pocilgas, paióis, depósitos de ferramentas e senzalas para os homens. O mesmo ocorria nas estâncias da Campanha do Rio Grande do Sul – as mulheres (sempre em menor número) e os homens escravizados não compartilhavam os mesmos espaços. Duro golpe nos que tentam provar a frequente presença de famílias escravas nos

29 30

Id. MAESTRI, Mário. O sobrado e o cativo. A arquitetura urbana erudita no Brasil escravista. O caso gaúcho. Passo Fundo: Ed. UPF, 2001. p. 154.

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estabelecimentos rurais.31 Faltam-nos ainda estudos mais detidos sobre essa realidade. Usualmente, tanto no norte como no sul do estado do Rio Grande as sedes estavam situadas nos altos das coxilhas, de onde se vigiavam todos os lados da propriedade rural. Era comum orientar as fachadas frontais de leste a norte, privilegiando a entrada de sol nos melhores cômodos. As áreas de serviço voltadas para o sul ficavam protegidas dos ventos pela vegetação. Frequentemente, a cozinha suja situava-se em um apêndice fora da construção, enquanto a cozinha limpa, que servia a casa dos proprietários, localizava-se junto à moradia. As capelas foram raras, sendo comum dispor de um oratório num dos compartimentos da morada.32 Quanto à altura, as casas térreas foram mais frequentes que os sobrados. Geralmente, a planta da vivenda tinha forma de “U”. Quase sempre possuíam um pátio central ou lateral – recinto descoberto no interior da construção. Tanto no norte quanto no sul da província do Rio Grande, independentemente das formas de organização dos ambientes, nas sedes se sobressaíam plantas tendendo ao quadrado. A maioria das moradas foi erguida em alvenaria de tijolos cozidos; depois, em menor número, de pedras. Em ambas as localizações construiu-se com pau-a-pique e, no Planalto, também com madeira. Nenhum registro existe sobre a taipa de pilão. Portanto, a técnica, utilizada em São Paulo, não teve influência no Planalto Médio nem alcançou a área da fronteira meridional. Raro foi o uso desta técnica construtiva no Sul.33 Em relação à distribuição interior, a vivenda estancieira pode ser classificada em três grupos. O primeiro apresenta um arranjo semelhante à casa urbana de morada inteira, em que uma circulação central organiza a distribuição, conduzindo desde a entrada, ao longo dos compartimentos até uma 31

32 33

GUTIERREZ, Ester Judite Bendjouya. Arquitetura rural do planalto médio. Apud SILVA, Velhas fazendas sulinas... p. 19-20. Id. Id.

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sala posterior geralmente ampla. O segundo, sem circulações especializadas, pode ser subdividido em dois grupos: os pavilhonares, com os compartimentos dispostos sequencialmente e a circulação através dos mesmos, às vezes enfilade, ou seja, formalmente alinhados; ou ainda com planta tendendo ao quadrado, no qual o corpo central distribuidor é composto por uma ou mais salas contíguas, ou por duas salas intermediadas por compartimentos e circulação. Um terceiro grupo, mais híbrido, pode ser definido como formado por casas em que coexistem as duas situações anteriores.34 As sedes das propriedades que se localizavam no ambiente das guerras da fronteira constituíam uma espécie de refúgio do caos ocasionado pelas constantes disputas e revoluções e, eventualmente, contra os trabalhadores escravizados. Foram erguidos volumes densos, fortes, de paredes grossas, de poucos traços e de muito corpo, onde o cheio predominava sobre o vazio; a massa, sobre o espaço. Dentro desse universo diverso de construções, na região próxima à fronteira sulina destacase um tipo de edificação original, a “estância fortificada”.

As estâncias fortificadas: Jaguarão - RS Na fronteira meridional do Rio Grande do Sul, junto ao Uruguai, o município de Jaguarão possui considerável número de estâncias distribuídas ao longo do seu território, algumas originárias de sesmarias e/ou posses; outras, de guardas e/ou acampamentos militares. As fazendas deste município conservam, predominantemente, a linguagem luso-brasileira; muitas das intervenções atuais e não tão recentes tendem a reforçar a linguagem do período colonial, expressa por meio do estilo neocolonial. Uma diferença de algumas das propriedades neste município é a sua implantação, não no alto da coxilha, como seria o usual desses estabelecimentos, mas pró34

LUCCAS, Luís Henrique Haas. Estâncias e fazendas: uma contribuição ao estudo da arquitetura tradicional riograndense. Disponível em: mar. 2006. Acesso em: 10 jun. 2009

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ximo à água. Esse fato fica bastante evidente, sobretudo, na estância dos Bonitos: na beira do rio Jaguarão, estava a sede da área pastoril e também de uma charqueada. (Fig. 13). Em meio a essas propriedades, foram identificados elementos da arquitetura militar em duas moradas; por isso, essas propriedades foram chamadas de “estâncias fortificadas”. Para a arquiteta e urbanista Glenda Pereira da Cruz, essas fazendas se constituem em um dos espaços característicos da região da campanha e, segundo alguns historiadores, assumiriam formas tão sólidas e impenetráveis como uma maneira de compensar o precário sistema de fortificações do Rio Grande do Sul.35 Os prédios serviam e representavam o avanço territorial português. Em geral, esta arquitetura tem características que incorporam ao seu conjunto elementos que podem ser os mirantes, os fortins com seteiras e os muros de proteção. Os mirantes permitiam a proteção e controle da propriedade; os fortins seriam como as torres, podendo ter mirante e seteiras, rasgos verticais para a colocação de armas de fogo para defesa.

Fonte: Intendencia Municipal de Jaguarão. Apontamento para uma monografia de Jaguarão. 1912. 2ª Exposição Agropecuária. Porto Alegre.

Figura 13 – Foto da Fazenda da Glória em 1912 35

PEREIRA DA CRUZ, Glenda. Processo de urbanização do Rio Grande do Sul. Cadernos de Arquitetura da FAU , Porto Alegre: Ed. UFRGS, 1994. p. 112

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A sede da estância do Juncal: Jaguarão - RS A estância do Juncal, localizada próxima à lagoa Mirim e ao arroio Juncal, constitui uma estância fortificada (Fig. 14). Tem feição de pequeno forte, pesado e compacto; é um prédio murado com pontos de guarda nas duas partes opostas do frontispício principal. Parte da edificação apresenta um segundo pavimento, que poderia funcionar como uma espécie de mirante. Em razão do terreno extremamente plano, o compartimento assobradado possibilita uma visão de 360 graus da área.

Fonte: Rodrigo Osório, 2009.

Figura 14 – Vistas externas da Fazenda do Juncal

O lado que dá frente à lagoa Mirim originalmente possuía apenas uma única abertura – possivelmente o acesso principal. (Fig. 15) A vista geral possibilitada pelo segundo pavimento e a parede quase cega de frente para a água podiam permitir que se avistasse a chegada dos castelhanos por via lacustre, enquanto as janelas, voltadas para as faces opostas, permitiriam uma visualização parcial da propriedade pelos moradores da vivenda, de forma mais protegida. Estâncias fortificadas

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?????? Fonte: Rodrigo Osório, 2009.

Figura 15 – Vistas do pátio interno da Fazenda do Juncal

A casa foi construída com uma planta em forma de “U”, coberta com telhas de barro tipo colonial. No mirante, o telhado tem quatro águas; na parte térrea, três. Anexas, possui duas construções cobertas por um único lance, com uma espécie de beiral falso voltado para a parte externa. É uma construção fechada e maciça. Em razão dafalta de resquícios aparentes de outros prédios do conjunto, como galpões, casa de hóspedes, cozinha suja, é viável supor que algumas dessas funções se encontravam anexas ou se valiam das construções de uma água que compõe a fortificação. O prédio principal teve acréscimo pela parte interna do muro. A estrutura aparente do telhado, tanto no alpendre existente no anexo lateral como na parte dos fundos do edifício principal, dá indícios de que esta última tenha sido também um alpendre. Isso é reforçado pelo algibe existente no pátio interno, que recolhia as águas dos telhados. (Fig. 16)

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?????? Fonte: Rodrigo Osório, 2009.

Figura 16 – Vistas externas da Estância São João

A fachada se mostra simplificada, apresentando uma cimalha sob o beiral e molduras nas esquadrias. Os vãos são relativamente grandes; as vergas, retas. As janelas de guilhotina com caixilhos de vidros pequenos têm postigos. Há uma mureta de balaústres acrescentada posteriormente. Recentemente, foram colocadas mais aberturas, tanto portas como janelas, bem como modificadas as existentes. Internamente, em virtude de algumas alterações e acréscimos, sem um levantamento físico-espacial e um estudo mais detalhado, não é possível identificar a destinação dos compartimentos. A organização interna leva a crer que existia uma sala central ladeada por dois quartos. Em um deles existe a escada, bastante precária, de difícil acesso, que leva ao pavimento que servia de mirante. Quanto às técnicas construtivas, as paredes são de alvenaria de tijolos cozidos assentados com barro; o telhado tem estrutura de madeira com telhas de barro capa e canal. O forro é em madeira simples com tábuas assentadas. O galpão existente atualmente não parece pertencer ao conjunto inicial, principalmente pela sua localização, obstruindo uma parte da visão das guardas nas seteiras localizadas nas quinas opostas. De maneira geral, pode-se se perceber que se tra-

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ta da construção original, concentrando quase todas as suas partes dentro do espaço intramuros.

A sede da estância São João: Jaguarão - RS Em entorno semelhante ao da morada principal da estância do Juncal, a São João também está situada em terreno extremamente plano próximo ao rio Jaguarão. (Fig. 17) A propriedade pertencia a outra maior, de mesmo nome – fazenda São João do Rincão de Jaguarão e Juncal –, cuja sede seria a atual estância dos Bonitos, sendo a São João um dos postos avançados desta.

?????? Fonte: Rodrigo Osório, 2009.

Figura 17 – Vistas internas da Estância São João

A casa que existia primitivamente foi refeita e aumentada. É possível que a atual tenha sido construída aproveitando a estrutura dos tempos coloniais. Não tão modificada, a torre permaneceu com o mirante. A sede em si possui características posteriores, do final do século 19, como porões altos e elementos decorativos. A torre com o mirante confere à construção uma volumetria diferenciada das demais fazendas, uma construção sólida 192

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com um elemento agregado a sua forma: a planta da sede é retangular, e a do mirante, hexagonal. Parece não haver relação volumétrica ou princípio organizador entre um e outro, o que reforça a hipótese da construção em períodos diferentes. A última alteração foi por volta do ano 2000. Próximo à sede, um antigo galpão existia nos fundos. (Fig. 10). O anexo existente é de um período mais recente e abriga, atualmente, a cozinha, a despensa e algumas salas. Possui uma planta retangular, cuja visualização foi alterada pelos acréscimos. O mirante encontra-se na parte frontal, num extremo da construção. A cobertura do corpo principal em telha colonial possui quatro águas. Hoje, as fachadas têm decorações, como pilastras e molduras com cimalhas simplificadas nas janelas. As esquadrias foram modificadas, outros vãos foram abertos, inclusive no mirante, e os novos anexos construídos receberam aberturas de configuração semelhante à da construção principal. A planta da vivenda apresenta indícios de que a sua configuração primitiva tenha sido de morada inteira, com os compartimentos organizados por um corredor central. A distribuição interna seria uma sala frontal, com o corredor organizando os compartimentos, estes provavelmente quartos. A organização foi bastante transformada: paredes foram retiradas, um banheiro foi colocado; recebeu uma lareira e os porões foram, em parte, fechados. O mobiliário atual é extremamente rico. No inventário do antigo proprietário foram listadas diversas mobílias, mas, como corresponderia a uma propriedade maior, não é possível identificar o que permanece nesta sede. (Fig. 18) Quanto às técnicas construtivas, apresenta paredes espessas de tijolo maciço, assentado provavelmente com barro; tem forro em madeira trabalhado e piso de madeira na parte da frente e cerâmico nos fundos da vivenda.

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Fonte: Rodrigo Osório, 2009.

Figura 18 – Vistas externas dos fortins da Fazenda do Juncal

Os fortins das estâncias do Juncal e São João Os fortins são bastante representativos das estâncias fortificadas. A fim de permitir uma visualização ampla do terreno à sua volta, com formas circulares ou seccionadas, os fortins ou torres se constituem em corpos que se sobressaem aos demais. Um elemento bastante marcante são as seteiras. Na estância do Juncal, o fortim faz parte do conjunto, da organização da sede; na Estância São João, aparece como um elemento agregado. Ambos estão ligados à moradia por muros. O fortim da estância do Juncal tem configuração que lembra uma caverna; a construção, fornos de rua. Tem formato arredondado e ovalado na parte superior, é simplificado e rústico. Encontra-se em mau estado de conservação, com raízes de plantas crescendo entre as paredes e a cobertura. (Fig. 19). A falta de reboco revelou a técnica construtiva utilizada na edificação: tijolos assentados com barro. Um beiral arrematado por uma cimalha acompanha o perímetro da torre, solução idêntica ao restante da residência. (Fig. 20)

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Fonte: Rodrigo Osório, 2009.

Figura 19 – Vistas internas de fortim na Fazenda do Juncal, mostrando a técnica construtiva

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Fonte: Rodrigo Osório, 2009.

Figura 20 – Vistas do fortim da Estância São João

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O fortim da estância São João apresenta uma estrutura mais complexa, com uma técnica construtiva mais elaborada. Tem a forma próxima à hexagonal; na parte inferior se localizam as seteiras, algumas das quais atualmente se encontram fechadas, e na parte superior, o mirante, com janelas. (Fig. 21) As aberturas eram em menor número; atualmente existem vãos em todas as faces, aumentando a proporção entre os vazios e os cheios. Internamente, uma escada metálica substituiu a de madeira. Possui telhado com as águas caindo para todas as faces; recebeu ornamentação em sua fachada, por meio de uma cimalha e pilastras marcando as arestas.

A escravidão nos campos de Jaguarão O olhar mais de perto Com base na apreciação de seis inventários em que foram arroladas terras em Jaguarão, neste texto pretende-se refletir sobre o trabalho escravizado de homens e mulheres nas estâncias.36 Para isso, foi utilizado o arrolamento dos bens inventariados, buscando relacionar e identificar as condições do trabalho cativo. Com os dados coletados foi elaborada a Tabela 1.

36

Sobre escravidão em Jaguarão ver: CARATTI, Jônatas. Experiências de escravidão e liberdade na fronteira Oeste do Rio Grande do Sul (1842-1860). In: Anais da VI Mostra de Pesquisa do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Corag, 2008; Apreensão, venda e extradição: experiências de uma crioula oriental em terras sul-rio-grandenses (1842-1854) In:Anais da V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Corag, 2007.

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Cativos 54 07 10 13 08 32

17400 145 400 1135 1800 461

Reses

Fonte: Apers. Jaguarão. Cartório Órfãos e Ausentes. Seis inventários.

Manoel Amaro da Silveira Francisco de Faria Santos Ignácio José de Leivas Joaquim Manoel Porciúncula Ignácio Felix Feijó Francisco José Gonçalves da Silva

Proprietário Inventariados

Vacas leiteiras 50 -

Bois 20 14 50 45 18 09

Novilhos 03 -

Cavalos 14 40 20 30

Éguas 400 40 40 267 300 321

Potros 30 -

03 -

Capões

Tabela 1 – Quadro de bens inventariados de seis estancieiros em Jaguarão. RS (1816-1865)

Ovelhas 300 202 200 300 200

Imóveis 06 01 01 03 03 15

1824 1816 1818 1832 1823 1865

Ano

Na Tabela 1 a relação dos proprietários seguiu a ordem de distribuição físico-espacial dos imóveis rurais. As terras que foram de Manoel Amaro da Silveira hoje pertencem ao município do Herval; as demais continuam em Jaguarão. As propriedades de Francisco Faria Santos, Ignácio José de Leivas e de Joaquim Porciúncula eram contíguas e estavam implantadas a oeste da área urbana. A de Faria Santos localizava-se no encontro dos arroios Telho Chico e Quilombo, exatamente na bifurcação onde estes dois cursos de água engrossam e contribuem para o arroio do Telho. Os campos da família Leivas situavam-se entre os arroios do Meio e do Telho; os de Joaquim, entre o arroio do Meio e o rio Jaguarão. As duas últimas propriedades, a de Ignácio Félix Feijó e a de Francisco José Gonçalves da Silva, instaladas a leste da área urbana, eram banhadas pela lagoa Mirim e chamadas de estâncias do Juncal e São João, onde permanecem os dois fortins apresentados anteriormente. (Fig. 2). Entre os proprietários rurais do Rio Grande do Sul, Manoel Amaro da Silveira foi considerado a maior fortuna inventariada.37 Seus pais eram açorianos, talvez tenham chegado com a segunda leva de emigrantes, por volta de 1746, à atual Porto Alegre, antigo Porto dos Casais. Manoel casou com Maria Antônia Muniz, natural de São Carlos de Maldonado, na Banda Oriental do Uruguai, filha de Jerônimo Muniz, fidalgo português.38 Primeiro, em 1816, Maria Antônia teve concessão de sesmarias; depois, no ano seguinte, foi a vez de Manoel recebê-las. No final da vida era proprietário de 54 escravos e dono de muitas terras. Foram inventariadas sete propriedades rurais. A primeira da lista era uma sesmaria de campo situada na serra de Santa Maria, distrito da freguesia de Piratini, com 37

38

OSÓRIO, Helen. O império português no sul da América: estancieiros lavradores e comerciantes. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2007, p. 273. MEDEIROS, Manoel da Costa. História do Herval: descrição física e histórica. Porto Alegre: Escola Superior de São Lourença de Brindes, 1980, p. 295.

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uma légua de frente (6.600m) por duas de fundo (13.200 m). Aí foi construída uma casa de paredes de pedras, coberta de capim e plantada uma quinta com arvoredo. A segunda, situada no serro do Baú, no distrito da mesma freguesia, possuía meia légua de frente (3.300 m) e cinco quadras de fundo (660 m). Este foi o lugar que Maria Antônia escolheu para viver com Manoel, provavelmente por ter recebido como herança paterna.39 A “morada de casas de vivenda” do casal era de paredes de alvenaria de pedras e coberta de telhas de barro. Nessa propriedade, para despejo, havia outra casa menor erguida com iguais técnicas e materiais. A terceira, igualmente, localizava-se no mesmo distrito. Manoel, junto com seu irmão Francisco, comprou um pedaço de campo. Sua parte media uma légua de frente (6.600 m) e uma e meia de fundo (9.900 m). A quarta propriedade ficava na Forqueta de Jaguarão, no Rincão dos Órfãos, possuindo uma légua de frente (6.600 m) e três de fundo (19.800 m). A quinta propriedade ficava nas cercanias do antigo estabelecimento do pai de Maria Antônia; localizada no serro de São Jerônimo, tinha duas léguas de frente (13.200 m) e uma de fundo (6.600 m). A casa de morada era coberta de capim; sua cozinha, de madeira, e o curral, de pau. A sexta propriedade arrolada, com uma légua de frente (6.600 m) e duas de fundo (13.200 m), situava-se no Passo do Melo, na freguesia de Piratini. A última, em São José, também em Piratini, media uma légua de frente (6.600) e duas de fundo (13.200) e continha três mangueiras de madeira e um rancho de palha. Das casas de Manoel e Maria Antônia apenas as duas localizadas nas terras que viviam tinham telhas de barro; as outras três eram cobertas com palha. Os quinze herdeiros herdaram poucas moradias e muitíssimas terras, um total de 546.678.000m2, ou seja, os quase 55.000 ha que o casal detinha. 39

Id.

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No rol dos trabalhadores escravizados por Manoel da Silveira, 26 eram campeiros; quatro, lavradores; três, sapateiros; um, carpinteiro; um, aprendiz de carpinteiro; um, alfaiate. Dez cativos não tiveram sua ocupação designada, assim como as que eram do sexo feminino. Eram oito mulheres, duas mais velhas, com 50 e 48 anos, respectivamente, Gertudres, crioula, e Joana, Benguela; depois vinham Tomázia, mulata, com 27, e Joana da Costa, com 22 anos. As demais ainda não tinham alcançado a idade adulta. Chamavam-se Brígida, crioula, de 15; Clemência, crioula, de 12, Feliciana, de nove, e Laurinda, de sete. Neste plantel havia mais uma criança, Bernardo, de 12 anos.40 No total, as crianças não chegavam a 10%; as mulheres não alcançavam 5%. As tarefas pastoris eram tradicionalmente desempenhadas por homens. Esses dados captam a eventual despreocupação do proprietário com a reprodução vegetativa de seus cativos e a constituição de famílias, num momento em que a exploração encontrava-se estabilizada. Quando ao rebanho, contaram-se 17.400 reses de rodeio, quatrocentas reses mansas, quatrocentos cavalos mansos, trinta potros inteiros, vinte bois mansos, duzentas éguas de rodeio, duzentas éguas alçadas e trezentas ovelhas. Se apenas os 26 cativos campeiros se ocupavam do gado, sem a ajuda permanente de peões, não arrolados nos inventários, teríamos em torno de 710 animais por trabalhador pastoril. Não restam dúvidas de que os números da riqueza desse proprietário são significativos em relação ao Rio Grande do Sul.

As estâncias junto ao arroio Telho Em 1815, Francisco de Faria Santos recebeu terras. Um ano depois, abriram seu inventário,41 no qual foi arrolado um 40

41

APERS. Jaguarão. Cartório de Órfãos e Ausentes. Manoel Amaro da Silveira, 1824. Inventariante: Vasco Amaro da Silveira. Estante 97, Maço 4, Nº 76. APERS. Jaguarão. Cartório de Órfãos e Ausentes. Inventário de Francisco de Faria Santos, 1816. Inventariante: Maria S. da Silva. Estante 97, Maço 2, Nº 37.

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rincão de campos que tinha mais ou menos um quarto de légua (1.650 m) na freguesia do Serrito, com suas benfeitorias. O rebanho era composto por 145 reses mansas, oito bois mansos, seis bois carreiros e duas manadas de éguas com quarenta animais. Como mão-de-obra havia sete cativos, dos quais cinco eram adultos, com idades entre vinte e quarenta anos: Antônio da Costa, Miguel Benguela, João Congo, Rita (de nação) e Maria Quisana. Não se anotaram as suas ocupações. Considerando a presença de gado vacum, esses trabalhadores, especialmente os do sexo masculino, deveriam tratar dos animais. Quanto a lavouras ou roças, não havia registro no inventário de meios de produção para tal finalidade, embora conste a existência de bois mansos, que geralmente eram utilizados para arar. As outras duas cativas arroladas eram crianças: Elena Mulata, que tinha quatro anos de idade, e Silvina Mulata, de apenas um ano. Pode-se verificar que nessa estância havia uma reprodução do plantel cativo, visto que duas crianças foram arroladas entre os escravizados, possivelmente filhas de Rita e/ou Maria, que tinham idades de trinta e quarenta anos, respectivamente. Dos cinco cativos em idade de trabalho – uma escravaria acima da média –, todos eram africanos – três homens e duas mulheres. Se a fazenda fora organizada havia pouco, não é certo que conhecessem o trato com os animais. Conforme o historiador Mário Maestri, o trabalhador africano novo conhecia a criação bovina, mas ignorava o pastoreio extensivo realizado por homens montados a cavalo, pois em algumas regiões da África o cavalo era monopólio das elites guerreiras. O processo de aprendizagem das lides campeiras é complexo e longo; assim, um africano que chegasse com 14 de anos de idade ao Sul dificilmente se tornaria um peão antes dos vinte anos. Além dessa dificuldade, havia outros empecilhos, como os problemas da língua e a adaptação à nova condição de escravo. Por isso, nas fazendas pastoris possivelmente havia Estâncias fortificadas

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um privilégio no uso de escravos crioulos nascidos em zonas rurais, já que as tarefas de um peão eram ensinadas às crianças a partir de oito anos de idade. Os escravizados africanos também estavam envolvidos nessas práticas, mas naquelas regiões de ocupação e de constituição recente da produção pastoril em que os criadores enfrentavam uma escassa mão-de-obra livre, sendo necessário adquirir cativos como força de trabalho nas tarefas pastoris. Assim, é provável que na estância de Francisco de Faria dos Santos, que era uma ocupação recente, do início do século XIX, as atividades possivelmente estivessem relacionadas com a exploração agrícola. O quase-equilíbrio sexual do plantel cativo também indica tal situação, além de que havia pouco rebanho, cerca de 160 animais, que deveriam ser usados para a alimentação da família, dos cativos e dos eventuais peões.42 Ignácio José de Leivas recebeu a sesmaria em 1815. Após três anos, em 1818, realizou-se seu inventário.43 Tinha uma sesmaria de légua e meia de campo na costa do arroio do Telho. O rebanho estava constituído de quatrocentas reses de criar, cinquenta vacas leiteiras, 24 bois lavradores, 26 bois carreiros, quarenta cavalos mansos, quarenta éguas em duas manadas, 202 ovelhas. Nesta estância, diferentemente da anterior, havia quatro ferros de arado, duas pedras para moinho, que deveriam ser utilizadas para moer farinha, milho e mandioca, plantas possivelmente cultivadas na estância. Acrescido do registro de 24 bois lavradores, reforçou-se a presença de plantações, como atividade talvez dominante, como sugere o importante número de cativos, em relação aos animais vacuns. Somaram-se, ainda, as vacas leiteiras, que forneciam produtos para consumo de subsistência e comercia-

42

43

MAESTRI, Mário. O negro e o gaúcho: estâncias e fazendas no Rio Grande do Sul, Uruguai e Brasil. Passo Fundo: Ed. UPF, 2008, p. 228-231. APERS. Jaguarão. Cartório de Órfãos e Ausentes. Inventário de Inácio José de Leivas, 1818. Inventariante: M S. Assunção. Estante 97, Maço 2, Nº 44.

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lização. Também pode ser feita a vinculação entre a presença de ovelhas e um tear velho em seus pertences. Nesta estância, havia dez trabalhadores escravizados, dos quais quatro eram homens e adultos, com idades entre 16 e 35 anos: Domingues Benguela, João Congo, Antonio Cabinda e Fortunato Crioulo. Esses cativos trabalhariam como lavradores, utilizando os bois, os arados e outros equipamentos para a lavoura, e desempenhariam, talvez o crioulo, atividades criatórias – como campeiro e amansador, já que existiam bois carreiros, que estavam em processo de domesticação. Ainda havia uma cativa adulta, Joaquina Maquimbé, e crianças de idades entre um e sete anos, quatro meninos e uma menina. Joaquina poderia trabalhar na lavoura, realizando alguma colheita e, quiçá, no tear. Apesar do forte desequilíbrio sexual da escravaria, como nas propriedades anteriores, o plantel conhecia também importante reprodução natural, com cinco crianças. Nesta estância a presença de escravos africanos está relacionada à atividade agrícola que foi evidenciada a partir dos bens arrolados no inventário. Joaquim Manoel Porciúncula recebeu a sesmaria em 1815, e seu inventário foi aberto em 1832.44 Na área urbana, possuía uma morada de casas na rua Direita e um terreno “pegado”. Tinha um campo com um terreno de três léguas (19.800 m), com pomar com árvores frutíferas, entre as quais laranjeiras, uma casa velha de tijolo, uma casa pequena também de tijolo, coberta de telhas. Alguns animais e cativos estavam com os herdeiros, sendo somados aos bens do inventariado. Possuía 1135 reses de criar, três novilhos, três capões, 45 bois, 267 éguas xucras e 200 ovelhas. Os trabalhadores escravizados exerciam ocupações nesses imóveis, porém não foi possível analisar quais especificadamente. Dos 14 cativos arrolados, cinco estavam com os herdeiros; dentre os últimos 44

APERS. Jaguarão. Cartório de Órfãos e Ausentes. Inventário Joaquim Manoel Porciúncula, 1832. Inventariante: Perpétua Felícia Gomes. Estante 97, Maço 6, Nº 119.

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estava uma única mulher: Tereza, trinta anos, que servia à herdeira Luciana. De cinco não foi registrada a ocupação e igual número foi anotado como campeiro, dois como pedreiros e um como sapateiro. Do total havia dois crioulos, dois africanos, e sobre oito não havia informações. Os africanos eram Joaquim Congo, de 26 anos, sem ocupação designada, e José Mina, que tinha 70 anos e era campeiro. Observou-se que estava quebrado. Pela idade avançada, José Mina deveria ter experiência nas atividades pastoris, quiçá havia trabalhado em outras fazendas antes de chegar à estância de Joaquim Manoel Porciúncula. Neste caso, tratava-se, é crível, de empreendimento com clara vocação pastoril, realidade igualmente sugerida pela muito alta taxa de masculinidade.

As estâncias, com os seus fortins, junto à Lagoa Mirim As terras de Inácio Felix Feijó foram concedidas em 1814. Inácio Felix Feijó tinha nascido na Colônia do Sacramento, em 1763. Trinta anos depois, casara-se com Ana Maria Joaquina dos Santos em Rio Grande. Em 1823, foi aberto seu inventário,45 onde se arrolaram três bens de raiz: uma sesmaria de campo, provavelmente medindo 13.068 ha, em Jaguarão, com casa de vivenda coberta de capim com galpão; uma casa com cozinha coberta de capim na área urbana portuária e um terreno na mesma localidade. Quanto ao rebanho, tinha 1800 reses de criar, dezoito bois mansos, vinte cavalos mansos, trezentas éguas e trezentas ovelhas, que possivelmente estavam na sesmaria onde trabalhavam oito cativos – sete homens e uma mulher. João Rebolo, M.Vicente Congo, José Rebolo, Joaquim Rebolo, Antonio Costa, Lazaro Mulato e a cativa Maria dos Santos tinham idades entre 16 e 50 anos. 45

APERS. Jaguarão. Cartório de Órfãos e Ausentes. Inventário de Inácio Felix Feijó, 1823. Inventariante: Anna dos Santos Feijó. Estante 97, Maço 4, Nº 71.

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O mais valorizado foi Lazaro Mulato, trinta anos, anotado como carpinteiro; em segundo lugar estava Joaquim Rebolo, trinta anos, registrado como campeiro. Portanto, entre as estâncias aqui apresentadas, nesta se destacam um grande número de reses e uma quantidade significativa de ovelhas e éguas. Todavia, o número de cativos não difere. Tratava-se possivelmente de estância com vocação pastoril – dois cativos campeiros, alta taxa de masculinidade –, à qual se associava eventualmente a agricultura ou outra atividade. Francisco José Gonçalves da Silva46 teve seu inventário aberto em 1865, onde foram arrolados 32 cativos e listadas 15 propriedades. Além do campo e da charqueada que possuía na área rural de Jaguarão, estavam anotadas moradas de casas, armazéns e terrenos, sobretudo na área portuária de Jaguarão, mas também no porto de Pelotas. Seu rebanho era composto de 461 reses, 9 bois, 30 cavalos, 321 éguas e 200 ovelhas. O número maior de trabalhadores escravizados deve-se à existência da salga de carnes. A análise da população escravizada deste estancieiro será realizada de maneira mais detalhada a seguir neste trabalho.

A escravidão na estância e charqueada São João Com os cativos arrolados no inventário Francisco José Gonçalves da Silva foi realizada a Tabela 2.

46

APERS. Jaguarão. Cartório de Órfãos e Ausentes. Inventário de Francisco José Gonçalves da Silva e sua mulher Maria Joana Gonçalves Braga. 1865. Inventariante: João Francisco Gonçalves e outros. Estante 98, Maço 2, Nº 72.

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Tabela 2 –

Quadro dos cativos arrolados no inventário de Francisco Gonçalves da Silva e de sua mulher Maria Joana Gonçalves Braga (1865). Jaguarão - RS

Nome Ocupação 1. Raimundo (pardo) Alfaiate 2. Felipe (crioulo) 3. Baltazar Carpinteiro e campeiro 4. Clementino (pardo) 5. Venância (parda) Cozinheira 6. Raquel (parda) 7. Caetano (crioulo) 8. Clara (crioula) 9. Gabriel Salgador 10. José (crioulo) 11. Virginia (crioula) 12. Moisés (crioulo) 13. Ambrósio (crioulo) Campeiro 14. Florisbela e seu filho de três anos 15. Joaquim Luiz (crioulo) 16. Isabela (crioula) 17. Sebastiana (crioula) 18. Antonio (crioulo) 19. Gregório (crioulo) 20. Julia (crioula) 21. Vicente (da Costa) 22. Patrício (crioulo) 23. Leandro (crioulo) 24. Quitéria (crioula) 25. Regina (crioula) 26. Aníbal (crioulo) 27. Olímpia (crioulo) 28. Balbina (mulatinha) 29. Frederico (crioulo) 30. Madalena (crioula) 31. Agueda

-

Valor 1500 1500 1500 1500 1500 1500 1400 1400 1400 1000 1000 800 800 800 (ambos) 600 400 600 400 300 400 650 700 800 400 700 700 600 400 400 700 800

Fonte: Apers. Jaguarão. Cartório de Órfãos e Ausentes. Inventário de Francisco José Gonçalves da Silva e sua mulher Maria Joana Gonçalves Braga. 1865. Inventariante: João Francisco Gonçalves e outros. Estante 98, Maço 2, Nº 72.

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O inventário anotou um total de 37 trabalhadores escravizados. Seis foram libertos; 19 estavam com o casal; 13, distribuídos entre os herdeiros. Do total, 62,5% eram homens e 37,5%, mulheres. Apesar de não terem especificado as idades, considerando a presença feminina, é factível a presença de crianças. Não há no inventário uma divisão dos trabalhadores por unidades produtivas. Apenas a parda Venância teve sua ocupação designada: era cozinheira e estava junto com o casal; é possível, então, que realizasse suas atividades na casa rural, onde residiam os inventariados. Seu preço equivalia ao dos homens mais valorizados.

Áreas portuárias Além das terras rurais situadas a leste da cidade, no encontro da foz do rio Jaguarão com a lagoa Mirim, Francisco José era dono de três moradas de casas, dois armazéns e três terrenos na área urbana de Jaguarão. Todos esses imóveis estavam localizados nas proximidades da praça da Marinha, área portuária de Jaguarão. Era um local estratégico, pois desde cedo a localidade teve grande parte de seu desenvolvimento a partir do comércio, realizado pelas embarcações. Os dois armazéns que Francisco possuía remetem à possibilidade de ser comerciante, já que a praça da Marinha era um local propício ao comércio. Em Pelotas, tinha quatro terrenos e uma morada de casas localizadas na zona do porto. Nesses locais, os cativos talvez carregassem mercadorias. Possivelmente, alguns dos trabalhadores escravizados que estavam junto aos herdeiros fizessem esse serviço. Ressalta-se a preferência por terrenos junto aos portos, por onde chegavam sal, novos cativos e produtos manufaturados, e saíam o charque e seus subprodutos. Os cativos de Francisco José Gonçalves da Silva poderiam trabalhar na área portuária de Jaguarão e de Pelotas, nas moradias urbanas, na charqueada, na estância, nos posEstâncias fortificadas

207

tos. É factível imaginar que na época da manufatura das carnes Francisco José reunisse a maioria dos homens para trabalhar na matança. Por ocasião do inventário foram libertos Joaquim Moçambique, Pedro Congo, Agostinho Africano, Ricardo Pardo, Leonor Parda e Juliana Africana. Outro fato que merece ser destacado foi o caso de Florisbela e de seu filho, que foram avaliados juntos no inventário, situação que não se repete com os demais analisados, entre os quais as crianças foram avaliadas separadamente. Segundo a historiadora Beatriz Eifert, geralmente nos inventários as crianças eram partilhadas sem a companhia das mães e, às vezes, eram doadas como dotes de casamentos às filhas dos fazendeiros.47 Com base nos inventários analisados, pode-se perceber que as principais atividades desenvolvidas nas estâncias eram a pecuária e a agricultura, variando os rebanhos entre 145 e 17.400 reses de criar, como no caso de Manoel Amaro da Silveira. Além disso, foi possível encontrar indícios da existência de lavouras e roças, especialmente na estância de Ignácio José de Leivas. A maioria dos cativos não teve sua ocupação descrita nos inventários. Entretanto, a partir dos bens inventariados, é possível relacioná-los às atividades que poderiam exercer. Desse modo, a ocupação dos cativos esteve principalmente relacionada com as atividades de campeiro e lavrador, embora se encontrem cativos como carpinteiros e pedreiros e, em razão da existência de uma charqueada, há um salgador. Neste estabelecimento havia outros cativos, que deveriam executar atividades relacionadas ao charque, mas no inventário não foram descritos como mão-de-obra especializada. Talvez realizassem diversas tarefas, não uma específica.

47

EIFERT, Maria Beatriz Chini. Marcas da escravidão nas fazendas pastoris de Soledade (1867-1883). Passo Fundo: Ed. UPF, 2007, p. 90-91.

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Dos seis inventários analisados neste trabalho foram arrolados 124 trabalhadores escravizados, porém não é possível analisar se todos trabalhavam nas estâncias, já que em alguns casos, como o dos escravos de Francisco José Gonçalves da Silva, poderiam desempenhar suas funções tanto na estância São João quanto na área urbana e portuária de Jaguarão, como também na sua charqueada. Entretanto, dos 29 bens de raiz, 44%, aproximadamente, eram localizados na área rural. Dos imóveis urbanos, havia moradas de casas, possivelmente, algumas destinadas à locação, além de terrenos sem construções, o que pode indicar que nestes dois últimos casos não tinha cativos trabalhando. Outra característica das estâncias analisadas foi a alta taxa de masculinidade nos plantéis. Dos seis inventários, em quatro há uma superioridade masculina e, em dois, um certo equilíbrio. Analisando as fazendas pastoris do Rio Grande do Sul, Setembrino Dal Bosco afirma que havia um desequilíbrio quantitativo na composição sexual da escravaria, visto que os homens representavam aproximadamente 73% do plantel, ou seja, uma taxa de masculinidade muito elevada, particularmente naquelas fazendas que também se dedicavam à produção charqueadora. Essa situação pode ser compreendida, segundo o autor, em parte pelo forte caráter africano dos plantéis analisados, que refletiriam o desequilíbrio tradicional em favor do sexo masculino na importação de cativos da África. No que se refere aos cativos pardos, mulatos e cabras, havia uma proporção entre homens e mulheres de 1,3 cativos para cada cativa, ao passo que entre os africanos a média era de 7,8 homens para cada mulher.48 Maria Beatriz Eifert, ao analisar as fazendas pastoris em Soledade, afirmou que das 21 estâncias pesquisadas, em nove o percentual de cativos de sexo masculino foi maior que o de 48

BOSCO, Setembrino Dal. Fazendas pastoris no Rio Grande do Sul (1780-1889): capatazes, peões e cativos. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Passo Fundo. Passo Fundo, 2008, p. 107-108.

Estâncias fortificadas

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mulheres escravizadas; em outras nove, o número de cativas superou a presença masculina e nas outras três ocorreu um equilíbrio sexual. A taxa de masculinidade quase equiparada à das cativas deve-se ao período analisado (1863-1883), pois após 1850, com o fim do tráfico, tendeu-se para um equilíbrio sexual nos plantéis cativos. A autora conclui que a população escravizada nas fazendas foi de 113 cativos, distribuídos em 21 propriedades, uma média de seis escravos. Desses, 27 eram menores de idade (zero a quatorze anos), representando quase 24% dos escravizados. A mão-de-obra nas fazendas analisadas, portanto, era fundamentada no trabalho de cativos adultos.49 Nas estâncias de Jaguarão, a presença marcante de africanos pode indicar que a alta taxa de masculinidade na escravaria estava relacionada com sua origem no tráfico transatlântico, como sugere Setembrino Dal Bosco, pois a maioria dos inventários analisados tem data anterior ao fim do tráfico. Mais uma vez, verificou-se nos campos do extremo sul do Brasil o trabalho escravizado nas diferentes tarefas. Igualmente, nas charqueadas, foi reafirmada a alta frequência de homens dedicados à matança. Novamente foi sentida a falta de cativos tropeiros, levando e buscando animais pelos pampas no sul do Rio Grande. O território situado no encontro da foz do rio Jaguarão com a lagoa Mirim tem muito a ser investigado. Marcados pelas guerras de fronteira, os avanços lusitanos deixaram as suas marcas nesse cenário lacustre, de terra extremamente plana. Na imensidão do horizonte do limite meridional do Brasil, os fortins permanecem se sobressaindo na paisagem, falando sobre o domínio das terras, do gado e dos escravizados.

49

EIFERT, ob. cit., p. 82.

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Sobre o Mato Grosso

Sobre os campos de Vacaria do Sul de Mato Grosso Considerações sobre terra e escravidão (1830-1889)1 Maria do Carmo Brazil*

Limites historiográficos Apesar de a produção pastoril ter sido praticamente a base econômica de toda a história brasileira, paradoxalmente é pequeno o fluxo de estudos historiográficos dedicados especificamente a essa atividade, mesmo naquelas regiões em que desempenhou papel essencial, como no caso de Mato Grosso. A historiografia brasileira sobre o tema não deixa dúvida a respeito da importância da produção pastoril em nosso passado.2 Apesar desse reconhecimento, em âmbito nacional, e de vários autores terem abordado desde cedo tangencial* 1

2

Docente do PPGH da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). Doutora em História Social pela FFLCH/Universidade de São Paulo (USP). Agradecimentos a Isabel Camilo de Camargo, mestranda do Programa de PósGraduação em História/UFGD/MS. E-mail: [email protected]. C GÂNDAVO, Pero de Magalhães de. Tratado da província do Brasil. Rio de Janeiro: INL/ Ministério da Educação e Cultura, 1965; SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado descritivo do Brasil em 1587. 4. ed. São Paulo: CEN; Edusp, 1971; CARDIM, Fernão. Tratados da terra e gente do Brasil. 2. ed. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000; SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil. 7. ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1982; BRANDÃO, Ambrósio Fernandes. Diálogos das grandezas do Brasil. São Paulo: Melhoramentos, 1977.

Sobre os campos de Vacaria do Sul de Mato Grosso

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mente essa questão, como apenas assinalado, a carência de estudos sobre o tema é indiscutível.3 Essa lacuna historiográfica se reflete em Mato Grosso, que não dispõe de uma produção mais refinada sobre o processo de formação do latifúndio a partir da introdução, consolidação e desenvolvimento da produção pastoril. Mais comumente, a historiografia regional abordou a produção pastoril mato-grossense nos seus aspectos gerais, compreendidos como escassamente dinâmicos. Esse é caso dos estudos realizados por Virgílio Correa Filho, dominantemente voltados para a planície pantaneira, atrelados aos poderes constituídos e expressos nas obras Pantanais mato-grossenses (1946), Fazendas de gado no pantanal mato-grossense (1955), A propósito do boi pantaneiro. Monografias cuiabanas (1926).4 Além de Correa Filho, temos alguns estudos isolados voltados para áreas específicas do Pantanal, como os de Carlos Vandoni de Barros e José de Barros Maciel. 5 São escritos realizados por descendentes de José de Barros, um dos fundadores da “dinastia de pioneiros”6 (nos dizeres de Pedro Calmon) da região pantaneira e que contribuíram para nutrir o gênero da biografia romanceada e as memórias por ordem crescente 3

4

5

6

Consultar por exemplo: GOULART, José Alípio. Transporte nos engenhos de açúcar (1959); Meios e instrumentos de transporte no interior do Brasil (1959); Tropas e tropeiros na formação do Brasil (1961); O cavalo na formação do Brasil (1964); Brasil do boi e de couro (1965); O ciclo do couro no Nordeste (1965). CORREA FILHO, Virgílio. Pantanais mato-grossenses – Devassamento e ocupação. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística/CNG, 1946. Biblioteca Geográfica Brasileira. Fazendas de gado no pantanal matogrossense- Documentário da vida rural n° l0 - Rio de Janeiro: Ministério da Agricultura - Serviço de Informação Agrícola, l955. A propósito do boi pantaneiro. Monografias cuiabanas, Rio de Janeiro: Pongetti, 1926. BARROS, Carlos Vandoni de. Nhecolândia – Opúsculo escrito em comemoração à Primeira Feira Agropecuária realizada na Fazenda Santa Rita, município de Corumbá – atestado eloqüente da luta pelo progresso na riquíssima região nhecolandense. Mato Grosso: [s.e.] 1934; MACIEL, Jose de Barros. A pecuária nos pantanais de Mato Grosso: Tese apresentada ao 3º Congresso de Agricultura e Pecuária. São Paulo: Imprensa Metodista, 1922. CALMON, Pedro - História da Casa da Torre - Uma dinastia de pioneiros. Livraria José Olympio Editora,1958; BRAZIL, Maria do Carmo. (Revista)

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de interesses. Sobre a região de rio Brilhante e Sant’Ana de Paranaíba, surpreendentemente arrolamos apenas o trabalho de cunho memorialístico de Hildebrando Campestrini e Acyr Vaz Guimarães.7 A obra intitulada História de Mato Grosso do Sul, ao dedicar algumas páginas ao processo de ocupação dos Campos de Vacaria e cercanias, serviu de base para estudos técnicos da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). 8 A partir de sua obra germinal, Campestrini produziu Sant’Ana do Paranaíba: dos caiapós à atualidade (1999), com o objetivo de contribuir para a construção da história do município, tendo como fundamento a trajetória das “famílias pioneiras”.9 Vemos este trabalho como mais uma reprodução do tradicional culto às classes proprietárias do passado, ainda tão comum na região, mas que não deixa de ser um ponto de partida para análises científicas. No rol de pesquisas acadêmicas dispomos de apenas dois trabalhos dedicados à pecuária em Mato Grosso: um de autoria de Luiz Miguel do Nascimento e outro de Paulo Marcos Esselin.10 O primeiro trata-se do trabalho defendido em 1992 como dissertação de mestrado, sob o título As charqueadas em Mato Grosso: subsídio para um estudo de história econômica, cujo recorte temporal envolve o período entre 1873 e 1960. Observamos que Nascimento não discutiu o processo de 7

8

9

10

CAMPESTRINI, Hildebrado; GUIMARÃES, Acyr Vaz. História de Mato Grosso do Sul. Campo Grande: Academia sul Mato-Grossense de Letras e Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul, 1991. MAZZA, Maria Cristina Medeiros et al. Etnobiologia e conservação do bovino pantaneiro. Corumbá: Embrapa, 1994, p. 14-15. CAMPESTRINI, Hildebrado. Sant’Ana do Paranaíba: dos caiapós à atualidade. Paranaíba: Prefeitura de Paranaíba, 1999. NASCIMENTO, Luiz Miguel. As charqueadas em Mato Grosso. Subsídio para um estudo de história econômica. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho, Assis, 1992; ESSELIN, Paulo Marcos. A pecuária no processo de ocupação e desenvolvimento econômico do Pantanal sul mato-grossense (1830-1910. Tese (Doutorado em História) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2003.

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desenvolvimento da economia criatória no sul de Mato Grosso como um todo, pois seu enfoque restringiu-se à expansão da ordem capitalista na região pantaneira, com base na indústria da carne. O segundo trabalho é o brilhante trabalho de pesquisa A pecuária no processo de ocupação e desenvolvimento econômico do Pantanal sul mato-grossense (1830-1910), apresentado por Paulo Marcos Esselin em 2003 como tese de doutoramento no Departamento de História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. O autor discute o papel desempenhado pela pecuária no processo de ocupação e desenvolvimento econômico do Mato Grosso e investiga a origem dos primeiros bovinos introduzidos na planície fluvial do pantanal sul, bem como as características do meio físico que permitiram excepcionais condições para operar a reprodução do rebanho. Algumas páginas da obra são dedicadas à região leste do antigo Mato Grosso, espaço onde se assentavam os Campos de Vacaria e os Sertões dos Garcia (Sant’Anna de Paranaíba). É certo, portanto, que Mato Grosso dispõe de grandes lacunas historiográficas sobre o tema, em detrimento de ser uma região de raízes essencialmente pastoris. Mesmo sobre o pantanal ainda é irrisória a produção acadêmica em torno do processo evolutivo da produção pecuária. Além disso, poucos historiadores procuraram dialogar dialeticamente com os elementos da realidade, presentes nos relatos memorialísticos ou em peças informativas similares, como forma de construir a história regional. Assim, a reflexão sobre a ocupação deste espaço singular traduz a certeza de que a pesquisa histórica sobre as correntes de povoamento e os aspectos da vida material da parte sulina de Mato Grosso permanece ainda como uma floresta primitiva, à espera de seus “desbravadores”.11 11

BRAZIL, Maria do Carmo. Rio Paraguai, o ‘mar interno’ brasileiro. Uma contribuição para o estudo dos caminhos fluviais. Tese (Doutorado em História) _Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999, p. 262.

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A exemplo da historiografia sul-rio-grandense são escassos os trabalhos gerais de historiadores sobre a evolução das fazendas pastoris do meridião mato-grossense. Daí a importância de se centrar esforços na definição do perfil da propriedade pastoril, unidade produtiva que alavancou o desenvolvimento do atual estado de Mato Grosso do Sul. Nesse sentido, procuramos refletir sobre o processo de formação do latifúndio a partir da introdução, consolidação e desenvolvimento da produção pastoril em áreas do sul de Mato Grosso, especificamente o Sertão dos Garcia, porta de entrada para os Campos de Vacaria, no século 19, considerando as formas jurídicas de formação da propriedade (sesmeira, compra, posse, ocupação livre, etc.), a evolução das técnicas produtivas (marcação, castração, rodeios, etc.) e as relações de trabalho (livre e escravizada).

Espaço pastoril Cabe enfatizar, inicialmente, que os trabalhos existentes sobre esse espaço brasileiro, sobretudo no que se refere à gênese da economia pastoril, restringem-se à história recente da região, ou seja, à análise do processo de colonização do sul de Mato Grosso a partir da década de 1940, quando o governo Vargas (1930-1945) implantou a política de interiorização do Brasil, conhecida como Marcha para Oeste, cujo objetivo era povoar os “espaços vazios” das regiões do Oeste e da Amazônia brasileira e expandir a abrangência da produção capitalista-mercantil do Brasil.12 O ponto fulcral de nossas inquietações, e que redundou nesta reflexão, refere-se, mais especificamente, ao passado 12 SCHWARTAMAN, Simon (Org.). Estado Novo, um auto-retrato. Brasília: Ed. UnB, l982, p. 21. (Arquivo Gustavo Capanema). Ver também FIGUEIREDO, José Lima. O rio Paraná no roteiro da Marcha para o Oeste. Revista Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro: CNG, jan./mar. 1942, p.143; VARGAS, Getúlio- A nova política do Brasil. Rio de Janeiro: José Olímpio, l938-l944, l0 v. Sobre os campos de Vacaria do Sul de Mato Grosso

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histórico-pastoril da região de Sant’Ana de Paranaíba, conhecida por “Sertão dos Garcia”, e de Rio Brilhante, denominada “Campos de Vacaria”. Espaço rendilhado pelos rios Paraná, Paranaíba, Sucuriú, Verde, Pardo, Anhanduí Vacaria e Brilhante, constituiu-se, em diversos pontos, em pouso obrigatório para os viandantes que perscrutavam os sertões mais internos de Mato Grosso por variados motivos, entre os quais se destacavam a busca de fama, riqueza e poder. Nesses pontos de descanso os caminheiros roçavam o mato, preparavam o acampamento, arranchavam-se, ceavam, armavam redes. Alguns sertanistas permaneciam por mais tempo nos pousos, pois desenvolviam lavoura de milho, feijão e mandioca, e só depois de se colher seus frutos prosseguiam viagem.13 Não raro, os pousos e varadouros mato-grossenses transformavam-se em importantes arraiais ou em áreas difusoras de populações oriundas do centro-sul brasileiro. A existência de inúmeros documentos existentes nos arquivos regionais, envolvendo sobretudo grandes pecuaristas e trabalhadores escravizados e livres pobres, também despertou nosso interesse em estudar o passado dos núcleos pastoris de povoamento do sul de Mato Grosso (Fig. 1 e 2). Com esse enfoque, é possível contribuir para que se retirem os trabalhadores escravizados e camponeses pobres do anonimato preexistente no discurso historiográfico regional.14 Despojados de merecida cientificidade, os raros escritos sobre o segmento social subalternizado encontram-se restritos a depoimentos isolados, memórias das ditas elites regional e local, dados dispersos nos inventários, documentos cartoriais ou detalhes

13

14

AMORIM, Marcos Lourenço. O Segundo Eldorado brasileiro. Navegação fluvial e sociedade no território do ouro. De araraitaguaba a Cuiabá – 1719-1838. Dissertação (Mestrado em História) UFGD, Dourados, 2004, p. 33. CAMARGO, Isabel Camilo de; BRAZIL, M.B. Sant’Ana de Paranaíba no século XIX: aportes para o debate sobre latifúndio e escravidão. XXV In: SIMPÓSIO NACIONAL DA ANPUH, XXV. 12 a 17 de julho de 2009. Anais... Fortaleza, CE, 2009, p. 281.

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quase imperceptíveis ou ligeiramente registrados nas narrativas dos viajantes que passaram pela região no século 19.15

Figura 1 –

Localização dos campos de Vacaria de Mato Grosso delineado em mapa com divisão político-administrativa contemporânea e editado por Omar Daniel/FCA/UFGD

A existência de um passado escravista regional ainda causa estranhamento a muitos moradores locais, por acharem impensável que a escravidão tenha alcançado os mais remotos recantos do Brasil, como é o caso do dos Campos de Vacaria e do Sertão dos Garcia.16 Empenhar esforços sobre esse espaço constituído por anseios, necessidades e contradições sociais significa lançar luz sobre a problemática do latifúndio, dos campos, das barrancas dos rios, das fazendas, como materialização de ricas e complexas relações sociais, envolvendo dominação e resistência.17 15 16 17

Ibidem. Ibidem. Ibidem

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O passado missioneiro das fazendas pastoris Na década de 1570 Domingos Martinez de Irala, como governador de Assunção e representante dos colonizadores espanhóis, despachou para a conquista de terras sul-americanas dois de seus capitães, munidos de apreciáveis expedições: Nuflo Chavez e Rui Diaz Melgarejo. Cabia a este último explorar as ribanceiras do rio Paraná e a Nuflo Chávez, a tarefa de colonizar a planície de Xarayés (região do Pantanal), sobretudo a região da Gaíva, onde deveria ser fundado um forte.18 Rui Diaz Melgarejo remontou o Paraná e fundou Ciudad Real na confluência do Piquiri e, em 1579, recebeu ordem para explorar o território dos nuarás, famoso por seus verdejantes campos. Escolheu a margem direita do M’botetey (rio Miranda), tributário do Paraguai, onde fundou a cidade de Santiago de Xerez. Teve pouca duração a cidade fundada por Melgarejo, em virtude das reações dos nativos. Invadida pelos guatós em 1579, a cidade teve uma segunda fundação em 1593, à margem direita do Miranda, por iniciativa de Ruy Diaz de Guzmán.19 Os primeiros religiosos espanhóis chegaram ao Novo Mundo no início do século 17 com a missão de cristianizar os nativos americanos. Fundaram dez reduções na província do Guairá, hoje estado do Paraná. Entre 1610 e 1634, as missões ergueram na região do Prata mais duas reduções: a do Itatim20 (sul do antigo Mato Grosso) e a do Tape (atual estado 18

19 20

Relato de Ruy Diaz de Guzman, citado por Pedro Moura em Bacia do Alto Paraguai – Revista do Conselho Nacional de Geografia, Rio de Janeiro: CNG, 1943, p. 27. BRAZIL, Rio Paraguai, o ‘mar interno’ brasileiro..., p. 114. GADELHA, R. M. A. F. As Missões Jesuíticas do Itatim: um modelo das estruturas sócio-econômicas coloniais do Paraguai (séculos XVI e XVII). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. Ver também SOUSA, N. M. A redução de Nuestra Señora de la fe no Itatim: entre a cruz e a espada (1631-1654). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Dourados, 2002; COSTA, M. F. História de um país inexistente: o Pantanal entre os séculos XVI e XVIII. São Paulo: Kosmos, 1999.

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do Rio Grande do Sul), na bacia do rio Uruguai. A partir daí os religiosos foram pontuando de reduções grande parte da região platina, destacando-se entre as mais famosas os Sete Povos das Missões, na margem esquerda do rio Uruguai. Logo os missionários promoveram a introdução do gado vacum, cavalar, muar e ovino, cientes de sua importância à sobrevivência das reduções. O gado adquirido desenvolveu-se e propagou-se pelos currais e fazendas às margens dos rios Paraná, Uruguai e Paraguai. Surgiram, assim, os primeiros núcleos criatórios de gado. A ideia era promover a fixação dos nativos, sobretudo guaranis, e, depois, acumular riqueza para região missioneira baseada nos referidos rebanhos. É preciso destacar que o surgimento do povoado castelhano de Xerez representou o gênesis do criatório bovino em espaço mato-grossense.21 Os espanhóis seguiam em caravanas, carretas puxadas por juntas de bois; levavam sementes para o cultivo, utensílios para o início de suas atividades e também pequenos rebanhos de bovinos e equinos.22 Este gado, criado à solta, não recebia maiores cuidados. Entretanto, as incursões bandeirantes, ao explorar o interior da América do Sul, alcançaram essas reduções jesuíticas e seus “campos de cria”. A partir daí, as penetrações interioranas, propulsionadas por fatores geopolíticos, econômicos e sociais, atingiram Guairá em 1628. Sem saída, os missionários abrigaram os nativos sobreviventes nas reduções de Santo Inácio e Loreto e, em seguida refugiaram-se nas missões estabelecidas entre os rios Paraná e Uruguai. Os paulistas aproveitaram-se da retirada para destruir as povoações de Vila Rica e Ciudad Real, situadas, respectivamente, na margem esquerda do rio Ivaí e junto à foz do rio Piquiri. Alguns habitantes conseguiram se dirigir para o Paraguai, 21

22

ESSELIN, Paulo Marcos; OLIVEIRA, Tito Carlos Machado. Terra onde o gado criou o homem e definiu o latifúndio. História – Debates e Tendências, Passo Fundo: UPF, v. 7, n. 2, p. 101-117, jul./dez. 2007. Ibidem.

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onde fundaram nova povoação às margens do rio Jejuí. Signo da posse espanhola, a região foi invadida e destruída pelos bandeirantes luso-paulistas em 1632, assinalando o domínio português. Depois do esfacelamento de Xerez (1633), os padres jesuítas foram obrigados a abandonar a redução e a refluir com muitos nativos para a margem direita do Uruguai, por absoluta incapacidade de enfrentar os invasores em condições iguais, no referente, sobretudo, ao armamento necessário. Segundo o Informe da Companhia de Jesus, esboçado pelo historiador português Jaime Cortesão, os jesuítas acabaram deixando cerca setecentas cabeças de gado vacum aos neófitos.23 Outras centenas de animais ficaram na antiga povoação juntamente com aqueles utilizados como tração: bois, éguas, cavalos e mulas, que haviam se desgarrado do rebanho e se criado sem trato algum.24 Sem dispor do costeio dos nativos, as manadas se espalharam pelo território e retornaram ao estado selvagem.25 Mesmo abandonado e sem manejo, o gado multiplicou-se na condição de “bagual”. Criado naturalmente por mais de meio século, o gado selvático proliferou, constituindo-se no casco inicial da pecuária sul mato–grossense, depois de sobreviverem silvestremente em ambiente favorável, propício à criação.26 A derrota dos polos de colonização espanhola e o completo despovoamento de Itatim levaram os luso-brasileiros a perscrutar novos territórios sementeiros de cativos, necessários às atividades primário-exportadoras do Nordeste brasileiro. Historicamente, o cativeiro foi a organização econômica que 23

24 25 26

CORTESÃO, Jaime (Org.). Manuscritos da Coleção de Angelis (jesuítas e bandeirantes...). Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional/ Divisão de Obras Raras e Publicações. 1951, v. 2, p. 19. Ibidem. ESSELIN; OLIVEIRA, Terra onde ... Ibidem..

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melhor se adaptou à valorização das terras americanas, em razão da impossibilidade histórica da conformação de mercado de trabalho livre. Não há dúvida de que o próprio desenvolvimento capitalista europeu floresceu, também graças à feitorização do homem americano e, depois, africano.27 Além da preagem dos nativos para escravização, as razões oficiais luso-brasileiras em avançar a linha raiana de Tordesilhas eram revestidas pela ideia de encontrar metais preciosos, que, segundo as lendas, estariam nos montes refulgentes do Peru.28 Nessa trajetória, os paulistas destruíram missões jesuíticas espanholas, estabeleceram rotas, descobriram minas e criaram circunstâncias para a ocupação e o povoamento de Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás. Com a descoberta das minas de ouro em Cuiabá (1718), a parte sul de Mato Grosso deixou de ser objeto de interesse por parte dos mamelucos paulistas. Em O Brasil do boi e do couro29, obra publicada em 1965, José Alípio Goulart lembra que a introdução do gado em áreas mato-grossense foi quase concomitante com a do garimpeiro e a do faiscador. O governador de São Paulo, Rodrigues Cezar de Meneses, ciente da necessidade de rebanho na região das minas, emitiu “regimento” (1725) incentivando os criadores a estabelecer currais naquelas paragens.30 Cavalcante Proença informa que algumas reses penetraram na região pelas mãos da “gente de Piratininga”. Luiz D’Alincourt arrisca dizer que as primeiras cabeças procederam de Camapuã.31 Esse gado tangido, seja por luso-brasileiros, seja por colonos castelhanos, paulistas 27

28

29

30 31

MAESTRI, Mario. História da África Negra Pré Colonial. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988, p. 42-43. HOLANDA, Sérgio Buarque de Holanda. Visões do paraíso – Os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. 2. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969, p. 99. GOULART, José Alípio. O Brasil do boi e do couro. Rio de Janeiro: Edições GRD, 1965. (Coleção Ensaios brasileiros – Homens e Fatos, n. 3). Ibidem, p. 41. Ibidem, p. 61.

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223

ou criadores de Goiás, acabou misturado ao gado dos campos da Vacaria.32 Nos primórdios da ocupação de Mato Grosso, priorizavase o ouro em detrimento dos rebanhos selvagens formados depois da destruição da missão de Itatim. Tanto desinteresse por parte de espanhóis e portugueses permitiu que os rebanhos bovinos e equinos se multiplicassem ao longo dos anos. Para se ter uma ideia, em 1682, alguns anos antes da descoberta do ouro cuiabano, uma das mais importantes bandeiras, organizada na cidade de Sorocaba, partiu para o sul de Mato Grosso, tendo como capitão-mor Pedro Leme da Silva. Maravilhado com os rebanhos bovinos e equinos sem dono, Pedro Leme optou pela formação de um arraial nas vacarias sulinas de Mato Grosso.33 Em suas constantes incursões pela região, os portugueses nominaram essas áreas de “vacaria”, dada a presença dos rebanhos silvestres. Delimitava-a Pedro Taques, em meados do século 18, depois de afirmar que, nos campos assim chamados, existiam enormes rebanhos, sem haver algum senhor possuidor de tanta grandeza, não só de gados vacuns, mas também dos animais cavalares.34

A reconquista dos campos No início do século 19, os campos da Vacaria do sul de Mato Grosso (Fig. 1), “esquecidos” desde o funesto aniquilamento das Missões, agregavam enormes rebanhos de gado. Os relatos conhecidos, tanto de espanhóis radicados em Assunção como os de luso-brasileiros de São Paulo, são unâni32 33

34

Ibidem, p. 42. TAUNAY, Affonso. História geral das bandeiras paulistas. São Paulo: TYP. Ideal, 1930.v.1 e 6. Ibidem. Ver também PASTELLS, Pe. Pablo. Historia de la Compañia de Jesús en la Província del Paraguay. Madrid: Librería general del Victoriano Suárez, 1912, p. 142..

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mes em afirmar a presença desses rebanhos na parte sulina de Mato Grosso. Este gado silvestre, criado extensivamente, veio mais tarde a se transformar na fonte de atração àqueles que desejavam ocupar a região, a partir da pecuária. Na planície pantaneira, por exemplo, havia extensos campos de pastagens nativas providos de salinas naturais, que, influenciados por marcantes períodos de seca e de água abundante, determinaram os modos de adaptação do homem pantaneiro à região. Destaque-se nessa fisiografia contrastante dos pantanais a abundância dos “barreiros” em áreas que vão desde a barra do rio Jauru até os campos alagados do Taquari e o Apa. Os “barreiros” são terrenos salgados, caracterizados como eflorescência salino-salitrosa, presentes da área baixa do vale do rio Paraguai e muito procurados pelo gado, por inúmeros animais silvestres, como antas, veados que escavam, lambem e refocilam a terra por causa do sal. Os depósitos de sal encontram-se em toda a depressão paraguaiana, sobretudo além dos limites nacionais, na região do Chaco.35 Todavia, a eflorescência das salinas participa da vasta paisagem dos pantanais e se dispõe de forma latente nas lagoas ou baias de água salgada. Na região do rio Negro, nos baixios para onde correm os cursos dos rios Miranda, Negro e Taquari, os barreiros se multiplicam. Próximo ao porto da Manga, no rio Paraguai, Candido Mariano da Silva Rondon arrolou, no inicio do século 20, 170 lagoas, das quais 93 se constituíam em salinas.36 A presença das baias salgadas promove a excelência dessa região, transformando o complexo do Pantanal numa referência mundial como expressão de beleza e de campo natural de pastagem. Nos espaços mais elevados da planície, os rebanhos alçados podiam ser perfeitamente recolhidos. Além disso, no século 19 as terras ainda eram tidas como devolutas 35 36

BRAZIL, Rio Paraguai, o ‘mar interno’ brasileiro..., p. 97-98. Cf. Rondon, Cândido Mariano da Silva. - Relatório das Linhas Telegráficas de Mato Grosso. Rio de Janeiro: Comissão Rondon, 1907.

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e os grupos nativos que as ocupavam, menos resistentes do que no início da conquista. A região conhecida como Campos de Vacaria (mais ao sul do pantanal), inserida no bioma cerrado, também foi propícia às atividades agropecuárias, embora também sofresse interferências ambientais, sobretudo quanto ao regime das águas, estiagens e geadas. A bióloga Roseli Senna Ganem37 explica que o bioma Cerrado é o segundo maior do Brasil, depois da Amazônia. Originalmente, o Cerrado ocupava dois milhões de quilômetros quadrados, o que equivale a 24% do território nacional. Localizado no Planalto Central, apresenta interface com todos os principais biomas da América do Sul (Amazônia, Mata Atlântica, Caatinga, Chaco e Pantanal), sendo um grande corredor de biodiversidade.38 Para Ganem o bioma constitui um mosaico de fisionomias vegetais que variam das formas campestres aos ecossistemas florestais, com alta riqueza de espécies e grande número de endemismos (ocorrência de uma dada espécie em área restrita). Diferentemente dos campos sulinos brasileiros, caracterizados por vastas áreas de vegetação graminóide-herbácea, as vacarias de Mato Grosso não eram contínuas. Distinguiase por se constituir num tablado mesclado por vegetação arbóreo-arbustivo, ora de cerrado, ora de matas de galerias. Até as três primeiras décadas do século 19, os “gentios” bilreiros ainda eram senhores daquelas paragens, quando ocorreu sua ocupação pelos “entrantes mineiros”,39 atraídos 37

38 39

GANEM, Roseli Senna et al. Ocupação humana e impactos ambientais no bioma cerrado: dos bandeirantes à política de biocombustíveis. ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM AMBIENTE E SOCIEDADE, IV. Brasília, 4, 5 e 6 jun. 2008. Ibidem, p. 3. Sobre a migração mineira, especificamente sobre as fazendas de criar do Nordeste paulista, consultar BACELLAR, Carlos de Almeida Prado; BRIOSCHI, Lucila Reis (Org.). Na estrada do Anhanguera: uma visão regional da história paulista. São Paulo: FFLCH/USP, 1999. Ver também LARA, Mario. Nos confins do Sertão da Farinha Podre. Povoamento, conquistas e confrontos no Oeste de Minas. Belo Horizonte: s.ed., 2009. (Fomentado pela Lei Rouanet)

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pelas grandes extensões de vegetação rala, principalmente campos, com pastagens naturais e pela forte presença de gado alçado. Famílias inteiras de colonos, oriundas de Minas Gerais, migraram, para ocupar parte dos sertões “devolutos” das vacarias mato-grossenses. No período regencial (1831-1840), problemas políticos decorrentes do processo emancipatório e de questões de ordem econômica, atinentes, sobretudo, à crise da economia escravista exportadora, resultaram na escassez de recursos e no clima de insatisfação entre as províncias e o governo central, constituídas por revoltas populares que se estenderam, igualmente, por todo o Império. Em Mato Grosso, a rebelião decorrente da crise ficou conhecida como Rusga. Deflagrada na noite de 30 de maio de 1834, a Rusga durou alguns meses e marcou o triunfo do movimento liberal e federativo nativo local e a completa desarticulação das forças tradicionais, representadas pelos comerciantes lusos portugueses. A derrota da Rusga trouxe significativos desdobramentos para a província. Expressivo número de revoltosos rumou para o sul de Mato Grosso, foragidos da justiça por crimes praticados contra portugueses em várias cidades da província e arredores de Cuiabá. Alguns se internaram pela região ao longo do rio Paraguai, povoando as margens dos rios Taboco e Nioaque, avançando para os vales dos rios Miranda, Aquidauana e Negro, chegando até as proximidades do rio Apa (fronteira com o Paraguai). Portanto, diante das questões políticas, do declínio da mineração, do fracasso das tentativas agrícolas e de problemas políticos internos do Império, acentuaram-se as correntes de penetração constituídas por criadores de gado. Na obra Etnobiologia e conservação do bovino pantaneiro, organizada por Maria Cristina Medeiros Mazza e outros, em 1994, consta que algumas frentes migratórias oriundas Sobre os campos de Vacaria do Sul de Mato Grosso

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do Triângulo Mineiro, do Nordeste brasileiro e do interior de São Paulo, voltadas para a criação de gado, já realizavam, conforme referimos, significativas incursões pelos sertões de Mato Grosso.40 A corrente proveniente do Nordeste entrava por Goiás para instalar-se na região de Cuiabá e Vila Bela; a procedente de Minas Gerais e São Paulo penetrava pelo sul de Mato Grosso, atingindo, sobretudo, a região de Coxim.41 Depois, os criadores de Vila Bela e Cuiabá, seguindo o curso fluvial do São Lourenço e seus afluentes, avançaram no Pantanal tentando alcançar o sul de Mato Grosso.

Famílias pioneiras Interessa-nos particularmente analisar como o espaço pastoril, envolvendo a região de Sant’Ana de Paranaíba e Rio Brilhante – Sertão dos Garcia e Campos de Vacaria, respectivamente – convertida em objeto historiográfico, veio se tornar importante marco do discurso patriarcal e da expansão territorial, a partir da vocação pastoril, desempenhando significativo papel na legitimação dessa ideologia, mantida ainda hoje na historiografia brasileira.

40 41

MAZZA, et al., p. 14-15. CORRÊA FILHO, V. Fazendas de Gado no Pantanal mato-grossense- Documentário da vida rural n° l0- Rio de Janeiro: Ministério da Agricultura - Serviço de informação agrícola, l955.

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Figura 2 –

Ocupação da Região de Sant’Ana de Paranaíba - Sertão dos Garcia, delineado em mapa com divisão político-administrativa contemporânea e editado por Omar Daniel/ FCA/UFGD

De acordo com as reflexões de Peter Burke a tradição histórica tinha como preocupação temas nacionais ou internacionais, cortando obliquamente as proposições regionais. Isso significa dizer que a abordagem tradicional colocou à margem da história muitos aspectos das atividades humanas, considerando que estas devem ser entendidas na perspectiva da “história total”.42 Segundo o historiador Ângelo Emílio da Silva Pessoa,43 desde autores como Oliveira Vianna, Nestor Duarte, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr., Costa 42

43

BURKE, Peter (Org.). A escrita da história: novas perspectivas. Trad. Magda Lopes. São Paulo: Unesp, 1992. PESSOA, Angelo Emílio da Silva Pessoa. As ruínas da tradição: a casa da torre de Garcia D'ávila. Família e propriedade no nordeste coloquial. Tese (Doutorado em História Social) – USP, São Paulo, 2003.

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229

Pinto até a produção historiográfica mais recente, a família, sob os mais variados matizes, tem sido estudada segundo distintas abordagens e tendências, ensejando reflexões e debates sobre questões decisivas na formação histórica brasileira44 Distintos em suas análises e em suas finalidades, esses autores45 não deixaram de destacar o papel fundamental da família na conformação social e política do Brasil.46 Nesse sentido, a análise envolvendo os Campos de Vacaria implica discutir o papel das famílias no processo de ocupação e, também, impõe a utilização de categorias teóricas para definir o instituto da “família”, “família oligárquica”, “família patriarcal”, etc. Importante contribuição sobre o tema expressa-se na tese de doutoramento As ruínas da tradição: a casa da torre de Garcia D’ávila. Família e propriedade no nordeste coloquial, defendida em 2003 pelo historiador Angelo Emílio da Silva Pessoa, já referido.47 Em denso estudo sobre família e propriedade no Nordeste colonial e imperial, o autor discute a irradiação do discurso patriarcal traduzido no “culto aos pioneiros” e as variadas estratégias utilizadas por grandes proprietários e pecuaristas na aquisição, ampliação e manutenção de poder, como formas distintas de obtenção de cargos, favores, ligações de casamento e tramitações de heranças.48 44 45

46 47 48

Ibidem, p. 12. Cf. VIANNA. Francisco José de Oliveira. Populações meridionais do Brasil: história organização – psycologia. 4. ed. São Paulo: Nacional.1938; DUARTE, Nestor. A ordem privada e a organização política nacional: contribuição à sociologia política brasileira. São Paulo: Nacional, 1939; FREYRE. Gilberto. Casa grande e senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 30. ed. Rio de Janeiro: Record, 1995. FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos: decadência do Patriarcado Rural e desenvolvimento urbano. 2. ed 3 v. Rio de Janeiro: José Olympio 1951; HOLANDA. Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 17. ed. Rio de Janeiro: José Olympio. 1984. PRADO JUNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. 20. ed. São Paulo: Brasiliense. 1987. p. 286. PINTO, Luiz de Aguiar da Costa. Lutas de famílias no Brasil (Introdução ao seu estudo). 2. ed. São Paulo: Nacional; Brasília: INL, 1980. PESSOA, As ruínas da tradição..., p. 12. Ibidem. Ibidem, p. 4.

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Os “pioneiros” das famílias Garcia Leal, Barbosa e Lopes atravessaram os campos da região de Sant’Ana de Paranaíba e, depois, Rio Brilhante, iniciando a história do povoamento do sul do estado. Parece extemporâneo propor estudos sobre essas famílias, integrantes do patriciado rural do sul de Mato Grosso, em detrimento de abordagens mais recentes, que propõem explicar o processo histórico a partir da visão que integre os segmentos trabalhadores socialmente subalternizados. Um ponto levantado por Peter Burke refere-se à escrita tradicional a partir dos segmentos dominantes, ou seja, a partir da valorização das figuras ilustres, como generais, estadistas, etc. A crítica do historiador inglês vai para os historiadores que desconsideram a história dos sujeitos comuns, desconsiderando que estes constroem também a história – e diríamos, com destaque. A partir das orientações da nova história, é preciso considerar tanto a história de vista de cima como a vista de baixo, aproveitando a participação dos diferentes atores sociais nesse processo.49 Entretanto, entendemos também que não é anulando o segmento dominante do “horizonte historiográfico que estaremos produzindo uma história da perspectiva dos vencidos [...]”,50 considerando que dominação e resistência são expressões inseparáveis de uma mesma equação. Daí a necessidade de desenvolver estudos que apreendam a questão num sentido diacrônico e, assim, capturar os aspectos mais relevantes para a compreensão da formação histórica do Brasil. A corrente migratória originária de Minas Gerais, mais especificamente do Triângulo Mineiro, e do interior de São Paulo penetrou na província através de Sant’Ana de Paranaíba (sertão dos Garcia). Minas tornou-se uma das principais regiões provedoras de bovino destinado ao melhoramento daquele gado remanescente do passado missioneiro. 49

50

BURKE, Peter (Org.). A escrita da história: novas perspectivas. Trad. Magda Lopes. São Paulo: Unesp, 1992. PESSOA, As ruínas da tradição ..., p. 242.

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231

A historiografia regional dá conta de que a região de Sant’Ana de Paranaíba, via de penetração para os Campos de Vacaria, era primordialmente habitada por ameríndios do grupo linguístico Jê – os caiapós. Entre os anos de 17391755, o espaço tornou-se bastante frequentado pelas expedições paulistas, que tinham como objetivo a captura de nativos para escravização. 51 Entretanto, apenas na década de 1830 ocorreu a chegada de ocupantes “não nativos”, oriundos de Minas Gerais, como as famílias Garcia Leal, Rodrigues da Costa, Correia Neves, Barbosa e Lopes. José Garcia e Januário Garcia Leal tornaram-se líderes dessa frente de ocupação. Desse ponto, a corrente se expandiu em direção ao interior da parte sul da província, abrangendo a conhecida com Campos de Vacaria (Fig. 1) e, mais tarde, a região de Campo Grande, hoje capital de Mato Grosso do Sul, cuja toponímia revela seu passado pastoril. As terras integrantes do patrimônio das famílias ocupantes do sul de Mato Grosso basearam-se no sistema sesmeiro, que se estendeu pelos atuais municípios da região. Imensas propriedades pastoris formaram-se sob domínio desses migrantes oriundos de Minas Gerais. Arraiais, vilas e cidades desenvolveram-se a partir da construção de inúmeros ranchos, erguidos rusticamente nas barrancas de rios inexplorados ou nas vizinhanças de vendas, tabernas ou pousos construídos em curvas de estradas. Desde o período colonial, o caráter do sistema de sesmarias, ligando terra e posse de cabedais, gerava canais exclusivos, diretos e indiretos, de acesso à terra por grandes produtores. 52 Além disso, o instituto sesmarial por muito 51

52

AYALA, S. Cardoso; SIMON, F. O Municipio de Sant’Anna de Paranayba. In: Album graphico do Estado de Matto Grosso (EEUU do Brazil) Corumbá, Hamburgo: 1914, p. 419; CAMPESTRINI, H. Sant’Ana de Paranaíba. De 1700 a 2002. 3 ed. Campo Grande, MS: IHGMS, 1997, p. 36-41. Sobre o sistema sesmarial consultar LIMA. Ruy Cirne. Pequena história territorial do Brasil: sesmarias e terras devolutas. São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura. 199() (Edição Fac-similar).

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tempo garantiu poderes políticos aos sesmeiros-latifundiários, responsáveis por processos de sujeição e dependência de segmentos subalternizados, fossem eles escravizados ou livres (lavradores, posseiros, pequenos proprietários e demais moradores). O processo de subalternização desdobrava-se na relação clientelista e traduzia-se na troca de apoio e nos laços de submissão pessoal, geradores da violência privada de grandes proprietários. A violência, portanto, era parte articulada das relações sociais contidas na organização agrária colonial.53 Em âmbito nacional, sobretudo no Nordeste, os diversos relatos oficiais destacam o papel de algumas famílias que se aventuraram pelos sertões, garantiram o domínio das terras a partir da expansão dos currais54 à custa de estratégias políticas de aquisição, manutenção e ampliação do patrimônio, recorrendo, não raro, a procedimentos fraudulentos.55 Algumas fontes referentes às questões de terras56 destacam principalmente a importância das “famílias pioneiras” na conquista e a incorporação de vastas extensões de terra ao corpo da nação brasileira. Mas a dificuldade de calcular o tamanho dos latifúndios, dada a imprecisão e a falta de clareza da fiscalização, deu origem a inúmeras demandas judiciais que alcançam os dias atuais.57

53

54 55

56

57

Sobre a dimensão da violência privada, o código do sertão, formas de dominação, hábitos costumeiros e da miséria conferir, entre outros, FRANCO. Mª Silvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: Ática, 1974, p. 26-27. PESSOA, As ruínas da tradição..., p. 34. SANTOS F. Lycurgo. Uma comunidade rural no Brasil Antigo (aspectos da Vida Patriarcal no Sertão da Bahia nos Séculos XVIII e XIX). São Paulo: Nacional. 1956. p. 55. CORREA FILHO, Virgílio Questões de terras. Secção de Obras d’O Estado de São Paulo, 1923, p. 3. Sobre o tema consultar PORTO. José da Costa. O sistema sesmarial no Brasil. 2. ed. Brasilia. Ed. da UnB, 1979.

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233

Família e Igreja Em 1836, erigiu-se a primeira igreja, graças à iniciativa da família Garcia e do padre Francisco Sales de Souza Fleury. Este último, investido no cargo de capelão, era encarregado da assistência espiritual aos ocupantes dos sertões “devolutos” de Sant’Ana de Paranaíba, como assinalado, porta de entrada para os Campos de Vacaria. Observe-se que a região do antigo sul mato-grossense era uma “fronteira flutuante”,58 disputada por redes internas e externas de povoamento. Na região em questão, uma vez realizada a ocupação, foram implantadas as estruturas políticas e eclesiásticas, movidas por funcionários, proprietários, padres que agiam com chefes políticos, os quais disputavam poder com fazendeiros ou se inseriam no seio desse segmento, concorrendo ao mando local. Este parece ter sido o caso de Francisco de Sales Souza Fleury, oriundo da cidade de Franca, interior de São Paulo. Segundo documentos reunidos no livro Como se de ventre livre nascido fosse, publicado em 1994 pela Fundação de Cultura,59 o referido pároco exercia poder senhorial que envolvia terras, cativos, agregados e homens livres de poucas posses. Por mais de trinta anos, Fleury desempenhou papel social de suma importância para o segmento proprietário, sobretudo considerando que ele era o responsável pela realização de casamentos, batizados, rezas e missas, cerimônias religiosas que ensejavam relações intersenhoriais, manifestações de poder e autoridade sobre os segmentos subalternizados.

58

59

BRAZIL, Maria do Carmo. Rio Paraguai, o ‘mar interno’ brasileiro... Op. cit. p. 110-215. PENTEADO, Yara (Org.). “Como se de ventre livre nascido fosse....”: cartas de liberdade, revogações, hipotecas e escrituras de compra e venda de escravos. 1838-1888. Campo Grande, MS: SEJT, MS; SEEEB, MS; Ministério da Cultura/ Fundação Cultural Palmares, DF, 1993. Arquivo Público Estadual, MS.

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A força política do padre Fleury tornou-se mais visível com o processo de superação do escravismo. Entretanto, para explicar o aumento do potencial político de Fleury é preciso discutir o contexto histórico brasileiro a partir da segunda metade do século 19. A extinção do tráfico (1850) e os desdobramentos dele decorrentes levaram a classe dirigente do Império a conceder novos poderes ao governo para solucionar a questão do “elemento servil”. Sob a batuta dos grandes proprietários, foram assim criadas as leis emancipadoras, prevendo a extinção da escravatura de forma lenta, gradual e indenizada. A extinção legal do tráfico internacional de africanos também alterou o monopólio de poder no que tangia à política de terras. O governo imperial acionou os dispositivos da Lei de Terras, criados em 1850 com o objetivo de preservar o monopólio de poder (a terra) sob controle da classe hegemônica (os latifundários escravistas). Sob a direção política dessa classe, utilizando-se de um mecanismo jurídico, surgiram determinadas dificuldades ao trabalhador livre de acesso à terra, enquanto se facilitava a apropriação da mesma pelos grandes proprietários, pelo instituto do reconhecimento das posses. À medida que o grupo dirigente via seus monopólios ameaçados – terra e trabalhado escravizado –, passou a propor medidas para assegurar tais monopólios, ou seja, já que a escravidão ficara tendencialmente condenada com a extinção do tráfico internacional, o grupo tratou de deslocar o peso da dominação do cativo para a posse da terra.60 No período colonial, o sistema tradicional de aquisição de terra era assegurado por dois instrumentos da Coroa portuguesa: carta de doação e foral. Ligada aos princípios das capitanias hereditárias, a propriedade territorial originou-se nas concessões de sesmarias ou por meio de simples posses com o objetivo 60

BRAZIL.

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235

de promover a ocupação, o desenvolvimento e o povoamento territorial. Efetivamente, com a aprovação da Lei Imperial de Eusébio de Queirós (1850), extinguindo o tráfico internacional de trabalhadores africanos, criou-se a necessidade da reorganização do trabalho. A transição do trabalho escravizado para o trabalho livre, somada à redefinição de um novo estatuto que passou a orientar a estrutura fundiária, decorreu das novas estruturas econômicas e sociais organizadas a partir do século 19: “A expansão dos mercados e o desenvolvimento do Capitalismo motivaram uma reavaliação das políticas tradicionais da terra e do trabalho”.61 Assim, até 1822, o sistema tradicional de aquisição de terra permitia o fácil acesso à terra por meio de doações de sesmarias e, de 1822 a 1850, do sistema de “posse livre”. Com a extinção do tráfico internacional, proibiu-se, pela lei de n. 601, 18.09.1850 (Lei de Terras), que as terras públicas fosem entregues sem ônus. “Ficam proibidas as aquisições de terras devolutas, por outro título que não sejam o da compra”. Porém, como assinalado, o caminho para a apropriação da terra, sem pagamento, aos grandes proprietários seguia viabilizado pela possibilidade de reconhecimento das “posses”. Tratava-se, nos fatos, de proibir ou dificultar a posse da terra pelo homem livre, nacional ou emigrado para obrigálo a vender sua força de trabalho em mercado de trabalho livre.62 Tanto a Lei de Terras como a lei da extinção do tráfico funcionaram como verdadeiros dispositivos utilizados, em momentos de crise, pela classe proprietária para assegurar o monopólio de poder sob seu controle no momento em que o 61

62

COSTA, Emília Viotti da. Políticas de terras no Brasil e nos Estados Unidos. In. Da monarquia à República: momentos decisivos. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 244-247. BRAZIL, Maria do Carmo. Fronteira negra. Dominação, violência e resistência escrava em Mato Grosso -1718-1888. Passo Fundo: Editora da Universidade de Passo Fundo (Editora da UPF), 2002, p. 153-158. (Coleção Malungo).

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Brasil foi sendo integrado no mercado mundial. Daí a aplicação dessa lei, sobretudo com a supressão do escravismo.63 A primeira lei emancipacionista (Lei Rio Branco – n. 2.040 de 28.09.1871) criava um fundo emancipador para compra de alforrias seletivas. Para cumprir os dispositivos da lei, o então presidente da província de Mato Grosso, Francisco José Cardoso Júnior, libertou 62 escravos em 25 de março de 1872, com juramento à Carta constitucional. Durante 1872-1873, os escravizadores deviam registrar seus cativos (Matrícula Especial) nas coletorias dos municípios, pois cabia ao presidente da província a distribuição dos recursos do fundo de emancipação. A lei priorizava as famílias escravizadas; depois os indivíduos, por ordem de preferência. Em um livro aberto para Matrícula Especial, os escravizadores tinham de indicar o nome e uma série de outras informações para cada escravizado que possuíam. Registravamnos nas mesmas coletorias e também de forma nominativa e informavam as mudanças demográficas e sociais de escravizados adultos e menores. As coletorias eram compostas pelo promotor público, pelo coletor e pelo presidente da Câmara. Por outro lado, os párocos deveriam fornecer informações sobre os nascimentos e óbitos de cativos.64 Portanto, as leis e medidas imperiais não podem ser vistas como planos de liquidação da escravidão, mas, sim, como estratégias consensuais visando atenuar às pressões externas e internas e, ao mesmo tempo, manter a escravidão até seu último fôlego. Essas medidas foram variadas: tráfico interprovincial; as alforrias seletivas pelo fundo de emancipação; as manumissões concedidas para assinalar batizados, casamentos, etc.; facilidades de alforrias a partir do pecúlio escravo; deslocamento dos escravos urbanos para a empresa agrícola, etc. 63 64

COSTA, Políticas... CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil: 1850-188. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1975.

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Nessa nova empreitada, em âmbito regional, particularmente na região Sant’Anna de Paranaíba, ganhou realce uma figura emblemática daquele tempo: o padre Francisco Sales de Souza Fleury. Para garantir o monopólio de terras e de mão-de-obra no momento de superação do escravismo colonial, Fleury mediou inúmeros processos de manumissões incluídos em heranças de famílias escravizadoras regionais, como a de José Garcia Leal e a de Maria Garcia Tosta. Esse papel de intermediador de alforrias concedidas para assinalar batizados e casamentos levou alguns analistas a vê-lo, equivocadamente, como militante abolicionista, conforme afirmações a seguir: “O sul de Mato Grosso foi pioneiro na luta abolicionista. Sem discursos, sem alarde, os líderes daqui foram conseguindo a alforria dos escravos. Em Santana do Paranaíba, o Padre Francisco de Sales Sousa Fleury conseguiu a liberdade de inúmeros deles, iniciando com o exemplo de casa, alforriando os seus. Acrescente-se que padre Fleury teve de sua escrava (Joaquina) quatro filhos”.65 O discurso de Hildelbrando Campestrini revela que, além de agenciador do segmento dominante, o padre soube muito bem defender seus próprios interesses. Quando viu seus monopólios ameaçados, lançou mão de mecanismos capazes de prolongar ao máximo seus poderes, conforme evidenciam os documentos contidos no Livro de Notas do Cartório de Santana do Paranaíba de 1865. Consta num desses documentos que o padre Francisco de Sales Souza Fleury alforriou Angelo, de 20 anos, Belmiro, de 25 anos, e Romana, de 18 anos, todos filhos dele próprio com a liberta Joaquina. Porém, eram alforrias condicionadas, pois os escravizados teriam de continuar servindo-o até “perfazer cada um a idade de trinta anos, findo os quais entrarão no gozo pleno de sua liberdade, como se nascessem de ventre livre. [...] rogando-lhes, todavia não 65

CAMPESTRINI, Hildebrando. Os escravos no sul de Mato Grosso. Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul. Disponível em: http://www.ihgms.com.br desde 19/ 12/2007.

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desampararem a sua mãe, e aos seus irmãos até que se case ou fique emancipada a última irmã.”66

A rota dos pioneiros Na década de 1830 entraram pela costa leste de Mato Grosso os colonizadores interessados em suas potencialidades pastoris. Tratava-se das famílias Garcia Leal, Rodrigues da Costa, Correia Neves, Barbosa e Lopes. Na companhia de parentes, agregados e trabalhadores escravizados, estabeleceram-se a três léguas de Sant’Anna Paranaíba, próximo do ribeirão Ariranha, com o objetivo de desenvolver plantagem, engenho e, sobretudo, cultura pastoril. Genros e filhos de Januário Garcia Leal Sobrinho permaneceram por muito tempo nesse lugar antes de partir para a região que deu origem à cidade de Três Lagoas. Luís Correa Neves fincou raízes ao sul da vila de Sant’Anna, em águas do rio Quitéria. Indispensável nessa verdadeira rede de dominação era a montagem da estrutura administrativa, como igreja, para estabelecimento da autoridade eclesiástica, e repartições capazes de abrigar tabelionatos, os ofícios de notas, registros públicos, escrituras e outros documentos. Em 1836, foi erigida a paróquia Sant’Ana do Paranaíba, pela junção de esforços da família Garcia e do padre Francisco Sales de Souza Fleury, já referidos. Dois anos depois foi instalado o distrito administrativo subordinado à comarca de Mato Grosso, sediado em Cuiabá. Antonio Gonçalves Barbosa, por sua vez, saiu de Sant’Anna de Paranaíba e penetrou no espaço sulino matogrossense, atraído pelas narrativas sobre a preciosidade dos Campos de Vacaria, os quais se constituíam de terrenos planos e úberes, águas excelentes e muito gado alçado. Defen66

Livro de nota 03, documento n. 2, p. 119-120. Cartório do 1º. Ofício de Sant’Anna de Paranaíba, 1865.

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239

dido por nativos e cobiçado por colonizadores castelhanos e luso-brasileiros, esse espaço se caracteriza por dispor dominantemente da vegetação do cerrado, o segundo maior bioma brasileiro, ainda hoje muito utilizado para a criação do gado. Nos relatos monçoeiros, reunidos na obra História das bandeiras paulistas (1951) de Afonso d’ Escragnolle Taunay, constam a presença de gado selvagem, constituído em manadas deixadas pelos jesuítas das missões.67 Segundo o itinerário traçado pelo sertanista Joaquim Francisco Lopes, os Barbozas teriam capturado cerca duzentas cabeças de gado vacum bravio para começarem o criatório.68 Essa família geralista de Minas chegou à região trazendo algumas cabeças para mesclar com o gado selvático da região, conforme também mencionamos.69 Convencidos de que o sul de Mato Grosso dispunha de bons pastos e de que era um lugar promissor, os Barbosa rumaram para o interior da região levando cativos e provisões necessárias. Dos latifúndios formados as famílias pioneiras lograram prestígio, riqueza e poder. Instalaram fazendas, estenderam mais e mais suas posses, alcançando novas terras, transpondo rios. E toda a parte sul do antigo Mato Grosso foi sendo ocupada por colonizadores interessados na aquisição de terras e no potencial bovino. Segundo a crônica organizada por Campestrini e Guimaraes, acompanhava Antonio Gonçalves Barbosa seu genro Gabriel Francisco Lopes, que em 1839 se fixou num local a que denominou Boa Vista, entre os rios Vacaria e Brilhante, 67

68

69

TAUNAY, Afonso d’ Escragnolle. História das bandeiras paulistas. São Paulo: Melhoramentos/INL/MEC, 1975. T. III, p. 139. (Relatos Monçoeiros).

Itinerário das viagens exploradoras empreendidas pelo Sr. Barão de Antonina para descobrir uma via de comunicação entre o porto da vila de Antonina e o baixo Paraguai na Província de Mato Grosso; feitas nos anos de 1844 e 187 pelo sertanista Joaquim Francisco Lopes, e descritas pelo Mapista inglês João Henrique Elliot.. O Documento foi doado ao IHGB pelo Barão de Antonina e em seguida foi feita a transcrição do manuscrito inédito para efeito de publicação. Cf. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, 1848, v. 10, p. 153-262. GOULART, Alípio. Op. cit., p. 61.

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sendo um dos primeiros ocupantes, depois da retirada das Missões castelhanas.70 Logo chegou ao sertão dos Lopes grande leva de sul-riograndenses com suas famílias, os quais, dispondo de seus pequenos rebanhos de bovinos, equinos e ovinos, passaram também a se instalar na região. Os descendentes dos Lopes buscaram as margens dos rios Brilhante, Vacaria e Dourados.71 Mas ainda havia muita terra devoluta para atender à avidez dos especuladores.

Legitimando o latifúndio Um exemplo de procedimentos ilícitos de usurpação de terras refere-se a João da Silva Machado, barão de Antonina, vulto proeminente da região do Paraná, que na segunda metade do século 19 procurou garantir a posse do território que abrangia a região de Sant’Ana de Paranaíba, Rio Brilhante, Miranda, Nioaque, Aquidauana, Ponta Porã, Porto Murtinho e Bela Vista. Somadas a essas terras, o barão buscou a legitimação de extensas áreas do norte do Paraná. Em 1848, João da Silva Machado já era dono de vasto patrimônio fundiário, com propriedades em São Paulo e estados circunvizinhos. Às vésperas da promulgação da Lei de 1850, o barão imediatamente procurou se apropriar de forma privada do amplo território que hoje abrange eminentes municípios de Mato Grosso do Sul. Hildebrando Campestrini e Acyr Vaz Guimarães lembram: “Sabia o barão de Antonina que seria promulgada uma lei [Lei de terras de 1850] facultando a todos os posseiros o direito de requerer, como propriedade, a terra de domínio público, sob ocupação, qualquer que fosse sua extensão; ambicionando terras do sul de Mato Grosso, contratou os serviços 70

71

Itinerário das viagens exploradoras empreendidas pelo Sr. Barão... Op. cit, p. 260. Ibidem.

Sobre os campos de Vacaria do Sul de Mato Grosso

241

do sertanista Joaquim Francisco Lopes, que além de conhecedor da região, tinha nelas os irmãos Gabriel e José Francisco, de quem saberia, naturalmente, tudo o que viesse a servir aos interesses do barão.”72 (Fig. 1). Foi assim que o barão de Antonina contratou os serviços do Joaquim Francisco Lopes, experiente conhecedor daquelas paragens, e do mapista inglês João Henrique Elliot. Além disso, este sertanista encarregado contava com a ajuda de seus irmãos Gabriel e José Francisco Lopes, alguns dos primeiros ocupantes do vale dos rios Vacaria e Brilhante. A intenção do barão era, com verbas públicas, abrir uma via de comunicação fluvial do Paraná até o baixo Paraguai, beneficiando as terras que pretendia legitimar como patrimônio privado. Consta, segundo a crônica de Hildebrando Campestrini, que “em 1847 Lopes e comitiva entraram pelo rio Ivinhema e chegaram a Albuquerque, anotando o percurso, com detalhes riquíssimos, principalmente os referentes aos primeiros povoadores e aos índios”.73 Cabe lembrar que a Lei de 1850 propunha, entre outras medidas, que o Estado passasse a exercer um rigoroso controle sobre o espaço agrário. Impunha também as condições para converter sesmarias em documento negociável, na forma de propriedade privada, quanto à recognição e à titulação efetiva das posses obtidas anteriormente à promulgação da referida lei. Mas, conforme observou o cientista social Luiz A.C Norder, o tênue limite entre o público e o privado, entre a legislação e os jogos políticos permitiu a continuidade e a ampliação do

72

73

CAMPESTRINI, Hildebrando; GUIMARÃES, Acyr Vaz. História de Mato Grosso do Sul. Campo Grande: Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, 1991, p. 41. CAMPESTRINI, Hildebrando . As derrotas do sertanejo. Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul. Disponível no site http://www.ihgms.com.br , desde 19/ 12/2007.

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processo de concentração fundiária.74 Emergia, nesse contexto, o grileiro, figura indispensável no processo de expansão da ocupação de terras. Graças à habilidade de “legalizar” terras junto ao poder estatal, o grileiro dispunha de dois dispositivos essenciais: a falsificação de títulos de sesmarias ou a montagem dos processos de regularização de posses supostamente anteriores a 1850.75 O processo dos Embargos de Mato Grosso, publicado em 1924 pelo advogado Astolpho Rezende, na obra O Estado de Mato Grosso e a supostas terras do Barão de Antonina, comprova a falsificação de posse do barão e acusa seu agente Joaquim Francisco Lopes de “arranjar algumas escrituras de terras em Mato Grosso, para fim de converter-se em grande proprietário de latifúndios naquela província [...] de posse dessas escrituras que eram na sua quase totalidade escritura de mão, o referido barão fez delas um simulacro de registro, perante o vigário da freguesia de Miranda”.76 Fatores como imprecisão referente ao tamanho das propriedades, carência de demarcação e suspeitas quanto à fiscalização determinaram demandas judiciais que se prolon-

74

75 76

NORDER, Luiz A.C. Políticas de assentamento e localidade: os desafios da reconstituição do trabalho rural no Brasil. Tese (Doutorado em Sociologia Rural) – Universidade de Wageningen, 2004, p.6. Sobre as raízes do sistema público nacional arraigado no patriarcalismo e nas relações indistintas entre o público e o privado consultar FRANCO, Mª Silvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: Ática, 1974. NORDER, Políticas de Assentamento..., p. 6. REZENDE, Astolpho. O Estado de Mato Grosso e as supostas terras do Barão de Antonina. Rio de Janeiro: Papelaria Sta Helena – S. Monteiro & Cia Ltda, 1924, p. 35. Sobre Política de terras e de mão de obra ver: BRAZIL, Maria do Carmo e SABOYA, Vilma Eliza T. de. Política de terras e a política de mão-deobra no Brasil e seus reflexos na Província de Mato Grosso. Campo Grande: PROPP/UFMS, 1994. (Pesquisa financiada pela UFMS). Ver também SABOYA, Vilma. A Lei de Terras (1850) e a política Imperial – seus reflexos na Província de Mato Grosso. Revista Brasileira de História. São Paulo, 1995, v.15, n.30, p. 130-132. (Dossiê Historiografia – Propostas e Práticas).

Sobre os campos de Vacaria do Sul de Mato Grosso

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garam por longos anos, algumas alcançando as primeiras décadas do século 20.77 Na porção sul de Mato Grosso, a apropriação territorial, na forma de propriedade privada, realizada pelo barão de Antonina foi judicialmente contestada pelo Estado, considerando sua notável dimensão, cuja extensão alcançava milhares de hectares contíguos. Entretanto, inúmeros latifundiários lograram alcançar a regulamentação das sesmarias doadas, sobretudo durante o Império, e mesmo terras obtidas por meios fraudulentos foram legitimadas e convertidas em títulos de propriedade privada.78 A formação das classes dominantes locais e regionais foi marcada pela instauração de eficazes procedimentos de apropriação privada da terra no Brasil e fez ampliar a exclusão social.79 As reações das forças sociais submetidas ao poder latifundiário-escravista ensejaram a montagem de um aparato político repressivo e autoritário como fatores inerentes aos diferentes momentos da história brasileira, justificando análises mais detidas sobre o tema na região.80

77

78 79 80

Cf. PORTO. José da Costa. O sistema sesmarial no Brasil. 2. ed. Brasilia. Ed. da UnB, 1979. NORDER, Políticas de Assentamento..., p. 7. Ibidem. Ibidem.

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Propriedades pastoris e escravidão no Pantanal de Miranda (séc. 19) Elaine Cancian* Os espaços ainda vazios do sul de Mato Grosso começaram a ser ocupados por criadores de gado no final do século 18, pois a atividade pecuária já demonstrava poder contribuir com o desenvolvimento econômico da capitania. A imensidão dos terrenos de pastagens era convidativa aos criadores e vista pelas autoridades como potencial à expansão pastoril. Por isso, o século 19 foi marcado pela fundação de grandes propriedades rurais dedicadas à lida com o gado. No início do século 19, existiam poucos povoados nas terras que hoje formam o Mato Grosso do Sul. Havia moradores nas cercanias do presídio de Miranda, do Forte de Coimbra, no destacamento do Piquiri, no sertão dos Garcia (Freguesia de Santana de Paranaiba) e nos povoados de Albuquerque, Ladário e Nossa Senhora de Albuquerque (atual Corumbá).

*

Docente do Curso de História da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul/CPAN. Este trabalho é parte dos projetos “A produção pastoril no Piauí, no Mato Grosso do Sul e no Rio Grande do Sul, de 1780 a 1930: um estudo comparado”, coordenado pelo Dr. Mário Maestri, financiado pelo CNPq, e “A produção pastoril no sul de Mato Grosso: economia e sociedade (1780-1930), coordenado pela autora.

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Miranda, o forte de estaca Na busca pela manutenção das posses portuguesas, o governador da capitania de Mato Grosso, Caetano Pinto de Miranda Montenegro, determinou a fundação do presídio de Miranda na margem direita do rio Mondego. A ocupação pelos portugueses, do território onde se assentaria a cidade de Miranda teve início em 1797. Os fundamentos de um forte foram lançados estrategicamente para apoiar o projeto português de conter os espanhóis e as investidas dos nativos e, sobretudo, proteger a população do sul da capitania de Mato Grosso, sob a vigia portuguesa. A essa época, já existiam os povoados de Albuquerque, Ládário e Nossa Senhora de Albuquerque (atual Corumbá) em processo de crescimento. Após a inundação do rio Mondego e a destruição do pequeno forte por uma enchente, o povoado, assentado nas suas vizinhanças, foi reconstruído distante das margens do rio e, segundo o viajante francês Francis Castelnou, que passou por essas regiões em 1845, “reconstruíra-no no lugar em que está; a um tiro de canhão das margens do rio”.1 Castelnou presenciou a realidade local. Das suas impressões de viajante, percebe-se seu aprazimento ao ser acolhido no lugarejo. Relatou ter sido recebido em Miranda com tiros de canhão e conduzido pelo comandante a uma “casinha bastante limpa”, onde foi bem tratado pelas pessoas.2 O forte de Miranda era um cercado edificado de pau-apique. Madeiras pontiagudas medindo mais de três metros eram cravadas no chão formando altas paredes. Internamente, a paliçada era protegida por um anteparo de terra e, externamente, por um fosso. O objetivo era proteger o povoado dos nativos guerreiros e demais invasores. Já na primeira metade do século 19, a estacada encontrava-se fragilizada e pouco 1

2

CASTELNAU, Francis. Expedição às regiões centrais da América do Sul. Belo Horizonte-Rio de Janeiro: Itatiaia, 2000.p. 394. Idem

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protegeria os alojamentos da guarnição e dos oficiais, a capela e as moradias localizadas ao longo do rio Mondego. Conforme Castelnau, à época de sua passagem, o forte não “aguentaria a investida de qualquer inimigo”,3 pois observara grande parte da estacada caída, o fosso obstruído e o anteparo interno de terra quase arruinado. Era frágil a construção e ínfima a quantidade de soldados ocupados na defesa local e nas patrulhas mensais nas fronteiras com o Paraguai. Condenados a galés eram mantidos presos no local. Os armamentos do forte compunham-se de armas de calibre três e seis, fuzis e sabres. Em um espaço alpendrado, algumas armas ficavam à disposição dos soldados; as demais eram guardadas no armazém geral.4 Nas terras mato-grossenses, o alpendre serviu ao homem diversamente de outras regiões. O alpendre era o espaço escolhido para guardar gente e objetos, para a acolhida dos viajantes, para as festas e rezas costumeiras, para a observação dos trabalhadores escravizados, para a proteção da moradia em razão do calor excessivo. Estabelecida a guarnição militar com comandante, tenentes, subtenentes, cadetes e soldados, o governador da capitania de Mato Grosso buscava garantir a posse e utilização das terras dos pantanais. Apaziguada a resistência dos naturais à ocupação de suas terras, foi possível a fundação de estabelecimentos agropastoris na região guarnecida por representantes administrativos da Coroa portuguesa.

Casas de barro e palha Em 1845, Miranda possuía duzentos habitantes, entre brancos, caburés, nativos, mulatos e negros. Castelnau relatou: “Os habitantes de Miranda são na sua maioria mulatos ou caburés; os restantes são negros, com exceção talvez de 3 4

Idem. p. 394. Idem. p. 394-395.

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uns dois ou três brancos muito duvidosos. O que constitui porém o grosso da população são os índios, que em número de quatro ou cinco mil vivem espalhados pela redondeza.”5 Os moradores locais viviam seus dias em casas cobertas de palha cercadas por estacas de taquaruçu. Afastadas uma das outras por extensos quintais, as moradias exibiam seus pomares com laranjeiras e demais arvoredos frutíferos. A paisagem entusiasmou Castelnou ao observar a impossibilidade de avistar todas as habitações locais em razão dos “verdejantes pomares” que fixavam os limites espaciais da vizinhança.6 A historiografia registra a simplicidade da maioria das moradias mato-grossenses do século 19. Viajantes estrangeiros referiram-se às casas edificadas de barro e cobertas com palha desprovidas de conforto e objetos de luxo. Nos povoados, vilas ou fazendas, essas edificações imprimiam à paisagem um certo bucolismo. Algumas habitações mato-grossenses edificadas com paredes de adobe revestidas de barro, com a técnica do sopapo, recebiam caiação. Mesmo as que possuíam cobertura de telhas em duas águas eram úmidas internamente, sobretudo porque, de chão batido, não escapavam das chuvas que embebiam o solo.

Gado alçado nas cercanias de Miranda Dotadas de pastagens naturais, as terras pantaneiras oferecem condições propícias à criação bovina. Por isso, desde os tempos das disputas e tentativas de ocupação das terras do Novo Mundo entre Espanha e Portugal, esse espaço foi alvo da presença de espanhóis e de portugueses, bem como dos rebanhos bovinos e equinos essenciais à prática de atividades e à própria sobrevivência do homem. Desde o final do século 5

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CASTELNAU, Francis. Expedição às regiões centrais da América do Sul. Belo Horizonte-Rio de Janeiro: Itatiaia, 2000. p. 398. Idem. p. 394.

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16, quando os espanhóis rumaram para o Pantanal, com o fim de estabelecer um povoado para servir de apoio aos viajantes, bois, cavalos e vacas foram trazidos à região carregando alimentos e objetos dos colonizadores. Em 1600, os espanhóis fundaram o arraial de Santiago de Xerez, introduzindo bovinos e equinos nas terras pantaneiras. Além do rebanho introduzido pelos espanhóis, o Pantanal recebeu animais trazidos por jesuítas. De acordo com os historiadores Paulo Esselin e Tito Oliveira, no artigo “Terra onde o gado criou o homem e definiu o latifúndio”, de 2007, os jesuítas alcançaram o Pantanal a partir de 1828, em fuga das invasões dos paulistas no Guairá, atual estado do Paraná, instalando-se entre o rio Miranda e o rio Apa, região do Mato Grosso do Sul conhecida na época como Itatim e habitada por nativos. Os autores sulmato-grossenses explicam: “O jesuíta, ao lançar mão do gado bovino e cavalar para desenvolver suas reduções entre os índios itatins, estava lançando, sem o saber, as bases da pecuária mato-grossense e sul-mato-grossense, como fizera no Rio Grande do Sul e Uruguai”.7 Invadidas entre 1632 a 1649 pelos bandeirantes à procura de mão-de-obra nativa para ser escravizada, as reduções Santiago de Xerez e Itatim foram abandonadas e os rebanhos de gado bovino e equino, deixados na região pelos espanhóis e jesuítas. Esselin e Oliveira registram que o gado vacum e cavalar espalhou-se pelo Pantanal sul-mato-grossense e que, no início do século 19, eram milhares os animais na planície pantaneira “vivendo silvestremente e sem trato algum […]”.8 O gado alçado disperso pelas terras pantaneiras teria encontrado na região de Miranda as extensas pastagens, ocu7

8

ESSELIN, Paulo M.; OLIVEIRA, Tito C. M. Terra onde o gado criou o homem e definiu o latifúndio. Dossiê: A fazenda pastoril e a escravidão. História: Debates e Tendências, Passo Fundo: UPF,, v. 7, n. 2, jul./dez. 2007, publ. n. 2º sem. 2008. p. 104. Idem p. 106.

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padas posteriormente por criadores de gado vindos de outras regiões. Desde o início do século 18 há referências à existência de criadores de gado estabelecidos nas imediações do povoado de Miranda. Em 1818, à época de passagem do português e oficial de engenheiros Luiz D’ Alincourt, existiam alguns sítios a pouca distância do presídio, cujos proprietários criavam gado. Os pequenos criadores da região adquiriam os animais bovinos e cavalares dos nativos e vendiam-nos em Cuiabá. A facilidade para a aquisição dos animais e a abundância de pastos foram grandes incentivos à população interessada na posse da terra e à fazenda pública. Conforme D’ Alincourt, o poder público mantinha uma fazenda de gado vacum: “As campanhas de Miranda, que em grande parte são inundadas no tempo próprio, abundam em pastagens excelentes, o que faz produzir exuberantemente o gado vacum e cavalar. A Fazenda Pública possui em Miranda uma Fazenda de gado vacum, que monta já 9500 cabeças, não contando o gado bravo, que por ter faltado a gente necessária para lidar com ele, anda disperso pela campanha; o cavalar chega a 750 cabeças, devendo-se notar que o estabelecimento desta fazenda é moderno, pois não chega a ter 16 anos.” 9 O próprio viajante observou o gado pastando livremente dentro do presídio, porque parte da trincheira se encontrava arruinada. As extensas terras devolutas nas cercanias de Miranda e a existência de manadas de gado alçado ofereciam grandes expectativas e oportunidades de enriquecimento. Mesmo assim, como observou Luiz D’ Alincourt, no início do século 19 ainda eram poucos os sítios de criação de gado.

9

D’ ALINCOURT, Luiz. Memória sobre a Viagem do porto de Santos à cidade de Cuiabá. Belo Horizonte-São Paulo: Itatiaia-Ed. da Universidade de São Paulo, 1975. p. 175.

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Impulso à pecuária sul-mato-grossense Em Mobilidade populacional na fronteira Oeste de colonização, de 2005, o historiador mato-grossense Jovam Vilela da Silva propõe que fazendas foram sendo formadas no atual Mato Grosso do Sul, a partir de 1829, época da fundação de Santana de Paranaíba e consequente penetração na Vacaria mato-grossense por criadores de gado oriundos de Minas Gerais. Nessa obra, o autor registra a inserção do gado em Mato Grosso do Sul, trazido do triângulo mineiro: “Pontas de gado tangido do triângulo mineiro transpuseram o rio Paranaíba e se fixaram no sul do Estado. Essas primeiras levas buscaram o Coxim fugindo do Pantanal. Outras ultrapassaram os afluentes da margem direita do rio Paraná e se estabeleceram entre a Serra de Maracajú […] buscando sempre as margens do riachos, córregos e rios das terras altas.”10 Vilela da Silva registra sobre a penetração do gado em Miranda: “Mais tarde galgaram a serra e se estenderam pela planície de terras férteis do rio Miranda e da baixada inundável do rio Paraguai. Esses campeiros de Minas Gerais afazendaram-se nos vales do rios Pardo, do Sucuruí, do Ivinhema, à beira do rio Miranda e de seus afluentes como o Feio, o Santo Antônio da Cava, do rio Prata, do Desbarrancado, humanizando a agreste paisagem do sul mato-grossense.”11 A fundação de novas fazendas agro-pastoris e a expansão da criação de gado na região teve novo impulso após o movimento de 1834, conhecido por Rusga. Para Rubens de Mendonça, em História de Mato Grosso, de 1967, a Rusga foi “o movimento nacionalista contra os adotivos habituados ao mando dos tempos coloniais, duro e áspero, sobretudo nas Capitanias mais distantes. A ‘Rusga’ foi o movimento de reação 10

11

SILVA, Jovam Vilela da. Mobilidade populacional na fronteira Oeste de colonização.História do Brasil variável regional:Mato Grosso. Cuiabá, KCM, 2005. p. 135. Id.ib. p. 135.

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a essa prepotência […]”.12 Na noite de 26 de maio de 1834, os nativistas, com machados e alavancas à mão, violaram casas comerciais e assassinaram vários portugueses. A repressão do governo contra os líderes e participantes do movimento e a existência de terrenos distantes de Cuiabá colaboraram para que voltassem as atenções para o sul da província de Mato Grosso. Em sua tese de doutorado, “A pecuária no processo de ocupação e desenvolvimento econômico do Pantanal sul-mato-grossense (1830–1910)”, de 2003, empenhado no estudo sobre a ocupação do pantanal sul mato-grossense e utilizando informações de cronistas regionais, o historiador Paulo Esselim registrou que, em 1836, Salvador Luiz dos Santos, um dos participantes da Rusga, encontrava-se estabelecido próximo ao forte de Miranda, empenhando-se na criação de bovinos e equinos, plantação de lavouras e extração de sal. Nas proximidades, estabeleceram-se Benedito Pedro Duarte, fundador da fazenda Curral da Taquara, em 1846, e José Alves de Arruda, fundador da propriedade São José Jatobá, 1847.13 Foi assim, também, que os Alves Ribeiro fundadores de algumas fazendas, estabeleceram-se próximos a Miranda e fundaram a conhecida fazenda Taboco. Paulo Esselin assinalou estabelecimento dos Alves Ribeiro na parte sul de Mato Grosso: “[…] José Alves Ribeiro, Presidente da Câmara Municipal de Cuiabá em 1833 e um dos líderes do movimento ‘Rusga’, em função da repressão governamental, embrenhou-se pelo Pantanal com parentes e amigos, estabelecendo-se à margem direita do rio Negro, acima do Anhumas, e fundando a fazenda Potreiro, onde ficou 12

13

MENDONÇA, Rubens de. História de Mato Grosso.Através dos seus governadores. [s.l.]: [s.n.], 1967, p. 39. ESSELIN, Paulo Marcos. A pecuária no processo de ocupação e desenvolvimento econômico do Pantanal sul-mato-grossense (1830–1910). Tese (Doutorado em História) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2003.p. 165-166.

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Antônio Alves Ribeiro. Após andanças exploratórias, o grupo desceu até a margem do rio Taboco, onde o major João Alves Ribeiro e o doutor Generoso Alves Ribeiro fundaram a fazenda Taboco.”14 Todavia, José Alves Ribeiro, o Juca Costa, comprou a fazenda Forquilha, às margens do rio Miranda e Nioaque, em continuidade ao empreendimento agropastoril iniciado em 1834 pelo major João José Gomes, comandante do forte de Miranda. A historiografia regional menciona com certa insistência alguns dos grandes proprietários de terras estabelecidos no sul da Província de Mato Grosso, sobretudo aqueles cuja descendência se preocupou em deixar registros sobre as lutas dos “desbravadores” dos inóspitos sertões mato-grossenses. Obras memorialistas ressaltam o pioneirismo de certas famílias desbravadoras das terras sul mato-grossenses. É assim que teremos vivos na memória regional os citados Alves Ribeiro (Miranda); os Gomes da Silva (Corumbá); os Pereira Leite (Cáceres). Todavia, nos arquivos regionais vão surgindo dos inventários post-mortem e testamentos de outros proprietários de terras, donos de gado, colaboradores no empreendimento da ocupação e na exploração da pecuária. Uma pesquisa atenta na documentação primária produzida no século 19 em Miranda revelou detalhes preciosos para a história regional, sobretudo no tocante à presença dos trabalhadores escravizados nos sítios e nas fazendas do sul de Mato Grosso. A informação sobre proprietários de cativos, de gado, de fazendas, de instrumentos usados no campo e de vários outros objetos, observada na documentação, ajuda a entender a região e o modo de viver das famílias pantaneiras no final do século 19. Os inventários arrolados e analisados são registros produzidos nos anos que se seguiram à Guerra do Paraguai (1865-1870), período em que a região foi invadida e saque14

Loc.cit.

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ada pelas tropas paraguaias. Os documentos de anos anteriores, mantidos na vila, provavelmente foram destruídos por ocasião da guerra, assim como as habitações e os objetos sagrados existentes na igreja. Conforme, Lenine Póvoas, em História Geral de Mato Grosso, 1995, os paraguaios depredaram a igreja de Miranda, “[…] destruindo altares, carregando adornos de imagens e instalando naquele templo a sede do seu comando […]”.15 Na época da guerra, os fazendeiros e os moradores da vila de Miranda refugiaram-se nas encontas da serra de Maracajú, deixando suas propriedades, animais e moradias à mercê dos invasores. “Nos seus relatórios os comandantes paraguaios mencionaram que haviam apreendido na região 2.435 bovinos, 12 cavalares e 7 muares.”16O ocorrido nos faz pensar que, provavelmente, durante a guerra grande quantidade de animais foi retirada das fazendas para atender às necessidades das tropas paraguaias; por isso, observamos na documentação dos anos subsequentes à invasão uma pequena quantidade de animais nas extensas propriedades da região. Além da diminuição dos rebanhos, do saque das propriedades e privações causadas pela guerra, os fazendeiros enfrentaram a perda de braços escravizados enviados como soldados para o teatro de guerra. A documentação consultada registra uma pequena população escravizada colocada nos trabalhos domésticos e da lavoura. Além disso, a primeira lei emancipadora (Lei Rio Branco-n. 2.040 de 28.09.1871) criou a possibilidade da compra de alforrias seletivas e obtenção da liberdade por um número significativo de escravizados, colaborando também para a involução da escravidão na região.

15

16

PÓVOAS, Lenine C. História geral de Mato Grosso. (Dos primórdios à queda do Império).Cuiabá/MT: [s. ed.], 1995. p. 278. Id. ib. p. 274.

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Sítio, fazendas e fazendeiros do pantanal Nos inventários da vila de Miranda observamos o registro de sesmarias, fazendas e sítios. Em Pantanais matogrossenses, de 1946, Virgílio Corrêa Filho lembra que, no antigo Mato Grosso, eram conhecidas por “fazenda” as terras rurais destinadas à criação bovina. “Generalizou-se como unidade territorial nessas paragens a sesmaria de uma légua de frente por três de fundo, ou equivalente a 13 068 hectares.”17 A partir da sesmaria adquirida, o proprietário requeria as terras contíguas, formando uma extensa propriedade, usada para prática da pecuária extensiva. Paulo Esselin explica: “A justificativa para incorporar grandes áreas no Pantanal era a de que durante as cheias, como parte das terras ficava alagada, necessitava-se de outro terreno correspondente, inacessível às enchentes, para onde o gado pudesse refugiar-se. Além do que, a pecuária extensiva praticada no Pantanal tem características próprias, é realizada em extensas áreas, exigência do pequeno suporte dos campos, que comporta em cada 3,3 ha, apenas uma cabeça.”18 Na prática, a extensão das propriedades registradas nos documentos produzidos na vila de Miranda no século 19 foi bem maior. Entre a documentação analisada aparecem fazendas medindo até seis léguas de frente e sete de fundos, [205,8 mil ha] no valor de (4:000$000); sesmarias com três léguas de fundo e dois de testada (29,4 mil ha) a (2:000$000) e “posse de terra de campos de criar e matas de cultura” abrangendo três léguas de testada e três de fundos (44,1 mil ha) a (500$000).

17

18

CORRÊA FILHO, Virgílio. Pantanais matogrossenses. Devassamento e ocupação. IBGE, Rio de Janeiro, 1946. p. 67. ESSELIN, Paulo Marcos. A pecuária no processo de ocupação e desenvolvimento econômico do Pantanal sul-mato-grossense (1830–1910). Tese (Doutorado em História) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2003.p. 169.

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Fazenda Piquy Joaquim de Souza Moreira e sua esposa Anna Gertrudes Moreira, moradores da fazenda Piquy, na margem esquerda do rio Aquidauana, eram grandes proprietários de terras na região. A fazenda possuía “três léguas de testada e três de fundos confinando ao Norte com a posse do finada dona Maria Domingas servindo de limite uma baia grande; ao poente com a posse do tenente coronel Leopoldino Lima de Faria tendo para limite um carandazal grande; ao sul, com a posse do finado Felisardo Gomes, servindo de limite a baia conhecida por Maria do Carmo; ao norte, com a posse do finado capitão Joaquim Paes da Viega, tendo por limite o rio Aquidauana”.19 Essa imensidão de terra, avaliada em 500$000, valia a metade do preço de um trabalhador escravizado da época. Em 1883, por ocasião do falecimento do alferes Joaquim Moreira, foram arrolados, entre outros bens, “[…] uma posse de terreno de criação e cultura denominado Ponadigo com meia légua de testada [3.500 m] e duas e meia de fundos [17.500 m] confrontando ao sul com o córrego Ponadigo ao nascente com a posse de Simplicio Xavier Tavares da Silva e ao poente com o posseiro originário-vendedor da mesma Henrique Augusto Pereira de Andrade”. “[...] uma posse de terras de campos de criação e matos de cultura à margem do mesmo córrego Ponadigo que confina ao sul com o lugar conhecido por Laranjal grande; ao nascente com o Pirizal grande; ao norte com o córrego Ponadigo que termina no dito laranjal; ao poente como o morro das Canoas com duas léguas de fundos e uma e meia de frente”. Igualmente, a família tinha “uma posse de terra de lavoura e criação de gado no lugar denominado Boritysal à margem direita do rio Aquidauana com uma légua de testada e duas e meia e mais ou menos de fundos confinando ao sul com a fazenda denominada Aninane; ao 19

Inventário de Joaquim de Souza Moreira. n. 157/09. Vila de Miranda, 1879.

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norte com terra devoluta; ao nascente com a posse de João Dias da Crus Cordeiro”. Finalmente, “uma posse de campos de criar e matas de cultura no lugar denominado Cabriúva com três léguas de testada e três de fundos confinando ao sul com a posse de Joaquim da Motta Coelho; ao nascente com a posse de dona Filomena Anna Florisbella Machado; ao norte com a fazenda de Camapoam e a posse de Henrique Augusto Ferreira d’ Andrade”.20 Instrumentos de trabalho necessários à lida no campo, como um enxó, um formão, seis machados, uma serra e um serrote braçal eram usados nas posses de Joaquim de Souza Moreira. As propriedades destinavam-se à criação de gado e ao cultivo da lavoura. A existência de um alambique, de engenho e de tachos indica a prática da moagem da canade-açúcar e a preparação de seus subprodutos. Com fuso de quatro arrobas, o alambique poderia ser usado na preparação de aguardente e os tachos, para cozimento do caldo da cana na obtenção da rapadura. Nos campos de criação de Joaquim de Souza Moreira encontravam-se 687 cabeças de gado e 51 animais cavalares. Na Tabela 1 relacionamos a quantidade de animais e seus respectivos valores.

20

Idem.

Propriedades pastoris e escravidão no Pantanal de Miranda (séc. 19)

257

Tabela 1 – Quantidade e valor de gado vacum e cavalar Espécie Gado Bois de corte Bois mansos de carro Gado bravo alto e baixo Garrotes de 2 a 3 anos Garrotes de ano Novilhos de 2 a 3 anos Novilhos de ano Vaca mansa com cria Vaca solteira mansa Burros novos Cavalos de serviço Éguas bravas Pastores Poldros de ano

Quantidade 50 20 400 37 20 40 30 60 30 2 9 24 2 13

Valor 1:000$000 600$000 2:800$000 555$000 200$000 600$000 300$000 1:500$000 600$000 1:60$000 54$000 720$000 120$000 260$000

Fonte: Inventário de Joaquim de Souza Moreira. Miranda. Província de Mato Grosso. 157/09, 1879. Arquivo Tribunal de Justiça de Campo Grande/MS.

O fazendeiro tinha à sua disposição dois carros ferrados puxados pelos “bois mansos de carro” para locomoção e trabalhos pesados da fazenda. Para deslocamento através dos rios contava com uma chalana pesando seiscentas arrobas (9.000 kg). Distante do núcleo urbano e das posses localizadas às margens de rios é possível o uso constante da chalana, embarcação de pequeno ou médio porte com proa e a popa de formato quadrado e fundo chato, usada para navegação nos rios pantaneiros. Era comum nas terras mato-grossenses o deslocamento dos proprietários das fazendas até o povoado ou vila mais próxima em chalanas, em carros de boi, no lombo de animais ou em rede conduzida por cativos. Em Viagem fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829, o francês Hercules Florence, segundo desenhista da expedição científica organizada pelo cônsul geral da Rússia, o barão George Heinrich von Langsdorff, registrou o costume do mato-grossense de viajar em rede: “Em caminho fomos visitar 258

Elaine Cancian

a fazenda do Buriti, de cana-de-açúcar e pertencente a uma velha chamada D. Antônia, a qual chegou ao mesmo tempo que nós, vindo de Cuiabá. Viajava de um modo novo para nós, carregada por dois negros numa rede suspensa a uma grossa taquara de Guativoca. De muda iam outros dois pretos aos lados. Acocorada nessa rede e a fumar num comprido cachimbo, vinha ela seguida de negras e mulatas, todas vestidas limpamente e carregando à cabeça cestos, trouxas e roupas, vasilhas de barro e outros objetos comprados há pouco.”21 Identificamos, para 1872, cinco trabalhadores escravizados sob a posse de Joaquim de Souza Moreira. 22 O cativo Sisenando de Souza, 22 anos, crioulo, administrava a fazenda Piquy; Rumão de Souza, 20, crioulo, era responsável pelo serviço de pedreiro; Venância de Souza, 16, crioula, preparava as refeições, e Angélica, 12, crioula, era pajem da casa. A função de administrador da fazenda Piquy era entregue a um cativo, fenômeno pouco comum.

Sítio Guavi Maria Alves da Conceição Faria mantinha no sítio Guavi, distante 12 km da vila de Miranda, criação e lavoura. Além do sítio, onde residia, era proprietária de “uma sesmaria de criar e lavoura no lugar denominado Rio Negro”.23 Os instrumentos de trabalho usados nas propriedades eram quatro enxadas, um enxó, um escaroçador de algodão, dois formões, uma serra e um serrote. Havia também um engenho de moer cana, dois tachos de cobre pesando duas arrobas e uma caldeira de três arrobas, provavelmente usados na preparação dos subpro21

22

23

FLORENCE, Hercules. Viagem fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. São Paulo: Cultrix, 1977. p. 161. Relação dos escravos para serem matriculados pertencentes a Alferes Joaquim de Souza Moreira residente em sua Fazenda denominada Piquy nas margens do rio Aquidauana. Arquivo do Tribunal de Justiça de Campo Grande/MS. 157/09. p. 10. Inventário Maria Alves da Conceição Faria. N. 157/26. Vila de Miranda.1882.

Propriedades pastoris e escravidão no Pantanal de Miranda (séc. 19)

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dutos da cana-de-açúcar. As plantações limitavam-se a três alqueires (7,26 ha) de feijão rasteiro e quatro alqueires (9,68 ha) de milho, cuidados pelos trabalhadores escravizados. Antônio Joaquim, Claudino, Faustino, Fillipe e João, cativos registrados como lavradores, destinavam-se aos trabalhos do plantio, com quase certo envolvimento nas atividades esporádicas do engenho, já que os esforços da família se voltavam à lavoura e à criação de animais. Além dos cativos lavradores, Maria Alves era servida pela escravizada Prudência, registrada como cozinheira da casa. A Tabela 2 mostra os bens semoventes da inventariada.

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preta cabra preta preta preta mulata

Antônio Joaquim Claudino Faustino Filippe João Prudência

26 46 44 45 27 30

Idade solteiro viúvo solteiro solteiro solteiro solteiro

Estado Civil Rita não conhecido Juliana Juliana Mariana não conhecido

Filiação Mato Grosso Mato Grosso Mato Grosso Mato Grosso Mato Grosso Minas Gerais

Naturalidade

lavrador lavrador lavrador lavrador lavrador cozinheira

Profissão

Fonte: Inventário post-mortem. Miranda. Província de Mato Grosso. 157/26, 1882. Arquivo Tribunal de Justiça de Campo Grande/MS. (Relação nº 11 dos escravos matriculados a 1º de agosto de 1878 pertencentes a D. Maria Alves da Conceição residente em seu sítio denominado Guavi na província de Mato Grosso)

Cor

Cativos pertencentes a Maria Alves da Conceição Faria residente em seu sítio denominado Guavi na Província de Mato Grosso - 1978

Nome

Tabela 2 –

Entre os bens da inventariada Maria Alves, 1883, encontramos arroladas 346 cabeças de gado, sendo 150 reses bravias, nos campos de Santa Avoga; 94 reses mansas de toda idade e sexo; 29 vacas mansas solteiras; 28 novilhos de seis meses a dois anos; quinze bois de um a três anos; treze touros, também com seis meses a dois anos; oito juntas de boi de carro; seis vacas mansas com cria e três bois de carro e sela.

Fazenda da Esperança Propriedade do casal Joaquim Ferreira de Mello e Anna Conceição Almeida, a fazenda Esperança, com suas benfeitorias, foi avaliada em 10:000$000 em 1884, quando ocorreu a partilha dos bens que ficaram por falecimento de Joaquim. No documento não foram arrolados bens móveis, mas constam animais e cativos, como pode ser observado nas Tabelas 3 e 4. Tabela 3 – Animais do proprietário Joaquim Ferreira de Mello Espécie de gado Éguas mansas (a 50$) Vacas Vacas Vacas com crias ( a 23$)

Quantidade 2 4 5 6

Valor 100$000 50$000 75$000 240$000

Vacas com crias ( a 30$)

18

540$000

Fonte: Inventário de Joaquim Ferreira de Mello. 158/20. Vila de Miranda. 1884.

Tabela 4 – Cativos do proprietário Joaquim Ferreira de Mello Nome do cativo Cypriana Eva (libertada) Jacintho João Laurinda Lucinda Maria Victoriana

Valor 1:500$000 600$000 200$000 1:000$000 1:000$000 1:000$000 700$000 900$000

Fonte: Inventário de Joaquim Ferreira de Mello. 158/20. Vila de Miranda. 1884.

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Não foram acrescentadas informações sobre a cor, idade, naturalidade e profissão dos escravizados da relação dos semoventes. Porém, na relação de cativos matriculados pertencentes a Joaquim Ferreira aparecem dados completos sobre os trabalhadores da fazenda da Esperança. Em 1872, oito escravizados foram registrados como propriedade do fazendeiro. O documento, copiado na íntegra, mostra a existência da profissão de lenheira, não encontrada em outros documentos produzidos na região.

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263

264

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41 51 53 16 9 9

58

Laurinda Eva Jacintha Cypriana João Maria

Catharina

preta

preta cabra preta cabra cabra cabra

preta

Cor

solteira

viúva solteira viúva solteira solteira solteira

-

Estado

Fonte: Vila de Miranda, 14 de Outubro de 1880.

63

Idade

Africana

desconhecida Mato Grosso desconhecida desconhecida desconhecida desconhecida

desconhecida

Naturalidade

Profissão

ignora-se

lenheira

Não cozinheira conhecida Isia pajem Maria cozinheira ignora-se lenheira Maria cozinheira Maria menor Maria menor

Filiação

bom serviço

bom serviço bom serviço bom serviço bom serviço menor menor

bom serviço

Aptidão para o serviço

-

-

-

Observação

Relação nº 45 dos escravos matriculados em 25 de setembro de 1872 pertencentes a herança de Joaquim Ferreira de Mello, residente na Fazenda da Esperança (Província de Mato Grosso)

Isia

Nome

Tabela 5 –

Fazenda Boa Vista O inventário de Maria Pires da Veiga, de 1882, registra a fazenda de criar Boa Vista, localizada à margem direita do rio Aquidauana. A fazenda possuía casas de morada com cobertura de telha, medindo sessenta palmos de frente (12 m) por quarenta de fundos (8 m), avaliada em 5:000$000; 24 um engenho de madeira para moer cana, um tacho grande e um pequeno, ambos de cobre, pesando 99 kg, usados na propriedade. Inexistem animais entre os bens semoventes, apesar de fazenda em posse familiar. As duas trabalhadoras escravizadas em posse da família eram colocadas a todo serviço. A cativa Mariana, 22, cozinheira, parda e natural de Santana de Paranaíba, foi comprada de Elesiano Loureiro de Moraes e avaliada no inventário a 1:200$000; a cativa Ricarda Pires, 18, pagem, cabra, com o mesmo valor. No inventário de Maria Pires aparece uma pequena embarcação conhecida por “prancha”, avaliada em 500$000. Característica da região, a prancha de proa lançada, bordos largos e salientes, com uma cobertura chata de tábuas, impulsionada a vara, era usada como meio de transporte de carga em alguns rios da bacia do Paraguai.

Vacaria e Ariranha As fazendas Vacaria, com quatro léguas de largura e cinco de comprimento (98 mil há), e Ariranha, com três léguas de comprimento e um de largura (14,7 mil há), inventariadas em 1872, eram propriedades de Manoel Ferreira de Mello e Maria Ignacia do Nascimento. O casal possuía ainda uma fazenda de criar com duas léguas de comprimento e treze de largura (197,4 mil ha). Em bens, no inventário de Maria Ignacia aparecem 125 animais entre vacuns e cavalares, oito trabalhadores escravizados e um carro pequeno. Nas tabelas 6 e 7 são apresentados os bens semoventes. 24

Inventário de Maria Pires da Veiga. N. 158/01. Vila de Miranda.1882.

Propriedades pastoris e escravidão no Pantanal de Miranda (séc. 19)

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Tabela 6 – Relação de cativos Nome do Cativo Floriana Justina Margarida Sebastião Silvestra (surda) Claudina Theodora (doentia) Venceslao

Idade 13 20 9 17 20 18 46 13

Tabela 7 – Relação de animais Espécie de gado Bois de carro Cavalos Mula Poldro Reses brancas Reses mansas

Quantidade 7 6 1 1 50 60

Fonte: Inventário de Maria Ignácia de Nascimento. N. 156/08. Vila de Miranda, 1877.

Com gado e cativos, mas sem terras? No inventário de Firmo Martins Homine Borges, de 1884, morador no lugar Campo Grande, 2º distrito da vila de Miranda, não aparece propriedade fundiária arrolada entre os bens. Entretanto, pela quantidade de animais relacionados no documento, presume-se a posse de alguma extensão de terra. Oitenta e seis animais vacum e cavalar aparecem entre os demais bens. 25 O inventariado apresenta em móveis um armário, uma bacia de cobre, um enxó, uma espingarda de dois canos, um rosário de ouro e um tacho de cobre. Em semoventes, vinte vacas paridas, dezessete vacas solteiras, doze bois carreiros, onze novilhos de dois anos, dez carneiros, nove novilhos de ano, dois jumentos, um cavalo baio, um cavalo castanho, um cavalo velho, um égua parida e um poldro de dois anos. 25

Inventário de Firmo Martins Homine Borges. N. 158/18. Vila de Miranda. 1884.

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Estado solteiro solteira solteira solteiro solteiro solteira solteira

Cor preta preta preta preta

parda

parda

preta

Rio Verde/ Goiás

Rio Verde/ Goiás

Rio Verde/ Goiás

Naturalidade crioulo crioula crioula Crioulo

Fonte: Inventário de Firmo Martins Homine Borges. N. 158/18. Vila de Miranda. 1884.

Idade 28 23 19 17 nascido a Galdino 17/10/1871 nascido a Joana 20/10/1878 nascido a Sebastiana 04/10/1880

Nome Ildefonso Inocência Eva José

Tabela 8 – Cativos de Firmo Martins Homine Borges

Eva

Eva

Prudência

Filiação desconhecida desconhecida desconhecida desconhecida

ingênuo

ingênuo

ingênuo

Profissão carreiro cozinheira roceiro lavadeira

-

-

Aptidão Boa Boa Boa Boa -

Francisca Bernarda de Jesus e seu esposo, José Joaquim Alves Terra, também não possuíam grandes extensões de terra. Francisca, quando inventariada, em 1884, tinha em posse um par de canastras, um rancho coberto de capim e alguns bens semoventes. O inventário registrou trinta porcos de criar, sete vacas paridas, seis garrotes de três anos, cinco novilhas de dois anos, duas vacas sem crias, um boi manso e uma égua mansa.26 A quantidade de bens relacionados no documento mostra a vida simples do casal referido. Apenas uma moradia de capim e duas canastras para guardar os objetos. Embora destituídos de objetos de valor e propriedades, contavam com três trabalhadores escravizados: Jeronima, 37, cozinheira, e os cativos João, 15, e Paulo, 14. Todos foram registrados como pretos, solteiros, de boa aptidão para o trabalho e oriundos da província de Minas Gerais.

Sesmarias, fazendas e fazendinha… Entre os bens do inventariado Henrique Augusto Ferreira de Andrade, de 1873, descobrimos sesmarias, fazendas e fazendinhas. A fazenda Correntes, localizada na margem esquerda do rio Aquidauana, media seis léguas de frente e sete de fundos (205,8 mil há). Confinava, ao sul, com a serra conhecida por João Dias; ao poente, com Canuto e nascente com a cachoeira Grande – avaliada em 4:000$000. Possuía também um terreno, em frente a Correntes, com três léguas de frente e uma de fundo (14,7 mil ha), avaliado em 500$000. As terras da “fazendinha” Catêpa [500$000] estavam localizadas na margem direita do rio Miranda e destinavam-se à lavoura e criação. No inventário constava, igualmente, a posse “de uma sesmaria que serve para lavoura e criação denominada Lagiado, acima da Serra, avaliado em 200$000”, e “uma sesmaria para criação, no lugar denominado Agachy, avaliado em 100$000”.27 Em animais, contavam oitocentas cabeças de gado vacum (8:000$000)

26 27

Francisca Bernarda de Jesus. N. 158/23. Vila de Miranda. 1884. Inventário de Henrique Augusto Ferreira de Ondrade. N. 156/01. Vila de Miranda. 1873.

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Reginaldo Ferreira Gaudencio Hylario Ferreira

Félix Ferreira

1 2 3

4

10

40 36 12

Idade

vila Miranda

vila Miranda vila Miranda vila Miranda

Moradia

solteiro

solteiro solteiro solteiro

Estado

Fonte: Inventário de Henrique Augusto Ferreira de Ondrade. N. 156/01. Vila de Miranda. 1873. p. 11.

Nome Cuiabá Costa d' África Miranda Miranda

caburé

Naturalidade

preto preto caburé

Cor

Pajem

ourives cozinheiro Pajem

Profissão

Relação dos escravos para serem matriculados pertencentes à dona Gertrudes Nunes Augusta residente no Município de Miranda Província de Mato Grosso-1872

Número

Tabela 9 –

e doze cavalos (1:200$000) e quatro escravizados matriculados em nome da viúva Gertrudes Nunes Augusta.

Dividindo terras Casos presentes na documentação estudada evidenciam a existência de uma prática na região do Pantanal. Algumas pessoas tinham a posse de “partes de terras” nas grandes fazendas. Em vida, Ignes Elvira de Albuquerque era proprietária de “uma parte de terras na fazenda denominada Santa Gertrudes no valor de 200$000 e uma parte na fazenda Burity comprada por 100$000, tendo benfeitoria de um monjolo de rego da água, existindo ranchos de capim que serve de morada”.28 Além das “partes de terra”, possuía uma casa com duas salas de frente na freguesia de Santa Rita de Lerverginia, medindo doze braças (26,4 m) de terreno ao sul e três (6,6 m) ao norte. Os objetos resumiam-se a dez cadeiras, duas mesas, dois tachos de cobre, um armário grande e ainda, um carro velho. Em semoventes, dezessete bois de carro, duas bestas mansas, um cavalo e uma cativa chamada Marcelina, preta, 30, cozinheira e com aptidão para todo serviço. Da mesma forma, em 1880, Maria Ignacia Zeferino29 possuía “terrenos da fazenda do Monte Alegre […] e três cativos”, sendo Adão, preto, 24, cozinheiro, Luiza, crioula, 18 e Sezario, crioulo, 13. O inventariado Manoel Ribeiro de Souza (1876) era proprietário de uma parte nos campos da fazenda Água Fria, avaliada em 71$600, e possuía poucos animais: 130 reses de criar (910$000) e uma sorte de gado alçado na fazenda Taquaruçu, vendidas ao capitão José Francisco Fialho, além de um carro velho ferrado e um serrote. Apenas o cativo Adão, 18, (1:500$000) foi arrolado no inventário. 30 Em 1876 foi constado que Francisco José de Souza possuía uma parte na fazenda Córregos (50$000); uma parte na fazenda Água Fria (50$000) e uma sesmaria medindo três léguas de fundos e duas de testada (29,4 mil há) na região cha28 29 30

Inventário de Ignês Elvira de Albuquerque. N. 158/13. Vila de Miranda.1883. Inventário de Maria Ignacia Zeferino. N. 157/18. Vila de Miranda. 1880. Inventário de Manoel Ribeiro de Souza. N. 156/04. Vila de Miranda, 1876.

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mada Dominguino, avaliada em 2:000$000.Tinha em bens móveis cem cabeças de gado alçado espalhado na sesmaria citada, nove bois de carro, um cavalo e, em semoventes, os cativos Manoel, 17, Rita, 20 e Felisberto, 60. Do último cativo não obtinha posse completa, mas meia ação.31 Em 1868, durante a Guerra do Paraguai, os escravizados de Francisco e sua esposa, Ritta Maria Barboza, receberam “liberdade condicional”, registrada em Camapuã. No documento registrou-se que os cativos Manoel e Rita serviriam ao casal por 25 anos e, em caso de morte, continuariam trabalhando para os herdeiros até completarem o tempo necessário – ou seja, seriam livres em 1893, se ainda vivessem. O escravizado Felisberto deveria servir ao casal por seis anos, até os 66 anos; findo esse período, ficaria à disposição do herdeiro, o qual possuía a outra parte do cativo.

O fazendeiro Joaquim Alves Correa Entre os proprietários com maior quantidade de animais observados nos inventários encontramos o tenente-coronel Joaquim Alves Corrêa, possuidor, em 1878, de duas mil cabeças de gado vacum na Fazenda do Taboco, no valor de 14:000$000, e de quatrocentas reses na Fazenda Curral de Taquaras, avaliadas em sete mil reis cada uma, totalizando 2:800$000. Como bens de raiz constavam sesmaria de criação e cultura denominada Taboco, localizada entre o rio Taboco e o Negro, e uma sesmaria de criação e cultura, Curral das Taquaras, com benfeitorias, no lugar entre os ribeirões Poeira e Córrego Fundo. Alves Correa possuía também um terreno de doze braças (26,4 m) de terras na vila de Miranda, localizado no largo da Matriz. Sob seu poder, havia dois trabalhadores escravizados: Theodora, preta, 28, cozinheira, e Feliciano, preto de oito anos de idade e colocado a todo serviço. 31

Inventário de Francisco José de Souza. N. 156/06. Vila de Miranda, 1876.

Propriedades pastoris e escravidão no Pantanal de Miranda (séc. 19)

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Jóias, cativos e engenho Dos documentos analisados, o inventário de Eulália d’Arruda Pinto, de 1878, desperta a atenção pela quantidade de jóias relacionadas. Eulália era proprietária de uma sesmaria de terras e campos de criar, distante 42 km da vila de Miranda. Na sesmaria, mantinha um alambique, um engenho de madeira para moer cana, uma fornalha protegida em uma varanda coberta de capim e dois tachos de cobre. A casa da inventariada era simples: “de madeira lavrada contendo duas salas, corredor e varanda coberta de telhas em parte e outra de capim por não estar concluída”.32 Os únicos bens de utilidade doméstica eram “três pares de canastras encouradas de sela preta com pregos dourados e duas mesas regulares uma com gaveta e outra sem, de madeira de cedro.”33 Também foram arrolados dois carros velhos em mau estado, avaliados em 150$000. Em ouro, registraram-se seis anéis com pedras de diamante (275$000); dois relicários, sendo um coberto com vidro (35$000); um alfinete de peito (1:200$000); uma cruz (6$000); um Divino Espírito Santo (4$000); um menino Jesus (5$000); um trancelim (25$000); um cordão de um metro e trinta e quatro (25$000); um cordão pequeno de 53 cm (15$000); dois pares de brincos (15$000 e 5$000). Constam, igualmente, no inventário como bens semoventes 33 reses mansas de criar; dez bois de carro, dois cavalos. Além de dois trabalhadores escravizados, Antônia, 77 anos (300$000), e Maria, 30 anos (1:000$000).

32 33

Eulália d’ Arruda Pinto. N.157/05. Vila de Miranda. 1878. Idem.

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Porcos, cavalos e cativos… No inventário produzido após falecimento do casal Manoel Dias Baptista Oreste e Thereza Joaquina do Espírito Santo, 1874, encontramos registrados onze escravizados, sendo a maior quantidade de mão-de-obra cativa encontrada nos inventários arrolados na vila de Miranda. Entretanto, cinco entre eles não se encontravam ainda em idade produtiva, sendo, eventualmente, filhos ou netos das cinco cativas em idade fértil do casal. Tabela 10 – Escravizados do inventariado Manoel Dias Baptista Oreste Nome do cativo Bonifácia Florentina Benedicta João Maria Innocencia Honorata Conceição Joaquina Antônio Cicílio

Cor não informado cabra cabra crioulo crioula cabra mulata crioula cabra cabra mulato

Idade 40 25 23 22 18 16 7 5 5 18 meses recém-nascido

Fonte: Inventário de Manoel Dias Baptista Oreste e Thereza Joaquina do Espírito Santo. Nº 156/02, 1874.

Encontra-se registrada uma propriedade, no local denominado Carandá, onde se localizava a fazenda com benfeitorias. Na mesma, havia três lances de curral; dois retiros, um com dois lances de curral e outro com um lance, e um cercado grande com todas as plantações necessárias. Havia, igualmente, um terreno no local denominado Dois Amigos. É interessante notar a existência na fazenda de uma parte de terras cercada para plantações, provavelmente usadas para alimentação da família e alguma venda. O cultivo de pequePropriedades pastoris e escravidão no Pantanal de Miranda (séc. 19)

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nas roças por cativos roceiros era comum para atender às necessidades alimentares na época. Os bens e instrumentos de trabalho da fazenda Carandá eram poucos: um chinelo de prata de silhão; um rabicho aparelhado de prata; uma sela campeira; duas foices; três enxadas; três machados. Para proteção da família ou para caça era usada uma espingarda de dois canos. Além desses objetos foi arrolada uma porção de louça da serventia da casa, não discriminada no inventário. Em posse da família havia 411 animais: duas bestas; dois cavalos; 112 porcos, entre grandes e pequenos; trezentas reses marcadas e divisadas.

O que faziam os escravizados nas fazendas do Pantanal? A historiografia tradicional ocultou quase completamente os trabalhadores escravizados do sul de Mato Grosso, sobretudo quando se tratava das discussões sobre o trabalho no campo. Os cativos foram ocultados do cenário historiográfico regional para dar espaço pleno aos nativos habitantes da região. Considerados únicos responsáveis pela lida nas diversas atividades do meio rural, os nativos são lembrados como o braço sustentador dos desbravadores do pantanal. Em Pantanais matogrossenses, de 1946, Corrêa Filho, autor citado por grande parte dos estudiosos, propõe: “Nos pantanais do Miranda, a escassez de pessoal, conjugada com a boa vontade [sic] dos naturais, ensejou a colaboração dos selvícolas, terenos especialmente, que se revelaram auxiliares prestimosos dos pioneiros”.34 Apesar da grande contribuição da historiografia tradicional, a história tem sido revista e a resistência dos memorialistas e alguns pesquisadores sul mato-grossenses, superada por novas pesquisas, apoiadas em documentos até então 34

CORRÊA Filho, Virgílio. Pantanais matogrossenses (Devassamento e ocupação).Rio de Janeiro, IBGE, 1946. p. 116.

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conservados nos arquivos e de pouco interesse para muitos. A historiadora sul mato-grossense Maria do Carmo Brazil35, pioneira no estudo sobre as revoltas cativas, na obra Fronteira negra, de 2002, mostrou a participação dos trabalhadores escravizados em assassinatos de escravizadores proprietários de fazendas próximas à cidade de Corumbá, região fronteira com a Bolívia. Em Cativos nas terras dos Pantanais. Escravidão e resistência no sul de Mato Grosso – séculos 18 e 19, de 2008, Zilda Moura36 registrou a existência de inúmeros negros escravizados exercendo função de campeiros, lavradores, peões, roceiros e vaqueiros. Com base nas fontes primárias, verificamos a participação dos cativos em muitas atividades na região de Miranda – aliás, em parte já apresentada no artigo “Cativos nas fazendas pastoris do sul de Mato Grosso (1825-1888). Considerações de pesquisa”, de 2007, no qual mostramos a presença de trabalhadores escravizados nas cercanias de Corumbá/MS e nas fazendas próximas ao rio Taquari: cativos cozinheiros; lavradores; roceiros e com outras funções especializadas.37 Os documentos estudados revelaram a presença do trabalhador escravizado no campo. Trabalhadores negros vindos da África ou nascidos na província de Mato Grosso e Minas Gerais trabalhavam nos sítios, nas fazendas e sesmarias mais longínquas da povoação de Miranda. Cozinhar, cuidar dos afazeres domésticos, fabricar artefatos, lavar, lavrar e roçar a terra eram algumas das atividades desempenhadas pelos escravizados no sul de Mato Grosso, como pode ser observado na Tabela 11, construída com informações retiradas dos in35

36

37

BRAZIL, Maria do Carmo. Fronteira negra. Dominação, violência e resistência escrava em Mato Grosso -1718-1888. Passo Fundo: EdUPF, 2002. (Coleção Malungo). MOURA, Zilda. Cativos nas terras dos pantanais. Escravidão e resistência no sul de Mato Grosso – séculos 18 e 19. Passo Fundo: EdUPF, 2008. (Coleção Malungo). CANCIAN, Elaine. Cativos nas fazendas pastoris do sul de Mato Grosso (18251888). Considerações de pesquisa. História: Debates e Tendências, Passo Fundo: UPF, v. 7, n.2, p. 119-137, jul./dez. 2007, publ. no 2º sem. de 2008.

Propriedades pastoris e escravidão no Pantanal de Miranda (séc. 19)

275

ventários. Porém, é preciso ressaltar a ausência de informações completas sobre os escravizados registrados em alguns documentos. Todavia, observando o relatório produzido pela Junta Classificadora de Escravos da Comarca de Miranda, produzida no ano de 1885, é possível afirmar que, além das profissões abaixo relacionadas, as cativas desempenharam também a função de lavradora e costureira. 38 Tabela 11 – Profissão da população cativa da vila de Miranda/18731884 Nome do cativo Angelica

Cor

Idade

Profissão

crioulo

12

pajem

Antônio Joaquim

preta

26

lavrador

Gaudencio

preto

36

cozinheiro

Ildefonso

preta

28

carreiro

Inocência

preta

23

lavadeira

José

preta

17

roceiro

Rumão de Souza

crioulo

20

pedreiro

Sisemão de Souza

crioulo

22

administrador

Venância

crioulo

16

cozinheira

Jacintha

preta

53

lenheira

Fonte: Baseado nos inventários post-mortem da vila de Miranda. Arquivo do Tribunal de Justiça de Campo Grande/MS.

Casas rurais pantaneiras Em Pantanais matogrossenses, de 1946, Virgílio Corrêa Filho considerou rude a vida nas fazendas sul-mato-grossenses: “Era-lhes, ao contrário, assaz penosa a labuta e inteiramente desprovida de conforto, de que não cogitavam as suas habitações.” Registrou sobre as moradias: “As paredes de adobes, quando não barreadas apenas a sopapo na maioria das casas, alvejavam-se habitualmente pela caiação. A cobertura 38

Relatório da Junta de Classificação de Escravos de Miranda, 16 de Julho de 1885. Arquivo Público de Mato Grosso. Lata 1985-E.

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de telhas, em duas águas, não evitava o umedecimento interno, durante a época das chuvas, quando o chão, de terra batida, fartamente embebido de água do subsolo, ressumbrava-a na superfície.” O autor registra somente uma das peças da casa, a sala de frente: “amplamente rasgada, salvo em uma das extremidades, fechada para acolher as mercadorias destinadas às transações mercantis, de limitado giro, estendiase comprida mesa de tábuas sobre cavaletes, flanqueada de bancos igualmente de madeira tôsca.”39 As famílias proprietárias de grandes extensões de terras e cativos moravam em casas com cobertura de telhas – mesmo as moradias de madeira recebiam telhado diferenciado. Alguns donos de pequena extensão de terra, possuidores na região de um ou dois escravizados, moravam em ranchos cobertos de palha. Ainda que tradicionalmente os viajantes tenham procurado imortalizar a imagem do explorador da região, relacionando-a ao homem rude, vivendo duramente em região inóspita, as pesquisas têm evidenciado casos de fazendeiros donos de objetos em prata e ouro e moradores de casas amplas, cobertas com telhas, servidos por importante número de trabalhadores escravizados. A habitação poderia ser mais modesta se comparada às casas-grandes dos engenhos nordestinos, mas suas coberturas feitas com telhas de barros distinguiam seus moradores daqueles que habitavam os velhos ranchos pantaneiros. Distante 42 km da vila de Miranda, a sesmeira Eulália d’Arruda Pinto vivia em uma morada edificada de madeira lavrada. A casa possuía duas salas, corredor e varanda coberta de telhas em parte e outra de capim.40 Uma casa com cobertura de telhas demonstrava certo status na época, principalmente se localizada no campo. A literatura dos viajantes 39

40

CORRÊA FIlHO, Virgílio. Pantanais matogrossenses. Devassamento e Ocupação. IBGE, Rio de Janeiro, 1946. p. 113. Eulália d’ Arruda Pinto. N.157/05. Vila de Miranda. 1878.

Propriedades pastoris e escravidão no Pantanal de Miranda (séc. 19)

277

registra a existência de moradias muito simples para o Mato Grosso do século 19.41 As principais moradias rurais pantaneiras, os chamados “ranchos”, eram feitos de pau-a-pique, com paredes revestidas com barro e cobertos com folhas de palmeiras da região. Essas edificações mais simples eram usadas também pelos proprietários das terras destinadas às pequenas lavouras de subsistência e criação de animais. Mas, além do rancho rústico, as casas de madeira, alpendradas, também estiveram presentes no cenário pantaneiro. As figuras 1 e 2 mostram como eram elevadas as moradias dos ocupantes do pantanal.

Fonte: Corrêa Filho, Virgílio. Pantanais matogrossenses (Devassamento e upação).Rio de Janeiro, IBGE, 1946. p. 124.

Figura 1 –

41

Construção rural. Tipo de rancho com paredes de pau-apique, barreada e cobertura feita com palmas de uacuri

Ver entre outros: CASTELNOU, Francis. Expedição às regiões centrais da América do Sul. São Paulo: Nacional, 1987; FONSECA, João Severiano da. Viagem ao redor do Brasil 1875-1878. Rio de Janeiro: Typographia de Pinheiro & Cia, 1880; FLORENCE, Hercules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. São Paulo: Cultrix, 1977; MOUTINHO, Joaquim Ferreira. Noticia sobre a Província de Matto Grosso seguida D’um roterio da Viagem de sua Capital a São Paulo. São Paulo: Typographia de Henrique Schroeder, 1869; SMITH, Herbert Huntington. Do Rio de Janeiro a Cuyabá. São Paulo: Melhoramentos, (s/d)

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Fonte: Corrêa Filho, Virgílio. Pantanais Matogrossenses (Devassamento e Ocupação).Rio de Janeiro, IBGE, 1946. p. 125.

Figura 2 –

Construção típica das fazendas pioneiras do Pantanal. Construção com alpendre na frente

O interior das casas e seus objetos A escravizadora Anna Gertrudes Moreira, moradora na fazenda Piquy, margens do rio Aquidauana, também se abrigava em “casa coberta de telhas”. Na morada havia cozinha, corredor, despensa, varanda e três salas de frente. A pequena descrição feita no inventário de 1879, quando do arrolamento de bens de seu esposo, o alferes Joaquim de Souza Moreira, sugere uma casa ampla, porém com um interior desprovido de objetos de luxo. 42 Não consta no documento relação de utilitários domésticos; o arrolamento volta-se à posse de cativos, instrumentos de uso no campo e terras. O interior de grande parte das casas dos possuidores de cativos e terras era desprovido de mobiliário e objetos requintados. Ao analisar os bens arrolados nos inventários das famílias mato-grossenses, percebe-se a simplicidade da vida rural. Dentre os inventários analisados encontra-se excepcio42

Inventário de Joaquim de Souza Moreira. N. 157/09. Vila de Miranda. 1879.

Propriedades pastoris e escravidão no Pantanal de Miranda (séc. 19)

279

nalmente mobília refinada, como a usada na moradia de Maria Alves da Conceição Faria, moradora nas adjacências da vila de Miranda. Dentre os bens arrolados em sua residência estavam cama, espelho, mesas feitas de jacarandá e cedro e sofá de jacarandá – portanto, na época, uma mobília rara e representativa de status. A cama era objeto pouco usual do mato-grossense. Em Pão e pano ou prato e trato: em ensaio sobre a casa mato-grossense, de 2004, a historiadora Nanci Leonzo explica que a rede de dormir esteve presente na vida doméstica rural e urbana dos moradores mato-grossenses. 43 Também foram relacionados como objetos da casa dois castiçais e um almofariz. Contudo, o que chama a atenção no inventário são os bens de raiz, semoventes e demais bens móveis, pois, apesar da quantidade diminuta de utilitários da casa, é possível verificar que a família de Maria Alves pertencia a um grupo privilegiado da sociedade. As posses rurais compreendiam sesmaria de criar e lavoura no Rio Negro, pasto de criar e lavoura no lugar denominado, Guavi distante “uma e meia légua” de Miranda. Na vila, possuía um terreno de oito braças (17,6 m) na travessa das Palmeiras e uma morada de casas na rua do Carmo. Objetos mais requintados usados na casa mato-grossense foram registrados no inventário de Maria Pires da Veiga, de 1882. Na moradia, com cobertura de telhas, havia armário, baú encourado, cadeiras de palhinha, canastra coberta de sola, castiças de prata, mesa de jantar, mesas encouradas, paliteiro de prata, relógio de mesa com redoma de vidro e salva de prata. Interessante notar, além da posse dos objetos de prata, as 47 oitavas de ouro lavado. O castiçal de prata pesando 67 oitavas foi o objeto mais valorizado. Na Tabela 12 registram-se os bens móveis observados no inventário.

43

LEONZO, Nanci. Pão e pano ou prato e trato: em ensaio sobre a casa matogrossense. Territórios e Fronteiras, UFMT. v.5, n. 1, jan.- jun. 2004. p. 259.

280

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Tabela 12 – Bens móveis da inventariada Maria Pires da Veiga Quantidade 1 1 6 1 1 2 6 1 1 1 1

Objeto Armário baú grande encourado cadeiras de palhinha canastra coberta de sola mesa de jantar mesas de jantar pequenas mesas encouradas paliteiro de prata par de castiçal de prata relógio de mesa com redoma de vidro salva de prata

Valor 10$000 18$000 18$000 20$000 20$000 20$000 12$000 6$400 47$400 20$000 13$400

Fonte: Inventário post-mortem. Miranda. Província de Mato Grosso. 158/01, 1882. Arquivo Tribunal de Justiça de Campo Grande/MS.

A maioria dos moradores das fazendas incrustados no pantanal vivia mais adaptada aos objetos fabricados pelos nativos, assim como os exploradores nos primeiros tempos da colonização. No século 19, em terras inóspitas e distantes dos centros de poder, os habitantes permaneciam ainda utilizando utensílios de barro na cozinha, rede para sentar e dormir e canastra para guardar roupas ou qualquer outro pertence. O uso de talheres parece ter sido raro na região. Nos documentos consultados não aparece vestígio da utilização de colheres, facas ou garfos nas casas rurais pantaneiras. A familia pantaneira vivia igual aos primeiros tempos da Colônia. Em Famílias e vida doméstica, de 2004, a historiadora Leila Mezan Algranti lembra que o mobiliário e os utensílios eram escassos no interior da casa colonial, sobretudo os talheres. Nessa época, a posse de objetos não sugeria status ao possuidor.44 As principais evidências de elevada posição social eram a quantidade de escravizados e dos alimentos servidos à 44

ALGRANTI, Leila Mezan. Famílias e vida doméstica. In: SOUZA, Laura de Mello e. (Org.). História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo: Companhia da Letras, 2004.

Propriedades pastoris e escravidão no Pantanal de Miranda (séc. 19)

281

mesa e a qualidade das roupas usadas, das jóias e dos cargos ocupados. A chegada da família real ao Brasil em 1808 colaborou para a modificação do interior das moradias, principalmente nos maiores núcleos urbanos. Novos objetos, mais requintados, foram inseridos nas casas dos proprietários mais abastados. Porém, nas terras mato-grossenses, ainda em pleno século 19, permanecia a simplicidade no interior de grande parte das casas. O reconhecimento social do fazendeiro pantaneiro estava atrelado às extensões das propriedades, à quantidade de gado e à posse de cativos. O mobiliário das casas pantaneiras reduzia-se a adredes, canastras, bancos, baús, mesas, mochos e tamboretes de madeira. Na cozinha, potes e vasilhas simples de barro eram usados para resfriar a água e preparar as refeições. Os mochos e os tamboretes – bancos sem encosto de formato quadrado ou redondo – serviam de móveis de assento. Apesar das mudanças em outras regiões brasileiras, os pantaneiros conviviam com os antigos objetos usados no século 17 e 18. Certos objetos do interior da casa foram usuais dos moradores rurais do sul da província de Mato Grosso, a exemplo da canastra feita de madeira, usada para guardar roupas, e da rede, destinada ao descanso diário. Algumas canastras mais finas eram revestidas com couro. Na casa de Eulália d’ Arruda Pinto, proprietária de sesmaria e de várias jóias, havia “três pares de canastras encouradas de sela preta com pregos dourados”, avaliadas em 150$000.45 Encontramos excepcionalmente a cama – rara no período colonial – na morada do tenente Gentil Augusto de Arruda Fialho. Na relação dos bens móveis arrolados em 1882, em razão do falecimento de sua esposa, aparecem uma cama e um sofá de sala feito com madeira jacarandá. Provavelmen-

45

Inventário de Eulália d’ Arruda Pinto. N. 157/05. Vila de Miranda, 1878.

282

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te, o sofá deveria ser bem rústico, desguarnedido de estofo, semelhante à preguiceira usada no século anterior. 46 Posse de extensas terras, uso do escravizado, cultivo de pequenas plantações, lida com o gado, convivência com a rusticidade, eis os dias dos fazendeiros pantaneiros moradores nas circunjacências da vila de Miranda nos anos de 1873 a 1884.

46

Inventário de Maria Alves da Conceição Faria. N. 157/26. Vila de Miranda, 1882.

Propriedades pastoris e escravidão no Pantanal de Miranda (séc. 19)

283

A pecuária bovina e o processo de ocupação do Pantanal Sul-Mato-Grossense Paulo M. Esselin*

O quadro natural do Pantanal Sul-Mato-Grossense O estado de Mato Grosso do Sul, localizado no CentroOeste brasileiro, tem uma área de cerca de 357,4 mil km2, sendo seu território delimitado pelos rios Paraná, a leste, e Paraguai, a oeste. Politicamente, tem suas fronteiras demarcadas a leste com São Paulo, Minas Gerais e Paraná; ao norte, com os estados de Mato Grosso e Goiás; a oeste, com Bolívia e Paraguai e, ao sul, com o Paraguai. (Fig. 1).

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Paulo M. Esselin

Fonte: Campestrini, Hildebrando; Guimarães, Acyr Vaz. Figura 1 – História de Mato Grosso do Sul. 4. ed. Campo Grande: Academia Sul Mato-grossense de Letras e Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul, 1995. Capa

No final do século 16, pioneiramente, os espanhóis radicados no Paraguai iniciaram processo ocupação de uma extensa área que faz parte do atual estado de Mato Grosso do Sul. A região escolhida como definitiva pelos espanhóis para se instalar fazia parte do Pantanal, hoje pertencente ao sudoeste estadual, na fronteira com a Bolívia e o Paraguai. “La tierra llamada Ytatyn” aparece pela primeira vez na relação A pecuária bovina e o processo de ocupação do Pantanal Sul-Mato-Grossense

285

que fez Domingo Martinez de Irala, nobre espanhol que participou da conquista e colonização da região do Prata, sendo o segundo governador do Paraguai colonial, ao descrever, no final de 1542, sua primeira entrada em terras pantaneiras. Desde aquela época, a região do Itatim é descrita como um lugar plano, ameno e habitado por numerosas e diferentes etnias nativas. Desde o início do século 16, os conquistadores espanhóis penetraram nessa região através do rio Paraguai em busca do Eldorado peruano. Foram eles os primeiros a registrar o fluxo das águas, como também as lendas que cercavam a região. Ulrico Schmidl, soldado alemão vindo para a América na expedição de Pedro de Mendonza – nobre espanhol que, seduzido pelas riquezas americanas, empregou sua fortuna pessoal para promover o descobrimento, conquista e colonização da região do Prata, sendo o primeiro governador do Paraguai – e que esteve, em busca da serra de Prata, na Companhia de Alvar Nunez Cabeza de Vaca –, nobre espanhol que governou o Paraguai por um curto espaço de tempo e, com recursos próprios, montou uma grande expedição para conquistar riquezas na América Meridional – revela: “Entonces marchamos hacia las sobredichas amazonas; esas son mujeres con un [solo] pecho y vienen a sus maridos tres o cuatro veces en el año y si ella si embaraza por el hombre y es [nace] un varoncito, lo manda ella a casa del marido, pero si es una niñita, la guardan con ellas y le queman el pecho derecho para que éste no pueda crecer; el porqué le queman el pecho es para que puedan usar sus armas [...].”1 E, em seguida, aponta dificuldades para se locomover no Pantanal naquele período: “[...] nosotros caminamos durante siete días entre el agua hasta la cinta y la rodilla. Pero la tal agua era tan caliente como una agua caliente que ha estado sobre el fuego.”2 1

2

SCHMIDL Ulrico. Derrotero y viaje a España y las Indias. Buenos Aires. Espasa Calpe. 1947.p. 86-87. Idem. p. 88.

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Naturalmente, os espanhóis que escolheram o período das águas para promover a sua entrada em busca do Eldorado foram obrigados a retornar em razão das cheias anuais do Pantanal. Alvar Nuñez Cabeza de Vaca deixou também registrado o fenômeno das inundações por ele testemunhado: “Por volta de janeiro as águas começam a subir, e chegam a subir até seis braças [em torno de dois metros e meio] por cima das barrancas e se estendem por toda a planície terra adentro, parecendo um mar. Isso acontece religiosamente todos os anos, cobrindo todas as árvores e vegetações da região. Assim passam quatro meses, que é o período em que dura a cheia, de janeiro a abril.”3 No entanto, as cheias podem se estender até junho. Mas somente no século 18 o fenômeno do Pantanal e do mar de Xaraés foi esclarecido. A denominação de Pantanal, dada à grande planície do sudoeste sul-mato-grossense, é extremamente imprópria. “O termo Pantanal significa pântano, paludoso, brejo, região encharcada, grande pântano, terra alagadiça, região inundada por águas estagnadas.”4 Os conceitos acima não correspondem à realidade geográfica. A região do Pantanal, sob as enchentes anuais, não fica totalmente submersa ou se transforma em um atoleiro. Esse fenômeno acontece nas várzeas dos rios. A faixa sujeita à inundação é relativamente estreita: sua largura média é calculada em 25 km. Nos rios menores, como Miranda, Taquari e Cuiabá, as faixas alagáveis são mais estreitas. O Pantanal constitui-se na maior planície sedimentar inundável contínua de água doce do mundo, tendo 140 mil km2, que se estendem na direção norte e sul de Cáceres (Mato Gros3

4

CABEZA DE VACA. Naufrágios e comentários. Trad. de Jurandir Soares dos Santos (texto) Bettina Becker (Introdução).Porto Alegre, LEPM Editores, 1987. (Coleção Os Conquistadores). p. 193-194. FERREIRA, Aurelio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio básico da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988, p. 478.

A pecuária bovina e o processo de ocupação do Pantanal Sul-Mato-Grossense

287

so) a Porto Murtinho (Mato Grosso do Sul). Tem duas estações bem marcadas: a seca e a chuvosa. É o ciclo das águas que regula a vida de sua fauna e flora. Com uma variação mínima de altitude, a grande planície é inundada a cada ano com maior ou menor intensidade e durante até seis meses.5 (Fig. 2).

Fonte: Plano de Desenvolvimento Econômico e Social do Mato Grosso do Sul. Cenários até o ano de 2005.

Figura 2 –

5

Secretaria de Estado de Planejamento, de Ciência e de Tecnologia. Governo do Estado de Mato Grosso do Sul, p. 56

NOGUEIRA, Albana Xavier. O que é pantanal. São Paulo, Brasiliense, 1990.

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Paulo M. Esselin

A vida da região é ordinariamente marcada pelo fluxo e refluxo das águas do rio Paraguai. Quando elas sobem – ocasionadas pelas chuvas que acontecem nas regiões mais baixas ou em virtude das grandes precipitações nos planaltos vizinhos e nas cabeceiras dos rios – inundam os campos, obrigando os animais silvestres a se deslocar para as áreas mais altas, que são elevações discretas e alongadas, arenosas, caracterizando diques lacustres ou fluviais, ultrapassando em menos de dez metros a superfície vizinha normalmente inundada. Geralmente cobertas por capões de mato, transformamse em pequenas ilhas durante as cheias de maior amplitude e nelas se refugia o gado no rigor das enchentes. São também chamadas de “cordilheiras” pelos naturais.6 Quando as águas baixam, os animais descem, porque a terra, antes inundada, se revigora e os campos se cobrem do verde igual das pastagens riquíssimas. Surgem as baías e os corixos, como são chamados os canais pelos nativos. As baías são lagoas de forma circular, elíptica ou irregular, dispersas na região; quando sazonais, passam a se denominar “barreiros”. Em alguns casos, as lagoas têm água salgada e, ao baixar o nível hidrostático, deixam uma coroa de evaporitos precipitados ao seu redor; chamam-se, nesta hipótese, “salinas”, graças sobretudo ao elevado teor de cloreto de sódio, sendo procuradas pelo gado que necessita do sal.7 O relevo da região é bastante homogêneo e uniforme, com uma paisagem plana e linear; há, porém, algumas exceções, entre as quais o maciço, do Urucum, a 25 km de Corumbá. Orientado no sentido nordeste-sudoeste, que inclui numerosas elevações – Serra de Santa Cruz, Rabicho, Piraputangas e Tromba dos Macacos –, prolonga-se para o sul pela serra de Albuquerque, que é mais rebaixada e fica próxima à sede do 6

7

SOUZA, Lécio Gomes. História de uma região: Pantanal e Corumbá. São Paulo: Resenha Tributária Ltda, 1973. VALVERDE, Orlando. Fundamentos geográficos do planejamento rural do município de Corumbá. Revista Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro, 1972.

A pecuária bovina e o processo de ocupação do Pantanal Sul-Mato-Grossense

289

distrito desse nome, com altitude de até 1665 m no seu ponto culminante, na serra de Santa Cruz. Erguendo-se sobre uma planície que fica oitenta metros sobre o nível do mar (Valverde, 1972), o maciço é composto, sobretudo, por arcósios, protegidos em seus altos por camadas de jaspilito que intercalam outras de hematita compacta e criptomelana, estas constituindo a mais importante jazida de manganês do hemisfério.8 A respeito do maciço, descreveu Alvar Nuñez Cabeza de Vaca em 1542: “Estas sierras están peladas, y no crían yerba ni árbol ninguno, y son bermejas; creemos que tienen mucho metal, porque la outra tierra que está fuera del rio, en la comarca y parajes de la tierra, es muy montuosa, de grandes árboles y de mucha yerba; y porque las sierras que están en el río no tienen nada de esto, parece señal que tienen mucho metal, y ansí, donde lo hay, no cría árbol ni yerba; y los indios no decían que en otros tiempos pasados sacaban de allí el metal blanco [...].”9 Os indígenas, como forma de alimentar os sonhos dos espanhóis em relação ao metal, induziam-nos a acreditar na possibilidade de encontrarem no Urucum a prata tão procurada por eles; no entanto, aquelas montanhas guardavam apenas – e tão-somente – o manganês e o ferro, muito pouco valorizados na época. A serra do Urucum forma ao seu longo um elo de elevações outrora contínuas, que, desde o maciço Chiquitano, na Bolívia, se prolongam para sudeste pelas serras do Jacadigo e Urucum até a Bodoquena e chegam a cerca de seiscentos metros de altura. Puderam essas serras se manter elevadas graças às espessas camadas de jaspilito que as recobrem. A parte inferior de tais elevações é formada por calcários e dolomitas da série Bodoquena.10 8 9

10

SOUZA, op. cit. CABEZA DE VACA.Alvar Nuñez. Naufragios y comentarios. Madrid:Edicion de Roberto Ferrando, 1985, p244. VALVERDE,op. cit.

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A leste, o Itatim limita-se com a serra de Santa Bárbara na região de Aquidauana, composta de silbes, arenitos e tilitos, pertencentes ao planalto dos Alcantilados e integrantes do Planalto Central brasileiro. Ao sul, tem o conjunto formado pela serra de Maracaju-Amambai, constituída por derrames balsáticos.11 Na verdade, essas serras são prolongamentos da serra de Maracaju e formam uma cadeia contínua que rasga todo o território sul-mato-grossense, desde o extremo sul até a serra do Roncador, em Mato Grosso, separando as bacias do rio Paraná e Paraguai e, ao mesmo tempo, a Planície Pantaneira do Planalto Central brasileiro. Essas áreas separadas pela serra, do ponto de vista da cobertura vegetal, pela diversidade do clima, topografia e constituição geológica, são completamente diferentes. No Planalto, na bacia do rio Paraná, predominam relevos aplanados, domínio de vegetação rasteira, onde os arbustos são raros e as árvores, praticamente ausentes. (Fig.3).

11

ALMEIDA; LIMA, apud GADELHA, Regina Maria A. F. As missões jesuíticas do Itatim: um estudo das estruturas sócio econômicas coloniais do Paraguai (sec. XVI e XVII) Rio de Janeiro: Paz e Terra 1980.

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Fonte: Plano de Desenvolvimento Econômico e Social do Mato Grosso do Sul. Cenários até o ano de 2005.

Figura 3 –

Secretaria de Estado de Planejamento, de Ciência e de Tecnologia. Governo do Estado de Mato Grosso do Sul, p. 56.

A vegetação florestal está reduzida à mata de anteparo. Existem aí duas áreas distintas: campos limpos e naturais e a zona dos campos serrados, que abrange as bacias dos rios Pardo, Verde e Sucuri. Do outro lado da serra de Maracaju está o Pantanal, a sudoeste do atual estado de Mato Grosso do Sul. A enorme depressão paraguaia, com seus 140 mil km2, constitui uma região extremamente rica e plenamente apta ao desenvolvi-

292

Paulo M. Esselin

mento da pecuária, da criação do gado bovino, sem o emprego de qualquer tecnologia. Para os sertanistas e monçoeiros que palmilharam todo o sul de Mato Grosso nos séculos 17 e 18, Vacaria era a região que os espanhóis chamavam de Província Jesuítica do Itatim ou Campos de Xerez, onde encontravam o gado disperso das Missões. Há entre os historiadores um consenso quanto às fronteiras dessa localidade, sobretudo dentro das fontes primárias, que seriam: ao norte, os rios Taquari e Mbotetei; a oeste, o rio Paraguai; ao sul, o Apa, e, a leste, a serra de Maracaju.12 A vacaria acima descrita corresponde hoje à planície sedimentar do Pantanal. Ao se referir aos campos de Vacaria no fim do século 17, um sertanista descreve a rota para se chegar aos campos de gado: “Sobindo o rio Pardo tomando a barra do Anhandohy e Anhangohy que são dous rios nascidos de huma madre, navegandoo estes asima thé as vertentes que caem [...] adonde se acha por memoria algum gado vaccum, chamado hoje as vacarias, [...]. Correndo os tempos e continuando aqueles aventureiros as suas conquistas chegarão a navegar o rio Paragoai descendo huns pelo Coxiim outros pello Matetéu outros pelo Cahy que todos saem das mesmas vacarias e intrando pelas grandes bahias que acompanhão as margems deste grande rio [...].”13 Pelo relato, não há nenhuma dúvida de que os rios mencionados são o Miranda e o Aquidauana, onde anos antes haviam se desenvolvido os núcleos de ocupação espanhola, Santiago de Xerez e as Missões jesuíticas do Itatim, onde os sertanistas encontraram o rebanho bovino e, por isso, nomearam a região de Vacaria. 12

13

CORTESÃO, Jaime (Org.). Manuscritos da Coleção de Angeles. Jesuítas e Bandeirantes no Itatim (1596-1760). Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, Divisão de Obras e Raras Publicações, v. II, 1951, p. 4. TAUNAY, Affonso. História geral das bandeiras paulistas. São Paulo: Typ. Ideal, 1930. v. 1 e 6, v. 1, p. 3-4.

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O sistema ecológico do Pantanal, as enchentes e inundações têm seus aspectos benéficos: transportam material erodido das regiões tributárias, refertilizando o solo, mantendo a umidade da superfície, limpando os campos e eliminando as pragas. Durante a vazante, quando as águas descobrem os campos, o Pantanal se transforma em um tapete verde; as pastagens se renovam e brotam as gramíneas e outras forrageiras de alto valor nutritivo. “A pastagem nativa é o principal recurso florístico da região, abrangendo desde a vegetação aquática à arbórea com registro de 240 forrageiras não gramíneas e 200 gramíneas.”14 O Pantanal, com seus campos nativos, oferecia alimentação aos rebanhos bovinos e equinos que adentravam em suas terras, alimentação rica em cálcio e em fósforo, este sobretudo nas áreas alagáveis, o que lhes assegurou uma grande eficiência reprodutiva, ou seja, as condições locais eram extremamente favoráveis ao desenvolvimento da pecuária. As paisagens características do Pantanal são as aglomerações de árvores da mesma espécie, como o carandazal, buritizal, peuval, paratudal e o acurizal, termos locais para designar os mais variados cenários típicos da região. O carandá (Copernicia Cerifera, Mart. ou Copernicia australis) predomina nessas formações, de Corumbá para o sul, às vezes associado ao Paratudo (Tecomo caraiba, Mart), sobretudo bordejando as baías. Os buritis são generalizados, mas formam grandes associações puras no alto Paraguai e, notadamente, no alto Guaporé, ocupando os pantanais em largas extensões.15

14

15

MAZZA, Maria Cristina Medeiros et al. Etnobiologia e conservação do bovino pantaneiro. Corumbá: Embrapa, 1994. p. 30. ALMEIDA, Fernando F. M. de; LIMA, Miguel Alves de. Planalto centro – ocidental e pantanal matogrossense. Rio de Janeiro: Editora Conselho Nacional de Geografia, 1959.

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O acurizal, o peuval, o pirizal são, na verdade, um brejo ou paludal, com vegetação especial de gramíneas e ciperáceas, e constituem vegetação das corixas.16 As matas hidrófilas cobrem as margens dos rios e aguadas, dentre as quais se sobressaem a figueira, a imbaúba (Cecropia palmata), o cajá-mirim (Spondias lutea), gameleiras (Ficus sp), cedros, peuras, cambarás, guanandis, que passam a compor a floresta. Salientam-se os quebrachos (Schinopsis balam sal e Schinopisis lorentzii, Eng.) e o quebracho branco (Aspidosperma Chaquensis), esta última de importância econômica considerável como tanífera empregada no preparo do couro.17 Nas áreas não sujeitas às inundações ou menos alagáveis, avulta, em solo arenoso, o cerrado, constituído de árvores esparsadas, entre as quais se estende capim, apenas utilizado pelos animais quando não podem pastar nas baixadas. Nessas áreas aparece o pequizeiro (Caryocar brasiliensis, a lixeira Curatela americana), o paú-terra, o angico, a aroeira, a peúva, a taiuva, o cedro, o gonçalo-alves, o guatambu, o jacarandá, o carvão branco, a peroba e o guanandi. Deste último se utilizam os canoeiros para obter o breu e madeira.18 Nos terrenos periodicamente alagáveis da planície pantaneira emergem pequenos morros calcários cobertos por formação florestal em que se destaca a barriguda (Charisia ventricosa, nees 8 Mart). São numerosos os cipós nessa mata, em que algumas plantas são providas de espinhos. Esses morros são geralmente limitados por uma coroa de carandazais. 19 Quanto aos rios, são vários os que cortam a região, destacando-se entre os tributários do Paraguai os seguintes: Ta16

17 18

19

LISBOA, Miguel Ribeiro Arrojado. Oeste de São Paulo, sul de Mato Grosso. Geologia, industrial, mineral, clima, vegetação, solo agrícola, indústria pastoril. Rio de Janeiro: Typografia do Jornal do Commercio, 1909. ALMEIDA, Fernando F. M. de.& LIMA, Miguel Alves de. Op. cit. CORRÊA FILHO, Virgilio. Fazendas de gado no Pantanal Mato-Grossense. Rio de Janeiro: Ministério da Agricultura/SIA, 1955. VALVERDE, op. cit.

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quari, Miranda, Negro, Aquidauana, Apa, Coxim, Cuiabá e Verde. (Fig. 4).

Fonte: - MAZZA, Maria Cristina Medeiros. et al.

Figura 4 –

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Etnobiologia e Conservação do Bovino Pantaneiro. Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária. Centro de Pesquisa Agropecuária do Pantanal. Corumbá: 1994, p. 12

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A maior parte da planície é constituída por solos hidromórficos, geralmente de baixa fertilidade. Ao norte, predominam solos com horizonte subsuperficial argiloso, cuja porção central é formada por sedimentos arenosos transportados pelo rio Taquari e, ao sul, por sedimentos argilosos depositados principalmente pelos rios Miranda, Negro e Paraguai.20 Quanto ao clima, a classificação de Koppen enquadra o clima do Pantanal na mesma categoria do Planalto Central: Aw, ou clima das savanas.21 As precipitações, no total de 1164,6 mm no período chuvoso, restringem-se ao mínimo de 60 mL mensalmente nas secas, entre junho e começo de setembro. As temperaturas máximas chegam a 40,6 e 40,8 ºC, em Corumbá e Aquidauana, respectivamente, e a mínima, apenas em alguns dias do ano, próxima de zero. As temperaturas médias, no entanto, indicam 30,8-30,9 ºC e 19,7-18,1 ºC.22 As bruscas quedas de temperatura no Pantanal entre os meses de junho a setembro, com a ocorrência de geadas, têm consequências práticas importantes. “Embora pouco estudadas, constituem uma das causas da ausência de bernes no gado da região, que escapa, assim, a um parasito comum nos trópicos que reduz o peso e estraga o seu couro”.23 Graças às condições ecológicas da região, os rebanhos bovino e equino desenvolveram-se muito bem, encontrando as melhores condições de pastagens nativas e terra extremamente salitrosa, graças sobretudo ao elevado teor de cloreto de sódio; são os chamados “barreiros”,24 essenciais ao rebanho. Chamam-se barreiros algumas baixadas salino-salitrosas de cor acinzentada puxando para o branco. Todos os animais 20 21 22

23 24

MAZZA, et al, 1994. VALVERDE, op. cit CORRÊA FILHO, Virgilio. História de Mato Grosso. Instituto Nacional do Livro. Rio de Janeiro: 1969. VALVERDE, op. cit. (TAUNAY, 1923, p. 65 e seg).

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buscam com verdadeira sofreguidão esses lugares, não só os mamíferos, como aves e répteis. O gado lambe o chão e, atolando-se nas poças, bebe com delícia aquela água e come o barro. Quando às vezes voltam à noite desse pascigo, vêm com o ventre empanzinado e as vacas como se estivessem prenhas. “Embora, no Pantanal, os efeitos da baixa disponibilidade de forragens sobre os animais é maior do que em outras regiões tropicais, porque um período de inundação antecede a estação seca. No período de cheias, por expansão dos corpos d’água, as áreas de pastejo ficam parcial ou completamente submersas. No período de seca, as pastagens, já sofridas por permanecerem 2 a 3 meses sob a água, têm seu valor nutritivo reduzido pela seca e frio. Essa alternância entre excesso e falta tem sérias conseqüências no desenvolvimento da vegetação e animais.”25 Essa reduzida disponibilidade de pastagem no baixo Pantanal, em virtude das inundações cíclicas, não afetou profundamente os primeiros rebanhos introduzidos pelos colonizadores, uma vez que eles permaneceram, a princípio, na região alta. Além disso, o hábito de cercar as terras é entre os pantaneiros uma prática recente, pois a cerca começou a ser utilizada por volta de 1920. Isso permitiu por longo período a movimentação dos rebanhos para o cerrado, ao longo do qual se estende o capim, só utilizado pelos animais quando não podem ir pastar nas baixadas, então alagadas, ou seja, em razão das cheias ou das secas, quando o gado não encontrava condições de vida numa área, procurava outra que lhe assegurasse tal condição. Além disso, os rebanhos introduzidos no Pantanal, a partir do final do século 16 e começo do 17, tiveram um longo período para lentamente irem se adequando às condições do ambiente, até porque “é uma dessas regiões em

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MAZZA,et al.30, op. cit

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que homens, animais e plantas tiveram que se condicionar aos fortes imperativos do meio geográfico para sobreviver”.26 Desde a primeira tentativa de fixação por parte dos espanhóis na região onde foi fundada a cidade de Santiago de Xerez, ficaram registros da insalubridade da região. “El sitio era poco sano y dio en breve sepultura a los principales pobladores, escapando los que, por mas viles, hubieran hecho menos falta”. 27 Os que escaparam eram certamente os naturais ou mestiços bem adaptados às condições locais. Nos terrenos periodicamente alagáveis da planície e com o calor abrasador, são criadas as melhores condições para a reprodução de mosquitos que infestam toda a região. “Noites houve em que nuvens de mosquitos nos atormentavam de modo mais cruel [...] picada de borrachudos e o assalto dos insuportáveis micuins. “Peores do que estes flagelos é o dos mosquitos pólvora, animalejos quase microscópicos. A impressão que eles deixam é exatamente a que causa a súbita explosão, sobre um ponto da epiderme, de um grão de substância de que tem o nome. Terrível cevandija!”28 Corrêa Filho acrescenta: “Ainda na atualidade, quem pernoite a margem do Paraguai, ou de qualquer dos seus afluentes, não tarda em convencer-se da supremacia sinistra do assaltante alado, que pousa aos bandos na pele do paciente, perfura-a com seu órgão apropriado, para chupar gulosamente o sangue. Entra-lhe pelos ouvidos, pelas narinas e até pela boca, à hora das refeições, quando aberta para receber a comida, com a qual se mistura, à maneira de condimento inesperado.” 29 26 27

28

29

GADELHA, op. cit, p. 53. LOSANO, P. Pedro. Historia de la conquista del Paraguay, rio de la Plata y Tucuman. Buenos Aires: Casa Editora Imprenta Popular, 1873. v. I, p. 97. TAUNAY, Visconde de. Cartas da campanha de Matto Grosso 1865 a 1866. Rio de Janeiro: Biblioteca Militar, s/d. p. 155156. (CORRÊA FILHO, 1955, op, cit, p. 14

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O 2º tenente de artilharia Affonso d’Escragnalle Taunay, que participou da Força Expedicionária durante a Guerra do Paraguai (1865-1970), organizada para expulsar os paraguaios do solo sul-mato-grossense, deixou registrado: “A força após haver descrito enorme circuito de 2.200 km perdera um terço dos quadros graças a fadiga da marcha e a insalubridade do clima nos pantanaes de Mato Grosso, onde a dysenteria, a malaria e o beriberi dizimaram os infelizes soldados e oficiais”.30 As limitações ambientais da região ficam mais elucidativas ainda nos registros de Cândido Xavier de Almeida e Souza, em fins do século 19, que bem deu a dimensão das dificuldades enfrentadas por aqueles que se decidiram ali se estabelecer. “Não havia terras para marchar e nem agoas para navegar [...] nesta região mais do que em outra alguma he inflexivel o rancor dos irracionais contra o homem, desde a desobediencia de Adão: em terra as feras, as serpentes, as furmigas, e as mesmas arvores pella maior parte armadas de espinhos denegão a sua comunicação: nos Rios, os jacarés, os Sucuris, as Giboias e os mesmos peixes conspirão contra a Humanidade. A preciza privação do S. S. nome do Snr., o ardente calor proprio da zona torrida, a transpiração dos suores, a vexação dos insetos; o halito insofrível do almiscar dos jacarés, seus horrorozos bramidos, e a horrível figura destes monstros, represetnam a vista e a imaginação huma verdadeira effige do lado terrível do Infernal Archeronte.”31 Embora com todas essas evidentes dificuldades para a fixação, o Pantanal sul-mato-grossense foi escolhido pelos primeiros colonizadores espanhóis para se estabelecerem;

30 31

TAUNAY, Visconde de. A. A retirada da Laguna. São Paulo, s/d. p. 252. SOUZA, Candido Xavier de Almeida e. Discripção diária Cap. Mia de S. m Paulo. P. a ás fronteiras do Paraguay, em 9 de outubro de 1800, dedicada ao Illm. E Exm. O S.or Dom Rodrigo de Souza Coutinho. In: Revista do Instituto Historico e Geográfico Brasieliro, Rio de Janeiro: 1949, p. 115.

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possivelmente, a paisagem exuberante compensasse tanto sacrifício.

O processo de ocupação do Pantanal Sul-Mato- Grossense pelos espanhóis O Pantanal sul constituiu-se em território em que precocemente penetraram conquistadores espanhóis e portugueses, sendo detidos em suas andanças pela agressividade do seu meio ambiente, enchentes anuais, milhões de insetos, felinos, répteis e outros, somados ao calor de mais de 40 oC, que fazia a vida insuportável. Constituiu-se apenas uma coincidência o fato de que os campos do Pantanal são extremamente promissores para o criatório, em razão da boa qualidade das pastagens, da salinidade do solo e da aptidão para o desenvolvimento da pecuária. Na verdade, os espanhóis queriam apenas ocupar um território extremamente estratégico para ligar seus destinos aos dos peruanos detentores das ricas minas de prata. Essa era também uma ocupação geopolítica para evitar a entrada dos portugueses em territórios espanhóis, rota viável vindo de São Paulo para se atingir o Peru rico em metais. Na verdade, o que estimulava a ocupação era a proximidade com o Peru e as possibilidades que o local abria para o comércio, apesar de, segundo Aguirre, as primeiras correspondências estabelecidas entre os pioneiros representantes da Coroa enaltecerem as propriedades da terra, que eram boas para apascentar todo tipo de gado e muito férteis. O trajeto Lima-Santa Cruz-Assunção passou a ser utilizado com certa frequência por colonos que se dirigiam ao sul conduzindo ovinos, bovinos e equinos. Durante as jornadas, muitos animais eram apreendidos pelos nativos e conduzidos para a região da bacia do rio Paraguai. O próprio Núfrio de Cháves, por sua vez, no século 16, espalhou pelo banhado do A pecuária bovina e o processo de ocupação do Pantanal Sul-Mato-Grossense

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Xaraés – Pantanal de Mato Grosso do Sul – e pelos lhanos grande quantidade de touros e vacas.32 Embora essa tenha sido uma prática dos espanhóis a de lançar gado vacum em determinadas regiões para mais tarde estimular a sua ocupação, como fez o governador do Paraguai, Hernandarias em 1628 na ilha de São Gabriel, atual Uruguai, não parece que o mesmo tenha ocorrido no Pantanal por iniciativa do governador de Santa Cruz de la Sierra. Segundo Araújo, a suposta origem do gado do Pantanal sul-mato-grossense seria: por um lado, os indígenas investiam contra as caravanas, apossavam-se dos rebanhos e os conduziam aos campos de pastagem nativas, onde, abandonados, multiplicavam-se livremente, como ocorreu com a caravana de Ortiz Zarate; por outro, o citado Núfrio de Cháves teria introduzido outros rebanhos na região. Possivelmente, o gado a que alude Araújo não tenha chegado ao Pantanal. Todos aqueles – padres, jesuítas, franciscanos e bandeirantes aventureiros _ que palmilharam essas terras no século 16 e deixaram registro não deram notícia a respeito de bovinos e equinos. No entanto, havia por essa época um grande movimento de paulistas e assuncenhos nessas áreas, em busca de nativos para suas lavouras, e havia também trocas comerciais entre aqueles e estes – e assim, os rebanhos não teriam passado despercebidos. No início do século 17, os espanhóis estabeleceram-se no atual Estado de Mato Grosso do Sul, onde fundaram, às margens do rio Aquidauana, cerca de trinta léguas (uns 200 km) acima da confluência deste último com o rio Miranda, um pequeno núcleo urbano denominado Santiago de Xerez. Essa região, no entanto, já era conhecida tanto pelos portugueses como pelos espanhóis, porque possibilitava as comunicações com o Peru e entre o vale do Paraguai e o Amazonas. Tratavase de uma região estratégica. Ao se estabelecerem na região, 32

ARAUJO, Rubens Vidal. Jesuítas dos 7 povos. Porto Alegre: 1986.

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os primeiros colonos assuncenhos buscavam, além de romper o isolamento a que estavam submetidos, criar uma infraestrutura que permitisse desenvolver suas atividades econômicas e de produção. Desde o século 16, fazia parte do projeto assuncenho manter um caminho estruturado até o Peru para que se pudesse estabelecer relações comerciais mais frequentes e romper com o isolamento a que estavam submetidos os espanhóis de Assunção. Logo, foram organizadas frentes de colonização. Colonos e jesuítas espanhóis instalaram-se no Pantanal, na região do Itatim, aproveitando-se da abundante mão-de-obra guarani. Assentados, os espanhóis desenvolveram uma economia de subsistência, ao lado de uma pequena produção de algodão, milho, feijão, mandioca e de atividades criatórias. Por vezes, exportavam seus produtos para o mercado de Assunção, Tucuman e principalmente para as reduções jesuíticas do Guairá, Ciudad Real e Vila Rica do Espírito Santo. Embora fosse um povoado extremamente pobre, sem um produto que despertasse interesse nas demais colônias espanholas, o rebanho bovino e equino desenvolveu-se muito bem. “Possuía vultosa gadaria, além de fartas lavouras.”33 A ajuda vinda de Assunção parece que era frequente, não só em armamentos, mas também em gado bovino, o que permitiu rápida estruturação desse rebanho em Santiago de Xerez. Desde o início da sua fundação, a cidade de Xerez encontrou imensas dificuldades para subsistir, não prosperando. Contando com poucos recursos, os moradores passaram a viver precariamente, enfrentando constantes ameaças dos nativos índios locais. No ano de 1600, quando Xerez havia acabado de ser edificada pelos seus fundadores, os mbayas promoveram portentoso ataque e quase destruíram o pequeno núcleo. “Después de la destruicion de la ciudad espanõla 33

TAUNAY, Affonso. História das bandeiras paulistas. 2º São Paulo: Melhoramentos, 1961, T.1. p. 62.

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de Xerez, la mayor parte de los Mbaya volvio a sus antiguos asientos al oeste del gran rio, mientras uma pequenã parte quedaba en la region conquistada.”34 Ao atacarem a cidade espanhola, os indígenas contribuíram para o início da dispersão de equinos e bovinos por toda a planície do Pantanal. A princípio, a intenção dos nativos não era o roubo do rebanho, pois o uso de animais de cela e o consumo de carne bovina, sobretudo entre os guaicurus, só teve início nos meados do século 17, após quase cem anos do primeiro contato destes com os espanhóis introdutores de bovinos e equinos no Pantanal sul-mato-grossense. Impulso maior para o desenvolvimento da pecuária no Pantanal Sul Mato Grossense foi dado pelos padres jesuítas que ali se instalaram a partir de 1628. Fugindo das invasões dos bandeirantes paulistas na região do Guairá, atual estado do Paraná, os padres entraram no Pantanal Sul Mato Grossense para desencadear o processo de redução dos índios locais. Essa região era muito conhecida dos espanhóis, sendo habitada, entre o rio Miranda e o rio Apa, pelos índios itatins – embora esse nome englobasse outras parcialidades diversas, como os ñuaras, ñiguaras, guaxarapós e outros.35 A catequese dos guaranis assentados no âmbito dos Campos de Xerez resultou na constituição da Província do Itatim. No entanto, as relações entre jesuítas, nativos e colonos xereanos, desde o início, não se deu de forma harmoniosa. Ao contrário, os jesuítas impuseram resistentes obstáculos à apropriação compulsória da mão-de-obra indígena catequizada, o que era, portanto, contraditório e incompatível com o

34

35

KERSTEN, Ludwing. Las tribus indígenas del Gran Chaco, hasta fines del siglo XVIII: Resistencia (Chaco): Universidad Nacional del Noroeste, Departamento de História, 1968, p. 67. GADELHA,Regina Maria A. F. op. cit.

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modelo da economia colonial ibérica, baseada no sistema das encomiendas.36 Com o início da catequese nos Campos de Xerez, o bovino e o equino tornaram-se bens de valor inestimável. Todo o transporte da produção do campo para os armazéns, da madeira para as mais diversas construções, etc. só era possível com o auxílio dos animais de tração. No cultivo, no preparo do solo, nos tratos culturais, o bovino estava sempre presente, além de suprirem com sua carne, o leite e os seus derivados a insuficiência de outros gêneros alimentícios. Ao adentrarem em uma nova comunidade e decidirem pela redução e exclusão do modelo de aldeamento tradicional, os padres foram colocando o nativo sob o jugo da Igreja, e o seu sucesso dependia, antes de tudo, do rápido desenvolvimento da agricultura tradicional indígena. Além do trabalho de catequese e conversão dos indígenas nas Reduções, o aldeamento organizado pelos padres da Companhia de Jesus tinha como objetivo impedir o acesso direto dos colonizadores à apropriação compulsória do trabalho indígena, método que levava à escravização e, consequentemente, ao extermínio das populações autóctones de toda a América.37 As reduções que se formaram no Itatim organizaram-se no mesmo formato que as demais reduções de guaranis no Paraná. Os povoados eram formados por palhoças rústicas, reunidas no meio da aldeia, e cada agrupamento tinha áreas cercadas para criação de aves domésticas para o abate. Os campos estavam reservados para o cultivo de cereais e algodão e os pastos nativos serviam às manadas de ovelhas, cabras, mulas, além do gado vacum e cavalar.38 36

37 38

SILVA NOVAIS, Sandra Nara.Ruínas de Xerez: marco histórico do colapso do Projeto colonial castelhanoem Mato Grosso (1593-1632) Dissertação de mestrado, UFMS, 2004, p. 174. SILVA NOVAIS, Sandra Nara.op.cit. Documentos para a História da Argentina. Iglesia, Buenos Airies: 192 T.20, p. 725-726.

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“É verdade, porém, que o esforço mais árduo, nos primeiros tempos, terá sido aplicado não na criação de uma agricultura, mas para formar agricultores, como os caçadores guerreiros das antigas tribos nômades. Era-se mesmo coagido, nos primeiros tempos, a não deixar ao cuidado deles os bois de que se serviam para a lavoura, com receio de que, por preguiça não se dessem o trabalho de os desatrelar, quando o serviço acabava, ou os fizessem em pedaços para comê-los.”39 “Assim, antes da pregação do evangelho e de fazer dos indígenas, cristãos, era necessário transformar toda a sua tradicional base material, era necessário lavrar a terra e, além disso, de ensinar as novas práticas de cultivo e de trabalho. A fixação do indígena, por si só, criava novas necessidades, e a principal delas era a produção de alimentos em grande escala para suprir as necessidades dos membros da coletividade. Cobrir a nudez dos índios implicava na produção do algodão e era isso o que de certa forma mais preocupava os jesuítas. Para eles, seria o primeiro sinal de transformação do ‘bárbaro’. Tem – se aqui a veste e o traje que, ao nascer, conceda a natureza ao ser humano, sendo necessário da parte dos padres um cuidado solicito de fazer cobrir o que possa ofender a olhos castos.”40 Dentro de um aldeamento, o gado bovino e o equino tornaram-se bens de valor inestimável, pois era com eles que se preparava o solo para o cultivo, que se faziam a aração, gradagem, tratos culturais e colheita. Assim eles foram sendo introduzidos, aproveitando-se dos privilégios em pastagens naturais que a terra oferecia. As missões do Itatim experimentaram rápido crescimento: os padres jesuítas conseguiram aldear uma grande quantidade de nativos num curto espaço de tempo, o que rapida39

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LUGON, C. A. A republica comunista cristã dos guaranis (1610-1768). 2. ed. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1976. p. 124. MONTOYA, Antonio Ruiz. (S.J). Conquista espiritual. Porto Alegre: Martins Livreiro Editor, 1985.

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mente atraiu a atenção dos mamelucos paulistas. As Missões foram invadidas em duas ocasiões, 1632 e 1648. Na primeira, os bandeirantes paulistas ameaçaram a cidade de Santiago de Xerez, mas a população, formada por descendestes de espanhóis, não ofereceu resistência e uniu-se aos invasores. O tenente dom Diogo de Orrego e outros cidadãos guiaram-nos até as reduções do Itatim, recentemente organizadas, levando grande parte cativa dos índios aldeados.41 Após a invasão, muitos desses descendentes de espanhóis passaram para a capitania de São Paulo com suas famílias e, de posse de muitas “peças indígenas”, mas na pressa de deixar a cidade, temendo represálias das autoridades paraguaias e da própria Companhia de Jesus, deixaram na campanha chamada Vacaria grande número de bovinos que não conseguiram reunir.42 Na segunda vez, em 1648, os padres jesuítas foram obrigados a abandonar a redução, incapazes de enfrentar os invasores em condições tão desiguais, já que não tinham armas para se defender de ataques tão portentosos. Em 1649, ao abandonarem o Itatim, os padres jesuítas viram-se obrigados a deixar o pequeno rebanho que haviam conseguido estruturar. “[...] dexando como 700 Cabezas de ganado, dedicadas de Lismona al sustento de aquello pobre Índios que dexavam fuera de otras muchas que quedaran eb la antigua poblacion desamparada, donde tambien quedaron muchos alajuelos de estima que nos le permitieron recoger: y después de esta perdida todos los bueyes, ieguas, mulas, cabalos y demas bienes.”43 41

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ESSELIN, Paulo Marcos. A gênese de Corumbá: Confluência das frentes espanhola e portuguesa em Mato Grosso 1536-1778. Campo Grande: UFMS, 2000. p. 61. LEME, Pedro Taques de Almeida Paes. Nobiliarquia paulistana histórica e genealógica. São Paulo: U niversidade de São Paulo,1914, VI. CORTESÃO, Jaime. (org). Manuscritos da Coleção de Angeles. Jesuítas e Bandeirantes no Itatim (1596-1760). Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, Divisão de Obras e Raras Publicações, v. II, 1951, p. 19.

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Nas duas vezes em que as Missões foram invadidas, colonos e jesuítas deixaram na campanha da Vacaria uma grande quantidade de bovinos e equinos, que foram se juntar a muitos outros que haviam se desgarrado do rebanho e se criavam soltos sem trato algum. Esses animais, que constituíram o casco inicial da pecuária sul-mato-grossense, sobreviveram silvestremente num ambiente favorável, propício à atividade pecuária. Além das condições ambientais favoráveis que o gado encontrou para o seu desenvolvimento, outros fatores foram determinantes para o progresso do rebanho, dentre os quais as epidemias e enfermidades, que contribuíram para o decréscimo da população nativa no Itatim. Um grande número de doenças que eram praticamente inofensivas ao organismo imunizado dos europeus provocou efeitos calamitosos nas populações nativas. Desde os primeiros contatos entre os nativos dessa região com os padres da Companhia de Jesus, ou mesmo com os colonos espanhóis e portugueses, há constantes registros de epidemias que levaram à morte muitos dos primitivos habitantes.44 A tanto chegou o despovoamento do Itatim que um padre jesuíta que correu esse território por volta de 1657 deixou registrado que só achou “algunos monumentos que manifestan el senorio que los itatines tuvieron de todo el terreno e não passavan de um lúgubre legado: grandes vasos de barro com ossadas humanas, dos que usam os guarani a fim de neles meterem os seus defuntos.”45 Os nativos que já haviam incorporado a carne bovina à sua dieta foram transladados para muito longe pelos padres que evangelizavam no Itatim, condição importante para a rápida proliferação do rebanho bovino e equino. 44

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ESSELIN, Paulo M.& OLIVEIRA,Tito C. M. O.Historia debates e tendências. Dossiê: A fazenda pastoril e a escravidão.Universidade de Passo Fundo, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós - Graduação em História. v. 1, n. 1. Passo Fundo: 2007, p. 105-106. LABRADOR op. cit. 1910, p. 62.

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Esse processo da procriação do bovino e equino em condições naturais não é uma exclusividade do Pantanal sul-matogrossense e se repetiu em diversas regiões na América. As invasões promovidas pelos bandeirantes paulistas no Sul, sobretudo no noroeste do atual Rio Grande do Sul, contribuíram para a propagação de modo assombroso do gado em toda a margem oriental do Uruguai até a costa do mar (as chamadas “vacarias do Mar”). Vencidos pelos bandeirantes em sucessivos combates que culminaram com o de São Nicolau em 1638, os jesuítas e guaranis que puderam escapar cruzaram o rio Uruguai e estabeleceram novas Missões entre esse rio e o Paraná, deixando deste lado muito bovino abandonado. Depois do ano de 1682, convencidos da tranquilidade que então pairava sobre a região das antigas reduções da margem oriental, e em resposta à fundação da Colônia do Sacramento, em 1680, no extremo-sul do atual Uruguai, os jesuítas se animaram a transpor de novo o Uruguai e iniciaram a fundação dos famosos Sete Povos (São Nicolau, São Miguel, São Luis, São Borja, São Lourenço, São João e Santo Ângelo). O rebanho bovino que ficou inteiramente abandonado, procriando livremente e multiplicando-se sem cuidado algum, após cinquenta anos somava centenas de milhares de cabeças apascentadas em campos rio-grandenses.46 Segundo Rui Diaz de Gusman, em agosto de 1541, ao ser despovoada Buenos Aires, os conquistadores foram obrigados a abandonar cinco éguas e sete cavalos.47 Em 1580, quando Garay fundou Buenos Aires pela segunda vez, calcula-se que tenha encontrado em estado selvagem oitenta mil equinos, cujos ancestrais eram aquele 46

47

ABREU, Florêncio de. O gado bovino e sua influência sobre a antropogeografia do Rio Grande do Sul. In: Anais do III Congresso Sul – Riograndense de História e Geografia. Porto Alegre: 1940. v. 4. GUZMAN, apud: MENDOZA, P. de La C. La ganaderia colonial en el siglo XVIII. Acion de los Adelantados en pro de la riqueza pastoril durante la conquista y colonización del Rio de la Plata. In: Revista de Derecho Historia y Letras. Buenos Aires: 1922.T. 73, p. 626.

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pequeno lote abandonado em 1541.48 Segundo a tradicional historiografia portenha, foram abandonados cinco éguas e sete cavalos. No entanto, essa pequena quantidade de animais, ainda que em condições ótimas, não justificaria a enorme procriação que houve na campanha de Bueno Aires. Encontrando uma grande área com condições ambientais extremamente favoráveis ao seu desenvolvimento, o rebanho bovino das Missões jesuíticas do Itatim expandiu-se pelos campos da planície do Pantanal, em cujo território ficou confinado. Quando findou o século 18, a Vacaria abrigava milhares de cabeças de gado vacum e cavalar. Os relatos conhecidos, tanto de espanhóis como de sertanistas portugueses, são concordes em afirmar a presença de rebanhos em todo o pantanal sul-mato-grossense, vivendo silvestremente e sem trato algum.

A ocupação portuguesa do Pantanal sul-mato-grossense No início do século 19, a planície pantaneira já oferecia alguns atrativos aos pecuaristas que desejassem se fixar na região. Havia extensos campos de pastagens providos de salinas naturais, água abundante; os rebanhos alçados eram facilmente encontrados; as terras eram tidas como devolutas e os grupos nativos não ofereciam mais os riscos aos colonizadores do passado. Nessa época, o Brasil conquistou a sua independência política ao se libertar de Portugal. Além das dificuldades políticas enfrentadas com o processo emancipatório, o país se viu envolvido com problemas de ordem econômica. A crise da agricultura tradicional do Brasil, que se estendeu de 1821 até 1840, foi marcada pela redução dos preços dos produtos ex48

MENDONZA, P. de La C. op. cit.,1922,T.73.

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portáveis, com a consequente queda das receitas e contínuos deficits orçamentários. Essa escassez de recursos econômicos nos primeiros anos após a conquista da independência criou um clima de insatisfação entre as províncias e o governo central, com revoltas liberais que se estenderam por todo o Império.49 A chamada Rusga, de 1833, foi um movimento das camadas proprietárias liberais e federalistas regionais e assumiu um caráter de violência contra os comerciantes portugueses radicados em Cuiabá e na província de Mato Grosso. Uma onda de saques, perseguições e mortes estendeu-se por dias seguidos, alcançando diversas regiões da província. Com o fim do movimento um expressivo número de fazendeiros, fugindo da Justiça por crimes praticados em várias cidades de Mato Grosso, internou-se pela região ao longo do rio Paraguai; povoando as margens dos rios Taboco e Nioaque, avançando para os vales dos rios Miranda, Aquidauana e Negro. Há de se perguntar: Por que os fugitivos se estabeleceram numa região tão inóspita como é o Pantanal? Por que não se assentaram no Planalto, área mais próxima das províncias de São Paulo, Minas e Goiás, onde poderiam realizar intensa atividade comercial com as regiões mais ricas do império e as oportunidades seriam muito maiores? Ora, embora mais bem localizadas e muito menos insalubres que o Pantanal, além de disporem de uma rede de vias de comunicação e transporte, lá não havia um grande rebanho bovino e equino alçado, campos extensos de pastagens nativas, terras devolutas, barreiros e baiás de água salobra esperando pelos colonizadores, como era o caso do Pantanal. Essa, sim, foi a grande diferença, pois com esses animais foi possível organizar as primeiras propriedades: o gado foi sendo amansado, o couro era a principal mercadoria de troca e a carne seca também oferecia alguns recursos para os pioneiros. 49

ESSELIN & OLIVEIRA, op. cit. p. 108.

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As notícias do gado alçado nas regiões do Pantanal eram de domínio geral. As transações que os criadores que se afazendaram em torno do forte de Miranda realizavam na cidade de Cuiabá eram frequentes, como também aquelas atribuídas aos guaicurus com a intermediação dos fortes: “Como era comum estes notáveis cavaleiros venderem animais de sela desde 1820 em Cuiabá.”50 Os primeiros colonos não fizeram qualquer referência à entrada de bovinos. É possível que eles tenham sido tão poucos que não mereceram menção; ademais, que razão justificaria levar gado bovino e equino para uma região onde existiam aos milhares? No entanto, é certo que os colonos trouxeram alguns animais de sela, como também aqueles que optaram pela via terrestre se utilizaram das carretas puxadas por juntas de bois para transportar suas famílias e seus poucos pertences. Certamente, vieram também os animais de tiro para a labuta diária, indispensáveis no início do processo de fixação, algumas vacas leiteiras, animais de pequeno porte, o suíno, o caprino lanígero e aves domésticas, em escala suficiente para garantir a subsistência nos primeiros meses e para a reprodução.51 Essa empresa de migração foi feita pela iniciativa particular de alguns colonos, sem que houvesse o envolvimento do Estado. Os pioneiros foram atraídos pela facilidade em se obter terra abundante e devoluta e cuja pastagem natural, em grande quantidade, abrigava milhares de cabeças de bovinos e equinos selvagens e domesticados na posse dos grupos indígenas. Geralmente, as comitivas que deixaram o norte de Mato Grosso eram muito numerosas, com famílias inteiras, parentes, amigos, compadres, agregados e alguns cativos; enfim, os que vinham tomar posses das terras não eram pes50

51

BERTELLI, A. de P. O paraíso das espécies vivas: Pantanal de Mato Grosso. São Paulo: Cerifa, 1984, p. 41-42. ESSELIN &OLIVEIRA, op. cit., p. 110.

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soas miseráveis, mas reuniam condições que lhes permitiam a fundação de fazendas. Muitas vezes, esses grupos de colonos embarcavam em pequenas embarcações em Cuiabá e vinham pelo Paraguai abaixo até Corumbá, onde se dispersavam com suas comitivas para um local que melhor lhes aprouvesse. Nesse primeiro momento de ocupação, era possível escolher as terras que se queria para tomar posse, geralmente nas proximidades dos fortes, onde se poderia encontrar auxílio em caso de necessidade e proteção contra os naturais. Os colonizadores que chegaram à região antes da metade do século 19 reproduziram os mesmos processos políticos a que estavam afeiçoados no norte e trataram logo de tomar posse de grandes áreas, passando a explorá-las e gozando, por essa condição, de muito prestígio social. “Como a apelação de ‘senhor de engenho’ ou de ‘fazendeiro’, desde remotos tempos coloniais, fora quase um título de nobreza, pois traz consigo o ser servido, obedecido e respeitado de muitos.”52 Havia a clara possibilidade de os pioneiros se apossarem de grandes áreas, achando-se no direito a elas, além do que o fator que determinou o tipo de propriedade fundiária foi a criação extensiva do gado bovino, que por si só exigia grandes áreas e impelia os colonos a se assenhorearem delas. No Pantanal, como no resto do país, sobretudo no período colonial, generalizou-se como unidade territorial a sesmaria de uma légua de frente por três de fundo, o que equivaleria a 13.068 hectares. “Raramente, porém, cada proprietário rural contentar-se-ia com uma única, indicativa de comedidas aspirações. Adquirida, mediante concessão do Governador, a primeira sesmaria que servisse de núcleo, em torno dela seriam requeridas as terras contíguas, até que perfizessem conjunto grandioso, [...]. De mais a mais, os limites mencionados 52

ANTONIL, apud:QUEIROZ, Maria Isaura Pereira. O mandonismo local na vida política brasileira e outros ensaios. São Paulo: Alfa Omega, 1976.p 52.

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vagamente abrangiam, não raro, área muitas vezes maior que a devida, quando não se processasse a medição de acordo com as exigências legais. A facilidade na aquisição, por título gratuito, de glebas imensas, cujas divisas os vizinhos longínquos respeitavam, por não lhes minguar terreno bruto, [...].”53 A justificativa para incorporar grandes áreas no Pantanal era que durante as cheias, como parte das terras ficava alagada, necessitava-se de outro terreno correspondente, inacessível às enchentes, para onde o gado pudesse se refugiar.54 Além disso, a pecuária extensiva praticada no Pantanal tem características próprias, sendo realizada em extensas áreas, exigência do pequeno suporte dos campos, que comportava em cada 3,3 ha apenas uma cabeça. Os bovinos eram criados à solta até as primeiras décadas do século 20, pois não havia cerca para deter o seu avanço e, à medida que instintivamente procuravam melhores pastagens, fugindo das áreas macegosas, iam descobrindo novas pastagens, cujas terras os homens que acompanhavam os seus deslocamentos iam incorporando ao seu patrimônio e requerendo junto às autoridades provinciais e, a seguir, estaduais. Com isso, foram surgindo megalatifúndios no Pantanal mato-grossense: • Faz. Palmeiras, com 106.025 hectares - (legalizada) 03/12/1894; • Faz. Rio Negro, com 118.905 hectares - (legalizada) 03/09/1893; • Faz. Firme, com 176.853 hectares - (legalizada) 27/08/1899; • Faz. Taboco, com 344.923 hectares - (legalizada) 24/04/1899; • Faz. Rio Branco, com 384.292 hectares - (legalizada).55 53 54 55

CORRÊA FILHO, Virgilio. op. cit. 1955. p. 20. ESSELIN& OLIVEIRA. Op. cit., p. 111. CORRÊA FILHO, Virgilio.op. cit,1955. p. 23.

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Isso aconteceu a despeito da edição da Lei de Terras de nº 601, de setembro de 1850, que estabeleceu no seu artigo 2º que, daquela data em diante: “Os que se apossarem de terras devolutas ou de alheias, e nellas derribarem matos, ou lhes puzerem fogo, serão obrigados a despejo, com perda de bemfeitorias, e demais soffrerão a pena de dous a seis mezes de prisão, e multa de cem mil réis, alêm da satisfação do damno causado.”56 E no seu artigo 5º, parágrafo 1º: “Cada posse em terras de cultura, ou em campos de criação, comprehenderá, além do terreno aproveitado, ou do necessário para pastagens dos animaes que tiver o posseiro, outrotanto mais de terreno devoluto que houver contíguo, com tanto que em nenhum caso a extensão total da posse exceda a de huma sesmaria para cultura ou criação, igual às últimas concedidas na mesma Comarca ou na mais visinha.”57 A lei de 1850 procurou limitar o tamanho das propriedades, evitando a concentração fundiária, e estabeleceu que a única forma de se obter terra era comprando-a do Estado, o qual atuava como mediador entre o pretendente e o domínio público. A terra, até então em grande quantidade e que podia ser obtida por meio de ocupação e doação real, desde que no primeiro caso fosse mais tarde legitimada por concessão, daquela data em diante poderia ser obtida por qualquer pessoa, desde que pudesse pagar por ela. A lei expressou os interesses dos proprietários rurais. Enquanto no plano internacional o avanço tecnológico no setor de transportes, conhecido como Segunda Revolução Industrial, abriu novas perspectivas para a agricultura brasileira, com o desenvolvimento da lavoura cafeeira em São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro dois 56

57

Collecção das Leis do Império do Brasil, 1850, apud: PENÇO, Célia de Carvalho Ferreira. Uma legalização de terras devolutas em Mato Grosso. Tese apresentada para defesa do título de livre docente à disciplina de Antropologia ao Departamento de História do Instituto de Letras, História e Psicologia do Campus de Assis da Universidade Estadual Paulista, 1987. Idem, p. 2.

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problemas avultaram, exigindo solução: o da mão-de-obra e o da terra.58 Com o fim do tráfico transatlântico de trabalhadores escravizados e com os amplos setores do interior do país que se mobilizavam para obter terra, a oligarquia dominante, preocupada com a facilidade que ex-cativos e imigrantes teriam de se apossar de terras, lançou mão da lei de 1850 para “criar obstáculos a propriedade rural, de modo que o trabalhador livre, incapaz de adquirir terras, fosse forçado a trabalhar nas fazendas. Portanto, os tradicionais meios de acesso à terra, ocupação, formas de arrendamento, meação, - seriam proscritas”.59 Em Mato Grosso, por um lado, a lei cumpriu em parte o seu papel de negar acesso de trabalhadores rurais à terra e, por outro, constituiu fator de concentração fundiária. Os governantes reconheceram os direitos de todos aqueles que exibissem escritos particulares de compra e venda ou provassem posse mansa e pacífica decorrente da ocupação primária. A própria realidade levou a esse processo de concentração das terras, uma vez que não era possível a prática da pecuária em outros moldes que não fosse a extensiva. Aproveitando o capital natural (a terra e o gado selvagem), a lucratividade do empreendimento seria garantida com custos baixíssimos. Os investimentos necessários a uma prática intensiva, ou seja, construção de cercas, plantio de pastagens artificiais e outros, eram, naquele momento, impraticáveis. (Esselin; Oliveira, 2007, p. 112).60 Não foi difícil aos novos colonos legalizar as suas terras, pois tinham a mesma origem: se não parentes próximos, eram amigos e compadres. Os documentos foram produzidos com a mesma facilidade com que se ocupou a terra. “[...] eu conside58 59

60

ESSELIN; OLIVEIRA. Op. cit., p. 112. COSTA, Emilia Viotti. Da monarquia à república: momentos decisivos. São Paulo: Ciências Humanas. 1979. p. 133. ESSELIN; OLIVEIRA. Op. cit., p. 112.

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ro o Pantanal a única área de Mato Grosso que foi colonizada exclusivamente pelo mato-grossense, ou melhor, pelos cuiabanos, poconeanos, livramentanos e cacerenses [...].” (Ribeiro, 1984, p. 23). Essa foi uma empreitada de amigos e parentes em que a solidariedade constituía a marca do empreendimento. As áreas atingiam um tamanho tal que eram demarcadas vagamente em função de acidentes geográficos, posição das montanhas, curso dos rios, corixos e vazantes. À frente desses imensos latifúndios emergiu um grupo de proprietários que foi se enriquecendo ao longo dos anos e se aproveitando da ausência dos equipamentos estatais para ganhar poderes sobre as pessoas e as coisas. Ao tomar posse de uma área, a primeira tarefa do novo proprietário era reunir o gado alçado espalhado por todo o Pantanal Sul. Era a chamada “bagualeação”, ocasião em que eram organizadas comitivas que permaneciam por mais de quinze dias internadas na região, distantes do núcleo da fazenda.61 Saíam sobre o lombo de cavalos para recolher os animais descendentes dos rebanhos introduzidos séculos antes por jesuítas e colonos espanhóis, como também aqueles que os guaicurus, em razão dos seus rápidos deslocamentos, abandonaram Pantanal afora. Geralmente, os vaqueiros saíam em noite de luar para melhor visualizar os animais, que tinham o hábito de pastar apenas à noite, os quais eram laçados e amarrados em árvores, onde passavam horas nessa condição, para que fossem quebradas as suas resistências. Mais tarde, o peão voltava ao local para conduzi-los. Não era raro encontrar alguns animais mortos. Aqueles que sobreviviam eram recolhidos e levados para as proximidades das sedes da fazenda.62 Eram as vaquejadas: “[...] vai-se escondido, pelos matos, e sai-se em 61

62

BARROS, Abílio Leite de. Gente pantaneira: Crônicas da sua história. Rio de Janeiro: Lacerda Editores. 1998. PROENÇA, M. Cavalcanti. No termo de Cuiabá. Ministério da Educação e Cultura. INL. Rio de Janeiro: 1958. p. 72-73.

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cima do gado, de repente... Pior, porém, era caçar a rês feroz, em ermas regiões, perante a lua. A pega do gado bagual, de noite, é trabalho terrível”.63 Para manter esse gado nas proximidades do núcleo da fazenda, sob os olhos dos criadores, usava-se o seguinte estratagema: cortava-se a ponta do casco, para que a dor da pisada o impedisse de fazer longas caminhadas; com relação às fêmeas, aproveitava-se seu instinto materno: prendiam-se as crias para que as mães não se alongassem. Foi assim que os bovinos foram sendo reunidos em torno dos ranchos dos pioneiros, e dessa forma começavam a se estruturar os primeiros rebanhos e, com eles, as fazendas. Esses fazendeiros muito cedo se deslocaram para a região meridional sul da planície fluvial do pantanal, estabeleceram-se em áreas e juntaram em torno de trezentos a quinhentos animais cada. Por volta de 1850 já haviam em torno de seis grandes propriedades, todas legalmente registradas. Dentro de décadas eles tinham milhares de cabeças de bovinos e criaram manada de cavalos. Muitos deles se tornariam importantes figuras de economia e da política de Mato Grosso em décadas subsequentes.64 À medida que esse rebanho encontrado pelos campos ia sendo recolhido, recebia imediatamente a marcação a ferro, o que determinava que, daquela data em diante, estava na posse de um fazendeiro, passando à condição de mercadoria; consequentemente, não poderia ser abatido por outrem. 63

64

ROSA, João Guimarães. Entremeio com o vaqueiro Mariano. In: Estas estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. p. 117. WILCOX, Robert. Cattle ranching on the Brazilian frontier: Tradition and innovation in the Mato Grosso (1870-1940). New York University, 1992. p.20. “These early settlers moved into the central and sourthern regions of the Pantanal fluvial plain, setting up ranches with as many as 300 to 500 animals each. By the 1850s, there were at lest six substantial ranches registered under law. Within, decades these establishments had thousands of head of cattle and raised local horses as well, and many of the settler came to be important figures in the economy and polítics of Mato Grosso in subsequent decades, [...].”

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No final do século 19, quando muito gado selvagem ainda estava espalhado pelo Pantanal, essa lógica do homem “branco” já havia sido absorvida pelos guaicurus, entre os quais já reinava a compreensão de que o gado orelhano não dividido – não marcado, portanto – era gado de ninguém, era de todos, era gado bravio, era como bicho.65 O fato de o pioneiro reunir em torno de trezentas a quinhentas cabeças para o seu criatório inicial não significava que na área onde ele instalara sua fazenda não houvesse um número muito superior, tanto que as caçadas eram comuns para a posterior retirada do couro. Os rebanhos dos primeiros que se afazendaram no Pantanal e multiplicaram-se consideravelmente, mesmo sem receber os cuidados regulares. O fazendeiro não tinha recursos para marcar todos os nascidos, e aqueles sem trato manifestavam tendência a se afastar, tornando-se ariscos e repelindo a presença do homem. “E, neste caso, ha um facto que se deu, facto perfeitamente reconhecido: os touros que se tornaram bravios – e são elles os mais promptos e propensos a esta mudança – buscam e aproveitam todas as occasiões para arrebanhar o gado ainda manso. Assim, as manadas de gado bravio vão-se engrossando sempre em detrimento dos criadores.”66 A pecuária tornou-se a principal atividade do Pantanal. O regime das cheias e a distância das regiões mais ricas impediram o desenvolvimento de outras atividades. A posse do gado, que podia ser conduzido para outras regiões, significou que a sobrevivência dependia quase que exclusivamente desse recurso.67 O trabalho em uma fazenda era extremamente rudimentar, a ponto de dizer um produtor que “lá não se

65 66 67

RIVASSEAU, Emílio. A vida dos índios guaicurus. 2. ed. Rio de Janeiro: 1941. RIVASSEAU, Emilio op. cit. p. 67. ESSELIN, Paulo; OLIVEIRA, T. C. M. Op. cit., 2007, p. 114.

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criava gado, mas colhe-se gado”.68 “Aqui é o gado que cria a gente”.69 Todas as tarefas começavam em princípios de setembro, com as primeiras parições, e se estendiam até o fim de janeiro, às vezes até março, conforme fossem uniformes ou tardias.70 Durante esses meses, os vaqueiros saíam a campo, localizavam as manadas e as conduziam para um curral; laçavam rês a rês, derrubavam-nas uma por uma e, no caso das crias, sinalizavam-lhes as orelhas para identificar a propriedade; sistema de marcação esse é ainda largamente utilizado no Pantanal. Pari e passu, fazia-se a marcação em brasa dos animais adultos, o que nada mais era do que a confirmação da posse. Concomitantemente à marcação, os touros eram castrados, enquanto eram separadas as vacas que estivessem em período de lactação.71 De março a agosto, as atividades da fazenda se resumiam ao cultivo de alguma cultura ou simplesmente ao ócio. Como se pode depreender, a intervenção dos fazendeiros e dos peões na pecuária era mínima: apenas a de assegurar a propriedade dos animais, já que a criação se fazia às custas da generosidade da natureza. O fogo era utilizado como uma prática de manejo bastante comum no Pantanal. Ao final da estação da seca (agosto e setembro) queimavam-se indiscriminadamente áreas de vegetação herbácea, arbustiva e arbórea, procurando, assim, eliminar ou conter a expansão de espécies indesejáveis e promover o rebrote das forragens que melhor aproveitavam os bovinos e equinos.

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MACIEL, Jose de Barros. A pecuária nos pantanaes de Mato Grosso: These apresentada ao 3º Congresso de Agricultura e Pecuária. São Paulo: Imprensa Methodista, 1922. p. 18-19. ROSA, João Guimarães. op.cit. 1985. p. 118. MACIEL, Jose de Barros. Op. cit. Idem.

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No Pantanal, no momento em que se encerravam as atividades anuais de marcação, castração, etc., o proprietário costumava, a título de gratificação, oferecer alguns novilhos ou novilhas aos seus empregados, considerando para isso o desempenho de cada um – “as vezes tinha capataz que conseguia até dez novilhas em um ano”.72 Simonsen, que estudou a implantação da pecuária no Brasil, afirmou: “Depois de quatro a cinco annos de serviço começava o vaqueiro a ser pago; de quatro crias cabia-lhe uma; podia assim fundar fazendas por sua conta”.73 “À semelhança do sistema de povoamento que se desenvolveu nas colônias inglesas e francesas, o homem que trabalhava na fazenda de criação durante um certo número de anos (quatro ou cinco) tinha direito a uma participação (uma cria em quatro) no rebanho em formação. Tudo indica que essa atividade era muito atrativa para os colonos sem capital.”74 No caso específico do Pantanal, não foi muito diferente: muitos daqueles que acompanharam os pioneiros sem dispor de recursos para iniciar a atividade por conta própria acabaram por efetuar a acumulação inicial trabalhando em uma fazenda pantaneira. “Era comum termos na fazenda Taboco pequenos criadores, quase que em regime de patriarcado, ou melhor, de comunidade, que iam crescendo, aumentando a sua criação, e depois o próprio patrão legalizava para eles ou os auxiliava na compra de glebas para se tornarem fazendeiros.”75 E ainda: “Quase todos os antigos capatazes dessas fazendas [Pantanal da Nhecolândia] são, hoje, pro-

72 73

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75

RIBEIRO, Renato Alves. Entrevista em 1999. SIMONSEN, Roberto. História econômica do Brasil, 1500-1820. São Paulo: Nacional, 1937, T. I e II. T1. p. 234. FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil 24ª ed., São Paulo: Nacional, 1991. p. 59. RIBEIRO, Renato Alves. Tabaco 150 anos: balaio de recordações. Campo Grande: 1984. p. 33.

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prietários de terras. Os vaqueiros possuem gado, que criam nos campos dos patrões, sem despesa alguma”.76 “Eu ainda alcancei parte dos processos de ocupação do pantanal, meu pai requereu muitas terras para ex funcionários, que são hoje grandes fazendeiros, ele tinha grande prestígio político e levava para Cuiabá lotes de requerimentos para a legalização de terras para aquela gente, pelo fato de ser deputado ele encontrava muitas facilidades, em troca recebia bezerros, tourinhos, vacas velhas, de alguns nunca recebeu nada. Não é por ser meu pai mas era um homem muito bom, um mecena.”77 As terras públicas foram, assim, sendo distribuídas aos amigos, compadres e parentes, justamente aqueles que estavam próximos do poder e que tinham os meios para legalizálas, ao passo que os nativos foram sendo expulsos e mortos ou se tornando peões de fazenda. Os que lançavam mão de grandes quantidades de terra pública, vendendo ou doando a particulares, eram ainda considerados mecenas. Ao lado da atividade criatória, o pioneiro teve de desenvolver a agricultura para garantir a sua subsistência e a de sua família, no mesmo modelo do norte de Mato Grosso. Enquanto lá ela se desenvolveu para atender à atividade mineira, no sul deu suporte para o desenvolvimento da pecuária. Cada latifúndio tinha o seu cultivo próprio de gêneros alimentícios para o sustento daqueles que viviam e trabalhavam no núcleo rural. Praticamente, produzia todo o necessário, não havendo a necessidade de recorrer para além dos limites da propriedade, a não ser para a aquisição de ferro, louça, vinhos e outros produtos, cuja produção interna não era possível. A maioria dos produtos elaborados nas fazendas era fabricada por processos manuais ou com instrumentos rudimentares de baixíssimo rendimento. 76 77

BARROS, Carlos Vandoni. Nhecolandia. MATTO GROSSO. 1934. p. 23. RIBEIRO, Renato Alves. Entrevista, 1999.

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“As moendas de cana, torneadas de jatobá, ou análoga madeira de lei, pelos seus carapinas, completavam-se com a maquinaria simples, em que se enformava a rapadura, o açúcar de barro, ou alambicava a aguardente [...]. As peças metálicas só foram introduzidas quando ia em meio o século.”78 Cultivava-se muita mandioca, que constituía, ao lado da carne, a base da alimentação do sulino e era um produto tão valorizado como é hoje o arroz. Da mandioca, antes da farinha, extraía-se o polvilho para fazer o bolo e o pão de queijo. Cultivava-se também o feijão, já que os solos eram propícios ao desenvolvimento dessa cultura, que tem ainda o conveniente de não ser muito exigente em água e de fácil armazenamento, podendo ser utilizado muito tempo depois de colhido. O milho era cultura obrigatória, pois, além da canjica e da farinha, obtinha-se dele o curau, a pamonha e muitos outros quitutes ainda hoje apreciados pelos sul-mato-grossenses, mas que preferencialmente eram armazenados em paiol para alimentar o porco, que, além da carne, fornecia a banha. Toda grande propriedade cultivava a cana-de-açúcar, da qual se extraía o melado, a rapadura, a aguardente e o açúcar. Os processos eram extremamente rudimentares: a cana colhida passava por uma moenda, geralmente feita de madeira – o jatobá – e tocada por uma junta de bois ou de cavalos, onde era espremida, e o caldo, levado a grandes tachos sobre fogões de lenha, que forneciam o calor necessário para a purificação. Após esse processo, o melado era colocado em um cocho em forma de fenda e, assim que se solidificava, o recipiente era completado com terra, que, com o tempo, absorvia a umidade do melado, um princípio de osmose utilizado pelo caipira naquelas regiões sem muitos recursos. A operação terminava quando se retirava com cuidado a terra que estava seca e em pedaços. Obtinha-se, assim, o açúcar de barro: quanto mais 78

CORRÊA FILHO, Virgilio. Pantanais Mato-grossenses: Devassamento e ocupação. Rio de Janeiro: IBGE-CNG, 1946. p. 68.

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seco, mais alvo e mais limpo. Para o preparo da rapadura encaixava-se o melado em grades desmontáveis de madeira; assim que secava, o produto estava pronto para ser consumido. Cultivavam-se, ainda, arroz, abóbora, moranga. O arroz encontrava muitas dificuldades ambientais para o seu desenvolvimento, sobretudo na planície. Raros eram os fazendeiros que conseguiam colhê-lo. A alimentação básica era mandioca, carne, leite, muita farinha de milho e de mandioca, abóbora, batata-doce, moranga, feijão, açúcar. Sobressaía-se o consumo avultado da carne como elemento preponderante no regime de alimentação,79 servida em pelo menos três refeições: ao raiar do dia – o desjejum, o chamado “quebra-torto” –, no almoço e no jantar. Também contribuía na alimentação do mato-grossense, tanto do norte como do sul, o peixe dos rios e baías. Era comum, igualmente, o cultivo de árvores frutíferas, como a laranja, o limão, a manga, a jabuticaba, o mamão. Dessas frutas se faziam doces e, de algumas delas, licores, que eram servidos o ano todo. Instalou-se no Pantanal sul-mato-grossense a grande propriedade rural voltada basicamente para o criatório bovino e adotou-se o indígena como mão-de-obra principal numa relação de semiescravidão. O vaqueiro originou-se do nativo, do guató, do guaná, dos chamacocos e guaicurus, os primitivos donos da terra; também do negro escravizado. Ele veio para as minas de ouro e, depois, para as plantações de cana no norte de Mato Grosso; acompanhou o desbravador por caminhos vários e, já no sul, recebeu a influência do sangue paraguaio, absorvendo-lhes os costumes e traços fisionômicos, formando um tipo diferente do vaqueiro do norte.80 79 80

CORRÊA FILHO, Virgilio. Op. cit. 1955. PROENÇA, Augusto César. Pantanal, gente, tradição e história. 3. ed. Campo Grande – UFMS, 1997.

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Na verdade, a origem do vaqueiro sul-mato-grossense não ocorreu dentro de um processo idílico campestre de amor e ternura; pelo contrário, pautou-se pela violência e expropriação. O recrutamento da mão-de-obra para a pecuária teve por base o elemento indígena, com consequências dramáticas para este, na medida em que determinou o seu engajamento em uma economia de caráter semiescravista, não obstante a oposição que ele fez ao se ver expropriado de suas terras, seu gado, seus bens e de sua gente. Nas primeiras décadas do século 19, os nativos, sobretudo os terenas e guanás, tradicionais agricultores, eram livres e economicamente autônomos. Em contato com os religiosos que promoviam a catequese, e com os soldados dos fortes instalados na fronteira, transformaram toda a sua tradicional base material incorporando novas práticas de cultivo e trabalho, como também instrumentos mais produtivos, a ponto de se tornarem os responsáveis pela produção de hortifrutigrangeiros de alguns núcleos populacionais do Pantanal sul de Mato Grosso, como Miranda e Corumbá. Com o processo de colonização do Pantanal sul, os pioneiros foram expropriando os indígenas de suas terras e de todo o seu gado e submetendo-os violentamente. Aqueles que não foram mortos internaram-se pelo interior em busca de segurança; os que ficaram, foram submetidos e transformados em força de trabalho. Nesse processo de expropriação, foram surgindo imensos latifúndios que concentravam milhares de cabeças de gado. Por volta de 1860, já havia algumas substanciais propriedades e, à frente delas, os primeiros colonizadores que se tornaram importantes figuras na economia e política de Mato Grosso. Naturalmente, os conflitos foram se sucedendo e, embora a população nativa fosse a maioria, não tinha possibilidade de lutar, em razão da inferioridade bélica e também porque os

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pioneiros contavam com o respaldo legal de autoridades dos fortes e do distante governo provincial. Em muito pouco tempo, os indígenas guanás e terenas, de proprietários de rebanhos bovinos e cavalares, transformaram-se em peões de fazenda. “Os [terenas são muito] procurados pelos fazendeiros, contentavam-se com pequena remuneração, sendo, em geral, por eles explorados. Raramente se encontrava um camarada terena que não devesse os cabelos da cabeça ao fazendeiro – seus serviços não eram pagos pelo que valiam e, nas fazendas efetuadas pelo patrão, eram tristemente roubados. Daí uma escravidão de nova espécie, porque nenhum camarada de conta poderia deixar o patrão antigo sem que o novo se responsabilizasse pela dívida. E se tivesse a ousadia de fugir, correria os maiores riscos de vexame e até de morte, porque nos povoados e vilas, estava a polícia sempre em mãos dos fazendeiros.”81 Via de regra, os trabalhadores eram muito mal remunerados e dependiam inteiramente do patrão para o fornecimento de gêneros como roupas, calçados, aguardente, enfim, aquilo que a propriedade não produzia. Esses artigos eram fornecidos a preços majorados, de forma que sempre havia saldo prendendo o peão ao patrão. A população nativa foi sendo aos poucos expropriada de suas terras e de seu gado e sistematicamente reduzida à condição de servidão. Empobrecida, à medida que ia sendo desapropriada de seus bens, juntava-se em bandos, perambulando pelas fazendas, mendigando por um local onde pudesse se fixar, desenvolver lavouras de subsistência e caçar. No fim do século 19, alguns desses grupos eram vistos nas cabeceiras do rio Taboco, no alto Pantanal, em conflito com fazendeiros: “Esses índios, sempre mansos, com o passar dos tempos foram criando certos problemas, chegando a pro81

VIVEIROS, Esther de. Rondon conta sua vida. Rio de Janeiro: Livraria São Jose, 1958. p. 179-180.

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vocar um caso entre meu avô e Rondon [Gen. Rondon]. Nessas visitas que faziam à fazenda eles ganhavam pedaços de arame que, por não serem de aço naquele tempo, eles laminavam e colocavam na ponta de suas setas, dando às mesmas um maior poder de penetração. Apesar do meu avô pedir-lhes que viessem em casa que ele daria até rolos completos para eles, os índios por comodidade, ingenuidade e não avaliando o prejuízo que causavam, iam tirando o arame das cercas. .../ Às vezes estávamos prendendo boiadas para serem negociadas e, na véspera do dia combinado para o aparte, os índios vinham e tiravam uma a duas quadras de arame das cercas, soltando toda a boiada que havia sido presa em 20 ou 30 dias. .../ Outro prejuízo grande que davam é que eles gostavam de comer ‘nonatos’ (bezerros de barriga, às vésperas de nascer). Eles, muitas vezes, matavam as vacas e só tiravam o bezerro contido no útero.”82 Na sua obra Taboco 150 anos: balaio de recordações, Renato Alves Ribeiro afirma que a fazenda Taboco só começou a ser cercada depois da década de 1920, quando o general Rondon já havia registrado os conflitos entre os nativos e o seu avô, que aconteceram entre 1900 e 1910. Desde a saída dos colonos e jesuítas espanhóis do Pantanal, aos poucos, os nativos foram incorporando a carne bovina à sua dieta. O gado era numeroso e sem proprietário e passou a representar para alguns grupos uma nova caça, mas, à medida que os pioneiros foram chegando, ocupando a terra e se apropriando do rebanho, a situação entre eles foi se deteriorando. Os fazendeiros se queixavam de que os índios causavam grandes prejuízos ao furtar “suas reses” para abaterem e se organizavam para pôr cobro àquela situação. Como as autoridades em geral estavam nas mãos deles, logo se desencadeavam repressões brutais, muitas vezes estimuladas dentro do próprio governo da província de Mato Grosso. 82

RIBEIRO, Renato Alves. op. cit. 1984. p. 77.

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Em um documento do Império, de 1874, Joaquim Barbosa Marques foi autorizado a “arredar os índios de qualquer modo e tomar conta de suas posses e garantir a família”,83 ou seja, os fazendeiros estavam respaldados pelo Império a tomar posse das terras de qualquer maneira, até, se fosse necessário, exterminando o elemento nativo. A situação chegou ao ponto de ver-se, no final do século 19, o general Rondon obrigado a intervir nas relações pouco amistosas entre um produtor da região e os índios ofaiés. “A custa de intermináveis esforços para proteger a segurança pessoal e a vida dos silvícolas, consegui salvar os remanescentes da tribo dos ofaiés, das cabeceiras dos rios Taboco e Negro. Estavam sendo caçados e exterminados por um ‘coronel’, porque matavam, para comer, reses da fazenda. Só a custa de energia, pertinácia e paciência foi possível obter do Governo que reprimisse tais caçadas e mais difícil ainda foi convencer o fazendeiro de que eram essas proezas assassínios execráveis.”84 Os confrontos se estenderam violentamente por todo o século 19, com desfecho favorável aos fazendeiros; de certa forma, já havia uma acomodação entre os proprietários de terra e os nativos. Joaquim Ferreira Murtinho, que esteve em viagem por toda a província de Mato Grosso, deixou relatos importantes a respeito do trabalho do indígena. No princípio dos anos 1860, portanto, antes do início da Guerra do Paraguai (1865-1870), ele esteve na vila de Miranda e foi hóspede do barão de Vila Maria, no engenho de Piraputangas, nas proximidades da cidade de Corumbá. Segundo ele: “Os terena e laianas [estavam] aldeados sob a direcção de frei Marianno de Bagnaia, em uma bella planicie, perto da Villa de Miranda, prestavão já relevantes serviços, visto como não só os homens se davão ao trabalho de camaradas, como ainda cultivavão 83

84

BARBOSA, Emílio. Os Barbosas em Mato Grosso. Campo Grande: Editôra Empresa Correio do Estado Ltda, 1961. p. 6. VIVEIROS, Esther de. Op. cit. p. 225-226.

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roças que abastecião a villa de generos alimenticios”.85 No engenho, os “índios aprendião varios officios e trabalhavão em olarias. Perfeito remeiros e pilotos, empregavão se e prestavão auxílio não só ao commercio, como camaradas das canoas que transportavão generos de Corumbá a Cuybá; como ainda nas fazendas de cultura e criação, onde seus serviços erão apreciados.”86 Pelo relato do viajante, os índios eram os responsáveis por todo o trabalho que se desenvolvia nas cidades e nos seus entornos, além de cultivarem a terra. Toda atividade produtiva estava sobre os ombros dos naturais. O viajante revela que no aldeamento de Albuquerque dos Capuchinhos “notamos a regularidade da educação dada por frei Angelo, que não os poupava do trabalho, mas tratava-os com amor paternal [...] na aldêa havia abundância de víveres plantados pelos índios que se mostravão todos muito satisfeitos [...]. Os velhos ainda seguiam seus costumes selvagens”.87 As mulheres índias também mereceram atenção do viajante: “As índias, entre as quaes se contavão 20 a 24, de 14 a 16 annos, erão na maior parte afilhadas da bondosa e caritativa sra. baroneza de Villa Maria, que lhes tributava extrema affeição, e as protegia muito. Vinhão regularmente ao seu sitio onde passavão dias, e ella as recebia sempre em sua casa, infiltrando-lhes bons princípios, que seguião pela indole naturalmente boa. [...] os indios ouvião missa e resavão todos os dias no oratorio do missionario. .../ Havião escholas de primeiras lettras e musica, onde estudavão com muito aproveitamento. As índias empregavão-se nos arranjos de suas casas e em costuras.”88 85

86 87 88

MOUTINHO, Joaquim Ferreira. Notícia sobre a província de Matto Grosso, seguida d’um roteiro de viagem de sua capital a São Paulo. São Paulo: Typ Henrique Schroeder, 1869. p. 135. Idem, p. 137. Idem, p. 137. Idem, p. 137.

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As jovens índias iam recebendo os “bons” princípios da formação ocidental cristã para se tornarem “prendadas” empregadas domésticas, cozinheiras, enfim, para realizarem todos aqueles serviços que, por uma razão ou por outra, tornavam-se pouco dignos de serem exercidos pelas famílias oligárquicas que começavam a se formar no Pantanal sul. Era muito comum os fazendeiros da região de Mato Grosso retirarem indiazinhas dos seios de suas famílias ainda em tenra idade sob a alegação de oferecer-lhes uma melhor educação. Na verdade, desde os primeiros dias de chegada à casa dos patrões, elas eram colocadas na lida diária, primeiro divertindo os filhos e netos dos coronéis e seus apaniguados, na condição de babás, e, mais tarde, introduzidas nos demais afazeres domésticos, geralmente sem ganho nenhum, merecendo por esses serviços a honrosa condição de participarem do ciclo mais íntimo da família, obterem um casamento arranjado pela condição de protegidas do coronel ou alguns cuidados especiais em sua velhice. “Nas fazendas 80% da peonada era de índios, sendo os serviços da casa exercídos por moças índias que eram criadas pelos brancos. Até hoje em Aquidauana e Miranda é muito comum as índias servirem de cozinheiras, arrumadeiras e babás. Os meus filhos tiveram algumas babás índias. Era tão íntimo o contato com eles que muitos fazendeiros aprendiam a falar a sua lingua. [...] Vovó [criou] uma mestiça, Laura, e para quem desejava coisa melhor. Vovó fez a Laura se casar no Rio de Janeiro com um almofadinha da época [...].”89 Moutinho identifica entre os grupos indígenas que já prestavam serviços em fazendas da região de Albuquerque e Corumbá os quiniquinaus. Faz referência aos guanás, mas, ao contrário de Castelnau, registra que estes estavam em frente ao porto geral de Cuiabá, na margem direita do rio. Nas pro-

89

RIBEIRO, Renato Alves. op. cit p. 35, 73-74.

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ximidades de Miranda destacou os laianas e terenas, todos já vivendo em completa harmonia com nossos costumes.90 A presença do trabalhador paraguaio em Mato Grosso é visualizada somente no final do século 19 e começo do século 20. Quanto ao negro, eram muito poucos. No processo de colonização sul-mato-grossense o principal elemento de trabalho é o indígena. Sendo a colonização é tardia e os pioneiros, completamente descapitalizados, o recurso foi lançar mão do nativo, já que não havia alternativa. Além do mais, o escravo, em razão do pleno desenvolvimento da lavoura cafeeira no sudeste na terceira década do século XIX, passou a ser recrutado com mais intensidade para as práticas laborais naquela lavoura; assim, ficou muito cara, praticamente impraticável, a sua compra por parte dos produtores sul-mato-grossenses que começavam a se estabelecer nessas plagas longínquas. No começo da década de 1850, tal era o volume do rebanho bovino que foram se estreitando os laços comerciais entre os produtores do Pantanal sul e os tropeiros que vinham de Minas Gerais. Com o início do processo de urbanização que o Brasil viveu a partir do início do século 19, com a generalização do cultivo do café no Sudeste brasileiro, os tradicionais fornecedores do gado bovino, como Goiás, São Paulo e Minas Gerais, já não conseguiam atender à demanda interna, sendo necessário recorrer ao rebanho sul-mato-grossense. Em 1856 a assinatura do Tratado de Amizade, Comércio e Navegação entre o Brasil e o Paraguai, que abriu o rio homônimo à livre navegação, constituiu, entre outros fatores, um estímulo para os produtores ampliarem as exportações de couro e de carne seca, o que possibilitou o aumento da renda interna. Com isso, algumas fazendas prosperaram e a província vagarosamente foi se integrando à economia nacional. Esse pequeno progresso foi interrompido com o início da guerra com o Paraguai, em 1865. Durante quase cinco anos, 90

MOUTINHO, Joaquim Ferreira. Op. cit.

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boa parte da província esteve ocupada por tropas inimigas, sendo território devastado e saqueado. Uma das razões que levou Solano Lopes a determinar a invasão de parte da província de Mato Grosso, sobretudo da região do Pantanal sul, foi a existência dos estoques de gado bovino e equino que povoavam toda a planície. O rebanho local abasteceu as tropas invasoras, a população assuncenha e também os prisioneiros de guerra. Há entre os historiadores e memorialistas mato-grossenses certo consenso de que os paraguaios teriam exterminado o rebanho bovino pantaneiro. No entanto, transportada da Bolívia em 1857, a “peste das cadeiras” ou trypanosomiase equina, doença fatal que atingiu a cavalhada, acabou por imobilizar os guaranis, não permitindo que reunissem condições para realizar o manejo do gado. Embora os soldados paraguaios invasores tenham capturado muito gado bovino e equino para manter seus exércitos e enviá-los para Assunção, a maior parte desse gado permaneceu no território sul-mato-grossense. “Aquela enfermidade começou a grassar entre os cavallos, com todos os caracteres de epidêmica, como assinalado, em 1857. Hoje tornou – se endêmica. A zona, em que actua esse mal, estende-se do sul do distrito de Miranda até Cuyaba, exactamente em todos os pontos, onde se dão as inundações periódicas e o alagamento dos campos.”91 Tal fator limitante contribuiu para que o gado fosse se alongando, juntando-se ao rebanho selvagem e colocando-se fora do alcance do homem. Documentos e relatos dos contemporâneos, testemunhas oculares dos acontecimentos, colhidos em crônicas, relatórios e cartas – dentre eles, destacando-se Visconde Taunay, Joaquim Ferreira Moutinho e os presidentes de província –, não deixaram dúvida: havia um rebanho 91

TAUNAY, Visconde de Campanha de Matto Grosso. scenas de viagem. São Paulo: Livraria do Globo, 1923. p. 70.

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significativo que nem as tropas do Império brasileiro nem as da República do Paraguai conseguiam manejar, em razão da peste equina. Essa doença, apesar dos seus malefícios do ponto de vista econômico, acabou por contribuir decisivamente para a preservação do rebanho bovino do Pantanal sul. O fenômeno, ocorrido em meados do século 17 com o gado das reduções jesuíticas, repetia-se em pleno século 19. Desta vez, a guerra e a falta de equinos para o manejo do gado contribuíram para a sua dispersão. Por isso, quando a guerra terminou, havia grandes estoques por toda a planície. Preservado, o bovino alçado exerceu forte atração sobre os soldados do Exército brasileiro, que, desmobilizados, resolveram permanecer em território sul-mato-grossense. Além disso, as vastas áreas cobertas de pastagem nativas e devolutas, o fato de a pecuária não exigir grande quantidade de braços para o seu desenvolvimento, ao contrário da agricultura, bem como a possibilidade de deslocamento do rebanho para os centros consumidores com poucos gastos, tornaram-se estímulos para a fixação no Pantanal. Ao lado das iniciativas particulares, temeroso de novas agressões na distante província, o Império decidiu adotar providências que visavam à integridade territorial e à unidade do país. A reabertura do rio Paraguai à navegação e as medidas de apoio ao desenvolvimento comercial, como a isenção de tributos aos produtos de importação e exportação comercializados nos principais portos de Mato Grosso, abriram perspectivas para o desenvolvimento local, como também possibilitaram a entrada de capitais estrangeiros, decisivos para o crescimento econômico da região, beneficiando sobretudo os comerciantes. Embora houvesse relativo desenvolvimento econômico e populacional, a província continuou enfrentando muitas dificuldades, sobretudo no campo. A “peste das cadeiras” continuou por todo o século 19, dizimando rebanhos A pecuária bovina e o processo de ocupação do Pantanal Sul-Mato-Grossense

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equinos inteiros, o que dificultava a venda do gado para as regiões onde se processava a engorda. O contrabando de gado tornou-se endêmico, sendo praticado de forma sistemática para a Bolívia e, principalmente, para o Paraguai. O governo local não dispunha de recursos humanos e financeiros para coibir prática tão danosa ao Erário público. Mesmo com todas essas dificuldades, o rebanho crescia muito acima da capacidade do consumo da população, porque não se conseguia vender todo o excedente produzido nas fazendas. Em 1885, o rebanho mato-grossense era estimado em oitocentas mil cabeças. Desde a década de 1870, Mato Grosso detinha grandes e baratos excedentes bovinos, subutilizados, e uma posição estratégica em relação a Minas Gerais, centro onde se processava a engorda. Por outro lado, havia um mercado de charque em franca expansão para os produtores brasileiros. Esse período coincidiu com a substituição do criatório bovino pelo do ovino na Argentina e Uruguai, países que optaram pela exportação de lã para o mercado europeu, muito mais rendosa que a criação bovina. Logo, alguns empresários argentinos e uruguaios, ligados à produção de charque e sua exportação, sobretudo ao Brasil, resolveram se instalar em Mato Grosso. Em 1873, foi instalada a primeira charqueada no Pantanal norte, ao sul de Cáceres, com abate de cinco mil cabeças anuais. Essa iniciativa estimulou a instalação de algumas outras de menor porte na região, como a do Pindaibal, Triunfo, São João, e na região do Pantanal sul, onde, na primeira década do século 20, três grandes indústrias foram instaladas. Haviam-se passado menos de quarenta anos do fim da guerra com o Paraguai. Nesse período, apesar do abate indiscriminado durante parte do período de hostilidade pelas tropas invasoras; do intenso contrabando interno e externo no pós-guerra; do abate para o consumo local e para a produção de carne seca para a exportação; da subutilização do 334

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rebanho, criou-se um excedente expressivo que garantiu um fornecimento seguro de matéria-prima para o funcionamento das charqueadas, com oferta tão significativa que o preço da rês atingiu $ 40,00 no Pantanal sul, ao passo que no Sudeste era de $ 100,00. Tal fato demonstra claramente que no fim da guerra havia ainda grandes estoques de bovinos na planície e que no período do pós-guerra houve intenso crescimento do rebanho, sendo essa a principal justificativa para a instalação das empresas de industrialização da carne na região. Outros fatores também contribuíram para a instalação dessas charqueadas, tais como a entrada de grandes frigoríficos no Uruguai e Argentina com emprego de métodos mais eficientes no aproveitamento da matéria-prima, permitindo a oferta de melhores preços aos pecuaristas e, assim, dificultando a sobrevivência das charqueadas locais. Não conseguindo concorrer com essas modernas empresas, alguns empresários platinos transferiram suas atividades para o Pantanal sul. Outro estímulo para a vinda de capitais platinos para o Pantanal sul e a instalação de indústrias para a exploração da carne foi a cobrança de impostos nas aduanas brasileiras sobre a importação do charque oriundo da Argentina e Uruguai. A indústria de charque do Rio Grande do Sul enfrentou forte concorrência uruguaia e argentina durante longo período. Como ambas haviam alcançado uma base técnica mais poderosa, com produtividade superior à dos seus concorrentes, o governo imperial resolveu adotar tarifas protecionistas para dar competitividade à indústria rio-grandense. Para fugir a essas restrições, uruguaios e argentinos se instalaram em território nacional exclusivamente para abastecer os mercados do Rio de Janeiro e Nordeste, onde o consumo era significativo. Por outro lado, a reabertura da navegação do rio

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Paraguai desde 1870 garantia com eficiência o escoamento da produção a preços relativamente baixos. Esse conjunto harmonioso de fatores contribuiu para acelerar o processo de desenvolvimento da pecuária pantaneira, que atingiu o seu ápice na primeira década do século 20. O mercado nacional da carne vinha crescendo vertiginosamente. À medida que as potências industrializadas se preparavam para a Primeira Guerra Mundial, o encarecimento dos produtos de importação constituía um estímulo à industrialização interna, desencadeando intenso processo de urbanização no país com o surgimento de grandes cidades de características metropolitanas, como São Paulo e Rio de Janeiro. Em 1889, havia em todo o país novecentas fábricas com 54.200 operários, tendo em 1914 evoluído para 7.430 fábricas e 275.500 operários.92 Como as tradicionais regiões produtoras de gado bovino não conseguiam atender a esse mercado, os invernistas passaram a buscar matéria-prima com maior regularidade em Mato Grosso, a ponto de em 1909 o Estado exportar 59.401 cabeças em pé para as invernadas paulistas e mineiras, 718.920 quilos de charque e 39.203 quilos de caldo de carne.93 A efetiva incorporação de Mato Grosso ao mercado nacional e as rendas auferidas com a comercialização plena tiveram impacto positivo sobre os produtores rurais locais. Com mais recursos, estes últimos passaram a modernizar a atividade com a incorporação de novas técnicas de manejo, de experiências de regiões mais desenvolvidas do país, e introduziram reprodutores selecionados, iniciando a melhoria do padrão racial do rebanho e atendendo também às exigências do novo mercado consumidor. Aumentou-se, assim, a produtividade 92

93

CARONE, Edgard. A República Velha, instituições e classes sociais: São Paulo, 1970. AYALA, S. Cardoso e SIMON, F. Album graphico do Estado de Matto Grosso (EEUU do Brazil) Corumbá, Hamburgo: 1914. p. 120-121.

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pecuária; as fazendas foram sendo cercadas e subdivididas em retiros, simplificando e melhorando a sua infraestrutura. No começo do século 20, as bases da pecuária pantaneira estavam solidamente estabelecidas; ao lado da erva-mate, já constituíam a principal atividade econômica do Estado, onde se iniciava a especialização na produção do gado de corte, na sua fase de cria e recria. A venda do gado em pé para invernistas do Sudeste se justificava pela distância do Pantanal dos grandes centros de industrialização da carne. A industrialização interna através das charqueadas, embora significativa, não tinha capacidade para absorver toda a produção pantaneira, que só se completava com a venda do gado em pé para outros estados. No conjunto da produção pecuária sobressaiu-se a indústria de transformação da carne, que passou a ocupar lugar destacado na economia regional, em razão do caráter capitalista, com o emprego de máquinas modernas e trabalhadores especializados, estes geralmente oriundos do Uruguai, Paraguai e do Rio Grande do Sul. O mesmo não aconteceu no campo, onde a pecuária manteve as práticas pré-capitalistas de produção, aliás muito condizentes com a estrutura latifundiária da região. Assim, as relações sociais de trabalho permaneceram extremamente atrasadas, com o emprego da mão-de-obra familiar muitas vezes não remunerada, mantendo a massa humana que tirava a sua subsistência dali no mais lamentável estado de pobreza e ignorância, situação que vem se modificando vagarosamente em razão das exigências do mercado O processo de colonização do Pantanal desde o princípio do século 16 esteve estreitamente ligado à pecuária. As limitações impostas pelo meio ambiente foram superadas pelo bovino, que garantiu a ocupação econômica da planície e contribuiu decisivamente para a incorporação da região ao mercado nacional.

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O substancial crescimento do rebanho bovino e o desenvolvimento das charqueadas no Pantanal sul-mato-grossense A presença de grandes estoques de bovinos baratos e subutilizados foi o grande estímulo para a instalação das indústrias de charque por todo o Pantanal sul. Outros fatores contribuíram para atrair os investimentos estrangeiros. Orlando Valverde destaca a qualidade do bovino pantaneiro: “No Pantanal imperou durante todo esse período o sistema do livre pastoreio. Embora não houvesse uma seleção dirigida, as condições naturais foram forjando uma variedade de gado que se tornou conhecida pelo nome de ‘boi pantaneiro’ e, fora do Estado pelo de cuiabano. Eram animais de pequeno porte, magros e musculosos, bons para fazer charque.”94 Contribuiu ainda para a instalação das charqueadas a facilidade para o escoamento da produção pelo rio Paraguai, principal via de comunicação de Mato Grosso com o Brasil e que passava através do rio da Prata nos vizinhos Uruguai e Argentina. Fator não menos importante foi o baixo preço do gado bovino. Em 1908, ainda era possível comprar uma vaca por 15$000 e um novilho por 30$000. No entanto, em 1910, quando as charqueadas estavam em pleno funcionamento, os valores saltaram, respectivamente, para 26$000 e 45$000.95 Ainda assim, o preço era muito baixo, pois no mesmo período em São Paulo e no Rio de Janeiro pagavam-se 100$000 por um novilho. Esse conjunto de fatores, aliado ao baixo custo da mão-de-obra, garantiu alta rentabilidade aos negócios. Aproveitando-se de todas essas condições, os capitalistas platinos passaram a investir no Pantanal. Em 1907, foi fundada a Charqueada Miranda, em Pedra Branca, próximo 94 95

VALVERDE, Orlando. Op. cit., p. 115. AYALA, S. Cardoso e SIMON, F. op. cit. 129.

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da Vila de Miranda, de propriedade da firma montevideana Deambrósio, Legrand & Cia. Em 1909, começou a funcionar a Charqueada do Barranco Branco no município de Porto Murtinho, pertencente à Empresa Extrativa e Pastoril do Brasil S.A., com sede em Montevidéu. Ainda em 1909, foi instalado também em Porto Murtinho o Saladeiro Tereré, de propriedade de Moali & Grosso Ledesma, igualmente de Montevidéu. Esses três estabelecimentos tinham capacidade para abater de cinquenta e sessenta mil reses por safra.96 Até o princípio dos anos 1920, a maioria das indústrias de charque que se instalaram em Mato Grosso o fez no Pantanal sul, às margens do rio Paraguai ou de seus afluentes. A escolha desses locais se explica pelos estoques de bovinos que existiam na região, uma vez que as charqueadas têm a necessidade de se instalar em locais onde há uma oferta regular de matéria-prima; por outro lado, o rio Paraguai se constituía no principal escoadouro para essa produção. O mercado favorável à industrialização da carne estimulou a instalação de um grande número de saladeiros;97 havia 22 desses estabelecimentos no estado no início de 1920. (Tab. 1).

96 97

Idem. 131. MARQUES, A. Mato Grosso: seus recursos naturais, seu futuro econômico. Rio de Janeiro: Papelaria Americana, 1923. p. 162-164.

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Tabela 1 – Estabelecimento No Rio Paraguai Saladero Descalvado Saladero Bagoary Saladero Corumbá Saladero Rebojo Saladero Barranco Branco Saladero Matto Grosso No Rio São Lourenço Saladero Alegre No Rio Cuiabá Saladero São João Saladero Cuiaba

Município São Luiz de Cáceres Corumbá Corumbá Corumbá Porto Murtinho Porto Murtinho Coxim Poconé Cuiabá

Estabelecimento Município À margem da estrada de ferro Noroeste do Brasil Saladero Pedra Branca Miranda SaladeroAquidauana Aquidauana Saladero Campo Grande Campo Grande Xarqueada Eliseu Cavalcanti Campo Grande Xarqueada Salustiano de Lima Campo Grande Xarqueada Antônio Ignácio da Silva Campo Grande Saladero Rio Pardo Campo Grande Saladero Esperança Campo Grande Saladero Serrinhá Três Lagoas Xarqueada Matto Grosso Três Lagoas Xarqueada Santa Luzia Três Lagoas Xarqueada Villa Velha Três Lagoas Xarqueada Tombo Três Lagoas Fonte: MARQUES, A. Mato Grosso: seus recursos naturais, seu futuro econômico. Rio de Janeiro: Papelaria Americana, 1923.

A Charqueada Pedra Branca, em Miranda, embora à margem da ferrovia Noroeste do Brasil, quando inaugurada, muito antes do início do funcionamento da Cia. Ferroviária, possuía lanchas e chatas portadonas para conduzir os produ340

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tos de sua fábrica a Corumbá, onde era efetuado o embarque para Montevidéu. 98 Dos saladeiros de Mato Grosso, oito estavam instalados no Pantanal sul, justamente os de maior importância, “o Saladeiro de Miranda e o Tereré de Porto Murtinho”,99 ou seja, os que reuniam maior capacidade de abate e que foram estrategicamente estabelecidos, onde havia uma oferta segura de bovinos. A instalação das charqueadas permitiu o aproveitamento de toda a produção excedente e, paralelamente ao desenvolvimento delas, intensificaram-se as vendas de bois magros para os estados de Minas e de São Paulo. Relato de importante fazendeiro da Nhecolândia deixa clara a situação que viveram os produtores antes da instalação dos saladeiros: “Vai melhorando o preço do gado, já se podendo vender bois a 40$000, daí a melhora, também nas finanças dos criadores, que em outros tempos, quando a produção era superior ao consumo foi excessivamente precária.”100 Com a instalação de novos saladeiros, a produção do charque cresceu substancialmente, enquanto o caldo e o extrato de carne apresentaram grande variação.

98 99 100

AYALA; SIMON, 1914, p. 293. Idem, p. 293. BARROS, José de. Lembranças. Brasília: Gráfica do Senado Federal, 1987. p. 59.

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Tabela 2 – Produto Caldo e extrato de Carne Charque Caldo e extrato de carne Charque Caldo e extrato de carne Charque Caldo e extrato de carne Charque Caldo e extrato de carne Charque Caldo e extrato de carne Charque Caldo e extrato de carne Charque Caldo e extrato de carne Caldo e extrato de carne

Ano 1902 1905 1903 1906 1904 1907 1905 1908 1906 1909 1908 1910 1909 1911 1910 1911

Quantidade 198.188 133.950 326.250 279.863 208.907 392.419 63.439 452.478 47.072 718.920 49.750 758.739 39.203 1.102.841 28.931 10.529

Valor 777:662$000 80:370$000 339:448$000 167:918$000 314:982$000 235:451$000 83:205$000 271:487$000 71:041$000 431:352$000 121:828$000 455:243$000 119:403$000 661:705$000 70:409$000 36:752$000

Fonte: AYALA; SIMON, op. cit., p. 120-121).

No período de 1914 a 1918, que coincide com a Primeira Guerra Mundial, houve expressivo aumento da produção do charque, como também da venda do gado em pé e do couro.

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Tabela 3 – Ano

Quantidade (Kg)

1914

1.733.973

Charque

1.560:575$700

1915

2.703.267

Charque

2.703:267$000

1916

3.755.310

Charque

3.755:310$000

1917

4.052.811

Charque

4.863:373$000

1918

4.144.736

Charque

4.973:683$200

1914

810.586

Couro Secco

1.008:984$400

1915

630.394

Couro Secco

881:704$450

1916

1.026.327

Couro Secco

1.197:383$540

1917

1.053.290

Couro Secco

1.470:264$860

1918

887.068

Couro Secco

1.257:257$350

1914

29.091 nº

Couro Salgado

546:453$200

1915

40.033 nº

Couro Salgado

765:356$400

1916

67.865 nº

Couro Salgado

1.425:666$333

1917

67.599 nº

Couro Salgado

1.621:242$870

1918

75.594 nº

Couro Salgado

1.814:256$000

1914

51.469

Numero de reses exportadas

2.573:450$000

1915

54.798

Numero de reses exportadas

2.739:900$000

1916

51.034

Numero de reses exportadas

4.082:720$000

1917

66.689

Numero de reses exportadas

6.668:900$000

1918

62.545

Numero de reses exportadas

7.505:400$000

Produto

Valor

Fonte: CORRÊA FILHO. A Proposito do boi pantaneiro. Monographias cuiabanas, Rio de Janeiro: Pongetti, 1926. p.

Fora o consumo interno, é possível aferir que em torno de 130 mil cabeças de gado bovino passaram a ser comercializadas pelos produtores e industriais de Mato Grosso na primeira década do século 20; além do que o contrabando continuou expressivo, tanto para o Paraguai e Bolívia como para São Paulo e Minas Gerais. A pecuária bovina e o processo de ocupação do Pantanal Sul-Mato-Grossense

343

A melhora do preço do gado bovino e a absorção do excedente produzido no interior das fazendas pelo mercado aumentaram os rendimentos dos produtores rurais, os quais estreitaram relações com seus pares, sobretudo de Minas Gerais, e começaram a incorporar novas técnicas ao processo de produção; cresceu a especialização da própria pecuária, com o contínuo aumento da produção. Com relação ao manejo, muito pouco mudou, mas a grande reavaliação foi o melhoramento genético do rebanho na busca do aumento do desfrute e da produtividade. Desde o último quartel do século 19, os produtores de Uberaba passaram a importar da Índia o gado zebu, cuja característica era a rusticidade. Os animais se adaptavam muito bem ao clima tropical, podiam ser criados extensivamente, não dependiam de muitos cuidados e se revelaram extremamente precoces, fortes para o trabalho do campo e de rápida reprodução. “Onde os animais das chamadas ‘raças finas’ se extinguiram ele prosperava”.101 Uma raça bovina como a zebuína se encaixou perfeitamente nas necessidades dos produtores de Mato Grosso, já que nada podia ser melhor para uma região em que as propriedades estavam, em sua maioria, “mergulhadas num regime primitivo de exploração das riquezas e sem chance de rápida locomoção, era importante que os bovinos fossem rústicos, antes de tudo lucrativo”.102 Lentamente, o gado azebuado foi ganhando a planície pantaneira e a preferência dos produtores, de modo que em cinquenta anos, ou seja, no começo da década de 1960, os primitivos rebanhos coloniais desapareceram completamente. Um inimigo contumaz do zebu assim se referiu à sua proliferação em Mato Grosso: “Desgraçadamente, aquela belíssima região de Mato Grosso, como, aliás, todo o sertão, foi invadido pelo Zebu, esse fantasma oriental, que aí se introduziu, des101 102

VALVERDE, Orlando. Op. cit., p. 116. SANTOS, Rinaldo. O zebu. Uberaba: Agropecuaria Tropical Ltda, 1998. p. 89.

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truindo a capacidade do nosso gado nacional, muito suscetível de melhorar-se com um rápido cruzamento de reprodutores finos já conhecidos e experimentados.”103 A crítica era para os métodos utilizados pelos vendedores-boiadeiros de Minas, que trocavam lotes de reprodutores indianos por novilhos de corte. Diz o próprio Cotrim que, “não raramente, pegavam espertamente, 100 novilhos de corte por um único garrote zebu”.104 Ao lado da melhoria do padrão racial, o arame farpado começou a aparecer nas propriedades do Pantanal como condição essencial para o azebuamento do rebanho. As fazendas foram sendo cercadas, e as pastagens, divididas, propiciando a seleção dos animais. Com isso, o rebanho foi sendo direcionado e preparado para a produção de carne. “O rebanho regional era conhecido na época por sua inferior qualidade e, exatamente por dispor de exígua quantidade de carne, só poderia ter aproveitamento industrial lucrativo nos saladeiros e charqueadas”105 Por isso, foi aos poucos sendo substituído pelo gado graúdo de forma arredondada, muito andejo e com visível acúmulo de carne no posterior. Embora as técnicas de pastoreio tenham permanecido extensivas no Pantanal, as práticas primitivas de manejo pecuário foram sendo substituídas. O vaqueiro que fazia o rodeio, jogando o laço, foi desaparecendo. O trabalho do gado continuou sendo feito entre dezembro e fevereiro. O gado era recolhido nas proximidades da sede da fazenda, onde se realizava a marcação a ferro das crias novas, no quarto posterior direito, a marcação na orelha, por meio de um corte, e a castração dos garrotes. Em vez de se fazerem violentamente essas operações, como antigamente, subjugan103 104 105

COTRIM apud: SANTOS, Rinaldo. Op. cit. p. 565. Idem. p. 565. ALVES, Gilberto Luis. Mato Grosso e a história: 1870 – 1929 ________ ensaio sobre a transição do domínio da casa comercial para a hegemonia do capital financeiro In: Boletim Paulista de Geografia. São Paulo: 2º sem. 1984. Nº 61.

A pecuária bovina e o processo de ocupação do Pantanal Sul-Mato-Grossense

345

do e derrubando a rês, ela era conduzida ao brete, onde ficava imobilizada e não sofria as torturas costumeiras. Em julho, os bezerros acima de oito meses de idade eram apartados das respectivas mães. Passado o auge da estação seca, fazia-se a queima do pasto, prática ainda tradicional no pantanal sulmato-grossense. Procuravam os fazendeiros, ao lançar mão desse recurso, eliminar a macega, o capim-carona, fazendo renascer tenro pasto junto com outros pastos naturais, de modo a servir de alimentação do gado.106 O período que se estendeu de 1870 a 1910 foi marcado pela lenta integração do Pantanal sul de Mato Grosso ao mercado nacional, quando foram sendo construídas as bases para o desenvolvimento da pecuária de corte. Como assinalado, esse foi um período que coincidiu com a substituição da criação do bovino pela ovelha na Argentina e Uruguai, com o consequente deslocamento de capitais desses países para a exploração dos imensos rebanhos que estavam subutilizados na planície pantaneira. Pouco mais tarde, quando grandes frigoríficos ingleses se instalaram naqueles dois países para a exportação da carne congelada ou em conserva para o mercado europeu, ambos deixaram de fabricar o charque, que, em parte, era exportado para o Brasil, cujo mercado foi então suprido exclusivamente pela indústria nacional. Isso permitiu novo aporte de investimentos no Pantanal sul de Mato Grosso, o que acelerou o processo de transformação de toda a região. Os produtores passaram a vender mais e melhor e, consequentemente, as fazendas começaram a ser melhoradas, com benfeitorias sendo construídas, cercas separando as propriedades e permitindo melhor seleção dos animais, o que abriu caminho para a estruturação de um dos mais importantes plantéis de gado bovino do mundo.

106

VALVERDE, Orlando. Op. cit.

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Paulo M. Esselin

Sobre o Piauí

Origens e espaços de produção das fazendas pastoris do Piauí1 Solimar Oliveira Lima* No século 17, o Novo Mundo era já um velho conhecido da Europa. A passagem para os Quinhentos havia levado consigo as imprecisões de terras e incertezas das conquistas. Ao longo do século 16, na ocupação das novas terras, o fausto produzido e idealizado atraiu interesses de Coroas e súditos, que, acreditando na opulência, lançaram-se com furor ensandecido na busca de ouro e outras riquezas. Em pouco tempo, o desbravamento a ferro e fogo revelou-se meio seguro de consolidar posses. Nada resistiu ao ímpeto dos colonizadores, nem terra nem gente. No caminho das riquezas, o Brasil dos portugueses era rota e destino. Naus abarrotadas de mercadorias singravam continuamente o Atlântico, tornando mais próximo o litoral do Brasil das costas da África e das ricas casas comerciais europeias. O oceano também insistia em desembarcar em terra firme do Nordeste lusitanos desejosos de fortunas. Contudo, no litoral nordestino, ao findar o século 16, estava estabelecida em grandes domínios a produção de açúcar, com plantações de cana e *

1

Doutor em História/PUCRS, Professor do Departamento de Ciências Econômicas e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Piauí Este texto resulta da pesquisa em andamento “A produção pastoril no Piauí, no Mato Grosso do Sul e no Rio Grande do Sul, de 1780 a 1930: um estudo comparado”, coordenada pelo Prof. Dr. Mario Maestri/UPF e financiada pelo CNPq. No Piauí a pesquisa conta ainda com o apoio da FAPEPI.

Origens e espaços de produção das fazendas pastoris do Piauí

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engenhos. Estima-se que, à época, cerca de 120 engenhos produzissem em torno de dois milhões de arrobas de açúcar e que o valor total exportado tenha alcançado 2,5 milhões de libras A montagem desta estrutura produtiva certamente requeria muitos cabedais. Um engenho, em rigor, contemplava os espaços voltados ao plantio da cana e de produção de açúcar e requeria um investimento médio de 15 mil libras.2 O espaço destinado à produção, composto por equipamentos específicos, dependia do desenvolvimento tecnológico e de trabalhadores especializados trazidos da Europa. O plantio, além de requerer grandes extensões de terras, exigia uma inversão em trabalhadores escravizados que consumia cerca de um quarto do capital fixo da empresa. Os elevados custos de operação da iniciativa açucareira fez surgir uma especialização entre os produtores. Assim, nos domínios mais ricos, dos “senhores de engenho”, podiam-se encontrar todos os processos produtivos, ao passo que as propriedades menos afortunadas, dos “senhores lavradores”, dedicavam-se apenas ao plantio da cana.3 É crível que no exigente mercado colonial de mercadorias e prestígios as relações entre estes “senhores” não fossem tão harmônicas. No que se refere à relação comercial, instalava-se uma dependência que acarretava aos menos ricos sérias desvantagens. O reduzido mercado de comparadores impunha quase exclusividade nas transações; além disso, em face do exclusivo metropolitano, o preço da matéria-prima era rigidamente controlado pelos “senhores produtores” como forma de redução de custos. É crível também que, especialmente em épocas menos favoráveis ao açúcar brasileiro no mercado internacional, as respostas negativas à economia colonial re2

3

FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Editora Nacional, 1976, p. 43. ANDRADE, Manuel Correia de. A terra e o homem no Nordeste. São Paulo: Brasiliense, 1973, p. 72. CASTRO, Antônio Barros de. 7 ensaios sobre a economia brasileira. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1980, p. 15.

350

Solimar Oliveira Lima

caíssem sobremaneira sobre os “senhores lavradores”. Nesse contexto de hierarquia senhorial, podemos inferir que a busca por novas inversões seria uma estratégia para a garantia da manutenção e aumento de riquezas e poder. Assim, senhores descontentes com a relativa exclusão de prestígio buscaram a diversificação produtiva tomando como referência os rumos da acumulação potencializada pela produção de açúcar. A expansão da própria atividade açucareira demandava o fortalecimento de uma infraestrutura necessária ao seu desenvolvimento, sendo o fato percebido por essa fração proprietária que via na sua consecução a oportunidade de acesso a vastos domínios para criatório. Além disso, o uso das novas posses com atividade produtiva complementar ao interesse da produção açucareira renderia lucratividade a baixos custos e incorporação de reduzidas somas. A especialização da produção no litoral nordestino fazia da terra um recurso exclusivo da empresa agrícola açucareira. A rígida estrutura social, a elevada concentração de renda e o monopólio lusitano não deixavam margens para diversificação produtiva no interior do espaço cativo do açúcar. A saída, portanto, seria o distanciamento do cheiro da maresia. Os caminhos para o interior do Nordeste exigiam, contudo, mais que desejos de posses e poder. Exigiam dos entrantes reconhecimento social e recursos suficientes para disporem de estrutura de enfretamento a nativos que resistiam às expedições. As contínuas guerras dizimaram populações nativas e afastaram homens pobres da propriedade de terras. Os “desbravadores” dos sertões nordestinos foram homens de posses a serviço de interesses próprios e da Coroa lusitana. Nos sertões, a Casa da Torre foi referência no processo de devassamento e conquista. O “feudo” teve como fundador Garcia D´Ávila, que chegou à Bahia em 1549, acompanhando o primeiro governador geral, Tomé de Sousa. Iniciou-se no país como feitor e almoxarife da cidade do Salvador e da AlfânOrigens e espaços de produção das fazendas pastoris do Piauí

351

dega, sendo posteriormente recompensado pelos serviços na capital com sesmarias, tornando-se o “primeiro Bandeirante do Norte”. Após seu falecimento em 1609, seus descendentes dedicaram-se, ainda mais, às entradas pelos sertões do Nordeste e ao extermínio de nativos junto à bacia do rio São Francisco, em busca de terras e de braços.4 Em expedição de 1676, a Casa da Torre comandada pelo neto do fundador, Francisco Dias D´Ávila, alcançou o rio Gurguéia em perseguição aos gueguês5. Desse confronto entre nativos e ocupadores resultariam o devassamento e a conquista do Piauí. Desse processo também resultariam doações de terras à Casa no Piauí, iniciando-se o chamado ciclo dos criadores de gado. Segundo o historiador Odilon Nunes, em outubro, após quatro meses da “carnificina dos pobres indigenas”, o governador de Pernambuco, dom Pedro de Almeida, “concede as primeiras sesmarias em território piauiense a Domingos Afonso sertão, Julião Afonso Serra, Francisco Dias D’Ávila e Bernardo Pereira Gago, de dez léguas de terra em quadro a cada um, nas margens do Gurguéia”.6 Em 1681, a Casa da Torre e seus associados ainda foi agraciada com novas sesmarias nas margens dos rios Parnaíba, Paraim e Gurguéia; e em 1684 e 1686, outras datas foram concedidas no extremo sul do atual Piauí. Ao final do século 17, o atual solo piauiense era praticamente partilhado entre a Casa da Torre e seus as4

5

6

Sobre a Casa da Torre ver, por exemplo, CALMON, Pedro. A história da casa da torre: uma dinastia de pioneiros. Salvador: Editora Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1983; ALMENDRA, General Jacob Manoel Gayoso e. O feudo da casa da torre no Piauí: povoamento – luta pela propriedade. Teresina: centro de Estudos piauienses, 1953. BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O feudo: a casa da Torre de Garcia D’Ávila – da conquista dos sertões a independência do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. Ver, por exemplo, CHAVES, Joaquim. O índio no solo piauiense. Teresina: Centro de Estudos Piauienses, 1953; MACHADO, Paulo Henrique Couto. As trilhas da morte: extermínio das nações indígenas na região da bacia hidrográfica parnaíbana piauiense. Teresina: Corisco, 2002; CARVALHO, João Renôr F. de. Resistência indígena no Piauí colonial. Teresina: EDUFPI, 2008. NUNES, Odilon. Pesquisas para a história do Piauí. Teresina: Imprensa Oficial, 1966, p. 72

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Solimar Oliveira Lima

sociados e ocupado com fazendas de gado administradas por prepostos.7 Vinculado à Casa da Torre, encontrava-se Domingos Afonso Mafrense que recebera, em 1674, a patente de capitão de infantaria para acompanhar os Ávila em expedição contra os guegues no São Francisco. Domingos era natural de São Domingos de Fanga da Fé, termo de Torres Vedras, do arcebispado de Lisboa, e antes das incursões sertanejas vivia de “uma fortuna humilde” na Bahia. Contudo, “possuía já uma fazenda de gados, chamada Sobrado, da outra parte do rio S. Francisco, distrito de Pernambuco, na estrada da travessia, que vai para o Piauí”.8 As incursões de Domingos Afonso pelo atual Piauí renderam-lhe, além da alcunha Sertão, trinta fazendas. Uma delas tornou-se vila da Mocha e primeira capital com o nome de Oeiras. Em junho de 1711, o sertanista faleceu em Salvador, Bahia, deixando suas posses para os padres inacianos. Ao patrimônio herdado, foram acrescidas outras fazendas, totalizando 39 unidades produtivas. Em 1760, as propriedades passaram à administração da Coroa portuguesa, sendo denominadas “Fazendas do Real Fisco” ou “Fazendas do Fisco”, e foram divididas em três departamentos ou inspeções – Canindé, Nazaré e Piauí. Findos os laços coloniais, as propriedades tornaram-se nacionais ou da nação.9

7

8

9

Sobre a ocupação dos sertões piauienses ver, por exemplo, LIMA SOBRINHO, Barbosa. O devassamento do Piauí. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1946: NUNES, Odilon. Devassamento e conquista do Piauí. Teresina: Comepi, 1972; NUNES, Odilon. Os primeiros currais: geografia e história do Piauí seiscentista. Teresina: Comepi, 1972; CASTELO BRANCO, Moysés. O povoamento do Piauí. Teresina: Comepi, 1982. PITTA, Rocha. História da América Portuguesa. Rio de Janeiro: W. M. Jackson, 1950, p. 243. Ver LIMA, Solimar Oliveira. Braço forte: trabalho escaravo nas fazendas da nação no Piauí: 1822-1871. Passo Fundo:UPF, 2005; FALCI, Miridan Brito Knox. Escravos do sertão: demografia, trabalho e relações sociais. Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves, 1995.

Origens e espaços de produção das fazendas pastoris do Piauí

353

Domingos Sertão contribuiu particularmente para dois processos históricos no Piauí: a ocupação do território e a inserção do trabalho escravizado na estrutura social em formação. Quando “dissolveu sua sociedade com os Ávila (a Casa da Torre), Sertão ficou com as mais opulentas fazendas da bacia do Canindé, que é tributária da bacia do Parnaíba, por onde se estendiam dos sertões de Parnaguá aos campos dos Longás, os vastos latifúndios daqueles primitivos colonizadores”.10 O sertanista declarou em testamento que tinha “ocupado muitos sítios, com gados meus, assim como vacum, como cavalar, e todos fornecidos com escravos e cavalos e o mais necessário”.11 Do processo de utilização de escravizados em suas propriedades resultaram duas formas de cativeiro no Piauí. A primeira, caracterizada pelo domínio privado, passou a vigorar a partir da administração das propriedades pelo sertanista. Esta forma de dominação se reproduziu sistematicamente e se consolidou no novo território à medida que outros ocupadores se instalaram nos campos ou se fixaram nos emergentes povoados e vilas. A outra forma de cativeiro, domínio público, nasceu do legado de Domingos Mafrense à Companhia de Jesus. Ao contrário do que propagam alguns historiadores, a exploração dos escravizados e destas fazendas manteve-se com esmerado zelo administrativo ao longo das gestões das Coroas portuguesa e brasileira. O cativeiro público não foi especifico do Piauí: outras propriedades foram administradas pelo Império no Brasil, dentre elas, fazendas no Maranhão, Pará e Rio de Janeiro. Os domínios privados do século 17 e até a primeira metade do 18 possuíram como origem exclusiva a doação de sesmarias, que, no geral, não apresentavam demarcação precisa. 10

11

NUNES, Odilon. Pesquisas para a história do Piauí. Teresina:Imprensa Oficial, 1966, p. 116. PEREIRA DA COSTA, F. A. Cronologia histórica do estado do Piauí: desde os seus tempos primitivos até a Proclamação da República. Rio de Janeiro: Artenova, 1974, p. 45.

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Solimar Oliveira Lima

Nesse contexto, para tornar-se proprietário bastavam, além da influência, “papel e tinta”.12 Contudo, a ocupação foi marcada por intensas disputas entre sesmeiros e posseiros, em geral, os cuidadores das propriedades dos sesmeiros, os prepostos. Os sesmeiros impunham aos posseiros “o pagamneto de dez mil réis, de cada ano e de cada fazenda, o que provocou geral clamor”, e mantinham um rígido controle sobre as rendas e posses, conforme constatou em 1728 João da Maia da Gama em viagem pelo Piauí.13 Ao comunicar o fato à Coroa, o ex-governador do Maranhão confessou que, “tendo eu corrido todos os domínios de Vossa Majestade em Portugal, Índia e Brasil, me parece que não achei em parte alguma aonde os vassalos de V. Majestade experimentassem de outro vassalo mais violências”.14 Na ocupação do Piauí, os fatos parecem indicar que, apesar do zelo dos ricos sesmeiros residentes no litoral, as suas propriedades potencializaram o surgimento de um setor que, utilizando-se de condições específicas, passou a demandar o acesso à terra. Entretanto, até a primeira metade dos Setecentos, tal constatação não necessariamente se materializa facilmente, muito menos se torna regra. As medidas tomadas pelas autoridades frente à luta pela terra não tiveram “nenhuma influencia a favor dos que sentem o peso da tirania. Privilegio era dom que se concedia ao senhor dos cabedais; a violência era contra os que trabalhavam: era o dispositivo governamental que infelizmente perduraria por largos anos” – lembra o historiador Odilon Nunes em Pesquisas para a his-

12

13

14

ABREU, Capistrano e. Caminhos antigos e povoamento do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1975, p. 260. NUNES, Odilon. Pesquisas para a história do Piauí. Teresina: Imprensa Oficial, 1966, p. 146. OLIVEIRA MARTINS, F. A. Um herói esquecido (Diário da viagem de regresso para o reino de João da Maia da Gama, e de inspecção das barras dos rios do Maranhão e das capitanias do norte, em 1728). Lisboa: Agência Geral das Colônias, 1944, p. 28.

Origens e espaços de produção das fazendas pastoris do Piauí

355

tória do Piauí, de 1966. 15 Para o problema, os sesmeiros recorriam mais a práticas do período de domínio da terra contra os nativos e menos a litígios no Judiciário. Quando a estes recorriam, o foro escolhido era o da Bahia e, mesmo, Portugal, onde os sesmeiros possuíam força e poder.16 Prestígio, papel, tinta e violência resumem os mecanismos predominantes de obtenção e controle das propriedades no primeiro século de ocupação do Piauí. No primeiro quartel do 18, pode-se encontrar na historiografia apenas uma referência à aquisição por grandes proprietários por meio de compra, realizada em 1721 – no entanto, a transação não foi efetivamente validada. Neste ano, “o Ouvidor do Piauí deu posse à Casa da Torre de uma propriedade que media 180 quilômetros de comprimento por 120 de largura do extenso vale de Crateús, adquiridos por quatro mil cruzados. Seria quase todo o vale do Poti. O ato de posse efetuou-se na fazenda Lagoa das Almas, às margens do riacho do Gado, afluente do Poti. Parece que essa venda não foi respeitada, porque um pouco mais tarde se concedem sesmarias às margens desse rio”.17 Diante das violências praticadas pelos sesmeiros, os posseiros desenvolveram mecanismos diferenciados de resistência, como a violência, o Judiciário e alianças com forças políticas locais. Este último aspecto indica a existência, nesse período, de um setor da sociedade representado por não proprietários e proprietários residentes em suas propriedades em contraposição aos sesmeiros absenteístas. A aproximação, entretanto, parece deixar antever dois nítidos interesses: o de 15

16

17

NUNES,Odilon. Pesquisas para a história do Piauí.Teresina:Imprensa Oficial, 1966, p. 147. OLIVEIRA MARTINS, F. A. Um herói esquecido (Diário da viagem de regresso para o reino de João da Maia da Gama, e de inspecção das barras dos rios do Maranhão e das capitanias do norte, em 1728). Lisboa: Agência Geral das Colônias, 1944, p. 28. NUNES, Odilon. Pesquisas para a história do Piauí. Teresina :Imprensa Oficial, 1966:147-8.

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garantia da propriedade e o de ampliação da propriedade. O combate aos sesmeiros residentes na Bahia encontra aliados no campo político. Em dezembro de 1743, uma Provisão do Conselho Ultramarino dirigida ao governador de Pernambuco informa uma representação da Câmara da vila da Mocha [Oeiras] sobre as concessões de sesmarias. Em razão de sua importância a transcrevemos, apesar de sua amplidão: “Senhor- São extraordinários os danos espirituais e temporais que tem havido, e atualmente se experimentam nesta capitania originados da sem razão e injusta com que os governadores de Pernambuco, nos princípios da povoação daqueles sertões, deram por sesmaria neles e indevidamente grande quantidade de terras a três ou quatro pessoas particulares moradores na cidade da Bahia, que cultivando algumas delas, deixaram a maior parte devolutas sem consentirem que pessoa alguma as povoasse, salvo quem à sua custa e com risco de suas vidas as descobrissem e defendessem do gentio bárbaro [sic], constrangendolhes depois a lhes pagarem dez mil réis de renda por cada sítio em cada ano pedimos a V. M. seja servido mandar que os ditos intrusos sesmeiros não possam usar dos ditos arrendamentos nem pedir renda aos moradores desta capitânia dos sítios, que com tanto risco e trabalho descobriram à sua custa, mas antes se sirva ordenar que cada uma das ditas fazendas contribua em cada um ano com algum limitado foro, atendendo a muita pobreza destes moradores, a metade para o aumento da real fazenda, e a outra metade para o rendimento do conselho e câmara daquela vila, para o que o provedor da fazenda e o ouvidor da dita capitania faça averiguação das fazendas que há nelas pelo modo que for mais suave, fazendoas numerar em um livro por ele numerado e rubricado, que fique na câmara, ficando desta forma as terras das sobreditas fazendas pertencendo in solidum aos ditos possuidores delas sem que em tempo algum se possa converter e disputar em Origens e espaços de produção das fazendas pastoris do Piauí

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juízo escusa alguma a respeito do domínio das ditas terras, porque só desta sorte poderão cessar tão injustos pleitos e o contínuo desassossego que experimentam os referidos moradores; e o universal clamor e queixa que há naquela capitania sobre esta matéria, e que por nenhum modo possam os ditos moradores serem convencidos e demandados fora do seu domicílio mas que o sejam em todas as suas causas e dependências perante os juízes que há naquela capitania ou perante o ouvidor e provedor da fazenda real”.18 Segundo o historiador Pereira da Costa, no mesmo ano, 1743, entre maio e setembro, haviam sido concedidas dezesseis cartas de sesmarias no Piauí:19 em 25 de maio, a fazenda Jacaré, no rio Paraim, a Pedro de Oliveira Freitas; em 6 de junho, o sítio Traíras, no rio Parím, a Bernardo Lopes de Oliveira; em 24, o sítio Curralinho, a Francisco Teixeira de Carvalho; e em 25, uma data no rio Poti, a Francisco Coelho Teixeira. Em julho, no dia 4, o sítio São José, em Piracuruca, a Antonio Ferreira de Carvalho; 5, o sítio Bom Jesus, em Longá, a Antonio da Cunha Valadares; 11, o sítio Poções, em Parnaguá, a Manuel Jorge dos Reis; 21, uma data no rio Poti, a Antonio Coelho Teixeira; 22, o sítio Barra, no Piauí, a José Gonçalves de Lima e uma data no riacho do Saco, em Parnaguá, a João Lopes Pereira; 23, uma data no riacho do Jucá, na ribeira de Cratéus, a Manuel José de Lima. Em agosto, no dia 12, fora concedida a carta do sítio Tinguis, em Piracuruca, a Bento Correia da Costa, e em 29, Sitiozinho, no Piauí, a José da Cunha. Em setembro, no dia 7, uma data no lugar Santa Rosa, em Gilbués, a João Rodrigues; 13, uma data no lugar Jacareí, em Piracuruca, a Teodosio dos Remédios Antonino e Antônio Tavares dos Remédios; e 17, a fazenda São Bartolomeu, no sertão do Longá, a José da Mota Verdade. As con18

19

PEREIRA DA COSTA, F. A. Cronologia histórica do estado do Piauí: desde os seus tempos primitivos até a Proclamação da República. Rio de Janeiro: Artenova, 1974, p. 113-114. Loc. cit

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cessões seguem continuamente entre os anos 1744 e 1752. As novas cartas contemplavam em certa medida alguns posseiros mais bem estabelecidos na teia de relação do poder local e governo, que, se somados a outros novos agraciados, iriam se estabelecer nas propriedades, reduzindo o número de proprietários ausentes. O poder local, ainda que frágil, era densamente articulado em torno dos interesses dos posseiros, que longe estavam de compor um segmento de homens pobres. Eram, na verdade, fazendeiros estabelecidos, produzindo a partir do criatório e trabalhadores escravizados, mas sem a propriedade da terra. Seus interesses estavam representados na Câmara, sendo provável que alguns fossem parte da instituição. Além disso, esses homens e suas famílias davam o contorno social necessário à ocupação do território. O sentimento antissesmeiros, considerados “intrusos”, revestia-se diretamente de uma defesa de qualidades que somente eles, posseiros, pareciam ter como condição justa para o acesso à propriedade formal das terras: residiam e “cultivavam” a terra. Nesse contexto, consideravam a renda da terra uma injusta transferência de riquezas para as mãos dos sesmeiros distantes da dura realidade dos sertões. Em meio às contendas, às concessões de cartas e às representações, apenas em 1753 a política governamental aponta para um desfecho contemplando posseiros e sesmeiros. Segundo Odilon Nunes, as provisões de 11 e 23 de abril e uma de 2 de agosto consideram “cassadas, anuladas e abolidas todas as datas, ordens e sentenças” relacionadas às disputas de terras envolvendo “antigos e novos possuidores”. Contudo, é a provisão de 20 de outubro, dirigida ao governador de Pernambuco, que se posiciona efetivamente em relação aos conflitos e tensões. Segue, pela sua importância,

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parte do ato régio. 20 “Para evitar as pressões e prejuízos que se me têm representado haverem padecido os moradores do Piauí, sertão da Bahia, e dessa capitania de Pernambuco por ocasião das contendas e litígios que lhe moveram os chamados sesmeiros de um excessivo número de léguas de terra de sesmaria que nulamente possuem por não se cumprir o fim para que se concederam, e foram dadas naqueles distritos a Francisco Dias de Ávila, Francisco Barbosa Cam, Bernardo Pereira Gago, Domingos Afonso Sertão, Francisco de Sousa Fagundes, Antonio Guedes de Brito e Bernardo Vieira Ravasco, experimentando os ditos moradores grandes vexações nas execuções das sentenças contra eles alcançadas para a expulsão das suas fazendas, cobranças de rendas, e foros das ditas terras, sobre o que mandei tirar as informações necessárias, e os ditos sesmeiros me fizeram suas representações, em que foram ouvidos, e responderam os procuradores de minha fazenda e Coroa. Fui servido, por resoluções de onze de abril e dois de agosto deste presente ano tomadas em consultas do meu Conselho Ultramarino, anular, abolir e cassar todas as datas, ordens e sentenças que tem havido nesta matéria para cessarem os fundamentos das demandas que pode haver por umas e outras partes, concedendo aos mesmos sesmeiros por nova graça todas as terras que eles têm cultivado por si, seus feitores, ou criados ainda que estas se achem de presente arrendadas a outros colonos, nas quais se não devem incluir as que outras pessoas entraram a rotear, e cultivar ainda que fosse a título de aforamento, ou arrendamento, por não serem dadas as sesmarias senão para os sesmeiros a cultivarem, e não para as repartirem, e darem a outros que as conquistem, roteiem, e entrem a fabricar o que só é permitido aos capitães donatários, e não aos sesmeiros, os quais hei por bem que destas terras que lhe concedo por terem cultivado, e das que 20

NUNES,Odilon. Pesquisas para a história do Piauí.Teresina:Imprensa Oficial, 1966, p. 149.

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pedirem de sesmaria estando nos distritos das suas primeiras datas, e achando-se ainda incultas e despovoadas em que se devem por clausulas com que ao presente se passam declarando as léguas que compreendem, e as suas confrontações e limites; com declaração que cada uma das cartas não há de ser mais que de uma data de três léguas de terra de comprido e uma de largo, e não serão contíguas umas a outras, porque deve medear entre elas ao menos uma légua de terra, e as três léguas da data serão continuadas, e não interceptas com nenhum pretexto porque lhes é lícito escolher as terras capazes de cultura de que se lhes passe carta sem incluírem maior extensão que as três léguas com o motivo de entrar nelas terras incultas tudo na forma de repetidas ordens que há para se evitarem as fraudes na extensão das fazendas e as perturbações e contendas que há, quando se não acautelam nas cartas estas clausulas. Para averiguar os sítios de que se hão de passar as cartas tenho nomeado ao desembargador Manuel Sarmento, ouvidor atual do Maranhão, que deve ser pago pelos mesmos sesmeiros que possuem as terras que se hão de dar por novas sesmarias, cuja diligência deve primeiro ir fazê-la no Piauí, e acabada naquela comarca passar à de Jacobina, e examinando o mesmo desembargador pessoalmente os ditos sítios ouvindo as partes breve e sumariamente sem figura de Juízo, determinar as terras que os sesmeiros têm cultivado por se acharem ainda incultas, nas quais devem eles ter preferência: Como também examine as que se acham cultivadas e povoadas por outras pessoas à sua custa porque nelas terão os seus cultores e povoadores preferência pedindo de sesmaria ainda que lhes dadas de aforamento, ou arrendamento, e de tudo formará autos a requerimento e à custa das partes e os deixará aos provedores da fazenda dos distritos a que pertencerem as terras, os quais as farão medir e demarcar cada uma das datas separadamente para com os autos da medição e demarcação se pedirem as cartas que eu Origens e espaços de produção das fazendas pastoris do Piauí

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lhes concederei requerendo-as o sesmeiro dentro em três anos do dia em que o ministro fizer o exame da terra e quando os procuradores não possam fazer todas as medições e demarcações se lhes concederão pelo meu Conselho Ultramarino provisões de tombo para os ministros que o devem fazer dentro do referido tempo, e passando ele se poderão dar as terras a quem as pedir não se tendo medido e demarcado para se evitarem as contendas que costumam haver sobre as terras que não se acham medidas. Os rendeiros das terras que se derem de sesmaria dos sesmeiros serão obrigados a pagar rendimentos que deverem por sentenças que se acham suspensas por ordem expedida pela secretaria de Estado, sem embargo dela, e de se darem as terras por nova graça, porque a mesma causa que se considera para se lhes darem as terras, essa mesma se dá para se lhes pagar o rendimento delas, o que tudo se deve praticar igualmente com todos os referidos sesmeiros, observando-se nestas datas e que atualmente tenho ordenado se pratique com todas as mais”.21 A decisão real possibilitou dois desdobramentos disciplinares, em rigor já conquistados e necessários à sociedade de classe e latifundiário-escravista em formação: a organização social e a organização do espaço. A provisão validou duas categorias de latifundiários como estratégia de consolidação de poder sobre o território. Manteve a presença de grandes proprietários absenteístas, garantindo propriedades e permitindo a ampliação de posses, e oficializou a existência, a partir dos posseiros, de grandes proprietários residentes e domiciliados nas terras. O governo garantia com a medida antigas alianças e criava novas, importantes para assegurar o controle sobre o processo de ocupação. O novo status conferido a 21

PEREIRA DA COSTA, F. A. Cronologia histórica do estado do Piauí: desde os seus tempos primitivos até a Proclamação da República. Rio de janeiro: Artenova, 1974, p. 121-123.

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posseiros traria mudanças significativas nos rumos não só da estrutura social, mas também da produção. Investidos do poder da terra, os latifundiários residentes compuseram uma fração hegemônica de poder econômico, político e social no Piauí. A partir de seus interesses e necessidades, estruturou-se a vida em sociedade. Investiram-se de autoridade oligárquica sobre seus domínios, habitantes e cargos. Melhoraram estradas, ampliaram o pequeno número de povoados e adonaram-se das poucas vilas. E ainda nem desfrutando plenamente da nova condição de proprietários, já reproduziam relações de exploração do trabalho de livres pobres e libertos na condição de agregados, moradores, rendeiros ou de trabalhadores escravizados nas lidas das fazendas.22 O crescimento da presença dos proprietários nas fazendas e, em decorrência, na ingerência sobre o contexto social pode ser percebido nos dados apresentados pelo historiador Luiz Mott. Em 1697, das 129 fazendas existentes, apenas doze eram administradas diretamente pelos proprietários. Em 1772, entre os 931 proprietários, somente 107 se encontravam ausentes, ou seja cerca de 11%. O percentual se reduz para 6,9% em 1818, quando em apenas 170 das 2.460 propriedades os latifundiários eram absenteístas.23 No respeito à organização do espaço, aquela iniciativa atrelava-se intimamente às necessidades da produção predominante na pecuária. A provisão de 1753, ao delimitar as concessões de sesmarias à área de três léguas de comprimento e uma de largura (cerca de treze mil hectares) e à distância de uma légua (cerca de seis quilômetros) entre as propriedades, além de ratificar a institucionalização da grande propriedade como padrão de domínio, cuidava do ordenamento espacial, favorecedor ao criatório extensivo, evitando a possibilidade 22

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MARTINS, Agenor et al. Piauí: história, realidade e desenvolvimento. Teresina: Fundação Cepro, 1977. MOTT, Luiz R. B. Piauí Colonial: população, economia e sociedade. Teresina: fundação Cultural do Piauí, 1985, p. 98-9.

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de ocupações irregulares entre as fazendas, uma vez que “na dita légua entram igualmente os vizinhos a procurar os seus gados, sem contudo poderem nela levantar casas ou currais”.24 Segundo os viajantes franceses Spix e Martius, que visitaram essas regiões em 1820, “só raramente um dos chamados agregados, em geral pretos forros ou mulatos, construíram aqui e acolá, neste território, pequenas moradas ou quintas, pois os proprietários das grandes fazendas não querem ceder porção alguma de suas terras, por considerarem indispensável as grandes extensões para a criação do gado”. Os viajantes constataram que, em razão da seca, era necessário movimentar os animais por amplos espaços para alimentá-los com capim seco e frutas.25 As distâncias entre as fazendas não estavam, contudo, sujeitas apenas à lei. As condições naturais parecem ser determinantes na localização das propriedades, ou, pelo menos, na instalação das áreas de produção nas propriedades. No geral, a tendência era pleitear terras próximas a rios ou outros cursos de água. O acesso a mananciais era condição indispensável, por exemplo, para a manutenção e reprodução do rebanho. Em 1697, uma descrição dos sertões do Piauí, de autoria do padre Coutinho, apontava uma distância entre as fazendas de “mais de duas léguas uma das outras”.26 Em 1757, o vigário Antônio Luiz Coutinho constatava na freguesia de Nossa Senhora da Vitória da Mocha [Oeiras] que, “nas beiradas dos riachos assistem os paroquianos, criando gados e cavalares, distantes uns dos outros, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, dez e mais léguas, por morarem junto dos poços 24

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Roteiro do Maranhão a Goiaz pela Capitania do Piauhy. In Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Tomo LXII, 1º e 2º semestres, 1900, p. 79. SPIX, Johann Baptist von; MARTIUS, Carl Friedr Phill von.. Viagem pelo Brasil. Rio de Janeiro:Imprensa Nacional, 1938, p. 216. Dezcripção do certão do Peauhy Remetida ao Ilmo. e Rmo. Sr. Frei Francisco de Lima Bispo de Pernambuco. In: ENES, Ernesto. As guerras nos Palmares subsídios para sua história. São Paulo: Companhia editora nacional, 1938, p. 373.

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que ficam nos tais riachos do tempo do inverno”.27 As indicações em léguas devem, entretanto, ser relativizadas, como bem aponta o Roteiro do Maranhão a Goiás pela Capitânia do Piauí, de autoria desconhecida, no início do século 19. “As léguas, com que mostro as distâncias, não são matemáticas, são as mesmas, que contam os habitantes os quais as regulam arbitrariamente; e as dividem sempre com algum sinal remarcável posto pela natureza. Além de ser impraticável, que simelhantes balizas se enchem por si mesmas acomodadas a uma justa dimensão; os habitantes terminam comumente as léguas antes de terem trez mil braças, que é a medida de que judicialmente se servem na demarcação das terras. De sorte que as ditas léguas só vem a ser irregulares e desiguais entre si, mas são todas diminutas; e nenhuma chega a fazer uma hora enganando, quem ao grande número de léguas, em que acaba o Roteiro, diminuir ao menos a quarta parte.”28 As distâncias não foram, de fato, obstáculos para a estruturação da economia pastoril: foram a solução encontrada para a ampliação dos domínios e da fronteira de produção. Tomando como referência as propriedades legadas por Domingos Sertão aos jesuítas, Luiz Mott constata que 29 fazendas, de 33, possuíam área superior ao estabelecido. Para o autor, as extensas superfícies explicavam-se pela “rusticidade do nível técnico dominante na pecuária e a rarefação das pastagens nos períodos estivais forçavam os proprietários a desejarem e necessitarem grandes extensões fundiárias”.29 O latifúndio foi, por excelência, a base da fazenda pastoril e sua defesa, repetidamente apresentada como uma ne27

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MOTT, Luiz R. B. Piauí Colonial: população, economia e sociedade. Teresina: Fundação Cultural do Piauí, 1985, p. 53. Roteiro do Maranhão a Goiaz pela Capitania do Piauhy. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo LXII, 1º e 2º semestres, 1900,p. 60. [Modernizamos] MOTT, Luiz R. B. Piauí Colonial: população, economia e sociedade. Teresina: Fundação Cultural do Piauí, 1985, p. 58.

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cessidade da forma de produção. Nesse contexto, as fazendas do início da ocupação territorial, pelas próprias condições materiais, tenderam à exclusividade do pastoreio no uso do solo. Nos primórdios, em especial nos anos de devassamento do século 17, o deslocamento constante dos animais conferiu uma característica eminentemente extensiva, tendendo-se a utilizar esta característica como uma necessidade da produção, que evidentemente satisfazia ao desejo de conquista de terras. Nesse sentido, parece prudente pensar que o elevado grau de disponibilidade de terras associado à cultura latifundiária colonial tenha de fato determinado a forma de produção. Essa vinculação de dependência se materializa sobremaneira nos reduzidos investimentos no processo de produção, como infraestrutura, manejo e qualidade do rebanho. Na segunda metade do século 18, sobretudo após a normalização das disputas e as garantias sobre as terras, aumentaram modestamente as iniciativas de melhorias na pecuária, especialmente em infraestrutura, sem, contudo, alterar substancialmente o caráter de dependência da natureza. Em razão do aumento populacional e surgimento de povoados e vilas, as fazendas passam também a destinar parte das terras à agricultura, recebendo esses espaços a denominação de “sítios”. De acordo com o relato do ouvidor Antônio José de Morais Durão de 1772, “fazenda se chama a de gado vacum ou cavalar, ditas vulgarmente, currais; sítios se toma pela fazenda que se cultiva, sendo separadas das de gado”.30 Em verdade, a partir, especialmente do final do século 18, havia uma rígida separação apenas no uso do solo. Grandes fazendeiros possuíam sítios e fazendas, onde eram produtoras de gado e de cultivos. Nessa perspectiva, torna-se, inicialmente, imperioso romper com a visão de fazendas pastoris como espaço exclusi30

MOTT, Luiz R. B. Piauí Colonial: população, economia e sociedade. Teresina: fundação Cultural do Piauí, 1985, p. 23.

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vo de criação de gado. Em rigor, embora possam ser denominadas como fazendas pastoris as de gado, como o faz o ouvidor Durão, poucas foram, pela exigência material, as unidades com essa característica. Como dito anteriormente, a existência de fazenda pastoril especializada pode ser associada, pela precariedade de condições e bases materiais, ao início do processo de ocupação. A dispersão do gado pelo interior do Piauí fez crescer continuamente o número de animais e, embora com vagar, a quantidade de moradores. No findar o século 18, as terras e os habitantes estavam estabelecidos na capitania. Porém, os números da comercialização do gado já não indicavam mais patamares como os de outrora, e os fazendeiros buscaram alternativas para manutenção da lucratividade e de vínculos com setores e regiões mais dinâmicos da economia. No início dos Oitocentos, aumentou a diversificação produtiva, no sentido de deslocar acumulação para explorar também outras atividades lucrativas, como a agricultura mercantil. Nesse processo, não houve necessariamente redução de investimento no criatório, até porque ele, pela característica extensiva, era praticamente imune a crises e continuou se expandindo. O rebanho tendia a crescer independentemente dos mercados e sua expansão, quando associada à incorporação de novas terras, de certa forma, favorecia a diversificação para o plantio, uma vez que este se relacionava diretamente ao uso do solo na grande propriedade. Progressivamente, áreas foram sendo destinadas a cultivos, mantendo-se as mais propicias às pastagens ao criatório. Nesse contexto, grandes propriedades pastoris passaram a desenvolver uma agricultura para mercado, utilizando-se de duas condições disponibilizadas pela pecuária: o latifúndio e o trabalho escravizado. Na agricultura mercantil-escravista nas grandes fazendas pastoris, considerando o destino da produção, podemos distinguir dois tipos de lavouras: as produtoras de gêneros Origens e espaços de produção das fazendas pastoris do Piauí

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para o mercado interno e as produtoras de gêneros para o mercado externo. Em rigor, essa distinção deve ser relativizada, uma vez que em uma e outra se podem encontrar, dentro e fora da província, a comercialização de produtos aqui identificados como de referência dos plantios. Nesse sentido, vale ressaltar que o caráter predominante da comercialização determinaria a existência da produção e, portanto, a classificação referenciada. Assim, a primeira lavoura estaria associada à produção de mandioca, de milho e de feijão, embora esses produtos fossem também vendidos, especialmente, para o Ceará e o Maranhão. Na segunda lavoura encontra-se a produção de algodão, de cana e de fumo, destinada preferencialmente ao exterior, Pernambuco e Bahia, o que não impedia que fios e algodão, rolos de fumo e derivados da cana, como açúcar e aguardente, abastecessem também povoados e vilas da província. Nos Oitocentos, são recorrentes as informações sobre a redução do plantio de feijão e de milho, gradativamente relegado para estimular os cultivos de mandioca, da cana, do algodão e do fumo. Estes produtos passaram a receber atenção especial por parte de produtores privados e públicos em razão do crescimento da demanda comercial. Nas fazendas públicas, a negligência com o consumo interno, especialmente o dos trabalhadores escravizados, desenvolveu uma tendência à concentração do consumo em torno do gado, o que fez surgir preocupações com a produção de cereais para a diversificação da dieta alimentar, a fim de diminuir as “matalotagens”, ou seja, reduzir o número de reses abatidas para o consumo. Para os trabalhadores, a base alimentar era praticamente composta por carne bovina “verde” ou “seca” e farinha. Em Valença, uma fazenda particular, em setembro de 1811, abateu oito bois para o consumo estimado em 15 dias. Nas fazendas públicas, entre 1803 e 1805, foi constatado o abate de “quase seiscentas reses anualmente” apenas em uma Inspeção. Ain368

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da assim, a lavoura praticada destinou-se, prioritariamente, a cultivar produtos de maior aceitação no mercado.31 Fontes documentais relativas à Parnaíba (cidade ao norte do Piauí) e Jerumenha (ao sul) apresentam a disposição de fazendeiros, a exemplo da família Dias da Silva, na primeira, de buscar a especialização de áreas para o plantio, em especial do algodão. Segundo o francês Louis-François de Tollenare, nos arredores de Parnaíba “se cultivava o melhor algodão do país”.32 Costumava-se “apartar” as terras com o intuito da produção exclusiva, que passariam a ser denominadas “sítios”. Porém, os trabalhadores escravizados permaneciam vinculados a uma fazenda próxima. Da postura, pode-se inferir que pareciam predominar as experiências de evitar grandes distanciamentos entre as áreas de criatório e a lavoura, não “distanciando-se mais que duas léguas”.33 Nas fazendas públicas, desenvolveu-se o costume do plantio em áreas internas das fazendas de gado, isto é, procedia-se à escolha de terras mais propícias ao cultivo, próximas ao núcleo central de povoamento, no geral a “uma légua” de distância. Essas áreas eram chamadas de “lavouras”, “sítios” e “roças”. Em algumas fazendas, a utilização da categoria “roça” remetia à indicação de que nesta área havia o consórcio do plantio do algodão com outros produtos.34 Nas grandes propriedades, a produção e a delimitação de áreas destinadas à agricultura mercantil-escravista estavam sujeitas aos mesmos critérios que em pequenas propriedades: dependiam da qualidade do solo e, algumas culturas, de muita proximidade de cursos de água, além das condições climáticas. Encontrou-se referência ao cultivo, em fazendas 31

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Arquivo Público do Estado do Piauí (Apep). Correspondência com a Tesouraria Geral de Fazenda. 1810-1815. TOLLENARE, L. F. Notas Dominicais – Tomadas durante uma viagem em Portugal e no Brasil em 1816, 1817 e 1818. Salvador: Progresso, 1956, p. 127. APEP. Palácio do Governo. Oeiras (PGO). 1817-1825. APEP. PGO. 1820-1829.

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particulares, de 21 “tarefas” (uns sete hectares) e a onze “alqueires” (uns trinta hectares), o que não significa necessariamente grandes extensões.35 É crível que nas fazendas particulares, assim como nas públicas, o tamanho das roças fosse limitado pelo reduzido emprego de mão-de-obra. Nas fazendas públicas predominava entre os trabalhadores escravizados a presença de mulheres nos roçados, tendência seguida, salvo engano, pelas propriedades particulares. Dentre as indicações podem-se encontrar as fazendas Malhada e Boa Vista, no termo de Oeiras, em 1817 e 1824, onde havia “mais mulher que homem” no plantio. Em 1854, segundo um arrolamento da população por sexo e ocupação das fazendas públicas, o trabalho nas roças era quase exclusivamente feminino.36 Uma característica do cultivo nas grandes propriedades, diferentemente da pequena produção, era ser “sem proteção de bichos e animais”.37 O plantio livre, ou seja, sem cercas ou “muradas”, explica-se pela extensão das áreas, que certamente demandariam muito tempo de serviço, braços e matériaprima para a empreitada. As roças desprotegidas estavam sujeitas, além dos “ataques” de animais, “aos abusos que muitos moradores sem o respeito e provocando descômodos estão a retirar plantas de farinha e feijão”.38 A referência a animais indicava a “invasão de vacas, bezerros e porcos alimentandose” nas roças. Era também comum nas grandes propriedades o criatório em “chiqueiros” de pequenos animais, como porcos, caprinos e galinhas, denominados genericamente como “criações”. Os chiqueiros eram construções similares a currais, por isso mesmo chamados, às vezes, de “pequenos currais”, e ocupavam quase sempre terreno próximo às casas. É provável que apenas fazendas com pouco número de animais fizessem APEP. PGO. 1700-1821. APEP. Fazendas Nacionais. 1800-1877. 37 APEP. PGO. 1820-1829. 38 APEP. PGO. 1820-1829. 35 36

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uso dos cercados de forma contínua. Onde a quantidade tendia a ser significativa, os animais viviam soltos pelas fazendas e os chiqueiros serviam mais para períodos de engorda e de castração. O criatório livre acarretava, além das invasões das roças, outros sérios problemas. Os porcos, por exemplo, “destruíam cercas”, “invadiam terrenos” de propriedades vizinhas e os pastos e poluíam os mananciais destinados ao uso doméstico e do gado.39 As grandes fazendas dispunham ainda de espaços para plantações de frutas e legumes. Fazendas destinavam áreas ao cultivo consorciado de “milho, feijão, batatas e abóboras”, medindo “10 linhas de roças” (uns três hectares), situadas mais próximas às moradias e comumente cercadas e “protegidas dos contínuos ataques”.40 Para as frutas predominava o “laranjal”, onde se cultivavam também limão e abacaxi, e o “bananal”, que costumava ficar “ao derredor da casa de residência [alusão a moradia do proprietário]”.41 As fazendas, em geral, contavam com pomares naturais, “abundantes de várias frutas, como mangauas, ginipapos, areticus”42 e de juazeiros, imbuzeiros e palmeiras de buriti, que forneciam frutos de “grande apreço” entre os habitantes.43 Algumas fazendas contavam ainda com espaços específicos para serviços especializados, como a “casa de ferreiro” e olarias.44 No século 19, seguramente, um grande fazendeiro passou a ser aquele que dispunha de fazendas com boas condições naturais, gados, trabalhadores escravizados e produção para consumo e mercado. Predominaria, entretanto, como 39 40 41 42

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APEP. PGO. 1752/1789; APEP. Fazendas Nacionais. 1800-1877.

APEP. PGO. 1820-1829. APEP. Tesouraria de Fazenda.1841-1846. Dezcripção do certão do Peauhy Remetida ao Ilmo. e Rmo. Sr. Frei Francisco de Lima Bispo de Pernambuco. In: ENNES, Ernesto. As Guerras nos Palmares: subsidios para sua história. SãoPaulo: Companhia editora nacional, 1938, p. 386. GARDNER, George. Viagens no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942, p. 195. APEP. Tesouraria de Fazenda. 1841-1846.

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atividade principal a pecuária, ocupando grandes extensões de terras com campos de pastagens. Segundo o memorialista Pereira o D´Alencastre, “as fazendas de gado vacum estão situadas sobretudo nas fraldas de vários olhos d´água que delas nascem. Para que no sertão uma fazenda mereça o nome de boa, deve ser primeiro bem provida de água, porque sendo o Piauí sujeito a secas, como todos os altos sertões do Brasil, as fazendas faltas de água são as primeiras que ficam despovoadas de seus gados”.45 De acordo com viajantes e memorialistas, o criatório era a inclinação do Piauí, dadas a presença de pastos naturais e a reduzida necessidade do uso do trabalho. Segundo o autor do Roteiro do Maranhão a Goiás, os sertões piauienses além de “abertos e cheios de campinas [...] Não há neles aquele horroroso trabalho de deitar grossas matas abaixo, e romper as terras a força de braço, como sucede nos Engenhos do Brasil, nas Roças das minas, e por este mesmo Estado do Pará, e Maranhão na cultura dos seus gêneros. Nele pouco se muda na superfície da terra tudo se conserva quase no seu primeiro estado. Levanta uma casa coberta pela maior parte de palhas, feitos uns currais, e introduzidos os gados, estão povoados as três léguas de terra, e estabelecida uma fazenda”.46 Os sertões abertos eram ricos em vegetações do tipo agreste e capim mimoso, que se adequavam à formação de pastos. As qualidades do capim mimoso apresentavam-se superiores ao criatório e permitiam uma maior produtividade do rebanho. Pereira D´Alencastre aponta, certamente exagerando, que “nas fazendas de pasto agreste, 300 vacas produzem 130 bezerros, sendo que as que parem em um ano, descansam 45

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Memória cronológica, histórica e corográfica da província do Piauí por José Martins Pereira D´Alencastre. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XX, 1º trimestre, 18857, p. 69. Roteiro do Maranhão a Goiaz pela Capitania do Piauhy. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo LXII, 1º e 2º semestres, 1900, p. 88. (modernizamos).

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o ano seguinte; nas fazendas chamadas de mimoso, em que o pasto é bastante suculento, 300 vacas produzem 250 bezerros anualmente, isto é, sem interrupção. O que se diz acerca do gado vacum é extensivo ao cavalar”.47 Nessas áreas, denominadas “campos mimosos”, ricas em boas pastagens, cresciam os melhores rebanhos. Parece pertinente salientar que nas propriedades nem toda terra ou área de vegetação constituía-se como campo e nem todo campo dispunha do conjunto de condições naturais ao criatório. Assim, um campo com boa pastagem deveria também possuir ou facilitar o acesso a mananciais. Para os campos que não se localizavam próximos aos cursos de água, como rios e riachos ou lagoas, eram providenciados “vaquejadouros”, para que o gado se deslocasse pelos campos, chegasse às reservas naturais de água e fosse conduzido, quando necessário, com segurança aos currais ou sedes das fazendas. O vaquejador, às vezes, conduzia o gado a uma “aguada”, “cacimba” ou mesmo “outras águas conservadas em tanques feitos por indústria dos habitantes, com muito trabalho e moléstia”.48 Nas fazendas menos favorecidas pela natureza e que dispunham de poucas reservas naturais de água, especialmente nos períodos de estiagem, as aguadas e cacimbas eram praticamente os únicos recursos de abastecimento, inclusive para o uso doméstico. Após abertas, os mananciais eram conservados com limpezas periódicas para que se evitasse o esgotamento dos veios. O mesmo acontecia com os vaquejadouros, em que a limpeza “em tempos oportunos” mantinha dominado o crescimento de plantas, embora a passagem contínua 47

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Memória cronológica, histórica e corográfica da província do Piauí por José Martins Pereira D´Alencastre. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XX, 1º trimestre, 18857, p. 68. APEP. Tesouraria da Fazenda. 1841/1846; MOTT, Luiz R. B. Piauí Colonial: população, economia e sociedade. Teresina: fundação Cultural do Piauí, 1985, p. 61.

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das reses, por si, já contribuísse para impedir o florescimento de vegetação que comprometesse o deslocamento do gado e de vaqueiros. Na infraestrutura necessária ao criatório, os “currais” figuram como elementos representativos da atividade e chegam mesmo a aparecer como espaços fundantes das próprias fazendas. Nas descrições, muitas vezes imagéticas, para a instalação de uma fazenda, com pouco trabalho, bastava fazer “uns currais” e introduzir o gado. Aos currais eram recolhidos os animais para serem amansados, ferrados, apartados ou reunidos para venda. Em algumas fazendas chegaram a ser construídos com pedras e adquiriram o formato de muretes – contudo, predominaram as construções de madeira, em razão, provavelmente, da disponibilidade de matas nas propriedades. Em geral, havia duas possibilidades de localização dos currais, nos campos de pastagens ou na chamada “sede da fazenda”, próximo à residência do proprietário. Em algumas fazendas, nos chamados “retiros”, uma área de pasto contígua à fazenda, construíam-se currais e “os necessários preparativos para tratar as crias nas ocasiões em que é preciso separálas das mães”.49 Em outras, segundo o viajante inglês George Gardner, era costume “o gado internar-se a grande distancias nas matas e campos; mas nesta época do ano, que é da produção dos bezerros, o vaqueiro e seus ajudantes, geralmente escravos, estão sempre campeando as vacas paridas. Trazem então para casa os bezerros e os encerram em grandes cercados, a que chamam currais, aonde as mães os seguem naturalmente. No curral fecham-se à noite vacas e bezerros, mas de dia soltam-se as vacas a pastar fora; indispensável a

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Memória Relativa das Capitanias do Piauhy e Maranhão por Francisco Xavier Machado. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XVII, n. 13, 1º trim., terceira série, 1854, p. 58.

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precaução em região tão agreste, para evitar que as mães se extraviem nas matas”.50 Segundo Pereira d’Alencastre, “em cada fazenda devem haver pelo menos 3 currais, que tomam diversos nomes conforme o serviço que prestam. Chamam curral de vaqueijada aquele em que se recebe o gado que tem de ser vendido, onde se tira o leite e onde se faz o rol de porteiras; curral de apartar o em que se recebe todo o gado indistintamente para ao depois ser distribuído pelas diferentes acomodações; curral de benefício onde se recolhem os garrotes para serem ferrados e para se fazer as partilhas dos vaqueiros”.51 A montagem e a conservação da infraestrutura das fazendas pastoris exigiam trabalho – árduo, penoso e perigoso trabalho de escravizados e de homens livres. Trabalhadores, de ambos os sexos, manejavam, com destreza e força, velhas ferramentas para abrir entre matas e caatingas vaquejadouros e aguadas, onde o trabalho se iniciava na madrugada e estendia-se ao longo do dia. Trabalhadores derrubavam árvores, cortavam madeiras, levantavam cercas e currais, não raro picados de cobras, arranhados com galhos e espinhos, feridos por facões e machados. Este trabalho pesado certamente era “pouco gratificante para o homem livre”, mais ainda para os ricos fazendeiros.52 Mesmo assim, há quem tenha visto nas fazendas pastoris do Piauí personagens lutando e padecendo, de sol a sol, juntos.53

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GARDNER, George. Viagens no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942, p. 166. Memória cronológica, histórica e corográfica da província do Piauí por José Martins Pereira D´Alencastre. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XX, 1º trimestre, 1857, p. 69. BRANDÃO, Tanya Maria. O escravo na formação social do Piauí: perspectiva histórica do século XVIII. Teresina: EDUFPI, 1999, p. 28. PORTO, Carlos Eugênio. Roteiro do Piauí. Rio de Janeiro: Artenova, 1974, p. 144.

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