Legalidade e Legitimidade: Weber entre Kirchheimer e Schmitt

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LEGALIDADE E LEGITIMIDADE WEBER ENTRE KIRCHHEIMER E SCHMITT Douglas Carvalho Ribeiro1

Introdução 24 de março de 1933: a chamada “Lei de concessão de plenos poderes” [Ermächtigungsgesetz] é publicada na Alemanha. Concebida inicialmente para valer por quatro anos, tal legislação acabava, tanto formal quanto materialmente, com as diretrizes do Estado de Direito estabelecidas pela Constituição de 1919, pois afirmava que não só o Parlamento poderia editar leis, mas tal prerrogativa se estenderia também ao poder executivo [Reichsregierung]. As normas editadas por este poderiam contrastar com a Constituição, na medida em que não possuíssem como objeto o funcionamento do Reichstag/Reichsrat ou que não se relacionassem com os direitos do Presidente do Reich. Dessa forma, Hitler conseguiu, por vias legais, um poderoso instrumento para eliminar os efeitos jurídicos derivados de diretrizes fundamentais da ordem constitucional de Weimar, que se ancorava nos princípios do Estado de Direito, da Democracia Concorrencial, do Parlamentarismo e do Estado Federativo, e, consequentemente, efetuar uma espécie revolução subsidiada, inicialmente, pelos parâmetros legais existentes2. O sonho da democracia em território alemão se desfaz após um longo período de crise – tanto institucional quanto econômica – e inicia-se uma história cujo roteiro é bastante conhecido por todos: autoritarismo, campos de concentração e, no fim, a chamada solução final. A transição da república para o autoritarismo obscureceu, entretanto, um profícuo debate travado entre dois juristas nos últimos momentos de existência da ordem constitucional, Mestrando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (Brasil). Contato: [email protected]. 2 Reinhold Zippelius, Kleine deutsche Verfassungsgeschichte (Munique: Verlag C. H. Beck, 2006), 141. 1

https://dx.doi.org/10.17931/DCFP2015_V05_A70

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que, partindo do vocabulário cunhado pelo sociólogo Max Weber, elaboraram diagnósticos sobre a(s) crise(s) na Alemanha e os prognósticos necessários para uma harmonização da situação político-social daquele país. Trata-se do debate “Legalidade versus Legitimidade”, travado entre Carl Schmitt e Otto Kirchheimer nos anos de 1932 e 1933. O objetivo do presente trabalho é analisar no âmbito do pensamento weberiano as formas de dominação legítima, focando principalmente na forma legal-burocrática e a distinguindo das outras duas formas, para, posteriormente, debater a recepção imediata desta parte da teoria do sociólogo alemão no final da República de Weimar. A análise de tal debate não pode ser considerada mero fetichismo acadêmico, pois ambos acreditavam, naquele momento, que a crítica à prática jurídica do período weimariano traria consigo um possível aspecto normalizador do ambiente institucional alemão. Antes de nos determos nas especificidades do debate entre Schmitt e Kirchheimer, vejamos as principais noções que caracterizam o instrumental teórico utilizado na contenda, isto é, sociologia da dominação [Herrschaftssoziologie] de Max Weber.

1. Max Weber: dominação, burocracia e legalidade Todo poder e toda forma de diferenciação entre os homens aspira uma justificação autorreferenciada - uma razão de ser para além da mera factualidade. “A fortuna [das Glück]”, diz Max Weber, “quer ser legítima3” e em qualquer situação envolvendo um contraste entre as condições de vida dos homens, por mais aleatório que seja o critério que determina tal diferença, emergirá uma necessidade de justificação de tal situação como legítima e merecida por parte daquele que se encontra em posição mais avantajada. Todo agrupamento humano onde exista uma diferença das condições de acesso aos bens tidos como valiosos – honra, poder, propriedade, consumo etc. - deve lidar, nesse sentido, com o problema da justificação do respectivo quadro distributivo e, em última análise, com a questão da submissão dos indivíduos a tais esquemas e hierarquias. A fim de analisar o fenômeno da legitimação de uma ordem e valendo-se das orientações fundamentais de sua sociologia comMax Weber, „Die Wirtschaftsethik der Weltreligionen“ in Gesammelte Aufsätze zur Religionssoziologie: Band 1 (Tübingen: J. C. B. Mohr, 1986), 242.

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preensiva, Max Weber descreverá três tipos puros de dominação legítima: legal, tradicional e carismática4. Logo no início de seu ensaio “Os três tipos puros de dominação legítima”, o sociólogo oferece ao leitor uma dica acerca do foco investigativo sobre as formas de dominação. O primeiro aspecto a ser destacado é o entendimento de Weber acerca do conceito “dominação”. É comum a associação de tal vocábulo às ações violentas do dito dominador; contudo, segundo o autor, deve-se entender, por dominação, “a probabilidade de encontrar obediência a um mandato como determinado conteúdo entre pessoas dadas5”. Tal conceito se liga, portanto, a ideia de disciplina/obediência habitual, entendida como “a probabilidade de encontrar obediência para um mandato por parte de um conjunto de pessoas que, em virtude de atitudes arraigadas, seja instantânea, simples e automática6”. Afirma Weber que são vários os motivos que levam os indivíduos à obediência de determinada ordem – considerações utilitárias, costumes, hábitos cegos ou afetos pessoais. Entretanto, há algo para além de subjetivismos no que diz respeito à construção de uma ordem social estável com seu respectivo quadro distributivo e administrativo. Caso os motivos da obediência repousassem apenas nas disposições individuais, as relações entre dominantes e dominados seriam extremamente instáveis. Faz-se necessária a investigação de elementos supraindividuais que garantam uma estabilidade mínima da ordem de dominação vigente, de modo que o conjunto de tais elementos foi denominado pelo autor de “base de legitimidade7” [Legitimitätsgrund]. Deve-se destacar que a questão da legitimidade engloba as duas grandes perspectivas da análise sociológica até então: se por um lado a perspectiva do agente deve ser considerada como exigência do conceito de dominação, isto é, como probabilidade de obediência, por outro a noção de estrutura não pode ser ignorada, pois há um caráter objetivo nas estruturas de dominação, o que permite uma justificação das diferenças distributivas e hierárquicas para além da mera vontade dos indivíduos. O estudo dos tipos puros de dominação legítima refere-se, portanto, a uma análise das características estruturais que diferenciam as Max Weber, Economia y Sociedad (Cidade do México: Fondo de Cultura. Económica, 2002), 706-716. 5 Ibid., 43. 6 Ibid., 43. 7 Weber, Economia y Sociedad, 703. 4

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diferentes formas de dominação – que, como já mencionado anteriormente, são as formas de dominação tradicional, carismática e legal. As justificações internas, relacionadas à legitimidade do poder, assumem, primeiramente, forma da autoridade do “passado eterno”, ou seja, dos costumes santificados pela validez imemorial e pelo hábito enraizado nos homens de respeitá-las - assim se apresenta a “dominação tradicional”, que o patriarca ou o senhor exercia na antiguidade. A autoridade que se baseia em dons pessoais, devoção e confiança depositadas em alguém, que se diferencia por inteligência, heroísmo ou por outras qualidades (carisma) funda o que Weber chama de dominação carismática. Por fim tem-se a dominação legal, que seria a autoridade que se impõe pela legalidade e pela crença na validade de um estatuto legal estruturado por regras racionalmente estabelecidas. O foco da presente análise recai justamente na última forma de dominação citada, isto é, a dominação legal, uma vez que esta forma foi difundida no ocidente a partir do século XVIII e se liga, em última análise, ao desenvolvimento do Estado moderno ao longo da história. Pode-se, inclusive, afirmar, que o surgimento da dominação legal-burocrática é o reflexo do processo de modernização operado no ocidente no âmbito da política, pensando o fenômeno do moderno enquanto a sobrelevação da ação racional com respeito a fins em detrimento as outras formas de ação, como consequência do curto circuito entre ética do trabalho e salvação no âmbito do pensamento protestante. Estado e capitalismo se aproximam na medida em que a organização daquele se daria de forma semelhante a uma empresa capitalista. Como aponta o excerto a seguir do texto “Política como vocação”, o Estado moderno engendra uma racionalização progressiva da gestão política ao monopolizar todas as espécies de bens suscetíveis de utilização para fins de caráter político, solidificando o trabalho técnico-burocrático, em detrimento de formas irracionais de legitimação do poder: De modo geral, o desenvolvimento do Estado moderno tem por ponto de partida o desejo de o príncipe expropriar os poderes “privados” independentes que, a par do seu, detêm força administrativa, isto é, todos os proprietários de meios de gestão, de recursos financeiros, de instrumentos militares e de quaisquer espécies de bens suscetíveis de utilização para

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fins de caráter político. Esse processo se desenvolve em paralelo perfeito com o desenvolvimento da empresa capitalista que domina, pouco e pouco, os produtores independentes. E nota-se enfim que, no Estado moderno, o poder que dispõe da totalidade dos meios políticos de gestão tende a reunir-se sob mão única. Funcionário algum permanece como proprietário pessoal do dinheiro que ele manipula ou dos edifícios, reservas e máquinas de guerra que ele controla. O Estado moderno – e isto é de importância no plano dos conceitos – conseguiu, portanto, e de maneira integral, “privar” a direção administrativa, os funcionários e trabalhadores burocráticos de quaisquer meios de gestão8 (grifo nosso).

Tem-se que a inovação do Estado moderno foi a monopolização dos meios de gestão de recursos financeiros, de instrumentos militares e de quaisquer espécies de bens cuja utilização se traduz nos termos do interesse político. Tal monopolização traz consigo a introdução da lógica da empresa capitalista no âmbito estatal, provocando o surgimento de certo trabalhador especializado capaz de lidar com os meios materiais de gestão, apesar da monopolização destes por parte do Estado. O surgimento da profissão [Beruf] do burocrata reflete a racionalização dos meios do lidar com a política, uma vez que, idealmente, o burocrata age em virtude de um dever objetivo referente ao seu cargo, isto é sine ira et studio, “de modo estritamente formal segundo regras racionais ou, quando elas falham, segundo pontos de vista de conveniência ‘objetiva’9”. Pode-se dizer que a investigação da profissionalização da gestão política, entendida como processo social, possui duas perspectivas: uma histórica e outra longitudinal: Para a investigação do processo social da profissionalização, duas perspectivas de análise são possíveis – uma histórica e outra longitudinal. A perspectiva histórica diz respeito a seguinte pergunta: como uma determinada atividade cada vez mais padronizada e rotinizada foi cunhada como “profissão” e, finalmente, se tornou institucionalizada (...). Já em relação à segunda – a perspectiva longitudinal, esta diz respeito à trajetória do indivíduo. São investigadas as espécies típicas Max Weber, “A política como vocação” in Ciência e política: duas vocações (São Paulo: Editora Cultrix, 2000), 61-62. 9 Weber, Economia y Sociedad, 707. 8

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do processo de aprendizado, de qualificação e de socialização profissional de um indivíduo. Nessa perspectiva, a profissionalização significa a forma como uma pessoa, no decorrer de sua vida, transforma-se de amador à profissional10.

Pensado nos termos anteriormente citados, a profissionalização da política possui um marco histórico – surgimento do Estado moderno – a partir do qual se desenvolve um ramo específico do saber destinado ao cumprimento das exigências que a gestão da máquina estatal requer. O profissional da política não é necessariamente aquele dotado de carisma, mas sim o que passou pelo processo de formação e esta apto a manusear os instrumentos de gestão que compõe a máquina. Sua ação é orientada por mandamentos racionais que são elaborados por outra instância, que não o órgão burocrático. Trata-se aqui do conceito de lei consagrado desde o surgimento do Estado de Direito até a disseminação do ideal do Wohlfahrtstaat, após a segunda metade do século XX, de forma que abstração e generalidade são suas principais características. O órgão responsável por elaborar a lei positiva figura como o centro do poder daquela sociedade, na medida em que este, segundo Weber, pode ser conceituado como a probabilidade de impor a própria vontade no âmbito de uma relação social11. O fruto da atividade do órgão legiferante, orientada pelas regras procedimentais estabelecidas para tal, investe-se do caráter de obrigatoriedade para todos os membros do corpo social e mesmo aqueles que insistem no não-adimplemento de uma obrigação imposta legalmente são coagidos pelo aparelho estatal – gestor legítimo da violência12. Importante ressaltar que, ao conceituar a lei como mandato geral e abstrato fruto da atividade de um órgão com competência para tal, o caráter de validade da norma passa a repousar não no seu conteúdo – como defendia, por exemplo, a tradição do direito natural -, mas sim na sua origem. Válida é, portanto, uma norma geral e abstrata, elaborada por um órgão competente, segundo os trâmites estabelecidos pelas regras de processo legislativo, independentemente da vontade consubstanciada no mandamento fruto da atividade legiferante, - nessa concepDietrich Herzog, “Politik als Beruf: Max Webers Einsichten und die Bedingungen der Gegenwart“ in Wohlfartstaat, Sozialstruktur und Verfassungsanalyse, edited by Hans-Dieter Klingelmann et al (Opladen: Westdeutscher Verlag, 1993) 112. 11 Weber, Economia y Sociedad, 43. 12 Weber, “Política como vocação“, 56. 10

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ção de Estado, “racional é o mandamento formal, da moral política, de obedecer às leis independentemente de seu conteúdo13”. Tanto em relação à legitimidade atrelada ao procedimento quanto no que tange à suposta neutralidade da atividade burocrática, a política passa pautar-se por moldes racionalizados. Surge, nesse sentido, uma tensão contínua na sociedade entre as exigências da política e as da administração burocrática, entre as formas racionais e frias de dominação e as formas que resistem à racionalização – como a dominação carismática, que se exerce em nome do caráter excepcional do mandatário.

2. A República de Weimar e seus últimos suspiros O início da experiência democrática inédita em solo alemão inicia-se quando, em 9 de novembro de 1918, o líder do Sozialdemokratische Partei Deutschlands (SPD), Philipp Scheidemann profere discurso na sacada do Parlamento alemão proclamando a instauração do regime republicano. Já naquele momento, contudo, a nova República dava indícios de que tempos conturbados estavam por vir: cerca de duas horas depois, Karl Liebknecht, líder da Liga dos Espartaquistas, proclama, no Berliner Stadtschloss - a menos de dois quilometros de Schneidemann - a República Socialista Livre da Alemanha. A utopia da República dos Trabalhadores, contudo, durou pouco: já em 11 de novembro é formado um governo de coalizão, determinado em manter o curso de uma transição dita democrática14. A agitação política trouxe consigo a militarização da população civil e, consequentemente, o aumento dos conflitos entre facções ideológicas rivais. Somente nos primeiros meses de 1919, foram assassinados de forma brutal por forças paramilitares de direita – as chamadas Freikorps - os líderes socialistas Rosa Luxemburgo, Karl Liebknecht, Leo Jogiches Kurt Eisner e Hugo Haase15. O KPD – kommunistische Partei Deutschlands – por outro lado, respondia com greves e levantes armados16. As tensões anteriormente citadas estenderam-se ate meados Reinhart Koselleck, Crítica e crise: Uma contribuição à patogênese do mundo burguês (Rio de Janeiro: EDUERJ / Contraponto, 2009), 33. 14 Eric Weitz, Weimar Germany: Promise and Tragedy (Princeton: Princeton University Press, 2007), 19. 15 Ibd., 99. 16 Ibd., 91. 13

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da década de 20, de modo que, entre 1925 e 1928, a República de Weimar vive seus tempos áureos - os chamados anos dourados da década de 20 [Goldene Zwanziger]. As reformas elaboradas pelo Rentenbank17, em especial a substituição do Reichsmark pelo Rentenmark, deram estabilidade à moeda nacional, acabando assim com a chamada “Grande Inflação”. Além disso, as eleições parlamentares de 1924 reacenderam as aspirações da Assembleia Constituinte de 1919, uma vez que houve uma baixa adesão dos eleitores às propostas elaboradas por partidos assumidamente antirrepublicanos. Se o início da República fora marcado pelos conflitos civis entre extremistas de direita e de esquerda e pela ocupação da região do Ruhr, a estabilização econômica e política ocorrida a partir de 1925 contribuiu para o surgimento de certa “aparência de normalidade18”. O início da crise que culminaria no fim da República tem início em 1929, com a chamada “quinta-feira negra” e o desenrolar da Grande Depressão americana, que rapidamente se espalha para o restante do globo. Já na primavera de 1930, a crise chega à Alemanha, de modo que instituições financeiras americanas passaram a exigir o cumprimento das obrigações oriundas de empréstimos de curto prazo, tanto do setor privado quanto do governo. A crise que se inicia no âmbito econômico rapidamente passa a afetar o campo político da República, a partir de um quadro marcado por uma representação parlamentar pulverizada e, em parte, anti-sistêmica. Com isso, o chanceler Heinrich Brüning passou a efetuar suas ações de governo com base no artigo 48 da Constituição do Reich19 C. Paul Vincent, A Historical Dictionary of Germany’s Weimar Republic, 19181933 (Westport: Greenwood Press, 1997), 394-395. 18 Ellen Kennedy, Constitutional Failure (Londres: Duke University Press, 2004), 92. 19 Art. 48: (1) Quando um Estado não cumpre com deveres estabelecidos pela Constituição do Reich ou por Lei do Reich, pode o Presidente forçar tal cumprimento com auxílio das forças armadas; (2) Se a segurança pública e ordem se encontram seriamente ameaçadas ou perturbadas no âmbito do Reich alemão, pode o Presidente tomar as medidas necessárias para a restauração destas, intervindo, se for o caso, com o auxílio das forças armadas. Para isso, pode ele suspender em todo ou em parte, os direitos fundamentais expressos nos artigos 114, 115, 117, 118, 123, 124 e 153; (3) O presidente do Reich deve informar ao Reichstag sem delongas de todas as medidas tomadas com fundamento nas seções 1 e 2 do presente artigo. As medidas podem ser revogadas a pedido do Reichstag; (4) Na eminência do perigo, pode o governo estadual, no que diz respeito ao seu próprio território, adotar as medidas expressas no parágrafo 2. Essas medidas podem ser revogadas a pedido do Presidente do Reich ou do Reichstag; (5) Lei do Reich regulará o presente arti17

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- a decretação do estado de emergência. Interessante ressaltar que Brüning vale-se do estado de exceção não para afastar uma situação emergencial que se apresenta de forma pontual perante a cena política da República, mas sim como técnica de governo, valendo-se de tal instituto por aproximadamente um ano e meio – é esse o pano de fundo do debate entre Carl Schmitt e Otto Kirchheimer sobre a questão da legalidade versus legitimidade. No que diz respeito a Carl Schmitt, pode-se dizer que seu argumento sobre os motivos da crise consiste na afirmação de uma contradição interna no seio da Constituição de Weimar: se por um lado a primeira parte da Constituição estabelecia um sistema que orbitava em torno do Parlamento, cuja principal característica é a neutralidade axiológica em relação ao produto da atividade legiferante, por outro o texto constitucional elenca em sua segunda parte uma série de direitos e obrigações dos cidadãos alemães, que, em última instância, se baseavam em uma ordem axiológica a ser protegida pelo órgão estatal. O autor chega a afirmar que, dada tamanha contradição no interior do texto constituição, a parte “Direitos e obrigações fundamentais dos alemães” representaria uma “contraconstituição”20 e que a tensão entre estas era a fonte primordial das tensões políticas no território alemão. A solução esboçada por Schmitt consiste na afirmação da segunda parte da Constituição em detrimento das normas organizativas do sistema legiferante, de modo que o ancoramento legitimatório dessa “nova” Constituição seria o presidente do Reich, enquanto fonte de carisma e de autoridade oriunda de uma era pré-democrática21. A solução que Schmitt propõe – a afirmação da autoridade presidencial em face da neutralidade axiológica do Estado legiferante – baseia-se na concepção de povo e democracia que o autor elabora ao longo dos anos 20. Acerca do conceito de democracia, Schmitt afirma que esta seria a “identidade entre soberano e súdito, governante e governado, comandante e comandado22”. A democracia não se confundiria, portanto, com o parlamentarismo, marcado pela crença nos princípios da abertura e da discussão como método primordial para o alcance da verdade - e isso se deve, em grande parte, ao conceito de povo elaborado pelo autor. Schmitt afirma que go. 20 Carl Schmitt, Legality and Legitimacy (Durham: Duke University Press 2004), 53. 21 Ibid,, 90. 22 Carl Schmitt, Constitutional Theory (Durham: Duke University Press, 2008), 264.

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a principal característica do povo é ser uma entidade amorfa e não-organizada, de modo que a este só resta um papel passivo no que diz respeito à decisão política fundamental. A fim de exemplificar tal concepção, o autor lança mão de uma metáfora: o povo equivaleria aos presentes em um teatro, onde não colaboram com a representação da obra apresentada. O conceito é essencialmente negativo. Devido ao seu caráter anti-institucional, para Schmitt o povo é a instância aclamadora dos atos realizados pelos governantes. Daí resulta que é impossível captar uma vontade do povo, de modo que seria o Presidente do Reich, eleito pelo sufrágio universal, que encarnaria essa vontade e protegeria a ordem constitucional contra seus inimigos, interpretando as cláusulas abertas presentes na Constituição de 1919 – como “ordem pública”, “ameaça a segurança” dentre outras. Em suma, a solução que apresenta Schmitt é a afirmação de uma legitimidade carismática em detrimento das formas frias e racionalizadas do fazer política vinculadas ao Parlamentarismo e sua burocracia funcional. Otto Kirchheimer, contrapondo-se ao argumento schmittiano, assevera que a contraposição vista por Schmitt tem um caráter metodológico que reside, em última análise, na confusão entre ideais normativos políticos [Sollensideen] e a prática institucional estruturada a partir de tais ideais. Kirchheimer chamará tal artifício de “elemento conceitual realista23” da teoria schmittiana, que permite que seu autor, na tentativa de encontrar uma suposta atitude determinante perante o mundo por parte dos movimentos que ocorrem no âmbito da cultura24, conceitue de forma simplista “democracia” e “parlamentarismo” na construção de seu diagnóstico de época. A causa primordial da crise do sistema constitucional da República de Weimar, segundo Kirchheimer não seria a falta de decisão no âmbito da redação do texto constitucional, mas a existência de diversas práticas autoritárias fundamentadas nas chamadas cláusulas abertas, tanto pela burocracia executiva quanto pelo poder judicante. A burocracia, segundo ele, aspira a se colocar de forma independente a partir da sua suposta independência em relação às classes [klassenjenseitige Stellung] e se estabilizar como representante imediato da ordem nacional, independente de toda constelação de forças poOtto Kirchheimer, „Bemerkungen zu Carl Schmitts Legalität und Legitimität“ in Von der Weimarer Republik zum Faschismus (Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1976), 113. 24 Carl Schmitt, Political Romanticism (Cambridge: The MIT Press, 1986), 16. 23

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líticas e econômicas25. No que diz respeito ao poder executivo, a crítica de Kirrchheimer se dirige contra uma suposta materialização da ideia de “totalidade do povo” por parte do Presidente do Reich, ao se valer extensivamente, fundamentado pelo art. 48 da Constituição de Weimar, do chamado Notverordnungsrecht. Os decretos de emergência não se harmonizariam de forma alguma com o conceito de legalidade consagrado até então, pois, segundo o jurista, pertence a tal ideia “não só uma origem legal do poder, mas também, acima de tudo, o exercício legal deste26”, o que conferia um caráter ditatorial às práticas do executivo calcadas em um alargamento do campo semântico referente ao conceito de ameaça à ordem pública. Interessante registrar, por exemplo, que os poderes conferidos pelo art. 48 do texto constitucional foram utilizados para fundamentar medidas ordinárias referentes a créditos financeiros27. Já em relação à burocracia judicante, afirma Kirchheimer que a crença na suposta atuação sine ira et studio - como mencionada por Weber como característica essencial a uma formulação ideal de burocracia – não passa de mera ilusão. Ao interpretar cláusulas abertas, a burocracia interfere, por exemplo, na luta dos trabalhadores, provando que tal forma política e especulativa é reflexo das relações de classe. O autor lança mão do exemplo do julgamento de questões envolvendo a ruptura de convenções coletivas [Tarifvertrag] causada por trabalhadores a partir da adoção de medidas que escapam ao âmbito econômico – isto é, ilegítimas. Em decisão proferida em 1929, o Reichsarbeitsgericht apresentou o seguinte entendimento: Uma das consequências do acordo coletivo é dever do abandono de distúrbios trabalhistas injustificáveis e se valer de ações hostis somente quando fins econômicos são perseguidos. Se tal medida se dá sem um fim econômico ou sem justificativa evidente em si mesma, isso significa que, mesmo quando não se refere a responsabilidade contratual específica, houve uma quebra no dever geral de manutenção da ordem pacífica, baseada no acordo coletivo28. Otto Kirchheimer, „Legalität und Legitimität in Politische Herrschaft“(Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1981), 8. 26 Kirchheimer, “Legalität und Legitimität”, 13 27 Schmitt, Legality und Legitimacy, 76. 28 Kirchheimer, “Legalität und Legitimität”, 25. 25

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Em suma, a burocracia judicante decide se uma ação tomada pelo sindicato dos trabalhadores é legítima ou não, de forma que as ações tomadas tendo em vista a transição ao socialismo, por exemplo, eram tidas como não-econômicas e, nesse sentido, ilegítimas. Pensando em termos weberianos, Kirchheimer acredita que a patogênese institucional da República se relacionava ao desrespeito à lógica da legalidade como pensada quando do surgimento do Rechtsstaat. Este surge a partir da supressão do direito à resistência movida pela força absorvente da ideologia democrática assim como pela prática constitucional, sendo substituído pelo conceito racionalizado de lei [rationalisierte Gesetzbegriff]29, que pressupõe uma estrita atenção ao procedimento de sua gênese, sob pena da perda do caráter adstringente do comando legal. O prognóstico de Kirchheimer dá-se no sentido de um fortalecimento da racionalidade legal tradicional em detrimento da prática administrativa e judicante baseada nas chamadas cláusulas abertas. Ambos juristas acreditavam na possibilidade da salvaguarda da República a partir dos prognósticos prescritos. O que se viu, contudo, foi o surgimento de uma forma de dominação ilegítima – valendo-se dos termos de Weber -, fundamentada na naturalização da relação identitária entre poder e sociedade30. O fim da ordem republicana de Weimar não impediu, contudo, que os frutos de tais debates chegassem às discussões contemporâneas de Filosofia Política e Teoria da Constituição, revelando a necessidade de uma maior reflexão sobre os limites dos poderes de emergência do Poder Executivo e a importância de um convívio harmonioso entre os poderes.

Referências Herzog, Dietrich. Politik als Beruf: Max Webers Einsichten und die Bedingungen der Gegenwart In Wohlfartstaat, Sozialstruktur und Verfassungsanalyse, edited by Hans-Dieter Klingelmann et al, 107-126. Opladen: Westdeutscher Verlag, 1993. Kenndy, Ellen. Constitutional Failure. Londres: Duke University Press, 2004. Ibid., 9. Claude Lefort, “A lógica totalitária“ in A invenção democrática: os limites da dominação totalitária (Belo Horizonte: Autêntica, 2011), 99. 29 30

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Kirchheimer, Otto. Bemerkungen zu Carl Schmitts Legalität und Legitimität In Von der Weimarer Republik zum Faschismus, 113-151. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1976. ———. Legalität und Legitimität In Politische Herrschaft. 07-30. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1981. Koselleck, Reinhart. Crítica e crise: Uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Rio de Janeiro: EDUERJ / Contraponto, 2009. Lefort, Claude. A lógica totalitária In A invenção democrática: os limites da dominação totalitária, 87-103. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. Schmitt, Carl. Constitutional Theory. Durham: Duke University Press, 2008. ———. Legality and Legitimacy. Durham: Duke University Press 2004. ———. Political Romanticism. Cambridge: The MIT Press, 1986. Vincent, C. Paul. A Historical Dictionary of Germany’s Weimar Republic: 19181933. Westport: Greenwood Press, 1997. Weber, Max. Die Wirtschaftsethik der Weltreligionen In Gesammelte Aufsätze zur Religionssoziologie: Band 1, 237-275. Tübingen: J. C. B. Mohr, 1986. ———. A política como vocação In Ciência e política: duas vocações, 17-54. São Paulo: Editora Cultrix. 2000. ———. Economia y Sociedad. Cidade do México: Fondo de Cultura. Económica, 2002. Weitz, Eric. Weimar Germany: Promise and Tragedy. Princeton: Princeton University Press, 2007. Zippelius, Reinhold. Kleine deutsche Verfassungsgeschichte. Munique: Verlag C. H. Beck, 2006.

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