La vitalidad de la fenomenologia. Lecturas de la intencionalidad

July 16, 2017 | Autor: Mariana Larison | Categoría: Phenomenology, Intentionality, Phénoménologie, Fenomenología, Renaud Barbaras
Share Embed


Descripción

XXVII

ISSN 1413-6651 São Paulo - 2012

Editora Responsável Institucional Marilena de Souza Chaui Editora Responsável Tessa Moura Lacerda

N. XXVII, JUL-DEZ 2012 – ISSN 1413-6651

Comissão Editorial Celi Hirata, Daniel Santos, Douglas Barros, José Luiz Neves, Silvana de Souza Ramos Conselho Editorial Atilano Domínguez (Univ. de Castilla-La Mancha), Diego Tatián (Univ. de Córdoba), Diogo PiresAurélio (Univ. Nova de Lisboa), Franklin Leopoldo e Silva (USP), Jacqueline Lagrée (Univ. de Rennes), Maria das Graças de Souza (USP), Olgária Chain Féres Matos (USP), Paolo Cristofolini (Scuola Normale Superiore de Pisa) e Pierre-François Moreau (École Normale Supérieure de Lyon).

Ficha Catalográfica Cadernos Espinosanos / Estudos Sobre o século XVII São Paulo: Departamento de Filosofia da FFLCH-USP, 1996-2012. Periodicidade semestral. ISSN: 1413-6651

Pareceristas Pareceristas: André Menezes Rocha, Cíntia Vieira da Silva, David Calderoni, Douglas Ferreira Barros, Edmilson Menezes, Eduardo de Carvalho Martins, Eduino José de Macedo Orione, Fernando Dias Andrade, Herivelto Pereira de Souza, Homero Santiago, Isadora Bernardo Prévide, Luciana Zaterka, Luís César Oliva, Marcos Ferreira de Paula, Mônica Loyola Stival, Patrícia Aranovich, Roberto Bolzani Filho, Sérgio Xavier Gomes de Araújo. Publicação do Grupo de Estudos Espinosanos e de Estudos sobre o Século XVII Universidade de São Paulo Reitor: Prof. Dr. João Grandino Rodas Vice-Reitor: Prof. Dr. Hélio Nogueira de Cruz FFLCH - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Diretor: Prof. Dr. Sérgio França Adorno de Abreu Vice-Diretor: Prof. Dr. Modesto Florenzano Departamento de Filosofia Chefe: Milton Meira do Nascimento Vice-Chefe: Caetano Ernesto Plastino Coord. do Programa de Pós-Graduação: Alberto Ribeiro de Barros

Imagem da Capa: Ballerina II, Joan Miró 1925 Acervo: Galerie Rosengart, Switzerland

Endereço para correspondência: Profa. Marilena de Souza Chaui A/C Grupo de Estudos Espinosanos Departamento de Filosofia – USP Av. Prof. Luciano Gualberto, 315 05508-900 – São Paulo-SP – Brasil Telefone: 0 xx 11 3091-3761 – Fax: 0 xx 11 3031-2431 e-mail: [email protected] site: http://www.fflch.usp.br/df/espinosanos Projeto Gráfico: Taynam Bueno /// [email protected] /// Tiragem: 500 exemplares A Comissão Editorial reserva-se o direito de aceitar, recusar ou reapresentar o original ao autor com sugestões de mudanças.

3

APRESENTAÇÃO

O Grupo de Estudos Espinosanos do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, em 2004, completou 10 anos.Ao longo deste período, diversas atividades foram desenvolvidas e procurou-se fazer o registro delas para, como diz Espinosa, tentar contornar as forças do “tempo voraz que tudo abole da memória dos homens”. Os Cadernos Espinosanos se inspiram nesse propósito. Desde o número X, dedicado ao Professor Lívio Teixeira, os Cadernos estão dedicados também a Estudos sobre o século XVII, seu subtítulo. O que, na verdade, expressa algo que já acontecia na prática, pois textos acerca de vários outros filósofos do período sempre estiveram presentes a cada edição. O objetivo destes Cadernos continua sendo publicar semestralmente trabalhos sobre filósofos seiscentistas, constituindo um canal de expressão dos estudantes e pesquisadores deste e de outros departamentos de Filosofia do país. Porque destinados a auxiliar bibliograficamente aos que estudam o Seiscentos, tanto para os trabalhos de aproveitamento de cursos, quanto para a elaboração de outros projetos de pesquisa, estes Cadernos também publicarão, regularmente, ensaios de autores brasileiros e traduções de textos estrangeiros, contribuindo com o acervo sobre o assunto. Esperamos que esta iniciativa estimule os estudos sobre os filósofos daquele período a que esta publicação é inteiramente dedicada e permita criar ou ampliar a comunicação entre os que estão envolvidos com a pesquisa desses temas, incentivando, inclusive, outros departamentos de Filosofia a colaborar conosco no desenvolvimento deste trabalho.

Franklin Leopoldo e Silva 5

SOBRE ESTE NÚMERO Especial Renaud Barbaras

No marco do projeto temático “Ruptura e Continuidade: Investigações sobre a relação entre Natureza e História a partir de sua formulação pelo Grande Racionalismo Seiscentista”, o Grupo de Estudos Espinosanos decidiu realizar, em Agosto de 2011, duas jornadas de análise e discussão do pensamento do filósofo francês Renaud Barbaras. Responsável em grande medida pelo renascimento dos estudos merleau-pontianos, Renaud Barbaras é antes de tudo um fenomenólogo preocupado com problemas ligados à percepção e à vida, através dos quais busca a articulação de um sistema onde a fenomenologia seja também complementada por uma cosmologia e uma metafísica. Os textos reunidos neste volume – os quais foram apresentados durante as Jornadas Barbaras – percorrem o pensamento do filósofo tanto para interrogar sua relação com outros pensadores contemporâneos (tais como Bergson, Husserl, Heidegger e Merleau-Ponty) quanto para discutir os avanços e os limites de sua proposta. Convidamos então nossos leitores para conhecer a obra de Barbaras, através de sua própria letra (num texto inédito que inaugura a coletânea) e mediante o olhar crítico de pensadores brasileiros e estrangeiros, que se debruçaram sobre este importante capítulo da fenomenologia, a fim de decifrá-lo e homenageá-lo. Boa leitura!

Os Editores 7

SUMÁRIO

Dinâmica da manifestação Renaud Barbaras....................................................................................11 A vida entre desejo e criação: Renaud Barbaras leitor crítico de Bergson Débora Morato Pinto.............................................................................31 De Merleau-Ponty a Barbaras Luiz Damon Santos Moutinho................................................................63 Vida privativa ou vida lacunar? Marcia Sá Cavalcante Schuback..............................................................71 Renaud Barbaras, leitor de Husserl Marcus Sacrini........................................................................................95 A percepção segundo Barbaras Leandro Neves Cardim.........................................................................105 O corpo vivido e o movimento da vida em M. Merleau-Ponty e R. Barbaras (Tradução de Silvana de Souza Ramos) Esteban A. García.................................................................................131 9

A experiência da falta e o mistério do desejo Silvana de Souza Ramos.......................................................................159 Renaud Barbaras e a vitalidade da fenomenologia Mariana Larison....................................................................................179 Notícias.....................................................................................................201 INSTRUÇÕES PARA OS AUTORES...........................................................203 CONTENTS...................................................................................................205

Dinâmica da manifestação

Renaud Barbaras* Resumo: O a priori universal da correlação entre o ente transcendente e seus modos subjetivos de doação desenha o quadro mínimo de qualquer abordagem que se reivindique fenomenológica. Seu objetivo próprio é, então, caracterizar ao mesmo tempo a natureza exata da relação e o sentido de ser dos termos em relação, a saber, do sujeito e do mundo. Trata-se de mostrar que uma análise rigorosa da correlação necessariamente se desdobra em três níveis e que a fenomenologia está, assim, destinada a ultrapassar-se a si mesma em direção a uma cosmologia e a uma metafísica. A correlação fenomenológica, a qual se estabelece como sendo, no fundo, a relação entre um sujeito que é desejo e um mundo que é profundidade, supõe sua filiação comum a uma physis, cuja descrição depende de uma cosmologia. Mas a diferença do sujeito, sem a qual não há correlação, remete ela própria a uma cisão, ainda mais originária, a qual afeta o processo mesmo da manifestação e abre espaço a uma metafísica. Nós mostramos, portanto, que a fenomenologia se realiza sob a forma de uma dinâmica geral da manifestação, na medida em que ela é necessariamente conduzida a pensar o movimento sob a tripla figura do desejo que atravessa nossa existência, do arquimovimento da manifestação e do arquievento da cisão que o afeta. Palavras-chave: vida, desejo, fenomenologia, cosmologia, metafísica.

Minha interrogação não se situa apenas no âmbito da fenomenologia: ele quer ser uma interrogação sobre a própria fenomenologia. Trata-se de se perguntar qual é a condição de possibilidade da fenomenologia ou, antes, o que é necessariamente envolvido pela abordagem fenomenológica. Em outras palavras: em que direção deve-se enveredar e até onde deve-se ir se * Université Paris 1. Membro do Institut Universitaire de France. 10

11

Cadernos Espinosanos XXVII

12

Renaud Barbaras

se quiser respeitar as exigências próprias à abordagem fenomenológica? A

No que diz respeito ao termo transcendente, dissemos que seu ser

resposta a essa interrogação dará resultados surpreendentes. Com efeito,

repousa sobre seu aparecer. Ora, se é verdade que o ser do ente consiste em

nós vamos mostrar que, longe de exigir um princípio de fechamento, o

aparecer, por outro lado, este aparecer requer que o ente não se confunda

respeito da exigência constitutiva da fenomenologia leva a uma forma

com sua aparição, que ele permaneça aquém dela, justamente para poder

de ultrapassagem dela, ultrapassagem por assim dizer interna, como se a

aparecer. Vale dizer que aquilo que aparece sempre se ausenta das suas

fenomenologia só pudesse ser o que ela é ao se tornar outra, como se ela só

próprias aparições já que ele é o sujeito delas e fica portanto ocultado nelas.

pudesse se constituir ao exceder-se. Como veremos, essa ultrapassagem

Essa transcendência do aparecente é tanto irredutível quanto inelutável:

é dupla: ela leva a uma cosmologia e desta a uma metafísica. Mas, é

ela não remete para uma dimensão situada para além da aparição, ela não

óbvio que, em compensação, o sentido que outorgaremos à cosmologia

é o avesso duma proximidade possível. Enquanto não sendo senão sua

e à metafísica será transformado pelo quadro fenomenológico no qual

aparição, o ente que nela aparece não pode ser apreendido em outro lugar

ambas têm lugar.

do que nela: ela se dá apenas como sua profundidade ou sua transcendência

Partamos portanto da caracterização husserliana da tarefa própria

próprias. Essa primeira descrição nos leva imediatamente a superar o

à fenomenologia, tarefa a qual Husserl dedicou a vida inteira : a elaboração

âmbito do ente propriamente dito. Entendida como momento constitutivo

do a priori universal da correlação. Segundo tal a priori “qualquer ente,

do aparecer, a transcendência só pode ser a do próprio mundo ou, antes,

seja qual for o seu sentido e sua região, é o índice dum sistema subjetivo

o mundo não é senão o nome dessa transcendência pura. O mundo não

de correlação”, o que quer dizer que “nenhum homem imaginável, e

é a totalidade dos entes, nem um grande Objeto ou um grande Ente mas

qualquer que seja a maneira como o imaginemos modificado, poderia

aquele excesso imensurável de todo ente em relação a ele mesmo, excesso

fazer a experiência de um mundo em modos de doação outros do que

que toma a forma da continuabilidade da experiência e lhe garante assim

essa relatividade incessantemente móvel, enquanto mundo que lhe é

a doação. Com efeito, em momento nenhum eu poderia ultrapassar tal

dado na sua vida de consciência e na comunidade que ele constitui com

aspecto atual de tal objeto em proveito de novos aspectos, que virão

seus companheiros de humanidade”. Essa correlação especifica uma

confirmar ou desmentir aquilo que eu tinha posto com base nesse primeiro

relatividade de cada um dos polos ao outro, relatividade que é constitutiva

aspecto, se não me fosse garantida de saída a possibilidade de ultrapassar

do seu próprio ser. Um ente que não se desse subjetivamente não seria,

tal experiência atual e se, por conseguinte, não me fosse originariamente

do mesmo modo que uma consciência que não se relacionasse com uma

dado o palco ou o quadro dentro do qual minha experiência se desenrola.

realidade transcendente, ou seja, que não fosse intencional, também não

Esse palco não é senão o do próprio mundo.

seria. Trata-se portanto não apenas de dar conta da correlação mas de

No entanto, a questão mais dificil é a do sentido de ser do sujeito

pensar de acordo com ela, ou seja de tomar tal relatividade como ponto

da correlação. Este é submetido a duas condições: de um lado, ele existe

de partida, de morar nela por assim dizer, a fim de lançar luz sobre o

de um modo diferente do dos outros entes, enquanto ele é a condição da

sentido de ser dos termos que ela articula.

aparição deles; mas, por outro lado, ele faz parte do mundo, manifesta 13

14

Cadernos Espinosanos XXVII

Renaud Barbaras

um parentesco ontológico com ele, parentesco sem o qual também não

plenitude e, nesse sentido, os vividos ainda são coisas (ou seja, objetos

poderia fazê-lo aparecer. Ora, em Husserl, essas duas condições ficam

de uma intuição). Em consequência, fugir da reificação da consciência

inconciliáveis: há um fosso intransponível entre a consciência empírica

não equivale a abandonar o mundo em proveito de um fora-do-mundo

e a consciência transcendental já que esta só pode constituir o mundo

que continua sendo substancial: é, muito pelo contrário, ultrapassar a

contanto que não faça parte dele, fique separada dele por um abismo de

abordagem estática do sujeito em proveito de uma abordagem dinâmica.

sentido, segundo a fórmula de Husserl, que circunscreve o espaço do

Dizer que o sujeito distingue-se dos outros entes equivale a dizer que ele

absoluto. A pergunta é, portanto, a seguinte: como pensar o ser do sujeito

não é de jeito nenhum uma coisa, que ele existe sob a forma duma negação

de tal modo que ele possa fazer aparecer o mundo e fazer parte dele do

da coisidade, o que não significa que ele seja um nada mas sim que seu

mesmo ponto de vista, que seu pertencimento ao mundo não comprometa

modo de ser é o da negação. Ao passo que os entes mundanos são o que

mas, pelo contrário, condicione sua atividade fenomenalizante? É do

eles são, o sujeito não é o que ele é, no sentido em que ele existe como

lado daquilo que distingue o sujeito dos demais entes mundanos, isto

sua própria negação. Ora, a que pode remeter tal negação efetiva e ativa

é, das coisas propriamente ditas, que acharemos a via da solução. Num

senão ao próprio movimento? No entanto, longe de nos afastar do mundo,

manuscrito inédito, Husserl escreve: “quem nos salvar de uma reificação

a negação efetiva em que consiste o movimento nos insere profundamente

da consciência será o salvador da filosofia, senão seu criador”. Mas o que

nele. Qualquer movimento advem necessariamente no seio do mundo, a

significa escapar de uma reificação da consciência? Pensar a consciência

título da posição fundamental requerida por essa negação, do solo sobre

como uma esfera imanente constituída por vividos nos enseja escapar

o qual tal movimento se desenvolve. Assim, é sim ao passar de uma

dessa reificação, mesmo se essa esfera é, segundo Husserl, um absoluto

abordagem estática para uma abordagem dinâmica que se torna possível

fora do mundo? Na realidade, como Patočka o estabeleceu definitivamente,

conciliar a diferença do sujeito com seu pertencimento: do mesmo ponto de

ao fundar a atividade constituinte sobre a esfera imanente dos vividos,

vista, o do movimento, o sujeito difere radicalmente dos entes mundanos e

acessíveis à reflexão e por princípio suscetíveis de uma auto-percepção

pertence profundamente ao mundo.

adequada, Husserl subordina o aparecer a um aparecente e assim submete

Tal movimento remete à própria vida, uma vez que esta enraiza-se

subrepticiamente a fenomenalização a uma certa categoria de coisas que,

num viver que é mais profundo do que a partição entre a vida intransitiva

por serem subjetivas ou imanentes à consciência, nem por isso deixam de

(leben) e a vida transitiva (erleben): pertencendo ao mundo enquanto ser

ser coisas, na medida em que eles são da alçada de uma doação intuitiva.

vivo, o sujeito o faz aparecer enquanto o “vive” (ou seja, experimenta). Ora,

Assim, o sentido de ser que caracteriza a coisa enquanto tal e a

essa referência à vida nos permite especificar a natureza desse movimento.

torna suscetível de ser objeto de uma intuição, para além da diferença entre

Ele é mais do que um mero deslocamento, já que esse movimento faz

objetos e vividos, é seu caráter estático. É por ser aquilo que ela é (na

aparecer o mundo, mas nem por isso se confunde com uma prova ou uma

verdade é nisso que reside seu modo de ser), é por ser idêntica a si mesma

experiência jà que ele se realiza dentro do mundo. É uma experiência

que a coisa pode ser apreendida numa intuição, obturar o olhar com sua

que toma a forma de um avanço ou, antes, um outro (terceiro) modo de 15

16

Cadernos Espinosanos XXVII

Renaud Barbaras

ser mais originário, mais profundo do que a prova subjectiva e o mero

nosso movimento insere-se num arquimovimento que é o de uma physis

deslocamento, exatamente como o viver é mais profundo do que a diferença

(natureza). Ao menos três tipos de argumentos nos levam a essa conclusão.

entre experiência transitivita e estar vivo.

O primeiro diz respeito ao desejo. Com efeito, está na hora de acrescentar

Ora, o estatuto do pôlo transcendente da correlação confirma e

que o desejo tem um sentido ontológico: ele corresponde a um defeito de

esclarece a nova caracterização dinâmica do sujeito. Ele é situado para

ser e, nesse sentido, sempre é desejo de si mesmo. É necessariamente o

além da partição entre deslocamento espacial e prova subjectiva porque

sujeito do desejo que está em jogo no desejo. Em consequência, o desejo

aquilo que é vivido nele ou visado por ele é caracterizado por uma falta

sempre tende a atualizar o mundo ao se aproximar dele uma vez que é

de apresentabilidade (ou de presença) e, portanto, se furta a qualquer

nele, no mundo, que reside o ser do sujeito do desejo. O sujeito do desejo

intuição. É na medida em que o mundo vem, por assim dizer, arrancar o

realiza seu próprio ser ao se avançar para o mundo. Assim o desejo desvela

ente do domínio da plena presença que o sujeito encontra-se arrancado de

a conivência ontológica entre o sujeito e o mundo que ele visa: para além

qualquer forma de coincidência com ele mesmo e realiza-se sob forma de

da relação de manifestação, cabe reconhecer uma relação de ser que é a

viver. O excesso em relação a si mesmo que caracteriza o viver dinâmico

verdadeira condição do desejo e de sua potência de manifestação.

é a contrapartida do excesso irredutível do mundo em relação àquilo que

Isso nos conduz, em segundo lugar, ao problema do pertencimento.

nele aparece. Esses quesitos teóricos, oriundos da correlação, nos levam a

Se é verdade que, enquanto movimento, o sujeito não é alheio ao mundo,

definir o viver subjectivo como desejo. Com efeito, o desejo (por diferença

contudo, sujeito e mundo continuam se opondo como uma negação e

com a necessidade) é caracterizado pelo fato de que aquilo que o apazigua

a posição subjacente. O movimento pelo qual o sujeito está ao mundo

o acirra ao mesmo tempo. Nenhum objeto suscetível de satisfazê-lo pode

desenvolve-se no mundo mas ainda não é do mundo. Ora, reconhecemos a

preenchê-lo e é por isso que ele só alcança seu objeto atravès do impulso,

necessidade de uma conivência ontológica entre sujeito e mundo. Portanto,

do avanço incessante que o leva para ele, o aproxima dele. O desejo é

cabe afirmar que há um pertencimento originário do sujeito ao mundo,

inextinguível porque nada o pode preencher e nada o pode preeencher pois

ou seja, um hiperpertencimento que esclarece o verdadeiro sentido do

aquilo que ele visa verdadeiramente, a saber o mundo, impossibilita por

mundo. Se o sujeito é movimento e se ele pertence ao mundo sob o modo

princípio qualquer apropriação. Ao excesso infinito do mundo só pode

de um parentesco ontológico, segue-se daí que o próprio ser do mundo

corresponder o avanço insaciável do desejo. Assim, ao cabo dessa análise

deve ser situado do lado do movimento: a abordagem estática que até agora

propriamente fenomenológica dos polos da correlação, cabe concluir

prevalecia deve ser superada em proveito de uma abordagem radicalmente

que ela põe em relação um sujeito cuja vida é desejo e um mundo que é

dinâmica. Nosso movimento desdobra-se sobre o pano de fundo do mundo

profundidade pura.

enquanto totalidade, mas o sujeito desse movimento fica em continuidade

Nesse ponto, somos conduzidos a ultrapassar a fenomenologia

com um mundo que é, mais profundamente, uma realidade processual,

em proveito de uma cosmologia, isto é, a reconhecer que o verdadeiro

de modo que o movimento do sujeito provém do próprio processo do

sujeito de nosso movimento fenomenalizante é o próprio mundo, que

mundo. Nesse sentido, não tem nenhuma alternativa entre a diferença do 17

18

Cadernos Espinosanos XXVII

Renaud Barbaras

sujeito em relação ao mundo como totalidade de entes e, por outro lado,

nos leva a uma investigação de natureza cosmológica. No entanto, é

sua identidade com o mundo enquanto realidade dinâmica. Tal conclusão

preciso acrescentar imediatamente que essa cosmologia permanece

pode ser confirmada, em terceiro lugar, à luz de uma reflexão sobre a vida.

fenomenológica. Com efeito, aquilo que vale para o sujeito também vale

Com efeito, o surgimento de um movimento orientado num organismo

para o mundo, de modo que a physis deverá ser compreendida como um

fica profundamente incompreensível. Como, daquilo que é radicalmente

movimento fenomenalizante, que a fenomenalização efetuada pelo sujeito

alheio à ordem do movimento, ou seja, de um corpo dotado de certas

remeterá para uma protofenomenalização que é a própria obra do mundo.

propriedades, poderia nascer um movimento intencional? Na verdade, o

Em outras palavras, cabe reconhecer que a fenomenologia dinâmica

organismo só pode se mover porque ele pertence à ordem do movimento,

reenvia a uma dinâmica fenomenológica. A primeira, como vimos, lança

porque ele fica ontologicamente do lado do movimento, de modo que não

luz sobre a condição dinâmica da fenomenalização subjetiva; ela desvenda

é tanto o organismo que produz o movimento quanto o movimento que

um movimento no âmago do sujeito. Sua proposta é a de que não se pode

dá lugar ao organismo. O hiperpertencimento dinâmico do sujeito a um

pensar o sujeito sem movimento. A dinâmica fenomenológica, por sua

mundo processual significa que nossa vida nunca é apenas nossa, que

vez, vai muito mais longe, pois ela inverte a ordem de determinação: ela

ela é a vida que ela é na medida em que ela se inscreve numa vida mais

descobre, em qualquer movimento, um processo de fenomenalização. Ela

originária, que é a vida de ninguém por ser a vida do mundo, do mesmo

envolve a fenomenologia dinâmica no sentido em que ela mostra que o

modo que Aristóteles falava em vida das coisas. Em outras palavras, não

sujeito existe como movimento porque a essência do movimento implica

é por sermos seres vivos, ou seja, organismos, que vivemos; ao contrário,

um modo de fenomenalização. Sua proposta é a de que não se pode pensar

é por vivermos, ou seja, por termos recebido a vida ou por pertencermos à

o movimento sem fenomenalização. Não existe movimento que não seja,

vida que somos seres vivos.

de algum modo, um movimento de aparecer.

Assim, ao levarmos em conta a especificidade do sujeito que é

É preciso portanto caracterizar mais adiante essa physis e mostrar

desejo e pertence ao mundo, somos conduzidos a afirmar que seu movimento

em que sentido seu movimento é sim um movimento de manifestação. O

vem de mais longe que ele mesmo, que ele se insere num protomovimento

arquimovimento do mundo, do qual procede nosso movimento, só pode

que corresponde ao verdadeiro sentido de ser do mundo e o define como

designar o movimento pelo qual o próprio mundo advém, movimento

physis. Mas, também avançamos relativamente ao problema da correlação,

que se pode chamar, por isso, de movimento de mundificação. Ora, num

pois enfrentamos assim a questão do ser da correlação, e não apenas a

contexto fenomenológico que exclui obviamente qualquer forma de

dos polos da correlação. Se o sujeito e o mundo podem ser relativos um

criação, o processo de advento do mundo só pode significar uma saída

ao outro, é na medida em que ambos pertencem a uma realidade mais

fora de um fundo indiferenciado, fora da indeterminação, em suma um

profunda da qual eles são modalidades. Essa realidade que é de natureza

processo de diferenciação ou de determinação. Com efeito, na medida em

processual não é senão um arquimovimento que é a própria obra do mundo

que tudo quanto pretende ser pertence ao mundo, aquilo de que o mundo

ou, antes, o mundo como obra. É nesse sentido que a análise fenomenológica

procede só pode remeter para um não-ser determinado, não ser que não é 19

20

Cadernos Espinosanos XXVII

Renaud Barbaras

um nada mas a noite da indiferenciação. Mas, é preciso acrescentar que

que aparece já está completamente presente mas fica escondido nessa

essa noite é apenas, de certa forma, um momento abstrato, uma vez que

própria presença pois nada o separa do ambiente, pois ainda não está

ela deve ser suposta pelo movimento de mundificação como aquilo que

delineado. Nesse caso, o aparecer já não significa uma travessia ou um

desde sempre foi superado, ou seja, iluminado: já ficamos para além do

apagamento da camada interposta mas simplesmente uma delimitação, ou

indiferenciado, “em via de mundo”, em curso de constituição do mundo.

seja, uma definição, no sentido em que nesta uma fronteira (finis) vem

Em outras palavras, o fundo não é senão sua própria ultrapassagem; só tem

sendo desenhada. Assim, dizer que uma coisa aparece equivale a dizer que

fundo como saída fora do fundo. O excesso do fundo em relação àquilo que

ela sai da noite do indiferenciado, que ela se separa do ambiente, que ele

ele possibilita ou funda só se manifesta sob forma do excesso irredutível

se delineia, quer dizer, se individua. Ora, já que é justamente assim que

da potência mundificante sobre aquilo que ela produz. Segue-se daí que o

definimos acima o processo do mundo, torna-se legitimo afirmar que o

processo mundano é necessariamente um processo de diferenciação, ou

processo mundificante confunde-se com um aparecer originário, que ainda

seja, de constituição e, portanto, de multiplicação dos entes dentro dele.

não é aparecer a alguém, em outras palavras, que só há dinâmica como

Devir mundo equivale a sair da indiferenciação, isto é, dar lugar a uma

dinâmica fenomenológica.

pluralidade e se produzir a si mesmo como a unidade dessa pluralidade. A

Semelhantes resultados levantam um último problema. O que

totalidade enquanto tal é o rastro ou o sedimento da unidade da potência no

especifica o aparecer como aparecer para (alguém), ou seja, como movimento

seio da multiplicidade ao qual ela dá lugar. Em suma, o arquimovimento

subjetivo no seio do arquimovimento fenomenalizante? É preciso dizer,

do mundo não é senão um processo de individuação.

primeiro, que, do mesmo modo que a coisa aparece primariamente em

No entanto, falta entender em que sentido este movimento é da

razão da sua relação com o mundo que a produziu, o aparecer subjetivo

alçada do aparecer, em que sentido o processo physico é sim um processo

remete para aquilo que acontece com a coisa já individuada em razão

de manifestação. Aparecer significa ser descoberto: o aparecer é sempre

da sua relação com o nosso movimento. O que acontece com a coisa

uma descoberta. A descoberta significa, por sua vez, a negação ou a saída

quando o movimento subjetivo (o nosso) se relaciona com ela? O que faz

fora da ocultação, de modo que o sentido do aparecer reenvia ultimamente

esse movimento que o mundo não possa fazer? Justamente nada. O que

ao sentido que se outorga à ocultação. Ora, há duas maneiras de estar

distingue o movimento subjetivo é sua ineficiência. Mas esta ineficiência

escondido ou ocultado: por interposição ou por indiferenciação. No

não é desprovida de efeito: incapaz de produzir a própria coisa (como o

primeiro caso, aquilo que está ocultado o está por estar encoberto, ou seja,

mundo o faz), ela só consegue desenhar a forma dela (aquilo que sobra

porque alguma coisa vem se interpor, fazer o papel de tela entre aquilo

quando a matéria falta): a forma se destaca do conteúdo e assim aparece.

que aparece e aquele a quem aparece. A descoberta em que consiste o

A impotência do nosso movimento dá nascimento à determinação, que, na

aparecer é, nesse caso, um desvalemento e ela põe fim a um encobrimento.

verdade, é o correlato exato do ser-desejado, pois nosso movimento não é

Mas, há uma segunda maneira de estar ocultado: não por interposição ou

capaz de produzir o próprio determinado. Assim, o momento propriamente

encobrimento mas por indiferenciação ou fusão com o ambiente. Aquilo

subjetivo do aparecer, derivado em relação ao aparecer primário que 21

Cadernos Espinosanos XXVII

Renaud Barbaras

é individuação, remete à ineficiência de um movimento que é apenas

à segunda potência, um movimento no movimento, ou antes aquilo que

aspiração, ou seja, precisamente àquilo que diferencia nosso movimento

acontece com o movimento (do mundo) sem ser incluído ou envolvido

dos movimentos do mundo. Chegamos à conclusão segundo a qual existe

nele. Definimos assim um evento e chameremos de arquievento esse

um ente, o que somos, cuja condição de ser é uma separação, um ente que

movimento no movimento do mundo, pelo qual ele se destaca (nos dois

não faz nada existir, que se destaca do mundo pela sua impotência, como

sentidos) dele mesmo, abre nele mesmo uma distância intransponível.

se a potência do mundo nele se perdesse, desaparecesse. Nossa condição

Esse arquievento desemboca num outro sentido, mais profundo, da

se caracteriza pelo surgimento de um segundo modo de individuação que

negatividade. Tem uma negatividade concreta como autonegação efetiva,

vem se acrescentar ao primeiro: não apenas somos produzidos pelo mundo

que corresponde àquela modalidade de ser que é um movimento: ela

enquanto ente que somos - mais precisamente o corpo que temos - mas,

se distingue do ser enquanto ela é devir e o solo ou sujeito dela é o

diferentemente de todos os outros entes, ficamos separados do mundo no

próprio mundo. Mas, é preciso distinguir dessa primeira negatividade a

sentido em que nosso movimento se separou do processo de mundificação e

do arquievento que é, por sua vez, mera negatividade. Enquanto evento

pode, por esse motivo, voltar para sua fonte. Uma reflexão sobre o estatuto

de cisão ou de ruptura, ele não possui nenhuma positividade, nem sequer

do desejo levaria à mesma conclusão. Com efeito, se é verdade que o

a que possuiria um mero nada separado do ser (como em Sartre, por

desejo sempre remete para uma comunidade de ser, um parentesco, isto

exemplo): ela não é nada fora aquilo que ela separa, ela não é nada fora

é, é desejo de si mesmo no outro, por outro lado só há desejo se o sujeito

aquilo que é dividido por ela. Semelhante negatividade não se distingue

do desejo fica radicalmente separado do seu próprio ser, caracterizado por

apenas da substância mas sim do próprio movimento.

uma forma de exílio ontológico.

22

Ficamos situados doravante nos antípodas de qualquer forma

É exatamente nesse ponto que devemos dar um segundo passo,

de racionalismo. Com efeito, tudo quanto acabamos de dizer equivale a

ou seja, realizar uma segunda ultrapassagem, dessa vez da própria

afirmar que o sujeito que somos já não pode ser compreendido como o

cosmologia. A pergunta que vem agora à tona é a do estatuto da cisão, no

lugar ou a fonte da razão. O sujeito é o sem razão por excelência já que ele

arquimovimento do mundo, pela qual pode surgir o movimento subjetivo

corresponde a um evento que afeta o movimento do mundo mas que este

e, por conseguinte, a fenomenalidade propriamente dita. Ora, se essa cisão

não contem, não possibilita. O fato do sujeito não reenvia para nenhuma

afeta o arquimovimento, ela não pode de jeito nenhum proceder dele, na

possibilidade, nem sob forma de uma essência que lhe fosse própria,

medida em que o movimento do mundo é produção, ou seja, afirmação

nem sob forma de uma potência ou potencialidade inscritas no processo

e não negação, de modo que nada nele enseja entender que ela possa se

do mundo. Muito pelo contrário, ele é o próprio impossível: aquilo que

cindir, se separar dele mesmo. Em outras palavras, a cisão de que nosso

não pode ser, por princípio, justificado, aquilo que não tem razão, a não

movimento procede não é uma possibilidade do arquimovimento do

ser enquanto seu próprio advento, aquilo que, nesse sentido, não pode ser

mundo; ela reenvia à arquifatualidade de uma ruptura que nada anuncia

conhecido. Ora, como caracterizar o domínio daquilo que não pode ser

no seio do arquimovimento. Ela pode ser descrita como um movimento

referido a uma causa ou a uma razão mas que porém devemos supor, senão 23

24

Cadernos Espinosanos XXVII

Renaud Barbaras

como domínio da metafísica? O que pode justificar semelhante afirmação?

arquievento, não fizemos nada senão pôr em destaque essa irracionalidade

Primeiro e simplesmente, do ponto de vista de uma abordagem que

do fato transcendental, ou seja, apreender o transcendental a partir da sua

entende o movimento de manifestação como um processo de mundificação

arquifacticidade, a saber, como fato puro. Portanto, a pergunta relevante é

assemelhável a uma physis, a descoberta de um arquievento que nada

antes a de saber qual é o sentido de um fato originário, que não pode ser

pode anunciar ou antecipar nessa physis e a transcende é sim da alçada

referido a uma causa ou uma essência. Achamos que um puro fato deve ser

de uma metafísica. Esta se distingue da ontologia exatamente como a

pensado como não sendo o fato de nada, nem sequer do eu, mas que ele

fenomenologia a define, a saber, como remetendo para uma eidética. O

pode ser realmente o fato de nada ao ser o fato como nada, isto é, existir

eidos toma aqui a feição do arquimovimento que o mundo e o sujeito têm

sob forma de uma mera separação. Um fato puro não tem outro conteúdo

em comum. Ora, o arquievento, por sua vez, fica alheio a essa essência já

do que seu próprio advir e ele pode ser definido como advir do nada só

que não é uma possibilidade do arquimovimento, mas antes sua interrupção

advindo como nada, a saber, como um evento de cisão.

ou sua negação sob a forma de uma cisão que o afeta. É por isso que ele

Assim, pode-se falar de uma dupla ultrapassagem da fenomenologia,

deve ser posto, ou seja, pensado, a título de hipótese necessária, apesar de

mas isso não significa que a fenomenologia seja abandonada ou rejeitada:

não ser nada cognoscível. Aqui, ficamos encurralados na linguagem do

trata-se de uma ultrapassagem por assim dizer interna, que permite à

“como se”: tudo se passa como se o arquimovimento ficasse afetado por

fenomenologia se realizar ou se encerrar nela mesma, em suma que

uma cisão radical. Essa linguagem do “como se” corresponde à situação

lhe é a única e verdadeira condição de possibilidade. Ela se ultrapassa,

singular daquilo que é fenomenologicamente verificado mas, porém, não

primeiro, em direção a uma cosmologia, uma vez que o sentido de ser

deduzível da essência, daquilo que é com certeza sem ser possível: é

do sujeito enraiza-se no do mundo e que cabe reconhecer que ambos

exatamente esta situação que a metafísica assume.

são apenas etapas ou momentos de uma dinâmica da manifestação. Mas

Assim, parece legítimo voltar ao sentido husserliano da metafísica

essa ultrapassagem leva a outra pois, se permanecêssemos no plano

enquanto remetendo para fatos puros, aos quais nenhuma essência pode

cosmológico, seríamos levados não tanto a uma ultrapassagem quanto a

corresponder, o que leva a afirmar que só há metafísica como metafísica

um mero abandono da fenomenologia em proveito de uma filosofia da

da facticidade. Com efeito, na Erste Philosophie, Husserl fala numa

natureza. É por isso que esta primeira ultrapassagem deve ser ultrapassada

“irracionalidade do fato transcendental”, que é objeto de “uma metafísica

de novo, num movimento de compensação ou de inversão e de volta a um

num sentido novo”. Metafísica num sentido novo, ou seja, no sentido em

plano metafísico, movimento que não é a busca de um fundamento mais

que, se esse fato não pode ser referido a uma essência – já que ele é antes a

profundo para a camada cosmológica mas que, pelo contrário, vem trazer

condição ou a fonte dela -, também não pode ser relacionado a uma causa,

à luz a ausência de consistência dessa camada cosmólogica, já que se deve

como o pensava a metafísica clássica. Tal metafísica da facticidade leva

formular a hipótese de uma cisão que vem lhe romper a continuidade. É

em conta o fato do eu (ego) como sendo “um fato absoluto e inapagável”,

graças a essa fratura que o sujeito em movimento pode ser um sujeito para

fato de que depende o próprio eidos. Ora, ao referir o sujeito ao

o mundo e que o mundo processual de onde procede o sujeito também pode 25

26

Cadernos Espinosanos XXVII

Renaud Barbaras

ser um mundo para esse sujeito. Em outras palavars, é graças a essa fratura

o mistério, que a metafísica procura assumir, é o de que a individuação

que a correlação fica preservada. Assim, ensejando pôr em evidência uma

se desdobre, que não haja uma mas sim duas maneiras de ser um. Há

falha inexplicável, uma ruptura dentro do processo próprio ao mundo, o

a individuação dentro do arquimovimento, individuação enquanto

passo para o plano metafísico significa a descoberta da impossibilidade

constituição de uma unidade, que corresponde ao modo de ser dos entes

do fundamento. Ao passar da cosmologia à metafísica, não se passa de um

puramente intramundanos, atravessados de ponta a ponta pelo processo

processo àquilo que o funda ultimamente mas se retorna desse processo

do mundo e cujos movimentos são, em consequência, modalidades desse

para a correlação fenomenológica por ocasião da descoberta da sua própria

processo, a serviço da sua obra. Mas, além disso, há uma individuação que

inconsistência ou, antes, do seu desmoronamento interno.

procede do arquievento, individuação por cisão e não por determinação,

Tudo quanto acabamos de expor pode, no final das contas, ser

individuação na qual a identidade do ente individuado repousa na sua

formulado no âmbito da vida. Como vimos, na verdade a vida, ou seja,

diferença antes que a diferença sobre sua identidade. Esta individuação

o movimento, não pode começar em nós ou conosco e é muito menos

é a que corresponde ao surgimento de um ser vivo. Este não se inscreve

desgastante teoricamente dizer que nossa vida provém de uma vida que

plenamente no processo do mundo, seus movimentos não são apenas

nos antecede do que pretender que ela poderia surgir em nós por ocasião

modos de atualização do processo do mundo: pelo contrário, eles ficam

da nossa organização específica. Portanto, é melhor dizer que a vida não

separados desse processo, fora da sua profusão constitutiva e é por isso que

começou, que ela é caracterizada por uma forma de eternidade que não

os movimentos vivos vão para o mundo em vez de herdar a sua potência,

é outra do que a do arquimovimento de mundificação, sendo que a vida

ou seja, invertem a direção da fenomenalização.

confunde-se com esse arquimovimento. O processo de mundificação é o

Chegamos assim a resultados particularmente espantosos, pelo

sentido primeiro e único da vida. É uma vida que ainda não é a vida de

menos para quem pensa com as categorias da metafísica e da ciência que

ninguém, uma vida anónima cujo único sujeito é o próprio mundo e que

dela depende. Com efeito, somos conduzidos a afirmar primeiro que a vida

junta, de acordo com o próprio sentido da vida, uma autorrealização e uma

não coincide com os seres vivos, enquanto que a abordagem mais comum

fenomenalização: ela é a vida da manifestação. Qualquer vida é da alçada

consiste não apenas em afirmar essa coincidência mas também em dizer

dessa vida originária ou arquivida, o que equivale a dizer que a vida dos

que não há vida e que só existem seres vivos. Pelo contrário, para nós, a

seres vivos é mais profunda e mais antiga do que eles mesmos, vem de

vida transcende os seres vivos, de modo que é rigorosamente em razão

mais longe do que os próprios seres vivos: estes são apenas realizações

da presença da vida neles, de uma vida de que eles não são a fonte e da

ou cristalizações da arquivida. É claro, a dificuldade é a de entender

qual eles não tem a exclusividade, que podemos afirmar a existência de

exatamente a modalidade dessa realização.

seres vivos. Mas, em segundo lugar e mais radicalmente, não basta que a

A análise metafísica que acabamos de propor nos oferece uma

vida da manifestação atravesse um corpo para que este esteja vivo. Pelo

via de resolução: os seres vivos procedem da arquivida em virtude do

contrário, um ente só pode estar vivo na medida em que ele fica separado

arquievento da cisão. Há duas vias para a individuação e, de certa forma,

da arquivida pelo arquievento da cisão, de modo que é paradoxalmente por 27

Cadernos Espinosanos XXVII

Renaud Barbaras

causa de uma falta da vida nele e não de sua plena presença que um ente

sujet et du monde. Il s’agit de montrer qu’une analyse rigoureuse de la corrélation se déploie nécessairement à trois niveaux et que la phénoménologie est ainsi vouée à se dépasser elle-même vers une cosmologie et une métaphysique. La corrélation phénoménologique, dont on établit qu’elle est en son fond relation d’un sujet qui est désir et d’un monde qui est profondeur, suppose leur appartenance commune à une physis, dont la description relève d’une cosmologie. Mais la différence du sujet, sans laquelle il n’y a pas de corrélation,  renvoie elle-même à une scission, plus originaire encore, qui affecte le procès même de la manifestation et ouvre l’espace d’une métaphysique. Nous montrons donc que la phénoménologie s’accomplit sous la forme d’une dynamique générale de la manifestation, pour autant qu’elle est nécessairement conduite à penser le mouvement sous la triple figure du désir qui traverse notre existence, de l’archi-mouvement de la manifestation et de l’archi-événement de la scission qui l’affecte. Mots-clés: vie, désir, phénoménologie, cosmologie, métaphysique.

pode ser caracterizado como vivo. Dizer que um ente está vivo, não é dizer que ela possui a vida mas que ele não a possui, em todo caso não da maneira como os entes não vivos a possuem. O próprio do ser vivo é portanto que ele é como que parcialmente privado da arquivida do mundo, que nele a vida faz falta, e é exatamente em razão dessa falta que ele manifesta as propriedades pelas quais o reconhecemos como tal, a saber um movimento orientado e incansável, correlativo de uma capacidade de fenomenalização. No ser vivo a vida já se retirou; ele ficou como que exilado da sua potência originária e é por isso que o ser vivo vive, isto é, existe sob o modo de uma fenomenalização a que chamamos de subjetiva. O ser vivo é portanto aquele ente que, inscrito na arquivida anônima do mundo sob a modalidade da separação ou da perda, é capaz de um movimento que vai para o mundo em vez de provir dele, que é aspiração mais do que mero deslocamento e, por isso mesmo, tem uma capacidade de fenomenalização. Tudo isso poderia ser resumido na idéia de uma biologia privativa, entendida num sentido que fica nos antípodas da zoologia privativa heideggeriana. Ela não quer dizer que os outros seres vivos podem ser concebidos privativamente a partir do homem mas, muito pelo contrário, que todos os seres vivos, inclusive o próprio homem, devem ser compreendidos privativamente a partir da própria vida: só há seres vivos com base numa negação da vida, negação que corresponde ao arquievento e se realiza como privação da potência da arquivida. Dynamique de la manifestation Résumé: L’a priori universel de la corrélation entre l’étant transcendant et ses modes de donnée subjectifs dessine le cadre minimal de toute démarche qui se revendique de la phénoménologie. L’objet propre de celle-ci est alors de caractériser à la fois la nature exacte de la corrélation et le sens d’être des termes en relation, à savoir du

28

29

A vida entre desejo e criação: Renaud Barbaras leitor crítico de Bergson

Débora Morato Pinto* Para Renaud, amigo na vida Resumo: Apresentamos aqui o entrecruzamento de duas filosofias da vida, a de Renaud Barbaras, tema central desse texto, e a da Henri Bergson, que preside o ponto de vista a partir do qual nos interessamos pela fenomenologia contemporânea. Nosso objetivo é expor, de uma forma geral, como a diferença com Bergson desempenhou papel relevante na constituição da obra de Barbaras. Mais explicitamente, buscamos pontuar as referências do livro Le Désir et la Distance a Bergson e mostrar como as críticas à teoria da vida como criação foram incorporadas por essa proposta original, filiada à escola fenomenológica e inspirada sobretudo por Merleau-Ponty, que entrelaça percepção e vida através do desejo. Apontamos também alguns ganhos que a leitura de Matéria e Memória, especialmente da teoria da percepção pura ali desenvolvida, recebe do confronto com a fenomenologia de Barbaras. Palavras-chave: percepção, vida, fenomenologia, desejo, criação, duração.

Barbaras e a tradição fenomenológica A fenomenologia contemporânea atravessou o século XX misturando tendências diversas no caldo da redução e da intencionalidade. Nesse caldeirão multifacetado, o tema da vida foi eleito por alguns autores como questão maior a ser enfrentada por essa tradição. É o caso da obra de Renaud Barbaras: sua filosofia se movimenta no âmbito dos problemas implicados pelo tema e por sua inevitabilidade desde que sigamos com * Professora-associada do Departamento de Filosofia e Metodologia das Ciências da UFSCar. Pesquisadora do CNPq. 31

Cadernos Espinosanos XXVII

Débora Morato Pinto

rigor e radicalmente os questionamentos iniciados por Husserl. O sentido

noção, a saber, a atividade de um organismo vivo em relação com um

filosófico da vida, que compreende, via de regra, três noções-chave – o

meio” (Barbaras 5, p.7). Tomada como objeto de conhecimento filosófico,

corpo, a percepção e o movimento – é objeto de incessante meditação

essa atividade impõe um tipo de observação ao menos heterodoxo, já que

por parte do filósofo, constituindo inclusive o ponto de tensão para sua

inclui o olhar da ciência. Esse sentido tem, além do mais, que encontrar

filiação, sempre reafirmada, a essa escola. Mais precisamente, sua obra

uma forma de conjugação com o sentido do viver (ter vivências ou vividos)

intenciona analisar em profundidade noções e desdobramentos daquilo

circunscrito pelas filosofias da consciência. Entendemos então que Barbaras

que recorrentemente é delimitado como o problema da experiência.

aponte na redução uma das mais fortes razões para que a vida tenha sido

E é seguindo a trilha do problema que ele depara com o tema maior,

quase sempre considerada, do ponto de vista fenomenológico, um problema

aprofundando então, gradualmente, a reflexão sobre a vida, seu alcance,

do qual seria mais prudente desviar-se: enquanto objeto da biologia, a vida

sua relevância e seu papel, por vezes implícito e mesmo oculto, no

em seu sentido imediato e empírico é excluída da investigação tal como

desenvolvimento consequente da análise fenomenológica.

a pensou Husserl e um “sentido metafórico vem tomar o lugar do sentido

1

A noção de vida mostra-se, não raramente, como uma espécie

32

imediato” (Babaras 5, p. 8).

de calcanhar de Aquiles para os fenomenólogos de ontem e de hoje.

A decisão que vemos tomando forma a cada livro do autor parte,

Barbaras explicita com clareza que, por um lado, a reflexão sobre a vida

então, do dilema em torno da relação entre vida e conhecimento. Dilema

exige um retorno ao empírico que estaria proibido pela filiação ao projeto

inevitável que definiu a direção na qual ele se engajou desde os estudos sobre

transcendental; por outro lado, a despeito dessa interdição, é na filosofia

Merleau-Ponty no início de seu trajeto acadêmico: trata-se de reconhecer

da vida que a análise criteriosa e fiel da percepção (locus privilegiado de

que o recurso à vida não pode ser apenas metafórico, o que significa que

uma efetiva filosofia da experiência) necessariamente desemboca. Essa

alguma coisa da “transcendentalidade” exige o retorno da filosofia à vida

constatação não é nada trivial, se considerarmos que Husserl visou desde

empírica, ou antes, significa que o “movimento de transcendentalização,

sempre o conhecimento como horizonte maior do retorno aos fenômenos.

que Husserl denomina atividade constituinte, talvez faça parte da própria

Numa de suas obras mais recentes, Barbaras toma a vida como foco da

essência da vida” (Barbaras 5, p. 8, grifo do autor). A tentativa passa a ser

análise fenomenológica com todos os riscos que ela comporta para as

dar conta da noção de vida transcendental sem reabsorvê-la no empírico,

motivações tradicionais da escola, e inicia pela retomada sem rodeios do

o que equivaleria ao “desaparecimento puro e simples da perspectiva

que é essencial a essa problematização: desde o Lebenswelt até o retorno

fenomenológica”. Assim, a atividade do sujeito transcendental somente

ao concreto da leitura francesa, a noção se apresenta ou é mesmo invocada

pode ser referida a um sentido próprio da vida na medida em que esse

como “conceito operatório ou encantatório”, sem que se enfrente de fato a

sentido não se reduz àquele que a biologia lhe confere, isto é, o significado

sua tematização. Esse enfrentamento seria penoso para todos os filósofos

da vida deve trazer em si as propriedades ou as condições essenciais do

do conhecimento, uma vez que, para levar a termo a interrogação radical

conhecimento. Tais exigências fazem com que a filosofia de Barbaras

sobre a vida, não há como escapar do “sentido primeiro ou imediato dessa

oscile expressamente entre a fenomenologia e os “seus outros”2, sobretudo 33

34

Cadernos Espinosanos XXVII

Débora Morato Pinto

no momento em que a Vida passa a ser tematizada como centro da reflexão.

de um texto, algumas conferências e trechos substanciais dos capítulos de

Não surpreende, nessa medida, que seu percurso tenha tomado como

suas principais obras, ressaltando o fato de que, apesar de Bergson ter se

interlocutores Raymond Ruyer e Henri Bergson, metafísicos que pretendem

proposto, na abertura de Matéria e Memória (texto capital que encaminha

renovar o sentido dessa dimensão tão essencial à filosofia. Partindo da

a renovação da teoria da percepção), a permanecer num único plano

intenção de superar as hesitações teóricas de Husserl, Barbaras toma sua

ontológico, a dependência que essa fenomenologia do aparecer conserva em

via própria quando insere no arcabouço conceitual mobilizado, para dar

relação a uma teoria psicológica – a teoria da memória – revelaria falhas no

conta da percepção, a noção de Desejo. Aqui reside a originalidade de sua

primeiro nível da reflexão que sua fenomenologia do desejo pode superar.

proposta, na qual esse conceito se apresenta como chave da articulação

Assim, a teoria das imagens não visaria estabelecer a identidade entre o ser e

entre vida empírica e reflexão transcendental. E os avanços teóricos

a fenomenalidade e o todo das imagens não pode recobrir a totalidade à qual

proporcionados pela noção de desejo, ainda que se efetivem no terreno

a consciência perceptiva se abre: ele será definido “em si mesmo” apenas

circunscrito pela fenomenologia, tangenciam a metafísica da vida, ponto

na metafísica da matéria do quarto capítulo do livro, mediada pela análise

preciso em que essa trajetória ganha relevância inestimável para aqueles

da memória. O ponto que incomoda Barbaras consiste no fato de que o em

que elegeram Bergson como autor central.

si das imagens, totalidade dinâmica em movimento de extensão, se define

Em nossa leitura da filosofia de Barbaras, a sua interlocução com

ao fim e ao cabo de modo “independente de um sujeito vivo”, perdendo

Bergson tornou-se instrumento fundamental de ampliação e aprofundamento

assim a relação intrínseca entre a subjetividade e a totalidade – relação que é

da compreensão dos argumentos e teses presentes em Matéria e Memória e

propriamente abertura – que define a intencionalidade3. Bergson saiu então

A Evolução Criadora. Analisando suas ressalvas à teoria da percepção pura

dos limites da fenomenologia, ou, talvez, nunca tenha entrado.

e à metafísica do elã vital, encontramos novas soluções teóricas e, por isso

É a partir dessa perspectiva que Barbaras chama atenção sobre o

mesmo, novas perspectivas abertas pela filosofia da duração. Percebemos

papel da leitura de Matéria e Memória em seu próprio projeto: os limites

também, no que diz respeito aos distintos projetos fenomenológicos, que a

das análises bergsonianas são para ele “extremamente esclarecedores, pelo

visada bergsoniana permite penetrar em suas divergências, singularidades

fato de que permitem caracterizar mais precisamente as condições às quais

e profundidades específicas, sobretudo no que se refere ao exame da

está submetida uma teoria da percepção que apreende o sujeito perceptivo

experiência consciente. Ao comentar a teoria da percepção pura, Renaud

como sujeito vivo” (Barbaras 2, p.129). A diferença com Bergson permite

Barbaras bem explicita o papel salutar desse vai e vem, evento filosófico

então que compreendamos efetivamente qual é o foco da proposta que

relativamente circunscrito que expressa um campo mais amplo de relações e

entrelaça percepção e vida através do desejo. Em contrapartida, encaminha

envolvimentos problemáticos, complexos, essenciais, porém, entre filosofia

o retorno à teoria da percepção pura com questões muito precisas,

da consciência, fenomenologia e metafísica. É nesse contexto que a teoria

enriquecendo a leitura da obra e do bergsonismo como um todo. Ao longo

das imagens representou um papel particularmente relevante na teia de

do livro Le Désir et la Distance, apresenta-se gradualmente o modo pelo

problemas e análises tecida pelos dois autores. Barbaras a ela dedicou mais

qual a teoria de Barbaras pretende situar-se a igual distância de Husserl e 35

Cadernos Espinosanos XXVII

Débora Morato Pinto

de Bergson, curiosamente partindo da mobilização da crítica bergsoniana

consciente. Nesse trajeto, mesmo o recurso aos trabalhos científicos, como

da tradição contra a fenomenologia husserliana. Nosso comentário aqui se

os de Goldstein, se realiza sempre no plano fenomenológico, dirigido pela

concentrará, então, sobre algumas das referências de Barbaras a Bergson

significação da experiência, ou pelo sentido da experiência obtido através

que, a nosso ver, integram essa filosofia da vida como momento interno e

da redução. Assim como na filosofia de Merleau-Ponty, os trabalhos

indispensável.

da fisiologia contemporânea desempenham um papel fundamental no esclarecimento da ligação indissociável entre a percepção – fenômeno ou

Da filosofia da percepção à essência da vida. Bergson na trilha da fenomenologia.

“aparecer”, segundo o termo que Barbaras utiliza mais exaustivamente – e um tipo singular de movimento, aquele que se apresenta nas démarches inerentes aos processos vitais. Eles são mobilizados para explicitar a

36

É no bojo do novo enfoque sobre a relação entre o transcendental

relação, ou antes, a correlação, entre um aparecer segundo a estrutura

e o empírico que Barbaras constrói, como solução a seu ver definitiva

de horizonte e um movimento como autoimpulsão incessante, conforme

para o problema da vida, da percepção e do conhecimento, uma filosofia

a redescrição original dos polos da experiência cujo sentido deriva em

do desejo. O desejo apresenta-se como conceito maior para o viés

certa identidade entre o negativo e positivo, ou melhor, na incorporação

que ele impõe ao projeto fenomenológico: dimensão da experiência

da negatividade pelo ser. Enfim, da percepção à vida, a motivação4 própria

eminentemente humana, na qual está então fundado, ele é a um só

à parte considerável da fenomenologia francesa encontra aqui uma nova

tempo o seu fundamento, delimitando as condições de sua realização.

via de desenvolvimento. E é nesse contexto que o caminho é percorrido

Em suma, o desejo determina a maneira pela qual vivemos o mundo e

passo a passo, sem notas desviantes, em torno da experiência perceptiva

assim o experimentamos. Assim, se tentarmos exprimir sinteticamente a

e de tudo o que ela pode ensinar sobre si e sobre aquilo que a ultrapassa e

ontologia de Barbaras, poderíamos apontar a afirmação do desejo como

mesmo a condiciona – o que inclui, como citamos acima, a Vida, tomada

unidade última entre o empírico e o transcendental, noção que permite

como núcleo de uma nova ontologia e tangenciando a metafísica5 que se

o trânsito entre a análise das condições da experiência e a ontologia sem

quer contemporânea. A filosofia da vida que assim se obtém dialoga com a

ultrapassar os limites da descrição direta do fenômeno – ou seja, sem

filosofia clássica, com a tradição fenomenológica, com a ciência do século

transgredir as direções de método da escola fenomenológica.

XX e com a arte. Ressaltamos aqui a clareza e o rigor conceitual com

Inicia-se então um notável trajeto de análise das questões que

a qual tais diálogos são estabelecidos, que determinam uma consistência

envolvem a percepção, tomada como processo vital, exame presidido

teórica diretamente proporcional à profundidade da análise da experiência

pela decisão de permanecer situado dentro das balizas estipuladas pela

perceptiva por eles possibilitada.

fenomenologia, o que para ele significa explorar gradativamente e em

Nosso interesse pela filosofia de Renaud Barbaras partiu, como

diversos níveis de profundidade a relação entre imanência e transcendência

dissemos acima, de questões que se colocam sob o crivo da filosofia de

desvelada pela constatação da intencionalidade como verdade da experiência

Bergson, mais especialmente do interesse pela maneira através da qual a 37

38

Cadernos Espinosanos XXVII

Débora Morato Pinto

fenomenologia do desejo incorpora as démarches críticas do bergsonismo.

como inspiração maior para responder à questão que a percepção, o

Pensamos que a recusa das soluções bergsonianas para problemas em

movimento e o desejo acabam por desenhar e conduzir: com a vida se

comum contribuiu sobremaneira para a força de suas análises. Essa

caracteriza essencialmente para que possa condicionar a percepção e a

convicção encontra fundamento se prestarmos atenção ao fato de que,

intencionalidade? O Aberto, melhor denominação para a essência da vida,

para Barbaras, a redução necessária à análise fenomenológica, que deve

recobre o excesso e a transcendência do desejo, mas a sua descoberta,

dar conta da percepção concreta e assim evitar os prejuízos teóricos

bem como a antropologia privativa6 que se segue a partir de então, não

que contaminem a descrição do aparecer, foi balizada pela potente

remete aos textos dos filósofos, mas a um poeta.

crítica bergsoniana do negativo. Num momento posterior dessa análise,

Encontramos ao longo dessa trajetória um ponto de chegada que

entretanto, Barbaras recusa as consequências que Bergson extraiu de sua

podemos formular como a determinação do desejo como essência da

própria crítica, consubstanciadas na tese de um ser-duração impermeável

vida. Por ele, evidencia-se o delineamento de sua singular leitura de temas

ao negativo. Sem entrarmos no mérito da justiça de tal avaliação, fica

eminentemente fenomenológicos. De uma forma sucinta, podemos dizer

muito patente que as inconsistências apontadas na teoria bergsoniana

que a filosofia de Barbaras avança metodicamente da percepção à vida

da percepção reenviam à positividade do ser e que a via do desejo vem

originária partindo das questões que os fenomenólogos se colocaram, em

suplantar lacunas e solucionar problemas internamente relacionados a esse

especial da tarefa de encontrar as condições de possibilidade da experiência

duplo trajeto – os de uma análise incapaz, sempre segundo os cânones da

consciente tomada como intencionalidade. Essa progressão ou expansão

escola fenomenológica, de dar conta da descrição fiel do aparecer e os de

da intencionalidade à ontologia reencontra e retoma, conforme o problema

uma ontologia que não pode incorporar a negatividade do ser que aparece.

enfrentado, a noção de desejo, aprofundando a cada etapa sua análise,

E essa dupla crítica é essencial ao itinerário de Barbaras.

seu escopo e seu significado. Entendemos, e isso ficou claro justamente

A aproximação à distância entre os dois filósofos é balizada

a partir de nossa da leitura enviesada de suas obras, que tal projeto se

por outro dilema cuja importância não se pode subestimar no horizonte

vê bem sucedido precisamente na medida em que seus passos avançam

filosófico do século XX, precisamente o da insuficiência da perspectiva

da nossa experiência à ontologia, ou do ser percebido ao ser vital com

racional ou intelectualista para dar conta da experiência, limite da razão

Ser originário, em consonância estrita com a ampliação do campo de

que incorpora os limites da filosofia e impõe perguntar sobre a pertinência

fenômenos que a noção de desejo se mostra capaz de explicar. Desde a

de uma refundação metafísica com uma consequente discussão sobre o

estrutura de horizonte que é intrínseca ao aparecer, implicando a abertura

método que a torna possível. O dilema não é outro senão o da finitude,

ou a incompletude insuperável presentes na experiência humana, passando

e sua eleição como condição insuperável na proposta fenomenológica.

pela análise do movimento próprio aos seres vivos, como movimento

Ainda aqui o trajeto de Barbaras não deixa de surpreender ao leitor

vivido que procede de um “poder que não é esgotado, mas ao contrário

habitual de Bergson: no face a face com a vida, ele reconhece que a

reativado, por sua realização” (Barbaras 2, p. 116)7, chegando à vida ela

tradição filosófica deixou a desejar, recorrendo então à poesia de Rilke

mesma pensada como carência ou lacuna insuperável, outro nome do 39

Cadernos Espinosanos XXVII

Débora Morato Pinto

excesso ou da capacidade de autossuperação incessante que o vital carrega

a essa escola8. O problema do negativo e a fidelidade à experiência se

em si, é sempre a noção de um ato, ser, processo ou potencialidade que se

articulam na fenomenologia de Barbaras e podemos dizer que a herança

efetiva por sua própria intensificação que se apresenta para dar conta das

merleau-pontiana por ele assumida reside, sobretudo, nesse tópico9.

descrições e das indicações que tais fenômenos oferecem.

Reconhecendo que o projeto bergsoniano de “buscar a experiência em sua

Em outros termos, a análise da experiência, concentrada na

fonte”10 se impõe a Merleau-Ponty, cujo trajeto se apresenta desde o início

percepção, estabelece um vínculo indissociável entre percepção e

como um esforço para voltar ao mundo antes da sua categorização pelo

movimento vital que é então o ponto a ser explicado, que tem sua

entendimento, Barbaras considera, entretanto, que as filosofias de Husserl

condição própria a ser esclarecida. Barbaras mostra que somente o desejo

e Bergson, enquanto tentativas essenciais de retorno às coisas, esbarraram

pode satisfazer o papel de tal condição e assim dar conta dessa relação.

no objetivismo ou no realismo de um ser positivo como obstáculos para a

Ressaltemos, inicialmente, um ponto crucial: é justamente porque o desejo

realização da tarefa como seria desejável. Mesmo que o desenvolvimento

visa um objeto que se mostra como faltante, ou seja, pelo fato de que aquilo

da obra merleau-pontiana, com a elaboração crescente de seu projeto

que o preenche efetiva esse preenchimento como nova falta – outra forma

ontológico, tenha retornado a Bergson e absorvido parte considerável de

de dizer que o objeto do desejo é o próprio desejo – ou seja, é pelo excesso

sua metafísica (como bem o atestaria o capítulo “Interrogação e intuição”

que o caracteriza, que ele pode dar ensejo a um movimento incessantemente

de O visível e o invisível), a frequentação das obras iniciais de Merleau-

renovado e a uma percepção aberta ao transcender-se sem término. E essa

Ponty foi mediada pela denúncia recorrente da presença do prejuízo da

é literalmente a interpretação fiel à estrutura de horizonte, dimensionada

interioridade no bergsonismo. Esse ponto de partida acabou por conduzir

como essência do fenômeno. O desejo visa algo que se excede a si mesmo,

Barbaras a aceitar a redução merleau-pontiana como via adequada para

portanto, deseja: o desejo apreende algo que reaviva o próprio desejo, ele

“substituir a correlação em espelho do sujeito reflexivo e do objeto (que

é, portanto, esse transcender-se permanente.

é ainda tributária da atitude natural) pela coexistência vital do sujeito

A transcendência assim formulada recobre o movimento de

40

corporal e do mundo, como meio da nossa vida” (Barbaras 1, p.34).

exteriorização ou “relação a” que caracteriza a consciência intencional.

A atenção cuidadosa a suas referências aos textos bergsonianos

A fenomenologia deve ater-se a essa relação e somente avançar para o

mostra, entretanto, que as coisas não se passam exatamente dessa

ser na medida em que sua presença na experiência o autoriza. Assim

forma. Há uma nuance ou ambiguidade na proposta de Bergson, a qual

procedendo, a filosofia tem que dar conta da negatividade insuperável

ressurge aqui e ali num papel distinto ao longo das análises de Barbaras.

que essa relação evidenciará. Mais explicitamente, a perspectiva

Vejamos como isso se dá, primeiramente, na delimitação do âmbito de sua

fenomenológica não raramente é definida pela sua fidelidade à experiência

própria fenomenologia. O pano de fundo da tarefa da fenomenologia é,

humana finita, implicando a absorção da negatividade como atributo

como sabemos, o fracasso da filosofia moderna no terreno da análise da

interior ao ser revelado no fenômeno, negatividade e finitude imbricadas

experiência consciente. Assim, a ontologia que dependia do cartesianismo

numa relação que ganha contornos próprios segundo cada projeto filiado

tem que ser abandonada ou ao menos reformada. Em mais de uma ocasião, 41

Cadernos Espinosanos XXVII

Débora Morato Pinto

os textos de Barbaras reforçam a tese que delimita tal empresa: mesmo que

da noção de sensação12, conceito abstrato retirado do objeto determinado

se trate de investigar o ser originário, situando-se no terreno da ontologia,

e inserido num mundo objetivo cujas leis são rigorosamente ditadas pela

essa questão identifica-se à do sentido do ser ao qual a percepção nos abre.

filosofia natural moderna.

Tomada como acesso à transcendência na imanência, relação intencional

A experiência humana reencontrada pela fenomenologia do

primordial e fenômeno de maior significado para a investigação dos

aparecer retoma as dimensões perdidas pelo intelectualismo presidido

modos de doação de objetos ao sujeito consciente, a percepção é visada

pela filosofia de Descartes e pelo empirismo que bebe nessa mesma

como processo originário a partir do qual seria possível repensar teoria

fonte. A fenomenologia compartilha com o bergsonismo desta recusa de

do conhecimento e ontologia. Desde Merleau-Ponty está definido, desse

pressupostos sedimentados filosoficamente. O modo pelo qual eles são

modo, que o acesso a tudo o que é situa-se na abertura perceptiva, e o

expostos e em nome do que são refutados talvez nos ensine sobre suas

ponto de partida da filosofia em sua questão mais fundamental – a do ser

principais diferenças – em todo caso, o trabalho de Barbaras expõe de

originário – é a experiência sensível, não mais a reflexão intelectual mesmo

forma consistente como essa recusa delimita projetos fenomenológicos

que radicalizada. Em outros termos, o escopo da experiência sensível abre e

variados. A crítica compartilhada por todos entende que há uma confusão

fecha o campo da ontologia e a pergunta sobre o sentido do ser não encontra

enraizada nas teorias clássicas, justamente a falha em diferenciar as leis

lugar no terreno da pura reflexão, no qual a filosofia da consciência a

da realidade que aparece – realidade que, disfarçada ou explicitamente

encerrou, definindo a subjetividade que reflete como “condição inexorável

é assumida como ponto de partida e descrita como mundo objetivo – e

do acesso ao ser”. O aparecer, seu sentido e suas condições irredutíveis

as leis que presidem o seu aparecer. Em suma, não se distingue entre o

são a única via a ser percorrida pela análise filosófica consequente, e assim

mundo e “a experiência do mundo”, o que caracteriza uma “ontologia

demarca o terreno próprio à ontologia.

espontânea”. Ao contrário, uma verdadeira filosofia da percepção deve dar

Trata-se então de mostrar que a fenomenologia da percepção é

conta da estrutura do aparecer, apreendendo ao vivo o movimento “pelo

a única via de superação dos impasses e limites da empresa cartesiana, a

qual a experiência nos inicia ao Ser” (Barbaras 2, p.16), o que somente é

qual ofereceu os contornos mais gerais à reflexão da modernidade em torno

possível ao se abrir mão dessa ontologia espontânea, do mundo objetivo

da consciência. Não se trata mais de encontrar o ser por uma reflexão da

como modelo de ser.

11

42

consciência de si, transparente a si na experiência do cogito e aberta a uma

Já aqui podemos sublinhar o papel ambíguo da filosofia da

transcendência que ao fim e ao cabo lhe é exterior, mas sim de retornar

duração: não teria Bergson mostrado justamente outra forma de implicar

à imanência do sensível e nela reencontrar o ser em suas características

mutuamente crítica da ontologia espontânea e refundação da metafísica,

temporais ou temporalizadas. Se Descartes tem o mérito de ter suspendido

sem limitar-se ao ato filosófico situado na finitude, no sujeito ou na

a tese da existência do mundo, própria ao realismo ingênuo e aos diversos

consciência tomada em sentido restrito? O trajeto de Bergson não seria

empirismos dele dependentes, a confiança na reflexão racional o levou,

exatamente aquele que abre a via da superação do intelectualismo como

entretanto, a perder o solo da experiência e a analisar o sensível a partir

superação do humano, mostrando no mesmo golpe que aceitar até o fim 43

Cadernos Espinosanos XXVII

Débora Morato Pinto

as consequências da crítica radical à velha ontologia significa retomar as

descrição fenomenológica do aparecer. O progresso da descrição levada a

pretensões metafísicas da filosofia – seja filosofia da percepção, do homem

termo por Barbaras depende em larga medida dos diagnósticos efetivados

ou da vida? Barbaras reconhece o papel dessa crítica em sua reflexão para o

sobre os limites do projeto husserliano. Abrindo mão do objetivismo e do

encontro da via efetiva de análise da experiência. Tratamos na experiência

paradigma da adequação, a verdade dos fenômenos remodela a relação

com um “em si” que excede o vivido mental, a representação ou o próprio

com a negatividade, pontuando a imbricação entre presença e ausência nos

campo perceptivo, mas que paradoxalmente não se deixa atingir ou

momentos constitutivos da percepção. Para dizer de uma vez, a crítica à

apreender jamais como positividade fechada, sem relação à subjetividade,

ontologia do objeto ou ao objetivismo ainda presente em Husserl abre para

independente do sujeito que o vive, para qual ele se oferece. Paradoxo por

o filósofo o contato com o ser que se dá à distância, assim como com o

se tratar de um fenômeno em que se afirmam a um só tempo a imanência e

sujeito que se adapta a essa distância constitutiva na medida em que é ele

a transcendência do objeto. Esse paradoxo implica, por sua vez, o mistério

próprio um movimento de impulsão inesgotável, corpo que visa o meio

da percepção: a doação que nela se efetiva se produz por esboços, isto é,

por seu automovimento e sua retroalimentação incessante. Ora, essa nova

de forma incompleta e num “horizonte” de novas experiências do mesmo

perspectiva, outra compreensão da relação intencional entre um visar e um

objeto cuja incompletude não impede, entretanto, a presença efetiva. A

ser, é aberta precisamente pela ampliação da redução que Barbaras leva a

dimensão presuntiva da síntese que se anuncia pelos esboços impõe ao

cabo sob a influência de Bergson. Mais precisamente, qual é o limite, senão

acesso à objetividade um caráter problemático – a presença do objeto se dá

equívoco, da investigação de Husserl que a crítica bergsoniana do Nada põe

como ou pela sua ausência mesma:

em evidência? Precisamente o fato de que a redução não consiste em colocar

Tal é o mistério da percepção: qualquer aspecto dá-se como aspecto de uma coisa, ultrapassa-se a ele mesmo como conteúdo sensível e, porém, falta a realidade de que o aspecto é a manifestação. É por isso que, a rigor, a experiência da coisa no esboço reduz-se à possibilidade de prosseguir a experiência, de multiplicar as percepções com a garantia de que não haverá fim. [...]. Em suma, a coisa percebida não se apresenta ela mesma, conforme suas características próprias, naquilo que a manifesta: o esboço, ao mesmo tempo, desvenda e dissimula a coisa. Quanto à coisa, ela aparece como sua ausência, se apresenta como inapreensível (Barbaras 6, pp.150-151).

O mistério somente pode ser tomado a sério por uma filosofia da percepção consequente, aquela que encontra os meios de respeitar a 44

entre parênteses a tese do mundo, a afirmação da existência do mundo, mas sim o pensamento que coloca tal existência à luz do objeto ou da realidade objetiva, em suma, a “determinação do mundo em termos de objeto” (Barbaras 2, p.75). Husserl se equivocaria ao suspender a tese do mundo, existência que permanece como resíduo da redução levada a cabo cuidadosamente e até o fim, na medida em que seu pressuposto é ainda a precedência do nada em relação ao ser – pressuposto que condiciona o conceito de ser plenamente determinado ou determinável, pura positividade autossuficiente, isto é, o mundo pensado como Objeto. Barbaras assim explicita como os dois gestos teóricos estão entrelaçados na filosofia de Husserl: A insuficiente radicalidade da redução husserliana (que consiste precisamente no fato de que ela é uma redução à região consciência) deve-se ao fato de que Husserl permanece 45

Cadernos Espinosanos XXVII

tributário, ao longo de sua empresa, do ideal racionalista de uma doação adequada e, portanto, de uma determinação espontânea do Ser como objeto, determinação que entra em contradição com a estrutura própria da percepção (Barbaras 2, p.75).

E o equívoco compromete irremediavelmente a compreensão da estrutura do aparecer, sempre descrito e conceituado segundo o modelo do objeto que aparece. O real é pensado como conjunto de objetos exteriores entre si, e sem a refutação da precedência do nada ao ser não há como dar conta do que se apresenta na experiência, pois a relação interna entre o sujeito e o mundo é configurada pelo raciocínio que se move nesse conjunto – de partes exteriores entre si – e segundo suas determinações. Ocorre que essa é exatamente a posição defendida por Bergson, com a diferença de que esse ser e esse raciocínio serão remetidos ao espaço como forma da inteligência e condição de possibilidade da experiência dos objetos. É assim que Bergson nos oferece então os “meios para bem conduzir a redução”, segundo os termos de Barbaras. O problema então não reside no mundo, nem em sua existência, mas no modo de existir, modo objetivo de existência que se mostra como determinação perfeita e se deixa apreender por uma doação adequada. O pressuposto da positividade do nada não é atingido por Husserl, mas sim por Bergson, cujo percurso crítico possibilita a descrição fiel da experiência como experiência de algo, encontro com a realidade, especialmente com a mobilidade real. Assim, seja no nível das consequências, seja no nível dos princípios, as análises críticas de Bergson denunciam a ilusão de se pensar um nada primordial, prioritário e anterior ao ser, denúncia que se configura como condição indispensável para a apreensão do ser como duração. Ao fazê-lo, Bergson expõe a ilusão teórica que nada mais faz senão prolongar a relação prática e técnica do ser humano com o mundo, e que desemboca na aceitação do Nada como anterior ao Ser. Ora, essa aceitação impõe a determinação da 46

Débora Morato Pinto

existência como objetividade, ou a definição de tudo o que se vê e se pensa como objeto. É assim a existência como objeto, no modo objetivo, que para Bergson identifica-se com a existência no espaço ou espacial, que a crítica do nada é capaz de desqualificar, abrindo caminho para a apreensão dos aspectos efetivos da existência ou do ser.

Da crítica à ontologia: ser-duração, negatividade e desejo. A crítica do Nada atraiu a fenomenologia da percepção de Renaud Barbaras. Mas, no mesmo gesto pelo qual essa crítica amplia a força da redução fenomenológica, seu resultado para a teoria da duração é recusado e o Ser como Distância ganha contornos mais precisos. Vejamos como a positividade do ser-durée invade as etapas mais importantes do caminho em direção ao desejo. Tais etapas envolvem, com efeito, a clara recusa do decantado positivismo de Bergson, ainda que reconhecendo sua ampla renovação da filosofia da percepção, a qual que se detém, entretanto, na ingenuidade tributária de uma “aproximação substancialista do ser”13 que teria sido o maior obstáculo ao desvelamento do problema do sentido do ser que a fenomenologia leva a cabo. Essa limitação determinaria um movimento filosófico de sentido inverso ao da fenomenologia, já que a intuição bergsoniana buscaria alcançar “a positividade do objeto para além das determinações da inteligência, que são relativas apenas a nós mesmos, enquanto que a redução alcança o fenomenal, isto é, o ser relativo do objeto, a partir da suspensão de sua positividade” (Barbaras 4, p.32). Eis a tópica da recusa. Mas em que aspectos essa recusa se efetiva em Le Désir et la Distance? Considerando ainda que a teoria da percepção que a toma como imbricada ao movimento desejante é escandida por referências consideráveis à teoria da percepção pura, cabe investigar como a decisão filosófica de Bergson, que envolve a estratégia de evitar passo a passo 47

Cadernos Espinosanos XXVII

Débora Morato Pinto

as armadilhas do realismo e do idealismo, pode ser inserida no mesmo

No caso da redução, Bergson teria deixado escapar o ponto central

lago do positivismo ingênuo. Mais que isso, a relação entre a análise da

que torna possível a compreensão do aparecer fora do paradigma objetivista:

intencionalidade e a teoria da percepção pura de Matéria e Memória é o

o reconhecimento de sua estrutura irredutível como pertencimento, co-

lugar privilegiado para a compreensão do que se recusa do bergsonismo

aparição de um meio sobre o qual tudo aparece. Esse mundo, nunca presente

numa filosofia que respeita o primado do negativo, e assim, para que se

ele próprio como determinação completa, é uma totalidade aberta ou “não

explicite como a noção de desejo pode ser o fundamento da experiência.

totalizável”15 cuja estrutura de horizonte aponta para um inacabamento

E é no capítulo dessa obra em que a relação entre percepção e movimento

perpétuo. Ele é o que tudo contém, sem poder por isso mesmo ser um

é focalizada pela análise fenomenológica que a teoria bergsoniana aparece

conteúdo, e o solo ou campo de tudo o que aparece é um “il y a” do qual o

como contraponto essencial.

mundo é momento constitutivo. A tese do mundo é condição de toda tese,

Cabe então retomar brevemente a análise da relação entre

de todo sujeito, de todo ato – encontraríamos aqui, como em Merleau-

percepção e movimento vital, sublinhando os principais aspectos que

Ponty, a ampla significação ontológica da relação figura-fundo explorada

conduzem da redução ao ser como abertura. O encontro com o aberto

concretamente pela ciência, no caso, pela Gestalttheorie ou “psicologia da

passa, como mencionamos rapidamente acima, pela interpretação fiel e

forma”. A percepção assim desvelada mostra ser percepção de um mundo,

radical da teoria dos esboços, a qual subsidia a articulação entre percepção

ou percepção num mundo, envolvida de mundo, antes de ser percepção de

e movimento que Barbaras estabelece em três obras inter-relacionadas .

um sujeito ou de uma consciência. O mundo é indistintamente aquilo “que

A incompletude de Bergson, cuja teoria da percepção teria antecipado os

é manifestado por cada coisa que aparece, como a profundidade que ela

termos rigorosos pelos quais o problema da experiência deve ser colocado,

vem trazer ao aparecer, e a condição de sua aparição” (Babaras 2, p.86).

14

48

residiria precisamente no fato de que sua circunscrição da totalidade como

Em síntese, o que Barbaras reconhece como nova configuração do

ser perceptível (ou seja, o campo de imagens que contém a percepção

aparecer aponta o mundo como seu momento constitutivo, e o inacabamento

em potência ou virtualmente) e a correspondente descrição do sujeito

ou ausência inerente à sua apresentação dimensiona a relação com a

como corpo vivo perpassado pelas necessidades orgânicas perdem de

negatividade. Num certo sentido, tudo se joga aqui, pois os outros passos

vista a intencionalidade, ou seja, a abertura do sujeito à transcendência

ou tópicos da experiência perceptiva devem implicar em si uma relação

e a negatividade ou distância interna à totalidade englobante. Em outros

com o negativo. A caracterização do sujeito, polo cujo desdobramento

termos, Bergson não foi capaz de dar conta da distância constitutiva do

implicará o movimento vital como seu constituinte essencial, se reconfigura

ser que a análise do aparecer nos revela. Se a crítica do nada retomava

precisamente por essa relação. Desse movimento, o desejo é condição

como consequência um ser-duração que ainda se quer positivamente dado,

de possibilidade. Eis um dos pontos de maior importância – também de

substancial, a crítica à teoria da percepção configura um momento interno

complexidade – para a nossa aproximação. Trata-se, para Barbaras assim

à teoria do ser-substância. No reverso dos dois movimentos – crítica do

como para a fenomenologia contemporânea em geral, na reconfiguração

nada e teoria da percepção, Barbaras avança em seu viés fenomenológico.

do sujeito, de superar a concepção da consciência de si, constituinte, 49

50

Cadernos Espinosanos XXVII

Débora Morato Pinto

ou essa maneira de pensar a subjetividade como imanência a si de toda

pela totalidade aberta. Ele é situado nesse sentido, faz parte de um todo

experiência. Ao mesmo tempo, não há como dispensar o caráter subjetivo

que ele de algum modo põe, institui ao negar ou “parcializar” precisamente

dos fenômenos, sua implicação necessária ao para si, sua referência essencial

enquanto é um sujeito vivo. O sujeito está enraizado no empírico e esse

àquele para quem algo aparece. O pertencimento ao mundo como estrutura

aspecto é o que para Barbaras configura a transcendentalidade do sujeito.

irredutível de toda aparição não desconsidera o sujeito – mas o remodela,

Assim, a subjetividade transcendental, condição do fenômeno ou da

definindo-o não mais pela relação a si dada adequadamente e dando conta

experiência, tem raiz no empírico, é intramundana. O sujeito vivo é um corpo

de que ele é momento constitutivo do aparecer sem, entretanto, constitui-lo

especial porque dotado de um tipo de movimento singular. Movimento que

absolutamente. Trata-se então de compreender uma condição necessária,

percebe, porque orientado, e que origina sua renovação. Essa prerrogativa

mas não suficiente do fenômeno, um momento que o constitui internamente

do movimento vital, essência do sujeito que percebe, nada mais quer dizer

sem esgotar a sua razão de ser, sem dar conta do seu sentido, sem ser o

senão que o sujeito é desejante16, e por isso mesmo, efetiva ou atualiza o

seu fundamente originário. O sujeito da percepção é um corpo vivo, e dar

fenômeno, bem como o sujeito da percepção na redescrição bergsoniana

conta do seu sentido de ser através do crivo da descrição fenomenológica

atualizava a perceptibilidade do mundo ao dele recortar uma parte por sua

significa caracterizá-lo segundo sua relação com o mundo dada no

indeterminação de ações.

fenômeno: o sujeito é um movimento orientado, o que nada mais indica

Entretanto, Barbaras vê entre as duas teorias uma diferença

senão sua adequação à estrutura de horizonte, demonstrada como “forma

insuperável. O centro da diferença – entre o polo subjetivo redescrito

concreta do a priori do fenômeno” e implica um excesso ou um recuo do

à luz da estrutura de horizonte e o sujeito vivo que recorta o campo de

aparecer. O fenômeno é o acesso a uma presença permeada pela ausência:

imagens – está na relação do corpo vivo dotado de movimento subjetivo

algo me aparece na exata medida em que pertence a uma totalidade aberta

com a totalidade para a qual ele se abre ao mesmo tempo em que a nega.

e inesgotável, que presume uma continuidade que completa a coisa de que

O ser que atualiza o fenômeno é aquele que se abre a um todo inacabado,

só tenho a visão parcial.

presente e ausente, e seu ser deve estar em correlação com a totalidade

O estatuto do mundo que se apresenta como condição de toda

que se dá como distância. Na chave do campo de imagens como totalidade

percepção impõe, portanto, reconhecer uma dimensão da experiência que

dada previamente, potência de percepção atravessada por um corpo que

ultrapassa as categorias e as descrições da tradição filosófica e mesmo

necessita, essa negatividade que recai sobre o sujeito e sobre o mundo

fenomenológica. O fundamental a ser interpretado sobre o mundo é o fato

não encontra condições de ser compreendida. Por outro lado, pensado

de que ele constitui, condiciona e realiza o aparecer, pois engloba tudo

estritamente como sujeito da percepção, o ser vivo é caracterizado por

o que pode surgir para nós na experiência, mas o faz sem aparecer “ele

uma carência ontológica, por uma necessidade que não pode ser estancada

próprio enquanto tal” (Barbaras 2, p. 86). Essa referência ou abertura ao

por satisfação através de uma “substância positiva” (Barbaras 2, p.158). A

todo redimensiona a noção de consciência: ela é sempre situada e o sujeito,

carência tem sua explicação última na finitude que define essencialmente o

que se experimenta a si, também se vê sobre o fundo do mundo, englobado

ser vivo individualizado, isto é, separado do todo, já que ele aspira voltar à 51

Cadernos Espinosanos XXVII

Débora Morato Pinto

sua condição de pertencimento no todo, justamente a sua dissolução como

considerado como uma exposição dos traços dessa teoria cujas limitações

indivíduo. A unidade entre positivo e negativo se reapresenta, então, a cada

e impasses conduzem ao desejo, de uma maneira tão bem articulada

um dos momentos da descrição de Barbaras: ser desejante, o indivíduo

que permite bem apreender como percepção, mundo, totalidade aberta

aspira algo jamais possível de se atingir: “qualquer ser vivo anseia por

e movimento vital são explicitações de um Desejo cujas atribuições dão

uma superação de sua própria individualidade, por uma identificação com

conta da experiência humana no que tem de mais essencial, ou seja, da

a totalidade – o que equivale a dizer que a condição da sua existência, a

essência desse humano que, finito, aspira a um todo que ele mesmo nega.

individualidade, também é a razão de sua imperfeição” (Barbaras 2, p. 158).

A plenitude ou positividade do ser-durée define o horizonte mais

Tal dimensão de separação e finitude define uma carência que é a própria

vasto em que está inserida a teoria da percepção pura de Bergson. Percepção

essência do sujeito da percepção. Ele não pode identificar-se a um corpo

que, resolvida como intuição, constitui uma das dimensões do método

vivo que necessita e se satisfaz, destacando do mundo sua fenomenalidade

através do qual o encontro com o ser poderá ser alcançado: a experiência

ou perceptibilidade prévia ao buscar essa satisfação; em outros termos,

humana, livre de amarras próprias à sobrevivência, vê um querer que é

“há uma inquietação, uma tensão própria ao ser vivo, que resulta numa

criação ou jorro de imprevisibilidades. Nesse sentido, Bergson se separa

mobilidade contínua e independe do preenchimento das necessidades,

de fato da fenomenologia e abre a porta para a superação da finitude. A

necessidades que aparecem assim como condições e não como finalidade

filosofia desemboca inevitavelmente na metafísica, dilatando em nós a

da vida” (Barbaras 2, p. 158).

humanidade e “fazendo com que essa se transcenda a si mesma” (Bergson

A redução bergsoniana aplicada ao problema da percepção teve

8, p. 209). Contato e compreensão do ser como criação, ela é assim o meio

a originalidade de encontrar um meio de evitar as incoerências da teoria

de nos “fundirmos novamente com o todo” (Bergson 8, p. 209) – ou, ao

clássica da representação que pensava sempre segundo a coisa (a percepção

menos, é o esforço para tanto. Barbaras bem dimensionou essa diferença

do presente e a ideia que dela deriva sempre como polos correlatos de um

quando entrou em contato com o livro de Bento Prado Junior e retornou a

ente determinado e fixo), mas não soube extrair as boas consequências

Bergson motivado por ele. A questão da finitude logo se explicitou como

desse ponto de partida . Ao fim e ao cabo, o sujeito da percepção acaba

nó de relações entre bergsonismo e fenomenologia, dadas as proximidades

compreendido como um corpo permeado por necessidades, e o todo

tão evidentes entre a crítica do nada e a redução. Em seu comentário sobre

das imagens como um ser real atravessado pela perceptibilidade de

o livro, encontramos a síntese do que se desdobraria sucessivamente

maneira misteriosa. Ora, a necessidade de obedecer às prerrogativas do

nesse contraponto tão produtivo. Ao citar uma passagem de Presença e

preenchimento e do vazio foi justamente o que a descrição fiel da percepção,

Campo Transcendental sobre a especificidade da redução bergsoniana,

segundo o itinerário de Barbaras, recusou. Em suma: a percepção não

ele sublinha a originalidade de uma teoria da experiência capaz de evitar

pode ser compreendida como ação que visa preencher necessidades, e foi

abrir o campo de possibilidade de uma “subjetividade transcendental que

exatamente dessa forma que Bergson a pensou. Todo o trecho de Le Désir

é constituinte”, em proveito da noção de indeterminação (ou introdução

et la Distance que discute a teoria bergsoniana da percepção pode ser

de novidade), a partir da qual a própria subjetividade “nasce”18. Barbaras

17

52

53

Cadernos Espinosanos XXVII

Débora Morato Pinto

apontava já com bastante propriedade a convergência entre a redução

Ela vem esclarecer, não obstante constituir parte dessa obra, as consequências

bergsoniana e a redução fenomenológica e a lição fundamental que essa

que as ilusões da razão fizeram incidir sobre a análise filosófica da percepção,

convergência indicava, a diferença fundamental residindo na questão

esta levada a cabo em Matéria e Memória. Quais são os aspectos do ser que

da finitude, constitutiva e definitiva para a fenomenologia, suscetível de

a crítica permite reencontrar, tanto no nível das consequências (como é o

superação, para Bergson, uma “alternativa hoje crucial, que coloca em

caso da metafísica da matéria cuja condição de possibilidade é a retomada

questão o limite da fenomenologia” (Barbaras 3, p. 341).

da fenomenologia da percepção pelo crivo da descrição em termos de

Mas essa proximidade fértil acabou pendendo para a leitura crítica.

imagens), quanto no nível dos princípios, como encontramos no resultado

Assim, o saldo da referência a Bergson em Le Désir aparentemente condena

da desconstrução da ilusão ao final da terceira obra? De maneira sintética,

o filósofo da duração: permanecendo cativo de uma ontologia fundada na

podemos indicar os resultados num e noutro plano como o encontro com

positividade, ele não pode dar conta nem do mundo, nem do sujeito e muito

a mobilidade essencial do real. Sem a imposição de pensar o Ser como

menos da percepção do mundo por esse sujeito, perdendo de vista a unidade

substância estática e idêntica a si, recusando o pressuposto que somente aceita

originária entre positivo e negativo que a descrição fenomenológica da

como determinações do ser a identidade, imobilidade e a essencialidade

percepção desvelou. A mesma cegueira em relação à negatividade do ser

matemática ou lógica (que é bem sintetizada pela expressão “tudo está

que a recusa da precedência ontológica do nada pode trazer à luz se repete

dado”), é possível compreender o ser como substancialidade imbricada

na análise da percepção. Porém, se cavarmos mais fundo essa análise de

com o tempo, realidade que não é “alheia à duração”. Essa compreensão

Barbaras, encontramos outro papel para Bergson. Mais do que denunciar

depende apenas de que se siga o fio da experiência sem dela desviar-se pela

o “ponto cego do edifício bergsoniano” (Barbaras 2, p. 128) e condenar o

interposição de categorias advindas da racionalidade prática. E o ser que se

bergsonismo como nova figura de um espiritualismo19 a ser ultrapassado,

revela na medida em que procurarmos ver para ver (ao invés de ver para

o contraponto com a teoria das imagens serve a ele de instrumento para

agir), não é exatamente um ser positivo subsistente em si e exterior a nós. Ele

retomada de seu próprio fio condutor, para avançar e detalhar a caracterização

é pura mobilidade, um devir infinitamente variado, portanto, diferenciação

do sujeito da percepção que se abre ao ser fenomenal enquanto vivo. Todos

incessante, e vivo, um ser que é vida, mas Vida conosco:

os elementos de uma fenomenologia da vida estão ali já bem fundados, e não à toa essa fenomenologia retomará a diferença com Bergson do ponto em que se deteve, aprofundando e ampliando a contraposição. E, o que defendemos em diversas passagens aqui, a articulação dessas críticas revela em negativo o encadeamento preciso da teoria da percepção fundada no desejo que desemboca numa nova filosofia da vida20. A crítica do Nada fecha um momento particular da filosofia de Bergson, justamente a reflexão sobre a vida que redimensiona a metafísica. 54

Então o Absoluto se revela muito perto de nós, e até certo ponto, em nós. Ele é de essência psicológica e não matemática ou lógica. Ele vive conosco. Como nós, mas por certos lados infinitamente mais concentrado e mais contraído sobre si mesmo, ele dura (Bergson 13, p. 323).

Sem entrar no âmago da metafísica de Bergson, importa ressaltar que a leitura dos textos de Barbaras explicitou para nós, melhor que outros

55

Cadernos Espinosanos XXVII

Débora Morato Pinto

filósofos (o que inclui Merleau-Ponty), em que sentido o ser-durée pode

6. _______ Investigações Fenomenológicas: em direção a uma fenomenologia da vida. Curitiba: Editora da UFPr, 2011. 7. _______ La Vie Lacunaire. Paris: Vrin, 2011. 8. Bergson, H. A Evolução Criadora. Trad. de Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

responder aos questionamentos compartilhados pelos autores situados na fronteira entre fenomenologia e metafísica. Percebemos ainda que, através do confronto entre a criação e o desejo, é a reflexão sobre a vida que avança consideravelmente, colocando em evidência a questão que será, para muitos, o tema capital para o nosso tempo. La vie entre le désir et la création: Renaud Barbaras lecteur critique de Bergson Résumé: Nous présentons ici le croisement de deux philosophies de la vie, celle de Renaud Barbaras, le thème central de ce texte, et celle d’Henri Bergson, qui préside le point de vue sous lequel nous considérons la phénoménologie contemporaine. Notre objectif est d’exposer, de manière générale, comment la différence avec Bergson a joué un rôle important dans la constitution de l’œuvre de Barbaras. Plus explicitement, nous prennons en considération des références critiques de l’ouvrage Le Désir et la Distance à la philosophie de Bergson pour montrer comment sont-elles bien incorporées dans cette phénoménologie, inspiré par Merleau-Ponty, qui met en relation essentiel la perception, la vie et le désir. Nous remarquons aussi quelques acquisitions reçues par la lecture de la théorie de la perception pure de Bergson compte tenu de la confrontation avec la phénoménologie de Barbaras. Mots-clés: perception, vie, désir, phenomenology, creation, durée. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. BARBARAS, R. Le tournant de l’expérience: Merleau-Ponty et Bergson in: Philosophie, n.54, Paris: Les Éditions de Minuit, 1997. 2. _______ Le Désir et la Distance. Paris: Vrin, 1999. 3. _______ La phénoménologie de Bergson. In: Annales Bergsoniennes I. Paris: PUF, 2002. 4. _______ Vie et Intentionnalité. Recherches Phénoménologiques. Paris: Vrin, 2003. 5. _______ Introduction à une phénoménologie de la vie. Paris: Vrin, 2008.

56

9. ________. Matéria e Memória. Trad. de Paulo Neves, São Paulo: Martins Fontes, 1999. 10. DELEUZE, G. Bergsonismo. Trad. de Luiz B.L.Orlandi. São Paulo: Editora 34, 1999 (Col. Trans). 11. During, E. “Presénce et Répétition: Bergson chez les phénoménologues”; in Critique, Tome LIX, n.678, nov.2003. 12. Merleau-Ponty, M. Fenomenologia da Percepção. Trad. Carlos Alberto. R. de Moura. São Paulo: Martins Fontes, 1994 (Col. Tópicos). 13. Prado JR., B. Presença e Campo Transcendental. Consciência e Negatividade na Filosofia de Bergson. São Paulo: Edusp, 1989. 14. RIQUIER, C. À la lisière du monde: la vie selon Renaud Barbaras. In: Critique.750. Paris: Éditions de Minuit, novembre 2009.

Notas 1. A vida surge como a questão decisiva quando se trata da percepção conferindo-lhe o papel e a relevância que lhe cabe de direito na ontologia. Desde Husserl, passando por Merleau-Ponty e pelos projetos fenomenológicos contemporâneos, Barbaras mostra com extrema clareza como percepção, movimento e vida se entrelaçam e como esse vínculo é trabalhado pelas descrições que partem da mesma recusa – a do mundo objetivo como fundo silencioso que dirige a filosofia da tradição e sua dependência do conceito de ser determinado. Em nosso percurso próprio, sempre foram alvo de interesse os pontos dessas análises que se definem a partir da relação com a crítica bergsoniana do negativo e sua incidência sobre a teoria da percepção levada a cabo em Matéria e Memória. Barbaras estabelece essa relação em textos diversos. Nas referências ao final do texto, ver os artigos de 1997 e 2002. 2. Com essa expressão, referimo-nos às ciências, biologia e psicologia, mas também à metafísica. 3. Observemos aqui que a relação estabelecida por Barbaras entre a sua fenomenologia e a filosofia de Bergson toma esse ponto como nó da “divergência”. Reconhecendo os 57

58

Cadernos Espinosanos XXVII

Débora Morato Pinto

avanços da crítica bergsoniana da tradição, bem como o mérito da teoria da percepção pura desenvolvida em Matéria e Memória, Barbaras considera ter superado os limites dessa teoria precisamente porque ela não pode dar conta da intencionalidade. Se levarmos em conta que Bergson parte da percepção e chega à vida como consequência de sua análise dos dados imediatos da consciência, o confronto entre uma metafísica da percepção e uma fenomenologia centrada no desejo evidencia lições filosóficas de alcance bem considerável. Pensamos que, no momento em que as razões dessa recusa são explicitadas, Barbaras avança passos largos em seu próprio projeto, e esse movimento se efetiva na obra Le Désir et la Distance. 4. Tal motivação se evidencia, primeiramente, pela presença dos temas merleaupontianos ao longo de todo o percurso. Com efeito, a influência assumida de Merleau-Ponty incide sobre a forma pela qual o autor efetiva a passagem de um estudo das condições de possibilidade da experiência – já bem redimensionado pela recusa ao a priori kantiano e pelo reconhecimento de que é a análise filosófica da sensibilidade enquanto tal que propicia a conjugação entre o transcendental e o concreto – à reforma da ontologia. 5. O encontro inevitável com a metafísica talvez seja uma das dimensões mais instigantes do percurso de Barbaras. Camille Riquier, ao analisar a obra L’Introduction à la Phénoménologie de la Vie, considera que a essência da vida impinge à fenomenologia “negar-se” em metafísica, e isso por razões “estritamente fenomenológicas” (Riquier, 2009, p.986). Ver todo o artigo, que apresenta magistralmente o livro. 6. Ver Babaras, 2008, terceira parte. A fenomenologia da vida à qual Barbaras nos introduz nessa obra recente sugere uma ocasião preciosa para a boa elaboração de suas referências a Bergson. Não trataremos dessa relação aqui, mas apontamos a etapa anterior e necessária para tanto: o papel da confrontação com o bergsonismo na obra Le Désir et la Distance, precisamente aquela em que o autor nos apresenta a linha mestra de sua fenomenologia da percepção. Sublinhamos assim como a presença de Bergson se faz sentir na clareza e na força desse percurso, a começar pela forma através da qual ele repõe os problemas filosóficos, reposição que é essencial ao encaminhamento em direção à noção de desejo como via de resolução para os mesmos. 7. Na continuidade da descrição do eu posso que não se diferencia de um eu faço, encontramos que se trata de um poder que é idêntico ao efetivar-se, somente existindo como realização; ao efetivar-se o poder existe, por isso ele é reativado quando o movimento, que é o poder-fazer identificados, se efetiva. Trata-se assim de um automovimento, não apenas porque procede de um si, mas sobretudo pelo fato de que

ele é “sua própria fonte, que ele se nutre de si mesmo, que a impulsão não se esgota mas é restaurada pela realização” (Barbaras 2, p.116). 8. Barbaras segue as direções gerais da incorporação do negativo fornecidas por Merleau-Ponty, autor ao qual ele dedicou seus trabalhos de formação acadêmica, para definir seu caminho próprio num momento posterior a partir do encontro com a noção de desejo – encontro que deriva diretamente da caracterização da negatividade implicada indissociavelmente à experiência perceptiva, em sua abertura à transcendência, em seu excesso e sua distância internas, em sua origem no movimento vital. 9. Ainda aqui o árduo trabalho de comentário das obras de Merleau-Ponty foi enviesado pela filosofia bergsoniana: num artigo de 1997, dois anos antes da publicação de Le Désir et la Distance, ele apresenta as linhas gerais do confronto e explicita, desse modo, como vê na fenomenologia da percepção respostas mais consistentes para questões que a teoria da duração formulou e procurou responder. Isso significa que o projeto filosófico de Merleau-Ponty se apresenta atravessado pela filosofia de Bergson, especialmente nos momentos decisivos de recusa e superação do projeto de Husserl. A recusa à redução husserliana a partir das análises da psicologia da forma e da fisiologia de Goldstein conduzem Merleau-Ponty à“recondução a uma subjetividade, que ele caracteriza como subjetividade encarnada” (Barbaras, 1997, p.42). 10. Expressão cujo termo em francês, le tournant de l’expérience, intitula o artigo. Sobre isso, ver o início do último capítulo de Matéria e Memória. 11. Aqui é pertinente observar que o autor ao qual Babaras dedicou longos anos de estudo é sim sua influência maior, e isso significa que a justa avaliação do desvio que ele impõe ao estudo da percepção segundo o método fenomenológico exige a compreensão da diferença ente sua obra e a de Merleau-Ponty. Não é nosso objetivo cumprir essa tarefa, não teríamos condição para tanto. Em todo caso, é importante acrescentar que os passos mais significativos para o deslocamento – de resto indispensável para Barbaras, desde a inauguração da fenomenologia husserliana e sua confiança no a priori correlacional – da questão em direção à percepção foram dados precisamente pelo projeto merleaupontiano (em seu desvio de Husserl mediado por Heidegger). 12. De outro lado, se o empirismo se atém à multiplicidade sensível, que descreve em termos de sensações ou feixe de sensações, multiplicidade espacializada de unidades atômicas, perdendo “a coisa mesma” que se dá com os aspectos subjetivos, o cartesianismo se perde em outra dimensão: a experiência por ele descrita se atém a uma unidade ideal que pressupõe referida ao pensamento, concentrando-se no ato de apreensão de sentido que determina objetivamente, de modo ideal. Descartes e 59

Cadernos Espinosanos XXVII

os herdeiros do racionalismo deixam escapar, via de regra, a presença, o múltiplo, a doação por aspectos, e, no mesmo equívoco, perdem de vista o sujeito que sente. Além de reencontrar o ser estático e eterno da metafísica de antes, Descartes também lega uma descrição artificial do sujeito consciente, que passará clandestinamente para as ciências dos séculos posteriores. 13. Essa crítica é, curiosamente, quase sempre acompanhada de elogios à teoria da duração e ao ser movente que ela destaca de um procedimento crítico bem próximo à redução, e Bergson passa a operar, em Merleau-Poonty de forma mais velada, em Babaras de modo mais explícito, autêntico e constitutivo, como contraponto ao projeto de Husserl e aos limites de seu objetivismo. 14. São elas: Le Désir et la Distance, Vie et Intentionnalité e Introduction à une Phéménologie de la Vie, percorrendo ao menos 12 anos de seu trabalho (ver as referência ao final desse texto). Pelas referências a Bergson, foi possível para nós entendermos exatamente qual é pressuposto originário do projeto de Barbaras, o que delimita os passos da busca e impede os desvios e as interferências que o afastariam de seus fins: o fato de que essa ligação (entre o sujeito-movimento e o objeto dado como distância) tem que ser compreendida a partir dos ensinamentos da intencionalidade – o que significa que ela deve dar conta da relação indissociável entre a estrutura de horizonte e o sujeito que percebe. 15. Intotalisable, em francês. 16. Em seu último livro, La vie Lacunaire, Barbaras retorna a Bergson, mais precisamente à caracterização do homo faber em A Evolução Criadora, e adota o mesmo procedimento que estamos pontuando aqui: procura mostrar que, para além da técnica (que define o homem segundo tal perspectiva) há o desejo “que retira sua energia inesgotável na falta ontológica que caracteriza o homem” (Barbaras, 2011, p.178). 17. Mesmo que reconheça o enorme mérito de ter formulado os termos rigorosos de uma teoria da percepção, Barbaras reprova Bergson por não ter dado continuidade a essa teoria respeitando fielmente tais termos: o ser vivo como motricidade que rompe a continuidade da matéria surge como um corpo positivamente dado numa totalidade sem

Débora Morato Pinto

desloca para a memória, e seu fracasso está sendo avaliado segundo as intenções e os critérios de um projeto do âmbito da fenomenologia; a subjetividade “ancorada no reconhecimento do que se dá atualmente” à ação é considerada como uma solução bem clássica por ele; ela significa também que a dualidade entre o psíquico e o corporal, afastada na análise da percepção, foi na verdade apenas deslocada para a dualidade entre matéria e memória, e mesmo radicalizada; o realismo de Bergson denunciado por ele logo acima é então a contrapartida da afirmação de uma realidade espiritual positiva, portanto, de um espiritualismo. 20. Mencionamos apenas que, ao buscar as respostas para tais ressalvas, encontramos nas noções de tendência, totalidade aberta e jorro ininterrupto de imprevisibilidade as pistas para o bom dimensionamento da ontologia bergsoniana. Assim, a contribuição e o enriquecimento proporcionados pela leitura dos livros de Barbaras foram decisivos em nosso percurso. É importante ainda apontar que, a nosso ver, Barbaras atirou no que viu e acertou no que não viu – o problema do aparecer da duração (o qual não se identifica com a questão do negativo) é de fato um ponto a ser problematizado.

ausência constitutiva – o mundo percebido recodificado como campo de imagens. 18. Barbaras retoma então a passagem especial do livro, situada no capítulo 3, sobre o “espetáculo sem espectador, o lugar em que o espetáculo se torna possível, e assim as condições de possibilidade de um espectador em geral” (Prado Jr. 13, p. 146) para circunscrever o campo de confrontação possível entre Bergson e a fenomenologia. 19. Barbaras reconhece que, dentro do projeto bergsoniano, a questão do sujeito se 60

61

De Merleau-Ponty a Barbaras Luiz Damon Santos Moutinho*

Resumo: Este artigo apresenta de modo bastante sucinto alguns lances da leitura barbarasiana de Merleau-Ponty e o tournant que, em face dessa obra, levou Barbaras a uma “fenomenologia da vida”. Palavras-chave: Merleau-Ponty, Barbaras, ontologia, fenomenologia, vida.

Certamente, os estudos sobre Merleau-Ponty se dividem em antes e depois de Barbaras. A sua tese, De l’être du phénomène (1991), deu novo impulso aos trabalhos sobre a obra do filósofo e renovou o interesse por ela, obscurecida, salvo raras exceções, por trabalhos de divulgação ou por manuais que a colocavam ao lado da de Sartre – na verdade, abaixo desta –, como representante do “existencialismo”. Leituras que, entre tantos outros equívocos, ignoravam solenemente as inflexões radicais – por exemplo, uma nova concepção de natureza – que levaram Merleau-Ponty à ontologia final de O visível e o invisível. Barbaras privilegia justamente esse último período e oferece interpretações inovadoras daquelas inflexões. Basta ver a dimensão que ele concede – a meu ver, corretamente – ao tema da “expressão”, ao abalo que essa noção provocou na ideia de sensível que ainda se encontra na Fenomenologia da percepção. Mas o mais importante veio depois da tese. Barbaras continua seus estudos sobre Merleau-Ponty e publica uma pequena obra-prima, Le tournant de l’expérience, em que, entre tantas novas intuições, aproxima * Universidade Federal do Paraná. 63

64

Cadernos Espinosanos XXVII

Luiz Damon Santos Moutinho

Merleau-Ponty de Bergson e mostra o que este deve à crítica bergsoniana

idealismo. No entanto, Barbaras, em uma leitura inédita à época, mostrou

da metafísica e do princípio de razão. A enorme familiaridade de Barbaras

em detalhes o que esse primado da percepção ainda deve ao idealismo.

com o pensamento de Merleau-Ponty o leva a explorar o que há de

Flerta com o idealismo a noção de “transcendência” que se encontra na

insuficiente neste e encontrar seu próprio caminho de reflexão. Depois

Fenomenologia: é uma simples transcendência de fato, não de direito, o

de longo périplo, Barbaras dá-se conta de alguns problemas da ontologia

que aponta para uma coincidência possível, própria ao idealismo, e, se é

merleaupontiana – grosso modo, ela recai no dualismo que sempre quis

assim, é porque Merleau-Ponty a pensa no horizonte da racionalidade.

combater, toma um ponto de partida que invariavelmente a faz girar em

Esse, certamente, não é o único problema desse período, conforme

falso, permanece cativa do modelo da “consciência”, reitera os prejuízos

a leitura de Barbaras. Por exemplo, o modo como a linguagem é tematizada

do “humanismo metafísico” – e propõe uma nova “fenomenologia da

na Fenomenologia revela uma insuficiência insuperável: Merleau-Ponty é

vida”. A partir daqui, todos os problemas clássicos da fenomenologia serão

levado a pensar a passagem do “gesto do corpo” à “significação linguística”

redefinidos: Barbaras inicia nova etapa. Nossa intenção aqui é apenas

de modo empírico, fazendo esta “derivar” daquele. Ou, dito de outra forma:

apontar alguns lances desse caminho.

Merleau-Ponty cava uma distinção natural e não fenomenológica entre

Como Barbaras lê Merleau-Ponty? Grosso modo, no período da

percepção e linguagem, ou, até mais amplamente, entre natureza e cultura.

tese, ele denuncia o intelectualismo dos anos 1940 e desenvolve – mais do

Aos leitores habituais de Merleau-Ponty, é bom lembrar: se isso hoje

que simplesmente “comenta” – a ontologia do último período. Nos anos

parece bem assentado (mas também pode ser bem discutido: eu próprio

1940, Merleau-Ponty teria sido demasiado tímido. Beaufret teria notado isso

não vou até esse ponto de ruptura entre percepção e linguagem), o fato é

desde o começo, naquele célebre debate na Sociedade Francesa de Filosofia,

que àquela época isso não era nada claro (a discussão pode ser levantada,

em 1946: “você não foi bastante radical”, disse ele a Merleau-Ponty. Ora,

mas a questão foi claramente exposta por Barbaras).

o problema todo nos anos 1940 gira em torno à crítica merleaupontiana

Resulta disso tudo que Barbaras guarda distância dos enunciados

ao idealismo de Husserl. Verdade que Merleau-Ponty sempre procurou

mais óbvios de Merleau-Ponty, como, por exemplo: “o mundo não é o

algo como o lado B de Husserl, a “sombra do filósofo”, e Barbaras não

correlato de uma consciência”, o que significa dizer: ele não pode ser,

ignora isso, mas, para além disso, seria preciso, de acordo com Barbaras,

nem de direito, completamente determinado. E o que importa na leitura de

refutar o idealismo husserliano, e nisso Merleau-Ponty foi tímido, mais

Barbaras é esse “nem de direito”, pois Barbaras reconhece que Merleau-

convivendo com ele do que rejeitando-o. A percepção parecia então uma

Ponty busca – explicitamente, aliás – superar a determinação completa.

alternativa capaz de ir além daquele idealismo. Percepção tomada em

Mas, com os instrumentos de que dispõe nos anos 1940, Merleau-Ponty

sentido inédito: basta dizer que toda consciência, mesmo a mais abstrata,

simplesmente não tem como ter êxito. Não haverá preenchimento de

é, para Merleau-Ponty, uma consciência perceptiva. Com o primado da

intenção, certamente, o mundo é o mundo sensível e o sujeito, por sua vez,

percepção, Merleau-Ponty procurou assegurar um vínculo íntimo entre o

não é uma consciência, mas um corpo, um corpo sensível. Nada disso,

sensível e o inteligível e encontrar assim a alternativa para ultrapassar o

contudo, nenhuma dessas grandes inflexões da fenomenologia de Merleau65

66

Cadernos Espinosanos XXVII

Luiz Damon Santos Moutinho

Ponty diante do idealismo de Husserl o leva a bom termo. O núcleo da

O que faltava aí, segundo Barbaras? Faltava a originalidade da expressão

objeção de Barbaras não consiste tanto em dizer: o projeto dos anos 40

linguística, que só virá nos anos 1950. Mas então, retrospectivamente, o

não é uma boa alternativa, mas em dizer: Merleau-Ponty não tem êxito

percebido deixará de ser uma “positividade natural” e tornar-se-á “voz do

em realizá-lo. O problema não é que a ideia seja falsa, mas que ela não

silêncio”. É então que Merleau-Ponty rompe a clivagem entre percepção

é simplesmente alcançada. O espírito e a letra da Fenomenologia estão,

e linguagem. Ambas aparecem como momentos do logos, ora logos do

portanto, em desacordo. São muitas as razões elencadas por Barbaras para

mundo estético, ora logos proferido. A “expressão” se torna expressão do

apontar o fracasso da Fenomenologia, ou melhor, sua inconsistência. Talvez

mundo no duplo sentido do genitivo, sempre lembrado por Barbaras. E é aí

a principal delas, a que organiza todas as outras, seja essa: o campo aberto

que o “sujeito” da Fenomenologia perde sua função imperial: já não somos

pela Fenomenologia é residual, é o que resta da recusa do intelectualismo.

mais “sujeitos”, somos apenas “pontos de passagem” de uma teleologia que

Por isso mesmo, ele é descrito todo o tempo em negativo. O corpo, por

liga natureza e cultura, arquê e telos. O mundo se torna arquê infinita.

exemplo, não é de ordem inteiramente diversa da consciência, ele é antes

A ontologia do último período vem sobretudo daí, segundo essa

uma consciência opaca ou incoativa. Logo, o horizonte da racionalidade

leitura fina de Barbaras, vem dessa inscrição da idealidade no percebido.

persiste como obsessão a marcar o corpo como simples insuficiência. O

Mundo não é mais correlato de uma consciência, ele passa a ter uma

modelo pendular da Fenomenologia também: a crítica ao empirismo é

profundidade infinita. Logo, a transcendência é ontológica. A ontologia é

feita a partir do intelectualismo e vice-versa, o que significa dizer que nem

a descoberta dessa transcendência originária, que impede definir o mundo

um nem outro modelo é realmente superado.

pela presença: de modo radical, o ser do mundo excede toda apresentação.

A grande ruptura na obra de Merleau-Ponty, segundo essa

Isso requer uma outra ideia de redução, – e é aqui que Barbaras

leitura inicial de Barbaras, teria se dado com o aparecimento do tema da

aproxima Merleau-Ponty de Bergson – uma redução que ultrapasse o

“expressão”. Na Fenomenologia, a transcendência é ainda pensada no

modelo da “filosofia da consciência” dos anos 1940. Para essa, o ser é

horizonte de uma “filosofia da consciência”: por isso, de direito, apesar da

“puro objeto”, plenamente determinável, e vem daí, desse prejuízo, uma

insistência de Merleau-Ponty em sentido contrário, subsiste a possibilidade

implícita “ontologia do objeto”. Aqui, se aborda o ser a partir do nada,

de doação plena, ainda que não de fato. (Por que, aliás, Barbaras privilegia

aqui vigora o princípio de razão suficiente, o ser é implicitamente lógico,

a transcendência? Porque ela dá a medida, ao mesmo tempo, do estatuto

necessário, resistente ao nada que o antecede e o ameaça. A nova ideia

do corpo e do mundo.) Para Barbaras, a verdade da transcendência será

de redução, preparada pela “expressão”, já não busca mais neutralizar

descoberta por Merleau-Ponty a partir da teoria da “expressão”. A idealidade

a tese da existência, mas neutralizar o nada como prévio da existência.

era então pensada, na Fenomenologia, a partir de um gesto do corpo, o que

Esse passo apontado por Barbaras – de maneira inédita, é bom frisar –

levava Merleau-Ponty a hesitar entre o caráter natural e arbitrário do signo.

é pleno de consequências: Merleau-Ponty se apercebe, explorando uma

Ele reconhecia que o signo não é natural, mas reconhecia, por outro lado,

dessas consequências, que ele não pode mais conservar a consciência, não

uma “motivação” em gestos do corpo, tomado então como “corpo vivo”.

importa em qual forma, que já não basta passar da consciência reflexiva à 67

68

Cadernos Espinosanos XXVII

Luiz Damon Santos Moutinho

consciência não tética de si, que a ruptura com Husserl tem que ser mais

ao mundo. Merleau-Ponty quer conciliar, com aquela generalização, dois

radical, que é preciso aprofundar o que ele havia pensado sobre o corpo, e

aspectos aparentemente inconciliáveis: a diferença entre corpo e mundo e

a saída é o aprofundamento da “encarnação”.

o pertencimento do corpo ao mundo. Mas então, ao pensar o momento da

A encarnação é aqui o outro lado da moeda: a transcendência

“carne única”, ele não pode ignorar a diferença, e, para não perdê-la, se

originária, o mundo como arquê infinita, a não coincidência requerem

antecipa e distingue a “carne do mundo” da “minha carne”: essa última é

um novo estatuto para o corpo, de que a encarnação pretende dar conta.

se sentir. Com isso, avalia Barbaras, Merleau-Ponty desnuda o preconceito

“Consciência”, por envolver imanência, lembra Barbaras, exclui encarnação.

idealista que jamais o abandonou: a univocidade da “carne única” encobre

“Consciência encarnada” simplesmente não existe, é como um círculo

uma equivocidade irredutível.

quadrado. A encarnação, por sua vez, se bem pensada, afasta qualquer

Bem feitas as contas, a carne própria não pode conduzir a uma só

consciência. “Consciência” tem dupla implicação, ambas vinculadas ao

carne. O que daí resulta é um monismo confuso. Barbaras vai distinguir

idealismo: a determinação completa e, ligada a ela, o desconhecimento da

então uma carne “ontológica” de outra, “transcendental”. Não é o lugar aqui

inscrição do sujeito. Barbaras vai insistir muito nisso, e a meu ver com toda

de entrar em detalhes. Basta dizer que, pela carne “ontológica”, Barbaras

razão: a invalidação do sujeito transcendental e da “adequação”, ambas

quer assegurar uma disjunção entre “originariedade” e “intuitividade”,

feitas em nome da encarnação e daquela transcendência originária, isto é,

pelo quê ele restringe ontologicamente o escopo da intuição. Se o mundo é

da “não coincidência”. Daí o giro radical de Merleau-Ponty na passagem do

co-aparecente em toda aparição, a intuição de um ente pressupõe a doação

corpo para a carne: o corpo nada mais era que uma consciência incoativa. A

em carne do mundo, a presença supõe não presença, o originário implica

carne, por sua vez, não é simplesmente o corpo, não é a matéria do corpo,

ausência. A carne, portanto, não é um ente, é o mundo como totalidade não-

ela é condição de compreensão do corpo. Em algumas de suas mais belas

ôntica: ela é “ontológica”. Esse passo torna irredutível a distinção entre

páginas, Barbaras vai explorar essa tese merleaupontiana tão abstrusa, a

“carne própria” e “ontológica”, e por esse meio Barbaras pretende escapar

unidade entre sentir e intramundaneidade. Sentir é sentir do mundo no

ao monismo. Por outro lado, a carne é “transcendental”, ou seja, ela não é

duplo sentido do genitivo, como Barbaras gosta de insistir.

apenas aquela transcendência que excede toda aparição, o originário que

Ora, que teria havido aqui, segundo Barbaras, na passagem do corpo

não pode ser intuído: porque é carne, e não forma, ela será caracterizada

para a carne? Uma “generalização” que levou da carne do corpo à carne do

pela “iteração”: a carne passa para o lado daquilo que ela faz aparecer,

mundo. É isso que ele teria aceitado na época da tese e que não vai aceitar

e assim “ser” se confunde com “aparecer” – embora não se esgote nele.

mais no período da “fenomenologia da vida”. A “generalização” significa

Daqui, Barbaras vai concluir por uma “autonomia do aparecer”, que se

isso: Merleau-Ponty estende a “minha carne” para a “carne do mundo”.

torna então imanente ao mundo. Fim do privilégio – de qualquer natureza –

Essa extensão, avalia Barbaras, é feita num passe de mágica, pois Merleau-

do “subjetivo”. Fim de privilégio, não insignificância. O “subjetivo” deixa

Ponty é obrigado a pressupor – e esse prejuízo é inadmissível – que o meu

de ter papel constituinte e se torna, ele, implicado pela lei do aparecer: é

corpo seja fragmento do mundo. É essa a condição para haver “extensão”

porque o ser mundo implica aparição que ele requer polo subjetivo. 69

Cadernos Espinosanos XXVII

Eis aqui o tournant decisivo, a virada radical tramada por Barbaras: é ela que permite a ele abandonar o eterno ponto de partida de MerleauPonty e que, na sua avaliação, o levava inexoravelmente ao idealismo, apesar de todas as precauções de sua ontologia final. Não é mais necessário,

Vida privativa ou vida lacunar? Uma possível resposta de Heidegger à fenomenologia da vida de Renaud Barbaras

pensa Barbaras, partir da percepção: se o “sujeito” se tornou implicado pela

Marcia Sá Cavalcante Schuback*

lei do aparecer, podemos dar um passo adiante e perguntar pelo corpo não enquanto perceptivo, mas “por ele mesmo”, em seu sentido de ser próprio. A “carne” é uma má resposta porque ela apenas visa responder a um problema estranho ao corpo, isto é, não ao sentido do corpo tomado “nele mesmo”, mas ele submetido a um prejuízo idealista (que Merleau-Ponty, frise-se bem, conserva até o fim). Noutras palavras, o núcleo da objeção de Barbaras a Merleau-Ponty reside nisso: Merleau-Ponty submete a percepção – e, com ela, os seus “momentos” – à racionalidade, ele submete a arquê ao telos. É por isso que ele vai, inexoravelmente, se enredar em dificuldades das quais não consegue escapar. O problema último de Merleau-Ponty, malgrado sua intenção em sentido contrário, é, na avaliação de Barbaras, a razão. É esse núcleo que Barbaras quer superar. Sendo assim, por que ainda surpreenderse que ele seja conduzido a uma “fenomenologia da vida”, isto é, a uma

[…] O que vive incomoda de vida o silêncio, o sono, o corpo que sonhou cortar-se roupas de nuvens. O que vive choca, tem dentes, arestas, é espesso. O que vive é espesso como um cão, um homem, como aquele rio. […] João Cabral de Melo Neto (Cabral de Melo Neto, 4 p. 114)

dimensão anterior a “intenção racional”, a uma dimensão da qual a cultura não pode senão “derivar”? O tournant de Barbaras é, sem dúvida, bem mais radical do que aquele realizado por Merleau-Ponty por volta dos anos 1950, ele dá um passo, com a “fenomenologia da vida” que, a meu ver, MerleauPonty não poderia aceitar. Com Barbaras, decisivamente, a fenomenologia entra em nova etapa. From Merleau-Ponty to Barbaras Abstract: In a particularly succinct approach, this paper presents some snapshots of Barbaras’ reading of Merleau-Ponty and the tournant which, vis-à-vis the MerleauPontian work, led the former to a “phenomenology of life”. Keywords: Merleau-Ponty, Barbaras, ontology, phenomenology, life. 70

Resumo: A questão que vai guiar minha reflexão é da necessidade de se precisar o que seja uma vida filosófica e de que maneira a vida filosófica está relacionada à necessidade de se desenvolver uma filosofia da vida. A questão pode ser formulada do seguinte modo: são as expressões vida filosófica e filosofia da vida idênticas? De que modo uma filosofia da vida pode indicar o sentido de uma vida filosófica e viceversa? Trata-se na verdade de uma questão-guia do questionamento mais específico desse artigo que é aquele de discutir a possibilidade de uma fenomenologia da vida, trazendo Barbaras e Heidegger para uma conversa filosófica. Palavras-chave  : Filosofia da vida, vida filosófica, fenomenologia da vida, Heidegger, Barbaras. * Universidade Södertörn – Estocolmo. 71

Cadernos Espinosanos XXVII

Apresentação da questão

Marcia Sá Cavalcante Schuback

consciência constituindo vida. Renaud Barbaras parte de uma compreensão fenomenológica da consciência como o que é, de um lado, intramundana

Filosofia, diz a palavra, é amizade pela sabedoria, filia tes sofias,

e, de outro, um exercício de fenomenalização. Enquanto compreensão de

filia tou sofou. Essa amizade filosófica difere, porém, de um mero gosto

mundo e estruturação de sentido, consciência é no mundo e para o mundo.

pelo saber e pela erudição, pois em questão está, antes de qualquer saber, a

O verbo que designa essa dupla condição da consciência– ser-no-mundo

sabedoria da amizade pelo que nos dá a pensar. Vendo claro a precedência

e ser-para-o mundo é, nos diz Barbaras, “viver” (Barbaras 1, p. 9); viver

da sabedoria da amizade relativamente à amizade pela sabedoria, os gregos

é o modo de ser da consciência e do “sujeito” à medida que este está em

prezaram mais do que tudo pensar com amigos, pensar junto, descobrindo

vida e vive a vida. Viver a vida é um outro modo de dizer tornar-se mundo.

nos banquetes, nos “simpósios”, como se diz em grego, a alegria da vida

Esse modo de ser que é a consciência e o sujeito só está vivo ao viver a

filosófica, a vida de pensar entre amigos a amizade pelo que nos dá e nos

vida, ao tornar-se mundo e só vive a vida, ou seja, torna-se mundo por

faz pensar. A alegria desse pensar entre amigos deve ser colocada como

estar vivo. Considerando a correlacionalidade do vivo e do viver – Leben e

ponto de partida para discutir a sua fenomenologia da vida de Renaud

Erleben, ou ainda de vida e mundo, evocando as terminologias de Dilthey

Barbaras, a partir de uma questão precisa: a questão do que seja uma vida

e de Husserl- e considerando, ainda, que correlacionalidade significa a

filosófica. A questão que vai guiar minha reflexão é da necessidade de se

constituição de um e de outro numa relação recíproca, é mister trazer a

precisar o que seja uma vida filosófica e de que maneira a vida filosófica

dicotomia –estar vivo e viver a vida – para um viver mais originário, para

está relacionada à necessidade de se desenvolver uma filosofia da vida.

um sentido ainda mais originário de vida, para um “a priori”, a partir de

A questão pode ser formulada do seguinte modo: são as expressões vida

onde essa diferença pode ela mesma se constituir. Husserl chamou esse a

filosófica e filosofia da vida idênticas? De que modo uma filosofia da vida

priori de “mundo da vida”. Barbaras vai radicalizar a visão de Husserl e

pode indicar o sentido de uma vida filosófica e vice-versa? Trata-se na

chamar esse a priori de “vida originária”, a ser entendida como “vida ela

verdade de uma questão-guia do questionamento mais específico desse

mesma” (Barbaras 1, p. 9 et ss). Se Husserl chama de fenomenologia a

artigo que é aquele de discutir a possibilidade de uma fenomenologia da

volta às coisas elas mesmas, Barbaras conclama a fenomenologia para uma

vida, trazendo Barbaras e Heidegger para uma conversa filosófica.

volta à vida ela mesma. Essa radicalização se justifica por uma crítica ao

O ponto de partida para essa conversa é uma compreensão da

‘mundocentrismo’ de Husserl no qual a “vida” que já sempre se deu, a vida

filosofia como fenomenologia, como um pensar desde “as coisas elas

onde já sempre se está parece, só pode ser acedida pelos múltiplos modos

mesmas” (Husserl 11, p. 10). Em jogo está a fenomenologia da vida e,

de viver a vida, ou seja, pelas múltiplas estruturas de sentido da vida no

portanto, um pensar a vida a partir do mostrar-se ou aparecer da vida

viver. Segundo Barbaras, a proposta da fenomenologia da vida deve ir mais

desde ela mesma, da vida em si mesma . Em termos digamos escolásticos

além e buscar aceder e, de certo modo, ceder à vida ela mesma para assim

da fenomenologia em questão está a correlação entre consciência e

dimensionar a vida do mundo. De certo modo, o que aqui se escuta é a

vida, ou seja, a relação recíproca entre vida constituindo consciência e

“suspeita”, evocando o célebre termo de Ricoeur, de que a fenomenologia

11

72

73

Cadernos Espinosanos XXVII

Marcia Sá Cavalcante Schuback

deixou o sentido de vida do mundo determinar aquele de mundo da vida,

natureza. Dito em termos mais schellignianos, ou seja, mais metafísico-

tomando a vida basicamente como metáfora da dinâmica de estruturação

idealistas, trata-se de admitir como ponto de partida não uma consciência

de sentidos, chamada mundo. Assim “mundo da vida” diria tão somente

da vida, no sentido de um genitivo objetivo, mas uma consciência da vida,

devir de mundo, cobrindo de véus o véu espesso do mundo chamado vida.

da vida ela mesma fazendo-se consciência, da vida se diferenciando dentro

Mas como aceder à vida ela mesma se a tarefa de buscar um acesso à vida

e a partir de si mesma. Consciência é vida diferenciando-se a si mesma,

ela mesma, se uma fenomenologia da vida, é inexoravelmente proposta por

visão schelligniana, que Barbaras partilha ao afirmar, por exemplo, que “o

e de um mundo? Em outras palavras: se é mister buscar um acesso à vida

humano difere da vida somente diferenciando-se dentro da vida” (Barbaras

ela mesma como diluir a voz gritante do mundo, que em última instancia é

1, p. 48) e que “consciência retira toda a sua possibilidade da vida e só se

a voz gritante do homem, de modo a tornar enfim possível a escuta da fala

especifica como consciência humana mediante uma limitação da abertura

silenciosa e do “livro indecifrável” da vida ela mesma?

que caracteriza a vida originária” (Barbaras 1, p. 48). Assim entendida,

Várias tentativas de se desenvolver uma filosofia da vida na história

fenomenologia da vida equivale a uma “antropologia privativa” (Barbaras

da filosofia no Ocidente ou bem consideram a vida como o que o homem é,

1, p. 48). Por antropologia privativa deve-se entender, em parte, a vida

menos alguma coisa, ou bem definem o homem como o que a vida é, mais

humana assumida como sendo ela mesma “vida lacunar”, uma lacuna da

alguma (Barnaras 1, p. 48 et ss)22. A vida tem sido interpretada ora como

vida dentro da vida e, por outro, que essa “lacuna” não é privação de vida

um a menos ora como um a mais do que o homem, ora como uma subtração

mas o diferenciar-se da vida nela mesma enquanto dinâmica da própria

do e ao homem, ora como o homem que excede e se mostra excesso da

vida. Se desde os gregos, a vida foi definida como auto-movimento, o

vida. Isso significa dizer, por um lado, que, na tradição, foi sempre desde

que se move desde si mesmo, aqui se propõe partir de um entendimento

o homem e da sua vida que a totalidade da vida se viu determinada e

de vida como auto-diferenciação. Homem não é nem vida mais alguma

definida e, por outro, que a vida do homem sempre se definiu e determinou

coisa – razão, lógos – e nem vida menos alguma coisa mas “vida lacunar”,

como diferença relativamente à vida ela mesma. As várias filosofias da

expressão que Barbaras empresta a Herder (Barbaras 2, p. 174).

vida são assim, de um lado, antropocêntricas e, de outro, solipcistas: o homem é “a medida de todas as coisas”, no dizer de Protágoras e uma “solidão no cosmo”, lembrando uma expressão de Eugen Fink. A tarefa

A crítica da fenomenologia da vida de Barbaras à ausencia de uma fenomenologia da vida em Heidegger

proposta por Barbaras é de superar essa visão, devolvendo o homem para

74

a sua pertença à vida ela mesma, ao evidenciar de que modo o seu “ser-na-

Para Barbaras, esse ponto de partida para uma fenomenologia da

vida” constitui precisamente uma diferença dentro da própria vida, como

vida é, nas suas próprias palavras, “pura e simplesmente a inversa” da

o modo de ser-na-vida é o modo mesmo de ser da vida. O ponto de partida

perspectiva de Heidegger (Barbaras 1, pp. 39-85). Ao afirmar a sua posição

de Barbaras mostra uma grande afinidade com a posição de Schelling,

como uma oposição a Heidegger, duas questões de imediato se colocam: a

que formula uma “independência” do humano dentro da sua pertença à

primeira é se a inversão de uma posição ainda não mantém necessariamente 75

Cadernos Espinosanos XXVII

Marcia Sá Cavalcante Schuback

os pressupostos da posição a que se opõe. Essa questão conduz para a

pela visão de Heidegger de que nem a biologia e nem a psicologia podem

segunda que se pergunta – mas qual é a posição de Heidegger? Uma

propiciar um acesso adequado a uma fenomenologia da vida, já que

pergunta se mistura com a outra, pois decisivo passa a ser uma elucidação

ambas assumem a vida como “coisa” e, portanto, como algo subsistente e

do que seja o homem para que ele possa ser tomado ora como excesso à

simplesmente dado. O perigo do biologismo e do psicologismo é o perigo da

vida ou como privação ou lacuna da vida dentro da vida.

coisificação ou “reificação”, como Heidegger vai insistir usando por vezes

A crítica a Heidegger, que ocupa um lugar importante na

a expressão de György Lukács, “coisificação da consciencia” (Heidegger

fenomenologia da vida proposta por Barbaras, acompanha em linhas

9, §6 e §83). Não obstante apontar os problemas de toda “ciência da vida”,

gerais a crítica feita por Derrida e outros comentadores (cf. Derrida 6, e

nas diversas formas de biologismo e psicologismo, Heidegger parece

Dastur 5). Essa crítica é fundamentalmente uma crítica à ausência de uma

sempre recair num antropocentrismo ao afirmar que, enquanto único modo

fenomenologia da vida no pensamento de Heidegger. Barbaras critica a

não subsistente de ser, só a presença, só o Dasein no e do homem pode

crítica heideggeriana ao antropocentrismo do humanismo metafísico e

propiciar o único acesso ao modo não subsistente e entificado da vida. Desse

anti-metafísico. Para Heidegger um dos grandes problemas do humanismo

modo, a vida seria o que se substrai do e ao homem, equivalendo assim

metafísico foi só ter conseguido pensar o homem desde a animalitas, como

a uma zoologia privativa. Referindo-se igualmente à tese de Heidegger,

o animal mais alguma coisa, mais razão, linguagem, e lógos, ressentindo-se

apresentada nos cursos de 29/30 – Conceitos fundamentais da metafísica

de uma determinação de sua humanitas, de um sentido de humanidade que

–, de que o animal é “pobre de mundo” e a pedra é “sem mundo”, quando

não se defina comparativamente e sim a partir de sua incomparabilidade.

comparados ao homem “formador de mundos” (Heidegger 10), a “zoologia

Para Barbaras, Derrida e outros, a crítica de Heidegger parece limitada,

privativa” de Heidegger e o seu existencialcentrismo parecem no fundo

pois está fundamentada no que Barbaras chamou do “existencialcentrismo”

apenas confirmar o antropocentrismo da tradição. Mesmo que presença,

de Heidegger (Barbaras 1, p. 64). Se Dasein, presença, expõe um outro

Dasein, deva ser entendida principialmente como vida fáctica e não como

sentido de homem, que não mais o define com base numa ontologia da

“homem” ou qualquer determinação entificante e definitiva, a determinação

coisa, ou seja, numa ontologia do susbsistente mas sim do existente e de

heideggeriana da vida fáctica parece se ressentir de uma exposição de como

seus modos de existir, é sempre ainda desde a “existência do homem” que

a vida fáctica do homem não apenas se distingue mas pertence à totalidade

a vida se define para Heidegger. Em Ser e Tempo, Heidegger vai formular

da vida, à vida ela mesma ou “vida originária”. Essa falta se explicita,

sua posição ao afirmar repetidamente que o modo de dar-se da vida desde

segundo Barbaras, na falta de uma discussão sobre o animal, sobre o corpo

ela mesma é um modo privativo. Assim, diz Heidegger que “a constituição

e a matéria no todo da filosofia de Heidegger. Citando Barbaras, “o corpo

ontológica fundamental do “viver” é, no entanto, um problema em si

aparece como o impasse ou o impensado da fenomenologia heideggeriana,

mesmo, e só pode ser desenvolvido através de uma privação redutiva a

que embora reconhecendo a sua especificidade não consegue lhe conceder

partir da ontologia da ontologia da presença (do Dasein) (Heidegger 9,

verdadeiramente um lugar” (Barbaras 1, p. 66).

§ 41, p. 261). Segundo Barbaras, essa posição é em parte bem justificada 76

77

Cadernos Espinosanos XXVII

78

Marcia Sá Cavalcante Schuback

Não obstante todas as “faltas” da fenomenologia heideggeriana

As análises de Barbaras conversam não só com a filosofia de Henri

e apesar do “existencialcentrismo” e seus resquícios antropocêntricos, a

Bergson e suas distinções entre instinto e inteligencia, entre a dinâmica

fenomenologia de Heidegger guarda sempre ainda o mérito de ter salientado

criadora da vida e a ação criadora do homem mas igualmente com o que

a questão sobre o sentido de “privação” que define a diferença entre a

se poderia talvez chamar de arqueologia, palenteologia, antropologia

vida fáctica do homem e a vida ela mesma. Para Barbaras, Heidegger não

“negativas” como por exemplo aquelas presentes nas pesquisas de André

pensou porém até às últimas consequências de que modo a vida só se dá

Leroi-Gourhan que partem de uma visão da vida humana como vida de

privativamente. É o sentido de vida privativa que requer uma explicitação e

capacidades mobilizadas por falta de capacidades. Barbaras refere-se

descrição fenomenológicas que a ontologia fundamental da presença não é

igualmente a estudos de uma espécie de biologia negativa como a do

capaz de propiciar. Seguindo inspirações das fenomenologias de Merleau-

holandés Luis Bolk que, na sua “teoria da fetalização” apreende a vida

Ponty e de Jan Patocka, Barbaras vai propor uma compreensão do modo

humana como uma espécie de neotenia e prematuração, isto é, como a

privativo do dar-se da vida como a dinâmica própria de um “movimento

vida de um feto de primata que alcançou maturidade sexual. Em todos

ontológico”, no dizer de Patocka, de um “uma auto-limitação constitutiva

essas variações de uma ciência digamos “negativa” da vida, transparece

do viver”, que Barbaras vai definir como desejo (Barbaras 1, p. 373). “Ao

também no ámbito das ciências naturais uma visão da vida humana como

afirmar que vida é desejo, Barbaras relê igualmente Freud e Lacan de maneira

vida “enraizada numa lacuna ontológica, num defeito e numa falta bem

a indicar como a vida é ela mesma lacunar, desejante, não de algo fora dela

mais do que na posse de qualquer qualidade ou do grau superior de uma

mas de sua auto-diferenciação, e assim, dela mesma enquanto um outrar-

qualidade determinada” (Barbaras 2, p. 174). A “diferença antropológica”,

se de si mesma. Vida é, numa expressão de Fernando Pessoa, “outrar-se”

expressão que Barbaras empresta a Frank Tinland (Tiland 14) é exposição

e assim arqui-movimento do aparecer como diferenciação nas diferenças

do movimento de diferenciação da própria vida, da vida entendida como

que aparecem, mediante uma proceso de individuação por delimitação. O

sendo nela mesma lacunar. Em lugar de situar a “privação” no modo de

aparecer de vidas individuais, de formas de vida é igualmente o aparecer

acesso da vida humana ao todo da vida, Barbaras vai considerar que estar e

do aparecer da vida como movimento de diferenciação. Nesse sentido, o

ser vivo já é aceder ao todo da vida originária como vida lacunar.

que aparece como forma delimitada e individuada de vida aparece como

Na inversão proposta por Barbaras, em lugar da zoologia privativa

movimento dentro do movimento de diferenciação que é a vida ela mesma.

de Heidegger cabe desenvolver uma antropologia privativa, ou seja, uma

Isso significa que, em sua dinâmica própria, vida é separação de si mesma,

visão de como o ser-na-vida do homem é ser-da-vida, de modo a apreender

de tal modo que todo vivente é ou bem um êxodo da vida (como o animal)

a “diferença antropológica” como um exílio ou separação de uma forma de

ou um exílio da vida (como o homem). Vida é lacunar por ser desejo de

vida dentro da vida universal. Não se trata de negar a diferença entre mundo

si mesma como outrar-se e, assim, como separação de si mesma. Nesse

e vida, entre homem e animal, entre vida fáctica e vida nela mesma, mas

sentido, a nossa vida, o ser-na-vida própria da vida humana é, como toda

de apreender essa diferença em toda a sua radicalidade de movimento e

forma delimitada e individuada de vida, uma negação da vida universal.

fenomenalização. Vida é aqui “arqui-movimento do aparecer. Na verdade, 79

Cadernos Espinosanos XXVII

Marcia Sá Cavalcante Schuback

ela diz o sentido mesmo de ser: nada do que se atribui ao ser escapa da

falta sem conteúdo ou objeto. Sendo ela mesma lacunar, a vida é negação

vida” (Barbaras 2, p. 159). Na inversão proposta por Barbaras, é desde o

e a morte negação dessa negação. Longe de estar diante da vida, a morte

fundo dinâmico de uma diferenciação de si mesmo que a diferença entre

encontra-se atrás da vida. Vida é assim uma negação ativa dessa negação

vida não humana e vida humana se expõe e, com ela, a humanidade do

da negacão que é a morte; na morte, a vida é devolvida para o seu fundo de

homem como a vida se negando a si mesma. Barbaras reconhece a sua

começo. Em lugar de um ser-para-a-morte, propõe-se aqui o que se poderia

própria posição, que faz ecoar até certo ponto a filosofia da natureza de

formular como um ser-desde-a-morte.

Schelling, não tanto na filosofia mas na poesia e, mais precisamente, na poesia de Rilke e na sua visão do animal como vida do aberto. Aqui também uma oposição a Heidegger é pronunciada, pois a leitura da oitava

Os esboços de uma fenomenologia da vida em Heidegger como uma resposta à fenomenologia da vida desenvolvida por Barbaras

Elegia a Duino feita por Barbaras é igualmente uma discussão crítica da

80

interpretação de Heidegger, para quem a compreensão rilkeana do “aberto

Ao apontar, no que vimos anteriormente, os principais pontos de

do animal”, do “espaço interior do mundo” testemunha uma posição

diferença entre a sua posição e a de Heidegger: 1) a diferença entre zoologia

subjetivista e metafísica (Heidegger 8). Em linha com as interpretações

privativa e e antropologia privativa, 2) entre o aberto da vida e a presença

de Rilke elaboradas por Roger Munier e Michel Haar, Barbaras busca

humana como abertura, 3) entre vida como movimento para a morte e

mostrar como o animal expõe ele mesmo o aberto diferenciando-se em

vida como movimento desde a morte, Barbaras mostra os vértices que

si mesmo e de que modo essa auto-diferenciação do aberto animal, do

explicam porque Heidegger não podia desenvolver uma fenomenologia da

aberto da vida é, na sua própria negatividade, instauração de consciência.

vida. Muito se poderia discutir sobre a leitura de Heidegger proposta por

Em certo sentido, pode-se dizer que é a vida e o animal que excluem

Barbaras. Mais decisivo, porém, do que defender ou criticar uma ou outra

o homem e não o inverso. Assim pode-se dizer que o “pensamento” é

posição é buscar aprofundar o que a fenomenologia da vida de Barbaras e

“torsão” e “virada” da vida ela mesma.

a presumida falta de uma fenomenologia da vida em Heidegger nos dão a

Com a discussão do aberto rilkeano em contraposição à abertura da

pensar. O decisivo para a fundamentação de uma fenomenologia da vida,

presença, de Dasein, coloca-se igualmente a questão da relação entre vida

que exige um confronto com a tradição da filosofia e da fenomenologia, é

e morte. Mais uma vez, numa oposição a Heidegger, Barbaras vai buscar

precisamente a questão da privação, da negatividade, da diferença da vida

mostrar que a ausência de uma fenomenologia da vida no pensamento de

nela mesma. Para aprofundar essa questão, gostaria de trazer Heidegger e,

Heidegger deve-se também ao fato de Heidegger incorrer no mesmo no erro

mais precisamente, a tentativa que o próprio Heidegger fêz de desenvolver

da visão metafísica da vida que a entende sempre desde a morte, segundo

explicitamente uma fenomenologia da vida, num curso ministrado durante

uma “ontologia da morte”, como afirmou Hans Jonas. Para Barbaras o

o semestre de inverno de 1919/20, na Universidade de Friburgo e publicado

equívoco consiste em sempre afirmar a morte como negação da vida por

sob o título Problemas fundamentais da fenomenologia, Grundprobleme

não se dar conta de cómo a vida é ela mesma negação, lacunar, vida de uma

der Phänomenologie, volume 58 das Obras Completas (Heidegger 7). 81

82

Cadernos Espinosanos XXVII

Marcia Sá Cavalcante Schuback

Essas preleções têm passado desapercebidas possivelmente por trazerem

toujours derrière nous la durée” (Bergson 3, p. 161). A procura é de uma

o mesmo título do curso ministrado em Marburgo em 27 e editado como

filosofia e, mais específicamente, de uma fenomenologia viva. Trata-se

volume 24, esse sim amplamente discutido pelo comemtadores. Esse curso

de buscar, diz Heidegger, um “posicionamento vivo nas motivações e

do semestre de inverno 1919/20 foi precedido de um outro, intitulado Zur

tendências vivas do espírito, um élan vital”, só que bem distinto do que

Bestimmung der Philosophie, vol. 56-57 das Obras Completas, onde a

propôs Bergson (Heidegger 7, p. 24).

abertura fenomenológica da experiência do vivente já está tematizada no

De onde partir para se desenvolver uma fenomenologia viva da

sentido desenvolvido no curso aquí proposto para discussão. Heidegger

vida? Da vida. O que diz essa condição de interioridade e imanência na

preconiza aqui a necessidade de uma “análise estrutural” por oposição a

vida de uma fenomenologia da vida? Como sabemos da vida? Já sempre

toda “análise atomizante” do fenômeno do vivo e do vivente.

sabemos da vida sem, no entanto, saber como sabemos da vida. A vida

O ponto de partida dessas preleções do semestre de inverno 1919/20

encontra-se tão perto que passa desapercebida. Não podemos tomar

é a relação entre vida filosófica e fenomenologia da vida. Em jogo está

distância da vida para ver, saber, pensar a vida porque não apenas estamos

não apenas a vida consciente e subjetiva do homem mas a vida filosófica

na vida mas já somos a vida. Só da vida é que podemos nos ver. A primeira

do homem como o “coração intrépido” do homem na vida. Heidegger

condição para uma fenomenologia da vida é portanto: 1) uma falta de

exprime a premissa fundamental dessas aulas com as seguintes palavras:

distância absoluta da vida em si e para si mesma. Isso talvez nos ajude

“a idéia da fenomenologia é de uma ciência originária da vida” (Idee

a entender porque, em Ser e Tempo, ao mesmo tempo em que Heidegger

der Phänomenologie: Ursprungswissenschaft vom Leben” (Heidegger

deixa de usar a expressão “vida fáctica” para dizer presença, Dasein, dirá

7, p. 81). Heidegger vai opor ciência originária (Ursprungwissenschaft)

repetidamente que a “presença vive numa compreensão de ser”. A falta de

à ciência dos principios (Prinzipwissenschaft), ou seja, vai opor origem

uma distância absoluta da vida em si e para si mesma pode ser resumida

à princípio. Por origem e ciência originária, vai entender a ciência que

como 2) a condição de bastar a si mesmo da vida, [Selbstgenügsamkeit].

jorra, springen, da própria vida. Em questão está, portanto, a busca de

Vida não é, primordialmente, auto-conservação e auto-preservação, mas o

uma fenomenologia que surja da vida e não de uma tradição herdada e

que se basta a si mesma, um não precisar buscar nada fora da vida porque

transmitida como “fenomenologia”. A busca é de uma fenomenologia da

em todas as suas buscas, descontentamentos e insatisfações, a vida busca

vida equivalente a uma vida filosófica, a uma vida na e da filosofia. Por

sempre a si mesma. Bastar a si mesma diz aqui simplesmente que a vida

isso, o problema fundamental dessas preleções não é como descrever a vida

é em si. Nenhuma coisa é em si. Em si, só é a vida. Só a vida é nela

nela mesma mas como uma descrição fenomenológica da vida ela mesma

mesma. O moto fenomenológico, “para a vida ela mesma” seria assim

jorra e surge da vida ela mesma. O problema é aquele de acompanhar a

uma redundância. Toda negação e falta da vida são dentro da vida, são a

“torsão” e a “virada” da vida em que o pensamento da vida pode surgir.

própria vida da vida. Aqui também já encontramos um pensamento central

A epígrafe desse curso de 1919/20 é uma passagem de Bergson, que diz:

em Ser e Tempo, de que: “a morte é, em sentido lato, um fenômeno da

“nous sommes en train d’ouvrir toujours devant nous l’espace, de refermer

vida” (Heidegger 9, § 49, p. 246). Em tudo o que a vida busca, ou seja, o 83

84

Cadernos Espinosanos XXVII

Marcia Sá Cavalcante Schuback

que comumente chamamos de insuficência do vivo, e tudo o que nega a

de Felix Ravaisson (Ravaisson 13). Saber da vida só é possível porque o

vida, o que comumente chamamos de morte, degeneração, deterioração

saber é saber desde um mundo, num mundo, para um mundo, circundante,

do vivo, o que se testemunha é como a vida basta a si mesma, no sentido,

compartilhado e próprio. Saber da vida é assim saber de como estamos

de que a vida é sempre dentro da vida. A insuficiência e descontentamento

habituados à vida. Por isso Heidegger vai afirmar que “toda vida vive num

do vivo, ou seja, o fato de a vida ter de buscar vida sempre e de novo e a

mundo. Tudo o que nos mundos e partes do mundo vem ao encontro, vem

tendência da vida perder a vida, da vida desvitalizar-se confirmam sempre

ao encontro no fluxo vivo e sob o traço da vida” (Heidegger 7, p. 36). Com

ainda como a vida está absolutamente dentro da vida, bastando a si mesma.

isso se diz que a vida sempre se dá numa direção, num modo de viver. A

Falta de distância e o bastar da vida nela mesma mostram de que modo a

vida vivida mostra a obviedade e trivialidade da vida como o modo da sua

vida se dá a conhecer, de início e imediatamente, como auto-evidência.

doação imediata, no sentido de ser tão próxima que passa desapercebida

Lembrando sempre de novo que a questão investigada por Heidegger não é

e que da vida não há distância possível. Vida se dá para o saber da vida

de como definir a “vida” para se desenvolver uma fenomenologia da vida,

como vida do mundo. A vida do mundo, no entrelaçamento de mundo

mas, ao contrário, como definir a condição viva de possibilidade para uma

circundante, mundo compartilhado e mundo de cada um, constitui o fundo

fenomenologia na qual a vida possa mostrar desde si mesma o seu sentido,

dos hábitos de compreensibilidade e de imediato acesso à vida.

não é possível definir a “vida” sem expor que se está a definir a vida. Em

Com isso, se diz igualmente que a vida se dá a conhecer

jogo está a busca de uma palavra que ao nomear a vida nomeie ao mesmo

“emocionalmente”, usando sempre a terminologia de Heidegger nessas

tempo o nomear. É a busca de um pensamento que ao pensar a vida pensa

preleções, e não teóricamente. Não somos o observador ou o conhecedor

ao mesmo tempo o pensar no movimento mesmo de seu gesto pensante.

teórico da minha vida no mundo. Para saber da vida nela mesma, ou seja,

Assim, a auto-evidência da vida – já somos a vida e toda afirmação ou

para saber da totalidade originária da vida é preciso que a vida seja trazida

negação da vida já se dá sempre na vida – não se separa de como a vida se

para um relevo. Heidegger fala aqui do “caráter de relevo de toda a vida em

auto-evidencia para um saber da vida. A questão não é o que é a vida, mas

si” (Heidegger 7, p. 38), usando uma expressão das artes plásticas. O relevo,

como sabemos da vida na vida, desde a vida e para a vida.

do latim levo, elevar, levantar, é o que se obtém mediante uma paciente

A vida se mostra, de início e de imediato, na trivialidade da nossa

excavação do fundo. No relevo, é o fundo que se excava e a figura, o que

lida, diz Heidegger. “Nossa vida é nosso mundo” (Heidegger 7, p. 33),

resulta dessa excavação do fundo, como uma espécie de negativo escultural.

vida se auto-evidencia numa “rítimica pessoal”. Vida se auto-evidencia na

Analogamente, é o fundo de compreensibilidade e acesso à vida, a sua

lida com a vida, como “ritmo de vida”. Um conceito fundamental aqui vai

proximidade sem distância, a sua obviedade que precisa ser pacientemente

ser precisamente o de “ritmo” e “rítimica”. Vida aparece na dinâmica de

a-profundada para que toda a vida nela mesma possa aparecer. A vida nela

estruturação do mundo circundante (Umwelt), do mundo compartilhado

mesma só aparece em relevo quando a superficialidade do modo em que

(Mitwelt) e do mundo de “cada um” (Selbstwelt). Essa dinâmica é a

a vida se dá a saber como vida do mundo vai pacientemente descobrindo

dinâmica de estruturação de hábitos. Heidegger aqui não está tão distante

sua profundidade, ou seja, o fundo de sua constituição e isso num abalo. 85

86

Cadernos Espinosanos XXVII

Marcia Sá Cavalcante Schuback

O fundo da vida do mundo deve abalar-se, descobrir o seu sem-fundo e

habituada a pensar em determinadas direções. Vida científica, vida teórica

abismo para que o saber imediato e emocional da vida se transforme num

é vida que estabilizou o abalo do fundo da vida do mundo em visões

saber teórico da vida.

teóricas e em estilos de vida. Essa estabilização trazida por uma teoria é,

Abalado o fundo trivial, cotidiano, óbvio do qual já sempre sabemos

para um Heidegger visivelmente discípulo de Husserl, uma desvitalização,

da vida, isto é, o fundo da vida do mundo, exacavando nesse fundo o seu

uma Entlebung da vida. À vida pertence não só Ablebung, perda de vida,

sem-fundo, aparecem relevos da vida num saber da vida teórica, que são por

Lebenlosigkeit, falta de vida, Unlebendigkeit, não vida, mas, sobretudo,

exemplo a vida científica, a vida artística, a vida religiosa, a vida político-

Entlebung, desvitalização. Teoria é desvitalização, pois é estabilização

econômica, etc. Heidegger vai descrever essas figuras do saber da vida

e enrijecimento em visões, conceitos e conceituações. Assim, as visões

teórica como estabilizações do abalo do fundo em estilos de vida em que

científicas da vida, seja a biologia, a psicologia ou as filosofias da vida são

diferentes níveis de um saber da vida na vida vivida vão se constituindo.

de certo modo a visão mais cega da vida, pois, não podendo distanciar-se

Vai buscar acompanhar como o saber cotidiano da vida, o saber que reflete

da vida para ver a vida, precisam desvitalizar a vida para conceber a vida à

sobre esse saber em narrativas sobre a vida e o viver – (o nosso papo “psi”)

distância. Essa desvitalização é o sentido fenomenológico de objetivação.

transforma-se em teorias sobre a vida onde a atitude científica emerge

A tentativa realizada por Heidegger de fundamentar uma ciência

como expressão de conexões estabelecidas mediante reflexão. Heidegger

originária da vida enquanto sentido vivo da fenomenologia é um embate e

vai descrever como uma ciência – no sentido mais filosófico do termo, que

debate com a visão cega das teorías sobre a vida. Heidegger vai propor não

é o sentido de atitude teórica, surge de várias transformações: primeiro,

a supressão ou superação da teoria ou a sua substituição por uma poesía

quando o fundo da vida do mundo se transforma em solo da experiência, em

da vida, mas uma fenomenologia da vida que permita o “aprendizado de

seguida, quando o solo da experiência transforma-se em região ontológica

desaprender”, para nos valer de um verso de Fernando Pessoa, a desvitalizar

e por fim quando a região ontológica transforma-se numa estabilização

a vida para saber da vida. Admitindo a insensatez da idéia de uma ciência

do que ele vai chamar de “lógica concreta”. No fundo dos hábitos do

da vida, Heidegger vai propor não a desistência de se buscar uma ciência

viver, a vida se dá imediatamente numa con-fusão, num conjunto de fusões

originária da vida mas a busca de uma expressão (visão, saber) da vida

e misturas que Heidegger, valendo-se de um verso de Stefan Georg, vai

como vida enquanto se originando e não como vida originária. Nessa

chamar de “tapete da vida”. A vida se dá a saber como tapete da vida

distinção, podemos encontrar uma base fenomenológica para discutir

do mundo. Nesse sentido, ela se dá a saber como vida fáctica. Em jogo

de modo mais filosófico do que historicista a diferença das posições de

está, mais uma vez, não o que é a vida mas como a vida se dá a saber,

Heidegger e de Barbaras.

como a vida se dá para um saber e como um saber da vida pode surgir

Vida enquanto (se) originando [Leben als entspringend] significa

da vida. Em jogo está a passagem da vida vivida para a vida filosófica, a

vida jorrando da origem, vida jorrando de uma nascente. É vida nascente.

diferença entre a vida não filosófica e a vida filosófica. A vida filosófica

Vida enquanto (se) originando é vida transformada, outra vida na vida, é

é no entanto, de início, vida misturada com vida da ciência, com a vida

vida (se) outrando. Vida enquanto (se) originando e não vida originária; 87

Cadernos Espinosanos XXVII

Marcia Sá Cavalcante Schuback

vida (se) outrando e não tanto vida diferenciada. A diferença aqui é entre

uma fenomenologia da memória, pois em questão está não só “a vida”

dois sentidos de diferença, uma diferença digamos “real” e uma diferença

presente ou o presente da vida, mas a dilatação da vida. Vida nunca é só

“formal”, uma diferenciação dentro da vida e uma diferença entre

presente – na sua dilatação que é a memória, vida é distância na proximidade

formas de vida. Vida (se) originando, Leben als entspringend, vida (se)

absoluta de si mesma, pois vida é sempre vida depois da morte e antes

outrando e nascente é vida que se distanciou de si dentro da proximidade

de nascer. Nesse sentido, pode-se precisar de que modo a morte é um

inalienável da vida. Essa distância na proximidade inalienável, Heidegger

fenômeno da vida. Vida depois da morte é a vida como memória, a vida

entende como recordação ou reminiscência, Erinnerung. Vida enquanto

como geração, vida enquanto (se) originando, nascente e (se) outrando, a

se originando é reminiscência, lembrar de novo, memória (Gedächtnis), a

continuidade da vida na e pela sua própria discontinuidade. Não é vida-

experiência mais expressiva e contundente da distância dentro da absoluta

além, mas vida-depois da morte dos antepassados e vida-antes do nascer

proximidade de si mesmo. Memória, diz Heidegger, é “dilatação viva e

dos não nascidos: vida se gerando no outrar-se de si mesmo. É vida jorrada

vivaz”, é “dilatação medida pela vida” (lebensmässige Dilatation), numa

da nascente, vida como nascente, vida das nascentes. Nascente, a vida

tradução bem literal. Os fatos lembrados não são fatos psíquicos de um

que “incomoda de vida”, lembrando o verso de João Cabral que epigrafa

eu olhando o seu passado e se reconhecendo como um eu idêntico a si

ese artigo, todo o passado e todo o futuro. Vida enquanto (se) originando,

mesmo no decorrer de um tempo. Os fatos lembrados, podemos ler nessas

nascente, outrando-se, memória, é vida depois da morte e antes do nascer,

investigações, sustentam a “rítmica do viver”. É assim que a vida se expõe

guardando nela mesma todas as posibilidades e impossibilidades, todo ser

como história. História não é ciência histórica mas vida como originação,

e todo não-ser, sendo assim a espessura do viver em cada um um para

ou seja, vida como transformar-se e “outrar-se”, e nesse sentido memória,

além de cada um. Espessura é a expressão de João Cabral no Cão sem

dilatação da vida na vida, rítmica do viver, distância dentro da proximidade

plumas, que acaba de receber uma bela tradução para o francês de Renaud

inalienável da vida. Assim entendida, história pode ser definida como o

Barbaras. Lembrando do poema que começa com os versos:

conviver da vida consigo mesmo, como Mitleben des Lebens, como a intimidade da vida consigo mesmo, e nessa acepção como “amor à vida”, vida contente com a vida. Memória não é visão da vida, quer interior ou exterior; não é objetivação e nem subjetivação, mas com-passo (Mitgehen)

Aquele rio está na memória como um cão vivo dentro de uma sala.

da vida consigo mesmo. Distância de si na proximidade inalienável de si mesmo, a memória é a vida em si mesma. Trazendo à palavra a intimidade da vida consigo mesmo enquanto memória, Heidegger descreve a vida como uma separação de si na união de si mesma, como uma descontinuidade contínua e uma continuidade descontínua, rítmica do viver. Fenomenologia da vida descobre-se assim 88

E prossegue dizendo O que vive incomoda de vida o silêncio, o sono, o corpo que sonhou cortar-se roupas de nuvens.

89

Cadernos Espinosanos XXVII

O que vive choca, tem dentes, arestas, é espesso. O que vive é espesso como um cão, um homem, como aquele rio.

dessa sua condição de ser o aceno e, assim, a cena onde a vida se mostra como aparecer na retração de si mesma. Se vida filosófica pode ser definida como a busca dessa transparência, então pode-se dizer que vida filosófica é a sombra-lugar em que a vida ela mesma mostra-se como devir num perecer. Ao trazer os esboços da fenomenologia da vida de Heidegger para uma

Poderíamos admitir que, em sua fenomenologia da vida, Heidegger

discussão sobre a elaboração da fenomenologia da vida de Barbaras, o que se

é mais cabralino que rilkeano, pois apreende a vida mais como a “espessura”

buscou foi tentar adensar o sentido de vida privativa como vida lacunar a partir

do viver – como memória – do que como o aberto da vida. Nessa espessura,

do modo como a vida no homem é a possibilidade de uma vida filosófica. O

a presença no homem, Dasein, o modo de ser que só sabe ek-sistir e nunca

que nos encontros e desencontros entre a fenomenologia da vida desenvolvida

subsistir, esse modo de viver que só sabe viver facticamnete, se pronuncia

por Renaud Barbaras e aquela apenas esboçada pelo “joven” Heidegger nos

como o lugar, o “por-aí”, o “Da”, em que a espessura do que vive aparece.

dá a pensar é como toda fenomenologia da vida, seja ela positiva ou negativa,

No final do muito discutido curso sobre os Conceitos Fundamentais da

privativa ou lacunar pode apenas ser uma fenomenologia em aberto, visões do

metafísica, Heidegger fala da presença humana como lugar desse aparecer

sempre ainda a-se-pensar, sempre e de novo, por ser sempre uma doação da

da vida, descrevendo-o como uma ausência que surge da entreluz da vida

vida da vida como vida do homem. A tarefa da fenomenologia permanece sendo

(Heidegger 10, § 76). Heidegger refere-se explícitamente aqui a Schelling

aquela de lutar contra a força desvitalizante e formalizadora da fenomenologia

para quem o homem, a consciência, é sombra do corpo da vida e não um

a fim de ensaiar, sempre e de novo, a elaboração de uma descrição viva do que

corpo vivo separado da força da vida. O que se diz no sentido de vida como

nos faz pensar: a “vida ela mesma”.

espessura do viver, como espessura da memória que expõe a vida como a dilatação de ser nela mesma um depois da morte e um antes de nascer, é um sentido de privação, de negação e diferença como aparecer no desaparecer, ou para usar um título de Hölderlin, como “devir no perecer”, Werden im Vergehen ou ainda como “sonho de uma sombra”, lembrando o bonito verso de Píndaro na oitava Ode Pítica, skias onar anthropos (Píndaro 12, p. 125). Dizer que presença humana é sonho de uma sombra, devir de vida no perecer de vida, aparecer da vida na sua retração, expõe o modo como a vida gosta de esconder-se, como já dizia Heráclito, mostrando-se como vida ela mesma ao retrair-se na vida do homem. Isso a presença humana expõe sendo vida fáctica, vida depois da morte e antes de nascer, mostrando como “viver é ir entre o que vive” (Cabral), vida jogada do entre buscando a transparência 90

Marcia Sá Cavalcante Schuback

Vie privative ou vie lacunaire? Résumé : La question qui guide ma réflexion est celle du souci de préciser ce qui serait une philosophie de la vie et de quelle manière la vie philosophique est en rapport avec la nécessité de développer une philosophie de la vie. La question peut donc être formulée de la façon suivante  : les expressions  «  vie philosophique  » et « philosophie de la vie » sont-elles identiques ? De quelle manière une philosophie de la vie peut-elle indiquer le sens d’une vie philosophique, et inversement ? Il s’agit en fait d’une question-guide du questionnement plus spécifique de cet article, à savoir la discussion de la possibilité d’une phénoménologie de la vie par le biais d’un dialogue philosophique avec Barbaras et Heidegger. Mots clés  : Philosophie de la vie, vie philosophique, phénoménologie de la vie, Heidegger, Barbaras

91

Cadernos Espinosanos XXVII

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. Barbaras, Renaud. Introduction à une phénoménologie de la vie, Paris: Vrin, 2008 2. ______. La vie lacunaire, Paris: Vrin, 2011 3. Bergson, Henri. Matiére et Mémoire. Paris: Alcan, 1908 4. Cabral de Melo Neto, João. ”Cão sem plumas” i Obra completa, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994 5. Dastur, Françoise. Heidegger et la question anthorpologique, Paris/Louvain: ed. de l’Institut supérieur de Philosophie Louvain-La-neuve, 2003 6. Derrida, Jacques, De l’Esprit. Heidegger et la Question, Paris: Galilée, 1987 7. Heidegger, Martin, GA 58 Grundprobleme der Phänomenologie (1919/20) 8. ______. Wozu Dichter?, GA 5, (1946) Holzwege, 1977 9. ______. Ser e Tempo, ed. bras. Revisada, Petrópolis: ed. Vozes, 2006 10. ______. GA 29/30. Conceitos fundamentais da metafísica, Petrópolis: Vozes, 2006 11. Husserl, Edmund, Logische Untersuchungen:  Untersuchungen zur Phänomenologie und Theorie der Erkenntnis. Hua XIX/ vol 1, 1984. 12. Píndaro. Pythiques, 8 Ode, Paris: Les Belles Lettres, 1977 13. Ravaisson, Felix. De l’habitude, Paris: Fayard, 1984 14. Tinland, Frank. La différence anthropologique, Paris: Aubier Motaigne, 1977

Marcia Sá Cavalcante Schuback

feitas por Georg Misch, principalmente em Lebensphilosophie und Phänomenologie. Eine Auseinandersetzung der Diltheyschen Richtung mit Heidegger und Husserl de 1930 e Der Aufbau der Logik auf dem Boden der Philosophie des Lebens, reeditado em 2002. A fenomenologia da vida de Michel Henry apresenta um encaminhamento fenomenológico no context da filosofia francesa contemporânea.

Notas 1. Cf. o sentido dado à fenomenologia e ao método fenomenológico por Heidegger em Ser e Tempo §7. 2. A história da filosofia da vida no Ocidente pode ser narrada e pensada de muitos modos. A sua base é sem dúvida a ontologia do vivo e do vivente em Aristóteles e a virada operada pelo cristianismo e a sua interpretação da vida como vida criada. Essa base foi substancialmente reelaborada na Modernidade a partir das ciências modernas da natureza e o redimensionamento dos sentidos de vida e morte, nele implicado. A primeira filosofia da vida que assume esse título como sua tarefa foi elaborada por Wilhelm Dithey o final do século XIX, seguida, embora numa direção diversa, pela filosofia vitalista de Henri Bergson e pela filosofia sociológica de Georg Simmel. Dentro do movimento fenomenológico, destacam-se as investigações fenomenológicas da vida

92

93

Renaud Barbaras, leitor de Husserl

Marcus Sacrini* Resumo: Neste texto, tenta-se explicitar algumas das principais marcas da leitura crítica de Husserl proposta por Barbaras. Destaca-se o reconhecimento da importância de Husserl como o desbravador do campo fenomenológico, mas também como limitador da compreensão desse campo, o qual seria, segundo o filósofo alemão, coordenado por tipos eidéticos objetivos. Palavras-chave: Barbaras; Husserl; consciência transcendental; tipos eidéticos

Inicialmente a obra de Barbaras se constrói como uma reflexão em torno da fenomenologia de Merleau-Ponty (Cf. Barbaras 1, 3, 4). E já em seus primeiros textos, nota-se o esforço de esclarecer qual é o legado de Husserl a partir do qual o próprio Merleau-Ponty pode se denominar, ao menos por um período, como “fenomenólogo”. Esse esforço ganha destaque quando Barbaras dedica um livro inteiro a Husserl, publicado inicialmente em 2004 e numa segunda edição revista em 2008 (Cf. Barbaras 2). E se trata de um livro especial, de uma introdução à filosofia de Husserl. Notemos que nenhum outro filósofo recebe de Barbaras uma introdução, somente Husserl. Por sua vez, quase todos os outros filósofos estudados por Barbaras se posicionam em relação ao legado husserliano para construir as suas posições filosóficas. Assim, justamente pelo fato de que tantos caminhos já foram trilhados no domínio fenomenológico seja então necessário retornar à fonte e demarcar com cuidado quais foram os gestos fundadores dessa tradição tão vigorosa no correr do século XX que é a fenomenologia. Daí a importância de uma introdução à filosofia de Husserl. * Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo. 95

Cadernos Espinosanos XXVII

96

Marcus Sacrini

E o que Barbaras acentua em sua introdução? O texto é centrado, em

cada tipo de ser corresponde um sistema de atos de consciência por meio

grande medida, nos anos de formação da fenomenologia, inicialmente como

dos quais o sentido desse ser é constituído. E aqui a fenomenologia se

psicologia eidética, nas Investigações Lógicas (de 1900-1), e posteriormente

configura como uma investigação dos modos subjetivos de atestação

como ciência transcendental, em Ideias I (1913). Há aqui muitos temas comuns

enquanto condições de sentido e legitimidade do conhecimento e mesmo

a essas duas fases de desenvolvimento, que justamente marcam a unidade

da experiência de qualquer ser concebível. Essa configuração, esboçada

de uma só disciplina. Barbaras nos chama a atenção, por exemplo, para a

nas Investigações Lógicas, atinge a sua maturidade a partir de 1906-7, com

centralidade temática de uma tese apresentada talvez pela primeira vez nas

a apresentação da fenomenologia transcendental. E é como investigação

Investigações Lógicas, e ainda em vigor até mesmo na última obra publicada

transcendental que Husserl se dedica a desenvolver os principais problemas

por Husserl em vida (A crise das ciências europeias e a fenomenologia

da fenomenologia, aqueles que justamente sedimentam um campo de

transcendental), a tese da correlação entre ser e modo de atestação ou doação

trabalho a partir do qual tantos filósofos têm se formado.

do ser para a consciência. A ideia em pauta é que só pode haver afirmação

Deve-se notar aqui que essa delimitação transcendental da tarefa da

legítima de qualquer tipo de ser se se reconhece concomitantemente qual é

fenomenologia supõe certas decisões teóricas de Husserl não partilhadas por

o modo de acesso subjetivo, imediato ou mediato, a tal ser. E essa tese não

muitos de seus epígonos. Essas decisões limitariam o alcance da investigação

tem uma validade meramente empírica, limitada a constatações factuais

fenomenológica ao forçar uma certa interpretação da constituição do sentido

contingentes. Husserl pretende lhe atribuir a validade de um a priori universal,

de toda fenomenalização. Tem-se em vista aqui a dita virada idealista de

fundado nas características essenciais puras da consciência e do ser em geral.

Husserl, concretizada em Ideias I e criticada por muitos de seus leitores.

Para todo ser concebível, sugere Husserl lá no § 47 de Ideias I (Husserl 5),

Nesse texto, Husserl teria submetido o sentido de qualquer experiência

deve-se considerar que a experienciabilidade faz parte da sua essência, de

possível aos poderes constituintes da subjetividade transcendental, a qual

maneira que nada impediria por princípio a sua doação para uma consciência

portaria em si a chave de ordenação do próprio mundo. E em relação a esse

possível. Barbaras extrai desse gesto husserliano a conclusão notável do fim da

tópico a contribuição de Barbaras é fundamental. Pois ele não se limitou

cisão clássica entre ser e aparecer (Cf. Barbaras 2, p. 92-96). Husserl mostraria

a apresentar uma introdução geral ao pensamento de Husserl, no sentido

que a fenomenalização do ser não é sinal de limitação antropológica, como

de mapear os marcos que circunscrevem o domínio com base no qual a

se a humanidade estivesse destinada a captar somente uma falsa aparência

tradição fenomenológica se desenvolveu. Barbaras também se esforçou por

do mundo, uma vez que o ser verdadeiro (independente das manifestações

localizar aquilo que já na fundação husserliana da fenomenologia obstrui

fenomênicas) lhe escaparia. Na verdade, Husserl, teria estabelecido que todo

o acesso à fenomenalização do ser em toda a sua riqueza. E os resultados

ser transcendente concebível envolve a referência a uma consciência possível

aos quais se vai chegar aqui são sem dúvida surpreendentes, já que no

em sua própria estrutura eidética.

interior da fenomenologia transcendental Barbaras aponta para algo que

Esse “a priori da correlação” delimitaria o âmbito mais geral da

bloqueia muito mais o entendimento da fenomenalização do ser em toda

investigação fenomenológica, à qual caberia explicitar de que maneira a

a sua amplitude do que a tão criticada (como atestação de um idealismo 97

98

Cadernos Espinosanos XXVII

Marcus Sacrini

injustificado) subjetividade transcendental. Eu vou tentar repor aqui ao

objetividade possível (mundos ordenados, mundos desordenados e até

menos o núcleo central da argumentação de Barbaras, tal como exposta em

não-mundos, como Husserl chega a mencionar), o que ocorre com a

seu artigo “Merleau-Ponty e a raiz do objetivismo husserliano”, publicado

consciência, considerada em suas características essenciais. E Husserl

em Le tournant de l’expérience (Cf. Barbaras 3, p. 63-80).

afirma que diante de uma transcendência caótica o fluxo da consciência

De início, gostaria de notar que a impressão de que Husserl

seria certamente modificado, já que não haveria possibilidade de estabelecer

defende uma consciência transcendental ultra-poderosa pode ser desfeita

nexos empíricos ordenados e nem de fundar um conhecimento racional

com a leitura cuidadosa de alguns parágrafos do texto em que justamente o

sobre esses nexos, mas em termos gerais a consciência não deixaria de ser

domínio da filosofia é apresentado como aquele da “consciência absoluta”,

o que ela é. Quer dizer que em sua estrutura eidética mínima, a saber, como

a saber, Ideias I. É preciso cuidado aqui com o termo “absoluto”, que pode

fluxo de vivências ordenado segundo a temporalidade interna, a consciência

gerar confusões. Husserl o utiliza ao menos em dois sentidos. No § 46, a

é independente do mundo empírico ordenado, e mesmo independente de

consciência é designada absoluta porque é um tipo de ser que se manifesta

qualquer outra variante imaginariamente concebível de mundo: ela seria

na percepção imanente, de maneira que aí a sua existência não pode

consciência em correlação com quaisquer dessas variantes, de maneira que

por princípio ser negada ou mesmo posta em dúvida. Em contrapartida,

nenhuma delas determina o seu ser-consciência.

o mundo sempre se doa pela percepção transcendente, a qual só o

É assim que Husserl apresenta a consciência como ser absoluto,

apreende parcialmente e pode ser futuramente corrigida, de maneira que

ser que não carece de nenhuma coisa ou mundo em particular para ser o

o ser mundano que aí se manifesta sempre é contingente. Além disso, nos

que é. Por outro lado, Husserl caracteriza o mundo como sempre relativo

parágrafos 47 e 49, argumenta-se que a consciência é absoluta porque ela

à consciência, e mesmo dela dependente, uma vez que é somente por meio

é esfera fechada de ser, ou seja, um todo independente de qualquer outro

dos modos de atestação subjetivos que o ser do mundo pode ser afirmado

domínio para ser o que é.

como tal. Diante desses resultados não é de se espantar que muitos autores

É esse sentido que me interessa. Cabe reconstruir rapidamente

vejam nessa ideia de “consciência absoluta” uma entidade super-poderosa

como é que Husserl chega até ele e o que está aqui implicado. A questão

capaz de constituir o sentido de ser do mundo como bem lhe aprouver. Mas

que aqui move o filósofo é saber se em termos de características eidéticas

é aqui que precisamos refletir cuidadosamente sobre o texto de Husserl.

puras a consciência está ligada ao mundo ou se há somente uma correlação

Atentemos para o seguinte ponto: a conclusão de que a consciência seria

contingente entre ambos (Cf. Ideias I, § 39). Para responder a essa questão,

a mesma diante de qualquer configuração mundana possível indica na

Husserl propõe, no § 49 de Ideias I, um exercício de variação imaginária

verdade que ela não é condição suficiente para que um mundo ordenado

dos componentes que delimitam eideticamente aquilo que é o mundo. Esse

de coisas se apresente, que por si só a consciência não é capaz de constituir

exercício almeja conceber situações em que esses componentes deixam

um mundo racional. Notemos bem a seguinte tese presente no § 49: se

de vigorar ou, como Husserl sugere, são destruídos em pensamento.

supomos a consciência diante de uma massa caótica de eventos, não

Em seguida, trata-se de verificar, em relação a todas essas variantes de

poderia haver nexos de experiência que permitissem o estabelecimento de 99

Cadernos Espinosanos XXVII

um saber racional. Ora, aqui o que se sugere é que as condições necessárias

Husserl supõe aqui que o mundo de nossa experiência deve sua

para atribuir um sentido racional, ordenado para a experiência não vêm

ordenação a uma armadura de características eidéticas puras, as quais

só da consciência. Quer dizer que Husserl jamais assumiu um idealismo

prescreveriam as regras de manifestação dos conteúdos parcialmente

absoluto, uma posição que derivaria da consciência todas as condições de

apreendidos pela consciência. Ocorre, desse modo, uma sobreposição, ao

sentido da experiência. Não, certas condições para a manifestação de uma

campo de fenômenos, da noção idealizada de objeto. Para Husserl, a coisa

experiência ordenada estão enraizadas no próprio correlato transcendente;

percebida não é senão a síntese de aspectos fenomênicos que se manifestam

essas condições faltariam nas variantes imaginárias de mundos caóticos, o

numa série interminável; mas, como bem nota Barbaras, essa série é

que comprova que elas nada devem à subjetividade transcendental, a qual

apresentada como uma “progressão orientada” (Barbaras 3, p. 69), algo que

continuaria a ser o que é, impassível, diante de qualquer transcendência

não é nem um pouco óbvio. Opera aqui uma idealização não questionada, a

imaginável, mas incapaz por si só de atribuir sentido ordenado à experiência

saber, aquela segundo a qual a infinidade do processo de doação da coisa é

e criar um mundo de coisas.

tratada como uma sequência de eventos linearmente percorrível, sequência

Cabe então perguntar: como Husserl explica essas condições de sentido não diretamente ligadas à consciência, condições da manifestação

100

Marcus Sacrini

que somente atualizaria as características eidéticas puras, as quais seriam as responsáveis pelas regras de síntese dos fenômenos.

de uma experiência ordenada? Aqui veremos de que maneira, ao

Por meio da idealização objetivante da infinidade da manifestação

analisar a resposta de Husserl, Barbaras oferece uma análise luminosa

das coisas, Husserl sustentaria que os dados percebidos anunciam uma

dos limites da concepção husserliana da fenomenologia. Para Husserl,

unidade plenamente determinável para além de suas manifestações parciais,

a experiência de um mundo ordenado é paulatinamente sintetizada pela

uma unidade que, ao menos em princípio, a consciência poderia apreender,

consciência. Os eventos e coisas transcendentes sempre se mostram

caso seu transcurso de experiência se estendesse indefinidamente. As

de maneira perfilada, parcial, de modo que somente no decorrer de um

manifestações fenomenais parciais incluiriam, ao menos idealmente,

certo percurso da experiência se pode então atestar a experiência de

a possibilidade de total determinação objetivante. Assim, segundo a

uma coisa como sendo ou não sendo tal e tal. Mas o que é que coordena

fenomenologia husserliana, as aparências parciais da percepção são

esse percurso da experiência? Já vimos que não pode ser somente a

coordenadas pela idéia de objeto, a qual garantiria a possibilidade de plena

consciência, que por si só não constitui a experiência de um mundo

determinação do mundo fenomenal.

ordenado. Husserl sugere no § 47 de Ideias I que cada experiência

Nesse sentido, a fenomenologia husserliana é uma filosofia objetiva,

perfilada atual situa os seus dados em horizontes indeterminados de

tal como sugeriu Merleau-Ponty nas notas de trabalho publicadas em O visível

novas experiências, horizontes passíveis de determinação em novas

e o invisível (Cf. Merleau-Ponty 6, p. 217), notas que serviram de inspiração

vivências conforme uma progressão prescrita pelo tipo eidético de cada

para essa análise de Barbaras. Husserl sustenta que os fenômenos parciais da

coisa em questão. Como é que Barbaras interpreta essa resposta de

percepção supõem a ideia de um mundo de objetos determináveis. O aparecer

Husserl ao problema da ordenação da experiência?

fenomênico, ao menos no nível da percepção, é então concebido como um 101

Cadernos Espinosanos XXVII

interminável processo de perfilação de coisas determináveis em si mesmas, perfilação coordenada pelo tipo eidético da coisa ou evento em questão. Dessa maneira, a fenomenologia, ao descrever a constituição do sentido das coisas, longe de atribuir um poder arbitrário à consciência transcendental, submete essa última aos tipos eidéticos puros dos objetos, que funcionam como regras ideais da ordenação dos dados transcendentes manifestados parcialmente em uma progressão racionalizada. Assim, a análise husserliana interpreta a fenomenalização do ser como síntese paulatina de objetos para a consciência. Há aqui, como mostra Barbaras, uma idealização do campo fenomenal por meio de um domínio eidético puro, que portaria as regras do desenrolar da experiência factual. Essa idealização objetivante obstruiria o

Marcus Sacrini

Referências bibliográficas 1. Barbaras, R. De l’être du phénomène. Sur l’ontologie de Merleau-Ponty. Grenoble: J. Millon, 1991. 2. ______. Introduction à la philosophie de Husserl. Chatou: Éditions de la Transparence, 2004. 3. ______. Le tournant de l’expérience. Recherches sur la philosophie de MerleauPonty. Paris: Vrin, 1998. 4. ______. Merleau-Ponty. Paris: Ellipses, 1997. 5. Husserl, E. Ideen zu einer reinen Phänomenologie und phänomenologischen Philosophie. Erstes Buch: Allgemeine Einführung in die reine Phänomenologie. Husserliana (Hua) III-1. Haag: Martinus Nijhoff, 1977. 6. Merleau-Ponty, M. Le visible et l’invisible. Paris: Gallimard, 2001.

acesso por exemplo ao ser bruto apontado por Merleau-Ponty, ser que não se submeteria a nenhum processo de idealização racionalizante. A possibilidade de tematizar fenomenologicamente esse ser bruto supõe a crítica da submissão da experiência sensível a tipos eidéticos puros que constrangeriam o aparecer fenomenal a ser sintetizado como aparecer de objetos. Assim, é verdade que muito já se criticou a ênfase husserliana na subjetividade constituinte como uma distorção do processo de fenomenalização do ser, mas pouco se nota as consequências da suposição de um domínio de essências puras objetivas regulador do aparecer fenomenal. E apontar para uma crítica dessa objetivação husserliana do campo fenomenal, essa foi uma lição que aprendemos com Renaud Barbaras. Renaud Barbaras, reader of Husserl Abstract: One tries to make explicit, in this text, some of the main marks of Barbaras’ critical Reading of Husserl. One highlights the acknowledgment of Husserl not only as founder of the phenomenological field but also as someone who limits the understanding of this field, which would be, according to the German philosopher, coordinated by objective eidetic types. Keywords: Barbaras; Husserl; transcendental consciousness; eidetic types 102

103

A percepção segundo Barbaras Leandro Neves Cardim* Resumo: Este artigo pretende apresentar o conceito de percepção assim como o interpreta o filósofo francês Renaud Barbaras. Ele parte da recolocação do problema da percepção entre imanência e transcendência para indicar os traços fundamentais que caracterizam este fenômeno segundo seu próprio ponto de vista: o sujeito da percepção como sujeito vivo e a essência da vida como desejo. Não se trata, para ele, de aproximar-se da percepção através daquilo que ela não é. Para compreender verdadeiramente a percepção é preciso nos deixar formar junto à própria experiência perceptiva, ou antes, é preciso pensar segundo a própria percepção. Palavras-chave: Barbaras, percepção, movimento, desejo, vida.

O tema da percepção é antigo no percurso filosófico de Renaud Barbaras. Se fosse o caso de traçar a sua gênese seria interessante rastrear sua eclosão desde seu livro pioneiro Do ser do fenômeno. Sobre a ontologia de Merleau-Ponty de 1991, mas isto exigiria um tempo extra que não podemos dispor aqui. Dentre vários outros textos publicados sob o signo da percepção, há dois que especialmente nos interessam: A percepção. Ensaio sobre o sensível publicado pela primeira vez em 1994, e O desejo e a distância. Introdução a uma fenomenologia da percepção de 1999.1 Através de seu trabalho sobre a percepção, o autor se lança na vida filosófica não só como intérprete da história da filosofia, mas, sobretudo, como alguém que exprime seu próprio ponto de vista posicionando-se em relação à tradição filosófica: ele reformula o problema da percepção de tal modo que a solução que surge de suas páginas aponta para novos horizontes abertos por sua própria interrogação filosófica. * Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Paraná. E-mail: [email protected]. 105

Cadernos Espinosanos XXVII

106

Leandro Neves Cardim

Aqui, pretendo apenas delinear a interpretação fornecida por

encontrava aí antes de nós. Por outro, somos nós mesmos que fazemos

Renaud Barbaras do sujeito da percepção como sujeito vivo e da essência

tal experiência, ou melhor, é inegável que quem faz esta experiência é o

da vida como desejo. Para ele é preciso uma interpretação da vida que

próprio sujeito da percepção através de seus órgãos dos sentidos. Eis o

dê conta do enraizamento tanto da percepção quanto do conhecimento no

modo como Barbaras formula o problema em questão: “como é possível

seio da própria vida. Neste contexto, a consciência humana se revela uma

partir de estados subjetivos, imanentes e, portanto, relativos, e ter acesso

possibilidade da vida, ou antes, a vida surge como a “verdadeira condição

a isto que repousa em si e é relativo apenas em relação a si mesmo?

de possibilidade” da consciência (Barbaras 8, p. 7). Para compreendermos

Como pode o vivido alcançar uma coisa espacial que lhe é profundamente

isto é preciso “pensar a percepção a partir da vida” (Barbaras 3, p. 23). Mas,

estranha?” (Barbaras 3, p. 35). Para o filósofo devemos conciliar estas duas

antes de chegar aí, devemos indicar, inicialmente, que a percepção como

vias aparentemente contraditórias: o fato de que a percepção se faz aqui no

modo de acesso ao mundo de objetos exteriores exige uma filosofia especial

mundo e de que sou eu mesmo quem faz tal experiência. Para compreender

que não se contente em estudar a percepção “como um setor do Ser dentre

a conciliação proposta é indispensável partir e ater-se à experiência

outros” (Barbaras 4, p. 28). Trata-se, ao contrário, de fazer experiência

imediata, pois “a experiência é esta conciliação” (Barbaras 3, p. 34). Isto

da percepção em sua singularidade e retificar os instrumentos filosóficos

significa que não podemos mais submeter nem o objeto da percepção, nem

através dos quais tal experiência deve ser reinterpretada. A verdadeira

o sujeito da experiência às categorias metafísicas disponíveis. Na verdade,

filosofia da percepção é uma filosofia para a qual “o objeto percebido libera

“é a própria percepção, enquanto originário acesso à realidade, que pode

o sentido de ser de todo ser” (Barbaras 12, p. XVI). Se for verdade que a

libertar o sentido” (Barbaras 3, p.35). Para apreendermos o sentido de ser

tradição filosófica ao mesmo tempo perde a especificidade da experiência

do real devemos mergulhar nele através da percepção, já que é através dela

perceptiva e oculta seu sentido original, compreende-se a razão graças

que temos a iniciação à coisa e ao seu significado.

à qual, segundo Barbaras, “a tarefa de uma filosofia da percepção não é

Se procurarmos acessar a percepção através de algo que ela não

tentar se apropriar da percepção a partir de categorias de que ela dispõe,

é, nós a perderemos, ou antes, nós não a encontraremos. É isto que ocorre

mas, antes, de se deixar reformar ao seu contato; ela não deve tentar pensar

com a tradição. Sob a rubrica do empirismo e do intelectualismo a tradição

a percepção, mas pensar segundo ela” (Barbaras 4, p. 28-29).2

opera com um duplo gesto: por um lado, ela reduz a percepção à outra coisa

A reformulação e a reestruturação do problema da percepção me

que ela mesma e, por outro, fecha-se no interior do círculo vicioso das

parecem o eixo central a partir do qual é possível compreender a nova

alternativas ao desmembrar a unidade prévia. Trata-se de soluções abstratas

solução proposta por nosso autor. Tal problema deve ser posto e situado

que não nos dão a percepção efetiva e que, na verdade, põem em relevo,

entre as duas dimensões ou elementos que caracterizam e exprimem

por contraste, não só a oposição, mas, principalmente, a cumplicidade do

a experiência perceptiva: a transcendência e a imanência. Por um lado,

empirismo e do intelectualismo em função de um prejuízo muito profundo.

encontramos na percepção um modo de acesso à realidade tal como ela

Atendo-se ao resultado da percepção – o objeto percebido (a coincidência

aparece em si mesma, através dela tomamos contato com algo que já se

com a qualidade sensível no empirismo e a adequação intelectual do 107

Cadernos Espinosanos XXVII

Leandro Neves Cardim

espírito ao significado no intelectualismo) –, a tradição conclui daí que

subjetividade à medida que a percepção é percepção das coisas mesmas”, é

há uma plenitude da coisa. O modelo do objeto é, então, projetado sobre a

verdade, também, que a percepção “remete à subjetividade já que as coisas

experiência: “a presença [da coisa] é sinônimo de plenitude” (Barbaras 3,

não possuem realidade fora da sua percepção” (Barbaras 8, p. 149). Segundo

p. 59). A determinação do objeto passa, assim, a caracterizar o ser daquilo

Barbaras, foi Husserl quem encontrou a percepção e a interpretou no sentido

que é. Apenas de modo pleno a realidade pode ser dada, apenas enquanto

de uma intencionalidade específica, propondo, com isto, um novo modo de

preenche a consciência de ponta a ponta é que a coisa se apresenta. Este

resolver o problema da unidade e da multiplicidade, do sentido e do sensível.

ponto de vista põe em relevo a ontologia do objeto submissa ao princípio de

“Husserl foi o primeiro a ter reconhecido e evidenciado a especificidade

razão suficiente. A realidade segundo esta ontologia se caracteriza a partir

da percepção – intuição doadora originária que é, a este título, fonte de

da velha questão “por que existe algo antes que nada?”. Segundo Barbaras,

direito para o conhecimento – e, consequentemente, a sua irredutibilidade

na esteira de A evolução criadora de Bergson, não podemos pensar o ser

à sensação ou à intelecção” (Barbaras 3, p. 7).5 Ora, para apreendermos

como se ele se destacasse sobre o fundo do nada. O que temos aqui é,

a especificidade da percepção é preciso lembrar a teoria husserliana da

na verdade, um “falso problema” que “se cristaliza no uso do princípio

doação do objeto por perfis (Abschattungen), momento em que nosso autor

de razão suficiente” (Barbaras 4, p. 66). Dizer que o ser é mais que o

nos recorda que o conceito de perfil nomeia uma “dupla relação”: “o perfil

nada, que o ser resiste ao nada, é pensá-lo como uma realidade lógica. Isto

apresenta o ‘modelo’ (o objeto), ele introduz o objeto; mas, ele é apenas

implica, necessariamente, pensar o ser como objeto, como positividade,

um perfil, isto é, ele o apresenta de modo parcial, fragmentário. O conceito

enquanto o nada seria o negativo. Eis aí a contrapartida da interpretação

de perfil nomeia a ambivalência do aparecer: no perfil, algo aparece, de

do ser como determinado, a saber, a compreensão da existência em uma

tal modo que sua transcendência se encontra preservada. O que quer dizer

localização espaço-temporal que não repercute em nada no pensamento;

que o perfil se apaga ou se ultrapassa em proveito do objeto e, ao mesmo

existir seria, apenas, estar situado em algum lugar. A consequência disto

tempo, recobre, vela o objeto ao manter a distância. O aparecer sob o qual

está em que a consciência é reconhecida como o lugar apropriado para

a coisa se dá a mim é e não é a coisa: no aparecer, a própria coisa se

a essência. Compreende-se, então, que para a tradição haja sempre um

apresenta, mas como outra que a apresenta” (Barbaras 5, p. 106). A leitura

abismo entre a essência e aquilo que a manifesta.4

de Barbaras do livro Ideias I de Husserl nos mostra que a teoria da doação

3

108

Retomemos o problema da percepção: com que arsenal conceitual

da coisa por perfis tem uma dupla frente de ação que poderia nos ajudar

enfrentar o paradoxo que afirma, por um lado, que a percepção é percepção

a encaminhar o paradoxo da percepção: em primeiro lugar, a função do

de alguma coisa e, por outro, que esta coisa sempre aparece para alguém?

perfil é de manifestação do objeto, mas isto não significa que o perfil se

Formulado desta maneira podemos antecipar a importância dos trabalhos da

anule em benefício do objeto. Por isto mesmo, vale observar, em segundo

fenomenologia, já que para esta escola há uma ambiguidade característica

lugar, que o perfil recobre o objeto que, por sua vez, se apresenta sempre

da percepção que não permite àquele que a analisa abrir mão de nenhum

como uma ausência.6 Por um lado, o perfil apresenta ou desvenda a coisa,

dos dois lados, pois se é verdade que a “realidade percebida escapa da

por outro, o perfil é parcial, já que mascara, oculta ou dissimula a própria 109

Cadernos Espinosanos XXVII

Leandro Neves Cardim

coisa.7 O que deve ser reconhecido aqui é a estrutura de doação – abertura

reduzida ao ser positivo do vivido. A fenomenologia husserliana da razão

e ocultamento da coisa –, que determina eideticamente a percepção. Na

permanece “tributária de pressupostos, de categorias, de conceitos, que

8

percepção temos acesso ao objeto, mas nunca uma posse exaustiva dele.

não são manifestamente tirados da fenomenalidade” (Barbaras 6). Através

Se nem mesmo Deus pode possuir a coisa em sua transparência, isto é,

da exigência de proximidade para com o fenômeno, Barbaras nos alerta

adequadamente, resta que a inadequação e a parcialidade fazem parte da

para o fato de que há uma arbitrariedade na paleta conceitual de Husserl.

determinação da essência do objeto percebido que não é, por sua vez, um

O pai da fenomenologia não retira seus conceitos da estrutura daquilo

vivido (Erlebnis) cuja essência seria caracterizada pela identidade do ser

que é descrito: “Husserl se impede assim de pensar até o fim a percepção,

e do aparecer. Como compreender, agora, o correlato da coisa percebida,

todavia, ele foi o primeiro a notar sua especificidade” (Barbaras 3, p. 88).

ou melhor, como compreender o sujeito para o qual a coisa aparece

Se o sujeito da percepção não é a consciência, quem ele poderia

segundo modos subjetivos de doação? Segundo Barbaras, a resposta

ser? Profundo conhecedor da obra de Merleau-Ponty, Barbaras faz

husserliana é “decepcionante”, pois há uma defasagem entre a descrição

uma revisão da solução que enfrenta o problema da percepção a partir

da percepção por perfis e a interpretação oferecida por Husserl através da

da relação do corpo próprio com o mundo percebido. Para o autor de O

teoria da constituição. Resumindo: é preciso afastar a ideia de que seria

primado da percepção e suas consequências filosóficas, “perceber é tornar

a consciência que constitui o objeto da percepção. Não podemos tomar a

presente algo com a ajuda do corpo, a coisa tendo sempre seu lugar em

consciência como ponto de partida, e isto, sob pena de não conseguirmos

um horizonte de mundo, e a decifração consistindo em colocar todos os

mais nos afastar dela. O sujeito da percepção não é uma consciência, o ato

detalhes nos horizontes perceptivos que lhe convêm” (Merleau-Ponty 20,

da percepção não é uma noese, o fenômeno da percepção não é um noema.

p. 104). O próprio Merleau-Ponty nunca imaginou formular uma filosofia

Para compreender bem isto, é preciso mostrar, como faz Barbaras, que

da percepção sem aproximar-se dos seus desenvolvimentos concretos.

Husserl ainda é tributário do modelo da ontologia do objeto cara a todas as

Barbaras nos mostra que, ao trabalhar com as categorias da filosofia

metafísicas clássicas: “Husserl permanece vinculado a uma metafísica da

fenomenológica e com os resultados da psicologia da forma, Merleau-

consciência que confere a esta o estatuto de um ser positivo. A certeza de si,

Ponty interpreta o sujeito da percepção como corpo próprio que encarna a

própria do eu, é imediatamente interpretada como autodoação, percepção

consciência e cujo correlato é o mundo vivido. Porém, mesmo em textos

de si, isto é, presença de um objeto, apesar de que este último não seja outro

como O visível e o invisível, “falta uma teoria da subjetividade perceptiva

que o próprio vivido” (Barbaras 3, p. 87). Esse é o pressuposto husserliano

que seja adequada à estrutura do campo fenomênico” (Barbaras 3, p. 13).

que deve ser criticado: aqui também o ser se destaca sob o fundo do nada. O

Mais ainda: Merleau-Ponty permanece

que é o mesmo que dizer que “a fenomenologia husserliana não escapa da metafísica no sentido em que Bergson a entende” (Barbaras 4, p. 66). Seja como for, a especificidade do percebido não é alcançada através do modelo do objeto, assim como a especificidade do sujeito intencional não pode ser 110

tributário até o fim da dualidade inerente ao conceito de corpo próprio, dualidade do interior e do exterior, da consciência e da exterioridade: o corpo permanece o ‘veículo do ser-nomundo’ e a consciência ‘o ser para coisa por intermédio do

111

Cadernos Espinosanos XXVII

corpo’. Mais precisamente, ele reconhece uma dimensão de existência original, da qual deriva a possibilidade da percepção, mas não chega a descrevê-la senão a partir do corpo próprio, isto é, da dualidade negada, e então reconhecida, da consciência e da exterioridade (Barbaras 3, p. 13).

O que redunda, enfim, em uma espécie de denegação que exprime o caráter inconsciente dos prejuízos... É verdade que Merleau-Ponty formula de modo magistral o problema da percepção, “vemos as coisas mesmas, o mundo é aquilo que vemos”, diz a primeira frase de O visível e o invisível. Mas, segundo Barbaras, Merleau-Ponty só supera a dualidade reconduzindo-a para dentro de um dos dois pólos. Como Husserl, Merleau-Ponty procura construir a relação a partir de um sujeito cuja bipolaridade (empírico transcendental) não é colocada profundamente em questão, ao invés de interrogar o sujeito a partir da relação perceptiva: o único passo ulterior em relação a Husserl consiste no fato de partir de um sujeito encarnado, mais do que de um puro sujeito transcendental, mas o método permanece definitivamente o mesmo (Barbaras 3, p.15).

Leandro Neves Cardim

consciência é importante porque através dela podemos apreender um dos objetivos próprios à filosofia de Renaud Barbaras. Na entrevista à Gallet ele nos diz que a filosofia que lhe interessa não é a filosofia da separação e da dualidade. Aqui, a orientação monista é o ponto fundamental: “penso que o que é satisfatório para o espírito, é sempre ultrapassar a dualidade. Vivo a filosofia como uma exigência de unidade, como uma exigência monista” (Barbaras 6). O interesse de Barbaras pelo monismo exprime uma insatisfação com a fratura e com a imagem tranquilizadora do real derivada do dualismo: “devo confessar que isto me deixa em uma terrível insatisfação e que sempre me preocupei em investigar um plano de unidade” (Barbaras 6). Se assim for, assumamos o caráter absolutamente prévio do mundo, do “há” prévio que é definido através de uma estrutura de pertencimento constitutiva do aparecer. Ora, esta assunção só pode ser efetivada se abordamos o ser sem o nada interposto, o que significa, por um lado, que é preciso “abordar o aparecer sem objeto interposto, isto é, em sua autonomia” e, por outro, que devemos assumir que toda aparição se dá “sob o fundo de uma realidade ontológica” (Barbaras 4, p. 82). A análise empreendida por Barbaras sobre o aparecer em sua estrutura e autonomia visa ao mesmo tempo uma abolição do privilégio do “subjetivo” e uma crítica

112

Que se perceba que o objetivo e o sentido da crítica que Barbaras

radical da atitude “transcendentalista” (Barbaras 4, p. 86). Resumindo ao

faz à filosofia merleau-pontiana está em que através da experiência singular

máximo, poderíamos dizer que sua análise sobre a estrutura do aparecer

do corpo acabamos sendo reconduzidos a uma filosofia da consciência ou

– seu verdadeiro ponto de partida9 – tem três momentos constitutivos: em

do vivido cujo escopo é o dualismo e o idealismo.

primeiro lugar, ele nos mostra que todo aparecer implica a coaparição do

Na esteira de Patočka, Barbaras procura neutralizar ao máximo o

mundo; em segundo, que o próprio mundo se manifesta em tudo aquilo que

vivido. É apenas a partir deste ponto de vista que podemos compreender

aparece; enfim, que há um modo de doação daquilo que aparece enquanto

que “a passagem através do vivido do nosso corpo não permite avançar

coaparição do mundo: há alguém para o qual o aparecer aparece. Toda esta

um só milímetro na experiência da percepção” (Barbaras 3, p.16). Esta

análise tem por objetivo dar conta da percepção através da autonomia do

discussão com o dualismo proveniente da manutenção da filosofia da

aparecer (estruturado segundo a estrutura de horizontes) em contraste com 113

114

Cadernos Espinosanos XXVII

Leandro Neves Cardim

aquilo que aparece. O sentido desta autonomia está, em primeiro lugar,

Assim, em um mesmo gesto também afastamos o vitalismo que reporta

em que não há mais constituição do mundo pela consciência, não há o

a vida a uma força ou princípio autônomo irredutível às forças físicas.

vivido, e, em segundo, que o dado fenomenológico fundamental é o campo

Como afastar tantos prejuízos? Como evitar as alternativas clássicas do

fenomenal e que o absoluto é a própria a fenomenalidade.

subjetivo e do objetivo que agora aparecem transmutadas na dualidade do

É chegado o momento de começar a interrogar o sentido de ser

mecanicismo e do vitalismo? Se a vida não pode ser apreendida através de

deste sujeito para o qual há uma estrutura de horizontes, ou seja, para o

uma variação do mundo físico, nem como um princípio de consciência, é

qual há algo. O sujeito perceptivo é um ser vivo, ele é um sujeito vivo.

porque há uma operação que deve ser efetuada em prol de sua apreensão

Este ensinamento Barbaras retira da obra O sentido do sentido de Straus.10

naquilo que ela tem de mais específico. Se nos aproximamos da vida

Dizer que o sujeito é um ser vivo é o mesmo que dizer que “a percepção

em sua especificidade, temos a oportunidade compreender, também, a

é uma modalidade da vida” (Barbaras 3, p. 16), pois em seu mais alto

percepção. Porém, somente examinando a fundo a percepção podemos

grau de generalidade e neutralidade, a relação que temos com o mundo

tornar mais claro o sentido da vida. Os conceitos de percepção e vida

é uma relação vital, donde o reenvio, agora, da percepção para a vida:

se esclarecem mutuamente e há entre eles um “mútuo reenvio” e uma

“a percepção enraíza-se na vida e deve ser compreendida a partir dela”

“interdependência” (Barbaras 3, p. 18). A este propósito, Barbaras nos

(Barbaras 8, p. 153). Não se trata, contudo, de nos atermos à diferença

ensina que devemos operar uma “dupla redução” que possibilita o acesso

entre estar vivo (Leben) e vivenciar uma experiência (Erleben). O que se

à vida enquanto tal. Esta dupla suspensão tem por intenção fazer aparecer

tem em mira aqui é o fato de que “perceber é vivenciar uma realidade e,

a dimensão da vida ou do viver em que se enraizaria a percepção. Enfim,

portanto, é um modo de viver” (Barbaras 8, p. 153). Porém, Barbaras não

ao nos situar neste plano fenomênico com alcance ontológico é que as

assume os ensinamentos de Straus até o fim. É verdade que Straus ajuda

alternativas tradicionais aparecem como abstrações tardias.

o filósofo a sair do “impasse da análise imanente” (Barbaras 3, p. 17),

Na esteira de Heidegger – que tem o “mérito de ter visto a

mas ele não chega a reportar a percepção à outra dimensão do que a do

indigência da biologia científica, mas também filosófica, a respeito da

conhecimento: a percepção ainda seria interpretada como exterior à vida

questão do ser da vida”, e que apontou “a necessidade de afrontar a vida

e ao sentir. Para acessarmos a percepção a partir da vida ou na vida é

a partir de si mesma, na sua especificidade” –, Barbaras define o “modo

indispensável termos outra concepção daquilo que é a vida. Esta concepção

de ser absolutamente específico” da vida como “existencial” (Barbaras 3,

não é fornecida pelo mecanicismo que lê os processos vitais a partir de leis

p. 20). Aqui, a vida é compreendida “como um modo de relação entre um

físico-químicas onde a vida é compreendida a partir do modelo da ontologia

sujeito vivo e um objeto (um mundo), como um modo de existir” (Barbaras

do objeto. Neste ponto, Barbaras se inscreve na linha interpretativa que

3, p. 20). A via aberta por Heidegger – a compreensão da vida em seu

vai de Goldstein a Canguilhem. Aqui, não podemos mais cair na ilusão

“sentido primário”, ou seja, a vida compreendida “a partir de si mesma

de que através de análises do tipo físico-químicas alcançaríamos o plano

em seu conteúdo existencial” (Heidegger 17, p. 249, apud Barbaras 3, p.

fenomênico; na verdade, tal análise só nos dá conteúdos físico-químicos.

21) –, deve ser levada em consideração. Mas, como nos mostra Barbaras, 115

Cadernos Espinosanos XXVII

Leandro Neves Cardim

é preciso recusar a saída heideggeriana segundo a qual a vida só pode ser

consciência de si” (Barbaras 3, p. 24-25). Contendo a possibilidade do

pensada a partir do Dasein.11 Não se trata de assumir a hipótese de uma

espírito, a vida também contém a possibilidade da percepção. Jonas foi o

ontologia da vida que viria “determinar o que deve haver para que possa

primeiro pensador a abordar “o modo no qual a percepção se constitui a partir

ser algo que seja apenas vida” (Barbaras 8, p. 8). Não se trata de assumir a

da vida” (Barbaras 3, p. 27). Primeiramente, notemos que a caracterização

zoologia privativa que perde a especificidade do existir animal ao reportá-

que Jonas faz da renovação da matéria no ser vivo através do metabolismo

lo a uma teoria da pulsão e do instinto que impede a comunidade com o

“implica uma transcendência ativa em direção ao mundo: o excesso da

homem e, enfim, uma determinação existencial.

forma sobre a matéria é, ipso fato, abertura ao mundo” (Barbaras 3, p. 26).

Em Heidegger, o homem se opõe ao animal como o ser capaz de percepção ao ser em cuja urgência de satisfação pulsional lhe impede de apreender o objeto enquanto tal. Disto se conclui que é definitivamente impossível, em tal perspectiva, enfrentar a percepção a partir da vida, isto é, a partir do modo de ser do animal (Barbaras 3, p. 23).

A vida em sua singularidade, como modo de existir singular, é que nos fornece o sentido da existência. À zoologia privativa, Barbaras responde com uma “antropologia aditiva” segundo a qual a humanidade se inscreve na animalidade “como sua mais íntima possibilidade”: “assim, no modo de existir próprio ao ser vivo (pelo menos animal) deve ser reencontrado a condição de possibilidade da percepção” (Barbaras 3, p. 24). Doravante, a percepção nos será dada através “daquilo que está presente, pelo menos virtualmente, desde os primeiros estratos da animalidade” (Barbaras 3, p. 24). Para investigar o modo de existir próprio à vida enquanto ela pode realizar-se na percepção, nosso autor avança em direção a uma fenomenologia da vida. Barbaras encontra esta fenomenologia na obra 12

de Jonas, o qual lhe permite “afirmar uma continuidade aí onde Heidegger via um abismo e então a afirmar uma prefiguração, no próprio coração do mundo orgânico, da ‘visão penetrante’ que é atestada na tomada de

116

Portanto, a relação com o mundo exterior ainda pode ser expressa através do conceito de intencionalidade. Jonas pensa a vida como um “excesso dinâmico em relação à matéria” e com isto ele nos ajuda a compreender que o “excesso do vivente em relação a si mesmo” (Barbaras 3, p. 27) deve ser interpretado à luz do conceito de intencionalidade, isto é, através de sua singular abertura ao mundo exterior. Solução que aos olhos de Barbaras é “metodologicamente satisfatória”. Porém, é preciso chamar atenção, em segundo lugar, para o fato de que a “liberdade orgânica” de que fala Jonas se realiza, precisamente, como necessidade, enquanto o vivente é visto através de sua perpetuação. A estrutura da existência vital – o existir da vida –, é caracterizado como um metabolismo (“processo para o qual uma forma se mantém idêntica através de uma renovação contínua de sua matéria”) que, é verdade, pretende circunscrever uma “liberdade na necessidade ou como necessidade, isto é, uma liberdade dialética” (Barbaras 3, p. 25). Mas, uma vez que a intencionalidade encontra seu fundamento na renovação da matéria, resta que a própria intencionalidade acaba sendo imposta à necessidade vital revelando, então, uma limitação da teoria que pretendia resolver o problema da abertura à “verdadeira exterioridade, isto é, o objeto enquanto tal” (Barbaras 3, p. 28). Barbaras mostra que a insuficiência desta concepção de intencionalidade é decorrente do fato de que o ser vivo é apresentado como uma ipseidade autocentrada, ameaçada de morte e em busca de sua perpetuação e, por isto mesmo, 117

Cadernos Espinosanos XXVII

Leandro Neves Cardim

Jonas interpreta a vida como metabolismo e necessidade: “para um sujeito

situa sua perspectiva “à igual distância” (Barbaras 4, p. 129) destes dois

sempre já individualizado e separado do mundo, a vida não pode consistir

filósofos.15 Há uma correlação tão estreita entre percepção e movimento

senão em uma conservação de si, isto é, na satisfação de uma necessidade”

que poderíamos dizer que o movimento já é uma percepção assim como

(Barbaras 3, p. 29). Somente depois de renunciar a definir a vida como

não há percepção fora do movimento. A relação ativa do sujeito vivo com

necessidade é que podemos entender a “real fundação da percepção na

o objeto é anterior à distinção tradicional entre a ação e o movimento. Tal

vida”. É neste contexto que Barbaras define sua perspectiva filosófica

relação, longe de ser do tipo mecânico ou acidental, é do tipo intencional.

como “vital-existencial”, esperando que, com isto, ele possa nos dizer que

O que é o mesmo que dizer, na esteira de Weizsäscker citado por Barbaras,

a vida deve ser concebida como um “modo de ser último e irredutível”, isto

que “perceber é, no fundo, sempre passar a outra coisa” (Weizsäscker 22

é, “como a modalidade no interior da qual e pela qual um ser vivo pode

apud Barbaras 4, p. 151). Nas palavras do próprio Renaud Barbaras, “a

constituir-se, individuar-se” (Barbaras 3, p.29).

percepção remete ao movimento de que ela é apenas um momento, um

O sujeito é reconhecido como vivo e motor, o que se compreende

ponto de apoio; mas o movimento, por sua vez, remete à percepção sem a

pelo fato de que somente os seres vivos estão em movimento. Mas como,

qual ele não poderia se orientar e equivaleria a um movimento mecânico”

exatamente, reconhecer este sujeito vivo em movimento? Renaud Barbaras

(Barbaras 11, p. 156). O sentido desta afirmação está em que há uma

nos ensina que sua característica mais importante está na sua “aptidão

relação essencial entre o movimento e a percepção, pois se é verdade que a

a mover-se” espontaneamente.

Este argumento pretende nos fazer

vida possui uma dimensão ontológica irredutível, é verdade, também, que

entender que quando nos movemos já não somos mais aquilo que éramos.

tal relação é de ordem espiritual, a qual exprime, por sua vez, modos da

Donde a relação que não pode passar despercebida entre a percepção e o

totalidade viva.

13

movimento ou a ação. É justamente aqui que reencontramos uma das ideias

Não basta definir o ser vivo pela necessidade ou pela satisfação

fundamentais de Matéria e Memória. Nestas páginas, Bergson interpreta a

das necessidades vitais, onde seria preciso identificar uma carência cuja

percepção do ponto de vista da vida, ou melhor, do movimento. Perceber

satisfação aplacaria a necessidade. Barbaras chama atenção para uma

não é contemplar, mas agir. O sujeito vivo que percebe deve ser situado no

“carência ontológica que não é apenas uma carência provisória de uma

ponto de vista da ação que não é um processo objetivo que nos reconduz à

parte [de si] mesmo” (Barbaras 8, p. 157-58). Na esteira de Goldstein,

representação. Por um lado, Barbaras aborda a percepção a partir da vida

ele nos mostra que é “o próprio organismo que envolve uma relação com

ou do movimento sem abandonar o conceito de intencionalidade, por outro,

a totalidade do Ser, em relação à qual ele aparece como incompleto ou

ele assume este conceito não no nível da objetividade, mas da correlação

derivado”. A caracterização do ser vivo a partir de sua finitude faz contraste,

entre o real e o sujeito, entre o Ser e o aparecer. Preservando a dimensão

então, com o fato de que sua essência não lhe é imanente, mas encontra-se

vital da percepção através da teoria bergsoniana das imagens e o caráter

fora dele: a essência encontra-se “na totalidade do Ser”. O ser vivo anseia

intencional da percepção interpretado à maneira husserliana através do a

superar sua individualidade e se identificar com a totalidade: “o ser vivo é

priori universal da correlação, nosso autor concilia Bergson e Husserl. Ele

caracterizado por uma insatisfação que, por definição, não pode ser superada

14

118

119

Cadernos Espinosanos XXVII

Leandro Neves Cardim

já que ele visa uma totalidade impossível, já que a aparição do objeto de sua ânsia equivale à sua desaparição enquanto sujeito” (Barbaras 8, p. 158). Na necessidade o ser vivo encontra uma decepção ou satisfação que faz cessar a necessidade: ele encontra a totalidade negando-a. Mas há algo que o impede de satisfazer suas necessidades, a saber: “há uma inquietude, uma tensão própria ao ser vivo, que resulta numa mobilidade contínua e impede o preenchimento das necessidades” (Barbaras 8, p. 158). O escopo desta análise é a caracterização da vida como desejo. Mas atenção: não se trata de constatar a obviedade de que o ser vivo tem desejos. Trata-se, ao contrário, de dizer que o desejo é o próprio “modo de existir” do ser vivo. Esta é a “dimensão originária” aquém da diferença entre a representação e o movimento que procura nosso filósofo: “o desejo é a maneira específica pela qual o ser vivo se relaciona originariamente com uma exterioridade, é a forma primitiva e fundadora da intencionalidade. É enquanto desejo que a vida é capaz de dar origem a uma relação com objetos e, portanto, é como desejo que a percepção se enraíza originariamente no ser vivo” (Barbaras 8, p. 158-59). No desejo não há alternativa entre satisfazer ou frustrar uma necessidade. Na verdade, o objeto do desejo aponta sempre para outro objeto. No desejo, o objeto de satisfação intensifica o próprio desejo: a satisfação não é a cessação do desejo, mas sua reanimação. Ao contrário da necessidade que exprime uma falta definida e restaura a completude vital, no desejo a aspiração que o atravessa não é diferente de uma ausência. O objeto do desejo se manifesta, então, sob a forma de uma ausência, porém, nada lhe falta e nada pode preenchê-lo totalmente. O que Barbaras pretende mostrar com esta análise é o reenvio de um objeto a outro muito anterior à representação pelo conceito e ao deslocamento no sentido físico da palavra. Desejar não é diferente de se dirigir ao objeto: o objeto se dá no próprio desejo enquanto movimento que toma posse do objeto. Mas o objeto do desejo não se dá inteiramente, ele permanece ausente: 120

o desejo escapa ao mesmo tempo da ordem espacial do movimento e da ordem psíquica da representação: ele é o fundamento e a raiz dessas duas ordens, no sentido em que ele as torna possíveis. É o dinamismo originário do desejo – movimento não espacial da aspiração ou da tensão – que dá conta da articulação entre percepção e movimento (Barbaras 8, p. 160).

A partir do momento em que compreendemos que a forma originária da intencionalidade é o desejo, temos condição de entender que o próprio sujeito sempre se precede a si mesmo e já pertence ao mundo que ele abre: “o sujeito faz parte do mundo que ele condiciona e a Vida nomeia a arché-facticidade do transcendental, envolvimento mútuo do mundo e de sua condição de fenomenanalização” (Barbaras 4, p. 140). O estatuto do sujeito do aparecer possui uma “dupla dimensão”: ele está inscrito no mundo e é condição de sua aparição (Barbaras 4, p. 153).16 Já o desejo é aquilo que relaciona a aparição finita e a coaparição do mundo que ela supõe. Dizer que a percepção é desejo, é dizer que todo ente só aparece como manifestação de um aparessente último que, por sua vez, nunca aparece. O desejo desdobra a Distância constitutiva do sensível; ao aspirar à totalidade, ele abre a profundidade do aparecer (Barbaras 4, p. 152).

Assim, a descrição do desejo faz eco à percepção como doação por perfis. Lembremos que o objeto percebido nos é dado por perfis que ao mesmo tempo o apresentam e o ausentam. Há, portanto, uma convergência deste fato com a interpretação da “essência da percepção como desejo” (Barbaras 8, p. 160). É partindo do desejo que podemos compreender a doação por perfis, afinal, desejar é tomar uma coisa como expressiva 121

Cadernos Espinosanos XXVII

Leandro Neves Cardim

de outra que é ausente.17 Eis o dinamismo do desejo: aí mesmo onde ele

enraizar verdadeiramente a percepção na vida e, com isto, dar conta da

se satisfaz, ele se aviva. Assim como o movimento de reenvio existente

continuidade entre a ordem perceptiva e a ordem cognitiva” (Barbaras 4,

no perfil do objeto percebido é ao mesmo tempo presença e ausência, o

p. 166). Reformulando o problema da percepção, Barbaras nos ensina que

movimento do desejo deve ser interpretado como apreensão de algo que

“enquanto ela já é percepção, a vida porta nela mesma a possibilidade do

não se dá inteiramente. O excesso que caracteriza o objeto percebido é

conhecer” (Barbaras 4, p. 166). O efeito inverso da recusa da interpretação

garantido pelo excesso que constitui o desejo. A experiência da percepção

da vida como necessidade é a apreensão do conhecer “aquém da posição de

como abertura e dissimulação do mundo exterior, a passagem, através do

um puro objeto”: “se apreendemos o conhecimento a partir de sua dimensão

perfil, de uma coisa dada à outra não dada, não se dá fora do movimento do

interrogativa que o define em seu fundo, descobrimos sua continuidade

desejo, já que através dele apreendemos algo ao mesmo tempo presente e

com a ordem vital: a interrogação continua a exploração que caracteriza

inacessível. “É por ser desejo, isto é, expectativa absoluta ou carência para

a vida” (Barbaras 4, p. 167). No último trecho deste livro nosso autor nos

além de qualquer objeto definido que a percepção pode acolher a própria

mostra que a negatividade “surge desde o plano vital” e que a continuidade

exterioridade. É por ser aspiração inextinguível que a percepção é acolhida

entre perceber e conhecer deve ser procurada na dimensão interrogativa. O

absoluta” (Barbaras 8, p. 161).

conhecimento encontra sua raiz no desejo que constitui a vida. Na verdade,

Para terminar gostaria de levantar um dos pontos que a Conclusão

desejo e interrogação são sim “um e mesmo movimento”. Barbaras chama

do livro O desejo e a distância suscita como uma das direções possíveis

atenção, então, para uma “dimensão mais profunda” em relação à qual

de aprofundamento para o tema da percepção, o qual se torna ocasião

desejo e interrogação, vida e conhecimento aparecem como modalidades.

para repensar o estatuto do tempo e do espaço, a relação entre o desejo

Sobre o pano de fundo da abolição da alternativa entre vida e filosofia

e a distância e, enfim, o conhecimento e as significações. Inscrita ou

retenhamos esta idéia preciosa: “pela interrogação, nos reapropriamos das

enraizada no interior da vida, a percepção deve ser compreendida a partir

nossas raízes, nos fazemos vivos” (Barbaras 4, p. 167).

da própria vida. É assim que nosso autor preserva a continuidade entre perceber e conhecer. Contanto que não reduzamos ou sujeitemos a vida às necessidades, contanto que não neguemos à vida uma capacidade de negatividade condenando-lhe à positividade, poderemos compreender como o negativo – que não é um puro nada – pode aparecer no mundo. De onde surge a ruptura? “É verdadeiramente a caracterização do vivente como incapaz de negatividade que leva a introduzir um plano perceptivo que rompe com a ordem da vida” (Barbaras 4, p. 166). Vem daí a negação de continuidade entre viver e conhecer. Vem daí, também, o raciocínio inverso: “é na medida em que introduzimos ‘o nada no texto da vida’ que podemos 122

The perception according to Barbaras Abstract: This article presents the concept of perception as well as plays the French philosopher Renaud Barbaras. He starts with the replacement of the problem of perception between immanence and transcendence to indicate the fundamental features that characterize this phenomenon according to his own point of view: the subject of perception as a living subject and the essence of life as desire. It is not for him to approach the perception through what is not. To truly understand the perceived need to let us form with the perceptual experience itself, or rather, one must think according to their perception. Keywords: Barbaras, perception, movement, desire, life.

123

Cadernos Espinosanos XXVII

Referências Bibliográficas 1. BARBARAS, R. Merleau-Ponty, Paris: Ellipses, 1997. 2. ______. La perception. Essai sur le sensible, Paris: Hatier, 1994. 3. ______. La percezione. Saggio sul sensibile, Trad. Giacomo Carissimi, Milão: 2002a. 4. ______. Le désir et la distance. Introduction à une phenomenology de la perception, Paris: Vrin, 1999. 5. ______. Introduction à la philosophie de Husserl, Chatou: Les Éditions de la transparence, 2004 6. ______. Entretien avec Renaud Barbaras – Propos recueillis par Bastien Gallet [2001]. Disponível em  : http://www.musicafalsa.com/article.php3?id_ article=39 7. ______. Le mouvement de l’existence. Études sur la phénoménologie de Jan Patočka, Chatou: Les Éditions de La Transparence, 2007. 8. ______. Investigações fenomenológicas. Em direção a uma fenomenologia da vida, Curitiba: Editora UFPR, 2011. 9. ______. Introduction à une phénoménologie de la vie, Paris: Vrin, 2008. 10. ______. Le tournant de l’expérience. Recherches sur la philosophie de MerleauPonty, Paris: Vrin, 1998. 11. ______. “La phénoménologie du mouvement chez Patočka”, in Phénoménologie: un siècle de philosophie, Dir. Dupond, P. e Cournarie, L., Paris: Ellipses, 2002b. 12. ______. “Preface”, in Simondon, G. Cours sur la perception (1964-1965), Chatou: Les Edition de la Transparece, 2006. 13. BERGSON, H. A evolução criadora, trad. Bento Prado Neto, São Paulo: Martins Fontes, 2005. 14. ______. Matéria e memória. Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito, trad. Paulo Neves da Silva, São Paulo: Martins Fontes, 1990. 15. CANGUILHEM, G. La connaissance de la vie, Paris: Vrin, 1998. 16. GOLDSTEIN, K. La structure de l’organisme. Introduction à la biologie à partir de la pathologie humaine, Paris: Gallimard, 1983. 17. HEIDEGGER, M. Concetti fondamentali della metafisica. Mondo-finitezzasolitudine, trad. P. Coriando, Genova: Melangolo, 1999. 18. HUSSERL, E. Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica, trad. Márcio Suzuki, Aparecida: Ideia&Letras, 2006. 124

Leandro Neves Cardim

19. JONAS, H. Le phénomène de la vie, trad. D. Lories, Bruxelas: De Boeck, 2001. 20. MERLEAU-PONTY, M. Le primat de la perception et ses consequences philosophiques, Lagrasse: Verdier, 2004. 21. STRAUS, E. Du sens des sens. Contribution à l’étude des fondements de la psychologie, trad. G. Thines, J.-P. Legrand, Grenoble: Jérôme Millon, 2000. 22. WEIZÄSCHER, V, Le cycle de la structure, trad. M. Foucault, Paris: Desclée de Brouwer, 1958. NOTAS 1. Penso, particularmente, nos seguintes textos: “Conscience et perception. Le cogito dans la Phénoménologie de la perception” (Barbaras 10); “Percepção e movimento : o desejo como condição de possibilidade da experiência” (Barbaras 8); “A composição da percepção” (Barbaras 5); “Preface” (Barbaras 12); (Barbaras 1). 2. Dito de outro modo e em outro texto: “uma filosofia da percepção não é só aquela que toma a percepção por objeto, mas é também uma filosofia que se reforma ao seu contato, que pensa segundo a própria percepção” (Barbaras 3, p. 36). 3. Cf. de Bergson, Capítulo IV de A evolução criadora. Barbaras nos lembra que aqueles “falsos problemas” derivam da “inversão das ordens de dependência no seio do real, isto é, de uma decomposição da realidade que não respeita suas articulações efetivas”. Tratase de uma falsa questão “porque ela pressupõe que do nada pode preceder algo, que o Ser pode surgir sob o fundo do nada, o que equivale a inverter pura e simplesmente o estatuto ontológico respectivo do Ser e do nada” (Barbaras 4, p.66). 4. “Só podemos definir a existência como atualização de uma essência sob a condição de compreender esta atualização como representação para uma consciência. Assim aparece claramente, para além de sua oposição aparente, a solidariedade teórica do objetivismo e do subjetivismo: ela se funda sob a decisão implícita de perfilar o Ser sobre o nada” (Barbaras 1, p. 26). 5. “A percepção adquire em Husserl um estatuto primordial já que, ao afirmar que ela é uma intuição doadora de sentido originário, significa que ela entrega o próprio Ser: perceber é ser posto em presença do que é, e a única maneira de alcançar o que é em pessoa, é de percebê-lo. Há reciprocidade entre Ser mostrado como ente e percebido. Segue daí que toda interrogação sobre o Ser passa por uma interrogação sobre a percepção, que o sentido de ser do que é não pode ser alcançado senão em uma eidética da percepção” (Barbaras 4, p. 20). 125

126

Cadernos Espinosanos XXVII

Leandro Neves Cardim

6. Em seu livro sobre Husserl, Barbaras formula de modo admirável o mistério envolvido na percepção segundo Husserl: “tal é o mistério do aparecer: algo aparece à alguém; uma unidade transcendente se dá através de uma multiplicidade de vivido. Distinto dos vividos da percepção, o objeto percebido tem necessidade desses vividos” (Barbaras 5, p. 105). 7. “Na percepção, o perfil e o objeto perfilado, a aparição e o que aparece são afetados de uma dupla ambiguidade constitutiva. O esboço é ao mesmo tempo ele mesmo e o objeto que ele apresenta: ele é idêntico a si mesmo e ao seu ultrapassamento (isto é, a seu apagamento). O objeto, por sua vez, é ao mesmo tempo presente, no sentido em que ele é alcançado por alguém, e indefinidamente ausente no sentido em que nenhuma série de perfis pode esgotar seu teor de ser: ele é o idêntico de uma vinda à presença e de um recuo no inapresentável” (Barbaras 4, p. 24). 8. “Assim, com a teoria da doação por perfis, Husserl reconhece que a peculiaridade da coisa é de transcender-me, que o índice da realidade é a exterioridade em relação a consciência, de modo que a percepção, enquanto diz respeito precisamente a uma coisa ou uma realidade, deve oferecer-me tal transcendência, abrir-me a ela. A partir do momento em que a coisa é por essência isto que me transcende e do momento que, por outro lado, nós temos experiência da coisa, não deve haver alternativa entre experiência e transcendência, entre consciência e exterioridade: a percepção designa esta própria unidade através de uma posse e um esgotamento, por isto o problema da percepção não consiste senão no modo de unidade ou de conciliação entre estas duas dimensões aparentemente antagonista, a imanência e a exterioridade” (Barbaras 3, p. 8). 9. “É necessário tomar como ponto de partida a própria estrutura do aparecer e tentar caracterizar o sentido de ser do sujeito (cujo embaralhamento do sentido e do sentir é apenas uma manifestação) a partir desta estrutura, ao invés de se dá-lo inicialmente sob a forma do corpo próprio para daí deduzir depois esta estrutura, como o faz Merleau-Ponty” (Barbaras 4, p.107). 10. O trecho importante citado por Barbaras é precisamente a última frase desta citação: “Podemos observar desde agora sob quais formas [a interpretação do conhecimento humano, a partir do conhecimento perfeito e acabado, que continuamente faz perder de vista os problemas psicológicos do conhecer e do sentir] se manifesta: que na teoria das sensações o sujeito seja transformado em sujeito teórico geral ou em consciência pura e simples; que ele seja objetivado ao ponto de não ser mais senão um receptor de estímulos; que na esteira de Mach, o Eu seja considerado como perdido ou que ele seja interpretado segundo Hume como um feixe de representações; que concedamos,

enfim, em todos os atos psíquicos o Eu seja igualmente presente à consciência – em todas essas concepções, o sujeito do sentir não é um homem vivo. Está aí o ponto essencial. Chegamos, assim, através de toda uma série de negações, a uma primeira definição positiva. Concebemos o sentir como um modo do ‘ser-vivo’ (lebendgs Sein)” (Straus 21, p. 32; negrito acrescentado). 11. Na contramão da tradição que interpreta o homem como “animal racional”, Heidegger estabelece a singularidade do Dasein e sua diferença em relação aos outros seres. “É verdade, Heidegger reconhece que a vida pertence à ordem da existência e não da substância, mas ele não pode admitir que a existência seja tal que possa dar conta da existência humana: isto se compreende bem depois da questão ontológica que confere ao homem uma singularidade absoluta, incomparável com qualquer forma de continuísmo. Deriva daí que é a existência humana que deve dar conta, privativamente, da essência vital. [...] Seja como for, a aproximação privativa se traduz em um impasse para a determinação da existência viva. Como se sabe, o animal é caracterizado, por contraste em relação ao homem-formador do mundo (weltbildene), como ‘pobre de mundo’ (weltlos), e isto significa que o mundo se subtrai na sua própria abertura, dado que a relação do animal como o mundo é um não-haver no interior de um poder-haver. Com isto, Heidegger pretende que, aí onde o homem se reporta ao ser em quanto ser, o animal é obnubilado pela pulsão e como que aprisionado nela, de tal modo que, arrastado em direção de certos seres em vista de sua sobrevivência, o animal não pode nunca alcançá-los enquanto tal: esses se retiram, por assim dizer para trás de suas funções de satisfação da pulsão. É difícil não reconhecer aqui uma orientação teleológica e antropocêntrica, que considera o animal a partir do homem sob a base do modo hierquizante disto que possui apenas instinto e não ainda a consciência” (Barbaras 3, p. 23). 12. Para Barbaras, a fenomenologia da vida tem como tarefa “determinar o que a vida deve ser para que possa ter algo que seja apenas humanidade ou, mais precisamente, o que a vida deve ser para que possa existir um modo de viver que seja consciência de algo” (Barbaras 8, p. 8); sobre o tema da fenomenologia da vida cf. Barbaras 9. 13. “É forçoso constatar que os corpos que percebem são corpos vivos e que eles se distinguem dos outros entes corporais (como, aliás, mas em uma menor medida, desses viventes mais ou menos imóveis que são as plantas) por sua aptidão se mover. É graças a esta motricidade constitutiva do ser vivo que podemos aceder ao sentido último da subjetividade: é enquanto sujeito capaz de movimento que o sujeito perceptivo poderá ser apreendido em seu ser verdadeiro. [...] No seio do ‘há’, só existe negatividade como mobilidade” (Barbaras 4, p. 108). 127

128

Cadernos Espinosanos XXVII

Leandro Neves Cardim

14. Ao afirmar a autonomia do aparecer e ao atribuir ao sujeito uma atividade motora, Barbaras se aproxima das teses do Capítulo I de Matéria e memória, o qual poderia ser lido como uma espécie de fenomenologia da percepção: “recusando tanto a interpretação da realidade no sujeito quanto a posição de uma realidade estranha à experiência perceptiva, Bergson introduz o conceito de imagem para caracterizar o sentido de ser do real. Ele interpreta isto como uma realidade que está situada a meio caminho do objeto espaço-temporal e da idéia: é incontestável que o real não é nada além do que nos aparece (a idéia de uma realidade em si que se situaria atrás do que percebemos é incompreensível) e que aquilo que nos aparece é real (também é inadmissível afirmar que o que nós percebemos está em nós e não uma realidade fora de nós). [...] Trata-se, para Bergson, de dar conta da percepção sem fazer intervir algo como uma representação, isto é, não abandonando o plano, unívoco, das imagens. Em outras palavras, é preciso dar conta da diferença entre o ser e o ser percebido unicamente sob o plano das imagens e, portanto, sem fazer intervir alguma dimensão psíquica, por definição estranhas às imagens. Como nós sugerimos, isto é o mesmo que dar conta da percepção a partir de um sujeito situado no seio daquilo que aparece, isto é, de um ser vivo” (Barbaras 4, p. 121-22). 15. “Nós nos situamos aqui entre Husserl e Bergson: se a percepção é a condição do mundo, esta condicionalidade não pode repousar sobre uma ordem psíquica autônoma e ele deve então proceder da própria atividade vital, de modo que é no próprio movimento que deve ser constituído o mundo que ele supõe como o campo sobre o fundo do qual se desenrola sua potência negadora. Na verdade, esta conclusão procede de uma tomada em consideração rigorosa das condições do problema” (Barbaras 4, p. 131). 16. “Enquanto o sujeito é desejo ele se reporta ao todo do ser e é, então, condição do mundo; mas enquanto o desejo não tem outra realidade que a dos movimentos aos quais ele dá lugar, enquanto sua aspiração se faz exploração, ele está contido no mundo que ele desvela. Em virtude de sua própria essência, o desejo está consagrado a se dispersar em tendências finitas – que podem incluir até as necessidades; sua dimensão transcendental implica seu vir a ser empírico e é por isto que só há desejo como vida. Mas só há desejo como vida porque só há ser constituído do mundo como omni-englobante e logo ao mesmo tempo não-constituível. Assim, abertura conjunta da aparição e de sua retirada na distância, o desejo é a unidade originária da passividade e da atividade: ele só possui o mundo como aquilo que o possui. Porque o ser vivo só existe permanecendo aquém de seu ser, ele só desdobra a totalidade sob a forma daquilo que a nega e não contém o mundo senão como o que o contém: o desejo

é o fato do transcendental, ou o transcendental como Fato, a forma concreta de sua retirada originária” (Barbaras 4, p. 153). 17. “Por um lado, ao abrir a profundidade do mundo, o desejo realiza a função de manifestação, torna possível o perfilar do perfil. Mas, por outro, uma vez que ele permanece insatisfação, esta profundidade permanece escondida na aparição, aquilo que aparece se ausenta de sua manifestação e o perfil permanece um perfil, ou seja, também uma esquiva. Pensar o perfilar a partir do desejo, é se dar os meios de compreender que a ausência do perfilado ao perfil não faz alternativa com sua presença e que não há manifestação senão como recuo na profundidade” (Barbaras 4, p. 152).

129

O corpo vivido e o movimento da vida em M. Merleau-Ponty e R. Barbaras*

Esteban A. García** Resumo: As análises aqui propostas enfocam, em primeira instância, a leitura do corpus merleau-pontiano, proposta por R. Barbaras em seu Introduction à une phénoménologie de la vie, segundo a qual os vaivens e ambivalências da reflexão de Merleau-Ponty acerca do corpo se explicam pela desconsideração de seu caráter primordialmente vivente. Em segundo lugar, abordamos a filosofia de Merleau-Ponty a partir do propósito de encontrar no corpo uma modalidade originária e absoluta de movimento como abertura de possibilidades, fundante em relação ao objeto que se move e ao espaço, aberto pelo próprio movimento. Em terceiro lugar, pondo em relevo a noção de nascimento, propomos que esta singular modalidade de movimento buscada por Merleau-Ponty encontra sua caracterização mais apropriada no movimento natural e vital, o que permite conciliar, ao menos parcialmente, as perspectivas de ambos os filósofos. Palavras-chave: Merleau-Ponty, Barbaras, movimento, vida, corporalidade.

Todo o percurso da reflexão merleau-pontiana foi marcado pelo propósito dominante de elucidar o singular modo de ser de nossa corporeidade, que o filósofo caracterizou, desde sua Fenomenologia da Percepção, como “ambíguo”. Segundo observa lucidamente R. Barbaras em sua Introduction à une phénoménologie de la vie, uma dificuldade chave com que se depara essa empresa é o fato de que nossa experiência corporal conjuga duas condições ao mesmo tempo irrecusáveis e difíceis de conciliar: nosso pertencimento ao mundo e nossa distância frente a * Tradução de Silvana de Souza Ramos. ** Universidad de Buenos Aires – Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnica. E-mail: [email protected]. 131

Cadernos Espinosanos XXVII

ele, como sujeitos que percebem. Nosso corpo resume o paradoxo de que uma parte do mundo possa ser ao mesmo tempo consciente do mundo. A leitura de Barbaras põe em relevo de maneira certeira as contradições, as ambivalências e os vaivens do corpus merleau-pontiano em sua dificuldade para encontrar uma caracterização sui generis desse modo original de

Esteban A. García

O corpo próprio permanece aí pensado a partir da consciência e finalmente abordado como uma modalidade daquela, [...] como uma consciência opaca e incoativa. [...] Nisto, Merleau-Ponty não ultrapassa verdadeiramente a concepção metafísica do corpo como aquele que vem borrar ou obscurecer a transparência da Razão (Barbaras 1, p. 71).

ser que é próprio ao corpo. Em sua visão, as aporias da busca merleaupontiana só poderiam ser contornadas abordando-se o corpo vivido como

Ora, de acordo com essa mesma interpretação, quando Merleau-

corpo vivente, vislumbrando-o assim desde a perspectiva mais originária

Ponty quer fazer valer a corporalidade contra o modelo de uma consciência

do movimento da vida. Nas páginas seguintes nos propomos encontrar

transcendental e constituinte, devedor direto de uma definição intelectualista

no próprio Merleau-Ponty o esboço de uma definição original do corpo

da consciência, refere-se então ao corpo em sua materialidade física ou em

em termos de uma modalidade particular do movimento, que em última

suas definições anátomo-fisiológicas. Deste modo, as análises merleau-

instância poderá ser caracterizada – em termos quiçá próximos de alguns

pontianas passariam diretamente ou sem escalas de um corpo-sujeito – ou,

dos propostos por Barbaras – como movimento vital.

mais estritamente, um sujeito encarnado – ao lado contrário, isto é, a um

I. A indefinição do corpo e os vaivens do corpus merleau-pontiano segundo a leitura de R. Barbaras

corpo objetivado pelas ciências da vida e vice-versa, em um movimento de vaivém ou zigue-zague que nunca encontraria esse “outro tipo de ser” onde deter – ou começar – uma análise original e própria do corpo vivente enquanto tal. Neste sentido, na Fenomenologia da Percepção conviveriam

Na Fenomenologia da Percepção, Merleau-Ponty pretendia haver

problematicamente a corporalidade como adjetivação de uma consciência

encontrado – ou ao menos estar em busca de – uma dimensão ontológica

que agora se “encarnou” e “a ideia do corpo, que é ainda própria da

original distinta do modo de ser do sujeito e do objeto no modo de ser do

Fenomenologia da Percepção, como fragmento de extensão habitado

corpo: tratava-se de encontrar “entre o puro sujeito e o objeto um terceiro

por uma sensibilidade” (Barbaras 1, p. 78). Em apoio a esta avaliação de

gênero de ser” (Merleau-Ponty 9, p. 402). Contudo, de acordo com a leitura

Barbaras, poderiam ser recordadas aquelas afirmações de Merleau-Ponty

proposta por R. Barbaras em sua Introduction à une phénoménologie de

na Fenomenologia da Percepção que aludiam ao fato de que:

la vie, naquela obra o corpo não é tematizado por si mesmo e não recebe uma caracterização positiva como “outro tipo de ser” singular, mas cumpre a única função de adjetivar ou de qualificar a consciência: a corporeidade equivale, em última instância, meramente à passividade da consciência. Nas palavras de Barbaras:

132

um homem sem mãos ou sem sistema sexual é tão inconcebível quanto um homem sem pensamento. [...] É impossível distinguir no ser total do homem uma organização corpórea (...) dos demais predicados. Não é por mera coincidência que o ser razoável é também o que está de pé ou possui um polegar oposto aos demais dedos (Merleau-Ponty 10, p. 187). 133

Cadernos Espinosanos XXVII

Nesta passagem, como em outras, parece patente que naquelas ocasiões em que a Fenomenologia da Percepção pretende reivindicar

Esteban A. García

organismo, mas este vaivém da existência que ora se deixa ser corpórea e ora remete aos atos pessoais” (Merleau-Ponty 10, p. 107).

com maior intensidade “a organização corpórea” frente ao pensamento

Se Merleau-Ponty segue mantendo, mesmo a contragosto, o

intelectualista recorre às definições anátomo-fisiológicas mais clássicas da

conceito de um corpo que está no mundo como uma parte deste, porém,

corporalidade.

ao mesmo tempo, pode ter o mundo à distância (ao ser consciente dele na

Essa justaposição de uma consciência racional (mesmo que

percepção), o corpo não faz mais que batizar o problema da insuficiência

já qualificada como carnal) e um corpo anátomo-fisiológico, essa

de cada uma das duas perspectivas e a simultânea necessidade de ambas.

ambivalência que consiste em afirmar ao mesmo tempo e alternativamente

Seria por um motivo semelhante que Merleau-Ponty desenvolve tardiamente

um e outro, sem poder encontrar aí, apesar das intenções explícitas

uma ontologia da carne, já não entendida como esse “fragmento de matéria

do autor, passagem, uma tematização positiva do corpo vivente como

circunscrito” ao “qual um sentir viria misteriosamente agregar-se” (Barbaras

núcleo desde o qual os dois termos da oposição derivariam, pode revelar-

1, pp. 66, 67), definição que poderia convir ao corpo, mas como “um modo

se também claramente na conhecida análise do membro fantasma. Ali “o

de ser caracterizado pela identidade do sentir e do pertencimento, identidade

movimento da existência” ou o “ser-no-mundo” são os emblemas de “um

da qual meu corpo é como o emblema ou a manifestação, mas que não

terceiro tipo de ser” ambíguo, próprio de uma redefinição sui generis do

pode confundir-se com ele” (Barbaras 1, p. 77). Assim, na interpretação de

corpo, e, contudo, no final do capítulo em questão (o primeiro da parte

Barbaras, a qual estamos recolhendo, a última filosofia de Merleau-Ponty

I da Fenomenologia da Percepção) essa existência volta na análise a

sustentaria a seguinte tese: “não é porque meu corpo está no mundo (posição

desdobrar-se em uma consciência racional e voluntária, por um lado, e

espacial) que ele é do mundo (parentesco ontológico); é, pelo contrário, na

em um conjunto de processos fisiológicos, por outro. Assim, depois de

medida em que é do mundo [relação de pertença e continuidade ontológica a

situar a chave da compreensão do fenômeno no corpo vivido já definido

que alude a figura da carne] que pode estar também no mundo” no modo do

além de sua objetivação científica como um repertório de possibilidades

corpo ou de “minha carne” (Barbaras 1, p. 77). Segundo essa visão, a virada

de comportamento sedimentadas pelo hábito, ao perguntar-se por que

ontológica da reflexão merleau-pontiana significaria uma radicalização e

a secção dos nervos pode ocasionalmente suprimir a experiência do

inclusive uma inversão do ponto de vista priorizado na Fenomenologia da

membro fantasma, Merleau-Ponty volta a invocar o clássico fator

Percepção. A encarnação da consciência operada naquela obra significava

neurofisiológico: “Desde nosso ponto de vista, um circuito sensório-motor

uma “mundanização” do sujeito que agora, por sua vez, é vista como fundada

é, no interior de nosso ser-no-mundo global, uma corrente de existência

no ser carnal do corpo e seu originário pertencimento ao mundo, de tal modo

relativamente autônoma” (Merleau-Ponty 10, p. 105). Neste contexto se

que “o devir mundo do sujeito [é agora entendido como] o devir fenomenal

pode encontrar também uma confirmação do “vaivém”, advertido por

do mundo”. Nas palavras de Barbaras:

Barbaras, nas palavras mesmas de Merleau-Ponty quando afirma que “o homem concretamente tomado não é um psiquismo relacionado a um 134

O caminho de Merleau-Ponty consiste portanto em radicalizar a passividade do sentir, sua inscrição num corpo, compreendendo-a como filiação ontológica, o que conduz 135

Cadernos Espinosanos XXVII

a por em evidência uma sorte de inversão intencional: se o sentir está verdadeiramente imerso no mundo (imersão carnal da qual o corpo é a atestação), então o sentir do mundo (pelo sujeito) se confunde com a vinda do mundo ao parecer, quer dizer, com seu ser sentido. O verdadeiro sujeito do sentir não é mais o corpo, como na Fenomenologia da Percepção, mas o mundo mesmo, do qual o corpo se destaca: o sentir é sentir do mundo no duplo sentido do genitivo (Barbaras 1, p. 79).

Em contraste com a Fenomenologia da Percepção e sua adjetivação corporal do sujeito, é a subjetividade mesma a que agora porta um mero sentido adjetivo, como “ser subjetivo ou fenomenal do mundo” (Barbaras 1, p. 79). Essa interpretação é confirmada pela taxativa afirmação de Merleau-Ponty correspondente a uma nota de trabalho inédita citada por Barbaras em Le tournant de l’expérience: “Nossa corporeidade: não colocála no centro como fiz na Fenomenologia da Percepção: num sentido, ela é apenas a dobradiça do mundo” (Barbaras 2, p. 217). Embora Merleau-Ponty, em outra nota de trabalho inédita citada por Barbaras (desta vez em Introduction à une phénoménologie de la vie), advirta sobre a necessidade de não cair no “monismo explicativo” de uma “ontologia intermediária”, a carne como visibilidade do mundo que reúne em si mesma a visão e o visto, o sujeito e o objeto, parece funcionar como chave de uma sorte de “filosofia monista da natureza” tal como a que se pretende evitar.1 Desde esta perspectiva, o corpo parece diluir-se no “anonimato” primordial da carne e, segundo a fala de Barbaras, “se torna impensável” (Barbaras 1, p. 8). Ora, como adverte o próprio filósofo, isto não é o que sempre de fato sucede nos escritos incluídos no Visível e o Invisível, ao contrário, o corpo próprio, meu corpo ou minha carne são invocados de modo intermitente para desenhar ou atenuar esta tendência monista até o ponto de fazer retroceder a análise, ocasionalmente, até

136

Esteban A. García

o subjetivismo que caracterizava o Merleau-Ponty de 1945: “A carne do mundo não é um sentir-se como minha carne – Ela é sensível e não sentiente”, lê-se ainda nas notas de trabalho do Visível e o Invisível (Merleau-Ponty 11, p. 304). Em passagens como esta, a carne parece referir-se com propriedade somente ao meu corpo e se estender somente de modo metafórico para aludir à “carne do mundo”, desfazendo-se assim o caminho andado e reiterando-se as mesmas aporias que, como MerleauPonty mesmo advertia em algumas de suas notas de trabalho, eram próprias ao ponto de vista da Fenomenologia da Percepção em seu compromisso com o lastro das filosofias da consciência e do sujeito.2 Barbaras conclui sua leitura do percurso reflexivo merleau-pontiano indicando que os vaivens, ambivalências e aporias que o atravessam não se justificam, mas se explicam, porém, quando se recorda que o problema do qual parte o filósofo é o da consciência perceptiva em sua diferença para com a consciência intelectual, à qual usualmente se subordinou ou se reduziu a análise da primeira, e o corpo funciona como resposta a essa pergunta. Assim, “o corpo não é interrogado por si mesmo, em seu sentido de ser próprio, mas como o que organiza a receptividade da consciência e, por isso, a opacidade do objeto percebido”. A fenomenologia merleau-pontiana, em suma, “não é uma fenomenologia do corpo, mas da percepção” (Barbaras 1, pp. 82, 83). Esse modo de ser próprio do corpo que a filosofia havia deixado escapar, na proposta de Barbaras, não se revela mediante a equívoca referência à carne, mas é o próprio da vida: “O Leib [...] deve ser compreendido do ponto de vista do Leben”, o viver que anima a carne e que funda conjuntamente o pertencimento ao mundo e sua percepção (Barbaras 1, p. 84). No entanto, poderemos perguntar nas seções seguintes deste trabalho se o próprio Merleau-Ponty não outorga ao corpo uma caracterização original e específica que se relaciona justamente, em última instância, com o movimento vital que lhe é próprio, tal como o exige Barbaras. 137

Cadernos Espinosanos XXVII

Esteban A. García

Antes de propor algumas alternativas à proposta de interpretação

do enraizamento carnal. Assim, pode ler-se, por exemplo, que “a visão que

de Barbaras recém resumida, é possível fornecer outros elementos que

ele [o vidente] exerce, sofre-a também por parte das coisas”; “eu me sinto

confirmam aquela remissão – em retrocesso – que acertadamente observa

olhado pelas coisas (...) de sorte que vidente e visível se fazem recíprocos

o filósofo, desde a ontologia merleau-pontiana da carne até as teses mais

e já não se sabe quem vê e quem é visto” (Merleau-Ponty 11, p. 183).

básicas da fenomenologia anterior, do corpo próprio. Pode-se ler, por

Antes de precisar o alcance dessas afirmações, podemos recordar que sua

exemplo, nas notas finais do Visível e o Invisível:

aparente radicalidade não supera o que já era sugerido pela Fenomenologia

eu não posso por um único sensível sem pô-lo como arrancado à minha carne, colhido da minha carne, e a minha própria carne é um dos sensíveis no qual se faz uma inscrição de todos os outros, sensível pivô (...) Meu corpo é no mais alto grau aquilo que qualquer coisa é: um isto dimensional. É a coisa universal – Mas enquanto as coisas só se tornam dimensões a partir do momento em que são recebidas no interior de um campo, o meu corpo é este campo, (...) medidor universal (Merleau-Ponty 11, p. 313).3

da Percepção, quando Merleau-Ponty sustentava que o céu que percebo é “para si”: quando vejo o céu, o céu “se pensa em mim”; “eu sou o próprio céu que se reúne, se recolhe e se põe a existir para si” (Merleau-Ponty 9, p. 248). No Visível e o Invisível as frases antes citadas, que descrevem o movimento do sentir como proveniente do visível, situam-se num contexto em que a pergunta se o entrelaço é total e implica uma identidade absoluta ou se implica uma identidade “parcial” ou “diferenciada” é deixada em suspenso: “Não examinaremos por ora até onde vai essa identidade do vidente e do visível” (Merleau-Ponty 11, p. 177). Quando, na continuação,

Nas últimas notas se torna evidente que longe de diluir-se no ser

o filósofo introduz em sua análise os outros corpos percipientes, volta a

de indivisão, e mesmo longe da perfeita simetria especular entre a carne do

se referir ao que chamava metaforicamente de “o olhar do mundo” para

mundo e minha carne que algumas passagens parecem evocar, o corpo-objeto

mostrar que não se trata de um verdadeiro olhar, pois não equivale ao

é ainda pensado como realidade sensível chave, o eixo, a medida universal

olhar de um corpo. O olhar das coisas é agora redefinido como “Um olhar

ou “o visível arquétipo” (Merleau-Ponty 11, p. 326). O fato de que meu

sem pupila, o espelho sem amálgama das coisas, esse pálido reflexo, esse

corpo seja visível tal como o que ele vê, acrescenta Merleau-Ponty, “não

fantasma de nós mesmos, que elas evocam ao designar um lugar entre elas

quer dizer simplesmente: é um pedaço do visível”, porque “meu corpo é

desde o qual as vemos”. Somente quando outro corpo sentiente-sensível

passivo-ativo (visível-vidente)” (Merleau-Ponty 11, pp. 324, 325). Segundo

aparece, acrescenta Merleau-Ponty, “pela primeira vez o vidente que sou

o filósofo, é somente em função dessa particularidade de meu corpo como

me é verdadeiramente visível”, indicando que o mundo não é sentiente

sentiente-sensível que o mundo pode tornar-se sensível: o corpo como

no mesmo patamar que o corpo (Merleau-Ponty 11, pp. 188, 189). Não

“sensível exemplar”, “ele e somente ele, porque é um ser de duas dimensões,

se formula então uma simples identidade entre essas dimensões da carne,

pode nos levar às coisas mesmas” (Merleau-Ponty 11, p. 179).

que são meu corpo e o mundo, ao contrário, é necessário para o filósofo

4

138

Certamente, essa distinção recém estabelecida entre o corpo como

continuar distinguindo-as e mostrando ao mesmo tempo que só existem

sentiente-sensível e o mundo como somente sensível parece debilitar-se

em seu entrelaço mútuo. Estes textos do filósofo mostram com evidência

em certos parágrafos nos quais Merleau-Ponty radicaliza as consequências

que a última ontologia merleau-pontiana da carne não significa um total 139

Cadernos Espinosanos XXVII

Esteban A. García

abandono ou ruptura com relação a uma filosofia do sujeito que se acharia

anátomo-fisiológico, tampouco está fora do espaço como uma consciência

na Fenomenologia da Percepção. Por um lado, esta obra não propõe uma

que o sobrevoaria como totalidade inteligível, ele “faz” espaço ou “abre”

simples reivindicação subjetivista, mas sim uma crítica do sujeito clássico

o espaço: a isto se refere o tópico merleau-pontiano da “profundidade”

tendo em vista sua condição corporal. E, por outro lado, esse sujeito corporal

enquanto espacialidade originária, existencial e ontológica, que estabelece

já debilitado naquela obra não desaparece no Visível e o Invisível, mas,

o movimento corporal e constitui a raiz subjacente da espacialidade pensada

pelo contrário, constitui um elemento de referência constante e explícita

e da espacialidade física.

na ontologia da carne. Se é assim, as primeiras e as últimas expressões

A seção da segunda parte da Fenomenologia da Percepção referida

do filosofar merleau-pontiano não colocam uma alternativa tão excludente

ao movimento parece buscar a definição de um tipo singular de movimento

como a que ocasionalmente observa Barbaras, já que em ambos os casos

que define o corpo vivido, distinguindo-o de todo movimento no espaço

se busca revelar o mesmo entrelaçamento ontológico do sujeito percipiente

enquanto sistema da exterioridade, porém, sem ser por isso desligado da

com o mundo, relação que implica uma redefinição do primeiro dos termos,

espacialidade. A alternativa às definições físicas empiristas e intelectualistas

porém, em nenhum caso, sua elisão.

do movimento é perseguida segundo uma estratégia característica de toda

5

a obra, recorrendo a uma descrição fenomenológica do movimento tal

II. O movimento do corpo vivido como fundante do móvel e do espaço Ora, reconhecido esse parentesco ou continuidade entre as primeiras e as últimas formulações do filósofo, é possível ainda tomar outras distâncias com relação à leitura esboçada por Barbaras, propondo uma chave alternativa de interpretação. Se é verdade que frequentemente o corpo da Fenomenologia da Percepção parece ziguezaguear entre as opções da mera adjetivação ou qualificação da consciência e de sua materialidade física ou anátomo-fisiológica, pode advertir-se que o corpo recebe uma descrição original e própria em termos de um tipo peculiar de movimento, uma maneira própria de mover-se. Precisamente a isto se refere a definição central da Fenomenologia da Percepção do corpo vivido como esquema motriz, que a leitura de Barbaras aparentemente não considera de maneira afirmativa, como uma abordagem do modo de ser do corpo por si mesmo. O corpo vivido, definido na Fenomenologia da Percepção como movimento, não está no espaço como um corpo físico ou como o corpo 140

como é diretamente vivido e percebido. Para Descartes, quando algo se movimenta significa propriamente que se move “da vizinhança” de alguns corpos “que parecem em repouso” à vizinhança de outros (Descartes 4, Parte III). Algo se move em relação a outra coisa que parece permanecer no lugar, embora este segundo objeto também possa ser considerado como estando em movimento em relação a um terceiro que não observamos. Nossa experiência comum do movimento das coisas e de nós mesmos e nosso sentido usual do termo “mover-se” são, desta perspectiva, alusões equívocas a fragmentos do circuito completo do verdadeiro movimento circular que anima uniformemente todos os corpos: “nenhum corpo pode mover-se senão em círculo” por consequência lógica direta do corpuscularismo com plenum do sistema cartesiano (Descartes 4, p. 57). Se entendemos o espaço no sentido transcendental kantiano, devemos também renunciar a nossas concepções e percepções mais básicas e comuns do que chamamos “movimento”: neste caso, os objetos se movem sem propriamente subir nem descer, sem se aproximar ou se distanciar, sem ir 141

Cadernos Espinosanos XXVII

Esteban A. García

à esquerda ou à direita, a não ser em relação a algum outro objeto tomado

não pode ser, por sua vez, somente um lugar localizado no espaço. Neste

como referência. Essas definições relativas do movimento são as únicas que

sentido, antes de ocupar um lugar o corpo próprio é um “poder mover-se”

autorizam as concepções objetivas do espaço. Contudo, elas não somente

que dá lugar ao corpo que se move no espaço e o “faz” lugar: abre o espaço

anulam os traços mais elementares de nossa experiência de mover e de

mesmo, desdobra-o desde um “aqui” particular, o qual não é possível

perceber o movimento das coisas, como também fazem definitivamente

localizar no espaço, como mais um lugar entre os outros. Assim, observa

do movimento um fenômeno enganoso e até meramente presuntivo: uma

Merleau-Ponty, “se tenho meu braço encima da mesa nunca me ocorrerá

mudança de relações entre objetos que seria experimentada de outro modo

dizer que ele esteja ao lado do cinzeiro, como este está ao lado do telefone”

e até mesmo desapareceria se variassem os pontos de referência ou a área

(Merleau-Ponty 10, p. 115). Mais geralmente, pode-se dizer que “a palavra

de observação. Aquilo a que estas análises não fazem justiça é então, em

‘aqui’ aplicada ao meu corpo não designa uma posição determinada em

primeira instância, ao fato mesmo de que o movimento seja imediatamente

relação a outras posições ou em relação a coordenadas exteriores, mas sim

vivido e percebido como um fenômeno positivo que consta em nossa

a instalação das primeiras coordenadas, a ancoragem do corpo ativo em

experiência enquanto tal. Nos termos da Fenomenologia da Percepção:

um objeto, a situação do corpo perante suas tarefas” (Merleau-Ponty 10,

Se o movimento não segue sem uma referência exterior (...) não há meio de atribuí-lo ao móvel mais que à referência, (...) não há movimento absoluto. Não obstante, este pensamento do movimento é uma negação do movimento. (...) O movimento não é uma hipótese cuja probabilidade venha medida, como na teoria física, pelo número de fatos que coordena. Isto somente forneceria um movimento possível. O movimento é um fato. A pedra não é pensada, mas vista em movimento (Merleau-Ponty 10, pp. 283, 281).

Dar crédito à realidade do movimento significa então, para Merleau-Ponty, afirmar a existência de um movimento absoluto, quer dizer, não relativo a uma referência exterior variável. De certo modo, Husserl em escritos tais como A Terra não se move havia advertido sobre a insuficiência das definições relativas do movimento: é necessário contar com um “aqui” absoluto fornecido pela Terra como solo do corpo próprio em relação ao qual se pode medir o repouso e o movimento relativo de todos os outros corpos (Husserl 6). Ora, para ser “absoluto” este “aqui” 142

p. 117). Mover-se neste sentido mais primário e original do movimento não é passar de um lugar a outro, mas abrir o espaço de tal modo que haja um lugar onde apoiar-se, desde onde partir e até onde ir, um lugar adiante e outro atrás: este movimento real abre o espaço do movimento possível. Resulta assim mesmo significativa a qualificação de “germinal” aplicada por Merleau-Ponty à “originalidade dos movimentos que executo com meu corpo” e às “sensações cinestésicas”, no momento de relacionálos com o movimento no espaço objetivo: “há um germe de movimento que só secundariamente se desenvolve em percurso objetivo” (MerleauPonty 10, p. 111). Do ponto de vista clássico, um movimento real somente pode atualizar o movimento possível: que todo movimento seja espacial significa que se ajusta à lei da exterioridade que determina o sistema de todo movimento possível. Da perspectiva fenomenológica, o movimento real abre ou instaura um campo de movimento possível. Ora, podemos notar especialmente nos últimos cursos e escritos de Merleau-Ponty indicações de uma concepção do movimento ainda mais radical que a noção fenomenológica referida acima: um movimento real 143

Cadernos Espinosanos XXVII

Esteban A. García

que não entra no sistema do possível, tampouco abre apenas um campo

Essa interpretação em termos de transparência tem a virtude de mostrar que

de possibilidades. Este movimento quebra todo sistema ou campo de

coexistem o presente, o passado retido e o futuro visado, o que podemos

movimento possível, introduzindo então, não uma impossibilidade de

recordar e antecipar, porém, ainda além se transluz também o que não

sair, de mistério ou de afastamento – tampouco uma “impossibilidade

podemos recordar nem antecipar. O que se vê coexiste com o visto, com o

de princípio” como aquela que Merleau-Ponty relacionava com o

visível e também com o invisível, tendo aqui o invisível a conotação, tanto

conhecimento acabado do mundo na Fenomenologia da Percepção –, mas

para Merleau-Ponty quanto para Husserl, dos horizontes da “natureza”.

sim uma impossibilidade violenta e destrutiva. Um movimento que, como

Acerca dos horizontes do passado longínquo, Husserl escrevia nas

o próprio nascimento e a aparição no mundo de uma nova vida, desconhece

Meditações Cartesianas, obra emblemática da etapa “genética” de sua

todo passado e não tem “todo o futuro pela frente”, mas aponta em direção

fenomenologia:

6

a seu próprio final.7 Assim, em algumas das escassas referências à questão, Merleau-Ponty afirma que “vivo em uma atmosfera de morte em geral; (...) minha vida tem uma atmosfera social assim como um sabor mortal” (Merleau-Ponty 10, p. 375). Quando se agrega a variável temporal à análise do movimento, é possível reconhecer a singularidade desta terceira figura. No caso do espaço objetivo, o movimento segue a lei da exterioridade e instaura assim a regularidade temporal da sucessão em sua clássica figura linear. No que diz respeito ao movimento em sua noção fenomenológica, por sua vez, o movimento vivido estabelece relações internas de montagem entre as partes do espaço de tal modo que o tempo sucessivo e linear cobra uma nova dimensão onde coexistem em simultaneidade os horizontes passados e futuros: o instante se “expande” no sentido vertical e a linha se anula em uma rede. Na Fenomenologia da Percepção Merleau-Ponty analisou o gráfico de Husserl da rede do tempo mostrando sua eficácia e suas limitações como modelo da experiência tal como é vivida (MerleauPonty 10, Parte III, cap. 2). Essa rede deveria ser vista, na leitura proposta por Merleau-Ponty, mais como a abreviação de um modelo tridimensional feito de camadas transparentes de retensões e protenções localizadas atrás do presente, transluzindo-se até a opacidade (Merleau-Ponty 10, p. 425).8 144

Nesta experiência [transcendental do eu] é o ego originariamente acessível a si mesmo. Porém essa experiência só oferece, em todo caso, um núcleo de realidade experimentada de um modo “propriamente adequado” [...] enquanto que além dessa atualidade só se estende um indefinido horizonte universal e presuntivo [ao qual pertence] o passado do eu, na maioria das vezes completamente obscuro (Husserl 8, pp. 64, 65).

Levando-se em conta o contexto do parágrafo citado, podese considerar que esse passado obscuro, ao qual Husserl alude aqui, remete à nossa primeira infância. Contudo, mais tarde, nos manuscritos da década de 1930, Husserl se perguntará: “até onde se estende tal reconstrução [da análise fenomenológica] com relação ao nascimento (ou seja, eventualmente, antes do nascimento)?”. A pergunta aponta mais especificamente na seguinte direção: “não somos então impulsionados para trás, dos homens aos animais, às plantas, [...] até uma consideração transcendental-subjetiva que, reconstruindo, avança retrospectivamente até seres-sujeitos de diferentes níveis de ordenação com uma consciência instintiva e uma comunicação instintiva?” (Husserl 7, Apêndice XLVI).

145

Cadernos Espinosanos XXVII

146

Esteban A. García

Merleau-Ponty em sua Fenomenologia da Percepção parece

no esquema husserliano com um visível nivelamento do tempo: o futuro

compartilhar essa concepção da natureza como passado obscuro e

é acrescentado como “um passado porvir” (Merleau-Ponty 10, p. 431).

misterioso: a opacidade da natureza resultaria da acumulação de camadas

Isto é assim desde que “algumas linhas intencionais traçam de antemão

transparentes de tempo. Assim é que o filósofo pode afirmar, por exemplo,

pelo menos o estilo do que virá (embora sempre esperemos, e sem dúvida

que “o mundo natural (...) sempre transparece no outro [o mundo cultural]”

até a morte, ver outra coisa aparecer)” (Merleau-Ponty 10, p. 424). Ainda

(Merleau-Ponty 10, p. 308). Tratar-se-ia em tal caso de uma opacidade

que a perspectiva fenomenológica leve em consideração o movimento

obtida gradualmente por distanciamento e indefinição, uma espécie de

desde o corpo vivido como abertura do espaço e do tempo, a realidade do

tranquilo anoitecer no qual a consciência adormeceria nos braços de sua

movimento é, todavia, coagulada no marco de um sistema de possibilidades

mãe, a natureza. Essa metáfora maternal poderia não resultar tão distante

de movimento. Certamente, nesse caso não se trata de um sistema espaço-

do modo de pensar do próprio Merleau-Ponty, se recordamos que a

temporal a priori, fechado e sem lugares ou direções distinguíveis, porém, o

Fenomenologia da Percepção caracteriza a consciência como “filha do

espaço fenomenológico somente pode abrir-se sob a condição de configurar

mundo”: “A consciência não se atribui este poder de constituição universal

a cada vez, em cada movimento e com cada nova perspectiva um sistema

apenas quando se passa em silêncio o acontecimento que constitui sua

de possibilidades que compõe harmonicamente todos os lugares e todos os

infraestrutura, que é seu nascimento. (...) Nascer é ao mesmo tempo nascer

tempos. “Todos” não significa “todos os pensáveis ou concebíveis”, mas

ao mundo e nascer do mundo” (Merleau-Ponty 10, p. 460). Contudo, as

“todos os que podem ser vividos” ou “todos os visíveis”, quer dizer: os que

ilusões da Fenomenologia da Percepção com respeito à questão do mundo

são invisíveis desde meu presente ou desde minha perspectiva. A definição

natural podem resultar problemáticas no contexto mais geral da obra, e

fenomenológica do movimento fracassa porque se o movimento surge a

provavelmente devem ser consideradas um esboço da concepção mais

partir do eu, mesmo sendo este eu concebido como eu-corpo ou poder de

articulada e significativa da natureza, a qual progressivamente passará ao

movimento, todo espaço que se abre volta a cada vez a fechar ou cristalizar

primeiro plano no pensamento posterior do filósofo.

o movimento que o abre.

Merleau-Ponty salienta na obra de 1945 que a concepção

O espaço vivido, certamente, não é limitado pelo infinito do

fenomenológica do tempo – ligada intimamente às do espaço e da natureza

possível pensado, mas se abre ao possível vivido, ao invisível para mim

– é demasiadamente modesta em sua consideração do futuro: o diagrama

agora, porém, visível para mim no passado e no futuro, e também ao visível

retilíneo husserliano se estende até abaixo das linhas oblíquas das retensões

para os outros. Contudo, essa abertura comporta uma nova limitação: o

e presuntivamente se completa acrescentado acima “a perspectiva simétrica

espaço se abre ao invisível que eu nunca vi ou verei, ou inclusive que

das protensões” (Merleau-Ponty 10, p. 425). Embora o tempo se abra

ninguém viu ou verá, porém, essa invisibilidade é concebida ainda como

desde um presente vivente, absoluto, um acontecer que ata completamente

um espaço contínuo e adjacente ao espaço visível. Trata-se de um espaço

a rede e que não pode ser localizado como qualquer outro ponto de cruz

invisível que acolhe o visível: nunca o espaço se abre de tal modo que

“no tempo”, a afirmação da “originalidade de cada perspectiva” concorre

a visibilidade se interrompa, o invisível não impossibilita a continuidade 147

Cadernos Espinosanos XXVII

Esteban A. García

da visão e o que foi visto antes nunca desaparece sem deixar rastro. A

(Sartre 16, pp. 284 e ss.). Em certas passagens de sua Fenomenologia

perspectiva fenomenológica considera que o movimento de meu corpo

da Percepção, contudo, Merleau-Ponty parece manter-se próximo da

abre o espaço, porém acomoda o movimento ao espaço aberto e considera

ortodoxia husserliana afirmando que a multiplicidade e a diversidade de

o último como uma abertura feita “na medida” do corpo que o abre. Pelo

espaços coexistem em simultaneidade, compondo-se e compondo o espaço

contrário, na experiência mesma, este abrir-se do espaço é na realidade

único do mundo, porquanto compartilham o passado comum da natureza

vivido como um movimento transbordante e excessivo, quando não

como “única mãe”, que ninguém conheceu nem pode conhecer, mas que

relativo e limitado, afortunado e falido, gozoso e agônico. O mundo ou

lhes deu vida a todos:

o espaço que nosso movimento corporal abre e ao qual se abre “nunca

A novidade da fenomenologia não estava em negar a unidade da experiência, mas em fundamentá-la diferentemente do racionalismo clássico. (...) O espaço natural e primordial não é o espaço geométrico e correlativamente a unidade da experiência não vem garantida por um pensador universal; (...) não me libera de cada meio particular ainda mais porque me ata ao mundo da natureza (...) que os envolve a todos (Merleau-Ponty 10, p. 308).

está completamente feito” (Merleau-Ponty 10, pp. 20, 341 e ss.) nem se acomoda à sua medida ou à sua “capacidade de fazer presa”: meu movimento sempre é efetivamente impulsionado e interrompido pela força de outros movimentos imprevisíveis e mais poderosos. Fiel à descoberta fenomenológica do movimento que abre o espaço ao invés de acontecer no espaço, Merleau-Ponty, seguindo Husserl, deve dar lugar neste espaço a uma diversidade de espaços que se abrem a partir de uma diversidade de corpos próprios, uma diversidade de comunidades culturais e de gerações. O espaço se abre a partir daqui, este centro em direção ao qual todos os olhares das coisas convergem como os raios de uma roda quando os olho. Porém, a roda da experiência não está perfeitamente centrada na medida em que as coisas não me olham somente, mas sempre estão desviando seu olhar a outro, situação da qual foi especialmente consciente Sartre ao escrever que “o próximo é a fuga permanente das coisas a um termo que tanto capto como objeto a certa distância de mim quanto me escapa enquanto desdobra em torno de si suas próprias distâncias”. O próximo abre outro espaço “e este espaço é feito com meu espaço”. Então, abrir o espaço ou desdobrá-lo é ao mesmo tempo abrir uma rachadura, uma fuga ou “uma hemorragia” no espaço já desdobrado por outro e expor-se a sofrer continuamente essas mesmas avarias e catástrofes, tal como agudamente o expressara Sartre 148

Merleau-Ponty nunca abandonou totalmente essa primeira intuição fenomenológica de uma unidade primordial de toda experiência, dos diversos sujeitos e comunidades, e inclusive de todos os seres vivos, porém, sem dúvida chegou a concebê-la de outro modo quando escreveu cerca de uma década mais tarde que embora “os homens e o tempo, o espaço sejam feitos do mesmo magma” ao modo de uma “montagem [emboîtement: incorporação, anexação), há uma sorte de transbordamento [empiétement] dos corpos uns sobre os outros, o que acontece a um, sua vida e sua morte, metamorfoseia a duração, a idade do outro” (Merleau-Ponty 13, p. 211). A unidade do tempo deve ser entendida sob esta perspectiva, como “a coexistência de tempos incompossíveis” (Merleau-Ponty 13, p. 207). Na percepção coexistem perspectivas que são ao mesmo tempo “incompossíveis e inseparáveis, e é nessas condições difíceis que buscamos o que conforma o tecido do mundo” (Merleau-Ponty 14, p. 154). O presente 149

Cadernos Espinosanos XXVII

Esteban A. García

é agora caracterizado como présent-gigogne (o que poderia ser traduzido

pensamento” (Merleau-Ponty 15, p. 19). Esta mesma ideia está presente na

por “presente desdobrável”, mas também por “presente frutífero”).9 À

sentença de Lucien Herr, inspirada em Hegel, a qual Merleau-Ponty gosta

luz desses cursos tardios a respeito do tempo, os “filhos” deste presente

de citar em seus cursos: “a natureza está sempre em seu primeiro dia”. A

frutífero o colocam em questão, e seu desdobrar o transforma em uma

natureza é nascimento, e o nascimento é o movimento que caracteriza a

dobra, mas de uma estrutura sem um centro fixo ao qual possa regressar:

vida ou o movimento vital por antonomásia. Em um sentido análogo o

“o passado que [o presente] contém o descentra, é outro mundo” (Merleau-

filósofo afirmará em seus cursos que “a vida não é como na definição de

Ponty 13, p. 207). A partir das notas posteriores à Fenomenologia da

Bichat, o conjunto de funções que resistem à morte, mas uma potência de

Percepção, o eu-corpo como esquema motriz não fornece a definição mais

inventar o visível”. 10

própria do movimento como aquele ponto zero desde o qual se abrem ou

Merleau-Ponty efetivamente procura, então, pensar o corpo vivente

se desdobram o tempo e o espaço, mas o movimento pode ser concebido

e a vida mesma a partir deles mesmos, e não sempre e somente a partir de

de forma mais radical, como movimento de nascer ou brotar que não

um jogo de oposições que os traem por excesso ou por falta. De acordo

abre o espaço, porém, o faz explodir, multiplica-o, coloca-o finalmente

com a interpretação aqui sugerida, eles recebem uma determinação positiva

em movimento no sentido próprio: faz real o impossível, não somente o

em termos de um movimento originário que é anterior a todo ente que se

inconcebível ou o que ninguém nunca pôde ver, mas o que não pode existir

move e a todo ser concebido no sentido unitário, total ou estático, já que se

no mundo como plexo do existente ou como alguma forma de totalidade.

trata em última instância do movimento de nascer ou brotar. Neste sentido, Merleau-Ponty propõe que haja um tipo de ser interrogativo que define

III. O corpo vivente e o movimento do nascer

11, p. 139). Assim como o movimento de nascer não acontece ao ser, mas

Neste sentido, podemos afirmar que aquele “mundo em estado

lhe é prévio – “faz ser” –, esta interrogação da vida permite ser entendida

nascente” correlato de um “sujeito em estado nascente”, cujo propósito de

naquele sentido radical pelo qual Merleau-Ponty se refere, nas primeiras

Merleau-Ponty era redescobrir, segundo afirmavam as primeiras páginas

seções do Visível e o Invisível, a um modo originário da interrogação

da Fenomenologia da Percepção, encontrará sua forma mais apropriada

que não deriva do indicativo (Merleau-Ponty 11, p. 171). Referindo-se

na natureza cujo “sentido originário” o filósofo persegue nos cursos

aos cursos de Merleau-Ponty acerca das investigações embriológicas,

sobre La Nature (1956-60). Trata-se de um mundo cujo ser consiste em

Bimbenet escreve:

um movimento nunca fechado ou totalizado, associado por MerleauPonty diretamente ao movimento da vida entendido, por sua vez, em termos de brotar, crescer e nascer: “Em grego a palavra natureza vem de phýo, que faz alusão ao vegetal; a palavra latina vem de nascor, nascer, viver. Há natureza onde há uma vida que tem sentido, ainda que não haja 150

a vida, mais do que um ser positivo que lhe seja próprio (Merleau-Ponty

Contra a imobilização da vida perpetrada pelo mecanicismo e pelo finalismo, Merleau-Ponty afirma que “não há um ser positivo, mas um ser interrogativo que define a vida”. O organismo está sempre além de si mesmo, inclinando em direção ao futuro, porém sem que este futuro possa ser prefigurado de antemão sob a forma de um fim determinado. 151

Cadernos Espinosanos XXVII

“Há uma falta constitutiva que não é disto ou daquilo”, diz Merleau-Ponty, e assim, pois, há uma invenção do possível (Bimbenet 3, p. 156).

Bimbenet persegue essa noção da vida, ao longo das páginas de La Nature, como “ser incoativo” que sempre está começando (assim como se fala de “verbos incoativos”, que se referem ao começo de um processo, tais como “florescer”). A vida é “iminência”, “vazio do que virá”, “não ser operante” e “produtividade originária” nas definições de Merleau-Ponty citadas pelo autor, que as resume na noção de “advento” (événement), como “instituição e criação de sentido, abertura de dimensões inéditas” (Bimbenet 3, p. 146). Os movimentos da carne que descrevem as páginas do Entrelaço-o Quiasma do Visível e o Invisível também podem ser lidos nesta chave: as invaginações, dobras, deiscências, brotos, reentrâncias, multiplicações de folhas e de lábios que tornam sentiente o espaço sensível, assim como a sublimação do espaço sensível em pensamento, são descritos por Merleau-Ponty mediante uma profusão de figuras vegetais e sexuais que ilustram a cada passo o nascimento de novas dimensões do ser: um ser que é em si mesmo somente este movimento de fazer-se, desdobrar-se, diferenciar-se e multiplicar-se. Ora, já na Fenomenologia da Percepção pode-se ler, embora certamente em referências intermitentes, que o movimento vivido é vislumbrado como devedor deste movimento mais originário da vida, a qual é descrita mais fielmente pela última produção do filósofo. Assim, afirma Merleau-Ponty em 1945, por exemplo: “Eu não sou o autor do tempo, assim como não sou autor das batidas de meu coração, não sou eu quem toma a iniciativa da temporalização; eu não escolhi nascer, e uma vez nascido, o tempo funde-se através de mim, o que quer que eu faça”. A propriedade desta temporalização vital se mostra em que a novidade ou espontaneidade que pode introduzir minha ação sempre é devedora de uma originalidade mais radical própria à vida: 152

Esteban A. García

Uma ‘espontaneidade’ adquirida de uma vez por todas que ‘se perpetua no ser em virtude do adquirido’ (...) não se pode deduzir o tempo da espontaneidade. (...) a potência de ir além (...) nos é dada com a temporalidade e com a vida. Nosso nascimento, ou, como diz Husserl em seus inéditos, nossa ‘generatividade’, funda ao mesmo tempo nossa atividade” (Merleau-Ponty 10, p. 435).

Assim, se em sua obra de 1945 Merleau-Ponty busca na fenomenologia uma definição positiva do corpo em função de um modo original e originário de movimento, o filósofo já avança na direção de superar ou radicalizar a visão fenomenológica clássica ao discernir que o modo mais originário e o sentido mais próprio do movimento corporal é o nascer. Assinalamos anteriormente que naquela obra é sublinhado o fato de que a consciência não pode ser qualificada como constituinte do mundo, afirmando que, ao contrário, ela nasce no mundo: seu nascimento constitui “sua infraestrutura” mesma (Merleau-Ponty 9, p. 517). Essa consciência “nascida” é propriamente aquilo que Merleau-Ponty propunha descrever desde o prólogo de sua obra ao falar do sujeito em “estado nascente”, e é, por sua vez, esse sujeito “nascente” o que deveria assim ser identificado com o corpo “vivente”, se o nascer fosse o mais próprio do viver. A exclusão da possibilidade de um sujeito constituinte, afirma Merleau-Ponty, deriva da afirmação de “um mundo que nunca é, como disse Malebranche, mais que uma obra inacabada” paralela a de um corpo que, segundo a fala de Husserl citada por Merleau-Ponty, “nunca está completamente constituído”: um corpo que não apenas nasceu, mas que, como vivente, nunca deixa de nascer (Merleau-Ponty 9, p. 465). Também escreve Merleau-Ponty: “A esta unidade aberta do mundo deve corresponder uma unidade aberta e indefinida da subjetividade”, quer dizer, um sujeito que poderia ser caracterizado como perpetuamente nascente, 153

Cadernos Espinosanos XXVII

Esteban A. García

tal como continua propondo o resto do capítulo citado – “O cogito” –,

entendido como totalidade ao menos presuntiva. Trata-se, afirma o texto,

que inclui um parágrafo referido especificamente ao nascimento, o qual

da aparição de novos campos de possibilidades, quer dizer, de uma peculiar

vale a pena citar in extenso neste contexto:

“atualização” (no sentido de “fazer-se”) do que antes não era possível, o

Certo dia e de uma vez por todas algo começou que, mesmo durante o sono não pode mais parar de ver ou de não ver, de sentir ou de não sentir, de sofrer ou de estar feliz, de pensar ou de descansar, em suma, de se ‘explicar’ com o mundo. Aconteceu não um novo lote de sensações ou de estados de consciência, nem mesmo uma nova mônada ou uma nova perspectiva, já que não estou fixado em nenhuma e posso mudar de ponto de vista, sujeito apenas a sempre a ocupar um ponto de vista e a ocupar somente um a cada vez – digamos que aconteceu uma nova possibilidade de situações. O acontecimento de meu nascimento não passou, não caiu no nada à maneira de um acontecimento do mundo objetivo, ele envolvia um porvir (...) Doravante havia um novo ambiente, o mundo recebia uma nova camada de significação. Na casa onde nasce uma criança, todos os objetos mudam de sentido, eles se põem a esperar dela um tratamento ainda indeterminado, alguém diferente e alguém a mais está ali, uma nova história (...) acabou de ser fundada, um novo registro está aberto. Minha primeira percepção, com os horizontes que a rodeiam é um evento sempre presente (Merleau-Ponty 9, p. 465, 466).

é perturbado, transformado ou criado. Em segundo lugar, este nascimento como realização do impossível e criação ou invenção do possível acontece simultaneamente como movimento de fazer-se ou de nascer do corpo e do mundo. Embora no parágrafo citado se sublinhe a direção do sujeito ao mundo (o mundo “recebe uma nova dimensão de sentido”), podemos recordar outras afirmações mais enfáticas que se referem ao nascimento do sujeito no mundo e a partir do mundo: “eu sou uma dobra [do ser ou do mundo] que se fez e que pode desfazer-se” (Merleau-Ponty 9, p. 249). Em terceiro lugar, este movimento de nascer não é somente remetido ao passado como em outras ocasiões quando só se pretendia limitar o poder constituinte do sujeito opondo-lhe a precondição de um passado natural ou absoluto que às vezes se deslizava equivocamente a determinações anátomo-fisiológicas. Aqui se fala de um corpo nascente, cuja primeira percepção, aquela inauguração de um futuro não antecipável ou aquele surgir do inédito, “é um evento sempre presente”, correlato indissociável de um mundo que está “sempre no primeiro dia”. No marco da linha interpretativa aqui proposta, podem ser compreendidas também as frequentes alusões merleau-pontianas ao

Esta passagem comporta ao menos três particularidades que podem se destacar no marco da análise aqui proposta. Em primeiro lugar, o fato de que esse movimento de nascer, próprio ao eu-corpo, parece transcender o “movimento vivido” no sentido fenomenológico restrito, como mero desdobrar de perspectivas já latentes ou de novas perspectivas que reestruturam os horizontes já sedimentados e compõem sempre um “arco intencional” harmônico, cuja compossibilidade é garantida pelo mundo, 154

que não entrava no mundo como campo total de possibilidades, e que agora

corpo definido em comparação com a obra artística: “não é com o objeto físico que se pode comparar o corpo, mas com a obra de arte” (MerleauPonty 10, p. 167). A comparação aponta, nas análises de Merleau-Ponty, especialmente para a questão do “sentido aderente” ao suporte material ou aos “conteúdos sensíveis”: “é neste sentido que nosso corpo é comparável à obra de arte: é um nó de significações vivas” (Merleau-Ponty 10, p. 168). Contudo, pode-se ver ainda outro sentido desta frequente comparação do 155

Cadernos Espinosanos XXVII

Esteban A. García

corpo com a obra de arte, nem sempre explicitado por Merleau-Ponty,

du Collège de France 57-58”, en Chiasmi International, París, Mimesis/ Vrin, II, 2000. 4. Descartes, R., Los principios de la filosofía, Buenos Aires, Losada, 1997. 5. García, E. A., “La phénoménologie de l´expérience corporelle au delà du sujet et de l´objet”, In Chiasmi International, Paris, Mimesis/Vrin, IX, 2007. 6. Husserl, E., La tierra no se mueve, Madrid, Editorial Complutense, 1995. 7._______, Zur Phänomenologie der Intersubjektivität (Gesammelte Werke – Husserliana XV), The Hague, Martinus Nijhoff, 1973, Apéndice XLVI. 8. _______, Meditaciones cartesianas, México, FCE, 1996. 9. Merleau-Ponty, M., Phénoménologie de la perception, París, Gallimard, 1945. 10. _______, Fenomenología de la percepción, Barcelona, Planeta, 1994. 11. _______, Le visible et l’invisible. Suivi de notes de travail, París, Gallimard, 1964. 12. _______, L’ oeil et l’ esprit, París, Gallimard, 1964. 13. _______, Notes de cours au Collège de France 1958-1959 et 1960-1961, París, Gallimard, 1996. 14. _______, Signes, París, Gallimard, 1960 15. _______, La nature. Notes de courses du Collège de France, París, Éditions du Seuil, 1995. 16. Sartre, J.-P., El ser y la nada, Barcelona, Altaya, 1993.

porém sempre latente para o leitor; e este é o mais comum à “criação” artística. É justamente esse aspecto o que aparece mencionado no prólogo da Fenomenologia da Percepção em referência ao mundo e à filosofia: “o mundo fenomenológico não é a explicitação de um ser prévio, mas a fundação (...) do ser; a filosofia não é o reflexo de uma verdade prévia, mas, como a arte, a realização de uma verdade”. Este mundo “e a filosofia que o faz vir à existência manifesta não começa por ser possível: é atual ou real”. Trata-se neste caso, conclui o parágrafo, de “um ato violento que se verifica exercendo-se” (Merleau-Ponty 10, p. 20). The living body and the movement of the life in M. Merleau-Ponty and R. Barbaras Abstract: Firstly, the analyses here proposed focus on the interpretation of the Merleaupontyan corpus proposed by R. Barbaras in his Introduction à une phénoménologie de la vie, according to which the oscillations and ambivalences of Merleau-Ponty’s reflection on the body could be explained by the neglect of its basic living character. Secondly, we approach Merleau-Ponty’s philosophy as the project of finding in the body an original and absolute modality of movement as an opening of possibilities, a movement in which both the object that moves and the space that is opened by the movement are founded. Thirdly, by focusing on the notion of birth we propose that this singular modality of movement searched by Merleau-Ponty find its proper characterization as natural and vital movement, conciliating at least partially the perspectives of both philosophers. Keywords: Merleau-Ponty – Barbaras – Mouvement – Life - Corporeality Referências Bibliográficas 1. Barbaras, R., Introduction à une phénoménologie de la vie, París, Vrin, 2008. 2. _______, Le tournant de l’expérience. Recherches sur la philosophie de MerleauPonty, París, Vrin, 1988. 3. Bimbenet, E., “L’être interrogatif de la vie: l’historicité de la vie dans les cours

156

NOTAS 1. Na mesma nota citada por Barbaras, Merleau-Ponty reivindica um certo “valor do dualismo”: segundo o comentador “se trata de pensar uma univocidade que não comprometa a diferença da consciência” (Barbaras 1, pp. 80, 81). 2. Veja-se, por exemplo, Merleau-Ponty 10, pp. 288, 100. 3. No mesmo sentido, escreve Merleau-Ponty: “Meu corpo não é simplesmente um percebido entre os percebido, ele é medidor de todos” (Merleau-Ponty 11, p. 302); “A experiência de minha própria carne (...) me ensinou ela não nasce não importa onde, que ela emerge na recessão de um corpo” (Merleau-Ponty 11, pp. 24, 25). 4. Segundo afirma Merleau-Ponty, só porque “meu corpo que é um dos visíveis se vê também a si mesmo” pude se realizar “a milagrosa promoção do Ser à ‘consciência’, ou como dissemos, a segregação do ‘dentro’ e do ‘fora’” (Merleau-Ponty 11, pp. 157, 158). 5. A respeito, cf. García 5, p. 9. 157

Cadernos Espinosanos XXVII

6. “É essencial para a coisa e para o mundo o que (...) nos permitam algo mais por ver” (Merleau-Ponty 1, p. 146). 7. A referência a um fundo indefinido aparece nas últimas páginas de O Olho e o Espírito (Merleau-Ponty 8). 8. Assim se afirma que ao recordar um momento, A é dado “por transparência através de A’ (...) e assim sucessivamente como vejo o ladrilho através das massas de água que deslizam sobre ele” (Merleau-Ponty 10, p. 425). 9. Também um presente de “imbricação”, “montagem”, “acoplamento” ou “embutimento”: gigogne se aplica às mães de muitos filhos, aos móveis e utensílios desdobráveis e às bonecas russas. 10. O texto correspondente aos cursos sobre a natureza é citado em Bimbenet 3, p. 161.

A experiência da falta e o mistério do desejo Silvana de Souza Ramos*

Resumo: O artigo analisa a importância da leitura da obra de Merleau-Ponty no interior da construção da filosofia de Barbaras. Por um lado, trata-se de compreender os limites do corpo próprio para dar conta do a priori correlacional exigido pela fenomenologia. Por outro lado, buscamos desvelar, nos desdobramentos da filosofia da vida proposta pelo filósofo, um horizonte de novos problemas, referidos especialmente à descrição da peculiaridade do desejo humano frente à vida entendida num sentido mais geral. Palavras-chave: Barbaras, Merleau-Ponty, vida, desejo, intencionalidade, mundo.

1. A originalidade de um pensamento pode ser definida por sua capacidade de revigorar certos temas herdados da tradição, conferindolhes um sentido ainda não explorado, uma direção ou um alcance antes invisível. Isso não significa apenas dar um novo significado a determinado conceito ou, ainda, inventar novos conceitos, mas, sobretudo, retomar uma questão – desvinculando-a de certos pressupostos naturalizados ou cristalizados pelo pensamento vigente – de modo a produzir uma resposta inédita. Por um lado, isso exige que o pensador se situe na perspectiva de uma determinada corrente filosófica: o pensador é inicialmente o aprendiz de certa maneira de transitar pelo terreno da idealidade. Por outro lado, não basta incorporar esse estilo: é preciso desdobrá-lo, isto é, assumir a tarefa de pensar por si mesmo. É por isso que uma tradição filosófica só pode enriquecer, ou seja, ampliar nossa potência de pensar, na medida em que se diversifica por meio do trabalho de pensadores individuais. * Pós-doutoranda pelo Departamento de Filosofia da USP (bolsista Fapesp). 158

159

Cadernos Espinosanos XXVII

160

Silvana de Souza Ramos

Não há dúvida de que Renaud Barbaras contempla essas

perspectiva aberta por Merleau-Ponty – a qual pretende dar conta do a priori

condições: afinal, ele retoma e desdobra um estilo de pensamento, a

correlacional, sem perder de vista o pertencimento do sujeito ao mundo –

saber, a fenomenologia. Seu percurso filosófico se inicia com uma leitura

mostrando que tal intuito só pode ser resolvido mediante uma abordagem

cuidadosa de Merleau-Ponty, centrada sobretudo na análise da ontologia

criteriosa do fenômeno da vida (a um só tempo leben e erleben). Sendo

indireta proposta pelo filósofo francês. O trabalho de leitor – publicado

assim, por outro lado, os demais interlocutores de Barbaras aparecem

em seus dois primeiros livros, De l’être du phénomène. Sur l’ontologie

como figuras que desenham no campo teórico diversas abordagens da

de Merleau-Ponty (1991) e Le tournant de l’expérience. Recherches sur

noção de vida, sem, contudo, dar conta de sua caracterização, quer dizer,

la philosophie de Merleau-Ponty (1998) – não pode ser resumido a um

sem responder às dificuldades colocadas pela obra de Merleau-Ponty.

simples comentário estrutural, uma vez que teve o mérito de alavancar

2. Isso significa que para compreender a filosofia de Barbaras é

Merleau-Ponty ao primeiro plano da cena contemporânea, libertando-o

preciso inicialmente pôr em relevo a dificuldade imposta pelo ponto de

da sombra projetada por Sartre. Sob a pena de Barbaras, Merleau-Ponty

partida do corpo próprio. No prefácio de Vie et intentionnalité. Recherches

deixou de ser visto como um mero existencialista coadjuvante ou como

phénoménologiques (2003), Barbaras oferece uma formulação do eixo central

um pensador político imerso em suas próprias ambiguidades. Com efeito,

de sua investigação, quando pergunta: “qual é o sentido de ser do sujeito

a leitura de Barbaras mostrou que a obra de Merleau-Ponty elabora de

percipiente (quer dizer, da intencionalidade) enquanto ele pertence ao mundo

maneira pertinente as questões centrais da fenomenologia ao reivindicar

sem, contudo, existir sob o mesmo modo que os outros entes porque é a partir

como condição para o desvelamento do a priori correlacional – isto é,

dele que eles aparecem?” (Barbaras 7, p. 12). Essa questão pressupõe uma

para o entendimento rigoroso da abertura originária do sujeito ao mundo

investigação fenomenológica segundo a qual o centro da pesquisa deve ser

– a consideração intransigente do caráter encarnado e intramundano da

ocupado pela relação originária entre sujeito e mundo. Quer dizer, trata-se de

subjetividade. Contudo, esse trabalho de interpretação deu ensejo a uma

evitar a reificação dos termos, o que significa mostrar que a relação os precede:

nova perspectiva, já que o caminho percorrido por Barbaras o fez descobrir

afinal, não há sujeito que não seja aberto ao mundo; inversamente, o mundo

na empresa merleau-pontiana um verdadeiro limite, o que o levou a dar

só pode aceder à fenomenalidade, isto é, aparecer, para um sujeito. Donde a

um passo além, isto é, a produzir seu próprio pensamento. Não devemos,

necessidade de investigar os termos da relação preservando a peculiaridade

evidentemente, negligenciar o fato de que o filósofo se dedicou ao estudo

de cada um deles, o que permite evitar a subordinação de um ao outro, pois

de diversos pensadores – Husserl, Freud, Lacan, Bergson, Henri, Patocka,

o surgimento da visão é ao mesmo tempo a vinda de um ente à visibilidade.

Lèvinas, entre outros. Porém, é preciso salientar que a obra de Barbaras –

Em outras palavras, nenhum dos lados existe antes da relação; assim como

até o presente momento – pode ser sintetizada, por um lado, pela tentativa

nenhuma visada pode suprimir o jorrar das aparições. É preciso, pois, dar conta

de se desvencilhar dos limites do corpo próprio para adentrar a camada

da relação para que os termos sejam trazidos à luz. Essa é a única via de acesso

mais profunda do ser intramundano da subjetividade, designado pela

ao ser do sujeito: pensá-lo como aquele que traz o mundo à visibilidade, sem,

transitividade inerente à vida. Em outras palavras, trata-se de radicalizar a

contudo, suprimi-lo em sua alteridade em relação ao que aparece. 161

Cadernos Espinosanos XXVII

162

Silvana de Souza Ramos

Ora, a grande contribuição de Merleau-Ponty para esclarecer esse

Por isso, para dar conta do acesso do sujeito encarnado ao mundo,

problema foi ter aprofundado a perspectiva husserliana segundo a qual

Merleau-Ponty defende que é a intencionalidade operante (fungierende

a percepção só pode ter um acesso inadequado ao mundo, porquanto a

Intentionalität) – e não a intencionalidade de ato – que originariamente

doação por perfis obriga o sujeito a uma exploração que nunca se completa.

anima a experiência concreta (Merleau-Ponty 13, p. VIII). Tal

Essa inadequação não se deve a uma limitação de nossas faculdades,

intencionalidade não visa o conhecimento ou a representação de objetos,

pois ela tem um escopo essencial: até mesmo deus apreenderia o mundo

ao contrário, ela estrutura uma relação de ser no mundo, espécie de

inadequadamente através da percepção. Decerto, o objeto se ausenta na

conhecimento prático que é um modo original de acesso ao mundo. Com

medida em que se apresenta, já que um perfil anuncia indefinidamente outro,

efeito, o debate merleau-pontiano acerca da redução fenomenológica tem

de modo que o sujeito da percepção jamais pode se apossar do mundo,

um papel fundamental, pois ao recusar a originalidade da intencionalidade

pois a doação nunca é exaustiva. No plano da fenomenologia de Merleau-

de ato, Merleau-Ponty busca recuperar o mundo da vida que o próprio

Ponty, a inadequação garante a transcendência do mundo, salvaguardando

Husserl de Krisis entendia como a camada da experiência negligenciada

o caráter originário da correlação sujeito/mundo. Ao mesmo tempo, ela

pelo racionalismo clássico. Segundo Husserl, a racionalidade moderna

recusa o ideal de objetividade pura preconizado por Husserl e sustentado

nasce quando acontece uma mutação no emprego das matemáticas que

pela prerrogativa de ausência de limites da razão objetiva.

permite a conquista do infinito, ou, mais precisamente, quando se define

Sabemos que Merleau-Ponty busca recuperar o mundo da vida mediante

a racionalidade como tarefa infinita. O que dá ensejo a essa mutação é

a descoberta de um sentido originário do mundo anterior ao saber objetivo. Por

a compreensão de que o espaço vivido não comporta a perfeição das

isso, desde o prefácio da Phénoménologie de la perception, o filósofo afirma

formas matemáticas: o espaço vivido é o lugar das gradações ou do

a necessidade de que “a reflexão radical seja consciente de sua dependência

inexato. Torna-se necessário, então, submetê-lo a um ideal de perfeição

em relação a uma vida irrefletida que é sua situação inicial, constante e final”

situado no infinito, onde as formas alcançariam a perfeição geométrica.

(Merleau-Ponty 13, pp. VIII-IX). Assim, Merleau-Ponty salienta que a redução

Como observa Barbaras, o objeto científico, concebido sob o paradigma

fenomenológica não deve ser um retorno idealista à consciência constituinte,

matemático, é “o produto de uma idealização, quer dizer, de uma

pois a redução completa configuraria, na verdade, uma reflexão incompleta,

forma obtida pela passagem ao limite no seio de um processo infinito”

já que perderia a facticidade originária do sujeito e do mundo, anterior a

(Barbaras 6, p. 66). Sendo assim, o gesto galileano de matematização

qualquer síntese intelectual. Noutras palavras, se a redução fenomenológica nos

da natureza nada mais é do que a extensão de um ideal de objetividade

encaminhasse a um sujeito absoluto que acede às essências, e isso ao preço de

à totalidade da natureza. Ora, é esse gesto que funda a racionalidade

nos fazer perder a concretude do mundo indefinidamente aberto à percepção, ela

científica moderna e que consequentemente nos faz esquecer, esclarece

não cumpriria a promessa de nos desvelar o sentido originário da experiência, e

Barbaras acerca da posição merleau-pontiana, o sentido aderente ao

só nos forneceria mais uma construção reflexiva do mundo vivido por se alinhar

sensível e, por isso mesmo, anterior à transformação do mundo em

a uma atitude comum a todo intelectualismo.

objeto de conhecimento. 163

Cadernos Espinosanos XXVII

Aqui, de fato, Husserl oferece uma formulação interessante,

doação do mundo mediante perfis. Merleau-Ponty, ao contrário, pensando

pois o filósofo observa que o movimento galileano de matematização da

a transcendência de um modo não-objetal e não positivo “evita [segundo

natureza tem um duplo significado. Por um lado, ele revela como a física-

Barbaras] referir a intencionalidade a algo como uma representação ou

matemática torna possível transpor para o conhecimento da natureza o

uma apreensão de sentido, preservando assim seu movimento centrífugo e

método elaborado pela idealidade geométrica. Por outro lado, o método,

por isso mesmo a transcendência do pólo intencional” (Barbaras 7, p. 11).

porque concebido segundo um movimento de idealização da natureza, é

Noutras palavras, o sujeito encarnado visa um etwas, um invisível que não

uma espécie de subsunção do mundo da experiência, de modo que esta

pode se doar sob a forma do objeto, mas que está presente em cada aparição

se torna encoberta pela idealidade matemática. Surge então a necessidade

do mundo, sob o modo da ausência. O invisível não é, portanto, um objeto

de um retorno à experiência velada pelo processo de idealização. Noutras

que a consciência sobrevoaria no final do processo de determinação; pelo

palavras, o reconhecimento de que a ciência é uma idealização da natureza

contrário, ele é inatingível, é transcendência pura, “sem máscara ôntica”.

exige que se retorne ao mundo da vida no intuito de esclarecer sua

Daí que o sujeito permaneça indissoluvelmente ligado a um mundo que

originalidade própria e, consequentemente, sua diferença ou seu excesso

lhe escapa reiteradamente, de modo que o movimento que faz o mundo

em relação à objetividade científica.

aparecer preserva a diferença do sujeito, isto é, sua distância em relação à

É neste ponto, entretanto, que a fenomenologia de Husserl parece

exterioridade, a despeito de seu pertencimento ao mundo.

insuficientemente radical, aos olhos de Merleau-Ponty. Pois, na verdade,

Mas então é preciso perguntar: se Merleau-Ponty acerta na

Husserl afirma que o mundo da vida abriga as mesmas estruturas que

crítica ao primado husserliano do objeto ante a transcendência do mundo,

aquelas da ciência objetiva. Quer dizer, ele é habitado por coisas fechadas

onde está seu limite? A resposta reside no fato de que Merleau-Ponty, ao

sob um conjunto de determinações, o que as torna manipuláveis pelo

conceber o sujeito da percepção sob a figura do corpo próprio, acaba por

conhecimento científico. Em suma, isso significa que Husserl não desvela

perder o sentido da própria correlação; isto é, acaba por jogar fora o ganho

a originalidade do mundo da experiência – isto é, sua aparição pré-objetiva

representado pela recusa da originalidade da intencionalidade de ato.

–, pois, no final das contas, há uma continuidade eidética absoluta entre o

Segundo Barbaras, o que faz Merleau-Ponty em Le visible et l’invisible?

mundo da vida e o mundo idealizado da ciência. Quer dizer, a diferença

O filósofo opera uma descrição da experiência do tato, segundo a qual o

entre o exato e o inexato não ameaça em nenhum momento o pressuposto

corpo próprio, ao visar-se, sente-se apreendido como objeto, o que revela

fundamental de que o mundo da vida é um mundo de coisas acessíveis

que sua carne é também carne do mundo, isto é, que ele tem acesso ao

segundo um eidos .

mundo porque compartilha de seu ser. Ora, se o corpo é carne – elemento

1

164

Silvana de Souza Ramos

Esse resultado só é possível porque Husserl – mediante a famosa

comum aos entes –, não se pode compreender exatamente como ele pode

“segunda redução” – reintegra o exterior à imanência, como unidade de

ser “próprio” – isto é, não-mundo –, e, consequentemente, como ele pode

sentido, isto é, como objetividade circunscrita por uma consciência absoluta

se abrir àquilo que o excede, ou seja, à transcendência. Em suma, se o corpo

diante do mundo, o que acaba no limite por suprimir a distância inerente à

é no mundo porque é feito de mundo, não se pode explicar como ele se abre 165

Cadernos Espinosanos XXVII

Silvana de Souza Ramos

ao mundo exterior. Noutras palavras, o corpo, na experiência tátil, visa-

3. Isso significa que o pensamento de Merleau-Ponty, a despeito

se a si mesmo e se descobre mundo. Entretanto, isso, ao invés de marcar

da precisão com que levanta inicialmente o problema do a priori da

sua abertura ao que lhe é exterior, sinaliza seu fechamento numa espécie

correlação, exige a entrada em cena de outros autores, capazes de propiciar

narcisismo intransponível: o corpo é a um só tempo sujeito e objeto. Por

uma abordagem conceitual da vida – a um só tempo viver, no sentido de

isso, argumenta Barbaras, a reversibilidade carnal, ao mostrar que o tocar

estar vivo (leben, intransitivo), e viver, no sentido de experimentar algo

tem como contrapartida o ser tocado, retoma a dualidade sujeito/objeto

(erleben, transitivo) – passível de dar conta daquilo que de certo modo

no interior do corpo próprio, mas não garante a correlação sujeito/mundo.

antecede a própria existência encarnada, entendida como corpo próprio.

Dito de outro modo, o sujeito intramundano é o corpo próprio, mas é feito

Nesse desafio de investigar o caráter originário da vida – enquanto sujeito

do mesmo estofo do mundo; não há, portanto, diferença entre os entes

da correlação –, Barbaras encontra sempre, nalguma medida, os seguintes

mundanos e o sujeito que os faz aparecer. Há, pois, um elemento comum

problemas interligados:

que os permeia, mas isso finalmente não garante a intencionalidade. Daí

a) a redução da vida ao funcionamento do vivente.

que a intencionalidade, isto é, o eixo da correlação, se torne inexplicável.

O que significa que a vida é sempre pensada como propriedade

É preciso, pois, contra Merleau-Ponty, dar conta da diferença do sujeito

do vivente e não como aquilo que dá ensejo ao vivente. Noutras palavras,

em relação ao mundo: e isso só se realiza, segundo Barbaras, substituindo

parte-se do princípio de que o vivente é uma existência já realizada, capaz

o corpo próprio pela vida. É a vida que dá conta da relação simultânea

por isso de viver, e não uma produtividade que se confunde com o viver;

de pertencimento e de inadequação entre sujeito e mundo, reiterada pela

isto é, que se produz ao viver.

intencionalidade. Mas não se trata da vida tal como é pensada pela tradição, e sim da vida compreendida como desejo, ou seja, como abertura originária à transcendência, “verdade da intencionalidade” (Barbaras 7, p. 23). Chegamos, assim, à seguinte situação: por um lado, é preciso agarrar o ganho teórico de Merleau-Ponty, qual seja, a exigência da intramundaneidade do sujeito, a garantia de que ele não sobrevoa nem domina os entes mundanos porque não pode recolher o mundo no

b) a determinação do funcionamento do vivente como autoconservação ou sobrevivência. Quer dizer, sendo o vivente uma existência realizada, sua vida só pode ser ou a apropriação do exterior no sentido de preservar seu próprio ser, ou a resistência à ameaça vinda do exterior, a qual pode destituí-lo de seu ser. c) a assimilação da pulsão – que seria a verdade do instinto animal – à necessidade ou carência circunscrita.

interior de si. Por outro lado, é preciso que o enraizamento do sujeito

Esse aspecto é fundamental, porque mostra a ausência de erleben

não signifique sua identidade com o mundo, pois o sujeito não é um ente

no leben: o que define o animal é a pulsão, isto é, a necessidade de algo

entre os entes, uma vez que seu modo de ser difere dos outros entes: o

determinado e não a abertura à indeterminação do mundo. Noutras palavras,

sujeito é aquele que traz o mundo à visibilidade; ele não é simplesmente

a pulsão visa algo de que o animal carece, por isso a abertura do vivente é

um visível entre os visíveis.

na verdade a antecipação daquilo que ele busca no exterior. Não haveria, portanto, uma relação desinteressada do animal com o mundo. Em suma,

166

167

Cadernos Espinosanos XXVII

o animal não contempla verdadeiramente o mundo, já que só encontra nele aquilo que lhe interessa. O que nos leva ao último ponto. d) a concepção tradicional da vida engendra um corte radical entre vida e percepção, e é isso que no limite impede de tomar a vida – o devir encarnado do vivente – como a forma primordial da subjetividade, isto é, seu modo de ser originário. Pois, se a vida é essencialmente intransitiva, ela não pode ser o segundo termo da relação com o mundo; ela não pode ser, portanto, o sujeito da percepção. A abordagem de Heidegger é exemplar nesse sentido, como mostra a análise feita por Barbaras em Vie et intentionnalité. No curso intitulado Die Grundbegriffe der Metaphysik, o filósofo alemão aborda a animalidade através da ideia de pulsão. O intuito é mostrar que o animal – cujo comportamento é circunscrito pela pulsão – não pode ter acesso ao ente enquanto tal. É claro que, diferentemente da pedra, que é sem mundo, o animal tem de algum modo acesso à exterioridade, mas esse acesso é pobre de mundo. Isso porque a pulsão não comporta virtualidade, pois ela projeta antecipadamente o que pode realizar. Consequentemente, na pulsão, o animal não escapa verdadeiramente de si mesmo: pelo contrário, ele é tomado por si mesmo, quer dizer, está sob a égide de si mesmo porque só pode buscar no mundo aquilo de que carece (Barbaras 7, pp. 186 e ss.). Sendo assim, para o vivente, a exterioridade não aparece enquanto tal, ao mesmo tempo em que ele não se transforma na e pela relação, porque não há verdadeira correlação entre vivente e meio. Heidegger explica o modo de ser da pulsão pelo conceito biológico de desinibição, o qual implica uma relação restrita com o excitante. Nas palavras de Barbaras: o excitante só existe a serviço do que ele desinibe, é apenas seu próprio poder desencadeante e eis porque ele não pode dar-se, pois só aparece, por assim dizer, desaparecendo. Tal é o sentido verdadeiro da tese da pobreza em mundo:

168

Silvana de Souza Ramos

o animal está aberto ao que desinibe e não pode, portanto, ter mundo, pois desta abertura é «precisamente retirada a possibilidade de ver o que desinibe se manifestar enquanto tal» (Barbaras 7, p. 188).

4. Eis que se desenha o desafio de Barbaras frente à tradição: é necessário renunciar à ideia de pulsão (e a compreensão do instinto aí implicada), o que significa desvincular a vida de seu narcisismo intransponível, isto é, de sua incapacidade de contemplar o mundo de maneira desinteressada. Trata-se de chegar ao vivente partindo da vida e não o inverso, mostrando que ele não é uma existência determinada ou acabada, mas um processo de individuação que se confunde com a experiência transitiva do viver, como indicara Simondon em outro contexto2. Isso permitiria qualificar o dinamismo vital como autorrealização e não como autoconservação, o que implicaria, finalmente, caracterizar a pulsão como desejo, isto é, como abertura indeterminada à transcendência. Eis os três momentos constitutivos de uma nova abordagem da vida através dos quais Barbaras realiza o salto teórico fundamental que permite mostrar que no desejo, pulsão e percepção se encontram, ou, melhor, que nele essa dicotomia é superada. Assim, a vida pode finalmente ocupar o lugar do sujeito da correlação. Mas esse percurso sugere um esclarecimento acerca do modo de ser do desejo, isto é, exige afastá-lo de qualquer identificação com a carência ou a necessidade. O desejo é o devir da vida na medida em que se reporta à exterioridade. Ele não é necessidade de alguma coisa que se poderia nomear ou enquadrar na forma do objeto. Assim, enquanto a necessidade ou a carência supõe a plenitude de um sujeito que precisa se preservar, o desejo supõe um sujeito que está constantemente em questão, porque o seu movimento em direção ao mundo é sua própria realização. Contudo, essa realização é sempre frustrada, porque o desejo não visa nada, ele tende 169

170

Cadernos Espinosanos XXVII

Silvana de Souza Ramos

à totalidade e essa não pode ser determinada, isto é, não pode aparecer.

própria extinção. O mistério do desejo reside em que aquilo que lhe “falta”

Assim, em cada visada, o desejo se determina momentaneamente, para

ou, mais precisamente, o que o constitui como “falta” – o que o coloca em

remeter-se além do que atualmente visa. Parafraseando uma formulação

contato com a distância inexorável do mundo – é exatamente a ambição por

de G. Lebrun em seu comentário sobre a razão kantiana, o desejo visa um

aquilo que poderia dissolvê-lo (porque o destituiria de sua falta constitutiva,

além que não se resolve na forma do ali, isto é, ele deseja desfazer uma

fazendo-o dissolver-se no mundo). Sendo assim, enquanto viver, o desejo

distância que se reitera em cada momento de presença ou de proximidade.

só pode ser apreendido como falta porque só encontra na exterioridade a

Em suma, o desejo é desejo de nada, de nada objetivo; ele não está atado

ausência daquilo que busca, sob o risco de esfacelar-se.

a nenhum objeto, no sentido de que nada pode preenchê-lo, e, por isso

É por isso que Barbaras se refere, muito rapidamente é verdade, à

mesmo, ele é suscetível de tudo acolher. Pois, relacionando-se com o que

figura do melancólico como expressão do desejo primordial, uma vez que

está além de todo objeto finito, ele abre uma transcendência pura, que não

a verdadeira busca é a busca sempre frustrada de si mesmo na alteridade

é a transcendência de um transcendente – ou de objetos determinados –, e

(o desejo é a ambição de abraçar a plenitude); busca que se realiza sob

no seio da qual a aparição pode finalmente ter lugar.

a forma da pulsão de morte, isto é, como tentativa frustrada de reunir-se

Mas isso não resume o que se pode falar acerca do desejo. Com

com a exterioridade. Por isso, a morte não é uma possível destruição que

efeito, sua insatisfação intrínseca e seu devir inelutável remetem a uma

ameaça a vida do exterior (como pensavam os teóricos da vida circunscrita

experiência originária do si constituída na distância. Uma vez que no

sob uma essência determinada), mas aquilo sobre o que o desejo tem de

desejo o sujeito se torna o que ele é, há que se admitir que o desejo é desejo

triunfar, intensificando a inadequação inerente à vida. Afinal, a busca da

de si por intermédio do transbordamento na exterioridade. Nas palavras

proximidade absoluta só poderia se realizar plenamente através da morte.

de Barbaras: “no desejo o outro é identicamente o que manifesta o si e o

A morte está, como diz Barbaras, atrás da própria vida.

que o nega: a insatisfação do desejo, enquanto desejo de si, corresponde

5. A abordagem de Barbaras fornece diversos ganhos teóricos,

precisamente ao fato de que o outro só apresenta o si como sempre

embora coloque problemas os quais eu gostaria de destacar e de discutir

ausente” (Barbaras 3, p. 304). O que equivale dizer que o outro é sempre a

através de um novo embate com Merleau-Ponty. Por um lado, estamos

experiência da perda – ou da “falta” – de si.

diante de uma profunda reflexão sobre o tema da vida, capaz de dissolver

A exploração da dinâmica do desejo revela, portanto, sua

as perspectivas tradicionais que nos impedem de vencer os limites das

insatisfação constitutiva, a qual dá sentido à motricidade inerente ao viver,

filosofias centradas na figura do sujeito de sobrevoo – sendo assim,

pois o encontro com a alteridade é distância de si e do mundo (de tal modo

Barbaras retoma e revigora o projeto merleau-pontiano de produzir

que a proximidade e a distância originárias são a condição da experiência

uma fenomenologia não-idealista. Afinal, pensar o sujeito como desejo

do tempo e do espaço objetivos). A presença do mundo é sempre ausência

significa verdadeiramente compreendê-lo em seu devir e em sua abertura

do que é visado pelo desejo; simultaneamente, essa distância do mundo faz

ao transbordamento do mundo, pois a vida se produz no interior da

surgir um sujeito sempre faltante, falhado, cujo preenchimento seria sua

experiência e não pode ser absorvida por um princípio de razão suficiente. 171

Cadernos Espinosanos XXVII

Silvana de Souza Ramos

Por outro lado, a identificação entre vida e desejo – uma vez que desfaz a

lições de Merleau-Ponty é ter mostrado que a intersubjetividade é inerente

cisão entre viver e perceber – abre a possibilidade de recusar a distinção

ao sujeito: o sujeito não é apenas abertura ao mundo que o ultrapassa; ele

estanque entre instinto e libido: a vida é desejo, quer dizer, ela não pode

é presença/ausência do e para o outro. Isso não é de modo algum derivado

ser considerada como uma coisa incapaz de experiência, exatamente

em Merleau-Ponty. Afinal, como sair do solipsismo ou do narcisismo sem

porque ela é intrinsecamente experiência . Contudo, esse percurso me

passar pelo outro, isto é, sem se defrontar com o olhar alheio? Ora, para

leva a algumas questões, as quais na verdade expressam ausências ou

responder a essa dificuldade, no caso de Merleau-Ponty, não basta abrir

limites dessa retomada do problema da correlação e da questão do sujeito

o sujeito para o mundo já que a formação dos sujeitos e a experiência de

enquanto desejo. Falo de ausência no sentido que Barbaras a entende:

qualquer objetividade – ou da exterioridade num sentido mais amplo –

como aquilo que é exigido pela presença, isto é, aquilo que me causa

exigem a aparição de outros que compartilhem um mundo comum5.

3

ansiedade porque considero que já está lá virtualmente, ainda que não

momento trate do passado, a não ser como morte. O passado seria a

seja tematizado diretamente. Os desenvolvimentos do pensamento de Barbaras ainda não

proximidade absoluta em relação à qual o desejo tem o sentimento de

resolvem um problema crucial: como pensar os diferentes modos de vida,

nostalgia. Quer dizer, o passado é a completude de certo modo perdida e, no

isto é, como dar conta de seus níveis de complexidade? Não tocando nessa

limite, ansiada pelo desejo sob a forma da pulsão de morte. Evidentemente,

dificuldade, Barbaras deixa em aberto outra pergunta: como diferenciar

essa formulação dificilmente poderia se adequar ao pensamento de Merleau-

uma vida que produz espécies de uma vida que produz cultura, isto é,

Ponty6. Na Phénoménologie de la perception, o passado são os poderes

como dar conta da vida humana propriamente dita? Vejamos como tais

corporais reificados na forma de hábitos, ou seja, de resíduo empírico

dificuldades se configuram.

(lembremos que o hábito é a queda no empírico daquilo que um dia foi

Em primeiro lugar, causa estranheza o primado da melancolia no

criação). Sendo assim, o sujeito encarnado oscila entre a criação de novos

interior de uma filosofia da vida, pois ele mostra que estamos diante de um

comportamentos e a disposição de montagens adquiridas e sedimentadas

viver ainda solitário. Decerto, esse primado revela que há um investimento

em sua existência anônima ou corporal. Noutras palavras, o sujeito dispõe

originário em si mesmo, pois a busca pela proximidade absoluta é uma

de certos comportamentos adquiridos – ou instituídos ao longo de sua

busca por si mesmo. É claro que Barbaras fala várias vezes sobre o erotismo

vida – os quais são constantemente retomados em sua existência pessoal.

e o amor (anunciando inclusive que dedicará um livro a esse tema), mas em

Por isso, Merleau-Ponty afirma que o presente da experiência é denso,

nenhum momento outra vida aparece verdadeiramente em sua obra, já que

pois conta com o passado e se abre a um futuro onde o possível pode

nunca a intersubjetividade é abordada diretamente. Devemos considerar

desabrochar através da aquisição ou criação de comportamentos inéditos.

que estamos diante de um pensamento em construção, o que poderia

Mas isso não é tudo o que encontramos em sua obra. Merleau-

explicar por que esse tema ainda não foi tratado. De qualquer modo, tomo

Ponty tem uma belíssima abordagem do passado em seus últimos escritos,

aqui a liberdade de refletir a partir do que está dado . Sabemos que uma das

mas ela depende inteiramente de uma nova apreensão do passado e da

4

172

Em segundo lugar, é significativo que Barbaras em nenhum

173

Cadernos Espinosanos XXVII

Silvana de Souza Ramos

originalidade da intersubjetividade, pois se trata de dissecar como se

no interior da experiência acumulada – só assim ele pode ser um pivô capaz

constrói um imaginário ou uma espécie de história dos investimentos que

de abrir diferentes dimensões de experiência. É por isso que Merleau-

vão tramando a vida afetiva do sujeito. Isso significa que a experiência

Ponty aborda em seus últimos escritos a transitividade entre presente,

acaba por carregar certas imagens de conteúdo afetivo; esse conteúdo

passado e futuro, trazendo para a compreensão da temporalidade o modelo

é revigorado quando uma nova experiência se realiza, de modo que as

diacrítico, o que permite dar um novo sentido para a ideia de retenção. Por

aparições do mundo e dos outros ganham sempre uma nova espessura.

essa via, Merleau-Ponty abre um campo de pesquisa no interior do qual a

Noutras palavras, é o passado que dá densidade à experiência, a tal ponto

exploração do funcionamento da memória pode alavancar elementos para

que o inconsciente se torna totalmente exteriorizado em Merleau-Ponty,

que possamos dar acabamento a uma filosofia da vida, pois permitiria dar

uma vez que ele se cristaliza na exterioridade do mundo e contamina a

conta da complexidade das diferentes formas de vida. Noutras palavras,

relação entre o sujeito e aquilo que é trazido à visibilidade. Com efeito, o

o devir inerente à vida singular opera segundo seu poder de abertura ao

inconsciente é a carga afetiva visada na aparição externa, propiciada por seu

mundo: isso pode ser notado em toda e qualquer vivente. No entanto, é

modo diacrítico de doar-se. Isso nos leva a uma diferenciação importante.

preciso considerar que a vida humana produz um fundo de memória o qual

Nas primeiras obras de Merleau-Ponty, o inconsciente e o passado são de

dá densidade às suas visadas segundo um nível de complexidade que não

certo modo “interiorizados” no corpo próprio, na forma de hábitos, isto é,

pode ser encontrado na vida biológica.

sob a forma de resto empírico depositado no esquema corporal (aspecto

Em Barbaras, entretanto, não há ainda uma estratégia que permita

bastante criticado por Barbaras, uma vez que evidencia uma abordagem

pensar, num sentido mais concreto, a experiência da retenção, isto é, o

naturalista do corpo, presente na Phénoménologie de la perception).

acúmulo de experiência a partir do qual se delineiam a história individual e

Porém, este não é o caso do último Merleau-Ponty, porque então se trata

coletiva. Devemos salientar que o filósofo não aceita o conceito tradicional

de engendrar uma compreensão expressiva do passado, mostrando que ele

de retenção uma vez que ele remete ao primado da consciência – isto é, à

ronda a experiência como uma espécie de usina produtora de símbolos ou

ideia husserliana de vivido. Ora, é preciso dizer, contudo, que Merleau-

de matrizes simbólicas partilháveis .

Ponty dispensa o modelo idealista da retenção porque consegue transpor

7

Isso nos permite retomar o problema da correlação discutido por

o passado para a exterioridade, valendo-se inclusive de uma inovadora

Barbaras, agora nos termos do último Merleau-Ponty. Uma vez que o

teoria do imaginário. Segundo o filósofo, o passado é aquilo que viso na

passado dá profundidade à experiência presente, ele acaba por intensificar

profundidade dos entes, e isso não nos conduz apenas ao desvelamento

a distância dos entes e dos outros. Há em cada imagem do mundo mais do

de um desejo primordial de completude – testemunhado pela inelutável

que ela apresenta atualmente porque cada coisa remete a eventos passados

distância do mundo –, mas a uma abertura que não cessa de expandir-se, por

com os quais carrega algum tipo de ligação . Dito de outro modo, perante

conta da estrutura diacrítica – e simbólica – que rege a aparição dos entes.

a vida, um ente não é só a sua presença transbordante em direção a um

Não fornecendo ainda um substituto para a ideia de retenção, Barbaras

mundo presuntivamente visado, mas também tudo aquilo a que ele remete

assinala apenas que o passado é uma ausência que não pode apresentar-se

8

174

175

Cadernos Espinosanos XXVII

Silvana de Souza Ramos

(daí que ele se resolva na forma da nostalgia). Sendo assim, o anterior – no

8. Merleau-Ponty, M. La prose du monde, Paris, Gallimard, 2004. 9. ______. La Nature. Cours du Collège de France. Paris, Seuil, 1994. 10. ______. L’institution la passivité. Notes de cours au Collège de France – 19541955. Paris, Belin, 2003. 11. ______. Le structure du comportement. Paris, PUF/Quadrige, 2001. 12. ______. Le visible et l’invisible, Paris, Gallimard, 2004. 13. ______. Phénoménologie de la perception. Paris, Gallimard, 1945.

sentido do originário – é uma fratura, uma falta constitutiva do sujeito, que se repõe a cada nova visada do mundo. Porém, essa cisão originário, embora esclareça o a priori correlacional sem suprimir quaisquer dos termos – o que é um ganho teórico indiscutível –, não pode explicar ainda o que vem depois, isto é, o que se retém ao longo da reiterada experiência da falta, dando ensejo à cultura em seus diversos níveis propriamente humanos. The experience of the lack and the mystery of the desire

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. A respeito, cf. especialmente o cap. III da parte I de Le tournant de l’expérience. 2. Cf. G. Simondon. L’individuation psychique et collective. À la lumière des notion de Forme, Information, Potentiel et Métastabilité, Paris, Aubier, 2007. 3. É claro que a noção de experiência ganha aqui um sentido novo, já que ela se desvincula da idéia de vivido: o vivente, seja qual for, deve ser compreendido como um movimento de existência. Barbaras retira essa formulação da fenomenolgia de Patocka (cf. Barbaras 5, pp. 7-28). 4. As análises feitas neste artigo só consideram o que Barbaras publicou até Introduction à une phénoménologie de la vie, livro de 2008. 5. Sobre o assunto, são, por exemplo, decisivas as análises de Merleau-Ponty presentes no capítulo sobre o corpo como a expressão e a fala, da Phénoménologie de la perception, e o capítulo sobre o diálogo, da Prose du monde. Nos dois casos, o filósofo

1. Barbaras, R. De l’être du phénomène. Sur l’ontologie de Merleau-Ponty. Paris, Millon, 2001. 2. ______. Introduction à la philosophie de Husserl. Paris, Les Éditions de la transparence, 2008. 3. ______.Introduction à une phénoménologie de la vie. Paris, Vrin, 2008. 4. ______. Le désir et la distance. Introduction à une phénoménologie de la perception. Paris, Vrin, 1999. 5. ______. Le mouvement de l’existence. Études sur la phénoménologie de Jan Patocka. Paris, Transparence, 2007. 6. ______. Le tournant de l’expérience. Recherches sur la philosophie de MerleauPonty. Paris, Vrin, 1998. 7. ______. Vie et intentionnalité. Recherches phénoménologiques. Paris, Vrin, 2003.

mostra que a conquista do sentido se dá sob o registro da intersubjetividade, de modo que não haveria mundo humano fora de um sistema de relações. Esse problema é crucial para quem busca esclarecer a diferença entre a vida biológica e a vida humana. Ora, a discussão com Barbaras mostra que esse problema está intimamente ligado ao modo como se compreende a intersubjetividade, já que dela depende a profundidade ou a densidade da experiência. Quer dizer, é preciso abandonar as concepções tradicionais do vivente (tais como as analisadas criticamente por Barbaras) para que se produza uma fenomenologia da vida (sem o quê não se poderia escapar da filosofia da consciência e dos problemas que disso derivam), mas isso não nos dispensa do desafio de pensar como se produz a singularidade da existência humana no interior da vida comum. É por isso que não basta discutir a relação sujeito/mundo, é preciso dar o passo em direção ao outro, e mostrar que aí se realiza o corte entre vida biológica e vida humana, sem que isso signifique um abandono do primado da vida

Abstract: This paper analyzes the importance of the reading of the Merleau-Ponty’s work  within the construction of the Barbaras’s philosophy. On the one hand, it is to understand the limits of the body itself in order to account for the a priori required by the phenomenology. On the other hand, we seek to uncover, in the unfolding of the philosophy of the life proposed by the philosopher, a horizon of new problems, especially referred to the description of the peculiarity of human desire towards life understood in a broader sense. Keywords: Barbaras, Merleau-Ponty, life, desire, world, intentionality.

176

NOTAS

177

Cadernos Espinosanos XXVII

em proveito da consciência. Sendo assim, é possível defender que a compreensão da intersubjetividade em Merleau-Ponty – permeada pelo necessário trabalho crítico desempenhado por Barbaras – pode fornecer elementos para uma fenomenologia da vida, segundo caminhos ainda não explorados por Barbaras. A respeito ver S.S. Ramos. A prosa de Dora. Uma leitura da articulação entre natureza e cultura na filosofia de Merleau-Ponty. São Paulo: Edusp, no prelo. 6. A obra de Barbaras certamente tirará consequências dessa formulação, abrindo novos caminhos para se pensar a temporalidade. Contudo, o que me interessa aqui é iluminar as possibilidades abertas pelo pensamento de Merleau-Ponty ao confrontá-lo com as críticas de Barbaras. Sendo assim, devo salientar que Barbaras não desenvolveu ainda uma perspectiva para que se possa pensar como se dá o acúmulo de experiência. O passado em Barbaras é a nostalgia de uma completude perdida (e irrecuperável no nível da experiência vivente); ele não é algo que se desenha ou que se produz no interior da própria experiência. Voltaremos a esse problema adiante. 7. Dizer que o hábito é uma queda no empírico daquilo que um dia foi criação significa, no caso de Merleau-Ponty, afirmar que os comportamentos adquiridos se realizam tal como a experiência vital: eles permitem a adaptação ao meio – são normativos, portanto –, mas não são produtores de símbolos. A passagem do primeiro ao último Merleau-Ponty realiza essa virada: o filósofo deixa de compreender o acúmulo de experiência – isto é, o passado – segundo a queda no empírico, para compreendê-lo como produção simbólica. Defendo em minha pesquisa que essa passagem depende de uma nova teoria do imaginário, esboçada na obra final de Merleau-Ponty. 8. O que Merleau-Ponty chama de “sistema de equivalências”, o qual define o próprio tempo (cf. M. Merleau-Ponty 12, p. 235).

Renaud Barbaras e a vitalidade da fenomenologia1 Mariana Larison*

Resumo: A fenomenologia de Renaud Barbaras é uma das poucas que continua hoje tentando aprofundar, de maneira original, o caminho aberto pela fenomenologia husserliana. Mas qual é, precisamente, o caminho escolhido por Barbaras para se inscrever na tradição fenomenológica? De que modo se insere no diálogo aberto por esta tradição? Neste texto, tentaremos repor os problemas e conceitos principais que nos permitem compreender a continuidade e a ruptura que apresenta a fenomenologia barbarasiana em relação a esta tradição, assim como alguns dos limites de sua própria proposta. Palavras-chave: intencionalidade, fenomenologia, Barbaras, vida, desejo.

A obra do filósofo Renaud Barbaras parece se inscrever dentro da longa linha de pensadores que formaram, a partir do começo do século XX, a escola fenomenológica. Seu trabalho, tanto crítico quanto propriamente filosófico, aparece como um esforço por continuar e estender, um século mais tarde, os limites da pesquisa do campo fenomenal a partir de perguntas e motivos contemporâneos.2 Mas, se é claro que o projeto barbarasiano se inscreve no vasto campo da escola fenomenológica, não é tão óbvio de que modo se produz esta inscrição: em que sentido Barbaras é, efetivamente, um fenomenólogo? O que caracteriza seu pensamento como fenomenológico? Sua referência aos autores da tradição fenomenológica? Utilizar seu vocabulário? Participar * Pós-doutoranda do Departamento de Filosofia da USP (bolsista Fapesp).

178

179

Cadernos Espinosanos XXVII

Mariana Larison

de certos temas comuns? Ou a constatação de um verdadeiro diálogo,

fenomenológica, a noção de in-existência intencional. É a partir e contra esta

no qual certos problemas, conceitos e pressupostos são compartilhados,

e outras definições brentanianas que Husserl vai estabelecer o vocabulário

transformados e/ou superados de maneira propriamente fenomenológica?

fundamental da fenomenologia na 5.º Investigação Lógica (Husserl 7).

Procurar responder a estas questões nos obriga, porém, perguntar

Voltemos então ao primeiro capítulo do livro II da Psicologia.

primeiramente, de um modo mais geral, qual é o problema retomado na

Nestas páginas, Brentano distingue três características fundamentais que

fenomenologia barbarasiana que podemos reconhecer na instituição mesma

permitem delimitar um fenômeno como psíquico: um fenômeno psíquico

da fenomenologia e de que maneira a repetição deste questionamento, no

é sempre, nos diz Brentano, uma representação ou está fundado em

seu caso, produz novas formas e encontra novos limites.

representações; um fenômeno psíquico só é, continua o autor, acessível à percepção interna. E, finalmente, e sobretudo, o que distingue um fenômeno

I

psíquico de um fenômeno físico é seu modo de existência bem particular, denominado in-existência intencional. É precisamente nesta introdução do

Desta maneira, onde situamos o momento da “instituição da fenomenologia como movimento do pensar”? Esta pergunta seria, sem

problema da intencionalidade que nasce o percurso que nos levará até a fenomenologia barbarasiana:

dúvida, muito difícil de responder dentro dos limites de um artigo. No entanto, se a delimitamos no estrito limite do problema que nos orienta – isto é, com qual aspecto do movimento fenomenológico o pensamento barbarasiano pode se afiliar –, a questão nos parece bem menos complicada. Nesse contexto, com efeito, podemos situar tal momento no cruzamento de dois pensamentos e, mais precisamente, no diálogo aberto pela leitura husserliana do primeiro capitulo do livro II da Psicologia do ponto de vista empírico (Brentano, 6) de seu mestre Franz Brentano. Lembremos em que consiste, mais precisamente, este diálogo. Brentano escreve em 1874 sua Psicologia do ponto de vista empírico, obra fundamental da moderna psicologia experimental, a qual abre pela primeira vez o campo da psicologia como disciplina autônoma, distinguindo-a tanto da fisiologia quanto da filosofia. Ali se estabelecem, com efeito, critérios que permitiram delimitar o domínio próprio da psicologia como ciência dos fenômenos psíquicos, em oposição às ciências dos fenômenos físicos. É nesse contexto que surge, para a posteridade 180

Todo fenômeno psíquico se caracteriza por aquilo que os escolásticos da Idade Média chamaram de in-existência (Inexistenz) intencional (e também mental) de seu objeto, e o que nós chamamos, ainda que com expressões não totalmente inequívocas, a referência (Beziehung) a um conteúdo, a orientação (Richtung) a um objeto (pelo qual não temos que entender aqui uma realidade) ou a objetividade imanente. (Brentano 6, pp. 115 e ss. )

A intencionalidade introduz assim “um modo particular de existência de um objeto no espírito”. Mas, o que significa e de onde provém o termo “intencional”? Segundo as referências oferecidas por Brentano, a primeira figura à qual temos que remontar nesta arqueologia é ao ineludível Aristóteles (Brentano 6, 115, n. 3). Brentano nos oferece um exemplo do De anima para ilustrar o sentido do termo intencional: em DA 424ª19-21, Aristóteles fala com efeito de um modo de ser da forma 181

Cadernos Espinosanos XXVII

Mariana Larison

(sensível ou inteligível) que é recebida na alma (sensitiva o intelectual)

e ss.), pois é de certo modo contra sua maneira de compreender a teoria

sem a matéria. É este modo de existir da forma sem a matéria ao qual

brentaniana que Husserl tomará posição. Lembremos que Twardovski

faria referência a inexistência intencional.

encontra na existência mental e na referência a um conteúdo que define

Por outro lado, e ainda segundo as pistas que o próprio Brentano

a intencionalidade um tipo de cópia mental do objeto reproduzindo

oferece, seria preciso nos endereçarmos à tradição escolástica para dar

assim a velha teoria da imagem como representação na mente de um real

conta de alguns dos aspectos fundamentais desta noção, como é o caso

exterior. Em segundo lugar, temos a interpretação oferecida por Husserl

1) da teologia trinitária de Agostinho, a ideia da imanência no sentido

precisamente contra esta teoria da imagem e da representação em seu texto

de habitar-em, no interior do verbo; 2) na concepção tomista do Espírito

de 1894, “Vorstellung und Gegenstad” (Representação e Objeto), cuja

Santo ou o habitar-em da Trindade num sujeito; assim como a inerência do

primeira parte se encontra perdida e do qual só temos a segunda, “Objetos

pensado àquele que pensa (assim como o desejado ou querido).3

intencionais”, que será a base da 5.º Investigação Lógica.

Em qualquer caso, as sínteses que Brentano produz destes modelos

Na 5.º Investigação, Husserl retoma a caracterização brentaniana

(aristotélico, agostiniano e tomista) se baseiam no fato de que o modo de

dos fenômenos psíquicos para transformá-la completamente. Tal

existir intencional é um modo não-real no sentido dos fenômenos físicos

releitura se faz através de toda uma série de redefinições realizadas

que existem no espaço-tempo e sob relações causais, como aquele modo de

sobre as noções de consciência, de vivência, de ato intencional, de

existir que tem a pedra na alma, por exemplo. A pedra não existe realmente

representação e de juízo, cujo objetivo fundamental é (fazendo valer um

na alma, ela existe intencionalmente. Mas, ainda uma vez, como definir

Brentano contra o outro Brentano) abandonar completamente a ideia de

esse modo de existir intencional?

representação como imagem-cópia de um real.

Segundo a definição apresentada pelo filósofo austríaco, a

Para começar, o problema de Husserl já não é o da determinação

existência intencional refere-se indistintamente a 1) tanto a um modo de

dos fenômenos psíquicos, mas o da fenomenalidade enquanto tal. Na

existência mental distinta da existência física, quanto também a um tipo

descrição dessa fenomenalidade, ele encontrará elementos que pertencem

de objetividade imanente (que não é um tipo de existência mas um tipo

à consciência e outros que não fazem parte de sua natureza, mas que

de entidade particular). Além disso, a intencionalidade aparece também

participam dela.

2) como um modo de relação específica, mas esse modo determinado de

Dentro da consciência encontramos assim um fluxo de vivências,

relação se caracteriza como: (a) relação a um conteúdo ou como (b) a mera

algumas intencionais (os atos propriamente ditos) e outras não-intencionais

direção a um objeto.

(as sensações ou materialidades recebidas pelos sentidos). O fenômeno, o

Da ambiguidade desta definição vão se abrir múltiplas interpretações, entre as quais nos interessa mencionar somente duas. Em

182

que aparece, não é uma vivência: é o sentido dado pelo ato ou vivência intencional à sensação, materialidade ou vivência não-intencional.

primeiro lugar, aquela representada por Twardovsky em seu texto de 1894

Desse modo, nessa tríplice estrutura, Husserl apaga com um só gesto

“Conteúdo e objeto das representações” (Husserl-Twardovski 10, pp. 95

tanto a distinção entre o imanente e o transcendente quanto aquela entre a 183

Cadernos Espinosanos XXVII

Mariana Larison

imagem-cópia e a coisa: o objeto é sempre um sentido, o resultado de um

intencional, o “como” segundo o qual o ente aparece, frente à proposta

ato interpretativo sobre uma materialidade que nunca é dada em estado puro.

brentaniana de compreender a intencionalidade como um caráter da vivência.

Ao mesmo tempo, é a coisa mesma que aparece, pois não existe um modo

Por outro lado, no curso do semestre do verão de 1927, imediatamente

de aparecer que não seja através da forma dada por um ato interpretativo.

posterior à publicação de O ser e o Tempo, intitulado Os problemas

De onde se depreende que o fenômeno é a coisa mesma que está aí fora,

fundamentais da fenomenologia (Heidegger 11), Heidegger volta à noção

só que dada sempre de um modo particular e, nesse sentido, nunca dada

de intencionalidade, caracterizando-a como a estrutura do “se dirigir a”, cuja

completamente, nunca esgotada em suas possibilidades de doação.

essência fundamental Husserl elaborara nas Investigações Lógicas e nas

A estrutura fenomenal resolve o problema da delimitação

Ideias. Finalmente, no ensaio em homenagem ao 70º aniversário de Husserl

da existência imanente ou transcendente do objeto fazendo de toda

em 1928, intitulado Da essência do fundamento (Heidegger 12). Nele, o

objetividade um sentido que transcende a consciência ao mesmo tempo

filósofo reflete sobre o conceito de intencionalidade, com um duplo fim:

em que é constituído nela, um sentido apreendido intencionalmente sobre

por um lado, estender a noção de intencionalidade a todo o comportamento

uma materialidade sensorial. Por outro lado, os únicos elementos reais

do ente; e por outro, redirigir esta noção estendida de intencionalidade a

são as vivências, imanentes à consciência, que possibilitam a aparição do

seu fundamento, o que Heidegger chamará a “transcendência”.

fenômeno mas que, todavia, não aparecem. Até aqui nos ocupamos unicamente dos elementos básicos da

intencionalidade brentaniana o “se dirigir a” e a “relação a um conteúdo”,

concepção husserliana da intencionalidade, tal como estes são apresentados

Heidegger vai preservar só o caráter do “se dirigir a”, agregando os aportes

pela primeira vez na sua estrutura geral.

husserlianos do “como” ou do “na medida em que” deste “se dirigir”, e

Pois bem, frente a este primeiro momento fundacional da

estendendo tal estrutura a todo comportamento. Esta estrutura intencional

fenomenologia surge, durante os anos 1920, outra proposta de radicalização

é referida por sua vez ao fundamento último da transcendência constitutiva

fenomenológica do conceito de intencionalidade através da figura de Martin

de todo Dasein.

Heidegger e, com ele, a chamada virada ontológica da fenomenologia.

184

A partir destes textos, vemos que se Husserl preserva da

Como vemos, a partir desta crítica, a intencionalidade acaba

Curiosamente, Heidegger não se ocupa tematicamente do conceito

desacoplada, pela primeira vez, tanto da esfera das vivências quanto

de intencionalidade na sua grande obra de 1927, O ser e o Tempo, mas

da relação a uma objetividade para ser referida ao Dasein e a sua

em textos e cursos quase contemporâneos: por um lado, no curso de 1925

relação com os entes.

em Marburgo entitulado “Prolegômenos para uma história do conceito

Pois bem, a recepção francesa da fenomenologia, no começo

de Tempo” (semestre do verão de 1925) (Heidegger 13), onde exporá

dos anos 1930, tem como principal característica a de ter produzido

o que denomina “os conceitos fundamentais da fenomenologia”, isto é,

uma leitura híbrida destas duas orientações fundamentais do conceito

a intencionalidade, a intuição categorial e o a priori da correlação. Ali

de intencionalidade: o de ser, simultaneamente, uma propriedade da

destaca o fato de que Husserl conseguiu pôr em relevo, dentro da estrutura

consciência e da existência. 185

Cadernos Espinosanos XXVII

Mariana Larison

Devemos a Emanuel Levinas a primeira obra importante dentro

Em qualquer caso, o elemento marcante da leitura sartreana da

da recepção e da interpretação do pensamento husserliano na tradição

intencionalidade reside na crítica que este realiza de toda ideia de Eu

propriamente francesa da fenomenologia: a Teoria da intuição na

transcendental, mostrando que, na verdade, a consciência, em função de

fenomenologia de Edmund Husserl, de 1930 (Levinas 14). Esta é a

sua essência que é a intencionalidade, não pode ser considerada como

primeira exposição sistemática do projeto husserliano, sobretudo de

um polo pessoal de vivências, mas como um campo impessoal do qual se

Ideias (Husserl 8), no campo intelectual francês. Levinas atribui ali uma

irradiam atos.

inflexão ontológica à obra de Husserl, e chega a falar de uma teoria do ser

A consciência é nada mais do que uma pura espontaneidade sem

nas Ideias. Por não dissociar o aparecer e o ser, Husserl teria conseguido

vivências, uma pura negatividade, uma temporalidade que se constitui a

superar um problema já clássico no campo da epistemologia através de

si mesma e se recupera em seus noemas. Assim, na medida em que não

sua relocalização no seio de uma ontologia. Assim, na leitura levinasiana,

existe nenhuma dimensão da imanência mas um puro estar fora de si da

mais do que um projeto propriamente gnosiológico, a obra de Husserl

consciência, a fenomenologia não é um idealismo mas um realismo.

visa abordar de maneira renovada a questão do ser e da existência. A

Em sua obra de 1945, Fenomenologia da percepção, Merleau-

intencionalidade, finalmente, será identificada ao mesmo tempo tanto à

Ponty adotará a perspectiva fenomenológica partindo de uma decisão

forma da consciência quanto à sua transcendência.

fundamental: o sujeito da percepção não é a consciência, mas o corpo como

De maneira consequente a esta primeira leitura da fenomenologia

dimensão alheia à partição cartesiana entre res extensa e res cogitans. Na

husserliana e de seu sentido, inscreve-se a figura de Sartre, especificamente

perspectiva merleau-pontiana, o sujeito da intencionalidade é o corpo e

do “primeiro” Sartre, anterior a O ser e o nada.

não a consciência. O corpo tem seu próprio tipo de intencionalidade, a

Como sabemos, entre os anos de 1934 e 1939, Sartre se dedica

qual opera antes mesmo de toda tomada de consciência explícita sobre

ao projeto de escrever uma grande obra de psicologia fenomenológica,

o mundo. Merleau-Ponty denomina este tipo de intencionalidade de

O psíquico, que trataria reflexivamente as modalidades específicas da

“intencionalidade operante”, e toda a obra de 1945 é dedicada a tirar as

consciência intencional. Desse projeto só escreverá quatro obras: A

consequências de uma descrição rigorosa da percepção a partir desta

transcendência do Eu (1934); Esboço para uma teoria das emoções

intencionalidade particular.

(1937); A imaginação (1936); O imaginário (1936-1938).

A intencionalidade operante se confunde nestas descrições, uma

A leitura sartreana da fenomenologia tem duas características a

vez mais, com a transcendência heideggeriana enquanto movimento

princípio paradoxais: de um lado, e apesar de sua fascinação pela ideia da

anterior à intencionalidade de atos, movimento que parte dos entes em

intencionalidade, Sartre interpreta a fenomenologia como um realismo

direção ao ser, ao mundo ou horizonte de sentido e que permite ter um

(como mostram as conclusões de A transcendência do Ego); do outro

comportamento em relação a eles.

lado, assimila também as noções de consciência e existência e as fusiona

No entanto, Merleau-Ponty deixa de lado, no final de sua vida,

numa espécie de antropologia filosófica, seguindo uma tradução de

a descrição da experiência desde o ponto de vista do corpo próprio para

Dasein que fará época, isto é, como “realidade humana”. 186

187

Cadernos Espinosanos XXVII

Mariana Larison

tentar uma descrição do elemento comum ao corpo vivente e ao mundo, o

nos parece, Introduction à une phénoménologie de la vie é menos uma obra

que chamará de Sensível em si ou Carne, e do quiasma que estes conceitos

fenomenológica que metafísica, e portanto, os pressupostos que explicita

oferecem entre a ordem do senciente e do sensível.

podem ser lidos quase de forma independente das teses descritivas de Le

Pois bem, de uma maneira geral, podemos dizer que Barbaras

désir et la distance.

retomará desde aqui o problema da intencionalidade, radicalizando-o ainda

Em que consistiriam, pois, estas teses?

mais, sem perder porém o fio deste diálogo que funde, num mesmo gesto,

Como temos dito, o ponto de partida da fenomenologia barbarasiana

intencionalidade e existência, fenomenologia e ontologia.

é o problema da percepção entendido como o problema mesmo da fenomenalidade. A tarefa que se impõe, neste sentido, é a de pensar,

II

elaborar e determinar a estrutura da fenomenalidade, sem justapor a esta elaboração pressupostos externos à descrição mesma. O que caracterizará

Estamos agora em condições de retomar nosso problema inicial,

este tipo de análise como especificamente fenomenológica é assim, por

e repetir assim a questão: qual é o problema presente na fenomenologia

um lado, a adoção do método fenomenológico, isto é, o passo pela epoché;

barbarasiana que podemos reconhecer na instituição mesma da

por outro, a firme decisão de se manter fiel à estrutura do que aparece

fenomenologia como movimento do pensar, e de que maneira a repetição

tal como aparece, quer dizer, ao “como” de seu aparecer; e, finalmente,

deste movimento, no caso deste autor, produz novas formas e encontra

a aceitação do princípio base da fenomenologia, isto é, que a estrutura

novos limites? É a segunda parte desta pergunta o que deveremos

do aparecer supõe uma correlação essencial entre o que aparece e aquele

responder agora.

a quem aparece. É neste último ponto, cabe assinalar, onde se decide o

Dentro do extenso trabalho realizado durante os últimos 20 anos, as obras Le désir et la distance, Vie et intentionnalité e Introduction à

Pois bem, cada um destes aspectos, que fazem da filosofia

une phénomenologie de la vie são aquelas que apresentam com maior

barbarasiana uma fenomenologia, são precisamente aqueles mesmos

clareza a originalidade o projeto barbarasiano. Pois bem, e aqui

que a afastam, em primeiro e fundamental lugar, do pensamento do

apresentamos já uma primeira hipótese de trabalho, Le désir et la distance

próprio Husserl, mas também, de maneira geral, de seus sucessores

e Introduction à une phénoménologie de la vie podem ser lidas como duas

dentro desta tradição.

4

188

sentido mesmo da intencionalidade.

obras complementares, sendo a primeira uma apresentação estritamente

Lembremos rapidamente que depois da introdução do

fenomenológica das principais teses barbarasianas sobre a percepção, e a

vocabulário fundamental e do sentido da empresa fenomenológica

segunda uma formulação radical de suas consequências metafísicas. Vie

nos dois volumes das Investigações Lógicas, publicados entre 1901

et intentionnalité será, neste marco, uma coleção de magníficas notas de

e 1902 respectivamente, o projeto fenomenológico será mais tarde

rodapé deste projeto, no qual o autor explicita detalhadamente os diversos

cuidadosamente redeterminado com respeito aos seus procedimentos e

diálogos filosóficos que o levaram às suas próprias teses. Neste sentido,

aos seus campos de aplicação no primeiro volume das Ideias relativas a 189

190

Cadernos Espinosanos XXVII

Mariana Larison

una fenomenologia pura e uma filosofia fenomenológica, de 1913 (ano

para se transformar em coisa em-si. A estrutura do aparecer reenvia então

da segunda edição) das Investigações Lógicas. Husserl propõe, nas

de maneira essencial a um momento subjetivo. Toda a questão é como

Ideias I, um método de acesso aos fenômenos – acesso que permitirá

pensar este momento subjetivo, como pensar o sujeito da correlação ou,

a descrição propriamente dita – que consiste em abandonar a relação

simplesmente, o sujeito da intencionalidade.

natural e quotidiana com o mundo, pôr em suspenso nossa crença na

Então, podemos dizer que, seguindo a análise barbarasiana, o

existência efetiva do mundo, para podermos então nos concentrar

sujeito do aparecer é um momento dentro de uma estrutura e, não, uma

no sentido de ser do que aparece enquanto aparece, sem mais. Este

coisa. Ele é parte de uma estrutura maior que é a fenomenalidade mesma,

método de acesso é a chamada epoché fenomenológica, que implica

e é seguindo estritamente sua função dentro desta estrutura que ele deverá

correlativamente uma redução do fenômeno a um campo específico, o

ser caracterizado. Isso significa que o procedimento fenomenológico

campo fenomênico, aquele onde algo pode aparecer. Como temos visto,

barbarasiano exclui por princípio partir de um ente específico, seja este a

este campo é, no caso de Husserl, o campo da consciência, definida

consciência, o corpo próprio ou o Dasein, para depois fazê-lo suporte da

como um curso e fluxo de vivências. Barbaras entende a epoché num

estrutura do aparecer. Neste sentido, Barbaras compartilha com Sartre a

sentido diferente, similar ao da crítica heideggeriana e merleau-

intuição segundo a qual a subjetividade intencional só pode ser considerada

pontiana, mas também patockiana, de Husserl, segundo a qual o campo

como um puro impulso de saída para fora de si, uma negatividade.

da fenomenalidade não é equivalente ao campo da consciência. A

Em segundo lugar, porque é aquele para quem a fenomenalidade

redução que abre a epoché deve ser pensada então como a redução

aparece, o sujeito deve ser capaz de percepção, na medida em que sem a

ao aparecer sem mais, ou seja, sem pressupor, como seria o caso em

qual não haveria fenômeno. Neste sentido, a função de sujeito deve estar

Husserl, um ente positivo específico que ocuparia seu lugar. O que

sempre encarnada, pois só quem possui um corpo e é capaz de sentir, é

permite a suspensão de nossa crença familiar nas coisas e no mundo,

ao mesmo tempo capaz de percepção. Mas, diferentemente da perspectiva

isto é, a epoché, é uma volta ao mundo no que tem de incontestável, no

merleau-pontiana, isto não implica que sua origem deva se remeter ao corpo

fato de que “há”, de que algo aparece.

próprio, terceira entidade na qual a distinção sujeito e objeto se confunde.

O que a epoché apresenta então, na perspectiva barbarasiana, é

Neste ponto Barbaras se separa de Merleau-Ponty, mesmo do último, o

a estrutura mesma do aparecer. Os traços mínimos que constituem esta

qual levaria esta confusão ao elemento ontológico denominado Sensível

estrutura são: em primeiro lugar, o aparecer mesmo; em segundo lugar, a

em Si o Carne. A dualidade do senciente e do sensível é, para Barbaras, não

referência a uma totalidade dentro da qual algo em geral pode aparecer, e

uma resposta, mas o índice de um problema.

que não é outra coisa que o mundo mesmo como horizonte do aparecer.

A partir desta dupla exigência, então, a originalidade da concepção

Finalmente, a referência ao aspecto subjetivo do aparecer. Se o aparecer

barbarasiana da intencionalidade vai se desenhar em plena luz. O corpo do

é sempre aparecer para alguém, e sempre intencional, a aparição não

vivente é, com efeito, senciente e sensível: como isto é possível? O que é que

pode repousar sobre si mesma, pois, nesse caso, deixaria de ser fenômeno

define o corpo vivo para que possa ser, ao mesmo tempo, parte do aparecer 191

Cadernos Espinosanos XXVII

e aquele a quem o aparecer aparece? Pois bem, como já mencionamos, e

É pois a partir deste sentido fundamental do viver que a

em primeiro lugar, os corpos que percebem são corpos vivos. Em segundo

especificidade do viver humano, que nessa análise se determina a partir do

lugar, os corpos vivos se caracterizam pela sensibilidade. Finalmente, a

que poderíamos denominar um perceber consciente, pode ser pensado. A

percepção ou sensibilidade dos viventes reenvia, como contrapartida,

consciência, como traço específico de um certo tipo de vivente, o homem,

para a sua capacidade a se mover. A motricidade do vivente surge assim

é uma das possibilidades mesmas do movimento vital. A dimensão

como o índice de uma nova dimensão dentro da análise fenomenológica

propriamente psíquica não implica uma diferença substancial de certo tipo

do vivente intencional, uma nova dimensão mais profunda que a partição

de viventes, mas faz parte de uma totalidade orgânica e designa um modo

entre o senciente e o sentido.

de comportamento de certo tipo de organismos. Em termos barbarasianos,

Pois bem, o tipo específico de movimento do vivente não é

não se trata de afirmar “que os comportamentos humanos possam ser

extrínseco à percepção, como uma parte que se acoplaria mecanicamente

qualificados como tais em virtude da procedência de uma consciência,

a ela, mas é, ele mesmo, um tipo particular de percepção. Como Merleau-

quer dizer, de vivências; ao contrário, seu ser consciente remete a sua

Ponty tinha já mostrado magnificamente desde a época da Fenomenologia

humanidade como modo de comportamento específico de uma totalidade

da percepção, o movimento corpóreo supõe intencionalmente um fim

vivente” (Barbaras 2, p. 144).

e supõe, deste modo, a captação antecipada deste fim. Neste sentido, o

Pois bem, o que caracteriza todo vivente enquanto tal é que seu

movimento vivente supõe uma relação de sentido com seu objeto e,

modo específico de comportamento com seu entorno forma parte de sua

portanto, um modo particular de percepção.

própria totalidade orgânica. Como já bem mostraram os desenvolvimentos

Deste modo, estar em vida e tender a, ser vivente e experimentar

da etologia contemporânea, o vivente não se reduziria à extensão objetiva

algo, são dois aspectos correlativos do mesmo viver. O “se deter em”,

de seu corpo senão à totalidade que forma com seu entorno, ao que

característico da percepção, é um momento do movimento próprio do viver.

responde o conceito de comportamento. Neste sentido, o vivente é, por

Do mesmo modo, o excesso do movimento com respeito a suas aparições

definição, um ser cuja essência só se realiza na exteriorização. Ou, dito de

finitas – nas quais ele se detêm – é o que permite um prosseguir indefinido

outro modo, o vivente é um ser definido por uma falta de ser intrínseca.

a outras aparições. Por sua parte, o se deter da percepção é o que permite

Seguindo então esta característica fundamental, Barbaras pode afirmar

ao mesmo tempo um movimento que não cessará até que a vida cesse,

que: “O ‘movimento fundamental’ que, no coração do sujeito vivente, dá

movimento de atualização de um horizonte (o mundo) que é inesgotável.

conta da atividade perceptiva enquanto esta implica um automovimento,

Ora bem, o sujeito não deve ser entendido aqui como um ente

deve ser entendido como desejo” (Barbaras 2, p. 136). O desejo, como

que primeiro é e que depois se move, mas como o movimento mesmo,

tipo específico de movimento, será o nome final para esta função subjetiva

o impulso mesmo que vai se cristalizando em suas realizações mas que

encarnada à que reenvia a estrutura do aparecer.

sempre as excede, que é a soma delas mas que ao mesmo tempo não se reduz a nenhuma. 192

Mariana Larison

Como descreve, então, Barbaras, este movimento que pode dar conta tanto do movimento do viver em sentido amplo quanto daquela 193

Cadernos Espinosanos XXVII

Mariana Larison

dimensão do viver que chamamos consciência, conhecimento, ou

de tendência e aspiração, segundo um tipo especial de intencionalidade

subjetividade humana?

pulsional, irredutível à ordem das representações e, portanto, das

Barbaras procede uma caracterização do desejo em oposição ao

objetividades. Desejos, tendências, pulsões, instintos dariam conta assim

movimento regido pela necessidade: enquanto no caso do desejo, o objeto

de uma “relação a”, de um “tender a” algo que não é nem pode ser um

ao qual se aspira só o intensifica na mesma medida em que o satisfaz,

objeto. Contudo, lembra Barbaras, por não tirar as consequências últimas

no caso da necessidade o objeto acalma o movimento satisfazendo-o. A

desta gênese da intencionalidade de atos na intencionalidade pulsional, isto

necessidade, neste mesmo sentido, supõe uma falta determinada, é falta de

é, por não tirar as consequências desta primeira abertura indeterminada à

algo específico. O desejo, pelo contrario, não é falta de nada determinado:

transcendência que caracteriza a pulsão, Husserl não a interpreta como

seu tender é um puro transbordar. Assim, o objeto do desejo é, ele mesmo,

uma refutação da função propriamente objetivante da intencionalidade

apresentação de uma ausência, ausência do que não pode nunca estar

e a relega à pré-história de uma intencionalidade que só se realizaria

presente. O objeto do desejo nada mais é assim que a substancialização de

plenamente na sua função objetivante.

sua própria impossibilidade de satisfazer-se e, neste sentido, tal ausência de satisfação (natural) é seu modo mesmo de se satisfazer. Tal satisfação na

III

insatisfação é precisamente o que o diferencia de uma necessidade.

194

Si lembramos agora a estrutura do aparecer, em seu triplo momento

Se, como temos visto, a noção de intencionalidade nasce da

de aparecer, de horizonte correlativo deste aparecer e de momento subjetivo

decisão, epistemológica e ontológica, de dar conta da especificidade da

desta aparição, podemos dizer, seguindo a Barbaras, que o desejo, como

ordem psíquica em oposição à ordem física, não cabe dúvida de que a

“movimento a” que desenha um aparecer no qual se detêm ao mesmo

proposta barbarasiana representa o final de um longo percurso no qual

tempo que o transcende, em virtude do horizonte mesmo que o constitui, é

esta decisão primeira foi retrabalhada até inverter completamente seu

bem o novo nome do sujeito da correlação, aquele que se identifica com o

sentido originário. Todo o esforço de Barbaras pode se resumir, com

caráter intencional do aparecer.

efeito, no objetivo de escapar ao dualismo do psíquico e do corporal.

Desde o estrito ponto de vista da dimensão que chamamos

Assim, seguindo este percurso, podemos ver em que sentido o filósofo

consciência, a manifestação deste movimento do desejo se encontra,

vai tomando, desarticulando e reformulando os aportes de cada um dos

assinala Barbaras, nas análises que o próprio Husserl desenvolve a partir

membros do movimento fenomenológico. No interior de sua obra, vemos

dos anos 1920 nos manuscritos A VII recolhidos na Husserliana XIV

como Barbaras se apega ao caráter intencional do sujeito do aparecer e à

(Husserl 9). No marco da fenomenologia genética, com efeito, Husserl

indistinção entre a ordem do ser e do aparecer; mas temos visto também

elabora toda uma série de análises dos estratos mais profundos e originários

como ele tenta sair, contra Husserl, da cisão entre a dimensão absoluta

da consciência, ali onde se gestarão as raízes da intencionalidade dos atos

e constituinte da consciência — já não em sentido psicológico, senão

ou da intencionalidade objetivante, e que podem ser descritos em termos

transcendental —, e dar o lugar absoluto à estrutura mesma do aparecer, 195

196

Cadernos Espinosanos XXVII

Mariana Larison

na qual somente se pode afirmar que “há”, que algo aparece para alguém

aparece, certamente, muito mais elaborada no que temos chamado de sua

sobre o fundo de uma totalidade que co-aparece como horizonte. Temos

obra metafísica, Introduction à une phénoménologie de la vie, e através do

observado, para continuar, como, seguindo a tradição da que forma parte,

que Barbaras denomina uma antropologia privativa. Entretanto, parece-

Barbaras segue a ideia heideggeriana de um movimento de transcendência

nos que o problema subsiste de um modo fundamental. Dito de outro

anterior à intencionalidade de atos e que a funda, mas também como

modo, antes de responder a questão de como é possível a especificidade da

denuncia, à diferença de Heidegger, a impossibilidade de pensá-la fora de

dimensão humana frente à animal, Barbaras parte da evidência de que esta

sua encarnação. Vimos que, do mesmo modo que Sartre, Barbaras tenta

especificidade se encontra naquilo que poderíamos chamar de percepção

pensar a subjetividade como negatividade em ato, mas como, diferente deste,

consciente. Todo o problema é assim para ele explicar como é possível

não considera mais a negatividade em ato como um modo da consciência,

estar ao mesmo tempo vivo e ser capaz de percepção consciente. Mas a

mas como o movimento mesmo do viver. Finalmente, vimos como supera

pergunta que surge para nós nesse ponto é: por que basta, para dar conta da

a cisão merleau-pontiana entre senciente e sensível remetendo-os à sua

humanidade, explicitar “como a vida pode ser consciente”? Se aceitamos

pertença ao viver entendido como intencionalidade vital.

com Barbaras que a consciência não é uma interioridade psíquica primeira,

Muitas questões permanecem abertas, contudo, nesta proposta.

nem real nem transcendental, e que não pode ser reificada nem no corpo

Depois desta primeira apresentação, gostaríamos de indicar somente

nem em outra realidade, porque ainda temos que aceitar que é o ponto de

uma. A descrição fenomenológica da estrutura do aparecer é, sem

chegada à humanidade do homem? Ou, dito mais claramente, do sujeito

duvida, rigorosa na demonstração do que nega: nenhuma das dualidades

intencional enquanto ele é, ao mesmo tempo, humano? Não estamos aqui

– corpo-psique, consciência transcendental-mundo – pode se sustentar

frente a uma redução da humanidade a sua função propriamente consciente

frente a um pensamento radical da correlação que não supõe pontos de

ou, mas particularmente, cognitiva? Parece-nos que, neste sentido, Barbaras

partida substanciais. Um dos méritos da fenomenologia barbarasiana

se detêm no momento mesmo onde outro caminho possível é aberto para

é justamente o de permitir com sua descrição da intencionalidade

dar conta da diferença que Le désir et la distance não consegue tematizar.

vital uma compreensão conjunta tanto do viver do vivente quanto

Esse caminho se encontraria talvez na noção mesma de pulsão mais do

de seu experimentar. Contudo, parece-nos que existe ainda uma

que naquela de desejo, que Barbaras menciona no final do livro em relação

cisão problemática que Le désir et la distance, texto estritamente

ao último Husserl mas que entretanto não desenvolve. Assinalemos que

fenomenológico, não consegue elaborar em toda sua problematicidade

pensamos aqui na pulsão não no sentido husserliano, ainda ligado à ideia de

ou que, para ser mais preciso, se recusa a elaborar.

instinto num sentido quase naturalista, mas, sobretudo, na pulsão no sentido

Referimo-nos à cisão entre o homem e os outros seres vivos.

freudiano, entendida como conceito limite entre o psíquico e o somático

Com efeito, se é verdade que Barbaras consegue dar conta da unidade

e como lugar de um conflito originário que introduz o Outro na origem

profunda do viver na qual podem ser pensados todos os viventes, não é

mesma da estrutura subjetiva. O problema, nesse caso, talvez radique em

claro como deve ser pensada, com todo rigor, sua diferença. Esta resposta

que seria necessário aceitar uma cisão insuperável no interior do sujeito 197

Cadernos Espinosanos XXVII

Mariana Larison

humano que exige um primado da diferença sobre a continuidade com

11.Heidegger, Martin, Die Grundprobleme der Phänomenologie, Gesamtausgabe, Abt. 2, Bd. 24, Francfort, Klosterman, 1975 12. ______. “Vom Wesen des Grundes”, in Gesamtausgabe, Abt. 1, Bd. 9, Klosterman, Francfort, 1976, pp. 123-175 13. ______. Prolegomena zur Geschichte der Zeitbegriffs, Gesamatusgabe, Abt. 2, Bd. 20, Francfort, Klosterman, 1979 14. Levinas, Emmanuel, La théorie de l’intuition chez Husserl, Paris, Vrin, 1930

respeito aos outros viventes. Talvez seja este um dos limites que esta nova impulsão dada ao estudo do campo fenomenal deva superar, no percurso de um diálogo que não parece ter-se ainda esgotado. Renaud Barbaras and the vitality of the phenomenology Abstract: The phenomenology of Renaud Barbaras is one of the few that continues today trying to deepen, in an original way, the path opened by Husserlian phenomenology. But which is, precisely, the way chosen by Barbaras to enter in the phenomenological tradition? How does he introduces himself in the dialogue opened by this tradition? In this paper, we will try to restore the key issues and concepts that allow us to understand the continuity and rupture of the barbarasian phenomenology in relation to this tradition, as well as some of the limits of its own proposal. Keywords: intentionality, phenomenology, Barbaras, life, desire. Referências Bibliográficas 1. Alain de Libera, Arqueologie du sujet. Naissance du sujet, Paris, Vrin, 2007 2. Barbaras, Renaud, Le désir et la distance, Paris, Vrin, 1999 3.______.Vie et intentionnalité, Paris, Vrin, 2003 4. ______. Introduction à une philosophie de la vie, Paris, Vrin, 2008 5. ______. La vie lacunaire, Paris, Vrin, 2011 6. Brentano, Franz., Psychologie vom empirischen Standpunkt, Leipzig, Duncker & Humblot, 1874 7. Husserl, Edmund, Logische Untersuchungen. Bd. II, 1. Untersuchungen zur Phänomenologie und Theorie der Erkenntnis (Husserliana XIX), Halle, Niemeyer, 1901 8. ______. Ideen zu einer reinen Phänomenologie und phänomenologischen Philosophie, Erstes Buch: Allgemeine Einführung in die reine Phänomenologie, in Husserliana 3, Haia, Martinus Nijhoff, 1950  9. ______. Zur Phänomenologie der Intersubjektivität.  Texte aus dem Nachlass. Zweiter Teil. 1921-28, in Husserliana XIV, Haia, Martinus Nijhoff, 1973 10. Husserl, E., & Twardowski, k., Sur les objets intentionnels (1893-1903),

Notas 1. Agradecemos a Mauricio d’Escragnolle Cardoso a leitura crítica e os estimulantes comentários feitos a este texto. 2. Claro exemplo disto é o projeto que o filósofo vem desenvolvendo nos últimos anos em torno de uma fenomenologia da vida — tema contemporâneo como poucos — em suas obras Introduction à une philosophie de la vie (Barbaras, 4) e, mais recentemente, em La vie lacunaire (Barbaras, 5). 3. Para quem busca uma arqueologia do conceito, cf. Alain de Libera 1, pp. 133-154. 4. Não consideramos aqui o último livro publicado por Barbaras, La vie lacunaire, cuja aparição coincidiu com a escrita de nosso texto.

Paris, Vrin, 1993. 198

199

NOTÍCIAS

DEFESAS Daniel Santos da Silva O conceito de indivíduo e sua realidade na política em Espinosa Orientador: Profª Drª Marilena de Souza Chaui Data: 06/07/2012 Resumo: Partimos da polêmica tese de Espinosa de que apenas existe uma substância única para mostrar que, não apenas os indivíduos são dotados de uma realidade nesta filosofia, mas que, por esta realidade, podemos compreender por que Espinosa consegue romper com uma série de preconceitos filosóficos referentes à ética e à política. Especialmente, tentaremos chegar, através desse conceito tão problemático na filosofia de Espinosa, a uma concepção da política como campo liberador da potência humana que, contudo, por ser formado notadamente a partir das paixões, traz em si uma gama de ilusões próprias a ele, ao campo político. Pelo conceito de indivíduo podemos, acreditamos, retomar uma crítica sempre pertinente na política: organizamos a vida civil em prol da vida, não do tolhimento da liberdade de cada um. Palavras-chave: Indivíduo, singularidade, conatus, potência e proporção. Celi Hirata Leibniz e Hobbes: casualidade e princípio de razão suficiente Orientador: Prof. Dr. Luís César Guimarães Oliva Data: 31/08/2012 O escopo desta pesquisa de doutorado é examinar a relação entre a doutrina hobbesiana da causalidade e o princípio de razão suficiente em 201

Leibniz, assinalando a aproximação e o distanciamento entre um e outro. Se, por um lado, o filósofo alemão é claramente influenciado por Hobbes

INSTRUÇÕES PARA OS AUTORES

na formação de seu princípio, por outro, é por meio desse próprio princípio que ele critica alguns dos aspectos mais decisivos da filosofia de Hobbes, como o seu materialismo, necessitarismo, bem como a sua concepção de justiça divina e a sua tese de que Deus não pode ser conhecido pela luz natural. Em alguns textos de sua juventude, Leibniz prova que nada é sem razão pela identificação da razão suficiente com a totalidade dos requisitos, demonstração que praticamente reproduz aquela pela qual Hobbes defende que todo efeito tem a sua causa necessária. Entretanto, em oposição a Hobbes, que reduz a realidade a corpos em movimento, Leibniz utilizará o conceito de razão suficiente para demonstrar que somente um princípio incorporal pode dotar os corpos com movimento. É igualmente por meio do princípio de razão suficiente e da sua distinção em relação ao princípio de contradição que Leibniz defende que os eventos no mundo não são absolutamente necessários, mas contingentes. Por fim, é utilizando-se deste princípio que o autor da Teodiceia argumentará que Deus pode ser conhecido pela razão natural e que a justiça divina consiste na sua bondade guiada pela sua sabedoria, em contraste com a definição hobbesiana de justiça fundamentada no poder. Assim, se Leibniz se

:::: Os textos devem ser inéditos e ter de preferência até 40 laudas (30 linhas de 70 toques). :::: O arquivo, que deve ser enviado por e-mail , deve conter o nome do autor, a instituição a que está vinculado, o endereço eletrônico ou o telefone. (E-mail: [email protected]). :::: Os artigos devem vir acompanhados de um resumo e um abstract de 80 a 150 palavras cada um, cinco palavras-chave e keywords. :::: As notas de rodapé devem ser digitadas no final do artigo, utilizando-se o recurso automático de criação de notas de rodapé dos programas de edição. :::: As referências bibliográficas devem ser listadas e numeradas no final do texto, em ordem alfabética e obedecendo a data de publicação. :::: As citações devem ser feitas no correr do texto de acordo com as normas técnicas da ABNT, seguindo-se a numeração das referências bibliográficas; por exemplo, (Descartes 1, p.10) ou (Descartes 1, §8, p.10).

apropria de certos elementos da doutrina hobbesiana da causalidade é para submeter a causalidade eficiente e mecânica que é defendida pelo inglês a uma determinação essencialmente teleológica da realidade. Palavras-chave: causalidade, princípio de razão suficiente, mecanicismo, metafísica, necessidade, contingência.

202

203

CONTENTS

Dynamique de la manifestation Renaud Barbaras.................................................................................11 La vie entre le désir et la création: Renaud Barbaras lecteur critique de Bergson Débora Morato Pinto..........................................................................31 From Merleau-Ponty to Barbaras Luiz Damon Santos Moutinho.............................................................63 Vie privative ou vie lacunaire? Marcia Sá Cavalcante Schuback..........................................................71 Renaud Barbaras, reader of Husserl Marcus Sacrini....................................................................................95 The perception according to Barbaras Leandro Neves Cardim......................................................................105 The living body and the movement of the life in M. Merleau-Ponty and R. Barbaras (Tradução de Silvana de Souza Ramos) Esteban A. García..............................................................................131 205

The experience of the lack and the mystery of the desire Silvana de Souza Ramos.......................................................................159 Renaud Barbaras and the vitality of the phenomenology Mariana Larison....................................................................................179 NEWS........................................................................................................201 INSTRUÇÕES PARA OS AUTORES...........................................................203 CONTENTS..................................................................................................205

206

Lihat lebih banyak...

Comentarios

Copyright © 2017 DATOSPDF Inc.