La ‘mise en page’‘ de los cancioneros

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Descripción

À VOLTA DO

CANCIONEIRO DA AJUDA

À VOLTA DO CANCIONEIRO DA AJUDA ACTAS DO COLÓQUIO «CANCIONEIRO DA AJUDA (1904-2004)»

Imprensa Nacional-Casa da Moeda, S. A. Av. de António José de Almeida 1000-042 Lisboa www.incm.pt www.facebook.com/INCM.Livros [email protected] © Maria Ana Ramos e Teresa Amado e Imprensa Nacional-Casa da Moeda, S. A. Título: À Volta do Cancioneiro da Ajuda Actas do Colóquio «Cancioneiro da Ajuda (1904-2004)»

Coordenadoras: Maria Ana Ramos e Teresa Amado Concepção gráfica: INCM Design da capa: João Tiago Marques/INCM Paginação e revisão do texto: INCM 1.ª edição: Fevereiro de 2016 ISBN: 9789722724470 Edição n.º 1021022

Índice

7

Colóquio «Cancioneiro da Ajuda (1904-2004)». Um colóquio interrogativo — MARIA ANA RAMOS e TERESA AMADO

13

O Cancioneiro da Ajuda e as suas edições — IVO CASTRO

23

Análise paleográfica das anotações marginais e finais no Cancioneiro da Ajuda — SUSANA TAVARES PEDRO

61

A antiga cota do Cancioneiro da Ajuda — ISABEL CEPEDA

71

La décoration du Chansonnier d’Ajuda — PATRICIA STIRNEMANN

87

Som mudo no Cancioneiro da Ajuda — MANUEL PEDRO FERREIRA

113

Codicología alfonsí (Códice de los Músicos ESC.B.I.2) — GEMMA AVENOZA

151

Tradição textual do Cancioneiro da Ajuda — MARIA ANA RAMOS

183

Trovadores «menores» no Cancioneiro da Ajuda — ELSA GONÇALVES

203

Poesia aristocratica. Linee di definizione — VALERIA BERTOLUCCI PIZZORUSSO

211

A composição de cantigas de amor — ÂNGELA CORREIA

227

Cancioneiro da Ajuda. Só cantigas de amor? — GIUSEPPE TAVANI

237

As Glosas Marginais e o Cancioneiro da Ajuda — YARA FRATESCHI VIEIRA

251

La mise en page de los cancioneros — VICENÇ BELTRAN

275

O restauro do Cancioneiro da Ajuda: entre conservação de salvaguarda e estima pelos maiores — AIRES A. NASCIMENTO

307

Os cancioneiros trovadorescos nos séculos XIV e XV: balanço e perspectivas — ANTÓNIO RESENDE DE OLIVEIRA

COLÓQUIO «CANCIONEIRO DA AJUDA (1904-2004)» UM COLÓQUIO INTERROGATIVO

A aproximação do ano 2004 não poderia deixar de interpelar os estudiosos da lírica galego-portuguesa, ou mesmo os estudiosos de literaturas medievais europeias, que, tantas vezes, se confrontam com a incontornável edição crítica do Cancioneiro da Ajuda de Carolina Michaëlis de Vasconcellos, acompanhada das Investigações bibliographicas, biographicas e historico-litterarias publicadas em 1904. Não é muito comum comemorar a publicação de uma obra. As efemérides celebram em geral o Autor e não tanto a produção científica do investigador recordado. Ainda menos corrente será homenagear uma edição eleita de entre todas as de um Autor, entre as numerosas publicadas. Não é também usual que duas cidades e duas universidades tenham independentemente pensado na comemoração do centenário da publicação na Alemanha da mais antiga colecção de poesia trovadoresca (Cancioneiro da Ajuda. Edição crítica e commentada, 2 vols., Halle a. S., Max Niemeyer, 2004. Reimpressões anastáticas: Torino, Bottega di Erasmo, 1966; Hildesheim-New York, Georg Olms, 1980; Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1990, que inclui, contrariamente às precedentes, o Glossário que C. Michaëlis tinha publicado na Revista Lusitana, XXIII, 1920, e um prefácio de I. Castro). Na Galiza, procedeu-se a uma reflexão geral que tanto incidiu no rigoroso trabalho filológico de Carolina Michaëlis de Vasconcellos, como na análise de 7

textos e trovadores transmitidos pelo Cancioneiro da Ajuda e, de algum modo, examinados pela insigne filóloga (O Cancioneiro da Ajuda, cen anos despois. Congreso Internacional, 25 a 28 de Maio de 2004. Actas do Congreso realizado pola Dirección Xeral de Promoción Cultural en Santiago de Compostela e na Illa de San Simón os dias 25-28 de maio de 2004, Santiago de Compostela, Xunta de Galicia-Consellería de Cultura, Comunicación Social e Turismo, 2004). Lisboa, cidade que acolheu o Cancioneiro, inicialmente na Livraria do Colégio dos Nobres, e depois na sua Biblioteca Real, hoje Biblioteca do Palácio da Ajuda, também não quis deixar de celebrar aquela data. A Faculdade de Letras de Lisboa (Departamento de Literaturas Românicas), em Novembro de 2004, pretendeu organizar um colóquio que não revestisse apenas um carácter festivo e encomiástico ao evocar a magnificente edição de D. Carolina. Promoveu-se assim um retorno ao códice, procurando questionar o manuscrito em um diálogo entre o que D. Carolina observava e intuía em 1904 e o que, naquela altura, em 2004, passados cem anos, se poderia compreender melhor, ajustar ou, eventualmente, rever e propor. Mais do que debater sobre o que se conhecia então acerca da mais antiga recolha da lírica galego-portuguesa, parecia-nos essencial voltar a olhar para o que ainda ignorávamos sobre o Cancioneiro da Ajuda. Por isso, a organização do colóquio cometeu a ousadia de solicitar a cada um dos participantes «soluções de enigmas», sugerindo-lhes mesmo títulos de conferência, de acordo com o perfil científico do convidado. Conjecturava-se assim que o colóquio permitiria desvelar alguns, pelo menos, dos mais resistentes mistérios do códice ajudense. Assim, a Ivo Castro foi pedida uma reflexão acerca do campo editorial do Cancioneiro da Ajuda, propondo-lhe o exame de cada uma das edições disponíveis, mas também a pertinência sobre possíveis projectos de novos tipos de edição, sobretudo quando a Imprensa Nacional-Casa da Moeda, depois de ter reimprimido pela primeira vez em Portugal a edição alemã de 1904, se preparava, também sob o impulso de Ivo Castro, para reimprimir em Portugal, igualmente pela primeira vez, a edição diplomática do Cancioneiro da Ajuda datada de 1941, da responsabilidade do paleógrafo americano H. H. Carter (Cancioneiro da Ajuda. A Diplomatic Edition, New York-London, Modern Language Association of America, Oxford University Press, 1941. Reimp.: Milwood, New York, Kraus Reprint Co., 1975; reimp. com introdução, «A edição diplomática do Cancioneiro da Ajuda», de Maria Ana Ramos, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2007). Do ponto de vista técnico, pareceu-nos relevante pedir a Susana Pedro uma nova expertise paleográfica, mais exaustiva, embora E. Borges Nunes nos tivesse facultado as suas impressões no ensaio de Maria Ana Ramos, inserido no fascículo que acompanhou a edição fac-similada em 1994 (Cancioneiro da Ajuda. Edição fac-similada do códice existente na Biblioteca da Ajuda. Apresentação de Manuel C. de Matos, N. S. Pereira e Francisco G. da C. Leão. Estudos de José Vitorino de Pina Martins, M. Ana Ramos e Francisco G. da C. Leão, Lisboa, Edições Távola Redonda. Instituto Português do Património Arquitectónico e Arqueológico, Biblioteca da Ajuda). 8

A decoração do Cancioneiro da Ajuda nunca beneficiara de um exame crítico, se exceptuarmos o capítulo, que lhe concedeu Carolina Michaëlis em 1904 (vol. II, pp. 158-163), e a sumária notícia publicada em 1999 (Horácio Augusto Peixeiro, «A iluminura portuguesa nos séculos XIV e XV», A Iluminura em Portugal. Identidade e Influências. Catálogo da Exposição, 26 de Abril a 30 de Junho de 1999. Lisboa, Biblioteca Nacional, 1999, pp. 287-309). Foi, por isso, requerida a Patricia Stirnemann uma peritagem sobre a decoração do Cancioneiro, em particular das miniaturas que abrem cada ciclo textual dos poetas incluídos. A sua observação trouxe de facto novidades, facultando-nos inclusivamente indícios muito estimulantes sobre os modelos da encadernação renascentista do códice. Ainda no plano da história do manuscrito, foi pedido a Isabel Cepeda que procurasse esclarecer-nos sobre uma antiga cota, «A. 5. n 47.», presente no Cancioneiro da Ajuda. Ainda que não tenha sido possível identificar o lugar que adoptou aquele sistema, o exame de outros casos permitiu já algumas conjecturas relativamente sólidas sobre espaços que podem, desde já, ser eliminados como possíveis detentores do Cancioneiro da Ajuda, abrindo ao mesmo tempo hipóteses de trabalho em outras direcções. Ignora-se ainda hoje o lugar onde terá sido confeccionado o Cancioneiro da Ajuda. Tendo-se suposto que um dos scriptoria de Afonso X pudesse identificar-se com o espaço que mais se adaptaria à realização de um manuscrito de dimensões imponentes como o nosso Cancioneiro, impunha-se uma análise circunstanciada de, pelo menos, um dos códices das Cantigas de Santa Maria. A esta exigência submeteu-se Gemma Avenoza, revelando-nos mais diferenças do que pontos comuns entre o Cancioneiro da Ajuda e um dos códices das Cantigas de Santa Maria quanto a formas de confeccionar cancioneiros. Para a observação material, beneficiávamos do contributo e do testemunho directo de Aires do Nascimento, supervisor do restauro do códice, que contém o Cancioneiro da Ajuda e um fragmento do Livro de Linhagens, efectuado nos Laboratórios de Conservação e Restauro da Torre do Tombo, sob os auspícios da Fundação Calouste Gulbenkian em 1999 e 2000 (A Imagem do Tempo: Livros Manuscritos Ocidentais — Catálogo de Exposição no Museu Calouste Gulbenkian, Lisboa, 31 de Março a 2 de Julho de 2000). A Aires do Nascimento deve o colóquio o relatório do importante restauro e a descrição codicológica do estado do manuscrito. Não podendo esta colecção de poesia trovadoresca estar dissociada da tradição musical medieval, apesar da ausência de notação, Manuel Pedro Ferreira procurou os sentidos do «som mudo» do Cancioneiro da Ajuda, através de indícios indirectos como o distanciamento silábico e a singularidade da previsão musical para as fiindas. As suas hipóteses enriquecem a tradição interpretativa das cantigas e alargam o conhecimento do ambiente cultural que inspirou os compositores desta prática musical cortesã. Vicenç Beltran, ao examinar a disposição textual do Cancioneiro da Ajuda (transcrição contínua na primeira estrofe e cópia verso a verso nas seguintes), integrou-a na observação da mise en page de manuscritos que transcrevem outros textos poéticos, desde a tradição latina à românica. 9

Focalizando-nos na selecção das cantigas contidas no Cancioneiro da Ajuda, pareceu-nos imperativo questionar o problema do género. A Giuseppe Tavani perguntámos se seria legítimo continuar a mencionar este Cancioneiro como uma recolha organizada sob o princípio da separação genológica. Teriam os organizadores seleccionado apenas cantigas de amor? Qual teria sido a percepção que o compilador da colecção tinha da cantiga de amor? Do princípio de que a cantiga de amor foi, efectivamente, em larga medida praticada por nobres, e de que esta poesia se exercia em ambiente cortesão, decorreu uma interrogação a Valeria Bertolucci sobre o desenho das linhas de definição daquilo que se poderia designar como poesia aristocrática. Nesta linha, Ângela Correia abordou questões relacionadas com a composição da cantiga de amor no ocidente ibérico. Nesse âmbito, discutiu, por exemplo, as considerações que terão permitido eleger Martim Soares como aquele que «trobou melhor ca todolus que trobaron…». Tendo também presente que o Cancioneiro da Ajuda se tem caracterizado como uma colecção poética de trovadores nobres, historicamente identificados, Elsa Gonçalves articulou a sua reflexão procurando esclarecer as causas da inserção de poetas menores quanto ao número mais limitado de textos relativamente a outros na organização do Cancioneiro da Ajuda (razões inerentes apenas ao condicionamento da tradição?). Realça a sua intervenção com hipóteses de resolução do espinhoso anonimato dos trovadores neste Cancioneiro, destituído, como é conhecido, de rubricas atributivas. O percurso histórico dos cancioneiros trovadorescos nos séculos XIV e XV, incluindo, naturalmente, o Cancioneiro da Ajuda, foi traçado por António Resende de Oliveira. Assim, procurou reconstruir os espaços por onde teriam eventualmente passado os cancioneiros e os seus possuidores, entre cortes régias e senhoriais. O enquadramento social e cultural de Pedro Homem (possuidor do Cancioneiro da Ajuda na segunda metade do século XV) explicaria a passagem do Cancioneiro da corte régia para um ambiente já da pequena nobreza. Enfim, Maria Ana Ramos reflectiu sobre a tradição manuscrita do inacabado e incompleto Cancioneiro da Ajuda, interrogando-se sobre os seus possíveis modelos. Questão: a poesia ali coleccionada, que conhecemos hoje, proviria de um cancioneiro organizado e concluído, ou a dispositio textual actual ilustraria ainda vestígios de circulação de materiais avulsos? Uma feliz coincidência trouxe-nos a apresentação, também em 2004, pela mão do labor de Yara Frateschi Vieira, das famosas Randglossen zum altportugiesischen Liederbuch. De difícil leitura para muitos dos investigadores da lírica medieval, devido ao obstáculo linguístico (o alemão escrito por uma erudita do século XIX), publicadas na Zeitschrift für romanischen Philologie entre 1896 e 1905, eram por fim traduzidas em português e publicadas em conjunto, aportando complementos indispensáveis a importantes sectores do Cancioneiro da Ajuda. A publicação não podia, por isso, deixar de ser saudada por todos os investigadores presentes (Yara F. Vieira, J. Luis Rodríguez, M. Isabel Morán Cabanas, José A. Souto Cabo, Glosas Marginais ao Cancioneiro Medieval Português de Carolina Michaëlis de Vasconcelos, Coimbra, Por ordem da Universidade, 2004).

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Não é sem emoção que concluímos esta apresentação do Colóquio Cancioneiro da Ajuda (1904-2004) recordando Luís Krus, o colega e amigo cujo saber profundamente respeitávamos e que nos deixou uma imensa falta. Também nesta colectânea ficará um pouco o eco da sua voz que não chegou a fixar-se em texto. Bastante tempo decorreu entre 2004 e 2013. Vicissitudes e contratempos vários impediram que a publicação deste conjunto de textos tivesse sido mais rápida e mais próxima do evento. No entanto, e apesar do tempo passado, continuamos a considerar que estes ensaios constituem, ainda hoje, uma importante mise au point sobre o Cancioneiro da Ajuda, e por isso decidimos, com a Imprensa Nacional-Casa da Moeda, facultá-los ao público. Esta divulgação de estudos que tomam por objecto um dos nossos mais importantes códices medievais deverá, estamos certas, estimular novas inquirições sobre este magnífico e enigmático Cancioneiro.

MARIA ANA RAMOS TERESA AMADO

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O CANCIONEIRO DA AJUDA E AS SUAS EDIÇÕES

IVO CASTRO Universidade de Lisboa

Em 1832, quando foi transferido do Colégio dos Nobres para a Biblioteca Real, e passou a usar o nome actual, o Cancioneiro da Ajuda já tinha tido uma edição, a de Charles Stuart. Depois disso, teve mais quatro, as de Varnhagen, Carolina Michaëlis, Carter e a fac-similada de Edições Távola Redonda. A de Carolina Michaëlis teve três reimpressões: Bottega d’Erasmo, Olms e Imprensa Nacional. A de Carter teve uma reimpressão de Kraus e teve outra na Imprensa Nacional em 2007. Ao todo, dez edições, sem contar com produtos subsidiários como a edição truncada de Marques Braga e outras reproduções de carácter mais ou menos vulgarizador ou pedagógico. E sem contar, evidentemente, com as grandes edições por géneros de José Joaquim Nunes, Rodrigues Lapa, Rip Cohen e Graça Videira Lopes, nem com a longa série de edições individuais que associamos com justiça à operosidade da escola italiana, embora a moda tenha sido inaugurada por Lang, Nobiling e Celso Cunha. Mesmo circunscrevendo os meus comentários àquelas dez edições, ocorre começar por perguntar: não serão edições suficientes? Faltará ao campo bibliográfico do cimélio da Ajuda algum tipo de edição que ainda não tenha sido empreendida? Estas são as questões que se podem instigantemente abordar no quadro do tema que tenho para tratar. Além, naturalmente, de uma apresentação do que já existe, o que redundará numa espécie de artigo de enciclopédia, que aliás já foi várias vezes escrito e com superior competência. 13

Começo pela revisão das edições do Cancioneiro da Ajuda. Charles Stuart de Rothesay, Fragmentos de hum Cancioneiro Inedito que se acha na Livraria do Real Collegio dos Nobres de Lisboa. Impresso á custa de Carlos Stuart Socio da Acad. Real de Lisboa. Em Paris, no Paço de Sua Magestade Britanica, 1823. Charles Stuart (1779-1845) foi um diplomata britânico que participou na reconstrução dos governos peninsulares após as guerras napoleónicas; encarregado de negócios em Madrid (1808) e enviado em Portugal (1810), aqui permaneceu até 1814, tendo sido um dos três membros do Conselho de Regência. Estes encargos não o impediram de se interessar pelo volume que tinha acoplados o Cancioneiro e o Nobiliário de D. Pedro e que ainda repousava no Colégio dos Nobres, enquanto a Academia Real das Ciências se afadigava em ver como o havia de publicar. D. Carolina relata esses pitorescos episódios, que a nada conduziram (CA, II, pp. 2-5). Stuart trocou o posto de Lisboa por Haia e, pouco depois, por Paris, onde permaneceu de 1815 a 1830. Foi aí, na imprensa privativa da embaixada, que fez imprimir a sua privadíssima edição de 25 exemplares. D. Carolina admite que tenha utilizado para isso uma cópia mandada fazer por Robert Southey, mais tarde propriedade da Biblioteca de Berlim. Stuart voltou a ter significado para Portugal em 1825, quando mediou as negociações para a independência do Brasil, deslocando-se ao Rio de Janeiro. Foi ainda embaixador em São Petersburgo, quase até à morte. Recebeu os títulos de barão Stuart de Rothesay e, em Portugal, foi conde de Machico e marquês de Angra do Heroísmo. A sua edição trovadoresca não foi, decerto, um dos seus empreendimentos mais influentes. Celso Cunha, que a conheceu bem, arrumou-a com estas palavras: «Essa restrita edição de 25 exemplares poucos serviços prestou aos estudiosos. Contém apenas 260 cantigas e o paleógrafo que se incumbiu do treslado do texto enxameou-o de erros.» 1 Além desses erros, resultantes de dificuldades de decifração, ressalta a convicção de que o Cancioneiro era obra de um autor único e a abolição dos espaços separadores de muitos poemas e das numerosas páginas em branco não lhe forneciam individualidade autoral. Mas, pelo que sabemos, Stuart foi apenas o promotor e financeiro da edição, que assentou numa transcrição amanuense pela qual ninguém se responsabiliza, e a redução a 260 das 310 cantigas que o manuscrito contém não deixa de fazer justiça ao título, que mais não promete que Fragmentos.

1

Celso Cunha, verbete «Cancioneiro da Ajuda», Dicionário de Literatura, dir. de J. Prado Coelho, 3.ª ed., Porto, Figueirinhas, 1981, pp. 141 e 142.

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Entre a edição de Stuart e a de Varnhagen, deu-se a descoberta em 1840 na Biblioteca Vaticana do Cod. lat. 4803, cuja riqueza em poetas e poemas novos (cerca de 1200 cantigas) não podia senão alargar os percursos que a erudição trovadoresca penosamente ia seguindo. Por outro lado, tinham sido encontradas na Biblioteca de Évora 11 folhas soltas de morfologia, escrita e conteúdo idênticos ao Cancioneiro, e que por isso foram a ele reunidas em 1843. Francisco Adolfo de Varnhagen, Trovas e Cantares de um Codice do XIV Seculo: ou antes, mui provavelmente, «O Livro das Cantigas» do Conde de Barcellos, Madrid, 1849, 338+1 pgs.; seguido de Post-Scriptum, Madrid, 1850, 30 pgs.; e de Novas Páginas de Notas às «Trovas e Cantares», isto é a edição de Madrid do Cancioneiro de Lisboa, atribuído ao Conde Barcelos, Viena, 1868. O brasileiro Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878) veio para Portugal com toda a família em 1824 e foi aluno no Colégio dos Nobres, quando o cancioneiro ainda lá se encontrava, mas não sabemos se se encontraram. Fez estudos militares, participou nas campanhas liberais, foi admitido como sócio da Academia Real das Ciências, mas em 1840 optou pela nacionalidade brasileira e tornou-se diplomata, sendo colocado na legação do seu país em Lisboa em 1842, e na de Madrid em 1852. Morreu em Viena, onde era embaixador desde 1868. 2 A sua edição é completa, até um pouco de mais: por erros de cálculo, Varnhagen conta 312 poemas. Persuadido de que todos os poemas são de um mesmo autor, o conde de Barcelos, deduz que a destinatária deles é uma única dama, a infanta D. Maria, filha de D. Afonso IV e mulher de Afonso XI de Castela e Leão. Em face destas convicções, faz o mesmo que certos editores modernos têm feito: transforma a colecção de poemas em passos de um romance amoroso e reordena-os de forma a baterem mais certeiramente com as sístoles e diástoles do par apaixonado. O efeito foi no entanto, e merecidamente, favorável: foi na edição de Varnhagen que se fundaram desde logo estudos importantes de Ferdinand Wolf, Friedrich Diez e Milá y Fontanals e todos os demais que se seguiram durante meio século (com excepção dos que se transviaram, correndo atrás do hiperactivo Teófilo Braga). Mas o contributo mais determinante viria do próprio Varnhagen, que em Madrid estudou uma cópia do cancioneiro da Vaticana, propriedade de um grande de Espanha, que D. Carolina achava «misterioso»,

2

Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência Ativa, ed. Clado Ribeiro de Lessa, Rio de Janeiro, 1961.

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mas hoje sabemos ser o duque de Fernán Nuñez, cuja colecção pertence à Bancroft Library (Berkeley), de onde a moderna designação por que o manuscrito é conhecido 3. Nesse manuscrito, como explica no seu adendo de 1868 Novas Páginas de Notas, Varnhagen reconheceu 50 canções do Cancioneiro da Ajuda, atribuídas a diversos poetas: explodia assim a teoria do trovador único e passava a saber-se que os dois cancioneiros tinham material em comum, o que Varnhagen viria a corroborar quando em Roma examinou o próprio códice vaticano, de que resultou o seu Cancioneirinho de Trovas Antigas colligidas de um grande cancioneiro da Bibliotheca do Vaticano, Viena, 1870 (2.ª ed., 1872). Uma nova edição do códice vaticano, que superaria claramente os esforços de Varnhagen, foi logo a seguir empreendida por Ernesto Monaci: Il Canzoniere Portoghese della Biblioteca Vaticana, Halle, 1875. O modo como D. Carolina se refere a esta edição merece exame atento, porque ajuda a compreender o procedimento que ela própria depois seguiu. Primeiro, uma nota sobre a rapidez do trabalho: «A 11 de Março de 1872 [Monaci] teve pela primeira vez entre mãos o Cancioneiro português da Bibliotheca do Vaticano, tomando a resolução de lhe dar publicidade. Em principios do anno seguinte o ms. já estava no prélo» (CA, II, p. 34). Depois, dá destaque à opção editorial de base: «edição rigorosamente diplomatica, reproduzindo o codice pagina a pagina, linha a linha, com representação de todas as siglas, escripturas diversas, numeração e paginação antiga» (CA, II, p. 38). Há razões para pensar que esta também foi a intenção inicial de D. Carolina, quando se meteu à sua edição. Mas, como as coisas acabaram por não correr assim, as suas palavras soam a autojustificação: «Monaci pensou tambem que uma edição critica, definitiva, era empresa para o futuro. Empresa de tal ordem que sómente se poderia realizar ao cabo de longos e variadissimos estudos, tendo os doutos deante de si o edificio em ruinas, sem que o trabalho critico tivesse apagado vestigio algum das vicissitudes por que o codice passou. A meu ver procedeu bem,…» (ibidem). Em 1878 foi descoberto, em poder do conde Brancuti, em Cagli, um novo cancioneiro português, que veio a ser conhecido por Colocci-Brancuti e hoje da Biblioteca Nacional. Publicou-o pouco depois, apenas nas partes que não coincidiam com o códice vaticano, um aluno de Monaci, Enrico Molteni: Il Canzoniere Portoghese Colocci-Brancuti, pubblicato nelle parti che completano il codice vaticano 4803, Halle, 1880. A reacção global de D. Carolina a estas descobertas é bastante tépida. O que mais aprecia é a atribuição de autorias que os apógrafos italianos permitem, acabando com o anonimato geral dos poemas da Ajuda. Quanto aos resultados das colações que começavam a ser possíveis entre os textos, relativizava-os assim: «É facto que o subsidio de variantes não é abundante e

3

Arthur L.-F. Askins, s. v., Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa, org. e coord. de G. Lanciani e G. Tavani, Lisboa, Ed. Caminho, 1993, pp. 118 e 119.

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que essas ajudam pouco a melhorar e esclarecer textos tão bem conservados como os do antigo pergaminho da Ajuda.» (CA, II, p. 53.) Um pouco de biografia talvez ajude, neste ponto. Carolina Michaëlis (1851-1925) nasceu em Berlim, fez estudos particulares de romanística e instalou-se em Portugal em 1876, depois de casar com o crítico de arte Joaquim de Vasconcellos. Tendo a sua residência no Porto, mudou-se durante cinco meses para Lisboa no ano seguinte, a fim de fazer a transcrição do Cancioneiro da Ajuda: «Meses felizes e saudosos (de Maio a Setembro de 1877) gastei na empresa de decifrar e copiar, com paixão e paciência, essas páginas seis vezes seculares.» (CA, I, p. v.) Nessa altura, ainda não havia conhecimento da existência do Colocci-Brancuti, mas D. Carolina ficara impressionada com a rapidez de execução da edição de Monaci, cuja transcrição ficara concluída em 1872 e só na tipografia se demorara um pouco mais, três anos. (D. Carolina recebia as folhas impressas à medida que saíam do prelo, prática de pré-difusão que depois também adoptaria.) Compreende-se, pois, a pressa em dispor da sua própria transcrição do Cancioneiro e a esperança de a publicar muito rapidamente. No ano seguinte, 1878, o marido anunciava em carta de Maio que a edição entraria no prelo «dentro de mais ou menos quinze dias» 4. Estava combinado que a obra sairia na casa Niemeyer, formando conjunto com as edições de Monaci e Molteni, e seria de esperar que fosse, dados os prazos e os modelos, uma edição diplomática contendo apenas os poemas privativos do Cancioneiro da Ajuda, ou seja 64 cantigas que não figuravam nos cancioneiros V e B. Mas, segundo Joaquim de Vasconcellos informa na carta, tratava-se na realidade de «une édition critique avec une ‘Introduction’ assez étendue, des notes nombreuses, des fac-similes, etc.», ou seja, exactamente o mesmo que, dois anos mais tarde, em 1880, prometia um prospecto difundido em Portugal e que viria a materializar-se na edição que hoje comemoramos. Não se tratava, pois, de adicionar, lidos diplomaticamente, os textos que faltavam nas duas edições de Monaci e Molteni, mas de pôr estas ao serviço de uma edição que transcenderia o objectivo de reproduzir um cancioneiro isolado e procuraria aproximar-se de um possível Ur-Text do trovadorismo galego-português, reconstruindo para isso o seu Cancioneiro Geral. Não é seguro se o projecto já tinha, em 1880, essa vasta ambição (afinal, o volume prometido, apesar de in-fólio, teria apenas 200 páginas.); mais provavelmente, só mais tarde viriam os sucessivos crescimentos (dois volumes, 2000 páginas.) e adiamentos (mais de duas décadas). O original do volume I só entrou na tipografia em 1895, e o do volume II em 1900, de lá saindo faz agora cem anos. No plano arquitectónico, D. Carolina, tal como Teófilo Braga, conjecturava que um grande cancioneiro geral trovadoresco teria existido, do qual os três

4

Celso Cunha, «Uma carta de Joaquim de Vasconcellos sobre o ‘Cancioneiro da Ajuda’», Boletim de Filologia, n.º XXVIII, 1983, Lisboa, CLVL, Instituto Nacional de Investigação Científica.

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cancioneiros sobreviventes eram cópias parciais. A reconstrução desse cancioneiro, abstraindo de pormenores, fazia-a do seguinte modo (CA, II, pp. 59, n. 2; v. também, no detalhe, o «Índice comparativo» das pp. 183-200): 1 — 90 91 — 391 392 — 442 443 — 450 454 — 478 479 — 1500 1501 — 1578 1579 — 1670

B A A A B B B B

+ B + B + V + B + V + V

Recordemos como descreve o conteúdo ideal deste conjunto (CA, II, p. 210): O Cancioneiro Geral gallaïco-português, reconstituido com a ajuda dos exemplares truncados que possuimos, divide-se em tres partes principaes: Parte I: um Cancioneiro de Amor, […] com todas as cantigas em que, segundo a ingenua interpretação do doutrinal antigo, elles fallam a ellas ou d’ellas, sendo em ambos os casos o thema da conversa o magno e eterno assumpto da vida humana. Parte II: Livro dos Cantares de Amigo, composto de versos em que, conforme a mesma fonte, são damas, e em especial donzellas, as que manifestam os seus sentimentos e por isso mesmo podia receber o titulo de Livro das Donas ou Donzellas que lhe dou ás vezes. Parte III: Cancioneiro de Burlas, com versos de chacota, escarnho e maldizer, em que aberta ou encobertamente, se pecca contra o mandamento oitavo do Decalogo. Este projecto, segundo D. Carolina, não conseguiu ser executado exactamente quanto à distribuição dos poetas, dos poemas e à sua ordenação cronológica, mas é no troço correspondente ao Cancioneiro da Ajuda «que a ordem está melhor estabelecida». Não podia, no entanto, deixar de o reconhecer como truncado, até porque tinha disso obtido provas concretas durante os esforços para encontrar a implantação mais correcta dos fólios provenientes de Évora, e a consequente reordenação de cadernos. Tudo isto servia de argumento para que D. Carolina, em 1880, não se sentisse com vontade de cumprir o inicialmente acordado com o editor Niemeyer, reproduzindo diplomaticamente apenas as secções do códice da Ajuda que não estavam cobertas pelos apógrafos italianos (64 cantigas apenas), para servirem de apenso às edições de Monaci e Molteni. Afinal, estavam ao seu alcance a possibilidade e a atracção de fazer muito mais: a colação dos trabalhos dos dois italianos com os seus próprios materiais sugeria-lhe uma estrutura para o Cancioneiro Geral e fornecia-lhe dados para a reconstituição de arquétipos linguísticos e textuais. No plano da fixação do texto dos poemas, essa reconstituição não é tão ousada como na edificação do Cancioneiro Geral. D. Carolina considera «em regra 18

satisfatória a lição do Códice da Ajuda», pelo que geralmente a adopta, dando em aparato as variantes dos códices italianos; estes contribuem fundamentalmente para a identificação e preenchimento das lacunas e para as atribuições de autoria. É talvez no que respeita à língua do manuscrito que D. Carolina melhor revela os extremos a que estava disposta a ir na reconstrução do passado. Apesar de se declarar preocupada em não desfigurar o carácter arcaico da língua, procedeu a substituições sistemáticas e sérias de grafias. Assim, substituiu as grafias ll e nn, para as palatais, que estão no manuscrito, pelas grafias lh e nh, que a partir da chancelaria de D. Afonso III se começaram a difundir em Portugal. As suas razões são estas: «Bani os símbolos nn, ll por serem estranjeirismos anti-etimolójicos, não sòmente inúteis, mas enganadores. Escolhi nh, lh porque vingaram ainda na época trovadoresca, e arraigaram tão profundamente que hoje constituem um dos traços mais característicos da escrita portuguesa.» (Cancioneiro da Ajuda, I, 1904, XXVII.) Sabe-se hoje, e poderia saber-se então, que as grafias ll e nn, longe de serem estrangeirismos, eram soluções normais na escrita do ocidente da Península Ibérica e continuaram sendo muito frequentes em Portugal durante o século XIII, só a conta-gotas tendo sido substituídas pelas novidades provençalizantes introduzidas pela corte do Bolonhês. Além disto, esta substituição infundada tem a consequência de ocultar aspectos que, como salienta Maria Ana Ramos, são essenciais «quando pretendemos sugerir o perfil dos copistas a quem tinha sido confiada a transcrição deste tipo de cancioneiros» (Introdução, «A edição diplomática do Cancioneiro da Ajuda», à reimpressão de Carter). De facto, a presença no manuscrito da Ajuda das grafias conjecturadas por D. Carolina levaria a pensar em cópia feita na corte portuguesa nas últimas décadas do século XIII, por amanuenses ligados à chancelaria. Embora as grafias autênticas, por estarem muito difundidas, não arredem a origem portuguesa da cópia, também não a impõem obrigatoriamente. Noutro caso, D. Carolina arrepende-se de não ter procedido a substituições drásticas como a antecedente; a propósito da representação da semivogal palatal em ditongos crescentes, lamenta-se nestes termos: «melhor fôra substituir tambem mia, sábia, Pavia por mha, sabha, Pavha» (n. 3). Mas, como anota Maria Ana Ramos, o manuscrito da Ajuda nunca representa este som com h, o que confere ao arrependimento de D. Carolina um tom quase surreal. O seu procedimento nesta matéria não é singular, antes se integra numa espécie de ética restauradora que afligia muitos filólogos oitocentistas. Um outro caso, em tudo idêntico, deve-se a Karl Pietsch na sua edição dos fragmentos arturianos contidos no ms. 1877 da Biblioteca Universitaria de Salamanca (Spanish Grail Fragments, I-II, Chicago, 1924-1925): convencido de que os fragmentos, em castelhano, eram cópias de um original escrito em leonês, sentiu-se autorizado a restituir ao texto as formas leonesas que supunha 19

terem sido apagadas pelos copistas 5. Estas, e bastantes outras, constituem, na sentença de Maria Ana Ramos, «intervenções que se submeteram a intentos normalizadores, nem sempre coesos, que alteram o texto em aspectos gráficos que podem ser essenciais em qualquer análise linguística e que afastam, naturalmente, o códice do seu valor documental» (ibidem). Resumindo: no Cancioneiro da Ajuda D. Carolina não viu um cimélio a descrever e preservar conservadoramente, mas uma peça útil para a reconstituição de edifício maior e mais nobre. Nele, interessou-lhe particularmente descobrir o que lhe terá dado origem e o transcendia. Sendo esses os valores que guiavam os filólogos da sua época, não temos que a julgar com os valores de hoje. Mas podemos perguntar, com Maria Ana Ramos 6, como, depois de introduzir na sua edição, ainda que em apêndice, 157 cantigas que não pertenciam ao Cancioneiro da Ajuda, não lhe ocorreu que ele ficaria muito melhor se se intitulasse Cancioneiro de Amor galego-português. E nós ficaríamos muitíssimo melhor, podendo amar sem restrições de qualquer espécie essa obra máxima da nossa erudição histórico-filológica. Henry Hare Carter, Cancioneiro da Ajuda. A Diplomatic Edition, New York-London, Modern Language Association of America-Oxford University Press, 1941. Reimpressão, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2007. A edição diplomática de Carter constituiu uma reacção natural às liberdades editoriais que D. Carolina tomou para com o manuscrito da Ajuda. Sentia-se, como diz Maria Ana Ramos na Introdução à nova reimpressão, «o vazio de uma edição que nos aproximasse mais do códice, que nos espelhasse, o mais fielmente possível, as suas particularidades e que nos facultasse acesso rigoroso ao corpo gráfico do manuscrito». E que correspondesse, afinal, ao primeiro projecto editorial de D. Carolina, que ela abandonou com estas palavras de bastante literário arrependimento: «Se hoje recomeçasse, seguia outro rumo. Há muito que reconheci quanto melhor teria sido dar logo em 1880 a edição paleográfica para fazer corpo com os outros dois Cancioneiros.» (CA, I, p. vii.) É esta a frase que serve de motor a Carter para a sua edição, uma das muitas que dedicou a textos medievais portugueses e que editou de modo escrupulosamente fiel à letra e às características diplomáticas dos manuscritos,

5

Ivo Castro, «Karl Pietsch e a sua edição dos Spanish Grail Fragments», Actas del I Congreso Internacional de Historia de la Lengua Española (Cáceres, 1987), II, Madrid, Arco-Libros, 1988, pp. 1123-1129. 6 Maria Ana Ramos, «O Cancioneiro ideal de D. Carolina», O Cancioneiro da Ajuda, cen anos despois. Congreso Internacional, 25-28 Maio 2004, Santiago de Compostela, Xunta de Galicia, Consellería de Cultura, Comunicación Social e Turismo, 2004, pp. 13-40).

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nos quais vê documentos linguísticos e não textos literários. A transcrição é muito conservadora, mantendo intactas as abreviaturas e os sinais de pontuação e de acentuação. A paginação respeita as linhas originais do manuscrito, bem como as separações de palavras, que não são objecto de intervenção correctora. Anotações indicam os locais em que há rasuras, erros e emendas por parte do copista. Tudo contribui, assim, para que esta edição produza o salutar efeito de deixar ver as reais características físicas do códice. E, hoje, serve de eficaz complemento à edição fac-similada de que finalmente dispomos. Cancioneiro da Ajuda. Edição fac-similada do códice existente na Biblioteca da Ajuda, com apresentação, três estudos de J. V. Pina Martins, Maria Ana Ramos e Francisco G. Cunha Leão, e índices. Lisboa, Edições Távola Redonda, 1994. Desta edição, direi apenas que é magnificente e que encerra o ciclo das edições que tinham de ser feitas a partir do Cancioneiro da Ajuda. O que não quer dizer que outras não possam ser feitas. Com o que regresso à minha pergunta inicial: falta fazer alguma edição do nosso códice? Nos recentíssimos Fundamentos da Crítica Textual 7, Barbara Spaggiari e Maurizio Perugi abordam esta questão de um ângulo interessante: «um dos progressos mais importantes da filologia moderna» — dizem — «prende-se, sem dúvida nenhuma, à valorização do cancioneiro como produto cultural autônomo e digno de estudo particular». Recordando que a prática mais comum consiste em os editores tomarem os manuscritos como simples suportes dos textos, sem levarem em conta a sua individualidade, aludem concretamente ao caso dos três cancioneiros galego-portugueses para emitir a opinião de que, após meio século de edições construídas em torno da individualidade do autor, «é tempo, talvez, de regressar à organicidade do cancioneiro, retomando o espírito que animou outrora Francisco Adolfo de Varnhagen e, na sua esteira, D. Carolina Michaëlis de Vasconcellos». Este regresso tem duas maneiras de se fazer: uma delas, aquela em que D. Carolina de facto excede todos, é a do estudo do cancioneiro orientado, segundo o programa de Elsa Gonçalves, de modo a «contemplar, não apenas a totalidade do conteúdo, mas também a organização interna (partição e ordenação dos textos, rubricas, apostilas), a materialidade codicológica (características externas [que] podem indicar a função e destino do livro), a sua génese e historici-

7

Barbara Spaggiari e Maurizio Perugi, Fundamentos da Crítica Textual, Rio de Janeiro, Lucerna, 2004, 120 páginas.

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dade» 8. Nesta linha, o conhecimento dos nossos cancioneiros trovadorescos conta com abundantes e sólidas aquisições modernas, devidas entre outros às investigações de António Resende de Oliveira, Anna Ferrari, Maria Ana Ramos e da própria Elsa Gonçalves. A outra maneira de regressar ao Cancioneiro como corpo orgânico e finito parece ser a das edições. Claro está que, na edição de D. Carolina, achamos uma pletora de informações e de reflexões, mas o objecto que nos é proposto não é o códice da Ajuda e sim outra coisa. Mas perguntar-se-á se um leitor que disponha da edição de Carter e da fac-similada não estará habilitado a indagações próprias e proveitosas em torno da unidade codicológica e da compilação que ela abriga. Será preciso mais? Carter achava que sim. Na introdução à sua edição diplomática, anunciou que «[t]he editor hopes to publish a new critical edition», o que lhe valeu um sardónico aparte de William Entwistle: «It is good to know that Dr Carter proposes to make a critical text of the Ajuda codex. We wish him all success, for at this point of criticism enters fallible human judgment.» 9 O dilema de Carter, em que ele, pensando melhor, não entrou, seria o seguinte: a) Ou fazia uma edição crítica que seria de modelo interpretativo nos 64 poemas de que A é testemunho único e de modelo restaurativo nos restantes, recorrendo aos cancioneiros V e B para o ope codicum; b) Ou fazia uma edição crítica que não usasse V e B e emendasse todos os 310 poemas estritamente ope ingenii. No primeiro caso, sujeitava-se a que lhe perguntassem se esperava ser melhor que D. Carolina, que fez o mesmo (e mais um tanto). No segundo caso, teria de justificar a rejeição da restante tradição manuscrita e teria ainda de explicar em que é que a nova edição progredia em relação à sua diplomática, visto que também nessa, aqui e ali, ele tinha procedido a emendas discretas. Não se faz uma edição crítica de testemunho único, quando existem vários outros testemunhos melhores na tradição. Bédier nunca escolheria o Cancioneiro da Ajuda para seu bon manuscrit. E não se faz uma nova diplomática quando existe uma boa. E só se faz uma segunda fac-similada se a primeira for de má qualidade. Portanto, que edição está por fazer? Que pena não termos aqui D. Carolina. Colocada perante esta questão, ela saberia como responder. Mandaria chamar os engenheiros da informática.

8

Elsa Gonçalves, s. v. «Cancioneiro», Biblos. Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa, I, Lisboa, 1995. 9 W. J. Entwistle, recensão crítica a H. H. Carter, «Cancioneiro da Ajuda: a diplomatic edition…», in The Modern Language Review, n.º XXXVIII, 1942, p. 522.

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ANÁLISE PALEOGRÁFICA DAS ANOTAÇÕES MARGINAIS E FINAIS NO CANCIONEIRO DA AJUDA

SUSANA TAVARES PEDRO Centro de História da Universidade de Lisboa

1. INTRODUÇÃO As anotações marginais e finais do Cancioneiro da Ajuda englobam duas grandes séries de marginalia: as notas efectuadas durante a produção do códice e os vestígios posteriores deixados pelos seus leitores, possuidores ou frequentadores ocasionais. Carolina Michaëlis de Vasconcellos, sob o título genérico de «Notas marginais em cursivo», classificou as anotações nas seguintes categorias: «1.º) meras correcções de erros; 2.º) avisos practicos do escrevente ou revisor para o pintor das maiusculas e copista da notação musical; 3.º) reflexões de varios leitores que se entretiveram a recamar a obra dos antepassados com glosas, ora serias, ora galhofeiras.» 1 As «meras correcções de erros» atrás citadas reúnem, de facto, duas categorias de notas, resultado das tarefas primitivas de revisão e correcção do texto. Assim, reagrupei as anotações segundo uma outra tipologia: (1) anotações marginais primitivas: instruções técnicas para

1

C. M. Vasconcellos, Cancioneiro da Ajuda,

II,

p. 167.

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os decoradores do manuscrito, notas do revisor e do corrector; (2) anotações marginais tardias, do punho de leitores, e (3) outras anotações: marcas de posse, de identificação de conteúdo e escritos espontâneos 2. Pouco se sabe acerca do número de copistas que trabalharam no Cancioneiro; Maria Ana Ramos distingue, pela primeira vez e com reservas 3, duas mãos, sendo a segunda responsável apenas pela cópia dos dois últimos cadernos. Na secção dedicada às letras de espera apresentarei dados indicando a presença de uma terceira mão no caderno XII. É de notar que este estudo, após a apresentação da análise realizada, irei concluir com uma breve reflexão sobre as várias fases de produção do manuscrito, uma tentativa de interpretação sugerida pelo riquíssimo material disponível que, ironicamente, só foi preservado porque o códice ficou inacabado. De facto, tivesse a equipa responsável pela execução da obra concluído a tarefa, e a maioria das anotações marginais primitivas teria sido suprimida e, com elas, a possibilidade de se vislumbrar um scriptorium medieval em plena actividade. Este estudo toca, no fundo, todas as pessoas que, em vários momentos e até ao século XIX, deixaram a sua marca nos fólios do Cancioneiro da Ajuda. 2. ANOTAÇÕES MARGINAIS PRIMITIVAS Por anotações marginais primitivas entendo todos os sinais gráficos (alfabéticos e simbólicos) que são contemporâneos da produção do Cancioneiro 4. Classifiquei-as, por conveniência, segundo critérios de destinatário e autor. Agrupei uma primeira série de anotações por destinatário, i. e., a pessoa ou pessoas que fariam uso das notas para a execução da sua tarefa — são, todas elas, instruções técnicas para os decoradores. As dos dois outros grupos, pelo contrário, estão claramente diferenciadas quanto a autor e função: um grupo reúne as anotações do revisor do texto, o outro as do corrector, ou seja, a pessoa cuja tarefa foi a de inserir no texto as emendas assinaladas pelo revisor.

2

Os dados foram recolhidos a partir da edição fotográfica do Cancioneiro e revistos em confronto directo com o manuscrito, cuja consulta agradeço ao Sr. Director da Biblioteca da Ajuda, Dr. Francisco Cunha Leão. Todas as imagens são digitalizações feitas por mim a partir da referida edição fac-similada. 3 Maria Ana Ramos, «O Cancioneiro da Ajuda», p. 38, segundo parecer de Eduardo Borges Nunes: «Contrariamente à opinião geral, desde Carolina Michaëlis a Henry H. Carter, o códice não é dotado de caligrafia de um único copista, mas apresenta, pelo menos, dois momentos bem nítidos, sem ser possível discriminar as mudanças sensíveis no primeiro deles, o que poderia hierarquizar uma sucessão de variedades gráficas.» 4 Excluo da análise os sinais cruciformes, em «xis» ou em «cruz», uns inscritos na margem (v. g., fls. 1v e 2v), outros dentro do olho de iniciais (fls. 27 ou 33v), por não ser clara a sua intenção ou autoria.

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2.1. NOTAS

PARA OS DECORADORES

Durante a cópia do texto os escribas deixaram em branco vários espaços para posterior preenchimento, destinados à decoração do Cancioneiro. Esta compõe-se de três elementos, (1) iluminura, em início de ciclo, sempre na coluna A do recto ou verso dos fólios, sempre seguida de: (2) capital ornamentada, e (3) iniciais filigranadas de vários tamanhos, consoante a sua hierarquia dentro do programa decorativo. Foram também deixadas em branco as áreas destinadas à notação musical, nunca iniciada. Para distinguir entre o responsável pela execução das miniaturas e capitais ornamentadas e o encarregado da decoração secundária — no caso, as iniciais filigranadas (completas e incompletas) — do Cancioneiro, passo a designar o primeiro por «iluminador» e o segundo por «rubricador», ressalvando que esta distinção é puramente funcional e relativa apenas às tarefas em causa e não traduz, da minha parte, qualquer juízo acerca da identidade dos seus autores. Ou seja, para a análise que efectuei não foi relevante perceber se o iluminador foi também o autor da decoração secundária ou se a decoração estava a cargo de um único elemento ou de uma ou mais equipas de artistas. Noto apenas, secundando a opinião expressa por Maria Ana Ramos 5, que tudo indica que o rubricador e o iluminador terão trabalhado em paralelo e não em sequência. 2.1.1. Letras de espera Nos espaços brancos destinados às capitais e iniciais foram inscritas pequenas letras minúsculas conhecidas por letras de espera ou de aviso, para que quer o iluminador quer o rubricador pudessem saber qual a inicial a pintar sem terem de recorrer ao exemplar. São instruções de carácter efémero que, na maioria dos casos, seriam cobertas pelas iniciais pintadas ou, como sucedeu nos três últimos cadernos, suprimidas ou ocultadas no momento da encadernação. As letras de espera são geralmente executadas pelo copista 6, que as escrevia no decurso da cópia. Por duas vezes (nos fls. 13v e 72v), ao iniciar a cópia de uma nova composição, o copista escreveu também a letra destinada à inicial, para a qual deixara o respectivo branco, com a consequente duplicação de letras. Este lapso revela, por um lado, a importância das letras

5 Maria Ana Ramos, «L’éloquence des blancs…», p. 218: «le rubricateur a travaillé à plein sur des sections qui sont vides de tout autre décoration, prouvant que son activité était indépendante de celle du miniaturiste». 6 A propósito das «instructions techniques laissées par les copistes sur les feuillets», Jacques Lemaire afirma: «Dans l’espace réservé à la peinture d’une lettrine ou en marge, à la hauteur de celle-ci, les copistes traçaient la lettre d’attente, destinnée à indiquer au lettriste quelle majuscule devait être dessinée.» (Introduction à la Codicologie, p. 177.)

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de espera para o trabalho dos decoradores e, por outro, a independência destes em relação ao texto copiado, que não conferiam nem corrigiam. As letras de espera inseridas nos brancos (a que chamarei de Tipo A — Gravura 1), escritas em letra gótica semicursiva, diminutas e de traçado finíssimo, estão presentes ao longo de todo o manuscrito, mesmo nos três cadernos finais. Embora a análise tenha sido feita com base apenas em letras isoladas e não em amostras mais ricas (palavras ou sequências de palavras), ainda assim penso que foram feitas por, pelo menos, duas mãos, a primeira presente maioritariamente nos cadernos I a XI, a segunda nos cadernos XIII e XIV 7. Note-se, em especial, o modo como o copista dos dois últimos cadernos trata a haste do D, cujo ângulo com a horizontal é mais aberto do que o do D típico dos cadernos anteriores, e o olho do E, mais fechado e agudo [Gravura 1(a) e (b)].

Gravura 1 — Letras de espera Tipo A — (a) cad. I-XI; (b) cad. XIII-XIV; (c) fl. 24va l. 10

A espessura uniforme dos traços, sem contraste pronunciado entre finos e grossos, leva a crer que terão sido feitos com o canto do bico largo da mesma pena usada na cópia. Este expediente permitia ao copista não interromper o trabalho para trocar de instrumento sempre que fosse necessário inserir uma nova letra de espera; terá sido esta a técnica que usou para decorar com pequenas filigranas algumas maiúsculas com que, por vezes, inicia a escrita de uma nova composição, após o branco reservado à inicial.

7

26

Do caderno

XII

e das questões a que a sua análise deu origem falarei mais adiante.

Nos fls. 8v e 40 e, de forma mais sistemática, nos três últimos cadernos (cadernos XII a XIV), algumas letras de espera (daqui em diante, de Tipo B) foram inscritas nas extremidades das margens laterais. Ainda são visíveis na margem de dorso, junto da dobra dos bifólios, além das dos fólios já referidos, as dos fls. 75v, 76, 78, 80 8, 81v, 84, 84v e 85v 9 (Gravura 2).

Gravura 2 — Letras de espera Tipo B — (a) fl. 8v, (b) fl. 40, (c) fl. 76, (d) fl. 81v, (e) fl. 84: letra de espera e texto

Ao contrário das de Tipo A, estas são letras de módulo pouco menor que o das do texto principal [observe-se nas Gravuras 2(c) e 3(e) a relação entre as dimensões da letra N, em espera, e as das letras que no texto aguardam a respectiva inicial] mas a sua caligrafia é menos formal, própria de uma escrita caligráfica comum de diplomas e não de livros. Nos cadernos XIII e XIV (fls. 79-88) o copista anotou desta forma apenas as letras de espera correspondentes às iniciais de começo de cantiga. Da comparação entre a morfologia dos dois tipos de letras de espera do Cancioneiro ressalta a existência de dois padrões de comportamento distintos: um, próprio das de Tipo A, coerente e sistemático na eleição de figuras preferenciais, seria o modelo seguido (imposto?) no scriptorium; o outro (Tipo B), aplicado de forma pontual e irregular, parece ser da exclusiva responsabilidade dos copistas que, ao desviarem-se do modelo adoptado, usaram formas, dimensão e localização alternativas, reveladoras de outra formação técnica e de outra tradição. Baseio a minha afirmação nos seguintes dados: no desenho das letras de menor dimensão, salvo raríssimas excepções (que podem ser explicadas por intervenção de terceiras pessoas 10), para cada letra do alfabeto usada foi escolhida uma única figura, de entre todas as variantes possíveis do vasto leque

8 Na edição fac-similada a letra de espera do fl. 80, um «s-longo», está tapada por uma pestana (correspondente à lacuna XXIII) na qual, por seu turno, se vê uma outra letra de espera, um «A». 9 Estas letras de espera não foram reconhecidas no índice integrado no volume Apresentação, Estudos e Índices que acompanha a edição fac-similada, onde estão erradamente colocadas entre colchetes rectos as iniciais das cantigas 278, 285, 289, 298, 302, 304 e 307. 10 Em certos casos terão sido os leitores a fornecer a inicial em lacuna (cf. fl. 19vb, l. 6, «m»; fl. 20a, l. 15, «q»).

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de formas modelares minúsculas, unciais e capitais, característico da escrita medieval. A opção por uma forma maiúscula ou minúscula para determinada letra é constante em ambos os copistas [cf. Gravura 2(a) e (b), tal como o é a escolha do alógrafo utilizado]. Assim, são maiúsculas as letras A, G, M e N, minúsculas as B, C, D, E, F, J, L, O, P, Q, R, S, T e U; o M é sempre uncial (ô), o S, um «s-longo» (Æ) e o U, um «u-agudo» de haste alongada (μ). O comportamento dos copistas dos três últimos cadernos e do fl. 40r reforça a noção de diferentes indivíduos com treino, práticas e preferências distintos, nomeadamente no tratamento de elementos codicológicos efémeros e, portanto, de menor importância, como o eram as letras de espera, aos quais se sobrepunha, com maior ou menor rigidez e constância, o modelo privilegiado pelo coordenador do scriptorium onde exerciam a sua actividade. O caderno XII não apresenta praticamente nenhuma das letras de espera do Tipo A, o que me levou a analisar com mais cuidado a escrita da cópia embora, volto a frisar, não tenha sido esse o objecto deste estudo. As observações que se seguem devem ser entendidas apenas como um apontamento, uma chamada de atenção para a necessidade de se identificarem com rigor as mãos dos copistas, matéria que aqui é tratada de forma breve e limitada. Assim, da análise de um número necessariamente restrito de características gráficas, creio poder afirmar que (1) no caderno XII (fls. 74 a 78v) interveio um terceiro copista, que trabalhou a partir do fl. 74v (ou seja, do verso do primeiro fólio), até ao fim do caderno, e (2) o copista dos dois cadernos finais (XIII e XIV) terá escrito também o fl. 40r, no qual se vê a letra de espera da Gravura 2(b). Em apoio destas afirmações forneço exemplos de algumas palavras nas quais consta a letra Z, que considero ser, neste tipo de escritas caligráficas librárias muito regulares e com pouca variação em relação ao modelo formal, uma letra particularmente apta a revelar características gráficas individuais, «tiques» pessoais, por assim dizer. Tem um ductus complexo (Gravura 3) feito em três tempos, com um primeiro traço horizontal que termina num ângulo agudo para baixo e para a esquerda, um segundo traço mediano curvo descendente e um terceiro traço curvo que se liga ao anterior, todos orientados da direita para a esquerda.

Gravura 3 Ductus da letra Z

Chamo a atenção, em particular, para as formas do traço n.º 2, aquele que melhor diferencia a grafia dos três copistas. Comparando os exemplos da Gravura 4, e tendo como assente que, para o efeito, α é a mão dos cadernos I a XI e χ é a mão dos cadernos XIII e XIV, torna-se evidente que β se distingue de ambas no tratamento do traço mediano do Z. 28

Gravura 4 — Copistas do Cancioneiro: exemplos do traçado da letra Z

Em β, este tem uma orientação tendencialmente horizontal e termina numa curva fechada, enquanto em α e, especialmente, em χ, o traço descreve uma curva descendente mais acentuada. A espessura dos traços (esquematicamente representada na Gravura 5) varia consoante a direcção do traço, o ângulo do aparo da pena com a horizontal e a posição do ponto de ataque: em α o arranque (o início do traço) é afilado, porque feito com um movimento diagonal ligeiramente ascendente; em β o arranque é praticamente na horizontal e, por esta razão, o traço tem quase a mesma espessura em todo o seu comprimento; em χ, pelo contrário, o ponto de ataque é bastante baixo, o arranque é longo, fino e claramente ascensional, e o traço descreve uma curva pronunciada.

Gravura 5 — Espessura e direcção dos traços

Estas características conferem ao Z do copista dos dois últimos cadernos um aspecto marcadamente distintivo, que se repete na mão do fl. 40r, razão pela qual penso que podem ser atribuídas ao mesmo indivíduo. Por outro lado, a diferença de figura e ductus entre o Z de α e o de β apontam para uma mudança de mão do fl. 74 para o fl. 74v, e para a identificação de um outro copista. 2.1.2. Indicação de fiinda Em 21 ocasiões, a maioria nos cadernos IV a VII e uma no caderno IX, foi escrita a palavra fiÍjÍdÉ (i. e., fiinda) na margem esquerda ou direita, conso29

ante a coluna de texto a que se reporta. No Quadro 1 dou a lista de todas as ocorrências e a respectiva localização 11.

fl.

col

lin

loc

texto

fl.

col

lin

loc

texto

fl.

col

lin

loc

texto

24 25v 26 26 26 26v 27

A A A A A A B

25/26 25 2/3 5 7 27 14

ME ME ME ME ME ME MD

fiÍjÍdÉ fijdÉ fiÍjÍdÉ fiÍjÍdÉ fiÍjÍdÉ fiÍjÍdÉ fiÍjÍdÉ

27 30 34 34v 34v 34v 35

B B B A A B A

10/11 11 1 9 11 17 24/25

MD MD MD ME ME MD ME

fiÍjÍdÉ fiÍjÍdÉ fiÍjÍdÉ fiÍjÍdÉ fijdÉ fiÍjÍdÉ fiÍjÍdÉ

35v 36 36 37v 41 44 52v

B A A B A B A

4 1 18 12 20 11 1/2

MD ME ME MD ME MD ME

fiÍjÍdÉ fiÍjÍdÉ fiÍjÍdÉ fijdÉ fiÍjÍdÉ fiÍjÍdÉ fiÍjÍdÉ

Quadro 1 — Ocorrências da indicação de fiÍjÍdÉ

A nota, que deve ser entendida como outra categoria de instruções técnicas, está sempre associada a um branco de três linhas reservado para a notação musical. É provável que o aviso se destinasse ao rubricador, para que desenhasse uma inicial de dimensão especial, como afirma Carolina Michaëlis (1904, II, p. 174); a intenção da nota seria assim um aviso para que este não desenhasse uma inicial de cantiga, como a distribuição das linhas de texto poderia sugerir, mas sim uma inicial de menor módulo. Parece-me claro que estas notas foram todas feitas pela mesma mão, a que escreveu as letras de espera Tipo A nestes cadernos. Os exemplos apresentados na Gravura 6 permitem notar a similitude de figura do D, a única letra passível de comparação, com o D das letras de espera da Gravura 1(a). Se, de facto, estas foram da autoria do copista α, então terá sido ele também o responsável pela escrita da indicação de fiinda.

Gravura 6 — Indicação de fiÍjÍdÉ

11

30

A legenda deste quadro e dos seguintes é apresentada no início do «Apêndice».

No entanto, a palavra não aparece estreitamente associada à letra de espera do início da fiinda: por vezes, está situada entre as duas primeiras linhas de texto, ao lado das linhas em branco (fls. 24, 26, 27 e 35), e, no fl. 52v, foi mesmo escrita ao lado das últimas linhas da estrofe que antecede a fiinda. Além disso, como já referi, a nota surge na margem esquerda quando se refere ao texto da coluna A, como seria de esperar, mas passa para a margem direita quando se refere ao da coluna B, o que ainda a distancia mais da letra de espera, sempre no início da linha, no intercolúnio. Por outro lado, a maioria das fiindas não foi assinalada com a nota marginal (Ramos 1984: 13), mesmo quando a disposição da cópia mantém os brancos para a notação musical (fls. 33v, 34v, 38v, 39v, etc.). Nalguns casos parece ter havido hesitação inicial da parte do escriba quanto ao tipo de inicial a inserir, como refere Ângela Correia (texto inédito) 12. Esta assistematicidade não tem explicação evidente, mas pode ser interpretada como consequência da utilização de fontes com modelos diferentes de organização e apresentação do texto, opinião já expressada por Maria Ana Ramos a propósito dos espaços reservados para a notação musical das fiindas (Ramos 1986: 223-24). 2.1.3. Indicação de refrão Ao longo do Cancioneiro encontram-se, além da indicação de fiinda, 10 notas marginais que reúnem a uma letra maiúscula a palavra «refram» (Quadro 2).

fl.

col

lin

loc

texto

fl.

col

lin

loc

texto

51v 57 59 60 60 61

B B A A B B

26 5 6 5 10 3

MD MD ME ME MD ME

D ™eff™Éû Û D ™ef™Éû Û B ™eff™Éû Û Ç ™eff™Éû Û Q ™eff™Éõ Û ∞

63v 66v 66v 71 72

A A B B A

5 5 4 17 5

ME ME MD MD ME

™ef™Éõ Û ff ™ef™Éõ Û ô Û P. ™ef™É[™$]õ Û D ™ef™Éõ Û D. ™eff™Éõ

Quadro 2 — Indicação de ™ef™Éõ

A maiúscula aparece quer à direita quer à esquerda da palavra e deve ser entendida como uma instrução para o rubricador e, nesse sentido, como uma letra de espera. A este grupo pertence também outra nota no fl. 61, um

12 A autora constata que alguns brancos em reserva para a inicial de fiinda foram delimitados por um primeiro traço vertical e, de seguida, por um segundo traço que reduziu a largura do branco a uma dimensão inferior à do das iniciais de cantiga (comunicação pessoal).

31

T não acompanhado da palavra «refram». Todavia, ao contrário das outras letras de espera e das indicações de fiinda, estas corrigem o texto, o que prova que foram feitas após a cópia. Enquanto letras de espera, são de um tipo totalmente diverso dos outros dois comentados no ponto 2.1.1 e não podem ser atribuídas a qualquer dos seus autores. São, sim, da responsabilidade do revisor, e, tal como foi possível detectar comportamentos individuais na opção por determinadas formas literais nos outros tipos de letras de espera, também nestas se pode identificar um critério uniforme na escolha da sua representação gráfica. Formalmente, são letras maiúsculas, acrescidas de pequenos traços de destaque característicos das maiúsculas góticas (Gravura 7).

Gravura 7 — Letras de espera Tipo C — (a) fl. 58; (b) fl. 61; (c) fl. 61; (d) fl. 66v

O revisor assinalou desta maneira apenas os casos em que o copista, ao iniciar a cópia do refrão, escreveu a primeira letra em vez de a tratar como inicial colorida (isto é, quando deveria ter deixado um branco acompanhado de letra de espera). O lapso ocorre sempre na primeira estrofe das cantigas, onde não há mudança de linha a separar o refrão da estrofe. Creio que é seguro concluir que a letra inicial do refrão não estava destacada no exemplar. O revisor terá detectado o engano ao percorrer o resto do texto, onde o refrão aparece sempre numa nova linha; depois de o ter assinalado, a letra desnecessária foi rasurada (excepto no fl. 71, onde permanece no texto o D sopontado e riscado). A adição da palavra «refram» à letra de espera só se pode entender como uma informação complementar, fornecida com o propósito de clarificar a natureza da correcção. 2.1.4. Notas para o iluminador Ao lado de algumas iluminuras (Quadro 3) encontra-se uma palavra, traçada a ponta seca ou plumbagina, destinada ao iluminador ou, melhor, ao artista encarregado de preencher o fundo e, portanto, contemporânea do fabrico do manuscrito.

32

fl.

col

loc

texto

4 15 16

A A A

ME ME ME

ÉzÉf™Éõ Éz[…] ÉcªÉf™Éfl

fl.

col

loc

texto

29 37

A A

ME ME

ÉzÉf™Éõ ÉzÉff™Éfl

Quadro 3 — Notas para o iluminador

Tanto quanto pude ver, é a mesma palavra em todas as instâncias, «açafram»/ «azafram», escrita em letra gótica cursiva. É quase imperceptível (só a detectei quando consultei o original) e na edição fotográfica do Cancioneiro é visível apenas nos fls. 16 e 37. Na Gravura 8 pode ver-se a nota do fl. 16, a mais legível.

Gravura 8 Fl. 16 — ÉcªÉf™Éfl

A presença desta nota ao lado de apenas algumas iluminuras parece indicar que os fundos seriam preenchidos com duas cores-base, alternadamente 13, sendo uma o amarelo-açafrão e a outra a cor usada por defeito, a qual, por esse motivo, dispensaria referência explícita. Como os fundos não chegaram a ser pintados, não sabemos que cor seria. Para confirmar ou invalidar esta hipótese será primeiro necessário confrontar a descrição codicológica mais recente dos cadernos do Cancioneiro com os dados da crítica textual para estabelecer definitivamente a localização das lacunas, tendo em conta que alguns dos fólios em falta conteriam ciclos completos de poemas. Só então será possível perceber se a distribuição desta anotação aparece, de facto, em alternância com a sua ausência. 2.2. NOTAS

DO REVISOR

Em scriptoria organizados, a tarefa de revisão do texto era da competência de pessoas experientes, com maior treino em detectar e assinalar lapsos de cópia. Da análise das anotações marginais primitivas atribuídas tradicionalmente ao revisor do Cancioneiro, torna-se claro que estamos perante duas mãos.

13

Agradeço a Patricia Stirnemann, que em comunicação pessoal (de 12 de Novembro de 2004) me chamou a atenção para esta hipótese.

33

A primeira é, de facto, a do revisor; a segunda, que completou ou substituiu as anotações deste, pertence ao escriba que teve como função inserir as emendas no texto, o qual, na ausência de um termo específico para nomear o responsável por esta tarefa, designei por corrector. Não conheço outro manuscrito medieval onde a intervenção do corrector esteja documentada desta forma. Todos os cadernos, com excepção dos três últimos, revelam a actividade do revisor do Cancioneiro, mais concretamente do fl. 1v até ao fl. 73. Os três últimos cadernos não contêm qualquer anotação do seu punho 14. O revisor assinalou erros 15 e lacunas no corpo do texto, sopontando e riscando letras ou palavras inteiras, marcando sempre os locais adequados com sinais de chamada e, quando necessário, lançou nas margens as formas correctas, introduzidas pelos sinais correspondentes. A maioria dos sinais de chamada (apresentados na Gravura 9) é formada por dois traços oblíquos inclinados para a direita, unidos por um terceiro tracinho ao centro (a e a’); com menor frequência encontram-se dois traços oblíquos simples (b), um único traço oblíquo (c) ou um traço oblíquo acompanhado na base por um ou dois pontos (d). Por vezes um ponto ou um leve traço oblíquo são acrescentados após a emenda escrita na margem, como também se pode ver no exemplo (b). No exemplo (a) mostro, à esquerda, o erro escribal, riscado e encimado pela chamada, e, à direita, a emenda do revisor, com o respectivo sinal introdutório. Este é um dos casos em que o corrector não corrigiu o erro.

Gravura 9 — Sinais de chamada: (a) fl. 4b, l. 14; (a’) fl. 21va, l. 7; (b) fl. 23vb, l. 4; (c) fl. 24va, l. 8; (d) fl. 72va, l. 23

A letra integra-se no grupo das minúsculas góticas cursivas, frequente na documentação portuguesa do século XIII e princípios do século XIV. É uma letra com traços personalizados, própria de uma pessoa com prática de escrita regular.

14 No «Apêndice» dou a lista de todas as anotações marginais primitivas ainda visíveis, da autoria do revisor e do corrector. 15 Importa referir que, para Maria Ana Ramos («L’importance des corrections…», p. 150), algumas destas notas não são correcções mas sim variantes presentes em material pré-arquetípico na posse do revisor.

34

Ao longo do códice podem observar-se ligeiras alterações na espessura dos traços provocadas por mudança no instrumento de escrita. As penas tinham de ser talhadas e substituídas com regularidade, e um bico tão fino como o que traçou estas letras seria submetido a um desgaste mais rápido. Apesar do tamanho diminuto das anotações do revisor, a análise do ductus revela uma única mão em todas as ocasiões. 2.2.1. Estrofe do fl. 68 Carolina Michaëlis teve dúvidas quanto à autoria das anotações marginais dos fls. 68 e 68v, nomeadamente quanto à da estrofe escrita na margem direita do fl. 68: Outras correcções ha, porém, de caracteres maiores, grossos e rasgados, que parecem accusar outra mão, bem mais moderna, e tambem proveniencia diversa. São as que se referem ás cantigas 250, 251 e 253. E como todas se acham dentro de um espaço circumscripto, no cancioneirinho individual de Pay Gomes Charinho, é possivel que derivem não da phantasia de um leitor, mas da comparação com outro texto. Possivel, mas de modo algum certo. Quanto á estrophe inteira, accrescentada a uma poesia da mesma Secção XXVII (No. 250) estou tão pouco segura d’esta interpretação que ao redigir e revêr as provas do texto ainda a quis attribuir ao copista, embora a letra a distancie da mão que escreveu as emendas. 16 Na realidade, as particularidades gráficas do traçado destas anotações não acusam «outra mão, bem mais moderna», mas sim a do revisor. É certo que, comparada com a letra do corrector, também presente nestes fólios, a diferença entre ambas é tão notória (veja-se a Gravura 14, mais adiante) que não podia deixar de provocar a confessada insegurança da autora. Aliás, em nenhum outro ponto as anotações do revisor atingem a extensão das do fl. 68. Na maioria dos casos limitam-se a uma palavra, por vezes parte de palavra, a uma única letra ou, mais raramente, três ou quatro palavras seguidas. Quase todas as anotações de dimensão superior são ou exclusivamente do punho do corrector ou acrescentadas por ele no seguimento da emenda. Contudo, ao confrontarmos algumas palavras do texto da estrofe do fl. 68 com palavras idênticas escritas

16

C. M. Vasconcellos, Cancioneiro da Ajuda,

II,

pp. 173 e 174.

35

pelo punho do revisor em outros pontos do códice, torna-se indubitável que foram traçadas por uma só mão, como se pode comprovar na Gravura 10.

Gravura 10 — Estrofe marginal no fl. 68: confronto com exemplos da mão do revisor

2.2.2. Nota do fl. 9v Uma das consequências da interrupção do trabalho no Cancioneiro da Ajuda é a ausência de identificação dos autores. Esta, como é sabido, é hoje possível através do confronto com o texto de outros cancioneiros, onde a atribuição autoral é indicada, e apenas algumas composições permanecem anónimas por só estarem presentes no da Ajuda. A cantiga do fl. 9v, «Meus ollos gran cuita damor» (A39 na numeração de Carolina Michaëlis), é um destes casos de tradição única. Apenas a primeira estrofe foi copiada e todo o resto do fólio foi deixado em branco. Encontra-se entre os ciclos identificados como pertencentes a Paio Soares de Taveirós e a Martim Soares. Maria Ana Ramos destacou já a importância da sequência de cópia no Cancioneiro para a identificação dos trovadores: S’il est vrai que les textes d’Ajuda sont complètement anonymes, il est vrai aussi qu’ils se trouvent rassemblés par auteur et que la fin d’auteur est signalée par un espace en blanc. 17

17

36

Maria Ana Ramos, «L’éloquence des blancs…», p. 221.

e conclui: On peut donc conclure que, malgré le silence attributif, il faut prendre en considération la séparation des auteurs dans le Chansonnier d’Ajuda. En effet, si on ne peut pas parler d’attribution avec un nom ou prénom explicites, on ne peut pas nier l’existence d’une attribution physique. 18 Na margem do fl. 9v, ao lado da inicial, o revisor escreveu um nome: pŒ dÉpfloflnfltfl (ou seja, Pêro da Ponte, um dos poetas do Cancioneiro; Gravura 11). Tanto quanto sei, nenhum dos editores do Cancioneiro menciona esta nota.

Gravura 11 — Fl. 9v — pŒ dÉpflon fl t fl fl

Sem querer alongar-me neste ponto, deixo todavia uma interrogação: tendo em conta que (1) as composições estão agrupadas segundo um critério de autoria; (2) a cópia da cantiga 39 foi interrompida após a primeira estrofe e (3) o revisor escreveu na margem o nome de Pêro da Ponte, será admissível supor que esta cantiga tenha começado a ser copiada no sítio errado e a nota do revisor seja uma chamada de atenção para o lapso? É certo que a composição não reaparece no ciclo de Pêro da Ponte. Embora a nota não possa ser considerada uma rubrica atributiva, é a única referência explícita a um autor em todo o Cancioneiro. 2.3. NOTAS

DO CORRECTOR

Nem todas as emendas do revisor foram acompanhadas por anotações do corrector. Estas ocorrem nos casos em que a correcção implicou uma alteração substancial no texto já copiado, com rasura de uma quantidade relativamente extensa de palavras, por vezes de mais de uma linha de escrita. A título de exemplo, mostro na Gravura 12 a sequência das várias intervenções que afectaram

18

Idem, p. 222.

37

o texto das linhas 5 a 8 no fl. 10va: por cima da anotação marginal do revisor (Æenfloß fl )fl o corrector escreveu o equivalente a três linhas de texto. Pela extensão da nota, é de supor que a palavra «senhor», a segunda palavra da l. 5, fora omitida na cópia original pois só desse modo a sua inserção provocaria, como provocou, um reajustamento considerável da escrita, que nesta secção se estende entre as duas linhas de justificação da coluna. O corrector anotou na margem o texto que calculou ter de apagar e reescrever 19 e procedeu à correcção. Conseguiu fazê-lo sem ter de escrever todo o texto previsto. A nota do corrector diria: [ùoÆt™o Æenfloß c]omo iÉcªo coitÉdo mo™™flefld ÉÆÆi entÉl pode™ dÉmo™ [qfl me tolleu ]o ÆÆeû ˆ mÉl pecado . Élme tolle d‹ qfl me ffaz mas parou a correcção em «de que», na l. 7, deixando intocadas as palavras «me faz», no início da l. 8. Para adaptar o texto ao espaço disponível, comprimiu a letra: na imagem pode ver-se como a escrita das l. 5 a 7 é mais cerrada que a da l. 8, da cópia original.

Gravura 12 — Notas do revisor e do corrector e correcção — fl. 10va, l. 5-8 (imagem manipulada 20)

Parece-me evidente que o corrector, antes de apagar e reescrever o texto, se viu compelido a escrever na margem a versão já emendada. O seu objectivo é claro — evitar esquecer-se das palavras a escrever. Quer isto dizer que o

19

A nota do corrector ficou bastante truncada após a encadernação; do número de palavras em falta podemos supor que os bifólios originais teriam, pelo menos, mais 10 mm de largura. 20 No original há três linhas em branco entre as linhas de escrita, destinadas à notação musical, que suprimi na reprodução.

38

corrector não tinha disponível o exemplar para se guiar? Ou seria, mais prosaicamente, uma forma de poupar tempo, dispensando o confronto constante com o texto do exemplar? A intervenção do corrector estende-se do fl. 2v ao fl. 72, embora a primeira ocorrência de uma nota pelo seu punho só seja visível no fl. 3v. Isto deve-se ao facto de, nos fólios iniciais, tal como em várias outras ocasiões, o corrector ter apagado a emenda do revisor. No manuscrito podem ver-se ainda as manchas e irregularidades na superfície do pergaminho onde as emendas foram raspadas. Algumas são ainda perceptíveis, como a que se vê na margem do fl. 7b, l. 15 (Gravura 13), onde a emenda «sol» foi substituída por uma nota mais completa do corrector e, depois, rasurada.

Gravura 13 — Revisão rasurada (a) e substituída (b) — fl. 7b, l. 15

Nos fls. 72v e 73 (onde cessa a actividade de revisor) todas as emendas ficaram por corrigir, bem como as dos fls. 42v a 45v (verso do último fólio da primeira metade e toda a segunda metade do caderno VII 21). Nestes fólios não há qualquer anotação do punho do corrector. Por outro lado, o corrector saltou muitas das emendas marcadas apenas no texto, sem chamada marginal, o que revela que se guiava principalmente pelas emendas marginais do revisor. Observando as anotações, podemos deduzir quais as etapas deste trabalho. Em primeiro lugar, o corrector identificava a emenda marginal e o texto a corrigir; em seguida, consoante a natureza e extensão da intervenção requerida, passava de imediato à raspagem do texto errado e inserção da versão correcta, ou reformulava primeiro a emenda, de uma de duas maneiras: substituindo-a por uma nota mais extensa ou completando-a. Em qualquer dos casos, reproduzia na margem o texto que calculava ter de anular antes de proceder à correcção. Por vezes, rasurava a emenda. Só depois de finalizada a correcção, passava à emenda seguinte. Na Gravura 14 podem ver-se anotações onde as duas mãos estão presentes lado a lado. Em todos estes casos o corrector completou a nota do revisor que, nos exemplos 14(a) e 14(b), se encontra delimitada à esquerda pelo sinal de chamada e à direita por um ponto.

21

No «Apêndice», col. «N», estão assinaladas todas as ocasiões em que o corrector deixou uma emenda marginal sem correcção.

39

Gravura 14 — Anotações do revisor completadas pelo corrector — (a) fl. 12b, l. 12; (b) fl. 26b, l. 13; (c) fl. 29b, l. 2; (d) fl. 12vb, l. 2

3. ANOTAÇÕES MARGINAIS TARDIAS No manuscrito do Cancioneiro da Ajuda há um número considerável de marginalia que Carolina Michaëlis designa genericamente por «reflexões de varios leitores». Ao contrário das anotações estudadas nos pontos anteriores, circunscritas cronológica e espacialmente ao momento de produção do manuscrito e feitas pelos agentes responsáveis por algumas etapas da sua execução, as cerca de 60 anotações tardias, atribuíveis a mais de um executante, foram escritas por indivíduos que se relacionaram com o manuscrito apenas enquanto utilizadores. Diferem entre si na autoria, na cronologia e na atitude expressa, que se divide entre apreciações acerca da qualidade das composições, comentários directos sobre o seu conteúdo e, numa ocasião, introdução de uma versão alternativa do texto. 3.1. DE

COMENTÁRIO

Um primeiro grupo de anotações, em número de 28, comenta directamente o conteúdo de várias composições (Quadro 4). A maioria, em tom jocoso, pertence a uma só mão (Gravura 15) — a mão A —, que, tendo comentado profusamente o texto em quase todos os fólios do primeiro caderno, só reaparece no final do Cancioneiro, nos cadernos X, XIII e XIV. (É impossível saber se nos fólios em falta haveria alguma nota, desta ou doutra natureza.) Espacialmente, as observações escritas pela mão A estão sempre situadas muito perto da caixa de texto; no fl. 1 duas das notas chegam mesmo a sobrepor-se a traços da filigrana que decora a inicial e a do fl. 81v principia dentro da caixa de texto.

40

fl.

col

lin

loc

1

A

18/19

ME

1 1 3v 4v 4v 4v 4v 4v 5 5 5v 5v 6 6 7 7v 7v 62 62v 62v 62v 62v 63 81v 88v

A B B A A A B B A A A B A B B A B B A A B B A B A

21/22 -15/16 5/6 9/10 21/22 9/10 24 14 -26 9 14/15 3 23 11 14/15 4 21 6 7 16 7 15 18/19

ME MP INT ME ME ME MD MD ME MP ME INT NE ND INT ME INT MD ME ME MD MD ME MD ME

texto

diz u›dÉde

eÆte ÉviÉ eflveiÉ Éo¨ qfl viÉ eÆtÉ tijnhÉ ÆÆuÉ ÉlmÉ mÉll fÉziÉlhe peÆÉß eÆte efl nÉ õ‘ oßÉ poi¨ fÉzelho bebeß Æobre o cheiro õ‘ Œ pode ÉllÉ fe eÆtÉÉ beõ ÆÉteÆftflofl bofe ÆÆy ma¨ õ‘ Œ mÉtÉllo eÆte leixÉ o¨ feitÓ Édeo¨ cÉlÉß out œ Œ diÉ te veßÉ mylhoß he õ‘ Œ dizello logo eßgo guÉßte ˆcÉlÉte lÉtiõ ™™eÆpondeolhe edeÆte Ép‰ndeo joÉm de menÉ fiÍno t — ŒbÉÆÆe¨ tu bem ˆ nflofl lhe gÉbÉßÆÆenÓ queß ÉndÉe efl eßÉ mflÉflÉflofl vÉde¨ epo– eÆte ÆÆe diÆe g¿dÉdo he Éo demo Éo demo o Émoß

mo™™eß penÆÉdÉ Œ ÉmÉß

peÆÉßÉ quflefl deo¨ guÉßdÉ

Quadro 4 — Comentários da mão A

Gravura 15 — Comentários ao conteúdo

I

— mão A

Escritas em momentos diferentes, como revelam as alterações no tom da tinta, na espessura dos traços, no módulo das letras (menor nos fls. 62v e 63, maior nos 41

fls. 4v e 62, por exemplo) e na velocidade do traçado (veja-se na Gravura 15 como a escrita do fl. 1 é mais pausada do que a do fl. 81v), foram certamente feitas por alguém que frequentou o Cancioneiro durante um período de tempo relativamente longo. Maria Ana Ramos, no estudo em que debate a identificação do «Pêro Homem», provável possuidor do Cancioneiro, sugere que a ele se poderia atribuir a autoria (apenas) da nota marginal do fl. 62v, onde se lê: «edeÆte Ép‰ndeo joÉm de menÉ» 22. Creio, repito, que todas as notas incluídas no Quadro 4 foram escritas pela mesma mão. A letra deste comentador é uma gótica cursiva comum, mais propriamente a letra joanina típica do século XV em Portugal. Há apenas dois comentários ao conteúdo dos poemas que não foram escritos pela mão A. (Quadro 5.) fl.

col

lin

loc

texto

23 42v

B A

22 MD RŒ (?) | bfloflofl diz› dÉÆÉfl[…] 5 ME […]mÉl Éqflefl qflßfl beõ É ÆuÉ ÉmyÏgo […]l Éflqflßfl mÉl [# lhe≠?] qflßfl Quadro 5 — Comentários da mão B

Encontram-se nos fls. 23 e 24v e estão hoje ambos truncados por, ao contrário dos da mão A, terem sido escritos na margem, junto ao que seria o corte de goteira original (Gravura 16). A nota do fl. 23 foi enquadrada entre linhas horizontais e verticais (parto do princípio que na extremidade direita teria havido uma linha vertical a fechar o rectângulo), a linha inferior decorada com pequenos ornatos alongados e à esquerda, entre as linhas horizontais mas fora do rectângulo, está o que parece ser um R maiúsculo cursivo com um O sobreposto, a forma medieval corrente da abreviatura do nome próprio «Rodrigo». É uma figura tão típica e tão comum na escrita medieval que não imagino que possa receber outra interpretação, mas confesso que a explicação para a sua presença neste contexto me escapa completamente. Ambas as anotações parecem ter sido feitas pela mesma mão, também no século XV.

Gravura 16 — Comentários ao conteúdo II — mão B

22

Maria Ana Ramos, «Invoco el rrey Dom Denis…», p. 171. O artigo inclui boas reproduções da nota e da assinatura.

42

3.2. DE

QUALIFICAÇÃO

Alguns leitores distinguiram 17 composições com apreciações qualitativas (Quadro 6), classificando-as com o adjectivo «boa», por vezes reforçado com «mui» ou «muito». fl.

col

loc

texto

mão

fl.

col

loc

texto

mão

1v 3 6v 16 18 19v 19v 20 20

A B A A B B B A A

ME INT ND ME MD MD INT ME ME

boÉ boÉ boÉ ôujto boÉ muj boÉ X boÉ X boÉ X boÉ X boÉ

? A A C C C C C C

22 22 22v 23v 26 33 68 71v

A B A A B A A A

ME MD ME ME MD ME ME ME

X boÉ X boÉ X boÉ boÉ mujto boÉ mujto boÉ X ôujto boÉ muj muj ‘ Œ boÉ

C C C ? C? C? C C

Quadro 6 — Notas qualificativas

A maioria das notas foi escrita pela mesma mão, aqui identificada com a letra C, que em oito ocasiões realçou o comentário com uma cruz (Gravura 17) 23. As notas dos fls. 26 e 33 podem ter sido também escritas pela mão C, mas com uma pena de bico mais fino. O principal autor dos comentários ao conteúdo dos poemas (a mão A) também adjectivou duas composições; tenho dúvidas quanto à nota do fl. 1v, por ser pouco legível, e quanto à do fl. 23v, que parece ser de uma outra mão.

Gravura 17 — Notas qualitativas — mãos C e C?

Se, de facto, as anotações qualitativas (exceptuando as atribuíveis à mão A) tiverem sido escritas por mais de uma mão, as diferenças entre elas são tão diminutas que se torna forçoso situá-las em momentos cronologicamente

23

Carolina Michaëlis interpreta erradamente este sinal cruciforme como um C maiúsculo: «Um artista estudioso, amador sincero e serio dos versos plangentes do velho Portugal, distinguiu por meio dos epithetos boa, mui boa (ou muito boa), e mui mui boa, precedidos ás vezes do substantivo abreviado C(antiga) umas 18 trovas que mais lhe agradaram, posto que em grau differente.» (1904, II: 175.)

43

muito próximos. Em termos de tipologia de escrita, pertencem igualmente à vasta família das góticas cursivas comuns, já influenciadas por certas características bastardas, visíveis na inclinação tendencial das hastes para a direita e em certos maneirismos semicaligráficos, aqui representados no ângulo artificial da junção da haste do B do fl. 22 com a base (na Gravura 17), um efeito necessariamente voluntário e «conta-cursivo» pois duplica o número de traços de um elemento tradicionalmente feito em apenas um tempo. No que respeita à data em que as anotações terão sido escritas, há exemplos deste tipo de escrita na documentação portuguesa entre finais do século XIV e inícios do século XVI. 3.3. ESTROFE

DO FL.

33

Mais tardia é a mão que, na margem direita do fl. 33, escreveu uma variante da primeira estrofe da cantiga A130 24. Actualmente encontra-se quase ilegível no manuscrito; infelizmente, o seu estado deteriorou-se desde o século XIX e já não é possível realizar uma leitura tão completa como a que Carolina Michaëlis apresenta, ou confirmar a justeza das alternativas sugeridas por Brito Rebelo 25. A letra desta mão D é mais recente que qualquer das outras até agora analisadas. É uma letra humanista, de finais do século XVI ou de princípios do XVII, e tem algumas semelhanças com a de Gonçalo Gomes Mirador, o leitor que ensaiou a sua assinatura no fl. 86v (v. Gravura 19, mais adiante). 4. OUTRAS ANOTAÇÕES Do restrito número das anotações marginais tardias que não se enquadram nas categorias atrás indicadas (Quadro 7) e para as quais não encontro outra explicação senão a tentação sentida pelos seus autores de deixarem a sua marca no pergaminho do Cancioneiro, realço uma, pela única razão de ter sido alvo de comentário por parte de Carolina Michaëlis. fl.

col

lin

loc

23v 70 71v

A B A

5/6 -7

ME MP ME

texto

cÉ–tuxo DonÉ ô¬ É johÉfl de [***]

Quadro 7 — Outras anotações

24 25

44

C. M. Vasconcellos, Cancioneiro da Ajuda, I, p. 263. C. M. Vasconcellos, Cancioneiro da Ajuda, II, p. 1782.

É a nota marginal do fl. 23, e a autora, a propósito «dos avisos ao iluminador», diz o seguinte: «Uma vez, referindo-se a um E, em principio de estrophe, destinou-se que pintassem um e altuxo (CA 92).6)» e, na respectiva nota de rodapé, acrescenta: «No CB ha junto á cantiga 266 (= 252) a nota cartuxo. Será erro por: o altuxo? Ou nome de auctor alias desconhecido?» 26 Ora, como se pode confirmar na Gravura 18, a palavra escrita no Cancioneiro da Ajuda é, precisamente, «cartuxo» (século XV), a mesma palavra que se encontra no Cancioneiro da Biblioteca Nacional.

Gravura 18 Fl. 23v — cÉ–tuxo

4.1. MARCAS

DE POSSE E DE IDENTIFICAÇÃO DE CONTEÚDO

Pouco se conhece da história remota do códice que reúne o fragmento do Nobiliário do Conde D. Pedro e o do Cancioneiro da Ajuda. Estudos como o já mencionado de Maria Ana Ramos (Ramos 1999), construído em torno da assinatura pŒ homefl, têm procurado responder a interrogações sobre que livrarias terão acolhido os manuscritos e quais os seus proprietários antes de terem sido identificados na Livraria do Real Colégio dos Nobres, no século XIX. As assinaturas de Pedro Homem nos actuais fls. 86v e 88v são indubitavelmente marcas de posse. Como é sabido, o fl. 88 esteve outrora colado ao primeiro plano da encadernação, facto que por si só explica a presença quer da assinatura quer da nota «das linhagens», em cursivo gótico de finais do século XV/princípios do século XVI, que identifica o conteúdo do primeiro fragmento, o Nobiliário… (Quadro 8). fl.

loc

Marcas de posse

fl.

loc

Notas de identificação de conteúdo

86v 86v

MC CD

77 88v N-15v

C MC CD

åÆte lyuro he de c[aflt?]o dɨ liÍnhÉgefl¨fl åÆte he o liuŒ do ÆellÉdo

87

C

88v

MC

pŒ homefl guoncªÉlo guomez mißÉdor guoncªÉlo guomez guoncªÉlo guomez mirÉdoß eÆte liuro hez docolÉco do imfÉfltfl pŒ homefl

Quadro 8 — Marcas de posse e notas de identificação de conteúdo

26

C. M. Vasconcellos, Cancioneiro da Ajuda,

II,

p. 174; I, pp. 194 e 195.

45

Outras notas fazem menção ao conteúdo dos manuscritos. No Nobiliário, no fl. 15v (caderno I), há uma nota que diz «Este he o liuro do sellado», escrita também nos séculos XV-XVI, e que se refere ao relato da Batalha do Salado, no caderno seguinte. Já no Cancioneiro, numa nota no fl. 77, de tinta muito empalidecida, penso poder ler «Este liuro he de canto(?)», aludindo à disposição do texto, preparado para receber pauta musical, e à função que o livro teria. Tem uma grafia semelhante à da nótula anterior mas não foi feita pela mesma mão. Quanto à nótula do fl. 87 «este liuro hez do colaco do infãt», a grafia «hez», que interpreto como um castelhanismo (apesar da utilização peculiar do –z final, que poderá eventualmente reflectir ou a proveniência regional do autor, ou alguma indecisão/insegurança na representação da sibilante final), e o tipo de escrita, uma gótica «cortesana» (um estilo de caligráfica usual característico da corte espanhola desde o século XIV), levam-me a crer que poderá ter sido feita por alguém educado em ambiente estrangeiro, provavelmente um castelhano aculturado residente em Portugal. (Note-se, porém, o uso dos pronomes possessivos «do», e não «del».) Por este motivo, dato-a, com algumas reservas, de meados do século XV. Os ensaios de assinatura de Gonçalo Gomes Mirador, no fl. 86v, foram parcialmente apagados por lavagem. Não consegui recolher quaisquer dados sobre a identidade do seu autor nem estou segura de que se trate, efectivamente, de uma marca de posse. Por outro lado, quanto à hipótese de ter sido ele o responsável pela estrofe marginal do fl. 33, o mau estado de ambos os textos e a sua diversa natureza não me permitem formular uma opinião conclusiva. As assinaturas parecem experiências de caligrafia de alguém que procura uma assinatura própria, propositadamente embelezadas com extensões artificiais das letras finais, enquanto a escrita da estrofe revela maior fluidez, simplicidade e cursividade de traçado, sendo porém possível que tenham sido escritas pela mesma pessoa, em momentos diferentes.

Gravura 19 — Assinaturas de guoncªÉlo guomez mißÉdor — fl. 86v

46

4.2. ESCRITOS

ESPONTÂNEOS

As restantes nótulas, espalhadas por toda a área do fl. 87, devem ser entendidas no contexto daquilo a que Armando Petrucci designa como «scritte spontanee» 27. Estes escritos têm sido tradicionalmente classificados como testes de pena (essais de plume), com que os escribas experimentavam o talhe dos aparos, mas Petrucci salienta que, nos códices medievais, os vestígios de escrita espontânea nas zonas sem texto nem sempre são da responsabilidade dos escribas (Petrucci 1992: 61). Segundo o autor, as escritas espontâneas revestem a forma de textos breves, compostos de nomes, provérbios, pedaços de orações, frases ou desenhos obscenos, etc., que «respondem a uma necessidade pessoal de expressão gráfica própria dos alfabetizados e semialfabetizados que não são profissionais da escrita mas que sentem, em determinadas circunstâncias, a necessidade de deixar um vestígio de si através da escrita» 28. Desenhos, frases obscenas, nomes próprios, fórmulas intitulares fragmentárias, ensaios de pena: podemos encontrar exemplos de todos no mosaico gráfico do fl. 87. Na zona de cabeceira lê-se o seguinte: «Eu que da muy Nobre çidade tenho apilido, ffalo e digo a quem te escrevo/E quem te acabar de lleer tenho-te por fodido[?].» As últimas palavras foram apagadas. Por baixo desta frase, há uma resposta ou comentário do mesmo teor, de outra mão: «quem tal bitafe fez nom foy mais mjsurado mas se tal […]uer fodo-o hum aseio». Sob esta, uma outra mão começou a copiar a mesma frase. Da mesma maneira, por baixo da nota «este lyuro hez do colaco…» podem ver-se, a custo, as palavras «este liuro» e um borrão onde algumas palavras foram canceladas por lavagem. Quanto a nomes próprios, deixaram a sua marca: «Aafomso pelagus», «aluaro uaasquez ho ca[…]» e, no corte inferior, em duas nótulas truncadas: (1) «Reuerende pater jn cristo dominy joanes fernandy presbiter efici[?] […] dioce[…] de […]»; (2) «Joham afonso cegouj[?] […] boa […]». Esta última, de difícil leitura, parece ter sido feita pela mão que escreveu a frase «Dom Eduarte pela graca de deus rei de putugal [sic] e do algarue e senoor de ceta», um exemplo de uma fórmula protocolar muito frequente no início das cartas régias, a intitulação do monarca. Não creio que seja mais do que um ensaio de pena, ou um escrito espontâneo, igual aos que foram escritos no fl. 15v do Nobiliário, onde por exemplo se lê «Corregedor amigo eu vos mando da» ou «almirante do mar amigo nos el rey». Por outro lado, estes fragmentos de aberturas protocolares (de carta, correspondência ou alvará régios) sugerem que, num momento anterior à encadernação que truncou as nótulas do corte inferior, o códice se encontrava num ambiente próximo da corte ou da chancelaria régia, onde o emprego destas fórmulas era quotidiano.

27 28

A. Petrucci, Medioevo da leggere…, p. 60. Idem, ibidem (tradução minha).

47

5. CONCLUSÃO A análise das anotações marginais e finais do Cancioneiro da Ajuda, pelo que revela sobre as fases de execução do manuscrito (e sua utilização posterior), reafirma o carácter ímpar do códice no panorama da produção do livro medieval. O Cancioneiro da Ajuda, enquanto objecto codicológico, é ainda um enigma por resolver. Penso, ainda assim, que os dados que apresento podem ser um contributo para se compreender melhor as circunstâncias que rodearam o seu fabrico e os agentes que intervieram na sua execução. Por outro lado, creio que as questões levantadas a partir da análise das anotações marginais primitivas mostram a necessidade premente de se realizar um estudo codicológico e paleográfico mais profundo e abrangente do Cancioneiro da Ajuda. Estou certa de que dos resultados desse estudo se seguirão dados fundamentais para se proceder, finalmente, a uma nova e mais completa edição do Cancioneiro, cuja necessidade se faz já sentir. 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Cancioneiro da Ajuda, edição fac-similada do códice existente na Biblioteca da Ajuda, Lisboa: Edições Távola Redonda-Instituto Português do Património Arquitectónico e Arqueológico-Biblioteca da Ajuda, 1994. LEMAIRE, Jacques, Introduction à la Codicologie, Louvain-la-Neuve: Université Catholique de Louvain-Institut d’Études Médiévales, 1989. PETRUCCI, Armando, Medioevo da leggere. Guida allo studio delle testimonianze scritte del Medioevo italiano, Torino: Einaudi, 1992. RAMOS, Maria Ana, «A transcrição das fiindas no Cancioneiro da Ajuda», Boletim de Filologia, n.º 29, 1984, pp. 11-22. — «L’éloquence des blancs dans le Chansonnier d’Ajuda», Actes du XVIIIe Congrès international de Linguistique et Philologie romanes, Aix-en-Provence: Publications de l’Université de Provence, vol. 8, 1986, pp. 215-224. — «L’importance des corrections marginales dans le Chansonnier d’Ajuda», Actes du XXe Congrès international de Linguistique et Philologie romanes, Tübingen und Basel: A. Francke Verlag, vol. 5, 1993, pp. 141-152. — «O Cancioneiro da Ajuda», Cancioneiro da Ajuda. Apresentação, Estudos e Índices, Lisboa: Edições Távola Redonda-Instituto Português do Património Arquitectónico e Arqueológico-Biblioteca da Ajuda, 1994, pp. 27-47. — «Invoco el rrey Dom Denis… Pedro Homem e o Cancioneiro da Ajuda», Actes del VII Congrés de l’Associació Hispànica de Literatura Medieval, ed. Santiago Fortuño Llorens, Tomàs Martínez Romero, Castelló de la Plana: Universitat Jaume, vol. 3, 1999, pp. 127-185. VASCONCELLOS, Carolina Michaëlis de, Cancioneiro da Ajuda. Edição crítica e commentada, 2 vols, reimp. anastática, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1990 (Halle: Max Niemeyer, 1904). 48

7. APÊNDICE Legenda dos quadros: fl. — fólio col — coluna lin — linha loc — localização no fólio N — emenda não corrigida R — emenda apagada por raspagem C — centrada CD — centrada à direita CE — centrada à esquerda ENTR — entrelinha INT — intercolúnio MC — margem de cabeceira MD — margem direita ME — margem esquerda MP — margem de pé N — Nobiliário Convenções de transcrição paleográfica: […] tex[to]

texto ilegível por dano no suporte com número de letras e/ou palavras indeterminado restituição de letra ou sequência de letras ilegíveis por dano no suporte em contexto gráfico ou textual que permita uma conjectura segura leitura conjectural de letra ou sequência de letras parcialmente ilegíveis letra ou sequência de letras ilegíveis substituição escribal de letra por emenda (leia-se «um T emendado de um C») interpolação escribal na entrelinha superior anulação de texto por raspagem ou lavagem (legível) anulação de texto por riscado (legível) texto precedido de sinal de chamada

tex[to?] [*] [***] tex[c$]to [#texto] Û texto

Quadro — Emendas e correcções marginais no Cancioneiro da Ajuda fl.

col

lin

loc

anotação do revisor | anotação do corrector

1v

b

14

md Û e

3v

b

2

md Û

3v

b

4

md c™eede que Émfljfl e

corrector

4

a

14

me Û e

revisor

x

4

b

14

md Û cªeey

revisor

x

o | todo uoleu ÆemefldÉ [#É] mo™te

mão(s)

revisor cuydÉÅ

N

R

x

ÉÆof™e™ revisor | corrector

49

fl.

col

lin

5

b

17

md Û ÉÍõ.

revisor

5

b

20

md Û Comogeu | uiu e nflofl po™Él

revisor | corrector

5v

a

3

me Û r

revisor

5v

a

17

me Û a

revisor

5v

b

4

md Û mete™ofl menÆeu~

revisor

5v

b

7

md Û beno~

revisor

6v

a

7

md Û e

revisor

6v

a

10

me Û r

revisor

6v

a

27

me e

revisor

6v

b

5

md Û pÉ™ti

revisor

7

b

14

md ¢de™

corrector

x

7

b

15

md

revisor

x

7

b

15

md Æol poß uo¨ uee™

corrector

7v

b

5

md Û o

revisor

7v

b

22

md Û e

revisor

10

a

24

me

revisor

10v

a

5

me […]omo iÉcªo coitÉdo mo™™flefld ÉÆÆi entÉl corrector pode™ dÉmo™ […] o ÆÆeû ˆ mÉl pecado . Élme tolle [#d‹] qfl me ffaz

10v

a

5

me Û Æenfloflßfl

revisor

10v

b

21

int ˆ

revisor

11

a

24

me Û mo™™endÉÆÆi

revisor

11

b

21

md Û qfl | d≠fl nofl qfl™ qfl me uÉllÉdeÆ

revisor | corrector

11

b

22

md Û me | qfl qfli™ÉdeÆ miÉ coitÉ c™ee™

revisor | corrector

11v

a

19

me Û log

revisor

12

b

12

md Û uoÆ. | ueio de todeu beû eyÏ

revisor | corrector

50

loc

anotação do revisor | anotação do corrector

mão(s)

N

R

x

x x

x

fl.

col

lin

loc

anotação do revisor | anotação do corrector

mão(s)

N

12v

b

2

md Û muy | bofl pa™ecªe™

revisor | corrector

12v

b

9

md Û e

revisor

13

a

17

me Û poiÆ

revisor

13

b

1

md yÏ

revisor

13

b

9

md Û ˆ enlle

revisor

13

b

22

md Û foß

revisor

13v

b

16

md a ÆÉbe™

revisor

18v

a

8

me Û me

revisor

18v

b

6

md Û fÉze™ | poiÆ eu nflofl

revisor | corrector

19

b

10

md Æe nflofl uedeÆ qfllle ™oga™eyÏ eu

corrector

20v

a

3/4

me Û me

revisor

20v

a

4

me Û de me p·gufltflÉ™ iÉ

corrector

20v

a

5

me Û en

revisor

20v

a

6

me qfl qfl™™iÉ nullÉ ™™efl

corrector

21

b

18

md Û befl | mÉyÏoß cÉ mifl

revisor | corrector

21

b

19

md Û iÍÉ

revisor

21v

a

7

me Û uoÆ

revisor

23

a

5

me Û miÉ

revisor

23v

a

23

me Û e

revisor

23v

b

4

md Û tÉl.

revisor

24

b

22

md Û el me ~

revisor

24v

a

5

me Û por uoÆ

revisor

x

24v

a

8

me Û e

revisor

x

25

b

1

md qfllfllfle q«≠ Æe‡p‚ dout¿ ™efl

corrector

25v

b

22

me eu uiÆÆ e poß aqflÆto nflofl

corrector

R

x

51

fl.

col

lin

loc

26

a

2

me dfl≠fl delÉ befl nflefl deÆÆi

corrector

26

b

13

md Û uÉlue™É | de mo™™e™ entoû

revisor | corrector

26v

a

14

me Û meyÏ

revisor

26v

a

19

me Û tolle™ podiÍÉ

revisor

26v

b

3

md […] meu Æefl

revisor

26v

b

3/4

md O™É ueieu qfl fiz muyÏ g™Éfl foliÉ/ˆ qfl¢di corrector Éli todo meu ÆÆeû.poß qfl dixe/cÉ nflofl qflriÉ [# g™Én] befl

27

b

10

md nfluflcflÉfl ¢ Æeu g™ado

corrector

27v

a

11

me Û o

revisor

27v

a

13

me Û elÉ

revisor

27v

a

27v

a

14

me Û Æe™É | ÆÉbedo™

revisor | corrector

28

a

2

me Û amjÍ

revisor

28

b

14

md Û eu | beû ¢ boflÉfl ffe

revisor | corrector

29

b

2

md poß uoÆ moßto foß | nofl mio pode™edeÆ revisor | corrector fÉ[…]

30

a

5

me

revisor

30

a

5

me befl uoÆ qfl™o

corrector

30

a

14

me eu

revisor

30

a

14

me qfluÓ eu

corrector

30

a

18

me Û uoÆ

revisor

30v

a

5

me Û e

revisor

31

a

8

me Û o

revisor

31

a

8

me o Éme come mjfl

corrector

31

a

9

me Û todeÆto

revisor

52

anotação do revisor | anotação do corrector

13/14 me […] muyÏ g™Éfl coyÏtÉue™

mão(s)

N

R

x

x

x

corrector

x

x

x

fl.

col

lin

loc

anotação do revisor | anotação do corrector

mão(s)

31

a

9

me poß todeÆto mÉldiÉ nacªi

corrector

31v

a

2

me Û q«Æe™

revisor

31v

a

11

me Û uoÆ

revisor

31v

a

12

me Û u

revisor

31v

a

21

me Û uoÆ

revisor

32v

a

3

me iÍe

revisor

32v

a

3

me qfl ie Æoy uot™ ome lige

corrector

32v

a

32v

b

9

md Û Æenfloflßfl | nofl me Æey É eÆtÉ coitÉ

revisor | corrector

32v

b

11

md Û yÏ

revisor

32v

b

14

md Û eu | o do™mi™ eo Æeû

revisor | corrector

33

a

11

me Û e

revisor

33

b

7

md Û nflofl

revisor

33v

a

1/2

me

revisor

33v

a

2

me muy g¿û pÉuoß

corrector

33v

b

10

md Û miÍÉ | Æenfloflßfl poßefl

revisor | corrector

34

b

4

md Û uee™

revisor

34

b

9

md Û Æe nfluflcflÉ

revisor

34v

a

16

me Û ™eyÏ

revisor

34v

a

17

me Û dize™

revisor

34v

b

1

md Û o

revisor

34v

b

21

md Û muyÏ | f™emoÆÉ qfl uj polo

revisor | corrector

35

a

10

me Û uiÍue™eyÏ

revisor

35

a

18

me Û nflofl

revisor

N

17/18 me […] ¢ti de q¿nteu Él no mflufldo deÆei- corrector ÉuÉ.

R

x

x

x

53

fl.

col

35

a

35

b

21

md Û a

revisor

35v

b

6

md Û pÉ™ecªe™ | ˆ entod out™o beû

revisor | corrector

35v

b

7

md Û ueiÍo

revisor

35v

b

8

md Û poiÆ.

revisor

35v

b

9

md Û uoÆ

revisor

36

a

3

me Û o

revisor

36

b

3

md eÆtou deuoÆ Æenfloflßfl poß hufl[…]

correcto

36v

a

2

me Û ˆ mo™™e™É mayÏÆ cuyÏdeyÏ.

revisor

36v

b

16

md qfl eu mo™™e™ fillÉ™É

corrector

37

b

24

md Û qfl

revisor

37v

b

25

md Û yÏ

revisor

38

b

12

md Û jÍ

revisor

38v

b

2

md Û uoÆ | uencedeÆ

revisor | corrector

38v

b

4

md Û uoÆ

revisor

38v

b

5

md uoÆ fez Æenfloflßfl

corrector

38v

b

13

md

revisor

38v

b

13

md Æenfloß Æe deuÆ foÆÆe pÉgÉdo

corrector

39

a

20

me Û dÉl.

revisor

39v

a

8

me Û É™

revisor

39v

b

1

md Û tenflnfled | eÆtÉ

revisor | corrector

40v

b

23

md Û uoÆ.

revisor

41

b

14

md Û g¿õ

revisor

41v

a

9

me Û e

revisor

41v

a

10

me Û poß

revisor

54

lin

loc

anotação do revisor | anotação do corrector

19/20 me poilÉ nofl ueg e coidefl q¿nto befl

mão(s)

N

R

corrector

x x

x

x

fl.

col

lin

loc

anotação do revisor | anotação do corrector

41v

a

16

me Û uuÆ

revisor

42

b

12

md Û melloß

revisor

42v

b

20

md Û muyÏ g¿õ.

revisor

x

42v

b

20

md Û eu

revisor

x

42v

b

22

md Û e

revisor

x

43

a

14

me Û de

revisor

x

43

b

2

md Û qfl

revisor

x

43

b

11

md Û ™eû

revisor

x

43v

b

10

md Û o

revisor

x

44

a

2

me Û e

revisor

x

44

b

9

md Û Æenfloflßfl

revisor

x

44

b

21

md Û iÍÉ

revisor

x

44v

b

2

md Û que

revisor

x

45v

a

3

me Û Æenfloflßfl

revisor

x

45v

a

17

me Û a

revisor

x

47

a

6

me Û l

revisor

47

a

7

me Û l coitÉ tflefl

corrector

47

a

13

me Égo™É

revisor

47

a

49

b

6

md Û eu

revisor

49

b

11

md Û eu

revisor

50

a

5

me Û qfl

revisor

x

50

a

11

me Û o

revisor

x

51v

a

5

me Û a

revisor

13/14 me mjÉgo™É poß deuÆ

mão(s)

N

R

corrector

55

fl.

col

lin

loc

51v

a

8

me ujÍu qfl

revisor

51v

a

8

me […]oiÆ qfl ¢diÉ […]É

corrector

52v

b

12

md Û me

revisor

53

a

15

me Û affaõ qfl

revisor

53

a

53v

a

5

me Û qfl

revisor

53v

a

17

me Û njuÍõ

revisor

54

a

23

me Û me

revisor

54

a

24

me Û qfl™o

revisor

55v

b

1

md Û e

revisor

55v

b

11

md Û o

revisor

56

a

14

me Û ™eû

revisor

56

b

4

md ujÍ

revisor

56

b

14

md Û al

revisor

56v

a

2

int Û ™eû

revisor

56v

b

14

md me deu

revisor

56v

b

17

md Û uoÆ | uiÆeu

revisor | corrector

57

b

12

md Û yÏ

revisor

57v

b

8

md Û iÍÉ | qfl

revisor | corrector

57v

b

9

md Û ™eû | uiue™flefl

revisor | corrector

58

a

6

int Û eû

revisor

61

b

3

me Û tÉû

revisor

61

a

3

me tÉfl mÉflÆÉ nefl tÉfl

corrector

61

a

8

me Û uÅiÅuÅeřŠuee™

revisor

56

anotação do revisor | anotação do corrector

15/16 me […]û qfl ÉffÉfl qfl ogeu ujÍ eÆey qfl

mão(s)

N

corrector

x

x

R

fl.

col

lin

loc

anotação do revisor | anotação do corrector

62

b

11

md Û muyÏ.

revisor

62v

b

11

md Û ua

revisor

63v

b

10

md Û r | ÉlÉ qn¿teu cÉtÉ™iÍÉ

revisor | corrector

63v

b

11

md Û o

revisor

64

a

15

me Û mo™e™flÉfl.

revisor

64

a

64

a

19

me ˆ

revisor

64

b

11

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A ANTIGA COTA DO CANCIONEIRO DA AJUDA

ISABEL CEPEDA Biblioteca Nacional

O interesse por conhecer os antigos possuidores dos livros que as bibliotecas conservam, por parte das mesmas bibliotecas, é relativamente recente. A primeira tarefa que os bibliotecários tinham pela frente era a de descrever as obras, assoberbados como estavam pelo desejo louvável de disponibilizarem aos leitores as descrições bibliográficas dos livros existentes à sua guarda. Surgiu depois a preocupação de introduzir a referência a bibliografias e catálogos fiáveis. Estamos, como é óbvio, a referir-nos especialmente ao chamado livro antigo e aos manuscritos de biblioteca. Com o tempo, foi surgindo o interesse dos bibliotecários e dos investigadores pela reconstituição de bibliotecas. As finalidades são diversas: avaliar a «recepção» de determinada obra ou autor numa época ou ambiente, ou então refazer o percurso de edição rara ou códice de extremada relevância. Cruzam-se estes interesses com os daqueles que procuram saber como se constituiu determinada biblioteca ao longo dos tempos, com os que desejam saber quem lia o quê numa época ou noutra. Como se vê, as tarefas que esperam os guardiães das bibliotecas não acabarão tão cedo… Em Portugal parece ter sido o Catálogo dos Reservados da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, publicado em 1970, em grosso volume, com «Apresentação» de Costa Pimpão e «Nota explicativa» não assinada, mas 61

redigida por Jorge Peixoto, que coordenou os trabalhos de catalogação, o primeiro catálogo impresso em Portugal a interessar-se pelo assunto, e é justo mencionar aqui o facto. Nessa «Nota» se chamava a atenção para o interesse em detectar as características próprias do exemplar: «dando os seus aspectos mais significativos, indicando os possuidores» (p. XI). Além de outros índices, contém um de «possuidores dos livros». O interesse por quem possuiu o quê revela-se também na organização de mostras com base nesta problemática. Para dar apenas um exemplo recente, basta referir a que organizou a Folger Shakespeare Library, de Washington, de Novembro de 2002 a Março de 2003, com o sugestivo título «This boke is myne», retirado das palavras que Henrique VIII, ainda príncipe e estudante, inscreveu num volume de Cícero presente na exposição [www.folger.edu; Nouvelles du livre ancien (Paris), n.º 110, 2002, p. 13]. Já a recuperação das cotas, tão diversificadas conforme os lugares e os tempos, surge como outra inestimável tarefa que permitiria colher ilações sobre como eram «arrumados» os volumes em livrarias de gentes eruditas ou em casas conventuais. Se, nas nossas bibliotecas, as listagens de antigas cotas com as correspondentes que posteriormente foram atribuídas é facto relativamente comum, não acontece o mesmo com as cotas de antigos possuidores que vêm inscritas nos livros. Raramente elas concitam o interesse dos catalogadores. Trabalhos, obscuros certamente, mas que poderiam esclarecer perguntas como a que me foi posta há meses largos: a que livraria ou biblioteca corresponderia a cota, que aparece bem explícita, num dos fólios do Cancioneiro da Ajuda? O que à primeira vista parecia simples deu azo a estas considerações prévias, a pesquisas várias, sem êxito aparente. Resta a esperança de podermos ter sensibilizado as gerações mais novas para esta problemática. Uma palavra de alerta ainda para o cuidado a ter quando se envia um volume para ser restaurado: muitos dos livros que tivemos de manejar foram, há mais ou menos tempo, reencadernados ou restaurados, e apresentam-se sem as folhas de guarda originais. As informações que eventualmente teriam tido perderam-se irremediavelmente. Foi por volta do Verão de 2002 que Maria Ana Ramos me mostrou a reprodução da cota do Cancioneiro da Ajuda e perguntou se me teria passado pelas mãos alguma outra que com ela se assemelhasse, ou então se aquele tipo de letras e números me eram familiares. Recordo ter sugerido a semelhança da letra com a escrita que, nos códices de jesuítas da segunda metade do século XVI, era muito frequente. O repto foi lançado, isto é, a tentativa de identificar o tipo de cota, e chegar, assim, a um dos possuidores do códice em tempos recuados. E um problema que à primeira vista se afigurava de fácil solução suscitou inúmeras pesquisas que não conduziram a resultados conclusivos. Pela configuração da letra, e suspeitas de certo modo evidentes, a primeira pista que, afinal, vim a saber já ter sido explorada de há muito foram os Jesuítas como possuidores do Cancioneiro. Com efeito nos Portugaliae Monumenta Historica, Alexandre Herculano, a propósito do Livro das Linhagens, era peremptório (I, p. 140): «O Codice [do Cancioneiro] pertenceu aos jesuitas, 62

e foi trazido […] do deposito de livros sequestrados à Companhia de Jesus para a Bibliotheca Real. Esse deposito conservava-se no edificio do antigo collegio daquele instituto, applicado depois para a casa de educação intitulada Collegio dos Nobres…». Com estas palavras Alexandre Herculano tornava-se responsável pela afirmação, desde aí reiterada, v. g., por Carolina Michaëlis no seu estudo (1904, II, pp. 103 e ss.), de que o Cancioneiro andou por mãos de jesuítas, melhor dito, pertencera à biblioteca de algum colégio ou casa da Companhia de Jesus, apesar de nada no códice nos garantir o facto. Na realidade, uma cota antiga que passou despercebida até há bem pouco tempo, e para a qual Maria Ana Ramos veio chamar a atenção, não é conclusiva relativamente a essa proveniência. Vejamos como os livros das bibliotecas constituídas pelos jesuítas e que se encontram espalhados por tantas bibliotecas um pouco por todo o país, desde a extinção da Companhia em Portugal, no reinado de D. José, apresentam as suas marcas de posse. Tomei a amostragem de secções dos Reservados da BN de Lisboa, mas poderia tê-la efectuado noutras secções da mesma biblioteca ou nas de outras, o resultado não apresentaria grandes variações: «Non prohibetur / Tuto lege / Anno 1574 mense Augusto» (Inc. 1028); «Da livraria publica / Non prohibetur // do Collegio dEvora da Companhia de Jesu // Non prohibetur 1650 // foy de Antonio Roiz da Sylveira»; «Para a 3ª livraria de Theologia // Non prohibetur / tuto lege / 1576.8 // Da 3ª livraria da Theologia» (Inc. 1057); «Coimbra 1583 // Livraria do Collegio da Companhia» (Inc. 1063); «Coimbra // da 2ª Livraria de Theologia» (Inc. 14); «da livraria do P. Prefeito do Recolhimento da Companhia de Evora/Colegii eborensis» (Res. 1866 P.). No entanto, não é de descartar a hipótese de estarmos perante uma oferta de alguém que desejasse enriquecer o acervo de uma livraria dos jesuítas, conhecidos pelos seus interesses culturais. Não seria o único caso. Para não ir mais longe, num dos exemplos acima referidos, fica-se a saber que o livro foi anteriormente de António Rodrigues da Silveira, que o terá dado para uso para o colégio da Companhia, em Évora. Sabe-se também que alguns textos medievais estiveram na posse dos jesuítas. O manuscrito quatrocentista do Livro da Montaria, de D. João I, de que se conserva actualmente um fólio apenas, esteve à guarda do colégio dos jesuítas de Monforte de Lemos na Galiza (Lorenzo 2000). No que diz respeito a cancioneiros medievais, é conhecido o caso de Gioacchino Plà que no século XVIII copiou e traduziu para italiano as poesias de um cancioneiro provençal hoje perdido, Poesie provenzali tradotte in lingua italiana (Roma, Biblioteca Vaticana, Vat. Barb. lat. 3965). Atentemos na hipótese de outros antigos proprietários. A cota que encontramos no fólio que foi colado à pasta superior, de madeira, como guarda, aquando da encadernação do Livro das Linhagens e do Cancioneiro num só volume nos finais do século xv, ou um pouco mais tarde, é bem explícita: «A. 5. n 47.». Os números e letras, em reduzida amostra, foram considerados por Eduardo Borges Nunes, citado por Maria Ana Ramos (1994, p. 30), como datáveis das décadas de 1540-1560. Permito-me alargar o 63

âmbito cronológico: é corrente encontrar este tipo de letras e de números em escritos da primeira metade do século XVII. A cota de que nos ocupamos poderá ler-se como «Estante A, prateleira 5, número 47», ou, com Maria Ana Ramos, «Armário 5, número 47». Inclino-me para a primeira hipótese, pois é frequente as cotas do século XVII, de que darei alguns exemplos, apresentarem, logo a seguir à primeira letra, que não o A, um ponto tal como se vê na cota do nosso Cancioneiro. Teríamos, pois, A. = estante A; 5. = prateleira 5; n 47. = livro 47, com pontos a separar as várias unidades e outro a finalizar. Quanto ao tipo de cota, na pesquisa efectuada nos incunábulos da BN, foi possível encontrar algumas similares, da mesma época: por exemplo, «G. 5.-17.» (Inc. 1147), «F. 4. g.ª. e.», mas infelizmente sem nome do proprietário. No entanto, qualquer que seja a leitura, «esta cota sugere a pertença do Cancioneiro a uma colecção pública ou privada, mas de dimensão apreciável» (Ramos, 1994, p. 30). O cimélio, munido já da cota da livraria em que era guardado, poderá ter sido oferecido posteriormente aos jesuítas. Mas quais os eruditos, com bibliotecas de porte razoável, que poderiam ter tido o Cancioneiro na sua posse? As hipóteses são diversas e foram já elencadas por Carolina Michaëlis e também por Maria Ana Ramos. Sem ter conseguido apurar dados positivos e seguros, limitar-me-ei a descartar alguma ou outra hipótese que não parecem consistentes ou a confirmar algum ou outro dado. De Manuel Severim de Faria (1583-1655) se diz que a sua livraria era detentora de um exemplar autêntico do Nobiliário do Conde D. Pedro e talvez de um manuscrito das Cantigas (cf. M. Ana Ramos, 2001 e Carolina Michaëlis de Vasconcellos, 1904). Adianta-se que os manuscritos de obras suas não publicadas e a preciosa biblioteca terão passado para a posse do conde de Vimieiro, e acrescenta-se que esta «deve ter desaparecido com o terramoto de 1755». Acontece que na BN de Lisboa existe um núcleo de manuscritos referenciado no catálogo topográfico como «Colecção Vimieiro», comprada nos inícios do século XX à Livraria de João Pereira da Silva, cujo carimbo se vê nas capas de alguns dos códices. A colecção abrange os códices 7626 a 7647 da BN e a caixa de Mss. avulsos n.º 29, e nela se encontram interessantes manuscritos. Ora, em alguns dos códices é possível detectar alguma cota, como por exemplo «est. 19 cas. 50», e noutro, a indicação «É o ms. 202 da livraria dos Condes do Vimieiro», mas nenhuma que tenha semelhanças com a que nos interessaria. Vale a pena anotar que dela fazem parte quer inéditos do próprio Severim de Faria, repertoriados na recente edição da INCM dos Discursos vários políticos, da responsabilidade de Maria Leonor Soares Albergaria (1999), quer outros, como por exemplo as Décadas da Índia, de António Bocarro, e um treslado autêntico do Livro de Linhagens do Conde D. Pedro. Sobre D. Teotónio de Bragança (1530-1602), arcebispo de Évora e irmão de D. Teodósio, 5.º duque de Bragança, e sobre a sua preciosa livraria já muito se escreveu. Os monges cartuxos de Scala Caeli, cujo mosteiro D. Teotónio mandara construir e dotara, receberam os seus livros. Tiveram o cuidado de neles apor

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uma nota de teor bem conhecido: «Liber Carthusiae Scala Caeli dono datus ab Ill.mo et R.mo in X.o Patre D. Theotonio a Bragança Archiep.o eiusdem domus dotatore, et fundatore primo.» Com a extinção das ordens religiosas a dispersão foi total. Muitos deles se encontram na BN de Lisboa, na Torre do Tombo e noutras bibliotecas. Na mesma página é bem visível a indicação de «Cax.» = caixa, ou caixote, seguida de um número (por exemplo, Inc. 68, Inc. 1528). Sem muitas certezas, permito-me afirmar que a doação terá sido feita em vida do generoso arcebispo, pois a nota atrás transcrita assim o parece indicar. Da livraria de D. Teodósio, 5.º duque de Bragança (?-1563), alguma coisa mais se conseguiu apurar, além do que já foi publicado por Aires A. Nascimento (1994) e comentado por Maria Ana Ramos (2001). O original do inventário ter-se-á perdido mas existe actualmente no Paço ducal de Vila Viçosa, com data de 1665, a «certidão com o treslado de hũus autos de Inventario que se fez por falecimento do serenissimo Duque de Bragança D. Theodozio», a pedido do conde de Figueiró, D. José Luís de Lencastre. O inventário havia sido redigido cem anos antes, mais precisamente no «Anno do nasimento de nosso Senhor Jesus Christo de mil e quinhentos sasenta e quatro em a villa de Villa Viçosa». Tem a cota Res. 18 Ms. Desta certidão foi extraída cópia dactilografada em data recente, que serviu a Aires A. Nascimento para o seu estudo sobre esta importante e riquíssima livraria. Um dos itens do inventário dos bens deixados por morte do duque refere «Obras del Rey dom Denis feitas de mão de pergaminho de marqua grande em taboas… avaliado em oitenta reis» (f. 463 v.-464 r.). Apenas se assinala que no dactiloscrito foi omitida a expressão «de marqua grande» que poderia reforçar a semelhança com o códice de que estamos a falar. A sua inclusão sob a rubrica «Estoriadores em lingoagem», que Aires do Nascimento estranha, não se ficaria a dever ao facto de o códice incluir, no seu início, um livro de linhagens? O reduzido valor que lhe foi atribuído, talvez se explique por ser de época recuada, em escrita de difícil leitura, e por isso sem interesse notório, no tempo em que foi arrolado. Questionado o actual bibliotecário do Paço de Vila Viçosa, João Ruas, sobre o destino de tão rica biblioteca, a resposta é uma evasiva: terá vindo para Lisboa após a aclamação do duque de Bragança, como rei D. João IV, em 1640. Quanto à existência do Cancioneiro no Colégio dos Nobres, não falamos de conjecturas, mas de dados bem precisos. Como foi referido recentemente por Maria Ana Ramos ao tentar reconstituir a história do códice, a primeira menção objectiva ao «Cancioneiro» data de 1815. Com efeito, nessa data a Academia «incumbira á Commissão da Língua Portugueza, creada no seu seio, a reimpressão do Cancioneiro de Rezende, enserindo nos Lugares competentes as Poesias de outro mais antigo que existia manuscripto na Livraria do Real Collegio dos Nobres» (J. Portugal, 1849). Lord Charles Stuart de Rothesay imprime-o numa tiragem reduzida em Paris, no ano de 1823, e a esta se seguem outras edições sobejamente conhecidas dos estudiosos. A descrição do Cancioneiro em catálogo é tardia. Vem no «Catalogo da Livraria do Real Collegio dos Nobres de Lisboa», com a data de 1829, volume

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manuscrito que faz parte da secção de Códices da BN, Lisboa, onde tem a cota COD. 7394. Organizado por línguas e formatos, no final da p. 6 [7], onde se descrevem os livros portugueses in-fólio, diz textualmente: Há mais hum Livro escripto em pergaminho, com 114 folhas das quaes 39 são de Genealogias de Fidalgos, e 75 contem Poesias que parecem todas ao mesmo objecto. Tudo indica bastante antiguidade, mas pode-se colligir do Trattado Genealogico que foi escripto depois do que escreveo o conde D. Pedro, por isso que falla delle este Manuscripto. He volume de grande marca. Segue-se imediatamente a descrição da luxuosa edição de «Os Lusíadas», do Morgado de Mateus, com dedicatória, do próprio, ao Colégio. Parece poder-se concluir que o catalogador deixou reservadas para o final as duas obras que considerava mais valiosas no conjunto dos livros in-fólio na secção de livros em língua portuguesa, e não por considerar «o carácter disperso do Livro», como Maria Ana Ramos quis acentuar (1994, p. 29). Este Catálogo, elaborado com método e com os elementos essenciais à identificação dos livros, embora sem menção de cotas, está assinado por António Manuel Policarpo da Silva (livreiro-editor, estabelecido em Lisboa, segundo Inocêncio 8, 235-236) e surge em fase de declínio e crise na gestão deste estabelecimento científico. O Colégio dos Nobres, criado por iniciativa do então conde de Oeiras em 1761, e instalado no edifício do noviciado da Companhia de Jesus, extinta em 1759, só foi aberto no ano lectivo de 1765-66 (Aguilar, 1935). Foram nele depositadas grandes esperanças, mas a sua vida foi um tanto atribulada: dificuldades financeiras, partilha do espaço com a Academia da Marinha, abertura a alunos externos, etc. Foi após discussão acesa no Parlamento sobre o orçamento do Colégio, no ano de 1823, que se chegou a pôr em causa a sua existência, e em 1827 foi até resolvido eliminar a verba do Estado para custear as despesas daquele estabelecimento de ensino. É neste contexto que surge a elaboração do Catálogo levado a cabo por alguém exterior ao Colégio que mereceria a confiança para uma inventariação isenta e fiável. Com a guerra civil instalada por longos anos, o Colégio não sobreviveu e foi definitivamente «abolido» por decreto em 1837 (Gil-Canelhas, 1987). A edição de 1823 do Cancioneiro veio concitar a atenção dos estudiosos. E, segundo Alexandre Herculano, teria sido transferido «pelos anos de 1825» para a Biblioteca Real da Ajuda a fim de o pôr a bom recato, conforme o historiador o refere nos Portugaliae Monumenta Historica (vol. I, p. 140), nas palavras introdutórias à edição dos Livros das Linhagens: «O n.º III é um fragmento… Acha-se juncto… ao manuscripto tambem truncado do celebre Cancioneiro denominado do collegio dos Nobres, que se conserva na Bibliotheca Real da Ajuda… O Codice… foi trazido, pellos annos de 1825… para a Bibliotheca Real.» A verdade é que a transferência só veio a concretizar-se em 1832, a dar fé ao documento que serviu de recibo e se encontra na Biblioteca da Ajuda, 66

com data de 5 de Maio de 1832 (cf. C. M. Vasconcellos, 1904, II, p. 100; Ribeiro, 1914). Um enigma ainda sem explicação é o facto de se terem conservado na Biblioteca Pública de Évora até ao ano de 1843 alguns fólios do Cancioneiro de que aqui nos ocupamos. Até altura não definida fizeram eles parte do códice e, em altura também não definida, foram desmembrados, especialmente os que apresentavam iluminuras. As razões deste desmembramento são desconhecidas, mas não constituem caso único. Pode dizer-se que todas as bibliotecas conservam este tipo de fragmentos. Vejamos o que se sabe ao certo: José Heliodoro da Cunha Rivara, a trabalhar na Biblioteca Pública de Évora de 1838 a 1855, adiantado o ano de 1842, em nota publicada n’O Panorama (pp. 406 e 407), com o título «O Cancioneiro do Collegio dos Nobres», dá a conhecer a edição de lord Charles Stuart [1823], tece algumas considerações sobre a mesma, seus critérios e raridade, sobre o conteúdo do Cancioneiro, e termina: «Este livro merecia pois uma nova edição, que o tornasse verdadeiramente vulgar e conhecido […] e na bibliotheca publica eborense há mais onze folhas do proprio codice, as quaes já andavam extraviadas ao tempo em que se tratou de publica-lo.» Com efeito o ilustre bibliotecário dedicou grande parte do tempo em que esteve na Biblioteca de Évora à elaboração do Catálogo de Manuscritos, que continua a ser nos dias de hoje a referência para uma primeira abordagem aos manuscritos que aí se encontram. Felizmente conservam-se as pastas com os elementos que o bibliotecário ia coligindo para a futura publicação do Catálogo. E na pasta referente à cota CXIV/2-34, lê-se: «São onze folhas que foram arrancadas do Cancioneiro do Collegio dos Nobres, o qual está hoje na Real Bibliotheca da Ajuda. Já andavam extraviadas quando o Sr. Carlos Stuart imprimiu o Cancioneiro em Paris. 1823.» Esta breve notícia é evidentemente posterior a 1832, data da transferência do Cancioneiro para a Biblioteca da Ajuda, e anterior a 1843, data em que, por decisão governamental, as folhas foram transferidas para a Biblioteca da Ajuda, como se infere da nota, em letra mais miúda, na mesma pasta, em que foi anotado: «NB As próprias foram por ordem do Ministerio do Reino entregues na Secretaria do Governo Civil em 28 de Maio de 1843 de cuja entrega serve de recibo o officio do Secretario Geral ao Bibliothecario, com data de 30 do mesmo mês; e que se conserva no Masso competente.» Ora esta decisão governamental deve-se a Alexandre Herculano, que terá tido conhecimento da existência das onze folhas em Évora pela nota que Cunha Rivara publicara em 1842 n’O Panorama. Na cota em que estavam as onze folhas de pergaminho — CXIV/2-43 —, encontra-se agora cópia dos textos que Rivara teve o cuidado de fazer antes de os originais virem para Lisboa. Em nota posterior, foi acrescentado: «Foram impressas na 2.ª edição do mesmo Cancioneiro por Varnhagen em Madrid, 1849.» No Catalogo de Manuscriptos…, p. 69 do vol. 2, publicado em 1868, «que comprehende a Litteratura», o facto ficou consignado brevemente: «Cod. CXIV/ 2-34 Onze folhas do Cancioneiro do collegio dos nobres, copia da letra do Sr. Rivara. Os originaes foram por ordem superior para a bibliotheca da Ajuda onde se conservam com o volume de que faziam parte.» 67

Cabe dizer que na Biblioteca Pública de Évora, ainda actualmente, existem diversas pastas com dezenas de folhas de pergaminho, restos do que sobreviveu de códices medievais, muitos deles de grande valor — Bíblias, livros litúrgicos, textos de Santos Padres, códigos de Direito civil e canónico, e também folhas de uma versão em português da «Vita Christi» anterior aos códices que integram a colecção alcobacense da Biblioteca Nacional, um fragmento de texto em castelhano ainda não identificado com certeza absoluta, etc. Alguns deles foram inventariados, com foto anexa, no Inventário dos Códices Iluminados até 1500 (coord. I. V. Cepeda e T. D. Ferreira, vol. II, Lisboa, 2001). À guisa de conclusão, há que afirmar não estarem esgotadas as hipóteses de trabalho, embora elas se revelem morosas e possam ser infrutíferas. Seria útil, pois: a) Proceder a uma informação mais aprofundada sobre os fundos iniciais da Biblioteca de Évora para tentar desvendar de como foram aí parar os onze fólios do Cancioneiro; ou se o próprio Cancioneiro aí esteve na sua totalidade, e alguém o desmembrou posteriormente e em que condições; b) Continuar a pesquisa de cotas antigas com letras e números que se assemelhem aos que a cota do Cancioneiro apresenta. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS [Certidão com o treslado de uns autos de Inventário que se fez por falecimento do Sereníssimo Duque de Bragança D. Teodósio, a pedido do Conde de Figueiró, D. José Luís de Lencanstre]. Texto manuscrito. 1665 (Vila Viçosa, Paço Ducal, Res. 18 Ms.). O Inventário havia sido redigido em 1564 em Vila Viçosa. — Da certidão seiscentista foi extraída, em data recente, cópia dactilografada (cf. A. A. Nascimento, 1994). AGUILAR, Manuel Busquets de, O Real Colégio de Nobres (1761-1837), Lisboa: 1935. Cancioneiro da Ajuda. Edição fac-similada do códice existente na Biblioteca da Ajuda. Apresentação de Manuel C. de Matos, N. S. Pereira e Francisco G. da C. Leão. Estudos de José Vitorino de Pina Martins, M. Ana Ramos e Francisco G. da C. Leão, Lisboa: Edições Távola Redonda, Instituto Português do Património Arquitectónico e Arqueológico, Biblioteca da Ajuda, 1994. Catálogo dos Reservados da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra. Apresentação A. J. de Costa Pimpão, e Nota explicativa não assinada, mas redigida por Jorge Peixoto, Coimbra: Por Ordem da Universidade, Acta Universitatis Conimbrigensis, 1970. CEPEDA, Isabel Vilares, e FERREIRA, Teresa A. S. Duarte [coord.], Inventário dos códices iluminados até 1500/Inventário do Património Cultural Móvel. Coord. científica e técnica de I. V. Cepeda e T. A. S. D. Ferreira, Lisboa: Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro, 2 vols., 1994-2001.

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FARIA, Manuel Severim de, Discursos vários políticos. Introdução, actualização e notas de Maria Leonor Soares de Albergaria Vieira, Lisboa: INCM, 1999. GIL, Fernando Bragança, e CANELHAS, Maria da Graça Salvado [coord.], Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa: passado-presente: perspectivas futuras. Concepção e coord. de F. B. Gil e M. da G. S. Canelhas, Lisboa: Museu de Ciência da Universidade. Catálogo da exposição comemorativa do 150.º Aniversário da Escola Politécnica e do 75.º Aniversário da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, 1987. HERCULANO, Alexandre, Portugaliae monumenta historica: a saecvlo octavo post Christvm vsque ad qvintvmdecimvm…/ivssv Academiae Scientiarvm Olisiponensis edita. Olisipone: Typis Academicis, 1856-1961. 1, Scriptores: 1856. LORENZO, Ramón, «Un fragmento dun manuscrito medieval do Livro da Montaria de D. João I de Portugal», Verba, 27, 2000, pp. 9-32. MACHADO, José Pedro, «Uma proposta para a impressão do ‘Cancioneiro do Colégio dos Nobres’», Revista de Portugal, Série A: Língua Portuguesa, Lisboa, 1966, vol. XXXI, pp. 119-128. NASCIMENTO, Aires A., «A livraria de D. Teodósio I, Duque de Bragança», Congresso de História no IV Centenário do Seminário de Évora, Actas. Évora: Instituto Superior de Teologia. Seminário Maior de Évora, 1994, vol. I, pp. 209-220. PORTUGAL, João da Cunha Neves e Carvalho, «Proposta para a impressão do antigo Cancioneiro do extincto Collegio dos Nobres». Actas das Sessões da Academia Real das Sciencias de Lisboa, vol. I, Lisboa: Academia das Sciencias, 1849, pp. 48-54. RAMOS, Maria Ana, «Homens e Cancioneiros em Évora». Canzonieri iberici I, Noia: Toxoutos, Universtà di Padova, Universidade da Coruña, 2001, pp. 169-216. — «Invoco el rrey Dom Denis… Pedro Homem e o Cancioneiro da Ajuda». Actes del VII Congrés de l’Associació Hispànica de Literatura medieval (Castelló de la Plana, 22-26 de setembre de 1997), Ed. por Santiago Fortuño Llorens-Tomàs Martínez Romero, volum I, Castelló de la Plana, Universitat Jaume I, 1999, pp. 127-185. — «O Cancioneiro da Ajuda: História do manuscrito, Descrição e Problemas», Cancioneiro da Ajuda. Edição fac-similada. Apresentação, estudos de J. V. de Pina Martins, M. Ana Ramos, Francisco G. Leão e Índices, Lisboa, Edições Távola Redonda, 1994, pp. 27-47. RIBEIRO, José Silvestre, Apontamentos históricos sobre bibliotecas portuguesas. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1914 (especialmente o que se refere à «Livraria da Ajuda», p. 40). RIVARA, José Heliodoro da Cunha, «O Cancioneiro do Collegio dos Nobres», O Panorama, 1842, pp. 406 e 407. — Catálogo dos manuscritos da biblioteca pública eborense. Comp. e anot. J. H. da Cunha Rivara e J. A. de S. Telles de Matos, Lisboa: Imprensa Nacional, 1850-1871. SILVA, António Manuel Policarpo da, Catalogo da Livraria do Real Collegio dos Nobres de Lisboa. Texto manuscrito [Lisboa], 1829. (Lisboa, BN COD. 7394.)

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LA DECORATION DU CHANSONNIER D’AJUDA

PATRICIA STIRNEMANN Institut de Recherche et d’Histoire des Textes (Paris)

Le Chansonnier d’Ajuda est un monument capital de la poésie galégo-portugaise sur lequel nous ne possédons que peu de renseignements historiques. Nous ne connaissons pas le commanditaire, ni où il a été écrit, ni pourquoi sa peinture, ses textes, sa musique sont inachevés, ni à quel moment il fut réuni avec le Livro de Linhagens, ni comment il est arrivé dans le Real Colégio dos Nobres à Lisbonne. Depuis longtemps, on a reconnu la parenté entre ses enluminures et ses initiales filigranées et celles des manuscrits produits à la cour d’Alphonse le Sage. Mais s’il y a similitude, il n’y a pas identité. Les artistes du chansonnier ne se retrouvent pas dans les manuscrits faits à Séville et le chansonnier n’applique pas servilement les solutions artistiques trouvées dans les manuscrits alphonsins. En effet, certains érudits présument que le Chansonnier d’Ajuda a été réalisé au Portugal, malgré l’absence de pièces de comparaison. D’autres, comme Monsieur Tavani, pensent à une production en Espagne dans un des scriptoria de la cour d’Alphonse X. La date de production du manuscrit est également sujette à discussion: Monsieur Resende de Oliveira la place après 1287-88 par référence à la date de la composition de la cantiga A 256 de Pay Gomez Charinho, d’autres préfèrent une datation plus récente, vers le début du XIVe siècle. De toute façon, si Monsieur Resende de Oliveira a raison, sa datation du manuscrit semble exclure la cour d’Alphonse le Sage comme lieu de création du Chansonnier. La reconstitution 71

de la vie postérieure du manuscrit, avant sa redécouverte par Charles Stuart, Lord Rothesay en 1823, est fondée principalement sur des hypothèses, plus ou moins vraisemblables, mise à part la contribution capitale de Maria Ana Ramos concernant l’identification de la signature ex-libris de Pero Homem, personnage de petite noblesse à la cour de D. João II et D. Manuel, mort en 1498. Même l’histoire des feuillets et du cahier VII, retrouvés à la bibliothèque d’Evora, n’a pas été éclaircie, mais elle semble liée à la présence de la cour dans cette ville. Pour ma part, je ne peux vous apporter de véritable secours sur aucune de ces matières. Je propose tout simplement de vous faire part de quelques observations ponctuelles concernant l’enluminure et l’élaboration de ce codex exceptionnel, qui permettent de suggérer quelques pistes pour des recherches futures. A l’origine, le programme d’illustration du Chansonnier devait comporter une miniature et une initiale ornée en tête de l’œuvre de chaque troubadour. Seulement seize miniatures ont été ébauchées, et aucune n’a été achevée 1.

1

Liste des miniatures et des incipits des poèmes…. [lacune] fl. 1r/p. 41, A 1, [Deus meu senhor, se vus prou]guer [VaFdzSend] I. fl. 4r/p. 85, A 14, Quero-vus eu ora rogar [JSrzSom] — troubadour, danseuse avec castagnettes, joueur de cithare concave. [lacune] fl. 8r /p. 93, A 31, [Entend’eu ben, senhor, que faz mal-sen] [PaySrzTav] [lacune] fl. 10r/p. 97, A 40, [Ay, mha senhor, se eu non merecesse] [MartSrz] II. fl. 15r/p. 107, A 62, Pois non ei de dona ‘lvira [RoyGmzBret, Anon.]— troubadour, joueur de harpe. III. fl. 16r/p. 109, A 64, Quisera m’ir; tal consello prendi [AyCarp] — troubadour, danseuse avec castagnettes, joueur de cithare trapézoïdale. IV. fl. 17r/p. 111, A 68, En gran coita vivo, sennor [NuRdzCan, JGaya, Anon.] — troubadour, joueur de castagnettes, joueur de cithare concave V. fl. 18r/p. 113, A 70, Ir vus queredes, mia sennor [NuFdzTor] — troubadour, joueur de citole, danseuse. VI. fl. 21r/p. 119, A 82, De quantos mui coitados son [PGarBu] — troubadour, joueur de vielle, danseuse avec tambour à sonnettes. VII. fl. 29r/p. 135, A 111, De vos sennor, querria eu saber [JNzCam] — troubadour, joueur de citole, danseuse avec castagnettes. [lacune] fl. 30r/p. 137, A 114, [Que grave cousa, senhor, d’endurar] [FerGarEsg] VIII. fl. 33r /p. 143, A 129, Nostro Sennor Deus, e porque neguei [RoyQuey] — troubadour, joueur de vielle, danseuse. IX. fl. 37r/p. 151, A 144, Muit’ aguisado ei de morrer [VaGil] — troubadour, joueur de vielle, joueur de harpe. [lacune] fl. 40r/p. 157, A 157, Nostro Sennor que mi a min faz amar [JPrzAv] X. fl. 40v/p. 158, A 158, En grave dia, sennor, que vus vi [JSrzCoe] — troubadour, joueur de citole, danseur. [lacune], fl. 46r/169, A 180, Que me vós nunca quisestes fazer [JPrzAv, RodEaRed] XI. fl. 47r/p. 171, A 185, Pois m’en tal coita ten Amor [JPrzAv, Anon.] — troubadour, joueur de citole, joueur de harpe. XII. fl. 48r/p. 173, A 186, Por Deus vus quero rogar, mia sennor [RoyPaesRib] — troubadour, joueur de citole, joueur de tambour à sonnettes.

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Plusieurs considérations iconographiques et techniques de ces miniatures méritent notre attention. A l’exception de la miniature au fl. 15/p. 107, en tête de la poésie de Roy Gomez de Breteyros, où ne figurent que deux hommes, chaque image comporte trois personnages: un homme assis, accompagné par deux joueurs de musique, ou par un musicien et un danseur. Dans onze images, le danseur ou joueur de tambour est une femme, reconnaissable à la longue robe qui lui couvre les pieds (fl. 4/p. 85; fl.16/p. 109; fl. 17/p. 111; fl. 18/p.113; fl. 21/p. 119; fl. 29/p. 135; fl. 33/p.143; fl. 51v/p.180; fl. 55v/p. 188; fl. 59/p. 195; fl. 60/p.197). Le personnage assis à gauche dans chaque image doit représenter le troubadour, comme le laisse penser la plus animée des scènes, celle qui est placée en tête des chansons de Pero Garcia Burgalês (fl. 21/p. 119). Le poète connu pour la véhémence de son langage, lève son pied violemment pour frapper fort et ponctuer ses vers. Pero Garcia est le seul troubadour coiffé d’un chapeau, insolite par sa hauteur et par la présence inexpliquée de la lettre M 2 qui l’orne. Fut-il considéré comme ‘roi’ des troubadours? Du moins, les vingt-neuf cantigas composées par lui conservées

XIII. fl. 51v/p. 180, A 199, A mia sennor que me foi amostrar [JLpzUlh] — troubadour, joueur de citole, danseuse avec castagnettes. XIV. fl. 55v/p. 188, A 210, Gran coita sofr’ e vo[u] a negando [FerGvzSeav, Anon.] — troubadour, joueur de citole, danseuse avec castagnettes. XV. fl. 59r/p. 195, A 222, Quand’ eu, mia sennor, convusco falei [PGmzBarr] — troubadour, danseuse avec castagnettes, joueur de cithare de forme concave. XVI. fl. 60r/p. 197, A 224, Sennor, que grav’ oj’ a mi é [AfLpzBay] — troubadour, joueur de citole, danseuse avec tambour à sonnettes. [lacune], fl. 61r/p. 199, A 226, [Senhor fremosa, creede per mi] [MenRdzTen, AfFdzCob] [lacune], fl. 62r/p. 201, A 228, [Que muytos me preguntáran] [JGarGlh] [espace], fl. 65r/p. 207, A 240, Vedes, senhor, quero-vus eu tal bem [EstFai] [espace], fl. 66r/p. 209, A 242, Muito ando triste no meu coraçon [JVqzTal] [espace], fl. 67r/p. 211, A 246, A dona que ome «sennor» devia [PayGmzCha] [espace], fl. 71r/p. 219, A 257, Pois Deus non quer que eu ren poss’aver [FerVelho] [espace], fl. 73r/p. 223, A 265, Mui gran poder á sobre min Amor [BonGen] [lacune], fl. 74r/p. 225, A 267, Q[ue mal Amor] me guisou de viver [Anon.α] [espace], fl. 77v/p. 232, A 277, Sennor fremosa, pois me vej’aqui [Anon. β] [espace], fl. 78r/p. 233, A 278, A mais fremosa de quantas vejo amor [Anon.γ] [espace], fl. 79r /p. 235, A 281, Eu sey la dona velida [PEaSol, Anon.] [espace], fl. 80r/p. 237, A 285, Se vos proguess’, Amor, ben me devia [FerPad] [espace], fl 81v/p. 240, A 288, Tan muyto vos am’eu, sennor [PPon] [espace], fl. 83r/p. 243, A 293, Vivo coytad’en tal coyta d’amor [VaRdzCal] [lacune], fl. 85r/p. 247, A 303, […mays ambos y faredes o mellor] [MarMo, Anon.] [espace], fl. 87r/p. 251, A 308, Se om’ ouvesse de morrer [RoyFdz] 2 Au feuillet 70 (p. 217), dans la marge inférieure, se trouvent les mots: . La forme de la lettre M dans ce jeu de plume marginale est très proche de celle qui figure sur le chapeau de Pero. S’agit-il d’une référence à Maria Balteira, ajoutée par un lecteur à la fin du e XIII siècle? Cependant, la chanson de Pero mettant en dérision la courtisane ne figure pas dans le Cancioneiro da Ajuda.

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dans le Chansonnier, sont bien supérieures par leur nombre aux répertoires conservés pour chacun des autres troubadours, et le copiste lui a fait l’honneur exceptionnel de décorer la seconde lettre de chaque mot initial de chaque chanson avec un jeu de plume. Bien qu’il ne soit pas le premier troubadour dans le recueil, il semble être considéré comme le plus important. La gamme des instruments musicaux est restreinte. Elle consiste en instruments à cordes: la vielle, la guitare, la harpe et la cithare, et en instruments à percussion: les castagnettes et le tambour à sonnettes. L’absence d’instrument à vent a probablement pour but de favoriser la perception de la voix. L’intention de l’artiste est de rendre compte avec exactitude de la performance de chaque troubadour et de ses musiciens, plutôt que de déployer un spectaculaire catalogue d’instruments musicaux, comme dans le manuscrit des Cantigas d’Alphonse le Sage à l’Escorial (ms. J. b. 2) 3. L’artiste, et je crois qu’il n’y en a qu’un seul, après avoir tracé son dessin, a accompli plusieurs étapes de la peinture: il a peint d’abord les encadrements architecturaux, lesquels me semblent entièrement finis, car ils ont reçu deux couches de peinture, ainsi que les rehauts blancs et les cernes noirs, qui marquent l’étape finale. Ensuite, l’artiste a commencé la peinture des vêtements, des instruments de musique et des sièges. La finition est très variable d’image en image. Les unes n’ont que la première couche de chaque tonalité, alors que d’autres sont plus travaillées, avec des rehauts et des ombres. Aucun fond ni aucun visage n’a reçu même la première couche de couleur. D’après le fac-similé, un changement a lieu dans la façon de réaliser les ombres: le noir est utilisé jusqu’au fl. 21/p. 119, mais dans les images suivantes (fl. 29/p. 135 sqq.) l’artiste emploie les couleurs bleu, vert, rose, orange, et gris bleu pour les ombres. De même, les quelques contours dessinés des fl. 16/p.109; fl. 17/p. 111 et fl. 21/p. 119 sont en noir, alors que ceux des fl. 40v/p. 158 et fl. 47/p. 171 sont bleus. Les ombres et les contours en plusieurs couleurs à partir du fl. 29/p. 135 sont plus riches et plus sophistiqués, ce qui constitue une intensification esthétique du programme. Au Moyen Age, l’enluminure s’effectue par étapes et suit un ordre d’exécution bien établi par la tradition. Si l’artiste a l’intention d’appliquer de la dorure, surtout de l’or bruni, cette opération se place immédiatement après le

3 Citole: V. fl. 18r/p. 113, A 70 ; VII. fl. 29r/p. 135, A 111 ; X. fl. 40v/p. 158, A 158 ; XI. fl. 47r/p. 171, A 185 ; XII. fl. 48r/p. 173, A 186 ; XIII. fl. 51v/p. 180, A 199 ; XIV. fl. 55v/p. 188, A 210 ; XVI. fl. 60r/p. 197, A 224 . Cithare: I. fl. 4r/p. 85, A 14; III. fl. 16r/p. 109, A 64; IV. fl. 17r/p. 111, A 68; XV. fl. 59r/p. 195, A 222. Castagnettes: I. fl. 4r/p. 85, A 14; III. fl. 16r/p. 109, A 64; IV. fl. 17r/p. 111, A 68; VII. fl. 29r/p. 135, A 111; XIII. fl. 51v/p. 180, A 199; XIV. fl. 55v/p. 188, A 210; XV. fl. 59r/p. 195, A 222. Harpe: II. fl. 15r/p. 107, A 62; IX. fl. 37r/p. 151, A 144; XI. fl. 47r/p. 171, A 185. Vielle: VI. fl. 21r/p. 119, A 82; VIII. fl. 33r/p. 143, A 129; IX. fl. 37r/p. 151, A 144. Tambour à sonnettes: VI. fl. 21r/p. 119, A 82; XII. fl. 48r/p. 173, A 186; XVI. fl. 60r/p. 197, A 224.

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dessin et avant la peinture. Si le fond est réticulé, il passe ensuite à ce travail minutieux. Puis il peint le cadre. Ceci constitue une opération à part dans le Chansonnier, parce que tous les cadres architecturaux sont entièrement achevés. Il est également normal au Moyen Age qu’un artiste commence par le haut de l’image, ici le cadre, et travaille en direction du bas. Ensuite il peint les meubles, les vêtements et les accessoires, terminant par les visages des personnages. On peut donc déduire que l’utilisation de l’or bruni dans les miniatures et les initiales du Chansonnier d’Ajuda n’était pas prévue. Compte tenu de la présence des petites ouvertures en forme de rectangle et de trèfle dessinées sur le fond de l’image, il est vraisemblable que l’arrière plan devait recevoir de la peinture. En effet, Susana Pedro a repéré les indications marginales prévoyant la couleur jaune pour quelques images, ce qui confirme cette affirmation 4. La palette est composée de tonalités chaleureuses, particulièrement méridionales: rouge, rose pâle, rose foncé, orange, ocre. Les tonalités foncées, bleu et vert, sont souvent ombrées d’une autre couleur, ce qui a pour effet de créer des harmonies moirées, changeantes, presque irisées (fl. 59/p. 195). La place réservée à la couleur verte, souvent associée avec la couleur bleue superposée, est originale. Elle joue un rôle important dans les cadres architecturaux, où elle est disposée sur les arcades, les murs des bâtiments, les toitures et les chapiteaux. Ces derniers, les chapiteaux, sont d’un intérêt particulier, non seulement en raison de leur couleur verte dans chaque miniature, mais aussi en raison de leur forme. Ils n’adoptent pas le profil sommaire de tige à crochet, de trèfle ou de feuille dentelée, formes habituelles dans les manuscrits de la seconde moitié du XIIIe siècle, aussi bien en France qu’à la cour d’Alphonse le Sage en Espagne. Dans le Chansonnier d’Ajuda, les larges branches feuillues des chapiteaux, colorées en vert avec des rehauts jaunes, transforment l’élément architectural en un support végétal très original. Les vêtements, les instruments de musique et les sièges sont dans des états variables d’achèvement. Les tissus les plus aboutis sont peints avec deux couches de peinture, ils sont traités de manière assez sophistiquée, notamment le bleu pâle rendu violacé par des ombres de couleur rose (fl. 59/p. 195), ou le vert sapin, ombré de bleu (fl. 40v/p. 158). La couleur rouge, rarement employée, est réservée pour les doublures, alors que le côté extérieur du vêtement, est peint en bleu ou en couleurs complémentaires (orange, vert ou violet). La vigueur d’un pinceau assuré est particulièrement évidente au fl. 40v/p. 158, au début des chansons de Johan Soarez Coelho, où l’énergie de l’exécution du manteau du guitariste et du drap bleu qui recouvre le banc nous donne un aperçu du grand talent de l’artiste. Le maître est un fin observateur des étoffes et des drapés. Il se plaît dans chaque image à tourner les manteaux différemment autour du corps. Le manteau rose à doublure rouge de Johan Soarez Coelho s’agrippe à son

4

Cf. son exposé présenté dans ce Colloque.

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épaule droite, passe au-dessus de l’avant-bras gauche et retombe sur ses genoux (fl. 40v/p. 158). Le manteau du guitariste enlace son épaule gauche, passe sous le bras droit et revient au-dessus de l’avant-bras gauche. Les profonds plis à bec, qui tombent en rythme alterné, mettent la figure en mouvement. Le poète anonyme du fl. 47/p. 171 est enroulé dans son manteau, alors que le manteau du guitariste retombe comme un drap d’honneur derrière l’instrument. Enfin, au moment culminant de son chant, Pero Gomez Barroso gonfle ses poumons et, dans une montée d’émotion intense, ouvre son manteau en même temps qu’il dirige sa voix vers l’auditoire (fl. 59/p. 195). Tous les musiciens, danseurs et chanteurs portent une cotte et un surcot de deux couleurs différentes. Une petite fente amidonnée à l’encolure du surcot, appelée en français l’amigaut, permet de passer la tête. Le surcot ibérique est taillé différemment du surcot français. Les ouvertures pour les bras sont beaucoup plus amples et descendent plus bas, laissant entrevoir une fine ceinture qui repose sur les hanches. Une autre particularité du costume ibérique est la fente lacée sur le côté gauche de la cotte (fl. 17/p. 111). Ce détail caractérise aussi bien les vêtements féminins que masculins. La partie lacée n’est jamais peinte, ce qui laisse supposer qu’elle est façonnée dans un tissu blanc, comme dans les chansonniers d’Alphonse le Sage, où l’on retrouve exactement le même détail. Ce style de vêtement, qui semble disparaître au XIVe siècle, constitue peut-être un indice de datation. Les surcots et les manteaux les plus achevés sont toujours ourlés d’un galon bistre (fl. fl. 60/p. 197). Si jamais l’artiste avait eu l’intention d’appliquer de l’or peint, il aurait sans doute doré les galons. En effet, à la différence de l’or bruni, l’or peint est souvent appliqué en dernier lieu. Un dernier détail de costume s’aperçoit chez deux des joueurs de vielle et deux des joueurs de citole: le surcot, qui peut être d’une seule couleur ou mi-partie (fl. 21/p. 119), est coupé en lanières, en sangles au niveau de la jupe, laissant transparaître les jambes du joueur et créant sans doute un petit bruit de froufroutement. Plus festif et plus orné que la tenue des autres instrumentistes, le surcot à sangles semble être connu d’un bout à l’autre de l’Europe occidentale pendant le dernier tiers du XIIIe siècle. Les images de comparaison les plus spectaculaires proviennent de la Bible Maciejowski conservée à New York à la bibliothèque Pierpont Morgan (M 638) 5. Au folio 17, l’artiste raconte l’histoire, au chapitre 21 du livre de Juges, du rapt des trois filles de Silo qui, lorsqu’elles dansaient à la musique d’une vielle et d’un tambour, furent enlevées par les Benjamites pour en faire leurs femmes. On remarque que l’instrumentiste porte une cotte mi-partie dont la partie inférieure est coupée en lanières. Ensuite, au

5 Les miniatures de M 638 et BnF fr. 14969 sont reproduites en couleurs par Ruth Mellinkoff, Outcasts: Signs of Otherness in Northern European Art of the Late Middle Ages, Berkeley, Los Angeles, Oxford: University of California Press, 1993, vol. 2, pl. I. 6, I. 7 et I. 9.

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folio 29, un joueur de vielle portant le même costume accompagne le chant des femmes d’Israël qui célèbrent le triomphe de David, vainqueur de Goliath. Ce manuscrit tout à fait extraordinaire a été peint aux environs des années 1260 en Flandre occidentale. En Angleterre, toujours au troisième quart du siècle, on trouve dans le Bestiaire moralisé de Guillaume le Clerc une scène de débauche qui illustre la moralité du renard. Renart signifie «le Diable qui…chaque jour fond sur nous en quête de proie. Aux yeux de tous ceux qui vivent selon la chair, il feint d’être assurément mort, afin de pouvoir les attirer plus près de lui… une fois qu’il les tient dans son gosier, ce voleur les dévore bien vite» 6. Encore une fois, le joueur de vielle porte une tunique à sangles. Selon les traités médiévaux, la vielle était considérée comme le plus noble des instruments musicaux, cumulant les qualités de tous les autres, et c’est peut-être pour cela que le joueur de vielle porte un costume distinctif plus élaboré que celui des autres musiciens. A ma connaissance, le seul autre témoignage ibérique de ce costume ne se trouve pas dans le manuscrit des Cantigas de Santa Maria d’Alphonse le Sage (Escorial, ms. J.b.2), mais dans un manuscrit hébreu à Londres, British Library, Additional 14761, le Haggadah de Barcelone, qui est datable de la fin du XIIIe siècle 7. Remarquons que le luthiste à droite du joueur de vielle porte une tunique ordinaire mi-partie. Mais dans le Chansonnier d’Ajuda, ce ne sont pas seulement deux joueurs de vielle qui portent ce costume, mais aussi deux joueurs de citole (fl. 40v/p. 158; fl. 59/p. 195), à qui est donc accordé le même statut. Dans un manuscrit flamand du XVe siècle, un luthiste porte un surcot, apparemment coupé en lanières, au-dessus d’une longue tunique 8. Pourtant l’effet, plus pudique, n’est pas le même ; la tunique ou le surcot du XIIIe siècle laisse apparaître les jolis mollets bien galbés du joueur. D’autres témoins du costume du joueur de vielle existent certainement, et sa petite histoire reste à écrire. En ce qui concerne la reliure du manuscrit d’Ajuda, je vous rassure: les quelques remarques qui suivent ont été vérifiées auprès de Marie-Pierre Laffitte, spécialiste de la reliure à la Bibliothèque nationale de France, que je remercie. Le commentaire du fac-similé du Cancioneiro a proposé une datation du XVIe siècle et une origine portugaise pour la reliure, notant que les mêmes motifs se trouvent sur plusieurs autres manuscrits dans les fonds de la bibliothèque publique d’Evora. Je ne connais pas les fonds d’Evora, mais ce qui m’a frappée d’emblée, c’est la disposition des motifs sur la reliure: à l’intérieur d’un encadrement, le panneau centrale est composé d’un double encadrement et de cinq rangées de motifs, un schéma appelé en France la «grille de saint Laurent» 9.

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Paris, BnF, fr. 14969, f. 25 ; G. Bianciotto, Bestiaires du Moyen Age, Paris, 1980, p. 91. Nicolas Bell, Music in Medieval Manuscripts, London: British Library, 2001, p. 50 (en couleurs). 8 Nicolas Bell, op. cit., p. 56 (en couleurs). 9 E. Baras, J. Irigoin, J. Vezin, La Reliure médiévale, Paris, Presses de l’Ecole normale supérieure, 1981, p. 49. 7

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Le travail est effectué avec une roulette à six motifs, segmentés par des filets horizontaux. Des médailles, présentant une tête vue de profil, alternent avec trois motifs différents formés de végétaux. Il est vrai que pendant la première moitié du XVIe siècle, ce répertoire de motifs est assez répandu et des variantes proches se trouvent sur des reliures faites dans plusieurs pays et dans plusieurs centres. Cependant, ce qui distingue le Cancioneiro, par rapport aux autres reliures européennes de la même époque, est la disposition du panneau central découpé en bandes verticales. C’est une composition très fréquente en France depuis le XVe siècle. J’ai donc consulté l’ouvrage de Denise Gid sur les reliures de la Bibliothèque Mazarine 10 où j’ai trouvé plusieurs correspondances avec la reliure du Cancioneiro: les petites étoiles aux quatre coins du motif de la médaille (motif exclusivement parisien), la segmentation, les panneaux centraux en cinq rangées, même la forme des fermoirs. Les correspondances les plus proches et les plus nombreuses sont avec les reliures parisiennes des années 1530. Au demeurant, M.-P. Laffitte a souligné qu’une reliure en veau ayant ces motifs à cette époque, et c’est le cas de notre Chansonnier, ne peut être que parisienne. La reliure et la découverte de son origine parisienne soulève plusieurs remarques et questions, dont certaines m’ont été suggérées par Maria Ana Ramos. Je les résume brièvement: 1) Plusieurs indices suggèrent que la reliure à été trafiquée: on a déjà noté que le travail des vers dans la reliure ne trouve pas son équivalent sur les cahiers de parchemin subsistant à l’intérieur du codex. 2) Mme Laffitte a suggéré que peut-être les ais de bois ont été taillés au Portugal et recouverts à neuf à Paris. Ce serait utile d’analyser l’essence du bois des ais afin de déterminer s’il s’agit d’une essence septentrionale ou méridionale. 3) A la différence du Livro de Linhagens, le Chansonnier a dû être réduit de plusieurs centimètres en hauteur. 4) Le nom de Pero Homem figure sur deux feuillets: celui qui marque la véritable fin du texte, f. 86v, et le f. 88, qui a été auparavant collé au contre-plat supérieur, et sur lequel se trouvent les chansons de Roy Fernandez de Santiago. Pero Homem est mort en 1498, bien avant la réalisation de la couvrure parisienne. Est-ce que le feuillet 88 était déjà un feuillet de contre-garde à la fin du XVe siècle? C’est-à-dire, fut-il relié lorsque Pero Homem a apposé sa signature, mais alors avec une autre couverture? 11 Au Moyen Age, on renouvelle souvent les couvrures, conservant les ais de bois d’origine afin d’éviter le gros travaille de rogner, de remonter et de recoudre les cahiers sur les ais nouveaux. 5) Le désordre

10 Denise Gid, Catalogue des reliures françaises estampées à froid (XVe-XVIe siècles) de la Bibliothèque Mazarine, Paris : Editions du CNRS, 1984. 11 Par ailleurs, en étudiant les cahiers et leur rapport aux textes, il me semble que les cantigas de certains auteurs, dont le répertoire est limité à deux ou trois œuvres, ont pu être copiés sur des feuilles volantes, puis insérés dans les cahiers. L’application quasi anarchique du décor secondaire fait penser qu’on travaillait auteur par auteur, avec un zèle et une hâte variables en fonction des priorités.

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dans lequel les deux textes inachevés sont reliés (surtout le Livro de Linhagens) nous laisse perplexes. 6) Si le manuscrit a été relié à Paris, pourquoi aucune marque de son passage en France ne se trouve-t-elle sur les feuillets? 7) Compte tenu des dimensions de la reliure et du Chansonnier, il semble peu probable que la reliure parisienne ait appartenu à un autre manuscrit et qu’elle ait été remployée pour le Chansonnier. 8) La couvrure parisienne est d’un style des plus courants. Par ailleurs, le travail n’a rien de remarquable et manque même de soin: la roulette est usée et les motifs sont posés autant à l’envers qu’à l’endroit. Ce genre de reliure courante sur le marché ne se trouve nulle part parmi les belles reliures de François Ier et nous apprend quelque chose sur le statut du commanditaire. Malgré ces questions et ces énigmes, je constate qu’il existe des circonstances historiques qui permettent d’expliquer un passage du manuscrit à Paris pendant les années 1530. Elles concernent la reine douairière du Portugal, Eléonore d’Autriche, veuve du roi Manuel le Fortuné, et sœur cultivée et mondaine de Charles Quint. Le 4 juillet 1530, à deux heures du matin, Eléonore s’est mariée avec le roi de France, François Ier à l’abbaye de Capsieux, située entre Bordeaux et Bayonne. Le mariage a été imposé par Charles Quint lors de la Paix des Dames. Par la suite, pendant 17 ans, Eléonore habita Paris, où elle recevait ses ambassadeurs du Portugal, jusqu’à la mort du roi en 1547. Ensuite, après un passage aux Pays Bas, elle retourna en Espagne où elle mourut à Talavera le 18 février 1558. Est-ce que le Cancioneiro da Ajuda aurait pu séjourner à Paris dans l’entourage de la reine Eléonore? Avec, par exemple, quelqu’un comme l’ambassadeur et bibliophile Diego Mendoza ? A réfléchir. Une remarque finale. Peut-on savoir où le manuscrit a été copié ? C’est possible, mais afin de le prouver, il faut établir le contexte, trouver des points de contact indéniables soit avec le Portugal, soit avec l’Espagne. Les comparaisons avec les manuscrits produits à la cour d’Alphonse le Sage sont saisissantes, même par rapport aux initiales filigranées. Je pense ici non seulement aux initiales filigranées du XIIIe siècle dans le Chansonnier, mais aussi à celles du Livro de Linhagens qui ont aussi leur réplique dans les initiales filigranées qui scandent un texte ajouté aux Cantigas de la Vierge d’Alphonse le Sage. En revanche, personne n’a encore signalé au Portugal une production quelconque qui permettrait d’y situer le manuscrit. Pour ce faire, il faut examiner tous les manuscrits et fragments subsistants de la seconde moitié du XIIIe siècle susceptibles d’être d’origine portugaise, surtout les manuscrits liturgiques, et comparer les écritures et les décors peints et à l’encre. Il se peut qu’il n’existe pas suffisamment de différences entre les manuscrits de Séville et les manuscrits portugais pour déterminer l’origine du Chansonnier. En effet, on se demande pourquoi les initiales filigranées du Livro de Linhagens ressemblent à celles d’un ajout du XIVe siècle dans les Cantigas. On présume que le Livro a été écrit au Portugal. En revanche, il peut s’avérer que les points de contact avec la cour d’Alphonse sont indéniables. Espérons qu’il existe de la matière inexploitée qui permettra de mieux trancher la question. 79

New York, The Pierpont Morgan Library, ms M.638, détails des fols. 17v et 29. Paris, Bibliothèque nationale, ms. fr. 14969, fol. 25

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Fl. 17/p. 111 [Nuno Rodrigues de Candarey]

81

Fl. 21/p. 119 [Pero Garcia Burgalês]

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Fl. 40v/p. 158 [Johan Soarez Coelho]

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Fl. 47/p. 171 [anonyme?]

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Fl. 59/p. 195 [Pero Gomez Barroso]

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Fl. 60/p. 197 [Don Affonso Lopez de Bayan]

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SOM MUDO NO CANCIONEIRO DA AJUDA*

MANUEL PEDRO FERREIRA Universidade Nova de Lisboa

1. ESPAÇOS INTRATEXTUAIS Embora o Cancioneiro da Ajuda não inclua notação musical nem qualquer indicação explícita sobre as melodias das cantigas aí coligidas, deparamos nele com diversos resíduos da prática musical cortês, como sejam os espaços propositadamente deixados em branco no manuscrito. Este tema foi já estudado de forma filologicamente exemplar por Maria Ana Ramos ao longo dos últimos vinte anos 1; tudo o que posso aqui fazer é revisitar a questão do ponto de vista musicológico, procurando aclarar o significado e as implicações de tais espaços em branco.

* A presente versão da comunicação lida no colóquio «Cancioneiro da Ajuda (1904-2004)» difere da versão oral, ao não incluir grande parte do material sobre as iluminuras e os seus instrumentos, entretanto publicado, e por incorporar de forma mais exaustiva as contribuições do autor sobre a interpretação dos espaços em branco, apresentadas pela primeira vez em Santiago de Compostela no congresso internacional «Cancioneiro da Ajuda, cen anos despois» (Santiago de Compostela, 25-28 de Maio de 2004), com o título «O rasto da música no Cancioneiro da Ajuda». 1 Destaco dois: «A transcrição das fiindas no Cancioneiro da Ajuda», Boletim de Filologia, XXIX (1984), pp. 11-22; «A separação silábica na cópia da poesia lírica galego-portuguesa: outro indício de antecedentes musicais», in Miscelânea de estudos lingüísticos, filológicos e literários in memoriam Celso Cunha, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995, pp. 703-19.

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É para todos evidente que o Cancioneiro da Ajuda foi preparado para receber notação musical. A disposição dos primeiros versos de cada cantiga e o espaço livre que os encima são prova inequívoca desse planeamento. Outro rasto deixado pela música no Cancioneiro da Ajuda é o vazio, linguística e grafologicamente injustificado, no interior do próprio texto poético (separação intratextual). Embora Henry Carter, na sua edição paleográfica do manuscrito, tenha já tido em conta este aspecto 2, devemos mais uma vez a Maria Ana Ramos o tratamento exaustivo de uma das suas manifestações: a separação, na escrita, entre sílabas de uma mesma palavra (ou elementos de uma mesma sílaba) 3. Outra dessas manifestações, o excepcional alargamento da separação normalmente ocorrida entre palavras inteiras, tem recebido uma atenção menos sistemática, pelo que, há alguns meses, me propus tratá-lo conjuntamente com os casos de separação silábica. No artigo que Maria Ana Ramos dedicou à separação silábica, são listadas praticamente todas as suas ocorrências observáveis no códice. São cinquenta e oito casos que aparecem distribuídos por quarenta e quatro cantigas e envolvem dezanove autores diferentes 4. Na sequência desta listagem, a autora identifica os casos que suscitam dúvidas por poderem justificar-se «determinadas formas que se encontram graficamente silabadas» num momento «em que a formação lexical se não acharia concluída, ou em que as unidades possuíam existência própria» (p. ex. en…cobrir, a…o). Se acrescentarmos à lista primitiva os raros casos de separação silábica dela ausentes e por nós observados 5, e excluirmos da lista resultante (com sessenta e três casos distribuídos por quarenta e seis cantigas, dos mesmos dezanove autores) todas as ocorrências em que uma dúvida razoável pode ser invocada — por ser difícil saber com segurança em que época certas palavras compostas adquiriram unidade ortográfica 6 ou por suspeitar-se de uma rasura, que por si só explicaria o espaço em branco 7 —, ficaremos com apenas quarenta casos localizados em vinte e oito cantigas, de catorze poetas diferentes.

2

Henry H. Carter, Cancioneiro da Ajuda. A diplomatic edition, New York/London: Modern Language Association of America & Oxford University Press, 1941, reprint New York: Kraus, 1975. 3 Maria Ana Ramos, «A separação silábica…». 4 A autora compara sistematicamente as ocorrências observadas no Cancioneiro da Ajuda [A] com as passagens correspondentes no Cancioneiro da Biblioteca Nacional (Colocci-Brancuti) [B], havendo um único caso (aqui não considerado) em que há separação gráfica neste último códice, mas não em A. Contei um caso por vocábulo, mesmo quando há mais de uma separação no interior da mesma palavra. 5 A 60, v. 7, coi/ta…do; A 122, v. 3, om…è; A 222, v. 1, con…vusco; A 233, v. 4, en…sandeçer; A 259, v. 4, en…sandeçer. 6 A 69, v. 7, en…durar; A 77, v. 1, en…cobrir; A 81, v. 4, en…cobrir, v. 6, en…sandeçi; A 99, v. 3, toda…uia; A 101, v. 7, com…e uos; A 129, v. 6, a…quele; A 142, v. 3, toda…uía; A 176, v. 3, con…uen; A 205, v. 2, en…quanteu; A 207, v. 5, de…la; A 221, v. 5, a…o; A 222, v. 1, con…vusco; A 233, v. 4, en…sandeçer; A 238, v. 7, toda…uía; A 253, v. 4, en…quanteu; A 256, v. 6, da…quí; A 257, v. 5, da…qui; A 259, v. 4, en…sandeçer; A 289, v. 1, des…amar, v. 2, des..amou. 7 A 122, v. 3, om…è; A 261, v. 2, m…amor.

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Para chegarmos a um resultado ainda mais seguro, achámos conveniente adoptar algumas restrições adicionais. Assim, eliminámos os casos em que se possa supor que o espaço em branco derive de um constrangimento externo, como por exemplo a mudança de estilo caligráfico, ou a falta de lugar para notação musical sobre, ou imediatamente a seguir a, uma inicial maiúscula, factores que poderão levar a colocar a sílaba seguinte mais à direita do que o normal, sem que isso tenha a ver com a quantidade de figuras musicais correspondentes a cada sílaba 8. Eliminámos ainda as ocasiões em que as sílabas, não estando internamente cindidas (o que retiraria ambiguidade à separação), aparecem a uma distância inferior a dois milímetros, já que essa diferenciação, sendo mínima, poderá resultar de uma mera hesitação caligráfica ou de um ajustamento pontual da posição de escrita 9. Restam assim trinta e dois casos, abarcando vinte e duas cantigas e onze autores. Quisemos com este procedimento algo drástico isolar com segurança os casos em que a separação silábica (ou cisão interna de uma sílaba) indicia uma densidade melódica particularmente importante num determinado lugar; ou seja, presume-se que sobre o pano de fundo de uma densidade melódica geral compatível com uma distribuição normal do texto, a ocorrência de um número invulgarmente grande de notas sobre uma sílaba (ou sua vogal) levará, devido ao espaço tomado pela notação musical, a que a sílaba seguinte (ou elemento final da mesma sílaba, quando cindida) fique dela textualmente separada. De facto, esta é a única explicação para o comportamento aparentemente caprichoso do copista quando a regra da continuidade gráfica da palavra (ou da sílaba) é por ele quebrada. Se a separação gráfica intratextual é seguro indício de uma oposição entre «densidade melódica normal» e «densidade melódica excepcionalmente elevada», esta oposição pode, contudo, existir sem que haja dela reflexos na escrita do texto. O texto corrido é compatível com ligeiros contrastes de densidade melódica, podendo estar-lhe associado tanto um estilo de articulação musical «simples» ou «silábico» (uma ou duas notas por sílaba) como um estilo «neumático» ou «melismático» (três ou mais notas por sílaba) 10. A oposição existente na escrita entre um reduzido número de notas por sílaba, compatível com texto corrido, e um grande número de notas sobre uma sílaba ou vogal, que

8

A 163, v. 1, Pe…los. Casos excluídos por aplicação deste critério: A 2, v. 1, grand en…ue/ia; A 54, v. 5, de…uedes; A 122, v. 7, per…der; A 155, v. 2, sen…nor; A 205, v. 6, per…dudo; A 220, v. 3, de…uìnar; A 222, v. 20, per…don. 10 Na música profana medieval, pode entender-se por melisma um grupo de três ou mais notas cantadas sobre a mesma sílaba; há contudo quem prefira reservar o termo para grupos de notas mais numerosos, a exemplo do canto gregoriano (em que se chama melisma a um conjunto muito alargado de notas representado por um grupo de ligaduras colocadas sobre a mesma sílaba, em oposição a um pequeno conjunto de notas por sílaba, que implicaria uma articulação «neumática»). Uma melodia com profusão de melismas terá um carácter melismático; uma outra registando, em regra, uma nota ou duas por sílaba terá, pelo contrário, um carácter silábico. 9

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leva à sua individualização gráfica, não implica assim, necessariamente, um determinado estilo musical nem exclui ligeiros contrastes internos na música correspondente ao texto corrido. Contudo, por conveniência discursiva, a esse «grande número de notas» chamaremos, simplesmente, melisma, por oposição a um número de notas reduzido. Do ponto de vista musical, não há diferença substancial entre um melisma sobre uma sílaba inicial ou interna de uma palavra polissilábica e um melisma sobre uma sílaba final ou isolada. Assim, propomo-nos tratar conjuntamente o fenómeno da separação silábica (ou cisão interna de uma sílaba) e o fenómeno da separação alargada entre palavras. De facto, estes dois fenómenos são as duas faces da mesma moeda, a provisão de espaço adicional para momentos poéticos associados a uma expansão melódica excepcional. Juntos, eles permitem-nos concluir da existência provável de modelos musicados à disposição do copista, como bem assinalou Maria Ana Ramos; e também deduzir algo sobre a própria música ausente do Cancioneiro, como espero demonstrar. A separação alargada entre palavras coloca, porém, uma dificuldade metodológica: como distingui-la da separação normal? O espacejamento entre palavras é muito variável, por estar subordinado às exigências de uma disposição gráfica mais geral. A necessidade de preencher totalmente as linhas previamente traçadas, por exemplo, poderá levar o copista a jogar livremente com o espaço em branco. Assim, se no Cancioneiro da Ajuda uma separação de três milímetros permite, em princípio, a clara distinção gráfica entre palavras, nada impede que o copista opte por aumentar essa distância. Esta liberdade confere uma grande ambiguidade ao significado da separação interverbal. Para que a propriedade de uma interpretação musical desta separação não pusesse dúvidas, tomámos aqui apenas em consideração as separações verbais de oito ou mais milímetros, distância esta que, em contexto, se destaca normalmente como uma provisão de espaço excepcional, de todo inexplicável por motivos de disposição gráfica. Na listagem que segue pode ver-se o resultado da nossa segunda operação (consideração conjunta das separações intra- e intervocabulares) e posterior filtragem. De vinte e duas cantigas (com separação silábica), passámos a vinte e cinco (com separação intra- ou interverbal). De trinta e dois casos, passámos a cinquenta e dois; de onze autores, passámos a doze. O facto de a separação interverbal surgir quase sempre nas mesmas composições onde ocorre separação silábica confirma a sua comum natureza, reflexo da presença de um modelo com notação musical. 2. SEPARAÇÃO INTRATEXTUAL NO CANCIONEIRO DA AJUDA: UMA FILTRAGEM

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A 15 De quant’eu sempre desejei v. 3 re…cey

Johan Soarez Somesso

A 16 Muitas vezes en meu cuidar v. 7 consel…lachar

id.

A 22 Ja m’eu, sennor, ouve sazon v. 6 quanto uos /ue…iesey

id.

A 35 Como morreu quen nunca ben v. 4 fo…y morto

Pai Soarez de Taveirós

A 50 En tal poder, fremosa mia sennor v. 3 enquanteu ui…uo for

Martin Soarez

A 51 Mal consellado que fuy, mia sennor v. 1 con…sella…do

id.

A 60 Tal om’ é coitado d’amor v. 1 coi…ta…do v. 7 coi /ta…do

id.

A 76 Quando mi agora for e mi alongar v. 1 mia…gora

Nuno Fernandez

A 95 Por muy coytado per tenh’ eu v. 5 pec…ad assi

Pero Garcia Burgalês

A 126 Punnei eu muit’ en me quitar v. 7 [rrefrã], ue…ro /ya…men 11

Fernan Garcia Esgaravunha

A 139 De mia sennor direy uos que mi-auen v. 20 [fiinda], logeu…querria

Roy Queymado

A 155 v. v. v. v. v.

Vasco Gil

Non soube que x’era pesar 1 pe…sar 2 ualla…nostro 4 ui /ue…r 4 sen…nor 5 di…zer

A 156 Punnar quer’ora de fazer v. 1 o…ra v. 2 ol…los

id.

11 Sobre a língua e origem deste advérbio, veja-se Jean-Marie d’Heur, Troubadours d’Oc et troubadours galiciens-portugais, Paris: Fundação Calouste Gulbenkian, 1973, pp. 105-14; e Maria Ana Ramos, «A separação silábica», pp. 716-18.

91

92

A 158 En grave dia, sennor, que vus vi v. 29 [fiinda], guar…de

Johan Soarez Coelho

A 159 v. v. v.

Meus amigos, que sabor averia 3 quer…ria 6 ou /ues…sen 6 dó…ó

id.

A 161 v. v. v. v. v. v. v. v. v. v.

Eu me coidei, u me Deus fez veer 3 nun…ca 3 uerria…mal 4-5 pareçer…e 5 fa…lar 5 tan…ben 6 tan…de 6 prez…e 6 bon…sen 22 [fiinda], poilo…non…souber 24 [fiinda], põ…er

id.

A 162 Ora non sei no mundo que fazer v. 6 [rrefrã], por…en

id.

A 163 Pelos meus ollos ouv’eu muito mal v. 2 pra…zer v. 3 ual…uera

id.

A 165 Nunca coitas de tantas guisas vi v. 4 do…e…de uus

id.

A 190 Tan muit’á ja que non vi mi sennor v. 5 [rrefrã], o…gei v. 6 [rrefrã], perderia…se

Roy Paez de Ribela

A 191 Un dia que vi mia sennor v. 3 que…re

id.

A 195 A mia sennor, que mui de coraçon v. 5 [rrefrã], ui…uer

id.

A 200 v. v. v. v. v. v.

Johan Lopez d’Ulhoa

Quand’eu podia mia sennor 2 ueer…ben 2 desejaua…enton 3 dela…eno 4 querria…ia 4 me…llor 6 [rrefrã], ben…auer

A 207 v. v. v.

Coyt’ averia, se de mia sennor 2 uisse…coidasse 2 auer…ben 5 [rrefrã], se…dela

A 232 A bõa dona por que eu trobava v. 5 por ela…nsandeçi

id.

Johan Garcia de Guilhade

Resumindo, a presença de modelos musicados é detectável em composições de doze autores, que se distribuem por uma larga fatia do Cancioneiro — não apenas pela zona das fiindas musicadas, mas também por uma zona anterior, que Resende de Oliveira inclui naquilo que designa por «cancioneiro de cavaleiros» 12. Os poetas que têm mais de uma composição com indícios de ter sido copiada de um modelo musicado são seis. Destes, destaca-se Johan Soarez Coelho, com dezoito casos abarcando seis cantigas, seguido de Johan Soarez Somesso, Martin Soarez e Roy Paes de Ribela, com três cantigas cada um. É de notar que os autores listados têm, na sua esmagadora maioria, ligações ao território português (corte de D. Sancho I: Pai Soarez de Taveirós; corte de D. Sancho II: Martin Soarez, Vasco Gil, talvez Johan Soarez Somesso; corte de D. Afonso III: Fernan Garcia Esgaravunha, Roy Paez de Ribela, Pero Garcia Burgalês, Johan Soarez Coelho, e provavelmente também Roy Queymado, Johan Garcia de Guilhade e Johan Lopes d’Ulhoa); só três deles são seguramente relacionáveis também com Alfonso X de Castela e Leão (Martin Soarez, Vasco Gil, Pero Garcia Burgalês), podendo ainda estar neste caso Roy Paez de Ribela 13. É igualmente significativo, neste contexto, que estejam ausentes desta lista trovadores copiados na mesma zona do Cancioneiro da Ajuda como Airas Carpancho, Nuno Rodriguez de Candarei e Johan Nunez Camanez, representados com um número reduzido de cantigas, e ligados com toda a probabilidade apenas à Galiza, sem conexão documentada com a corte portuguesa. A cópia no manuscrito das cantigas de outros autores, entre os quais Pero da Ponte, intimamente ligado a Alfonso X, não dá sinais de ter tido na sua base materiais musicados, o que reforça a ideia de que a presença destes sinais parece depender de uma ligação a Portugal (fosse porque os autores tivessem pessoalmente frequentado a corte, fosse porque, a partir de certo momento, aí tivessem circulado, com solfa, as suas composições). Esta situação sugere duas possibilidades: ou o editor do Cancioneiro tinha acesso privilegiado a fontes musicadas de proveniência portuguesa, o que não sucederia com as fontes musicadas de origem galega ou castelhano-leonesa; ou o mesmo tinha acesso a fontes musicadas de proveniência maioritariamente

12 13

A. Resende de Oliveira, Depois do espectáculo trovadoresco Idem, ibidem; G. Lanciani & G. Tavani, Dicionário.

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lusa porque no terceiro quartel do século XIII só na corte portuguesa se teria generalizado, enquanto modelo a imitar, a recolha notacional das melodias trovadorescas, o que se viria a reflectir na transmissão manuscrita posterior. Na verdade, o contraste entre a situação dos trovadores portugueses de meados do século XIII, servidos por notação musical, e os restantes leva a crer que D. Afonso III, devido à sua atestada ligação, enquanto conde de Bolonha, a certos trouvères e ao respectivo círculo cultural, introduziu na sua corte hábitos de inclusão de notação musical na cópia manuscrita da canção trovadoresca. Isto não teria sucedido senão muito mais tarde nos círculos senhoriais do norte-noroeste e na corte de Alfonso X, onde iniciativas no campo da notação, centradas nas Cantigas de Santa Maria, parecem não ter sido anteriores à década de 1270. Recorde-se que, no respeitante às cantigas marianas, o códice mais antigo (proveniente de Toledo) foi provavelmente escrito entre, aproximadamente, 1270 e 1275, exibindo uma notação caracterizada pelo regionalismo do vocabulário figurativo e pela grande ambiguidade mensural 14; esta notação, aparentemente experimental — pois não tem antecedentes directos conhecidos nem deixou descendência —, foi substituída, por volta de 1280, por outra mais moderna, de matriz claramente francesa, aparentada com as escritas musicais do Pergaminho Vindel e do Pergaminho Sharrer 15. Dos casos assinalados há ainda outras lições a tirar. As vogais privilegiadas pela ocorrência de melisma são naturalmente as mais abertas, apropriadas à sustentação vocal: «e» (vinte vezes), «a» (dezoito) e «o» (doze). Isto é coerente com a explicação dos espaços intratextuais como indícios de prolongamento melódico. Os melismas distribuem-se por versos nas mais variadas posições dentro das estrofes, e também pelas mais variadas posições silábicas dentro dos versos, sem que nenhuma preferência seja aparente. No caso particular das cantigas de Roy Paez de Ribela, três dos quatro casos observados recaem sobre o refrão, o que sugere uma tendência para sobrecarregar a sua densidade melódica, na linha do observado nas cantigas d’amigo de Martin Codax. Note-se, aliás, que este trovador usa quase exclusivamente, nas suas cantigas d’amor, estrofes de quatro versos seguidas de um refrão de dois, estrutura muito comum na cantiga d’amigo.

14 Chama-se «mensural» a um sistema de escrita musical que inclui informação não só sobre a altura relativa dos sons como também sobre a sua qualidade de duração; nas notações mensurais francesas usadas na segunda metade do século XIII, por exemplo, a nota simples com valor de breve é representada por um ponto quadrado e a nota longa por um ponto quadrado com traço descendente à direita. A fim de distinguir os sistemas mensurais mais completos daqueles em que só um conjunto restrito de figuras tem significado mensural, as notações mais ambíguas são por vezes qualificadas de semimensurais ou paramensurais. 15 Manuel Pedro Ferreira, O Som de Martin Codax, «Bases para la transcripción…»/«Bases for Transcription: Gregorian Chant and the Notation of the Cantigas de Santa Maria», in José López-Calo (coord.), Los instrumentos del Pórtico de la Gloria: Su reconstrucción y la música de su tiempo, Fundación Pedro Barrié de la Maza, Conde de Fenosa, La Coruña, 1993, vol. 2, pp. 573-621; id., «The Stemma of the Marian Cantigas: Philological and Musical Evidence», in Bulletin of the Cantigueiros de Santa Maria, vol. VI (1994), pp. 58-98; id., Cantus coronatus.

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Ainda mais interessantes são as correlações entre os espaços intratextuais e os conteúdos poéticos. A correlação positiva entre melisma e acentuação musical pode ser observada numa minoria de casos; particularmente coerente é a preferência de Johan Soarez Somesso pelo melisma na antepenúltima sílaba de um verso, sobre sílaba com vogal «e», invariavelmente acentuada. Mais uma vez, vem-nos à memória a importância da marcação acentual na cantiga d’amigo, bem como a tendência, encontrada em Martin Codax, ao aumento da densidade melódica nos segmentos terminais de verso. Também nas cantigas A 50 e A 51, de Martin Soarez, encontramos a mesma correlação: melisma na antepenúltima sílaba, acentuada, em «ui…uo for», ou melisma sinalizando um ritmo iâmbico de tipo declamatório em «Mal con…sella…do». No refrão da cantiga A 200, de Johan Lopez d’Ulhoa, é também a antepenúltima sílaba, acentuada, que recebe o melisma. Quando a correlação entre melisma e acentuação é indiferente ou negativa, perfilam-se diversas hipóteses explicativas para o recurso a uma excepcional expansividade melódica. A primeira possibilidade é a marcação, pelo melisma, de uma pausa sintáctica. Isto parece suceder em duas cantigas de Roy Paez de Ribela (A 190, v. 6; A 191, v. 3) — recaindo o primeiro caso no refrão, na linha da tendência para a partição sintagmática do refrão nas cantigas de Codax; o mesmo sucede ainda, episodicamente, em duas composições de Johan Lopez d’Ulhoa (A 200, vv. 2 e 3; A 207, v. 2). Uma segunda hipótese explicativa, de maior alcance, é o realce semântico: o melisma poria em destaque sonoro uma palavra que se conclui, após exame do poema, veicular o seu conceito central ou «razon». Por exemplo, a cantiga A 60 (de Martin Soarez) vê o adjectivo «coitado» duplamente realçado através dos melismas encontrados no primeiro e último versos, o que corresponde a uma estratégia tradicional de enquadramento do conceito central do poema, a «coita» d’amor. O realce semântico é uma hipótese que funciona igualmente nas cantigas A 95, de Pero Garcia Burgalês, A 159, A 161, A 165 — todas de Johan Soarez Coelho — e A 232, de Johan Garcia de Guilhade. No caso da cantiga A 95, o realce semântico recai sobre a palavra «pecad[o]», coincidindo a separação silábica exactamente com a divisão de ouro da 1.ª estrofe, procedimento observado noutras composições líricas da época, e que configura, em sobreposição, uma terceira hipótese explicativa, a marcação proporcional, ou seja, a sinalização, pelo melisma, de um posicionamento silábico que forme proporção geométrica simples (1:1, 1:2, 1:3, 1:4) ou auto-reprodutiva (divisão d’ouro, 1:1,618) 16. Esta estratégia encontra-se igualmente na cantiga A 155, de Vasco Gil, analisada noutro lugar 17. Neste contexto, deve notar-se que «coita»,

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Sobre a marcação proporcional na produção poético-musical da elite clerical francesa, veja-se Manuel Pedro Ferreira, «L’identité du motet parisien». Sobre a relação histórica entre música e geometria, consulte-se, do mesmo autor, «Proportions in Ancient and Medieval Music». 17 Manuel Pedro Ferreira, «The Layout of the Cantigas», cit., pp. 49-51.

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na cantiga A 60, coincide igualmente com a divisão d’ouro, o que condiz com a sua função de «razon» da composição. A lírica galego-portuguesa parece reservar-nos, neste aspecto, muitas surpresas 18. Esclareça-se que não atribuo significado especial à ocorrência de melisma na penúltima ou última posições silábicas de um verso, dado que na monódia medieval, o movimento conclusivo da frase musical tende a acarretar uma distensão por alargamento do tempo ou por expansão melódica, independentes do texto veiculado. Para finalizar, gostaria de chamar a atenção para certas correlações formais sugeridas pelo espacejamento intratextual. Na cantiga A 155, de Vasco Gil, cujas rimas seguem inicialmente o esquema abab, os espaços no segundo e quarto versos (rima b) ocorrem sobre as mesmas posições silábicas; isto também sucede com os versos terceiro e quinto (com rimas diversas) da cantiga A 161, de Johan Soarez Coelho, e no segundo e terceiro versos (ambos com rima b) da cantiga A 200, de Johan Lopez d’Ulhoa. Isto leva a crer na reutilização da mesma frase melódica nesses pares de versos, o que produziria, aliás, formas musicais perfeitamente plausíveis. Mais curiosa é a verificação de que, nas cantigas A 139 e A 158, há separação silábica na fiinda, mas não na estrofe inicial; e que na cantiga A 161, o posicionamento dos melismas na fiinda não encontra qualquer precedente na estrofe. Isto reforça a ideia de que a música da fiinda, quando tenha neste Cancioneiro espaço próprio para notação, seria algo diferente daquela correspondente às estrofes. 3. FIINDAS, HINOS E LAIS De facto, estamos gratos a Maria Ana Ramos por ter chamado a atenção para o tratamento das fiindas no Cancioneiro da Ajuda. Há uma zona do códice, grosso modo correspondente à camada que António Resende de Oliveira identificou como «a recolha dos trovadores portugueses», que prevê notação musical para estes remates poéticos 19. Carolina Michaëlis interpretou este facto como indiciando música própria nestas fiindas, diferente da cantada nas estrofes 20. Maria Ana Ramos, sem descartar esta hipótese, considerou

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Id., ibid., pp. 52-54 e nota 25. Está por fazer uma sondagem sistemática sobre o recurso a processos de marcação proporcional na lírica galego-portuguesa. Os casos que ocasionalmente tenho observado levam-me a crer que, na cantiga d’amor, esse recurso foi assimilado por um razoável número de trovadores. A técnica pode encontrar-se no motete francês, mas ninguém, que eu saiba, procurou ainda averiguar do seu uso na poesia trovadoresca de além-Pirenéus. 19 Maria Ana Ramos, «A transcrição», cit.; António Resende de Oliveira, Depois do espectáculo trovadoresco. 20 C. Michaëlis de Vasconcellos, Cancioneiro da Ajuda.

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alternativas, valorizando a tradição scriptológica como marca ou de uma escolha individual, ou de um certo tempo e de um certo lugar, mas deixando no ar algumas outras interrogações: Que poderia significar esta diferente tradição scriptológica musical? Os espaços que encontramos nas fiindas previam a repetição das mesmas frases melódicas, já transcritas na 1.ª estrofe, ou pelo contrário, uma variação final, que utilizava as mesmas frases melódicas com ligeiras modificações, ou que introduziria frases melódicas completamente novas, nesta parte final da composição? 21 Num primeiro momento, rejeitei como implausível a hipótese de repetição pura e simples das mesmas frases musicais; num segundo momento, admiti essa possibilidade, entre outras 22. Ora, mesmo que admitamos que a identidade melódica da canção repousava na música dos seus primeiros versos, única maneira de justificar a divergente atitude dos copistas quanto à reserva de espaço para notação no final, os casos de separação intratextual nas fiindas das cantigas A 139, A 158 e A 161 levam a crer que a música era aí diversa da que antes se cantara nas estrofes. Esta observação, por mim feita num congresso em Santiago de Compostela, não logrou satisfazer todos os membros da audiência. Não é fácil, contudo, dizer com segurança mais alguma coisa. A única via de que me lembrei para tentar avançar um pouco no enquadramento do problema foi voltar a examinar as tradições scriptológico-musicais que poderiam ter servido de modelo aos antecedentes do Cancioneiro da Ajuda, ou seja, a notação quer da poesia estrófica latina de autoria clerical quer da canção trovadoresca cultivada no Norte de França no tempo em que o futuro rei D. Afonso III aí residiu (1227-1245). Os hábitos de escrita musical trovadorescos estão directamente relacionados, num primeiro momento, com a notação usada nos livros eclesiásticos. Estes incluem, entre as peças de canto, sobretudo antífonas e responsórios da Missa ou do Ofício, bem como os textos do Ordinário da Missa; contudo, nenhum desses cânticos tem uma estrutura estrófica. O costume é escrevê-los por extenso, excepto quando se retoma, em estilo responsorial, uma secção anteriormente já apresentada, ou se remete o cantor para um tom salmódico sabido de cor, caso em que basta uma chamada, com a primeira palavra ou palavras do responso ou do salmo (como sucederá mais tarde com a citação abreviada do refrão na poesia lírica profana). As únicas composições de

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Maria Ana Ramos, «A transcrição», p. 17. Manuel Pedro Ferreira, O Som de Martin Codax; id., «The Layout of the Cantigas: a Musicological Overview». 22

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estrutura estrófica da liturgia romano-franca são os hinos, cuja notação nas fontes medievais mais antigas foi estudada por Susan Boynton 23. A norma nos manuscritos tardios (a partir do século XII) é que só a primeira estrofe receba notação, mas existiam primitivamente outras duas possibilidades: notação integral e notação parcial. A notação integral justifica-se porque havia frequentemente necessidade de ajustes no número e distribuição das notas em função da diferente medida e acentuação do texto ao longo das estrofes, e também porque permitia a ocorrência de pequenas variantes, nomeadamente a presença ou ausência de figuras liquescentes correspondentes a consoantes líquidas. Por vezes, a única justificação para a notação integral parece ser a especial dignidade e realce visual a conferir ao hino em questão. A notação parcial de um hino para além da primeira estrofe é mais rara, tende a ocorrer em espaços interlineares não previamente preparados para tal e tem a ver com necessidades de clarificação pontual na aplicação de uma melodia sabida de cor. Um caso especial de hino notado parcialmente na primeira metade do século XII, em notação aquitana, e no ocidente peninsular, encontra-se no fólio 193 [222] do célebre Codex Calixtinus de Santiago de Compostela: trata-se de um unicum, o cântico Dum paterfamilias, cuja inclusão no livro é posterior à confecção deste último 24. A estrutura métrica e a presença de refrão intercalar traem a pertença a uma categoria de cânticos latinos cultivada sobretudo a partir do século XI, o versus, de inegável importância na génese do canto cortês trovadoresco 25. Nesta peça, depois da primeira estrofe e do refrão (formada a primeira por três pares de versos do tipo 7pp [proparoxítono] + 6p [paroxítono] com rimas alternadas, o que equivale, em termos românicos, ao esquema 5”a 5’b, sendo o estribilho 5’’c 5’’c 5’’d 5’’d) 26, só as duas estrofes seguintes e

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Susan Boynton, «Orality, Literacy, and the Early Notation of the Office Hymns». Cf. Manuel C. Diaz y Diaz, El Códice Calixtino de la Catedral de Santiago: Estudio codicológico y de contenido; André Moisan, Le livre de Saint Jacques ou Codex Calixtinus de Compostelle: Étude critique et littéraire. Para Diaz y Diaz o bifólio em questão, embora tardiamente adicionado ao códice, materialmente preexistiu-lhe; para André Moisan, o bifólio foi acrescentado ao volume em Vézelay em 1140, sendo a cópia do hino feita já em Compostela. 25 Dum paterfamilias não corresponde às características típicas do hino processional com refrão, observáveis in Bruno Stäblein (ed.), Hymnen (I): Die mittelalterlichen Hymnenmelodien des Abendlandes, pp. x-xiii, 478-500. Nesse género de hino, a estrofe consiste normalmente em dísticos ou em múltiplos de 15 sílabas, e o refrão inicia a composição. Sobre o género versus, consulte-se Marie-Danielle Popin, «Le versus et son modèle»; Richard Crocker, «Versus», in The New Grove Dictionary of Music and Musicians. 26 Veja-se o comentário literário de Abelardo Moralejo in A. Moralejo et al. (trad.), Liber Sancti Jacobi, «Codex Calixtinus», p. 590n. Aí se afirma: «Es ésta la canción más antigua que se conoce de la peregrinación a Compostela y por su estructura métrica pudo ser un temprano modelo mediolatino de la poesía romance.» M. Diaz y Diaz, El Códice, pp. 68n, 193n, sublinha o carácter erudito e escolar da composição, que coloca no início do século XII. 24

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a última, mais o início dos respectivos refrães, receberam notação 27. A forma musical da estrofe respeita a estrutura poética e corresponde em geral ao esquema AB AB CD 28. Nas frases A, B e D, a acentuação do verso na penúltima ou antepenúltima sílaba é invariavelmente marcada por contrastes de acuidade ou densidade melódica, forma de tratamento do texto que encontra paralelos na salmodia gregoriana. Entre as várias exposições da melodia registam-se muitas diferenças, e mais pronunciadas do que seria de esperar; para além das liquescências descendentes, por vezes ligadas à ocorrência de «m» ou «s» finais, há algumas variantes de entoação que marcam fronteiras de palavra, diferenciando os versos iniciados por monossílabos daqueles que começam com trissílabos; mas outras variantes há que, não sendo justificadas pelo texto nem inteiramente explicáveis pela insegurança do copista, supõem tão-só a vontade de realizar de forma flexível uma mesma ideia melódica. Curiosamente, as diferenças são mais pronunciadas na estrofe final e no ataque do refrão que se lhe segue; a variação no estribilho poderá ter a ver com a introdução de um «Ámen» antes da sua retoma, mas as variações no primeiro e último versos da estrofe parecem ser arbitrárias, ao serviço de um qualquer propósito artístico (funcionando talvez como sinal de clausura). De qualquer modo trata-se sempre da mesma melodia, em versões mais ou menos divergentes entre si, como se pode verificar na transcrição anexa 29.

27 Transcrições musicais publicadas no século XX: Peter Wagner, Die Gesänge der Jakobusliturgie zu Santiago de Compostela aus dem sog. Codex Calixtinus, Freiburg, 1931, p. 126; Germán Prado, Liber Sancti Jacobi. Codex Calixtinus, II, Santiago de Compostela, 1944, pp. 85-6; José López-Calo, La música medieval en Galicia, 1982, pp. 52 [reprodução a cores do fólio], 33-36 [fotografia e transcrição na p. 34], 130. Veja-se ainda, deste último autor, «Claves, viejas y nuevas, para la transcripción de la música del Códice Calixtino», pp. 235-71 [237-238, 259 (fac-símile), 261] (menciona transcrições oitocentistas de José Torres Laguna, aí reproduzidas, e de Joseph Pothier). Carmen Julia Gutiérrez preparou uma nova transcrição (Hymnen, II: Spanien [Monumenta Monodica Medii Aevi, Bd. X, Kassel, Bärenreiter, 2005]), que gentilmente nos pôs à disposição, juntamente com outros materiais de trabalho. 28 Na sequência da segunda estrofe, após «ut precum frequentia/cantet melodiam», surge uma extensão de cariz popular, metricamente irregular, com expressões de raiz germânica e latina («Herru sanctiagu, got sanctiagu, e ultr’eia, e sus’eia, deus aia nos»); a sua música é inicialmente similar à do refrão. Esta extensão ou incorporação, que os versos anteriores permitem identificar como uma citação musical (de canto de peregrinos), tem sido por vezes interpretada como um refrão alternativo. Prefiro pensar que essa citação serve para identificar o modelo musical do próprio refrão: a relação entre texto e melodia é nele arbitrária, contrariamente ao que ocorre nas estrofes — o que sugere contrafactura —, enquanto a forma (E E’ segundo os arcos melódicos, literariamente assimétricos, ou E F E’ F’ atendendo às fronteiras de verso) é nitidamente mais racional do que no «canto dos peregrinos» — o que sugere recomposição. 29 Vimo-nos obrigados a apresentar uma leitura própria deste hino porque todas as transcrições publicadas abarcam apenas uma parte da notação e tendem a eliminar as variantes do original (a de Germán Prado, sendo a mais completa, não é isenta de erros). A imperfeita diastematia da notação utilizada nesta peça (de tipo aquitano) faz com que não seja possível eliminar totalmente a incerteza na sua interpretação melódica; optámos pela máxima fidelidade

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Nos cancioneiros franceses, todos sabemos que a norma é, como nos hinos dos manuscritos coevos, a notação da primeira estrofe, aplicando-se livremente a mesma melodia às estrofes seguintes. As excepções são naturalmente os lais/descorts, devido à estrutura métrica cambiante. Em geral aplica-se aos lais a regra que impera na escrita das prosas ou sequências litúrgicas, ou seja, a notação musical integral. Daí que me tenham chamado a atenção os poucos casos em que os lais franceses exibem notação parcial, e particularmente aqueles casos em que a notação regressa na estrofe final, o que poderia ajudar a perceber o porquê da notação das fiindas galego-portuguesas. Estes casos foram assinalados ainda no tempo de Carolina Michaëlis por Pierre Aubry, na edição que preparou com Alfred Jeanroy e Louis Brandin 30. De facto, no Chansonnier de Noailles (Paris, B. N. fr. 12615), também conhecido entre os especialistas em trouvères por códice T, há sete lais incompletamente apontados, dos quais três exibem notação na parte final: são eles o Lai de l’Ancien et du Nouveau Testament, de Ernoul le Vieux 31, o Lai des amants 32 e o Lai du chèvrefeuille 33, ambos anónimos; musicalmente correspondem todos eles a uma fase primitiva do género, com raízes anteriores a 1200 34. Os dois últimos

ao manuscrito (a partir dos fac-símiles publicados por López-Calo, que deixam ainda algumas interrogações), acolhendo as divergências verificadas na repetição das mesmas frases sempre que a sua desejável conciliação se nos tenha afigurado forçada; só uma minoria das variantes assim recolhidas poderá resultar, não de uma divergência real no canto, mas de limitações pontuais do espaço disponível e da imperfeição da própria notação. 30 Alfred Jeanroy, Louis Brandin e Pierre Aubry, Lais et descorts français du XIIIe siècle. Texte et musique, pp. xxi-xxiii. 31 Edições musicais: Lais et descorts français, pp. 113-20; Ann Buckley, «The Lyric Lai: Musicological, Philological and Cultural Questions», pp. 189-234 [211-34]; Hans Tischler, Trouvère Lyrics with Melodies: Complete Comparative Edition. 32 Edições musicais: Lais et descorts français, pp. 123-27; H. Tischler, Trouvère Lyrics, cit., L-24. Transcrição parcial in Jean Maillard, Évolution et esthétique du lai lyrique. Des origines à la fin du XIVe siècle (Thèse pour le Doctorat d’Université), Paris: Centre de Documentation Universitaire, 1961, pp. 272-73. 33 Edições musicais: Lais et descorts français, pp. 132-35; Friedrich Gennrich, «Zwei altfranzösische Lais»; Jean Maillard, «Le ‘lai’ et la ‘note’ du chèvrefeuille»; H. Tischler, Trouvère Lyrics, L-26. Não pude consultar Luther Dittmer, Eine Zentrale Quelle der Notre-Dame Musik, New York, 1959, p. 266, que, segundo Maillard («Le ‘lai’…», p. 7n), transcreve o fragmento z. Sobre este lai, veja-se ainda J. Maillard, Évolution, pp. 221-22, 303. 34 P. Aubry, Lais et descorts, p. xxiii, considera a música destas composições preexistente aos seus textos, e próxima do tipo primitivo de lai. F. Gennrich, «Zwei altfranzösische Lais», pp. 52-54, inclina-se para datar o Lai du chèvrefeuille de c. 1180. J. Maillard, Évolution, pp. 117-18, 223, oscila na sua datação entre a última década do século XII e c. 1175, quanto ao texto, mas atribui à melodia uma maior antiguidade, supondo-a anterior a 1167. Em nota de rodapé, coloca o Lai des amants igualmente no século XII, e acaba por subscrever a opinião de Armand Machabey, segundo o qual os lais anónimos estudados por Aubry seriam todos eles de finais do século XII. A. Buckley, «The Lyric Lai», p. 192, trata igualmente os lais anónimos como uma categoria à parte, com raízes estilísticas antigas, embora os seus textos conservados e respectivas melodias não sejam anteriores ao último terço do século XII.

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aparecem referidos no romance de Flamenca, escrito na década de 1240: «Apres si levon li juglar; / Cascus se volc faire auzir; / Adonc auziras retentir / Cordas de manta tempradura. / Qui saup novella violadura, / Ni canzo ni descort ni lais, / Al plus que poc avan si trais. / L’uns viola-[l] lais del Cabrefoil, / Et l’autre cel de Tintagoil; / L’us cantet cel dels Fins amanz, / Et l’autre cel que fes Ivans.» 35 Sendo este género de canção certamente bem conhecido no entorno francês de D. Afonso III, é provável que os lais anónimos, mais antigos, e possivelmente também o do Velho e Novo Testamentos, fizessem parte da bagagem cultural da sua casa, sendo também admissível que a sua tradição manuscrita fosse então próxima do que transparece da documentação posterior, já que esta retém características musicais e notacionais relativamente arcaicas. No longo lai de Ernoul le Vieux, o regresso da notação musical na última secção é facilmente explicável pela individualidade métrica da derradeira estrofe. No Lai des amants aplica-se o mesmo raciocínio, mas o caso é mais interessante, porque nessa estrofe, iniciada por «Doce amie», a música interrompe-se sempre que se possa recorrer a uma simples repetição do que antes foi escrito, e sempre que é retomada, há uma pequena variação das frases antes expostas, variação aliás não respeitada na transcrição de Aubry 36. É esta variação, ainda que mínima, que parece justificar a retoma da notação, pois se assim não fosse, o copista poderia ter esperado pelo penúltimo verso para intervir de novo. Recorde-se a propósito a observação de Ann Buckley, de que a melodia do Lai de l’Ancien et du Nouveau Testament «é testemunho do extraordinário interesse, evidenciado por alguns lais, na variação, e deve ser vista como um indício de uma prática interpretativa na qual o material era tratado de forma diferente na repetição» 37. A parte terminal do Lai des amants confirma esta asserção. Finalmente, no Lai du chèvrefeuille (Lai da madressilva), as variantes são normalmente ocasionais e de pouca monta, concentrando-se, significativamente, no final da composição. Só as estrofes inicial (I-II na edição de Jeanroy) e terminal (XII-XIII em Jeanroy, XI nas posteriores) são aqui integralmente apontadas, enquanto as outras, melodicamente mais repetitivas, têm notação somente no respectivo começo. Ainda assim, há que assinalar uma divergência de especial interesse na quinta estrofe, entre os versos 37 e 39: a afirmação «ja mes cuers ne se partira/[de vos…]» canta-se entre o ré grave e a quarta

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René Lavaud & René Nelli (ed. e trad.), Les troubadours, I: L’oeuvre épique, p. 674, vv. 592-602. O texto de Flamenca aqui impresso reproduz, com algumas correcções, o da edição de Paul Meyer publicada em Paris em 1901. 36 A melhor transcrição disponível, quanto à sua fidelidade melódica, é a de Tischler; entre música e notas editoriais, falta somente o registo de uma variante (nota si por lá) na quarta sílaba do verso 31, e a clarificação de uma outra (dó-si-lá, sem sinalefa, em vez de dó-si) na união dos versos 123 e 124. Sobre este lai, veja-se também J. Maillard, Évolution, pp. 271-74, 304, 306. 37 A. Buckley, «The Lyric Lai», p. 204 (minha tradução).

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superior com as notas mi-sol-sol, fá-mi-sol-sol-ré/ [mi-sol…], enquanto a pergunta «et s’il s’em part, quel part ira?» aparece com as notas mi-sol-sol-sol, sol-fá-mi-sol, isto é, neste último verso prefere-se à descida (semi)conclusiva sobre o ré, uma inflexão ascendente de carácter interrogativo. Esta sensibilidade declamatória é contudo compatível com a decomposição melódica da sinalefa exigida pela contagem métrica no início do verso 22, «Doce amie» — palavras em que o copista de T, contrariamente aos editores modernos (e a si mesmo, quando aponta a mesma expressão no Lai des amants), distingue cinco sílabas: sol-mi-fámi-ré-dó 38. A última estrofe, dividida simetricamente em duas partes, exibe uma estrutura métrica praticamente equivalente à inicial, descontada a variação de rima nos versos mais curtos, que é uma novidade. Na transcrição musical de Aubry, embora já não nas mais recentes 39, a melodia é exactamente a mesma da primeira estrofe, e a mesma em ambas as metades, o que levaria a pensar que o copista foi redundante. Mas de facto, segundo T, o mesmo material melódico sofre pequenas mas bem audíveis variações, como o duplo mi inicial; é mesmo introduzida, na segunda metade da estrofe, uma nova frase musical (imediatamente repetida), que é na verdade uma versão daquela antes cantada com o verso 21, e mais adiante, em vez de se repetir uma frase, como sucedera previamente, antecipa-se a seguinte. Este comportamento pode ser verificado na transcrição anexa, em que se apresenta o início e o final da peça segundo T, juntamente com as variantes dos restantes manuscritos conservados (z e M) 40. A confrontação entre os manuscritos leva a supor uma tradição melódica relativamente estável 41. A ocorrência de uma passagem musical alternativa nos versos 91-92 e a livre escolha da melodia para o verso 94 lembram as divergências que se observam na tradição trovadoresca,

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Recorde-se que na tradição manuscrita da lírica francesa o tratamento musical da sinalefa nem sempre é consistente, podendo diferentes copistas oferecer, para a mesma peça, diferentes soluções. 39 Vd. nota 33. À excepção de Aubry, todos os editores propõem interpretações rítmicas sem suporte na notação musical. As transcrições posteriores a Aubry são contudo mais fiéis à linha melódica original, embora permaneçam algumas simplificações, inexactidões e/ou intervenções editoriais injustificadas, bem como, nos casos de Gennrich e de Maillard, plicas mal traduzidas e erros do copista por corrigir (por exemplo, a última pauta de T, a partir de as gaus. está escrita no manuscrito uma 3.ª acima, o que é revelado pela posição do bemol — sobre ré, o que é, nesta época, impossível — e é confirmado pela lição de M). 40 O manuscrito z, que integrou a colecção particular de Ferdinand Wolf, é um fragmento que contém somente a primeira metade do lai, até ao verso 52 inclusive; o fl. 2r, que acaba a meio do verso 20, é reproduzido in F. Gennrich, lâmina II. O manuscrito M, mais conhecido como Chansonnier du Roi (Paris, B. N. fr. 844), só conserva o final da peça, copiado no fl. 212r (206r no fac-símile publicado por Jean Beck, Le manuscrit du Roi. 41 A coincidência entre T e M é coerente com a sua provável proximidade genealógica, tanto literária como musical: cf. Ian Parker, «A propos de la tradition manuscrite des chansons de trouvères», pp. 182-83, 193.

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em certos pontos, entre cópias manuscritas de uma mesma canção (também nesta, z e T apresentam os versos 13-14 com melodias diferentes), sendo pois coerente, apesar das suas implicações formais, com a ideia de variação tal como era concretizada entre os trouvères 42. Em suma, o copista do Chansonnier de Noailles é sensível a um dos princípios que haviam levado os antigos apontadores de hinos a escrevê-los por extenso — a ocorrência de variações a partir de um mesmo material melódico —, combinando-o com o princípio de economia corrente entre os copistas do seu tempo na notação de poesia estrófica. Podemos assim admitir que os materiais sobre os quais trabalhou o editor do Cancioneiro da Ajuda espelhassem, nas fiindas, duas estratégias de notação: uma, seguida em Portugal, procurava reter, como no hino Dum paterfamilias e no Lai du chèvrefeuille, as variações melódicas, por vezes substanciais, concentradas nesse final, enquanto a outra as deixava à discrição do executante. Respondendo, pois, às inquietações de Maria Ana Ramos, direi que a hipótese de as fiindas variarem o material melódico anteriormente apresentado me parece hoje mais plausível que as hipóteses concorrentes de redundância clarificadora ou de total originalidade musical. 4. ICONOGRAFIA Um dos aspectos em que o Cancioneiro da Ajuda de forma mais evidente se relaciona com a música é a representação, nas suas iluminuras, de diversos instrumentos musicais, que poderão, em certa medida, ilustrar o ambiente trovadoresco. Ora, entre os instrumentos nomeados nos textos poéticos galego-portugueses, encontramos um par de nomes, «cítola/ citolon», que é especialmente intrigante. Os nomes derivados de cithara tinham inicialmente o sentido geral de «cordofone», ou seja, instrumento de corda (lira, harpa, saltério, etc.); só progressivamente o seu significado se associou a um tipo bem definido de instrumento. A designação «cítola», a partir do século XIII, refere um cordofone de braço central em que a caixa apresenta fundo em quilha, bojo inferior oscilando entre contornos ovais e triangulares, flancos de maior altura junto ao braço, e ombros rectos formando ângulo ou bico recurvo com as ilhargas côncavas; o cravelhal, reclinado para trás, prolonga-se sob o braço de modo a formar um gancho ou a unir-se com a caixa, deixando um orifício para o dedo polegar; o som é produzido por um plectro. Tem-se considerado «citolon» apenas como um aumentativo aplicado ao mesmo tipo de instrumento. Acontece que nos textos poéticos galego-portugueses o «citolon» surge frequentemente ligado

42

Cf. Manuel Pedro Ferreira, «Mesure et temporalité: vers l’Ars Nova», pp. 82-84.

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ao verbo «rascar», que se pode interpretar como referindo a fricção das cordas produzida por um arco. Propus assim noutro lugar que, ignorando a lírica profana a designação «viola» — que refere um instrumento de arco relativamente encorpado então em evidência nos círculos corteses —, as designações «cítola/citolon» corresponderiam ao par «cítola/viola de arco» consagrado na iconografia e na literatura europeias contemporâneas. As dezasseis iluminuras do Cancioneiro da Ajuda incluem várias representações destes dois tipos de cordofone 43. Nessas vinhetas vêem-se igualmente saltérios, harpas, crótalos (uma espécie arcaica de castanholas que consiste num par de tabuinhas) e o conhecido pandeiro circular com soalhas; mas não se tem notado que o códice contém, para além das iluminuras, duas outras representações relacionadas com a música. Na página 107 (fl. 15r, cantiga A 62), um «P» maiúsculo exibe, no seu interior, uma figura encapuzada batendo num membranofone circular com um pequeno bastão, figuração que encontra paralelo quase exacto em ilustrações do Roman de Fauvel conservadas no célebre códice da Bibliothèque nationale de France, fr. 146, que aí simbolizam a contraposição entre a ordem (harmonia) e a desordem (ruído) 44. Finalmente, na página 231 (fl. 77r), deixada em branco por quem confeccionou o Cancioneiro, vê-se, num desenho tardiamente acrescentado, um alaúde. O mais interessante nesse desenho acaba por não ser o alaúde, mas sim o que o rodeia. De facto, nessa página alguém traçou caoticamente a tinta várias cabeças ou figuras humanas, algumas delas com indumentária masculina cujo corte, atendendo a vários testemunhos pictóricos, nos parece aproximadamente datável entre 1440 e 1480; a meio, vê-se um alaudista que acompanha, sentado num banco, uma cena de dança protagonizada por um par, ele com uma espécie de bastão na mão, ela com uma pandeireta; ambos estão de pé, em posição avançada relativamente ao músico, no interior de um espaço circunscrito, superiormente rematado por um lanternim com janela central, sob o qual aparece uma outra janela, sobreelevada e de maiores dimensões, no que parece ser a representação de um salão palaciano. Quando pela primeira vez chamei a atenção para esta cena, fi-lo com alguma perplexidade, por não saber explicá-la cabalmente. Pude entretanto sondar a opinião de uma especialista australiana em dança do Renascimento, Jennifer Nevile, a quem enviei uma cópia do desenho, que de início a surpreendeu; mas a pequena investigação que subsequentemente levou a cabo

43

Manuel Pedro Ferreira, Cantus coronatus. Sete cantigas d’amor d’El-Rei Dom Dinis (1279-1325); id., «O rasto da música no Cancioneiro da Ajuda». 44 Cf. Michel Huglo, «Le contexte folklorique et musical du charivari dans le Roman de Fauvel», pp. 277-83 e lâminas I-VIII.

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permitiu-lhe balizá-lo, tornando-o mais compreensível. Passo a citar, em tradução, as conclusões desta coreóloga: Embora não seja evidente que se trate de uma dança, várias razões concorrem para essa interpretação: a postura corporal (posição dos pés, orientação dos membros inferiores e superiores, direcção do olhar) é comum às duas principais figuras; a terceira figura é um alaudista, costumando o alaúde, no século xv, acompanhar danças corteses dentro de portas; ela tem na mão uma pandeireta, e ele um objecto que parece uma tocha. Ora, embora as «danças de tocha» sejam mais conhecidas no século XVI, existiam já no século XV, senão antes. Tal como nos são descritas, eram danças coreografadas que faziam parte de um espectáculo teatral (apresentado em ocasiões sociais especiais), e destinavam-se normalmente a cortesãos que dançavam com as suas próprias roupas (não mascarados nem representando personagens) com um parceiro do sexo oposto, ou em pequenos grupos mistos; uma das primeiras descrições fala, contudo, de vestes de sarracenos[ 45], e uma ilustração flamenga de c. 1500 mostra homens vestidos de branco[ 46],

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Patrizia La Rocca «. La danza a Venezia attraverso I Diarii di Marin Sanuto (1496-1533)», pp. 27-62. The edition that Patrizia La Rocca is quoting from is M. Sanuto, I Diarii, ed. R. Fulin, F. Stefani, N. Barozzi, G. Berchet, and M. Allegri (Venezia: Stamperia di Visentini Federico, 1879-1902). On page 56 La Rocca quotes from an entry in I Diarii, vol. XL, 785 for the 5 February 1526. «Et venendo zoxo il Conseio di X preditto poi le 2 hore, vene in corte di palazo una bellissima mumaria di 6 principali che balavano, bellissimi vestidi, con 12 vestidi da sarasini con torzi in mano, et balano alcuni balletti novi che si have gran piacer chi li vete, et erano assà persone in corte di palazo, et il Serenissimo ai balconi dil sul palazo.» From this description it seems clear to me that the dancers themselves were holding the torches as they danced. La Rocca adds (on p. 57) that the torches held in the dancers’ hands often appear in «these dances» as a substitute for a staff. I would conclude from this comment that the passage quoted on p. 56 from 5 Feb. 1526 is therefore typical of what Sanuto describes throughout his work. The word used by Sanuto to refer to the dances performed by the 12 ‘saracens’ holding torches, that is, balletti, is the usual term used to refer to a choreographed dance. This term is used in the dance manuscripts of the early sixteenth century, and continues right through the sixteenth. Another mumaria where the dancers held torches is found in Sanuto’s Diarii vol. XV, 511 = 24 January 1513. This time the dancers were non-Venetian and non-noble and led by a dance master: cf. Maria Teresa Muraro, «La festa a Venezia e le sue manifestazioni rappresentative: le compagnie dalla calza e le momarie», p. 332: «In questa sera vi fu una bellissima muraria di 12, cioè 6 done e 6 homeni, bellissimo vestiti di restango dorà e con assà zoje atrono a dò vestiti da Sarasin avanti lhoro, zoè 12 con torzi grossi in mano, erano populari forestieri, capo il maestro Pelegrin tien scuola di balar, e feno più balli novi […]» 46 Illustration of a torch dance, from a Flemish book of hours c. 1500, London, British Library, Ms. Add. 24098, f. 19v. This illustration is on the cover of the May 1998, Vol. 26/2 issue of Early Music. This scene is obviously a ‘theatrical’ dance performance during a banquet in that the male

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o que sugere uma ligação da «dança de tocha» à «mourisca», sobre a qual, infelizmente, as informações detalhadas escasseiam. Na coreografia da «dança de tocha», as tochas acesas passavam da mão direita para a esquerda, e vice-versa, de modo que estivessem sempre no lado de fora, como sucede no nosso desenho.[ 47] Tudo indica, pois, que esta ilustração do Cancioneiro da Ajuda represente uma «dança de tocha» teatral, o que provavelmente a torna a mais antiga representação europeia do género. Não será descabido relacionar essa dança com o simbolismo fálico e solar dos fogos de São João, já que ainda não há muito tempo se celebrava no Zêzere o São João com uma dança «mourisca», e ao São João, nos Açores, estava associado um «Auto da Mouriscada» 48. BIBLIOGRAFIA CITADA BECK, Jean Baptiste, & BECK, Louise, Le manuscrit du Roi. Fonds français n.º 844 de la Bibliothèque Nationale, Tome I, Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1938, reimpr. New York: Broude Brothers, 1970.

dancers are masked and all are in the same white costume. The three male dancers are all carrying a large torch and are wearing a sword. The costume of the female dancer is obviously upper class. 47 The only choreographic description of a torch dance that has survived is from the dance treatise of Cesare Negri, Le gratie d’Amore, Milan 1602. In his treatise Negri gives two choreographies that were performed on 18 July 1599 as part of a theatrical production held in the theatre of the Ducal Palace in Milan to celebrate the marriage of the Infanta Isabella Clara Eugenia of Spain and the Archduke Albert of Austria. Pamela Jones in her article «Spectacle in Milan: Cesare Negri’s torch dances», in Early Music vol. 14/2, May 1986, pp. 182-196 discusses these two choreographies, and provides a reconstruction of the choreography and edition of the music. These two dances are both danced entries for 6 noble women (Austria Felice — Ballo fatto da sei dame) and 6 gentlemen (Ballo fatto da sei cavalieri). Each dancer is holding a lighted torch as he or she dances. The group of 6 ladies (or men) are standing in a formation of 3 couples, one couple behind the other. The 3 couples move forward, changing places. When the couples change places each dancer has to change her/his torch from one hand to the other so that the torch is always held in the outside hand. Halfway through the choreography the 6 dancers form a half-moon shape facing the front and pause here while a song is sung in honour of the royal couple, or a poem recited. The choreography also involves a ‘hay’ figure; that is and interweaving pattern where dancers changes places first with one dancer passing L shoulders then with the next dancer passing R shoulders. At every change of place the torches would also have to be changed from one hand to the other. These two dances are very similar in the steps used, the choreographic sequences and floor patterns used to the other ‘non-theatrical’ balletti found in Negri’s treatise. 48 José Leite de Vasconcelos, Etnografia Portuguesa, vol. VIII, pp. 379, 388; António Augusto da Rocha Peixoto, Etnografia Portuguesa, p. 63.

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CODICOLOGÍA ALFONSÍ (CÓDICE DE LOS MÚSICOS ESC.B.I.2) 1

GEMMA AVENOZA Universitat de Barcelona

En 1999 Martha Schaffer, 2 al enumerar los temas pendientes en el estudio de los códices alfonsíes de las Cantigas de Santa Maria, decía que no disponíamos aún de descripciones codicológicas de los manuscritos. De hecho ni Parkinson, ni Ferreira, ni los prologuistas de los facsímiles, ni la propia profesora de la Universidad San Francisco, no han realizado una descripción codicológica completa de los cuatro testimonios principales: Toledo 3, los dos «códices de las

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Este artículo se incluye en la línea de investigación apoyada por el Programa Nacional de Promoción General del Conocimiento, a través de los proyectos de investigación BFF2002-0052 y BFF2003-08655-C03-01 y HUM2006-11031-C03-01/FILO, cofinanciados con la aportación de fondos FEDER. Todas las ilustraciones fotográficas que acompañan este trabajo se reproducen gracias a la gentileza de Patrimonio Nacional a quien corresponde el ©. 2 Schaffer, Martha E., «Los códices de las Cantigas de Santa Maria: su problemática», en El Scriptorium alfonsí: de los Libros de Astrología a las «Cantigas de Santa Marí» (Cursos de Verano de El Escorial) (eds. J. Montoya Martínez - A. Domínguez Rodríguez), Madrid, Universidad Complutense, 1999, pp. 127-148, vid. esp. p. 140. 3 El trabajo más completo sobre To sigue siendo por ahora el de Manuel P. Ferreira, «The Stemma of the Marian Cantigas: Philological and Musical Evidence», Bulletin of Cantigueiros de Santa Maria, 6, (1994), pp. 58-98 (13.3/95).

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historias» y el «códice de los músicos» (To, T, F y E) 4. El resto de manuscritos alfonsíes no dispone tampoco de buenos estudios sobre su constitución formal, así que el campo es prácticamente vírgen. En ese estado de cosas, pretender analizar el conjunto de la producción que se vincula al escritorio alfonsí se escapa de mis posibilidades y del marco de una comunicación; a mi juicio sería un tema idóneo para una tesis doctoral. Mientras no consigamos entender cómo se construyeron materialmente estos códices musicales alfonsíes, difícilmente podremos intentar establecer paralelismos con el Cancioneiro da Ajuda. Que el campo de investigación sea muy amplio no es excusa para no intentar abordarlo, aunque sea de manera parcial, así que durante los últimos años, desde el momento en el que Maria Ana Ramos tuvo la gentileza de invitarme a acudir a esta celebración en torno al Cancioneiro da Ajuda, he estado trabajando sobre uno de los códices de las Cantigas de Santa Maria, el que conocemos como «Códice de los músicos» (Esc. b.i.2, o E). El carácter de joya bibliográfica que tiene este manuscrito hace que su consulta esté restringida y debo de agradecer a los responsables de la Biblioteca Teodoro Alonso y José Luis del Valle su comprensión ante mis demandas y que me hayan permitido la consulta directa del manuscrito durante los tres años que han durado mis trabajos. Escogí este manuscrito y no otro, entre otras razones, porque era el que estaba menos ilustrado y, por lo tanto, en él podían apreciarse con más detalle las técnicas de preparación material del volumen. Los preciosos códices decorados ocultan más fácilmente las líneas de pauta, las perforaciones y el resto de señales que nos permiten conocer cuáles fueron los modos de preparación del soporte previos a la copia, mucho más evidentes en volúmenes carentes de decoración, o con pocos elementos superpuestos al ejemplar tras la tarea de copia. Las expectativas se vieron cumplidas. El «códice de los músicos» tiene una historia compleja en su confección y creo que en este momento estamos en condiciones de conocerla. 1) El «códice de los músicos» es un «facticio», los tres primeros cuadernos (en realidad, un cuaderno, más otro truncado, dividido en dos), no pertenecen al cuerpo del volumen, sino que tenían existencia autónoma y por disponer de rúbrica inicial, coincidir en tema y, porque no era costumbre encuadernar sueltos tan pocos folios, fueron encuadernados al principio en el códice actual 5.

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Bibliografía sobre los manuscritos. Atención, porque en el trabajo de Rocío Sánchez Ameijeiras, por error, se ofrece como signaturas del códice de los músicos Esc. Ms. b.I.1 y T.I.6, en lugar de b.i.2 («Imaxes e teoría da imaxe nas Cantigas de Santa Maria», en E. Fidalgo, As cantigas de Santa Maria, Vigo, Xerais, 2002, pp. 245-301, vid. respectivamente pp. 248 y 299). 5 En unidades como estas está pensando Martha Schaffer cuando sugiere que el codicilio del testamento de Alfonso X relativo a los mss. hacía referencia a varias obras: «It is necessary for some purposes

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2) Es contemporáneo de los demás manuscritos y pueden aislarse en él varias manos, o mejor, varios procedimientos de copia, que también se encuentran en T y F. 3) Fue copiado en cuaterniones intonsos, formados por dos biniones intercalados uno en otro, según la fórmula de plegado A22. 4) Los copistas trabajaron en él de manera simultánea en diversos cuadernos a la vez, lo que acortó notablemente la duración de la copia. 5) El copista principal ajustó su pauta con sangrados a la amplitud del verso (o del hemistiquio) y lo hizo guiándose por su original. Se detectan cambios en la preparación material que estarían ligados a los cambios de original que llegaban a sus manos. 6) Se trata de un producto de taller, elaborado por un grupo de copistas «de letra que trabajan sin prestar demasiada atención a la ejecución musical del texto, lo que explicaría las anomalías en la disposición de los reframs, a veces enmendadas por el copista musical (p. e. existen cantigas sin notación musical para la repetición del refram, aunque se haya trazado el pentagrama correspondiente) 6, y tal vez en un entorno monástico, cosa que se correspondería con el anonimato de la copia. 7) La subscripción del folio final, firmada por «Johannes Gundisalvus», fue hecha por una mano del s. XV, probablemente hacia 1420-1440, en Sevilla. A estas conclusiones nos conduce el análisis codicológico del volumen. Vayamos, pues a examinar uno a uno todos estos particulares. Al abrir el códice y empezar a tomar notas de las disposiciones de las cajas y de los tipos de justificación, el estudioso se siente sumido en el caos. Del manuscrito emana una sensación de desorden, de falta de regularidad, de arbitrariedad en la distribución de líneas supletorias, como si se estuviera delante de una acumulación de folios pautados sin orden ni concierto, reapro-

to consider each MS a separate work. Indeed, the clusters of festas and other compositions of To and E, the evidence in E of other exemplars, plus Alfonso’s own referencias, in his second will, to ‘los libros de los cantares de loor de Santa Maria,’ suggest not only an unknown number of separate mss. but also, perhaps, entirely different types of compilations or collections», vid. «Epigraphs as a Clue to the Conceptualization and Organization of the Cantigas de Santa Maria», La Corónica, 19:2 (1990-1991), p. 81. 6 En las C 103, 105-106 y 108 el copista musical ha dejado sin transcribir la notación correspondiente a la repetición del refram al final de las estrofas, mientras que el copista del texto sí que ha reproducido todo el refram; en todas ellas existen encabalgamientos entre las estrofas, por lo que repetir el refram entre las coblas complicaría la comprensión del texto. El artista más cercano a la «ejecución» de aquellas piezas, el músico, evita la repetición inútil, mientras que el copista del texto, obsesionado por reproducirlo íntegramente, sin olvidar nada, recordando el sistema de las antífonas religiosas, repite el refram de forma insistente.

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vechados de otros trabajos o preparados por profesionales que tenían la cabeza en otras tareas. Esta perplejidad ya había asaltado a Martha Schaffer: El códice de los músicos muestra una gran variedad en los pautados al inicio, como si no se supera exactamente hacerlo o, posiblemente, como si se utilizara pergamino ya rayado para otro texto. Sin embargo, después de varios cuadernos, el método se establece. De hecho, el número sorprendente de problemas perceptibles en la ejecución de E sugiere que el códice fue confeccionado por un equipo menos hábil, trabajando a una distancia cronológica o geográfica (o tal vez cultural) de los equipos más expertos del códice de las historias o de Toledo. 7

Las anomalías tenían detrás un orden, que intentaremos explicar, y están originadas porque los copistas trabajaron simultáneamente, además de no partir de un ejemplar «acabado» (cosa que ya había deducido Mettman para las primeras cien cantigas de E), sino que se sirvieron de los rotuli originales, mientras que los copistas de To y F tuvieron acceso a una versión corregida 8. El examen material debía de ser detallado y muy atento si queríamos poner en evidencia una organización de la copia de tales características. DESCRIPCIÓN MATERIAL UBICACIÓN

Y

SIGNATURA

San Lorenzo de El Escorial, Biblioteca del Real Monasterio, b.i.2. Olim: vi.l5; i.l.2; Est. 15.1 MATERIAL

Y FORMATO

Mss. en pergamino «avitelado», no siempre de la mejor calidad. Gran folio. Considerando unas dimensiones de la piel de vaca curtida de 230 × 210 cm, habrían sido necesarias las pieles de unos 24 animales para proporcionar el material necesario para la copia del volumen.

7

M. Schaffer, «Los códices», p. 143. W. Mettman, «Algunas observaciones sobre la génesis de la colección de las Cantigas de Santa Maria y sobre el problema del autor», en Studies on the «Cantigas de Santa Maria»: Art, Music, and Poetry, eds. Israel J. Katz — John E. Keller, Madison, Hispanic Seminary of Medieval Studies, 1987, pp. 355-366. 8

116

FOLIACIÓN V folios de guardas modernas + 1-361 ff. + I folio de guardas moderno. La primera y la última de las guardas son de pergamino, el resto de papel, todas posteriores al volumen. Foliación moderna, realizada a lápiz, en cifras arábigas. No presenta errores, pero los actuales ff. 11-12 llevan otra numeración anotada a tinta, del s. XVII = 21-22. La foliación considera todo el volumen como una unidad, sin distinguir entre las dos partes que podemos identificar en el tomo. El volumen empieza mostrando un recto en blanco (ahora con algunas anotaciones vide infra). Como era frecuente en bastantes códices medievales carentes de guardas, este proceder tenía una doble función: el recto servía de guarda «ahorrando» una cara de folio del valiosísimo pergamino y protegía el texto, que empezaba en el verso, ofreciendo así al lector una doble página, disposición de especial utilidad en los códices musicales, al ofrecer a los intérpretes una mayor porción de texto a la vista, que permite seguir la lectura musical sin tener que cambiar de página. FECHA

Y ATRIBUCIONES DE COPIA

Sin colofón que identifique fecha, lugar de copia o copista. Higini Anglès, conjeturó que fue copiado ca. 1280-1283, por su similitud al ms. del Libro del ajedrez (Esc. T.i.6) copiado en esas fechas en Sevilla 9. Al final del volumen, en el margen inferior del f. 361v una mano diferente, gótico-cursiva, posterior al texto, y con una tinta más ténue ha anotado: «Virgen bien auenturada/Sey de mj Remembrada/Johannes gundisaluj» (fig. 1#). Este nombre se ha tomado como el de uno de los responsables, copistas o iluminadores del volumen 10, y no lo es, y así lo advertía Martha Schaffer en una nota al pie de su estudio sobre los códices de las cantigas al recapitular sobre los manuscritos y su carencia de colofones 11, pero este comentario pasó desapercibido 12. En la Biblioteca del Real Monasterio de El Escorial se conserva un códice en pergamino, un códice de taller, de lujo, con las iniciales iluminadas, que fue acabado de copiar en la

9

Ib., vol. 1, p. 3. «Según esto, el copista español que escribió este códice se llamaba Juan González, nombre que abunda tanto en la España de la época del rey sabio», H. Anglés, La música de las Cantigas de Santa María del Rey Alfonso el Sabio, facs., transcripción y estudio crítico, Barcelona, Diputación Provincial, Biblioteca Central, 1964, vol. 1, p. 1. Para Anglés este copista es el responsable de todo el volumen, e incluso podría serlo de la notación musical. 11 «E conserva al final del texto (fol. 361v) una bendición copiada más tarde», Marta Schaffer, «Los códices», p. 140, n. 3. 12 Elvira Fidalgo, As cantigas de Santa Maria, Vigo, Xerais, 2002, p. 55 mantiene la referencia a Johannes Gundisalvi como uno de los copistas de E, en lo que para la autora no sería un colofón, puesto que en la p. 58 reproduce, considerándolas totalmente válidas, las observaciones de M. Schaffer sobre los códices, entre las que destaca que ninguno posee ni colofón ni explicit. 10

117

cuaresma del año 1427; se trata del ms. h.i.11, que contiene la versión castellana del Valerio Máximo realizada por Juan Alfonso de Zamora. Pues bien, en el último folio de ese manuscrito, en el margen inferior de la segunda columna del verso, hay un colofón raspado, del que sólo se adivinan las palabras finales, con el nombre de la ciudad de Sevilla y una palabra con una letra «g» que se desarrolla en el margen inferior con un trazado prácticamente idéntico al de la «g» de «gundisalvj», coincidiendo también la tonalidad de la tinta (figura 2#).

Figura 1#

Figura 2#

Por la naturaleza de tales anotaciones parece descartable que «Johannes Gundisalvi» sea un poseedor de ambos códices; es mucho más probable que se trate de una persona ligada a un scriptorium de la ciudad de Sevilla 118

estrechamente vinculado a la catedral, a cuyos volúmenes tendría acceso. De hecho, nada contradice esta hipótesis, puesto que los manuscritos de las cantigas conservados en Sevilla, hasta el s. XVI, estuvieron al alcance de los músicos cortesanos, como lo ha demostrado Dionísio Preciado al encontrar en una melodía del Cancionero musical de Palacio ecos más que directos de una de las piezas de las Cantigas de Santa Maria 13. ¿Hasta cuándo estuvo este códice en Sevilla? Es difícil de precisar. J. L. Gonzalo 14 sugiere que el Códice de los músicos estaba a finales del s. XV fuera de Sevilla, en poder de Isabel la Católica en Toledo, y que éste sería el manuscrito que regaló a su hija Juana, un manuscrito carente de iluminaciones, detalle que no habría escapado al notario que levantó el inventario de sus bienes. Al hablar de los libros de Juana, tras comentar las características de la Biblia de la infanta, J. L. Gonzalo precisa que la infanta sí recibió, probablemente de su madre, un ejemplar de las Cantigas de Santa María, descrito en el inventario de Simancas como Vn libro de marca grande enquadernado en pie de moro y esta escrito en el coplas de nuestra señora, escrito de mano […] Como un libro de coplas de nuestra señora, grande, con encuadernación mudéjar o en pie de moro, es descrito al pasar a manos de su hijo y heredero, Carlos V, en 1555. Mas en los cargos y datas anteriores de 1509/1555, su identificación resulta confusa. Es muy probable que se tratara del citado en el cargo de 1509 como otro libro de coplas de nuestra señora de cubiertas leonadas, pues no se señala que fuera de molde, como sí lo era el ejemplar de las coplas de fray Íñigo de Mendoza, pero este libro es citado en el inventario de Simancas como otro librico de coplas con cubiertas leonadas, coincidencia en el color de las cubiertas que resulta sospechosa. No obstante, también es cierto que se citan expresamente otros libros de molde con cubiertas leonadas en manos de la reina en 1509, por lo que podría tratarse de una coincidencia. Si aceptamos esta posibilidad, Juana ya tenía este códice de las Cantigas de los músicos desde antes de 1509, un hecho aparentemente sorprendente, si no fuera por su notable afición

13

Dionísio Preciado, «Pervivencia de una melodía de las Cantigas en el Cancionero musical de Palacio, en España en la música de Occidente». Actas del Congreso Internacional (Salamanca, 1985), Madrid, Instituto Nacional de las Artes Escénicas y de la Música, 1987, vol. 1, pp. 95-97. Fue precisamente un canónigo de la sede sevillana, Francisco de Peñalosa (canónigo entre 1505-1528) el músico autor del villancico en cuestión (es el 311 del Cancionero musical de Palacio y está basado en la CSM 79), particular sobre el que me ha llamado la atención V. Beltran. 14 José Luis Gonzalo Sánchez-Molero, Regia Bibliotheca. El libro en la corte española de Carlos V (1500-1558), Mérida, Editora Regional de Extremadura, 2 vols., 2005. Hemos manejado y citamos este ensayo a partir de las pruebas de imprenta no paginadas que el autor gentilmente nos ha facilitado.

119

hacia la música y las coplas cantadas, como otras partidas de sus inventarios revelan. La reina poseía una curiosa colección de libros de musica y de chansons, que nos confirman el importante papel que estas actividades tenían en sus ratos de ocio (ib.). El libro se identifica con uno de los apuntes del Inventario de 1576, tal y como recoge el reciente estudio de E. Ruiz, y esa sería la fecha a quo segura para la presencia de estas Cantigas en El Escorial 15. A la fecha tradicionalmente aceptada para el códice, que es la de la muerte del rey, es decir, anterior a 1284, se contraponen hoy en día otras hipótesis que retrasan su factura hasta el segundo cuarto del s. XIV 16. Menos extrema es la propuesta que se desprende del estudio de la ornamentación de las capitales llevado a cabo por Sonia Scott-Fleming 17, que situarían F y E a finales del s. XIII o en el primer cuarto del s. XIV, y algo menos radical, Manuel Pedro Ferreira, sugiere que la copia de E se inició antes de 1284 y se terminó algunos años después, en las últimas décadas del s. XIII 18, propuesta de fechas que sería la más ajustada a nuestros actuales conocimientos sobre las cantigas y que es la que maneja también Elvira Fidalgo, autora del más reciente estudio de conjunto sobre el corpus mariano alfonsí 19. Desplazar al reinado de Sancho IV (1284-1295) la finalización de la copia de las cantigas sería situar esta tarea en un ambiente político hostil, pero tal vez no tan distinto desde el punto de vista cultural del de los últimos años de Alfonso X. Sancho fue maldito y desheradado por su padre, recibió un reino con problemas económicos y sociales, pero también con lo que Vicenç Beltran llamó «una sólida infrastructura cultural de la que Sancho pudo beneficiarse» 20; los poetas eran en aquel entonces «los altos dignatarios de la corte, los miembros de la administración más encumbrados y más próximos al rey» (ib.), algunos como el

15

E. Ruiz, Los libros de Isabel la Católica. Arqueología de un patrimonio escrito, Salamanca, Instituto de Historia del Libro y de la Lectura, Fundación Duques de Soria, Fundación Germán Sánchez Ruipérez, 2004, p. 374 [C1 113] describe el ms. de la reina, hoy Esc. T.I.1, el Códice rico, citado en el inventario de 1545; además de este ejemplar la Prof. Ruiz señala la presencia de otro ms.: «En el Inv. De 1576 [Beer, cxiv] se menciona un segundo ms. que sería b.i.2, tal vez procedente de la catedral de Sevilla» (ib.). 16 Malkon Parkes, Pause and Effect, London, Scolar Press, 1993. 17 Sonia Scott-Fleming, The Analysis of Pen-Flourishing in Thirteenth-Century Manuscripts, Leiden, Brill, 1989. 18 M. P. Ferreira, «The Stemma…», p. 72. Martha Schaffer, « Epigrafs… », p. 70, propone para estos dos códices una fecha de composición muy cercana y señala que fueron elaborados en un momento problemático, en «chaotic conditions» que tuvieron su reflejo en la disposición de los materiales. 19 E. Fidalgo, As cantigas…, p. 56. 20 V. Beltran, «Tipos y temas trovadorescos. XI. La corte poética de Sancho IV», en La literatura en la época de Sancho IV, eds. C. Alvar — J. M. Lucía, Alcalá de Henares, Universidad, 1996, pp. 121-140, es fundamental para entender esta época (la cita es de la p. 139).

120

clérigo gallego Airas Nunes, cuyo nombre aparece anotado al margen de E (fig. 3#) estuvieron al servicio del padre y del hijo 21 y aunque los trovadores documentados en el reinado de Sancho son menos que los que se relacionan con Alfonso, hay que considerar que estamos hablando de 11 años de gobierno de Sancho frente a 32 de Alfonso. Si no se puede pensar en un desinterés absoluto, de un despego de Sancho por la poesía de su tiempo, lo que sí que se podría argumentar es que una obra tan ligada a su padre, a quien fue su enemigo, no es fácil que gozara de sus simpatías. Por otro lado, avanzar la copia hasta el reinado de Fernando IV (1295-1312) supondría un impás entre el inicio y el final del proyecto, alejando la fecha de los originales de la copia y abriendo numerosos interrogantes sobre el proceso de conservación de los rotuli de los que se valieron los copistas de E 22. La situación política y económica de la corte durante los reinados que sucedieron al del rey sabio desaconseja optar por dataciones tan avanzadas.

Figura 3# f. 267ra — Detalle del margen

ESTRUCTURA

DEL CÓDICE

Tal y como nos ha llegado está formado por 47 cuadernos, en los que hemos de distinguir tres partes diferenciadas: 1) los tres primeros pliegos, un cuaternión y los restos de un único cuaderno (hoy dividido en dos partes), que debieron ser autónomos, pero fueron encuadernados en posición inicial en un momento posterior al de la constitución del volumen, y que contienen las cantigas de loor; 2) los cuadernos 4 y 5 que copian el índice y son cuaterniones; 3) los cuadernos 6-47, todos cuaterniones salvo el 14 que es un quinión y el último del que conservamos únicamente tres folios, habiendo sido cortadas el resto de las hojas que habían quedado en blanco.

21

Y celebró la romería de Sancho a Compostela del año 1284, cf. Anna M. Mussons, «Los trovadores en los últimos años del siglo XIII. Ayras Nunez y la romería de Sancho IV», en La literatura en la época de Sancho IV, op. cit. pp. 227-233. 22 Me remito a la propuesta de stemma de M. P. Ferreira, op. cit. p. 96.

121

No se ven reclamos 23 y sólo en los pliegos 7-9 hay restos de signaturas de quaderno (b-d), representadas por una letra visible al final de cada pliego; si había algún otro modo de organizar internamente los pliegos, este ha desaparecido al recortarse los márgenes en las sucesivas encuadernaciones. Esta disposición confirma que el volumen tal y como fue pensado por los copistas, empezaría en cuaderno sexto actual, primero que contiene textos y que los dos pliegos del índice que le preceden, al menos conceptualmente, no pertenecían al «cuerpo» del manuscrito, aunque no están confeccionados a posteriori, con el códice terminado. La sucesión de las manos indica que el índice fue confeccionado antes de proceder a la copia del códice o al menos simultáneamente a su inicio, y sirvió de guía para los copistas.

23

De haberlos tenido, estarían en posición horizontal, sin ningún tipo de decoración, y muy cerca del corte inferior, destinados a desaparecer por obra de la cuchilla del encuadernador.

122

Figura 4#

La gran regularidad de la estructura, formado por cuaterniones (salvo un quinión, el pliego 14), contrasta con la de To en el que se combinan cuaterniones con quiniones 24. Esta igualdad de las dimensiones de los pliegos es un aliado de primera para el trabajo simultáneo de los copistas, puesto que facilita el cálculo en la disposición de los textos. El plegado del pergamino responde a la fórmula A2: formado por la unión de dos biniones que se insertan uno en otro en una construcción bastante habitual (fig. 5#) 25. No se localizan diferencias sensibles en la preparación y características del pergamino que demuestren que éste y no otro ha sido el sistema del plegado, pero uno de los errores en la sucesión de la copia se explicaría perfectamente si fue éste el sistema de formación de los pliegos, manejando el copista los bifolios intonsos.

24

Véase la fig. 2 de M. P. Ferreira, « The Stemma… », p. 76. Jacques Lemaire, Introduction a la codicologie, Louvain-La-Neuve, Université Catholique de Louvain-la-Neuve, 1989, pp. 73-75. 25

123

Figura 5#

Estas dos características del trabajo están en el origen de la irregularidad de los cuadernos 2 y 3, de los que nos quedan los folios 9-10 y 11-12 26. Los dos primeros están unidos uno con otro mediante un talón y podrían tomarse como un binión del que se ha cortado la segunda parte. Los otros dos, también unidos por un talón por el que pasa la costura del pliego, tienen los talones plegados de modo distinto, el que corresponde al f. 12 doblado sobre el f. 11 y el del f. 11 situado tras el f. 12 (fig. 6#).

Figura 6#

El hecho de que los márgenes internos de estos folios no difieran de los anteriores descarta que se trate de folios inicialmente solidarios dos a dos 27.

26 Hay que tener encuenta que los ff. 11-12 llevan una foliación rectificada, 21-22, lo que hace pensar que en algún momento estuvieron desplazados en el volumen, situados entre los actuales cuadernos 4 y 5. 27 De haber sido solidarios, al formar las pestañas para unirlos, se habría disminuido el margen interior.

124

Al parecer el copista se confundió al manipular el cuaderno preparado; copió en primer lugar los ff. 9-10 y luego, en lugar de pasar a copiar el siguiente texto en el folio que le correspondería (si se trataba de un binión, pliego suficiente para completar su tarea), tomó otro pliego, también plegado en cuarto, y allí, en la segunda parte del cuaderno, completó su copia (fig. 7#).

Figura 7#

Una vez advertido el error, se recortaron los folios válidos de los dos pliegos y se unieron correctamente. Entre estos dos pliegos hay también un cambio notable en la disposición del texto. En los ff. 9-10vb tenemos el verso transcrito a hemistiquios y en los folios siguientes, 11-12, un verso de las mismas medidas está transcrito a verso por línea, es decir, que la transcripción ocupa la mitad de espacio en estos dos últimos folios que en los dos anteriores. Pudo darse, pues, un mal entendido durante la copia. El responsable del pliego preparó un cuaternión, pensando en la escritura por hemistiquios. Según ese modelo se cubrieron los ff. 9-10vb; de seguir con esa disposición de hemistiquio por línea los ff. 10’, 10’’, 11 y 12 deberían haber servido para contener las últimas composiciones y hubieran quedado en blanco dos folios al final, pero se produjo un error y un copista transcribió en lugar inapropiado el texto que debía de acoger 10’, a verso por línea, muy probablemente siguiendo un original diferente del que se estaba manejando para la copia de los folios 9-10. Se observa también que la última línea del f. 10vb está raspada y rectificada, escribiendose sobre la raspadura el texto que continúa correctamente en el f. 11. Lo más probable es que el copista, tras advertir un error, decidió eliminar los dos folios que seguían al f. 10, mal transcritos y que no sería posible rectificar por raspado, solución a la que sí podía acudir para rectificar algunas líneas pero no para modificar varios folios. Finalmente, por lo que respecta a las irregularidades de este pliego, hay que señalar que en el folio 12vb queda parte de la columna en blanco, en ese hueco se ha trazado una inicial del mismo tamaño que las que encabezan los poemas en tinta azul y también pueden apreciarse los restos de un pautado musical en tinta roja o morada muy clara, que fueron borrados con esmero y cuya presencia no puede apreciarse en la reproducción facsímil de Anglès. 125

La cantiga que se había previsto incluir al final de estos dos folios empezaba por una letra «B», tal vez fuera incluso una repetición de «Beneita es Maria filha» (C 410), precisamente el poema que empieza en el f. 10vb, justo antes de que el responsable de los ff. 11-12 hubiera comenzado su trabajo; la otra posibilidad sería que se pensara copiar en este punto otra cantiga de loor, y la única que empieza por «B» es el segundo refram de «Maldito seja quen non loará» (C 290) «Beeito seja o que loará», que representaría una segunda voz que sonaría tras la primera a modo de respuesta, en una tensó sobre el dedicar o no loores a María 28, voz que habría sido interpretada como una composición independiente. Hasta aquí hemos analizado la primera unidad del códice, que transmite las «Cantigas das festas de Santa María», uno de los «apéndices» de las Cantigas de Santa Maria, seguramente pensado para tener una circulación autónoma o, cuando menos, situado ahora en lugar poco apropiado. Señalaremos que los ff. 1v-2r se inician con un titre courant que abarca la doble página: «PROLOGO DAS CANTIGAS DAS CINCO FESTAS DE SANCTA MARIA. PRIMEYRA.» En ningún otro punto de E, ni tampoco en los demás testimonios de las Cantigas de Santa Maria To, T o F, podemos encontrar este tipo de «titulillo» encabezando una determinada sección. Se trata, por tanto, de un tipo de programa de rubricación diferente del que rige la organización de E, que sugiere que tras este «capítulo» seguiría otro, el dedicado a las Festas de Noso Senhor 29. Una unidad así concebida podría vincularse al uso litúrgico de las Cantigas en las celebraciones que por orden del rey debían de tener lugar especialmente en la catedral de Sevilla. El volumen se inicia en realidad con los cuadernos 4 (ff. 13-20) y 5 (ff. 21-28) que conforman la segunda unidad. Son cuaterniones regulares, carecen de reclamos y de signaturas de cuaderno y empiezan presentando al recto el lado carne. Los folios finales del quinto cuaderno, ff. 27r-28r, han quedado en blanco; debían haber acogido el texto que ahora se encuentra copiado en los ff. 28v-29r. Para explicar esta anomalía existen tres posibilidades que pasaremos a valorar: 1) que se haya desplazado la copia para poder pintar en folio carne (en el f. 29r encontramos una ilustración de bella factura);

28

Alfonso X el Sabio, Cantigas de loor, ed. Martin G. Cunningham, Dublin, University College Dublin Press, 2000, p. 212: «Poema que pronuncia sentencia para aquellos que no alaban, y bendice a los que lo hacen. A pesar de la forma zejelesca, el texto exhibe una estructura antifonal inherente, en la que dos voces adversarias se oyen por turnos; esto sugiere un posible modo de ejecución.» Véase también la reciente edición coordinada por Elvira Fidalgo, As Cantigas de Loor de Santa María (Edición e Comentario), Santiago de Compostela, Centro Ramón Piñeiro para a Investigación en Humanidades-Xunta de Galicia, 2003. 29 «Pois que el rey fez çinco cantigas das cinco festas de santa maria teue por ben de fazer outras cinco cantigas das çinco festas de nostro señor iesu cristo» To (ed. Mettman, III, p. 351 nota a C 423).

126

2) que el desajuste se debiera a un cambio de copista y, por lo tanto, que se estuviera trabajando simultáneamente sobre varios cuadernos; 3) por último, que el copista se haya equivocado al pasar de un folio al otro. En efecto, si pensamos que se han empleado dos biniones para obtener el cuaternión y se ha empleado la que Gilissen llamaba fórmula A2, podría explicarse este error, sobre todo si el copista trabajaba con los biniones intonsos (fig. 8#) y por esta solución nos inclinamos.

Figura 8#

El primer binión habría dado los ff. 21-22 y 27-28, el segundo, que plegado se situaría en el centro del cuaderno, los ff. 23-24-25-26. El copista habría desarrollado su trabajo con la primera parte del primer binión (ff. 21-22), habría tomado luego el segundo y llenado íntegramente todos sus folios y, al retomar el primero, en lugar de escribir en el lugar que le correspondía (el f. 27r, que quedaba a la derecha del 22v ya copiado, justo en la parte interior del pliego), lo hizo en el f. 28v, justo a la izquierda del f. 21r y que queda en la parte exterior del pliego. Con esto no resolvemos del todo el problema de la relación entre el cuaderno 5 y el 6. El f. 28r, último del cuaderno 5, tiene unas manchas que no existen en el f. 27v 30, como las que podría haber dejado en él el engrudo, si este folio hubiera estado pegado a una cubierta, sujeto como una guarda cautiva. Tal ubicación, visto que el f. 28 y el 21 son solidarios, implicaría que el bifolio habría estado mal doblado (28r-v/21v-r) y que toda la parte inicial del volumen habría estado desordenada. Algo así debió de suceder, porque es muy difícil explicar que unas manchas tan extensas afecten únicamente al

30

En el f. 27v se ve también una mancha, pero de dimensiones y ubicación diferente de la del f. 28r.

127

f. 28r, hoy en el interior del volumen, sin que hayan dejado rastro alguno en los folios anteriores. A partir de este punto encontramos cuadernos formados por ocho folios, cuaterniones regulares, que empiezan en lado carne. En el 6 (ff. 29-36) no son visibles ni reclamos ni signaturas, pero sí encontramos signaturas alfabéticas en los cuadernos 7-9 (= b-d), por lo que al cuaderno 6 le correspondería ser el «a» de este grupo. El cuaderno 7 es un cuaternión regular (ff. 37-44). En el espacio de justificación destinado a las iniciales de verso, a la izquierda de la segunda columna del verso (es decir, un pautado sin utilidad, pero que también encontramos en el f. 36v último del cuaderno anterior), cerca del margen inferior, a unos 52 mm del pie de la caja, se ha trazado una letra «.b.», que corresponde a una signatura de cuaderno. El cuaderno siguiente, el 8 (ff. 45-52), tiene en a misma posición que el cuaderno anterior la letra «.c.» El cuaderno 9 (ff. 53-60), lleva también en su último folio al verso la letra «d» y en el recto de ese mismo folio 60, en el margen inferior, cerca del ángulo, se ve un trazo rojo que pudo pertenecer a una signatura de cuaderno, ¿tal vez una «v», parte de la cifra «viij»? Si esto fuera así, estos cuadernos tendrían signaturas alfanuméricas representadas por una letra al final de cada pliego y un número en el margen inferior derecho de cada bifolio. A partir de este punto no puede verse resto alguno de signaturas de cuaderno, bien porque se abandone su uso a partir del cuaderno 10, bien porque hayan sido eliminadas en las encuadernaciones sucesivas que sufrió el códice. Los cuadernos 10-13 y 15-46 son cuaterniones regulares, sin signaturas de cuaderno (véase la foliación correspondiente en el mapa de cuadernos figura 5#). El cuaderno 14 es el único quinión del volumen y su presencia provoca una anomalía en la distribución del texto, en el paso del cuaderno 14 al 15 y que nos ilustra sobre la forma de trabajar de los copistas 31. Entre ambos cuadernos se producen varios cambios (de mano y de tipo de pauta) que analizaremos más adelante y que ayudan a comprender las irregularidades que se acumulan en este punto del volumen, donde podemos observar un «desorden» en la disposición del texto y la música. El cuaderno 14 acaba con la cantiga 87 (Mettman I, pp. 273-274) que está enteramente copiada con pautado musical, sin que varíe ni una sola nota en las diferentes estrofas 32 (figura 9#), como

31 El cuaderno 14 es un quinión regular, empieza y termina en lado carne y tiene el bifolio central ofreciendo el lado pelo a la vista, no el lado carne como corresponde a la estructura de los cuaterniones anteriores (ff. 93-102). 32 Algo parecido sucede con la C 120, de loor, en la que se dan dos de las tres estrofas del poema con notación musical: refram y primera estrofa con notación, repetición del refram sin notación (indicado sólo con las tres primeras palabras), segunda estrofa y refram (transcrito íntegro) con notación musical y tercera estrofa más las tres primeras palabras del refram sin notación musical. Esto vuelve a ocurrir en la C 250, también de loor, incompleta en E f. 227rb-va (faltan los vv. 6, 11, 16-19 vid. ed. Mettmann vol. II, pp. 349-350), pero transcrita íntegramente

128

podemos comprobar si la comparamos con su copia en T (f. 127v), donde sólo la primera estrofa lleva notación musical (figura 10#).

Figura 9# E ff. 101-102v C 87-88

con notación musical, y en la C 260, de loor, E f. 235va-vb, transcrita íntegramente con texto y música (notamos que en ambos casos estas cantigas están copiadas en el primer folio de la segunda parte del cuaderno, la primera es una cantiga de amigo y la segunda una cantiga de refram). Algo más complejo es el caso de la C 343 aparentemente transcrita por completo con notación musical en E f. 307va-vb, pero lo que ocurre es que el copista se ha confundido y ha anticipado en el f. 307ra-rb las estrofas II-X sin notación y en el verso ha transcrito la primera estrofa y el refram con la notación, nuevamente es un error que se da en el primer folio de la segunda parte del cuaternión (ed. Mettmann, vol. III, pp. 194-195, que no advierte del error).

129

Figura 10# T f. 127v C 87

Lo que ha sucedido aquí es el resultado de una mala coordinación entre dos copistas que trabajaban simultáneamente. El cuaderno 15 estaba ya empezado cuando se acababa el 14 y al advertir que sobraba espacio, para evitar dejar folios en blanco al final del cuaderno 14 el copista dispuso toda la cantiga 87 con notación musical; aún así debió de escribir menos líneas de las que normalmente se contenían en una columna en el f. 102vb (sólo 37, con la primera en blanco, frente a las 41 habituales del códice), para ajustar el final de su trabajo con el que seguía en el f. 103 (figura 11#). ¿Por qué se ha producido esta desincronización? El error de cálculo puede tener dos explicaciones: 1) que el copista del cuaderno 15 preveyera, como era el uso del códice, que el pliego anterior tuviera 8 folios; 2) que 130

aún sabiendo que tendría 10 ff. en lugar de ocho, el copista del cuaderno 15 hubiera realizado sus cálculos de espacio según lo que era la pauta de copia propia del cuaderno 14, con los textos copiados a hemistiquio por línea, forma de trabajo que se abandona precisamente en los ff. 99vb-100vb; de haberse mantenido a lo largo de la copia de las cantigas 85 y 86 su texto habría completado todos los folios del cuaderno, tal y como había previsto el copista del cuaderno 15.

Figura 11# E f. 103r

Cierra el volumen el cuaderno 47 que era un ternión del que hoy sólo quedan tres folios y los tres talones correspondientes a la segunda parte del pliego, el último encolado a la hoja de guardas (ff. 359-361). 47

Resumiendo la colación en una fórmula, tendríamos: 18 22/tt32/tt 4-138141015-468

3/ttt

131

JUSTIFICACIÓN Ha sido realizada a mina de plomo o punta de grafito, no siempre por la misma mano, ni con las mismas características, ni con la misma destreza, y en algunos folios la caja parece haber sido borrada para mejorar el aspecto de la página. En general, la copia respeta la pauta, aunque en algunos textos puedan sobresalir algunas letras o sílabas de la caja. Cuando los versos se copian por hemistiquios, el espacio en blanco de la derecha suele completarse por una línea decorativa, en rojo o en la misma tinta de la copia, siendo raro que quede en blanco, cosa que sucede sólo entre los ff. 96va y 99va, 102va-vb (pertenecientes al cuaderno 14, cuyos problemas ya hemos comentado) y en los folios finales ff. 359va-361va, parte que carece de notación musical. Esta justificación presenta diversas formas de distribuir la página y tiene a menudo líneas supletorias para encuadrar más que las iniciales de estrofa, los rasgueos decorativos que las flanquean. Los diversos tipos de pautado se adaptan a las características del texto a copiar: las columnas varían ligeramente de anchura y presentan una o más líneas supletorias a derecha y a izquierda, que no se trazan en la parte del folio que debe incluir el pautado musical. En general, la primera línea de la justificación se ha dejado en blanco (salvo en algunos folios en los que la primera línea corresponde a un pentagrama, entonces puede trazarse la línea roja sobre la misma línea superior de justificación); la escritura suele centrarse entre las dos líneas que la guían, sin apoyarse directamente en la inferior. Salvo en la C 5 (ff. 32v-35r), copiada en una única columna, el resto están transcritas a doble columna 33. El pautado musical nos ofrece la melodía del refram inicial, de la primera estrofa y, en algunos casos, de la repetición del refram al final de la estrofa 34. A esta disposición hemos de señalar una excepción en la C 87, copiada al final del cuaderno 14, con todo su texto acompañado por melodía. En resumen, sobre una pauta trazada y con sumo cuidado, los copistas hacen uso o ignoran la o las líneas supletorias marginales, de modo que su trabajo ofrezca la imagen que página deseada: alineando el final del verso (o el del hemistiquio) con los márgenes exteriores de las columnas o, despreocupándose de ello por el recurso a líneas y puntos decorativos que van desde el final del verso hasta el límite de la justificación. Haciendo abstracción de las líneas supletorias verticales posibles a derecha e izquierda de la pauta, o la extensión de las líneas de guía para los renglones sobre el intercolumnio, la justificación del códice de los músicos sigue

33 Esta cantiga tiene la peculiaridad de que lleva los versos bajo la notación musical escritos línea a línea, frente a la disposición habitual en este códice que escribir bajo los pentagramas los versos como prosa, separados por puntos. Sobre la disposición del verso en los cancioneros véase Vicente Beltrán, «La mise en page de los cancioneros», en esta misma sede. 34 Vid. supra las anomalías señaladas para las C 103, 105-106, y 108.

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tres patrones fundamentales, que son los que Albert Derolez representa con los esquemas 41-43 (figura 12#) 35:

Figura 12# — Tipos de pautado

Figura 13# — Tipo de pautado

Tipo 1 — corresponde al núm. 42 de la tipología de Derolez, y es la mayoritariamente empleada en el códice. En este tipo de justificación, las líneas verticales se extienden a lo largo del folio, más allá de los límites de las cajas, mientras que sólo la línea horizontal superior va de un extremo a otro del folio. Las líneas de guía de los renglones no suelen cruzar el intercolumnio y tampoco

35 A. Derolez, Codicologie des manuscrits en écriture humanistique sur parchemin, Turnhout, Brepols, 1984, 2 vols., aunque su estudio se dedique a sistematizar las estructuras correspondientes a manuscritos realizados siglos más tarde que los alfonsíes, su aplicación resulta también aquí de utilidad.

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suelen extenderse fuera de los límites que les señalan las líneas rectoras verticales fundamentales, sin atravesar las columnillas. El criterio que se sigue es prolongar el trazado de los renglones sobre las columnillas si se escribe sobre ese espacio auxiliar y detenerse sin cruzarlas si el espacio queda en blanco o se emplea para la decoración 36. Generalmente presenta líneas supletorias de justificación, con disposición semejante a la que se refleja en el modelo 66 de Derolez (figura 13#), pero nunca encontramos una doble línea en posición horizontal, que se prolongue en los márgenes en los límites superior e inferior de la caja. Esta estructura la podemos localizar en los cuadernos 1-11 y parte del 12, 13-14, 42-46, con variantes que definen subtipos. • cuadernos 1-3 sólo en el f. 1v los renglones cruzan el intercolumnio y su trazado no siempre se detiene a la altura de la justificación vertical; la línea superior horizontal se detiene en los márgenes de la caja en el cuaderno 3 y algunas de las líneas de guía para los renglones atraviesan el intercolumnio, cuaderno 1 (f. 1v). • cuadernos 4-5 las líneas de guía atraviesan el intercolumnio y no hay columnillas para incluir las iniciales, que quedan fuera de la línea de justificación vertical, estableciéndose un pautado específico para el índice. • por la disposición de las columnillas verticales podemos distinguir hasta cinco variantes: a) todas las líneas auxiliares trazadas, aunque no se empleen (cuadernos 3, 6, 10 aprox., 13-14, 42 37-45 y 46 aprox.); b) sólo una línea auxiliar a la derecha de cada columna (cuaderno 1, ff. 2v-8v); c) una línea auxiliar a la derecha de cada columna (cuadernos 4, 6-7, 11-12); d) dos líneas auxiliares a la izquierda de la primera columna, ninguna en la segunda (cuaderno 9). Tipo 2 — modelo 41 de Derolez, también con variantes, se encuentra en los cuadernos 15-41. Las líneas horizontales superior e inferior se detienen en el límite de la justificación vertical, sin ocupar los márgenes. No se ven perforaciones en esta parte del volumen, probablemente estaban situadas muy cerca de los cortes y han desaparecido al igualarse los folios. • puede tener o no columnillas laterales de apoyo a las iniciales y a sus rasgueos.

36

Generalmente sobre la segunda línea auxiliar se traza el asta descendente de la decoración afiligranada de las iniciales. 37 El f. 319, primero del cuaderno 42, tiene un pautado confuso, con muchísimas líneas anómalas, ociosas, como si se tratara de un folio reaprovechado.

134

• en buena parte de los cuadernos (15-40) las dos líneas verticales centrales no superan el margen inferior de la caja de escritura, deteniéndose en ese punto. • en algunos folios las dos últimas líneas de guía para los renglones atraviesan el intercolumnio. Tipo 3 — modelo 43 de Derolez, con cuatro líneas rectoras que se extienden por los márgenes hasta los límites del folio y las líneas de guía para los renglones ocupan el intercolumnio y también parte de los márgenes. Este tipo de justificación es muy corriente en los manuscritos medievales (aunque sin líneas de guía para los renglones en la mayor parte de los casos), y en este manuscrito se encuentra en parte del cuaderno 12 y en el cuaderno final; su uso tampoco es uniforme y podemos describir en ella algunas variaciones, puesto que en algunos folios las líneas verticales no sobrepasan el límite inferior de la caja. En el gráfico siguiente (figura 14#) pueden apreciarse los tres tipos de justificación y sus correspondencias con los cambios de mano:

135

Figura 14# — Tipos de justificación

PERFORACIONES 1) Sin perforaciones visibles • • • •

ff. ff. ff. ff.

1-10 (cuadernos 1, f. 1 y 2) 21-28 (cuaderno 5) 37-84 (cuadernos 7-12) 103-310 (cuadernos 15-41).

2) 8 perforaciones redondas, situadas dos a dos, que señalan las líneas de justificación verticales en el margen superior; de cada par sólo una coincide con la línea que delimita y no en todos los folios se da la correspondencia entre perforación y línea rectora; han sido realizadas desde el recto y con los folios superpuestos. • ff. 11-12 (cuaderno 3, su aparición coincide con un cambio en la pauta); ff. 85-102 (cuadernos 13-14), en este caso han sido realizadas con un objeto que deja una marca lineal, como un pequeño cortaplumas • ff. 29-36 (cuaderno 6, su aparición coincide con un cambio de pauta, sólo tienen uso real la segunda del primer par y la primera del último) • ff. 319-360 (cuadernos 42 al segundo folio del 47, redondeadas, pero menos redondas que las primeras). 136

3) 8 perforaciones redondas de las mismas características que las anteriores a las que se suman otras dos perforaciones semejantes que señalan el límite horizontal superior, la interior está muy cerca del pliego y casi no se ve y la exterior sólo se aprecia en contados casos. • ff. 335-350 (cuadernos 44-45, aunque en el 45 sólo es útil la del límite horizontal). 4) 6 perforaciones redondas, dos pares (sólo la exterior coincide con la línea rectora correspondiente) junto a las líneas exteriores de justificación vertical y una en la posición de cada una de las que señala el margen interior de las columnas; además es visible, muy cerca del pliego, otra perforación que señala la posición de la línea superior horizontal. • ff. 13-20 (cuaderno 4). 5) 4 perforaciones redondas emparejadas, sólo la interior del par externo señala el límite real de la línea vertical límite de la segunda la columna; además se puede ver una perforación muy cerca del pliego que delimita el margen horizontal superior. • ff. 351-357 (cuaderno 46, pero no en todos los folios sirve la perforación vertical). 6) 8 perforaciones redondas distribuidas dos a dos (sirven sólo el primer par y los dos últimos) y además hay otra perforación señalando la línea de margen interior de la primera columna, también se ve la perforación cercana al pliego que señala el margen horizontal superior. • ff. 359-360 (cuaderno 47). 7) 2 perforaciones redondas, una marca el límite externo vertical de la primera columna y la otra la posición de la línea que divide en dos verticalmente el folio • f. 361, último del cuaderno final f. 359-360.

DIMENSIONES Del folio: 401/404 × 270/272 mm; las dimensiones de la caja varían entre 303/310 × 157/210, aunque los espejos de escritura más frecuentes son de 307/308 × 194/197 mm, las columnas también varían, puesto que se ajustan a la anchura del verso o del hemistiquio siendo las más corrientes las de 303/310 x 58/65 mm; contamos con 41 líneas por columna, la primera en blanco 137

138

1 1 2 2 3 4 4 5 6 6 6-7 7 7 8 9

38

32+309+62 27+306+69 34+311+56 35+310+55 33+310+58 36+309+56 32+309+60 37+305+60 37+310+55

48+83.21.82+38 41+4.81.23.86+37 37+5.67.5.48.5.67.5+33 39+5.23+128.5+72 39+77.5.47.5.68.5+26 31+5.89.5.11.5.88.5+34 35+5.79.5.14.5.91.5+33 45+90.28.73+36 55+5.14.50.5.25.6.14.51.5+42

40+307+58 40+7.85.12.6.87+35

401/402 272 39+307+56 38+85.20.6.62+57 34+308+61 50+8.58.44.9.55+55 34+309+59 51+52.50.55+55

Horizontal

J. Lemaire, Introduction à la codicologie, p. 139.

ff. 1v-2r ff. 4v-5r f. 9v f. 10r ff. 11v-12r f. 13r ff. 16v-17r ff. 24v-25r ff. 31v-32r ff. 32v-33r ff. 35v-36r ff. 38v-39 ff. 40v-41r ff. 48v-49r ff. 56v-57r

Vertical

Vuelto Horizontal

37+302+60 40+311+57 32+307+62 32+305+69 31+306+64 34+310+58 34+311+58 33+311+58 36+306+60 35+307+60 35+308+60 37+310+55

53+61.48.60+50 40+84.26.84+38 48+3.87.3.7.3.85.5+36 48+83.20.83+38 34+85.20.4.85+44 38+5.66.5.41.5.67.5+40 71+5.16.113.5.21+41 26+4.14.54.5.48.5.15.53.5+43 41+5.10.77.4.8.4.10.75.5+33 30+5.10.92.5.14.5.72.5+34 64+8.54.27.8.54+57 48+5.12.53.6.24.6.65.6+47

401/402 272 39+307+59 43+68.47.68+46 34+306+62 44+7.61.43.9.57+51

Vertical

Recto

1,492 1,490 1,506 1,429 1,490 1,567 1,542 1,440 1,419

1,508

1,502 1,466

Prop.

Proporciones de la doble página: «Códice de los músicos»

doble rect. Pitag. doble rect. Pitag. doble rect. Pitag. a × a √2: 1 col. doble rect. Pitag. > doble rect. Pitag. > doble rect. Pitag. a × a √2 a × a √2

doble rect. Pitag.

doble rect. Pitag. > doble rect. Pitag.

(f. 3ra). El texto está dispuesto a dos columnas salvo en los ff. 32v-35r en el que la C 5 se da centrada en el folio (proporción menor que a × a √2) y en los ff. 197v-198r (parte de la C 214 y la 215 íntegra) en los que tenemos un texto dispuesto a tres columnas (proporción a × a √5). UR 302-311/40 = 7,55/7,75 38. El detalle de las variaciones de las cajas y sus correspondientes proporciones se puede observar en detalle en el cuadro siguiente:

139

ff. 64v-65r ff. 88v-89r *ff. 197v-198r ff. 322v-323r ff. 330v-331r ff. 354v-355r f. 360r f. 361r

37+303+61 37+305+59 33+307+61 35+308+61 35+310+61 30+308+68 31+308+61 36+307+58

50+12.59.45.12.57+37 45+6.75.10.12.8.81+35 38+53.25.53.19.60+24 38+8.55.50.75+46 57+8.60.31.2.64+50 52+7.65.38.3.67+40 36+11.77.19.10.78+41 39+12.73.24.16.68+40

Horizontal

32+310+60 36+302+61 34+306+62 35+311+59 32+310+62 32+310+65

Vertical

Horizontal

40+11.59.45.70+47 29+9.81.27.85+41 23+54.25.54.25.52+39 47+8.60.32.11.63+51 45+74.26.9.64+54 52+8.61.37.72+42

Recto

1,464 1,512 1,526 1,472 1,397 1,456

Prop.

< doble rect. Pitag. doble rect. Pitag. doble rect. Pitag.: 3 col. doble rect. Pitag. rect. Pitag./rec. Aur. > a × a √2

Es mayoritaria la distribución de la doble página trazada según el doble rectángulo de Pitágoras, en ocasiones combinada con la proporción del número aureo o con proporciones cercanas a a × a √2. Las vacilaciones en los valores cuando se ofrecen los datos tomados folio a folio se deben a la presencia de las columnillas, que quedan fuera del área de escritura y que distorsionan no pocas veces la estructura de la doble página.

10 13 26 42 43 46 47 47

Vertical

Vuelto

LETRA Gótica de forma, diversas manos y actitudes ante la copia, como puede deducirse de los distintos modos de corregir (la más normal, por raspado y reescritura y otra, menos frecuente, por rallado). En el códice han intervenido al menos cinco manos de muy buenos calígrafos y factura muy semejante, que llamaremos «A», «B», «C», «mano de las Festas» y «mano del índice» (véase el apéndice final). En algunos cuadernos se aprecian variaciones de estos estilos de escritura que no estoy segura de poder identificar con otra u otras, caso, por ejemplo del cuaderno 3. También hay que advertir la semejanza entre la mano de los cuadernos 12-14 y la del índice, sobre cuya identidad creo que habrá que volver a reflexionar más adelante. Los cambios de copista suelen ir aparejados de cambios en las formas de aprovechar la justificación y no sólo en la apariencia de la caligrafía, sin que coincidan siempre con un cambio de cuaderno. Mano Mano Mano Mano Mano

de las Festas: cuadernos 1-3 del índice: cuadernos 4-5, inicio del 6 y 47 A: cuadernos 6-11 y 15-41. B: cuadernos 12-14 C: cuadernos 42-46

Además de presentar particularidades en el trazado de algunas letras (veremos las que corresponden a las g, d, z y las r, especialmente estas últimas cuando se sitúan a final de renglón), los copistas «A» y «B» se enfrentan a su trabajo con un concepto distinto del área de escritura. El copista «A» entiende la columna como un espacio a rellenar por completo horizontalmente, entre unos límites preestablecidos. El hecho de que esté copiando verso, en ocasiones de menor extensión que el renglón del que dispone, le lleva a emplear distintas estrategias para evitar el espacio en blanco tras la última sílaba. Fundamentalmente acude a tres procedimientos: 1) ampliar el margen de la izquierda, trazando una nueva línea de justificación, que sólo afecta a la parte de texto y no a la notación musical, permitiendo que la longitud de la línea coincida con la del verso, 2) añadir signos sin valor significativo o alargar el desarrollo de la última letra del verso para prolongar la escritura hasta el márgen 39 y 3) usar mayúsculas dilatadas que rellenan el espacio sobrante en el interior del verso, consiguiendo también así su objetivo de igualar verso y línea 40. Se trata de un copista que estaba obligado a seguir un modelo que llevaba verso por línea, pero cuya práctica

39 40

140

Por ejemplo, f. 103ra, l. 41, 13 y 15. Véase f. 103ra, l. 8 y 10.

escriturística hasta aquel momento estaba ligada a la copia de prosa o a la de poesía con los versos separados por un punto (tipo de copia que se da en la parte de las cantigas con notación musical). Es decir, visualmente su concepto del códice de lujo estaba ligado a una presentación de dos columnas con los márgenes igualados y regulares. Además, su aparición en el volumen en el cuaderno 6 (concretamente en la segunda columna del f. 29r, primero de este cuaderno) 41 coincide con un cambio en el tipo de justificación y con la presencia de una organización de los cuadernos a través de signaturas, visibles hasta el cuaderno 9. Cuando la mano «A» vuelve a intervenir, en el cuaderno 15, de nuevo viene aparejada con un cambio en la justificación. Otra característica de este copista es que suele dejar un espacio en blanco antes del comienzo de cada cantiga equivalente a 3 UP 42 (ff. 103r, 104r) o 2 UP (ff. 108r etc.), y esto es así hasta al menos el final del cuaderno 41; también deja espacio en blanco entre el final de la rúbrica y el inicio del texto (f. 108vb), es decir, que deja en blanco más espacio del que el rubricador necesita, guiándose seguramente por un original de características diferentes del empleado por «C». Es precisamente el horror vacui de «A» el que origina uno de los rasgos más peculiares de su escritura, el uso de una –R en final de verso, que no encontraremos nunca en «B» ni en «C». Los pasos de la mano «A» y «C» vienen también acompañados de cambios en los tipos de justificación, y así lo podemos verificar entre los cuadernos 41 y 42 (paso de «A» a «C»), 42 a 43 (donde podría haber también un cambio de mano, dentro de la escritura que hemos llamado tipo «C») y 46 al 47 (en los que han intervenido copistas diferentes). La mano «B», que encontramos en el cuaderno 12, es notablemente diferente de aspecto a la del cuaderno anterior, pero el cambio se nota sobre todo entre el f. 77v y el 78r (es decir, una vez emplezado el cuaderno (ff. 77-84); en el f. 77v hay muchas mayúsculas dilatadas para acercar la longitud del verso a la del renglon y cuando no se consigue un punto y una línea sirven para «hacer caja». La cantiga siguiente, la 58, tiene los versos más largos, más ajustados a la longitud del renglón y, por lo tanto, no se necesita aplicar tales artificios. A partir de ahí las mayúsculas se hacen más escasas, pero las que aparecen tienen los trazos verticales de decoración que son característicos de esta mano. No abusa de las abreviaturas y no usa ninguna de las –R que son características de la mano «A», de la mano del cuaderno final y de la del índice (atención, porque en el f. 81vb l. 16 escrita hay una –R semejante a las del índice, pero es un ejemplo aislado).

41

Agradezco a Susana Pedro las precisiones que me ha hecho sobre este particular, corrigiendo mi apreciación inicial sobre el punto en el que la mano «A» iniciaba su trabajo. 42 Empleamos UP por unidad de pauta o de justificación que corresponde a las dimensiones de un renglón de la escritura.

141

El copista que llamamos «C» no tiene la misma concepción del espacio a ocupar en la columna, y transcribe sin mayores contratiempos un verso o un hemistiquio por cada línea de su pauta, eso sí, o él (en tinta negra) o, más tarde, el rubricador, en tinta roja, completan el espacio libre entre el final del verso y el límite de la columna con un trazo discontinuo del tipo «…-----…---». La mano que hemos llamado «C» se encuentra a partir del cuaderno 42 y presenta un módulo extremadamente alargado, sobre todo si la comparamos con la del cuaderno 43, algo más amplio y redondeado. Si observamos el cambio que se produce entre ese cuaderno y el anterior, el 41, veremos que la escritura deja ahora de apoyarse en el margen derecho, cambia la pauta y el copista empieza a escribir tras la línea que define las columnillas, sin establecer un nuevo sangrado. Compárese el f. 318v con el 319r; el mismo verso que en el cuaderno 41 llenaba el renglón aquí no lo consigue, aún y cuando el copista emplea también mayúsculas dilatadas, muy deformadas (f. 319ra l. 4 y 16), y opta por el uso de los trazos discontinuos para completar su copia. Sirva de ejemplo el diferente trazado de la z en ambas manos: Mano «B» f. 318ra, l. 21 Cuaderno 41 Mano «C» f. 319rb, l. 15 Cuaderndo 42

f. 325vb, l. 31 Cuaderno 42

f. 326va, l. 4 Cuaderno 42

f. 328rb, l. 13 Cuaderno 43

En el cuaderno 43 el copista tiene problemas de comprensión respecto a su original, tal vez incompleto. Deja, por ejemplo, seis líneas en blanco para los vv. 32-35 de la C 364 (Mettman III, pp. 237-239). Se trata de una mano ligeramente diferente, que usa una decoración singular en las capitales que no encontramos en ninguna otra de las manos del códice (vid. f. 328rb 20, 24, 26, etc.) y abarca los cuadernos 42 a 46. Este grupo de cuadernos, en un principio, parecía albergar el trabajo de varios copistas, es decir, una mano en el 42 y otra en los cuadernos 43-46, y aún en estos últimos con reservas, puesto que parecía haber un cambio entre los cuadernos 43 y 44. Examinando las formas de la escritura aisladamente, se puede confirmar la identidad de la grafía, lo que sí ocurre es que entre los cuadernos 42 y 43 y 43 y 44 el copista se enfrenta a originales diferentes. Especialmente significativo es el caso del paso del cuaderno 43 al 44. En el f. 334v, último del cuaderno 43, se empieza a copiar la C 373 = 267 (transcrita dos veces en E y una en F). Esta cantiga se copia a versos largos, no a hemistiquios como era 142

lo usual para esta mano (salvo la C 372, copiada también en 334v). Se da el caso que la copia anterior C 267 está en el f. 241ra-vb del cuaderno 32, copiada también a versos largos por el copista principal y que existen numerosísimas variantes entre las dos transcripciones, en algunos casos discrepantes a su vez con F. El copista de C 373 no sabía que el texto había sido ya transcrito por su compañero, manejaba un original distinto (es decir, circulaban del mismo poema dos copias en el mismo scriptorium) que, eso sí, tenía una disposición del verso a versos largos, modelo al que se ciñen ambos amanuenses. C 165 (ff. 158rb-159rb cuaderno 22) = C 395 (ff. 354ra-355ra cuaderno 46) numerosas variantes C 187 (ff. 174ra-vb cuaderno 23) = C 394 (f. 353ra-vb cuaderno 46) numerosas variantes C 192 (ff. 177va-179ra cuaderno 24) = C 397 (ff. 355vb-357ra cuaderno 46) variantes inapreciables C 210 (f. 193va-vb cuaderno 26) = C 416 (ff. 6va-7ra cuaderno 1) variantes inapreciables C 267 (cuaderno 32) = C 373 (cuadernos 43-44) caso examinado C 289 (f. 259rb-vb cuaderno 34) = C 396 (f. 355ra-vb cuaderno 46) las variantes son mínimas C 295 (ff. 264rb-265rb cuaderno 35) = C 388 (ff. 348va-349va cuaderno 45) también con variantes notables entre las dos copias C 340 (ff. 304va-305ra cuaderno 40) = C 412 (f. 4ra-vb cuaderno 1) alguna variante interesante C 349 (ff. 312vb-313va cuaderno 41) = C 387 (ff. 347vb-348va cuaderno 45) variantes poco significativas, salvo en las rúbricas

Como puede verse, si no consideramos las «Cantigas das festas de Nosa Señora», el resto de cantigas se repiten en los cuadernos 43-46, todos de una misma mano y que, como hemos visto para la C 267, maneja originales diferentes que los que ha tenido a su alcance la mano principal del volumen, que es precisamente la responsable de los cuadernos en los que por primera vez se han transcrito esas cantigas. Volviendo al principio de esta mano, notamos que el copista del cuaderno 42 empieza su trabajo con problemas en la pauta, que es más estrecha en el f. 319v que en el f. 319r o en el 320; el f. 319v tiene el texto muy comprimido y ahí el copista recurre al uso de abreviatuars, para volver a su escritura más esponjada a partir del f. 320, en el que la pauta, el espacio para la línea, aumenta en casi un cm respecto al f. 319v. «MANO

DE LAS

FESTAS» (CUADERNOS 1-3)

Avara en el uso de las abreviaturas, no justifica (signos y rayas conducen al final del renglón), emplea como final la –S sigmática y una forma especial 143

de –R, que se asemeja a una R mayúscula, no a una doble r superpuesta, como la característica de la mano «A». Respecto a la mano final del cuaderno 47, la diferencia fundamental estaría en el recurso a las abreviaturas. Frente a la anterior, en el cuaderno 3 encontramos una escritura mucho más apretada, que no divide el verso en hemistiquios y supera el margen derecho de su pauta; para conseguir encajar todas las sílabas en la línea, acude al uso de abreviaturas y, como la mano anterior, no emplea mayúsculas. No presenta la –R final doble ni la mayúscula que encontramos en la mano anterior o en la mano A, pero sí que usa en alguna ocasión la –s (rara) que hemos visto antes (en el f. 103, mano «A»); otros rasgos también la acercan a «A», como el tipo de et. «MANO

DEL ÍNDICE»

(CUADERNOS 4-5

Y

47)

La mano del índice (la que escribe en tinta negra, no la del rubricador), no emplea mayúsculas ni presenta la –R final característica de la mano «A», puesto que no tiene la necesidad de justificar. Su –R final es muy semejante a la del cuaderno final, pero, a diferencia de aquella, no usa de las abreviaturas más que en contadísimas ocasiones, cosa que podría explicarse por tratarse de un índice que no debe dar lugar a confusión alguna. La mano del cuaderno final (vid. f. 360v) no emplea las mayúsculas, ni tan siquiera en el nombre de María y, en cambio, usa de las abreviaturas con profusión. Al no justificar su texto a la derecha, no encontramos signos de prolongación de las letras finales, ni letras dilatadas en el interior del verso ni, tampoco, formas especiales para la –R.

f. 20ra, l. 14 Cuaderno 4

f. 361rb, l. 14 Cuaderno 47

DECORACIÓN Rúbricas, líneas de los pentagramas, reframs y líneas decorativas que completan los renglones en rojo. Capitales de gran formato al inicio de las composiciones en azul o rojo, a pincel, con delicada decoración afiligranada en el color de contraste, seguramente a pluma, que se extiende por el margen. La inicial del f. 29, además de las características mencionadas, está iluminada. Pequeñas iniciales de dos unidades de pauta en cada estrofa, también en azul o rojo y con decoración de menor entidad y complicación en el color de contraste, que se extiende en vertical; estas iniciales pueden ceñirse al espacio delimitado por una línea accesoria de justificación o bien quedar a la izquierda de la línea que delimita la caja y suelen ser bastante alargadas. Los titre courant en rojo y azul (una letra de cada color) con decoración somera en el color de contraste, indican el número que corresponde a cada cantiga, salvo en los ff. 1v-2r, que acogen el título de esa parte; algunos fueron cortados por la encuadernación. 144

CONSERVACIÓN En excelente estado, ha sido restaurado con cuidado. ENCUADERNACIÓN Antigua, pero posterior a la confección del códice, propia de la Biblioteca de El Escorial, en piel sobre tabla con los cortes dorados e impreso en el central en tinta negra el núm. 2 de la signatura que le corresponde. Superlibris del Monasterio en los planos. Esta encuadernación, algo desgastada, es del s. XVI 43. PERSONAS

O INSTITUCIONES VINCULADAS AL CÓDICE

Según las disposiciones del testamento del rey Alfonso, este códice debía de permanecer en Sevilla, donde él fue enterrado, y cantarse sus composiciones en las festividades de la Virgen, como recuerdan todos los historiadores que de él se han ocupado. Alfonso dispuso también que el heredero del trono podía recuperarlo a cambio de algunas mercedes concedidas al cabildo y, tal y como recoge E. Ruiz, eso fue lo que pasó: el códice permaneció en Sevilla hasta que, por orden de Felipe II, fue llevado al Monasterio de El Escorial 44. Las anotaciones del recto del primer folio corresponden probablemente a la época de su ingreso en el Monasterio: 1) en el margen superior derecho, en tinta muy floja, ¿del s. XVII? «Numer[o] [i]» 2) en el margen superior, otra mano que emplea una tinta más oscura, poco posterior a la primera anotación, ofrece información sobre el códice: «Canticas de nuestra Señora en Portugues diez en Gallego y milagros de nuestra Señora, por Dn. Alonso el Sabio» 45 En diversos lugares, por ejemplo f. 1r, se encuentra el sello a tinta del Monasterio.

43 Julián Zarco Cuevas, Catálogo de los manuscritos castellanos de la Real Biblioteca del Escorial, 3 vols., Madrid, Imp. Helénica, 1924-1929, no indica la fecha, pero se trata del superlibris de pequeño tamaño, redondeado y que queda bastante hundido, empleado en el Monasterio en esa época. 44 E. Ruiz, Los libros de Isabel la Católica…, p. 374. 45 Cosa que no ha de extrañar, puesto que en los inventarios reales, como el de Rodrigo de Tordesillas, se mencionan a las Cantigas como libros en «lengua portuguesa», ib. [C1 113], inventario de 1503 (ed. E. Ruiz, op. cit., p. 299.)

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INTERVENCIONES

AJENAS A LA PRIMERA ACCIÓN DE COPIA

1) Enmiendas y correcciones al texto. Proceden de la intervención del copista sobre su texto, puesto que él mismo puede advertir sus errores, pero también pueden tener su origen en la intervención posterior a la copia (prácticamente inmediata) del revisor de la copia. Las hay de distinto tipo: a) Por raspado: f. 85ra la cuarta línea ha sido borrada y reescrita según la corrección que con letra muy pequeña y cursiva se anotó en el margen superior de la segunda columna del recto y que fue obra probablemente del revisor: «/. et polas saluar quis seer marteirado»; f. 93ra otra corrección, esta vez al margen, de lo que se debía de corregir. b) Por raspado, pero sin que exista una anotación que guie la corrección, puede encontrarse tanto en el texto escrito con tinta negra como en el de las rúbricas, realizadas en rojo. c) Por tachado: f. 354rb, en la segunda línea, primera de la rúbrica, se ha eliminado por tachado con tinta negra muy clara, la palabra «nada» (error por ditografía). Suele reservarse este procedimiento para corregir los textos de las rúbricas, nunca, que hayamos visto, se emplea para enmendar texto escrito en tinta negra. 2) Advertencias para la copia: a) En el f. 54v en el intercolumnio, por una letra menuda, cursiva y que emplea una tinta clara, muy semejante a la del f. 267ra, se ha anotado «antaba» y se realizado un pequeño dibujo que representa una cara, que no se distingue en el facsímil. b) En el f. 108v, en vertical, pegado al centro del pliego, se puede leer «[vir]gen sempr acorrer» (la segunda «r» corregida, prolongando el asta vertical hacia abajo). Sirve de indicación de que en ese lugar debe de copiarse el poema que así comienza (C 97). Tal vez el copista dejaba su trabajo en ese momento y dejó esa nota para no confundirse al retomarlo (él u otro compañero). c) En el f. 267ra. al margen de la cantiga 298 que empieza «Graça e vertude» (ed. Mettmann, III, pp. 91-93) con letra muy pequeña y tinta muy clara se ha escrito «aras nunez», particular que no se puede leer en el facsímil. Justamente esta cantiga no tiene notación musical 46.

46

Véase W. Mettman, «Airas Nunes, Mitautor der Cantigas de Santa Maria», Iberoromania, 3 (1971), pp. 8-10.

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3) Pruebas de pluma y anotaciones posteriores: a) Solo hemos visto una prueba de pluma: «dios me guarde de…» ¿letra del s. XVI?, caligrafía cursiva en el margen inferior del f. 277r. (no aparece en el facsímil). b) En este apartado podríamos señalar la presencia de la nota que menciona a Johannes Gundisalvi del f. 361v (s. XV).

CONTENIDO

DEL VOLUMEN

W. Mettman, ed., I, p. 27-29 reproduce las descripciones que hizo A. Paz y Meliá de los códices alfonsíes de las Cantigas. Visto que existen algunas inexactitudes, especialmente sobre la ubicación de los prólogos en el códice, vamos a ofrecer aquí una enumeración del contenido, que es fácilmente accesible al investigador a través del facsímil de Anglès, pero que parece útil de incorporar a un estudio que pretende dar noticia completa y cumplida de la estructura y constitución de Esc. b.i.2 47. 1) Cantigas das festas de Santa Maria f. 1va-vb PROLOGO DAS CANTIGAS DAS CINCO FESTAS DE SANCTA MARIA. PRIMEYRA [escrito a lo largo del margen superior de los ff. 1v-2r] [Inc. f. 1va] Q10uem santa maria seuir non pode […] [Expl. f. 1vb] por nos fazer ala sobir. Que Sancta Maria seruir non podera en [sic] ff. 2ra-12va [Cantigas das Festas. Rúbrica] E3sta e a primeyra da nacença de Santa Maria que cae no mes de setembro e começa assi. [Inc. texto f. 2ra] B10eeyto foi o dia e ben auenturada a ora […] [Expl. f. 12va] seu u alegria aiamos por sempre e riso. Madre de Deus ora por nos teu fill essa ora 2) Cantigas de Santa Maria ff. 13ra-26vb [Índice de las Cantigas de Santa Maria. Inc. f.13ra] [E]3ste e o prologo das cantigas de Sancta Maria ementando as cousas que a mester

47 Intervenimos únicamente introduciendo mayúsculas donde corresponde y separando amalgamas o uniendo formas escritas separadas; así mismo marcamos las resoluciones de abreviaturas en cursiva. El índice que sigue a algunas mayúsculas indica el número de unidades de pauta que indican, y se ha recurrido a los paréntesis [ ] para introducir las iniciales que faltan u otras indicaciones editoriales.

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eno trobar 48. [P]2orque trobar e cosa en que iaz […] [Expl. f. 26vb] [M]2acar poucos cantantares [sic] acabey e con son uirgen dos teus miragres. f. 28va [Primer prólogo Inc. f. 28va] D8on Affonso de Castela de Toledo de Leon […] [Expl.] com y podedes achar ff. 28vb-29ra [Segundo prólogo Inc. f. 28vb] P11or que trobar e cousa en que iaz […] [Expl.] por ela mais degrado trobara ff. 29rb-361va [Cantigas de Santa Maria. Rúbrica f. 29rb] E2sta e a primeira cantiga de loor de Santa Maria ementando os .vij. goyos que ouue de seu fillo. [Texto. Inc.] D12es oge mais quer’eu trobar […] [Expl. f. 361va] u uos sodes quando me for daqui. APÉNDICE: MUESTRAS Mano de las Festas

Mano del índice

DE LAS MANOS DEL

Mano «A»

«CÓDICE

DE LOS MÚSICOS»

Mano «B»

Mano «C»

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48 Nótese que el índice no menciona la presencia del primero de los prólogos, el que se copia en el f. 28va y que se inicia con la intitulatio real, como si hubiera sido añadido una vez concluido el programa que refleja la tabla.

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TRADIÇÃO TEXTUAL DO CANCIONEIRO DA AJUDA

MARIA ANA RAMOS Universität Zürich

1. O MODELO DO CANCIONEIRO DA AJUDA Quando, há alguns anos, redigi o estudo que acompanhou a edição fac-similada do Cancioneiro da Ajuda, tinha-o intitulado «O Cancioneiro da Ajuda. História do manuscrito. Descrição e problemas», pressentindo que, mais do que uma síntese descritiva do códice no momento daquela publicação, eram numerosas as questões dificultosas que se me colocavam, não só acerca da história externa do Cancioneiro, mas também da sua própria história interna. Melhor dizendo, da sua história textual 1. Não tanto uma análise inerente às relações intermanuscritos, mas um exame que pudesse reconstituir os vínculos que se instituiriam entre o Cancioneiro da Ajuda e os seus mais imediatos predecessores 2. Em um dos capítulos finais daquele ensaio, não só ousei, em subtítulo e entre parênteses, denominá-lo «local de produção do manuscrito,

1 Com este omnipresente estado problemático, já Tavani na sua obra, ainda hoje fundamental, dedicada à Poesia del Duecento, dava como subtítulo Problemi della lirica galego-portoghese (1969). 2 As primeiras suposições, resultantes da minuciosa análise de C. Michaëlis, procuraram estabelecer as «Relações do Cancioneiro da Ajuda com os apographos italianos», após a enumeração de concordâncias e discordâncias entre os vários manuscritos (1904, II: 180-226).

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scriptorium, tipo de fontes», como, na realidade, me restringi a uma ampla especificação de factos que, não oferecendo resoluções concludentes, convidavam a um mais agudo desenvolvimento na ponderação presumível acerca do processo da instituição do Cancioneiro 3. Se era natural que, naquele contexto, não se proporcionasse a argumentação consistente a cada uma das cláusulas propostas, também é verdade que alguns daqueles itens anunciados aguardavam, afinal, melhor meditação. Deles isolo, hoje, um dos aspectos que voltam a interpelar-me quando enfrento a complexa feitura do Cancioneiro da Ajuda 4. Refiro-me, especificamente, a uma sucessão de questões articuladas à volta de um triplo inquisitivo: (1) encontramo-nos perante uma cópia de cancioneiro a cancioneiro, ou estamos ainda na compilação de materiais mais avulsos?; (2) como definir o perfil do compilador ou do responsável pelo projecto, como terá ele acolhido, ou como terá moldado o material?; (3) deteria já um livro destinado apenas a uma cópia plácida, mecânica e pouco atribulada ou, pelo contrário, dispunha ele de uma constelação de manuscritos que, de algum modo, ajustava, ou ia ajustando, à realização do Cancioneiro? Na realidade, o meu propósito, hoje, circunscreve-se mais a uma tentativa de reconstituição, do modo mais objectivo possível, do aspecto da mesa de trabalho do responsável pelo projecto Cancioneiro da Ajuda e do modo como se preparou a maquette desta colecção lírica 5. Datam naturalmente da edição de C. Michaëlis (1904) as primeiras observações quanto ao tipo de fontes utilizadas na elaboração desta obra. C. Michaëlis, persuadida de que se encontrava perante um objecto que constituía parte da grande colecção lírica galego-portuguesa, considerou que «[o] Cancioneiro da Ajuda é um fragmento do Cancioneiro de Amor, isto é da Parte Primeira do Cancioneiro Geral gallaico-português […]. A totalidade teria sido neste caso de 744 composições: 277 a mais das que publico neste volume […]. Para as abranger teria sido preciso um volume avultadissimo: 26 cadernos ou 208 folhas, pouco mais ou menos […]. Propendo por isso para vêr nelle uma collecção anterior e independente, de versos pré-dionysianos: um nucleo primordial que serviu de ponto de partida aos compiladores subseqüentes.» (Michaëlis 1904, II: 223-224) 6.

3 É na última parte do estudo que são designados alguns dos factos que, naquela altura, me suscitavam várias hipóteses que poderiam contribuir para mais clara definição do tipo de material que poderia ter servido de base à cópia do Cancioneiro da Ajuda (Ramos 1994). Cf. a este propósito a atenta recensão de Â. Correia (1996: 191-193). 4 Não estou a pensar aqui na aparência fragmentada e lacunar do Cancioneiro do ponto de vista material, mas na sua indubitável complexidade textual. 5 Por «mesa de trabalho» entendo não tanto o espaço técnico da cópia, que se alargaria à concepção de scriptorium, mas a superfície onde foram depositados os materiais para a realização da transcrição do Cancioneiro. 6 A concepção do Cancioneiro da Ajuda como um cancioneiro que perdeu, por acidentes materiais, o seu estado primitivo foi a ideia que orientou C. Michaëlis no seu projecto editorial. A esta forma

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Na reconstituição final, portanto, dos diferentes cancioneiros de que há testemunho directo ou indirecto, C. Michaëlis estabeleceu três níveis na confecção do Cancioneiro da Ajuda: A1 Rotulos e cadernos soltos, contendo canções de amor de trovadores (e jograes) alfonsinos e pre-alfonsinos; principalmente de fidalgos portugueses, mas tambem da Galliza e de Castella e Leão. — Perdidos. A2 Copia calligraphica, chronologicamente ordenada dos mesmos, em volume tripartido, graphicamente completo, i. é contendo além dos textos, os nomes dos trovadores, a notação musical e algumas rubricas explicativas. — Perdida. — N.º 63 da Bibl. de D. Duarte: Livro das Trovas del Rey D. Affonso encadernado em couro, o qual compilou F. de Montemór o Novo. A3 Copia graphicamente inacabada do mesmo. O fragmento membranaceo, resguardado na Bibliotheca da Ajuda. (Michaëlis 1904, II; 286-287)

É aqui que se detêm, em prática, as estimativas referentes ao estado precedente do Cancioneiro da Ajuda até ao estudo, em termos filológicos rigorosamente articulados, de G. Tavani sobre a constituição genealógica da tradição manuscrita da poesia galego-portuguesa (1967; 1969). 2. TRADIÇÃO MANUSCRITA Por constituir uma tradição incomparavelmente mais rica em número de textos e autores, serão os cancioneiros italianos que mais se acomodarão ao desfecho de uma memória mais longa e, sobretudo, mais integral. Já Monaci, nos finais do século XIX, nos preâmbulos dedicados às edições do Cancioneiro Colocci-Brancuti e do Cancioneiro da Vaticana, estabelecia algumas relações de parentesco entre os testemunhos conhecidos, sobretudo no ramo da tradição italiana, não contemplando naturalmente o que era ainda, naquela altura, conhecido apenas como uma descoberta no Colégio dos Nobres em Lisboa, ou como um «brano di antico canzoniere che l’inglese Lord Stuart Rothsay fece

de conceber a edição, preenchendo-a com largas inserções textuais, dediquei uma análise que justifica a percepção canónica de C. Michaëlis quanto ao corpus da lírica galego-portuguesa e problematiza a posição, bem delicada no Cancioneiro da Ajuda, entre a conjectura de proximidade, fundamentada em dados materiais, objectivos, inerentes ao próprio Cancioneiro, e a conjectura à distância, apoiada na análise comparativa de toda a tradição (Ramos 2004).

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stampare nel 1823» (1875: VI) 7. Deixando de lado o carácter, quase anódino, do Cancioneiro encontrado em Lisboa, a análise mais extensa vai preencher o capítulo dedicado às fontes do códice italiano e à importância de A. Colocci na preservação destes materiais (Monaci 1875: IX-X; 1880: VII). É G. Tavani que, bem mais tarde, ao examinar a tradição da lírica galego-portuguesa propõe uma particularizada disposição dos manuscritos conhecidos e infere as fases intermédias requeridas às cópias subsistentes. É este stemma, também em moldes de verticalidade, que tem servido de base à consideração sobre as questões genealógicas entre os testemunhos que chegaram até nós. Mas era ainda o ramo italiano que melhor campo de observação lhe oferecia à reconstituição histórica da tradição. Tavani previa, portanto, «uma primeira recolha colectiva», designada ω, da qual teria sido feita uma cópia incompleta que hoje conhecemos através do Cancioneiro da Ajuda e, mais tarde, por volta de 1340 e 1350 e sob o impulso de D. Pedro, conde de Barcelos, era efectuada uma outra cópia, conhecida por α, que não reproduzia apenas o arquétipo, mas reunia outros materiais com novos textos, provenientes de outros autores, caracterizando-se assim esta colecção como um subarquétipo. A nova recolha difundia-se através de outras cópias intermediárias das quais derivariam, posteriormente, o Cancioneiro Colocci-Brancuti e o Cancioneiro da Vaticana 8. É a esta ala da tradição, naturalmente mais opulenta, que têm sido, ao longo das últimas décadas, concedidos extensos comentários de vários críticos, não só relativamente à ascendência e à exacta posição da Tavola Colocciana, mas também aos possíveis manuscritos precedentes do Cancioneiro Colocci-Brancuti e do Cancioneiro da Vaticana. As múltiplas observações de J. Marie D’Heur (1974 e 1984), de E. Gonçalves (1976) e A. Ferrari (1979) conduziram à configuração de um stemma muito mais simplificado, apresentado em Liège por A. Ferrari (1991). O verbete, publicado no Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa, de E. Gonçalves, expõe de modo conciso os problemas

7

Monaci refere-se ainda às características deste fragmento de cancioneiro: «Quelle pagine scritte nel vecchio linguaggio della Gallizia in uno stile che faceva ricordare i Trovatori provenzali, erano anonime e suscitarono ben presto dotte polemiche nelle quali ebbero parte Raynouard, Diez, Ribeiro, Bellermann, De Varnhagen. Malgrado parziali dissensi tutti riconobbero che quello era un documento da riferirsi al ciclo dionisiaco, e cosi gli studii sulle origini letterarie del Portogallo ravvivaronsi, si estesero le indagini e mentre nel 1840 Cristiano Bellermann dava a luce il suo bel lavoro sopra gli antichi canzonieri dei portoghesi, altri lo seguivano nelle ricerche, fra i quali il tanto benemerito Ferdinando Wolf. Una fortunata congettura di questo letterato poco dopo faceva conosceere il codice 4803 della Biblioteca Vaticana, in cui dovevano appagarsi i voti degli studiosi» (Monaci 1875: VI). 8 E. Gonçalves apresenta as diferentes etapas da difusão de α na sua síntese dedicada à tradição manuscrita da poesia lírica galego-portuguesa (Gonçalves 1993: 629).

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fundamentais referentes à Tradição manuscrita da poesia lírica (1993) de acordo com esta nova proposta 9. É, portanto, um facto que o lado esquerdo do stemma, de que nos é testemunho o Cancioneiro da Ajuda, não tem suscitado o mesmo tipo de interesse, presumivelmente até por ser um manuscrito sem descendência conhecida e um códice, além disso, resultante de um modelo em parte diferenciado daquele que origina a tradição humanista em Itália 10. Bastaria recordar dois aspectos primordiais, que muitas vezes têm sido, aliás, apontados, desta diferenciação: a ausência de rubricas atributivas e a limitação praticamente a um género exclusivo, ainda que tanto uma como a outra destas restrições pudesse ser explicada pelas circunstâncias de o projecto ter sido interrompido e inacabado e não necessariamente por uma procedência diversificada do protótipo que se encontrava em Itália no século XVI 11. A. Resende de Oliveira, com a preocupação de determinar um limite cronológico e uma circunscrição geográfica para a análise das recolhas dos séculos XIII e XIV, dedica um dos capítulos do seu estudo Depois do espectáculo trovadoresco ao Cancioneiro da Ajuda, especificando um pouco mais a sua natureza, isto é, caracterizando-o como um objecto que não se definiria apenas

9 Ainda que não tenha sido publicado em conjunto um discurso articulado, provido de todos os argumentos dispersos em vários ensaios ou em comunicações não publicadas (entre os quais, E. Gonçalves, «Novas conjecturas sobre o antecedente do Cancioneiro da Biblioteca Nacional», apresentada durante as I Xornadas de Língua e Cultura Galega, Barcelona, 22-26 de Fevereiro de 1988 e A. Ferrari, «Il disordine dei canzonieri e il problema dei generi nella lirica galego-portoghese», apresentada ao I Congreso de la Asociación Hispánica de Literatura Medieval, Santiago de Compostela, 2-6 de Dezembro de 1985), ficou claro que se propõe a eliminação de um codex interpositus e a identificação da Tavola Colocciana ao índice do próprio Cancioneiro Colocci-Brancuti, sendo este último um manuscrito irmão do Cancioneiro da Vaticana, e provenientes os dois de um mesmo antecedente. G. Tavani, retomando os seus estudos precedentes sobre a tradição manuscrita, voltou a reflectir nos pontos mais controversos. Publicou assim uma análise fundamentada nas incoincidências dos cancioneiros italianos que lhe permite conservar a conjectura das fases interpositivas (1999). 10 Ao referir-me à descendência do Cancioneiro, estou a pensar numa relação directa com eventuais exemplares, transliterados, que não são conhecidos antes do seu aparecimento no século XIX. Facto que não parece surpreendente perante um manuscrito inacabado e incompleto. As transcrições oitocentistas — descripti modernos — não figuram neste conceito de vinculação à tradição manuscrita na óptica de uma reconstituição ecdótica. Há poucos meses, H. Sharrer referiu-se em Santiago de Compostela a estas cópias do século XIX, certamente muito importantes para a difusão do manuscrito nos primórdios da Filologia Românica, mas muito menos significativas para a hermenêutica textual (2004). E, no final deste colóquio, M. Arbor e C. Pulsoni anunciaram a redescoberta de uma destas cópias na Biblioteca Jagiellónska de Cracóvia [Ms. Lusitan, fl. 1], proveniente da Biblioteca Real de Berlim (Michaëlis 1904, II: 5, 103). O ensaio foi entretanto publicado na Critica del Testo (Arbor-Pulsoni 2004). 11 Não só por se colocar em um plano alto da tradição, o Cancioneiro da Ajuda é normalmente relator da melhor lição em situações de variação, além de apresentar tanto lições separativas em relação ao outro ramo como também erros comuns às duas tradições (Tavani 1969: 129-130).

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«como uma mera cópia de uma compilação anterior» (1994: 265-267). A ser assim, o estabelecimento da cronologia torna-se mais complicado. A adição de novos autores na parte final sugere-lhe uma confecção mais tardia do que tanto C. Michaëlis (pouco antes de 1279) como G. Tavani (próxima de 1283-1284) tinham proposto, que se poderia situar talvez no primeiro quartel do século XIV. G. Tavani julga plausível a corte afonsina como local mais favorável para a agregação de materiais, tendo situado neste ambiente não só o exemplar utilizado na cópia do Cancioneiro da Ajuda como também o próprio Cancioneiro da Ajuda (1988: 94-95; 121-122) 12. Resende de Oliveira aponta também para as compilações das poesias trovadorescas uma génese castelhana, deixando «em aberto, no entanto, a questão da corte ou cortes a elas vinculadas, e procurando, ao mesmo tempo, aprofundar o conhecimento da génese e evolução dos cancioneiros colectivos até à cópia [do Cancioneiro da Ajuda]». Observa que algumas diferenças paleográficas entre Ajuda e manuscritos das Cantigas de Santa Maria, e o conhecimento da obra de Martim Moya, podem mesmo contribuir para a conjectura de um outro espaço de composição (Ramos 1988; Oliveira 1994: 266-267). E é assim que o historiador vai afirmar a existência de correntes distintas quanto à transmissão dos textos. Uma situada em Castela ou na Galiza, onde terão sido produzidos, no último quartel do século XIII, vários cancioneiros colectivos reunindo apenas trovadores ou jograis e talvez o cancioneiro individual de Johan Ayras, e a outra em Portugal, no início já do século seguinte. Faz ainda notar que, se se puder admitir que a produção do Cancioneiro da Ajuda se verificou já em Portugal, em ambiente cortesão português, isso significará que os preceitos organizativos dos cancioneiros que se encontram documentados na «compilação geral» teriam comportado alguma remodelação (Oliveira 1994: 287-288). Devido ao paralelismo entre os vários testemunhos conhecidos, pareceria natural que o Cancioneiro da Ajuda fosse simplesmente consequência de uma cópia mecânica, o que implicaria uma suposição de materiais mais estáveis, ciclos de autores já com tradição mais segura, sectores com maior solidez pela cronologia ou pela geografia. No entanto, diferentes indícios, resultantes da observação da tipologia dos materiais recolhidos (a famosa classificação de Gröber, publicada em 1877, considerava processos de circulação de poemas soltos, de compilações mais compactas, de documentos únicos, de cancioneiros pessoais, de cancioneiros antológicos 13), parecem referir-se a um tipo de fontes

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Num dos seus últimos trabalhos, Tavani observa que o códice «apresenta muitas características em comum com os códices elaborados no scriptorium da corte de Afonso X […], mas também com manuscritos executados em Portugal nos últimos decénios do século XIII» (Tavani 2002: 82). 13 Os célebres Liederblätter, Liederbücher e Liedersammlungen (Gröber 1877: 337-670). Sobre a dinâmica organizativa na composição de cancioneiros, cf. também o estudo de D’Arco S. Avalle, actualizado por L. Leonardi (1961; 1993).

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subjacentes à cópia do cancioneiro, de aspecto mais instável, mais precário e muito mais incerto. Tendo presente a extraordinária importância de o Cancioneiro da Ajuda ser — caso raríssimo —, por um lado, um cancioneiro coetâneo do movimento trovadoresco e, por outro lado, um cancioneiro inconcluso em elementos paratextuais e inacabado em elementos textuais, não podemos deixar de reconhecer que, apesar de numerosos obstáculos, nos encontramos perante um objecto excepcionalmente favorável à busca e à reconstituição das suas múltiplas fases de elaboração 14. Ao reflectir sobre os dispositivos preliminares ao decurso de cópia do Cancioneiro da Ajuda, tenho sido quase sempre levada, através de vários factores, a interrogar-me sobre o que existiu antes deste códice, sobre o que foi decidido ou feito antes da sua realização. Não é tanto à delimitação geográfica, à cronologia da feitura ou ao estabelecimento dos limites espaciais do Cancioneiro da Ajuda que vou consagrar, neste centenário da edição de C. Michaëlis, a minha atenção. Na realidade, desde as primeiras reflexões que a este manuscrito dediquei, tenho posto em evidência, e ainda que várias vezes envolta em perplexidade, dados de natureza material que parecem poder colocar em dúvida a estabilidade do arquétipo 15. É a esta ponderação sobre a consistência concreta do arquétipo que gostaria, hoje, de voltar, persuadida de que é uma consideração que excede o Cancioneiro da Ajuda propriamente dito, inserindo-se no vasto debate sobre a identidade e a resolução dos obstáculos que enfrenta a crítica textual no exame de uma tradição compilatória e antológica. 3. SECTOR FINAL Começaria pela parte final do manuscrito. Não é surpreendente que a parte final de um códice com esta dimensão, interrompido e inacabado, apresente características menos homogéneas, menos apuradas e muito mais problemáticas do que a primeira parte. Já Tavani, há alguns anos, demonstrou que um texto atribuível a Pedr’Eanes Solaz, transmitido por este sector, apresenta elementos textuais comprovativos de degeneração. O Cancioneiro da Ajuda, normalmente detentor da melhor lição, oferecia, naquele caso, variantes

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É o carácter incompleto que permite observar as fases intermédias e estabelecer a reconstituição do processo organizativo. Os modelos de composição estrutural das grandes colecções líricas, com a tipologia dos materiais recolhidos, são descritos num dos importantes estudos de V. Beltrán (1995). 15 Como se sabe, a noção de arquétipo medieval constitui em crítica textual um conceito operacional que procura coincidir com a versão original (existente ou reconstituída) de um texto, do qual foram feitas cópias subsequentes, ou com um texto (existente ou reconstituído) de que todas as cópias derivam, mediata ou imediatamente.

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textuais que o afastavam da qualidade inicial, quer dizer, testemunhava uma tradição muito mais corrompida 16. É também neste sector que, mais recentemente, G. Lanciani, ao ocupar-se de um texto recopiado uma segunda vez no interior do ciclo de Pay Gomez Charinho não só propõe uma plausível explicação do mecanismo da reprodução textual como admite também um diferente modo de copiar nesta zona ou, pelo menos, no que diz respeito à colecção poética deste autor. Este texto duplo permitiu-lhe explicar que o Cancioneiro da Ajuda não era «apenas um treslado» (Michaëlis 1904, II: 153; Gonçalves 1991: 451-452), mas o «primo esempio di canzoniere collettivo organizzato (intenzionalmente) per generi e costruito da materiali sciolti di varia natura e provenienza». Assim especificava o seu raciocínio quanto à composição repetida de Pay Gomez Charinho: «più che svista o disattenzione di copista […] sembra essere la traccia di un problema più complesso di tradizione e potrebbe spiegarsi come testimonianza di fonti diverse, di due fonti, ipotesi che parrebbe confermata dalla coincidente presenza nei tre relatori di due soli testi di Pay Gomez» (2004: 139, 141; 141-142). Materiais diversos eram assim também confirmados no ciclo do trovador pela disparidade da tradição italiana (ordem dos textos, número de textos, falta de estrofes, ausência de fiinda, etc.). Acrescentaria eu que neste caso poderíamos até supor um material realmente diverso no conjunto dos doze textos do trovador, que talvez tivesse chegado às mãos do compilador em dois grupos de seis composições, nos quais a cantiga A 248 comparecia copiada uma vez em cada um destes dois grupos: [Cad. X] [miniatura, início de ciclo] A 246

A 252

A 247

A 253

A 248

A 248bis

A 249 [Cad. XI]

A 254

A 250

A 255

A 251

A 256 [fim de ciclo]

16 As notáveis variantes examinadas por Tavani nas duas versões de uma mesma cantiga de Pedr’Eanes Solaz fazem da versão transcrita posteriormente nos cancioneiros italianos B e V a mais acreditada. A análise da cantiga denuncia a existência de uma tradição textual dupla, devida talvez à circulação de dois rotuli diferentes: o primeiro, mais completo, conteria as quatro cantigas de amor, transmitidas pelo Cancioneiro da Ajuda; o segundo, mais parcial, transmitia apenas duas dessas quatro cantigas, mas a cantiga A 282/B 1219/V 824, Non est a de Nogueira, apresentava neste caso uma versão paralelisticamente perfeita (B/V), enquanto a versão do Cancioneiro da Ajuda se caracterizava como mais deteriorada pela tradição, ou por uma redacção prévia, talvez do próprio poeta, anterior à versão que será conservada pelos cancioneiros italianos (1988: 350-360).

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O Cancioneiro da Ajuda ilustraria, com fundamento na disposição deste ciclo, uma obra em movimento, um cancioneiro em vias de elaboração, in progress 17. De certo modo, a segmentação interna de materiais em blocos textuais, com base em outros critérios, poderá ser também observada em outros ciclos poéticos, como o de Joham Garcia Guilhade ou o de Pero Garcia Burgalês 18. Ainda neste sector final, não é só a estranheza resultante de um acrescento de poetas socialmente diferenciados — clérigos —, mas a raridade de um texto interrompido a meio de um verso, justamente no último ciclo presente no Cancioneiro da Ajuda, atribuível a Roy Fernandez de Santiago. Não se trata de uma lacuna habitual, quero dizer, da falta completa de uma estrofe, ou de uma inteira composição, como pode ocorrer em outras zonas do manuscrito. É A. Resende de Oliveira quem melhor caracteriza este sector, ao notar que este trovador, tal como Martim Moya, incluídos no Cancioneiro da Ajuda, não deveriam fazer parte do projecto inicial, que não integraria, em princípio, autores clérigos. Se realmente a inserção de clérigos nesta zona resulta de um equívoco organizativo numa recolha de cantigas de amor, não será de rejeitar a hipótese de que a suspensão abrupta no interior do verso seja consequência de uma tomada de consciência relativa a este engano 19. E não me parece despropositado prever também que em este sector final os preceitos programáticos iniciais pudessem ter sido modificados (Quadro 1). 4. SECTOR INICIAL Se agora olharmos para o que hoje constitui o começo do Cancioneiro da Ajuda, que, como bem sabemos pela lacuna inicial, não corresponde ao seu estádio primitivo, vamos verificar que, apesar de se constatarem correspondências e afinidades muito significativas com a tradição posterior, tanto entre textos como em sequências de autores, boa parte deste sector inicial chegou às mãos do compilador já em situação fragmentária, e que esta não é portanto proveniente de qualquer lacuna material. Eu própria tinha chamado a atenção

17 É com esta expressão que G. Lanciani evidencia a precariedade do códice ajudense, adicionando este elemento às indicações que se poderiam retirar das correcções textuais à margem, sugestão que apresentei ao XX Congrès international de Linguistique et Philologie romanes (Zürich, 6-11 avril 1992) e que é aqui lembrada: «Ritengo quindi di associarmi all’ipotesi di M. A. Ramos [1993] secondo cui il materiale disponibile al momento della fattura di A non fosse materiale archetipico, ma prearchetipico, costituito — in altre parole — da fonti parziali e sparse sulle quali venne esercitata quella selezione e distribuzione per generi già adottata pochi anni prima in area provenzale e che sarà alla base dell’intero corpus testuale galego e portoghese» (2004: 143). 18 Tanto num como noutro trovador, é possível, com fundamento na disposição das fiindas, estabelecer também agrupamentos textuais (Ramos 1984). 19 Remeto para a lúcida intervenção de G. Tavani que neste colóquio se pronuncia sobre a concepção «cantiga d’amor» como uma das bases essenciais subjacentes aos critérios organizativos do Cancioneiro da Ajuda.

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para este facto, ao interpretar e classificar os diferentes espaços em branco do Cancioneiro da Ajuda mas, contrariamente ao que poderíamos pensar, os textos incompletos, ao mostrar-nos espaços para estrofe ou estrofes, estão também a dizer-nos que o responsável pela colecção possuía condições para de algum modo melhorar a sua cópia (Ramos 1986) 20. Ora, estes casos não se encontram de modo assistemático ao longo dos vários ciclos do manuscrito e, tendo voltado a examiná-los, dei-me conta de que essas lacunas estróficas se concentram substancialmente nesta primeira parte do manuscrito, como se esta falha fizesse parte de um bloco compacto de material deficitário. Portanto, o material adulterado ou defeituoso não se encontra ao longo da cópia de todo o códice (Vasco Fernandez Sendin, Pay Soarez de Taveirós, Martim Soarez, Nuno Rodriguez de Candarey, Pero Garcia Burgalês), o que faculta a demarcação de uma zona em suspenso no sector inicial, no estado presente do Cancioneiro (Quadro 2). 5. SECTORES MUSICAIS (FIINDAS) Se reobservarmos agora outro tipo de espaço, pressentido para a transcrição musical nas fiindas, notamos que podemos estabelecer uma primeira secção (Vasco Fernandez de Sendin, Martim Soarez, e as primeiras seis cantigas de Pero Garcia Burgalês) na qual as fiindas não possuem qualquer previsão para a notação musical. Na segunda secção, que se inicia no interior do ciclo de Pero Garcia Burgalês, e que se prolonga, sem qualquer interrupção, até ao final do ciclo de poemas de Roy Queymado, as fiindas encontram-se preparadas para o acompanhamento melódico. Uma terceira secção principia com Vasco Gil, que possui cinco textos com fiindas das quais a primeira e a quarta estão escritas sem espaço. A presença alternada de espaços não se mantém na poesia do ciclo seguinte, Johan Soarez Coelho, cujos poemas com fiinda têm o respectivo espaço para a notação musical, mas, a seguir, os espaços serão introduzidos deste modo assistemático até ao final do códice. Sugeri já que uma explicação plausível a atribuir a este facto se situava no plano da procedência material e que ele não se justificaria como consequência de um procedimento arbitrário de quem copiava, ou de quem inspeccionava o traslado textual (Ramos 1983).

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Por «texto incompleto» entendo não um texto mutilado por deficiência física, mas um texto insuficiente de acordo com a opinião do responsável, que prevê completá-lo em outro momento. Parte destes textos incompletos no Cancioneiro da Ajuda e com previsão de espaço, mantêm-se também incompletos no Cancioneiro Colocci-Brancuti. No Cancioneiro da Ajuda, deparamos com espaços em branco entre as composições às quais não pode corresponder qualquer previsão decorativa. Todos estes espaços têm uma dimensão variável, suficiente para receber uma ou duas estrofes, ou mesmo uma fiinda. Isto permite pensar que o material disponível para a cópia da Ajuda deixava apreender falta de estrofe, mas não o lugar exacto onde devia ser introduzida. Aliás, em nenhum destes casos de previsão de texto no interior de ciclos, se encontra uma antevisão para estrofes no interior da cantiga. As previsões ocorrem sempre no final da cantiga no cancioneiro ajudense.

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Poderíamos assim imaginar um processo de formação análogo ao das primeiras antologias ou recolhas, com utilização directa de Liederblätter ou Liederbücher, expondo-nos assim um cancioneiro que caracterizará uma situação ainda bem próxima do movimento das primeiras colectâneas. O caso de Pero Garcia Burgalês documenta bastante bem esta situação material. O seu ciclo comparece efectivamente repartido em dois grupos textuais, um que se difundia com as fiindas acompanhadas de escrita musical, outro que circulava com as fiindas destituídas de tal notação. O que é possível deduzir sem margem a dúvidas é que há neste Cancioneiro indícios suficientes para afirmar a existência de materiais prévios não homogéneos, não oriundos da mesma tradição de escrita musical. A distribuição dos espaços que acompanham as fiindas poderá aclarar o tipo de manuscritos utilizados como exemplares na confecção do manuscrito da Ajuda. É pois um dado físico que poderá justificar algumas das estratificações deste Cancioneiro, quer este seja um cancioneiro que copia tão fielmente outro cancioneiro que, por sua vez, difunde ainda a desigual qualidade do seu modelo, quer se trate de um cancioneiro que é o produto de uma agregação de materiais avulsos. É ainda curioso observar este Cancioneiro como uma colectânea que apresenta materiais mais requintados do que outros, como uma súmula lírica que dedica peculiar atenção a um desempenho musical mais completo, ao singularizar a interpretação musical do remate das cantigas. Com apoio neste dado, A. Resende de Oliveira evidenciará que esta marca física confirma, de acordo com a sua investigação cronológico-geográfica, a organização dos autores incluídos no Cancioneiro da Ajuda em três conjuntos diferentes (1994: 185-190): 1. Um constituído por trovadores principalmente galegos com cantigas que datam da primeira metade do século XIII; 2. Outro que reúne trovadores em maior número portugueses cuja actividade decorre na segunda metade do século XIII; 3. E, por fim, o dos restantes trovadores, constituído por autores essencialmente galegos, com produção nos segundo e terceiro quartéis do século XIII. O segundo conjunto, o dos autores com previsão de espaço para a notação musical, coincide globalmente com o dos autores portugueses presentes no códice, o que leva a admitir que na cópia das cantigas destes poetas houve maior empenho na notação musical da fiinda 21. Isto parece também insinuar

21 Se se admite que a presença da transcrição musical é um elemento indicativo de boa qualidade de materiais, se é possível considerar que esses materiais de melhor qualidade se associam à produção portuguesa e que terão circulado menos do que outros, então parece plausível pensar que a confecção deste Cancioneiro não tenha estado muito afastada dos centros de produção que tinham a possibilidade técnica e profissional de produzir ou reunir materiais com música.

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que haveria por parte dos trovadores portugueses maior propensão para a exegese musical nas fiindas, o que não é, naturalmente, irrelevante na concepção organizativa do Cancioneiro. Foi também com o auxílio destes elementos que M. Pedro Ferreira pôde restabelecer com alguma segurança a caracterização musical de um cancioneiro desprovido de registo de qualquer acompanhamento. Não só neste colóquio, com o sugestivo título «Som mudo no Cancioneiro da Ajuda», mas também, há alguns meses, em Santiago de Compostela, com outro título, igualmente evocativo, «O rasto da música no Cancioneiro da Ajuda», M. Pedro Ferreira recupera e interpreta musicalmente estes espaços, oferecendo novos elementos de reflexão muito significativos para melhor particularização histórico-musical da confecção do Cancioneiro da Ajuda (2004) 22. Servindo-se não só da representação iconográfica como da presença de instrumentistas, M. Pedro Ferreira examina vários tipos da notação musical (integral e parcial) presente em diferentes manuscritos. Ao debruçar-se sobre a transcrição musical dos lais em manuscritos franceses, admite um paralelismo entre esta e a disposição das fiindas com previsão musical no Cancioneiro da Ajuda. Supõe ainda que a representação musical se adequaria a variações melódicas, talvez essenciais, acentuadas no final da cantiga, enquanto noutros casos a ausência de vestígios de tal zelo na previsão musical poderá querer dizer que a eventual variação poderia ser deixada à responsabilidade do intérprete. Além do indício de fontes heterogéneas, que me parece claro perante este dado material, sabemos agora que esta particularidade abrange trovadores, sobretudo portugueses, como o assinalou A. Resende de Oliveira, e esta distinção musical poderá ter tido a sua génese em hábitos franceses, familiares, por certo, à corte francesa de D. Afonso III, como acaba de propor de modo aliciante, neste colóquio, M. Pedro Ferreira. A diversa qualidade do tratamento da matéria musical na confecção do cancioneiro terá assim contribuído para apurarmos que os modelos se diferenciavam não só de autor para autor, mas que a disparidade podia surgir também no interior do ciclo de um mesmo trovador, o que deixa subentender que, se estamos em presença de materiais de carácter musical diferentes entre si, podemos estar igualmente confrontados com diferentes procedências textuais (Quadro 3).

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Por outro lado, este problema de musicologia interessa não só à situação ibérica, mas a toda a România, porque é rara, ou pelo menos desviante, a presença de um espaço previsto para pauta musical nos finais da composição. Não podemos saber objectivamente que tipo de música estaria transcrito nestes casos (seria uma repetição, uma variação, ou frases melódicas novas?), mas é de qualquer modo digna de apreço a opção pela menção musical do Cancioneiro da Ajuda, como se fosse um livro de canto.

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6. SECTORES MUSICAIS (SEPARAÇÃO SILÁBICA) É igualmente um dado de natureza musical num cancioneiro carecido de notação da música que vai permitir nova conjectura acerca da provável estratificação dos materiais de base. Várias palavras na primeira estrofe ou em algumas fiindas comparecem com uma nítida separação de sílabas que só pode remeter para uma consonância com a disposição musical do modelo. O Cancioneiro da Ajuda possui vários indícios de um antecedente que trazia decerto notação musical transcrita. A separação silábica verificada nalguns casos elimina a hipótese de um regulamento geral subjacente à cópia das cantigas, de uma norma que preconizasse maquinalmente previsão musical para a primeira estrofe, além da que existia efectivamente no modelo 23. A mais forte concentração do fenómeno situa-se em cantigas de trovadores que, por infortúnio, não se encontram copiadas nos testemunhos posteriores, ou por lacuna ou por ausência pura e simples. Os casos em que a separação das sílabas não é documentada correspondem, em geral, a poetas com poucos textos, o que permite pressagiar um material musicalmente mais pobre, ou mesmo inexistente, para alguns ciclos do Cancioneiro da Ajuda. O levantamento da maioria das ocorrências permite estabelecer uma presença do fenómeno em vários autores, praticamente até ao ciclo de Joham Garcia Guilhade. Sem contar com casos do tipo ou , que se poderiam explicar por simples cópia do texto, outros não oferecem qualquer dúvida quanto a uma intenção especial de separação como , , . Se este fraccionamento vocabular parece documentar a presença de um material verbal sujeito a condições particulares, a cisão interna de uma sílaba poderia, segundo M. Pedro Ferreira, denunciar uma consistência melódica especialmente importante num determinado lugar da palavra, ilustrando o espacejamento um número mais elevado de notas sobre uma sílaba (ou sobre a sua vogal), o que, de modo quase claro, implicaria uma distribuição das sílabas em função do número de notas 24. A separação gráfica intratextual constitui, ainda na opinião de M. Pedro Ferreira, um indicativo sólido de uma oposição entre «densidade melódica normal» e «densidade melódica excepcionalmente elevada», ainda que esta

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A análise destes casos, com a respectiva enumeração, encontra-se no ensaio que incluí na Miscelânea de estudos lingüísticos, filológicos e literários in memoriam Celso Cunha (Ramos 1995: 703-719). M. Pedro Ferreira, embora se apoie neste levantamento, oferece uma «filtragem» das ocorrências, alargando-a a algumas distâncias intra e intervocabulares e não apenas aos estritos casos silábicos (2004: 198-199). 24 Vale a pena, aqui, chamar a atenção para o comportamento extremamente rigoroso de quem transcreve o texto. Trata-se de uma cópia que não descura, em certos momentos da composição, a importante subordinação textual à posição das notas na pauta.

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marca não seja visível de forma global em todos os textos. A disposição contínua tanto pode estar ligada a um estilo de articulação musical «simples» ou «silábico» (uma ou duas notas por sílaba) como a um estilo «neumático» ou «melismático» (três ou mais notas por sílaba), o que, por si só, não constitui um estilo musical determinado, mas sublinha a especificidade musical deste Cancioneiro (2004: 196) 25. Restringindo a análise aos contextos mais claros de espacejamento silábico, M. Pedro Ferreira nota que no Cancioneiro os autores singularizados por este fenómeno distribuem-se um pouco por todo o códice, não apenas na zona das fiindas com previsão musical, mas também na primeira parte, no sector inicial designado por Resende de Oliveira como «cancioneiro de cavaleiros» (1994: 179-182). Acontece, por exemplo, em trovadores como Johan Soarez Coelho, com vários casos correspondentes a seis cantigas, Johan Soayrez Somesso, Martim Soarez e Roy Paez de Ribela, cada um deles com algumas ocorrências em três cantigas. Mas mais importante ainda me parece salientar outro aspecto. Os autores em que M. Pedro Ferreira observa esta especificidade musical têm, a maior parte das vezes, ligações ao território português (Fernan Garcia Esgaravunha, Johan Soarez Coelho, em particular). Apenas alguns deles tiveram permanência ou contactos com a corte de Alfonso X de Castela e Leão (Martim Soarez, Vasco Gil, Pero Garcia Burgalês) 26. É, contudo, ainda expressivo que noutros trovadores copiados na mesma zona inicial do Cancioneiro da Ajuda, como Ayras Carpancho, Nuno Rodriguez de Candarey ou Johan Nunez Camanez, não se documentem casos de evidente separação. Talvez seja oportuno recordar que se trata de ciclos breves e de uma provável ligação destes trovadores à Galiza, que não tiveram aparentemente contactos com a corte portuguesa. A transcrição de outros autores, por outro lado, como Pero da Ponte, mais associado à corte afonsina, não parece ter tido, de acordo com este fenómeno, materiais musicados na base do seu ciclo, o que vem fortalecer a ideia de que a presença destes indícios, relacionados com a música, parece subordinar-se, tal como na previsão musical para as fiindas, a um vínculo do trovador com Portugal mais do que com Castela, «fosse porque os autores tivessem pessoalmente frequentado a corte, fosse porque, a partir de certo momento, aí tivessem circulado, com solfa, as suas composições», acrescenta M. Pedro Ferreira (2004: 200).

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Na música profana, entende-se por melisma um trecho melódico com várias notas para uma mesma sílaba, um grupo de três ou mais notas cantadas sobre a sílaba, enquanto no modo silábico a cada sílaba é associada uma única nota (Ferreira 2004: 196, n. 28). 26 Embora os dados cronológicos conhecidos apontem para uma permanência, mais ou menos estável, numa ou outra corte, não se deve menosprezar a forte circulação dos trovadores entre os diversos espaços cortesãos (Oliveira 1994: 303-440).

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O compilador, ou o responsável pela confecção do Cancioneiro, teria pois tido acesso privilegiado a fontes musicadas de procedência portuguesa, o que não ocorreria com as fontes musicadas de origem galega ou castelhano-leonesa, que parecem não dispor, em conformidade com estas hipóteses, da mesma mestria musical. Mas também pode acontecer que a possibilidade de obter fontes musicadas de proveniência maioritariamente portuguesa fosse maior no ambiente desta corte, podendo admitir-se que no terceiro quartel do século XIII havia maior vulgarização de materiais musicados associados àquelas canções trovadorescas. Esta prática não parece poder dissociar-se dos hábitos de escrita musical conhecidos e importados de França pela corte de Afonso III 27, e também não deve ser esquecido que a notação musical nas Cantigas de Santa Maria parece não ter sido anterior à década de 1270 (códice de Toledo). Assim o evidencia M. Pedro Ferreira: «esta notação, aparentemente experimental, pois não tem antecedentes directos conhecidos nem deixou descendência, foi substituída, por volta de 1280, por outra mais moderna, de matriz claramente francesa, aparentada com as escritas musicais do Pergaminho Vindel e do Pergaminho Sharrer» (2004: 201, n. 33) 28. Uma notação musical marcada, portanto, por um molde importado pela corte portuguesa do Bolonhês (Quadro 4). 7. SECTORES EMENDADOS Dos diferentes tipos de notas em cursivo, que se inscrevem nas margens dos textos, refiro aqui apenas as anotações que têm implicação textual. À primeira vista, podíamos pensar em simples correcções de banais erros de

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Ainda que não seja, hoje, possível delinear um quadro completo do enorme papel literário desempenhado por D. Afonso III no seu regresso a Portugal após o abandono do seu condado de Boulogne-sur-Mer, algumas parcelas começam a adicionar-se, sobretudo na transmissão da Matéria de Bretanha e no conhecimento da poesia dos trouvères (Castro 1976-1979; 1984; 1993; Beltrán 1984; 1993; Ramos 2001 [2005]). 28 Desta observação, M. Pedro Ferreira retira ainda algumas conclusões de natureza métrico-musical dependente da presença do melisma. As vogais mais marcadas pela presença do melisma são as mais abertas e, por este motivo, mais adequadas à sustentação vocal. Os melismas encontram-se em diversos versos e em várias posições dentro das estrofes. Mas é interessante notar que há correlação positiva entre melisma e acentuação musical em Johan Soayrez Somesso, ou expansividade melódica em Roy Paez de Ribela. Além disso, M. Pedro Ferreira interpreta a conexão entre os espaços intratextuais e os conteúdos poéticos. É assim que nota casos de melisma que marcam um ritmo iâmbico de tipo declamatório, como em Martim Soarez com a separação silábica de con…sella…do (A 51, v. 1), ou contextos de pausas sintácticas, como em Roy Paes de Ribela com perderia…se (A 190, v. 6). Mas é sobretudo a situação de realce semântico que parece mais emblemática. O melisma põe em evidência a concepção central do poema — a razon da cantiga —, como em Martim Soarez com a forma coi…ta… do (A 60, v. 1) (Ferreira 2004: 201-203).

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copista, ou de imprecisões, sem qualquer envolvimento com o conteúdo da cantiga, mas não é assim 29. Merecem particular apreço as correcções marginais contemporâneas da cópia executadas por um revisor dos textos que, felizmente, não chegaram a ser rasuradas 30. Muitas das lições que foram corrigidas, assinaladas em parte por C. Michaëlis, que as interpretava como resultantes de simples erros de quem copiava, coincidem singularmente com lições variantes de outros manuscritos. Por outro lado, e de modo mais inesperado, as correcções podem ajustar-se também à lição testemunhada pela tradição italiana. As correcções, em número elevado, modificam vários textos de certo número de autores, com exclusão dos três últimos cadernos (Johan Soayrez Somesso, Martim Soarez, Nuno Fernandez Torneol, Pero Garcia Burgalês, Fernan Garcia Esgaravunha, Roy Queymado, Johan Soarez Coelho, Roy Paez de Ribela, Johan Lopez d’Ulhoa, Fernan Gonçalvez de Seavra, Pay Gomez Charinho, Fernan Velho, Bonifaz de Genua). Há, no entanto, séries de poetas sem qualquer ingerência, mesmo no interior das zonas que denunciam colação (Pay Soarez de Taveirós, Roy Gomez de Breteyros, Nuno Rodriguez de Candarey). Outros casos não se adequam a qualquer comentário comparativo, porque são testemunhos únicos (Vasco Gil, Joham Garcia de Guilhade). O exame e uma breve tipologia destas rectificações demonstram, em primeiro lugar, o acrescento ou a supressão de uma vogal, de uma sílaba, ou de uma palavra (podíamos pensar no erro incipiente, estudado por A. Ferrari relativamente ao Cancioneiro Colocci-Brancuti), mas a maior parte dos casos não se integra no plano da self-correction de quem está a copiar 31 (Quadro 5). O exame destas rectificações leva a admitir a presença de outro modelo para a intervenção correctiva e não a considerá-las como simples retoques,

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Uma mão, talvez do século XVI, acrescentou uma estrofe à cantiga A 130, poema atribuível a Roy Queymado. E uma estância, de datação mais delicada, mas mais antiga, foi acrescentada à composição A 250, incluída no ciclo de atribuição a Pay Gomez Charinho. O ciclo deste poeta apresenta, aliás, várias interferências, provavelmente por confronto com outra fonte. Leiam-se, agora, as análises e a transcrição de todos estes casos por Susana Pedro, apresentadas neste colóquio e publicadas neste volume em «Análise paleográfica das anotações marginais e finais no Cancioneiro da Ajuda». 30 Quando menciono a intervenção de um «revisor» estou a pensar na verificação geral do texto copiado, tal como a observei em 1992. S. Pedro, na sua comunicação, aqui incluída, distingue o «revisor» do «corrector», de acordo com o tipo paleográfico de intervenção marginal. Mas, além destes modos de supervisão técnica, é necessário considerar que a diferenciação entre um e outro tipo de nota provém sobretudo da natureza da correcção que é introduzida (simples correcções ou lições variantes). 31 O incipiens error no Cancioneiro Colocci-Brancuti foi examinado com apoio numa tipologia do erro por A. Ferrari que, com um atractivo título, «Sbagliando (loro), s’impara (noi)…», explicitou parte da tradição textual de B, baseada neste recurso (Ferrari 2001).

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assentes em probabilidades resultantes da competência métrica de quem corrige. O objecto que é utilizado para a verificação poderia identificar-se com o exemplar primitivo — o que tinha servido para a cópia principal —, e as imperfeições seriam nesse caso devidas a lapsos de quem copiava. Mas várias das emendas coincidem com irregularidades que se manifestam também, no mesmo lugar, nos outros cancioneiros. Ora, é improvável que copistas diferentes, em condições de trabalho separadas no espaço e no tempo, cometessem a mesma infracção no mesmo lugar. Este facto só pode implicar a existência de uma lição defeituosa na origem comum aos dois manuscritos. Mais ainda. O contraste ou a coincidência da emenda com os outros manuscritos revela alguns elementos valiosos para a história da tradição galego-portuguesa. Se, para o caso das coincidências, se encontraria apoio na ideia de um modelo sólido e consistente, para a situação das divergências será necessário admitir uma outra dinâmica na caracterização do modelo de base. Observem-se alguns casos 32: Nuno Fernandez Torneol 106, 13 v. 8 A 72 que me sera mia morte me mester me A1 B 185 q’ mj sera mha morte […] mester Johan Soayrez Somesso 78, 7 v. 19 A 27 e podela ya perder A1 pder B 120 e podela ia bē perder Pero Garcia Burgalês 125, 3 v. 30 A 102 de deus dela ben nen dessi A1 d’s dela bē nē dessi B 209-10 de dela deus ben nen dessi Destas notas, retiram-se além disso, lições adiáforas em que a indicação marginal de A não concorda com a lição de B. Não se trata nem de acrescento nem de eliminação, mas pura e simplesmente de lições variantes. V. Bertolucci, na sua edição dos textos de Martim Soarez, em A 51, assinalando as «lievi diversità di lezione, indifferenti riguardo al senso e alla metrica», optou pela lição de B 163, transcrevendo assim o v. 16: que eu

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Pela sigla A1 entendo a lição que se encontra à margem do texto como correcção. Indico também na sequência da rubrica atributiva a referência ao Repertorio… de Tavani (1967).

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viss’o vosso bon parecer, enquanto C. Michaëlis tinha seleccionado a lição corrigida de A: que viss’o vosso mui bon parecer (Bertolucci 1963: 89-91; Michaëlis 1904, I: 109) 33: Martim Soarez 97, 14 v. 16 A 51 que uiss o uosso muy bon pareçer muy bõ pareçer A1 B 163 que eu uisso uosso bō parecer A impressão mais desconcertante resulta, todavia, da harmonia total entre a lição de A já corrigida, a da nota marginal e a de B. Nestes casos, não há qualquer variação textual e encontramo-nos na impossibilidade material de saber com precisão o que subsistia previamente, isto é, o que é que foi objecto de ingerência. Permanece apenas a possibilidade de prever um simples erro de copista do códice de Lisboa: Johan Soayrez Somesso 78,12 v. 22 A 19 Comogeu uiu e non poral Comogeu uiu e nõ poral A1 B 112 Comoieu uiue nō p’al Um exemplo de correcção ainda mais claro reforça a presença de outros materiais de confronto. Numa composição de Pero Garcia Burgalês, o copista escreveu a primeira estrofe sem inserir o segundo verso. De seguida, o revisor apercebe-se desta inexactidão e reescreve à margem não só o verso que faltava, mas também o primeiro e o terceiro, de tal maneira que o copista integre correctamente o verso que não tinha chegado a copiar. A correcção é, de facto, incorporada. O escriba rasurará o que tinha já escrito e, com os caracteres bem apertados, inclui naturalmente o verso que faltava mas ultrapassando, como seria previsível em casos como este, a réglure prevista. A observação do manuscrito B denota a ausência exactamente do mesmo verso, permanecendo a estrofe incompleta neste códice italiano onde não se verifica qualquer vestígio de melhoria textual. O estado primitivo de A e a disposição actual de B são, efectivamente, compatíveis ou com uma lacuna real de verso ou, se tivermos em linha de conta a sequência dos versos, com uma confusão motivada pela rima que, no terceiro verso, terminava também em . No entanto, como esta ocorrência se posiciona na primeira

33 A constatação de que este verso oferece duas tradições com lições indiferentes é solidificada por situações paralelas nos vv. 3 e 4: ca nuncar pudi gran coita pder (A) e ca nũca pudi gram coyta pder (B) e nen perderei ia mentreu uíuo for (A) e nen perderey ia mentre vivo for (B). Mas, nestes dois versos da 1.ª estrofe, não se encontram sugestões de correcção no Cancioneiro da Ajuda (Carter 1941: 33; Molteni 1880: 66).

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estrofe, em escrita contínua, parece menos factível este erro de memorização visual no plano de cópia de um manuscrito com a primeira estrofe disposta para a música 34: Pero Garcia Burgalês 125, 32 vv. 1-3 A 105 Ora ueieu que fiz muy ğn folia 7 q. pdi ali todo meu sen. por q.dixe ca nõ q.ria grã be~ A1

Ora ueieu q fiz muy grã folia 7 q’ pdi ali todo meu ssen. porq, dixe ca nõ qria gran be~

B [213]

Ora ueieu que fiz muj ğm folia [……………………………………..] por que dixi ca queria gran ben

Houve, portanto, uma fonte que não se pode identificar, visto não haver concordância no erro, com um arquétipo comum aos dois cancioneiros. Será então necessário propor hipóteses. Ou temos de admitir um material em estado fluido, misto, ou aceitar a existência de mais de uma fonte nas correcções presentes no Cancioneiro da Ajuda: uma, responsável pelas inovações em que o Cancioneiro coincide com os manuscritos posteriores, e que poderia situar-se na primeira ramificação do stemma; outra, seria uma fonte lateral independente, usada unicamente pelo revisor do Cancioneiro. Esta, pelo contrário, colocar-se-ia fora do stemma dos cancioneiros conservados e poderá ser conjecturada como um cancioneiro incompleto, ou como uma pequena antologia, que proporcionou melhores lições em alguns ciclos. Um material, reputado de melhor qualidade por quem tinha a obrigação de controlar a transcrição dos textos, serviu para aperfeiçoar a cópia inicial. Apesar do rigor textual, apesar da sua rígida estrutura do ponto de vista da distribuição dos textos, dos autores e da decoração, estas ingerências correctivas no Cancioneiro da Ajuda, associadas aos outros factos enumerados (textos com espaço destinado a estrofes que nunca chegaram a ser completadas, alternância de previsão musical nas fiindas, separação silábica irregular de algumas palavras na primeira estrofe, secção híbrida no final do códice), parecem reflectir uma realidade muito mais dinâmica

34 C. Michaëlis regista a falta do verso 2 no Cancioneiro Colocci-Brancuti. P. Blasco, na sua edição dedicada a este trovador, assinala também a ausência do verso no códice italiano, mas refere os versos registados à margem em A sem indicar que se trata efectivamente de uma correcção que ocasionou a emenda consequente nos três primeiros versos da cantiga (Michaëlis 1904, I: 217; Blasco 1984: 179-182).

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quanto ao objecto ou aos objectos que serviram de modelo à cópia do Cancioneiro da Ajuda. A apreciação destas notas marginais do Cancioneiro da Ajuda que são integradas no texto, que eliminam, substituem ou completam lições imperfeitas, faz crer, de uma maneira mais fiável, numa outra fonte, claramente independente do modelo comum, pelo menos em certos sectores, aos manuscritos colectivos. Quando se constata nestes a falta de versos, a irregularidade deveria encontrar-se no arquétipo comum, o que pode querer dizer, como hipótese, que o material de melhor qualidade, que utiliza o revisor de A, não se pode identificar com esse modelo. É praticamente impossível definir o estatuto e a extensão daquela fonte, mas podemos pensar numa fonte em estado fluido que podia conter já lacunas de estrofes visto que o revisor que integrava versos nunca chega a inserir estrofes que faltavam várias vezes (há o caso excepcional do ciclo de Pay Gomez Charinho, em que se verifica a integração de uma estrofe em A 250, sem que houvesse qualquer vazio indicativo da falta de uma estância 35). Estas anomalias afectam uma quantidade significativa de textos e de autores, mas paradoxalmente não dizem respeito à última parte do cancioneiro, que, por outros motivos, parece definir-se como uma secção muito mais heterogénea 36. De uma maneira sumária, podemos supor que se tratava de um material extra-arquetípico no interior do stemma ou, mais prudentemente, um material paralelo ao arquétipo, mas fora do stemma (Quadro 6) 37. Se é verdade que, na realidade, estamos perante uma tradição homogénea extremamente estreita e empobrecida em número de cópias colectivas, a cópia do Cancioneiro da Ajuda, considerada de qualidade, propõe-nos a subsistência de outros manuscritos que circularam no momento em que se organizava esta colecção. É um dado essencial para uma melhor reconstituição material da estrutura da tradição manuscrita galego-portuguesa. O material de base era deficitário em estrofes e em versos, mas houve a possibilidade de poder corrigir pelo menos alguns versos. Os vazios de estrofes que subsistiram não chegaram a obter este êxito, ou por o compilador não ter tido acesso a melhor fonte,

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S. Pedro interpreta-a como uma estrofe transcrita pelo próprio revisor (cf. a sua contribuição para este colóquio, «Análise paleográfica das anotações marginais e finais no Cancioneiro da Ajuda»). 36 É nesta secção que se verifica, por um lado, um caso de dupla tradição, já estudado por G. Tavani (1963: 205-214); por outro, a existência de algumas séries de anónimos (que não chegaram a ser trasladados por testemunhos posteriores) e a inclusão inesperada, neste tipo de cancioneiro, de dois clérigos, Martim Moya e Roy Fernandez de Santiago (Oliveira 1988: 699-701; 708-709, e, depois, no seu estudo mais desenvolvido publicado em 1994). 37 Pode assim conjecturar-se um material pré-arquetípico (w1) em estado fluido, mas já com lacunas de estrofes; mas também pode supor-se um arquétipo com erros, com lacunas de estrofes e de versos (w2), ou então, por fim, um material paralelo ao arquétipo (idêntico a w1), mas exterior ao próprio stemma (Ramos 1992).

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ou por se ter considerado que, por motivos estéticos, o corrector não incluiria à margem uma estrofe completa e actuaria em outro momento 38. 8. CÓPIA DE LIVRO A LIVRO OU TRAVAIL EN COURS Todos os elementos apontados — veiculadores de informação — parecem sugerir que a concepção antológica é clara a vários níveis na primeira parte do manuscrito (tipo de autores, tipo de composições, mas talvez mesmo eliminatio de materiais, e, aqui, estaríamos na perspectiva do fabrico de uma autêntica antologia, de um cânone, o que significa material desprezado, material deixado de lado, e não uma compilação salvadora de materiais). É uma situação bem diferente daquela que Garcia de Resende anunciará nos primeiros anos do século XVI quanto à indispensabilidade de uma compilação devido a que «muitas cousas de folgar e gentilezas sam perdidas sem haver delas noticia no qual conto entra a arte de trovar, / que em todo o tempo foi mui estimada» 39. Se aquela primeira parte, apesar da falta de estrofes, pareceria mais estável e consistente, as dúvidas diminuem no último sector quanto à sensação de acesso a diferentes materiais, que parece justificar-se melhor perante um projecto de compilação. Quer dizer que, se assim fosse e se tivéssemos em conta apenas os indícios do cuidado posto na cópia (miniaturas introdutoras de ciclos, capitais hierarquizadas em função da abertura da série, início de composição, início de estrofe, início de refram, princípio de fiinda, espaços em branco identificadores de separação de autores, etc.), seria fácil presumir que estaríamos em presença de um trabalho cujo rigor organizativo o situaria, naturalmente, em fase claramente subsequente à actividade poética. Mas a totalidade dos restantes dados observados (textos incompletos em sector compacto, materiais individualizáveis no interior do ciclo de um mesmo autor, revisões textuais que implicam acesso a outros manuscritos, sectores compilados com fundamento em outros critérios, etc.) deve permitir-nos enfrentar este objecto cancioneiro como um manuscrito múltiplo, não só na sua estrutura, mas também na sua génese, resultante de um processo de transposição que revela pluralidade no plano do modelo. Parece possível, como vimos,

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É provável que não tenha havido a possibilidade de melhorar o sector que continha lacunas de estrofes. Acrescente-se que os dois casos de inserção marginal de duas estrofes comparecem em situações particulares: uma, já referida, no fl. 68, anexa a uma cantiga atribuível a Pay Gomez Charinho, A 250, autor que, como vimos, corresponde a um ciclo transcrito em circunstâncias particulares (cópia dupla de um mesmo texto, por exemplo); e uma outra no fl. 33, anexa à cantiga A 130 [Roy Queymado], é de mão posterior e não se identifica com a revisão textual a que tenho vindo a referir-me (Michaëlis 1904, I: 263-265; 488-489). Reenvio o leitor para o comentário paleográfico sobre estas estrofes que S. Pedro apresentou neste colóquio, publicado nestas actas. 39 Transcrevo este conhecido passo do «Prologo de Garcia de Resende, deregido ao Princepe Nosso Senhor» da edição de Aida F. Dias (1990, I: 9-11 [10]).

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prognosticar que não nos encontramos, de facto, em presença do resultado de um livro copiado, de um livro pronto, mas perante um livro a ser feito, que deixa conceber a mesa do responsável deste projecto como uma mesa coberta de materiais variados, talvez até algum livro, ou pequenos livros em alguns casos (autores, pequenas antologias), mas também — e parece-me fundamental pôr em evidência esta característica do Cancioneiro da Ajuda — de peças defeituosas, truncadas ou estropiadas. À luz desta conjuntura, não podemos imaginar como protótipo do Cancioneiro da Ajuda um só exemplar estável, inteiramente construído e encadernado. Contudo, é preciso ter em atenção que aquela mesa, noutro momento, teve também a possibilidade de acolher materiais avulsos com melhor qualidade que não favoreciam apenas o ajustamento de desacertos ou incorrecções não ratificados por uma self-correction. Esse novo material de colação veio contribuir para a introdução de lições adiáforas, de lições variantes, de lições de base que acabaram mesmo por substituir lições de qualidade inferior, correspondente à leitura que tinha oferecido o primeiro suporte material. Mas veio, sobretudo, facultar-nos a prova da existência de uma circulação de manuscritos dos quais não nos chegou mais qualquer notícia a juntar à confecção de um códice coetâneo do movimento literário 40. Assim sendo, a referida mesa de trabalho parece indiciar que estávamos, então, ainda numa fase organizativa, numa fase movente, instável, de um trabalho que parece ser consequência, no momento da cópia do Cancioneiro da Ajuda, de uma tradição que se formava num plano mais horizontal do que vertical. Esta horizontalidade parece, por sua vez, evocar um trabalho que não era realizado mecanicamente, de uma forma inconsiderada e acrítica. Uma obra em movimento, portanto, um cancioneiro que ilustra ainda o momento em que está a ser elaborado: sabíamo-lo, dir-se-á, pelas interrupções de pintura, pela ausência de notação musical, pela falta das rubricas atributivas, mas trata-se de um cancioneiro que deixa transparecer também no plano textual uma tradição activa e de modo algum uma tradição finalizada. A questão final é, portanto, perguntarmo-nos se, em relação ao Cancioneiro da Ajuda, existiu realmente um ω, no sentido convencionado de texto concluído, fechado, ou se não se tratava antes de uma colecção que estava ainda a ser ordenada, da qual o Cancioneiro da Ajuda documenta apenas

40 E. Gonçalves considera que as coincidências que unem os três testemunhos e sobretudo o rigor de organização e a qualidade textual do Cancioneiro da Ajuda «semblent postuler que le manuscrit A doit être la copie d’un livre et non pas une anthologie ‘faite directement’ à partir de Liederblätter» (Gonçalves 1991: 451). Esta ideia é posteriormente retomada no seu ensaio dedicado a o conceito e a prática da antologia: «podemos concluir que o compilador da primeira recolha colectiva, da qual deriva este cancioneiro [da Ajuda], quis organizar uma antologia de trovadores pertencentes à classe nobre, excluindo portanto, os de condição jogralesca, e que, ao ordená-los, atendeu à sua cronologia e, em certa medida, à nacionalidade: tais são, em síntese, as conclusões apresentadas por Resende de Oliveira» (Gonçalves 2000: 97).

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uma parte. Se é um facto que o Cancioneiro da Ajuda ilustra uma fase antológica (arrumação por certos autores, por proveniências, por cronologia, ou por critérios métricos 41), documenta também uma fase talvez já compilatória (últimos sectores), próxima do outro ramo da tradição, com diversas adições que se integram já num projecto coleccionador de materiais. É claro que um tal tipo de tradição antológica implica uma metodologia que tenha em consideração este efeito encadeado ou, dito de outro modo, temos de adoptar um entendimento textual que não pode conceber um modelo que tivesse já obtido estabilidade. Teríamos assim de supor a existência não de um único exemplar (ε) mas a coexistência de uma sucessão de exemplares: ε …ε ……ε …, etc. a b c (Quadro 7). Este tipo de recensio, de certo modo in absentia, leva-nos a uma reunião de testemunhos indirectos, permitindo classificá-los de alguma maneira e possibilitando-nos talvez em alguns casos elaborar um pequeno apoio genealógico, um stemma parcial. É também desta forma indirecta que se procederá à examinatio das correcções marginais que nos oferece o manuscrito, que no exame de determinados passos permitirá estabelecer, se não a forma original, pelo menos, estádios anteriores ou paralelos ao modelo primordial. Como caracterizar este arquétipo? Não como um arquétipo geral consistente, estável, firme e seguro, sólido e compacto, fechado, do qual dependeria toda a tradição. Em certos casos, o material que contribuiu para a composição deste cancioneiro terá mesmo de ser designado como um material pré-arquetípico ou como co-arquetípico, mais do que subarquetípico. A metodologia lachmanniana pressupõe que a transmissão textual opera no sentido vertical, quer nos diferentes momentos da tradição quer nos distintos ramos da tradição. Isto implicaria, naturalmente, uma ausência de contaminação. Se não é possível determinar exactamente o grau de contaminação, se ela se verifica unicamente em certas zonas, ou em determinados autores, o Cancioneiro da Ajuda parece tornar-se, através destes elementos materiais, quase transparente quanto aos seus modelos, que se revelam como um material difícil de definir como fraccionado ou múltiplo, esporádico ou contínuo, e cujos últimos vestígios ficam assim documentados num ponto insuspeitadamente alto da tradição. Mas no momento da cópia do Cancioneiro da Ajuda este material circulava ainda, o que não deixa de enriquecer o elenco das bases textuais do processo de confecção do Cancioneiro da Ajuda. A génese da tradição cancioneiresca não obedece aos cânones convencionais da transmissão textual unívoca, porque esta tradição estava, pelo seu modo de transmissão, em permanente mutação, o que não facilita o estabelecimento de um

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Em Santiago de Compostela, 2004, no congresso dedicado à edição do Cancioneiro da Ajuda de Carolina Michaëlis, D. Billy apresentou um estudo que destaca alguns agrupamentos métricos na organização da recolha poética de alguns autores, que sugerem uma ordenação segundo um critério técnico (2004: 177-184).

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stemma estático. As colecções transformavam-se, enriqueciam-se, ou empobreciam-se, e os compiladores podem revelar o acesso a outros materiais no decorrer da sua própria cópia, ou na passagem de um trovador a outro, ou no interior do ciclo de um mesmo trovador. Alcançar um original neste tipo de tradição plural não pode dissociar-se da procura de componentes que mantêm entre si numerosas relações de interdependência ou de subordinação de apreensão difícil. Para contornar esta dificuldade, previne-nos F. Zufferey: «avant d’appliquer des principes d’ecdotique, il convient d’approfondir la connaissance de chaque chansonnier considéré en lui-même et pour lui-même» (1987: 2). Mas será A. Roncaglia quem, na apresentação ao estudo do cancioneiro provençal H (Vat. Lat. 3207) de Maria Careri, melhor expressará, em meu entender, esta precaução, não só centralizada no próprio cancioneiro, mas na fenomenologia da reprodução textual: «riffletere sulla complessità della nozione di copia (una sempre varia combinazione di passività e programma, riproduzione ed elaborazione critica, che include più interventi stratificati, diversi per cronologia e tipologia)» (Roncaglia 1990: XVII) 42. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARBOR Aldea, Mariña, e PULSONI, Carlo (2004), «Il Cancioneiro da Ajuda prima di Carolina Michaëlis (1904)», Critica del Testo, VII/2, pp. 721-789. AVALLE, D’Arco Silvio (1961/1993), La letteratura medievale in lingua d’oc nella tradizione manoscritta, Torino, Studi e ricerche, n.16, Einaudi. Novo título e nova edição: I manoscritti della letteratura in lingua d’oc. Nuova edizione a cura di Lino Leonardi, Torino, Piccola Biblioteca Einaudi, 1993. BELTRAN, Vicenç (1984), «Rondel y refram intercalar e la lírica gallego-portuguesa», Studi Mediolatini e Volgari, XXX, pp. 69-90. — (1993), «Afonso III de Portugal», Dicionário de Literatura Medieval Galega e Portuguesa, organização e coordenação de G. Lanciani e G. Tavani, Lisboa, Ed. Caminho, pp. 14-15. — (1995), «Tipología y génesis de los cancioneros. Las grandes compilaciones y los sistemas de clasificación», Cultura Neolatina, LV, pp. 233-265. BERTOLUCCI PIZZORUSSO, Valeria (1963), Le poesie di Martin Soares, Bologna, Studi Mediolatini e Volgari, X, 1962. Bologna, Libreria Antiquaria Palmaverde. Tradução em galego de E. X. Gonzalez Seone, As poesías de Martin Soares, Vigo, Galaxia, 1992.

42 Em Liège, no colóquio «Lyrique romane médiévale: la tradition des chansonniers» (1989), A. Roncaglia tinha já sublinhado, na sua intervenção intitulada «Retrospectives et perspectives dans l’étude des chansonniers d’oc», a necessidade de uma constante dialéctica entre o texto copiado, presente no cancioneiro, e, através da materialidade codicológica, os diferentes momentos da tradição que não se pode esperar que sejam lineares nem unitários (1991: 37-38).

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178

ANEXOS

Ȧ

A

VaFdz Send

Pay Roy Srz Gmz Tav Bret

Nu PGar Rdz Bu Can

Fer Gar Esg

Va Gil

JSrz Anon JLpz PGmz Men Coe Ulh Barr Rdz Ten

JSrz Mart Ay Nud JNz Roy JPrz Som Srz Carp Fdz Cam Quey Av Tor

Est Fai

Pay Bon PEa PPon Mart Gmz Gen Anon Sol Mo Cha 

JPrz Roy Fer AfLpz JGarJVqz Av Paez Gaz Bay Glh Tal Rib Seav

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Anon Fer Va Roy Pad Rdz Fdz  Cal

Quadro 1 — Sector final

Ȧ

A 1

VaFdz Send

Pay Roy Srz Gmz Tav Bret

JSrz Som

Nu PGar Fer Gar Rdz Bu Esg Can

Va Gil

JSrz Anon JLpz PGmz Men Coe Ulh Barr Rdz Ten

Mart Ay Nud JNz Roy JPrz Srz Carp Fdz Cam Quey Av Tor

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JPrz Roy Fer AfLpz JGar Av Paez Gaz Bay Glh Rib Seav

Pay Bon Anon PEa PPon Mart Gmz Gen  Mo Sol Cha JVqz Fer Anon Anon Fer Pad  Tal Velho 

Va Roy Rdz Fdz Cal

Quadro 2 — Sector inicial

179

Ȧ

A a

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b JLpz Ulh

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Pay Roy Srz Gmz Tav Bret

PGar Fer Nu PGar Gar Rdz Bu Esg Can

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JSrz JSrz Coe

JSrz Mart Ay Nud JNz Roy JPrz Som Srz Carp Fdz Cam Quey Av Tor

Anon

Men Est PGmz Rdz Fai Barr Ten

JPrz Roy Fer AfLpz JGar JVqz Fer Av Paez Gaz Bay Glh Glh Tal Velho Rib Seav

Anon Anon Fer   Pad

Va Roy Rdz Fdz Cal

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Pay Bon Anon PEa PPon Mart Gmz Gen  Mo Sol Cha

Quadro 3 — Sector musical (fiindas) Q (f )

Ȧ

A

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Quadro 4 — Sector musical (separação silábica)

180

Ȧ

A

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Pay Roy Srz Gmz Tav Bret

Nu PGar Rdz Bu Can

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JSrz Mart Ay Nud JNz Som Srz Carp Fdz Cam Tor

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Pay Bon Anon PEa PPon Mart  Gmz Gen Mo Sol Cha

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Roy JPrz JPrz Roy Fer AfLpz JGar Paez Gaz Quey Av Av Bay Glh Rib Seav

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Va Roy Rdz Fdz Cal

Quadro 5 — Sectores emendados

Ȧ

Ȧ

Ȧ1 Ȧ1

Ȧ2

A

Ȧ2 ?

A Į

Į

Quadro 6 — Material extra-arquetípico intrínseco ao stemma ou exterior ao stemma

181

Ȧ

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b

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JPrz Roy Fer AfLpz JGar Av Paez Gaz Bay Glh Rib Seav

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Quadro 7 — Sucessão de materiais

182

g

Va Roy Rdz Fdz Cal

TROVADORES «MENORES» NO CANCIONEIRO DA AJUDA

ELSA GONÇALVES Universidade de Lisboa

1. Em 1994, data da publicação da edição fac-similada do Cancioneiro da Ajuda, no elegante texto de «apresentação do cimélio», o Professor José V. de Pina Martins, referindo-se aos problemas que o estudo do códice ainda levanta, declarava: «É óbvio que nem para todos os problemas há uma solução e não poucas perguntas estão destinadas a ficar para sempre sem uma resposta satisfatória.» 1 Dez anos depois, este colóquio proporciona a ocasião natural para a enunciação de problemas e formulação de perguntas. Problemas e perguntas não novos, mas que precisam de ser repostos de vez em quando, esperando que do esforço de clarificação de quem os expõe e do debate a que submete a sua exposição saia alguma luz. Ao tomar neste momento a palavra, tenho todavia consciência de não pertencer ao círculo dos «íntimos» do Cancioneiro da Ajuda, tendo-o frequentado raramente e sempre com reverência temerosa. Mais familiarizada com os

1

José V. de Pina Martins, «O Cancioneiro da Ajuda. Tentativa de uma apresentação do cimélio», in Cancioneiro da Ajuda. ed. fac-sim., p. [25].

183

chamados «apógrafos italianos» 2, sobre eles tenho reflectido com alguma demora e, ao convocar o cancioneiro ajudense para o inserir nessa reflexão, foi sempre como estudiosa do outro ramo da tradição manuscrita, isto é, do ramo designado como subarquétipo α, do qual derivam os cancioneiros B e V. Só agora, por me sentir obrigada a tentar entender um pouco melhor aquilo que outros, antes de mim, já perceberam ou problematizaram com indiscutível competência (refiro-me, em especial, e por ordem cronológica, a Carolina Michaëlis de Vasconcellos — a grande figura tutelar desta reunião —, a Giuseppe Tavani, a Maria Ana Ramos e a António Resende de Oliveira), decidi interrogar o Cancioneiro da Ajuda com a atenção voltada não apenas para os textos mas também para a materialidade do testemunho. Devo confessar que o meu estudo foi um ansioso, por vezes desesperado, vaivém entre o fac-símile do manuscrito, a edição crítica de Carolina Michaëlis e as publicações dos três estudiosos que acabo de citar. 2. Feita esta premissa, passo ao tema da minha comunicação: «Trovadores ‘menores’ no Cancioneiro da Ajuda». Começarei por dizer que os trovadores «menores» de que vou ocupar-me não são aqueles cuja qualidade estética reputo inferior à de outros considerados «maiores»: a nível artístico, eles podem alinhar com os maiores, quer pela substância quer pela técnica compositiva das suas cantigas, e um deles, ao qual mais adiante dedicarei atenção particular, destaca-se do grupo por ser autor de um breve ciclo cuja originalidade não pode passar despercebida. Também não são menores a nível social: num cancioneiro aristocrático como é o Cancioneiro da Ajuda, não se espera encontrar poetas pertencentes a uma classe não alta. A designação «menores» refere-se apenas à consistência quantitativa do corpus. E porque o campo de observação será um cancioneiro que transmite quase só cantigas de amor (do Professor Tavani esperamos a resposta à pergunta «Só cantigas d’amor?»), os trovadores «menores» em apreço serão afinal aqueles que têm poucas cantigas de amor, ainda que, por serem também autores de cantigas de outros géneros (de amigo ou de escárnio e maldizer), possam pertencer ao grupo dos «maiores». Excluídos assim os critérios estético e social, e limitado o campo de pesquisa, convirá precisar melhor qual é afinal o número de textos aqui considerado limite para classificar um trovador como «menor», sendo óbvio que o critério é essencialmente operatório. Considerei «menores» os trovadores do Cancioneiro da Ajuda cujo pecúlio não ultrapassa as quatro cantigas, isto é, aqueles que ocupam apenas um fólio do Cancioneiro e aos quais originariamente não teria sido reservado maior espaço.

2 Cancioneiro da Biblioteca Nacional (Colocci-Brancuti): Cod. 10991 da Bibl. Nacional de Lisboa (sigla B); Cancioneiro Português da Vaticana: Cod. Vat. Lat. 4803 da Bibl. Apostolica Vaticana (sigla V).

184

É claro que este critério que, à primeira vista, poderia permitir um rápido levantamento dos trovadores «menores» suscita logo problemas que têm a ver com a materialidade do códice, concretamente com os acidentes físicos a que esteve sujeito até apresentar o estado em que hoje o vemos. De facto, se antes e depois do fólio onde se encontra um autor com poucos textos não existe qualquer vestígio de lacuna física e se nos cancioneiros quinhentistas ele tem o mesmo reduzido número de cantigas de amor, não temos qualquer dúvida de que estamos perante um trovador «menor» (é o caso de PGmzBarr 3, com duas cantigas no caderno IX, fl. 59 rº e vº). Mas se, antes ou depois do nosso autor, se presumir a falta de um fólio, teremos de nos guiar pelo confronto com as partes análogas dos apógrafos italianos para conjecturar se o breve ciclo do poeta em análise estará completo ou não. O caso de JVqzTal, com quatro cantigas no caderno X, fl. 66 rº e vº, ilustra a primeira hipótese: após este fólio, deve faltar um, cujo conteúdo não é possível conjecturar, mas não é provável que nele estivessem mais textos de JVqzTal, uma vez que B e V transmitem o mesmo número. Ele é, portanto, um trovador «menor». Pelo contrário, MenRdzTen, apesar de ter apenas dois textos em A (caderno X, fl. 61 rº), não pode ser considerado «menor», visto que, faltando à primeira cantiga (A 226, Senhor fremosa, creede per mi) os dois primeiros versos, devemos supor que num fólio precedente (hoje desaparecido) estaria não só o início desta cantiga mas também as outras quatro que estão em B/V: de MenRdzTen poderiam estar, portanto, em A seis textos, no total. Os casos mais complicados, porém, ocorrem quando o confronto com os outros testemunhos da tradição cancioneiresca revela divergências quanto à consistência do corpus e a configuração do caderno em que se encontra o trovador «menor» não permite eleger, com segurança, o testemunho de A (caso de AyCarp e de NuRdzCan, no caderno III, sobre os quais me proponho reflectir mais adiante), ou quando o confronto com os cancioneiros quinhentistas se torna difícil, como acontece com os menores que, em B e V, aparecem visivelmente deslocados (é o caso de PEaSol e FerPad, que em A comparecem no caderno XIII e em B/V estão no sector amigo), ou quando esse confronto é mesmo impossível, como no caso dos menores anónimos do caderno XII (um caderno exclusivamente de anónimos, cuja constituição também analisarei mais adiante). 3. Com o critério atrás estabelecido e, tendo no horizonte os problemas que acabo de referir, a lista dos «menores» de A aqui considerados será a seguinte: Anónimo 1 AyCarp NuRdzCan JNzCam

2 4 2 3

cantigas cantigas cantigas cantigas

(A (A (A (A

62 e A 63) 64, 65, 66, 67) 68 e A 69) 111, 112, 113)

caderno caderno caderno caderno

III, fl. 15 rº III, fl. 16 rº e vº * III, fl. 17 rº * V, fl. 29 rº e vº *

3

Para as citações abreviadas, bem como para a grafia dos nomes completos, dos poetas, sigo G. Tavani, Repertorio metrico della lirica galego-portoghese.

185

Anónimo 2 PGmzBarr ALpzBa EstFai JVqzTal BonGen Anónimo 4 Anónimo 5 PEaSol FerPad

1 cantiga (A 185) 2 cantigas (A 222 e A 223) 2 cantigas (A 224 e A 225) 2 cantigas (A 240 e incipit A 241) 4 cantigas (A 242, 243, 244, 245) 2 cantigas (A 265 e A 266) 1 cantiga (A 277) 3 cantigas (A 278, 279, 280) 4 cantigas (A 281, 282, 283, 284) 3 cantigas (A 285, 286, 287)

caderno VIII, fl. 47 rº caderno IX, fl. 59 rº e vº caderno IX, fl. 60 rº caderno X, fl. 65 rº caderno X, fl. 66 rº e vº caderno XI, fl. 73 rº e vº caderno XII, fl. 77 vº caderno XII, fl. 78 rº e vº caderno XIII, fl. 79 rº e vº caderno XIII, fl. 80 rº e vº

* Achado em Évora.

Elaborada esta lista, o objectivo da minha comunicação deveria ser a análise da colocação dos trovadores «menores» no Cancioneiro — um livro que imaginamos organizado de acordo com um projecto que, na arrumação dos autores, parece atender não só à sua cronologia, nacionalidade e ambiente social mas também à distinção entre «maiores» (autores com muitos textos) e «menores» (autores com poucos textos) —, mas, como se verá, esse propósito só parcialmente foi cumprido. 4. Sensível à presumível distinção entre «maiores» e «menores» operada pelo organizador do Cancioneiro da Ajuda, M. Ana Ramos, numa importante comunicação apresentada ao X Congresso da A. H. L. M. (Alicante, 2003) 4, definiu já o caderno III (onde se encontram os textos de três ‘menores’) como uma «microantologia com ciclos breves inserida no conjunto do Cancioneiro», constituindo uma unidade fascicular «irregular», não apenas por ser menor que os primitivos cadernos anteriores, que, em seu entender, terão sido quínios 5, mas, precisamente, por conter poetas com escasso número de textos, depois dos compactos conjuntos copiados nos cadernos I e II. Deixando de lado a questão de saber se os dois actuais primeiros cadernos teriam sido originariamente quínios, ou se, como pensou C. Michaëlis e a mim parece mais provável, terão sido quaternos como a maioria, e entre um e o outro terá desaparecido um caderno inteiro 6, vejamos a composição do caderno que recolhe os primeiros «menores» de A.

4

Maria Ana Ramos, «Mise en texte nos manuscritos da lírica galego-portuguesa». Aproveito a ocasião para agradecer à autora ter-me permitido ler esse estudo antes da sua publicação. 5 Maria Ana Ramos, «O retorno da Guarvaya ao Paay», pp. 171 e 172; Ead., «Mise en texte…» cit. 6 Michaëlis, CA I, p. 66. É claro que a conjectura sobre a perda de um caderno entre o I e o II baseia-se no confronto com o cancioneiro B: do confronto resulta, de facto, que entre o último autor do caderno I (JSrzSom, incompleto) e o primeiro do caderno II (PaySrzTav, acéfalo), B transmite não só os textos ou versos que faltam ao pecúlio dos referidos autores mas ainda outros catorze textos, dos quais apenas três (B 142 a 145) suscitam dúvidas quanto à possibilidade de estarem em A, sendo, pelo contrário, admissível a inclusão de NuEaCerz, se aceitarmos a cronologia proposta por Souto Cabo em «Achegas documentais sobre Nun’Eanes Cerzeo».

186

No estado em que o podemos ver, depois do último restauro do códice 7, o caderno III apresenta-se como um terno ao qual falta o fólio inicial: [estrutura actual] […] 15 16

17

18 19

Mas os fls. 16 e 17 (provenientes de Évora), que actualmente estão unidos formando o bifólio central, exactamente como apareciam no esquema de C. Michaëlis 8, estavam separados quando o códice foi fac-similado em 1994 9. Ora, como observou, recentemente, Maria Ana Ramos, se as dimensões actuais dos dois fólios e a concordância carne/carne autorizam a união das duas meias folhas, a verdade é que, por um lado, «é bastante insólito um bifólio, desunido ao meio, ceder-nos, de modo quase intacto, a sobrevivência das suas duas partes» 10 e, por outro lado, acrescento eu, verificamos que de outros fólios com miniaturas achados em Évora, soltos, os homólogos desapareceram (cf. fl. 4, caderno I; fl. 29, caderno V; fl. 36, caderno VI). É, portanto, admissível que o mesmo tenha acontecido aos homólogos dos fls. 16 e 17. Evidentemente, não havendo textos «lacunares» 11 nem fólios com rebarbas antigas, não é materialmente possível provar a perda desses homólogos, devendo, portanto, a conjectura sobre o seu desaparecimento partir do confronto com o testemunho de B relativo aos autores copiados nesta zona de A. Assim, vendo que no fl. 15 temos um breve ciclo de dois textos (A 62 e 63) que B transmite como se fossem os últimos de MartSrz, mas que em A são dados a um poeta diferente (um «menor» que designamos por Anónimo 1 12), no fl. 16 estão quatro textos que B atribui a AyCarp, no fl. 17 dois textos de atribuição problemática, mas provavelmente pertencentes a NuRdzCan, e nos fls. 18-19 uma parte da produção

7 Sobre o último restauro do Cancioneiro, ver o artigo de Aires A. do Nascimento, «O restauro do Cancioneiro da Ajuda…», apresentado neste colóquio (pp. 275-305). 8 Cf. p. 189. 9 Cf. p. 190. 10 Maria Ana Ramos, «O cancioneiro ideal de D. Carolina», p. 29. 11 Uso a designação adoptada por Maria Ana Ramos em «O cancioneiro ideal de D. Carolina», onde estabelece a distinção entre textos «lacunares» e textos «ausentes» (p. 26). 12 Os dois textos copiados no primeiro fólio do actual caderno III (A 62, Pois non ei de dona’lvira e A 63, Nunca tan coitad’omepor moller), em B (n.os 173 e 174) são atribuídos em silentio a MartSrz, mas a presença de miniatura antes de A 62 indica claramente que estamos perante um autor diferente do anterior, que designo por Anónimo 1, como Resende de Oliveira, Depois do espectáculo trovadoresco…

187

de NuFdzTor, cujo ciclo termina no caderno seguinte, teremos de nos interrogar sobre o conteúdo dos fólios hipoteticamente desaparecidos. A interrogação envolve directamente dois dos «menores», AyCarp e NuRdzCan, para os quais o testemunho de B quanto à consistência do corpus diverge do testemunho de A. Começo por: Ayras Carpancho O seu «cancioneirinho» é constituído, em A, por quatro cantigas de amor, às quais, porém, B acrescenta outro texto (B 175) antes do primeiro de A. A cantiga acrescentada por B estaria também em A? Teoricamente, se admitirmos que antes do fl. 16 (onde se encontram as quatro cantigas de AyCarp) possa ter desaparecido um fólio (homólogo do actual 17), nele poderia estar esse texto: [estrutura actual] 15

16

17 18 19

Mas a presença de iluminura antes de A 64 indica claramente que, se o texto hoje ausente esteve nesta zona do cancioneiro ajudense, deveria andar atribuído a um autor diferente de AyCarp. Ora, a referência nessa cantiga à presença da senhor «en cas dona Costança» parece contrariar essa hipotética divergência atributiva. De facto, ao traçar recentemente a biografia do trovador apoiada em bases documentais até então desconhecidas, J. A. Souto Cabo propôs a identificação dessa «dona Costança» com Dona Constança Martins, mulher de Múnio Fernandez de Rodeiro, pertencente a uma linhagem, a dos Rodeiro, com ligações ao meio cultural em que se moveu AyCarp 13. Teremos então de pensar que a cantiga acrescentada por B, apesar de pertencer a este trovador, não teria sido copiada em A, tendo entrado na tradição cancioneiresca depois da confecção do códice ajudense 14, e que o fólio desaparecido antes do fl. 16 estaria em branco 15? Ou que, em vez de ser a primeira, a cantiga ausente

13

J. A. Souto Cabo, «Airas Fernandes Carpancho e Nuno Eanes de Cêrcio», pp. 477 e 478. V. Minervini, Le poesie di Ayras Carpancho, p. 26. 15 Confesso a minha dificuldade em aceitar a existência de fólios totalmente vazios no manuscrito da Ajuda. Considero, por outro lado, pouco convincente a suposição de A. Resende de Oliveira segundo a qual o fólio desaparecido antes do fl. 16 poderia estar em branco devido a uma decisão do compilador, que teria deixado em suspenso a transcrição da cantiga ausente, 14

188

teria sido a última do ciclo de AyCarp em A, tendo sido depois deslocada para o início no antecedente do qual deriva B? Mas se era a última, por que motivo não foi copiada no espaço que ficou em branco na coluna d do verso do fl. 16? Nuno Rodrigues de Candarey A discussão destas hipóteses envolve também a situação do trovador «menor» que se segue a AyCarp, autor das cantigas n.os 68 e 69 copiadas no fl. 17. Ora, sobre a autoria destes dois textos, o testemunho dos dois relatores (A e B) não é concorde: A 68, En gran coita vivo, senhor corresponde a B 182[bis], terceira de um conjunto de três cantigas que B atribui a NuRdzCan, enquanto o texto A 69, Nostro Senhor en que vos mereci, que em A é transmitido como pertencente ao mesmo autor (visto que os dois textos estão escritos na mesma face do fl. 17), é dado em B a um autor diferente, NuPor. Carolina Michaëlis resolveu esta divergência atribuindo os dois textos a NuRdzCan e, como a mais recente ponderação dos dados do problema por A. Resende de Oliveira 16 confirma, substancialmente, a conjectura de C. Michaëlis, parece razoável atribuir as duas cantigas do fl. 17 a NuRdzCan. Mas os dois textos que B transmite antes de En gran coita vivo, senhor e são dados a NuRdzCan, se foram também copiados no Cancioneiro da Ajuda (poderiam ocupar o fólio hipoteticamente desaparecido antes do fl. 17: cf. hipótese a), andariam atribuídos a um autor diferente de NuRdzCan, como deduzimos da presença da miniatura antes de A 68. A verdade, porém, é que, como as hipóteses sobre a composição primitiva do caderno III, teoricamente podem ser várias, desde a que idealizou C. Michaëlis 17: […] 15 […] 16

17

[…] 18 19

por ela ter apenas duas estrofes (Depois do espectáculo trovadoresco, p. 143). 16 A. Resende de Oliveira, «Do Cancioneiro da Ajuda ao ‘Livro das Cantigas’ do conde D. Pedro», pp. 709-714 e 740-741; id., Depois do espectáculo trovadoresco, pp. 68-70. 17 Michaëlis, CA II, p. 147. Com esta hipótese, os fls. 16 e 17 seriam contíguos e solidários, isto é, teriam constituído o quarto bifólio do caderno, tendo-se perdido inteiramente o terceiro.

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ou a que é proposta no esquema da edição fac-similada 18: […] 15 […][…]

16

17 18 19

até outras que ainda não vi aventadas 19: [hipótese c 20]

[hipótese b] […] 15 16 […]

17

[…]

18 19

[…] 15 16 17

[…] […]

18 19

e a posição dos fólios hipoteticamente desaparecidos vai variando, as conjecturas sobre os textos que eles poderiam conter também se modificam: o que me leva a considerar pouco satisfatórios os resultados desta reflexão sobre a consistência do corpus dos dois «menores» AyCarp e NuRdzCan recolhido em A e, concomitantemente, sobre a primitiva estrutura do caderno III. De facto, para mim não é ainda claro se este caderno — diferente dos circundantes

18 Cf. Cancioneiro da Ajuda. Edição fac-similada, p. [68]. Com esta hipótese, os fls. 16 e 17 seriam contíguos e teriam desaparecido os seus homólogos. 19 Provavelmente por contrariarem a regra de Gregory — pêlo com pêlo, carne com carne — (como aconteceria nas hipóteses a e b); mas convirá ter presente que esta regra nem sempre se verifica na estrutura de A. 20 Com esta hipótese, teríamos uma situação semelhante à do esquema da edição fac-similada, alterando-se apenas a posição dos fls. 16 e 17.

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pelas características do conteúdo (concentração de ciclos breves, dois dos quais incompletos relativamente à tradição posterior e, no caso de NuRdzCan, com atribuição controversa 21) e por certas singularidades paleográficas, como o uso de sequências de siglas na abreviação dos refrães em A 64, 66 e 67 de AyCarp e A 71, 72 e 75 de NuFdzTor 22 e a própria marcação do refrão, visivelmente irregular, em A 66 e 67 — terá sido originariamente um terno ou um quaterno; se terá, realmente, sido projectado como um caderno para trovadores «menores», como sugere Maria Ana Ramos, mas que, afinal, acolhe também um «maior», NuFdzTor, autor de doze cantigas 23, das quais a última e quase toda a penúltima tiveram de ser copiadas no caderno seguinte; ou se a colocação de três «menores» neste caderno terá sido ditada por outro critério. Johan Nunez Camanez A colocação de JNzCam no caderno V, entre dois «maiores», PGarBu e FerGarEsg, parece-me curiosa. O fl. 29, em que foram copiadas as suas três cantigas (A 111, 112 e 113), pertencia ao bifólio central, mas estava solto quando foi achado em Évora, e o seu homólogo (que deveria conter o início do «cancioneirinho» de FerGarEsg, com a respectiva miniatura) perdeu-se 24. Ora, que motivo teria levado o organizador de A a colocar, quase como separador, um «menor» entre os dois «maiores» copiados no caderno V? Estaremos perante um procedimento deliberado de arrumação dos «menores»? ou a inclusão de JNzCam neste lugar do caderno dever-se-á simplesmente à proveniência e natureza dos materiais que confluíram nesta zona do Cancioneiro? A única conjectura que me parece possível é que os conjuntos de AyCarp, NuRdzCan, NuFdzTor e PGarBu constituíssem um bloco composto por rolos de diferente qualidade 25, o qual foi copiado nos cadernos III e IV (contíguos), concluindo-se a cópia do último trovador desse bloco (PGarBu) nos três primeiros fólios do caderno V, e que outro bloco, do qual fariam parte os conjuntos (porventura mais organizados e provenientes de outro ambiente) de FerGarEsg, RoyQuey, VaGil, JPrzAv e JSrzCoe, começasse na segunda parte

21

Elementos postos em relevo por Maria Ana Ramos, «Mise en texte nos manuscritos da lírica galego-portuguesa». 22 A prática da abreviação do refrão por siglas verifica-se também nos cadernos VIII (A 168 de RoPaRib), XII (A 279 do An. 5) e XIII (A 283 e 284 de PEaSol, A 287 de FerPad e A 291 de PPo) e também no fl. 46, provavelmente único sobrevivente de um caderno perdido entre os actuais VI e VII (cant. n.º 182 e 184, atribuídas conjecturalmente a JPrzAv). 23 B oferece mais uma cantiga depois da última de A. 24 O esquema do caderno que vem no volume de Estudos da edição fac-similada não pode estar certo, porque o fólio perdido deveria originariamente preceder o fólio 30, que começa com a cantiga de FerGarEsg A 114, à qual faltam os primeiros versos. 25 Numa exaustiva análise da mise en texte do ciclo de PGarBu, Maria Ana Ramos («Mise en texte», cit.), evidenciou a heterogeneidade do material que serviu de base à cópia.

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do caderno V, prolongando-se pelos subsequentes VI e VII 26: o menor JNzCam deveria fazer parte do primeiro bloco, maioritariamente galego, ao qual teria sido agregado o castelhano PGarBu. Uma última observação: na parte final do acervo deste originalíssimo trovador, faltam quatro cantigas que estão em B, e a sua ausência em A não pode ser atribuída a um acidente material. Não estariam na fonte utilizada pelo compilador do cancioneiro ajudense?, ou fariam parte do conjunto e teriam sido deliberadamente excluídas? Note-se que dessas quatro cantigas só B 220 é uma cantiga de amor «ortodoxa». Quanto a B 221 e B 223, são sirventeses contra Deus em que, talvez ao abrigo da tradição do pranto à morte da amada, o poeta profere uma série de blasfémias e imprecações sacrílegas, proclama um pormenorizado anticredo, convida todos os ouvintes à impiedade. E B 222, com o seu enigmático refrão «porque se foi a Rainha franca» (ou «porque se foi a Rainh’ a França») 27, configura-se como uma paródia da cantiga de amor, se não uma originalíssima cantiga de escárnio. Apesar de não saber se este dado concreto tem aguma relação com a colocação do «menor» JNzCam, aqui fica recordado, para que outros possam dar um passo em frente. Anónimo 2 Pertenceria o Anónimo 2, que encontramos no fólio inicial do caderno VIII com uma única cantiga (A 185, Poys m’en tal coyta ten amor), ao bloco dos trovadores maioritariamente português que vai de FerGarEsg a JSrzCoe e que talvez também incluísse RodEaRed 28? Se tivesse pertencido ao mesmo grupo, poderíamos pensar que, tal como JNzCam, também este «menor» estabeleceria a ponte de passagem para outro bloco que me parece diferente quanto à proveniência dos autores: efectivamente, ao Anónimo 2 seguem-se, nos fls. 48r a 50vº, RoyPaRib e, nos fls. 51vº a 54r, JLpzUlh, ambos galegos. Mas, naturalmente, esta conjectura precisa de ser conjugada com outra, atinente à possibilidade de identificar este autor. Embora esse seja o tema de outro estudo, abordarei também eu essa questão, ao falar de dois «menores» anónimos — este de que estou a ocupar-me e o chamado Anónimo 5 — sobre os quais julgo poder trazer alguma achega merecedora de discussão.

26 Se, entre o caderno VI e o VII, se perdeu um caderno inteiro, como conjecturou C. Michaëlis, deste bloco faria também parte GonçEaVi. 27 C. Michaëlis, CA I, p. 806. 28 RodEaRed é o autor que em B se segue a JSrzCoe e as suas quatro cantigas de amor caberiam perfeitamente num fólio (aquele que provavelmente falta no fim do caderno VII): note-se que, embora B transmita seis textos (B 331 a 336) sob o nome de «Rodrigue Anes Redõdo», o n.º 332 é uma cantiga de amigo e o n.º 335 é um duplo, mais completo, de B 331.

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Para o Anónimo 2, Resende de Oliveira propôs já o nome de Estevan Travanca 29, baseando-se em três dados: 1. a sua colocação no sector amigo dos cancioneiros B e V (perto dos autores que rodeiam o Anónimo em A); 2. os dados biográficos (autor português do terceiro quartel do século XIII); 3. o estilo da cantiga de amor A 185 (uma vistosa coincidência lexical entre a apóstrofe usada nesse texto e um dos versos da cantiga de amigo de EstTrav, Amigas, quando se quitou 30). Ora, o raciocínio que levou Resende de Oliveira a escolher EstTrav para dar um nome ao An. 2, excluindo, por causa de dúvidas quanto à cronologia, o outro Estevan — Estevan Reimondo —, que, todavia, «ocupa na segunda secção precisamente o lugar pertencente ao Anónimo do CA na primeira», leva-me a supor que, em vez de EstTrav, o An. 2 possa ser EstReim. De facto, admitindo que este trovador seja o nobre Estevan Reimondo de Portocarreiro (como Resende de Oliveira propôs com sólidos fundamentos 31), a sua naturalidade, cronologia, condição social e parentesco com o trovador JPrzAv justificariam plenamente a sua localização nesta zona do Cancioneiro da Ajuda. E, se aos dados codicológicos e históricos associarmos elementos textuais, observaremos também coincidências, talvez mais significativas porque concernem à forma métrica, entre a cantiga de amor do Anónimo e a cantiga de amigo de EstReim, Amigo, se ben ajades 32: An. 2

amor Rep 42:16 a a B B B 8 8 8 8 8 4 × 2 + 3 ref. : v. 3 = v. 1

EstReim

amigo Rep 42:23 a a B B B 7’ 7’ 7’ 7’ 7’ 4 × 2 + 3 ref. : v. 3 = v. 1

Lembro que os refrães de três versos em que o último é idêntico ao primeiro não são comuns e que das cantigas deste tipo registadas na lista elaborada por Â. Correia na sua tese de mestrado, O refran nos cancioneiros galego-portugueses (escrita e tipologia) 33, só a cantiga de amor do An. 2 e a cantiga de amigo de EstReim têm a mesma fórmula estrófica e métrico-rimática.

29 A. Resende de Oliveira, Depois do espectáculo trovadoresco, pp. 70-72; idem., DLMGP, s. v., p. 250. 30 B 723/V 324 = Nunes, Amigo 158, pp. 143-145. Nesta cantiga, a protagonista, referindo-se ao amigo, declara nos vv. 13-14: «Chamava-m’el lume dos seus/olhos e seu ben e seu mal», usando a apóstrofe «meu lum’e meu ben» que o sujeito da cantiga de amor A 185 emprega, ao dirigir-se à senhor. Convém, no entanto, notar que se trata de uma apóstrofe usada por muitos outros trovadores (JSrzCoe, An. 3, PayGmzCha, PGarBurg, FerFdzCog, etc.). 31 A. Resende de Oliveira, Depois do espectáculo trovadoresco, pp. 334 e 335. 32 B 693/V 294 = Nunes, Amigo 125, pp. 114 e 115. 33 Â. Correia, O refran nos cancioneiros galego-portugueses (escrita e tipologia), anexo «Repertório: Lista por tipos», pp. 63-65.

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Anónimo 5 O «menor» anónimo de que vou agora ocupar-me encontra-se no caderno XII, um caderno problemático que C. Michaëlis descreveu como um quaterno constituído por um bifólio interno e três fólios soltos, aos quais faltam os homólogos, mas que, no esquema da edição fac-similada, aparece como um terno, uma vez que o fl. 74 (solto) foi considerado pertencente ao caderno anterior: [Michaëlis] 74 75 76 77

[…] […]

[edição fac-similada] 78 […]

75 76 77

[…] […] 78

As mais recentes observações acerca da situação codicológica nesta zona 34 levam a supor que o primitivo caderno XII terá sido, realmente, um terno, mas que o fl. 74 não pertenceria ao caderno XI, devendo, antes, ser o resíduo de um caderno perdido entre os actuais XI e XII 35. Como se sabe, quando D. Carolina viu o códice em 1877 e 1890, o actual fl. 74 encontrava-se no início do códice, servindo de «custode do volume», tendo sido, posteriormente, reintegrado a seguir ao fl. 73. Dada a continuidade dos textos copiados nos fls. 74, 75 e 76, a hipótese de que estes três fólios pertencessem ao mesmo caderno pareceu a C. Michaëlis a mais económica. Mas a contiguidade manter-se-ia, se o fl. 74 fosse o último de um caderno perdido que tivesse precedido o actual caderno XII. De qualquer modo, estamos perante um conjunto de autores anónimos, já que os textos escritos nos fls. 74, 75 e 76, no fl. 77 e no fl. 78 são exclusivos de A. O primeiro destes autores sem nome, para o qual Resende de Oliveira propôs a identificação com Vasco Perez Pardal 36, não é um «menor». São «menores» o Anónimo 4 e o Anónimo 5, cujos textos ocupam, respectivamente, os fls. 77 e 78. O An. 4, que, segundo Resende de Oliveira, poderá ser Afons’Eanes

34 Cf. Maria Ana Ramos, O cancioneiro ideal, p. 28, e Aires A. Nascimento, «O restauro do Cancioneiro da Ajuda». 35 Teremos então de supor a existência de uma vasta lacuna entre os actuais cadernos XI e XII, que o confronto com os cancioneiros B e V não revela. 36 A. Resende de Oliveira, Depois do espectáculo trovadoresco, pp. 60-63.

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do Coton 37, tem apenas uma cantiga, aparentemente incompleta, mas não banal, por virtude da sua estrutura dialogada e da acumulação de artifícios retóricos. Ao An. 5, para o qual Resende de Oliveira não propôs qualquer nome, cabem três textos, cuja originalidade não pode deixar de suscitar o interesse pela identificação do seu autor: uma tentação que me levou a deixar de lado as notas recolhidas para o estudo da colocação dos outros «menores» com nome, conservados em cadernos anteriores (PGmzBarr e ALpzBa, EstFai e JVqzTal, BonGen), ou posteriores a este (PEaSol e FerPad) e a fixar a atenção na sequência dos anónimos. É claro que qualquer conjectura sobre a colocação dos «menores» desta zona do Cancioneiro esbarra contra dois obstáculos de monta: a anonímia, por um lado, e as incertezas quanto à constituição originária do caderno XII, por outro. Qual seria, de facto, o conteúdo dos fólios desaparecidos, isto é, dos homólogos dos fls. 76 e 77, que D. Carolina diz terem-se conservado presos «pelas rebarbas das folhas cortadas» 38? Se não estavam em branco 39, talvez contivessem mais um ou mesmo dois autores de quem a tradição cancioneiresca não conservou a memória. E que nacionalidade teriam esses presuntos trovadores ausentes? A sequência dos autores na zona anterior ao caderno XII parece apontar para um bloco de poetas ligados à corte de Castela que, começando com MenRdzTen no caderno X, se prolongaria até BonGen no caderno XI . Quanto ao Anónimo 5, a probabilidade de estarmos perante um trovador pertencente à aristocracia portuguesa natural de Santarém ou aí residente é a primeira ideia que se colhe da leitura das três cantigas (A 278-280), cuja ligação semântica surge vistosamente marcada pela recorrência dos topónimos Santaren (nas três cantigas), Alfanxe e Seserigo (em A 278 e 279) 40. C. Michaëlis comentou estes textos com alguma demora e, ao sugerir uma lista de nomes possíveis para a inspiradora das três curiosas cantigas, entre os quais cita o de dona Eixamea Esteves, filha de Estevan Soares de Alfange, casada

37

A. Resende de Oliveira, ibid: «Na verdade, se a sequência dos autores da parte final deste cancioneiro [A] era igual à verificada na secção seguinte, dois desses anónimos são seguramente Vasco Peres Pardal e Afonso Anes do Coton.» (P. 62.) 38 Michaëlis, CA II, p. 149. 39 Maria Ana Ramos supõe que estes fólios tivessem sido deixados em branco, talvez à espera de mais textos que completassem o acervo dos poetas copiados (informação proveniente da leitura de uma sua descrição dos cadernos de A gentilmente facultada pela autora). 40 C. Michaëlis viu em Sentirigo também um nome geográfico e, associando-o a Seserigo, identificou os dois lugares com duas «graciosas aldeias suburbanas» localizadas junto à margem do Tejo (CA II, p. 447). Sobre os topónimos Seserigo e Alfanxe não faltam atestações (veja-se A. Beirante, Santarém Medieval, «Índice toponímico», s. v. «Alfange», p. 292, e «Seserigo», p. 303, com remissão para «Ribeira de Santarém», p. 300); mas Sentirigo deverá ser nome de santo, Santo Erico, como explica J. P. Machado, Cancioneiro da Biblioteca Nacional, vol. VIII, pp. 465 e 466.

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com o irmão de D. Johan Perez de Aboim, lançou a pergunta «Quem nos diz que o nosso Desconhecido V não será esse mesmo D. Estêvão de Aboim?» 41. Ninguém, que eu saiba, retomou a interrogação deixada pela sábia editora do CA. E, no entanto, Estevan Perez de Aboim é personagem bem conhecido e, pela circunstância de ter casado com uma dama de Alfanxe (topónimo citado no refrão de duas das cantigas do «Anónimo 5»), bem poderia ser o inventor da enigmática declaração «Al é Alfanx’ e al Seserigo». E, se fosse ele, deveríamos reconhecer que as suas três cantigas suplantam em originalidade as que a tradição conserva do mais famoso irmão, JPrzAv. Quanto à incerta proposta de J. P. Machado («Ayras Perez Vuytorom?» 42), provavelmente baseada na cronologia e na colocação do trovador no sector escarnho dos apógrafos italianos 43, nas referências a Santarém encontráveis em três das suas poesias e sobretudo no facto de AyPrzVuyt, de quem se conservam catorze notáveis cantigas escarninhas, não figurar entre os cantores do amor, parece ter passado despercebida. Também eu não vou retomar estas propostas, apesar de as considerar não desprovidas de interesse. A pista que vou seguir, decorrente, aliás, de informações fornecidas por C. Michaëlis a propósito de outro trovador do CA (MartSrz) 44, leva-me a um trobador cujo nome não vem nos Cancioneiros, mas sobre o qual existem várias referências documentais. Analisando os nomes dos trovadores citados nos Livros de Linhagens 45 e reflectindo sobre os dados que C. Michaëlis e Resende de Oliveira fornecem nas fichas biográficas dos trovadores, julgo possível propor aqui outro nome para o anónimo cantor da «mais fremosa de quantas son/en Sanctaren» 46, reconhecendo nele um membro da pequena nobreza, cujas raízes deverão estar em Santarém e cujo nome figura nos três Livros de Linhagens sempre com o título de trobador 47 e do mesmo modo no Livro dos Bens de D. Joan de Portel 48 e em outros documentos respeitantes à família do mordomo-mor de D. Afonso III, ao município de Santarém ou a actos que envolvem

41

C. Michaëlis, CA II, p. 448. J. P. Machado, Dicionário Onomástico, s. v. «Alfange», vol. III, p. 91. 43 Neste sector, AyPrzVuyt encontra-se precedido por ALpzBa e MenRdzTen e seguido por JGaGlh, FVelho, VaPrzPar. 44 C. Michaëlis, CA II, p. 334 e n. 4. 45 C. Michaëlis (CA II, pp. 250 e 251) apresenta uma lista dos nobres que aparecem no Livro de Linhagens do Conde D. Pedro com o título de trovador ou expressões qualificativas que indicam essa categoria. São eles: «João Soares de Paiva, Fernam Garcia Esgaravunha, Vasco Fernandez Praga [= VaFdzSend], João Soares [= JSrzSom], João Martins, João de Gaya e Estevam Annes de Valadares. 46 CA I, n.º 279, Pero que eu vejo aqui trobadores , vv. 7 e 8. 47 LV 1 AS 11, ed. Piel-Mattoso, p. 39; LD 17 E 8, ed. Piel-Mattoso, p. 188; LC 30 G 4, ed. Mattoso, vol. I, p. 335. 48 LBJP, doc. n.º CXI, p. 81. 42

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o próprio personagem 49. Sem abandonar o tom dubitativo da proposta de C. Michaëlis, pergunto eu agora: quem nos diz que o nosso «Anónimo 5» não será Johan Martinz trobador, filho do trovador Martim Soarez? Sobre este filho do trovador de Riba de Lima, sobre a sua carreira na política local de Santarém, de simples «vicinus Sanctarenensis» (1269) a aguazil da mesma cidade (1288 e 1294) até chegar à categoria de «cavaleiro» (1303), as copiosas informações de Pedro d’Azevedo foram já utilizadas, tanto por C. Michaëlis como por Resende de Oliveira, para traçar o perfil biográfico de MartSrz. Mas a hipótese de o filho, mencionado com o título de trobador, ter imitado o pai na arte de trovar tem sido afastada pelo motivo óbvio de que o seu nome não aparece nos Cancioneiros. E a explicação para o nome «Johan Martinz trobador» avançada por P. d’Azevedo — «recebeu talvez por herança paterna o título de trovador» 50 — pareceu a Carolina Michaëlis (e a todos os estudiosos que se referiram ao filho de MartSrz) «procedente», até porque, como frisa D. Carolina, «nos cadastros da nobreza empregam-se, com relação a fidalgos que realmente poetaram, fórmulas diversas e muito mais explícitas […] ou pelo menos o nome acompanhado do artigo definido o trobador[ 51]». Ora, vivendo Johan Martinz em Santarém, pertencendo ao círculo dos «clientes» de D. Johan Perez de Aboim, em cuja órbita gravitavam outros poetas 52, e sendo conhecido como «Johan Martinz trobador», não parece despropositado pensar que também ele tivesse sido poeta e que cantigas suas possam estar no Cancioneiro da Ajuda. E se ele tivesse composto apenas cantigas de amor 53 ou apenas estas tivessem sido trasladadas para uma colectânea trovadoresca — não tendo sido, por qualquer acidente, copiadas no antecedente do qual derivam B e V —, o seu nome não poderia aparecer nas outras secções dos Cancioneiros, mas o não aparecimento não invalida a possibilidade de ter sido ele o autor das três cantigas anónimas. Evidentemente, não sou eu tão presunçosa que julgue propor aqui uma identificação do «Anónimo 5» capaz de suscitar concordância por parte dos que me lerem. Pelo contrário, penso que a suposição de Pedro d’Azevedo (Johan Martinz aparece nos documentos com o nome de Joam Martinz trobador, não por ter sido, de facto, trovador, mas «talvez» por ser filho do poeta Martim Soarez) merecerá mais imediato acolhimento do que a minha hipótese

49

Cf. P. d’Azevedo, «O trovador Martim Soárez e seu filho João Martinz», docs. n.os II e III, VII, XI e XII, pp. 125-128, 130 e 31 e 134-36 e lista dos alvazis (p. 124); id., «O trovador Martim Soares e sua familia», docs. n.os I, II, III, IV, VII, IX, XII e XVI., pp. 246-252, 257-259, 262 e 263 e 269 e 270. 50 P. d’Azevedo, «O trovador Martim Soárez e seu filho João Martinz», p. 116. 51 Michaëlis, CA II, p. 334 e n. 4. 52 Além de D. Johan Soarez Coelho, seu primo direito, aparecem nomeados no LBJP: o Conde D. Gonçalo Garcia, Roy Martinz do Casal, Fernan Fernandez Cogominho, Johan Lobeyra, D. Afonso Lopez [de Bayan], Pero Mafaldo (será o poeta?), Men Rodriguez [de Briteyros]. 53 Não seria o único poeta dos Cancioneiros de quem a tradição apenas transmite cantigas de amor: também de JSrzSom, NuRdzCan e BonGen apenas temos cantigas de amor.

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(Johan Martinz terá sido trovador como o pai e poderá ser o Anónimo 5 do CA) e, por isso, terei de expor brevemente as ponderações que a questão me exigiu. É um facto que, nos documentos publicados por P. d’Azevedo, o nome do filho de Martin Soares aparece sempre sob a forma Joham Martinz trobador ou, em latim, Johannes Martini trobador (com variantes que registo na nota de rodapé 54) e do mesmo modo nos Livros de Linhagens medievais 55, onde é referido a propósito do casamento com Constança Lourenço, filha de Lourenço Soares Freire. Esta constância parece significar que «trobador» fizesse parte do nome do filho de Martim Soarez: Joan Martinz [patronímico] Trobador [apelido proveniente do «sobrenome» outrora dado ao pai]. Não se estranhará que Martim Soarez — que «trobou melhor ca todolus que trobaron» 56 e que, na sua terra [ali, isto é, em Riba de Lima], «foi julgado antr’ os outros trobadores» — fosse designado Martin Suariz trobador em vários documentos lavrados em Santarém 57. Mas o epíteto trobador (denotativo de actividade literária) teria passado a nome de família? Note-se que a forma por que o nome de Johan Martinz aparece na carta de venda de 1269 (doc. I de P. d’Azevedo, 1898), Johannes Martinj uicinus Sanctarenensis trobador, já levou C. Michaëlis a observar que aqui trobador «pode significar alcunha, mas também exercicio de profissão» 58. De facto, esta fórmula de identificação sugere duas considerações: a) por um lado, se trobador fizesse parte do nome, a indicação da naturalidade talvez devesse vir no fim; b) por outro lado, parece que, com o termo trobador, se quis explicitar a actividade de Johan Martinz, para o distinguir de outros personagens com o mesmo nome e patronímico, contemporâneos e também eles residentes em Santarém 59. Uma última observação: se, como afirma D. Carolina, para os que realmente foram trovadores, se costumava usar o título trobador acompanhado

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Refiro-me aos documentos publicados em «O trovador Martim Soárez e seu filho» sob os n. I (Johannes Martinj uicinus Sanctarenensis trobador) e XI (Johã Martjnz trobador caualeyro), e aos n.os I (Johannes Martini dictus Trobador) e IV (Johannes Trobador) publicados em «O trovador Martim Soares e sua familia». 55 Cf. n. 47. 56 Cito da ed. crít. de V. Bertolucci Pizzorusso Le Poesie di Martin Soares, p. 51. 57 Cf. Pedro A. d’Azevedo, «O trovador Martim Soárez e seu filho João Martinz», docs. VIII («dona Maria mulier quondam Martini Suerij trobador») e IX («Dona Maria em outro tempo molher de Martim Suariz trobador»); id. «O trovador Martim Soares e sua familia», docs. X («dona Maria quondam uxor Martini Suerij dicti trobador militis»), XI («dona Maria Soariz molher en outro tenpo de Martin Soariz trobador») e XXII («et omnibus aliis que fuerunt Martini Suerii trobatoris»). 58 CA II, p. 334, n. 4. 59 Assim entendeu Â. Beirante, Santarém Medieval, p. 196, e assim pensava quem escreveu no verso do doc. n.º 45 dos pergaminhos de Almoster, a seguinte nota, referida a «Johã Martinz trobador»: «Trobador parece ser Trovador e assim chamavão antigamente aos que fazião versos.» (Cf. P. d’Azevedo, «O trovador Martim Soares e sua familia», doc. XVI, p. 270.) os

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do artigo definido, Johan Martinz é também assim designado no Livro do Deão (17 E 8) — «Joan Martins, o trobador» 60. Insisto em sublinhar que a minha tentativa de resolver o problema da anonímia das três interessantíssimas cantigas dedicadas a uma fremosa de Santarém consistiu apenas em testar a justeza da suposição de P. d’Azevedo, exprimir uma incerta reserva e avançar com uma atribuição de autoria igualmente vacilante. A precariedade da minha conjectura sairá, aliás, reforçada, ao admitir uma conjectura alternativa, à qual, por motivos intuíveis, vou reservar menor espaço. Disse atrás que Resende de Oliveira não propôs qualquer nome para o «Anónimo 5». É mister agora acrescentar que também ele sugeriu dever tratar-se de um «magnate ou simples cavaleiro» que, entre o segundo e o último quartéis do século XIII, terá vivido em Santarém, no ambiente da corte régia 61. Johan Martinz tem esse perfil: o facto de ter vivido até 1303 não impede que tenha composto cantigas de amor recolhidas em A 62. Mas não é ele o único sanctaranensis (por nascimento ou residência) a ser citado com o epíteto trobador: num documento, igualmente publicado por P. d’Azevedo 63, encontro o nome de Gonçalo Martinz dicto trobador de Sanctaren, o qual é referido a propósito da legitimação de «Johane Anes filho de Johan Velho de Pedregaes e de Maria Perez filha de Gonçalo Martinz dicto trobador» 64. A carta é datada de 1310, mas sendo Gonçalo Martins avô do legitimado, a sua cronologia coaduna-se perfeitamente com a da recolha dos textos transmitidos pelo Cancioneiro da Ajuda e, apesar de a sua genealogia não ser ainda, que eu saiba, conhecida, não poderá dizer-se que herdou o apelido do pai. Não será necessário dizer que também a C. Michaëlis não escapou o nome deste «trovador galego-português». Ela não deixou de registar o seu nome no Índice 65. Mas, ao comentar o casamento do poeta Johan Velho de Pedrogães com «a filha de um collega, oriundo de Santarem, ou ahi residente», acabou por afirmar, como já fizera para Johan Martinz, que as obras dele não se conservaram. Ora, ao contrário de Dona Carolina e de Resende de Oliveira, cujas conjecturas para identificação dos anónimos partem do pressuposto de que os seus nomes devem corresponder aos de autores com outros textos nos apógrafos italianos 66, a minha tentativa para identificar o Anónimo 5 traz à colação dois «trobadores» que

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Ed. Piel-Mattoso, p. 188. A. Resende de Oliveira, Depois do espectáculo trovadoresco, p. 323. 62 O autor mais tardio de A é PayGmzCha, falecido em 1295 (A. Resende de Oliveira, Depois do espectáculo trovadoresco, pp. 259-262). 63 P. d’Azevedo, «O trovador Martim Soárez e seu filho João Martins», doc. n.º XII, p. 136. 64 Note-se que também Martim Soarez é citado, uma vez, como «Martini Suerij dicti trobador militi». 65 Cf. CA II, p. 969, s. v. «Gonçalo Martinz», com remissão para a p. 436. 66 A única hipótese consistente de C. Michaëlis refere-se ao Desconhecido I, para o qual discute a possibilidade de ser RoyGmzBre. 61

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não têm os seus nomes nos Cancioneiros — «Joan Martinz trobador» e «Gonçalo Martinz dicto trobador» —, mas que a tradição recorda com o honroso título. E, se um destes for o autor das três cantigas que evocam Santarém e os seus arrabaldes, sai, naturalmente, reforçada a teoria familiar, já amplamente ilustrada com os casos de D. Garcia Mendiz d’Eixo, pai de Fernan Garcia Esgaravunha e do conde D. Gonçalo Garcia; Roy Gomez de Briteiros, pai de Men Rodriguez de Briteiros e avô de Johan Mendiz de Briteiros; Rodrigu’Eanes Redondo, pai de Fernan Rodriguez Redondo; D. Denis, pai de Afonso Sanches e do conde D. Pedro; Johan Lobeyra, irmão de Martin Perez Alvim; Johan Soarez Coelho, primo de D. Johan de Aboin, etc. 67 : Johan Martinz é filho do trovador Martim Soarez e Gonçalo Martinz é sogro do trovador Johan Velho de Pedrogães. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AZEVEDO, Pedro A. de, «O trovador Martim Soárez e seu filho João Martinz», Revista Lusitana, vol. V, 1898, pp. 114-136. — «O trovador Martim Soares e sua familia (documentos)», Revista Lusitana, vol. XXI, 1918, pp. 246-279. BEIRANTE, M. Ângela V. da Rocha, Santarém Medieval, Lisboa: Universidade Nova de Lisboa/Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 1980. BERTOLUCCI PIZZORUSSO, Valeria, Le Poesie di Martin Soares, Bologna: Libreria Antiquaria Palmaverde,1963. Cancioneiro da Ajuda. Edição fac-similada do códice existente na Biblioteca da Ajuda. Apresentação. Estudos e Índices, Lisboa: Edições Tavola Redonda-Instituto Português do Património Arquitectónico e Arqueológico-Biblioteca da Ajuda, 1994. CORREIA, Ângela, O refran nos cancioneiros galego-portugueses (escrita e tipologia), dissertação de mestrado em Literatura Portuguesa, Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1992. Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa. Org. e coord. de Giulia Lanciani e Giuseppe Tavani, Lisboa: Caminho, 1993 (= DLMGP). Livro dos Bens de D. João de Portel (Cartulario do seculo XIII), publ. por Pedro A. de Azevedo precedido de uma notícia histórica por Anselmo Braancamp Freire, ed. fac-sím., Lisboa: Edições Colibri/C. M. Portel, 2003 (1.ª ed. 1910) (= LBJP). Livro de Linhagens do Conde D. Pedro, ed. por José Mattoso, Portugaliae Monumenta Historica, nova série, vol. II, t. 1 e 2, Lisboa: Academia das Ciências de Lisboa, 1980 (= LC).

67 As investigações de J. A. Souto Cabo («Achegas documentais sobre Nun’Eanes Cerzeo») vieram chamar a atenção para a possibilidade de o trovador «Johan Garcia sobrinho de Nun’Eanes» ser parente do trovador Nun’Eanes Cerzeo, como consta da rubrica atributiva (cf. pp. 157-158).

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Livro de Linhagens do Deão, ed. por Joseph Piel e José Mattoso, Portugaliae Monumenta Historica, nova série, vol. I, Livros Velhos de Linhagens, Lisboa: Academia das Ciências de Lisboa, 1980 (= LD). Livro Velho de Linhagens, ed. por Joseph Piel e José Mattoso, Portugaliae Monumenta Historica, nova série, vol. I, Livros Velhos de Linhagens, Lisboa: Academia das Ciências de Lisboa, 1980 (= LV). MACHADO, José Pedro, e MACHADO, Elza Paxeco (ed.), Cancioneiro da Biblioteca Nacional (Antigo Colocci-Brancuti), Lisboa: Edição da «Revista de Portugal», 1949-1964, 8 vols. — Dicionário onomástico etimológico da língua portuguesa, 3 vols., Lisboa: Editorial Confluência, [1987]. MICHAËLIS DE VASCONCELLOS, Carolina, Cancioneiro da Ajuda. Edição crítica e commentada, 2 vols., Halle a. S.: Max Niemeyer, 1904. MINERVINI, Vincenzo, Le poesie di Ayras Carpancho, Napoli, 1974 (sep. de A.I.O.N., Sezione Romanza, XVI, 1, pp. 21-113). NASCIMENTO, Aires Augusto, «O restauro do Cancioneiro da Ajuda: entre conservação de salvaguarda e estima pelos maiores», Colóquio Cancioneiro da Ajuda (1904-2004), Lisboa, 11 a 13 de Novembro de 2004 [em publ. neste volume]. NUNES, José Joaquim, Cantigas de amigo dos trovadores galego-portugueses, 2.ª ed., 3 vols., Lisboa: Centro do Livro Brasileiro, 1973 (1.ª ed. Coimbra, 1926-1928). OLIVEIRA, A. Resende de, «Do Cancioneiro da Ajuda ao ‘Livro das Cantigas’ do Conde D. Pedro. Análise do acrescento à secção das cantigas de amigo de ω», Revista de História das Ideias, 10, 1988, pp. 691-751. — Depois do espectáculo trovadoresco. A estrutura dos cancioneiros peninsulares e as recolhas dos séculos XIII e XIV, Lisboa: Edições Colibri, 1994. RAMOS, Maria Ana, O retorno da Guarvaya ao Paay, sep. de Cultura Neolatina, anno XLVI, 1986, fasc. 1-4 (Miscellanea di studi in onore di Aurelio Roncaglia), Modena: Mucchi Editore, 1989, pp. 161-175. — «Mise en texte nos manuscritos da lírica galego-portuguesa», Actas do X Congrès International de l’Associaciò Hispánica de Literatura Medieval, Universidad d’Alacant del 16 al 20 de setembre de 2003, Institut Interuniversitari de Filologia Valenciana, vol. III, Alacant, Universidad d’Alacant, 2005, pp. 1335-1353. — «O cancioneiro ideal de D. Carolina», in O Cancioneiro da Ajuda cen anos despois, Santiago de Compostela: Xunta de Galicia, 2004, pp. 13-40. SOUTO Cabo, José António, «Achegas documentais sobre Nun’Eanes Cerzeo, trovador galego da primeira metade do século XIII», Romanica Vulgaria, Quaderni 13-14: Studi Provenzali e Galeghi 89/94, 1994, pp. 147-176. — «Airas Fernandes Carpancho e Nuno Eanes de Cêrcio», in O Cancioneiro da Ajuda cen anos despois, Santiago de Compostela: Xunta de Galicia, 2004, pp. 477-478. TAVANI, Giuseppe, Repertorio metrico della lirica galego-portoghese, Roma: Edizioni dell’Ateneo, 1967. 201

POESIA ARISTOCRATICA. LINEE DI DEFINIZIONE

VALERIA BERTOLUCCI PIZZORUSSO Università di Pisa

Con questo bel titolo Teresa Amado e Maria Ana Ramos mi hanno affidato un compito tanto delicato quanto imbarazzante, chiedendomi in sostanza di tornare su un tema, la cantiga d’amor, che è stato ripetutamente ed egregiamente trattato, in primis da colei che della lirica galego-portoghese di più alto livello — non solo stilistico — ci ha aperto lo scrigno, con la grande edizione del Cancioneiro da Ajuda, opera che quest’anno ha compiuto cento anni senza aver nulla perduto della sua validità di strumento principe per lo studio di questa poesia. Ciò nonostante, questa poesia d’amore, nella sua realizzazione in ambito iberico, resta ancora sotto molti aspetti un enigma. Non sarò certamente io a risolverlo. Ho inteso quindi la proposta come un invito a riflettere, come ex novo ma sulla scorta di una bibliografia ormai esauriente 1, sui caratteri

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Conservando al mio intervento l’originario carattere orale dinanzi ad un pubblico di specialisti, mi limito a indicare nella bibliografia finale i contributi sull’argomento a cui devo tante conoscenze e suggestioni. Le rare citazioni di testi rinviano per comodità all’edizione completa del corpus siglata LPGP, con esauriente bibliografia specifica.

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specifici e differenziali di questa lirica all’interno del grande coro che nei diversi volgari romanzi si è innalzato, accogliendo l’ «invenzione» dei trovatori provenzali, su questa razon per eccellenza. Si parla giustamente di poesia «aristocratica»: in che senso? In più di un senso: con riguardo al rango sociale degli autori, originario o acquisito proprio in ragione del trobar d’amor, che è quello che concede a chi lo coltiva una patente di prestigio non solo culturale; con riguardo ai suoi contenuti, che esprimono l’adesione ad una ideologia d’élite, elaborata già delle corti transpirenaiche provenzali, con il paradossale capovolgimento del rapporto gerarchico maschile-femminile, sempre, s’intende, ad alto livello sociale, per cui la dama è la figura in posizione preminente, è midonz, e poi mha senhor (tralascio qui di soffermarmi sulla implicita grande metafora del vassallaggio feudale, il referente a cui fa capo questo rapporto). Ma poesia aristocratica anche in senso qualitativo, in quanto il discorso amoroso esige un saber raffinato, un’arte del verso rispettosa di regole formali (isostrofismo, isosillabismo, rima come principi basilari), tale da configurare una «gestione» alta, nobile, dei sentimenti. Non dunque semplicemente poesia di corte — perché questa comprende anche cantigas di argomento non amoroso, ma di critica e di vituperio personale, che si pongono ad un livello stilisticamente basso, e tuttavia non disprezzate dagli stessi monarchi (Alfonso X, Don Denis) — bensì punta di diamante, sempre seconda la gerarchia degli stili medievale, della poesia di corte. Sono infatti i registri celebrativi, tendenzialmente astratti e stereotipati, ad essere attivati nella cantiga d’amor, in contrapposizione ai registri «popolareggianti». E poesia aristocratica infine dal punto di vista della sua conservazione materiale, in raccolte che prevedono un previo scrutinio dei testi, in seguito al quale sono accolti solo quelli che rispondono a determinati criteri selettivi di cui siamo riusciti a conoscere soltanto alcuni, ma che non possono non richiamarsi anche alla qualità di eccellenza degli ammessi. Quest’ultimo aspetto, quello dell’archiviazione in grandi raccolte, è rappresentato in modo vistoso — con perfetta coerenza tra la qualità dei materiali selezionati e la pretenziosità della loro presentazione — dal Cancioneiro da Ajuda, almeno come progetto, che per altro, come sappiamo resta incompiuto: lo dimostrano il grande formato (direi abnorme anche in confronto con i codici alfonsini delle Cantigas de Santa Maria), la fine pergamena, la pregevole scrittura libraria, la (solo spazialmente prevista) notazione musicale, estesa spesso eccezionalmente anche alle findas, le miniature che non si limitano all’ornamentazione delle iniziali maiuscole, ma che si espandono in colorite vignette, le quali esaltano, è da notare, non tanto i testi (il compositore, il poeta) quanto l’esecuzione di essi, i giullari e le soldadeiras, cioè lo spettacolo di corte in cui anche la cantiga d’amor viene eseguita. Un oggetto di lusso, questo codice, contenente un’antologia che, benché materialmente parziale e incompiuta, è già il risultato di una selezione dei materiali, e che in questo caso più che mai è sottoposta al filtraggio di una committenza senza dubbio molto importante anche economicamente, nobile o addirittura reale, la quale intende costituire le proprie memorie archiviando materiali culturali di prestigio e a prestigio di un ambiente di ricezione che è lo stesso ne ha

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promosso il sorgere e lo sviluppo. Possiamo ritenere quindi il Cancioneiro da Ajuda, databile alla fine del XIII secolo o ai primi anni del XIV, un campione massimamente rappresentativo della poesia aristocratica profana in volgare iberico (anche se in esso si sono insinuati, nell’ultima parte, testi ibridi, non propriamente rispondenti al canone della cantiga d’amor) per il periodo della sua formazione e fioritura. Ma una volta aperto il prezioso scrigno, come dicevo, ed anche dopo che sono stati completati in gran parte, con l’ausilio delle copie colocciane, i testi frammentari e conosciuti i nomi dei poeti, risultati in molti casi autori di cantigas anche negli altri due generi lirici — de amigo e de maldizer e d’escarnho — il suo contenuto, così esclusivamente amoroso, resta, a mio parere, il più resistente al nostro approccio. Ne conosciamo ormai minutamente i temi e i motivi, la morfologia metrica, fino ai calcoli in percentuale dei sintagmi e delle parole-chiave preferite e tanto ripetute. Eppure… Forse perché ci saremmo attesi di trovare — trattandosi di lirica d’amore composta da trobadores, autodefinizione di prestigio da questi poeti iberici costantemente rivendicata, così come trobar designa il comporre in versi — un tipo di lirica in qualche modo più vicina a quella dei modelli provenzali. In essa troviamo sì ripresa l’impostazione del discorso lirico — offerta di lode/amore ad una distante e fredda senhor — così come altri «ingredienti» di derivazione trobadorica, ma avvertiamo subito che il risultato complessivo, cioè l’artefatto in lingua galego-portoghese è diverso, è nuovo sia nello spirito che nella struttura. La differenza salta agli occhi se leggiamo una dopo l’altra una canzone d’amore provenzale e un cantiga d’amor, è un’altra musica, come si suol dire…, alla comprensione della quale forse non giova neppure, almeno in un primo tempo, un raffronto troppo serrato. Rispetto alla canso, dopo una prima sensazione di «svuotamento», si ha quella, immediata, che i tratti recepiti ed assunti nella cantiga siano stati reimpiegati e reinterpretati in un contesto discorsivo diverso, che obbedisce a ben più rigide geometrie. Come penetrare in questa differenza, che è anche, nonostante tanti fattori in comune, una rivendicazione di autonomia? Come Giuseppe Tavani ha con giusta insistenza sottolineato in molti suoi lavori, si è realizzata in ambito iberico un’operazione di traduzione che non riguarda piattamente soltanto la lingua (che avrebbe potuto essere adottata così come è avvenuto nell’Italia Settentrionale — non in Sicilia — dove molti sono stati i trovatori italiani che hanno poetato in lingua provenzale), ma il modello stesso del testo nella sua complessità. Così non è stato e si è costruito invece un testo nuovo, in un volgare illustre a base galega, salvando soltanto alcuni provenzalismi caratterizzanti come prez, entendedor, mesura (ma significativamente cancellando joi, eliminando joven e non si parla di fin’amors!). Nella fenomenologia dell’imitazione si insinua spesso una sorta di presa di distanza: ne sono la spia anche i frequenti atteggiamenti ironici nei poeti più vivaci, ad esempio sul motivo del celar, su quello del morrer d’amor, sullo statuto sociale della senhor, etc.). L’animata polemica sull’arte del comporre motz e son su tema degno (razon), tanto viva nei trovatori provenzali più antichi, viene per lo più ridotta, pur con qualche eccezione (ancora una volta sono soprattutto i

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due re Alfonso X in particolare e poi Don Denis), agli aspetti puramente tecnici, il cui presunto e mancato rispetto viene strumentalizzato nella polemica i giullari (ricordo i versi desiguados condannati da Martin Soarez: LPGP, 97, 3, vol. II, p. 642), il trobar desigual e non bene rimato rimproverato da Joham Sorez Coelho al giullare-compositore Lourenço: LPGP 79, 47, vol. II, p. 546), noto idolo polemico di molti trovatori anche come esecutore. Il modello provenzale, benché raramente esplicitato, è comunque sempre tenuto presente, nella libertà di attivarlo con allusioni e richiami intertestuali. L’accoglimento e il successo della «maniera» lirica ultrepirenaica, nel trapianto su altro terreno culturale, dove ha trovato altre istituzioni sociali e politiche — fortemente segnato dalla presenza di due corti reali in Castiglia e in Portogallo — non si rivela comunque schiacciante nei confronti di tradizioni già esistenti, lasciando emergere tratti «autoctoni» di sostrato, che vengono spesso a marcare originalmente anche il genere più provenzaleggiante. Il refram, ad esempio, dominante nella cantiga d’amigo (a proposito della quale, non si può non sottolineare il grande riconoscimento — eccezionale nella codificazione della lirica medievale — che le viene riservato dal suo accoglimento, addirittura in sezione ad esso riservata, nell’archivio lirico iberico), è frequentissimo anche nel registro alto della cantiga d’amor (è presente nella quasi metà dei testi), ed è precocemente attestato (ricordo Tu que ora vees de Montemayor di Gil Sanchez figlio di Sancho I e della Ribeirinha, scritta probabilmente nel 1223: LPGP, 57, 1, vol. I, p. 357), e praticato da trovatori antichi e di grande livello come Martin Soarez e Paay Soares de Taveiros. Possiamo anche vedere nel refram l’esponente più vistoso di quel gusto della repetitio, che connota tutta la produzione amorosa galego-portoghese, e che non si può spiegare soltanto come un’applicazione del relativo precetto nei soliti manuali di retorica. Ed altrettanto si potrebbe dire del parallelismo, l’altro artificio prediletto da questi trobadores. Credo che tali recuperi a livello alto siano stati favoriti dalle melodie che tradizionalmente li supportavano: ricordiamoci anche nell’analisi testuale che questa era una poesia cantata. Ritengo che l’analogon proponibile in quanto più rispondente al metodo compositivo della cantiga d’amor, che è la ripetizione in variazione di pochi motivi emblematici, si trovi nella musica, in cui un motivo, proprio per diventare tale, ha bisogno della ripetizione, ma che, salva la sua riconoscibilità, ammette e apprezza la variazione. Al riguardo il genere satirico del maldizer e escarnho ci informa che i trovatori sono molto sensibili all’esecuzione delle proprie melodie: in nessun altro corpus lirico medievale troviamo tante composizioni che ridicolizzano i suonatori di citola (citolon); e non per scherzare, sembra, due trovatori di grande supponenza come Martin Soares e Paay Soares de Taveiros ostentano la loro professionalità, il primo criticando aspramente un cavaliere, compositore di rumorose melodie di successo presso le classi inferiori, esigendo bon som, gradevole alle orecchie di trobadores e molheres; oltre che cantares fremosos e rimadus (nel testo già ricordato: LPGP, II, 97,3, p. 641), ed insieme, in una tenzone, rifiutano di promuovere un aspirante giullare, bollandolo di jograr sison; in un vituperio particolarmente violento (LPGP, 97, 2, vol. II, p. 640-641; ricordo che è nella rubrica di questa tenzone che Martin Soarez è giudicato a sua

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volta, ma come miglior trovatore fra tutti). Alcuni figure di giullari sembrano evocate solo per essere insultate come pessimi esecutori: così, sempre da Martin Soarez, il giullare Lopo. Ricordo rapidamente qui i principali tratti di differenziazione, in senso riduttivo, da tempo rilevati nel testo lirico amoroso iberico. Il volume testuale della cantiga è ridotto, a cominciare dal numero delle strofe, inferiore a quello della canso; sono eliminati elementi canonici come il senhal, la funzione di envoi nella finda; trascurata del tutto la ricerca di rime difficili, caras. Le rime spesso chiudono ermeticamente la strofa, per cui il discorso, quando non ricomincia in ripetizione appena variata, può scorrere da una strofa all’altra attraverso l’enjambement, fenomeno di cui le cosiddette cantigas ateúdas rappresentano la punta più vistosa. Tutto questo è già stato descritto egregiamente. La messa in scena prevede due posizioni fisse ed opposte, le icone rispettivamente del poeta e della senhor, che impersonano l’una la richiesta esplicita, l’altra il tacito rifiuto: da parte del primo un disperato tentativo di ridurre le distanze con minime mosse della scrittura sui micromotivi assunti, ripresi ed eseguiti insistentemente, in un gioco ripetitivo che concede un ristrettissimo margine di variazione. Un gioco da virtuosi. È l’autoanalisi della voce che parla/canta, nell’isolamento di un individuo che relaziona soltanto a se stesso la forza del sentimento (si pensi invece alla insistita discussione in termini «oggettivi» sulla natura di Amore che troviamo nei Siciliani o in certi sonetti danteschi). Di fronte ad un’estetica che predilige la ripresa dello stesso motivo (come sulle stesse note, frequentissima l’anafora incipitaria in strofe successive) nella progressiva costruzione di un oggetto testuale, penso una volta di più a principi compositivi propri della musica, i quali ben si combinano con quelli numerici, secondo note concezioni antiche. Perché il testo presenta, come tutti voi sapete, una morfologia geometrizzante, sottolineata da parallelismi concettuali e sintattici, all’interno della quale l’operatore cioè il poeta muove le sue pedine come su una scacchiera, giocando sulle posizione dei pezzi, disegnando figure che fissano (in particolare il dobre), enfatizzandoli, gli effetti di ripetizione, di rovesciamento, di specularità. Sono attivate operazioni tattiche sull’asse sintagmatico della scrittura, mentre improduttiva resta l’analogia, la metafora infatti è ben poco presente. L’innamoramento resta l’ostentato motivo del canto, ma non porta qui a quel joi spirituale, lievitante prodotto dalla fin’amor, ma al suo rovesciamento, la coita, la pena d’amore, che può produrre solo follia o morte: il canto diventa lamento d’amore (rarissime e tardive le eccezioni). La sua motivazione è la stessa, ma i suoi effetti sono opposti, l’uno euforico, l’altro disforico. Perché questo capovolgimento? È questa una interpretazione tragica, implicita originariamente nello stile più alto? Improbabile che si tratti, dopo tanta elaborazione intellettuale da parte dei poeti provenzali, di un’allineamento alle diffuse teorie mediche medievali sull’amore come patologia grave, anche mortale. Non sarà soltanto un altro gioco antitetico? La «morte d’amore» è stata maliziosamente ironizzata alle spese di Roy Queimado da alcuni suoi colleghi, che lo accusano di ostentarla nei suoi canti por se meter por mays trobador. Ma non è sempre così: una cantiga d’amor di Fernan Gonçalvez de Seabra (De mort’é o mal que me ven: LPGP 44, 1bis, vol. I, pp. 300 e 301)

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dimostra che si può trattare questo tema con la massima gravità: il rintocco del sintagma De morte in anafora e in dobre ad inizio di ogni strofa e della finda, ne è un esempio perfetto. Mal d’amor, sofferenza che non porta ad un ben — antitesi-chiave della situazione amorosa —, che colpisce nel momento stesso della prima visione della dama («la vidi» — vi parola-rima in Joan Garcia de Guilhade: LPGP 70, 42, vol. I, p. 459, e soprattutto in Pero Garcia Burgales: ad es. LPGP 125, 2, vol. II, p. 810-11; alta frequenza in generale del verbo veer e delle sue voci), ed è stata la «luce» (si pensi al frequente stilema lume dos olhos meos). Da quel momento inizia la coita, perché quell’occhiata non è benevolmente ricambiata e non vi potrà essere una seconda occasione. L’innamorato, che ne diventerà sandeu, finisce per incolparne gli agenti della vista, i suoi occhi, e poi il suo cuore. Tra parentesi, questo personaggio maschile che in un freddo ambiente astratto, senza alcuna cornice naturale né d’interno né tanto meno di esterno, amanz desamatz, non sarà poi quello stesso che assumendo una voce femminile si rappresenta come finalmente desiderato da una fanciulla che piange la sua lontananza in un caldo ambiente naturale ? E’ risaputo che gli elementi della natura, che aprivano il canto d’amore dei trovatori provenzali, sono stati tutti rimossi (ce lo fa notare Don Denis…). Nessuna cantiga d’amigo risulta di autore femminile. Saremmo tentati, se non fosse una spiegazione troppo semplicistica, di credere ad una nuova esibizione in opposizione speculare dell’ io lirico, tanto narcisistico, del trovatore galego-portoghese. Nei canzonieri collettivi iberici, la «messa a libro», in sezione riservata, del genere d’amigo — fatto unico nella trasmissione della lirica medievale — appare anche come un riconoscimento di «degnità», altrove impensabile, a questa diversa poesia d’amore, insieme «nuova» ed antica. Un dato che a me sembra della massima importanza riguarda il fatto che la lingua poetica galego-portoghese si è formata, come volgare illustre, soprattutto e quando i trobadores si sono esercitati sulla tematica «alta» della cantiga d’amor. Del tutto giustificata e coerente appare in essa la prevalenza di un lessico astratto, il più adatto ad una materia universale come l’amore, come dice Dante (De Vulgari Eloquentia, I, VII, 9). Altrettanto si può dire a proposito dei sintagmi e stilemi figés che vi ricorrono con particolare insistenza. Ricordo che una lingua poetica medievale non si costruisce su espressioni marcate in senso municipale e perciò effimere, ma su espressioni depurate che ne diventano i non disprezzati stereotipi. Esse formano la robusta tela di fondo dell’artefatto testuale, in grado di sostenere le particolari, artistiche movenze e figure che il singolo poeta saprà iscrivervi. Nel genere più aristocratico la stilizzazione contribuisce a disegnare quella sorta di blason testuale, di cui la classe nobiliare dell’epoca si è tanto compiaciuta di fregiarsi. Difficile se non impossibile precisare il fenomeno sia iniziato: la quinta strofa (e due versi nella tornada), su motivi della lirica d’amore galego-portoghese, del discordo (1200 circa) del trovatore Raimbaut de Vaqueiras, continua a porre il problema e soprattutto a far riflettere sulla insufficienza delle nostre conoscenze, che si limitano a quanto è stato messo per iscritto, adeguatamente e talvolta fortunosamente giunto fino a noi. Possiamo soltanto affermare che alla metà del Duecento la lingua poetica galego-portoghese è

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perfettamente formata tanto da essere imitabile. Ce ne fornisce la prova per dir così «ufficiale» un trovatore italiano che non poetava nella sua lingua materna (non l’ha utilizzata neppure nel suo sirventese trilingue — provenzale, galego-portoghese e francese) ma in provenzale, il genovese Bonifacio Calvo, che compone intorno al 1260 due cantigas d’amor, accolte — è da rilevare — già nel Cancioneiro da Ajuda e ritenute perciò perfettamente «conformi» alle norme del genere (Bonifaz de Genua: LPGP 23, 1 e 2, vol. I, pp. 172-173), prova ulteriore della sua forte (e frustrata) volontà di inserimento nella corte alfonsina. I due testi non sono particolarmente interessanti in sé, ma sì in quanto forniscono una testimonianza in certo modo esterna sui motivi topici e sui tratti formali caratterizzanti la poesia d’amore galego-portoghese, sulla «maniera» in senso retorico stilistico che doveva essere seguita per confezionare pièces di tale genere. Vediamo anzitutto che Bonifacio, come per darne una rappresentazione adeguata, ha ritenuto opportuno comporne due, una de meestria (4 strofe unissonans con retrogradatio delle rime: 7 decasyllabes tutti maschili), e una de refram (3 strofe di 4 decasyllabes con refram di 2 vv.). Nella prima il concetto-chiave è una coita d’amor che lo porterà alla morte (l’espressione è ripetuta in ogni strofa), e perciò l’io lirico vive nel pavor; il discorso è condotto tortuosamente con pseudorazionalizzazioni paradossali. Nella seconda la coita d’amor gli fa perdere il senno, e quindi è smarrito, non sa più se è morto o vivo: Ora non moyro, nen vyvo, nen sey /como mi vay […], vv.1-2. Sono da notare almeno due artifici retorici : l’anafora su Non sey ad inizio delle tre strofe e la collocazione in dobre del sintagma coita d’amor al v.4 di ogni strofa; inoltre l’apostrofe meus amigos, v.14, che tanto spesso rappresenta nella lirica galego-portoghese un fittizio e cordiale destinatario interno, che non trova corrispondenze nella poesia dei trovatori provenzali (men che meno negli episodici companho di due poesie, non d’amore, di Guglielmo IX). Composte da un poeta di altra etnia, il genovese Bonifacio Calvo, le due cantigas d’amor, pur nella loro mediocrità, costituiscono un riconoscimento del genere amoroso galego-portoghese nel quadro medievale della lirica di più alto livello. RIFERIMENTI BIBLIOGRAFICI BELTRAN, Vicenç, A cantiga de amor, Vigo, Edicións Xerais de Galicia, 1995. BERTOLUCCI, Valeria, «Retorica della poesia alfonsina: le figure dell’analogia» [Actas del I Congreso de la Asociación Hispánica de Literatura Medieval, Barcelona,1988, pp. 11-30], Morfologie del testo medievale, Il Mulino, Bologna, 1989, pp. 169-188. D’HEUR, Jean-Marie, Recherches internes sur la lyrique amoureuse des troubadours galiciens-portugais (XIIe-XIVe siècles), Contribution à l’étude du ‘Corpus des troubadours’ [Liège, Université de Liège], [testo policopiato], 1975. FERRARI, Anna, «Linguaggi lirici in contatto: trobadors e trobadores, Boletim de Filologia (Homenagem a M. Rodrigues Lapa, vol. II), XXIX, 1984, pp. 35-58.

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— «Cantiga de amor», Biblos. Enciclopédia VERBO das Literaturas de Língua Portuguesa, Lisboa/São Paulo, Editorial Verbo, vol. I, pp. 966-968. GONÇALVES, Elsa, «Tradição manuscrita da poesia lírica», Dicionário da literatura medieval galega e portuguesa, org. e coord. de G. Lanciani e G. Tavani, Lisboa, Editorial Caminho, 1993, pp. 627-632. — «Fernan Gonçalvez de Seabra», Dicionário da literatura medieval galega e portuguesa, org. e coord. de G. Lanciani e G. Tavani, Lisboa, Editorial Caminho, 1993, pp. 260-261. — «Atehudas ata a fiinda», O Cantar dos Trobadores, Actas do Congreso celebrado en Santiago de Compostela 26-29 abril 1993, Santiago de Compostela, Xunta de Galicia, 1993, pp. 167-186. — «Dom Denis», Dicionário da literatura medieval galega e portuguesa, org. e coord. de G. Lanciani e G. Tavani, Lisboa, Editorial Caminho, 1993, pp. 206-212. LPGP = Lírica profana galego-portuguesa. Corpus completo das cantigas medievais, con estudio biográfico, análise retórica e bibliografía específica, coord. por Mercedes Brea, 2 voll., Santiago de Compostela, Centro de investigacións lingüísticas e literarias Ramón Piñeiro, 1996. OLIVEIRA, António Resende de, Depois do espectáculo trovadoresco. A estructura dos cancioneiros peninsulares e as recolhas dos séculos XII e XIV, Coimbra, 1992. — Trobadores e xograres. Contexto histórico, Vigo, Edicións Xerais de Galicia, 1995. PELLEGRINI, Silvio, Studi su trove e trovatori della prima lirica ispano-portoghese, Bari, Adriatica Editrice, 1959. PICHEL, Antonio, Ficción poética e vocabolario feudal na lírica trobadoresca galego-portuguesa, A Coruña, Diputación Provincial, Publicaciones, 1987. RAMOS, Maria Ana, «L’éloquence des blancs dans le Chansonnier d’Ajuda», Stylistique, Rhétorique et Poétique dans les langues romanes, Actes du XVII Congrès International de Linguistique et de Philologie romanes, Marseille, 1986, pp. 215-224. — «O Cancioneiro da Ajuda: História do manuscrito, Descrição e Problemas», Cancioneiro da Ajuda. Edição fac-similada do códice existente na Biblioteca da Ajuda, Lisboa, Edições Távola Redonda, 1994, pp. 27-47. TAVANI, Giuseppe, La poesia del Duecento nella penisola iberica, Roma, 1969. — Trovadores e jograis. Introdução à poesia medieval galego-portuguesa, Lisboa, Caminho, 2002. WEISS, Julian, «On the Conventionality of the Cantigas d’amor», La Corónica. A journal of medieval spanish language and literature, vol. 26. 1, 1997, pp. 225-245.

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A COMPOSIÇÃO DE CANTIGAS DE AMOR

ÂNGELA CORREIA Universidade de Lisboa

Como assinalou Vicente Beltrán, no importante estudo que dedicou à cantiga de amor, a avaliação moderna deste género não lhe é especialmente lisonjeira 1, e Carolina Michaëlis de Vasconcellos, apesar de ter dedicado um labor admirável a uma grande parte do conjunto, não deixou de aderir à apreciação enfastiada do género. Na nota introdutória ao Glossário do Cancioneiro da Ajuda, a filóloga queixa-se da frieza com que a edição crítica do Cancioneiro, publicada dezoito anos antes, fora recebida, sem contudo deixar de encontrar razões para tal apreciação nas próprias cantigas: «Fossem os textos da minha edição, em vez de fragmentos do monótono Cancioneiro da Ajuda, o Livro das Donas com cantigas de amigo e o caso seria outro. Encontrava eco nas almas, seria manuseado por muitos; levava mais de um curioso a dirigir-me perguntas e pedidos, impulsionando-me a publicar os Comentários prometidos.» 2 A filóloga continua glosando a ideia de monotonia ao avaliar a quantidade de vocábulos

1 2

A Cantiga de Amor, p. 9. Glossário, p. VI.

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registados no Glossário do Cancioneiro: «teremos mil a mil e duzentos artigos relativos a verdadeiros termos. Pobreza espantosa! Repetições infinitas! resultantes evidentemente do convencionalismo cortesão e da escolha obrigatória de dicções finas, modestas, comedidas!» 3. Para confirmar o reduzido interesse que o género tem despertado na actualidade, bastará recordar que das cantigas de amor nunca se fez uma edição de conjunto, ao contrário do que aconteceu já por duas vezes com as cantigas de amigo 4 e com as de escárnio e maldizer 5. Esta avaliação contrasta com as várias indicações de que o género cantiga de amor era o mais apreciado pelos trovadores. Revela-o o próprio número de cantigas de amor (cerca de 700), quando comparado com o número de cantigas de amigo (cerca de 500) e com o de cantigas satíricas (cerca de 400). O género cantiga de amor era aparentemente também o que conferia mais prestígio aos trovadores que o praticavam. É o que se depreende de um passo da tenção Rodrigu’Eanes, queria saber, entre Lourenço e Rodrigu’Eanes Redondo 6. Ao longo deste debate, os autores acusam-se mutuamente de não terem competência no trovar, argumentando cada um por seu lado, ao ataque e à defesa. Lourenço procura demonstrar que Rodrigu’Eanes não tem legitimidade para avaliar composições alheias, usando por duas vezes o argumento da experiência que diz faltar ao seu adversário: e a vós nunca vos vimos fazer cantar d’amor nen d’ amigu’; e por én se querede-lo que eu faço ben danar, terran-vos por sen-conhocer. […] dos sarilhos[ 7] sodes vós trobador, ca non faredes un cantar d’ amor por nulha guisa, qual eu farei.

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Glossário, p. VIII. J. J. Nunes, Cantigas d’Amigo…; R. Cohen, 500 Cantigas… 5 M. R. Lapa, Cantigas d’Escarnho…; G. Videira Lopes, Cantigas de Escárnio… 6 M. Á. da Silva, A Tenção…, p. 228. A hipótese de identificação do interlocutor de Lourenço, que nenhuma rubrica refere e a que Lourenço chama simplesmente «Rodrigu’Eanes», foi proposta por R. Lapa (Cantigas d’Escarnho…, p. 409) e não foi contestada por M. Á. da Silva (A Tenção…, p. 115 e 116). 7 Lapa considerou a palavra «sarilhos» um topónimo (Cantigas d’Escarnho…, p. 410), e Manuel Álvaro da Silva supôs que se tratasse do substantivo com o «sentido mais corrente de complicações, embrulhadas» (A Tenção…, p. 230). A formulação que opõe «cantar d’amor» a «trovador de sarilhos» convida a ponderar a hipótese de haver, neste último passo, uma alusão ao género satírico. O étimo latino apontado para a palavra «sarilho» — *sericula (de sera, a que em M.-Lübke se atribui o sentido de «tranca», «ferrolho», e Antenor Nascentes, o de «trança») —, cujo sentido seria o de «dobadoura», e a exiguidade de ocorrências (J. P. Machado, Dicionário Etimológico…, p. 162) não permitem, porém, chegar a nenhuma conclusão. 4

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O interlocutor de Lourenço não desmente o facto e, embora o cancioneiro B conserve cantigas de amor e de amigo de Rodrigu’Eanes Redondo (cuja datação exacta é incerta), a acusação de Lourenço não deixa de valer como indício de que a composição de cantigas de amor e de amigo era prova de mestria e fonte de credibilidade. Procurarei neste texto avançar um pouco na identificação dos elementos a que os trovadores atribuíam maior valor na composição em geral e, em especial, na composição de cantigas de amor. Pareceu-me razoável começar por recolher os elementos que a este respeito pudessem fornecer as próprias cantigas, a Arte de Trovar do Cancioneiro B e as rubricas dos cancioneiros. Entre os textos em que encontramos críticas ao trabalho de composição de outro trovador, destaca-se Roi [Q]ueimado morreu con amor 8 de Pero Garcia Burgalês. Esta cantiga tem sido interpretada como uma sátira bem-disposta ao abuso do tema da morte por amor na tradição da cantiga de amor galego-portuguesa 9. Já em 1983, no entanto, Elsa Gonçalves 10 considerava a possibilidade de a sátira visar uma determinada cantiga de Roi Queimado — Direi-vus que mi-avo, mia senhor 11. Nesta, o sujeito refere-se à sua própria morte no passado: «ouve por vos, fremosa mia senhor, / a morrer», na primeira estrofe; «ouv’a morrer», na terceira estrofe; e «ouv’ a morrer assi», na fiinda. Agrava a incongruência o facto de o sujeito concluir cada uma das estrofes, e também a fiinda, referindo não ter morrido depois de considerar que, se morresse, não voltaria a ver a amada («e por esto non morri / guareci»). Em resumo, o sujeito desta cantiga afirma repetidamente que teve de morrer, mas depois pensou melhor e afinal não morreu. Pero Garcia Burgalês podia ter-se limitado a apontar o erro na construção gramatical, no tempo verbal, como faz até ao verso 12 da composição (exactamente metade da cantiga). De facto, nesta primeira parte, o trovador lança mão de uma evidente e descontraída ironia, assumindo como literal a expressão de Roi Queimado e explicitando as respectivas implicações. Fá-lo sem desligar o erro do contexto em que ocorreu, ou seja, referindo repetidas vezes as razões de amor do caso («por hunha dona que gran ben queria, […] por que lh’ ela non quis ben fazer […] Esto fez el por hunha sa senhor / que quer gram ben»). Fá-lo, por outro lado, sem deixar de denunciar, também por meio da ironia, a intenção que terá orientado Roi Queimado para o erro: «por se meter por mays trobador» e por cuidar fazer «hi maestria». Nesta referência, Pero Garcia alude possivelmente à frequência com que, nas cantigas de amor, o sujeito se declara prestes a morrer. Pretendendo ultrapassar os outros trovadores neste aspecto, Roi Queimado optou por mostrar o sujeito mais do

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P. Blasco, Les Chansons…, p. 259. Veja-se, por exemplo, E. Finazzi-Agrò, «Pero Garcia Burgalês», p. 541. 10 «Os textos e os autores», p. 50. 11 C. M. Vasconcellos, Cancioneiro…, pp. 284-85. 9

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que prestes a morrer, ou seja, já morto. Nesta acusação («Roy [Q]ueimado morreu con amor»), Pero Garcia não exagera, no entanto, como demonstra a referida cantiga de Roi Queimado. A ironia de que lança mão Pero Garcia, no entanto, não deverá ter servido apenas para acusar Roi Queimado de um erro gramatical, pois a falha é também retórica e desta dá especialmente conta a alusão bíblica à ressurreição. Refiro-me à inverosimilhança de que se encontra grosseiramente ferido o texto de Roi Queimado, defeito para o qual tanto as poéticas antigas como as medievais advertem repetidas vezes. 12 A partir do verso 13, a sátira de Pero Garcia acolhe mudanças significativas de tom e de assunto. Diz o sujeito, em resumo, que Roi Queimado morre e ressuscita porque o pode fazer, e que tal poder lhe retira o medo da morte. Esto faz el que xo pode fazer, mays outr’ omen per ren nono faria. E non á ja de sa morte pavor, se non sa morte mays la temeria, mays sabe ben, per sa sabedoria, que vyverá desquando morto for, e faz en seu cantar morte prender, des y ar vyv’ e vedes que poder que lhi Deus deu! Mays queno cuydaria! E se mi Deus a mi desse poder, qual oj’ el á, poys morrer, de viver, ja mays morte nunca temeria!

12 «Inventio est excogitatio reram verarum aut verisimilium, quae causam probabilem reddant […] (L’invention lui fait trouver les moyens sûrs ou vraisemblables d’assurer le succès de la cause […]) Tres convenit res habere narrationem, ut brevis, ut dilucida, ut verisimilis sit […] (Trois qualités sont nécessaires à la narration, la brièveté, la clarté, la vraisemblance […]) Verisimilis narratio erit, si, ut mos, ut opinio, ut natura postulat, dicemus; si spatia temporum, personarum dignitates, consiliorum rationes, locorum opportunitates constabunt […] (La narration sera vraisemblable, si nous parlons d’une manière conforme à l’usage, à l’opinion, à la nature; si nous mettons bien d’accord le laps de temps, la dignité des personnes, les motifs des résolutions, les convenances des lieux)», M. Nizard, Oeuvres…, pp. 3, 4, 7, 8. Veja-se também o início da Arte Poética de Horácio: «Humano capiti ceruicem pictor equinam / iungere si uelit et uarias inducere plumas / undique conlatis membris, ut turpiter atrum / desinat in piscem mulier formosa superne, / spectatum admissi risum teneatis, amici? (Se um pintor quisesse juntar a uma cabeça humana um pescoço de cavalo e a membros de animais de toda a ordem aplicar plumas variegadas, de forma a que terminasse em torpe e negro peixe a mulher de bela face, conteríeis vós o riso, ó meus amigos, se a ver tal espectáculo vos levassem?)», R. M. Rosado Fernandes, Horácio…, p. 51. Veja-se ainda Mathieu de Vendôme, Ars Versificatoria, citado em Faral, Les Arts…, p. 135.

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Distinguindo Roi Queimado do resto da humanidade e do próprio sujeito, que é exemplum daquela, Pero Garcia insiste na ideia de que ninguém teria razões para temer a morte se, como Roi Queimado, soubesse que o regresso à vida era possível. Nesta segunda parte da composição, onde o tom se torna mais grave, julgo estar o cerne da crítica de Pero Garcia a Roi Queimado, pois apenas o medo da morte dá à iminência da mesma o peso argumentativo que adquire na tradição da cantiga de amor. Dito de outra forma: se a morte fosse provisória, os sujeitos das cantigas de amor pouca ou nenhuma compaixão poderiam provocar, quando se declaram à beira da morte devido ao muito sofrimento. Se a morte fosse provisória, os trovadores deixariam de poder usá-la para enfatizar ou amplificar a expressão da coita de amor. Todo o género perderia uma das suas linhas de força. Se assim se entender a sátira de Pero Garcia, ver-se-á nela a defesa do património tradicional da cantiga de amor ou, pelo menos, uma chamada de atenção para a necessidade de evitar a erosão dos recursos temáticos do género. Principalmente os mais repetidos estariam especialmente vulneráveis ao exagero inábil de trovadores preocupados em provar a mestria no trovar. O alvo mais restrito da sátira de Pero Garcia — a referência, no passado, à morte do sujeito — lembra um outro texto que, se for lido com a mesma chave, se revela uma discussão sobre competência na flexão verbal. Refiro-me à tenção entre Afonso Sanches e Vasco Martins de Resende, Vaasco Martiz, pois vos trabalhades 13. A enigmática conversa entre estes dois trovadores parte de uma pergunta, que Afonso Sanches repete ao longo do texto. Pretende o príncipe saber quem é a mulher por quem trova Vasco Martins, uma vez que a mulher por quem trovava já morreu. Responde-lhe Vasco Martins negando a morte da mulher amada e acusando o príncipe de fraco entendimento. Não tendo sobrevivido nenhuma cantiga de amor de Vasco Martins, não é infelizmente possível testar a hipótese de este trovador ter cometido algum erro na flexão verbal. Pela mesma razão, também não é possível verificar se Afonso Sanches usou da mesma ironia que Pero Garcia, ao considerar literalmente palavras de Vasco Martins. Apesar de tudo, há na tenção alguns aspectos que apoiam a hipótese. Os jogos com tempos verbais a que Afonso Sanches se entrega são um destes indícios («pois vos trabalhades / e trabalhastes de trobar d’amor […] quero saber de vós que mi o digades; / e dizede-mi-o […] / pois vos esta, por que trobastes, já / morreu, […] por quen [ora] trobades?»; «maravilho-m’en / pois vos morreu, como [vós] nom morredes», etc.). A defesa de Vasco Martins que passa por responsabilizar o fraco entendimento e a pouca sabedoria de Afonso Sanches pelo desentendimento ou mal-entendido é outro indício («— Afonso Sánchez, pois non entendedes / en qual guisa vos

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Lapa, Cantigas d’Escarnho…, pp. 111 e 112. Veja-se também M. Arbor Aldea, O Cancioneiro de Don Afonso Sanchez…, pp. 236-240.

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eu fui responder, / a min en culpa non deven poer, / mais a vós, se o saber non podedes»). De acordo com esta interpretação, o tema da tenção não seria o amor 14, mas a incompetência gramatical de Vasco Martins, o que aproximaria o texto do conjunto de tenções cujo tema é a sátira à composição ou execução de cantigas 15. Estes dois casos lembram, por outro lado, a bem conhecida cantiga Maestre todolos vossus cantares 16, de Gonçal’Eanes do Vinhal, em cujos versos finais se dá conta de que, ao acolher «razon alha» nos seus cantares, o «maestre» visado não conseguiu ajustar convenientemente os «tempus», o que os trovadores não deixariam de criticar: «E gran careza fezestes de pran, / mays lus trobadores travar-vos-an / já que nos tempus, que ben non guardastes» 17. Os versos citados lembram inevitavelmente o capítulo da Arte de Trovar onde o autor adverte para os riscos da incoerência verbal 18. O aviso serviria bem a quem é acusado de se apropriar do alheio no discurso próprio, sem ter sido capaz de fazer os ajustamentos gramaticais necessários. Num artigo 19 recente sobre a cantiga de seguir de Fernam Rodrigues Redondo, Don Pedro est [o] cunhado d’el rei, sugeri a hipótese de, na relação entre esta cantiga de seguir e a cantiga de amigo citada pelo trovador, Aquestas coitas que de sofrer ei, de Rodrigu’Eanes de Vasconcelos, estar envolvida uma

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Já vários autores propuseram diferentes interpretações deste texto, bem como diversas classificações quanto ao género. Veja-se um resumo da problemática em M. Arbor Aldea, O Cancioneiro de Don Afonso Sanchez…, pp. 245-249. 15 G. Lanciani e G. Tavani, As Cantigas de Escarnio, pp. 202-209. 16 A. Viñez Sánchez, Don Gonçal’Eanes do Vinhal…, pp. 647 e 648. 17 A. Viñez Sánchez, Don Gonçal’Eanes do Vinhal…, p. 648. Julgo haver neste texto duas acusações claramente distintas e brevemente enunciadas nos três primeiros versos e na primeira fiinda da composição: uma relativa à música dos cantares do mestre (desenvolvida nos quatro últimos versos da primeira estrofe e na segunda estrofe) e outra relativa às «razões» dos cantares (desenvolvida na segunda estrofe e segunda fiinda). O verbo relacionado com a questão do «son», e só com esta, é «seguir». Para abordar a segunda questão usa-se o verbo «filhar», mas não exclusivamente. Parece-me, pois, que está apenas em causa o primeiro modo de seguir, ou seja, o de fazer uma cantiga com a música de outra. A segunda acusação diz respeito à apropriação indevida que o mestre faz de «razons» que não lhe pertencem, trabalhando-as nos textos de modo que pareçam suas. Desta acusação parece poder depreender-se que o sentido de «razon» inclui a ideia de propriedade autoral. Voltarei a esta questão. A interpretação da palavra «tempus» tem coincidido com a interpretação da mesma palavra no capítulo da Arte de Trovar sobre os tempos verbais (M. P. Ferreira, O Som…, p. 21; A. Viñez Sánchez, Don Gonçal’Eanes do Vinhal…, p. 308). No entanto, tendo em conta a dupla acusação presente no texto e tendo em conta que o tempo é também um elemento musical, talvez se devam ver, na última fiinda, ambas as acusações, feitas através da mesma palavra «tempus». 18 «Os tempos chamam os trovadores quando falan nas cantigas no tempo passado, ou no presente em que estam, ou no que há-de vir […] E porque se en algum deles começar a cantiga, nom convem que depois falem no outro em aquela razom nem per aquel entendimento, se non se falar per outra razom ou en outro entendimento: ca en outra guisa descordaria o entendimento da razom da cantiga», G. Tavani, Arte…, p. 51. 19 Â. Correia, «Fragmento…».

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intenção de crítica à ambiguidade de que se reveste o refrão da cantiga de amigo. Esta hipótese levou-me a olhar de outra forma a cantiga Grave vus é de que vus ei amor 20, de D. Dinis. Devem-se a Elsa Gonçalves 21 a identificação, análise e interpretação dos elementos que estabelecem uma relação de citação entre a cantiga de D. Dinis e a cantiga Tan grave m’ é, senhor, que morrerey 22, de Joam Airas de Santiago. De todos os preceitos indicados na Arte de Trovar para a elaboração de um «seguir» do modo mais valorizado, esta cantiga apenas não acolhe um: a alteração do sentido do refrão, apesar da manutenção das palavras. Pelo contrário, o sentido do refrão da cantiga de Joam Airas de Santiago parece adquirir uma expressão mais precisa na cantiga de D. Dinis. No refrão de Joam Airas — «se vos grave é de vos eu ben querer, / tan grav’ é a mí, mais non poss’ al fazer» — a forma hipotética «meramente rhetorica» que toma é descrita por Epiphanio da Silva Dias e foi usada no português medieval tanto em argumentos «a pari» e «a fortiori» («se é assim aqui como não será ali») como em contraposições 23. No refrão de Joam Airas, julgo haver um esforço para dar à construção o sentido de contraposição, ou seja, para afirmar que se é grave para a amada o amor que o amante lhe tem, o mesmo também é grave para o amante. Neste caso, porém, é gramaticalmente despropositado o advérbio comparativo usado por Joam Airas de Santiago no início do segundo verso do refrão: «se vos grave é […] / tan grav’ é a mí». Na cantiga de D. Dinis, o advérbio foi eliminado e a forma hipotética da contraposição foi emendada de forma a apresentar-se gramaticalmente correcta e semanticamente ajustada: «se vos grav’ é de vos eu ben querer / grav’ est a mi mais non poss’ al fazer». Talvez haja, portanto, na citação que D. Dinis faz do refrão de Joam Airas uma crítica à sintaxe da cantiga citada. Deste caso, como dos anteriores, parece resultar que os trovadores mantinham certa vigilância sobre a correcção gramatical dos enunciados poéticos, criticando de diversas formas os trovadores cuja composição não era, neste aspecto, suficientemente exigente. Tanto quanto os exemplos aduzidos permitem concluir, tal vigilância seria especialmente apertada no caso das cantigas de amor. Tendo em conta os textos referidos, pareceu-me possível encontrar mais informações sobre os elementos de valorização do trovar, nas cantigas onde há apreciação do trabalho de composição de um autor ou a expressão de um ideal de composição. Apesar de, na maior parte do casos, as referências a tais factores de valorização se limitarem a qualificações gerais integradas frequentemente em estratégicas retóricas, poder-se-ão, talvez, com a devida prudência, recolher alguns dados.

20 21 22 23

H. R. Lang, Das Liederbuch des Königs Denis…, pp. 22 e 23. «Intertextualidades…», pp. 150-152. J. L. Rodríguez, El Cancionero…, pp. 61-64. A. E. da Silva Dias, Syntaxe…, p. 272.

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Parece depreender-se de certos textos, por exemplo, que eram valorizadas as cantigas de amor cujo entendimento não fosse óbvio. A esta característica do texto estaria ligado o prestígio do autor, que assim demonstraria a sua própria capacidade de entendimento, considerada indispensável ao bom trovar 24. Na cantiga de amigo Fez meu amigo, amigas, seu cantar 25, de Joam Garcia de Guilhade, o autor dá conta, em tom elogioso, da imprecisão que, marcando a cantiga de amor, a torna num texto fechado, passível de interpretações diversas, consoante quem as faz: «Fez meu amigo, amigas, seu cantar […] / e a dona lho quiso filhar, / mais sei eu ben por quen s’ o cantar fez, […]»; «Eno cantar mui ben entendi eu / como foi feito, ben come por quen.» Nas palavras bastante elucidativas do texto, «o cantar é guardado mui ben». Igualmente na cantiga Dizede, madre, porque me metestes 26, de Pedr’Amigo de Sevilha, parece haver uma chamada de atenção para a possibilidade de diferentes interpretações e, consequentemente, para a possibilidade de diferentes avaliações. Sobre as composições do amigo, mãe e amiga exprimem, nesta cantiga, opiniões que não lhes pertencem. A mãe afirma ser de má qualidade o trovar, acrescentando a opinião geral sobre o mesmo: «e sei, filha, que vos traj’ enganada / con seus cantares que non valen nada / que lhi podia quen quer desfazer». A amiga contrapõe, referindo a opinião de quem possui um poder interpretativo maior: «— Non dizen, madr’, esso cada pousada / os que trobar saben ben entender.» Nas cantigas de amor em que o sujeito exprime um ideal de composição, manifesta-se, por vezes, também, a vontade de manter o texto fechado sobre si, de o fazer de forma que ao mesmo tempo esconda e revele. Assim se exprime, por exemplo, Joam Soares Coelho: «en un cantar que querria ora fazer! / E pero direi-vos como querria, / se Deus quisesse, dize-lo: assi / que ouvessen todos doo de mi / e non soubessen por quen me dizia!» 27. Já Martim Moxa deseja um entendimento que não dependa do que é efectivamente verbalizado: «am’ eu e trob’ e punh’ en-na sevir: / que entenda, poys meu cantar oyr, / o que non posso nen lh’ ouso a dizer» (O gram prazer e gram viç’ en cuydar) 28. Dois outros textos são exemplos de satisfação por ter sido alcançado o ideal de expressão fechada: «enos cantares que fiz des enton / en guisa soube mia coita dizer / que nunca mi-a poderon entender!» 29; «Pero eu vejo aqui trobadores, / senhor e lume d’ estes olhos meus, / que troban

24 Alfonso X di-lo com clareza nos primeiros versos do Prólogo B ao seu livro de cantigas de Santa Maria: «Porque trobar é cousa en que jaz / entendimento, poren queno faz á-o d’aver» (W. Mettmann, Cantigas…, p. 54). 25 R. Cohen, 500 Cantigas…, p. 248. 26 R. Cohen, 500 Cantigas…, p. 453. 27 Â. Correia, As Cantigas…, p. 239. 28 L. Stegagno Picchio, Martin Moya…, p. 129. 29 C. Michaëlis de Vasconcellos (Cancioneiro da Ajuda, I, p. 413) atribuiu o texto a Fernam Gonçalves de Seavra, mas Tavani (Repertorio…) considerou-o anónimo.

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d’ amor por sas senhores, / non vej’ eu aqui trobador, par Deus, / que m’ og’ entenda o por que digo: / al é Alfanx’ e al Seserigo!» 30. É certo que se reconhece neste ideal a expressão de uma das tensões que caracteriza o amor cortês (ou seja, a tensão entre o impulso para falar e a conveniência de calar), mas ele não deixa igualmente de dar conta da atracção exercida por um discurso poético capaz de assumir tais paradoxais características, bem como da consequente valorização provavelmente atribuída aos textos que deste ideal se aproximassem. Na cantiga Que mui de grad’ eu querria fazer 31, de Pai Gomes Charinho, não se tecem críticas ao trabalho de composição alheio nem se identifica nenhum ideal de composição. Nesta cantiga de Pai Gomes Charinho, o sujeito diz renunciar à composição por não reunir as condições necessárias para se entregar ao respectivo processo. Procurando manter à parte o que neste exercício serve o objectivo retórico de encarecer a coita, revelam-se algumas sugestões sobre o processo de composição. O sujeito considera ser necessário um certo conhecimento para trovar («E fazer non-a sei»), bem como uma ponderação aturada («E cuido hi muito»). De acordo com o sujeito, além do conhecimento suficiente falta-lhe aquilo a que chama «razon», palavra cujo significado não será exactamente «assunto», uma vez que este é imediata e sucintamente enunciado num único verso: «A mi, pecador, / nunca Deus quiso dar a entender / atal razom qual oj’ eu mester ey / pera falar no que sempre cuidey: / no seu bem e no seu bom parecer.» Depreende-se, pois, que para falar condignamente do assunto em questão o sujeito necessitaria de uma «razon» de qualidade apropriada. Esta aparente distinção entre assunto e «razon» lembra os esforços desenvolvidos nas poéticas medievais para aconselhar quanto ao modo de tratar de forma singular a temática imposta pela tradição. No Documentum de Arte Versificandi, Geoffroi de Vinsauf cita versos da Arte Poética de Horácio para introduzir o assunto e para melhor se explicar: «Difficile est proprie communia dicere.» O autor do Documentum conclui: «Sed, quamvis difficile, tamen possibile. Possumus enim materiam communem proprie dicere si quatuor modos observemus» 32. A distinção entre assunto e «razon» faz, pois, sentido, se atribuirmos à segunda palavra o significado de «modo de expor (ou dispor) um tema comum» 33,

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C. Michaëlis de Vasconcellos, Cancioneiro da Ajuda, I, p. 550. C. F. Cunha, O Cancioneiro…, pp. 121 e 122. 32 E. Faral, Les Arts…, p. 309. 33 Esta interpretação encontra fundamento etimológico, já que duas das acepções de «ratione» são precisamente «disposição» e «modo», estando ligada a estes dois sentidos a ideia de ordem («ratio agminis, C., disposição do exército // in ea ratione loqui, falar nesta ordem de ideias», A. G. Ferreira, Dicionário…, p. 970. «Ratio operis. PLIN. Plano d’ uma obra», «Nihil quod ratione moveri possit… CIc. Nada há que possa mover-se com regularidade», «In omnibus quae ratione docentur et via. CIC. Em todas as coisas que são expostas segundo uma ordem methodica», F. R. S. Saraiva, Novissimo Diccionario…, pp. 1001 e 1002). A mesma acepção é também referida por J. P. Machado, Dicionário…, V, p. 43, e por glossários de textos medievais (C. Michaëlis de Vasconcellos, Glossário, p. 77; R. Lorenzo, La Traduccion…, p. 1100). 31

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factor que poderia determinar a singularidade da cantiga 34. Ao contrário do que acontece com a identificação do assunto, no entanto, não é fácil, segundo Pai Gomes Charinho, encontrar «boa razon». Para o conseguir é necessário que o trovador esteja na posse plena das faculdades mentais indispensáveis para dominar as emoções a que este sujeito afirma ter sucumbido («Mas como pod’ achar bõa razom / ome, coytado, que perdeu o sem, / com’ eu perdi?»). Chorando continuamente e tendo o pensamento sempre ocupado com a mulher amada, este sujeito diz ter perdido a racionalidade («o sem») e a concentração imprescindíveis para a composição de uma cantiga de amor. Sublinho a ideia de que ter o pensamento ocupado com a mulher amada incapacita para o trovar. Este trovador manifesta assim a consciência de que, apesar dos diversos protestos de sinceridade que também se encontram nas cantigas de amor, o processo de composição dependia menos de sentimentos do que da razão e do esforço. Outro factor com importância na avaliação do cantar parece ser o favor do público e o tipo de público cativado. Deixam-no claro algumas cantigas, incluindo a já mencionada cantiga de amigo Dizede, madre, por que me metestes 35, de Pedr’Amigo de Sevilha, onde se opõe a opinião do vulgo indeterminado («con seus cantares que non valen nada / que lhi podia quen quer desfazer») à opinião especializada dos que «trobar saben ben entender». A tenção entre Lourenço e Rodrigu’ Eanes, também já referida, é outro exemplo do mesmo. Na discussão que opõe os dois autores, o argumento do interesse suscitado ~a num público exigente é usado por Rodrigu’ Eanes contra Lourenço: «mais u cousa sei / de tod’ omen que entendudo for: / non averá en teu cantar sabor / nen cho colherán en casa d’ el-rei». Lourenço responde dizendo o contrário e confirmando a importância do argumento na avaliação do trovar: «u meu cantar for, / non acha[rá] rei nen emperador / que o non colha — mui ben eu o sei» 36. De um outro ponto de vista, também a Arte de Trovar dá conta de como o público e respectivas reacções previsíveis orientavam a composição. No capítulo sobre os «talhos» das cantigas, o tratadista sublinha: «E os trobadores podem fazer as cantigas ou de quatro ou de seis ou de oito ou de mais, se quiserem. Mais estes som os talhos mesm’ os melhores, pera ser mais a rezom e no fazer enfadar em os homens» 37. Mas não só a reacção do público tem implicações na avaliação das cantigas, também a disponibilidade dos melhores jograis pode comprovar a qualidade da composição. Na tenção acima mencionada, Rodrigu’ Eanes reforça o argumento

34 35 36 37

220

Cf. n. 17. R. Cohen, 500 Cantigas…, p. 453. M. Á. F. da Silva, A Tenção…, p. 228. G. Tavani, Arte…, pp. 46 e 47.

da recepção dizendo a Lourenço: «ca nunca te vimos fazer cantar / que cho queira nno demo dizer» 38. Lourenço não o contradiz. A este respeito, a cantiga Cavaleyro, con vossus cantares 39 de Martim Soares é elucidativa. Nesta sátira, Martim Soares acusa um cavaleiro de prejudicar os seus pares, nobres e trovadores, ao compor cantigas de amor de má qualidade. Para demonstrar o fraco valor das composições deste cavaleiro, Martim Soares usa essencialmente o argumento do tipo de público a quem as cantigas do trovador agradam e o do tipo de executantes que aceitam cantá-las. O público do cavaleiro é constituído por gente de condição social não nobre («aldeyãos» e «concelhos»), em especial gente jovem da mesma condição («filhus e mancebus»), e profissionais («alffayates», «pelyteyros», «reedores»). Os jograis dispostos a executar as composições do cavaleiro são os dos «atambores» e os das «trombas». A sátira termina chamando a atenção para a importância de ganhar o apreço dos trovadores («Os trobadores e as molheres / de vossus cantares son nojadus / a ha, porque eu pouco daria / pois mi dus outrus fossen loadus; / ca eles non sabem que xi van fazer»). Também Pedr’ Amigo de Sevilha, na cantiga Lourenço non mi quer creer 40, lança mão do mesmo argumento para criticar as composições de Lourenço («e saber / podedes que non sabe ren / trobar, ca trobador non á / eno mundo nen averá, / a que s’el queira conhocer»). Os critérios de valorização das cantigas de amor que hoje nos escapam seriam provavelmente transparentes para aqueles que, segundo uma rubrica no Cancioneiro B 41, julgaram Martim Soares como o melhor trovador de entre os trovadores. Valeria Bertolucci Pizzorrusso procurou já compreender estes critérios analisando as cantigas satíricas do trovador 42. Talvez também as cantigas de amor de Martim Soares possam fornecer respostas suplementares sobre os objectivos estético-poéticos que orientavam os trovadores no processo de composição. Ao corpus do trovador pertence a cantiga de amor Por Deus, senhor, nom me desenparedes 43. Procurando tratar o tradicional tema da coita e morte de amor pelo, menos tradicional, ângulo das implicações que a morte de um vassalo pode ter na reputação da «senhor», Martim Soares desenvolve um achado retórico extraordinário. Partindo de um recurso relativamente

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M. Á. F. da Silva, A Tenção…, p. 228. V. Bertolucci Pizzorusso, As Poesías…, pp. 119-120. Veja-se também a primeira nota ao texto (pp. 120 e 121), onde a filóloga italiana enquadra esta mesma questão. 40 Lapa, Cantigas d’Escarnho…, p. 476. 41 B 144: «[…] Este Martim Soarez foy de Riba de Limha en Portugal e trobou melhor ca todolus que trobaron, e ali foy julgado antr’ os outros (ms. outres) trobadores», V. Bertolucci Pizzorusso, Martin Soares…, p. 49. 42 «Martin Soarez», G. Lanciani e G. Tavani (org. e coord.), Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa, pp. 441-444. 43 V. Bertolucci Pizzorusso, As Poesías…, pp. 108 e 109. 39

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comum nas cantigas de amor — a personificação do amor —, Martim Soares constrói uma figura não apenas humana mas também social e até individual. Tal como notado por Vicente Beltrán 44, o Amor personificado é apresentado pelo sujeito como um seu par, por serem ambos vassalos da mesma «senhor». O sujeito reconhece a este Amor vassalo a capacidade militar de dominação, mas considera-o desleal para com a «senhor», por a aconselhar mal levando-a a correr o risco da vergonha. A esta personificação une-se, pois, o paradoxo, já que a face mostrada do Amor é negativa e mesmo violenta. Os contornos negativos da figura tornam-se ainda mais definidos se considerarmos que são apresentados em oposição às características do sujeito. Da caracterização deste resulta a imagem de um vassalo fraco no combate, sofredor, amedrontado, inocente, cumpridor dos deveres de amor e devoção de um vassalo, bom conselheiro, capaz de proteger a «senhor» de vergonha. Na composição deste texto, no entanto, Martim Soares não se limitou às figuras, sugerindo também acções de ataque e submissão que aliás justificam o discurso dirigido pelo sujeito à «senhor». O Amor, vassalo forte, ataca e submete militarmente o sujeito, numa atitude que este considera ilegítima por serem ambos vassalos de uma mesma «senhor». O texto da cantiga corresponde ao discurso dirigido pelo vassalo mais fraco (o sujeito) à «senhor», chamando a atenção desta para a obrigação que lhe cabe de repor a justiça e a legalidade. Importa notar, no entanto, que o esforço de composição desenvolvido neste texto, no sentido de transmitir, em moldes que poderíamos considerar alegóricos, a situação referida, assenta em boa parte no vocabulário usado. Há, na verdade, ao longo do texto um conjunto de palavras que, não sendo alheias à tradição da cantiga de amor, evocariam, com contornos mais definidos do que à distância de setecentos anos possa parecer, a situação jurídico-militar desenhada. Refiro-me a «desamparar», «queixar-se com direito», «torto», «senhor natural», «forçar» e «guardar de força», «conselhar», «avergonhar», «guardar de morte», «poder com ele» (no sentido de resistir no combate), «ser de alguém» (no sentido de ser vassalo de um senhor) e, neste contexto, outras palavras de sentido mais geral como «matar», «valor», «ter em poder», «ficar», no sentido oposto a «despedir-se», «hum home que se tem» (no sentido de «vassalo»). Este vocabulário, especialmente o primeiro conjunto, é abundantemente utilizado em textos não líricos. É o caso do verbo «forçar» que ocorre nos Livros de Linhagens e na Crónica Geral de Espanha, no sentido militar que aqui assume, a par, aliás, de alguns dos outros vocábulos referidos: «[…] e se esto nom fezesse, que lhe mandaria tolher a terra per força e que faria justiça de seu corpo» 45; «Mais porque os Castelãos eram bõos cavaleiros, houverom-

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A Cantiga de Amor, pp. 148 e 149. J. Mattoso, Livro de Linhagens…, vol. II, t. 1, p. 90.

-nos de forçar e passarom a ribeira. Ali foi a lide tam grande antre eles» 46; «E, quãdo o Çide soube commo rey Bucar viinha sobr’ elle, mãdou hu dya chamar todos os mouros da vylla ante sy e dysselhes assy: — Homs bõos, ben sabedes commo, desque eu foy senhor de Valença, sempre fostes honrrados e guardados e lograstes vossas cassas e todas vossas posisones e n hu nõ vos fez força n eu nca vos fiz cousa contra dereyto.» 47 O mesmo vocabulário serve, de resto, em grande parte, para enunciar as leis a que se alude nos textos. O sujeito, vassalo fraco, pedindo socorro à «senhor», utiliza os argumentos do serviço leal prestado à «senhor» e do bom conselho que sempre lhe deu, ou seja, usa o argumento dos deveres cumpridos para invocar o direito a ser protegido de um seu par mais forte. Este mesmo direito é assim enunciado na Partida IV de Alfonso X: «Mas las otras contiendas que acaescieren entre los vasallos sobre los feudos que tovieren de un señor, el señor los debe oir et librar: et si la contienda fuere entrel vasallo et otro home extraño, entonce el juez ordinario que oye todos los pleytos lo debe librar» 48. No verso 13 da cantiga de Martim Soares (cito três para contextualizar), «e non tenh’eu que é torto nen mal / d’amar home sa senhor natural, / ant’ é dereito e vos vol’ entendedes», até o verbo «amar» é usado como na lei: «Debdos mui grandes son los que han los vasallos con sus señores; ca débenlos amar, et honrar, […] et quando estos debdos son bien guardados, face cada uno lo que debe, et cresce et dura el amor verdadero entre ellos» 49. Esta incursão pela tradicional metáfora feudal, portanto, embora facilmente reconhecível, resulta enfraquecida se forem desconhecidos outros contextos do mesmo vocabulário, usado estrategicamente na composição. As palavras em

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Mattoso, Livro de Linhagens…, vol. II, t. 1, p. 249. L. F. Lindley Cintra, Crónica Geral…, p. 174. Vejam-se outros exemplos: «E era ja em poder dos ~a cousa» cristãaos a cidade, e~ tal guisa que os mouros a desemparavã e nõ prezavam as herdades ne~ hu (L. F. Lindley Cintra, Crónica Geral…, p. 31); «Entõ mandou el rei chamar os cõdes que estavã todos fora do paaço. E elles veherom ante elle, queixandosse muito da grande deshonrra que receberã. E el rei disselhes que se defendessem com dereito ou cõ mesura […]» (L. F. Lindley Cintra, Crónica Geral…, p. 152); «os que os tiinhã logo lhos entregavon, pero ouvessem feitas as menage~es a el rey de Leon, porque era seu senhor natural.» (L. F. Lindley Cintra, Crónica Geral…, p. 280); «E a rainha, temendosse do que depois aveo, fezlhe tomar juramento que verdadeiramente fosse amigo del rey e lhe fosse leal vassallo e que sempre o bem conselhasse e que acreçentasse en sua hõrra» (L. F. Lindley Cintra, Crónica ~u privado em que poinha // toda sa Geral…, p. 343); «E veendo el como este rei dom Garcia havia u fiuza, e falava com el todos seus feitos apartadamente, e lhe dava mui maos conselhos, estremadamente em percebimento de guerra que havia d’haver com seu irmão, e que nom falava destes feitos rem com os ricos home~es seus, nem com aqueles que em tal feito o haviam de conselhar e servir» (Mattoso, Livro de Linhagens…, vol. II, t. 1, pp. 224 e 225); «E esta cousa foi sabuda per toda a hoste e o infançon foy ende muy avergonhado, ca todos o olhavon en desdem e lho avyam por mal.» (L. F. Lindley Cintra, Crónica Geral…, p. 478). 48 Las Siete Partidas…, pp. 144 e 145. 49 Las Siete Partidas…, p. 134. 47

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análise terão tido, junto do público, uma capacidade evocadora, usada pelo trovador para produzir sentido ou impressão sem recurso a vocabulário estranho à tradição. Já noutro lugar procurei demonstrar haver na própria Arte de Trovar indicações de que, entre os trovadores, a valorização das cantigas dependia também do grau de dificuldade imposto pelas restrições vocabulares à produção de sentido 50. Neste caso, trata-se de conseguir levar o exíguo vocabulário do género a evocar situações capazes de favorecerem uma definição mais nítida das figuras e acções referidas na cantiga. Outros aspectos da composição desta cantiga mereceriam atenção, como os que se prendem com a organização estratégica do texto enquanto discurso argumentativo destinado a levar a «senhor» a agir. Deixo, no entanto, por ora, o esforço de aproximação aos elementos que poderão ter levado à eleição de Martim Soares como «melhor trovador» e regresso ao desalento com que D. Carolina referia a exiguidade vocabular do Cancioneiro da Ajuda. Comparando esta opinião com o uso que Martim Soares faz do vocabulário referido, cabe perguntar se, no gosto dos trovadores pela dificuldade da evocação, não estará, pelo menos em parte, a razão da moderna «surdez» em relação à cantiga de amor. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARBOR ALDEA, Mariña, O Cancioneiro de Don Afonso Sanchez. Edición e estudio, Santiago de Compostela: Universidade de Santiago de Compostela, 2001. BELTRÁN, Vicente, A Cantiga de Amor, s. l.: Edicións Xerais de Galicia, 1995. BERTOLUCCI PIZZORUSSO, Valeria, As Poesías de Martin Soares, Vigo: Galaxia, 1992 (1963). — «Martin Soarez», in G. Tavani; G. Lanciani (org. e coord.), Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa, Lisboa: Caminho, 1993. BLASCO, Pierre, Les Chansons de Pero Garcia Burgalês, Paris: Fondation Calouste Gulbenkian, Centre Culturel Portugais, 1984. CINTRA, Luís Filipe Lindley, Crónica Geral de Espanha de 1344, IV, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda. COHEN, Rip, 500 Cantigas d’Amigo, Porto: Campo das Letras, 2003. CORREIA, Ângela, «Fragmento alojado. A cantiga de seguir de Fernam Rodrigues Redondo, Don Pedro est [o] cunhado del-Rei», Românica, 12, 2003, pp. 9-23. — As Cantigas de Amor de D. Joam Soares Coelho e o «Ciclo da ‘Ama’». Edição e Estudo (dissertação de doutoramento), Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2001.

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CANCIONEIRO DA AJUDA. SÓ CANTIGAS DE AMOR?

GIUSEPPE TAVANI Università di Roma «La Sapienza»

Quando, há alguns meses, Maria Ana Ramos me propôs, como tema desta minha intervenção, um título tão inquietantemente interrogativo, eu estava submerso por várias preocupações de carácter filológico mas relativas a outros sectores da romanística: preocupações que me impediram de ver claramente em que sarilhos me ia meter aceitando falar sobre um assunto tão perigoso. Os meses foram passando, continuei com os meus trabalhos de âmbito catalão e provençal: nem sequer enquanto preparava a comunicação para o congresso de Santiago cheguei a dar-me conta da complexidade do problema implícito numa epígrafe marcada por um ponto de interrogação: «Só cantigas de amor?» Apenas quando comecei a escrever esta conversa é que reparei nas dimensões efectivas do enredo em que me tinha deixado envolver. Mas já era demasiado tarde para modificar uma situação de facto sancionada por um programa, e eu nunca gostei de chegar a uma reunião científica pedindo desculpa por ter de alterar o título e o tema da exposição que me tinham sido propostos. Nessa altura, não havia outro remédio senão aceitar o desafio que Maria Ana me tinha lançado sem pestanejar, e procurar sair do imbroglio sem prejuízos demasiado graves, lesivos da minha credibilidade filológica. Mas agora basta de rodeios e vamos ao âmago da questão, ou como se diria mais concretamente em catalão — língua com que lidei toda a semana passada — anem al gra. 227

Não é evidentemente necessário, aos especialistas que têm a amabilidade de me ouvir, descrever a situação codicológica do Cancioneiro da Ajuda. Todos sabemos perfeitamente que é um livro não apenas inacabado como também mutilado no início e no fim, e também no meio: um verdadeiro desastre! Limitar-me-ei portanto a lembrar que a escrita na primeira folha supérstite começa pela sílaba final do incipit duma cantiga de amor de Vasco Fernandez Praga, senhor de Sandim, precedida — ou pelo menos é o que resulta do cotejo entre o Cancioneiro da Ajuda e o Cancioneiro da Biblioteca Nacional — por outras cantigas de amor: e portanto esta secção do códice deveria resultar irrelevante para o nosso assunto. É lícito supor — trata-se evidentemente apenas de hipóteses, mas muito prováveis — que o limiar perdido do Cancioneiro da Ajuda não abrangesse textos com características diferentes das da cantiga de amor. Mas, ao que parece, há uma excepção, uma pequena mas importante excepção, ou que tal poderia ser se tivéssemos a certeza de que essa grande lacuna inicial incluía uma parte considerável dos 92 textos que lhe correspondem no Cancioneiro da Biblioteca Nacional: uma certeza que evidentemente não temos. Mas de qualquer maneira, acho útil lembrar que a cantiga n.º 78 de B, atribuída a Fernan Paez de Tamalancos — galego, um dos mais antigos trovadores peninsulares, já documentado em 1204 e que, entre 1216 e 1242, foi tenente do Castelo de Búval, a cuja circunscrição pertence a povoação de Tamalancos, segundo Resende de Oliveira 1 —, a cantiga n.º 78, dizia, não parece corresponder perfeitamente ao cânone do género «de amor». No meu Repertorio metrico… e nos meus estudos sobre a lírica medieval (também no recente Trovadores e jograis…, publicado em 2002) qualifiquei-a de «cantiga de amor jocosa», mistura de elementos da cantiga de amor e dos da de escárnio; mas, vendo bem, esse texto parece ter muito menos elementos do primeiro que do segundo género. Talvez valha a pena voltar a lê-la, com maior cuidado e mais sossegadamente, na edição de D. Carolina 2: Gran mal me faz agora’l rei que sempre servi e amei, porque me parte d’u eu ei prazer e sabor de guarir. Se m’eu de Marinha partir’, non poderei alhur guarir.

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A. Resende de Oliveira, Depois do espectáculo trovadoresco. A estrutura dos cancioneiros peninsulares e as recolhas dos séculos XIII e XIV, Lisboa, Edições Colibri, 1994, p. 343. 2 Cancioneiro da Ajuda. Edição critica e commentada por Carolina Michaëlis de Vasconcellos, 2 vols., Halle a. S., Max Niemayer, 1904, I, p. 712 (n.º 362).

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Muit’é contra mi pecador, el rei, forte [e] sen amor, porque me quita do sabor e grande prazer de guarir. Se m’eu de Marinha partir’, non poderei alhur guarir. É este, sem dúvida, um texto muito interessante, no sentido em que não é, ou pelo menos não parece, uma verdadeira cantiga de amor, e por várias razões: em primeiro lugar, é a meu ver significativa a ausência do mais típico indicativo do género de amor, a fórmula de invocação ou evocação da «senhor», e nem a simples palavra «senhor» aparece na cantiga; em segundo lugar, o destinatário da queixa não é uma mulher, uma «senhor», mas o rei; em terceiro lugar, a menção do nome da mulher, Marinha, se bem que relegada no refram, infringe a lei do «segredo», um dos elementos fundamentais do género «cantiga de amor»; e finalmente, esse nome, Marinha, evoca logo o duma soldadeira, Marinha Mejouchi, à qual se dirige Pedr’Amigo numa cantiga de escárnio (V 1199). Todos estes elementos jogariam em favor da hipótese de que o Cancioneiro da Ajuda não incluiria exclusivamente cantigas de amor mas também cantigas «jocosas», que sem muitas dificuldades poderíamos mesmo definir como cantigas de escárnio. É também verdade que aqui estamos a viajar no campo das conjecturas, mas estas conjecturas poderiam ser apoiadas por outra consideração: nessa hipótese «reconstrutivista» de D. Carolina — isto é, que a secção inicial perdida do Cancioneiro da Ajuda poderia ter correspondido à secção paralela do outro cancioneiro e que portanto essa lacuna poderia ser preenchida por uma parte do segmento inicial do Cancioneiro da Biblioteca Nacional — entraria também outra cantiga do mesmo trovador, à qual nesta última recolha Angelo Colocci atribuiu o n.º 74, e que, mesmo sendo sem dúvida uma cantiga de amor, poderia ser também classificada como «burlesca». Mas o problema principal é outro: será essa hipótese de D. Carolina viável? A minha resposta a essa pergunta é, e não pode ser outra: «Quem sabe? Eu não!» Entre as cantigas do Cancioneiro da Ajuda a que D. Carolina atribuiu os n.os 13 e 14, haveria outra lacuna, que a ilustre filóloga indicou como «lacuna n.º 2», e que na sua opinião deveria ser preenchida pelos onze versos conclusivos da cantiga 103 (= A 13), a última da série de Vasco Praga de Sandin, e por mais três textos, iniciais da série de Johan Soaires Somesso (n.os 104, 105 e 106 de B). Mais uma vez, temos que recorrer ao tal cotejo com o cancioneiro maior. Mas desta vez a comparação revela que aqui o Cancioneiro da Ajuda não perdeu, além dos versos finais da n.º 13 (= B 103), as três cantigas numeradas por Colocci 104, 105 e 106 e atribuídas a Johan Soaires; e isto, porque em A a série deste trovador começa indubitavelmente pela cantiga n.º 14, precedida pela miniatura que, como se sabe, marca a entrada dum novo poeta. A situação do códice, neste ponto, pode ser representada desta maneira: A 13 (= B 103) incompleta (Vasco Praga); A 14 (= B 107) miniatura no início da primeira coluna, logo seguida por Quero-vus ora rogar, de Johan Soaires. 229

Parece-me evidente que esta lacuna n.º 2, postulada por D. Carolina, não podia ter incluído senão a porção final do n.º 13 e eventualmente outra ou outras cantigas de Vasco Praga, irremediavelmente perdidas, mas não as três cantigas de Johan Soaires aqui hipoteticamente colocadas pela filóloga (e publicadas como parte integrante do códice na secção final da sua edição, nos 375, 376, 377), porque a presença de uma miniatura encabeçando a folha exclui absolutamente que antes da cantiga Quero-vus ora rogar houvesse em A outros textos do mesmo autor, nomeadamente os três que a antecedem em B. Infelizmente, esta redução revela-se exicial para a minha tentativa de responder positivamente à inexorável pergunta do título. A primeira dessas três cantigas que, na hipótese de D. Carolina, deviam preencher a lacuna em A mas que — ai de mim! — não preenchem nada, é com efeito uma perfeita cantiga de escárnio — Ogan’en Muimenta — que, a ter sido efectivamente inserida nessa folha arrancada do Cancioneiro da Ajuda, havia de poupar-me muito trabalho. Mas o problema é ainda mais grave, porque a exclusão de Ogan’en Muimenta das possíveis provas duma heterogeneidade primitiva do nosso cancioneiro derrama dúvidas também sobre esse outro texto de Fernan Paez de Tamalancos, ele também destinado a reintegrar uma lacuna. E com efeito, se — como parece óbvio — Ogan’en Muimenta não fazia parte de A, é muito provável que nem Gran mal me faz agora’l rei entrasse na história. De maneira que estamos ainda na impossibilidade de responder à pergunta do título com um liberatório «Não, não só cantigas de amor». Problemas análogos aos da primeira lacuna são aqueles com os quais deparamos na terceira, que, sempre na base do cotejo com B, envolveria uma quantidade muito maior de material textual — vinte cantigas, numeradas em B 124-145 (das quais uma lacuna privativa de B engoliu os nos 138 e 139) — e na opinião de D. Carolina faltaria um caderno inteiro. Entre estas vinte (ou vinte e duas) cantigas, pelo menos quatro não são «de amor»: a n.º 143, Pero non fui a Ultramar, de Martin Soarez, as duas (n.º 140 e n.º 142) que pertencem a Pero Velho (Par Deus, dona Maria e Vi eu donas en celado) e a tenção entre Pero Velho e Pai Soares (n.º 144, Ai, Pai Soarez, venho-vus rogar); podemos acrescentar à lista Agora me quer’eu ja espedir (n.º 135), de Nun’Eanes Cerzeo, que, mesmo sendo de amor, é um verdadeiro descordo, talvez o único autêntico descordo dos nossos cancioneiros. E então? Que podemos deduzir destes elementos? Que o Cancioneiro da Ajuda não incluía apenas cantigas de amor? Eu continuaria a dizer: «Quem sabe? Eu não!» Porque não temos a certeza de que a comparação entre os dois códices nos revele se e quais dos textos de B ausentes em A estariam efectivamente presentes nesse caderno perdido, do qual, além de tudo o mais, desconhecemos mesmo as dimensões: os textos ausentes em A poderiam ter cabido num ternione, mas — se a descrição de D. Carolina é exacta — os cadernos contérminos seriam quaternioni, de maneira que, admitindo uma dimensão reduzida do caderno em questão, teríamos de acrescentar hipótese a hipótese, sem ter um ponto de referência certo no qual apoiar ou sobre o qual construir esse incerto castelo de areia. Mas este horizonte sombrio esclarece-se de repente no lindar da quarta lacuna, desta vez uma lacuna de B, em correspondência da qual A transcreve 230

quatro textos: e, maravilha das maravilhas, um destes textos é o que na edição de Halle leva o n.º 38, No mundo non me sei parella (ou No mundo non sei parella, omitindo «me» por razões métricas), uma cantiga anómala de Martin Soarez; anómala não apenas por revelar praticamente o nome da senhor — «filla de don Pai / Moniz», a famosa Ribeirinha —, mas sobretudo pela atrevida afirmação de tê-la visto «en saia» e de querer retratá-la «branca e vermelha». Esta última locução parece-me muito interessante: embora o ditado do poeta resulte intencionalmente vago e indeterminado, eu interpretá-lo-ia em sentido irónico; por outras palavras, o poeta teve a sorte, ou a oportunidade, de surpreender Maria Paez numa situação de intimidade feminina, enquanto — vestida apenas de um indumento interior — estava ocupada a maquilhar-se, provavelmente mirando-se ao espelho; e Martin Soarez propõe-se pintá-la nessa atitude, talvez utilizando para o retrato as mesmas cores de que a mulher se serve para pintar a cara. Se esta leitura pode parecer excessivamente livre, lembremo-nos da cantiga de escárnio Donzela, quen quer entenderia (B 1602, V 1154) em que Pero d’Armea troça de uma mulher (uma donzela) que pinta a cara de «branqu’e vermelho», afirmando que, tratado da mesma maneira, o seu traseiro nada teria que invejar-lhe quanto ao «parescer» 3; e lembremo-nos também da resposta que lhe deu Pero Garcia d’Ambroa, Pero d’Armea, quando composestes / o vosso cu, etc., que segue imediatamente a de Pero d’Armea. A aproximação entre estas duas cantigas e a de Martin Soarez fornece-nos, creio eu, a correcta chave de leitura desta última, da qual as outras oferecem uma interpretação que poderíamos definir «autêntica». Por outras palavras, No mundo non (me) sei parella não é apenas uma cantiga de amor anómala, mas é uma verdadeira cantiga de escárnio. E não só isso. Porque no mesmo grupo, a preceder No mundo non sei parella (A 38) aparece mais uma anomalia tipológica, isto é, Eu sõo tan muito amador (A 37), onde Martin Soarez proclama, sobretudo nas duas primeiras estrofes, o seu amor não já a uma «senhor», mas à sua própria linhagem e a uma parenta sua: se a atribuição e a interpretação de Valeria Bertolucci Pizzorusso é exacta — e eu julgo que sim —, a parenta de que se fala seria parenta não do poeta, mas de Pai Soarez de Taveirós (talvez a própria Ribeirinha), e o texto seria uma mofa dirigida a este prócere, à sua bazófia aristocrática, ao seu apego à linhagem, a uma sua preferência por amores, digamos assim, «endogâmicos», internos ao clã. Esta cantiga, mas talvez também a outra, seriam então cantigas não em nome próprio, mas em nome de outrem, procedimento que denunciaria já por si uma intenção trocista, para não dizer satírica: os dois

3 Deste texto (e do de Pero Garcia d’Ambroa) já tive a oportunidade de falar, tentando explicar os motivos da inserção, nos cancioneiros, de uma cantiga de maldizer por assim dizer «obscena», como muitas outras, mas desta vez da autoria de um jogral; uma tipologia de que essa cantiga constitui, que eu saiba, o único exemplo. Cf. «Sátira e improperio nella lirica galego-portoghese», no meu livro Tra Galizia e Provenza, Roma, Carocci, 2002, pp. 63-107 [65-68].

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são textos evidentemente ambíguos, mas de uma ambiguidade que é típica da técnica do escárnio «per palavras cubertas que hajan dous entendimentos, pera lhe-lo non entenderen… ligeiramente» 4. A colheita que se anunciava escassa e infirmada por algumas dúvidas, começa agora a apresentar-se mais frutuosa: se as lacunas do Cancioneiro da Ajuda não nos deram respostas certas ao dilema, uma lacuna de B e a boa vontade do antologiador de A permitiriam já agora responder à pergunta inicial: não só cantigas de amor, mas também cantigas de escárnio. Contudo, alguém poderia objectar que uma andorinha não faz a Primavera, e nem sequer duas. E portanto, continuemos com a nossa pesquisa. E logo, esquadrinhando os dois cancioneiros A e B, deparamos com outro texto que, sem vacilações, poderíamos afirmar que não é uma cantiga de amor: desta vez não se trata de uma cantiga privativa deste ou daquele códice, mas de uma composição que foi transcrita em ambos. O responsável — queria dizer, o poeta — é mesmo o nosso conhecido Martin Soarez, que deve ter gozado de grandes apoios (ou de grande consideração) entre os antologiadores por ter conseguido fugir tantas vezes à rigorosa aplicação da estrutura tripartida que caracteriza os nossos — mas não apenas os nossos — cancioneiros. Com efeito, a cantiga classificada por D. Carolina com o n.º 62 e por Colocci com o n.º 173 — Pois non ei de don’lvira — é ela também uma cantiga de escárnio: Pois non ei de don’lvira seu amor e ei sa ira este farei, sen mentira: pois me vou de Sancta Vaia, morarei cabo da Maia, en Doir’, entr’o Port’e Gaia! Se crevess’eu Martin Sira nunca m’eu dali partira d’u m’el disse que a vira en Santoane… en saia! morarei cabo da Maia, en Doir’, entr’o Port’ e Gaia! Deixando de lado qualquer possível comentário mordaz sobre a preferência de Martin Soarez em matéria de vestuário íntimo das senhoras, temos de

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G. Tavani, Arte de Trovar do Cancioneiro da Biblioteca Nacional de Lisboa. Introdução, edição crítica e fac-símile, Lisboa, Edições Colibri, 1999, p. 42.

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reconhecer que a cantiga em questão não corresponde em nada aos parâmetros da cantiga de amor. E a este respeito, considerando que Pois non ei de don’lvira ocupa, na sequência textual dos dois códices, o mesmo lugar, pergunto-me (entre parênteses) se o organizador do arquétipo que deu origem a B (e a V) não pode ter estruturado a sua recolha também (mas não só, evidentemente) na base de A. Resulta com efeito muito improvável que dois antologiadores, independentemente um do outro, à distância de meio século e activos em âmbitos culturais diferentes, tivessem adoptado a mesma atitude perante uma cantiga alheia ao género que estavam a antologiar. Mas fechemos o parêntese, e voltemos ao nosso assunto. Depois desta terceira andorinha — que já nos deixa entrever a resposta à interrogação do título — a Primavera parece mais próxima. Mas prossigamos no inquérito, à espera de melhor. Ou «da melhor»? Pero Garcia Burgalês não quer revelar o nome da «senhor», e para manter secreta a sua identidade, não diz se a melhor é Joana, Sancha ou Maria: e assim, ficamos sem saber se ele quis infringir a norma do anonimato da «senhor», modulando três cantigas anómalas (A 104-105-106, B 212-213-214) de carácter irónico, ou se efectivamente utilizou esses três nomes para encobrir a verdadeira destinatária da canção (três «donne dello schermo», ou duas apenas?), embora a segunda das duas canções nos revele que a destinatária «encoberta» percebeu o sentido da alusão, zangou-se, e quis ao poeta «gran mal, maior non poderia», enquanto as outras duas parece que se ofenderam porque o Burgalês não queria desvendar o mistério. Eu diria, a este respeito, que o jogo de dizer e não dizer, a ambiguidade das alusões, o uso da aequivocatio de que fala a Arte de Trovar, fazem com que estes três textos não possam ser classificados como autênticas «cantigas de amor», mas que conviria considerá-los como uma série de motejos que entrariam na categoria das «cantigas de escárnio»: de maneira que podemos tê-los em conta para o nosso inquérito. Ficamos contudo bastante decepcionados por não termos chegado a saber se a que se zangou, isto é, a verdadeira destinatária da primeira canção, era Joana, Sancha ou Maria, e se as que ficaram decepcionadas por o não serem eram Maria, Sancha ou Joana. Talvez não valha a pena mencionar, nesta procura de cantigas não de amor do Cancioneiro da Ajuda, a composição D’este mundo outro ben non querria, de Roi Queimado (A 130, B 251), embora este seja um texto bastante invulgar: o poeta deseja que a «senhor» venha a saber «com’og’eu moiro», mas não quer dizer-lho ele, nem quer que ela o saiba por outrem; a coitada deveria «entender» «de seu sen», e se ela não tiver «sen» suficiente, Roi Queimado «rog’a Deus e a sancta Maria… que ben assi lh’o façan entender»; uma exigência realmente excessiva, esta de reclamar a intervenção de boa parte dos principais representantes do Panteão divino (faltaria só Jesus) para poupar ao trovador o incómodo de revelar pessoalmente ao objecto das suas atenções a paixão que o mata. Evidentemente, as supremas autoridades celestes não devem ter considerado viável a hipótese de uma intervenção directa em prol do amante, e a «senhor» não devia ser particularmente perspicaz, porque na cantiga seguinte Roi toma a decisão de confessar ele próprio o segredo que nem 233

o «sen» da «senhor» chegou a entender, nem a solicitada mas muito provavelmente não conseguida intercessão dos céus quis pôr ao alcance dela. Mas esta não queria ser mais do que uma pequena digressão em tom de brincadeira, para levantar o moral e compensar a baixa de interesse e de concentração que irremediavelmente atinge quer os ouvintes quer o próprio conferencista, depois de meia hora de conversa. Voltemos ao assunto. Prosseguindo na caçada, eis logo outro par de andorinhas ao alcance da nossa pontaria. São as cantigas A 142 (B 263), Preguntou Johan Garcia, e A 143 (B 264), Pois [que] eu ora morto for, as duas do nosso conhecido Roi Queimado, e ambas — sem qualquer possibilidade de dúvida — autênticas «cantigas de escárnio». Parece-me interessante salientar que os dois textos em questão são os últimos que subsistem da série deste trovador no Cancioneiro da Ajuda, mas na opinião de D. Carolina haveria aqui uma lacuna («falta uma meia-folha: n.º 4β do caderno VI»). Não tenho a possibilidade de verificar a situação codicológica do Cancioneiro da Ajuda neste caderno, mas se a asserção da nossa filóloga corresponder à verdade, a meia folha perdida, ou arrancada podia ter incluído as duas cantigas que em B (nos 265-266) seguem B 264 = A 143, Pois [que] eu ora morto for. E uma destas, a primeira (B 265), é uma «cantiga de amigo» (O meu amigo, que me mui gran ben). Quero imaginar que esta lacuna exista realmente e que os textos que lhe correspondem em B sejam deveras os que figuravam na meia folha arrancada de A de que fala D. Carolina, porque a eventual, embora hipotética, presença neste lugar de uma amostra de canção de mulher nos ofereceria uma andorinha muito especial. Mas já vimos que, enquanto as lacunas de B parecem por vezes indicar, na comparação com A, a intervenção do antologiador do arquétipo de BV para eliminar, de um contexto poético amoroso, cantigas incôngruas (incôngruas na perspectiva de uma rigorosa repartição por géneros), o mesmo não se pode afirmar com certeza no caso das lacunas de A preenchidas em B por material também incôngruo. Queria referir-me não apenas ao texto acima mencionado (O meu amigo, que me mui gran ben), como também a outro, que B exibe com o n.º 332, relacionado com outra lacuna de A (entre os n.os 184 e 185), atribuído a Rodrigu’Eanes Redondo, Dê-lo dia, ai amiga: uma cantiga de amigo muito esquisita, onde todos choram, a amiga, a amiga da amiga e o amigo, e que por isso seria um autêntico petisco para nós. Mas não quero fazer conta destes textos, nem falarei de outras lacunas de A preenchidas por B, porque conjecturas sobre a consistência e essência dessas faltas, nas condições codicológicas de A, podem resultar atrevidas e portanto perigosas. Convém portanto continuar a pesquisa, à procura de apoios ao nosso propósito, que sejam ao mesmo tempo mais firmes e mais adequados. Deixemos de lado as duas cantigas de Johan Soarez Coelho (A 166 = B 318, Atal vej’eu aqui ama chamada, A 171 = B 322, Desmentido m’á’qui un trobador) que pertencem ao famoso ciclo das amas: cantigas de amor, sem dúvida, embora contaminadas por elementos lexicais e retóricos alheios à tipologia e ao estilo próprios desta categoria de textos. Melhor sorte temos, pelo contrário, com uma canção de Rui Paez de Ribela, a bem conhecida cantiga (A 198 = B 349)

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onde o trovador não só interpela a «senhor» pelo seu nome no refram inicial («Par Deus, ai dona Leonor»), mas declara, fora de qualquer cânone, Com’antr’as pedras bon rubí sodes, antre quantas eu vi. Ora bem: a menção do nome da dama, o tom jocoso e até diria sarcástico com que o poeta enaltece quer a beleza dela quer a perícia e o poder que Deus mostrou em fazê-la tão perfeita, e a invulgar comparação conclusiva, são outros tantos elementos que afastam o texto da tipologia clássica da cantiga de amor; aos quais eu acrescentaria os dois versos finais da terceira estrofe, onde Rui Paez proclama, com uma boa dose de presunção, que Deus vus fez por ben de mi, Que ten comigo gran amor! Uma das peças mais interessantes da colheita que consegui fazer neste percurso através do Cancioneiro da Ajuda talvez seja porém aquela com o n.º 256 na edição de Halle: outro exemplo de cantiga não de amor inserida entre as cantigas de amor de Pai Gomez Charinho, isto é, o bem conhecido panegírico De quantas cousas eno mundo son, onde o almirante-poeta equipara o «rei de Castela e de Leon» nada menos que ao mar. Sabido é que o responsável pelo arquétipo de BV reorganizou e deslocou as cantigas de Pai Gomez, eliminando algumas, entre as quais também este elogio de Afonso, o Sábio, que portanto é transmitida unicamente por A. Estamos quase a acabar a nossa viagem ao longo do Cancioneiro: só falta mencionar dois ou três textos heterogéneos. Em primeiro lugar, o sirventês anónimo — mas atribuído, na base de elementos muito frágeis, por Carolina Michaëlis a Martin Moxa — Quen viu o mundo qual o eu ja vi (A 305), uma laudatio temporis acti que poderia pertencer a outro qualquer dos autores de poemas desse tipo; depois, a cantiga também anónima e que transgride a norma do segredo Se eu ousasse a Maior Gil dizer (A 301); para concluir com as duas cantigas de Pedr’Eanes Solaz, Eu sei la dona velida (A 281) — ritmicamente anómala — e sobretudo a A 282, cantiga jocosa que se coloca sem dúvida fora do género de amor: Non est a de Nogueira A freira qu m’en poder ten. Poder-se-iam acrescentar à lista duas cantigas dialogadas que participam do género de amor e do de amigo, Senhor, veedes-me morrer (A 230), de Johan Garcia de Guilhade, e Vedes, senhor, quero-vus eu tal ben (A 240, B 428, V 40), de Estevan Faian, onde o refram na primeira e o último verso de cada estrofe 235

e mais o refram na segunda, introduzem no tecido «de amor» uma mínima porção de «cantiga de mulher», um género que, na impossibilidade de provar a viabilidade das conjecturas relativas às lacunas de A, estaria inteiramente ausente do nosso Cancioneiro. É bem verdade que as condições em que se encontra hoje em dia o códice não permitem tirar conclusões definitivas sobre o projecto editorial que presidiu à confeição do «livro». Para esse venerável documento dum período poético de grande relevo para a história da cultura, a passagem pelo Colégio dos Nobres terá sido efectivamente exicial, mas as suas desgraças devem ter começado muito antes. E contudo, se observamos os estragos a que os homens sujeitaram o Cancioneiro possivelmente dionisino cujas escassas relíquias descansam hoje na Torre do Tombo, temos de reconhecer que o Cancioneiro da Ajuda teve sorte. Mesmo na situação actual, esse livro medieval pode dizer ainda muitas coisas sobre o ambiente cultural que o produziu, sobre o seu comitente e o seu ou os seus destinatários, sobre o conceito de cultura que se encontra na sua origem. Devo dizer que a releitura desse livro, que desta vez eu li como um livro e não como uma miscelânea qualquer de protagonistas literários, foi fascinante e convenceu-me de que o juízo de monotonia aborrecida pronunciado por D. Carolina é errado, e que seria preciso revê-lo: porque as cantigas de amor não são todas iguais, e antes pelo contrário apresentam uma variedade de situações, de estilos, de fórmulas, de ritmos narrativos, retóricos e métricos não menos cativantes do que as dos outros géneros canónicos. E desta descoberta sou devedor a Maria Ana Ramos e ao seu desafio. O qual, a este ponto, comporta obrigatoriamente uma resposta negativa: não, não só cantigas de amor, mas também sirventeses, escárnios, mofas, brincadeiras, um panegírico em testemunho único, etc., etc.: e também cantigas de amor, de uma variedade que — contra o que se crê comummente — aparece em toda a sua dimensão na leitura seguida do cancioneiro, muito mais do que na leitura segmentada por autores. A conclusão? Voltemos ao Cancioneiro, mas olhando-o como indivíduo, lendo-o como livro, estudando as presenças e as ausências, procurando desvendar o mistério da sua origem e dos estímulos culturais que sugeriram a sua elaboração, a sua confeição e composição, as inclusões e as exclusões. E aprontando uma edição crítica do «livro» considerado como entidade autónoma e não apenas como porção subalterna de um conjunto que excede as suas limitadas dimensões, e no qual deve conviver com outros «livros», que são, por sua vez, testemunhos de outro ambiente social, de outro projecto cultural, de outra encomenda e de outros destinatários. Não pretendo dizer com isto que esse livro se tornaria o nosso livro de cabeceira: seria pretender demasiado; mas creio — depois da leitura seguida que fiz — que poderia ser um livro de leitura agradável. Dixi. Gratias vobis ago.

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AS GLOSAS MARGINAIS E O CANCIONEIRO DA AJUDA

YARA FRATESCHI VIEIRA Universidade Estadual de Campinas

Como sabemos, e é, aliás, o motivo da nossa reunião aqui nestes dias — passados cem anos do evento —, a edição do Cancioneiro da Ajuda veio a lume em 1904, publicada pela casa de Max Niemeyer, então sediada em Halle an der Saale. O envolvimento inicial da autora com o assunto e com o projeto que a levaria, por fim, ao resultado então oferecido aos leitores começara, de acordo com o seu próprio relato, há «mais de um quarto de século», quando, recém-chegada da Alemanha, gastara os «meses felizes e saudosos (de maio a setembro de 1877), […] na empresa de decifrar e copiar, com paixão e paciéncia, essas pájinas seis vezes seculares». Estando a «Adverténcia Preliminar» ao volume I datada do Porto, fevereiro de 1904, é fácil fazer as contas: os dois volumes publicados representavam o trabalho de 26 anos e nove meses. Sabemos ainda que o processo de impressão propriamente dito levou quase dez anos, começando os textos a serem impressos em 1895 e o volume II, dedicado às Investigações literárias, em 1900 1. Apesar da decisiva contribuição que os

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C. Michaëlis, Cancioneiro da Ajuda, vol. I, pp. v-vii.

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dois volumes traziam para o estabelecimento dos textos e para a iluminação dos aspectos relacionados ao que C. Michaëlis considerava o Cancioneiro Geral Peninsular, ainda assim, informa ao leitor, deixava de incluir, no volume I, as projetadas e muito provavelmente já escritas «Notas relativas às Trovas», e um Glossário completo, e no volume II, «investigações sôbre as poesias (conteúdo e forma, metrificação e linguajem) com um elenco gramatical». A sua intenção, na altura em que finalmente saíam à luz os dois volumes, era reunir essas partes num terceiro volume 2, o que infelizmente não ocorreu; apenas o Glossário, como sabemos, chegou a ser publicado no volume XXIII da Revista Lusitana, datado de 1920, embora a «Explicação Prévia», de punho da autora, tenha a data de fevereiro de 1922 3. Ao traçar para o leitor o percurso árduo e por vezes turbulento das suas investigações sobre os assuntos direta ou indiretamente relacionados ao códice da Ajuda, C. Michaëlis informa, na mesma «Adverténcia Preliminar» ao volume I da sua edição, que publicara de 1896 em diante «uma série de ensaios exejéticos — Randglossen zum altportugiesischen Liederbuch — relativos a cantigas escuras, restituídas», tendo sido obrigada a isso pela acumulação crescente dos materiais, «que iam tomando proporções desmesuradas, obrigando-me a desobstruir o caminho, afim de aproveitar nas partes ilustrativas do Cancioneiro apenas resultados jeraes, sem entrar em minúcias excessivas» 4. A Resenha Bibliográfica que abre o volume II, dedicado às Investigações bibliographicas, biographicas e historico-litterarias, contém referências a quatro das Randglossen ou Glosas Marginais 5: a de n.º XII, a de n.º I e as de n.º II e XV 6. No entanto, a única referência bibliográfica completa que registra é a da Glosa n.º I, «O Processo da Ama», saída em 1896, uma vez que a Resenha

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Canc. da Ajuda, vol. I, p. vii. Numa carta dirigida a José Leite de Vasconcelos (Epistolário, cota 22622), informa: «Quanto ao Vol. III do Cancioneiro da Ajuda — apenas lhe digo que o meu editor não o principia nem aceita o Ms. (que ainda não passei a limpo) sem ter as provas na mão de que alguém se interessa pelos primeiros dois. E por ora ninguém disse uma palavra sequer a respeito d´elles. Dos exemplares que há em Portugal julgo que se vendeu um. Não imagina a magoa que isso me causa.» 3 Glossário, Canc. da Ajuda, vol. I, p. ix. C. Michaëlis também declara, na mesma «Explicação Prévia», que publicara «dezoito anos» antes o Cancioneiro da Ajuda, o que nos reporta naturalmente ao ano de 1922. O Glossário foi incluído no volume I da reimpressão da Imprensa Nacional-Casa da Moeda (1990) e teve também uma reimpressão, no mesmo ano, pela editora Lucerna, do Rio de Janeiro. 4 Canc. da Ajuda, vol. I, p. vi. 5 Sirvo-me daqui para a frente da versão portuguesa Glosas Marginais ao Cancioneiro Medieval Português, tradução do alemão das Randglossen zum altportugiesichen Liederbuch. Cf. Y. F. Vieira et al., Glosas Marginais. 6 A primeira numa nota a propósito do romance de D. Fernando, contrapondo-se à interpretação de Menéndez Pelayo (Canc. da Ajuda, II, p. 68) e as duas últimas, em nota à p. 83, acerca do artigo de Lollis sobre Sordello di Goito.

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Bibliográfica, incluindo o Post-Scriptum 7, somente acolhe obras publicadas até o ano de 1900; ora, as Glosas Marginais de número II a XV só apareceram impressas entre 1901 e 1905. No parágrafo 86, que introduz o item de n.º 71, referente à Glosa Marginal I, informa, porém, que se trata de um primeiro estudo «de uma longa serie que deve encher um volume» 8. O fato de não se registrarem as demais glosas numa resenha bibliográfica que só vai até o ano de 1900 é perfeitamente compreensível; no entanto, que se mencionem outras glosas que só seriam publicadas nos cinco anos seguintes é indício de que os referidos estudos já se encontravam prontos e entregues ao editor, Gustav Gröber, diretor da revista Zeitschrift für romanische Philologie, a cargo do mesmo Max Niemeyer, de Halle. Temos, com efeito, a confirmação disso no Aditamento à Glosa V, onde a autora, impaciente com a demora na publicação daquele estudo, exclama: «Enquanto estas páginas, escritas no Outono de 1899, repousavam em Estrasburgo, publicou-se na Itália um artigo no qual C. de Lollis se ocupava da formosa cantiga do marinheiro.» 9 Segundo tudo parece indicar, C. Michaëlis entregou ao diretor da Zeitschrift für romanische Philologie muito mais do que as quinze Glosas Marginais que ali foram publicadas entre os anos de 1896 e 1905. Há um espaço maior de tempo entre a publicação da primeira, «O Processo da Ama», que saiu no volume XX do ano 1896, e as demais, aparecidas no volume XXV, de 1901 (Glosas II a VII); XXVI, de 1902 (Glosas VIII a XII); XXVII, de 1903 (Glosa XIII com os respectivos Anexos); XXVIII, de 1904 (Glosa XIV); e XXIX, de 1905 (Glosa XV). É possível que a série como um todo se delineasse apenas depois da publicação da primeira, uma vez que a Introdução ao conjunto se encontra anteposta à Glosa II, logo a seguir a um elenco dos títulos a serem publicados: não quinze, como afinal saíram a lume, mas trinta e dois. Ora, essa lista coincide quase perfeitamente com a listagem que C. Michaëlis inclui no Índice Alfabético Remissivo do volume II do Cancioneiro da Ajuda, com a única diferença de que nesta última se acrescenta uma 33.ª, dedicada ao «Fado» 10. Uma nota introduzida no capítulo «Noções Geraes acêrca dos Trovadores» do volume II do Cancioneiro da Ajuda, em 1903, quando revia as provas, informa-nos: «O ms. dos Nos. II — XXXVIII acha-se, desde março de 1900, em Strassburgo para pouco a pouco sahir no vol. XXV e ss. da Zeitschrift. — P. S. No momento de

7 Embora afirme à p. 86 que terminara a resenha bibliográfica em 15 de junho de 1899, no Post-Scriptum (pp. 88-98) registra obras que foram publicadas até 1900. 8 Canc. da Ajuda, II, p. 82. Sabemos, por carta dirigida a José Leite de Vasconcelos, datada de 18 de fevereiro de 1902 (Epistolário, cota 22663), que teria preferido publicá-la num volume; não conseguira, contudo, convencer o editor Max Niemeyer a fazê-lo: «Eu qu[eria] todos esses ensaios em volume. O Niemeyer, por[em] não concordou, dizendo que as poucas pessoas que [se] occupavam de Portugal, eram todas assignantes da revista. Passion — et patience!» 9 Glosas Marginais, p. 170. 10 Canc. da Ajuda, II, p. 986.

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revêr estas provas — abril de 1903 — estão impressos os estudos II — XIII» 11. É possível que o numeral romano XXXVIII fosse um mero equívoco por XXXIII 12; no entanto, ao publicar em 1920, no Rio de Janeiro, na Revista de Língua Portuguesa, o artigo «Olhos verdes … olhos de alegria» (incluído no volume da versão portuguesa como a Glosa XVI 13), aludia à discrepância entre os artigos entregues e os efetivamente publicados e acrescentava: «Quando publiquei o meu elenco (Zeitschrift XXV, p. 129 e 188 [*sic, na verdade só 129]), calculei as notas em trinta [*sic, na verdade, 32]. Hoje as esboçadas chegam a quarenta» 14 (ênfase minha). De todas essas Glosas, que lamentavelmente não pudemos localizar 15, apenas duas são explicitamente mencionadas como inéditas: a XXVIII, sobre Maios e Maias 16, e a XXXIII, sobre o fado 17. As quinze Randglossen publicadas, se reunidas num único volume, ocupariam 416 páginas. Não admira, portanto, que a autora preferisse publicá-las separadamente para, como ela mesma o declara, «desobstruir o Cancioneiro da Ajuda, para o qual o volume de matéria se tornou excessivo» 18, uma vez que o volume II deste último já passara das mil páginas. No entanto, é possível que outros motivos justificassem a publicação dos dois conjuntos em distinta estrutura e extensão (volume e ensaios), em diferente suporte material (livro independente e artigos em revista) e em línguas diversas (português e alemão). Para esclarecer esses aspectos, creio que se deve examinar, antes de mais nada, o diálogo que se estabelece entre os dois volumes do Cancioneiro da Ajuda e as Glosas Marginais. Considerando que o assunto geral que é objeto de ambos os estudos era, se não totalmente, pelo menos parcial ou complementarmente comum, e que o período em que foram elaborados, a partir de certa data, é o mesmo — como já vimos pelas referências cruzadas e pelas chamadas cronológicas em ambos —, é natural que se encontrem relações dialógicas entre eles. Podemos perguntar-nos, portanto, se essas relações são de natureza a repetir, corrigir, ampliar, resumir ou ordenar de forma diferente o que se encontra em cada um dos conjuntos. Comecemos com um levantamento dos assuntos tratados nas Glosas. A primeira, talvez a mais conhecida de todas, dedica-se a uma questão que entrou também no volume II do Cancioneiro: o processo da ama; no entanto,

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Canc. da Ajuda, vol. II, p. 586, n. 1. No maço 32 do Espólio C. Michaëlis, da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, existe uma lista manuscrita de 38 títulos. 13 Glosas Marginais, pp. 521-540. 14 Glosas Marginais, p. 521. 15 Vid. a discussão mais detalhada do assunto na «Introdução» ao volume da versão portuguesa das Glosas Marginais, pp. 6-15. 16 Canc. da Ajuda, vol. II, p. 830. 17 Canc. da Ajuda, vol. II, p. 907. 18 Glosas Marginais, p. 109. Cf., também, Canc. da Ajuda, vol. I, p. vi (vid. supra). 12

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enquanto neste volume o assunto é tratado de forma apenas alusiva 19, a Glosa Marginal dedica-lhe 73 concentradas páginas, onde se editam as cantigas consideradas parte do debate em torno da cantiga da ama, se esclarece num glossário final o sentido de palavras cruciais e se iluminam os aspectos histórico-biográficos relevantes. As Glosas de número II, III, IV, V e VI dedicam-se a editar, explicar e interpretar cantigas ou da autoria de Afonso X, ou de alguma forma relacionadas a ele; uma mera consulta ao índice remissivo das Glosas mostra a importância de Afonso X neste conjunto de ensaios: o rei é aí nomeado mais de duzentas vezes, sem falar das formas de referência indireta, enquanto o índice do Cancioneiro registra menos de trinta referências ao soberano. A Glosa VII é dedicada totalmente ao ciclo de cantigas que se referem à soldadeira Maria Peres, a Balteira, como «cruzada», e às demais cantigas de escárnio e maldizer dirigidas a outros peregrinos, verdadeiros ou falsos; no Cancioneiro da Ajuda o assunto é tratado de raspão, ao longo das biografias de compositores que abordaram o tema 20. As Glosas VIII e IX esmiuçam a identidade e a genealogia de duas personagens históricas que mereceram um pranto a Pero da Ponte: Telo Afonso e Lopo Dias, que também só recebem menção rápida no Cancioneiro 21; o caso deste último é especial, porque C. Michaëlis inclina-se a ver no magnata da casa de Haro o trovador que nos cancioneiros aparece como Lopo Lias ou Liáns, embora em nenhum momento, nem nas Investigações nem na Glosa Marginal IX, se manifeste absolutamente isenta de dúvidas sobre essa identidade. A Glosa X discute o descordo multilingue de Bonifácio Calvo, defendendo que a segunda estrofe está escrita em português arcaico e não em aragonês, como propusera Mario Pelaez; o mesmo assunto é tratado em um parágrafo na biografia do trovador genovês no Cancioneiro da Ajuda 22. A Glosa XI edita o sirventês de João Soares de Paiva, esclarecendo as questões ligadas à biografia do trovador e à identificação do rei de Aragão a que se refere o poema; nas páginas do Cancioneiro que dedica à biografia do trovador, anota que não se alongará nos detalhes biográficos por já o ter feito na Randglosse XI 23. O assunto da Glosa XII, o «romance de D. Fernando», de Airas Nunes (V 466), é apenas aludido em duas breves menções 24 no volume das Investigações. Por sua vez, a Glosa XIII, a mais longa, se nela incluirmos os Anexos, é também a que

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Canc. da Ajuda, vol. II, pp. 369-370. Cfr. Canc. da Ajuda, vol. II, pp. 345-346 (Pero Garcia Burgalês) e 532-534 (Pero Garcia d’Ambroa). 21 Cfr. Canc. da Ajuda, vol. II, pp. 411-412 e 456 (Telo Afonso) e 88, 220, 455, 525, 527, 564, 579, 599, 616, 738 (Lopo Dias). 22 Canc. da Ajuda, vol. II, p. 441. 23 Canc. da Ajuda, vol. II, p. 565. 24 Canc. da Ajuda, vol. II, pp. 67 e 68, na nota bibliográfica à Antología de poetas líricos castellanos, de Menéndez Pelayo, p. 599. 20

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mais se afasta dos assuntos comuns, embora se ligue, por um lado, a Afonso X (pois trata da figura controversa do infante D. Henrique de Castela, irmão do rei e conhecido internacionalmente como D. Arrigo, por ter sido senador de Roma e capitão-general da Toscana) e, por outro, se preocupe em identificar e esclarecer as pegadas que o polêmico infante deixou nas cantigas galego-portuguesas, como as duas cantigas de amigo de Gonçalo Eanes do Vinhal (V 999 e 1008); na Glosa em questão, C. Michaëlis edita ainda o sirventês composto pelo infante em italiano (Allegramente e con grande baldanza) e inclui diversos anexos com textos e documentos referentes a incidentes da sua aventurosa vida, bem como um longo anexo sobre os filhos de Fernando III. Todo esse farto material histórico e literário só é representado, no Cancioneiro da Ajuda, por três parágrafos inseridos a propósito da biografia do trovador Gonçalo Eanes do Vinhal 25. A Glosa XIV, cujo título é «Guarvaya», e o subtítulo «O Rei D. Sancho I como autor de uma cantiga de amigo», é ilustrativa do diálogo cerrado que se estabeleceu entre as duas obras, que se beneficiaram mutuamente do andamento das investigações da romanista. Ler paralelamente o longo ensaio e as passagens correspondentes no volume II do Cancioneiro da Ajuda é uma experiência iluminadora quanto ao método de trabalho e de escrita da autora, que sistematicamente revê as suas próprias interpretações e posições, acabando por oferecer ao leitor um texto in fieri, no qual não se escondem as marcas de um sujeito que assume a sua limitação pessoal, ao dizer «eu», e deixa patente o fluxo das mudanças que o tempo lhe imprime enquanto sujeito, e ao objeto do seu conhecimento, em decorrência de fatores internos e externos. Assim, inicia a Glosa XIV com uma entusiástica declaração: «Neste estudo, trago duas novidades surpreendentes, que, aliás, não tinha ainda investigado, quando há anos esbocei o seu conteúdo.» 26 Passa em seguida a explicitá-las, a estas duas novidades surpreendentes: trata-se, primeiro, da descoberta de um novo documento que lhe permite datar de 1189 o início das relações de Maria Pais Ribeiro, a Ribeirinha, com o rei D. Sancho I, e portanto datar do mesmo ano a composição da cantiga da guarvaia por Pai Soares de Taveirós, que ela julga, sem nenhuma dúvida, dedicada àquela dama, filha de (um) D. Pai Moniz. A certa altura, quando menciona a doação de Parada e Pousadela à Ribeirinha pelo rei, em 1200, comenta: «Esta doação, considerei-a anteriormente como a mais antiga. Vid. Canc. da Ajuda, Investigações, pp. 317, 323, comp. 528, 591, 757» 27. Se nos voltarmos, então, para a página 757 e ss. veremos como ali já se incorporaram os achados do ensaio: «Essa feiticeira […] é […] inspiradora das mais antigas composições gallego-portuguesas que me atrevi a datar: CA 38

25 26 27

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Canc. da Ajuda, vol. II, pp. 521-523. Glosas Marginais, p. 431. Glosas Marginais, p. 457.

e 37 de Pay Soares, do anno 1189; CB 454 [sic, por 456], do próprio Sancho o Velho, do anno 1199, se a rubrica, mal copiada por Colocci, e a interpretação que lhe dei, merecerem fé.» No que se refere à segunda novidade, isto é, a atribuição da cantiga B 456 a D. Sancho I, a sua interpretação como uma cantiga de amigo posta na boca da Ribeirinha quando o rei se encontrava nos trabalhos de fundação da Guarda, entre 1194 e 1199, constitui o ponto de chegada de um detalhado exame das razões de ordem externa e interna que a levaram a optar pela atribuição da cantiga a Sancho I, em vez de a Afonso de Leão. A questão está relacionada à idéia de um «Cancioneiro de Reis», idéia que ainda não se formara, como a autora declara, à p. 287 do volume II do Cancioneiro da Ajuda, embora já aparecesse mencionada à p. 594. Mas, acrescenta ela, «as ideias sobre o assunto estão do mesmo modo ainda em curso» 28. Quanto à Glosa XV, sobre a tenção entre Vasco Martins e D. Afonso Sanches, oferece-lhe a oportunidade de editar a tenção, a partir do confronto entre as variantes do manuscrito por ela encontrado na Biblioteca Municipal do Porto, no verão de 1894, e do manuscrito de Madrid publicado por Leite de Vasconcelos em 1902; além disso, de esmiuçar a genealogia do trovador Vasco Martins de Resende (trazendo-o até ao seu ilustre descendente e proprietário do manuscrito, o humanista André de Resende) e de Afonso Sanches, acrescentando ainda num anexo a edição das cantigas deste último. Interessa-me aqui chamar a atenção também para uma daquelas notas cronológicas, que poderíamos dizer «sinalizações de percurso», que nos são familiares na leitura das obras da filóloga. Assim, depois de ter descrito o manuscrito da Biblioteca Municipal do Porto e identificado o trovador dentre os antepassados de André de Resende, interrompe-se para informar: Aproximadamente assim escrevi no inverno 1894/95 [nota 80]. Mais tarde soube pelo Prof. J. Leite de Vasconcelos que ele encontrara, durante uma estadia em Madrid, em uma Miscellanea da Biblioteca Nacional, uma cantiga do trovador. A minha hipótese de que só poderia ser a tenção revelou-se correcta. A meu pedido, foi publicada na Revista Lusitana (VII, 145), com fidelidade diplomática. […] 29 Maria Ana Ramos já nos brindou com a «pequena história» da rusga entre os dois filólogos, que as notas presentes no volume II do Cancioneiro da Ajuda bem como na Glosa Marginal XV sinalizam, ainda que parcialmente; a história tornou-se-nos mais nítida nos seus detalhes ao ter a referida estudiosa encontrado

28 Glosas Marginais, p. 469. Para uma apresentação do estado da questão na atualidade, cf. E. Gonçalves, «Appunti…», pp. 422-425. 29 Glosas Marginais, p. 504.

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no exemplar do Cancioneiro da Ajuda de José Leite de Vasconcelos uma reação manuscrita do filólogo à nota de Carolina Michaëlis 30, e a cópia de uma carta sua à editora do Cancioneiro, datada de 9 de janeiro de 1902, onde se manifesta surpreendido pelos termos da nota (que dava a entender que ele «fa[zia] mistério da ciência») e esclarece que, afinal, fora ele mesmo que a informara da descoberta do manuscrito de Madrid. E acrescenta: «As trovas de Madrid devem ser as mesmas do Porto.» 31 No Espólio de Carolina Michaëlis custodiado na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra não encontrei essa carta de José Leite de Vasconcelos. Mas D. Carolina deve tê-la recebido, pois numa longa carta a ele dirigida, datada do Porto, 18 de fevereiro de 1902 32, onde trata de vários assuntos (inclusive a perda ou extravio de cartas que ela lhe enviara), o primeiro deles é uma resposta à admoestação do filólogo e amigo: 1) Na Nota que lhe diz respeito a p. 109 não há nem sombra de ironia [sublinhado da autora; por baixo, riscado: «a mais leve»]. Eu imaginei — julgando por mim — que V.E. teria prazer em publicar o seu achado. Por isso não lho pedi. Ouvi dizer por soube é incorrecto. V.E., e mais ninguem, me fallou (em carta ou verbalmente — não, foi em carta) [da d] escoberta. Porque não publicou ou [public]a agora na Rev. Lus. As Trovas de Madrid? A Randglosse [acrescentado a lápis: XV. Por Leite de Vasconcelos?] que diz respeito à tenção de Vasco Martins de Resende e D. Affonso Sanches não tardará muito em ser impressa na Zeitschrift. — Então terei occasião de esclarecer o caso de modo que contente [corrigido: a contentar. Por Leite de Vasconcelos] V.E. plenamente e impossibilitando qualquer interpretação injusta das minhas palavras.

O acompanhamento das idas e vindas entre o Cancioneiro da Ajuda e as Glosas Marginais poderia ser feito de forma mais detalhada; no entanto, o que se pode depreender do exposto é que, de fato, a matéria que se encaminhou para a publicação na Zeitschrift é, de modo geral, complementar à que se incluiu no volume II do Cancioneiro, limitando-se este, às vezes, a fornecer um resumo das idéias apresentadas naquela série; já vimos que certos resultados conseguidos através das investigações que apóiam as Glosas foram inseridos

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Canc. da Ajuda, vol. II, p. 109, n. 5. Maria Ana Ramos, «Palavras entre filólogos», p. 147. 32 Epistolário, cota 22663. Há, no entanto, um cartão-postal (cota 22666), enviado no dia 11 de fevereiro de 1902, anterior portanto à carta acima mencionada, em que pergunta muito naturalmente: «É verdade tenho de mandar agora ao Groeber a Randglosse XV sobre Vasco Martins de Resende. Já publicou a sua Nota? Ou pode deixar-me ver o ms. para me referir a elle?» 31

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nalgum ponto do longo processo de composição e revisão do Cancioneiro; por outro lado, as matérias que são objeto das Glosas, mesmo quando coincidem com as que figuram no Cancioneiro, apresentam-se ordenadas de forma diversa, pois recebem enfoques específicos sobre um determinado aspecto ou problema relativo à produção recolhida nos Cancioneiros: por exemplo, o contacto social entre os trovadores, que é o móvel da Glosa I, permite-lhe agrupar num mesmo conjunto trovadores que se encontram dispersos nas biografias do volume das Investigações. Neste sentido, as Glosas são mais pontuais. Por outro lado, permite-se nelas um vôo mais solto, principalmente no que diz respeito às investigações documentais e históricas: na Glosa XIV, por exemplo, a palavra guarvaia leva-a a um excurso sobre as leis suntuárias na Península; na Glosa XIII, sobre D. Arrigo, a investigação ultrapassa a história da Península, acompanhando a vida política, militar e aventurosa do infante também na Itália e em Tunes; e na Glosa XVI, sobre os olhos verdes, vale-se de documentação literária cronologicamente mais ampla, chegando aos autores coevos. Um exame que não faço aqui, mas que teria certamente interesse, é o cotejo dos textos cuja edição crítica figura tanto no Cancioneiro como nas Glosas, através do qual poderíamos talvez acompanhar o percurso das revisões e correções de leitura 33. Compreende-se, ainda, que a autora quisesse publicá-los à parte do Cancioneiro e sob a forma de ensaios independentes, quando se observa o caráter polêmico que é o ponto de partida para a elaboração desses ensaios. Assim, o primeiro deles, sobre o processo da ama, é uma reação da autora à afirmação de Diez, feita em 1863, de que só se notam nos Cancioneiros uns poucos sinais de contacto social dos poetas entre si, afirmação que ela crê dever ser revista e corrigida agora, quando se podem comparar não apenas 555 poemas profanos em português antigo, como no tempo do mestre, mas 1698 cantigas 34. As Glosas II, III e IV pretendem rever interpretações de Cesare de Lollis, no seu artigo de 1887 sobre as cantigas de amor e de maldizer do rei D. Afonso de Castela; a V propõe editar a cantiga de Afonso X «Non me posso pagar tanto» que, segundo afirma, fora «tratada por copistas e editores como o faria um padrasto» 35: os editores visados são Teófilo Braga, na edição do Cancioneiro da Vaticana, e Lollis, no mesmo artigo de 1887 36. Rebate a interpretação de Lollis, segundo a qual na cantiga ouvimos a própria voz do monarca, que fala no seu nome, a sério e cheio de tristeza; C. Michaëlis insiste, porém, em considerar a cantiga como um «escárnio dito com grande ironia em nome de um outro», opinião que lhe

33 Embora afirme, na Glosa VIII, que não repete nas Glosas os textos editados nos anexos do CA, na XIV revê o seu posicionamento, porque a publicação do Cancioneiro demorara muito mais do que o previsto (Glosas Marginais, p. 432, n. 4). 34 Glosas Marginais, p. 29. 35 Glosas Marginais, p. 165. 36 Nesta mesma Glosa, aliás, encontramos mais um daqueles sinalizadores de percurso, o «Aditamento» ao texto, já anteriomente mencionado: Glosas Marginais, p. 170, n. 9.

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valeria mais tarde crítica acerba de Lapa, como sabemos 37. As Glosas VI, VII, VIII e IX revisitam, ainda, o estudo de Lollis de 1887, valendo-se a de número VII, sobre a Balteira, do estudo de A. Martínez Salazar, publicado em 1897, que trazia à luz documentos relativos a Maria Pérez e sua posição de familiar do Mosteiro de Sobrado 38. A Glosa X, por sua vez, rebate a opinião defendida por Mario Pelaez em 1891 e 1897, de que a segunda estrofe do sirventês-descordo multilingue de Bonifácio Calvo estava redigida em aragonês, em vez de galego-português. A Glosa XI faz correções à edição de Teófilo Braga do sirventês de João Soares de Paiva, e revê, corrigindo-as, opiniões de Lollis e de Lang. A de número XII contesta a posição de Braga, endossada por Menéndez Pelayo, que vê na cantiga de Airas Nunes, Desfiar enviaron ora de Tudela, um eco de lendas do tempo do Cid e um testemunho da existência do romance popular peninsular no século XIII. A Glosa XIII procura preencher uma lacuna nos estudos dos historiadores que se debruçaram sobre a queda dos Hohenstaufen, por descuidarem completamente as «pegadas que a personalidade forte e decidida de D. Arrigo e as aventuras da sua agitada vida deixaram nos cancioneiros de amor e de escárnio galego-portugueses, assim como nos livros de linhagens dos séculos XIII e XIV, que continuamente lhes dão realce» 39. A Glosa XIV, finalmente, retoma as próprias interpretações anteriores da autora, quanto à datação da cantiga da guarvaia e à atribuição e datação da cantiga de amigo Ai eu coitada, como vivo. Sobre a XV, já se demonstrou que ela, por um lado, surge como conseqüência de um acontecimento pontual, ocorrido no verão de 1894, isto é, a descoberta, por C. Michaëlis, do manuscrito da Biblioteca Municipal do Porto contendo a tenção entre Afonso Sanches e Vasco Martins, e, por outro, que está fortemente marcada por um enfrentamento filológico, no caso relativo à prioridade na descoberta e publicação de um documento particularmente importante para a história da tradição manuscrita galego-portuguesa 40. A Glosa XVI, publicada como artigo numa revista brasileira, tem o intuito expresso de completar observações que já fizera antes, de forma sintética, em outros estudos 41. Fica bastante claro, parece-me, que as Glosas correspondem a necessidades pontuais de diálogo com os romanistas contemporâneos, na maior parte dos casos, e de ampliação e revisão dos seus próprios trabalhos, em outros. Esse espírito dialógico, por vezes combativo, que vai deixando as suas sinalizações de percurso ao longo dos textos, está relacionado, penso eu, a uma concepção

37

«A crítica da eminente romanista é, como se vê, um modelo de incompreensão estética», in M. R. Lapa, Cantigas d’escarnho e de mal dizer…, p. 25. 38 A. Martínez Salazar, «Una gallega célebre…». 39 Glosas Marginais, p. 328. 40 Esse enfrentamento, aliás, documenta-se em outras instâncias através da correspondência entre ambos os filólogos. Cf. carta de J. L. Vasconcelos datada de Lisboa, 6 de outubro de 1890, conservada no Espólio de C. Michaëlis, Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra. 41 Glosas Marginais, p. 522.

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do trabalho filológico como fenômeno histórico em si mesmo. Com efeito, ao substituir-se à filologia clássica, cujos valores eram a perenidade e a imutabilidade, encarnadas sobretudo nas línguas-objeto, o grego e o latim, a filologia moderna — nascida, como sabemos, na Alemanha de fins do século XVIII e princípios do XIX — transferiu para o centro epistemológico as línguas vernáculas, com as suas patentes marcas de historicidade: instabilidade, evolução e nacionalidade, todas elas passíveis de serem apreendidas por um tipo de conhecimento até então relegado à periferia acadêmica, mas de agora em diante reconhecido como o único capaz de dar conta da temporalidade: a história 42. Formada, como sabemos, num ambiente ainda quente da efervescência filológica da primeira metade do século na Alemanha, C. Michaëlis não só institui a história, em sentido amplo, como disciplina central no seu trabalho de investigação, mas vê-se a si mesma como parte ativa do processo histórico de construção do conhecimento. A história deixa de ser, para ela, uma concepção ideal e imutável, portanto fora do tempo, para impregnar de temporalidade não só o objeto de estudo como a própria atividade intelectual e a presença no mundo do sujeito do conhecimento. Por isso não nos admiramos de saber que ela foi, além de uma especialista em assuntos medievais, uma mulher combativa e atuante nas grandes questões do seu tempo, como, por exemplo, a pedagogia e o feminismo. Resta, então, perguntar-nos por que teria escrito as Glosas Marginais em alemão. Publicá-las numa revista alemã não intriga tanto, já que a própria edição do Cancioneiro da Ajuda saíra pela mesma casa editora. Em nenhum momento, C. Michaëlis se sente obrigada a justificar a escolha do idioma alemão para esses ensaios. Apenas numa nota de rodapé na Glosa II, ela nos diz algo que permite inferir que o Cancioneiro da Ajuda e as Glosas Marginais se destinam a públicos diferentes, com necessidades distintas: Se estas Glosas Marginais fossem especialmente dedicadas a Portugal, teria que informar muito mais minuciosamente sobre cendal, sendal, sindal, pois um conhecedor tão profundo da Idade Média como Gama Barros, I, 534, confessa não saber o que significa a palavra, que falta no Elucidário. Como não tenho, porém, nada essencialmente novo que oferecer ao estrangeiro sobre o material, cor, valor e utilização, remeto os investigadores deste país [Alemanha] para Recherches sur les Etoffes de soie de Fr. Michel (Paris, 1852) e para Notas sobre o romance de Flamenca de P. Meyer; Du Cange, s. v. cendalus, zendalus. 43

42 Cf. P. Hummel, Histoire de l’histoire de la philologie, p. 124: «La philologie renaît pour ainsi dire nouvelle sous l’effet d’un glissement ou d’un déplacement, qui la conduit de la sphère des vérités permanentes, incarnée par la philologie pérenne et le latin, vers le domaine des vérités discutables et périssables, par lequel on entend évidemment la science et les idiomes vernaculaires.» 43 Glosas Marginais, p. 120, n. 42.

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Dessas palavras, parece razoável deduzir que o público alvo das Glosas é o público alemão, que dispõe de maiores fontes de informação sobre questões pertinentes à filologia românica que o português. É bem verdade que, se tivesse escrito os seus ensaios em português, publicando-os na Zeitschrift für romanische Philologie, teria tido um círculo de leitores seletos mas fiéis. Publicando-os, contudo, em alemão, aumentava o círculo dos seus leitores potenciais. E creio que, principalmente, os seus artigos entravam numa circulação internacional, passavam a fazer parte das discussões do calor da hora — beneficiando-se, ao mesmo tempo, do prestígio que a língua alemã alcançara no século como veículo privilegiado dos estudos filológicos. Devemos pensar também numa atitude de orgulho lingüístico nacionalista? Não é impossível. No «Discurso de Apresentação lido pela Autora na Sala dos Capelos», por ocasião da sua apresentação oficial na Universidade de Coimbra, ouvimo-la pedir desculpas por ler as suas palavras de agradecimento, uma vez que lhe faltavam a fluência e a facilidade de palavra que a Natureza concedeu em geral aos portugueses; e, continua, «[a]lém disso, luto com o idioma, tão delicado e tão difícil, desta minha muito querida pátria adoptiva, sobretudo quando tento versá-lo, falando, como se fôsse o meu natural. Confesso até que tão inclinada sou à língua de Kant e de Goethe — o sumo Júpiter no Olimpo poético moderno — que de preferência a uso no trato familiar com os meus» 44. A humildade com que se refere ao seu domínio do português, se a quisermos tomar ao pé da letra, só podia referir-se ao idioma falado; sabemos que na escrita o seu domínio é (quase) irrepreensível. Tanto quanto me é dado perceber neste momento, portanto, só posso concluir que escrever as Glosas em alemão correspondia a algumas necessidades de C. Michaëlis: uma necessidade de ordem pessoal, ou seja, o seu apego e a sua estima pelo idioma que era o da sua intimidade; uma outra, de ordem intelectual, uma vez que o alemão era, na época, a língua por excelência dos estudos românicos, competindo apenas com o francês. Acrescentando-se que os ensaios apareceriam, segundo a sua expectativa (que infelizmente, como vimos, não se concretizou), com maior rapidez nesta publicação de circulação privilegiada, escrevê-los em alemão parecia mais apropriado a provocar as reações imediatas dos seus pares romanistas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRAGA, Teófilo, Cancioneiro portuguez da Vaticana, Edição critica restituida sobre o texto diplomatico de Halle, accompanhada de um Glossario e de uma Introducção sobre os trovadores e Cancioneiros portuguezes. Lisboa: Imprensa Nacional, 1878.

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C. Michaëlis, Lições de Filologia Portuguesa, p. 5.

Epistolário de José Leite de Vasconcelos, Lisboa: Museu Nacional de Arqueologia, 1999. GONÇALVES, Elsa, «Appunti di filologia materiali per un’edizione critica della poesia profana di Alfonso X», Filologia classica e Filologia romanza: Esperienze Ecdotiche a Confronto, Atti del Convegno Roma 25-27 maggio 1995, pp. 422-425. HUMMEL, Pascale, Histoire de l’histoire de la philologie, Genève: Droz, 2000. LAPA, Manuel Rodrigues, Cantigas d’escarnho e de mal dizer dos cancioneiros medievais galego-portugueses, Lisboa: Edições João Sá da Costa, 1998. MARTÍNEZ SALAZAR, Andrés, «La Edad Media en Galicia. Una gallega célebre en el siglo XIII», Revista Crítica de Historia y Literatura Españolas, Portuguesas e Hispano-americanas, Madrid, Octubre 1897. (Mais tarde publicado em Algunos temas gallegos, La Coruña: Editorial Moret, 1948.) RAMOS, Maria Ana, «Palavras entre filólogos: uma carta de Leite de Vasconcellos a Carolina Michaëlis», Estudos Portugueses. Homenagem a Luciana Stegagno Picchio, Lisboa: Difel, 1991, pp. 143-158. VASCONCELLOS, Carolina Michaëlis de, Cancioneiro da Ajuda. Reimpressão da edição de Halle (1904), acrescentada de um prefácio de Ivo Castro e do glossário das cantigas (Revista Lusitana, XXIII), Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1990. — Lições de Filologia Portuguesa. Seguidas das Lições Práticas de Português Arcaico. Lisboa: Dinalivro, s. d. VIEIRA, Yara F., RODRÍGUEZ, José Luis, MORÁN CABANAS, M. Isabel, e SOUTO CABO, José António, Glosas Marginais ao Cancioneiro Medieval Português de Carolina Michaëlis de Vasconcellos, Coimbra: Imprensa da Universidade; Santiago de Compostela: Imprenta da Universidade; Campinas: Editora da UNICAMP, 2004.

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LA MISE EN PAGE DE LOS CANCIONEROS

VICENÇ BELTRAN Universitat de Barcelona 1

Un fenómeno que ha sorprendido habitualmente a los estudiosos de los cancioneros es la notable homogeneidad que se observa en la mise en page de este tipo de manuscritos; en efecto, las compilaciones trovadorescas

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Esta investigación se integra en el seno de los proyectos 2005SGR00119, BFF2003-08655-C03-01, HUM2006-11031-C03-01/FILO y HUM2005-02738/FILO. En el seno de esta serie han aparecido hasta ahora los siguientes trabajos: «El caso de Jorge Manrique», en Historias y ficciones. Coloquio sobre la literatura del siglo XV, ed. R. Beltrán, J. L. Canet y J. L. Sirera, Valencia, Universidad-Departamento de Literatura Española, 1992, pp. 167-188, «Dos Liederblätter probablemente autógrafos de Juan del Encina y una posible atribución», Revista de Literatura Medieval, 7, 1995, pp. 41-71, «Las grandes compilaciones y los sistemas de clasificación», Cultura Neolatina, 55, 1995, 233-265, «Dreg de natura de Matfre Ermengaut y el cancionero de Charles de Orléans», Romania, 115, 1997, pp. 193-206, «Juan Fernández de Híjar y los cancioneros por adición», en Romance Philology, 50, 1996, pp. 1-19, nueva versión revisada y ampliada en «Copistas y cancioneros», en Edición y anotación de textos. Actas del I Congreso de Jóvenes Filólogos. A Coruña, Universidade, 25-28 de septiembre de 1996, A Coruña, Universidade, 1999, pp. 17-40, «The Typology and Genesis of the ‘Cancioneros’: Compiling the Materials», en Poetry at Court of Trastámaran Spain. From the «Cancionero de Baena» to the «Cancionero General», Tempe, Arizona, Medieval and Renaissance Texts and Studies, 1998, pp. 19-46 (nueva versión castellana,

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siguen por lo general un mismo modelo, desde el Fragmento Sharrer 2 hasta los manuscritos de los Minnesinger 3, pasando, por supuesto, por la mayor

enteramente renovada en «Tipología y génesis de los cancioneros. La organización de los materiales Tipología y génesis de los cancioneros. La organización de los materiales», en Estudios sobre poesía de cancionero, Noia, Toxosoutos, 1999, pp. 9-54), «El Cancionero de Juan del Encina y los cancioneros de autor», en Humanismo y literatura en tiempos de Juan del Encina, Salamanca, Ediciones Universidad de Salamanca, 1999, pp. 27-54, luego refundido como parte de «Tipología y génesis de los cancioneros. Los cancioneros de autor», en Revista de Filología Española, 78, 1998, pp. 49-101, «Tipologia i gènesi dels cançoners. La reordenació de J i K», Llengua & Literatura, 11, 2000, pp. 353-393, «Poesía y trabajo intelectual: la compilación de los cancioneros medievales», en C. Alvar y J. M. Lucía Megías, Diccionario Filológico de Liteteratura Medieval Española. Textos y transmisión, Madrid, Castalia, 2002, pp. 1043-1063, «Copisti e canzonieri: I canzonieri di corte», Cultura Neolatina, 63, 2003, pp. 115-164 y «Anonymity and Opaque Attributions in Late-Medieval Poetic Compilations», Scriptorium, 58, 2004, pp. 26-47, «Tipología y génesis de los cancioneros. La reordenación de los contenidos», en Los cancioneros españoles: materiales y métodos, ed. Manuel Moreno y Dorothy S. Severin, PMHRS, 43, London, Department of Hispanic Studies, Queen Mary, University of London, 2003, pp. 9-58, «Ordenado y corregido por la mejor manera y diligencia. Hernando del Castillo, editor», Filologia di testi a stampa (area iberica), Modena, Mucchi, 2005, pp. 241-256, «Aspectes de la transmissió textual d’ Ausiàs March», Actes del X Congrés Internacional de l’Associació Hispànica de Literatura Medieval, Col. Symposia Philologica, 10, Alacant, Universitat d’ Alacant-Institut Interuniversitari de Filologia Valenciana, vol. I, pp. 13-30, «Los cancioneros trovadorescos y la renovación cultural del siglo XIII», en Ab nou cor et ab nou talen, ed. Anna Ferrari et Stefania Romualdi, Modena, Mucchi, 2004 [2006], pp. 103-130, «Del pliego de poesía (manuscrito) al pliego poético (impreso): las fuentes del Cancionero General», Incipit, 25-26, 2005-2006, pp. 21-56, Un cançoner d’ autor: Joan Berenguer de Masdovelles i el seu manuscrit, en V. Beltran, Ll. Gimeno Betí, Josefina Mateu et al, El cançoner de Joan Berenguer de Masdovelles, Barcelona, Abadia de Montserrat, 2006 y Poesia, escriptura, societat: els camins de March, Barcelona, Abadia de Montserrat-Fundació Germà Colon, 2006, «Las conexiones intertextuales en los cancioneros», Liber, fragmenta, libellus prima e dopo Petrarca. In ricordo di d’ Arco Silvio Avalle, Bergamo, Università degli Studi, 23/25-10-2003 y «Del cartapacio al cancionero», Convivio. Estudios sobre la poesía de cancionero, ed. V. Beltran J. Paredes, Granada, Universidad, 2006, pp. 193-226, «Un plec poètic i els cercles literaris a la Catalunya del segle XV», XI Congreso de la Asociación Hispánica de Literatura Medieval, León, 20 al 24 de septiembre de 2005, León, Universidad, 2007, pp. 311-322, «Del Liederblatt al cancionero», leído en el Congreso de la Società Italiana di Filologia Romanza, Padova, septiembre de 2006, La lirica romanza del Medioevo. Storia, tradizioni, interpretazioni. Atti, a cura di F. Brugnolo e F. Gambino, II Padova, Unipress, 2009, pp. 445-472, «Un nuevo manuscrito de la Coronación de Juan de Mena», en el homenaje a Carmen Parrilla Siempre soy quien ser solía. Estudios de Literatura española en homenaje a Carmen Parrilla, coord. por Antonio Chas Aguión, Cleofé Tato García, Coruña, Universidade da Cornuña, pp. 35-42, y «El Cancionero ms. Egerton 939 (LB)», en Giovanni Caravaggi Ogni onda si rinnova. Studi di ispanistica offerti a Giovanni Caravaggi, a cura di Andrea Baldissera, Giuseppe Mazzochi, Paolo Pintacuda, Ibis, Como-Pavia, 2011, pp. 159-175. 2 Harvey L. Sharrer, «The Discovery of Seven cantigas d’amor by Dom Dinis with Musical Notation», Hispania, 74, 1991, pp. 459-461 y «Fragmentos de sete cantigas d’amor de D. Dinis, musicadas – uma descoberta», en Literatura medieval. Actas do IV Congresso da Associação Hispânica de Literatura Medieval (Lisboa, 1-5 Outubro 1991), vol. I, Lisboa, Cosmos, 1991, pp. 13-30 y António J. R. Guerra, «Contributos para a análise material e paleográfica do Fragmento Sharrer», Ibídem, pp. 31-34, donde se publican dos facsímiles. 3 Víctor Millet, «Los cancioneros de la poesía alemana anterior a 1350: características y problemas», en Convivio. Estudios sobre la poesía de cancionero, ed. V. Beltran J. Paredes, Granada, Universidad, 2006, pp. 493-530.

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parte de los cancioneros de los trovadores provenzales y de los trouvères 4: copian cada estrofa a renglón seguido, adjuntando, en su caso, la melodía a la primera y separándolas una de otra mediante los elementos habituales en el libro escolástico: volviendo a una nueva línea al fin de cada estrofa, casi siempre iniciando cada una de ellas mediante una mayúscula destacada, a veces, también, por la interposición de una línea en blanco. El final de verso suele marcarse mediante de un punto volado o procedimiento similar. Por nuestra familiaridad con este modelo, se ha reparado menos en la novedad que supuso el paso a la copia de versos encolumnados, según el uso moderno, que se consuma rapidísimamente en toda Europa entre fines del siglo XIV y comienzos del siglo xv. Sin embargo, ambos modelos requieren una investigación histórica detallada: ¿a qué razones debe su origen cada uno de ellos? ¿Cómo pudo producirse tal homogeneidad en todo el contexto literario europeo? Y en el último caso ¿cómo fue posible que en pocos años el primer modelo quedase totalmente arrumbado en el recuerdo y se aplicase de forma simultánea y casi inmediata el segundo? Cada uno de estos aspectos requeriría investigaciones cuidadas, el examen directo de numerosos manuscritos de datación más o menos segura dispersos en bibliotecas lejanas y el inventario de modalidades de copia, de excepciones, tanteos y pequeñas innovaciones que resulta imposible abordar en este contexto y que deberá ser objeto de trabajos numerosos y precisos. Pero a partir de los estudios realizados, del análisis de cierto número de manuscritos y con los datos hoy disponibles sí podemos apuntar algunas hipótesis de trabajo. En primer lugar hemos de observar que en los estudios sobre este aspecto suelen pasarse por alto otros sectores de la tradición escrita medieval; incluso dejando de lado la copia de lírica latina, generalmente marginada, ha de observarse que esta regla no es aplicable a las obras narrativas. Tras algunas vacilaciones en los orígenes de su tradición escrita, los cantares de gesta romances, lo mismo que las crónicas en verso, la hagiografía, la didáctica versificada y otras obras del mismo carácter tendieron a copiarse en columna, respetando la autonomía de cada verso 5, aunque no es excepcional la aparición de otro tipo de disposiciones:

4 Véase por ejemplo el facsímil publicado por Jean Beck, Corpvs Cantilenarvm Medii Aevi. Le Chansonnier Cangé. Manuscrit français nº 846 de la Bibliothèque Nationale de Paris, Tome Premier, Reprodution phototypique du manuscrit, description et tables, Paris-Philadelphie, 1927, reimpresión de Genève-Paris, Slatkine-Champion, 1976, donde la separación entre las estrofas se limita a la mayúscula inicial, sin retorno a la línea siguiente. 5 Para el verso narrativo francés véase Keith Busby, Codex and Context: Reading Old French Verse Narrative in Manuscript, Amsterdam-New York, Rodopi, 2002, vol. I, pp. 182-224, con una larga relación de excepciones y líneas de evolución histórica, que contiene asimismo numerosos facsímiles, o bien el facsímil de Li chevaliers au lion publicado por Kajsa Meyer en su La copie de Guiot fol. 79v-105 du manuscrit f. fr. 794 de la Bibliothèque Nationale ‘li chevaliers au lyeon’ de Crestien de Troyes, Amsterdam-Atlanta, Rodopi, 1995. Para el Poema de Mío Cid, puede verse cualquiera de los numerosos facsímiles publicados, por ejemplo el de Burgos, Ayuntamiento, 1998; para completar el sector del verso narrativo en castellano, véase Gonzalo de Berceo, Poemas.

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a renglón seguido, como la prosa, separando o no los versos mediante puntos volados u otros dispositivos, o bien agrupándolos por períodos rítmicos, dos o tres por línea 6. Como revelan las obras narrativas más antiguas, donde el sistema elegido es, por lo general, la copia a renglón seguido 7, este no es un modelo natural, sino fruto de una evolución histórica muy característica que eligió, entre las diversas modalidades disponibles, la más afín con sus necesidades. Por la amplitud de su cronología, por su diversidad geográfica y por la riqueza y variedad de su casuística, resulta de todo punto necesario hacer también un balance de la cuestión en la copia de los manuscritos latinos, afortunadamente estudiada en un denso trabajo por Pascale Bourgain 8. En general, han de distinguirse dos grandes grupos de manuscritos: la poesía métrica «généralement […] est disposée un vers par ligne, selon les habitudes antiques», al menos «lorsqu’on la reconnaît comme telle» 9, los demás tipos métricos se adaptan a otras pautas. Por lo que respecta al primer tipo, «lorsque les manuscrites contiennent des vers métriques […] ceux-ci sont toujours écrits un vers par ligne» 10, aunque en este caso los copistas marcan también con extremo cuidado el comienzo y fin de estrofa. Copiando un verso por línea la estructura del poema queda ya de relieve y los signos de puntuación, que en los otros sistemas suelen ser usados con la función de separar versos o grupos rítmicos, se ajustan mejor a los períodos de sintaxis y sentido. Por otra parte, en estos casos es notable el cuidado que se pone en marcar también

Edición facsímil del manuscrito (siglo XIV) propiedad de la Real Academia Española, Madrid, Real Academia Española, 1983. 6 G. Hasenohr, «Traductions et littérature en langue vulgaire», en Mise en page et mise en texte du livre manuscrit, sous la direction de Henri-Jean Maretin et Jean Vezin, préface de Jean Monfrin, Paris, Éditions du Cercle de la Librarairie-Promodis, 1990, pp. 229-352, especialmente pp. 239-264. Véanse también los facsímiles y los análisis incluidos en el Album de manuscrits français du XIIIe siècle. Mise en page et mise en texte, ed. a cargo de Maria Careri, Françoise Fery-Hue, Françoise Gasparri, Geneviève Hasenohr, Gillette Labory, Sylvie Lefèvre, Anne-F. Leurquin y Christine Ruby, Roma, CNRS - Institut de Recherche et d’Histoire des Textes-Università G. D’Annunzio-Chieti - Viella, 2001. Por la escasa atención que suelen recibir los textos occitanos no líricos, cito también Anelier de Tolosa, La guerra de Navarra - Nafarroako gudua. Edición facsimilar del manuscrito de la Real Academia de la Historia, Pamplona, Gobierno de Navarra, 1995, cuyo vol. II contiene la transcripción del texto, su versión al castellano y al euskera y un estudio. 7 Geneviève Hasenohr, «Traductions et littérature en langue vulgaire», en Mise en page et mise en texte, pp. 229-352, especialmente pp. 231-234. 8 «Qu’est-ce qu’un vers au Moyen Age», en Bibliothèque de l’École des Chartes, 147, 1989, pp. 231-282 y en particular su segunda parte, desde la p. 252 hasta el final. 9 «Qu’est-ce qu’un vers au Moyen Age?», p. 254, aunque se dedica al análisis detallado de esta modalidad de copia en las pp. 275-280. La autora incide de nuevo en estos aspectos, simplificando la casuística que ahora analizaremos, en su «Les chansonniers lyriques latins», en Lyrique romane médiévale: la tradition des chansonniers. Actes du colloque de Liège, 1989, éditées par Madeleine Tyssens, Bibliothèque de la Faculté de Philosophie et Lettres. Documenta et instrumenta, 3, Liège, Université de Liège, 1991, pp. 61-84. 10 «Qu’est-ce qu’un vers au Moyen Age?», p. 275.

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las coincidencias de la rima, para las que los copistas suelen adoptar diversos signos ad hoc. Esta situación resulta un tanto paradójica si nos atenemos a la evolución de los hábitos de escritura desde la Antigüedad. La representación del lenguaje en la Grecia clásica era extraordinariamente rudimentaria, basada en la escritura continua, sin separación de palabras ni signos diacríticos; sin embargo, mucho antes de que se introdujeran estos instrumentos de discriminación, ya a mediados del siglo III antes de Cristo, se generalizó en los papiros la separación de los versos en líneas distintas 11, quizá por el énfasis que el factor métrico introducía en la declamación. Probablemente, la proliferación de sistemas de mise en page en el manuscrito escolástico y la riqueza y variedad de los signos demarcativos en la escritura del siglo XIII indujo a este exagerado polimorfismo en la representación del verso según su tipología, su origen y otros factores, como la presencia de música o de marcas retóricas características. Quizá por estas razones, los manuscritos con textos líricos sujetos a la métrica rítmica están lejos de seguir este mismo principio. La primera categoría que analiza Pascale Bourgain es la copia del poema completo a renglón seguido, como un todo, particularmente asociado con las prosas y la composición en versículos 12; sin embargo es necesario precisar que en general, según precisa la misma autora, el comienzo de cada estrofa viene marcado por algún procedimiento gráfico determinado, como una inicial destacada o un signo convencional. También es frecuente la separación de versos mediante puntos, como en los cancioneros trovadorescos. Muy a menudo se trata de manuscritos musicales, donde la inserción de la melodía condiciona el aspecto gráfico del texto; en este apartado la autora incluye diversas colecciones de trouvères como el cancionero Cangé o el de la Biblioteca del Arsenal, ms. 5198 13. En conjunto parece un procedimiento de origen arcaico, aplicado desde los siglos IX-X incluso en poemas abecedarios o dotados de estribillo, donde

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E. G. Turner, Greek Manuscripts of the Ancient World, Oxford, Clarendon Press, 1971, pp. 14-15. Para la reconsideración de conjunto sobre la evolución de la escritura griega, Ken Morrison, «Fijación del texto: la institucionalización del conocimiento en formas históricas y filosóficas de la argumentación», en Jean Bottéro et al., Cultura, pensamiento, escritura, Barcelona, Gedisa, 1995 (primera publicación en The Canadian Journal of Sociology. Cahiers Canadiens de Sociologie, 12, fasc. 3, 1987). 12 Sobre este aspecto incide también más tarde, en la p. 281, en el momento de redactar sus conclusiones. 13 Del cancionero Cangé ya citamos el facsímile de Jean Beck, de este último tenemos el de Pierre Aubry y A. Hauray, Trouvères du XII e-XIII e s.: Chansonnier de l’Arsenal, reproduction phototypique du ms. 5198 de la Bibliothèque de l’Arsenal, Paris, 1875. Yo citaría además el cancionero de Saint Germain-des-Prés, publicado en facsímil por Paul Meyer y Gaston Raynaud, Le chansonnier français de Saint-Germain-des-Prés (Bib. Nat. fr. 20050), reproduction phototypique, vol. I, Paris, Société des Anciens Textes Français, 32, Firmin Didot, 1892, reimpresión facsimilar de New York-London, Johnson Reprint, 1968.

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el artificio constructivo del poema quedaba enmascarado por la disposición gráfica, pero está en uso todavía en el cancionero goliárdico de Beuren 14. Nada tiene pues de extraño que ésta fuera la disposición más frecuente en las copias francesas de los orígenes. En muchos de estos manuscritos no es infrecuente que por diversas razones los copistas acaben separando las estrofas, como en los cancioneros provenzales; este es el sistema que la autora analiza a continuación 15 y que considera la más característica de los himnarios donde la misma melodía se repite en todas ellas 16. A mi parecer la diferencia entre ambas categorías no es tan tajante como la autora propone: pasar al comienzo de la línea siguiente al final de una estrofa no es sino uno más de los muchos procedimientos seguidos por los copistas medievales para segmentar el texto; no creo que el cancionero Cangé, donde el comienzo de estrofa es marcado inequívocamente mediante una mayúscula de una sola línea de altura (que no comparece en ninguna otra posición) haya de considerarse un caso distinto del de los cancioneros provenzales, donde el comienzo de estrofa se marca conjuntamente por una mayúscula y con el inicio de una nueva línea: lo único que cambia de uno al otro sistema es el mayor o menor énfasis puesto en los signos de demarcación, que existen en los dos casos y en ambos son igualmente precisos. A lo largo del siglo XIII se ensaya una nueva presentación: los retóricos se esfuerzan por analizar estas formas compositivas ajenas a la métrica clásica y subrayan la existencia de unidades intermedias entre lo que nosotros interpretamos como verso y estrofa; esta observación viene a coincidir con la existencia de otro sistema de copia, documentado desde el siglo IX, donde los segmentos que nosotros analizaríamos como versos, tengan rima o no, suelen copiarse en grupos asociados por una comunidad de ritmo, abriendo nueva línea después de cada uno de ellos. Aunque la autora no incide demasiado en este aspecto, de su exposición y de las láminas que incorpora parece deducirse que los copistas sólo excepcionalmente omiten o ignoran la distinción clara entre las distintas estrofas, a la que esta nueva división viene a superponerse 17. Por otra parte, a lo largo de su exposición incide en dos aspectos que no me parecen irrelevantes: el primero, la tendencia de los copistas a subrayar gráficamente la estructura rítmica de las composiciones, en particular las

14 Como ya puse de relieve en mi «Los cancioneros trovadorescos y la renovación cultural del siglo XIII» (véase la nota 1), los cancioneros latinos están muy lejos de la sofisticada ordinatio de los romances. 15 Ya en la primera parte que ahora nos ocupa de esta sección de su «Qu’est-ce qu’un vers au Moyen Age?», dedicado a los poemas métricos (pp. 255-266), la autora no deja de enumerar inconsecuencias de este tipo, pero en sus últimas páginas (concretamente desde la 263) se ocupa sistemáticamente de manuscritos donde se observa la copia con separación de estrofas. 16 «Qu’est-ce qu’un vers au Moyen Age?», pp. 266-270. 17 «Qu’est-ce qu’un vers au Moyen Age?», pp. 270-275.

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repeticiones de las rimas cuando coinciden encolumnadas a fin de línea en la copia por versos o la coincidencia de las iniciales en los poemas acrósticos o alfabéticos; el segundo, la dinámica que a veces se establece entre los hábitos de copia y las exigencias de la mise en page: es frecuente por ejemplo que versos no métricos acaben encolumnados cuando su longitud tiende a coincidir con la amplitud prefijada para las columnas del manuscrito. Poner de relieve las estructuras retóricas de los textos era tan interesante como aprovechar al máximo el espacio o, en su caso, las posibilidades expresivas del ancho de la columna. Los italianistas han venido subrayando en los últimos tiempos la importancia histórica que puede corresponder a la forma tradicional de copiar los sonetos. Aunque la disposición de las rimas permite interpretarlos como estrofas de canción, desde los más antiguos ejemplares fueron copiados de forma harto distinta: los cuartetos, por pares de versos, los tercetos, o bien cada uno de ellos en una sola línea o bien en dos líneas distintas, generalmente los dos primeros versos seguidos y el tercero aparte 18; así aparecen en los grandes cancioneros de fines del Duecento 19 pero a veces también en los memoriali boloñeses 20; más adelante, en particular cuando el soneto ha de encajarse en márgenes prefijados para otros usos, como la copia de prosa, no es raro encontrarlos a verso por línea, y en ocasiones se ha supuesto que este puede ser el origen tanto de la peculiar disposición de las canciones que adoptó Petrarca en el autógrafo Rerum vulgarium fragmenta como de la presentación moderna a versos encolumnados 21. A la luz de cuanto expuso en su momento Pascale Bourgain creo que esta mise en page encuentra su lugar natural en el hábito de marcar las estructuras compositivas internas que ella detectó desde el Alto Medioevo. Lo mismo cabe decir, a mi parecer, de otras disposiciones gráficas que visualizan las estructuras retóricas en el soneto y otras composiciones italianas 22, y en el mismo caso habría que situar otros experimentos formales, presentes también en los cancioneros provenzales; pienso por ejemplo en la forma pe-

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Véase Furio Brugnolo, «Libro d’autore e forma-canzoniere: implicazioni petrarchesche», en Lectura Petrarce, 11, 1991 (1992), pp. 261-290 y Wayne Storey, Transcription and Visual Poetics in the Early Italian Lyric, New York-London, Garland Publishing, 1993. 19 Véanse los facsímiles publicados en los tres primeros volúmenes de I canzonieri della lirica italiana degli origini. I. Il canzoniere vaticano. II. In canzoniere Laurenziano. III. Il canzoniere Palatino. IV. Studi critici, a cura di Lino Leonardi, Tavarnuzze-Impruneta-Firenze, SISMEL, Edizioni del Galluzzo, 2000. 20 Véase el capítulo correspondiente de W. Storey, Transcription and Visual Poetics in the Early Italian Lyric. 21 F. Brugnolo, «Libro d’autore e forma-canzoniere», especialmente pp. 266-274. 22 W. Storey, Transcription and Visual Poetics in the Early Italian Lyric, p. 148, donde la mise en page tradicional del soneto pone de relieve una peculiar estructura anafórica, o la disposición en columna de los versos del escondit petrarquesco S’i’l dissi mai, la canción 206, copiada en la sección final del ms. Vaticano Chigiano L.VIII.305 a un verso por línea que ha observado F. Brugnolo, «Libro d’autore e forma-canzoniere», pp. 270-271 y que sin duda pretende sólo subrayar sus construcciones anafóricas.

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culiar que adquiere el sirventés Maint baro ses lei de Peire Cardenal 23 en el f. 241ra del cancionero provenzal D de la Biblioteca Estense; como es bien sabido, las estrofas son desiguales pero cada una de ellas intercala en una posición prefijada un monosílabo que rima con el verso anterior. Como solía suceder en la lírica latina 24, el copista reprodujo estas palabras al fin del verso anterior, desplazadas hasta el margen derecho de la columna. En realidad, la forma de presentación de los versos romances en el período trovadoresco es más variada de cuanto se viene suponiendo. Es conocido el hecho de que un pequeño grupo de cancioneros provenzales de hacia 1300, P, S, O1 y F, fueron copiados a versos encolumnados, mientras otros dos cancioneros, L y N, alternan este sistema con el habitual de estrofas en bloques a renglón seguido 25. Por mi parte, señalaré la presencia de versos encolumnados en los ff. 232ra-243ra de la sección Db del cancionero de la Biblioteca Estense 26, de la primera mitad del siglo XIV, con poesía de Peire Cardenal, donde por cierto se intercalan otros poemas copiados a renglón seguido. Tratándose de un grupo de cancioneros italianos, a veces con fuertes indicios de procedencia véneta 27, podríamos sospechar que la copia por versos implica un fuerte influjo del primer humanismo 28, que habría llevado a imitar la disposición de los manuscritos latinos, pero no creo que esta deba ser la explicación más convincente.

23

Véase la edición del texto en René Lavaud, Poésies complètes du troubadour Peire Cardenal, Toulouse, Privat, 1957, nº Lix. 24 P. Bourgain, «Qu’est-ce qu’un vers au Moyen Âge», p. 262. El procedimiento resulta mucho más frecuente cuando se copian los versos en columna, pues entonces resulta más fácil subrayar las semejanzas formales entre unos y otros: véase la p. 279; obsérvese que en los manuscritos latinos también la rima (quizá por ser ajena a los usos de la métrica clásica) viene marcada al margen como si se tratase de un recurso retórico (p. 277). 25 Fueron ya enumerados por G. Hasenohr, «Traductions et littérature en langue vulgaire», p. 330. Véase también F. Brugnolo, «Libro d’autore e forma-canzoniere», p. 264 y nota. En realidad, también O ofrece dos secciones, la primera con los versos en columna, la segunda por bloques estróficos diferenciados y a renglón seguido. 26 Véase la descripción del códice en la introducción de D’Arco Silvio Avalle e Emanuelle Casamassina a la edición facsímil, Il canzoniere provenzale estense, riprodotto per il centenario della nascita di Giulio Bertoni, 2 vol., Modena, Stem Mucchi, 1979 y 1982 y la de Lucilla Spetia, «Intavulare». Tables de chansonniers romans. II. Chansonniers français (Série coordonnée par Madeleine Tyssens). 2. H (Modena, Bibliteca Estense) Z0 (Bibliothèque Métropolitaine de Zagreb), Liège, Université de Liège, 1997, pp. 19-20. 27 Para O (pero sólo la parte que ahora no nos interesa, O2) y Db véase François Zufferey, Recherches linguistiques sur les chansonniers provençaux, Genève, Droz, 1987, pp. 91-94 y 298-302, para la tradición de P y S, D’Arco Silvio Avalle, I manoscritti della letteratura in lingua d’oc, nuova edizione a cura di Lino Leonardi, Piccola Bibl. Einaudi, 572, Torino, Einaudi, 1993, pp.74 y 98-100. 28 Para el nacimiento y desarrollo del primer humanismo padovano véase Giuseppe Billanovich, La tradizione del testo di Livio e le origini dell’umanesimo. I. Tradizione e fortuna di Livio tra medioevo e umanesimo, Studi sul Petrarcha, 9, Padova, Antenore, 1981, cap. I y XI, así como Guido Billanovich, «Il preumanismo padovano», en Storia della cultura veneta, Vicenza, 1976, pp. 19-110.

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Por otra parte, cuando en un mismo manuscrito alternan las obras líricas con la narrativa en verso, el procedimiento habitual consiste en copiar las primeras en bloques de estrofas, con el texto de cada una de ellas a renglón seguido, mientras las novas aparecen en versos encolumnados. Es el caso del manuscrito provenzal R, donde los poemas líricos copian en primer lugar su primera estrofa con la melodía, el resto, a renglón seguido, separando las estrofas sólo mediante una inicial coloreada, mientras las obras narrativas aparecen con los versos dispuestos en columna; pero quizá sea significativo citar el más antiguo de los cancioneros provenzales, el veneciano V, donde la tercera mano, que copió el Romanz de Daude de Pradas, lo hace a versos en columnas, mientras los poemas líricos van a renglón seguido, en bloques separados para cada estrofa 29. Forzosamente hemos de subrayar que la tradición romance desde sus orígenes hubo de conocer diversos sistemas de copia; basta desplazarnos al extremo occidental de la Romania, la Península Ibérica, para observar una experiencia semejante y coetánea en la confección del Cancioneiro da Ajuda 30. Si bien la primera estrofa de cada poema se copia seguida, como en los cancioneros trovadorescos, sobre una pauta destinada al acompañamiento musical, el resto del poema aparece cuidadosamente encolumnado, a verso por línea, y lo mismo sucede si atendemos a su único testimonio coetáneo, el pergamino Vindel 31. Al examinar estos testimonios, no podemos dejar de lado los manuscritos de las Cantigas de Santa María, coetáneos suyos y quizá inspirados en un mismo proyecto de copia; si atendemos por ejemplo al de Toledo 32, aunque en ciertos casos, como en la primera estrofa de las cantigas 38 (f. 49r), 47 (f. 59r) o 48 (f. 61r) 33, la separación versal pueda quedar en el centro de la línea y estar marcada con un punto, sobre todo cuando empieza a mediados de una página y debe adaptarse al formato del texto anterior, lo normal es que los

29 Véase Ilaria Zamuner, «Intavulare». Tavole di canzonieri romanzi (serie coordinata da Anna Ferrari). I. Canzonieri provenzali. 3. Venezia, Biblioteca Nazionale Marciana. V (Str. App. 11 = 278), Modena, Mucchi, 2003, p. 27 y las láminas al fin del volumen. 30 Véase el facsímil en Fragmento do Nobiliario do Conde Don Pedro. Cancioneiro da Ajuda. Edição fac-similada do códice existente na Biblioteca da Ajuda, Lisboa, Edições Távola Redonda — Biblioteca da Ajuda, 1994. 31 De los numerosos facsímiles publicados, quizá el de mayor calidad fotográfica sea el incluido en Martín Codax. Cantigas, introducción, texto crítico, notas e aclaracións de Henrique Monteagudo, Vigo, Galaxia, 1996, encartado entre las pp. 18 y 19. 32 Uso Afonso X o Sabio, Cantigas de Santa María. Edición facsímile do códice de Toledo (To). Biblioteca Nacional de Madrid (Ms. 10.069), Santiago de Compostela, Consello de Cultura Galega, 2003. 33 Equivalentes a los números 25, 61 y 81 de la numeración estándard que se viene siguiendo desde la edición de Walter Mettmann, Cantigas de Santa Maria, Coimbra, Universidade, 1959-1972, que cito por la reimpresión facsimilar de Vigo, Edicións Xerais de Galicia, 1981.

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versos se dispongan en columna, tanto en las cantigas narrativas como en las de loor, y así se hace siempre en las estrofas sin notación musical, lo cual no implica que en algunos casos, como la cantiga 96 (f. 122r-126v) 34, la longitud de los versos exija su división en hemistiquios. En general, la observación del códice parece sugerir que en su confección se propusieron separar los versos en cuanto ello fuese posible, y sólo adoptaron otros principios, los versos seguidos, aunque separados por un punto, o las columnas por hemistiquios no rimados, cuando la longitud del verso o el espacio disponible volvían difícil este empeño. Algo semejante sucede en los dos códices de El Escorial, T y E 35; por lo general, las estrofas musicadas, por el ancho de la caja, no permiten la separación de los versos en columna, aunque este principio, con algunas excepciones, se respeta religiosamente en el resto de cada composición. En la cantiga-prólogo (conocida como Prólogo B: Porque trobar…) o la número 1 36, por ejemplo, ambas líricas y basadas en la técnica de la cantiga de amor, el texto musicado se dispone a renglón seguido, separando los versos mediante un punto, pero el resto los dispone en columna y separa las estrofas mediante una inicial destacada. Sea porque existía ya esta tradición, sea porque se adaptó la mise en page habitual para las composiciones narrativas, su patrón gráfico fue utilizado indistintamente para las cantigas líricas; y no creo imposible que exista una relación entre estos manuscritos y el del Cancioneiro da Ajuda. Por último, quiero llamar la atención sobre dos antiquísimos testimonios italianos, ambos anteriores y ajenos a la tradición de los grandes cancioneros, pero cuya consideración no será, en absoluto, inútil: el fragmento de «Resplendiente stella de albur» de Giacomo Pugliese estudiado por Giuseppina Brunetti 37 y los dos anónimos procedentes de la Biblioteca Capitular de Ravenna y publicados por Alfredo Stussi, especialmente el primero, una canción 38. La de Giacomo Pugliese aparece copiada en un espacio blanco al final del verso de un folio que contiene un edicto del rey de romanos Enrique VII, hijo de Federico II, y la ejecución de esta copia ha de datarse entre el 11 de febrero de 1234 y el 15-21 de agosto de 1235 39; la transcripción se hizo a renglón seguido y en bloque, sin separar siquiera las estrofas, pero marca su comienzo

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Número 104 de Mettmann, Cantigas de Santa María. Para el último, véase Higini Anglès, La música de las Cantigas de Santa María del rey Alfonso el Sabio. Facsímil, transcripción y estudio crítico, Barcelona, Biblioteca Central, 19471964, vol. I; he consultado T mediante una fotocopia. 36 Con esta misma numeración en Mettmann, Cantigas de Santa María. 37 Il frammento inedito «Resplendiente stella de albur» di Giacomo Pugliese e la poesia italiana delle origini, Tübingen, Max Niemeyer, 2000. 38 «Versi d’amore in volgare tra la fine del secolo XII e l’inizio del XIII», Cultura Neolatina, 59, 1999, pp. 1-70. 39 G. Brunetti, Il frammento inedito «Resplendiente stella de albur», p. 51. 35

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mediante una mayúscula y la de los versos mediante un punto 40. Aunque en este caso la copia no contiene la melodía, fue ejecutada con los mismos criterios que las prosas latinas. Muy distinto es el caso del anónimo ravenate: la canción que nos transmite fue transcrita con la notación musical al final, pero los versos se disponen a dos por línea, a veces separados por un punto, y cada estrofa comienza a su vez por una inicial mayúscula 41. Sea cual fuere el origen o motivación de esta mise en page, es el primer caso registrado de un uso que en Italia se aplicó primero al soneto, pero habría de llegar a su máxima expresión en el Canzoniere de Petrarca. Pero detengámonos un momento, pues parece oportuno presentar ahora algunas hipótesis iniciales. A primera vista sorprende una diferencia tan marcada en el tratamiento del verso narrativo y el verso lírico, el primero generalmente encolumnado, el segundo habitualmente en bloques por estrofas. A mi parecer, la razón bien pudiera estar en la estructura melódica propia de cada uno de ellos: la canción de gesta repetía una misma frase musical o salmodia en todos los versos, en la canción trovadoresca, la melodía sólo se repetía con cada nueva estrofa. Como en los himnarios latinos, la melodía habría impuesto su impronta, marcando así la diferencia entre dos disposiciones textuales básicas: cada una de ellas no haría sino convertir en unidad de transcripción el segmento de texto asociado a cada repetición de la melodía, saltando a la línea siguiente para copiar el segmento sucesivo. Es cierto que el octosílabo pareado tiene un origen libresco y nunca fue cantado, pero pudieron habérsele aplicado los mismos criterios que al verso épico: en el período de los orígenes de la transmisión escrita del verso romance, entre 1100 y 1150, no cabe la menor duda de que el género narrativo dominante fue la canción de gesta, y la tirada de versos monorrimos fue la forma que adoptaron las primeras versiones del Roman d’Alexandre, germen de lo que con el tiempo habría de ser el roman courtois. No será ocioso recordar que los copistas representaban la asociación sintáctica de los dos versos de rima común en un mismo período destacando la inicial del primer verso de cada dístico mediante una letra realzada, ejecutada al margen 42, como hemos visto en otros muchos casos. Si ahora nos fijamos en las Cantigas de

40 Sólo comienza con una minúscula la estrofa tercera de este fragmento, que no contiene sino las cuatro primeras estrofas de las ocho que nos conserva el resto de la tradición manuscrita; véase G. Brunetti, Il frammento inedito «Resplendiente stella de albur», pp. 84-86 y 100-104, así como el facsímil de la lámina 4. 41 En la edición de Stussi, «Versi d’amore in volgare tra la fine del secolo XII e l’inizio del XIII», puede verse tanto la transcripción paleográfica (pp. 8-9) como el texto crítico (pp. 26-27) y la fotografía del texto (p. 53 y ampliación de la página 54). 42 G. Hasenohr, «Le rythme et la versification», en Mise en page et mise en texte du livre manuscrit, pp. 235-238.

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Santa María, la forma habitual de texto y música en la estrofa, la del virelai o zéjel más simple aaab αααβ implicaba también la repetición de una misma frase melódica en casi todos los versos, de ahí que, hubiera existido o no una tradición de copiar la lírica por versos encolumnados, dado su carácter narrativo, la disposición en columna de la épica resultaba fácilmente adaptable. Por otra parte, una vez creado un formato podía independizarse de las condiciones iniciales y repetirse mecánicamente, aunque hubiera perdido su función original. Es el caso de la mayoría de los cancioneros provenzales, copiados a renglón seguido y con las estrofas separadas aunque la música falte casi siempre, o el del octosílabo apareado posterior a Chrétien de Troyes, cuando sigue realzándose la inicial de cada dístico a pesar de que éste había dejado ya de ser la unidad de entonación y fraseología 43. Esta podía ser razón suficiente para que los versos líricos copiados en el ámbito de la tradición poética galaico-portuguesa aparecieran también encolumnados, incluso sin tener en cuenta los precedentes de este uso en la lírica latina de carácter métrico; la confección de los tres manuscritos de las Cantigas de Santa María era una empresa de suficiente envergadura como para crear una tradición escrituraria propia. Sin embargo, en su momento habrá que tener en cuenta otros factores. Volvamos ahora a nuestro propósito inicial: la evolución en la copia de manuscritos poéticos bajomedievales. Como podemos comprobar, la tradición escrituraria aplicada al verso europeo, cantado o no, lírico o narrativo, era variada y rica; por otra parte, los copistas tenían experiencia en la reproducción de textos en lenguas distintas: latín y romances, uno y otro romance en muchos casos, como pudo suceder en los talleres de copia castellanos, incluso combinaciones más extrañas, como el latín, alemán e italiano en la cancillería imperial y suaba 44, o el griego, latín y árabe en la primitiva corte siciliana de la dinastía normanda 45. El plurilingüismo habitual en la época de los

43 Como es bien sabido, la superposición de dísticos enlazados tanto por el sentido como por la rima creaba un efecto machacón y pesado, que Chrétien resolvió al desplazar la pausa al centro del dístico, rompiendo su unidad y su autonomía fraseológica. 44 G. Brunetti, Il frammento inedito «Resplendente stella de albur», p. 17 subraya que en el manuscrito la misma mano copió textos gramaticales latinos, un edicto imperial en alemán y la canción italiana. 45 Véase Glauco Maria Cantarella, Principi e corti. L’Europa del XII secolo, Torino, Einaudi, 1997, pp. 11-13 o Francesco Benigno y Giuseppe Giarrizzo, Storia della Sicilia. 1. Dalle origini al Seicento, Roma-Bari, Laterza, 2003, pp. 94-95.

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orígenes enriquecía aún más la complejidad de las tradiciones librescas, a la vez que facilitaba los contactos entre centros culturales distintos y la difusión de los diversos modelos. Los estudiosos de la lírica italiana han subrayado la importancia, complejidad y originalidad de la mise en page en el autógrafo petrarquesco 46, donde el poeta usó tres modalidades distintas, cada una para un género literario: canciones y sonetos aparecen copiados a línea tirada, los primeros en siete líneas, a dos versos por línea, las canciones a renglón seguido, a dos o hasta tres versos por línea, aislando el texto de cada estrofa en bloques exentos; las sextinas, por el contrario, se copian a un verso por línea, separando también las estrofas 47. El caso de las canciones, aparentemente, es el más conservador: copiar este género literario por bloques de estrofas es el procedimiento más común tanto de la tradición escrituraria provenzal como de la italiana; sin embargo, mientras en ambas escuelas la estrofa era la única unidad de copia y los versos se separaban simplemente por puntos, en el códice petrarquesco las canciones se escriben por bloques de dos o tres versos, dependiendo de su estructura métrica, y la misma disposición se repite en cada una de las estrofas del mismo poema, sin romper nunca un verso en líneas sucesivas. En el caso de los sonetos, sin embargo, es notablemente innovador, pues renuncia a marcar la diferencia entre los cuartetos y los tercetos; en la tradición del Duecento, como queda dicho, los primeros se escribían seguidos, sin separarlos uno de otro, a dos versos por línea, los segundos, o bien a tres versos por línea, una para cada terceto, o bien incluyendo los dos primeros en una línea y el tercero en otra, de manera que estos seis versos podía ocupar dos o cuatro líneas. En cualquier caso, los dos cuartetos se escribían sin separación interna, mientras que cada uno de los tercetos se erigía en sección gráficamente diferenciada. Coetáneo de la confección de Rerum Vulgarium Fragmenta es el cancionero autógrafo de Boccaccio ms. Vaticano Chigiano L.V.176, que reúne la poesía de Dante y Petrarca: allí los sonetos de ambos autores son reproducidos según una misma estructura, a renglón seguido, sin separar sus secciones con saltos de línea, pero marcando el fin de cada verso mediante un trazo oblicuo; la inicial del primer cuarteto, como la de cada poema, es destacada por el tamaño, el color, una orla a pluma y su desplazamiento al margen izquierdo, mientras el comienzo de cada uno de los tercetos es marcado mediante un calderón que alterna los colores rojo y azul. Como decíamos más arriba, el retorno al comienzo de la línea siguiente, como las iniciales destacadas o, en este caso, los calderones, son instrumentos demarcativos intercambiables en la tradición

46 Véase hoy el magnífico facsímil Rerum Vulgarium Fragmenta. Codice Vat. Lat. 3195, presentazione de Furio Brugnolo, Padova, Antenore, 2004. 47 Véanse los trabajos repetidamente citados de F. Brugnolo, «Libro d’autore e forma-canzoniere», y de W. Storey, Transcription and Visual Poetics in the Early Italian Lyric, especialmente el cap. 6.

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escriturística del libro escolástico, y esta alternancia no tiene nada de particular ni revela la existencia de técnicas distintas de transcripción. En este aspecto, aunque parezca apartarse de ella, Boccaccio se atiene a la tradición ya secular en la copia del soneto. Petrarca, por el contrario, alineó el poema entero por pares de versos y copió cada soneto en siete líneas. Al adoptar este principio copiaba seguidos en una sola línea, la penúltima, el último verso del primer terceto y el primero del segundo, renunciando a cualquier marca que indicara el comienzo del segundo terceto; de hecho, el soneto entero se convierte en un espacio macizo e indiferenciado de siete líneas, donde sólo destaca la inicial coloreada del poema. Queda el caso de la sextina. Como subraya justamente Furio Brugnolo, «nei canzonieri precedenti, sia italiani che provenzali, la sestina (tanto quella di Arnaut Daniel che quella di Dante) non gode mai di una presentazione grafica particolare, differenziata da quella consueta – a mo’ di prosa, in genere – prevista per le altre canzoni, ma viene sempre equiparata a queste ultime (è precisamente ciò che anche Boccaccio fa nella trascrizione chigiana del Canzoniere petrarchesco)» 48; citando nuevamente sus palabras, la disposición de los versos en columna fue concebida a fin de «metere in evidenza la particolare struttura metrica del componimento, basata, como è noto, su un complesso gioco di rotazione e permutazione delle sei parole-rima fisse» 49. El refinamiento de esta presentación no termina aquí, sino que se amplia a toda la página, copiada, excepcionalmente, a dos columnas y completada mediante un soneto 50; a la vista de esta sofisticación no podemos dejar de pensar en la compleja función que la inclusión y posición de las sextinas presenta en la construcción interna del Canzoniere 51. Estoy enteramente de acuerdo con estos planteamientos; sólo subrayaría que organizar la disposición del texto a fin de poner de relieve su forma retórica es factor común a la tradición escrituraria desde la lírica latina, de la que Pascale Bourgain expone numerosos ejemplos y la provenzal, donde la hemos observado en la copia de un sirventés de Peire Cardenal en el códice de la Biblioteca Estense, hasta la italiana 52. Entonces ¿Petrarca no aportó nada a la tradición? Sin duda conoció sus múltiples modalidades y, como habían hecho los grandes copistas del pasa-

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«Libro d’autore e forma-canzoniere», pp. 275-276. «Libro d’autore e forma-canzoniere», p. 276. 50 Para los complejos juegos visuales que Petrarca crea a través de la sextina, además del trabajo de Furio Brugnolo, véase W. Storey, Transcription and Visual Poetics in the Early Italian Lyric, pp. 245-260. 51 Véase Leonardo Vanossi, «Identità e mutazione nella sestina petrarchesca», en Studi di Filologia Romanza offerti a Gianfranco Folena dagli allievi padovani, en Cultura Neolatina, 40, 1980, pp. 290-299 y más en particular Raffaela Pelosini, «Il sistema-sestina nel Canzoniere (e altre isotopie di Laura)», en Critica del Testo, 1, fasc. 2, 1998, pp. 665-722. 52 Storey, Transcription and Visual Poetics in the Early Italian Lyric, expone algunos ejemplos procedentes de la primitiva lírica italiana en el cap. 2. 49

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do, eligió las que mejor se adaptaban a sus intenciones y a su peculiarísimo sentido de la estética visual y compositiva del Canzoniere, ciertamente una de las más complejas que nos han legado los cancioneros de autor. Incluso la disposición a dos versos por línea la hemos documentado ya siglo y medio antes en la anónima canción del manuscrito ravenate. A pesar de todo, es cierto que Petrarca, aún copiando el resto del Canzoniere a línea tirada y dos versos por línea, dividió la página en dos columnas para disponer uno debajo de otro los versos de la sextina, aplicando una herramienta tradicional a un género para el que se adapta de maravilla, pero del que carecemos de precedentes; por otra parte, la copia de los versos dos a dos, que sólo se usaba en los cuartetos de los sonetos y tenía un solo antecedente ya muy lejano, pero único que conozco, en una canción de hacia 1200, la adaptó a la totalidad del soneto, que perdió en su pluma (y primero en la de su copista, Giovanni Malpaghini de Ravenna) la disposición tradicional. Sin embargo, creo que la principal de sus innovaciones ha pasado por alto a los estudiosos: sea cual sea el procedimiento elegido, un verso, dos, o tres por línea, Petrarca jamás, ni una sola vez, corta el texto de un verso a fin de línea para terminarlo en la línea siguiente, como habían hecho casi todos los copistas cuando adoptaban un sistema distinto del de un verso por línea. Es cierto que este principio se encuentra habitualmente en la copia del soneto, donde el poema se estructuraba por grupos de versos 53; pero ni siquiera se hizo siempre así: Boccaccio, por ejemplo, al copiar el cancionero chigiano, no tuvo en cuenta para nada esta tradición 54. Petrarca no sólo volvió de uso general este principio 55 sino que lo aplicó a la canción: ésta aparece a dos o tres versos por línea, según su medida, pero sin cortar nunca el texto de un verso en dos líneas sucesivas. Como habían hecho otros copistas con anterioridad, Petrarca había elaborado una estrategia de copia combinando las entonces conocidas según diversos factores, de los que seguramente hubieron de primar dos: en primer lugar, el principio rector de la copia a versos encolumnados, presente en la sextina y subyacente a los demás géneros que, no obstante, ofrecía inconvenientes. Copiando a un verso por línea el conjunto el cancionero habría necesitado un volumen el doble de extenso que el actual, de ahí que la sextina aparezca a dos columnas; pero los humanistas, contra la tradición medieval de copiar los textos en columnas paralelas, imitaron la disposición de los manuscritos carolingios y prefirieron copiar a línea tirada, de ahí que tanto los sonetos como las

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Véase la forma de transcripción de los sonetos en los cancioneros italianos del Duecento, cuyas fuentes he citado más arriba. 54 Véase su edición facsímil, Il codice chigiano L.V.176 autografo di Giovanni Boccaccio. Edizione fototipica. Introduzione di Domenico di Robertis, Roma-Firenze, Archivi Edizioni-Fratelli Alinari, 1974. 55 Esta hipótesis la formuló ya F. Brugnolo, «Libro d’autore e forma-canzoniere», p. 270.

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canciones fueran representadas por Petrarca a dos versos por línea, separados por un punto. Así consiguió economía de pergamino, disposición armónica de la página y respeto a la integridad literaria del verso como unidad rítmica. Para el triunfo definitivo del verso encolumnado sólo faltaba que se impusiera la preferencia por el libro lujoso y caro, propio del período humanístico pleno, como se impuso en los ambientes florentinos desde comienzos del siglo XV. Por otra parte, resulta imposible precisar cuándo se gestó la mise en page petrarquesca: en lo que queda de sus cartapacios (ms. Vaticano Latino 3196 conocido como Codice degli abbozzi) 56 las canciones ya se transcriben sin romper nunca el verso a fin de línea 57. Las copias del Canzoniere en un principio respetaban la mise en page del original 58; aparte del criterio de autoridad que le daba el precedente petrarquesco, era coherente con la estructura retórica interna que, a tenor de su disposición gráfica y como se venía haciendo con el soneto anterior a Petrarca, solía asociar el texto de los versos dos a dos mediante paralelismos sintácticos o léxicos 59. A primera vista sorprende un tanto que Boccaccio, al confeccionar el cancionero Chigi no respetara el modelo creado por su maestro y amigo pero, como ha demostrado Domenico de Robertis, el ejemplar que usó no fue el autógrafo petrarquesco, del que está separado por diversos códices interpuestos 60. Sin embargo, los copistas muy pronto se apartaron de él a favor de una disposición por versos encolumnados, que se venía dando en Italia 61 desde mediados del siglo XIV.

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De los tres facsímiles que se han publicado, he usado el de Manfredi Porena, Il Codice Vaticano Lat. 3196 autografo del Petrarca, Roma, Reale Accademia d’Italia, 1941; existen asimismo dos ediciones, Angelo Romanò, Il codice degli abbozzi (Vat. Lat. 3196) di Francesco Petrarca, Roma, Giovanni Bardi Editore, 1955 y Francesco Petrarca, Il codice degli abbozzi. Edizione e storia del manoscritto Vaticano latino 3196, a cura di Laura Paolino, Milano-Napoli, Riccardo Ricciardi Editore, 2000, aunque por desgracia disponen los versos encolumnados, sin respetar el formato del original. 57 Aparte de otros fragmentos, las canciones copiadas en este códice por extenso son Standomi un giorno (nº 323, desde la tercera estrofa), f. Iiv, Nel dolce tempo (nº 23) f. XIr-v, Amor, se voi ch’io torni (nº 270), f. XIIr y Che debb’io far? (nº 268) f. XIIv. 58 Véase por ejemplo el ms. Pl. 41.17 de la Biblioteca Laurenziana de Firenze, perteneciente a la versión Malatesta (c. 1373) copiado aún en el siglo XIV, del que se reproduce la primera página con la canción final Vergine bella en la Mostra dei codici petrarcheschi laurenziani. Firenze, maggio-ottobre 1974, Firenze, Olschki, 1974, T. XII: línea a línea se corresponde con el autógrafo Vat. Lat. 3195. 59 Véase el ejemplo de W. Storey, Transcription and Visual Poetics in the Early Italian Lyric, p. 148. 60 «Il ‘Dante e Petrarca’ di Giovanni Boccaccio», estudio preliminar al facsímil Il codice Chigiano L.V.176, pp. 54-61, donde retoma la investigación de Arnaldo Foresti, «Per il testo della prima edizione del Canzoniere del Petrarca», en La Bibliofilia, 29, 1927, pp. 157-178 y 32, 1930, pp. 257-285. 61 Suele datarse en la segunda mitad del siglo XIV el códice Landau 89 de la Biblioteca Nazionale Centrale de Firenze (Giovanna Lazzi i Maura Rolih Scarlino, I manoscritti Landau Finaly della Biblioteca Nazionale Centrale di Firenze. Catalogo, vol. I, Schede 1-145, Firenze,

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En este sentido es muy significativo el ms. Riccardiano 1088, tantas veces citado 62, que empezó la copia según el modelo de Petrarca para abandonar su sistema y substituirlo por el de versos en columna, explicitando su desapego a la forma original en una nota. Desde comienzos del siglo XV, la forma canónica de copiarlo era ya a la moderna. Para trazar esta historia no podemos olvidar que, durante el siglo XIV, el género dominante en la creación literaria de los países románicos no fue el verso lírico, sino el verso narrativo, que se copiaba en columna, lo mismo en Italia, donde predomina la herencia del Dante de la Commedia, que en Francia. En este país y en esta lengua, la tendencia del último período trovadoresco a la glosa y el comentario poético derivó en el román con inserciones líricas, introducido por Jean Renard con su Roman de la Rose ou de Guillame de Dole 63; a fines del siglo XIII, con la continuación del Roman de Fauvel por Chaillou de Pesstain 64 y con el Dit de la pantère d’amours de Nicole de Margival 65, esta tradición enlaza con el relato alegórico que nacía del Roman

Giunta Regionale Toscana Editrice Bibliografica, 1994, pp. 183-188), aunque la rúbrica del f. 23r dice «translatum per frater Ambrosius ad vltimo di maggio 1469»; las composiciones a renglón seguido alternan con las que disponen los versos en columnas (una lámina fue reproducida en Mostra de codici romanzi delle biblioteche fiorentine, Firenze, Sansoni, 1957, p. 155). Me parece más interesante un fragmento de cancionero quizá de mediados del siglo XIV, dos bifolios conservados en los ff. 22-25 del ms. Magliabechiano VII, 1035 de la misma biblioteca, en pergamino, cuidadísimos, de letra gótica, que contiene sonetos, ballate y canciones, siempre a verso por línea. 62 Véase su reproducción y comentario en Armando Petrucci, Letteratura Italiana. Storia e geografia, diretta da Alberto Asor Rosa, vol. I, L’età medievale, Torino, Einaudi, 1987, ilustración 26, luego comentado por Furio Brugnolo, «Libro d’autore e forma-canzoniere», p. 274 y W. Storey, Transcription and Visual Poetics in the Early Italian Lyric, pp. 226-227 y nota 8. 63 Para esta obra véase el trabajo fundamental de Rita Lejeune, L’œuvre de Jean Renart. Contribution à l’étude du genre romanesque au Moyen Âge, Paris - Liège, Droz - Bibliothèque de la Faculté de Philosophie et Lettres de l’Université de Liège, 1935, reimpresión facsimilar de Genève, Slatkine Reprints, 1968, así como su más sintético «Jean Renart et le roman réaliste au XIIIe siècle», en Grundriss der Romanischen Literaturen des Mittelalters, Heidelberg, Carl Winter, 1978, vol. IV tomo I, pp. 400-453. Esta novela ha sido objeto de atención crítica creciente en las últimas décadas; como aportaciones más recientes citaré sólo Michel Zink, Roman rose et rose rouge. Le Roman de la Rose ou de Guillaume de Dole de Jean Renart, Paris, Nizet, 1979, Fernando Carmona Fernández, «Tradición poética e inserciones líricas en la novela sentimental», en Actes del VIIè Congrés de l’Associació Hispànica de Literatura Medieval, edición de S. Fortuño Llorens y T. Martínez Romero, Castelló de la Plana, Publicacions de la Universitat Jaume I, 1999, vol. 2, pp. 11-29 y Meritxell Simó, La arquitectura del «roman courtois» en verso con inserciones líricas, Bern, Peter Lang, 1979. 64 Hay dos facsímiles, el primero de Paul Aubry, Paris, 1907 y el más reciente de E. Rosessner, F. Avril y N. Regalado, New York, 1990, ninguno de los cuales me ha sido asequible, más la edición literaria Le roman de Fauvel par Gervais Du Bus, publié d’après tous les manuscrits connus par Arthur Langfors, Paris, Firmin Didot, 1914-1919. 65 Ed. de Henry A. Todd, Société des Anciens Texts Français, 18, Paris, Didot, 1883, con reproducción facsimilar de New York-London, Johnson Reprints Company, 1966, que tampoco he conseguido ver.

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de la Rose de Guillaume de Lorris y de Jean de Meun, creando una tradición de estructura alegórica, octosílabo narrativo e inserción de textos líricos que llegaría hasta el Voir Dit de Machaut 66. Si realizamos una cala en la mise en page de los textos líricos en el Guillaume de Dole 67 (Biblioteca Vaticana, ms. Reg. 1725), el primer aspecto que salta a la vista es que las inserciones líricas, seguramente cantadas, se indican mediante iniciales destacadas de dos o tres líneas de altura, alternando rojo y azul, con decoración a pluma del color complementario, aunque no se ha reproducido la música, que podría ser un factor de diferenciación suplementario y percebible a simple vista; veamos algunos casos significativos. Los primeros textos pertenecen al subtipo lírico de la Bele Aelis 68 y aparecen copiados a verso por línea (vv. 290-332) con una sola excepción: los versos más breves, seguramente inserciones del estribillo, («Desoz le raim» y «Cele que j’aim», vv. 313 y 315, fol. 70r a-b) van a continuación del verso precedente separados por un punto, lo mismo sucede que los vv. 516/ 518, 523/525 y 532/ 534 (fol. 71rb), de las mismas características. Más adelante, entre los vv. 1157-1165, 1181-1191 y 2226-2285, aparecen las primeras chansons de toile («Fille et la mere se sieent a l’orfrois», «Siet soi bele Aye as piez sa male maistre», «Bele Aiglentine») copiadas a renglón seguido, separando los versos por puntos (f. 74v c-d y f. 80rb-va), pero otra («La bele Doe siet au vent», vv. 1203-1216) lo es a verso por línea (fol. 74v d-75r a), quizá por estar escrita en octosílabos como la novela, y esta es la disposición del fragmento de gesta de Gerbert de Metz (vv. 1333-1365, f. 75v c-d) se copia, sin errores, a verso por línea. Atendiendo a los textos trovadorescos, en el f. 73ra y 73rb aparecen dos canciones de trouvères (vv. 845-851, «Quant flors et glais…», de Gace Brulé y 921-929, «Li noviaus tens…», del Châtelain de Couci)) donde se adoptan criterios distintos: la primera, a verso por página, la segunda, a renglón seguido, separando los versos por puntos, y éste es el procedimiento de copia de la conocidísima de Jaufré Rudel «Lorsque li jorn sont lonc en mai» (vv. 1299-1305, f. 75rb - vc). Bastan estas observaciones para demostrar en qué medida la forma de copia a renglón seguido condicionó el trabajo de los copistas, incluso cuando la inserción de textos líricos en contextos narrativos, copiados siempre a verso por línea, podía haber impuesto sin vacilaciones este esquema visual.

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Véase el estado de la cuestión en el estudio de este poema por Sylvie Bazin-Tacchella, Laurence Hélix y Muriel Ott, Le livre du Voir Dit de Guillaume de Machaut, Neuilly, Atlande, 2001. 67 Citaré según la edición de G. Servois, Le Roman de la Rose ou de Guillaume de Dole, publié d’après le manuscrit du Vatican, Société des Anciens Textes Français, Paris, Didot, 1893, aunque hay edición posterior y más fácil de localizar en Jean Renart, Le roman de la rose ou de Guillaume de Dole, Les Classiques Français de Moyen Âge, 91, Paris, Champion, 1969. 68 Es fácil localizar estas inserciones a partir de las pp. xxii-xxix de la introducción a la edición Lecoy, que contiene una relación completa.

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El Libro de Buen Amor puede filiarse en esta misma tradición, pues consiste en un relato en cuartetas alejandrinas que encuadra algunos poemas líricos en castellano, de tema religioso. En todos los manuscritos, los versos narrativos van encolumnados y dos de ellos, S 69 y T 70, separan las estrofas mediante iniciales destacadas y una línea en blanco, mientras el tercero, G, las escribe seguidas 71. Por el contrario, cuando llega el turno de los textos líricos, el manuscrito S, de hacia 1415, los dispone en versos encolumnados, a pesar de la escasa longitud de algunos de ellos como el estribillo tetrasilabico de los «Gozos de Santa María» insertados al principio ff. 2r-3v 72; he de observar sin embargo que el verso de vuelta, pues se trata de una forma zejelesca, se copia en el margen derecho de la estrofa, no bajo ella, precedido por un calderón rojo como el incipit de la estrofa. Este poema falta en T pero G (f. 1v) adopta una estructura distinta y dispone todos los versos de la misma estrofa a renglón seguido, incluso el verso de vuelta. Si nos desplazamos ahora a otros «Gozos» y otras composiciones líricas copiados al final del libro (estrofas 1635-1667), S (f. cviir-cviiiv) los dispone a dos columnas, a verso por línea (aunque con errores en su separación), marcando el salto de estrofa mediante una línea en blanco y un calderón rojo; vuelven a faltar en T y G los copia, nuevamente, a dos por línea, igualando así su longitud con la de los versos narrativos; sin embargo, como en algunos códices latinos y en la forma de ejecutar los sonetos de algunos cancioneros italianos, las tres líneas que forman cada estrofa van abrazadas por un trazo a pluma en el margen derecho, a la derecha del cual se anota el verso de vuelta (f. 85v). Permítaseme un tercer control, más breve, sobre el texto de la «Cántica de la serrana de Tablada» (estrofas 1022-1042); mientras S (f. lxxr-v) vuelve al sistema ya conocido de dos columnas y versos en líneas distintas, G (f. 50r-v) anota otra vez los versos de la mudanza a dos por línea, con un trazo en el margen derecho abrazando los dos de cada mudanza, y la vuelta de la misma en el margen derecho. El ejemplo del Libro de Buen Amor no es inútil: revela que en fechas de copia tan próximas como 1389 (G) y 1415 (S) sus respectivos copistas podían sentir o no la necesidad de separar los versos; los errores e inconsecuencias en

69 Cito el manuscrito según Juan Ruiz, Arcipreste de Hita, Libro de Buen Amor edición facsímil del códice de Salamanca ms. 2663, Madrid, Edilan, 1975. 70 Libro de Buen Amor (facsímil), Madrid, Espasa-Calpe, 1977. 71 Uso Juan Ruiz, Arcipreste de Hita, Libro de Buen Amor, edición facsímil del manuscrito Gayoso (1389) propiedad de la Real Academia Española, Madrid, Real Academia Española, 1974. 72 Para el texto crítico, remito a la edición de Alberto Blecua, Arcipreste de Hita, Libro de Buen Amor, Madrid, Cátedra, 1992, estrofas 20-32 y 33-43. La transcripción paleográfica en paralelo de los tres manuscritos, publicada por Manuel Criado del Val y Eric W. Naylor, del mismo título, que cito por la segunda edición, Madrid, Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1972, con idéntica numeración de las estrofas, es fiel a la distribución de los versos en cada manuscrito.

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que incurre a menudo el copista de S (basta comparar las ediciones críticas con la paleográfica para darse cuenta) sugieren que el arquetipo copiaba de forma más arcaica, adaptando los versos líricos a la caja, pero el trazo a pluma con que G marca las estrofas de los textos líricos y la peculiar posición del verso de vuelta, idéntica en los dos testimonios, parece sugerir que el arquetipo ya distinguía claramente el verso lírico del verso narrativo, sin unificar nunca su transcripción en la forma de versos encolumnados, más frecuente en un manuscrito de tema predominantemente narrativo. Más coherente es la forma en que los manuscritos reproducen las inserciones líricas del Voir dit de Guillaume de Machaut 73, conservado en tres manuscritos de la Bibliothèque Nationale de París. El ms. fr. 1584 es especialmente cuidado, de lujo, copiado a dos columnas por página, con grandes capitales (a veces iluminadas) marcando el inicio de cada sección, con iniciales de estrofa y poema también destacadas y ornadas en los textos líricos. El ms. fr. 9221 es también muy cuidado, a tres columnas de unas sesenta líneas, de letra muy regular, gótica, de módulo pequeño, con iniciales de dos alturas comenzando las secciones, pero sobrio en su ejecución. Algunas composiciones van musicadas, y en tal caso se copian a renglón tirado, interrumpiendo la secuencia de las columnas; también las cartas se copian a página completa, usando en este caso un tipo de letra distinto, más cursiva, del tipo de la bastarda. Por fin, el ms. 22545, asimismo muy cuidado, a dos columnas por página y algo más de cincuenta versos por columna, fue ejecutado en letra gótica de pequeño formato, adornado con numerosas miniaturas. Son coetáneos de las copias del Libro de Buen Amor, datables, aproximadamente, entre fines del siglo XIV y comienzos del XV 74. En general hemos de apuntar que los textos líricos van a verso por línea, como los versos narrativos, pero cada manuscrito ofrece diversas peculiaridades que deberemos destacar. El primero, Bib. Nat. ms. fr. 1584 copia también por ejemplo a verso por línea el rondel, «Celle qui nuit et jour desire», v. 727,

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Cito según la edición de Paul Imbs, introducción, coordinación y revisión de Jacqueline Cerquiglini-Toulet, col. ‘Le Livre de Poche’, Paris, Librairie Générale Française, 1999. Puede verse también la introducción a este libro de Sylvie Bazin-Tacchella, Laurence Hélix y Muriel Ott, Le livre du Voir Dit de Guillaume de Machaut, Tournai, Atlande, 2001, que en las páginas 91-105 levanta un inventario de las composiciones líricas insertadas. 74 Para una visión de conjunto y muy actualizada de los manuscritos de este autor, véase Elisabeth Keitel, «La tradition manuscrite de Guillaume de Machaut», en Guillaume de Machaut. Colloque — Table Ronde organisé par l’Université de Reims. Reims (19-22 avril 1978), Paris, Klincksieck, 1982, pp. 75-94. La fijación cronológica de estos manuscritos es un tanto compleja, pues resulta necesario compaginar la perspectiva codicológica, musical y de la iluminación. Para la acción de Machaut en la transmisión manuscrita de sus obras, tan sugerente como en otros casos mejor conocidos como Christine de Pisan, Petrarca o Boccaccio, véase Sarah Jane Williams, «An Author’s Role in Fourteenth Century Book Production: Guillaume de Machaut’s ‘Livre ou je met toutes mes choses’», en Romania, 90, 1969, pp. 433-454.

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f. ccxxvii [bis]r, que alterna versos largos y cortos, y están exactamente en el mismo caso las chansons baladees, «L’ueil, qui est le droit archier», v. 969, f. ccxxviiiv, «Plus belle que le biau jour», v. 1015, f. ccxxviiiv-ccxxixr, «Je ne me puis saouler», v. 1061, f. ccxxixr y «Ne vous estuet guermenter», v. 1241, f. ccxxxiv, así como las diversas ballades y la complainte que aparece en el primer tercio de la obra a la que se ha extendido mi exploración; ninguna vacilación en este tipo de textos, a diferencia de lo que acabamos de ver en el Guillaume de Dole. De la solidez de esta convención da fe la chanson baladee, «Cils ha bien fole pensee», v. 1704, f. ccxxxiv, que alterna también versos largos y cortos y transcrita a verso por línea; a continuación del v. 1712, «Le plaisir», comenzó a copiar el siguiente, «D’autre amer», luego lo tachó y reinició la copia en la línea sucesiva. En este contexto, tiene un interés muy particular el rondel «Quant vous m’appellez ami», f. ccxxxiir-v, copiado en el seno de la carta número 6, en prosa como todas las insertadas en esta obra, transcrito a renglón seguido a fin de no alteral la mise en page de la carta y separando los versos mediante un punto. El ms. fr. 9221 copia siempre las obras líricas a verso por línea incluso cuando mezcla versos largos y cortos, pero no está exento de pecularidades. El rondel «Dame, se vous n’avés aperceü», v. 1321, f. clxxvir, musicado, fue copiado a línea tirada, separando los versos por puntos, lo mismo que el rondel «Sans cuer, dolens, de vous departirai», v. 2789, f. clxxxiir; en este caso también la parte de la composición exenta de escritura musical fue transcrita a línea tirada, separando los versos por puntos. Muy al contrario, la balade «Plourés, dames, plourés vostre servant», v. 672, f. clxxiir-v, con la primera estrofa musicada, transcribió los versos adaptándolos a los largos melismas, separados mediante puntos, pero las dos estrofas finales, ya sin música, van nuevamente a verso por línea mientras que la balade «Nés qu’on porroit les estoilles nombrer», v. 1626, f. clxxviiir, también musicada, fue reproducida a línea tirada, sin separar los versos por puntos. Destaca nuevamente el rondel de la carta 6, «Quant vous m’appellez ami», f. clxxviv, no sólo transcrito a línea tirada, como la prosa en que se inserta, donde ni siquiera se han separado los versos por puntos como hacía el manuscrito anterior. Las chansons baladees de este manuscrito, cuando alternan, como sucede casi siempre, los versos largos y cortos, van copiadas rigurosamente a verso por línea, como los demás manuscritos, excepto «Cils ha bien fole pensee», v. 1704, f. clxxixr, que dispone los cortos a continuación de los largos precedentes. En general, las estrofas comienzan mediante iniciales destacadas, resaltando intensamente en el contexto gráficamente monótono del octosílabo pareado; hay, sin embargo, excepciones, como la complainte «Mes doulz amis, a vous me veuil complaindre», v. 1356, f. clxxviv-clxxviir. Por fin, el ms. fr. 22545 copia también el rondel de la carta 6, «Quant vous m’appellez ami», f. 146r, a modo de prosa, sin puntos de separación entre versos. En el resto de los poemas no encuentro aspectos que difieran de la copia estándard referida para los manuscritos anteriores con excepción de una marcada tendencia a copiar en una misma línea los versos largos y cortos de las chansons baladees. Citaré asimismo la balade «Nés qu’on porroit 271

les estoilles nombrer», v. 1626, f. 149v donde el copista ha dejado de destacar las iniciales de estrofa. Ampliando ahora nuestro campo de visión veremos que en la segunda mitad del siglo XIV los sistemas de copia parecen haberse diversificado en todos los ámbitos. Si atendemos, por ejemplo, al conocido como Cançoner Aguiló, una recopilación de novas, obras narrativas en verso y lengua muy provenzalizante, compilado a lo largo del último cuarto del siglo XIV, observaremos que entre sus páginas se inserta un poema del trovador Pistoleta, copiado a renglón seguido y en estrofas por bloques 75, pero la transcripción de otro texto lírico insertado de fines del siglo XIII, Aixi com cell qui del tot s’abandona, atribuible a Peire Catala 76 se dispone a versos en columna, separando cuidadosamente las estrofas mediante iniciales resaltadas y la interposición de una línea en blanco, según un esquema absolutamente moderno 77. Después de este largo itinerario es posible hacer un balance provisional. En primer lugar, hemos de subrayar que los hábitos escriturísticos de los copistas medievales se basaron con pocas excepciones en un análisis de la composición poética en sus componentes métricos: versos y estrofas; en efecto, casi todos los ejemplos que hemos estudiado conocen algún tipo de marca gráfica para cada una de estas unidades, aunque no siempre la apliquen con rigor ni sean completamente consecuentes con sus principios. Otra cosa muy distinta es el tipo de marcas usadas para cada caso: la experiencia del libro escolástico ponía en sus manos numerosos procedimientos que usaron según su tradición y su criterio.

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Véase Cançoner Aguiló, edició facsímil, transcripció i comentari: Gabriel Ensenyat i Pujol, Joan Mas i Vives, Joana M. Matas i Alomar, estudi codicològic: Antoni Mut Calafell, Palma de Mallorca, Societat Arqueológica Lul∙liana, 2000, p. 349 (facsímil) y 348 (transcripción). 76 Cançoner Aguiló, p. 413, 415 y 417 (facsímil) y 412, 414 y 416 (transcripción). Para este problema, así como para otros aspectos de este manuscrito, véase el estudio de Pere Bohigas, «La llengua del cançoner d’Estanislau Aguiló», Estudis Romànics, 16, 1971-1975, pp. 1-19, luego en su Aportació al’estudi de la literatura catalana, Barcelona, Abadia de Montserrat, 1982, pp. 155-180, especialmente pp. 175-176; mientras Pere Torroella lo cita como obra de Guilhem de Bergadá, en el Cançoner Vega-Aguiló (que no ha de confundirse con el anterior) se lo atribuye a Peire Català, y quizá sea esta su verdadera autoría. El texto que nos ocupa fue publicado según este último cancionero en Pere Bohigas, Lírica trovadoresca del segle XV, Barcelona, Abadia de Montserrat, 1988, nº 39 y por Anna Alberni en su tesis de doctorado, El cançoner Vega-Aguiló (Universitat de Barcelona), Universidad de Barcelona, 2003 (véase el estado de la cuestión en la página 33, nota 28), así como en su edición paleográfica de este manuscrito, publicada antes en Cançoner Vega-Aguiló, Barcelona, Biblioteca de Catalunya, ms. 7, en Materials de l’Arxiu Informatitzat de Textos Catalans Medievals. Els cançoners catalans-Cocordances vol. 1-a, Bellaterra (Barcelona), Universitat Autònoma de Barcelona, 2001, en ambos casos con el nº 48. 77 Dejo de lado otro texto no narrativo, un Escondit copiado con los versos en columnas e idéntica separación de las estrofas por el carácter formalmente ambiguo de éstas, cuartetas decasilábicas monorrimas, de poca tradición lírica.

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De los modelos utilizados en la transcripción del verso lírico destacan intensamente dos: la copia a renglón seguido, marcando las pausas versales (preferentemente con un punto) y las estróficas (con un salto de línea o, sencillamente, con una inicial destacada) y la copia a verso por línea, con marcas suplementarias para separar las estrofas (generalmente línea en blanco e inicial). El primero es característico de los manuscritos trovadorescos y tuvo una larga vida en el siglo XIV, el segundo es el que se impuso en la tradición poética moderna. En su desarrollo, como hemos visto, pudieron influir numerosos factores, unos por su proximidad inmediata (la copia a línea tirada de los poemas insertos en la prosa, la subordinación a la música en los cancioneros musicales) otros, más alejados pero quizá no menos operativos, como sucede con la transcripción en columna del verso narrativo y del verso métrico latino. A pesar de tratarse desde lo orígenes de ámbitos literarios y codicológicos muy diversos no creo que podamos dejar de lado la influencia del verso narrativo sobre el lírico. Si uno de los condicionantes del polimorfismo gráfico medieval es la atracción del contexto (ajuste del verso al ancho de la columna o, en el extremo contrario, la transcripción a línea tirada en el seno de la prosa), la proliferación de obras lírico-narrativas con citas líricas desde principios del siglo XIII, y más particularmente en el XIV, ha actuado intensamente, como pudimos ver desde el Guillaume de Dole hasta el Voir Dit, en la adaptación a la columna de las obras líricas, con una vacilación muy marcada en el primero de estos relatos, precisamente el que inauguró la moda. En el mismo sentido pudo actuar la influencia de la poesía métrica clásica, polo de atracción de los letrados europeos a medida que el humanismo impuso sus reglas. A primera vista estaríamos tentados de atribuirle todo el protagonismo a la atracción de los primeros humanistas, pero la firmeza con que aparece este modelo en el extremo occidental de Europa, coetáneamente en el Cancioneiro da Ajuda y el Pergamino Vindel inducen a ser muy prudentes. Quizá un estudio detallado de los cancioneros (o secciones de cancioneros) provenzales con versos en columna, dado lo avanzado de nuestros conocimientos sobre esta escuela, nos permitirían precisar el origen exacto de esta innovación, pero su presencia simultánea en la Península Ibérica nos permite suponer que, en principio, la mise en page de la lírica era posible de las dos formas y que el período de los orígenes estaba marcado por un intenso polimorfismo. Lo más curioso del caso es que la copia por versos parece haberse estandarizado en su forma moderna en todas las lenguas y escuelas poéticas europeas en torno a 1400; y esta vez no sólo sorprende la uniformidad de la mise en page, lejos de la variedad que registrábamos un siglo antes, sino la rapidez y la eficacia con que se impuso: esta circunstancia parece sugerir la difusión de un modelo de gran circulación y prestigio, capaz de acabar con el polimorfismo del siglo XIV en muy poco tiempo. Determinar empíricamente de qué obra se trata no será nada fácil, dada la inmensa cantidad de manuscritos poéticos existentes, su variedad y su dispersión geográfica; sin embargo, no creo excesivamente aventurado suponer que en la raíz de esta mutación habría que situarse, conjeturalmente, en el Canzoniere de Petrarca pues ¿qué otro manuscrito se difundió tanto en tan poco tiempo? ¿Qué otro poeta ejerció

273

una influencia semejante durante el siglo XV? Por otra parte, no cabe duda de que la difusión de esta obra estuvo íntimamente ligada al primer humanismo florentino, el mismo que, en los años inmediatamente posteriores al 1400, con la adopción de la escritura humanística 78, creaba los nuevos modelos librarios que habrían de extenderse a toda Europa durante el inmediato Renacimiento. En cualquier caso, confirmar las hipótesis aquí esbozadas requerirá el cotejo de buen número de manuscritos; esperemos que este trabajo sirva al menos para orientar futuras investigaciones.

78

Véase el estudio de B. L. Ullman, The Origin and Development of Humanistic Script, Roma, Edizioni di Storia e Letteratura, 1960.

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O RESTAURO DO CANCIONEIRO DA AJUDA: ENTRE CONSERVAÇÃO DE SALVAGUARDA E ESTIMA PELOS MAIORES

AIRES A. NASCIMENTO Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Centro de Estudos Clássicos

No imaginário colectivo, Crono/Saturno que devora os seus próprios filhos é figura a que não é possível escapar. Também com os livros assim acontece. Nem sempre de uma só vez, pois o desgaste é inevitável, mesmo que, por hipótese, o suporte fosse mais resistente que o bronze e estivesse mais resguardado que ele. Paul Valéry enumerou cinco inimigos do livro; os mesmos que os do homem: o fogo, a humidade, os vermes, o tempo e o seu próprio conteúdo 1. Talvez em nenhum outro material se note que o homem é o maior inimigo de si mesmo, sendo-o dos seus semelhantes ou daquilo a que eles emprestaram significação (homo homini lupus sentencia um velho aforismo, que tem expressão já em Plauto, Asinaria, 495). Quanto ao tempo, ele reporta sobretudo relações humanas com o livro, ainda que outros agentes sejam de ter em conta. É facto que, com a escrita que abrigam, se procura imobilizar a deriva da transmissão oral para que se não perca o instante criador do artista

1

David Mourão-Ferreira, «Livros-Príncipes», in Museu Calouste Gulbenkian, Do Bisturi ao Laser — Oficina de Restauro, Lisboa, 1995, pp. 14 e 15.

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da palavra. Na forma como o fazem, os livros marcam também, a seu modo, a relação de leitura que é a forma activa da memória — que é mais função de comunidade que de indivíduo. Assim, o pior que poderia acontecer a um livro seria o esquecimento. Ora, por muito que a colectividade se reveja no que para ela foi criado, só alguns livros conseguem atravessar as fronteiras do tempo e concitar interesses que libertem da morte do esquecimento. Mercê de favor especial (mais dos céus que dos homens), foram alguns desses livros privilegiados quanto à preservação de suportes materiais constituídos em momentos antigos e são eles testemunhos singulares de textos de outros tempos, pelo que o afecto que os leitores de hoje lhes dedicam (interesse que advém do honesto estudo) lhes dá particular relevo. A consciência do seu valor cultural leva a que haja alguns rituais de memória para lhes devolver atenção alargada e comum, de modo a consagrar atitudes e, na convergência de estudo, garantir que o Tempo não atire sobre eles nem as suas mandíbulas famintas nem a sua gadanha destruidora. Alguns actos maiores são fundantes nesse propósito e pontuam a nossa cultura, para nos obrigarem a parar no nosso quotidiano a fim de repararmos no seu significado. Carolina Michaëlis de Vasconcellos, pelo que fez e pelo que permitiu que fizessem outros, seguindo os seus passos, merece esse gesto da nossa parte. Se outra razão não houvesse, bastar-nos-ia a que aponta David Mourão-Ferreira, ao comentar o referido passo de Paul Valéry, seu poeta de estimação: há «livros-príncipes» que, «pela sua alta dignidade de objectos onde o critério de beleza impera», «se evadiram e se evadem das cadeias de sujeição que prendem os demais ao regime carcerário do conteúdo» 2. O Cancioneiro da Ajuda é desses livros que há pelo menos um século persistem no trono da memória, pois ganharam o direito a serem interrogados por sucessivas gerações. As suas Cantigas, tanto pela sua singeleza de sentimentos (que levam às fontes da poesia — assim um dia escreveu algures uma autoridade — seria Rodrigues Lapa ou Hernâni Cidade, em comentário de divulgação das Cantigas, mais não lembro) como pelo seu requinte formal, cativam quem as ouve em silêncio interior. Por avatares da história que com ele carrega o códice da Ajuda, e sobretudo pelo que representa como testemunho isolado de uma tradição sem elos precisos no tempo, o Cancioneiro da Ajuda (antes, do Colégio dos Nobres; antes de quem teria sido é enigma sem chave disponível por enquanto) constitui monumento a que se torna necessário voltar sem medir o tempo disponível, pois ainda não atinámos totalmente com o seu percurso. Estamos cada vez mais habituados a requerer o estudo da materialidade por considerarmos que as marcas que nela subsistem podem ser portadoras de significação para integrar o livro manuscrito (mais do que o impresso)

2

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Idem, ibidem.

na situação de origem ou de uso. Por motivos de singularidade, as relações criadas com determinados exemplares adquirem maior intensidade. Por razões várias, o Cancioneiro da Ajuda constitui peça axial para a interpretação de momentos primordiais da literatura portuguesa medieval. Se é necessário relembrar razões, não nos pode ser indiferente que se trata da mais antiga colecção de poesia lírica trovadoresca europeia e que transcreve parte significativa das cantigas conhecidas (de amor ou outras — até nisso a hesitação serve para agudizar o interesse). Elaborado, tanto quanto se pode documentar, por finais do século XIII ou princípios do século XIV 3, nos fólios que ainda restam (serão 88 — mas, de novo, o cálculo se retrai para suspender um juízo sobre quantos faltam para definir a estrutura exacta e precisa dos que se conservam), alberga um elenco de cantigas que a tradição/memória terá, a seu tempo, seleccionado, mas que as mãos poderão ter deixado cair por descuido (310 composições são as composições reconhecidas e mais uma repetida), e não é fácil perceber quantos são os nomes dos autores que escaparam à lei do olvido (evocam-se 38, mas é necessário recorrer a outras fontes para os identificar 4). Por outro lado, nos silêncios que as interrupções denunciam, nos inacabamentos plenamente assumidos, na ausência de cor, na falta de rubrica, em lacunas da música, ou, bem assim, na escassez de marcas de continuidade material, abre-se perante o filólogo um universo imenso de dúvidas e de questões que esbarram na materialidade do suporte actual. Em boa hora salvo das contingências de um percurso que dificilmente conseguimos discernir, pretendemos que esse suporte responda a questões nossas. Facto é que a materialidade só deixa de ser opaca quando se sabe interrogá-la em processo de análise sustentada. Por certo, seria útil uma descrição codicológica. Para que fosse pertinente, teria ela de não só obedecer aos parâmetros gerais mas responder a questões de identidade do manuscrito concreto, com as lacunas e transformações que nele se advertem. Facto é que nem o percurso histórico do códice da Ajuda 5 conhecemos nem a sua identidade material se consegue apreender como uma unidade. Há dados que nos escapam. Por exemplo, a sequência dos textos: na parte do Nobiliário é fácil de reconhecer, pelos reclamos, que houve deslocação de materiais; para a parte do Cancioneiro não conseguimos comprovar a

3 Carolina Michaëlis assumia confiadamente a hipótese de ele poder remontar ainda a tempos de D. Afonso III, como forma de retribuir a seu sogro, Afonso X de Castela, ofertas similares, talvez através de D. Brites, esposa do monarca português e filha do rei castelhano; no entanto, não arrisca a identificar a origem do copista. 4 Cf. António Resende de Oliveira, Depois do espectáculo trovadoresco — A estrutura dos cancioneiros peninsulares e as recolhas dos séculos XIII e XIV, Lisboa, 1994. 5 Preferimos deixar o acrónimo CA, que se reporta mais directamente a «códice da Ajuda» e não a «Cancioneiro da Ajuda»; ainda que mais habitualmente seja conhecido por esta designação, não é senão uma das partes do códice tal como se encontra. Registe-se que o «códice da Ajuda» nunca recebeu cota de biblioteca nem ocupou lugar em estante, pois, desde a transferência para a Ajuda, feita a pedido de Alexandre Herculano, sempre ali foi conservado em caixa própria.

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idoneidade da sequência dos cadernos ou assegurar a correcção da sua estrutura actual: apenas alguns deles apresentam aquilo que aparenta ser uma assinatura — cadernos VI e X, XI, XIIII (estes dois marcados no 1.º e no último fólio: já isso é estranho…); não há reclamos e não sabemos se eles existiram na forma primitiva do códice; a foliação não foi marcada; a numeração que se pode perceber é heterogénea e tardia, feita em momentos ou fases de diferentes manipulações do códice. Gostaríamos de poder decidir se houve ou não aproveitamento de materiais diversos; nem sequer a costura da encadernação pode servir-nos de guia para remontar à origem, pois os pontos de passagem do fio são múltiplos e não se deixam reconstituir em sistema claro. Não podemos deixar de nos interrogar sobre as razões do inacabamento da iluminura: Carolina Michaëlis descreveu, com mestria, o tipo de cenário em que três personagens (o mestre-trovador, o jogral/menestrel, a bailadeira, com os seus instrumentos musicais) «symmetricamente agrupadas sob a arcada» executam as cantigas que o CA documenta 6; apetece, porém, perguntar se os motivos dessas iluminuras e a própria distribuição de textos revelam projecto próprio e autónomo ou se há razões que apontem para dependência de modelo anterior, se elas são integradoras de uma situação que dê a razão deste códice (exemplar solene no seu vasto tamanho) ou se apenas remetem para cenas de um ambiente em que as cantigas habitualmente eram executadas. Quanto ao texto, por certo há outros testemunhos que levam a ajuizar da sua integridade ou da fidelidade de tradição; o CA tem também nesse âmbito uma identidade própria que o situa, até pela diversidade que pode convergir para ele. Ora, tudo isto reclama competências largas que a descrição codicológica (como intérprete da relação de leitura criada pelo suporte) deve integrar, mas não consegue suprir e por isso fica condicionada. Gerações sucessivas se têm debruçado sobre o CA e as questões suscitadas continuarão a ser prova de um interesse que a cada momento se renova. O estudo das formas dos cancioneiros que hoje se vai incrementando com novas reflexões terá certamente muito a sugerir para situar a forma que apresenta o CA. Talvez algum dia se torne mais óbvia a história deste exemplar: escapa-nos o lugar de origem e os agentes de transmissão; gostaríamos de recuperar o sentido de comunidade textual que acolhe e transmite algo que se tornou representativo, mas bem sabemos como tal categoria é de um mundo de análise e não das situações concretas; podem perceber-se intervenções que no CA foram feitas em períodos relativamente recentes, mas elas não ficaram inteiramente documentadas. Ainda que o testemunho de D. Carolina sirva para nos levar a momento de recuperação pública e sabermos que em finais do século XIX se procuraram preservar numa única unidade material elementos soltos ou que se tomou como orientação consolidar o que restava de uma tradição mal

6

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Loc. cit., pp. 160 e 161.

conhecida e mal preservada, teremos de continuar a debruçar-nos sobre o exemplar sem direito a adormecermos sobre o que observamos. * Sem juízo definitivo nem operativo sobre tantas e tão significativas interrogações em suspenso, limitar-nos-emos a aduzir observações resultantes do acompanhamento que fizemos aquando da intervenção em restauro recente do CA. Diga-se, liminarmente, que essa intervenção se limitou a consolidar; com intenção de salvaguardar. Porque a finalidade da intervenção era preservar, nada foi deslocado nem reajustado, muito embora se reconhecesse que havia elementos desordenados. Porque tínhamos consciência da complexidade dos elementos em presença, nenhum dos intervenientes arriscou defender que se alterasse o que estava presente. Trata-se de um «livro-príncipe»; aos príncipes deve-se respeito e reverência, sobretudo quando sobreviveram às vicissitudes que sobre eles caíram. O peso da história que sobre este livro impende obrigou-nos a decidir que, independentemente da nossa observação, outros também pudessem julgar do peso do esquecimento, que todos carregamos. Facto é que o estado precário em que se encontrava a encadernação de há muito havia levado os responsáveis pela Biblioteca do Palácio da Ajuda a prever acções de consolidação e restauro. Por feliz combinação de interesses, a intervenção veio finalmente a verificar-se no enquadramento da exposição «Imagem do Tempo nos manuscritos ocidentais», que tivemos o privilégio de coordenar 7. Inicialmente concebida sob o lema «O livro no tempo, o tempo no livro», pretendíamos, com tal exposição, não apenas criar um atractivo que seduzisse pela cor e pelo desenho da iluminura, mas também fomentar uma reflexão sobre o livro, examinando a sua própria funcionalidade ao longo de uma história bimilenar, a fim de constituir pretexto para debater o futuro do livro na nossa cultura electronal; nunca será demais voltar a debater os formatos, a estrutura e a funcionalidade do livro tradicional como instrumento de leitura como nunca será demais colocar-nos perante as vicissitudes de uma cultura que por vezes se esquece de si ao esquecer os instrumentos do passado. A presença do exemplar do CA na exposição impunha-se pela sua representatividade como livro manuscrito: é o mais antigo cancioneiro do galego-português conhecido; é um dos mais antigos livros profanos que possuímos na nossa tradição textual; continua a haver a seu respeito questões de ordem múltipla quanto ao tempo e ao modo da sua constituição e quanto à integração em comunidade textual concreta (ambiente cortesão) cujas circunstâncias continuam a exigir atenção.

7 Aires A. Nascimento (coord.), A Imagem do Tempo: Livros Manuscritos Ocidentais — Catálogo de Exposição no Museu Calouste Gulbenkian (31 de Março a 2 de Julho de 2000), Lisboa, 2000.

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Nessa exposição, ficou o CA integrado no sector «Tempo da festa», dado o cunho das suas miniaturas; poderia ter figurado também na secção «Tempo de leitura», se a reflexão sobre os tempos de ócio a tanto nos tivesse conduzido, mas teríamos necessariamente de levar em conta o carácter solene do livro — o afecto passou por aí. O estado de conservação material do manuscrito dava, com razão, motivos para reflexões de ordem técnica: análise da degradação dos materiais por força do tempo; modos de suster essa mesma degradação; necessidade de encontrar formas alternativas que evitem o manejo frequente sem pôr em causa um conhecimento explícito que cada tempo deve formular (a reprodução em fac-símile, por mais aperfeiçoada que seja, não devolve a materialidade nem o sentido da estrutura). O prolongamento das reflexões, no enquadramento do restauro, levava necessariamente a questões da ordem diversa (em que os interesses filológicos têm lugar de relevo e pertinência). Havia decisões a tomar quanto a salvaguarda e valorização de uma espécie que faz parte de uma identidade cultural. Havia motivos para examinar a pertinência das razões da presença de um códice como este numa exposição que se queria englobante da cultura do livro e dos efeitos do tempo nele, de molde a tirar proveito de uma exposição em que estariam presentes testemunhos de várias tradições e de diversas idades. O estado de conservação material do códice foi considerado aspecto relevante para uma decisão de empréstimo, muito embora se soubesse que não estava em causa a idoneidade da instituição de acolhimento quanto ao respeito a manter pela espécie requerida. A Direcção da Biblioteca da Ajuda apontou como condição de empréstimo a limpeza e a consolidação do códice; a Administração da Fundação C. Gulbenkian, apoiada pelos Serviços de Restauro, foi sensível às reservas apresentadas e atendeu ao que legitimamente era posto à consideração. Nisso estava incluída a constituição de uma equipa multidisciplinar que acompanhasse o restauro do CA, embora ele fosse entregue aos cuidados de técnicas competentes, cuja idoneidade havia sido demonstrada anteriormente no próprio Serviço de Restauro da Fundação aquando de trabalho recente de recuperação de códices da Colecção de Manuscritos ocidentais da Fundação C. Gulbenkian 8. * O tema do restauro é hoje ponto sensível, ainda que de acolhimento relativamente recente no interior da comunidade filológica. No sector do livro manuscrito tem a ver com uma nova consciência do que ele representa

8 Recorde-se, a este propósito, que, na sequência das inundações que na noite de 25 de Novembro 1967 atingiram as reservas do Palácio Pombal em Oeiras, desenvolveram os serviços dessa mesma Fundação inúmeras acções para salvar e recuperar os códices que constavam das suas colecções e haviam sido adquiridos ao longo de anos pelo fundador, Calouste Gulbenkian. A pertinência das intervenções então feitas viria a ser reconhecida por autoridades competentes.

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culturalmente e dos cuidados que exige qualquer intervenção: as novas tecnologias de refracção multispectral dão-nos hoje possibilidades que até há bem pouco tempo mal suspeitávamos 9. Por ocasião de catástrofes naturais ou de destruições maciças tal consciência tornou-se mais aguda: as inundações que atingiram as bibliotecas de Florença em 1966 ou a destruição provocada pela guerra do Iraque nos nossos dias são momentos a que não podemos ficar indiferentes 10. Nem sempre pelos mesmos motivos e nem sempre com os mesmos efeitos. As inundações de Florença desencadearam um movimento de sensibilização para os problemas levantados pelos técnicos que aí procediam à recuperação dos materiais, nomeadamente do património librário; em tempos subsequentes, chegar-se-ia à organização de programas bem definidos; no entanto, só em 1981, tanto quanto nos é dado saber, é criado um programa escolarizado de três anos sobre conservação do livro no Institute of Fine Arts da Universidade de Nova Iorque, em conjugação com a Universidade de Columbia, e em 1984 começará a funcionar na Columbia’s School of Library Service um curso de pós-graduação nesta especialidade, separando-se assim da preparação genérica dos conservadores de museus 11. A criação de uma Oficina de Restauro e Arte do Livro na Fundação C. Gulbenkian, na sequência das acções consideradas necessárias para o tratamento das colecções atingidas pelas inundações de 1967, revestiu-se assim de carácter pioneiro 12. A exposição «Do bisturi ao laser», organizada em 1995 pela Oficina de Restauro, foi testemunho claro de uma actividade que se afirmara e que bem se podia considerar como «o embrião e génese de uma nova profissão imprescindível ao País, a de Técnicos de Conservação e Restauro de Documentos Gráficos» 13.

9

O projecto «Rinascimento Virtuale», desenvolvido no âmbito da Comunidade Europeia (Programa Cultura 2000) e envolvendo cinquenta entidades (universidades, institutos de investigação, bibliotecas e arquivos, sob a presidência do Professor Dieter Harlfinger, da Universidade de Hamburgo), acaba de demonstrar como essas novas tecnologias permitem a recuperação de dados insuspeitados no domínio dos palimpsestos gregos: o palimpsesto grego da Biblioteca Universitária de Turim, recuperado não obstante o estado carbonizado, é emblemático dos resultados conseguidos; não é menos sensacional a recuperação de textos de Menandro na Biblioteca Vaticana. 10 Esta última situação ocupa capítulo final em obra que chega em momento oportuno: Fernando Báez, Historia universal de la destrucción de libros — De las tablillas sumerias a la guerra de Irak, Barcelona, 2004. 11 Susan G. Swartzburg, «General Care», in Conservation in the Library — A handbook of use and care of traditional and non tradicitonal materials, Westport, Conneticut, 1983, pp. 3-29. 12 Do Bisturi ao Laser — Oficina de Restauro, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1995. Seja-me permitido aduzir o testemunho de uma das técnicas da própria Fundação C. Gulbenkian, Elisabete Matos Costa, que aí sintetizava as linhas de orientação seguidas: permanência de orientadores e consultores estrangeiros para formação de técnicos; protocolos de cooperação e consultoria com individualidades e instituições nacionais e estrangeiras, particularmente na área de pesquisa laboratorial; investimento na formação de quadros tanto por acções internas (estágios, seminários e cursos) por parte da Oficina de Restauro como pela promoção do envio de pessoal a acções no estrangeiro. 13 Ibidem.

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Em razão de, ao tempo da exposição «O Tempo nos livros manuscritos ocidentais», a Oficina de Restauro estar sujeita a decisões quanto à sua continuidade, a acção sobre o Cancioneiro da Ajuda não foi já desenvolvida nela, mas nas instalações do ANTT. Foi, no entanto, realizada em conexão com os Serviços da Fundação C. Gulbenkian, no enquadramento da exposição «Imagem do Tempo» que estava em preparação 14. O período de tempo em que se tornava necessário desenvolver o trabalho era bastante limitado, pois o calendário da exposição estava definido e não podia ser alterado. Daí que o entrosamento dos membros da equipa tivesse sido fundamental; daí também que o acompanhamento directo, sempre que a presença fosse requerida, tivesse sido a forma de colaboração considerada mais útil, de modo a analisar alguma questão que surgisse e não tivesse sido prevista. Aspectos técnicos foram sempre submetidos a juízo de pertinência científica e sobretudo pautados pelo respeito pela integridade dos materiais, de forma a não perder nada do que se encontrava e a não escamotear qualquer elemento que se suspeitasse pertencer ao processo histórico do manuscrito (origem e utilização ou simples intervenção). Em sessão pública de 27 de Junho de 2000, no termo da exposição «Imagem do Tempo nos manuscritos ocidentais», foi dado conhecimento circunstanciado das orientações tomadas e das intervenções feitas. As cautelas previstas foram registadas em actas de reunião. Dos meus próprios apontamentos retenho que, em 12 de Outubro de 1999, se assumia que: 1.

2. 3.

14

A intervenção de conservação e restauro tornava-se necessária, tendo em conta o estado de sujidade acumulada e o estado de degradação reconhecida na encadernação, estado esse que implicava restrições estritas quanto ao acesso ao CA, em disponibilização de consulta, mesmo filológica; A intervenção era considerada pertinente, conveniente e útil, a fim remover impurezas que se haviam acumulado e suster a degradação dos materiais de encadernação; A intervenção deveria ser reduzida ao mínimo e unicamente enquanto indispensável para salvaguardar o exemplar na sua integridade material;

Por indicação da mesma Fundação C. Gulbenkian, tive o privilégio de colaborar com essa mesma equipa, já minha conhecida de alguns anos atrás, e de com ela analisar os problemas que se foram colocando; nessa equipa se integrou o próprio director da Biblioteca do Palácio da Ajuda e um conjunto de técnicos sob orientação da responsável pela Direcção de Serviços de Apoio Técnico na Divisão de Preservação, Conservação e Restauro do IANTT, Dr.ª Luísa Braga de Macedo, que foi acompanhada pela Dr.ª Maria da Conceição Casanova, coordenadora das técnicas de restauro, Dr.ª Rosa Maria Gama Imaginário e Dr.ª Carmencita Albardeiro (aquela especializada em limpeza de manuscritos e esta com comprovada experiência em trabalho de encadernação).

282

4.

A intervenção deveria apoiar-se nos estudos científicos constituídos sobre o códice, tomando-os como base de juízo sobre o tipo e a importância do trabalho a desenvolver; no entanto, não se alteraria nada do que se encontrasse; 5. Tomavam-se como fazendo parte da história do códice quaisquer marcas que nele se encontrassem; sabendo-se que há dados (anotações ou numerações de fólios) devidos ou reconhecidos por personalidades tão marcantes como Carolina Michaëlis de Vasconcellos, decidia-se que não se apagariam quaisquer traços que pudessem ser resultantes de utilizadores; 6. Considerando que eventualmente a ordem dos materiais poderá ter sido alterada ao longo do tempo, observar-se-iam todos os vestígios que pudessem revelar momentos sucessivos sem comprometer a sua visibilidade (como fosse a sobreposição de fólios documentada por manchas de tinta); analisar-se-ia igualmente o carácter de solidariedade (natural ou técnica) dos materiais, de forma a documentar (ou infirmar) uma estrutura existente e julgar da sua pertinência primitiva; 7. O trabalho de limpeza obrigar-se-ia a utilizar processos não destrutivos, evitando qualquer intervenção de carácter irreversível, pelo que se limitaria a remover sujidade ou fungos acumulados, sem atingir qualquer elemento de texto ou de iluminura; 8. Como acção prévia, proceder-se-ia a uma análise circunstanciada dos materiais e seu registo; tal análise tinha por objectivos: 1) reconhecer o estado de degradação de cada um dos elementos do livro e julgar da sua solidez; 2) identificar as unidades codicológicas, ajuizar de qualquer anomalia material ou técnica (falta de homogeneidade de materiais ou de consistência na sequência da estrutura) e, bem assim, comprovar interferências sobre o que se pudesse inferir ser projecto codicológico primitivo; 9. Da colação dos materiais se organizaria documentação conveniente, pelo menos em esquema gráfico ou informação descritiva; 10. Segundo os princípios orientadores do restauro, qualquer opção, quanto a materiais a empregar e a modos de intervenção a seguir, deveria nortear-se por critérios de garantia de durabilidade, reversibilidade do processo, inocuidade dos produtos, adequação e correspondência com o material, de forma a respeitar a autenticidade; por outra parte, assumia-se o princípio do respeito pelo valor histórico acumulado 15;

15

Cf. Stéphane Ipert e Michèle Rome-Hyacinthe, Restauración de libros, Madrid, 1989.

283

11. Considerava-se pertinente e útil realizar previamente reprodução fotográfica do CA (se não total, pelo menos dos elementos mais sensíveis, como eram os iconográficos), em tamanho de formato natural, antes de intervenção de limpeza; com isso pretendia-se documentar o estado material do códice antes de intervenção programada. O trabalho começou de imediato. Em 6 de Novembro de 1999, o grupo de trabalho era posto perante os dados resultantes das primeiras operações. O diagnóstico preliminar apresentava, para o bloco do livro, um quadro de deficiências notórias, com distribuição irregular: • • • • • • • • • • • •

Sujidade acumulada em todo o códice; Vestígios de antigos restauros; Vestígios de fita adesiva; Manchas, resíduos de cera, resíduos de cola; Tinta sumida na zona do texto: letras, palavras e partes de texto desaparecidas; Desgaste de pigmentos das miniaturas; Repasses de tinta; Encarquilhamento e ondulação de fólios; desidratação; Vincos nos fólios; esfoliamentos; rasgões; Perfurações heterogéneas na costura dos cadernos; Zonas perdidas; Fólio colado a um dos planos.

O mesmo diagnóstico reconhecia para a encadernação: • • • • • • • • •

Pele de cobertura muito desidratada; Cobertura danificada nas seixas; Perda de lombada; Cantos com rupturas; Costura sobre nervos em couro, com fios de costura quebrados; Zonas arruinadas nos planos de madeira; Planos atingidos por vermes xilófagos; Fechos quebrados; Perda de tranchefilas.

Numa primeira acção de trabalho, desenvolveram-se várias tarefas e foi feito um primeiro reconhecimento de situação. 1. 2. 3.

284

Com o códice desencadernado, foi estabelecido um primeiro levantamento de dados materiais. Recolheram-se e guardaram-se todos os elementos materiais da encadernação. Foi feita uma colação esquematizada das unidades estruturais do códice (cadernos), tal como foram encontradas.

4.

Verificou-se que a numeração documentada no códice levantava problemas: tal numeração (de páginas — e não de fólios) não era consistente, era heterogénea e não era sistemática; a que constava do canto superior esquerdo aparentava ser a mais homogénea. 5. Identificaram-se problemas de ordem técnica: assim, na p. 7, em alguma fase da encadernação, a pestana fora reajustada (dobrada de novo, mais dentro) para obter maior solidez (podia reconhecer-se que o fundo do caderno se rasgara na parte de cabeceira). Outro tanto se observava noutras unidades. 6. As carcelas para montagem dos fólios nos cadernos eram abundantes: não era evidente qual o momento a que remontavam; podia reconhecer-se que, nalguns casos pelo menos, havia solidariedade com a paginação do canto esquerdo superior; no entanto, era também patente que por vezes a numeração estava subjacente à carcela e noutros estava sobreposta. 7. Fólios com pestanas eram também frequentes: não era, porém, possível determinar o tempo a que remontavam as amputações e ficavam dúvidas quanto a uma orientação pertinente dessas mesmas pestanas (em situação de fim/princípio de caderno tal orientação tinha influência na sua estrutura; no meio de caderno essa mesma orientação não era também codicologicamente indiferente, pois poderia significar infracção à Regra de Gregory). 8. A análise dos materiais procurava aperceber-se do respeito/infracção da Regra de Gregory, para induzir se haveria motivos para suspeitar de falha de materiais ou da alteração de ordem (interpretação que, no entanto, ultrapassava os desígnios da intervenção de restauro). 9. No exame do festo (fundo de caderno) observavam-se duas ordens de perfurações; tal facto levava a deduzir que a costura fora sujeita pelo menos a duas intervenções: a) primitivamente fora utilizado um único furo para a saída e entrada do fio; b) num segundo momento, correspondente a nova costura, haviam sido utilizados dois furos para o mesmo efeito. 10. Verificava-se que as perfurações da costura do Nobiliário se ajustavam melhor que as do Cancioneiro aos entalhes para os nervos na tábua. 11. Nos fólios que se sabia serem provenientes de Évora (onze ao todo), sobretudo no caderno 9, surgiam problemas de montagem das carcelas: procurar-se-ia analisar os materiais tomando em conta a solidariedade natural dos materiais e a estrutura correspondente ao respeito pela Regra de Gregory. 12. Nada se lia no fólio de guarda que estava colado no 2.º plano da encadernação. 285

A progressão do trabalho levava, em sessão de 6 de Dezembro de 1999, a examinar hesitações quanto a operações a desenvolver. 1.

2.

3.

4. 5. 6.

7.

Suscitava-se a hipótese de reconstituir o reajustamento dos materiais, partindo da solidariedade dos furos do festo dos cadernos: visava-se não só perceber a costura mais antiga como também recuperar idealmente as dimensões primitivas dos fólios, sobretudo na cabeceira, onde o corte aparentava indícios de ter sido maior; a escassez de tempo não permitia demoras neste particular, considerando-se que, sendo relevante tal questão, ela não era operativa para o momento. Admitindo que a parte do Cancioneiro era materialmente diferente da do Nobiliário, propunha-se que cada uma das partes fosse trabalhada de forma autónoma, mas tal proposta não levaria a qualquer decisão de separação dos sectores. Cada caderno seria também trabalhado individualmente; tentar-se-ia advertir: 1) em eventuais cortes (à cabeça ou na goteira — parecia que o pé não sofrera cortes tardios); 2) na existência de marcas de mais de uma dobra para pestanas nos fólios que lhes correspondiam; 3) na consistência entre carcela e numeração (para perceber se esta numeração fora colocada antes ou depois da implantação da carcela). No esquema de descrição dos cadernos, anotar-se-iam as páginas dos fólios em branco. Anotar-se-iam quaisquer elementos considerados pertinentes reportando-os ao elemento material correspondente. Sugeria-se a perspectivação de esquema que permitisse reter elementos susceptíveis de determinar momentos sucessivos de intervenções na materialidade do códice (particularmente na encadernação). Nada se declararia quanto à escrita nem quanto a eventuais lacunas do texto (já que isso escapava à intervenção em curso). *

Em 6 de Janeiro de 2000, o grupo de trabalho pôde apreciar o trabalho de reprodução fotográfica do CA inicialmente realizado para documentação do estado do códice, particularmente quanto à encadernação e à mancha de texto. Outros dados foram trazidos a apreciação: 1.

2.

286

Como resultado de análise às perfurações do festo dos cadernos, confirmava-se que tinha havido duas costuras distintas e que elas remetiam para operações independentes, ou seja, era-se levado a concluir que as duas unidades, Nobiliário e Cancioneiro, haviam sido elementos distintos e autónomos na sua origem; No caso do Nobiliário, reconhecia-se também que as perfurações da costura coincidiam só parcialmente com as incisões dos planos

3.

4.

5.

6. 7.

de encadernação; nos três bifólios interiores, do 2.º caderno, apresentavam-se dois vincos e duas perfurações de costura — uma para quatro nervos, outra para cinco nervos; a margem de cabeça era considerada pequena e concluía-se que o livro primitivo fora aparado nesse sector; também a margem de goteira apresentava talhe de aparo; por outro lado, a sequência pêlo/carne apresentava irregularidades na passagem da p. 6 para a p. 7 (em que o texto, aliás, está truncado); Semelhante estado de situação levava a presumir/concluir que a encadernação existente não fora concebida primitivamente para o Nobiliário ou que fora para ele adaptada e que o seu bloco fora reajustado aquando da junção das duas obras; Explicava-se assim o facto de duas fieiras de perfurações de costura, com número de nervos diferentes. O formato primitivo do Nobiliário fora reajustado quando se integrou na mesma encadernação o Cancioneiro; tal conclusão pode apoiar-se sobre o recorte das margens de cabeceira; no entanto, houvera também recorte do bloco do material nas margens do Nobiliário; Na análise da estrutura dos cadernos e sua marcação, pela parte do Nobiliário, a colação material e a sequência numerada não determinava imediatamente anomalias sensíveis; no entanto, uma análise mais cuidada concluía diferentemente quanto à hipótese do desaparecimento de um fólio (com texto truncado), quanto a deslocação de materiais (o reclamo de um caderno apenas tem correspondência não no caderno imediato, mas noutro mais adiante); Quanto ao Cancioneiro, verificavam-se infracções à Regra de Gregory e ficava em suspenso a interpretação de supostas marcas de sequência; Dados a requerer maior atenção surgiam em alguns pontos do Cancioneiro, uma vez que falhava a regularidade da sequência dos materiais: 1)

Caderno 9: pp. 106 e 107 e pp. 110 e 111: A regra de Gregory, que habitualmente era observada, falhava aqui: levantava-se a hipótese de se estar perante a falta de fólio que formaria bifólio com a p. 115; A análise tentava perceber se era antiga ou recente a intervenção que levara a montar os fólios em carcelas: parecia que tal operação correspondia a restauro recente; Por observação atenta, reconhecia-se que, entre os fólios das pp. 109-111, existia solidariedade natural da pele, solidariedade essa que podia ser confirmada no topo das margens internas, pois o recorte coincidia; como solução técnica propunha-se agora que ambos os fólios fossem montados sobre carcela única, recuperando assim um bifólio 287

que fora desmembrado e montado autonomamente sobre carcelas independentes (não haveria, porém, alteração de sequência — nem sequer de numeração de fólios); 2) Cadernos 11 e 12: p. 135; p. 149: Reconhecia-se também aqui a interrupção da regra de Gregory (interrupção que se atribuía a falta de fólio em cada um dos cadernos); Admitia-se que, em intervenção anterior, os fólios independentes haviam sido colocados incorrectamente; Por colação e interpretação dos dados patentes e reposição da regra de Gregory, admitia-se reverter a colocação das carcelas (135 passaria a virar para 137 e 149 vira para 151); 3) Cadernos 14, 17, 20: p. 168; p. 226; p. 253: Também aqui se identificou interrupção da regra de Gregory; Reconheceu-se que a estrutura de quínio era anómala relativamente à sequência habitual; Propunha-se a reversão de situação, reajustando as pestanas dos fólios externos e formando uma estrutura de acordo com a habitual (repondo uma sequência de quaternos, mas nada alterando quanto à numeração de fólios); 4) 1.º bifólio: Análise atenta das manchas nele reconhecidas e sua atribuição a contacto do pergaminho com a pele da encadernação levavam a concluir que tais manchas correspondiam ao material do 2.º plano e não do 1.º; por tal motivo, propunha-se costurá-la isoladamente no final do códice (situação que já se mantinha); 5) Encadernação: 1. Nobiliário e Cancioneiro apresentam sinais de duas costuras distintas: a) Não são coincidentes entre si, o que deixa supor que originariamente foram encadernados separadamente; b) No caso do Nobiliário, as perfurações só coincidem parcialmente com os entalhes das pastas, o que leva a supor que esta encadernação foi utilizada isoladamente no Nobiliário e feita a sua reutilização aquando da reunião das duas obras; 288

c) Este dado é reforçado com o facto observável de o bloco do texto ter sofrido maior corte de margens no sector do Cancioneiro; 2. Os materiais da encadernação apresentavam problemas de resistência e necessidade de consolidação. * Globalmente, as decisões tomadas pretenderam que a intervenção fosse de consolidação e salvaguarda para uma melhor conservação e só excepcionalmente fosse de restauro e que tudo se restringisse a operações de carácter técnico sobre os materiais. a) Para o bloco do texto, e como modo de consolidação e restauro, assumiu-se: • Reparação (e supressão) de antigos restauros; • Anulação de fita adesiva; • Limpeza a seco (com bisturi, trincha, lápis de borracha e pó de borracha) ou limpeza semiaquosa (pontualmente: caboximetil celulose C 600 — tilose) e aquosa (pontualmente: solução de hidróxido de cálcio e água); hidratação (pontualmente: 70% álcool; 15% glicerina; 15% de água); • Consolidação, reintegração e restauro de rasgões, festos e zonas perdidas (utilizando pergaminho, colagénio e cola — PVA com amido de batata); • Substituição de pestanas e carcelas, quando estritamente necessário; • Planificação de fólios: humidificação com 50% de álcool e água de Ramsay, mata-borrão e tábuas; • Não se alterou a posição do fólio deslocado para final, muito embora se reconhecesse ter estado colado ao 1.º plano; • Descolagem do fólio inicial e deslocação para o 2.º plano de encadernação que lhe correspondia pelos traços materiais. b) Para a encadernação, considerando que o tempo disponível era escasso e que qualquer opção de substituição implicava ponderar maduramente qualquer alternativa, optou-se por consolidar os materiais tendo em conta: — Resistência suficiente, ainda que precária, dos materiais existentes; — Solidariedade material da encadernação com o exemplar susceptível de fornecer valor diacrónico de utilização (ainda que primitivamente apenas tal acontecesse com uma parte do livro); 289

— Impossibilidade de discutir e poder encontrar solução alternativa satisfatória para os materiais, em período útil de trabalho (prévio à apresentação do códice na exposição).

As acções desenvolvidas para este sector foram assim orientadas para: • Respeito pela costura que havia sido encontrada, por ser a última documentada, independentemente de se terem indícios de ter havido outra mais antiga; • Reconstituição de tranchefilas; • Consolidação de reforços; • Empaste; • Consolidação da cobertura; • Consolidação dos planos; • Limpeza do material da cobertura, consolidando o que restava dela. * Enfim, não se procurava responder às questões complexas que os filólogos têm o direito e a obrigação de colocar sobre a constituição do CA, na sua qualidade de testemunho mais antigo de tradição textual. Observava-se a materialidade do livro e procuravam-se reajustar os elementos existentes ao que tecnicamente era possível e pertinente. No final, não ficámos muito distantes da situação descrita ou suposta por D. Carolina Michaëlis de Vasconcellos. Em casos pontuais podiam-se reajustar os materiais, depois de análise e de percepção de traços de solidariedade que fundamentavam tal operação; não se emitiram juízos, a não ser quando os dados eram evidentes — a problematização deverá ser feita a outro nível. As escassas e limitadas alterações feitas basearam-se em razões ponderosas explicitadas a cada momento. Recorde-se o que D. Carolina deixou indicado no seu estudo sobre o Cancioneiro da Ajuda, volume II: 1. Está encadernado com o Nobiliário; 2. Tem 88 fólios; 3. Faltarão no início 32 fólios, equivalentes a quatro cadernos, com as 92 poesias que se acham inventariadas ao princípio da Tavola Colocciana; 4. Há um fólio desmembrado de um dos cadernos que foi colocado no início do códice, por não saber o encadernador onde colocá-lo; 5. Pelo mesmo motivo, foram colocados outros dois fólios, nas tábuas do 2.º plano (só um deles está escrito); 290

6. O conjunto apresenta a seguinte sequência: Fls. 2-40: Nobiliário Fls. 41-128: Cancioneiro

39 fólios 88 fólios, cuja discriminação é: 74 fólios 01 11 fólios Évora: 117-128 (primeiro), depois:

+

02

IV, entre I-II, XI III V-X

43-44: 54-55: 65-66: 71-72: 74-75:

01 02 01 01 06

7. A cobertura da encadernação é renascentista, tomando como indício os medalhões dos ferros (que se podem aproximar de elementos da arquitectura portuguesa coimbrã; como tal parece portuguesa) 16; 8. «Exteriormente, no corte transversal inferior, liam-se no tempo de Varnhagen, inscriptas a tinta preta as palavras Rey Dõ Denis […]. Já deixei contado […] que, ao pegar pela primeira vez, a 28 de Maio de 1877, no velho in-folio, a encontrei mal legível e quase totalmente apagada em 1890.». * A melhor homenagem que se podia prestar à ilustre filóloga era seguir os seus passos e fundamentar qualquer discordância em trabalho que fosse complementar. O nome de pessoa escrito a tinta castanho-clara existente no fl. 87v que D. Carolina não conseguiu ler foi entretanto identificado, com fundamento bastante para ser tomada como assinatura de Pedro/Pero Homem, estribeiro-mor de D. Manuel I e poeta do Cancioneiro Geral, figura que em seus primeiros tempos pode ter sido pajem do condestável D. Pedro 17.

16

Problema é determinar a que momento da história do livro pertence esta cobertura, pois não é somenos importância perceber como os elementos se vão sucedendo. 17 Maria Ana Ramos, «Invoco el rrey Dom Denis… Pedro Homem e o Cancioneiro da Ajuda», Actes del VII Congrés de l’Associació Hispànica de Literatura Medieval (Castellò de la Plana, 22-26 de setembre de 1997), ed. Santiago Fortuño Llorens e Tomàs Martínez Romero, vol. I, Castellón, 1999, pp. 127-85.

291

A intervenção feita em 2000 foi fundamentalmente de limpeza para salvaguarda e consolidação e apenas muito escassamente de restauro, evitando eliminar tudo o que demonstrasse ter pertinência documental ou informativa. Não se presumiu de qualquer interferência nos dados quanto a juízo sobre o texto, pois esse juízo pertence a outras instâncias. Limitámo-nos a observar os dados materiais do códice, sem intervir com critérios de outra ordem ou sem ajuizar peremptoriamente do momento em que os materiais agora associados possam ter sido reunidos. Se os dados descritos podem servir para apreciar o estado do texto e sua transmissão, tanto melhor. Relativamente à plêiade de investigadores que infatigavelmente se têm debruçado sobre o manuscrito da Ajuda (vulgarmente conhecido por Cancioneiro e sem que alguma vez lhe fosse atribuída cota), limitamo-nos a oferecer os resultados de um trabalho que fundamentalmente é de índole técnica. Se na origem do interesse pelo manuscrito está sobretudo Carolina Michaëlis, haverá razão plena para aceitar a sentença de Bernardo de Chartres e reconhecer que aos ombros de gigantes podemos ver mais longe, mas é necessário que o anão se coíba de morder o dedo da mão que lhe é estendida. Longe de nós cometer semelhante falta de respeito, pois se abriria a terra para nos engolir. As perguntas de D. Carolina 18 ficaram sempre como desafio a novas investigações. Não nos compete fazer o balanço do que se avançou ao longo de um século quanto ao reconhecimento do estado do texto. Prestamos homenagem sincera a todos quantos se debruçaram sobre o códice, trazendo-lhes os resultados de um trabalho que procurou não ir mais além do que era de competências técnicas para examinar a materialidade do códice como exigência para a consolidação do seu estado actual. Oxalá as observações minuciosas a que procedemos não enganem quem nelas confiar. Aos especialistas da tradição textual caberá confrontar as observações aqui aduzidas com as suas hipóteses, sem se dispensarem do juízo que lhes pertence por direito e obrigação. BIBLIOGRAFIA TIDA EM CONTA PARA ESTUDO DO CÓDICE Cancioneiro da Ajuda, ed. fac-sim., apresentação e estudos de J. V. Pina Martins, Maria Ana Ramos, Francisco G. Cunha Leão, Lisboa, 1994.

18 Loc. cit., p. 134: «E para que não renasçam dúvidas, bastará olharmos para o mísero estado do códice, não só truncadíssimo quando o encadernaram no séc. XVI, mas… nunca acabado, quer fosse porque o mandante faleceu antes de ver realizado o seu intento, quer por falta de um pintor que o iluminasse? Um exemplar estragado e enjeitado? cedido por um dos reis de ou pelo Conde a algum curioso da sua corte? (o ignoto colaço do Infante?) como indigno de figurar nas estantes do paço, as quais devemos supor povoadas de códices sumptuosos, ricamente iluminados, como as Cantigas de Santa Maria, o Libro de los Juegos, o Leal Conselheiro?»

292

António Resende de Oliveira, «Do Cancioneiro da Ajuda ao ‘Livro das Cantigas do Conde D. Pedro’: análise do acrescento à secção das cantigas de amigo de ω», Revista de História das Ideias, 10, 1988, pp. 691-751. Carolina Michaëlis de Vasconcellos, Cancioneiro da Ajuda, vol. II, Halle, 1904. Maria Ana Ramos, «Invoco el rrey Dom Denis… Pedro Homem e o Cancioneiro da Ajuda», Actes del VII Congrés de l’Associació Hispànica de Literatura Medieval (Castellò de la Plana, 22-26 de setembre de 1997), ed. Santiago Fortuño Llorens e Tomàs Martínez Romero, vol. I, Castellón, 1999, pp. 127-85; — «Novas observações sobre o sistema de numeração do Cancioneiro da Ajuda», Boletim de Filologia, 30, 1985, pp. 33-46.

293

BIBLIOTECA DO PALÁCIO DA AJUDA: NOBILIÁRIO E CANCIONEIRO

Análise material

TABELA / siglas Cabeça aparada com corte de decoração/ miniatura Corte de escrita nas margens laterais | Vinco Carcela Falha de suporte Margem de restauro CD – Corte de decoração CM – Corte de miniatura CT – Corte de texto e notas FB – Fólio em branco FEP – Fólio escrito parcialmente FG – Fólio de guarda Min – Presença de miniatura SR – Suporte rasurado r / v – recto / verso v. – Verso p. – página fl. – fólio Note-se que a paginação existente no códice é do séc. XIX e denuncia várias intervenções; por algumas umas vezes se pode observar que as carcelas recobrem numeração atribuída anteriormente.

294

Nobiliário Caderno 1

Caderno 2

1. Estrutura

1. Estrutura

Pé Fl. 1-7 = p. 1-14 3 bifólios completos, 1 fólio com pestana

Pé fl. 8-15 = p. 15-30 4 bifólios completos

2. Registo Individual

2. Registo Individual

FEP v

FEP v SR

fl. 1 7 p. 1-2 13-4

3 5-6

5 9-10

2 3-4

6 11-12

8 15-16

FEPV

FEP FB v

4 7-8

10 19-20

15 29-30

9 17-18

14 27-28

FEP FB v

13 25-26

11 21-22

12 23-4

Notas: Notas: p. 1 e 8 escritas parcialmente. p. 18, 19 e 21 em branco. p. 10 – anotações. p. 20, 22 e 27 escritos parcialmente. p. 11 em branco 3 dos bifólios apresentam 2 vincos distintos no Nítida falta de fólio: direcção pêlo/carne não centro com furações de costuras diferentes: (i) coincidente na passagem da p. 6 para 7. vinco actual – 4 nervos (ii) vinco anterior – 5 nervos.

295

Caderno 3

Caderno 4

1. Estrutura

1. Estrutura

Pé Fl. 16-21 = p. 31-42 3 bifólios completos;

Pé fl. 22-29 = p. 43-58 4 bifólios completos

2. Registo Individual

2. Registo Individual

SR FEP

fl. 16 21 p. 31-2 41-2

18 35-6

19 37-38

17 33-34

20 39-40

22 43-44

24 47-8

29 57-58

23 45-6

FEP

FEP

27 53-4

25 49-50

28 55-6

FEP

26 51-52

Notas: p. 49, 50, 51, 52, 53, 54 e 58 preenchimento parcial de texto. p. 58: suporte rasurado.

296

Caderno 5

Caderno 6

1. Estrutura

1. Estrutura

Pé Fl. 30-37 = p. 59-74 4 bifólios completos

Pé fl. 38-39 = p. 75-78 1 bifólio completo

2. Registo Individual

fl. 30 37 p. 59-60 73-4

31 61-2

2. Registo Individual

FB

FEP

FEP

36 71-2

38 75-6

39 77-8

CT

32 63-4

35 69-70

33 65-6

34 67-8

Notas: Notas: p. 63, 64, 65, 66, 69, 71 e 73 escritas p. 75 em branco. parcialmente. p. 76,77 e 78 escritas parcialmente. p. 74 em branco Conclusões: • A sequência pêlo / carne está sempre correcta à excepção da passagem da pag. 6 para o 7 (onde, aliás, o texto está truncado). • Existem 2 vincos e 2 registos de perfurações de costura, um de 4 nervos e um de 5. • A margem à cabeça é pequena pelo que se conclui que o livro foi aparado na cabeça. • Certas áreas de texto nas margens de goteira (laterais) estão cortadas pelo que se conclui que o livro foi aparado nestas margens.

297

Cancioneiro da Ajuda Caderno 7 (1)

Caderno 8 (2)

1. Estrutura

1. Estrutura

c

c

Pé Fl 40-46 = p. 79--92 3 bifólios completos, 1 fólio com carcela

Pé fl. 47 -53 = p. 93-106 3 bifólios completos, 1 fólio com carcela

2. Registo Individual

2. Registo Individual

CD

FB

SR

CD

48 95-6

52 103-4

CT

CD

C. T.

fl. 40 46 p. 79-80 91-2

CD

42 83-4

44 87-8

41 81-2

45 89-90

53 105-6

CM

43 85-6

Notas: p. 85-86 – fólio vindo de Évora, tem restauro com carcela e tem miniatura. Na passagem de p. 84 para p. 85 a sequência pêlo / pêlo é interrompida por pêlo / carne (falta nítida de um fólio).

298

47 93-4

51 101-2

49 97-8

50 99-100

Notas: p. 96 – escrita parcial Na passagem da pág. 96 para 97, a sequência carne / carne é interrompida/ por carne / pêlo ( falta nítida de um fólio que completaria o bifólio das pág. 101-102)

Caderno 9 (3)

Caderno 10 (4)

1. Estrutura

1. Estrutura

c c c

pé Fl. 54-58 = p. 107-116 1 bifólio completo; 3 fólios com carcela

pé fl. 59-64 = p. 117-128 2 bifólios completos; 1 fólio com pestana e 1 fólio com carcela

2. Registo Individual

2. Registo Individual

CD FB v

CM

CM

FEP

FB V

min

fl.

54 57 p. 107-8 113-14

55 109-10

min

56 111-12

CT

59 64 117-18 127-28

60 119-120

CT

fl. 58 p. 115-116 Notas: Pág. 108 e 112 em branco. Na passagem de pag. 106 para 107 a sequência carne / carne é interrompida por carne / pêlo (nítida falta de fólio solidário com o fólio 58) O fl. 55 (p. 109-110) era originariamente solidário com fl. 56 (p. 111-112), como se pode comprovar por (i) aspecto da pele (ii) solidariedade de corte na margem; vão montados em carcela

63 125-6

61 62 121-22 123-24

Notas: Na passagem de p. 118 para 119 a sequência pêlo / pêlo é interrompida. Na passagem de p. 124 para 125 a sequência pêlo / pêlo é interrompida, o que coincide com a introdução de fólio solto (preso por carcela). Entre os fólios soltos não existe solidariedade física.

299

Caderno 11

(5)

Caderno 12

1. Estrutura

1. Estrutura

c

c

Pé Fl. 65-71 = p. 129-142 3 bifólios completos; 1 fólio com carcela)

Pé fl. 72-78 = p. 143-156 3 bifólios completos; 1 fólio com carcela

2. Registo Individual

2. Registo Individual

min v

CT

fl. 65 71 p. 129-130 141-2

FB

CT

CTv

66 70 131-2 139-140

FEPv

72 143-4

CT

CT

78 155-6

77 153-4

CT

68 135-6

Notas: Na passagem de p. 136 para 137, a sequência carne / carne é interrompida (nítida falta de fólio a completar o bifólio) Pág. 134 em branco Pág. 136 escrita parcialmente . Fl. 135: miniatura.

300

73 145-6

min

Min

fl. 67 69 p. 133-4 137-8

(6)

74 147-8

76 151-2

75 149-150

Notas: Na passagem da p. 150 para 151, a sequência carne / carne é interrompida (nítida falta de fólio a completar o bifólio) Pág. 143 e 151: miniatura.

Caderno 13 (7)

Caderno 14

1. Estrutura

(8)

1. Estrutura

c c c Pé 3 bifólios sobre carcelas;

Pé 4 bifólios

fólio isolado c/ pestana

fl. 79-84 + 85 = p. 157-168; fl 85 = p 169-170

fl. 86-93 = p.171-186

2. Registo Individual CT (r

CT v

CM

2. Registo Individual + v) FB-v

min-v min v

fl. 79 84 p. 157-8 167-8 CT (r

FB

80 83 159-60 165-6

86 171-2

FEP

CM v

93 185-6

87 173-4

92 183-4

+ v) min v FEP

FB

CT

CT v

fl. 81 82 p.161-2 163-4

85 169-70

88 91 175-6 181-2

89 90 177-8 179-80

85 169-70 Notas: A solidariedade natural de p. 162 e 163 é notória; os materiais formavam na origem um bifólio; o mesmo quanto a p. 160 e 165; outro tanto 158 e 167. p. 157 escrita só parcialmente. p. 158: miniatura. Na passagem do fl. 84 para 85, a sobreposição pêlo / pêlo não se verifica; o fl. 85 provavelmente pertencia a caderno anterior (não ao nº 13?; fechando a estrutura de quaterno?); está como fólio isolado (com pestana voltada para a esquerda; antes do restauro estava com ela voltada para a direita; seguindo a Regra de Gregory inverteu-se, mas só o estudo do texto poderá ajudar a determinar a situação).

Notas Miniatura: p. 173 e 180 páginas em branco: 173; 188 páginas escritas parcialmente: 171; 185

301

Caderno 15 (9)

Caderno 16

1. Estrutura

1. Estrutura

Pé 3 bifólios completos

Pé 3 bifólios completos; 1 fólio com pestana fl. 100-106 = p.199-212

fl. 94-99 = p. 18 7-198

2. Registo Individual ......CM FB v

FB v

min

min

fl. 94 99 p. 187-8 197-8

CD v

2. Registo Individual CM CT v min FEP v

FB

CT

CT v

95 98 189-190 195-196

100 199-200

FB v

fl. 96 97 p. 191-2 193-4 Notas: Provavelmente falta bifólio inicial do caderno já que a sequência carne/carne e depois pêlo/pêlo foi interrompida na passagem do caderno anterior para este. Págs. 187, 194 e 198 em branco. Págs. 188, 195 e 197 com miniatura.

302

(10)

102 203-4

CT

v

106 211-12

CT v

101 105 201-2 209-10

FB v

FEP

104 207-8

103 205-6

Notas: Falta de fólio após o 102: há interrupção de sequência pêlo/pêlo; a pestana, por isso, deve ser voltada para a esquerda (e não para a direita). Págs. 200 e 208 em branco. Pág. 206 escrita parcialmente.

Caderno 17 (11)

Caderno 18 (12)

1. Estrutura

1. Estrutura

cp Pé 1 fl. c/ carcela e pestana; 2 fl c/ pestana; 2 bifólios fl. 107-113 = p. 213-226

2. Registo Individual

Pé 1 bifl; 1 fol. c/ carcela; 1 fol. c/ carcela e pestana fl. 114-117 = p. 227-234

2. Registo Individual FEP v FEP v

FEP

CT v

fl. 107 p. 213-4

112 223-4

CT

fl. 109 217-8

117 233-34

115. 229-30

FB v

FB

fl. 108 p. 215-216

fl. 114 p. 227-8

111 221-2

fl. 116 p. 231-2

v

CT v

fl. 110 p. 219-20

fl 113 225-6

Notas: P. 226 apresenta sinais de deterioração (margem oxidada), parecendo ter já realizado as funções de guarda; provavelmente pertencia a outro caderno (seguinte) já que ao ser colocado aqui interrompe a sequência regular carne / carne que existe entre p. 212 e 213; altera também a estrutura de quaterno – que é a mais habitual. Pág. 218 em branco Págs. 217-218: escritas parcialmente

Notas: Págs. 230 e 234 escritas parcialmente Pág. 231 com desenhos esboçados

303

Caderno 19 (13)

Caderno 20

1. Estrutura

1. Estrutura

Pé Fl. 118-121 = p. 235-242 1 bifólio; 2 fólios com pestana

Pé fl. 122-126 = p. 243-251 + fl. 127 = p. 253-4 3 fólios com pestana; 1 bifólio; 1 fólio com pestana e carcela (isolado)

2. Registo Individual

FEP v

(14)

2. Registo Individual

FEP v

fl. 118 121 p. 235-6 241-2

119 237-8

122 243-4

FEPV FB

FB

Fl. 120 p. 239-40

123 245-6

124 247-8

125 249-50

FG

126 251-2

FEP

127 253-54 Notas: Pág. 236 escrita parcialmente. Pág. 238 em branco.

Notas: Entre p. 242 e 243 a sequência carne / carne é interrompida (nítida falta de fólio). Fólio 127 utilizado anteriormente como guarda da pasta anterior do livro . Pág. 249 escrita parcialmente. Pág em branco. Cortes de margens diversos.

NOTA: houve deslocação do fólio que estivera colado no 1º plano da encadernação, por indicação de Carolina Michaëlis de Vasconcellos; nada se alterou a esse estado.

304

Os esquemas dos cadernos foram primitivamente organizados pela Dr.ª Maria da Conceição Casanova, que orientou a limpeza e recuperação do códice no Serviço de Restauro da Torre do Tombo (ao qual foi confiado como condição para o Cancioneiro da Ajuda integrar a exposição «O Tempo nos livros manuscritos ocidentais», realizada no Museu da Fundação Calouste Gulbenkian em Março-Junho de 2000). Tais esquemas foram posteriormente revistos por nós em análise de verificação e reajustamento.

305

OS CANCIONEIROS TROVADORESCOS NOS SÉCULOS XIV E XV: BALANÇO E PERSPECTIVAS

ANTÓNIO RESENDE

DE

OLIVEIRA

Universidade de Coimbra

1. O esquecimento que se abateu sobre a canção trovadoresca a partir de meados do século XIV foi rápido e quase absoluto, atingindo não só a memória dos seus autores mas também a das compilações então produzidas 1. No período tardo-medieval, entre 1350 e os inícios do século XVI, são quase excepcionais, na realidade, as referências quer a cancioneiros quer a trovadores. É matéria bem conhecida desde a publicação da obra cujo centenário celebramos 2, pelo que me limito ao essencial.

1 O enquadramento cultural desta alteração, associado à evolução do estatuto da poesia e com incidências na própria designação dos compositores, é abordado por Jorge A. Osório, «Trovador e poeta do séc. XIII ao séc. XV. Algumas considerações», in Revista da Faculdade de Letras do Porto. Línguas e Literaturas, X (1993), pp. 93-98. 2 Carolina Michaëlis de Vasconcellos, Cancioneiro da Ajuda, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1990, vol. II, pp. 227-288 e 99-134 (para a trajectória do Cancioneiro da Ajuda). A questão tem sido retomada recentemente por Maria Ana Ramos, no contexto da clarificação do percurso do mesmo cancioneiro no século xv, em vários estudos que serão indicados ao longo deste trabalho.

307

Depois da menção pelo conde D. Pedro, no seu testamento de 1350, ao «Livro das Cantigas» que destinava a D. Afonso XI de Castela 3, temos de esperar pelo rol dos livros de D. Duarte, datável de 1433-1438, para descobrirmos a presença de alguns cancioneiros trovadorescos na corte dos reis de Avis. Entre os «livros de lingoajem» desse rei lá encontramos o «Livro das trovas del rey dom denis», o «Livro das trovas del rey dom Afonso», e ainda o «Lyvro das trovas del rey» 4. Desconhecendo-se qualquer produção poética de D. Duarte, será de presumir que a designação do último remeta, não para um cancioneiro com obras deste rei, mas antes para uma marca de posse assinalando uma compilação de composições alheias entregue à sua guarda ou por ele mandada copiar. Uma designação, enfim, que poderá esconder um dos cancioneiros que nos interessa, isto é, o Cancioneiro da Ajuda ou o «Livro das Cantigas» antes mencionado. Quanto aos dois restantes, a tomar à letra as respectivas designações teríamos de ver neles cancioneiros individuais dos reis português e castelhano que deixaram obra trovadoresca assinalável. Nestas circunstâncias, a corte portuguesa teria exercido alguma selectividade na preservação do legado trovadoresco, preocupando-se sobremaneira com a produção ligada às linhagens régias. Mas, conhecido o processo de formação dos cancioneiros e uma tradição manuscrita que incluiu no seu seio um cancioneiro sem indicação da autoria das composições, terão de ser deixadas em aberto outras possibilidades de identificação destes cancioneiros. Basta pensarmos que ao Cancioneiro da Ajuda andou associado o nome de D. Dinis 5 e que sob a designação de «livro das trovas del rey dom Afonso» se poderá também abrigar um cancioneiro colectivo mandado compilar por um rei do mesmo nome 6. Penso, naturalmente, em D. Afonso X. As dificuldades quanto à identificação do conteúdo dos três cancioneiros citados não se colocam do mesmo modo na menção que o marquês de Santillana fez, cerca de dez anos depois, a um novo cancioneiro galego-português na famosa Carta-Proémio que antecedia as obras então enviadas ao condestável D. Pedro de Portugal. No excurso sobre a história da poesia, ao referir-se à tradição trovadoresca galego-portuguesa, recorda este magnate um grande cancioneiro que viu quando jovem em casa de sua avó D. Mécia de Cisneros, assinalando a presença nele de cantigas de D. Dinis, de João Soares de Paiva

3

A. Caetano de Sousa, Provas da História Genealógica da Casa Real Portuguesa, ed. revista por M. Lopes de Almeida e C. Pegado, I, 1946, p. 176. 4 João José Alves Dias (ed.), Livro dos Conselhos de El-Rei D. Duarte (Livro da Cartuxa), Lisboa, Editorial Estampa, 1982, pp. 207-208. 5 Carolina Michaëlis de Vasconcellos, Ob. cit., II, p. 141. 6 Sobre as dúvidas suscitadas pelas designações destes cancioneiros vejam-se igualmente Carolina Michaëlis de Vasconcellos, Ob. cit., pp. 129-133, e Giuseppe Tavani, Ensaios Portugueses, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1988, pp. 97 e 117.

308

e de Fernão Gonçalves de Seabra 7. A indicação destes autores, possibilitando uma apreensão do fenómeno trovadoresco em quase toda a sua extensão temporal, não parece deixar dúvidas quanto à identificação deste cancioneiro com uma compilação muito próxima da que terá sido produzida pelo conde D. Pedro perto de meados do século XIV. É certo que o marquês de Santillana utiliza uma terminologia menos adequada para se referir aos diferentes géneros poéticos trovadorescos e observa também que a maioria das composições desse cancioneiro pertenceriam a D. Dinis. Mas deve dizer-se que ele identifica pouco depois os cantares de D. Afonso X como «dezires», além de que não enxergamos como um cancioneiro constituído sobretudo por composições de D. Dinis poderia dar origem, de acordo com as palavras do marquês, a «un grand volumen de cantigas». Para além da sua evidente despreocupação quanto à designação própria dos géneros trovadorescos, que actualiza, a sua memória do cancioneiro visto no período da sua meninice ou juventude — quando ainda não se preocuparia sobremaneira com a actividade poética, apesar de se lembrar dos elogios feitos aos autores nele incorporados —, apresentava-se, naturalmente, fragmentária, como o revela, ainda, a referência que faz à morte de amor de João Soares de Paiva 8. Deverá acrescentar-se que esta revelação do poeta castelhano quanto ao conhecimento concreto de alguns trovadores galego-portugueses não encontra paralelo tão eloquente na documentação portuguesa. Até aos inícios do século XVI, somente D. Dinis emerge do silenciamento a que parece votado em Portugal o meio trovadoresco. A lembrança do rei trovador devemo-la a Pedro Homem, um dos poetas do Cancioneiro Geral, numa composição que poderá situar-se talvez à volta de 1486, segundo a proposta de Maria Ana Ramos 9. Se pretendêssemos prosseguir com a detecção de novos cancioneiros trovadorescos, teríamos de sair da cronologia na qual nos propusemos efectuar este inquérito. Data já, com efeito, dos inícios da época moderna, a anotação de Colocci que assinala a chegada a Itália do «libro di portughesi», certamente o cancioneiro que daria origem quer ao Cancioneiro da Biblioteca Nacional quer ao Cancioneiro da Vaticana 10.

7 Francisco López Estrada (ed.), Las Poeticas Castellanas de la Edad Media, Madrid, Taurus, 1984, p. 59. 8 Esta tradição fora integrada quer no Livro de Linhagens do Deão quer no Livro de Linhagens do Conde D. Pedro, mas associada ao trovador Pero Rodrigues de Palmeira. 9 Maria Ana Ramos, «Invoco el rrey Dom Denis… Pedro Homem e o Cancioneiro da Ajuda», in Santiago Fortuño Llorens e Tomàs Martínez Romero (eds.), Actes del VII Congrés de l’ Associació Hispànica de Literatura Medieval (Castelló de la Plana, 22-26 de setembre de 1997), vol. I, Castellón, Universidad Jaume I, 1999, pp. 144-146 e 151-157. 10 Para o enquadramento dessa chegada, veja-se Elsa Gonçalves, Pressupostos históricos e geográficos à crítica textual no âmbito da lírica medieval galego-portuguesa: (1) «Quel da Ribera» (2) A romaria de San Servando, Paris, 1986, pp. 41-45 (sep. de Critique Textuelle Portugaise. Actes du Colloque, Paris, 20-24 octobre 1981), e idem, «Colocci, Angelo», in Giulia Lanciani e Giuseppe Tavani (eds.), Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa, Lisboa, Caminho, 1993, p. 164.

309

Em conclusão, no que se reporta ao período tardo-medieval, sabemos apenas que pelos anos de 1405-1415 circulava em alguns meios nobiliárquicos castelhanos um cancioneiro trovadoresco galego-português afim ao «Livro das Cantigas» do conde D. Pedro e cujas composições, citando o marquês de Santillana, «aquellos que las leyan, loavan de invençiones sotiles e de graçiosas e dulçes palabras» 11. Este conhecimento e elogio do legado trovadoresco não é de admirar em círculos que sabemos terem continuado a cultivar o gosto pela poesia, e que podemos hoje avaliar graças ao Cancioneiro de Baena. Ao mesmo tempo, em Portugal, tanto quanto o podemos avaliar a partir do único testemunho disponível, três cancioneiros trovadorescos de delicada abordagem quanto à identificação do seu conteúdo eram preservados, pelo contrário, no âmbito de uma corte régia na qual, a julgar pela respectiva produção cultural, não se fazia sentir um idêntico apreço pela produção poética. 2. Este quase total esquecimento do mundo trovadoresco poderá afigurar-se tanto mais incompreensível quanto sabemos que quer o Cancioneiro da Ajuda quer a compilação geral do conde D. Pedro — que daria origem ao Cancioneiro da Biblioteca Nacional e ao Cancioneiro da Vaticana — se mantiveram em Portugal ao longo dos séculos XIV e XV. Em relação ao primeiro, já Carolina Michaëlis chamara a atenção para o facto, a partir da análise de um conjunto de notas em cursivo dispersas pelo Cancioneiro 12. Estas notas estendem-se desde o momento da sua feitura até meados do século XVI e dizem respeito não só ao acto da sua confecção, mas também ao manuseamento do mesmo por parte de alguns leitores, sobretudo a partir de meados do século XV. Do estudo dessas notas e da detecção de cancioneiros entre as obras de D. Duarte, partiu aquela investigadora para um primeiro balanço sobre o percurso do Cancioneiro. Cito a parte das suas conclusões relativa ao período em estudo: «Da recamara dos ultimos reinantes da dynastia borgonhesa para a posse de D. João I, seu filho D. Duarte, e o neto D. Affonso V, servindo perto de 1449 ao Regente e ao Condestavel; de lá para as mãos dos successores, até ser piamente depositado como suspeito de heresias, por algum dos filhos ou sobrinhos de D. Manoel, depois do concilio de Trento, na mesa censoria da Inquisição […]» 13 Nos últimos anos, a decifração de uma assinatura presente no início e no fim do códice, vista como marca do proprietário do Cancioneiro num momento do seu trajecto quatrocentista, e o enquadramento da figura de Pedro Homem, a personagem em causa, viabilizaram uma maior aproximação aos ambientes por onde este Cancioneiro terá circulado na segunda metade do século XV,

11 12 13

310

Francisco López Estrada, Ob. cit., p. 59. Carolina Michaëlis de Vasconcellos, Ob. cit., Ibidem, p. 133.

II,

pp. 127 e ss.

alargando as possibilidades de concretização daquele trajecto e permitindo nuancear a proposta avançada por Carolina Michaëlis nos inícios do século XX. Na verdade, de acordo com as investigações prosseguidas por Maria Ana Ramos sobretudo a partir de 1994, o códice encontrar-se-ia, na segunda metade do século XV, nas mãos de um Pedro Homem documentado entre 1465 e 1498 e por ela identificado com o poeta homónimo incluído por Garcia de Resende no seu cancioneiro 14. Aí surge como autor de seis composições, participando igualmente em várias composições colectivas onde sobressai a ligação estreita que manteve com D. João Manuel 15. O facto de ambos aparecerem associados a D. Manuel, duque de Beja, ainda antes, portanto, da sua subida ao trono, e de terem ocupado cargos de relevo na mesma corte, D. João como camareiro-mor e Pedro Homem como estribeiro-mor, justificará, sem dúvida, a convivialidade que se pode retirar dos textos do Cancioneiro. Relembre-se que é a este Pedro Homem que se deve a única referência a um trovador português no longo período que vai de meados do século XIV aos inícios do século XVI. Esta passagem pela corte do duque de Beja, onde encontrámos Pedro Homem, parece demonstrar que o trajecto dos cancioneiros no século XV, pelo menos o do Cancioneiro da Ajuda, não será tão linear quanto o poderia dar a entender a conclusão de Carolina Michaëlis antes citada. Com efeito, se a identificação proposta por Maria Ana Ramos se vier a confirmar, não só não nos encontramos já na corte régia, mas também o possuidor do próprio Cancioneiro não é sequer um infante ou outro magnate, mas apenas um cavaleiro que servia o duque de Beja e que foi arrastado para o serviço régio só a partir do momento em que o seu senhor se viu alcandorado a tal dignidade pela falta de descendência do cunhado D. João II. Por outras palavras, se o cancioneiro em causa se conservava na corte nas primeiras décadas do século XV, como parece dar a entender a referência ao rei D. Duarte presente numa das suas anotações 16, tal não se verificava já algumas décadas depois. Mantêm-se em aberto, no entanto, a história deste deslocamento para fora do círculo régio bem como o conhecimento das razões de um menor interesse pelo códice nas altas esferas do poder, que a sua trajectória inevitavelmente sugere. Quanto à compilação geral, a sua presença em Portugal no século XV desenhou-se com as pesquisas efectuadas nos anos 60 e 70 do século passado, quando isolaram no Cancioneiro da Biblioteca Nacional e no Cancioneiro da Vaticana algumas composições, parcialmente anónimas — e por isso atribuídas, até então, aos trovadores que as antecediam —, que manifestavam grandes afinidades formais com a produção poética quatrocentista, bastante activa em

14 Maria Ana Ramos, «O Cancioneiro da Ajuda. História do manuscrito, descrição e problemas», in Cancioneiro da Ajuda. Edição fac-similada do códice existente na Biblioteca da Ajuda, Lisboa, Edições Távola Redonda, 1994, p. 30; idem, «Invoco el rrey Dom Denis…», pp. 129-142. 15 Ibidem, pp. 142-151. 16 Voltarei a esta anotação na sequência deste estudo.

311

alguns meios cortesãos castelhanos 17. Verificou-se, assim, que o cancioneiro a partir do qual ambos tinham sido copiados fora sujeito, em território português e ao longo do século XV, a manipulações que se concluíram pela integração no seu seio, aproveitando alguns espaços em branco, de composições alheias já ao legado trovadoresco. Elas revelavam, porém, por parte de alguns círculos portugueses ainda não devidamente identificados, a continuidade do interesse pela produção poética, pese o facto de os seus modelos serem, agora, procurados em Castela e não no legado trovadoresco disponibilizado pelos cancioneiros galego-portugueses. De um conjunto de acrescentos maioritariamente anónimos, sobressaem, apesar de tudo, alguns nomes, não só dos próprios autores, mas também, em dois casos, dos indivíduos a quem dirigem as suas perguntas. De Fernand’Eanes foi incorporada uma composição (V387) 18, cuja rubrica nos esclarece que a fez «porque queria bem a huma molher e nom lhe ffalou en partendo donde ella estava». Álvaro Afonso, por sua vez, dirige uma pergunta ao escolar Luis Vasques, sendo identificado na rubrica que antecede a cantiga como «cantor do senhor Inffante» (V410). De Diego Gonçalves de Montemor-o-Novo, finalmente, foi preservada uma pergunta dirigida a Fernão de Ataíde (B1075bis; V666). Luciana Stegagno Picchio, que se deteve na análise da pergunta de Álvaro Afonso, procurou identificá-lo com o homónimo documentado como mestre da capela real desde o período de governação do infante D. Pedro, fazendo eco da proposta de Barbosa Machado que o associou igualmente ao «licenciado Álvaro» responsável, em 1471, pelo ofício litúrgico comemorativo da tomada de Arzila 19. De Diego Gonçalves e Fernão de Ataíde assinalou-se a sua homonímia com dois dos autores que comparecem no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, pese o facto de faltar nesse cancioneiro o apelido indicador da naturalidade do primeiro e de se registar ainda alguma insegurança quanto ao verdadeiro apelido do segundo 20.

17

Cf. António Resende de Oliveira, Depois do Espectáculo Trovadoresco. A estrutura dos cancioneiros peninsulares e as recolhas dos séculos XIII e XIV, Lisboa, Edições Colibri, 1994, pp. 38-40, e Maria Ana Ramos, «Invoco el rrey Dom Denis…», pp. 173-176. 18 Na identificação das composições utilizamos as siglas dos cancioneiros italianos (B, Cancioneiro da Biblioteca Nacional; V, Cancioneiro da Vaticana) seguidas da numeração que lhes é atribuída nesses cancioneiros. Foram editadas em Mercedes Brea (coord.), Lírica Profana Galego-Portuguesa, Santiago de Compostela, Xunta de Galicia, 1996, vol. II, ap. I. 19 Luciana Stegagno Picchio, «Entre pastorelas e serranas: a serrana de Sintra», in A Lição do Texto. Filologia e literatura I — Idade Média, Lisboa, Edições 70, 1979, pp. 128-131. 20 António Resende de Oliveira, «Do Cancioneiro da Ajuda ao ‘Livro das cantigas’ do conde D. Pedro. Análise do acrescento à secção das cantigas de amigo de ω», in Revista de História das Ideias, 10 (1988), p. 726. As últimas propostas para a cronologia de ambos, bem como os problemas que tem gerado a identificação da personagem a quem se dirige Diego Gonçalves, acentuados pelas leituras divergentes do seu nome apresentadas pelos cancioneiros italianos, encontram-se em Ignacio Rodiño Caramés, «Diogo Gonçalvez de Montemor-o-Novo: un exemplo de acrecentamento postrobadoresco nos cancioneiros galego-portugueses», Actas del VI Congreso Internacional de la Asociación Hispánica de Literatura Medieval, II, Alcalá de Henares, Universidad de Alcalá, 1997, pp. 1302-1304.

312

3. Os elementos fornecidos pelo Cancioneiro da Ajuda e, indirectamente, pela compilação geral tendo em vista a elucidação do percurso dos cancioneiros trovadorescos ao longo dos séculos XIV e XV estão longe de poderem considerar-se esgotados. Comecemos por notar que a ausência, aparentemente, de quaisquer indicações palpáveis sobre o seu manuseamento até cerca de meados do século XV acompanha precisamente o período de maior anemia da produção poética nos meios nobiliárquicos portugueses; pelo menos naquele que se vira obrigado a uma profunda reformulação na sequência dos conflitos de finais do século XIV, isto é, a corte régia. Ao longo da segunda metade do século XIV era já bem visível o afastamento da actividade poética desse meio cortesão, entretanto não substituído, que saibamos, por outros quaisquer interesses culturais dignos de realce. Relembre-se, apenas, a péssima impressão causada junto de um embaixador do condestável Bertrand du Guesclin por um espectáculo jogralesco com que foi obsequiado na corte portuguesa em 1366 21. Os centros culturalmente mais activos, ancorados até meados do século XIV nas cortes senhoriais, pareciam deslocar-se, agora, para duas das ordens militares, a de Santiago e a do Hospital, que empreendiam então uma revisão do passado centrada na valorização da sua actividade militar, quer no âmbito da conquista do Algarve quer na sua participação na Batalha do Salado 22. Somente a partir dos inícios do século XV essa situação se alteraria, com a corte régia, saída precisamente de uma das ordens militares, a impor-se culturalmente, afirmando-se como o grande centro de produção cultural do território. Mas esta produção, em prosa e de pendor historiográfico ou didáctico e moral, continuava a menosprezar a poesia, orientando-se claramente para a resolução dos problemas mais prementes que se colocavam à nova casa reinante: a sua justificação e, concomitantemente, o reforço da sua posição perante o quadro nobiliárquico português 23. É nesta nova conjuntura cultural que sobrevivem os cancioneiros trovadorescos. Se, de facto, eles se encontravam então recolhidos na corte régia, as novas preocupações culturais deste meio tornariam compreensível, de algum modo, o esquecimento a que eram votados, justificando o menor manuseamento a que

21 María del Carmen Gómez, «Da música em Portugal no século XIV», in JL. Jornal de letras, artes e ideias, ano IV, n.º 214, pp. 2 e 3. Para a evolução do meio jogralesco no mesmo período pode ver-se A. Resende de Oliveira, Aventures i desventures del joglar gallegoportuguès, Barcelona, Columna, 2001, pp. 52-55. 22 A. Resende de Oliveira, «Cortes senhoriais», in Giulia Lanciani e Giuseppe Tavani (dir.), Ob. cit., p. 173. De acordo com Fernão Lopes, os heróis dos romances arturianos eram igualmente bem conhecidos junto destas ordens, alargando ao romance cortês os interesses culturais destes círculos. 23 Sobre a produção cultural da corte de Avis veja-se João Gouveia Monteiro, «Orientações da cultura da corte na primeira metade do século XV (A literatura dos príncipes de Avis)», in Vértice, II série, n.º 5 (Agosto de 1988), pp. 89-103.

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terão sido sujeitos. A presença de três cancioneiros na biblioteca de D. Duarte, os únicos até hoje documentados nos meios nobiliárquicos portugueses no período em estudo, parece confirmar que a preservação do legado trovadoresco se efectuou, de facto, pelo menos em Portugal, no âmbito da corte régia. Reflexo dos interesses culturais do novo rei, a sua biblioteca albergaria também, como é referido concretamente em relação a algumas das obras nela integradas, um fundo proveniente do monarca anterior, e ainda algumas obras que para ela teriam transitado provenientes das câmaras dos reis da dinastia borgonhesa. Tal terá acontecido em relação a alguns dos cancioneiros em estudo. Foram já assinaladas as dificuldades da identificação do conteúdo desses cancioneiros, dificuldades decorrentes sobretudo da ambiguidade da terminologia utilizada na sua designação. Na verdade, perante um cancioneiro intitulado «Livro das trovas del rei dom Denis» poderemos pensar não apenas num cancioneiro individual deste rei, mas também num cancioneiro colectivo por ele mandado compilar e que ainda trouxesse as marcas desse mecenato, ou mesmo, olhando para a situação do inacabado Cancioneiro do Ajuda, num cancioneiro sem quaisquer indicações de autoria mas que, preservado na corte régia, tivesse começado a ser atribuído precisamente ao único rei português que se saberia ter produzido obra poética de vulto. Imaginando a presença na mesma biblioteca de um «Livro das cantigas» do conde D. Pedro, certamente ninguém admitiria ver essa obra, de acordo com as propostas avançadas para a sua identificação, como um cancioneiro individual com as composições desse magnate. Ora, numa tradição manuscrita cuja pobreza é tão propalada, perante designações tão equívocas, ter-se-á de admitir sempre, como hipótese, a possibilidade de um ou outro cancioneiro conhecido se poder esconder sob uma dessas designações. Afasto destas considerações apenas o cancioneiro eduardino designado como «Livro das trovas del rey dom Afonso». Aqui o copista, ao contrário do que se verificou nos restantes cancioneiros, forneceu-nos um suplemento de informação que me leva a considerá-lo uma produção mais recente, muito provavelmente já do século XV. Com efeito, na sequência do título, e depois da referência à sua encadernação, ele acrescentou: «o qual copilou f. de Montemor o Novo» 24. O contacto com a topografia da produção cultural portuguesa no período medieval tem-me levado a ver o conde D. Pedro também como o último representante de uma cultura ancorada em alguns centros senhoriais do Norte do território, cultura que rapidamente transitou, já na segunda metade do século XIV, para junto de algumas ordens militares sediadas sobretudo no Centro e no Sul. Preparava-se assim o terreno para a afirmação cultural da dinastia de Avis, numa altura em que os seus principais paços se situavam entre Santarém e Évora, com Lisboa a ocupar o lugar de destaque. A alusão a um compilador

24

314

João José Alves Dias, Ob. cit., p. 208.

de Montemor-o-Novo parece indicar que a cópia deste cancioneiro dependia já do mecenato de alguma importante instituição do Sul, à frente da qual se encontrava, naturalmente, a própria corte régia 25. É provável que junto da corte tivesse persistido, embora a nível residual e estrategicamente orientado, algum interesse em conservar a produção de alguns autores, mormente das figuras régias. D. João I, no Prólogo do seu Livro da Montaria, deixa entender, pelo menos, que a cópia de cancioneiros continuava activa: «[o jogo de andar ao monte] era em si mais alta cousa e mais proveitosa que algumas outras, de que se alguns trabalharam de fazer livros, assi como de Falcoaria, e de Cantigas, e doutras cousas e artes que muyto menos que esta aproveitam» 26. A memória da produção de livros de cantigas parecia ser, assim, coisa recente, independentemente de o autor ter pensado ou não no cancioneiro acima referido. Voltando aos dois restantes cancioneiros de D. Duarte, o «Livro das trovas del rei dom Denis» e o «Livro das trovas del rey», irá longe demais quem pretender ver neles precisamente os dois cancioneiros que nos interessam, isto é, o Cancioneiro da Ajuda e a compilação geral do conde D. Pedro, ou, se se quiser, o «libro di portughesi» que desaguará em Roma por volta de 1525; sobretudo no estado actual da questão, em que faltam manifestamente indicações claras nesse sentido. Mas, em relação ao primeiro, não posso deixar de lembrar que poderemos estar perante o mesmo códice que entre 1564 e 1567 foi registado no inventário da imponente biblioteca de D. Teodósio de Bragança como «Obras del Rei Dom Denis feitas de mão de pergaminho, em táboas», uma descrição que Maria Ana Ramos considerou fazer «manifestamente pensar no próprio Cancioneiro da Ajuda» 27. Se esta associação é correcta, então teremos de pensar que a ligação do nome de D. Dinis ao Cancioneiro da Ajuda, ligação cujas marcas perduraram até ao século XIX, já se encontrava estabelecida no segundo quartel do século XV. Quanto à compilação geral, que conhecemos apenas a partir das cópias que dela foram efectuadas em Itália, será sempre mais temerário, sem nova documentação e sem o estudo global dos autores quatrocentistas nela integrados, identificá-la com o «Livro das trovas del rei» ou mesmo equacionar os locais em que foi preservada até aos inícios do século XVI, pese o facto de, entre os autores quatrocentistas nela incorporados, figurar um «cantor do senhor infante». Foi, aliás, este poeta que mereceu maior atenção por parte da crítica, que o associou, como vimos, ao mestre da capela real documentado por meados do século XV e talvez ao compositor do hino comemorativo da Batalha de Arzila em 1471. É provável,

25

Sobre a importância cultural de alguns centros alentejanos nos séculos XV e XVI veja-se Maria Ana Ramos, «Homens e cancioneiros em Évora», in Patrizia Botta, Carmen Parrilla e Ignacio Pérez Pascual (eds.), Canzonieri iberici, I, A Coruña, Toxosoutos, 2001, pp. 169-209. 26 D. João I, Livro de Monteria, in Obras dos Príncipes de Avis, introd. e rev. de M. Lopes de Almeida, Porto, Lello & Irmão Editores, 1981, pp. 7 e 8. 27 Maria Ana Ramos, «Homens e cancioneiros…», p. 198.

315

no entanto, que a cronologia deste autor não tenha avançado muito para além de meados deste século. Isto, pelo menos, se ele puder ser identificado com o Álvaro Afonso natural de Sintra que se preparava, em 1418, para rumar a Roma em defesa dos direitos do Estudo Geral sobre a igreja de São Pedro do Sul 28. Já as anotações que subsistiram no fólio de guarda do Cancioneiro da Ajuda — nomeadamente a que regista «Dom Eduarte pela graca de deus rei de putugal e do algarve e senoor de ceta» — apontam, indubitavelmente, para a sua proximidade do círculo régio. Mas no mesmo fólio, um pouco mais acima, pode ainda ler-se uma outra que nos revela que o códice, na altura em que ela era escrita, já não se encontrava na livraria régia: «este livro hez do colaco do imfãt» 29. A identificação deste infante não tem sido consensual. Tratando-se de D. Duarte, como supõe Carolina Michaëlis, teríamos de admitir que o Cancioneiro da Ajuda não se encontraria na biblioteca régia, a não ser que mais tarde o rei o tivesse adquirido a esse colaço. Se, pelo contrário, o infante em causa tiver sido D. Pedro, ao qual tem sido ligado também Álvaro Afonso, um dos autores acrescentado à compilação geral e que aí é identificado como «cantor do senhor Infante», então poderemos estar perante o momento em que o códice transitava do paço régio para as mãos de um membro da pequena nobreza criado com o infante e que se encontraria ao seu serviço. Na primeira hipótese o códice teria chegado à corte régia somente pelos anos trinta de Quatrocentos, na segunda tê-la-ia abandonado talvez na década seguinte. Como, em relação a ambos os cancioneiros, os acrescentos e notas que receberam se parecem ter desencadeado sobretudo a partir dos anos quarenta, será talvez mais pertinente e produtiva a exploração da segunda hipótese, a partir dos dados que já conhecemos sobre a situação do Cancioneiro da Ajuda na segunda metade do século XV, disponibilizados pelas pesquisas de Maria Ana Ramos. Ou seja, é tempo de regressarmos aos Homens. De acordo com esta investigadora, o cancioneiro encontrar-se-ia então na posse de um Pedro Homem cujos traços biográficos e culturais procurou acompanhar a partir do momento em que, em 1365, era pagem do condestável D. Pedro. A mesma autora assinalou ainda a existência de três outros Pedros Homens — documentados no segundo terço do mesmo século, sendo um deles escudeiro do infante D. Pedro (documentado entre 1434 e 1452) e os

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Luís A. de Oliveira Ramos, Joel Serrão e António de Oliveira (dir.), História da Universidade em Portugal, vol. I, t. I (1290-1536), Coimbra, Universidade de Coimbra-Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 49. 29 Estas anotações foram já assinaladas por Carolina Michaëlis de Vasconcellos, Ob. cit., II, pp. 133 e 178-179. Na transcrição sigo a leitura proposta por Susana Pedro na comunicação apresentada neste congresso.

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restantes, escudeiros do infante D. Henrique (documentados em 1430 30 e em 1456-1459) — e chamou a atenção para as dificuldades da abordagem de uma linhagem bastante prolífica, com membros dispersos por diferentes pontos do território e muitas vezes de difícil identificação em termos familiares e geracionais devido ao abandono, na grande maioria dos casos, do patronímico nos respectivos nomes 31. Essas dificuldades mantêm-se, não sendo ainda possível discernir com clareza a história da linhagem no século em estudo, apesar das pesquisas documentais feitas e dos contributos de alguns genealogistas 32. É possível, no entanto, acrescentar aos quatro Pedros Homens antes citados alguns mais, todos activos no século xv: 5.º Pedro Lourenço Homem, bacharel em degredos, reitor, lente e conselheiro do Estudo Geral de Lisboa, nomeado, em 1453, capelão e orador de D. Afonso V 33; 6.º Pero Homem, filho de Pedro Afonso da Costa e de Mécia Rodrigues Homem do Amaral, amos do infante D. Pedro, e irmão de João da Costa, bispo de Lamego (1447-1464) e de Viseu (1464-1482, com o nome de João Gomes de Abreu) 34; 7.º Pedro Homem, filho do anterior e que terá vivido em Entre Douro e Minho, no concelho de Bemviver, e casado com Constança Borges, filha de um criado do infante D. Pedro 35; 8.º Pedro Homem, filho de João Martins e morador em Lisboa pelos finais do século 36. A existência de um grande número de Pedros Homens coevos ou de gerações próximas, dispersos pela corte régia e por algumas casas de infantes, dá

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Trata-se de Pedro Nunes Homem. Para além da data indicada por Maria Ana Ramos, encontra-se documentado pelo menos até 1443, sendo nesta altura cavaleiro da casa do Rei. Terá sido escudeiro de D. Duarte e não do infante D. Henrique, enquadramento que se poderia depreender da leitura de João Silva de Sousa, A Casa Senhorial do Infante D. Henrique, Lisboa, Livros Horizonte, 1991, pp. 17 e 27. Cf. Monumenta Henricina, 15 vols., Coimbra, 1960-1974 (III, docs. 162 e 166; IV, doc. 60; V, doc. 42 e nota das pp. 99-100; VII, doc. 102). 31 Maria Ana Ramos, «Invoco el rrey Dom Denis…», pp. 132-139. 32 Dos genealogistas consultados merece destaque, pelo volume de informação relativo aos Homens, J. Leitão Manso de Lima, Famílias de Portugal, vol. XII, Lisboa, 1930, pp. 480-640. Nas pesquisas documentais efectuadas ative-me à documentação publicada, cuja exploração não foi ainda concluída. Nas notas darei conta de alguns dos núcleos documentais abordados. 33 Artur Moreira de Sá (dir.), Chartularium Universitatis Portugalensis, vol. V, Lisboa, Instituto de Alta Cultura-Instituto Nacional de Investigação Científica, doc. 1716, p. 361. 34 J. Leitão Manso de Lima, Ob. cit., p. 621. 35 Ibidem. 36 Artur Moreira de Sá, Ob. cit., IX, doc. 3481.

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bem conta, desde logo, das dificuldades de abordagem desta linhagem, tanto mais que a documentação é avara em indicações quanto à sua integração nos diferentes ramos que a constituem, aspecto que não é colmatado pelos genealogistas que a ela se dedicaram. Deste grupo de novos elementos interessa-nos sobretudo o filho de Pedro Afonso da Costa e de Mécia Rodrigues que, de acordo com o papel exercido pelos pais na criação do infante D. Pedro, seria precisamente colaço desse infante. A informação é veiculada pelo genealogista Manso Lima, na parte do seu estudo sobre a linhagem em que tenta recuperar fragmentos familiares dos Homens que não conseguiu associar ao vasto painel linhagístico que traça, inviabilizando assim o estabelecimento das relações que este Pero Homem manteria com os restantes e, sobretudo, com o escudeiro do infante D. Pedro documentado entre 1434 e 1452 37. Como quer que seja, caso a existência deste Pero Homem se confirme, poderemos estar perante o responsável pela transferência do cancioneiro do paço régio para as mãos de uma linhagem da pequena nobreza, alguns membros da qual denotavam grande proximidade com os círculos do poder. E terá sido por esta via, sem que seja possível, de momento, concretizar o processo de transmissão em causa, que o Cancioneiro terá chegado às mãos do Pedro Homem estribeiro-mor de D. Manuel. No entanto, se este, de acordo com a proposta de Maria Ana Ramos, era pajem do condestável D. Pedro em 1465, as relações entre os três Pero Homem envolvidos 38, dois deles ligados ao infante e um ao condestável seu filho, seriam seguramente muito estreitas, facilitando a manutenção desse Cancioneiro junto dos membros deste ramo da linhagem até ao século XVI. 4. Independentemente de novas descobertas documentais que possam contribuir para esclarecer aspectos menos conhecidos do percurso dos cancioneiros trovadorescos nos finais da Idade Média, será ainda de esperar que uma melhor percepção dos círculos nobiliárquicos portugueses ligados à poesia no período em estudo permita enquadrar e elucidar com maior segurança aquele percurso. Nas pesquisas a efectuar deverão ser tidos em consideração não apenas os elementos de carácter biográfico que viabilizem o conhecimento dos autores acrescentados à compilação geral e o enquadramento da sua actividade mas também, de um modo mais alargado, a contextualização de todos os autores documentados no mesmo período, bem como uma exploração sistemática da documentação no sentido do esclarecimento da evolução da linhagem dos

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Cf. Maria Ana Ramos, «Invoco el rrey Dom Denis…», pp. 132-133. Refiro-me ao Pero Homem escudeiro do infante D. Pedro, a Pero Homem da Costa, colaço do mesmo infante, e ao Pero Homem pagem do condestável e estribeiro-mor de D. Manuel. Mas será necessário verificar se sob o escudeiro e o colaço não se esconderá um mesmo Pero Homem, ou se o pagem e o estribeiro-mor não corresponderão, pelo contrário, a duas personagens diferentes. Sobre as dúvidas que permanecem em relação à identificação do pagem com o estribeiro-mor, veja-se Maria Ana Ramos, «Invoco el rrey Dom Denis…», pp. 137-138. 38

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Homens, linhagem cuja preocupação pelo legado trovadoresco ficou patenteada. O facto de este interesse pela poesia nos aparecer associado a uma linhagem da pequena nobreza, inevitavelmente mais afastada dos círculos da produção escrita, poderá ser um primeiro factor explicativo do porquê do silêncio que se abateu sobre a produção poética no século que se seguiu ao testamento do conde D. Pedro.

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