Alto falante
da instituição em uma competição esportiva nacional. O ato de correr se apresenta gradualmente durante o filme como elemento metafórico para veicular com potência uma mensagem libertária. No evento-chave da trama, o jovem é confrontado com uma situação-limite em que, em um gesto extremado e decidido, abre mão da vitória certa para salvaguardar sua dignidade. A vocação de Smith se converteu em um símbolo do enfrentamento à autoridade e à adversidade, afigurando-se, assim, como seu derradeiro ato de liberdade.
JORNADAS Por Guy Amado
[email protected] 1. Olimpíadas de Tóquio, 1964. Kokichi Tsuburaya, jovem maratonista nipônico, compete por seu país. Fora da lista de favoritos, acaba por despontar em segundo lugar já quase no encerramento da prova. Ao adentrar o Estádio Nacional, onde se dá a chegada, a torcida local o ovaciona, extasiada. Seria o segundo colocado em uma prova que acabava de ser vencida pelo etíope Abebe Bikila, uma lenda da modalidade. Contudo, o japonês perderia a medalha de prata ao ser surpreendentemente ultrapassado nos metros finais pelo britânico Basil Heatley. Ainda assim, era um feito e tanto: falamos da terceira posição em uma maratona olímpica. Mas a cultura japonesa pode ser severa no que se refere à derrota ou ao fracasso; e, não raro isso, é encarado pelos nipônicos como motivo de vergonha. Tal fato acabará por ser insuperável para o atleta, levando Tsuburaya a se suicidar três anos mais tarde, quando se preparava para a maratona dos Jogos do México. Tinha 27 anos e com ele foi encontrada uma nota em que ele afirmava “estar cansado demais para seguir correndo”; sua medalha olímpica jazia em seu peito. 2. No magnífico filme britânico The loneliness of the long-distance runner [de Tony Richardson, 1962], Colin Smith é um jovem transgressor cujo grande talento é a aptidão para corridas de fundo. Interno em um reformatório, destacava-se dos demais por suas capacidades atléticas e passou a encarnar as esperanças 96
3. Em julho de 1975, o artista holandês Bas Jan Ader partiu em um pequeno barco a vela de Cape Cod, nos EUA, rumo a Falmouth, Inglaterra. Sua viagem solitária cruzando o Atlântico foi concebida como uma etapa de um projeto artístico seu, In search of the miraculous – e, em última análise, poderia ser lida como uma experiência estética radical. Estava também em jogo a possibilidade de quebra do recorde de travessia transatlântica individual em uma embarcação tão diminuta. O fato é que sua missão nunca foi completada: quase um ano mais tarde, os restos de seu barco foram avistados, à deriva, na costa da Irlanda; seu corpo nunca foi encontrado. O desaparecimento misterioso do artista, e em circunstâncias tragicamente belas como aquelas, acabou por converter sua figura em ícone, e sua jornada romântica em uma parábola acerca da fragilidade humana e o ato de falhar. * * * Três narrativas permeadas pelo signo do fracasso ou da incompletude, articuladas por uma forte imagem de jornadas em que se enfatiza a fisicalidade do ato, além de um componente melancólico. Seus protagonistas – os reais e o fictício – pertencem a universos distintos, mas de algum modo partilham desse código, cada um à sua maneira. Na prática artística, como no esporte individual, o fracasso é uma instância determinante e onipresente, ainda que encarado de modos diversos, senão mesmo opostos nos dois campos. Enquanto o artista tende a fazer do erro, da falha ou do acaso seus aliados no processo criativo – que é também abraçar o desconhecido –, o atleta tem como meta evitar tais fatores, buscando acima de tudo a eficiência, o resultado positivo mensurável e a vitória. No mais, as conexões entre a noção de incompletude, derrota, desaparecimento e o ato de falhar são extensivas à instabilidade e à precariedade que conformam a própria existência humana. Mas há momentos em que esses fatores se conjugam de modos especialmente belos e marcantes.
