JORIO, Rafael Russo De. \"Como Funciona o Coletivo Rádio Muda?\"

June 7, 2017 | Autor: Rafael Jorio | Categoría: Ação Coletiva, Redes Sociais, Sociabilidade, Autogestão, Organização Social
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Descripción

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Pró-reitora de Pesquisa (PRP) – UNICAMP PROGRAMA INSTITUCIONAL DE BOLSAS DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA– PIBIC/CNPq

Título do Projeto de Pesquisa:

Como Funciona o Coletivo Rádio Muda?

BOLSISTA: Rafael Russo De Jorio / RA: 122374 Início da Bolsa: 01/03/2015 Término da Bolsa: 31/07/2015 Curso: Ciências Sociais Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) - Unicamp

ORIENTADOR: Pedro Peixoto Ferreira

Campinas, Agosto de 2015.

APRESENTAÇÃO As rádios livres universitárias existem no país há décadas e suscitam discussões controversas no sentido da apropriação e domínio da comunicação. São veículos notáveis no seu desempenho à comunicação alternativa, com caráter de negação às imposições mercadológicas, além de denotar um fenômeno de auto-organização que merece ser considerado e investigado com profundidade. Atualmente, existem distintos conceitos de rádios livres e são inúmeras as possibilidades interpretativas que poderiam surgir de fenômenos coletivos como esse. Esta pesquisa restringe seu foco exclusivamente às experiências de rádios livres universitárias, em especial ao caso da Rádio Muda (RM), localizada no campus da Unicamp, em Campinas-SP. Através de estudos bibliográficos da literatura atualmente relevante sobre as formas de organização social, do material bibliográfico disponível sobre a própria Rádio Muda, além da presença do pesquisador no cotidiano da rádio e nas reuniões periódicas do coletivo, define-se uma investigação empírica dos efeitos e implicações da forma de organização social desempenhada pelo coletivo Rádio Muda. Seus princípios organizacionais, desempenhados na atividade atual e histórica desse coletivo, expressam construção coletiva de conhecimentos, redes de sociabilidade, representações coletivas e um constante processo de formação da própria organização que se estabelece em torno do coletivo Rádio Muda. O COLETIVO

Imagem 1: Foto de 2004 da Rádio muda. FONTE: .

A Rádio Muda configura-se numa estrutura organizacional subsistente e autogerida, onde a atuação dos integrantes equivale frequentemente ao interesse fundamental que é inerente ao próprio objetivo do movimento: a existência e preservação da rádio. Os integrantes do coletivo reúnem-se todas às segundas-

feiras em frente ao estúdio da rádio para comunicar algo, discutir temas e tratar assuntos, sempre anotando-os em uma ata de reunião para não se esquecer o que foi abordado, possibilitando assim a retomada dos assuntos quando necessário. A ata da reunião também é disponibilizada posteriormente na lista de e-mail do coletivo, que é uma ferramenta mais dinâmica e informal para que a informação seja discutida com os “mudeiros” que não estavam presentes. Porém, é importante destacar que, apesar da lista de discussão via e-mails ser extremamente significativa, a reunião semanal é de fato o espaço deliberativo mais importante para a gestão do coletivo. Participam atualmente destas reuniões semanais em média de 10 a 20 pessoas, embora haja cerca de 25 programas inscritos na grade e aproximadamente 30 programadores. Este é o coletivo de pessoas responsáveis pelas principais decisões, pela manutenção técnica dos equipamentos, pela introdução de novos programadores, pela manutenção do espaço e dos “princípios mudos”, pela distribuições das chaves, e assim por diante. Estas reuniões semanais, como define o próprio movimento, têm carácter horizontal, indicando que todos que estão presentes, programadores ou não, têm o mesmo poder nas discussões. Sendo assim, os participantes organizam-se de maneira autônoma, não havendo divisões específicas de funções (como a tarefa de escrever a ata da reunião ou divulgar informações no site, por exemplo), pois todos têm os mesmos deveres e direitos estabelecidos nos “princípios mudos” – texto criado pelo coletivo para instituir algumas concepções sobre as políticas de atuação, de comportamento, de estratégia, de divulgação, entre outros. Por tratarse de uma rádio livre, os “princípios mudos” tornam ainda mais específica a proposta estrutural e os objetivos desse modo de gestão das rádios livres. Esses princípios também contribuem para um destaque dessa rádio no interior do movimento de Rádios Livres. Segundo a autora Flora Rodrigues Gonçalves “[a Rádio Muda]serve de referência para todas as outras Rádios Livres que surgiram em várias partes do país” (GONÇALVES, 2008, p 8). PRINCÍPIOS MUDOS

Imagem 2: Interior do estúdio e o Teatro de Arena em frente à Rádio Muda. FONTE: .

Os “princípios mudos” é o suporte para que alguns traços desse coletivo permaneçam sempre perenes, como no caso dos princípios organizacionais da horizontalidade e da busca pelo consenso, além dos valores da liberdade e solidariedade que surgem do estímulo individual de cada um “para que o acesso à produção radiofônica seja o mais amplo possível e exercida com o mínimos de restrições” (Cérebro Aquático, 2001). Como consta em um e-mail enviado pelo programador A, no dia 08 de março de 2015, surgiu na reunião do coletivo uma importante discussão sobre a ideia de reformular o texto contendo os princípios do coletivo rádio muda. Galera, surgiu a ideia de promover novamente os Princípios Mudos. (pois parecem esquecidos ultimamente...) A ideia é imprimir um cartaz e afixá-lo lá na Muda. Junto segue um pdf com uma proposta de cartaz. Peço que quem quiser sugerir/emendar/protestar/acrescentar algo que o faça. Abraços.

Segue abaixo a versão atual do texto “Princípios Mudos”, disponível no site da rádio (Anônimo, 2015a): PRINCÍPIOS MUDOS 1.1 – A Rádio Muda é uma rádio livre, não comercial, portanto não veicula propagandas de produtos ou serviços. Também não se deve fazer propaganda religiosa, nem de partidos políticos. 1.2 – Funciona de forma auto-gestiva, na boa tradição de um coletivo horizontal, sendo todas as decisões tomadas nas reuniões do coletivo, toda segunda-feira, às 20h, em frente da rádio. 1.3 – Tudo o que for feito em nome da Muda (contatos, entrevistas, apoios, aquisição de material, etc.) deve ser comunicado ao coletivo, se possível com antecedência. 1.4 – É importante que a rádio atue como o meio de comunicação que é, divulgando informações, notícias, eventos, etc., estando isso, porém, a cargo do interesse e bom senso de cada programador. 1.5 – Cada um é responsável pelo que diz. Não faça de todos uma opinião que é só sua ou de alguns. Quando expressar opinião sobre qualquer assunto, assuma. 1.6 – “O repertório musical é livre, mas recomenda-se o distanciamento da programação da mídia comercial. ESPAÇO FÍSICO 2.1 – Este espaço é um estúdio de rádio. Não esquecer nunca disto. 2.2 – Zele pela conservação do Espaço Físico da Rádio; dê uma varrida, quando for preciso; tire a poeira dos equipamentos; não deixe garrafas, copos, pontas de cigarro, lixo em geral, jogados na rádio; se o saco de lixo estiver cheio, feche-o, jogue na lixeira mais próxima e ponha outro no lugar; se vir que os sacos acabaram, traga uns de casa. 2.3 – Se trouxer bebidas ou comidas para consumir durante seu programa, não deixe as latas/garrafas vazias e restos de comida no estúdio. Jogue tudo em algum lixo externo. CHAVES 3.1 – Cada programador é responsável pelas suas. Não empreste, em hipótese alguma, a outros que não do coletivo. 3.2 – NÃO FAÇA CÓPIAS DAS CHAVES!!! Cópias para programadores serão entregues durante a reunião do coletivo.

EQUIPAMENTOS 4.1 – A conservação dos mesmos é responsabilidade de todos. Cuide-os como se fossem seus. Se você não sabe operar o equipamento adequadamente, informese com alguém que saiba, para não danificá-lo. 4.2 – Se houver problemas, não tente consertar o que não conhece. Comunique o coletivo, registre no caderno e deixe aviso no mural. 4.3 – Não retire equipamento algum da rádio, a menos que isso seja decisão do coletivo.

De acordo com as formas de organização e de comunicação possíveis na Rádio Muda, o coletivo define-se como “uma rádio livre, não comercial, portanto não veicula propagandas de produtos ou serviços. Também não se deve fazer propaganda religiosa, nem de partidos políticos.” (Princípio Mudo 1.1). Os integrantes do coletivo recusam qualquer iniciativa político-partidária, religiosas e de caráter comercial(a não ser anúncios que se enquadrem em conceitos de apoio cultural). Diante disso, o coletivo estabelece exemplos de resistência a certas formas de dominação e imposição, revelando-se um sistema de comunicação alternativa na busca de garantir sua diversidade e expandir vozes. No coletivo Rádio Muda, essa resistência fortalece também a prática da desobediência civil em relação às leis de telecomunicações que não condizem com os anseios da emissora, isto é, a negação à legislação vigente no País que criminaliza a apropriação do espectro de radiodifusão exercida pelas rádios livres. Essa desobediência civil, como caracteriza o filósofo Henry David Thoreau, envolve uma consciência de oposição legítima a um Estado injusto e autoritário, onde “Não é desejável cultivar pela lei o mesmo respeito que cultivamos pelo direito.”(THOREAU, 2012, p 9) A Rádio Muda e as demais rádios livres se auto organizam exercendo a prática da desobediência civil para promover a liberdade e o direito subjetivo dos cidadãos que anseiam realizar práticas comunicativas através dos meios radiofônicos. A Rádio Muda “Funciona de forma autogestiva, na boa tradição de um coletivo horizontal, sendo todas as decisões tomadas nas reuniões do coletivo, toda segunda-feira, às 20h, em frente da rádio.” (Princípio Mudo 1.2) e “Tudo o que for feito em nome da Muda (contatos, entrevistas, apoios, aquisição de material, etc.) deve ser comunicado ao coletivo, se possível com antecedência.” (Princípio Mudo 1.3) Portanto, verifica-se que há uma demanda constante pelo funcionamento de uma organização horizontal, democrática e de relações de poder mais simétricas entre os indivíduos. É uma proposta na qual todos os assuntos relativos à gestão da rádio são debatidos através da lista de e-mails do coletivo e, principalmente, na reunião semanal. Há também uma certa resistência à prática de votações, pois as decisões são geralmente tomadas a partir da busca pelo consenso, mesmo que condicional ou parcial. Dessa forma, o caráter coletivo funda-se na sua distinta estrutura organizacional e reflete também a forma como o coletivo apresenta-se. Vemos também, que no plano estrutural desse modo de gestão, “[é] importante que a rádio atue como o meio de comunicação que é, divulgando informações, notícias, eventos, etc., estando isso, porém, a cargo do interesse e bom senso de cada programador.” (Princípio Mudo 1.4) Dessa forma, a

apropriação desse meio comunicativo e a consequente oportunidade de deslocar informações é o que articula esse grupo de pessoas que se empenham coletivamente e voluntariamente para promovê-la. Ao se exercer a comunicação livre, os participantes da rádio estão em constante envolvimento entre si e com a sociedade, numa esfera de múltiplas dimensões que podem ser assumidas na produção radiofônica e nas práticas artísticas. O bom senso, que está ligado ao conhecimento e discernimento do programador, define a sua orientação pessoal em diversos aspectos: seja na sua escolha e criatividade na programação musical, seu conhecimento técnico ou sua capacidade de organização no coletivo. Conforme os programadores diversificam suas experiências, enquanto participantes do coletivo e programadores da emissora, assumem-se também certas responsabilidades por suas escolhas. Nota-se o progresso de amadurecimento enquanto participante consciente e ativo da sociedade e avanços na habilidade de partilhar ideias culturalmente, intelectualmente e politicamente. Além disso, essa ampla liberdade para o exercício da comunicação permite ao programadores a aprendizagem de construir, à sua maneira, o conhecimento sobre produção e comunicação radiofônica. Essa experiência transforma a Rádio Muda num polo aglutinador de interesses e desejos, onde os participantes e interessados são estimulados a formular objetivos, produzir cultura, divulgar projetos e talentos locais, integrar-se à comunidade e descobrir-se, até mesmo, futuros profissionais. A possibilidade de exercer a comunicação através do meio rádio é um processo que aproxima o sujeito da sua própria experiência. Nesse sentido, a diversidade de expressões sociais através da emissora é uma possibilidade de expressão da diferença em uma forma não conhecida, ou seja, ela é a própria possibilidade de diferença. Outro fator importante que aproxima a produção cultural da rádio livre Muda a uma cultura de comunicação popular, no papel de instrumento de organização social, educação e emancipação política está no princípio Mudo 1.6 “O repertório musical é livre, mas recomenda-se o distanciamento da programação da mídia comercial.” Junta-se assim, dentro de um mesmo fenômeno de comunicação, uma série de experiências que trazem, desde conteúdos enfatizados na cultura urbana e popular, até conteúdos alternativos e subversivos, geralmente vinculados à ação política, propostas de repúdio às imposições ideológicas e a resistência à dominação. Esse “princípio mudo" torna explicito o compromisso que o coletivo tem em consolidar a Rádio Muda como um meio de comunicação aberto, voltado para a produção de informação, cultura, e liberdade de expressão, surgindo de acordo com as aspirações daqueles que as criam e sempre levantando questões simbólicas e discussões sobre problemas, direitos e sobre a própria cultura da música mundial. Em um estudo feito sobre as Rádios Livres no país, Gonçalves comenta que “Certamente, o que existe nessas Rádios é uma enorme vontade de fazer uma comunicação paralela à que é estabelecida pelos meios convencionais de comunicação” (GONÇALVES, 2010, p 96). Evitando a reprodução do modelo comercial de comunicação, “todas as atividades relacionadas à rádio são voluntárias e isso faz com que seu progresso dependa do engajamento de cada programador, tanto o engajamento individual, quanto coletivo. As diferenças de

opinião existentes no interior do coletivo são resolvidas na base do debate e da experimentação” (ANDRIOTTI, 2004). Os “princípios mudos” também apontam: “Cada um é responsável pelo que diz. Não faça de todos uma opinião que é só sua ou de alguns. Quando expressar opinião sobre qualquer assunto, assuma” (Princípio Mudo 1.5). Esse fator indica uma relevante importância em relação à adequação individual de cada um a esse caráter coletivo colocado de maneira geral. Por outro lado, esse caráter indica uma versátil identidade coletiva que foi construída, resignificada e reafirmada desde os primeiros anos do coletivo. Essa identidade, que não é fixa, e também não é a mesma desde o início, é uma construção que passou por mudanças e disputas, assim como as narrativas sobre a Rádio Muda, que foram transmitidas via experiências pessoais e subjetivas. Assim, ainda que seja algo subjetivo, relacional e em constante mudança, o que é durável é um sentimento de pertencimento dos ‘mudeiros’ e a solidariedade que se estabelece coletivamente para efetivar essa rádio livre. RENOVANDO A RÁDIO MUDA

Imagem 3: Caixa d’água acima do estúdio. FONTE: .

A rádio possui alguns princípios relativos à entrada de novos mudeiros que recentemente foram rediscutidos pelos integrantes, surgindo então a ideia de deliberar algumas mudanças nesse sentido, assim como indica a mensagem abaixo, do programador A: Galera, vou tentar aparecer por lá hoje. Sinceramente, mais que antena, e transmissão, e PC, o importante mesmo é uma galera significativa se reunir e deliberar novas políticas de atuação, de comportamento, de estratégia, de divulgação... Parece papo meio escroto/autoritário/controlador, mas não é, acreditem. A verdade é que todo o nosso modo de operar foi (também, não só, mas também) o que nos trouxe até aqui... Ah, outra coisa verdadeiramente importante e sem a qual não dá para avançar, mesmo que tudo esteja funcionando na perfeição: Temos que limpar aquele buraco lá! Aquilo mete dó, não tem condições nenhumas. Se não nos juntarmos uma tarde para limpar a Muda, de pouco vai adiantar... Eu começava por aí. ;) Abraços

Essas “novas políticas de atuação, de comportamento, de estratégia, de divulgação...” vêm sendo discutidas pelos integrantes do coletivo e já produziu mudanças e criação de novas condições, porém é importante ressaltar aqui que o acordo de interesses nessa gestão coletiva é resultado de uma negociação e mediação de interesses para que as deliberações cheguem a um anseio comum mais próximo possível dos ideais coletivos e da preservação da emissora. Alguns dos motivos que conduziram esta mudança também são explicitados na mensagem abaixo, enviada pelo programador B: Nas ultimas semanas varios mudeir@s ficaram sabendo da volta da Muda e vieram perguntar da reunião de grade. Achei isso uma merda, pq pouc@s perguntaram como poderiam ajudar... as perguntas q mais ouvi foram: quando é a reunião de grade pra pegar MEU programa e como faz pra pegar MINHA chave. Nesse momento delicado a radio precisa de mais pessoas que realmente participem da sua organização, e não pessoas q só colem 1 vez por semana pra tocar 1 som.

Até o ano de 2014, a introdução de novos integrantes no coletivo Rádio Muda ocorria no início do semestre letivo, através da “reunião de grade”, na qual programadores apresentavam a forma de organização do coletivo e falavam a respeito dos debates que tem surgido dentro do movimento pela comunicação livre. Após essa roda de conversa envolvida na confraternização com os novos programadores, era feita a distribuição de horários para os programas dos novos mudeiros. Tal distribuição é feita de forma totalmente autônoma pelos próprios membros do coletivo, sem qualquer intermediação seletiva por parte de nenhum grupo ou indivíduo específico. Contudo, essa “reunião de grade” foi diluída e tornou-se complementar à reunião semanal do coletivo, ou seja, os interessados em participar do coletivo e transmitir seu programa comparecem a reunião semanal, onde ocorre uma importante conversa entre os integrantes do coletivo e a pessoa interessada. Aborda-se assuntos relativos à atuação e comportamento esperado do indivíduo dentro do coletivo, revelando a obrigatoriedade de criar um e-mail seguro compatível à lista de E-mail do coletivo e de fazer as oficinas de transmissão. Essas oficinas, que antes eram oferecidas numa data específica e

moldada para a participação de todos os novos integrantes, agora é feita durante o horário dos programas. O novo integrante deve acompanhar no mínimo dois programas realizados por programadores experientes. Esses programadores colocam-se à disposição para solucionar as dúvidas, ensinando o novo integrante a conduzir os equipamentos durante a transmissão e a compreender os compromissos contidos nos princípios mudos. Após inscrever-se na lista de e-mail e completar as oficinas, o novo “mudeiro” irá pagar o valor das cópias e obter a chave do estúdio, estando, dessa forma, apto para inaugurar seu programa de rádio. Essas mudanças têm bastante relevância a respeito da aplicação dos princípios relativos às chaves, ao zelo sob o espaço e a cautela sob os equipamentos. Visto que a dedicação exigida do novo integrante aumenta conforme essas mudanças, os integrantes do coletivo conduzem esses princípios a serem requisitados com mais frequência e vigor do que antes. Nesse ponto, a estrutura de organização livre desta rádio configura um espaço coletivo que permite o poder e o empenho das ações, mas também possui, simultaneamente, mecanismos próprios para coibir o poder. O uso da liberdade coletiva é delineado também com intuito de sobrepor-se às liberdades individuais e conflitá-la com a desproporção e as irregularidades nas tomadas de decisões dentro de seu próprio arranjo estrutural. DIMENSÃO POLÍTICA DA ORGANIZAÇÃO SOCIAL

Imagem 4: Charge do cartunista Batata Sem Umbigo. FONTE: .

Em debate promovido por um diretório do PT de São Paulo, em 1982, Félix Guattari transmitiu sua experiência com a luta das rádios livres na Itália e na França nos anos 70 e 80, relatando a historia das primeiras rádios livres que eram consideradas um “modo de produção de subjetividade através de um mínimo de reapropriação dos meios de comunicação” (GUATTARI; ROLNIK, 1999, p 121):

Considerados em si mesmos, o fenômeno rádio livre na Itália ou na França, assim como o fenômeno vídeo, superoito, etc., se prestam a todas as recuperações possíveis. O que vai permitir o desmantelamento da produção de subjetividade capitalística é que a reapropriação dos meios de comunicação de massa se integre em agenciamentos de enunciação que tenham toda uma micropolítica e uma política no campo social. Uma rádio livre só tem interesse se ela é vinculada a um grupo de pessoas que querem mudar sua relação com a vida cotidiana, que querem mudar o tipo de relação que têm entre si no seio da própria equipe que fabrica a rádio livre, que desenvolvem uma sensibilidade; pessoas que têm uma perspectiva ativa a níveI desses agenciamentos e, ao mesmo tempo, nao se fecham em guetos a esse nível.. (GUATTARI; ROLNIK, 1999, p 121)

A Rádio Muda caracteriza a si mesma como uma emissora de comunicação livre, aberta à expressão e manifestação de ideias. Segundo o texto do programador Cérebro Aquático (2001): Ao exercermos a comunicação livre e a partilha cultural, nos envolvemos entre nós e com a sociedade nas múltiplas dimensões que podem assumir as mensagens radiofônicas e as experiências artísticas, intelectuais e políticas que elas integram. E ao fazermos isso sem seguir chefes ou uma doutrina específica, nos diversificamos em maneiras variadas de realizar essa experiência, assumindo as responsabilidades por nossas escolhas e amadurecendo enquanto participantes conscientes e ativos da sociedade.

As atividades das rádios livres universitárias como a Rádio Muda tendem a se vincular aos movimentos sociais pois incentiva que “[grupos, núcleos, movimentos, centro-acadêmicos, produções independentes, ou nada disso] usem a rádio como expansão e construção de ideias, fortalecendo lutas e contribuindo de fato para a comunidade” (Anônimo, 2015b; colchetes no original). Desse modo, o coletivo constrói relações com estes segmentos e facilita a possibilidade de ações conjuntas através de alianças relativamente fluídas e temporárias. Neste sentido, a emissora pode ser considerada como uma alternativa palpável para ampliação dessas vozes frente a um opositor comum: o estrato social bastante seleto que possui o domínio do poder e são alinhados aos interesses da acumulação e da promoção de consensos majoritários. Este consenso majoritário, evidentemente comum aos meios de comunicação de massa, é prevalentemente debatido dentro do movimento de rádios livres. Contudo, a Rádio Muda equivale a um instrumento temporário de exposição e discussão de conflitos junto a diversas coligações. A emissora torna-se, assim, capaz de circular pela ampla rede enriquecedora de movimentos e mobilizações sem desvencilhar-se de sua própria luta pela democratização e acesso à comunicação. Concebendo, dessa forma, um instrumento midiático emancipado e com a relevância de múltiplas forças sociais que a constitui, Ela também é capaz de converter pessoas em agentes no interior de um setor estratégico de resistência que se expressa nas ondas de rádio. Essa resistência manifesta-se de diferentes formas no sentido de acelerar autonomias básicas, assegurar seus espaços de convívio e confraternização, dar sobrevida as tradições artísticas e musicais, assim por diante. A forma de gestão horizontal e igualitária do coletivo Rádio Muda pode ser considerada um impulsor para a conservação da emissora ao longo de tantos

anos. O antropólogo David Graeber, valorizando a percepção da sociedade, desmistifica o potencial humano de produzir novas maneiras de se organizar, afirmando que: It is much easier, in a face-to-face community, to figure out what most members of that community want to do, than to figure out how to convince those who do not to go along with it. […]. If there is no way to compel those who find a majority decision distasteful to go along with it, then the last thing one would want to do is to hold a vote: a public contest which someone will be seen to lose. Voting would be the most likely means to guarantee humiliations, resentments, hatreds, in the end, the destruction of communities. What is seen as an elaborate and difficult process of finding consensus is, in fact, a long process of making sure no one walks away feeling that their views have been totally ignored.”(GRAEBER, 2004, p. 89)

O raciocínio de Graeber indica a capacidade que os indivíduos têm de gerar formas de auto-organização igualitárias e não-hierárquicas. Segundo o autor, essa revolução é estimulada pela percepção de condições concretas e negativas como, por exemplo, os sistemas de trabalho abusivos ou o monopólio dos meios de comunicação, etc, que podem incitar os indivíduos a mobilizaram-se para criar formas alternativas de organização que até mesmo ignoram ou esvaziam o poder do estado. No caso das rádios livres, a desobediência ao poder do estado concentra-se na oposição à legislação relativa ao espectro de radiodifusão. A Rádio Muda também consolida-se como uma forma de ação coletiva baseada em variadas redes de produção e transmissão de informações, onde diversos agentes (programadores, ouvintes, etc...) têm a possibilidade de expor e trocar conhecimentos. Forma-se uma extensa teia de comunicação e conhecimento tecida tanto pela emissora em si quanto pelas pessoas que buscam operar os significados sócios-culturais de cada transmissor e ouvinte. Portanto, ela acaba atuando no âmbito de orientações simbólicas e culturais, tornando possível a oportunidade de mudar o modo de agir e pensar das pessoas, dando luz às novas possibilidades de atuações, como bem caracteriza Melucci: Os atores nos conflitos são cada vez mais temporários e sua função é revelar os projetos, anunciar para a sociedade que existe um problema fundamental numa dada área. Eles têm uma crescente função simbólica, pode-se talvez falar de uma função profética. Eles são uma espécie de nova mídia (Marx & Holzner, 1977; Sassoon, 1984). Eles não lutam meramente por bens materiais ou para aumentar sua participação no sistema. Eles lutam por projetos simbólicos e culturais, por um significado e uma orientação diferentes da ação social. Eles tentam mudar as vidas das pessoas, acreditam que a gente pode mudar nossa vida cotidiana quando lutamos por mudanças mais gerais na sociedade. (MELUCCI, 1998, p. 59).

A rádio livre Muda insere-se hoje em um contexto amplo de relações alémfronteiras, sendo também expressão de uma necessidade social crescente por espaços abertos ao diálogo, a livre troca de informação, a produção cultural e a livre associação. De acordo com os autores Polleta e Jasper (2001), os frames são um exemplo interpretativo da identidade coletiva, servem de estratégia para mobilizar novos atores e também aqueles que já fazem parte do coletivo, e são chaves interessantes para compreender a visão do grupo e definir também os opositores

a esse movimento. Algumas frases criadas pelo coletivo explicitam e resumem muito bem os ideais coletivos desse movimento: “Radio Muda, radio livre!”; “Radio Muda, nem legal, nem ilegal, livre!”; “Seja sua própria mídia!” Sendo que esses “frames” demonstram o modo com que a identidade coletiva molda não só o caráter organizacional do coletivo, mas também atrai a construção das individualidades que se agregam ao coletivo. Segundo os autores Della Porta e Diani (1999), identidade coletiva é um processo de produção e reprodução de certas visões de mundo e, em certo grau, trata-se também de proximidades e convivência entre pessoas que compartilham certas visões de mundo similares, num processo de estruturação compartilhada de valores, atitudes, troca de experiências e estilos de vida. Nesse sentido, é um processo de articulação de atores coletivos e individuais e modos de vida que são compartilhados e estabelecidos por meio de redes de sociabilidade, além de uma certa atribuição de traços específicos nas relações sociais que este fenômeno coletivo estabelece. A participação desses atores tem caráter fluido, ou mesmo temporário, portanto o coletivo demonstra uma organização policêntrica, na qual se estabelecem lideranças distintas. Segundo Guattari “Para se compreender a proliferação de um fenômeno como o das rádios livres, e preciso situá-lo como uma intervenção que se dá, exatamente, a nível do inconsciente social. Talvez o termo "inconsciente" não seja muito adequado. Utilizo-o por comodidade, pois seria mais exato dizer um questionamento do modo de semiotização coletiva em sua relação com a fala, com a informação, e com o interlocutor ‘mídia’” (GUATTARI; ROLNIK, 1999, p 236) CONCLUSÃO

Imagem 5: Estúdio da Rádio Muda. FONTE: .

Na presente pesquisa, também foram levadas em consideração percepções e observações pessoais surgidas em incontáveis ocasiões em que estive na Rádio. Afinal, eu era apenas mais um nessa extensa rede que forma a estrutura dessa rádio, além de que a beleza da história construída na experiência com a emissora alteraram-me na esfera pessoal e instigaram-me a torná-la meu objeto de estudo inicial. Num momento em que muito se fala em sociedade da informação, direito à comunicação e o acesso das populações empobrecidas aos meios de comunicação, a experiência de comunicação da rádio livre Muda relatada e analisada aqui é uma pequena amostra nas possibilidades do uso criativo da mídia com finalidades educativas e político-culturais. Esta pesquisa revela que a existência da Rádio Muda nos ensina a fazer valer os próprios espaços, isto é, promover uma rica experiência de apropriação e aproveitamento que configura um espaço coletivo. Neste caso, uma emissora que depende da vontade criativa e da motivação para desenvolver ideias. Portanto, a Rádio Muda transmite assim seu legado de valorização e expansão de opiniões, bem como sua forma de organização social que respeita a liberdade e o pluralismo. BIBLIOGRAFIA ANDRIOTTI, Cristiane Dias. O movimento das rádios livres e comunitárias e a democratização dos meios de comunicação no Brasil. Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas sob a orientação do Prof. Dr. Renato Ortiz, 2004. ANÔNIMO. Princípios Mudos. Disponível em: . Acessado em 10/08/2015. 2001. 2015a. ANÔNIMO. Convite Muda. Disponível em: < http://muda.radiolivre.org/node/285>. Acessado em 10/08/2015. 2001. 2015b. CÉREBRO AQUÁTICO. Como se faz a Rádio Muda? Disponível em: . Acessado em 10/08/2015. 2001. DELLA PORTA, D.; DIANI, M. Social movements: an introduction. Great Britain: MPG Books Ltd, Bodwin, Cornwall, 1999. GONÇALVES, Flora. Rádios Livres: As controvérsias ainda pairam no ar? Uma análise antropológica das novas relações sociais de radiodifusão.Universidade Federal de Minas Gerais - Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, 2010. GONÇALVES, Flora. Rádios Livres, Redes de Interconexão: Compondo um coletivo de humanos e não humanos. 32° Encontro Anual da ANPOCS, GT 26-Novos modelos comparativos: antropologia simétrica e sociologia póssocial, 2008. GRAEBER, David. Fragments of an Anarchist Anthropology. Chicago, Prickly Paradigm Press, 2004.

POLLETTA, F.; JASPER, J. M. Identidade Coletiva e Movimentos Sociais. Annual Review of Sociology, 2001. THOREAU, Henry David. A Desobediência Civil. São Paulo, Penguin Classics Companhia das Letras, 2012. GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolitica – Cartografias do Desejo. Petrópolis, Editora Vozes, 1999. MACHADO, Arlindo. Rádios Livres: a reforma agrária no ar. São Paulo, Brasiliense, 1987. AGRADECIMENTOS Agradeço ao programa CNPq/PIBIC pelo financiamento do projeto de pesquisa e pela concessão da bolsa de Iniciação Científica. Agradeço aos membros do coletivo Rádio Muda pelo apoio durante a execução do trabalho. Agradeço à minha parceira Circe e aos meus pais William e Rosemary pelo suporte invariável e incondicional.

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