Interpretação, discurso racional e metodologia jurídica: a indelével sombra da «criatividade» (Parte 1)

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Interpretação, discurso racional e metodologia jurídica: a indelével
sombra da «criatividade» (Parte 1)

Atahualpa Fernandez(


«"¿Qué es la verdad?", dijo Pilato,
bromeando, y no se quedó a esperar la
respuesta». Francis Bacon




A filosofia da ciência se ocupa, óbvio é dizê-lo, da ciência, mas não
desde qualquer ângulo, senão desde a perspectiva da racionalidade. Um dos
supostos mais comuns nas ciências sociais normativas – mil vezes mais comum
do que a primeira vista possa parecer – é o suposto de intencionalidade ou
racionalidade dos sapiens. A filosofia da ciência se interessa
primordialmente pela racionalidade "epistêmica", pela correta eleição das
crenças dos humanos.
Já os cientistas sociais (e muito especialmente os agentes do
direito), em seus supostos de racionalidade da ação humana, costumam
ocupar-se da racionalidade de um modo mais global, abarcando: a) a
racionalidade epistêmica (ainda que de um modo muito marginal); b) a
racionalidade "prohairética" (a racionalidade dos desejos), que interessa a
todo mundo, mas que deveria interessar particularmente aos filósofos morais
e jurídicos; e – sobretudo – c) a racionalidade da ação propriamente dita
(que tem que ver com a eleição de condutas, dado uns desejos, umas crenças,
umas preferências e umas restrições).
Não sobra dizer que a ideia de racionalidade humana é controvertida,
que o "racional" não é mais que um (reduzido) aspecto do
pensamento/raciocínio jurídico e que cada ciência elabora ou adota uns
modelos particulares de racionalidade (E. P. Haba). E embora não
corresponda neste artigo apresentar um listado completo acerca das
discussões que gera este conceito, direi que o termo racionalidade costuma
aplicar-se a uma grande variedade de hipóteses e, ao menos, em três
contextos diferentes. No primeiro, é usado para "explicar" decisões.
Atribuir a condição de racional à decisão de um agente supõe a
identificação das razões pelas quais esse sujeito tomou determinada
decisão. A racionalidade aqui tem um caráter descritivo (das razões que
levaram um indivíduo a decidir-se atuar). Em geral, o sentido explicativo
da racionalidade costuma estar acompanhado de um sentido preditivo acerca
das decisões futuras de um agente.
No segundo contexto, a ideia de racionalidade se utiliza para
"avaliar" ações. Nesse sentido, dizer que uma ação ou decisão é racional ou
irracional é estabelecer respectivamente um valor positivo ou negativo, de
controle, dessa decisão ou ação. No terceiro contexto, a noção de
racionalidade aponta a questões estritamente técnicas. Neste caso, o único
que se postula é que dada uma eleição com um conjunto de informações, e
tratando-se de conformar uma única ordenação do conjunto de alternativas,
deve-se proceder de uma determinada maneira.
Agora: Em que circunstâncias é possível educar e controlar a
racionalidade? Posto que todos entendemos mal as coisas mil vezes, como se
deve entender o «controle de racionalidade» no contexto da jurisdição, isto
é, aquele que faz referência à atividade do juiz-intérprete? Para exercitar
um controle similar, a que tipo de racionalidade devemos fazer referência?
Quais são nossas (racionais) expectativas quando contemplamos a ideia de
criatividade na esfera da interpretação jurídica? Como tratar as doses de
criatividade dos juristas requeridas nos (racionais) processos de criação,
interpretação e aplicação das normas jurídicas? Ou, já que estamos, que
papel joga a criatividade em uma prática que se pretende racional?
O problema remete às diversas concepções e contextos da racionalidade
na filosofia e nas ciências. Mas, para o que aqui interessa, a questão está
em saber se é possível pensar em uma específica racionalidade jurídica,
compreensiva do conjunto das razões que podem fazer parecer «racional»
(controlável ou educável) os resultados do processo de tomada de decisão.
Convém aclarar, antes de entrar em matéria, que a mesma ideia de uma
racionalidade exclusiva incorpora problemas que de algum modo e medida
interferem inclusive com o tema mais general da racionalidade no campo da
filosofia teórica e, mormente, da filosofia prática. No âmbito do direito,
o conceito de racionalidade (a capacidade que permite pensar, avaliar,
entender e atuar de acordo a certos princípios de "otimicidade" e
consistência), seguindo o consenso dominante (nomeadamente no campo da
hermenêutica e da argumentação jurídica), pode ser utilizado nas seguintes
acepções: i) racionalidade lógico-argumentativa; ii) racionalidade
dogmático-sistemática no interior da teoria geral do direito; iii)
racionalidade relativa aos valores por tutelar, no duplo plano do sistema
positivo e da política; iv) racionalidade respeito aos fins políticos por
perseguir, uma vez mais no duplo plano do ordenamento positivo e da
política; v) racionalidade do procedimento científico no sentido estrito,
para a parte na qual a racionalidade se vale dos conhecimentos e das
prognoses oferecidas pelas ciências empíricas e sociais; e, mais em geral,
vi) racionalidade referente à adoção de uma atitude metodológica atenta às
«condições de uma comunicação racional» em torno aos temas que relaciona a
criação, a interpretação-aplicação e a eficácia das normas jurídicas. (G.
Fiandaca)
Relativamente à argumentação jurídica (já que a – tão especulativa -
hermenêutica não aporta soluções que o agente jurídico busca e se detém
precisamente ali donde mais interessa em direito a teoria da interpretação,
quer dizer, a de proporcionar pautas do correto interpretar, critérios de
"racionalidade" e/ou "objetividade" interpretativa), o problema cardinal
parece ser, hoje mais que antes, a eleição de meios e mecanismos
metodológicos úteis, fiáveis, adequados e funcionais para a tarefa de dizer
a justiça no caso concreto de forma legítima e eficaz, dirigidos a gerar
discursos jurídicos (decisões) formal e/ou materialmente "corretos",
racionalmente controláveis e com potencial capacidade de consenso para a
solução de determinados problemas práticos relativos aos vínculos sociais
relacionais, ao exercício e aos limites do poder jurisdicional do Estado.
O pequeno inconveniente – apesar de que não há nada que admire mais
dos juristas que sua capacidade para produzir mitos – é que a pretensão de
proporcionar uma justificação exaustivamente racional (objetiva, correta
e/ou verdadeira) da maneira com que os agentes jurídicos conduzem suas
interpretações é ilusória. De fato, se nos baixamos dos céus de algumas
teorizações hermenêuticas e argumentativas celestiais (que se contradizem
escandalosamente), veremos que a interpretação jurídica, tal como a
conhecemos, é uma atividade levada a cabo por seres humanos rodeados e
atravessadas por pensamentos fundados em vieses cognitivos, inclinações
pessoais e apofenias, em mitos culturais e valores sociais de grupo, em
estereótipos tomados voluntária ou involuntariamente e em crenças, dogmas,
teorias ou explicações falsas, mas amplamente divulgadas, admitidas e
compartidas.
Assim que parece de uma arrogância alucinante pretender estabelecer um
modelo de racionalidade segundo o qual a interpretação/aplicação do direito
seja concebida como uma tarefa completamente neutra, racional e/ou
objetiva, dissociada do pessoal, do criativo, do ideológico e do político,
ainda que seja somente no sentido de reconhecer e proferir decisões
destinadas a manter o statu quo ou de dar continuidade ao ordenamento.
Sigamos.


( Miembro del Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public
Prosecutor); Doctor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/
Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research)
Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España;
Mestre (LL.M.) Ciencias Jurídico-civilísticas/Universidade de
Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for
Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA;
Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-
Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado
(Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes
Balears-UIB/España; Especialista Derecho Público/UFPa./Brasil; Profesor
Colaborador Honorífico (Associate Professor) e Investigador da Universitat
de les Illes Balears, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de
Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad
Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y
Sistemas Complejos/UIB/España.
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